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SANTO ANTÔNIO DE JESUS – BAHIA
2007
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2
UNEB – UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Departamento de Ciências Humanas – CAMPUS V
Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional
VIDAS NAS FRONTEIRAS:
Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da
Bahia
Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971
Santo Antônio de Jesus – Bahia
2007
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3
HAMILTON RODRIGUES DOS SANTOS
VIDAS NAS FRONTEIRAS:
Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da
Bahia
Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971
Dissertação apresentada ao
Departamento de Ciências Humanas
Campus V, da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Daniel Francisco dos Santos
Santo Antônio de Jesus – Bahia
2007
4
FICHA CATALOGRÁFICA
ELABORAÇÃO: Biblioteca Central da UNEB
BIBLIOTECÁRIA: Neuza Tinôco Melo Nunesmaia – CRB-5/229
Santos, Hamilton Rodrigues dos
Vidas nas fronteiras: práticas sociais e experiências de feirantes no
Recôncavo Sul da Bahia: Santo Antônio de Jesus 1948-1971 / Hamilton
Rodrigues dos Santos. – Santo Antônio de Jesus: [s.n.], 2007.
224 f. : il.
Orientador: Daniel Francisco dos Santos
Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
Departamento de Ciências Humanas.
Inclui referências e anexos
1. Feirantes – Santo Antônio de Jesus (BA) – Aspectos sociais. 2. Feiras
livres – Santo Antônio de Jesus (BA). 3. Economia urbana. I. Santos, Daniel
Francisco dos. II. Universidade do Estado da Bahia. Campus V.
Departamento de Ciências Humanas.
III. Título.
CDD: 381.18098142
5
TERMO DE APROVAÇÃO
HAMILTON RODRIGUES DOS SANTOS
VIDAS NAS FRONTEIRAS:
Práticas Sociais e Experiências de Feirantes no Recôncavo Sul da
Bahia
Santo Antônio de Jesus 1948 – 1971
Dissertação aprovada como requisito básico para obtenção do
grau de Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento
Regional, do curso de s-Graduação em Cultura Memória e
Desenvolvimento Regional, da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB, Campus V.
___________________________________________
Prof. Dr. Daniel Francisco dos Santos
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
___________________________________________
Prof. Dr. Charles de D’Almeida Santana
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
___________________________________________
Profª. Drª. Elizete Silva
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
Santo Antonio de Jesus – Bahia
2007
6
Aos meus pais, Braulina Rodrigues dos
Santos e Milton Souza Santos (In
memorian), e a todos os feirantes que
com seu ofício alimentam nosso corpo e
nutrem nosso espírito com sua cultura.
7
AGRADECIMENTOS
Não é possível a realização de um trabalho acadêmico sem o toque de várias
pessoas que dispensaram minutos e horas de seus tempos e me auxiliaram nos
vários momentos em que estive nas encruzilhadas da dúvida, do desespero, da
incerteza, e “sofreram” junto comigo.
Muitas pessoas foram importantes para a realização dessa dissertação.
Gostaria de agradecer aqui apenas as contribuições de algumas, aquelas que
estiveram mais presentes no decorrer desse trabalho. Aos depoentes, pessoas
imprescindíveis com quem compartilhei minhas reflexões, agradeço pela
disponibilidade em conceder as entrevistas e pela paciência com que me recebiam
nas seguidas vezes em que eu retornava para tirar algumas dúvidas e travar novos
diálogos.
A Deus, que me iluminou e me concedeu forças para a realização deste
trabalho.
A minha mãe e meus familiares presente de Deus em minha vida, pelo apoio,
paciência e incentivo dado a cada dia no decorrer do curso.
Sou grato ao professor Dr. Daniel Francisco dos Santos, pela sua paciência,
suas intervenções e orientações, as quais foram relevantes desde os primeiros
redimensionamentos da pesquisa até a dissertação desse trabalho. Principalmente
pela confiança que sempre depositou em mim e pela generosidade que sempre
afagou-me a alma. Um eterno abraço.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Cultura,
memória e Desenvolvimento Regional, da Universidade do Estado da Bahia,
Campus V.
Ao professor Charles D’Almeida Santana. Foi a partir de suas reflexões que
acabei me encontrando no labirinto da cidade.
8
Ao professor Felipe Santos Magalhães pelas suas sugestões quando parte
desse trabalho foi submetido à banca de qualificação.
Ao professor Mrs. e amigo Denílson Lessa dos Santos por dedicar horas do
seu tempo para compartilhar comigo algumas reflexões e ter tido paciência em ler
várias páginas desse trabalho.
À professora e amiga Hildete Leal dos Santos pelas suas sugestões quanto à
escrita e revisão textual dessa dissertação, por me ouvir nos momentos de angústia
e dedicar seu precioso tempo e contribuição para a conclusão desse trabalho.
Sou grato a Júnior, Leno e Calebe, pela amizade e por estarem disponíveis
prestando seus serviços com muita dedicação sempre que necessário.
Aos bibliotecários, especialmente Bartolomeu, pessoas compreensíveis e
prestativas, da biblioteca do Campus V da UNEB, que tanto me ajudaram em
momentos difíceis.
Ao bibliotecário e amigo Antonio Silva pela contribuição de grande valia.
Aos professores, amigos e alunos do Colégio Estadual professor José Aloísio
Dias de Mutuípe-Ba, que sempre me apoiaram e deram força nessa caminhada.
À Secretaria de Educação do Estado da Bahia que me concedeu licença para
realizar essa pesquisa e redação desta dissertação.
Aos colegas de curso, Sinéia, Deije, Tarcísio, Nilo, Júlia, Silene, Wiltércia,
Silvania, Cristiana, Maria Luiza e Elisângela, com os quais compartilhei dúvidas
acerca desse trabalho e dividi angústias ao longo desses dois anos.
Um agradecimento especial à colega do curso de mestrado Andréa Ribeiro,
por suas observações acerca de meus problemas de pesquisa, pelo convívio e pelo
estímulo nessa trajetória.
Ao pessoal do Arquivo Público Municipal, principalmente seu Augusto, do
Arquivo da mara Municipal de Santo Antônio de Jesus e do Serviço de Estatística
e Informação da Bahia – SEI, pelo fornecimento de informações.
À professora e amiga Ms. Sueli Santana pela força que me deu nos
momentos difíceis e pela leitura do texto.
9
Ao Sr. Amarílio Monteiro Orrico, por fazer-me entrar em contato com o
passado através de sua memória e dos seus documentos preciosos de seu arquivo
particular, como as fotografias.
Aos amigos Amarílio Monteiro Orrico, Tau Tourinho e Carlos Veiga dos
Santos, por disponibilizarem seus preciosos acervos fotográficos para consulta.
Por fim, mas não menos importante, os feirantes, moradores e ex-moradores
da cidade de Santo Antônio de Jesus, que colaboraram direta ou indiretamente com
este trabalho, os meus sinceros agradecimentos. Sem o toque e as vozes de vocês
não se concretizaria essa dissertação.
Muito obrigado.
10
“O Passado traz em si um índice
misterioso, que o impele à redenção. Pois
não somos tocados por um sopro do ar
que foi respirado antes? Não existem nas
vozes que escutamos, ecos de vozes que
emudeceram? Não tem as mulheres que
cotejamos irmãs que elas não chegaram
a conhecer? Se assim é, existe um
encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e a nossa. Alguém
na terra está à nossa espera. Nesse caso,
como a cada geração, foi nos concedida
uma frágil força messiânica para qual o
passado dirige um apelo. Esse apelo não
pode ser rejeitado impunemente.
Walter Benjamin
11
RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo do cotidiano de homens e mulheres que se
deslocavam de áreas rurais para trabalhar como feirantes na feira-livre de Santo
Antônio de Jesus-Bahia, entre os anos de 1948 a 1971. A investigação do cotidiano
e das experiências desses sujeitos, no campo e na cidade, possibilitou discutir de
que forma os feirantes foram se inserindo e ocupando o espaço na urbe e como eles
contribuíram no processo de construção da fisionomia urbana da cidade da Capela.
A partir da análise das “artes e maneiras de fazer”, formas de sociabilidades e
práticas culturais, nota-se que os feirantes singularizaram e contribuíram na
“produção” do espaço com uma forma específica de habitar este território re-
elaborando a “geografiae a dinâmica das relações entre campo e cidade. Enfatiza-
se, aqui, os atos de compra e venda de mercadorias, as formas de mercadejar,
histórias de vida de homens e mulheres feirantes, os sonhos, os desencantos, as
frustrações, as alegrias, as dificuldades no mundo do trabalho, os arranjos e
improvisos para a sobrevivência dentro e fora da feira, a estética particular desse
ambiente, os evidentes conflitos, o lazer e as múltiplas experiências desses
feirantes. O período analisado foi entre 1948 (data que ocorreu a primeira feira a ser
realizada num segundo dia da semana Quarta-feira na cidade) e 1971 (ano em
que foi inaugurado o novo Centro de Abastecimento Municipal). Esse recorte
temporal justifica-se pelo fato de que essa foi uma época em que a cidade de Santo
Antônio de Jesus, em meio a um forte discurso de progresso e civilidade por parte
das elites locais, passou por um período de várias transformações na configuração
físico-espacial. O estudo utilizou-se, como fonte privilegiada, dos depoimentos de
feirantes, ex-feirantes e outros moradores da cidade. Além das fontes orais,
utilizamos fontes escritas como jornais, leis, atas e decretos e fontes imagéticas
como fotografias.
Palavras-chave: cotidiano; feirantes; campo e cidade; formas de sociabilidades;
práticas culturais; espaço urbano; feira-livre; experiência.
12
ABSTRACT
This work presents a study about the quotidian life of men and women who used to
commute from rural areas to Santo Antônio de Jesus-Bahia in order to work at the
street fair, from 1948 to 1971. The investigation of those people's everyday life and
experiences, in the countryside as well as in the city, led us to the discussion of how
the street fair workers gradually became part of the urban space, contributing to the
construction of the urban scenery of “the Chapel Town”. By analyzing the “arts and
crafts”, forms of social interaction and cultural practices, we perceive that the street
fair workers were unique at the “production” of space with a specific way of living in
such territory, giving a different shape to the “geography” and the dynamics of the
relations between countryside and city. Emphasis is given to the acts of buying and
selling goods; forms of trading; life histories of those people, together with their
dreams, misfortunes, frustrations, joys, difficulties at laboring, the arrangements and
rearrangements for surviving in the fair and out of it; the specific esthetic of that
environment; the evident conflicts; leisure; and the multiple experiences of those
workers. The period analyzed was the one from 1948 (when the first fair took place in
the city for the second day in the week Wednesday) and 1971 (when it was
inaugurated the new Center of Municipal Supplying). The choice of that historical
period is justified by the fact that that was a time when the city of Santo Antônio de
Jesus had its physical-spatial configuration submitted to intense transformation,
because the city was involved by a strong discourse on progress and civility coming
from the local elite. These were privileged sources in this study: reports from street
fair workers, former workers and other town people. Beside the oral sources, we use
written sources such as newspapers, legal documents and photographs.
Key words: quotidian life; street fair workers; countryside and city; social interaction;
cultural practices; urban space; street market; experience.
13
ÍNDICE DE FOTOS
FIGURA 01 – Mapa Divisão Político-Administrativa da Bahia – 2000………. 34
FIGURA 02 – Mapa Região do Recôncavo Sul……………………………….. 35
FIGURA 03 – Feira-Livre de Santo Antônio de Jesus – Década de 40……...
38
FIGURA 04 – Padaria Centenário………………………………………………. 53
FIGURA 05 – Comercial São Luis………………………………………………..
54
FIGURA 06 – Estação Ferroviária (1880-1971)……………………………….. 56
FIGURA 07 – Clube Palmeirópolis……………………………………………… 58
FIGURA 08 – Fonte Santo Antônio……………………………………………… 66
FIGURA 09 – 1º Trio Elétrico…………………………………………………….. 147
FIGURA 10 – Cordão de Micareta………………………………………………. 151
FIGURA 11 – Cine-Teatro Glória…………………………………………………
155
FIGURA 12 – Circo Vai-Quem-Quer……………………………………………..
163
FIGURA 13 – Antiga Igreja Matriz………………………………………………..
190
FIGURA 14 – Igreja Matriz em Construção…………………………………….. 193
14
ABREVIATURAS
ACMSAJ – Arquivo da Câmara Municipal de Santo Antônio de Jesus.
APMSAJ – Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus.
AP – Arquivo Particular.
APSAJ – Arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus.
SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia.
SEPLANTEC Secretaria do Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da
Bahia.
15
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………...
15
2 A FEIRA E A CIDADE.………………………………………………………….
30
2.1 A Capela.……………………………………………………………………….. 31
2.2 Firmes Propósitos.…………………………………………………………….. 41
2.3 Uma Geografia da Feira.………………………………………………………
52
2.4 Feirantes em Cena.…………………………………………………………… 69
3 A FEIRA E SEUS “OUTROS” PROTAGONISTAS………………………… 83
3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos………………………………………………..
84
3.2 Crianças, Mulheres. Outros Papéis…………………………………………. 92
3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade………………………………………….. 100
3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado……………………………….…... 105
3.5 Em Meio ao Trabalho, o Lazer………………………………………………..
114
4 RELIGIÃO, LAZER, ARTE E PRAZER……………………………………….
121
4.1 Festas Religiosas………………………………………………………….…... 122
4.2 (En)cantos na Cidade……………………………………………………….... 144
4.3 O Tamanco e a Chita…………………………………………………………. 168
5 A FEIRA: UM MUSEU A CÉU ABERTO…………………………………….. 179
5.1 Visitando uma Exposição…………………………………………………….. 180
5.2 Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos………………………………… 186
5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar…………………………………………. 190
5.4 A Feira se Descasa…………………………………………………………….
195
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………. 210
FONTES…………………………………………………………………………….. 214
16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………….. 218
ANEXOS……………………………………………………………………………..
224
15
1 INTRODUÇÃO
É importante recuperar o que pudermos
sobre o modo como os trabalhadores pobres
viviam, agiam e pensavam. (Eric J.
Hobsbawm)
Revisitando o meu b da memória, encontrei várias lembranças a então
adormecidas pelo próprio percurso da história. Ao começar a retirar as peças
daquela velha caixa tão bem guardada, de repente, como flashes de uma antiga
máquina fotográfica, imagens iam surgindo, quase que tomando minha própria
memória de assalto. Entre angústias e alegrias, nostalgia e incertezas, fui
gradativamente me aproximando de um real vivido, de outros pessoas, de outros
espaços, de outros lugares que não imaginava poder mais encontrar. Lembrei da
minha família, de meu pai, de minha mãe e de mim mesmo. Lembrei da vida dura,
da ansiedade de meu pai em querer criar os filhos, em decidir ganhar a vida na
“cidade grande”, ir embora para São Paulo, e chegando lá, tão longe, enfrentar os
infortúnios que a vida cotidiana lhe reservava. Mas ele não desistira de sua vida,
pelo menos nesse momento, retornou com a certeza de que teria que criar novas
possibilidades para continuar sobrevivendo. Fazer carrinhos de madeira, escorredor
de pratos e prateleiras, também de madeira, para dependurar panelas de alumínio,
usando como oficina sua própria casa, fora a saída encontrada por ele naquela
ocasião. Mas, por razões que não pretendo revelar aqui agora, ele o podia estar
lá, na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, comercializando seus produtos, a saída
encontrada foi deixar o gerenciamento dos negócios sobre a responsabilidade de
sua mulher e de seu filho mais velho, que começou negociar na feira ainda com seis
anos de idade. Homem de múltiplas funções – padeiro, pedreiro, marceneiro e
carpinteiro – a última profissão do meu pai foi exercer o ofício de feirante.
Mas não foi só ele da família que exerceu esse ofício, minha mãe e eu, o filho
mais velho e uma prima, também um dia o exercemos. Ainda me lembro do local
16
onde ficava nossa guia, não tínhamos soldo suficiente para dispor de uma
barraca, apenas colocávamos nossas mercadorias expostas em cima de um pedaço
de pano. Lembro-me da dinâmica da feira, localizada em suas novas instalações,
dos outros feirantes amigos de minha mãe, do burburinho, da diversidade de sujeitos
e produtos ali existentes. Lembro-me dos homens engraçados que conseguiam
reunir várias pessoas ao seu redor para ver a tal da cobra elétrica numa bacia cheia
d’água. Lembro-me do cansaço de um final de sábado à tarde quando voltávamos
para casa, tristes ou alegres, a depender do ritmo das vendagens naquele sábado.
Lembro-me mais ainda, dos dias que não conseguimos vender nenhum carrinho.
Nos labirintos da vida cotidiana, meu pai optou pelo desencontro, deu adeus para a
vida, no sentido mais literal que a expressão pode ter: cometeu suicídio. Eu, ao
contrário, optei pelo encontro e fui em busca das histórias da vida cotidiana daqueles
que começaram exercer o ofício de feirante antes dele e continuar lutando. Decidi
acrescentar em meu baú novas e velhas histórias que começo a contar agora.
Entrar numa feira-livre é entrar num universo de gente que compra, que
vende, que vê, que fala, que sorri, que chora, que se lamenta, que brinca e joga
conversa fora. Mosaico da vida real, retrato da cultura local e da região, ela
singulariza sua estética com as experiências dos múltiplos atores que a vivenciam,
transformando-se num labirinto a ser desvendado. As feiras existem como centros
de trocas milênios, e todas as culturas do mundo desenvolveram essa forma de
circulação de mercadorias. Sejam elas fixas ou permanentes, em terra firme ou
flutuantes, constituíam-se não em territórios especializados no abastecimento de
gêneros essenciais à vida, mas possibilitavam o encontro regular de produtores e
consumidores de mercadorias, convertendo-se em fervilhantes centros de troca de
experiências e vivências.
1
Estudos que elegem a feira como palco principal de seus personagens
implicam na busca de conceitos e significados que possam operacionar o
andamento da pesquisa. Tão heterogêneas quanto a própria feira, as várias
abordagens que existem acerca dela constituem-se em um leque de possibilidades
para aqueles que pretendem nela adentrar.
1
PAIM, Márcia Regina da Silva. Do sete São Joaquim: o cotidiano de “mulheres de saia” e homens
em feiras soteropolitanas (1964-1973). Dissertação de Mestrado, UFBA. Salvador, 2005. p. 20.
17
Afrânio Peixoto, citado por Paim, ressalta que as feiras foram fenômenos tão
importantes a ponto de determinarem em nossa língua a mudança dos nomes
tradicionais dos dias da semana.
2
O antropólogo Luiz Roberto de Barros Mott,
fazendo um estudo sobre a dinâmica da Feira da Ladra, no século XVI e na
atualidade, revela que o que chama a atenção de historiadores, arqueólogos e
artistas nessa feira é porque nenhum daqueles mercados estrangeiros (Europa) é
tão antigo e carregado de história como a Feira da Ladra.
3
Pierre Verger e Roger
Bastide ao estudarem os mercados nagôs do Baixo Daomé, na África, dizem que as
redes que unem diversos mercados uns aos outros não permitem circular somente
as mercadorias, mas também, com os homens e mulheres que transportavam estas
mercadorias, as crenças, os sentimentos e as atitudes que se difundem do norte ao
sul, do leste ao oeste.
4
No Brasil, até a década de 70, a historiografia pouco se importava com
estudos que privilegiassem o cotidiano e as vivências nesse espaço. Segundo Luiz
Mott, existiam algumas poucas monografias sobre poucas feiras famosas, alguns
artigos introdutórios assinados por geógrafos e antropólogos sobre as feiras do
nordeste e apenas um estudo geográfico sobre feiras urbanas. Ele afirma que
tínhamos uma bibliografia nacional bastante reduzida.
5
Mundicarmo Ferreti diz que
apesar do crescente interesse da Antropologia Econômica pelas feiras e mercados e
das inúmeras pesquisas que têm sido realizadas sobre os mercados da África, Ásia
e América Latina, pouco se tem escrito a respeito desse assunto no Brasil.
6
Nos últimos anos, ainda que de maneira tímida, vem crescendo o interesse de
pesquisadores de várias áreas em estudar os diversos aspectos que configuram as
feira-livres no país, muitas delas ainda envolvidas numa auréola de mistérios e
segredos. Dentre esses novos estudos, podemos destacar a contribuição da
geógrafa Sueli de Castro Gomes, que estudou a Feira da Sulanca, destacando como
2
PEIXOTO, Afrânio. Livro de horas. Rio de Janeiro: Agir, 1947. p. 269. Apud PAIM, Márcia Regina
da Silva. Do sete a São Joaquim: Op. Cit. p. 20.
3
MOTT, Luiz Roberto de Barros. A feira da Ladra no séc. XVI e na actualidade. Lisboa Portugal.
Editora Neogravura, Vol. 73. n. 418, fevereiro, 1973, p. 6.
4
VERGER, Pierre. BASTIDE, Roger. Dimensões de uma amizade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 2002, p. 185.
5
MOTT, Luiz Roberto de Barros. “Feiras e mercados: pistas para pesquisa de campo”. In: FERRETI,
Sérgio (Org.). Reeducando o olhar: estudos sobre feiras e mercados. São Luiz: UFMA, 2000, p. 16-
17.
6
FERRETI, Mundicarmo. Feiras nordestinas: estudos e problemas”. In: FERRETI, Sérgio.
Reeducando o Olhar:... Ibid., p. 46-47.
18
uma das problemáticas centrais de seu trabalho a análise do processo migratório e
as formas de inserção de migrantes nordestinos em São Paulo, a partir do comércio
de retalhos, tentando identificar as conexões que esse espaço (rua do Brás) mantém
com outros espaços, construindo uma malha de homens e mercadorias.
7
Márcia Regina da Silva Paim mergulhou no universo de algumas feira-livres
de Salvador na Bahia, investigando o cotidiano dos feirantes, dando ênfase à
participação ativa das mulheres negras neste ambiente de trabalho. Ela analisa a
feira do Sete, de Água de Meninos e São Joaquim, entre os anos de 1964 1973,
ressaltando aspectos da cultura afro-brasileira ali presentes.
8
Arinaldo Martins Souza no ensaio intitulado: A Feira-Livre na COHAB:
Contatos Iniciais Com a Realidade da Feira do Produtor Rural em São Luis, destaca
a presença do produtor rural numa feira criada pelo Estado, que teve um projeto
estabelecido visando determinados fins.
9
Em Feira de Santana, na Bahia, Izabel
Lorene Borges de Oliveira estende seu olhar sobre a feira-livre da Princesinha do
Nordeste, sobre o caráter festivo, quase que “circense” que aquela feira apresentava
nas décadas de 50 a 70, destacando a presença dos cantadores, cordelistas,
vaqueiros… naquele ambiente.
10
Ainda que de maneira incipiente, diversos olhares têm se voltado para as
feiras nos quatro cantos do país. Espaço que traz consigo a especificidade de que
todos podem nela adentrar, este estudo tem como objetivo analisar o cotidiano de
homens e mulheres que se deslocavam de áreas rurais entre os anos de 1948 a
1971, para trabalhar como feirantes na feira-livre da cidade de Santo Antônio de
Jesus, localizada na região do Recôncavo Sul da Bahia.
Analisar o cotidiano desses feirantes na perspectiva de dar relevância às suas
experiências, parte de um entendimento de que a vida cotidiana é a vida de todo
homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na
divisão do trabalho intelectual ou físico. Ninguém consegue identificar-se com sua
7
GOMES, Sueli de Castro. Do comércio de retalhos à feira da Sulanca: uma inserção de
migrantes em São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2002.
8
PAIM. Op. Cit.
9
SOUSA, Arinaldo Martins de. A feira na COHAB: contatos iniciais com a realidade da feira do
produtor rural em São Luis. In: FERRETI, Sérgio. (Org.). Reeducando o Olhar: Op. Cit.
10
OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Apolo e Dionísio na festa da feira: cantadores, cordelistas,
vaqueiros… da feira-Livre de Feira de Santana (Bahia). Monografia de Especialização. Feira de
Santana, UEFS, 2000.
19
atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da
cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial” que
seja, que viva tão somente na cotidianidade, embora essa o absorva
preponderantemente.
11
Nesse sentido, o que tentarei discutir, nessa dissertação, são homens e
mulheres “inteiros”, de carne e osso, que participavam da vida ativa do campo e da
urbe, tendo como espaço intersticial a feira-livre da cidade da Capela
12
. Homens e
mulheres que expressaram e colocaram em “funcionamento” os seus sentimentos,
as suas capacidades intelectuais, suas habilidades, suas paixões, idéias e
ideologias.
Movidos pela vontade de mudar de vida, esses homens e mulheres
começaram a se deslocar de diversas áreas rurais com o propósito de trabalhar
como feirante na cidade. Esses momentos não eram momentos quaisquer, eram
momentos de significativas mudanças em suas vidas. Por isso, eles não pouparam
esforços para saírem em busca de sonhos e utopias na cidade.
Exercer o ofício de feirante era ingressar num novo ramo de trabalho, comprar
mercadorias na própria cidade da Capela, em Salvador ou em qualquer outra urbe
para revendê-la. Era importar mercadorias de outros estados, era transformar a
própria matéria-prima em produto, era desempenhar várias funções ao mesmo
tempo. Ser feirante era enfrentar os importunos de fiscais e as peraltices de
moleques e mendigos, enfrentar as condições adversas do tempo, saber lidar com a
diversidade humana, interagir com outras culturas, construir seu próprio tempo e
tentar conduzir a própria vida.
Feirante, na nossa concepção, é toda e qualquer pessoa, produtor ou
revendedor, adulto ou criança, homem ou mulher, que esteja vendendo algum bem
ou mercadoria na feira.
13
Dessa forma, para percorrer o itinerário do mundo do
trabalho desses sujeitos, buscamos fugir de análises que privilegiam enquadrar os
trabalhadores sobre o víeis de uma “classe trabalhadora homogênea” e que sempre
privilegiou apenas as lideranças, não demonstrando interesse por aqueles
11
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4.ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992, p. 17.
12
Denominação dada à cidade de Santo Antônio de Jesus, até aproximadamente os anos 70.
13
ALVES, Amy Adelino. A mulher da feira do Riachão: modos de vida e experiência. In: ÁLVARES,
Maria Luiza Santos & FERREIRA, Eunice. Olhares e diversidades: Os estudos sobre Gênero no
Norte-Nordeste. Belém-Pará. GEPEM/CFCH; REDOR, 1999, p. 143.
20
considerados trabalhadores “comuns”. Tentando driblar o conceito de classe e as
perspectivas homogeneizantes, tão sedutoras ao historiador, optamos pela noção de
grupos, seguindo as trilhas de autores que discutem essas questões como Éric J.
Hobsbawm e E. P. Thompsom, partindo do pressuposto de que existe uma forte
heterogeneidade entre os diversos tipos de trabalhadores.
O historiador Daniel Francisco dos Santos tem razão quando diz que essa
heterogeneidade se manifesta através de identidades, religiosidade, aspecto étnico,
sistemas de valores, moral, etc.
14
Daí a importância de levarmos em consideração
as experiências desses indivíduos porque os valores não são “pensados”, nem
“chamados”; são vividos, e surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e
as relações materiais em que surgem as nossas idéias. São as normas, regras,
expectativas, etc., necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento) no
“habitus” de viver; e aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na
comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não poderia ser mantida
e toda produção cessaria.
15
Seguir as experiências desses feirantes foi atender ao chamado de
Hobsbawm quando diz ser importante tentar recuperar o que pudermos sobre o
modo como os trabalhadores pobres viviam, agiam e pensavam, e, na medida em
que agora está se produzindo uma grande quantidade de “história oral” ou mesmo
de memórias, realmente escritas por homens e mulheres da classe trabalhadora,
uma importante ampliação de nossa perspectiva.
16
Essas perspectivas se manifestaram nesse trabalho de várias maneiras. Uma
delas foi superar a visão de tendências a generalizações que ainda insistem em criar
uma imagem fixa de homem rural e de um sujeito que não reúne capacidades e
habilidades para lidar com o “moderno”. Ou seja, uma suposta inabilidade à vida
urbana. Durante todo o trabalho, esforcei-me em superar qualquer análise que
pretendesse seguir os rumos de uma visão dicotômica que polarizasse as relações
entre campo e cidade. Tentei acompanhar os passos desses sujeitos pensando o
14
SANTOS, Daniel Francisco dos; ALMEIDA, Juliana de; ANDRADE, Fabiane da Silva. Trabalho,
cultura, identidade: os artesãos da construção naval do baixo sul da bahia. Coleção de Idéias, Santo
Antônio de Jesus. v..1, n.1 Jun/Dez. 2003, p. 38.
15
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros: uma critica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 194.
16
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 2.ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1988, p. 23.
21
campo e a cidade como realidades históricas em transformação tanto em si próprias
quanto em suas inter-relações, buscando responder porque aquelas experiências
estavam ocorrendo naquele momento, preocupado em fugir do risco de cair em
isolacionismos ou congelar os tempos num tempo histórico vazio e homogêneo.
17
Durante a narrativa, em alguns momentos, o leitor irá se deparar com as palavras
roça e rua, aqui utilizadas como metáforas de campo e cidade.
A possibilidade de recuperar os modos como esses trabalhadores viviam,
agiam e pensavam, conforme nos lembrou Hobsbawm ainda a pouco, levou-me a
pensar nos procedimentos teórico-metodológicos dessa pesquisa. O diálogo com
autores que desenvolveram estudos acerca do trabalho com a memória e com o uso
de fontes orais deu-me segurança para desenvolver tal análise. Para Rousso “a
memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma
representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo
somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional”.
Portanto toda memória é, por definição “coletiva”.
18
Dessa maneira, pode-se apreender vivências individuais e coletivas de
tempos e espaços que deixaram marcas indeléveis nos corpos, nos sentidos, nas
festas, nas relações sociais, nas artes do fazer. A arte do lembrar emergiu revelando
valores, hábitos, costumes, atitudes inscritas na dinâmica de uma cultura marcada
por ações e contradições, num jogo dialético entre presente/passado/futuro inscritos
no decorrer da vida cotidiana.
Essa investigação traz como foco central de análise os sujeitos sociais. Minha
pretensão foi abordá-los buscando suas expressões culturais, algumas dimensões
de suas vidas, suas aventuras, seus anseios, as frustrações, jeitos de agir e de
pensar perante as vicissitudes da vida cotidiana. Privilegiei enfatizar as possíveis
formas de resistência, as improvisações, as micro-políticas, as formas como os laços
eram atados e desatados, o que era possível ser feito a partir da liberdade que eles
dispunham naquele momento. Daí, pensar a memória como vida, sempre carregada
por grupos vivos, aberta à ambivalência da lembrança e do esquecimento.
17
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990. Cap. XXV: Cidades e Campos.
18
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 4.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
2001, p. 94.
22
Cruzando fontes orais, fontes escritas como jornais, atas, leis, decretos e
livros de tombo e ainda fontes imagéticas, pude mergulhar no universo desses
sujeitos e tentar desvendar aspectos identitários, expressões de religiosidade,
maneiras de se divertir e sentir prazer, os variados significados que a vida festiva
lhes proporcionava, suas relações com vários outros grupos sociais. Entretanto, o
suporte fundamental de toda a dissertação são os depoimentos orais, porque essas
vozes da cidade abrem poderosas possibilidades de reflexões acerca de uma
“cidade dos feirantes”. Acredito que muito do que foi apreendido nesse trabalho seria
difícil de ser rastreado sem a potencialidade da narrativa oral. Entrevistas sempre
revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos:
elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das camadas
não hegemônicas.
19
Porém, assim como toda fonte histórica, sabemos dos limites e aquilo que
seus críticos chamam suas fraquezas, que são as fraquezas da própria memória,
sua formidável capacidade de esquecer, que pode variar em função do tempo
presente, suas “deformações” e “seus equívocos”. Acredito que esses mesmos
limites talvez constituem um de seus principais interesses. Essas “deformações” são
tão úteis para o historiador quanto as informações que se verificam “exatas”, porque
elas nos introduzem no cerne das representações que cada um de nós faz da
realidade e são evidências de que agimos muito mais em função dessas
representações do real do que do próprio real.
20
Ao começar dialogar com as fontes, as questões começaram aflorar.
Indagações do tipo: Como os feirantes foram se inserindo no universo da urbe em
meio aos discursos de setores das elites locais, de cunho “modernizador”, que
queriam civilizar os hábitos e costumes das gentes consideradas atrasadas? De que
forma esses trabalhadores contribuíram com o processo de construção da fisionomia
urbana da cidade da Capela? Como era ser feirante na região do Recôncavo Sul
nas décadas de 50 e 60 do século passado? Como essas pessoas oriundas de
áreas rurais ocuparam os espaços da cidade naquele momento? Como esses
homens e mulheres se relacionavam com as diversas linguagens culturais e
19
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev.
1997, p. 31.
20
JOUTARD, Philippe. Desafios à História Oral do Século XXI. In: FERREIRA, Marieta de Moraes.
(Org.). História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo
Cruz/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas. 2000, p. 34.
23
artísticas que estavam ao seu alcance? Essas indagações foram dando o tom do
nosso trabalho.
O uso de jornais, atas, leis, decretos, panfletos e livros de tombo nos
possibilitou apreender outras percepções da cidade da Capela. A imprensa escrita,
por exemplo, demonstra o importante lugar dessa linguagem na construção de
percepções a respeito da urbe. Nesses documentos, numa leitura a contrapelo, foi
possível perceber algumas tensões vividas por alguns grupos sociais, as
intervenções em dimensões da vida blica e privada, a conexão de lugares, as
disputas por territórios, as representações da cidade, abrindo brechas a pensar nos
diversos modos de viver e pensar o urbano.
Algumas fontes imagéticas que aparecem nesta pesquisa foram importantes
por nos auxiliarem no processo de reconstituição da cidade, tendo consciência de
que ao historiador a fotografia lança o grande desafio: como chegar àquilo que não
foi revelado pelo olhar fotográfico? Nessa perspectiva, pensamos a fotografia nesse
trabalho como um componente de uma rede complexa de significações, mas que
revela, através da produção da imagem, uma pista.
21
Ela ainda contribui para
revolucionar a memória, multiplicando-a e democratizando-a, permitindo guardar a
memória do tempo e da evolução cronológica.
22
Algumas fotografias foram
importantes para a nossa reflexão, outras aparecem no trabalho apenas como
ilustração, para, quem sabe, apenas seduzir o leitor.
As fotografias que ilustram este trabalho foram cedidas por Amarílio Monteiro
Orrico, Tau Tourinho, Carlos Veiga dos Santos, moradores da cidade, e algumas
foram encontradas no site da MMA que disponibiliza algumas informações históricas
sobre a cidade de Santo Antônio de Jesus. Embora não se saiba a data exata
quando foram registradas e quem são seus autores, essas fotos foram utilizadas
com o objetivo de se apreender algumas dimensões das vivências e histórias da
cidade. A contextualização histórica dessas imagens foram feitas junto aos seus
respectivos donos e a outros sujeitos sociais da pesquisa.
As fontes escritas encontradas em arquivos públicos e particulares, as fontes
orais e imagéticas permitiram-me montar um quebra-cabeça que tornou possível
21
CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem: os exemplos da fotografia e do
cinema. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de
teoria e metodologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 406.
22
LE GOFF, Jacques. História e memória. 2. ed. São Paulo: Editora UNICAMP, 1992, p. 460.
24
responder algumas indagações dessa pesquisa. No processo de seleção dos
depoentes, no que diz respeito aos feirantes, levamos em consideração a amplitude
das vivências desses indivíduos, indo em busca dos sujeitos mais idosos e daqueles
que trabalharam na feira-livre da cidade da Capela quando esta se localizava ainda
no centro da urbe. A descoberta dos sujeitos dessa pesquisa se deu de várias
formas: primeiro por força de conhecimento pessoal; segundo através de sugestões
de outros entrevistados; terceiro com a intermediação de familiares e amigos.
Entrevistamos aqueles que ainda continuam exercendo esse ofício e também
aqueles que deixaram de exercê-lo. Num outro momento, entrevistamos alguns
antigos moradores dos quatro cantos da urbe e de diversas camadas sociais que
ainda residem na cidade, e também outros ex-moradores que moram atualmente em
outros centros urbanos como Salvador e São Paulo e que, para a nossa felicidade,
estavam em Santo Antônio de Jesus a passeio no momento da pesquisa.
As entrevistas foram gravadas e transcritas, para depois serem analisadas,
excetos algumas narrativas de pessoas que não concordaram que seus
depoimentos fossem gravados. Dessa maneira, recorremos ao caderno de campo
que foi utilizado também em outros momentos, principalmente quando eu retornava
para tirar dúvidas com os depoentes sobre algumas questões relacionadas às
entrevistas já realizadas anteriormente. Não vimos nenhum empecilho quanto à
introdução e uso do caderno de campo nos pressupostos metodológicos de nossa
pesquisa, principalmente por entender que muito da análise e a performance dos
depoentes nas entrevistas foram observadas pelo investigador no caderno de
campo. O nosso cuidado foi ter em mente que uma entrevista “é uma troca entre
dois sujeitos: literalmente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a
outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca”.
23
Em muitos momentos os
meus investigados inverteram o jogo, queriam saber quem eu era realmente e
investigar minha vida. Nesse processo tentei transformar a entrevista em um
experimento em igualdade, da qual nos fala Alessandro Portelli
A igualdade e diferença são dois conceitos que se relacionam.
Somente a igualdade nos prepara para aceitar a diferença em
outros termos que hierarquia e subordinação; de outro lado,
23
PORTELLI. Op. Cit. Forma e Significado na história oral: a pesquisa como um experimento em
igualdade. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev. 1997. p. 9-23.
25
sem diferença não igualdade apenas semelhança, que é
um ideal muito menos proveitoso. Somente a Igualdade faz a
entrevista aceitável, mas somente a diferença a faz relevante.
O campo de trabalho é significativo como o encontro de dois
sujeitos que se reconhecem entre si como sujeitos, e
consequentemente isolados, e tentam construir sua igualdade
sobre suas diferenças de maneira a trabalharem juntos.
24
Antes de começar dialogar com os depoentes, sempre procurei deixá-los
informados do que tratava a pesquisa e quais os meus objetivos. Algumas
entrevistas foram feitas no próprio local de trabalho (atual feira) em dias em que a
feira não apresenta muito movimento, outras foram realizadas em suas residências
em dias de semana ou aos domingos e algumas em estabelecimentos comerciais.
Neste trabalho nos preocupamos também com as relações entre ética e história oral
no sentido de que conversar com os vivos implica, por parte do historiador, uma
parcela muito maior de responsabilidade e compromisso, pois tudo aquilo que
escrever ou disser não apenas lançará luz sobre pessoas e personagens históricos
(como acontece quando o diálogo é com os mortos), mas trará conseqüências
imediatas para as existências dos informantes e seus círculos familiares, sociais e
profissionais.
25
Foram entrevistadas 19 pessoas, num total aproximado de 25 horas entre
entrevistas gravadas, entrevistas anotadas e “conversas informais”. Quanto à
transcrição das fitas, optei em transcrever os depoimentos orais na “íntegra” por
entender que se “perde muito” (gestos, expressões, sinais, performance, etc.) e
que toda transcrição é em sua essência “precária”. Um outro fator relevante por
optarmos transcrever os depoimentos de maneira “tal qual”, é o fato de considerar
que essas formas revelam muito da cultura desses indivíduos. Todavia, algumas
transgressões foram feitas no sentido de tentar pontuar o texto conforme nossas
regras e valores gramaticais, inseridos no universo da cultura escrita. Transgredimos
o texto também, em alguns momentos, com o corte de algumas palavras repetidas
que a meu ver não comprometia a narrativa e seus significados.
A baliza temporal desse estudo se situa entre os anos de 1948 a 1971. A
escolha desse recorte se deu em função de que nesse período a cidade da Capela
24
Ibid., p. 9-23.
25
AMADO, Janaína. A culpa nossa de cada dia: ética e história oral. Projeto História, São Paulo, n.
15, Abr. 1997. p. 146-147.
26
vivenciara mudanças e transformações significativas na urbe. Em 1948 foi criado
uma outra feira naquele município, neste ano também iniciou-se a construção da
Nova Igreja Matriz, em 1958 fora instituído o decreto que determinava a
transferência da feira-livre do centro da cidade para áreas mais afastadas,
culminando com a demolição do Mercado Municipal e a mudança da feira em 1971
para o novo Centro de Abastecimento Municipal, localizado na praça Duque de
Caxias. Nesse período a construção de uma “cidade ideal” estava em jogo.
Entretanto, o recorte temporal da pesquisa o deve ser visto como algo “fixo” por
entender que a memória é fluída e esta abre possibilidades de ir e vir além das
fronteiras estabelecidas.
A problemática central da pesquisa é investigar, em meio ao forte discurso
das autoridades municipais e outros segmentos da elite local (jornalistas,
funcionários públicos, poetas, proprietários de casas comerciais, políticos,
proprietários de armazéns, etc.) que pretendiam “civilizar” e levar “definitivamente o
progresso” para aquela cidade, porque para eles, o estatuto de urbe se ratificaria
com a mudança de mentalidade dos indivíduos, como os feirantes se inseriram no
universo da urbe e de que forma eles contribuíram com a construção e ampliação da
fisionomia urbana da cidade de Santo Antônio de Jesus.
Para responder essas questões, lembro-me da historiadora Márcia Mansor
D’Alessio quando diz que o relato de uma situação vivida é mais esclarecedor que
qualquer teoria.
26
Evitamos pensar o “real” a partir de modelos explicativos, porque
os pressupostos teóricos são pontos de partida abstratos, desterrados e podem
constituir-se em entraves em vez de facilitadores do estudo do processo histórico.
27
Inserido na perspectiva da história social, a concepção de cultura que
permeará esse texto é a de um sistema de significados, atitudes e valores
partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) nas quais
eles são expressos ou encarnados,
28
entendo que a cultura não pode ser vista de
forma homogênea e que é preciso levar em consideração as diferenças e
26
D’Alessio, Márcia Mansor. Memória e historiografia: limites e possibilidades de uma aproximação.
Revista da Associação Brasileira de História Oral, São Paulo, n.4, Jun. 2001, p. 62.
27
SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e ventura camponesas: trabalho, cotidiano e migrações
Bahia: 1950-1980. São Paulo: Editora Annablume, 1998, p. 16.
28
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1983, p.
25.
27
semelhanças, exclusões e inclusões entre os sujeitos sociais analisados,
evidenciando processos e mudanças.
29
Pensando dessa forma, as perspectivas de abordagens de autores como E.
P. Thompsom, Carlo Guinzburg, Peter Burke, Stuart Hall, Mikhail Bakhtin
30
, dentre
outros, foram de grande valia para nossa análise quando em seus estudos “definem”
cultura em um sentido razoavelmente amplo. Neste trabalho tentei driblar análises
que emolduram a cultura na bipolaridade cultura popular e cultura erudita por
entender ser mais frutífero e “real” pensar nas interações, nas circularidades, nos
encontros e desencontros, nos conflitos e negociações existentes entre os grupos
sociais, mesmo sabendo que em alguns momentos a muralha da bipolaridade nos
impediu de passar.
Embora os conceitos desses autores estejam inseridos em contextos
históricos distintos (sujeito/tempo/espaço) e sejam relevantes às realidades
européias, quando realizado o devido recorte e adaptação, servem-nos para analisar
a temática em questão nesse trabalho. Os referenciais teóricos dessa pesquisa
foram buscados como possibilidade para se apreender as experiências
culturalmente vivenciadas pelos indivíduos.
A dissertação está dividida em quatro capítulos. No primeiro intitulado: A Feira
e a Cidade, tentei situar um pouco o leitor abordando as raízes históricas da cidade
da Capela, em seguida analisei os motivos que influíram nas tomadas de decisões
de homens e mulheres oriundos de zonas rurais a se deslocarem para trabalhar na
cidade de Santo Antônio de Jesus como feirantes. Seguimos os passos desses
indivíduos objetivando discutir os caminhos pelos quais eles foram criando uma
geografia na urbe e forjando práticas de inserção social através do universo da feira-
livre e também acompanhei a atuação de alguns desses sujeitos em outras feiras da
Bahia.
No segundo capítulo, concentrei mais minha análise na dinâmica da feira,
tentando evidenciar as relações sociais desenvolvidas a partir das experiências de
seus protagonistas. Neste aspecto, analisei os possíveis conflitos enfrentados pelos
29
Ibid.; p. 50-90.
30
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa (3 vols.) 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987; GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. HALL, Stuart. A identidade
cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; BAKTIN, Mikail. A cultura popular na
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: ADUNB, 1999.
28
feirantes no ambiente de trabalho, as estratégias utilizadas para solucioná-los, como
outros atores protagonizavam aquele universo construindo um território uno e
multifacetado. Analisei também o processo de construção/reconstrução de
identidades de alguns sujeitos e as formas de lazer que ocorriam no meio da feira
em meio ao trabalho.
No terceiro, acompanhei um pouco da vida dos feirantes fora da feira, tendo
como premissa que a vida cotidiana e as experiências desses indivíduos não se
resumiam apenas ao mundo do trabalho. Levando em consideração que em muitos
momentos o tempo do trabalho se imbricava com o tempo da festa, propomos
discutir as maneiras de se divertir, as formas de lazer e seus significados. Pensando
as festas não apenas como momentos de lazer e diversão, mas como espaços
recheados de sentidos culturais, possíveis de revelar modos de viver, de agir, de
pensar e de sentir. Procuramos ainda investigar como os feirantes se relacionavam
com as múltiplas linguagens culturais que estavam ao seu alcance naquele
momento. Analisando as experiências desses homens e mulheres no tempo da
festa, do lazer e da diversão, tentamos demonstrar formas de sentir prazer e outras
formas de se inscrever no campo e na cidade.
No último capítulo, me propus a defender a idéia de que a feira-livre é um
museu a céu aberto, demonstrando que uma produção material e simbólica se
apresentava naquele ambiente. Em minha concepção uma exposição temporária e
permanente ali se realizava a partir da produção visual de seus praticantes. Em
seguida Analisamos algumas idéias de progresso e civilidade na urbe, seus
impactos e as principais mudanças e transformações que ocorreram na cidade. Nos
esforçamos também em discutir o processo de resistência dos feirantes em meio à
transferência da feira-livre do centro da cidade para áreas mais afastadas.
Longe de querer determinar um lugar para esses sujeitos, sinto-me seduzido
a entendê-los como homens e mulheres que estavam sempre indo para lá e para cá,
alcançando outras margens. Eram homens e mulheres que viviam entre tempos e
fronteiras. Nesses deslocamentos as fronteiras entre casa e mundo do trabalho se
confundiam, estranhamente o privado e o blico tornavam-se parte um do outro,
muitas vezes se desenvolvendo na intimidade intersticial.
Eram homens e mulheres que viviam nas estradas indo e vindo para lá e para
cá, viviam no trem de um lado para outro alcançando outras margens, estavam no
29
campo e na cidade, mas não eram mais e apenas homens do campo, nem
tampouco eram e totalmente da cidade. Estavam nos espaços liminares, nas
fronteiras da vida, eram sujeitos em deslocamento sociais e culturais, estavam nas
fronteiras e nas divisas, estavam dentro e fora. Estavam em meio ao público e o
privado. E talvez a feira fosse por excelência o espaço intersticial em suas
experiências naquele momento.
Os feirantes eram homens e mulheres que estavam entre uma e outra
história, nas fronteiras da existência insurgente e intersticial da vida e da cultura.
Entre uma e outra e outras histórias, eram homens e mulheres que estavam no
“entre lugar”
31
. Entre o passado e o futuro, estar nas fronteiras era estar num tempo
presente, se enunciando de outro jeito, de outra maneira, com outras vozes. São
sujeitos que carregam consigo memórias de e de e de outros lugares. Não
tenho certeza se eram pessoas do campo, pessoas da cidade, pessoas do campo e
da cidade. Talvez eles sejam algo além disso. As experiências desses homens e
mulheres possibilitam traduzi-los como homens e mulheres com vidas nas fronteiras
e mulheres e homens nas fronteiras da vida. Cabe ressaltar que fronteiras aqui
aproximam mundos sem negligenciar as diferenças. Agora, convido a todos a
adentrar na “cidade dos feirantes”.
31
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG – Humanitas, 2005, p. 19-42.
30
2 A Feira e a Cidade.
2.1 A Capela.
2.2 Firmes Propósitos.
2.3 Uma Geografia da Feira.
2.4 Feirantes em Cena.
31
2.1 A Capela.
Pátria é acaso de migrações e do pão-
nosso onde Deus der… (Mário de Andrade)
Ele se chama João Nunes dos Santos, mulato, estatura mediana, olhos
grandes com “ar” de desconfiança, andar sereno, sorriso disfarçado, 75 anos de
idade. Elza Froes da Fonseca, magra, cor parda, cabelo crespo, estatura baixa,
“olhar” triste, 61 anos. Josué Pereira dos Santos, mulato, cabelo crespo, estatura
mediana, olhos pequenos com brilho espontâneo, sorriso largo no rosto, chapéu de
feltro na cabeça, 73 anos de idade. Ela é conhecida como D. Lina, negra, forte,
estatura baixa, católica fervorosa, “de bem com a vida”, 70 anos. Negro, 90 anos,
cabelo branco, olhar atento, viúvo, simpatia esfuziante, adora contar suas histórias,
conhecido como Augusto laranjeira na feira, seu nome é Augusto Soares da Silva.
Eles, seu João, dona Elza, seu Josué, dona Lina e seu Augusto, eram pessoas que
viviam a dezenas de quilômetros uma das outras. O primeiro morava no Rio da
Dona, a segunda em Dom Macedo Costa, o terceiro na Pedra Branca, D. Lina na
Jueirana e o último no Casaca de Ferro. “Anônimos da história”, eles têm histórias
de vida que dificilmente poderiam se cruzar, o que os reuniu neste trabalho foi a
decisão de, aproximadamente 50 anos atrás, tornarem-se feirantes e irem em
busca de sonhos e utopias na cidade da Capela.
O que se pretende aqui é discutir os caminhos pelos quais os feirantes foram
criando uma geografia na cidade da Capela, forjando práticas de inserção social a
partir do universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, bem como a atuação
desses sujeitos em outras feiras da Bahia.
A cidade de Santo Antônio de Jesus, anteriormente denominada de Capela
do Padre Matheus, Capela de Santo Antônio de Jesus, e depois, apenas, Capela,
tem suas “origens” relacionada ao sítio da Capela construída em terras doadas pelo
Padre Matheus Vieira de Azevedo, em 27 de setembro de 1776, ao redor da qual foi-
32
se edificando.
32
Até o ano de 1852 essas terras estavam ligadas eclesiasticamente
ao município de Nazaré, quando a Capela foi elevada à categoria de freguesia.
Tornou-se vila em 1880, tendo a sua Câmara instalada em 04 de março de 1883, e
em 1891 foi elevada juridicamente à categoria de cidade. Limita-se ao norte com os
municípios de Conceição do Almeida e Dom Macedo Costa (este se desmembrou de
São Felipe em 1962); ao sul, com Laje, São Miguel das Matas e Aratuípe; a leste
com Muniz Ferreira e São Felipe; e a oeste com Varzedo.
33
Localizada na Região do Recôncavo da Bahia, mais especificamente na
Região do Recôncavo Sul, a cidade de Santo Antônio de Jesus teve seu
povoamento estimulado a partir do plantio e cultivo de produtos agrícolas como:
mandioca, café, fumo, laranja, banana, jaca e outros gêneros alimentícios e
atividades agropecuárias desenvolvidas ao longo de sua história que remete aos
séculos XVII e XVIII quando os primeiros arruamentos começaram a se instalar
próximo à Praça Padre Mateus
34
.
Essas atividades tinham como principal objetivo a produção de alimentos para
abastecer a população local, da região e as cidades canavieiras, atender à demanda
dos homens que se deslocavam para colonizar o Sertão e, também, à população de
Salvador, capital do estado. O Recôncavo Baiano, ao longo de sua história,
configurou-se como uma região singular e plural, composta por vários sistemas de
produção e cultivo e múltiplas formas de relações sociais. Segundo a historiadora
Ana Maria Carvalho,
Se existem elementos que lhe dão unidade, também
aqueles que demonstram a sua diversidade. Difícil perceber a
riqueza, a pobreza, os contrastes do Recôncavo sem levar em
conta a variedade dos seus aspectos físicos, sócio-
econômicos e o seu percurso histórico.
35
32
QUEIROZ, Fernando Pinto de. A capela do padre Matheus. Feira de Santana-Ba: Sagra, 1995, p.
223.
33
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho dos Santos. Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no
século XIX. Salvador-Ba: Editora UNEB, 2002, p. 63.
34
SANTOS, Miguel Cerqueira dos. O dinamismo urbano e suas implicações regionais: o exemplo
de Santo Antônio de Jesus/Ba. Salvador: Editora UNEB, 2002, p. 29-37.
35
OLIVEIRA, Ana Maria Carvalho. Op. Cit. p. 57.
33
A autora ainda salienta que é possível identificarmos o Recôncavo como um
grande conjunto composto de porções diferenciadas. Estas porções que podem ser
vistas como pequenos recôncavos são: o Recôncavo canavieiro, o Recôncavo
fumageiro, o Recôncavo mandioqueiro e da subsistência, o Recôncavo da pesca e o
Recôncavo ceramista.
36
Essa configuração produziu na região uma diversificação econômica e,
concomitantemente, contribuiu para a intensificação de diferentes processos de
ocupação e povoamento, proporcionando mudanças significativas na estruturação
do espaço regional e das relações sociais.
Alguns estudos abordam o Recôncavo canavieiro como uma região
completamente diferente dentro do Recôncavo Baiano enfatizando que a ocupação
daquele espaço e a construção das relações sociais foram decorrentes da
monocultura canavieira baseada no sistema produtivo do tipo plantation. Todavia,
cabe ressaltar, estudos mais recentes mostram que a faixa de terra que a literatura
consagrou como Recôncavo Clássico ou Tradicional “não era apenas um grande
engenho”, havia ali grande variedade de cultivos e nem todos os escravos estavam
ligados à economia açucareira.
37
Dentro desse contexto Recôncavo e Recôncavos é que se insere
historicamente a cidade de Santo Antônio de Jesus, cujas terras do Recôncavo
mandioqueiro e da subsistência proporcionaram o surgimento de várias povoações e
possibilitaram a constituição de uma sociedade iminentemente rural com
características e objetivos distintos da sociedade canavieira, por exemplo.
38
No decorrer dos séculos XVIII, XIX e XX, diversos fatores provocaram uma
profunda transformação espaço-regional no Recôncavo Sul, resultando no
aparecimento, crescimento ou “declínio” de povoados, vilas, cidades e municípios.
Os principais fatores que contribuíram para as mudanças na configuração e
na dinâmica social dos núcleos urbanos e rurais no Recôncavo Sul da Bahia foram,
inicialmente, os caminhos das vias terrestres marcados por pedestres, carros de boi,
36
Ibid.; p. 57.
37
FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-
1910). São Paulo: Editora UNICAMP, 2006, p. 23.
38
Ver a interessante obra Recôncavo Sul: terra, homens, economia e poder no século XIX... Op. Cit.
onde a autora mostra a configuração social na cidade de Santo Antônio de Jesus no referido século.
34
burros, cavalos, carroças e, mais tarde, o transporte flúvio-marítimo e ferroviário,
além das atividades econômicas, sobretudo as feiras-livres.
FIGURA 01 – MAPA DIVISÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DA BAHIA – 2000
FONTE: http://www.sei.ba.gov.br/geoambientais/index_geoamb_mapas.php
DIVISÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA
ESTADO DA BAHIA
2000
35
FIGURA 02 – MAPA REGIÃO DO RECÔNCAVO SUL
A partir da segunda metade do século XIX, o Brasil e a Bahia começam a se
modernizar em vários aspectos. Dentre eles podemos destacar os meios de
transportes, com a introdução da ferrovia em várias regiões de todo o país.
Inaugurada em 1875, na cidade de Nazaré das Farinhas, a Estrada de Ferro,
batizada de Trans Road Nazaré, com um ramal inicial que percorria os vales dos rios
Jaguaripe, Taitinga e Mutum, estendendo-se até a cidade da Capela em 1880, fora
uma das inovações que trouxera grande desenvolvimento econômico para a região
do Recôncavo e outras cidades da Bahia.
36
Além de representar o novo e simbolizar o progresso, a introdução desse
meio de transporte na região implicava em viagens mais rápidas e rentáveis para
comerciantes que tinham como principal objetivo o escoamento dos diversos
produtos agrícolas produzidos nessas localidades, bem como o transporte de
pessoas.
Ao longo de quase um século, a Trans Road Nazaré conseguira atingir seus
objetivos, instalando trilhos de ferro que serviam cidades como: Laje, Mutuipe,
Jiquiriçá, Amargosa, São Miguel das Matas, Santa Inês, Itaquara, Jaguaquara,
Maragojipe, Ubaíra, e Jequié. Essa expansão possibilitou o escoamento de produtos
que muito contribuiu para a riqueza da Bahia: café, fumo, açúcar e farinha de
mandioca, além dos cereais, das madeiras das matas próximas e do minério de
manganês
39
e, ainda, charque, bacalhau, aguardente, etc.
A importância da Estrada de Ferro de Nazaré para o crescimento econômico
e expansão da cidade de Santo Antônio de Jesus não passara despercebida por um
dos filhos “ilustre” da terra.
A estrada de Ferro de Nazaré, que se fez aqui, afinal, por
vários anos, tornou a Capela de Padre Matheus o ponto de
convergência de toda a mata do Sertão de Baixo, (...) O
comércio em novo surto, alargou-se e engrandeceu a
povoação. A capela do Padre Matheus tornava-se o ponto de
convergência das tropas da mata e do Alto Sertão. Viajantes de
toda parte descarregavam e recebiam mercadorias.
40
Cássia Maria Muniz Carletto, em um estudo sobre a Estrada de Ferro de
Nazaré, aponta as mudanças que esta trouxera para o município e região. Segundo
ela,
Em 1880 inaugurou-se o tráfego da Estrada até Stº Antônio de
Jesus, que seria ponta de trilhos durante dez anos. A estrada
de ferro traria a prosperidade para o município, que em pouco
39
SIMÕES, Lindinalva. As estradas de ferro do recôncavo. Dissertação de Mestrado. Salvador-Ba.
Bahia: UFBA, 1970, p. 101.
40
ALVES, Isaías de Almeida. Matas do Sertão de Baixo. Bahia: Reper, 1967, pp. 171 e 233. Ana
Maria Carvalho de Oliveira, também ressalta que na década de 80 do século XX, a Estrada de Ferro
de Nazaré favoreceu alguns núcleos do interior, sobressaindo-se Santo Antônio de Jesus, por estar
situado entre os tabuleiros fumageiros e a encosta do Planalto. Op. Cit. p. 67.
37
tempo se tornou um dos grandes principais centros comerciais
da redondeza.
41
Além da Estrada de Ferro de Nazaré, a proximidade com Salvador, viabilizada
pelo antigo porto de Nazaré e as diversas estradas que integram Santo Antônio de
Jesus às demais localidades, facilitou o desenvolvimento das relações comerciais.
42
O comércio local era animado com a feira-livre que constituiu-se como uma das
primeiras atividades comerciais desenvolvidas na cidade e na região, cuja existência
remonta à história da “origem” da próprio município quando em seus primórdios
localizava-se nos arredores do Oratório de Santo Antônio, onde atualmente está
localizada a Praça Padre Mateus.
Locais públicos privilegiados para a venda de mercadorias, nas feiras baianas
encontravam-se produtos bastante variados como gêneros alimentícios, utilidades
domésticas, remédios, garrafadas, peças do vestuário, acessórios diversos, animais,
dentre outros produtos.
43
Entretanto, as feiras representavam muito mais que um
espaço de negócios. Ana Maria Carvalho entende as feiras como lugares,
Onde eram estabelecidos contatos comerciais e sociais,
corriam os preços dos produtos e as notícias sobre o cotidiano
das pessoas: quem havia casado, nascido, falecido, estava
doente, o escravo fugidio, o senhor falido ou enriquecido era
notícia. Todos estavam nas conversas que se desenrolavam
por entre as bancas ou barracas dos feirantes.
44
Essa dinâmica consolidou a feira-livre de Santo Antônio de Jesus como um
espaço que, mais do que para as simples práticas de um comércio varejista de
diversos produtos, constituía-se em múltiplos lugares de criação, de maneiras de
viver e resistir às dificuldades cotidianas enfrentadas quer por trabalhadores do
campo, quer por trabalhadores da cidade.
41
CARLETTO, Cássia Maria Muniz. A Estrada de Ferro de Nazaré: no contexto da política nacional
de viação férrea. Dissertação de Mestrado. Salvador, Bahia: UFBA, 1979, p. 59.
42
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 64.
43
Ibid.; p. 69.
44
Ibid.; p. 69.
38
FIGURA 03 – FEIRA LIVRE DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS – Década de 40
FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/feira1.jpg
O uso do testemunho de imagens levanta muitos problemas incômodos.
Imagens são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho.
Segundo Burke,
Elas podem ter sidos criadas para comunicar uma mensagem
própria, mas historiadores não raramente ignoram essa
mensagem afim de ler as imagens nas “entrelinhas” e aprender
algo que os artistas desconheciam estar ensinando.
Independente de sua qualidade estética, qualquer imagem
podem servir de evidência histórica, pois elas sempre têm
alguma coisa a dizer.
45
A imagem acima registra dimensões da dinâmica da feira-livre e sua
importância na região. As evidências que ela nos traz, revelam que a feira-livre da
45
BURKE. Op. Cit. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: EDUSC, 2004, p. 18-21.
39
cidade da Capela funcionava como uma espécie de vitrine da produção “local”, da
população, da cidade e da região. A feira-livre de Santo Antônio era um elo de
ligação entre o viver urbano e rural que revelava muito da cultura dos Recôncavos
Baianos.
Em Santo Antônio de Jesus a feira atraía comerciantes, feirantes e fregueses
dos diversos arraiais e cidades vizinhas, tornando-se um grande “empório comercial”
na região. As atividades comerciais na cidade da Capela muito contribuíram para o
seu desenvolvimento e para a busca de um ideal de progresso e civilidade
perseguido pelas elites locais.
É comum nos discursos da imprensa escrita, nos livros de Atas, Leis e
Decretos da Câmara Municipal no final dos anos 40 e nas décadas de 50 e 60 do
século XX, o uso corrente dos termos urbe, zona urbana, perímetro urbano, cidade
urbanizada, zona rural, áreas rurais e campo, por jornalistas, políticos e as camadas
mais abastardas quando se referem à cidade de Santo Antônio de Jesus.
Essas representações sugerem pensar duas possibilidades de interpretação.
A primeira é que eles retratam a cidade numa perspectiva dicotômica, em que
campo e cidade aparecem como lugares opostos, cuja experiência social dos
indivíduos está cristalizada cada qual em “seus mundos”. A segunda, é a
representação de uma cidade urbanizada, talvez pelo fato de que a cidade da
Capela, nos anos 50 e 60, possuía uma Estação Ferroviária, campo de aviação,
bancos como a Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Banco Econômico,
escolas, energia elétrica em alguns bairros da cidade, uma “central” telefônica, uma
bomba de gasolina instalada nas 4 Esquinas e depois um posto de gasolina próximo
à estação ferroviária, e ainda partido político como o PTB, lojas que vendiam
produtos domésticos, vestuário, sapatos, dentre outros produtos oriundos do Rio de
janeiro, São Paulo e Salvador; possuía também, tipografia, hotéis e pousadas,
escola de corte e alta costura, curso de Teoria Musical e Piano, noitadas literárias,
cafés, pastelaria, cine-teatros, vários jornais que circulavam em vários lugares da
Bahia e outros estados como O Paládio, duas filarmônicas que faziam várias
apresentações na capital e em muitas cidades do interior da Bahia, além de um
Hospital que oferecia serviço de Raio-X a moradores da cidade e de regiões
circunvizinhas, evitando o deslocamento de muitos pacientes até a cidade de
Salvador para se tratarem. Santo Antônio de Jesus, foi uma das primeiras cidades
40
do interior da Bahia a contar com essa nova invenção tecnológica no universo
médico-hospitalar no início dos anos 50.
Nas décadas de 50 e 60, a cidade de Santo Antônio de Jesus oferecia
serviços até então encontrados em poucas cidades do interior da Bahia. Por esse
motivo, acredito que, de fato, possamos considerá-la uma urbe e também,
sobretudo, pelas representações que muitos de seus praticantes faziam dela.
Todavia, nesse estudo, não pretendo comungar com visões antagônicas ou
hierarquizantes que colocam a cidade, o campo e seus atores sociais em lados
opostos e intransponíveis, social e culturalmente. Acredito ser mais frutífero
investigá-los numa perspectiva em que possamos perceber que a vida no campo
tem muitos significados e a vida na cidade também. Tentar desvendar os
entrecruzamentos desses lugares, bem como o entrelaçamento das práticas sociais
desses indivíduos, nos fornecerá pistas que podem ser de grande valia.
Para o historiador Charles D’Almeida Santana, no Recôncavo Sul da Bahia, a
partir do início do século XX, as cidades passaram a adquirir “centralidade” nas
maneiras de viver das pessoas residentes nos povoados, distritos e localidades
próximas
46
. Apesar da população na zona urbana de Santo Antônio de Jesus
(39,9%) na década de 50 estar bem inferior à população rural (60,1%), a década de
60 já anunciava um aumento populacional para expressivos (45,5%) na cidade,
enquanto que o campo absorvia (54,5%) da população
47
. Junto a este aumento
populacional, crescia também a importância da cidade para os trabalhadores rurais
que buscavam na urbe não mercadorias, como também conversas, bebedeiras,
diversão, arte, alternativas de sobrevivências e, sobretudo, trabalho.
É nesse contexto que homens e mulheres em busca de novos horizontes, à
procura de um futuro melhor para si e suas famílias, decidem enfrentar o ofício de
ser feirante na cidade. Para esses homens e mulheres aquela ocasião não era uma
ocasião qualquer, eram momentos que significavam uma virada na expectativa de
vida, momentos bastante significativos, pois passado, presente e futuro estavam em
jogo. O que iremos ver a seguir são as motivações prováveis que estavam por trás
das opções feitas por essas pessoas.
46
SANTANA. Dimensão histórico-cultural (cidades do Recôncavo). Cadernos CAR Programa
de Desenvolvimento Regional Sustentável. Salvador-Ba, 1999, p. 47.
47
Para saber sobre aspectos demográficos da cidade de Santo Antônio de Jesus nas décadas de 50
e 60, verificar fontes: IBGE/SEI – Anuário Estatístico da Bahia.
41
2.2 – Firmes Propósitos.
Acostumados com o trabalho árduo no campo, uma vez que na roça desde
criança já se começava a trabalhar nas lavouras de mandioca, café, fumo e cana-de-
açúcar, aos seis, sete e oito, anos de idade, para muitos homens e mulheres, decidir
ser feirante, ir trabalhar na cidade significava a busca de dias melhores e a
esperança de novas alternativas de sobrevivências em face a uma realidade que
não mais os contentava. Ao relembrar o motivo pelo qual decidiu ir para a cidade
trabalhar nos anos 50, Josué Pereira nos conta que foi
Porque eu tava cansado de trabaiá e arrastava a enxada e não
via nada, né? (muitos risos). Não via nada porque enxada
nunca deu nada, porque o povo diz que nunca madurece,
nunca madurece e a gente não tinha terreno, trabaiava meia
num, né? E quando a gente era comia a banda da roça da
gente e a do dono ficava lá, quando maducia dava dois tantos
de que a gente comeu. (muitos risos).
48
Ainda jovem, Josué Pereira, mais conhecido como Zezéu, resolveu deixar de
“arrastar a enxada” para ir ganhar a vida na cidade da Capela. Para ele, o trabalho
pesado e árduo da roça não traria a certeza de um futuro melhor nem para ele nem
para sua família, pois este trabalho nunca “madurece”. A condição de meeiro em
terras “alheias” significava a exploração de sua mão-de-obra e com grandes
vantagens para o proprietário das terras em que ele trabalhava. Ao diferenciar e
comparar “a banda da roça” dele e de sua família com “a banda da roça” do dono
das referidas terras, o narrador expressa a sua condição de trabalhador rural e a
vontade de transformá-la; para ele aquela já era uma forma intolerável de relação
49
.
Na região do Recôncavo Sul da Bahia era comum a existência de pequenos
proprietários rurais, rendeiros, meeiros, comerciantes, diaristas e assalariados.
Todavia, a falta de terra própria para trabalhar consistiu-se em um dos motivos que
48
Depoimento de Josué Pereira dos Santos. Feirante. Rua Sóter Barros 101, Santo Antônio de
Jesus, 73 anos.
49
Uma interessante análise sobre a vida de homens e mulheres no campo em algumas cidades na
Região do Recôncavo Sul é feita pelo historiador Charles D’Almeida Santana em: Fartura e Ventura
Camponesas… Op. Cit. Cap. I. O autor foge de análises que colocaram estes atores como meros
expectadores nas relações de trabalho no campo, colocando-os como sujeitos ativos dentro daquele
processo.
42
impulsionaram o deslocamento de vários homens e mulheres do campo para a
cidade. Nascido em Sapeaçú, aos oito anos de idade Augusto Soares da Silva
deixou a enxada, foice e o facão e acompanhou a sua família “porque a coisa o
tava ficando boa pra trabaio, meu pai procurava um lugá que pudesse trabaiá e
não achava terreno em abundança”
50
e passou a perambular pelas cidades do
Recôncavo baiano em busca de novas alternativas de trabalho.
Ao chegar em Nazaré das Farinhas, Augusto permanecera por cinco anos
por causa da pescaria de mangue. Entretanto, o ato de pegar caranguejo em Coroa
Grande não fora o suficiente para ele e a busca de um lugar, para ver se encontrava
uma colocação melhor no mundo do trabalho, o conduziu à decisão de tornar-se
feirante na cidade da Capela.
João Nunes dos Santos, vulgo João do Couro, iniciou-se no mundo do
trabalho ainda criança entre os sete e oito anos de idade auxiliando seus pais no
plantio e colheita das roças. Ainda pequeno, tornou-se “fazedor de carvão” e aos 14
anos colocava o fruto de sua produção no lombo do animal e se deslocava para a
cidade de Nazaré das Farinhas para vender carvão na feira-livre daquela cidade nos
dias de Quarta-feira e aos sábados. Em meio às atividades de carvoeiro, ele dividia
o tempo trabalhando em algumas propriedades rurais para ganhar mais alguns
trocados.
Esse feirante se deslocava do Rio da Dona às doze horas da noite para
chegar em Nazaré às seis ou sete horas da manhã. Em sua narrativa ele nos conta
que sofria muito porque a “estrada era distante” e chegava em Nazaré com o corpo
repleto de lama. Ele acostumava lamentar a sua condição de vida e nutria um forte
sentimento de fé e esperança que um dia aquela realidade, à qual estava submetido,
iria se transformar. Durante a longa caminhada que realizava até o local de venda
dos produtos, ele interiorizava em sua mente, “eu tenho fé em Deus que eu não é de
acabá meus dia de vida fazendo carvão”.
51
João Nunes dos Santos deixou de vender carvão quando seu irmão, Américo,
inaugurou uma quitanda na roça, cujo gerenciamento ficou sobre sua
responsabilidade e os lucros divididos entre ambos. Logo depois, ele arrendou um
50
Depoimento de Augusto Soares da Silva. Feirante. Rua Marita Amâncio, Santo Antônio de Jesus,
90 anos.
51
Depoimento de João Nunes dos Santos. Feirante. Avenida Juracy Magalhães nº 560, Santo
Antônio de Jesus, 75 anos.
43
pedaço de terra, onde é a Urbis 4
52
atualmente, e ali plantava milho, feijão e colhia
essa roça. Com os frutos da colheita e da plantação, João Nunes viajava para a
cidade de Feira de Santana para comprar seus produtos e vendê-los na feira-livre de
Santo Antônio de Jesus.
Vários foram os sonhos que moveram homens e mulheres a irem trabalhar e
desfrutar dos encantos e ilusões da cidade. Filha de uma família de oito filhos, dona
Elza lembra que seu pai tinha um “terrenozinho” onde morava, plantava mandioca e
trabalhava no cultivo de café em Dom Macedo Costa. Apesar de gostar da roça, ele
deixou a terra lá e foi para a cidade da Capela porque já estava com idade avançada
e pretendia ir para a cidade descansar da roça
53
. Entretanto, mesmo indo para a
cidade com o intuito de descansar, seu pai não vacilou em colocar uma barraquinha
na feira para dona Elza e sua irmã trabalharem.
A busca e a conquista de dias melhores colocavam estes homens e mulheres
diante de vários obstáculos que deviam ser superados até a chegada na cidade. Ao
acompanhar sua mãe, quando ainda tinha 10 anos de idade, para colocar barraca
na feira, Vitalina Santos Souza saía da Jueirana para a Capela a pé. Ao falar das
dificuldades que tinha para levar as mercadorias para serem vendidas na feira,
relembra que ela e sua mãe levavam
Tudo na cabeça, era tabuleiro de bolo, outros trazia assim,
como é? naquele tempo não era alumínio, era barro, aquela
panela de barro trazia na cabeça.Tinha vez que tirava do fogo
naquela hora e jogava na cabeça. As veze quando sentia assim
dor de cabeça, minha mãe. Né? Dor de cabeça, dizia assim:
Ai meu Deus! Isso foi da panela quente. Botava aquela arrudia
bem grande viu, mais mesmo assim ela achava que passava.
Né? Sabe? A pessoa andando da Jueirana, do fim da Jueirana,
porque a Jueirana aqui é muito fácil, mais do fim da Jueirana
com a panela de coisa na cabeça, de Miguzá, esse negócio era
difíce, viu?
54
52
Conjunto habitacional financiado pelo programa de habitação do governo estadual que fica
afastado do centro da cidade e consiste em um lugar de moradia das camadas populares.
53
Depoimento de Elza Froes da Fonseca. Ex-feirante. Rua do Calabá nº 629, Santo Antonio de
Jesus, 61 anos.
54
Depoimento de Vitalina Santos Souza. Ex-feirante. Rua do Calabá 301, Santo Antonio de Jesus,
70 anos.
44
A falta de recursos financeiros não permitia a Vitalina Souza e sua mãe
disporem de um animal para transportar suas mercadorias, pois esta tinha oito filhos
para criar. E mesmo com seu esposo trabalhando, não conseguia soldos para tal
empreendimento porque ele destinava boa parte do seu salário aos jogos de azar.
Essa dura realidade, de não possuir um meio de transporte para conduzir
seus produtos até a feira-livre de Santo Antônio de Jesus, não impediu essas
mulheres de usarem sua criatividade e forjarem formas que pudessem amenizar o
peso da labuta. Nas longas caminhadas durante as quais muitas mulheres
transportavam os produtos para serem comercializados na feira, na cabeça, a
rodilha
55
tornou-se um artefato fundamental que contribuía para amenizar não o
peso dos produtos, muitas vezes carregados em tabuleiros e panelas de barros,
como poderia ser algo de suma importância, segundo a crença “popular”, para evitar
doenças, como a dor de cabeça naquele momento.
Assim como Vitalina Souza, que acompanhava sua mãe nas longas jornadas
de trabalho desde os dez anos de idade, Augusto Laranjeira acompanhou seu pai
aos oito anos. Em várias trajetórias e histórias de feirantes, o mundo da criança
imbricava-se com as atividades referentes ao mundo do trabalho dos adultos. Eram
meninos e meninas que seguiam solidários aos seus pais, ajudando-os no
transporte e na venda das mercadorias na cidade. Muitas dessas experiências de
solidariedades existiam nas roças quando essas crianças ajudavam seus pais
desde a lida na preparação da terra para o plantio a à colheita das roças,
participavam do beneficiamento da mandioca, do milho, do fumo e do trato da
criação miúda
56
.
Para chegar à feira da cidade cada um se utilizava do recurso que dispunha,
para aqueles que possuíam animal talvez fosse mais tranqüilo o transportar de
mercadorias; porém, para estes homens e mulheres, outros desafios cruzavam seus
caminhos durante tal percurso. Ao descrever os caminhos sinuosos que o
conduziam até a cidade, seu Zezéu nos relata que
55
Rodilha: Rosca formada de pano, sobre a qual se assenta o fardo transportado na cabeça. Era
comum no Recôncavo Sul, as mulheres usarem na cabeça quando estavam transportando latas
d’água, mercadorias, tabuleiros, etc. A rodilha tem a função de apoiar, equilibrar e amenizar o peso
do que está sendo transportado.
56
Ver a interessante análise que o historiador Charles D’Almeida Santana faz sobre a infância no
campo e como as crianças conciliam o lúdico com o trabalho na região do Recôncavo Sul. Nos
depoimentos dos sujeitos históricos desta pesquisa, aparecem relatos semelhantes ao que o autor
abordou em sua pesquisa. Fartura e Ventura Camponesas… Op. Cit. p. 54-56.
45
Morava lá na Pedra Branca é, ia daqui pra lá. Tinha tempo que
o rio tava chei, eu jogava o animá por dentro d’água, chegava
largava o animá do lado de cá, passava por cima dos das
ponta de pau, pra passá pro lado de de minha casa, tinha
que passá na corda, tinha que deixá a carona do lado de cá pra
podê atravessá. E o Mutum a gente passava ali, o Mutum
tava de fora a fora, chei e… ia sair, vinha sexta-feira de manhã
e vortava sábado de tarde a boquinha da noite lutando pra
arrumá o pão de cada dia.
57
Ao se deslocar de seu povoado para a cidade e vice e versa, seu Zezéu se
utilizava de um dos meios de transporte mais acessíveis naquele momento. Em
muitas histórias e memórias de feirantes oriundos de áreas rurais, jegues e cavalos
tornaram-se companheiros inseparáveis naquelas longas jornadas e, no vai-e-vem
pela busca da sobrevivência, eles tinham pela frente “cheias de rios” a vencer,
estradas quilométricas a superar e a escuridão da “boquinha” da noite à
“ultrapassar”; pois o retorno para casa se dava quando o “sol caía”, ao final da tarde,
a partir das 4, 5 e 6 horas. O retorno para a casa estava condicionado menos à
rigidez de um horário fixo do que ao ritmo das vendagens dos produtos. O ritmo das
vendagens poderia prolongar ou reduzir o tempo do trabalho.
O lá e externado por seu Zezéu elucida a dinâmica do deslocamento
desses feirantes que paulatinamente iam contribuindo no processo de ampliação e
alargamento territorial da cidade definindo/redefinindo-a. Ao passar por cima de
“ponta de pau”, passar na corda e deixar a carona do “lado de cá”, esses homens e
mulheres não se configuravam apenas como “desbravadores” que encurtavam a
“distância” campo-cidade, mas também como verdadeiros acrobatas do “circo da
vida” lutando para arrumar o pão de cada dia.
A narrativa de Josué Pereira ainda nos induz a lembrar uma das nuanças que
a memória possibilita à história. Segundo Júlio Pimentel Pinto,
A memória traz marcas que o presente ou que outros passados
não apagam, elas se expressam de forma fugidia, subjetiva,
lançada do centro às margens. As margens como lugar de
conservação ou produção de referências. Espaço possível de
57
Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.
46
culto ao passado como forma possível de não perdê-lo no caos
da história acelerada do presente.
58
O “caos” da história acelerada levou consigo o Rio Mutum
59
, cedendo lugar à
estrada de asfalto e construção de casas residenciais. Espaço de referência na
memória de vários feirantes que iam da zona rural vender na feira-livre da cidade, o
Rio Mutum emerge das margens da memória, através da narrativa do feirante Josué
Pereira, como algo imortal, um espaço que no jogo duro da memória, entre a
lembrança e o esquecimento, desafia o passado e o presente, perpetuando-se como
marca indelével que não apaga os vários desafios e elementos que marcaram os
caminhos e trajetórias da vida cotidiana.
Os caminhos que conduziam os feirantes e seus produtos aa feira-livre de
Santo Antônio de Jesus poderiam ser ampliados a depender do tipo de mercadoria
que cada um negociava na feira. Muitas vezes, para chegar ao seu destino, muitas
dessas mercadorias eram conduzidas por vários meios de transportes como era o
caso das peças de cerâmica comercializada por Augusto Laranjeira. Ele comprava
sua cerâmica em Maragojipinho e levava até Nazaré de canoa, de Nazaré até a
cidade da Capela as mercadorias eram conduzidas em um carro, um jipe, no qual
ele e outras pessoas viajavam toda semana de Santo Antônio até Nazaré e vice-
versa.
60
A dinâmica de algumas dessas histórias não se resume apenas àquelas
pessoas que iam trabalhar na feira, assemelhavam-se também às histórias dos
freqüentadores e freqüentadoras que chegavam na cidade pois
Quem tinha animal vinha, quem não tinha alugava, quem não
tinha vinha de pé. E a gente encontrava aquela fila de gente na
estrada, um atrás do outro contando história, até que chegasse
na cidade. a cidade foi crescendo, crescendo, crescendo,
58
PINTO, Júlio Pimentel. Os muitos tempos da memória. Projeto História, o Paulo, n.17, nov.
1998, p. 208.
59
Essa minha afirmação é baseada na situação atual, em que esse rio não apresenta mais as
dimensões que lhes era peculiar nos anos 50, 60 e 70. Hoje pode-se falar em um riacho, altamente
poluído por detritos, cuja as águas não correm mais em determinada áreas.
60
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
47
que hoje tá, é quase uma capital Santo Antônio de Jesus. Né?
(muitos risos)
61
.
A pé, montados em lombo de animal, às vezes em cima de caminhão, de
trem, pilheriando sobre os fatos engraçados do dia-a-dia, contando histórias de
namoro e “causos” do passado, a feira-livre de Santo Antônio de Jesus atraia
pessoas vindas das cidades de São Felipe, Conceição do Almeida, Sapeaçú, Cruz
das Almas, Dom Macedo Costa, Jaguaripe, Castro Alves, Varzedo, Amargosa,
Nazaré, São Miguel das Matas, Aratuípe, São Felipe e muitas outras cidades da
Bahia. Eram pessoas que iam comprar e vender produtos, buscar e levar notícias de
parentes e amigos, fazer negócios. Saíam de madrugada de suas cidades,
enfrentavam as estradas de chão com “destino” traçado até a feira-livre da cidade da
Capela. As estradas de chão redesenhadas por esses homens e mulheres
tornavam-se espaços de socialização potencializados por diversos universos
culturais que no decorrer das “viagens” se articulavam.
Homi K. Bhabha diz que é teoricamente inovador e politicamente crucial na
contemporaneidade, focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos
na articulação de diferenças culturais. Um elemento fundamental para entender
esses processos de articulação é a idéia de espaço liminar e entre-lugar defendida
por este autor. Dentre os vários exemplos que elenca como possibilidades de
espaços liminares, Bhabha dá o exemplo de um arquiteto que fez uma exposição em
um museu e em vez de simplesmente usar o espaço da galeria, usou o sótão, o
compartimento da caldeira e o poço da escada para fazer associações entre certas
divisões binárias como superior e inferior, u e inferno. Para Bhabha, o poço da
escada era um espaço liminar,
Porque estava situado no meio das designações de identidade,
transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de
ligação que constrói a diferença entre superior e inferior, negro
e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e
a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada
extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais.
62
61
Depoimento de João Crizóstomo Sampaio. Ex-guarda da feira, ex-trabalhador da indústria do fumo,
atualmente aposentado. Rua do Calabá nº 726, Santo Antônio de Jesus, 84 anos.
62
BHABHA. Op. Cit. p. 22.
48
Ao acompanhar os caminhos morosos ou apressados dos homens e
mulheres que para e para se deslocavam, alcançando outras margens, as
estradas de chão, que amplamente foram lembradas nas narrativas dos sujeitos
sociais desta pesquisa como algo que tornava mais difícil a luta pela sobrevivência,
naquele momento, configuravam-se como “testemunhas oculares” que, ao mesmo
tempo, deslocava e ligava feirantes e freqüentadores.
Assim como uma ponte que permite uma fluidez, movimentos de vai-e-vem na
vida cotidiana, sem aspirar a nenhum modo específico ou essencial de ser, as
estradas de chão eram passagens que possibilitavam a articulação de diferenças
culturais, enquanto passagem que atravessava. Era um espaço liminar construído
no ritmo do ir e vir de cada dia que fazia com que diversos homens e mulheres
alcançassem outras margens. Não eram homens e mulheres que “estavam” apenas
no campo nem homens e mulheres que “estavam” totalmente na cidade. Eram
sujeitos vivendo nas fronteiras sociais e culturais que a vida cotidiana demarcava.
Para ir para a feira-livre de Santo Antônio de Jesus, tanto os freqüentadores e
freqüentadoras quanto os feirantes começavam sua jornada na madrugada em
suas casas. Os freqüentadores muitas vezes iam não para comprar como
também combinar negócios como arrendamentos de propriedades e outros arranjos
ligados às atividades agrícolas e pastoris, outros iam em busca de notícias de
parentes e amigos que moravam em outras localidades, muitos deles eram agiotas,
amoladores, jogadores, apostadores, cantadores, dentre outros, e cedo tinham que
estar acordados para se arrumar e ir para a cidade.
Quanto aos feirantes, a tarefa de acordar cedo consistia em uma premissa
para estes trabalhadores. Na falta do relógio de pulso, eles tinham que contar com a
ajuda de um “amigo inseparável” nesta empreitada. Ao relembrar a movimentação
que havia em sua casa nas madrugadas que antecediam os dias de sábado, Vitalina
Souza nos conta que
Não tinha relógio em casa, o relógio mesmo era os galo (muitos
risos). , quando o galo cantava minha mãe acordava e ia
acordando um e outro e botava a carga nas costa e vinha, e
agora o tempo de chuva, você não imagina a lama e vendo a
hora de cair, tinha lugá na estrada que fazia assim: cavava
aqui, juntava terra pra cá, cavava pra lá, eu sei tipo um degrau.
Sabe como é? Assim que é pra água escorrer pra dá prá
49
pessoa passá, mais de noite, noite de turvo, é porque quatro
horas da manhã… hoje não, quatro horas da manhã hoje é de
dia quase.
63
Em seu sugestivo ensaio, Tempo, Disciplina do Trabalho e Capitalismo
Industrial, E. P. Thompson analisa as mudanças sobre a percepção do tempo no
âmbito da cultura intelectual na Europa ocidental entre os anos 1300 e 1650. O autor
aponta a necessidade do capitalismo industrial em inserir o relógio de ponto no
universo da cultura dos trabalhadores como um novo elemento essencial ao
desenvolvimento, regulamentação e disciplinarização das atividades diárias.
Todavia, as reflexões desse autor tornam-se mais relevantes no momento que
apontam formas e maneiras “irregulares” de sentir, marcar e viver o tempo em
diferentes comunidades e grupos sociais. Muitos desses ritmos e tempos eram
operacionados com os mais variados elementos que a natureza oferecia.
64
Charles de Almeida Santana observou, na região do Recôncavo Sul, algo
semelhante ao que Thompson percebeu em algumas comunidades rurais na
Europa. Segundo Charles D’Almeida,
No contexto de toda uma cultura, o meio ambiente fazia-se
presente na constituição de hábitos, valores, costumes,
representações da vida e da luta criados e recriados pelos
trabalhadores da região. Os ritmos da natureza condicionavam
o cotidiano, tanto nas suas dimensões tradicionais, quanto
naquelas em que o rompimento com o mundo rural mostrava-
se eminente: o trabalho, o lazer, a moradia, a alimentação.
65
Em sintonia com a natureza e o meio ambiente, para esses homens e
mulheres da roça o cantar do galo significava um marcador de tempo que dava uma
operacionalidade e os orientava para o início de suas atividades diárias que
costumavam começar bem cedo, ainda de madrugada. O uso do cantar do galo
(tempo do galo) como relógio, bem como as artimanhas e habilidades em
reconfigurar as estradas em dias de chuva tornando-as accessíveis à viagem, nos
faz pensar em estratégias cotidianas criadas por estes atores sociais, sabiamente
63
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
64
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. cap. VI.
65
SANTANA. Fartura e Ventura Camponesas. Op. Cit. p. 37
50
retiradas da natureza e as várias experiências que o meio ambiente lhes
proporcionava.
Voltando à questão de como esses sujeitos marcavam seu tempo, assim
como o relógio algumas vezes pára por falta de bateria ou por qualquer outro
motivo,o galo também algumas vezes não cantava, e “quando o galo vacilava…”
abria-se a possibilidade de acordar mais tarde e chegar na feira atrasado. Mas,
como lembrou Vitalina Souza, “como tava trabalhando pra si mesmo, né? Não tinha
nada”, pois a condição de serem autônomos e autônomas os isentaria de possíveis
sanções que poderiam sofrer caso estivessem submetidos a outras formas de
relações de trabalho. Porém, chegar atrasado na feira poderia implicar em redução
no ritmo das vendagens.
A situação contrária também poderia acontecer quando alguns feirantes
chegavam cedo demais, sentavam nos passeios das residências, açougues,
padarias, casas de comércios, lojas e outros prédios que compunham o cenário da
praça e formavam o entorno da feira municipal, esperando dar a hora, porque muitos
deles tinham que ainda buscar as barracas que ficavam guardadas em outros
lugares, fora do espaço da feira, sobretudo em casas de parentes e amigos. Nesse
caso, os feirantes dependiam do “tempo do sono” daqueles que guardavam suas
barracas.
Alguns feirantes tinham de acordar ainda mais cedo. Vendedora de cafezinho
e alimentos cozidos como batata-doce, aipim, banana da terra e pães quentinhos
com manteiga, Elza Froes era uma das responsáveis pelo desjejum de muitas
pessoas que saíam de longe. Para cumprir com suas obrigações ela recorda
Que saia daqui duas horas da manhã pra ir fazê café pro povo
chegá, o povo que vinha de Castro Arve, o povo de Castro Arve
vinha pra qui tudo de animal, trazia carga tudo de animal,
quando ele chegava, esvaziava a carga, tinha que com o
café pronto, porque quando ele chegava, chegava lascando
tudo de fome, era (muitos risos).
66
Assim como o povo de Castro Alves, as pessoas que saíam de outras cidades
para vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus acostumavam chegar entre
66
Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.
51
quatro e “quatro e pouco” da manhã. As longas caminhadas, que feirantes e
freqüentadores da feira faziam, contribuíam para o fato de que, uma vez chegando
na cidade, estivessem famintos precisando de algo para “forrá o estômago” e, para
isso, teriam que chegar e encontrar o café pronto. Dona Elza tinha que cumprir
fidedignamente as suas obrigações acordando cedo e se dirigindo ao seu local de
trabalho. Segundo seu testemunho “no dia que ia mais tarde para feira seu pai
azoava”.
67
Sair cedo para ir trabalhar na feira tornava-se uma rotina que se repetia
semanalmente nas madrugadas de sábados e não intimidava os homens, muito
menos as mulheres. Na falta de luz elétrica, pois nos anos cinqüenta e sessenta
poucas áreas na cidade eram privilegiadas com tal recurso, a exemplo do centro da
cidade, Avenida Barros e Almeida e do bairro o Benedito, a escuridão da
madrugada não causava uma sensação de medo àqueles que para se dirigiam,
porque “naquele tempo não fazia medo não e ninguém andava com maldade”. Ao
relembrar as suas caminhadas até a feira-livre da cidade, a feirante Elza conta que
muitas vezes seu pai não a acompanhava, ela sempre ia com sua irmã, e quando
esta por algum motivo não ia, ela para se deslocava sozinha não encontrando
“nem um rato, nem um gato no caminho”. Coisa que, segundo ela, hoje dificilmente
aconteceria.
Para alguns feirantes a ausência do medo, no que diz respeito aos
deslocamentos que eles faziam até chegar à feira, deslocamentos estes que
iniciavam-se ainda na madrugada e muitas vezes variavam ao sabor das
circunstâncias, como no caso acima, era devido a uma “presença mais efetiva” de
Deus na terra, porque naqueles tempos “Deus andava aqui na terra, hoje ele tá mais
pra cima por causa dos bicho que tá aqui em baixo (muitos risos).
68
As palavras e as risadas de Vitalina Souza remetem-nos a pensar em
processos de mudanças significativas pelas quais a cidade passara ao longo do
tempo. Aquele era um tempo em que “os bichos” eram outros.
Ao rés do chão, com passos largos ou não, homens, mulheres e crianças iam
paulatinamente moldando espaços, tecendo lugares, inscrevendo e se inscrevendo
na cidade. Porque o espaço ganha sentido e significado se for compreendido
67
Idem.
68
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
52
como algo que é vivido e experienciado pelos diversos sujeitos sociais. O espaço é
aquele praticado pelas ações humanas.
69
Portanto, esses homens e mulheres eram
pessoas que através de suas pisadas e caminhadas iam encontrando formas de
enunciação, pluralizando e singularizando o espaço do vivido.
Charles D’Almeida Santana lembra que o desenho urbano no Recôncavo
emergiu condicionado pelos trabalhadores da farinha e suas feiras em Conceição do
Almeida, Maragojipe e Santo Antônio de Jesus.
70
A meu ver, no caso de Santo
Antônio de Jesus, não foram os trabalhadores da farinha responsáveis por esse
feito. Podemos também atribuir a construção de uma fisionomia urbana no
Recôncavo a trabalhadores e feirantes de diversas modalidades e diferentes
localidades que iam vender diversos produtos, comprar e fazer negócios na feira
livre da cidade. Gradativamente, esses homens e mulheres foram desenhando e
redesenhando um cenário urbano no Recôncavo baiano.
Em busca de outros modos de viver que pudessem assegurar novos projetos
de vida, os feirantes nutriram sonhos e expectativas, traçaram metas e projetos,
desafiaram limites, forjaram maneiras de driblar as dificuldades cotidianas, tomaram
e mudaram de atitudes, com o objetivo de seguirem o firme propósito de melhorar de
vida.
2.3 – Uma Geografia da Feira.
Em Santo Antônio de Jesus, a feira-livre aos anos finais da década de 60
localizava-se na principal praça no centro da cidade. Não apresentando uma
“organização espacial” baseada em concepções mais rígidas de disciplinamento ou
dos ideais urbanísticos, não existia uma divisão por quadras, ruas ou boxes, pois era
“tudo misturado”. Nesta perspectiva, a geografia da feira fora organizada e
racionalizada pelos próprios feirantes que iam chegando e dinamizando aquele
espaço ao sabor das circunstâncias. Todavia, cabe lembrar, que a organização
69
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Vol. I. Cap. VII e IX. Petrópolis:
Vozes, 1994.
70
SANTANA. Dimensão histórico cultural – CAR. Op. Cit. p. 56.
53
desse espaço, estava condicionada à presença de vários outros prédios, alguns
seculares, que estiveram presentes na praça Padre Mateus.
Instalada no meio da praça, a feira-livre disputava seu espaço com a antiga
Igreja Matriz de Santo Antônio e o tradicional Barracão da farinha
71
, dois elementos
simbólicos de grande importância na memória popular não dos feirantes, como
também de todos aqueles que aportavam. No entorno da feira se encontrava
carne fresca nos açougues de Silírio Nini, Laudilino, conhecido como Lauzinho, no
açougue de seu Antônio Galvão, vulgo seu Totônio, e no de Américo Reis (todos
localizados nas imediações onde hoje estão as sapatarias Calce K e Santo Antônio)
e também algumas padarias.
FIGURA 04 – PADARIA CENTENÁRIO
FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/santo_antonio19.jpg
O pão “gostoso” que a feirante Elza Froes comprava para alimentar aqueles
que na feira cedo chegavam, e que muitos feirantes ao retornarem para as suas
71
Barracão da Farinha Construção reservada ao comércio de derivados da mandioca,
principalmente a farinha, mas, comercializava-se ali dentro outros produtos como feijão, açúcar e
rapadura.
54
localidades levavam para complementar a dieta alimentar da família, era facilmente
encontrado na padaria Centenário, primeira padaria da cidade, de propriedade de
Edvaldo Oliveira Souza e que na década de 50 passou para as mãos de Juventino
de Almeida com o nome de Panificadora Vitória, atualmente Panificadora Elimar.
Podia-se ainda comprar o pão de cada dia na Padaria Ideal do senhor Teobaldo
Moreira, na Padaria São Luiz e na conhecida padaria de seu João Duque.
O comércio de secos e molhados era encontrado em abundância na cidade,
nas casas e armazéns dos senhores Lúcio Oliveira, Assilino Amaral, Sr. Roque e
seu Guilhermino. Comercializava-se carne de sertão, bacalhau, “figo doído”
72
, farelo,
fumo de corda, arroz, feijão, querozene enlatado, dentre outros produtos. Essas
casas de comércio estavam localizadas nas imediações onde atualmente está
situada a casa comercial Multibel. Próximo àquele lugar estava ainda a
cinqüentenária casa comercial São Luis que comercializava ferragens e produtos
diversos.
FIGURA 05 – COMERCIAL SÃO LUIS
FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/saoluis2.jpg
(da esquerda para a direita: Mário Sampaio, Fernando Ferreira [proprietários] e Gilson
de Almeida Leal, vulgo Topogigio, o 1º funcionário da empresa)
72
Denominação dada ao fígado de boi quando é colocado no processo de conserva com grandes
quantidades de sal e, geralmente, é comido assado no fogo de carvão com pirão de farinha.
55
Essas casas comerciais eram importantes porque muitas das mercadorias
que elas vendiam faziam parte do universo social e cultural de homens e mulheres
de áreas rurais e urbanas. O querozene, por exemplo, era um produto essencial
para acender os candeeiros que iluminavam os lares, sobretudo de homens e
mulheres da roça e também de pessoas que moravam em áreas periféricas da
cidade. O fumo de corda era outro produto que nos anos 50 e 60 era mascado por
várias pessoas. Muitos feirantes e freqüentadores da feira compravam nessas casas
comerciais farelo, alimento principal para a criação suína. a comercial São Luis
vendia fechaduras, enxadas, foices, facão e diversas ferragens indispensáveis para
o trabalho do homem no campo.
Vários serviços eram oferecidos na Praça Padre Mateus, no entorno da feira,
como é o caso dos serviços de mecânica da oficina do Sr. Manoel Lírio, O tradicional
Bar Íris Café de propriedade de Zelito, que ficava próximo ao prédio da Filarmônica
Amantes da Lyra, a Coletoria
73
, a agência dos correios (instalada na região onde
hoje se localiza os Bancos do Brasil e Bradesco), a tradicional Farmácia Confiança,
lojas de roupas e sapatos, lojas de tecidos, como a loja Brasil do Sr. Florisvaldo
Santiago e as de propriedade de Laudilino Oliveira e Raimundo Nunes.
Nas imediações da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, as pessoas o
tinham acesso apenas ao comércio de várias mercadorias, mas também arte e lazer.
Pois ali também se localizavam os seculares prédios das Sociedades Filarmônicas
Amantes da Lyra, fundada em 16/12/1904 e Sociedade Philarmônica Carlos Gomes,
criada em 05/08/1919, ambas fundadas por Samuel Canoa. Ali também ficavam o
Cine-Teatro Glória, (localizado na área onde está atualmente o Restaurante Lua
Cheia e o Hotel Pirâmide) e o Cine Rex de propriedade de Raimundo Nunes na rua
Monsenhor Francisco Manoel. Ainda próximo à feira-livre, na praça lix Gaspar,
estava a Estação Ferroviária, para onde muitas pessoas traziam e levavam diversos
produtos e iam em busca de notícias de parentes e amigos que chegavam com o
ranger dos trilhos do trem.
73
Coletoria era o nome dado ao que é hoje Secretaria da Fazenda. Na cidade de Santo Antônio de
Jesus existiam duas coletorias: a 1ª nas 4 Esquinas e a 2ª na travessa 15 de Novembro.
56
FIGURA 06 – ESTAÇÃO FERROVIÁRIA (1880-1971)
FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/estacao4.jpg
Apesar do sagrado está presente na praça simbolizado pela Igreja Matriz, que
abrigava o glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade, vida e morte se imbricavam
naquele espaço a partir do momento que ali também se fazia presente a centenária
Casa Adornativa
74
. Essa casa funerária, inicialmente propriedade do Sr. Quitiniano
Andrade, existe há mais de cem anos e consiste em um patrimônio familiar que vem
passando de pai para filho ao longo de várias gerações e prestando serviços a
várias pessoas na cidade e localidades próximas.
Na Praça Padre Mateus, no entorno da feira, setores da elite local dividiam
espaço em meio à feira-livre, casas de comércio e armazéns com suas residências.
A área onde hoje estão localizados alguns hotéis, consistia em moradia do médico
Idelfonso Guedes, de um fazendeiro e de um coletor chamado de Salazá. Moravam
também na praça o médico Gorgônio José de Araújo e um fiscal da prefeitura
municipal chamado Imídio Sírio, dentre outros.
74
Casa Adornativa era a denominação dada às casas que comercializavam produtos para funerais.
Inclusive, ainda hoje, várias pessoas, oriundas de áreas rurais, chegam nestas localidades o se
referem a casa funerária, mas sim, Casa Adornativa.
57
Outros serviços estavam disponíveis aos feirantes e ao público que
freqüentava a feira e a cidade em geral. Muito próximo dali, perto da Casa
Adornativa, mais especificamente na rua 7 de setembro, estava o açougue de Cilírio
Diniz, a barbearia de Liquinha, o Armarinho Bahia de Climério Queiroz, a barbearia
do Sr. Silvestre e o Clube Palmeirópolis, clube muito famoso na cidade e na região.
Ao relembrar os dias que passava neste clube, seu José de Souza Brito diz que
entrava burguês, só os grandão. Peru entrava quando
era convidado. Era um lugá que vinha os ingleses e alemães
Vinha os estrangeiros jogá tênis e vinha comprá fumo. Golf era
num terreno de um inglês onde hoje é a Quitandinhá. Os
ingleses vinha jogá golf aqui e eu ia pegá bola pra dá ao inglês
e ganhava um trocado, era uma merda em dólar (muitos risos)
me desculpe a expressão. Depois da estação do trem tinha a
casa do inglês onde hoje é a Insinuante e a casa onde vende
flores, era Geraldo Jay, conhecido por Geraldo Jay, ele
comprava fumo, enfardava e distribuía.
75
Conforme o depoimento acima, a cidade de Santo Antônio de Jesus possuía
uma dinâmica que atraía não pessoas da região do Recôncavo Sul, como
também de outros estados e até estrangeiros da Inglaterra, Portugal, Alemanha e
França que iam para aquela cidade comercializar, sobretudo, o fumo, produto
produzido em larga escala na região e considerado de excelente qualidade, e
também se divertir no famoso clube Palmeirópolis.
O Clube Palmeirópolis era um espaço na cidade reservado às pessoas mais
abastadas sobretudo os visitantes e investidores estrangeiros. Todavia, em meio às
atividades esportivas desses estrangeiros, José Brito aproveitava para ganhar uns
trocados em dólar, embora ele demonstrasse ter consciência de sua posição
naquele momento e do grau de exploração sofrido perante estes viajantes
estrangeiros que na cidade aportavam.
75
Depoimento de José de Souza Brito, aposentado da empresa de energia Coelba, nascido em
25/08/1925. Praça Silvestre Evangelista nº 247, Santo Antônio de Jesus. 82 anos.
58
FIGURA 07 – CLUBE PALMEIRÓPOLIS
FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico.
Ainda nas imediações da feira, encontravam-se vários armazéns de café e,
principalmente, de fumo, espalhados pelas ruas do centro da cidade de propriedade
de brasileiros e estrangeiros que faziam grandes negócios na região e também
exportavam para outros países. Dentre eles podemos destacar os armazéns de
fumo do Inglês Geraldo Jay, de um português denominado Correia e do
santantoniense Antônio Fraga.
Apesar de tantos serviços serem oferecidos, na praça Padre Mateus àqueles
que para lá se dirigiam, a feira-livre de Santo Antônio de Jesus era a grande
“vedete”, na principal praça da cidade. Localizada a céu aberto, o processo de
instalação na feira não dependia de inscrição, nem matrícula, era obrigatório apenas
o pagamento dos impostos solo ocupado à Prefeitura Municipal. Porém, a partir
dos anos 60, o poder público instituiu o chamado “fazer exame”. Esse exame
consistia em convocar os trabalhadores da feira para saber se eles desenvolviam
suas atividades diárias de acordo com noções básicas de higiene consideradas
necessárias naquele ambiente. Uma vez estando “em condições de trabalhar na
feira”, esses trabalhadores passavam a receber uma carteira da prefeitura que os
habilitava a exercerem o ofício.
59
Essa medida tomada pelo poder público, além de representar uma
intervenção nas relações econômicas, expressava também já uma preocupação
com as práticas de higiene e disciplinarização na cidade. Talvez, a medida tomada
pela prefeitura municipal de Santo Antônio de Jesus estivesse dentro do bojo das
mudanças e transformações pelas quais a cidade iria passar, iniciadas no final da
década de 40. Essas questões iremos discutir e aprofundá-las no quarto capítulo.
Não era a ausência de inscrição ou matrícula que facilitava a vida dos
feirantes para colocar seu negócio na cidade. Augusto Laranjeira relembra, “lá era
muito apertado”, e na busca pela sobrevivência, a ocupação do espaço era
arquitetado aos arremendos financeiros de cada um. Havia muitas barracas de
verduras e de carnes, a maioria delas eram propriedades das mulheres que vendiam
verduras; os homens, em sua maioria, eram donos de barracas que
comercializavam carne de sol, carne de sertão, “carne de boi”, fato
76
, etc. A feira de
Santo Antônio de Jesus era também conhecida por vender uma das melhores
carnes da região. se encontrava uma boa carne de sertão vinda do Rio Grande
do Sul e uma boa carne do sol oriunda do povoado de Santo Antônio do Argüim,
município de Castro Alves, comercializada pelo feirante Bilau e considerada a
melhor carne de sol da cidade.
Falando sobre os aspectos a serem destacados num estudo sobre feira-livre,
o Antropólogo Luiz Mott ressalta que compete ao pesquisador investigar e descobrir
se existe uma gica que está por traz e orienta a morfologia da feira, ou seja, a
distribuição dos vendedores pelo espaço urbano. Segundo Mott,
A lógica pode ser, por exemplo, deslocando mais para a
periferia do espaço comercial aqueles produtos maiores e que
exijam mais espaço, ou os que têm odor mais forte ou possam
sujar os transeuntes no caso que estivessem nos locais de
maior concentração demográfica (o coração da feira). Em
muitos países da África do Norte, por exemplo, os vendedores
de tintas (para tingir tapetes e tecidos), assim como os
vendedores de couro, geralmente ficam nas periferias do
mercado, exatamente devido à natureza poluente destas
mercadorias.
77
76
Fato Vísceras de animais. O fato de boi e de porco era bastante consumido na região do
Recôncavo Sul, sobretudo pelas camadas populares.
77
MOTT. Feiras e mercados… In: FERRETI, Sérgio. (Org.). Reeducando o Olhar… Op. Cit. p. 27.
60
Na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, as mercadorias que exalavam um
odor mais forte eram encontradas no meio da feira. No coração da feira-livre tanto se
encontrava vísceras (fato) de animais expostas aos fregueses, como os produtos de
couro comercializados por João Nunes dos Santos. No que diz respeito aos
produtos maiores, como a madeira, por exemplo, parece que existia uma lógica em
expor esse produto à venda em uma área mais “afastada” do centro da feira. Esse
produto geralmente era comercializado na Barganha que começava no final da rua
Monsenhor Francisco Manoel e se estendia pela rua Celestino Pimenta, ou nas suas
imediações. Tudo leva a crê que a morfologia da feira-livre de Santo Antônio de
Jesus obedecia a uma dinâmica específica, construída pelos próprios feirantes ao
sabor das circunstâncias.
João Nunes dos Santos relembra que trabalhava em frente ao Barracão e que
naquela época o povo vendia tudo ali dentro: feijão, farinha, rapadura, açúcar
preto… E havia as “barracas de fora” que eram feitas de restos de madeira e
cobertas com zinco, lona ou plásticos. Essas simples barracas disputavam “seu
lugar” na feira frente à forte imponência do Mercado Municipal, tradicionalmente
conhecido por todos como o Barracão da Farinha.
Para quem não tinha o privilégio de dispor de um “lugar que não fosse ao sol”,
ou seja, no barracão, considerado um espaço nobre pela administração pública,
pelos feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira,
78
a tarefa tornava-se
árdua. Com “ar” de quem vivenciava uma realidade dura naqueles dias quentes de
verão, Elza Froes lembra
Que cansava muito, chegava em casa cansada, a gente
trabaiava ali Mirtinho, naquele tempo que a gente trabaiava, a
barraca era coberta de zinco. A gente cozinhava batata e
cozinhava banana o dia todinho, a gente tomava o dia
todinho quentura de zinco do sol e quentura do fogo em baixo.
Ave Maria! Era uma coisa triste, eu chegava em casa
chegava exasta. É brincadeira? É por isso que o povo diz:” Ah!
Fulana, anda doente”. Não é não, a gente planta, planta, depois
quando a gente fica mais velho é que a gente colhe.
79
78
Mott, sobre essa questão, ressalta que numa pesquisa sobre feiras é fundamental perceber como
os diferentes espaços são valorizados pela administração pública, pelos feirantes e compradores.
Para ele o mercado é o espaço mais nobre porque sua cobertura protege compradores, vendedores e
as mercadorias das intempéries. Ibid., p. 25.
79
Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.
61
Tomar “quenturão nas pernas” de inverno a verão, segundo a depoente, com
excesso de exposição ao sol e ao fogo em dias de trabalho, contribuiu para as
doenças que tem hoje na “melhor idade”. A maioria das barracas eram cobertas
com zinco para facilitar a sobrevivência, porque se usassem telhas de amianto, por
exemplo, tornaria impossível o deslocamento dessas barracas que, ao final do
expediente na feira-livre, teriam que ser novamente retiradas da praça e guardadas
até o dia da próxima feira. O processo de condução que consistia no arrastamento
dessas barracas, caso fossem cobertas com telha, poderia implicar em prejuízos
materiais para os feirantes.
As barracas cobertas de zinco eram transportadas em cima de rodas e seus
proprietários geralmente vendiam café, leite e produtos cozidos para a refeição
matinal e almoço de muita gente que para a cidade da Capela se deslocava. as
barracas de lona e de plásticos eram mais fáceis de serem locomovidas porque
eram armadas e desarmadas. Geralmente seus donos eram responsáveis pela
venda de carnes de porco e carnes em geral.
As barracas exerciam uma função social muito importante na feira, na cidade
e na vida, pois a venda de alimentos e refeições não era apenas uma alternativa de
almoço, por exemplo, para aqueles transeuntes e feirantes oriundos de várias
regiões que não levavam suas marmitas; como também, era fonte de renda e
sobrevivência para seus proprietários. Eram práticas que reproduziam a vida social.
Não era o verão que, às vezes, dificultava a vida dos trabalhadores da
feira, o inverno também proporcionava condições adversas ao trabalho. Quando a
chuva começava a cair ainda cedo, antes desses trabalhadores iniciarem suas
caminhadas aa cidade, tinham de enfrentar muita lama e Chegavam na urbe
“igiados”
80
, “mais tinha que vim, né?”. Vitalina Souza rememora que,
Quando a chuva começava na feira mesmo, tinha dia que não
podia vendê nada porque a barraca era coberta com lona mais
do lado, a chuva vinha de vultão assim, e molhava e não se
fazia nada, vortava com tudo. É, um dia se saia pra ganhá
outro dia pra perdê”.
81
80
Termo amplamente utilizado pelas pessoas mais idosas desta região, empregado quando alguém
toma muita chuva e fica trêmulo de frio. É comum ouvir a expressão: “fulano você está todo igiado”.
81
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
62
Vender na feira, muitas vezes, significava estar sujeito aos acasos que a vida
cotidiana podia lhes trazer. As condições climáticas, metaforizadas pelos feirantes
com as expressões “mau tempo” ou “bom tempo”, poderiam influenciar
decisivamente nas vendagens dos produtos, transformando os dias de feira, por
exemplo, num bom sábado ou num sábado ruim. Mais uma vez, o tempo da
natureza influía no andamento dos negócios dos feirantes na cidade.
Muitas dificuldades cruzavam os caminhos dos feirantes que iam trabalhar na
cidade da Capela. Para saná-las, eles forjavam maneiras de viver que facilitassem a
sobrevivência. Um desses problemas era onde deixar as barracas nos dias que não
havia feira, porque tornava-se difícil guardá-las em lugares que não fossem
próximos ao local de trabalho. Para solucionar este problema, arranjos eram feitos e
muitas vezes estes implicavam na construção de laços de amizades e
solidariedades entre os feirantes e aqueles que residiam na urbe.
Muitas dessas barracas ficavam alojadas, esperando chegar o dia de sábado,
ao lado da Igreja Matriz, na rua Monsenhor Francisco Manoel, porque era um lugar
vago, onde não havia residência. Vitalina Souza, ao falar das dificuldades para
guardar a barraca de sua mãe, relembra que
Tinha de buscá a barraca em baixo, onde hoje é o
Alambique,
82
desde quando a gente tinha barraca já tinha
Alambique, agora a gente não botava no Alambique, botava
assim de frente ao Alambique, numa casa de uma senhora.
83
O depoimento de Vitalina leva a crer que certamente sua mãe estabeleceu
firmes laços de amizade com a senhora que guardava sua barraca todas as
semanas. O processo de deslocamento, impulsionado pela necessidade e pela
liberdade, trazia consigo valores e práticas culturais, de homens e mulheres do
campo, que eram reconstruídos na cidade e se manifestavam em diversas
dimensões da vida cotidiana quer seja dos habitantes da urbe, quer seja na vida
daqueles oriundos das zonas rurais. João do Couro nos coloca diante daquela
realidade ao relembrar que
82
O Alambique, de propriedade de Clomar Orrico, foi um dos primeiros lugares de grande porte a
vender cachaça destilada na cidade, sobretudo para abastecer as vendas e butecos da zona rural e
bares da cidade e de toda região.
83
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
63
Ah! Eu arrumava a barraca, guardava alguma coisa e o resto
da feira que eu não vendia, eu guardava no fundo do açougue
do finado Totonhe, né? E aí arrumava a barraca e guardava em
argum lugá por ali e ia me embora pra roça.
84
As relações sociais dos feirantes com seus pares ou dos feirantes com outros
indivíduos, no universo da feira e da cidade, podem ser entendidas a partir dos
múltiplos aspectos que os envolviam. O grau de intimidade, a amizade ou a
indiferença, as relações familiares e de compadrio e a vizinhança, sentimentos
difíceis de serem contabilizados ou apreendidos, desdobravam-se em um conjunto
de relações pessoais e ações estratégicas que podem ser traduzidas como micro-
políticas desenvolvidas por esses sujeitos a fim de solucionar os problemas e as
dificuldades enfrentadas em seu dia-a-dia.
Muitas vezes, aquilo que para algumas pessoas hoje poderia não representar
problema algum ou não implicar em empecilhos maiores à vida cotidiana, como por
exemplo, guardar um caldeirão que servia para fazer o cafezinho ou uma amizade
que pudesse oferecer uma dormida em sua residência na cidade, tornava-se uma
tarefa que dependia das solidariedades e arranjos, desses homens e mulheres,
construídos na roça e reconstruídos na urbe. É emblemático o depoimento de Josué
Pereira sobre quando começou a trabalhar na feira:
Ah! Eu vendia, eu tinha uma barraquinha de café. tinha uns
caldeirão não levava não, deixava aqui, porque tinha uns
conhecido aqui, parentes. Deixava aqui e vinha mesmo
sozinho. Trazia arguma coisa que tivesse de trazê, mas ficava
aqui, tinha meu cunhado, tinha o parente dela (sua esposa
dona Massú) que era chamado Badinho, casado com a tia dela.
Morava aqui perto também, a gente vinha praqui, dormia por
aqui, quando não tinha lugá assim, não queria dormir na
barraca, a gente ia pra casa de Agapito, pra casa de Tonha, a
tia dela (sua esposa), a gente ficava por aqui levando, levando
a vida divagarinho até, até, ainda tá, até o dia que Deus quisé
ainda.
85
84
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
85
Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.
64
A comunicação e a rede estabelecidas entre Josué Pereira e seu cunhado,
chamado Badinho, seu Agapito e Tonha, a tia de sua esposa, expressam com
exatidão a conjugação entre laços familiares e sentimentos profundos que se
mantinham entre aqueles que moravam em áreas rurais e aqueles que moravam em
áreas urbanas. Relações estas sustentadas por laços familiares e de amizades,
mas, talvez, também por afinidades de “status social”. Dessa forma, a feira era
constituída por relações de amizades que construíam e davam significados aos
lugares. E essas relações influíam no processo de inserção dos feirantes no
universo da urbe. Entre arranjos e solidariedades, cada um ia construindo seu
“lugar” na feira. Como bem lembrou o feirante Esmeraldo Nunes dos Santos, “na
feira cada um tinha seu lugá, era aqueles espaçozinho pequeno, era tudo apertado,
mais tinha, cada um tinha seu espaço”.
86
Para Augusto Laranjeira, “a feira era aberta, ampla, geral, tinha um
barracão pra todo mundo”. Conseguir um lugar para vender dentro do barracão da
Farinha era difícil, poucos tinham esse privilégio, porque vender dentro do
Barracão era uma possibilidade de evitar se expor ao sol e à chuva. Para os menos
aquinhoados, expor suas mercadorias na pedra esparramadas pelo chão em panos
ou em folhas de bananeiras configuravam formas criativas de forjar alternativas de
sobrevivências no concorrido espaço da feira-livre na cidade da Capela. Alguns
ainda se utilizavam de caixotes, esteiras da costa, tábuas e tabuleiros para por suas
mercadorias à venda.
Muitas eram as dificuldades que os feirantes encontravam ao chegar na
cidade e, para superá-las, acertos e arranjos eram feitos em busca da
sobrevivência. Para aqueles que chegavam transportando suas mercadorias em
lombos de animais, uma outra preocupação era onde deixá-los durante o dia, até
chegar o final da tarde quando estariam de volta para casa. Alguns deixavam seus
jumentos e cavalos amarrados no meio da própria feira, outros os deixavam em
outras localidades próximas a este local, a exemplo das Ruas Monsenhor Francisco
Manoel e Rui Barbosa. Porém, para atender à grande demanda de animais, era
necessário um espaço maior que servisse de pasto para os animais daquelas
pessoas que iam para feira e ficariam de um dia para o outro. Logo, esses homens e
86
Depoimento de Esmeraldo Nunes dos Santos. Feirante, Avenida Juracy Magalhães 430 Santo
Antônio de Jesus-Ba, 67 anos.
65
mulheres não pouparam esforços em construir relações sociais que pudessem
assegurar um espaço apropriado e seguro que servisse de “abrigo” para seus
animais.
Ali não tinha asfalto, nem tinha casa. Ali era um sítio que era de
Ernesto, né? Hoje justamente é ali onde é, (como é que diz?)
onde está o Ginásio de Esportes. Aquilo ali era um sítio, era um
terreno ali, era um matagal aquilo ali, aquilo ali era pasto. O
pessoá vinha da feira, vinha pra feira, vinha da roça pra feira,
ficá de um dia pro outro, chegava ali sortava o animal ali. Bom
ali era uma pastaria, aquilo ali qué dizê, era cercado, tinha uma
cancela ali, o pessoal entrava ali e sortava o animal ali, e
pagava justamente uma “mensagenzinha” para deixá o animal
ali de um dia pro outro.
87
Parece que o senhor Ernesto, dono desse sítio, era mais complacente com os
feirantes e outros freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio de Jesus, cobrando
preços mais baixos pelo “aluguel do pasto”. Diferentemente do senhor Marcelino, pai
de oito filhos e dono de grandes propriedades rurais, que criava galinha, porco,
carneiro, gados e cavalos num amplo terreno que tinha próximo à feira-livre (toda a
área da praça Duque de Caxias), e era conhecido na cidade como Marcelino
Miséria, por manter o bito de controlar a alimentação de sua família se dirigindo
até à cozinha de sua casa todas as manhãs para cortar os dez pedaços de carne
que comporia o cardápio do casal e mais seus oito filhos e também por cobrar
preços altos às pessoas que deixavam seus animais em suas terras nos dias de
feira.
Marcelino Miséria cobrava preços mais altos e diferenciados pelas pastagens,
a depender do animal. Várias vezes animais de feirantes ficaram penhorados por
causa da falta de dinheiro para pagar o aluguel. Uma alternativa viável para os
feirantes, porém arriscada, era deixar seus animais no curral blico que funcionava
num beco localizado nas imediações do Clube Palmeirópolis.
A ausência de água encanada na cidade constituía-se em outro problema
para os trabalhadores da feira. Para preparar as refeições, lavar copos, pratos e
panelas, matar a sede ou para o próprio asseio, pois as longas caminhadas faziam
com que chegassem à cidade com as pernas sujas, cinzentas e cheias de poeira,
87
Idem.
66
para não falar repletas de lama em dias de chuva, a água da secular Fonte Santo
Antônio
88
tornava-se um recurso natural essencial.
Localizada no centro da cidade, em áreas próximas da feira-livre, a Fonte
Santo Antônio assumia uma função muito importante porque dinamizava o viver,
fornecendo algo fundamental à sobrevivência humana. Feirantes, freqüentadores e
freqüentadoras da feira e a “gente boa” da cidade, através de seus empregados que
eram vistos carregando água para abastecer as residências, beneficiavam-se com a
água da fonte que fora batizada com o nome do padroeiro da cidade.
FIGURA 08 – FONTE SANTO ANTÔNIO
FONTE: Livro A Capela do Padre Mateus. (1942)
88
Fonte secular que se localiza na Rua Aurelino Sales.
67
A Fonte Santo Antônio não era apenas lugar para se pegar água para
satisfazer as necessidades cotidianas. Ela era também lugar de congraçamento, de
troca de informação, canal de comunicação e sociabilidade, de troca de boatos e
fofocas, um significativo lugar de encontro das camadas mais populares.
89
Quem podia, recorria a outros recursos para obter água de maneira mais fácil,
A gente pegava água numa cisterna de meu padrinho na
feira pertinho da barraca da gente, as barata, Ave Maria! Tudo
demolida dentro e a gente sabia que tinha de tomá daquela
água, os velho e tudo.
90
O relato de Vitalina Souza traduz bem a importância das relações de
compadrio entre os feirantes, porque eram também formas de relações sociais que
poderiam garantir benefícios para eles em momentos difíceis. Mas, na feira, as
relações de compadrio não eram firmadas apenas pela oficialidade da Igreja
Católica através do batizado de um filho ou outras formas tradicionais de firmar tal
relação na região.
Era comum, nesse ambiente de trabalho, mulheres e homens tratarem como
compadres e comadres as pessoas que eles gostavam e os tratavam bem. Na feira,
o compadrio era firmado a partir de laços de amizade e conhecimento, muitas vezes,
laços construídos na roça. Dessa maneira, a ajuda mútua entre feirantes e não
feirantes penetrava o cotidiano da feira em várias esferas.
91
Pequenos atos, como o empréstimo de uma faca mais amolada ou dar uma
“olhadinha” na barraca do vizinho quando este precisasse ir até o sanitário ou
resolver alguma coisa em outro espaço da feira, configuravam-se em atos de
generosidade que podiam desdobrar-se na construção de poderosos laços de
amizades e solidariedades, e até em futuras relações de compadrio entre feirantes e
os diversos sujeitos sociais que faziam parte daquele universo.
89
Aqui, inspiro-me nas idéias de Mary Del Priore quando afirma que a Igreja, a Praça, o cais e as
Fontes de água eram lugares de congraçamento. In: Festa e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1994. p. 96.
90
Vitalina Souza Santos. Depoimento citado.
91
Na Região do Recôncavo Sul é Comum a construção de uma rede de sociabilidades estabelecida a
partir de compadres de parto, de batismo, de casamento, de fogueira, etc.
68
Para os feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira satisfazerem suas
necessidades físico/biológicas era outro problema que tinham que enfrentar, porque
não existia na cidade um sistema público sanitário que viesse atender à população.
Dessa forma, era necessário improvisar lugares que pudessem servir para tal
objetivo e de preferência que estivessem localizados nas imediações da própria
feira. Ao relembrar as manhãs quando tinha que descer para pegar sua barraca na
casa da amiga de sua mãe, de frente o Alambique, dona Lina nos conta que
As pessoa fazia as necessidades ali, encostava do lado da
berganha, oi quando a gente ia pra levá a barraca em baixo
no Alambique a gente ia virando a cara pro lado e pro outro,
porque cada um ta seu apertado abaixado. Quem quer
ficá olhando? Ia passando.
92
A improvisação de “lugares” na feira pode ser vista como uma grande
capacidade dos feirantes e freqüentadores de criar espaços “adequados” para cada
coisa e situação que se lhes apresentavam. A “Berganha” citada no relato de dona
Lina não servia apenas como lugar de depósito de algumas barracas e como
“sanitário público”, era também o nome do espaço onde aos sábados se vendia e
trocava várias coisas. Localizada entre o final da rua Monsenhor Francisco Manoel e
a rua Celestino Pimenta, na Barganha se vendia animais vivos como: galinhas,
perus, patos, cavalos, bois, dentre outros. Mas, para aqueles que no momento não
dispunham de soldo suficiente para comprar, a saída era barganhar
93
, sobretudo, os
animais que eram indispensáveis para o transporte de mercadorias e a própria
locomoção. Muitos foram aqueles que barganharam “seu burro velho por um burro
novo”. No espaço da Barganha múltiplas dimensões da feira se concretizavam.
Dessa maneira, feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira-livre de
Santo Antônio de Jesus, através de suas práticas cotidianas, iam se apropriando da
cidade, dando sentido e significado a uma topografia que surgia condicionada à
labuta do dia-a-dia. As trajetórias individuais e coletivas destes atores mostram que
de várias maneiras as vivências do cenário rural, no qual estavam inseridos a
então, se projetaram sobre o universo urbano criando uma geografia a partir das
92
Vitalina Souza Santos. Depoimento citado.
93
O processo de barganhar consistia em trocar um produto mais velho por outro mais novo e o
negociante, proprietário, que ficava com o produto mais novo devia dar uma diferença em dinheiro.
69
experiências desses sujeitos e das condições que a cidade da Capela oferecia.
Eram homens e mulheres que definiram suas escolhas, alimentaram expectativas e
se deslocaram em busca de novas alternativas.
O que tentei mostrar até aqui foi como se deu o processo de criação de uma
geografia da feira-livre na cidade e a possibilidade de pensá-la como um “espaço de
produção” que não começava na feira propriamente dita. As ações que os vários
sujeitos desempenhavam antes de chegar até a feira, como por exemplo o ato de
acordar 2 horas da manhã para fazer o café que quebraria o jejum de muitos que
para se deslocavam ou as madrugadas de sexta feira que dona Maria Plácida
adentrava fazendo bolo, biscoitos e comida para vender na feira-livre, como veremos
adiante, constituíam-se em imperativos da vida concreta para refletir esse lugar
como um espaço construído a partir do entrecruzamento de vários “espaços” e
várias temporalidades, para não falar na relação do público e o privado, pelo menos
neste momento. Para dar continuidade ao nosso itinerário, iremos acompanhar
agora a atuação de alguns feirantes na feira-livre de Santo Antônio de Jesus e
demais feiras da Bahia.
2.4 – Feirantes em Cena.
Em 28 de setembro de 1948, o prefeito Antônio M. Fraga sancionou, no
município de Santo Antônio de Jesus, a Lei 5 que criava outra feira na sede do
município. Dentre os artigos que compunham esta lei estavam:
Artigo Fica criada a partir de 06 de outubro, outra feira na
sede municipal.
Artigo O dia designado para realização da feira a que se
refere o artigo supra é a quarta feira.
Parágrafo Único quando acontecer que seja feriado o dia
supra citado, será a feira transferida para o dia imediato,
cumprindo ao fiscal geral dar disso aviso aos feirantes, na
quarta feira anterior, repetindo no sábado o aviso.
70
Artigo O prefeito fará expedir a necessária comunicação
aos habitantes da zona rural, bem assim às prefeituras de
Nazaré, São Miguel, Castro Alves e Conceição do Almeida.
Artigo 4º – Revogam-se as disposições em contrário.
94
O crescimento da feira-livre no município de Santo Antônio de Jesus, no
final da década de 40, não permitia mais que ela ocorresse apenas uma vez por
semana, aos sábados, e a iniciativa do poder público em designar também a quarta-
feira, como outro dia em que haveria feira no município, significava o aumento de
arrecadação para os cofres públicos. Essa medida explicita, também, uma dinâmica
social que contribuía cada vez mais para a presença do homem do campo na cidade
e o entrelaçamento destes com os habitantes da urbe.
Um balanço feito pelo jornal O Paládio, após a realização da primeira feira de
quarta-feira na cidade, diz que foi “uma medida muito acertada da prefeitura, de
mãos dadas com a edilidade”. O jornalista dizia também que outras cidades tinham
suas feiras realizadas em três dias durante a semana, como era o caso de Jequié e
Nazaré. Segundo ele, “tanto o lavrador quanto o negociante sentem-se satisfeitos,
como as famílias e o povo que encontram viveres com fartura, na semana, mais de
uma vez. A primeira feira do meio da semana mostrou que a idéia foi bem aceita por
gregos e troianos, já que houve movimento bem regular na Praça”.
95
Na Região do Recôncavo Sul, existiam, e ainda existem, várias feiras que se
destacam na Bahia e no Brasil pelas suas particularidades e especificidades
culturais, algumas delas configurando-se como poderosos centros de atração
turísticas. Exemplos emblemáticos são a Feira do Porto, na cidade de Cachoeira,
que durante a noite de 23 e a madrugada do dia 24 de Junho, quando no Nordeste
se comemora o dia de São João, moradores locais e de cidades vizinhas, como São
Félix e Muritiba, para se deslocam à procura de produtos juninos como Coco
verde e seco, massa para bolo, amendoim, milho verde e laranjas; e a Feira de
Caxixis, na cidade de Nazaré, que se inicia na semana que antecede o dia da
Paixão de Cristo, atraindo muitos turistas, de vários lugares do Brasil e até do
94
Jornal O Paládio. Ano 47, 08 de outubro 1948. N. 2293 – APMSAJ.
95
Ibid.
71
mundo, para apreciar e comprar imagens, potes de cerâmicas e artesanatos
produzidos em Najé e Coqueiros, distritos de Maragojipe.
96
Segundo o historiador Charles D’Almeida Santana, muitas destas feiras
tornaram-se “especiais” por apresentarem peculiaridades ligadas ao horário, dia ou
período em que elas ocorrem, a exemplo da “Feira Noturna” em Cachoeira e a Feira
de Caxixis em Nazaré, ou quando estão associadas à comercialização do produto
de “maior destaque” em seu universo como é o caso da feira da Banana em
Maragojipe. A feira-livre de Santo Antônio de Jesus talvez o possa ser incluída
nessa “categoria”, mas, em toda região, várias cidades baianas e até em outros
estados, ela é conhecida como a feira que vende uma das melhores farinhas de
mandioca da Bahia.
Produzida não em Santo Antônio de Jesus, mas também em várias
cidades da Região do Recôncavo Sul, como São Miguel das Matas, Dom Macedo
Costa, Conceição do Almeida, Laje e Mutuipe, comercializada dentro do Barracão
que se localizava no meio da feira, a farinha de mandioca exercia/exerce uma
importância material e simbólica na cidade. Mas, muitos outros produtos eram
comercializados na feira-livre de Santo Antônio de Jesus.
Estabelecido na feira-livre mais de meio século, pai de dez filhos, João
Nunes dos Santos vendia esteiras de piri e de palhas de ouricuri, sacolas, cestas de
palhas, sandálias, cintos e chapéus de couro, selas, panacuns para animais,
espingardas, pilão e pratos de madeira para machucar temperos, cachimbos,
ratoeiras, bucha vegetal, abanos, espanadores, bainhas para facão, fogareiros de
alumínio, candeeiros, cabaças para artesanatos, estilingue, cambotas, peneiras,
colheres de pau, cabo para machados, ninhos de galinha e chapéu de palha. Este
último, importante acessório do universo cultural das populações das cidades do
Recôncavo Baiano, era utilizado o apenas para se proteger do “sol quente” em
dias de trabalho árduo na roça ou na cidade; em tempos em que as moças ainda
usavam seus vestidos de chitas e sortes na cabeça sua venda intensificava,
sobretudo no mês de junho quando em toda região se inicia o louvor e os festejos a
Santo Antônio, São João e São Pedro.
96
SANTANA. Dimensão histórico-cultural (cidades do Recôncavo). Op. Cit. Cap. III: Feiras e
Mercados. p. 52. Sobre os trabalhadores do barro no Recôncavo da Bahia, ver o instigante trabalho
de BARRETO, Virgínia Queiroz. Viver do barro: trabalho e cotidiano de oleiros. Maragogipinho-Bahia:
1970-1998. (Dissertação de mestrado) PUC-SP. 1999.
72
Vendedor de vários utensílios domésticos para o lar de pessoas que residiam
tanto na roça como na cidade, acessórios para o vestuário e instrumentos de
trabalho para homens, mulheres e até crianças, os produtos comercializados por
esse feirante, na feira-livre da cidade da Capela, vinham de várias regiões da Bahia
e do Brasil. As sacolas de palhas e alguns produtos de couro vinham de
Pernambuco, de Feira de Santana e da cidade de Caldas do Jorro, na Bahia. As
espingardas vinham de Sergipe, panacuns eram trazidos da zona rural de Minas do
Onha, na cidade de Muniz Ferreira, outros produtos que ele negociava vinham de
Nilo Peçanha, Itaperoá, Região de Valença, dentre outras localidades. Ao falar sobre
a organização do espaço na feira e os produtos que eram comercializados por
conhecidos e amigos, João Nunes dos Santos relata que
Ali em frente ao Banco do Brasil mesmo tinha uma barraca que
vendia fio de porco, cabresto, cebola, essas coisas, alho, essas
coisas e a feira toda era assim, eu, aonde eu trabalhava, em
frente o barracão, tinha Ioiô, o pai de Clovis do posto, que
comprava pele de carneiro, por isso eu tenho esse nome de
João do Couro, né? E aí eu aprendi a comprar pele de carneiro,
quando Ioiô saiu eu fiquei comprando. Quando Ioiô saiu do
ramo aí eu fiquei comprando.
97
João do Couro comprava peles de carneiro com Ioiô, e quando esse deixou
de vender, João Nunes assumiu a responsabilidade de comercializar esse produto.
Ele ampliou os seus negócios comprando também peles de carneiro com outro
negociante chamado Domingo do Carneiro e vendia tais produtos na feira-livre de
Santo Antônio de Jesus e se dirigia todas as semanas para a cidade de Feira de
Santana para fornecer pele de carneiro a um outro comerciante denominado de
major Diógenes. No ramo de peles, João do Couro não comercializava apenas peles
de carneiro, ele vendia também peles de outros animais silvestres, a exemplo de
peles de jibóia, bastante vendida na região porque seu couro era utilizado para
fabricar tambores, atabaques e outros instrumentos musicais bastante usados nas
festas que ocorriam no Recôncavo da Bahia. João do Couro parou de
comercializar estas peles quando o IBAMA começou persegui-lo, forçando-o a abrir
mão deste negócio.
97
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
73
Além de exemplificar uma das formas como alguns feirantes iam incorporando
outros produtos em seus ramos de negócios, o relato de João Nunes dos Santos
nos remete a pensar nas idéias de Stuart Hall quando diz que
Movimento e migração são condições de definição sócio-
histórica da humanidade. Novas características temporais e
espaciais, que resultam na compressão de distâncias e de
escalas temporais têm efeitos sobre as identidades culturais.
98
Na cidade, e também em outras localidades, ninguém conhece o feirante pelo
nome de João Nunes dos Santos, referem-se a ele como “João do Couro”. Muitas
pessoas sabem quem ele é, sua família, onde mora e, sobretudo, onde está
localizada sua barraca na feira, atualmente, através dessa identificação.
Seguindo as reflexões de Hall, é possível perceber que o feirante João Nunes
dos Santos, em sua trajetória e experiência de vida, marcada por “movimentos e
migrações”, vivenciou um processo em que novas características foram
incorporadas a seu “Eu”. A partir do estreitamento da distância tempo/espaço,
campo/cidade, João Nunes dos Santos, ao passar a vender peles de carneiro,
passou também por um processo de construção/reconstrução de identidade a partir
dessa nova prática adquirida na urbe, agora incorporada ao seu universo material e
cultural.
A prática de comprar e vender peles de carneiro não significava apenas uma
simples ação de compra e venda de mercadorias. Assim, novos elementos eram
incorporados a partir de novas circunstâncias que faziam com que o feirante João
não fosse mais ou apenas João Nunes dos Santos, mas também, sobretudo no
ambiente da feira, João do Couro. Forma como ele mais se auto-representa na vida
cotidiana.
Vendedor de peças de cerâmicas, pratos denominados de caxixis, moringas e
potes para o armazenamento de água, jarros e potes para decoração doméstica,
98
HALL, Stuart. A identidade cultural na s-modernidade. 8. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.
67-69.
74
miudezas para enfeites de altares de santos, miaeiros,
99
abanos, candeeiros, colher
de pau, para filtro, para panelas, vassouras, espanadores e outros produtos;
pai de seis filhos e mais de 60 anos comercializando na feira livre de Santo
Antônio de Jesus, Augusto Soares da Silva vivenciou processo semelhante ao de
João do Couro. Ele começou vendendo aipim, batata-doce, abacaxi, laranja,
banana, dentre outras frutas e verduras que ele comprava e levava para vender na
feira. Quando decidiu ampliar os seus negócios, Augusto Laranjeira, como é
denominado e reconhecido, comprava limão, lima, abacate e grandes quantidades
de laranjas com João Silva no “Campo do Governo”
100
e se deslocava da cidade de
Santo Antônio de Jesus para comercializar na feira de Água de Meninos em
Salvador.
Augusto Soares da Silva colocava suas mercadorias no trem, descarregava
no Porto, depois as conduzia até o navio que as transportava até a cidade de
Salvador quando uma carroça fazia o transporte de seus produtos para o local da
Feira de Água de Meninos
101
. Ele transportava sua carga no início da semana,
vendia e voltava para vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus no final de
semana e deixou de trabalhar em Salvador quando a feira de Água de Meninos
“foi pelos ares” com o primeiro incêndio que ocorreu numa tarde de sábado, em 5 de
setembro de 1964, e o segundo que a deixou em cinzas quatro dias após ter
ocorrido o primeiro.
102
Devido à grande quantidade de laranjas que ele vendia na cidade de Santo
Antônio de Jesus e em Salvador, capital da Bahia, seu nome oficial, dado pelos seus
pais, fora paulatinamente substituído pelo nome de “Augusto Laranjeira”, marca
registrada por feirantes, comerciantes, freqüentadores e freqüentadoras das feiras
de Santo Antônio de Jesus e de Água de Meninos na Bahia. Augusto Soares da
Silva, a partir dessas experiências, adquiriu uma nova identidade localizada num
tempo e num espaço.
99
Miaeiro é o nome dado a pequenas peças feitas de cerâmica, alumínio, dentre outros artigos, ocos
em seu interior com uma cavidade que permiti a entrada de moedas. Na Região é comum muitas
pessoas usá-lo como se fosse uma poupança caseira.
100
Campo do Governo é uma área que fica bem afastada da área central da cidade, nos anos 50, 60,
era considerada rural e de propriedade do Governo Estadual. Esse campo era administrado por Dr.
Oswaldo e consistia em uma área dedicada à plantação de frutas cítricas. Hoje essa área é de
propriedade do Governo Federal, onde funciona a Universidade Federal do Recôncavo Baiano.
101
Sobre a Dinâmica da Feira de Água de Meninos, ver o interessante trabalho de PAIM. Op. Cit.
102
Ibid.; p.55-57.
75
Além do tempo e o espaço das feiras livres, a associação com uma das
mercadorias que ele mais vendia a laranja somadas as relações sociais
estabelecidas com seus clientes, que assim o denominaram, constituíram-se em
coordenadas básicas para a criação de uma nova identidade também forjada num
espaço e tempo simbólicos.
103
Outro feirante, que vivenciou experiência semelhante às de João Nunes dos
Santos e Augusto Soares da Silva, foi Esmeraldo Nunes dos Santos. Entre um olhar
de felicidade e um sorriso, Esmeraldo Nunes dos Santos relembra aqueles “bons
dias” que vivera na feira tendo como referência os “poucos concorrentes” homens
que negociavam as mesmas mercadorias do ramo no qual trabalhava. Seus
concorrentes eram um moço de nome Félix, João Mota e um outro rapaz
denominado de Alfredo. Eles vendiam alho, cebola, tomate, algumas frutas, azeite,
entre outros produtos. A felicidade de Esmeraldo Nunes naquele momento devia-se
ao fato de que ele muitas vezes conseguia vender mais de cem sacos de cebolas
(com vinte quilos) por semana.
Assim como João Nunes e Augusto Soares, Esmeraldo Nunes se destacava
na feira-livre por ser um feirante que comercializava grandes quantidades de
verduras, principalmente a cebola. Devido a este fato, ele ficou conhecido na feira,
na cidade e em outras localidades como Esmeraldo da Cebola.
Vender em feiras da Bahia como a de Água de Meninos em Salvador, Feira
de Santana, dentre outras, não era tarefa das mais fáceis, muitos feirantes, ao
desempenharem suas atividades, estavam envolvidos no processo de compra e
venda de mercadorias que os fazia entrar em contato com outros contextos culturais
e territoriais. As “aventuras” do dia-a-dia poderiam deixar homens e mulheres
vulneráveis às armadilhas cotidianas que essa atividade, às vezes, lhes apregoava.
O incêndio na feira de Água de Meninos deixou um rastro de muitas pessoas feridas
e sofrimento, mas Augusto Laranjeira, por trabalhar no dia de sábado na feira-livre
de Santo Antônio de Jesus, não estava para assistir o desespero de feirantes e
consumidores, muitos deles feridos, “que ficaram anestesiados diante do ‘mar de
103
HALL. Op. Cit. p. 71.
76
chamas’ que destruiu 1172 humildes barracas das 1574 ali instaladas, naquela tarde
de sol causticante”.
104
João do Couro não tivera a mesma sorte que Augusto Laranjeira, ao
relembrar um daqueles dias de suas idas e vindas em que se deslocava para
comprar mercadorias na feira e na cidade de Feira de Santana, no Sertão da Bahia,
nos conta:
A gente sofria muito naquele tempo que ainda era em cima de
caminhão, o caminhão carregado, era doze, doze pessoa,
quinze pessoa em cima de uma carga, o carro carregado,
aquele pau-de-arara terríve, a gente arriscando a vida, era
muito terrive isso, era. Eu mesmo arrisquei de morrer umas
duas veiz na ladeira de Cachoeira, que o carro faltou frei na
decida, finado Deca encostou o carro no…, Deus ajudou que
encostou no barranco, que o carro parou já perto da caixa
d’água pra caí num despinhadeiro terrive que tem ali, foi.
105
O depoimento do feirante, em que ele narra um dos momentos mais
traumáticos de sua vida, mostra a dificuldade que ele tinha para ganhar a vida
naquele tempo. A sorte e o apego ao mundo espiritual nos momentos difíceis eram
condições imprescindíveis à manutenção da vida e da história, no permanente jogo
do viver e morrer. As lembranças do momento em que ele esteve na ambivalência
da existência entre a vida e a morte são testemunhas de que muitos feirantes
experimentaram os azares e aventuras das estradas.
A narrativa do feirante João do Couro ainda nos serve como um poderoso
elemento para se pensar no debate entre história e memória travado por Pierre
Nora. Ao problematizar os lugares da memória a partir da “história da própria
memória” e defender que memória não é sinônimo de história, ele afirma que os
lugares de memória,
São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material,
simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus
diversos. Mesmo um lugar puramente funcional, como um
manual de aula, um testamento, uma associação de antigos
combatentes, só entra na categoria se for um ritual. Mesmo um
104
PAIM. Op. Cit. p. 55.
105
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
77
minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma
significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de
uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma
chamada concentrada da lembrança.
106
As lembranças dos momentos em que ele esteve entre a vida e a morte
mostram-nos como as experiências vivenciadas em lugares que dão sentido à sua
trajetória e história de vida são também lugares mistos, híbridos e mutantes,
intimamente enlaçados de vida e morte, de tempo e de “eternidade”, numa espiral do
coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel.
107
o
cruzamentos de tempo/espaço e história que podem ser facilmente traduzidos como
lugares de memória.
A busca pela sobrevivência também colocara dona Nita
108
em condições de
perigo em feiras da Bahia. Nascida e criada na Jueirana, município de Santo Antônio
de Jesus, mãe de dois filhos, dona Nita, após seu casamento, tivera que
acompanhar seu marido até a cidade de Laje, no vale do Jiquiriçá. Após sua
separação, para ganhar a vida e sustentar seus filhos, ela começou a se deslocar
para beiras de rios para “rancar língua de vaca”
109
e vender na feira livre de Santo
Antônio de Jesus. Para complementar sua renda, ela solicitava que seus primos
trouxessem da cidade de Nazaré das Farinhas um peixe denominado de Espetinho,
produto que ela vendia em grandes quantidades por ser barato e de grande gosto
popular na região.
Dona Nita o se contentara em viver em Santo Antônio de Jesus, resolveu
deixar sua filha sobre a responsabilidade do pai e do avô paterno, na cidade de Laje,
aceitando o convite de uma senhora, que morava na capital e, velha conhecida de
sua tia, que tinha barraca na feira-livre. Ao se deslocar para Salvador, dona Nita fora
acompanhada de seu filho mais velho para trabalhar como auxiliar, da senhora que
a levara, numa barraca instalada na feira de Água de Meninos, onde vendia café,
lanches e refeições para feirantes e freqüentadores daquela feira.
106
NORRA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n. (10) Dez. 1993. PUC-SP. p. 21-22.
107
Ibid.; p. 22.
108
As práticas sociais e experiências de dona Nita que aparecem nesse trabalho, foram relembradas
e narradas por sua prima, Vitalina Santos Souza.
109
Língua de Vaca é uma folha que se encontra em beiras de rios. Seu sabor é azedo e era utilizada
para fazer ensopado com carne, sobretudo carne de sertão.
78
Ao final do expediente, a dona da barraca se deslocava para sua residência
enquanto a feirante Nita e seu filho dormiam em cima das barracas ali instaladas.
Após certo tempo, dona Nita passara a sofrer as ações de “homens descarados” que
a assediava e tentava conduzi-la aos caminhos da prostituição. Os conflitos de
gênero também marcavam o cotidiano em feiras da Bahia. Embora isso não
acarretasse uma exclusão da mulher no ofício de ser feirante.
Voltando a história da feirante Nita, determinada, decidiu o trabalhar mais
com a senhora que a levara para Salvador e, graças a um amigo que era fiscal da
feira, dona Nita encontrou amparo para ela e seu filho. Segundo sua prima,
O fiscal ofereceu a ela um quartinho pra viver perto da feira de
Água de Meninos. Mais ela passou muita dificuldade porque
não tinha nada e ela e seu filho se enrolava com os vestidos e
as roupas mesmo que vestia. Ela sofreu muito.
110
É difícil medir o grau de dificuldades que muitos feirantes enfrentavam em sua
labuta cotidiana, nem imaginar se o sofrimento de homens e mulheres pudesse ser
minimizado e ou diferenciado a partir das relações de gêneros. É indiscutível que a
situação de dona Nita naquele momento, na condição de mulher, mãe, com dois
filhos para criar, sem casa própria para morar e ainda ter que utilizar as roupas do
próprio vestuário, como improvisação de lençóis e cobertores, não era nada fácil.
Mas, também, não era fácil para João do Couro enfrentar as estradas após os tristes
episódios que quase o levaram à óbito. Não pretendo aqui fazer uma história do
sofrimento de feirantes, mas, mostrar as várias nuanças que envolviam o cotidiano
desses sujeitos em feiras e cidades da Bahia.
A luta cotidiana pela sobrevivência, as práticas de compra e venda de
mercadorias, o trabalhar na feira possibilitavam que homens e mulheres efetivassem
contatos com várias cidades do interior da Bahia e com a capital. Dessa maneira, é
possível pensar a feira-livre como um local privilegiado de concentração de pessoas
e mercadorias, no qual portas e janelas da cultura de uma região ou localidade se
abrem sobre outras. As experiências vivenciadas por João do Couro, Augusto
Laranjeira, dona Nita, dentre outros, exemplificam o quanto esses homens e essas
110
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
79
mulheres, vulneráveis ou não aos acasos, interagiam com outros contextos
territoriais e também culturais, e essa rede de sociabilidades dos feirantes, que
saíam da zona rural, com os cidadãos da cidade poderia ir muito além dos limites
fronteiriços da Região do Recôncavo Sul.
Mas, as experiências destas personagens não se configuravam como regra
geral, no sentido em que as trajetórias e histórias de outros sujeitos desta pesquisa
caminham em direção contrária. Vendedor de “cafezinho”, cuja matéria-prima ele
mesmo plantava e colhia, Josué Pereira também comprava água na mão de seu
João da Garapa e revendia na feira. Além do cafezinho e da água, ele vendia doces,
cachaça, guaraná e sucos. Ao falar sobre as viagens que fazia, seu Zezeu relembra
que poucas vezes fora à Nazaré das Farinhas e que não gostava de viajar. Quando
indagado se tinha contatos com outras cidades como Salvador, a capital da Bahia,
por exemplo, ele nos revela:
Não, não, não, não (muitos risos), nesses lugar eu nunca ia
não. Nunca gostei de viajá assim não. É, hoje eu indo pra
Ilha por que meus menino tão lá, mais eu vim pra conhecer o
que é Ilha de uns tempo pra cá, porque meus menino foi, meus
menino foi, mais nunca tinha ido em Ilha. Se os menino não
lá eu acho que eu morria, morria de velho e não ia na Ilha.
111
Enquanto a prática de ser feirante permitia uma mobilidade a João do Couro e
Augusto Laranjeira, o mesmo não acontecia com seu Zezeu. Muitas vezes, esta
mobilidade estava associada às escolhas dos produtos que os feirantes
comercializavam na feira. Mas, poderia também, ser fruto de outras experiências que
não permitiam outros deslocamentos.
Os “nãos” enfatizados na narrativa de Josué Pereira, associados à sua risada,
levou-me a deduzir que era incogitável, a partir de suas experiências, ele conhecer a
Ilha de Itaparica e Salvador, capital do estado, nas décadas de 50 e 60. Na
concepção desse feirante, foi o trabalho árduo e duro na roça que o levou a
transformar-se em uma pessoa que o gostasse de viajar. Não era a questão de
medo do desconhecido, mas o fato de trabalhar demais na roça desde pequeno e
111
Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.
80
não sair para “lugar algum”, condicionou-o a ser um homem que não gostava de
viajar.
Outra feirante que apenas comercializava seus produtos na feira-livre de
Santo Antônio de Jesus, e não viajava para outras cidades, pelo menos para
comercializar, era dona Maria Plácida. Mãe de oito filhos, para ganhar o pão de cada
dia ela comprava carne na própria feira da cidade e preparava refeições para vender
a feirantes e freqüentadores. Além de vender comidas, ela também comercializava
cafezinho e aguardente preparada com folhas de erva-doce.
Márcia Regina da Silva Paim, ao falar sobre o cardápio e as bebidas que
eram servidas nas feiras de salvador ressalta que
Nas feiras-livres, algumas doses de aguardente desciam como
bálsamo. Abastecido o corpo, os feirantes tinha como agüentar
a lida do trabalho num local insalubre, o enfrentamento com os
prepostos municipais e outros revezes do cotidiano.
112
Na região do Recôncavo Sul, a aguardente pura e a aguardente preparada
com folhas de erva-doce, erva-cidreira, guiné, jiló… Eram famosas e bastante
consumidas por várias pessoas. No universo da feira-livre, feirantes e
freqüentadores consumiam doses dessas bebidas ao longo do dia de trabalho. Era
comum, aos adeptos da aguardente, consumi-la como um aperitivo obedecendo à
um ritual que se repetia três vezes ao dia.
Tomada logo pela manhã o aperitivo assumia a função de ”abrir os caminhos”
e prepará-los para mais um dia de feira, ingerida antes do almoço servia para abrir o
apetite, uma dose no final da tarde poderia servir de consolo para driblar as
frustrações de um ruim dia de feira, comemorar um dia de sábado de grandes
vendagens, como também para prepará-los para o retorno para casa. Maria Plácida
vendia bastante o produto responsável em “abrir os caminhos” de muita gente na
feira-livre.
112
PAIM. Op. Cit. p. 83.
81
Entretanto, o produto mais famoso dentre as mercadorias que dona Maria
Plácida comercializava era o bolo de puba
113
que ela preparava em sua casa; de tão
saboroso, sua comercialização não se restringia apenas para alimentar feirantes e
freqüentadores na feira. Em uma certa ocasião, um dos maiores consumidores do
bolo de dona Maria Plácida, Manoel Anjo, famoso na cidade por vender fato e o
melhor fígado “ferventado” da feira, encomendou grandes quantidades de bolo de
puba para abrilhantar a festa de seu casamento.
Muitas vezes, no seio da própria família, as experiências no que diz respeito à
mobilidade dos feirantes se diversificavam de acordo às exigências das
circunstâncias. Ao lembrar as histórias de dificuldades que sua família passara em
busca da sobrevivência, Vitalina Souza nos conta:
Minha mãe tinha que guentar com oito filhos, meu irmão
mais velho começou assim negociando, comprá farinha aqui na
feira, levá pra Nazaré no animal, tinha vez que ele comprava
assim três carga, porque três carga era seis sacos, comprava
no dia de sábado para levá no dia de sexta-feira pra Nazaré,
ele ia de tocando o animal da Jueirana pra Nazaré, mas
tinha vez que as coisa lá apertava, começava tirando da farinha
(muitos risos).
114
Enquanto Maria Plácida e sua filha Vitalina se limitavam a comercializar seus
produtos na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, seu filho mais velho mantinha
relações comerciais de compra e venda de farinha de mandioca, tanto nas feiras-
livres de Santo Antônio de Jesus como de Nazaré das Farinhas. Mesmo
compartilhando de experiências múltiplas e variadas, esses atores sociais
construíram e vivenciaram, a partir dos “seus mundos do trabalho”, uma rede inter-
territorial ou, porque não dizer, inter-regional que os conectava uns com os outros.
Raymond Williams, analisando as representações historicamente construídas
acerca das relações entre o campo e a cidade na Inglaterra, mostra-nos que no
campo ou na cidade as experiências históricas dos sujeitos são variadas não sendo
possível emoldurá-las em categorias. Não um modo de ser rural e um modo de
ser citadino, nem tampouco uma polaridade entre ambos. Para ele “A vida do campo e
113
Puba é um tipo de massa extraída da mandioca e utilizada para fazer bolo. O bolo de Puba é
bastante consumido na região do Recôncavo Sul.
114
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
82
da cidade é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história de uma
família e um povo; move-se em sentimentos e idéias através de uma rede de
relacionamentos e decisões”.
115
Comparando as experiências vividas por feirantes como João do Couro,
Esmeraldo Nunes, Augusto Laranjeira e o filho de Maria Plácida que viajavam com
freqüência para outras cidades, com as experiências de Josué Pereira, Vitalina
Souza e a própria Maria Plácida, que não viajavam, mas saíam da zona rural para
vender na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, percebe-se que as reflexões de
Raymond Willians podem ser transportadas para entender essa realidade porque
eram vidas que se moviam ao longo do tempo a partir de histórias de famílias, de
idéias e tomadas de atitudes.
Vendendo seus produtos na feira de Santo Antônio de Jesus, em Água de
Meninos em Salvador, na feira-livre de Nazaré ou na feira de Feira de Santana,
esses homens e mulheres, em busca da sobrevivência e outras alternativas de vida,
levaram um pouco de si e encenaram dimensões de sua cultura em várias feiras e
cidades da Bahia.
A trajetória de vida desses feirantes, associada ao projeto de melhorar de
vida, conduziu alguns deles a vivenciarem experiências múltiplas que, em alguns
casos, tornaram-se homens e mulheres feirantes em diferentes feiras baianas. No
próximo capítulo, centrarei minha análise, especificamente, na dinâmica da própria
feira-livre de Santo Antônio de Jesus, tentando abordá-la a partir dos vários sujeitos
sociais que a protagonizavam.
115
WILLIAMS. Op. Cit. p. 19.
83
3 A Feira e Seus “Outros” Protagonistas.
3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos.
3.2 Crianças, Mulheres. Outros Papéis.
3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade.
3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado.
3.5 Em Meio ao Trabalho, o Lazer.
84
3.1 Fiscais, Moleques e Mendigos.
Cada vez que falamos, criamos de novo, e o
que criamos é uma função da nossa
linguagem e da nossa personalidade. (John
Firth)
Ainda a pouco, a feirante Vitalina Souza dizia que, quando a “coisa apertava”,
sua mãe tirava para o sustento da família a própria farinha de mandioca que seria
comercializada por um dos seus filhos na feira-livre da cidade de Nazaré das
Farinhas. A falta de condições financeiras para o sustento da casa e da prole
justificava as variadas experiências, às quais se submetiam estes homens e
mulheres em feiras da Bahia. Todavia, um dos apertos mais freqüentes na vida dos
feirantes se dava no momento do encontro entre eles e os fiscais da feira.
As relações humanas, muitas vezes, implicam em alianças e conflitos, lutas
reais e simbólicas pela dominação do espaço individual e coletivo ou do espaço
público e privado. O que pretendemos analisar neste ponto são os possíveis
conflitos enfrentados pelos feirantes no ambiente de trabalho, as estratégias
utilizadas para solucioná-los e mostrar de que forma outros atores protagonizavam o
universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus construindo um território uno e
multifacetado.
Uma vez trabalhando na feira, os feirantes, na labuta cotidiana, se deparavam
com as ações dos fiscais, representantes do poder público, que cobravam os
impostos àqueles que vendiam seus produtos dentro do Barracão da farinha, em
barracas ou na pedra.
Mesmo no dia que eles não vendiam nada, que o movimento na feira era
considerado fraco, consistia em uma das obrigações dos feirantes pagarem os
impostos referentes às suas “posses” na feira. Para contornar tal situação, muitos
deles se utilizavam de vários recursos e habilidades a depender da postura e da
relação estabelecida entre feirantes e fiscais. Ao relembrar o perfil psicológico dos
fiscais que atuavam na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, Vitalina Souza diz que
85
Uns era gido, queria o dinheiro de quarque jeito, agora tinha
outro, é porque esqueço o nome dele, seu Inocêncio, seu
Inocêncio era uma pessoa tão…, sei meu Deus do céu, ele
morava nos Expedicionário, mais era uma pessoa tão
delicada, uma pessoa tão boa. Ah! eu falava “ô seu Inocêncio,
eu não tenho” e ele dizia “não tem nada não”, chegava dava
um pedaço de bolo, comia e ia embora. (muitos risos)
116
Além de Inocêncio Oliveira, Pautílio Correia Caldas, fora outro feirante que
cobrava impostos e mantinha relações sociais com os feirantes. Morador do final da
Avenida Juracy Magalhães, casado, pai de cinco filhas, seu Pautílio era proprietário
de uma venda onde comercializava produtos diversos, tais como: pão, cachaça,
vinho, fumo de corda, sabão em pedra, bolacha, açúcar, café, peixe salgado,
banana. Dentre outros, esses produtos eram comercializados aos moradores da
localidade e de áreas próximas como os residentes da Rua do Calabá e do bairro
Nossa Senhora das Graças. Nos dias de feira-livre em Santo Antônio de Jesus, ele
deixava o seu estabelecimento sobre a responsabilidade de sua esposa, dona
Benzinha, e se dirigia para desempenhar a sua função de cobrador de impostos
naquela localidade. Sobre a ação de seu Pautílio como fiscal na feira, Elza Froes
recorda:
Potilho era gente boa pra gente. Chegava dejunto da gente,
ele vinha a gente dizia logo hoje ó (ela faz sinal com o dedo
polegar apontando para baixo, dando a entender que naquele
dia as vendas não foram boas, e que não tinha dinheiro para
pagar o tributo), as veze encostava, mais tinha dia que nem
encostava. Quando ele encostava ele vinha com o caderninho
na mão, ele levava tudo notado, ele era viu… (a depoente faz
um gesto com os olhos e balança sua cabeça, que na nossa
cultura pode significar uma pessoa gente boa), dava um
recibozinho a gente, tirava um recibo dava a gente e levava o
outro, que nem tipo no jogo, né? Mas seu Potilho trabalhou
muito naquela feira ali.
117
Na memória dos feirantes, seu Pautílio aparece como uma figura emblemática
por seu comportamento cordial e compreensivo perante os trabalhadores da feira.
116
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
117
Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.
86
Macionília Froes lembra que esse fiscal a tratava muito bem e quando ela e seu
esposo, Josué Pereira dos Santos, não conseguiam “fazer um dia bom na feira” que
possibilitasse obter soldo suficiente para pagar o imposto, ela “levava o caso na
graça”. A feirante revelou que às vezes, seu Pautílio chegava em sua barraca,
tomava um cafezinho e ela não cobrava. Essa atitude contribuiu com a construção
de uma firme amizade entre ambos que a permitiu ir “levando e passando a vida
assim mesmo”.
Os momentos de tensão poderiam ser resolvidos com negociação. Para
negociar, os feirantes recorriam a recursos materiais que estavam a seu alcance
naquele momento, oferecendo aos fiscais um pedaço de bolo, um cafezinho ou
utilizavam à linguagem do corpo, como um sorriso no rosto, mesmo em um dia que
não trazia boas expectativas para a venda dos produtos, ou um olhar triste e
cabisbaixo, uma boa conversa ou, ainda, um tratamento educado e cordial. Esses
artifícios poderiam solucionar naquele momento o conflito evidente entre feirantes e
fiscais no ambiente da feira.
As vezes em que o fiscal Pautílio nem encostava-se nas barracas para cobrar
os impostos consistia em um ato ou ação de ajuda mútua de sujeitos sociais que,
mesmo em posições “antagônicas”, dissolviam barreiras a partir dos revezes do dia-
a-dia. Os feirantes souberam reverter a ordem mostrando que nem sempre as leis
penetram onde querem
118
. Neste jogo, os fiscais também subvertiam os poderes
constituídos não aplicando as normas e regras que diziam respeito à sua função.
Talvez, essas relações complexas entre fiscais e feirantes sejam melhor
compreendidas na perspectiva de Eduardo Yázigi quando nos põe a pensar em
muitas questões concernentes ao processo de construção de uma arqueologia
urbanística das calçadas. Para ele, “Quem tem alguma familiaridade com o que acontece
no espaço público sabe que na rua ninguém age sozinho, a solidariedade é condição sine-
qua-non da sobrevivência.
119
Mas nem todos os fiscais comungavam de uma “certa cordialidade” como seu
Pautílio e seu Inocêncio. Muitos aplicavam os altos da lei perante os trabalhadores
118
Essa minha afirmação é dentro da perspectiva de Thompson quando argumenta que a lei pode
estabelecer os limites tolerados pelos governantes; porém, na Inglaterra do século XVIII, ela o
penetra nos lares rurais, não aparece nas preces das viúvas, não decora as paredes com ícones,
nem dá forma à perspectiva de vida de cada um. THOMPSON. Op. Cit. p. 19.
119
YÁZIGI, Eduardo. O mundo das calçadas. 1. ed. São Paulo: Editora Imprensa Oficial de SP,
2000, p. 194.
87
da feira. Em um dos dias difíceis de labuta, uma imagem que ficou guardada na
memória do feirante Josué Pereira dos Santos, foi aquela na qual o feirante seria
interpelado por um fiscal denominado de Abílio:
O pessoal pagava, pagava, era o jeito pagá porque se não
pagasse, aí, ai meu véi, tinha um fiscal que… hum, hum (o
depoente neste momento faz uma expressão de que era um
fiscal severo e malvado). Tempo de festa, uma procissão que
tivesse, ele não deixava barraca na Feira, no mei da rua, tinha
que tirá pra quando a procissão chegá botá.
120
Essa fala revela que esse fiscal cumpria “fidedignamente” com suas
obrigações. Ela revela também o poder do sagrado perante o poder comercial,
poderes esses que se cruzavam no espaço da feira-livre, pois os feirantes, na
concepção desse fiscal, além de cumprir com suas obrigações, deveriam respeitar o
tempo e o espaço do sagrado, representado na figura do glorioso Santo Antônio
padroeiro da cidade. O tempo do trabalho e o tempo da festa se entrecruzavam na
feira-livre da cidade da Capela.
Nesse embate muitos Augustos, Esmeraldos, Joãos, Macionílias, Elzas,
Marias, dentre outros feirantes, usaram suas habilidades, agilidades, persistências e
insistências para solucionar os conflitos que surgiam na feira. Em momentos
oportunos, muniam-se da sagacidade ou cordialidade; poderiam sorrir, mas também
proferiam impropérios, xingamentos, palavras de baixo calão. “Múltiplas maneiras
foram encontradas para que não fossem tão importunados pelos fiscalizadores
municipais na aplicação dos autos de infração”.
121
Não eram as ações dos fiscais que muitas vezes importunavam e traziam
conflitos à vida cotidiana dos feirantes na cidade. Envolvidos no vai-e-vem da feira,
meninos e meninas de idades variadas circulavam naquele espaço, imprimindo
cores e sabores que contribuíam à construção de um cenário multifacetado, onde
trabalho, alegria, tristeza, esperteza, peraltice e malandragem se mesclavam dando
um sentido ao mesmo tempo plural e singular na dinâmica da vida social dos vários
120
Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.
121
PAIM. Op. Cit. p. 35.
88
atores que protagonizavam o “espetáculo da vida cotidiana” naquele teatro a céu
aberto.
Em suas andanças pelo universo da feira, esses meninos e meninas, quase
sempre denominados de moleques, “andavam tudo perturbando na feira, tudo sujo,
tudo lascadinho”. Era comum eles passarem perante as barracas que vendiam
carne, sobretudo charque, conhecida como carne de sertão na região, e pedirem
alguns pequenos pedaços aos feirantes que comercializavam este produto. Uma vez
sendo agraciados com o pedido, eles pegavam a carne de sertão e, mesmo sem
lavá-la, jogava dentro do fogareiro a carvão e pediam “Ô minha tia, me aí um
bocadinho de farinha” para complementar o cardápio. Quando as tias não tinham
como disponibilizar a farinha, eles saíam em direção ao Barracão com a expectativa
de lá conseguir com mais facilidade.
Muitos destes meninos e meninas que estavam na faixa etária entre os seis a
quatorze anos de idade tornavam-se fregueses na arte de “roubar” e fazer peraltices
no universo da feira-livre de Santo Antônio de Jesus. Em uma certa manhã de
sábado, um dos irmãos de dona Lina, chamado Alfredo Pereira dos Santos, que
vendia farinha de mandioca na feira-livre, fora surpreendido por um menino que
aparentava ter aproximadamente 11 anos de idade. Chegando ao seu
estabelecimento, pediu-lhe um pouco de farinha de mandioca. Sem resmungar, o
proprietário deste comércio cedeu-lhe uma porção de farinha conforme fora feito o
pedido. O moleque saiu e por qualquer outro motivo que não conseguimos precisar
neste momento, resolveu retornar ao vendedor de farinha e pedir-lhes mais uma vez
outra porção do produto. Inconformado com aquela situação, o vendedor negou-lhe
o segundo pedido dizendo que não ia mais lhe dar farinha de mandioca. Insatisfeito
com a resposta e a decisão do proprietário, o moleque apanhou fezes de cavalo e
jogou dentro do saco de farinha do comerciante, saindo correndo pelo meio da feira.
O vendedor foi obrigado a jogar no lixo mais de meio saco da farinha de mandioca,
de um dos fardos que ele estava comercializando naquele dia. Esta situação o
deixara muito chateado durante todo aquele dia de sábado.
122
Não se sabe o motivo pelo qual o moleque retornou à barraca de Alfredo
Pereira dos Santos para pedir-lhe mais uma porção de farinha. Especulações à
parte, talvez ele estivesse com muita fome e precisasse de mais farinha para
122
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
89
rechear sua refeição, tivesse que dividir o seu prato com um amigo, colega ou
familiares, ou ainda fosse um garoto que de porção em porção conseguia litros de
farinha para levar para casa. O que podemos afirmar desse episódio é que de fato,
naquela circunstância, relações de poder estavam em jogo, e quem saíra em
desvantagem naquele momento fora o vendedor da farinha de mandioca.
Não foi só Alfredo Pereira dos Santos que sofrera com as peraltices de
meninos e meninas na feira, sua mãe, Maria Plácida, vendedora de refeições, cujo
cardápio variava entre feijão, arroz, ensopado de carne, galinha caipira e cozido com
verduras, mantinha uma clientela composta de feirantes, freqüentadores,
carregadores, vendedores ambulantes e outros sujeitos sociais que completavam o
quadro dos protagonistas da feira-livre na cidade, também sofrera com as peraltices.
Um dos moleques, bastante conhecido na feira, abusara da confiança
firmada entre ele e dona Maria Plácida e, após a compra de um prato de comida,
“desapareceu das vistas” da proprietária da barraca. O molecote sumiu da feira e
todos haviam pensado que ele estivesse morto. Mas, para a surpresa de todos, “já
um rapaizão”, o moleque, um certo dia, voltou, e se dirigiu ao estabelecimento de
dona Maria Plácida para honrar o seu débito.
123
Muitos destes meninos e meninas “especializaram-se” na “arte de roubar na
feira”. Eles costumavam roubar produtos e mercadorias consideradas de “pequeno
porte” como: cachos de bananas, melancias, fogareiros, chapéus, sandálias de
couro, e principalmente, animais como perus, porcos e galinhas. Essas eram
consideradas também como uma mercadoria de valor acessível a todos, sobretudo
às camadas mais populares, e eram furtadas com grande freqüência no universo da
feira, daí esses meninos tornarem-se conhecidos como “ladrões de galinha”. Esta
prática conferia-lhes identidades que se reconstruíam/construíam no calor das
práticas sociais que se desenrolavam na labuta e nos embates do dia-a-dia.
Os “ladrões de galinha”, geralmente, roubavam os produtos e os vendiam na
própria feira livre da cidade, na “feirinha” que havia na Praça Félix Gaspar ou nas
imediações da Estação Ferroviária, onde estavam instaladas barracas que vendiam
comidas e bebidas e, ao chão, vendia-se animais como porcos, galos e galinhas.
124
Outros, após o furto, se dirigiam até a estação ferroviária de Santo Antônio de Jesus
123
Idem.
124
Jornal O Paládio. Ano 49, 3 de Novembro de 1950, nº 2357. APMSAJ.
90
e pegavam um trem até Nazaré das farinhas para comercializar o produto roubado
na feira-livre daquela cidade.
As aventuras destes “moleques” não acabavam aí. Em tempos em que a
cidade era assistida com a segurança de poucos policiais, entravam em cena os
soldados Firmino, considerado um homem severo e rigoroso, Armando e Balduino,
conhecido por todos na cidade por ser um negão e ter um grande, que iam em
busca destes “gatunos” e, uma vez pegando-os, desferiam muitos tapas, raspavam-
lhes a cabeça e os conduziam até a cadeia da cidade.
Walter Fraga Filho, ao tratar das peripécias das crianças desassistidas e
desamparadas na Bahia do século XIX, mais especificamente em Salvador e
algumas cidades do Recôncavo Baiano, afirma:
A vadiagem infanto-juvenil no século XIX, estava muito
estritamente relacionada à existência de centenas de meninos
e meninas que mesmo ligados às famílias, mestre de ofício ou
senhores (no caso de Escravo), faziam das ruas o espaço de
trabalho, de divertimentos, de peraltices de jogos e
brincadeiras… […] Ao longo do período, as autoridades
Baianas sempre se queixariam da grande quantidade de
rapazes peraltas e moleques que se assenhoreavam das vias
públicas com atitudes irreverentes e irrequietas… […] A
sociedade escravista não oferecia grandes alternativas de
ascensão para geração mais nova de livres e libertos,
especialmente para os meninos negros.
125
A literatura Baiana também se preocupou em registrar o cotidiano de meninos
e meninas nas ruas, no cais, nos bairros a beira da praia e em outros espaços da
“velha Bahia”, nas primeiras décadas do século XX.
126
As peraltices desses meninos
e meninas foram também registradas por Márcia Regina da Silva Paim, estudando o
cotidiano nas feiras de Salvador entre o período de 1964-1973 detectou que,
125
FRAGA, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. Salvador Bahia:
Hucitec/EDUFBA. 1996, p. 111-112.
126
O escritor Jorge Amado, em sua obra Capitães de Areia. 96ª edição. Rio de Janeiro: Record,
1999, p. 3-15, retrata as peraltices destes meninos e meninas na Bahia, sobretudo os roubos que
eles praticavam. Esta obra é interessante também porque o autor mostra como essas crianças são
profundos conhecedores da cidade e, apesar de excluídos e marginalizados, eles exercem uma
grande relação de poder naquele universo.
91
Não mulheres e homens circulavam à beira do cais,
envolvidos ou não no vai-e-vem da Feira do Sete. Meninos e
meninas de idades variadas, que direta ou indiretamente
estavam vinculados aos feirantes, também compunham o
cenário daquela feira, vez por outra, chamados de moleques ou
capitães da areia”.
127
Ao tratarem de contextos históricos diferenciados e enfatizarem a composição
étnico-racial afro-brasileira destes moleques em suas análises, tanto as reflexões de
Walter Fraga Filho, referentes ao século XIX, quanto às do escritor Jorge Amado,
que narra as peraltices e a presença destes meninos e meninas nas décadas iniciais
do culo XX na Bahia e, ainda as reflexões de Márcia Regina da Silva, servem-nos
de inspiração para pensar o cotidiano desses moleques em feiras da cidade de
Salvador e outras existentes no interior da Bahia. Essas análises são fundamentais
para percebermos o grande conhecimento que esses meninos tinham da cidade, e o
poder que este conhecimento lhes proporcionava nas relações sociais.
As imagens descritas por estes estudiosos, principalmente pelo historiador
Walter Fraga, sobretudo quando percebe o espaço das ruas como locais de
divertimento, de peraltices, jogos, brincadeiras e também de trabalho, encontra
situação semelhante nas ruas da cidade e da feira-livre de Santo Antônio de Jesus
nas décadas de 50 e 60 do século XX.
A cidade de Santo Antônio de Jesus acostumava atrair muitas pessoas
desasssistidas, oriundas de várias localidades que engrossavam a fileira dos
mendigos, pedintes e vadios que circulavam durante o dia e a noite na urbe, e que
tinha como local privilegiado para desempenhar suas práticas o espaço da feira-livre
e suas imediações. Eram homens, mulheres e crianças, em sua maioria afro-
descendentes, que se lançavam à sorte da caridade e benevolência dos sujeitos
praticantes dessa urbe.
O feirante Augusto Laranjeira lembra que a cidade naquela época era repleta
de pedintes que perambulavam por toda a feira pedindo esmola a todos que por
passavam. O feirante João do Couro narra que, quando seu ramo de negócios
aumentou os lucros, ele colocou outra barraca e vendia carne de sertão comprada
no Mercado do Ouro, localizado perto do Moinho da Bahia em Salvador e peixe
127
PAIM. Op. Cit. p.31.
92
salgado, principalmente Bacalhau, comprado em Feira de Santana, na feira de Água
de Meninos, na capital e no armazém de Almerindo em Santo Antônio de Jesus.
Ele enfatiza que era grande a quantidade de pessoas desassistidas naquela
cidade e relembra uma das cenas que ficara imortalizada em sua memória. Ele
lembra que fazia-se uma fila de gente em frente à sua nova barraca pedindo carne
e, às vezes, o próprio pedinte analisava aquela situação e dizia: “Seu João eu ia lhe
pedi um pedaço de carne também, mas…”
128
O próprio pedinte tinha consciência
daquela realidade.
João do Couro analisa essa questão dizendo que ela era causada pelo fato
de que essas pessoas não tinham como sobreviver, não existia aposentadoria, o
povo da roça era tratado como tabaréu, um ninguém, daí a única saída seria a
mendicância.
129
Ele confessa que concedia um pedaço de carne às pessoas que
chegavam pedindo em sua barraca, mas, para muitos feirantes, elas eram mais uns
importunos em suas vidas.
3.2 – Crianças, Mulheres. Outros Papéis.
Não era com divertimento, peraltices e roubos que meninos e meninas
imprimiam suas marcas indeléveis no espaço da feira-livre. Na luta pela
sobrevivência, com o objetivo de contribuir com seus pais, na manutenção da
despesa familiar, muitos deles trabalhavam como carregadores de mercadorias
como cachos de banana, cestas e sacolas, das donas de casa, repletas com os
mais variados produtos alimentícios, carregavam madeiras, sacos de carvão e
diversos produtos que também poderiam ser comprados em casas e armazéns que
comercializavam várias mercadorias no entorno da feira-livre da cidade.
Algumas destas personagens ganhavam seus “trocados” carregando os
produtos dos clientes na mão, na cabeça ou nas próprias costas. Outros recorriam à
128
Sobre a performance de mendigos, vadios e pedintes na cidade da Capela, nas décadas em
questão, ver o interessante trabalho: SANTOS, Denílson Lessa dos. Nas encruzilhadas da cura:
crenças, saberes e diferentes práticas curativas Santo Antônio de Jesus Recôncavo Sul Bahia
(1940-1980). Dissertação de Mestrado. Salvador-Ba. UFBA, 2004, p.50-56.
129
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
93
criatividade e à improvisação, e fabricavam seu próprio carro para transportar as
compras e mercadorias daqueles que contratavam seus serviços. Para produzir
estes carros, os moleques solicitavam das casas, armazéns e outras pessoas que
vendiam latas de gás ou querosene, os caixotes nos quais estes produtos eram
embalados nas empresas para serem transportados. Quando conseguiam tais
caixotes, eles colocavam quatro rodas, amarravam uma corda na frente e o carro
estava pronto para servir de instrumento de trabalho para aqueles mais
desassistidos ganharem o pão de cada dia.
Outra saída encontrada para estes menores andarilhos, que perambulavam
pela cidade e pretendiam auxiliar seus pais na dura empreitada da sobrevivência, foi
recorrer ao ofício de vendedores ambulantes. Carregando cestas e malas, que
portavam as mais variadas mercadorias que variavam de candeeiros, panelas,
fogareiros, doces, miudezas em geral a produtos diversos, muitos meninos e
meninas saíam pela feira, pelas diversas ruas da cidade e muitos deles se dirigiam à
zona rural com o propósito de conseguir vender seus produtos.
Meninos e meninas, muitas vezes chamados de moleques e molecotes por
feirantes, freqüentadores e freqüentadoras da feira-livre, para superar as
dificuldades impostas na vida cotidiana souberam criar situações que garantissem a
sobrevivência naquele momento. Ora criando estratégias de resistência, ora
estabelecendo noções do que é ou pode ser certo ou errado, conseguiram driblar as
condições adversas, e entre as peraltices e o trabalho, a alegria e a tristeza,
construíram formas efetivas de conduzir suas vidas ao sabor das circunstâncias.
Sempre suspeitos e vigiados por aqueles que acreditavam serem eles
meninos e meninas responsáveis pelos furtos e delitos que ocorriam na feira e em
suas imediações, eles tiveram que enfrentar os múltiplos olhares de desconfiança
que pairavam sobre aquele ambiente. Muitas vezes a repressão se antecipava
cruzando o cotidiano desses meninos e meninas por meio do “rabo de olho”.
Nesse momento uma ressalva torna-se necessária nessa discussão. Não
eram apenas os moleques que eram suspeitos de roubos e enfrentavam os olhares
de desconfiança na feira-livre. Em algumas situações, os próprios feirantes eram
quem praticavam furtos ou forjavam maneiras de ludibriar seus pares para obter
vantagens. Isso ocorria porque muitos feirantes guardavam suas “coisas e
mercadorias tudo juntinho no mesmo lugar”. E na hora de retirar seus pertences,
94
havia a possibilidade de um pegar “as coisas” do outro, enganados ou não. Vale a
pena reproduzir o relato de Vitalina Souza sobre a atuação de uma das Marias mais
conhecida da feira-livre de Santo Antônio de Jesus:
Aquela Maria, tinha uma Maria Roxa aqui em cima, Ave Maria!
Aquela mulher, meu Deus do céu! Prá roubá panela e fugareiro
(muitos risos) ô meu Deus! Ave Maria! Ela era feirante. Ela
passava nas barracas olhando (a depoente encena com gestos
a performance da referida feirante) hum… hum… parece que é
aquele, e olhando, a minha mãe, que era uma pessoa assim
muito( a depoente faz gesto de que era uma pessoa muito
tranqüila e amigável) perguntava, “é o que comade?” ela dizia
assim: “Não, foi o meu fogareiro que sumiu, pegaram meu
fugareiro”, minha mãe dizia “eu mesmo não fui, os meu
aqui, ói”.
130
Maria Roxa era uma mulher gorda, usava umas argolas grandes de ouro na
orelha, gostava de sambar e acostumava viajar para a cidade de Bom Jesus da
Lapa para cumprir as suas obrigações religiosas. Ela de tão preta parecia africana,
ficou conhecida na feira como Maria Roxa e foi uma das primeiras mulheres na
cidade a mergulhar no ofício de feirante. Ao fazer referência à atuação dessa mulher
naquele universo, a narrativa de Vitalina Souza abre a possibilidade à uma dupla
interpretação.
Primeiro, o relato evidencia a existência de uma relação “afetiva” entre as
feirantes Maria Plácida e Maria Roxa pelo próprio tratamento de comadre que uma
se referia à outra. Todavia, é possível pensar que essa relação amistosa entre as
Marias poderia ser abalada pela desconfiança em relação ao furto de um “pequeno
utensílio”.
A segunda análise nos leva a afirmar que além de descrever e encenar a
performance de uma das mulheres “mais temidas” ou respeitadas na feira-livre da
cidade, o relato abre perspectivas para observar o quanto a memória pode
possibilitar uma sensação de presença daqueles que já não podem estar mais
presentes. Ao encenar a forma como esta mulher se apresentava na feira, eu
(entrevistador) consegui imaginar e construir “uma imagem” de como poderia ser
esta mulher denominada de Maria Roxa e sua atuação em meio àquele palco.
130
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
95
Dessa maneira, parece-me instigante pensar que ao falar de si mesma e das
experiências de sua família, Vitalina Souza traz à luz sombras vivas de uma
memória que enriquece a história. Mostra ainda o quanto essas pessoas mortas
estão vivas na memória, nos lugares, na história e ainda se relaciona vivazmente
com o presente.
131
De fato, a atuação de Maria Roxa ficou marcada na memória de vários
feirantes e ex-feirantes. Mas, “bem comportadas” ou “mal comportadas”, a atuação
de muitas outras mulheres como dona Filó, dona Dêga e dona Joana ficaram
imortalizadas na memória individual e coletiva, como mulheres trabalhadeiras que
“invadiram” os espaços da rua e conduziram seus próprios negócios.
Quando não estavam à frente do comércio, algumas delas dividiam o papel
de “ser feirante” com seus maridos. Quando decidiu ser feirante, Josué Pereira
lembra que sua mulher ajudou-lhe muito na feira e, às vezes, eles iam juntos para
aquele local de trabalho. Em outros momentos, ele se deslocava mais cedo,
enquanto sua esposa para se dirigia horas mais tarde. Longe de serem meras
coadjuvantes, as mulheres tinham que usar de muitas habilidades para superar os
desafios impostos em seu cotidiano quase sempre marcado pelos desafios de
desempenhar várias funções que lhes são/foram reservadas ou atribuídas
historicamente.
Responsável pela realização das tarefas do lar, cuidar dos filhos ou ainda
estar envolvida nas atividades de semeadura, plantio e colheita de café na roça,
Macionília Froes, conhecida como dona Massú, engrossava a fileira da forte
presença feminina que naquele espaço atuava. As experiências de dona Macionília
Froes retratam o cotidiano de muitas mulheres que, certamente na esperança de
dias melhores para elas e suas famílias, usaram e abusaram da resistência e
paciência para conseguir seus propósitos.
Outra mulher que acompanhava seu esposo e o ajudava na feira foi Albertina
Paixão Silva. Mãe de seis filhos, ela costumava acompanhar seu marido e auxiliá-lo
131
O autor José Ricardo afirma que “falando de mim mesmo falo de um amigo, do que nós dois
vivemos juntos, um dia. Falo de outro, de outros, outras pessoas, alguns ainda vivos, pelo que sei
depois do que aconteceu. Outros mortos. Mas, em mim, na minha memória agora, alguns vivos ou
mortos, estão ainda tão vivos e acessos, que é quase como se estivessem aqui”. A memória
cúmplice. In: Memória Sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos Sertões de João Guimarães
Rosa e de Manuelzão. (Org.) Carlos Rodrigues Brandão. São Paulo: Editora Cone Sul/UNIUBE,
1998, p. 171.
96
na venda dos produtos de cerâmica que ele comercializava. Quando ia para a
cidade, ela estava sempre acompanhada de sua filha caçula, Vilma da Paixão Silva,
por não se sentir segura em deixá-la em casa na companhia de seus outros cincos
irmãos mais velhos.
Vilma, que começou a vender com seus pais aos oito anos de idade e ainda
hoje trabalha com seu pai nesta mesma atividade, iniciou seu aprendizado no
mundo do trabalho vendendo caxixis. A decisão de deixar os outros filhos em casa,
se justificava pelo fato de que o feirante Augusto Laranjeira e sua esposa
perceberam que os outros filhos podiam cuidar uns dos outros, fazer as atividades
domésticas e, também, se “virar” para preparar as refeições.
Experiência semelhante à de Vilma foi vivenciada por Vitalina Souza, filha
caçula de uma família composta por oito filhos, ela ainda criança acompanhava sua
mãe nas longas caminhadas até chegar à feira livre da cidade. Uma das primeiras
experiências no mundo do trabalho na cidade consistia inicialmente em ajudar sua
mãe a lavar e limpar as carnes e descascar verduras para preparar as refeições que
ela vendia para feirantes, freqüentadores, freqüentadoras, vendedores ambulantes,
carregadores e outras categorias sociais que transitavam naquele ambiente. Além
dessa atividade, Vitalina ainda auxiliava sua e na lavagem das louças utilizadas
após as refeições e por fim, quando o sino da Igreja Matriz badalava indicando doze
horas, ela e seu irmão Neném assumiam a função de entregadores de refeições em
vários pontos da feira.
outras mulheres, a exemplo de Maria Pascoal dos Santos, esposa de
Esmeraldo da Cebola e Laura Fernandes Souza, esposa de João do Couro,
dedicavam-se aos afazeres domésticos, a cuidar dos filhos e desempenhar algumas
atividades associadas à agricultura e a criação de animais como galinhas e porcos
na roça. Apesar de não trabalharem na feira com seus respectivos maridos, elas em
alguns momentos protagonizavam aquele espaço como freqüentadoras que para
se dirigiam para fazer suas feiras e matarem a saudade de seus maridos. Um cheiro
no cangote poderia deixar os dias de feiras mais saborosos.
Mas, mesmo não trabalhando na feira, os acasos da vida cotidiana poderiam
reverter a ordem retirando essas mulheres dos seus lares, forçando-as a assumirem
a direção dos negócios de seus maridos. Essa experiência era vivida por Laura
Fernandes Souza nos dias que seu esposo, João do Couro, viajava para comprar
97
mercadorias em outras localidades. Além disso, ela dirigiu os negócios do seu
marido num intervalo de tempo maior quando o feirante sofreu um acidente em que
fraturou a costela e ela fora obrigada a permanecer na gerência do comércio por
mais de trinta dias consecutivos.
Famosas ou anônimas, a atuação destas mulheres no “palco principal” da
vida cotidiana, desconstrói a idéia que persiste ainda no imaginário de algumas
pessoas de que, nos anos cinqüenta e sessenta, “lugar de mulher” era em casa e na
cozinha. Elas nunca estiveram apenas dentro de seus lares, num mundo isolado,
sempre foram presenças ativas no contexto histórico das relações campo-cidade.
Nos bastidores ou no palco principal, muitas foram as Marias, as Dêgas, as Filós, as
Marcionílias, as Lauras, dentre outras, que enfrentavam, disputavam e desfrutavam
daquele cenário marcado por uma forte presença masculina. Emoldurar essas
mulheres como sujeitos presos à uma única realidade social é correr o risco de
perder de vista “o bonde da história”.
Outras protagonistas que movimentavam a feira e firmaram seu “lugar” na
memória individual ou coletiva foram as mulheres que trabalhavam em diversos
armazéns de fumo em Santo Antônio de Jesus. Era comum na cidade a imagem
destas mulheres, em sua maioria negras, que se dirigiam até aos armazéns para
pegar os fardos de fumo e transportá-los até suas casas. Chegando em suas
residências, elas se empenhavam no desenvolvimento de suas funções que
consistiam em catar o fumo, separar as folhas de primeira e segunda qualidade e
depois manocá-lo.
132
Concluído o trabalho, elas retornavam aos armazéns para
entregar o produto. Aos sábados, tanto as mulheres que trabalhavam nos armazéns,
quanto aquelas que desempenhavam as atividades em suas casas, recebiam o
pagamento de seus salários. Esmeraldo Nunes dos Santos relembra que
Quando dava de quatro pra cinco horas, o pessoal recebia
aquele dinheiro e tinha aquele movimento na cidade. No dia de
132
A atividade de produzir o fumo é composta de várias etapas: catar, separar as folhas de 1ª, e 3ª
qualidade e por fim manocar. Esta última etapa consiste no processo de enrolar as folhas
transformando o produto final em fumo. Para maiores informações ver: SILVA, Elizabete Rodrigues
da. Fazer charutos: uma atividade feminina. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA. 2001. Caps.
I e II.
98
sábado de tarde, todo mundo recebia aquele dinheiro ali e todo
mundo ia pra feira fazer suas feiras.
133
Investigando a atividade de fazer charutos no Recôncavo da Bahia, Elizabete
Rodrigues da Silva adentra o cotidiano das mulheres charuteiras dessa região
descortinando sua importância naquele cenário. Ao falar como as charuteiras
ganhavam a vida, ela considera que
As charuteiras, como parte significativa e integrante deste
cenário, não foram, apenas, aquelas que viveram o momento
da ascensão econômica da indústria fumageira, trabalhando e
recebendo um salário, foram também as mulheres que
trabalharam fora de casa num tempo em que eram concebidas
como donas de casa e que, paradoxalmente, a maioria delas
sustentaram a casa e o próprio marido, fazendo charutos nas
fábricas ou fora delas. Neste sentido, é que o salário
representava para elas um instrumento de poder econômico e
social na informalidade dos papéis que exerciam perante a
família e a sociedade.
134
A presença das charuteiras era marcante no Recôncavo fumageiro, como
também no Recôncavo mandioqueiro ou da subsistência. Em Santo Antônio de
Jesus, as charuteiras, conhecidas na cidade da Capela como as “mulheres dos
armazéns”, movimentavam toda a cidade comprando nas quitandas que existiam em
pontas de ruas, nas casas de comércio do centro e, sobretudo, na feira-livre. Eram
mulheres que muitas vezes assumiam a chefia da família e aumentavam a renda da
cidade. Elas o ganhavam a vida sozinhas, porque seus salários também
ajudavam os feirantes a ganharem a vida. A profissão de charuteira conferia poder
econômico e social a várias mulheres na cidade.
Os “pequenos-homens” filhos de feirantes com presença ativa e marcante
naquele universo também povoaram a memória individual e coletiva dos sujeitos que
por caminhavam. Eram meninos com idade entre 8 e 12 anos, geralmente eram o
primeiro e o segundo filho, que se deslocavam de suas residências para auxiliar
seus pais a vender mercadorias na feira. Antônio Carlos Souza dos santos, 49 anos
de idade, hoje morador da cidade do Rio de Janeiro, acostumava acompanhar seu
133
Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.
134
SILVA. Op. Cit. p. 146-147.
99
pai, João do Couro, junto ao seu irmão Carlitos Souza dos Santos para vender na
feira. Enquanto Antônio Carlos ficava comercializando os produtos na barraca da
família, Carlitos muitas vezes era o encarregado de ir buscar, em seu carro feito de
madeira, as peles, sobretudo, a pele de carneiro que seu pai comprava na mão dos
fornecedores. Nos dias que não estava na feira, ele exercia a atividade de plantar,
colher e cuidar da lavoura de seu pai num terreno que ele arrendara em áreas
afastadas da cidade.
A história do trabalho começa quando o homem buscou os meios de
satisfazer suas necessidades a produção da vida material. Essa busca se
reproduz historicamente em toda ação humana para que o homem possa continuar
sobrevivendo.
135
De fato, o trabalho surge nas memórias dos feirantes como algo
que explica e sentido à vida, o apenas material, mas como um “espaço” que
possibilita uma composição do ser, dando suporte à construção de uma dignidade,
integridade humana, honra, noções de ética, aprendizado e ainda, permite o
estabelecimento de laços de solidariedade, amizade e ajuda mútua, e muitas vezes,
coesão familiar.
Muitos desses feirantes não tiveram oportunidades de estudar por vários
motivos, um dentre eles era a primordialidade do trabalho ainda na roça. “O pai não
botou a gente na escola nem pra olhá, era pra arrastá a enxada”.
136
A expressão
dessa feirante, carregada de sentimentos negativos, aponta o drama social de
muitos analfabetos e um sentimento de “não pertencimento” ao universo que a
sociedade constituiu como seu único lugar o do alfabetismo.
137
Talvez essa
realidade e as representações que Macionília Froes fez de si própria constituam a
invenção de um futuro que ela criara para os seu filhos. Quando ela e seu esposo
chegaram à cidade não mediram esforços para colocar seus filhos para estudar.
Estudo e trabalho tornavam-se elementos constitutivos e basilares da invenção de
um futuro. Ao falar de como seus filhos ingressaram no mundo do trabalho, Josué
recorda:
135
OLIVEIRA, Carlos Roberto de. História do trabalho. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 5
136
Macionília Froes dos Santos. Depoimento citado.
137
MONTENEGRO, Antônio Torres. A invenção do futuro. Projeto História. São Paulo, n.16, fev.
1998, p. 191.
100
Meus meninos mesmo tudo trabaiô na barraca, no broco, cada
semana levava um, cada semana levava um, cada semana
levava um, até acostumaru, arrumaru trabaio e saiu foi trabaiá
e por aqui tô até hoje. Graças a Deus!
138
Enquanto o estudo dos filhos aparecia como um elemento novo no universo
dos feirantes a ser transmitido pela escola oficial, o trabalho na feira desdobrava-se
em uma tradição cujos ensinamentos eram transmitidos de pai para filho. Esses
ensinamentos não consistiam apenas na arte de vender mercadorias, muitos dos
valores morais, crenças, noções de ética, cordialidade, resistência, honestidade e
respeito aos mais idosos eram ali exercitados. Não se pode ocultar que muitos
desses ensinamentos começavam ainda na infância na roça, mas também não
pode se desprezar que o espaço da feira tornava-se um grande laboratório de
experiência humana na inserção social dos seus filhos. Na feira-livre também se
ensinava e se aprendia noções de cidadania.
3.3 O Tabaréu e a Tabaroa na Cidade.
Vários homens e mulheres que iam da roça para a cidade comercializar na
feira, muitas vezes comprar mercadorias nos armazéns, lojas de roupas e sapatos,
acertar negócios referentes arrendamentos e vendas de posses de terras, rever
parentes e amigos, desfrutar dos encantos e desilusões da cidade ou utilizar os
serviços que eram oferecidos no entorno da feira-livre, foram denominados de
tabaréu, principalmente por aqueles que moravam na zona urbana. Chamar esses
homens e mulheres de tabaréu e tabaroas o era caso esporádico, a freqüência
com que muitas pessoas se referiam a eles dessa maneira contribuiu para a
construção de um “padrão” no qual a maioria das pessoas oriundas de localidades
rurais foram/eram incluídas na “categoria” de tabaréu como um elemento
diferenciador por aqueles que acreditavam estarem em graus mais elevados de
cultura e civilidade. Matutos, caipiras, jecas: certamente era com esses olhos que,
138
Josué Pereira dos Santos. Depoimento citado.
101
em 1950, os 10 milhões de citadinos viam os outros 41 milhões de brasileiros que
moravam no campo e nos vilarejos.
139
Em outra passagem deste capítulo, o feirante João do Couro ressaltou em
sua narrativa que “o povo da roça era tratado como tabaréu, um zé ninguém” (p. 92).
A identificação e a construção de um referencial de ser tabaréu, muitas vezes
endossada pela expressão “tabaréu da roça”, chamou atenção também de um jornal
local nos anos 40.
Entre os preconceitos mais generalizados, encontra-se o de
que o camponês, o homem da roça, o que vive da lavoura,
mais ou menos longe dos centros em que supõem-se a
civilização fez progressos, é, em regra, um homem inculto,
retrogrado, possuidor das piores qualidades morais e
espirituais entre as quais avultam a pusilanimidade, a rotina e
até a falta de senso comum e de vergonha! Tornou-se
pejorativo o vocábulo tabaréu, sinônimo de desprezível e de
outros qualificativos indesejáveis. É de irritar, verem-se os
pelintras das cidades, criaturas muita vez sem classificação
nem profissão definida, maltratarem os pobres homens do
campo com expressões pesadas. Entretanto, se se fizesse um
cotejo entre os méritos do tal homem da cidade e do campo,
ver-se-ia que o tabaréu é muito mais homem; é figura de maior
mérito, é contribuinte de muito mais importância para a
economia nacional que o tal citadino bilontra, possivelmente
alcoólatra, parasita, jogador, sem família, sem moralidade,
inculto, presunçoso, inútil, quando não nocivo a coletividade. O
homem do campo, pode ser, e realmente é, na maioria dos
casos pouco culto, pouco letrado […].
140
Pela extensão da matéria, que preferimos não reproduzi-la na integra neste
momento, publicada no Jornal O Paládio, pode-se presumir o caráter generalizante
que o articulista atribui à questão. o sei se o Jornal O Paládio, constitui-se um
referencial para se pensar o Brasil, mas parece-me que na cidade existia uma
tentativa de estigmatizar homens e mulheres oriundos de áreas rurais.
O autor desta matéria, ao denunciar o preconceito e o tratamento desprezível,
segundo ele, generalizado, também incorre nas mesmas armadilhas quando
estigmatiza os cidadãos viventes da cidade com adjetivos exclusivamente negativos.
139
MELLO, João Manuel de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada: contraste da intimidade contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, v.4. p. 574.
140
Jornal O Paládio. Ano 44, 28 de Março de 1945, nº 2.164. APMSAJ.
102
Ao tempo em que, mesmo tentando defender o homem do campo, exaltando as
suas qualidades morais, o autor, ao falar que o homem da roça é “pouco culto e
pouco letrado”, deixa transparecer suas noções de cultura e saber, baseado em
padrões elitistas e hierarquizantes, parecendo desconhecer outras formas de ser
culto e dos saberes peculiares aos homens e mulheres do campo.
Thompsom, ao analisar os costumes e a cultura no século XVIII na Inglaterra,
mostra os elementos relacionais entre a cultura plebéia e a cultura patrícia,
contribuindo no sentido de apresentar elementos intrínsecos e extrínsecos para cada
um destes setores. Mas o autor enfatiza as possibilidades de interações e distrações
próprias do termo. Dentre outras formas, o autor conceitua cultura como:
[…] Um conjunto de diferentes recursos em que sempre
troca entre o oral e o escrito, o dominante e o subordinado, a
aldeia e a metrópole: É uma arena de elementos conflitivos,
que apenas somente sobre uma pressão imperiosa por
exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a
ortodoxia religiosa predominante assume a forma de um
sistema, e na verdade, o próprio termo cultura, com sua
invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa
atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e
oposições existentes dentro do conjunto.
141
As idéias de Thompsom nos induzem a perceber que a cidade era uma arena
de conflitos, e que, ao abrir as suas portas para os diversos sujeitos sociais que para
lá se dirigiam, abria também as janelas para os diversos modos de viver dos homens
e mulheres do campo e da cidade. Campo de contradições sociais e culturais, das
fraturas e oposições como bem salientou o autor, o espaço da feira-livre na cidade
configurava-se como um espaço de trocas culturais e simbólicas que ora interagiam,
ora marcavam as diferenças de acordo com a complexidade das relações, as
múltiplas artimanhas, negociações e conflitos que eram teatralizados em cada
momento.
Longe de serem vítimas, como deixou transparecer o autor da matéria, os
tabaréus na cidade não estavam abandonados, sabiam garantir a existência da
própria vida, sabiam se amparar e, na luta cotidiana, souberam conduzir sua própria
vida. Augusto Laranjeira era freqüentemente chamado de tabaréu no universo da
141
THOMPSOM. Costumes em Comum… Op. Cit. p. 17.
103
feira por aqueles que eram da cidade, mas ele não dava atenção, a saída que ele
encontrava para resistir àquelas “formas de relacionamento” era abrindo a boca e
desferindo um largo sorriso. Ele contou que “enquanto eles me chamava de tabaréu,
eu ia vendendo meus negócio”.
Outro que não se incomodava em ser chamado de tabaréu era Josué Pereira,
ele relembra que naquele tempo quase não se “conhecia ninguém de fora, se
conhecia assim quando chegava na feira mesmo”. Para ele, tabaréu eram as
pessoas que passavam e não falavam umas com as outras por não se conhecerem,
daí o apelido de tabaréu da roça. E, às vezes, entre os próprios feirantes um
chamava o outro de tabaréu em tom de brincadeira e amizade. Mas, alguns
feirantes, como é o caso de Vitalina dos Santos e Elza Froes, se sentiam muito
incomodadas quando eram chamadas de “Tabaroas da roça”. Entre resistências
silenciosas ou explícitas, muitas vezes elas reagiram àquela forma como eram
também tratadas.
Por outro lado, no imaginário do autor da matéria do jornal ainda permanece a
idéia de que uma dicotomia rígida entre o espaço e as relações sociais entre o
campo e cidade. Talvez ainda permanecesse na concepção do escritor, a
representação bucólica do campo como o lugar da inocência, da tranqüilidade, o
lugar da vida simples e singela, do homem limpo e puro ainda não contaminado com
os prazeres e as transgressões da cidade. Ele parece ver o campo como um lugar
da paz, livre de conflitos, o contra-ponto da urbe.
a cidade, ele representa como o lugar da esperteza, da malandragem, dos
vícios, do agito, das impurezas, do prazer e das transgressões. O lugar anti-bucólico
da mundanidade e da ambição. Nesta perspectiva, acredito ser mais interessante
superar qualquer visão dicotômica e simplista sobre as relações campo-cidade
partindo do princípio de que, por exemplo, a inocência e o cio podem tanto estar
na cidade quanto no campo. Portanto, as idéias de Raymod Williamns mais uma vez
nos servem de inspiração quando nos ensinam a perceber as novas conexões no
contexto de toda ordem urbana e do sistema humano que a cidade concentra e
encarna. É importante perceber como a experiência desses feirantes foi criando
104
novos tipos de ordem possíveis, novos tipos de unidades humanas na experiência
transformadora da cidade.
142
O estigma de tabaréu às vezes usado para identificar homens e mulheres da
roça, abre possibilidades e perspectivas de se pensar na construção e disseminação
desse estereótipo e seus efeitos na vida cotidiana daqueles que viviam na roça bem
como daqueles que viviam na cidade. Segundo Bhabha, O estereótipo é um modo de
representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso na mesma proporção em que
é afirmativo”.
143
Dessa forma, só é possível entender o estigma de tabaréu a partir das
relações efetivas entre homens e mulheres da roça e da urbe. O estereótipo de
tabaréu algumas vezes atribuído às pessoas oriundas de zonas rurais, afirmava e
negava signos e identidades, poderia reconhecer ou repudiar diferenças históricas e
culturais. A depender das circunstâncias, o estereótipo de tabaréu poderia
representar vantagens ou desvantagens tanto para o homem do campo como para o
homem da cidade. Pensar esses homens e mulheres apenas como tabaréus
significa simplificar uma realidade e perder de vista outras dimensões da realidade,
conforme sugere Homi Bhabha,
O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa
representação de uma dada realidade. É uma simplificação
porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao
negar o jogo da diferença (que a negação através do outro
permite), constitui um problema para a representação do sujeito
em significações de relações psíquicas e sociais.
144
O homem da roça não era “apenas o tabaréu”. Engessá-los e representá-los
apenas dessa forma é tentar subjugar seus saberes, seus poderes e a
potencialidade de sua cultura. O desejo de uma “origem pura”, diferenciada,
daqueles que se destinavam a disseminar estereótipos perante aqueles homens e
mulheres oriundos de zonas rurais, na prática se esvaía nas fantasias sociais.
Muitos dos citadinos que disseminavam esses estereótipos, pareciam esquecer as
origens de seus pais, avós e bisavós.
142
WILLIAMS. Op. Cit. Caps. XIV e XV.
143
BHABHA. Op. Cit. p. 110.
144
Ibid.; p. 117.
105
As histórias e as experiências desses protagonistas, descortina a riqueza de
um cotidiano fortemente embalado por diferentes modos e maneiras de viver, de agir
e de pensar. Famosos ou anônimos, feirantes, freqüentadores, freqüentadoras,
vendedores ambulantes, moleques, crianças, policiais, ladrões de galinha, dentre
outros grupos sociais, encenaram aqueles dias de feira na cidade transformando-a
num território dos encontros. Entre o labor e peraltices, truculências e aventuras,
espertezas e malandragens, punições e fugas, acasos e desafios, encontros e
desencontros, estes homens e mulheres inventaram um espaço histórico cujo
grande aprendizado era saber conduzir a própria vida.
3.4 O Preço, o Peso, a Pechincha e o Fiado.
Na cidade da Capela e também na região, muitos dos moradores tinham uma
dieta alimentar composta por frutas como laranja, abacate, jaca, melancia, banana,
caju, manga dentre outras; verduras como abóbora, jiló, batata inglesa, chuchu,
pepino, quiabo, repolho, cenoura e alimentos outros como: aipim, fruta-pão e batata-
doce. Esses produtos eram bastante vendidos em decorrência do preço que, nos
anos 50, variava entre “5 tostões a 6 tostões um cacho de banana, que era banana
prá daná” e “5 tostões de aipim que dava mais de dois quilos”.
145
Entretanto, muitos produtos que eram comercializados na feira-livre de Santo
Antônio de Jesus não eram tão acessíveis à população de modo geral, sobretudo às
camadas mais populares, em decorrência da alta dos preços. Um desses produtos
era a madeira cortada e os cabos de madeira que as pessoas compravam para
construir a cumeeira de suas casas. Porém, o era apenas a madeira que estava
com o preço “pela hora da morte”. O Jornal o Paládio, de 19 de Março de 1952,
trazia a seguinte matéria para seus leitores:
145
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
106
Carestia da vida.
Nas feiras, aos sábados, nesta cidade, os gêneros procurados
pelo povo estão pela hora da morte, isto há muitas semanas já.
Não dêscem de preço. Ao contrario sobem sempre. Farinha de
mandioca, alimento predileto do povo, 60 cruzeiros uma quarta,
isto é, 15 litros! Dito o preço da farinha o leitor tirará ilação.
Poderá julgar quanto os demais gêneros estão custando.
146
Produto predileto do povo, como anunciou o jornal, a farinha de mandioca era
um dos alimentos mais vendidos na feira-livre da cidade por ser um produto que
mais freqüentemente, compunha a dieta alimentar das populações da Região do
Recôncavo Sul e de várias cidades do interior da Bahia. Talvez por este motivo,
esse produto servisse como referencial para questionar o elevado preço dos outros
produtos em determinadas ocasiões.
Outro componente importante que não podia faltar na mesa de homens e
mulheres do campo ou da cidade era a carne. Em solidariedade a sua “amiga
inseparável”, a farinha, a “carne verde” tornava-se assunto no cotidiano da cidade
em decorrência dos altos preços estabelecidos por magarefes e outras pessoas que
a comercializavam. No dia 31 de julho de 1951, o jornal O Paládio tornou público:
O Problema do bife.
A Prefeitura fez publicar em boletins a nota que aqui
transcrevemos: “O Prefeito Municipal desta cidade, levando em
consideração que, os preços de Cr$ 7,00 e Cr$ 9,00
estabelecido para a venda de carne verde, não lograram
solucionar o problema, dado os expedientes usados pelos
magarefes, resolveu estabelecer a partir de hoje o preço de Cr$
7,50 para o corte geral. Santo Antônio de Jesus, 25 de Julho de
1951.
147
Além do preço da carne estar pela “hora da morte”, pelo teor da matéria
parece que não havia uma unanimidade entre os magarefes em relação ao preço da
mercadoria. A falta de consenso entre eles repercutia no bolso dos consumidores,
obrigando o prefeito municipal, Antônio Magalhães Fraga, a tomar a medida de fixar
o preço desse produto.
146
Jornal O Paládio. Ano 51, 19 de março de 1952. Nº 2.391 – APMSAJ.
147
Jornal O Paládio. Ano 50, 31 de julho de 1951, Nº 2374 – APMSAJ.
107
Dentre os magarefes que vendiam carne fresca nos açougues que estavam
localizados no entorno da feira-livre, um deles era Arthur de Abreu, dono de açougue
e também delegado da cidade, acostumava dividir seu tempo com as atividades de
cortar carne e atender as queixas sobre furtos, desordens, dentre outros delitos
cometidos na cidade. O delegado também destinava algumas horas de seu tempo
na companhia de seu filho Lourival, um “caboclo bonito”, famoso por suas
peripécias, aventuras e desventuras com várias moças da região.
Um outro magarefe conhecido na cidade era denominado de Diabo. Era
um mulato claro, casado com uma mulher branca e gorda chamada Cota. Ele era
respeitado e temido no Mutum, local onde morava, e na cidade, por sua fama de
ruim e perverso. Esse magarefe, mesmo casado, mantinha uma relação amorosa
com Lurdes, filha de Capenga, que alcovitava o romance de sua filha com o
açougueiro em troca da carne que ele acostumava lhe ofertar. Diabo parece que
era um dos magarefes mais famoso da cidade naqueles tempos e o que lhe rendeu
também essa fama de “perverso e ruim” fora o fato de vender carne a preços
bastante altos.
Em meio ao conflito entre consumidores, magarefes e o poder público por
causa do elevado preço da carne, alternativas se abriam com a oferta de outros
gêneros alimentícios, comercializados a preços mais baixos e que poderiam
substituir a carne fresca.
A Granja São Gonçalo de propriedade do senhor Vaz Barreto, vulgo
Barretinho, em 18 de fevereiro de 1951, publicou um anúncio no Jornal o Detetive
que dizia fornecer seus produtos pelos melhores preços e ainda entregava em
domicílio. A propaganda dizia:
Galinha Rodes Cr$ 8,00, frangos novos para cozinha a Cr$
6,00 e a Cr$ 7,00. Frangos de raça para (reprodução) a Cr$
30,00. Ovos frescos a Cr$ 4,50. Ovos velhos, de Cr$ 9,00 e
Cr$ 12,00 a dúzia. Pintos de um dia – Cr$ 5,00 a dúzia. Perus –
Cr$ 9,00 a Cr$ 14,00.
148
148
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 18 de fevereiro de 1951. Nº 181 ano 4. AP.
108
Comparando os preços, os gêneros alimentícios, (o frango, os ovos e até o
peru) estavam com preços mais acessíveis do que a carne fresca, tornando-se
alternativas mais viáveis para o cardápio alimentar das camadas populares.
Voltando à questão da intervenção do poder público, não fora no preço da
carne que os legisladores foram obrigados a intervir. As muitas reclamações de
fregueses e freguesas, que freqüentavam aquele universo com assiduidade,
forçavam o poder público a colocar em suas pautas assuntos como: preços de
mercadoria, pesos e modalidades de venda dos produtos a serem comercializados.
Em Ata da Câmara Municipal, do dia 16 de outubro de 1959, consta que pediu
a palavra o vereador Atanagildo Tourinho que, ao se pronunciar, divergiu sobre a
indicação do vereador Edvaldo Oliveira que pedia a proibição de vendagem por
atacado na feira antes das dez horas, votando favorável sobre a fiscalização de
pesos, balanças e medidas.
149
Ao pedir a proibição de vendagem das mercadorias dos feirantes em atacado
até as dez horas, pode se supor que o vereador Edvaldo Oliveira estivesse
preocupado com o abastecimento da população local, da região e daqueles que
para se dirigiam em busca de seus produtos e mercadorias. Entretanto, na
condição de representante do poder legislativo na cidade, não se pode ocultar, ele
fazia parte de uma elite que compunha os estratos sociais mais abastados naquela
sociedade. Desta forma, abre-se também a possibilidade de especular: até que
ponto uma medida como esta beneficiaria os feirantes e os consumidores ou seria
uma medida que tinha o objetivo de beneficiar os donos de casas comerciais e
armazéns mais afortunados que disputavam a venda de alguns produtos com os
feirantes no concorrido “mundo dos negócios” em paralelo à feira-livre? Cabe
lembrar que, mais de um ano, tinha sido decretada a retirada da feira-livre do
centro da cidade.
Torna-se difícil detectar as reais intenções do vereador e seu objetivo, porém,
de qualquer maneira, pode-se imaginar o teor das relações sociais estabelecidas
entre diversos setores que dinamizavam o fazer e o viver na cidade e as diversas
configurações que o poder público ali assumia. Ao discordar de seu par, o vereador
Atanagildo Tourinho reivindicava uma postura mais firme do poder público exigindo
149
Livro Ata da Câmara Municipal de Santo Antônio de Jesus – 16/10/1959. ACMSAJ.
109
que fiscalizasse pesos, balanças e medidas no universo da feira. Aqui também,
podemos imaginar que o autor da reivindicação estivesse preocupado com os
consumidores dos diversos produtos comercializados naquele ambiente. É possível
que além de reclamar da carestia dos produtos, os consumidores estivessem
desconfiados de que estavam sendo lesados, reclamando dos pesos e medidas
utilizados pelos feirantes em seus locais de trabalho.
É difícil precisar as relações destes políticos com os diversos setores e
indivíduos que “praticavam” a cidade, talvez a solicitação de que precisava fiscalizar
os instrumentos de trabalho dos feirantes, feita pelo vereador Atanagildo Tourinho,
fosse fruto das reivindicações e “perseguição” dos concorrentes dos feirantes.
Especulação a parte, se de fato os feirantes estivessem manipulando pesos,
balanças e medidas, tais práticas poderiam ser vistas como trapaças, truculências e
deslealdade perante aqueles que consumiam os produtos. Mas, perante as certezas,
durezas e incertezas da vida, os sonhos e objetivos a conquistar, essas práticas
poderiam significar resistências cotidianas e formas de sobrevivência perante às
vicissitudes impostas no dia-a-dia.
Parece que a alta dos preços perseguiu fregueses, freqüentadores e
freqüentadoras da feira-livre também na década de 60. Em decorrência da alta dos
preços de gêneros de primeira necessidade, o prefeito municipal, Antônio Olavo
Galvão, em 1963, concedeu um aumento de 100% no salário mínimo dos
funcionários municipais, justificado pela alta constante dos preços na cidade.
150
Uma das saídas encontradas pelos consumidores dos produtos da feira, para
amenizar “o peso” do preço das mercadorias e solucionar as possíveis
desconfianças em relação aos pesos e medidas, era usar da arte de convencer o
feirante a conceder um desconto nas mercadorias que pretendiam comprar ou as
que eram de certeza levar para casa com a pechincha. Essa arte consistia em
uma “encenação teatral” em que os atores feirantes e fregueses se utilizavam
tanto de elementos subjetivos, a exemplo da persuasão, quantos elementos
objetivos, como a falta de dinheiro e a carestia dos produtos, para ver quem saía
vencedor na disputa. O jogo do corpo e a voz eram fatores fundamentais na hora da
pechincha.
150
Portaria nº 125 de 16 de janeiro 1963. Livro de Leis, Decretos e Portarias – APMSAJ.
110
Paul Zumthor mostra-nos que o tempo, lugar, circunstâncias, contexto
histórico, atores… são elementos visíveis numa operação performancial. Para ele,
Um laço funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele
projeta o corpo no espaço da performance e visa a conquistá-
lo, saturá-lo de seu movimento. A palavra pronunciada não
existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente
verbal: ela participa necessariamente de um processo mais
amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de
algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos
participantes.
151
O sucesso na disputa dessa representação, muitas vezes, dependia do perfil
e da personalidade dos atores envolvidos na trama, o grau e desenvoltura na
capacidade de insistir, o grau de relação e afinidade entre o comerciante e o
“pechincheiro” e até o modo como o cliente estivesse vestido poderia influir na
decisão do feirante de conceder ou não o referido desconto. Outras linguagens
entravam em cena no momento da pechincha.
Uma vez saindo vitorioso no “teatro da pechincha”, o cliente poderia receber o
desconto em moeda corrente abatido no valor do produto ou em mercadorias, como
é comum em feiras da Bahia. O pechincheiro ao comprar, por exemplo, dez litros de
amendoim, levava onze litros para casa, comprar um cento de laranjas, levava cento
e dez, comprar quilos de carne e levar algumas gramas a mais para “rechear a
panela”. O sucesso do “pechincheiro” poderia também depender do bem-estar e do
humor do feirante nos dias de feira. O bom ou mau humor dos feirantes dependia do
volume de vendas que eles realizavam naqueles dias e da ausência de vários
aborrecimentos que poderiam ocorrer-lhes desde o deslocamento de suas
residências até o local de trabalho e das situações imprevistas que o cotidiano
poderia lhes oferecer.
Augusto Laranjeira era um homem que usava sempre o bom humor para
superar as condições adversas que às vezes a sua profissão lhe trazia. Considerado
um pechincheiro nato, ele sempre conseguia descontos quando ia comprar para
revender bananas sem carbureto, limão, limas, laranjas, dentre outros produtos que
151
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. o Paulo: Companhia das Letras,
1993, p. 243-244.
111
ele comercializava em feiras da Bahia. A sua prática de pechinchar era tão sólida,
que ele ficou conhecido no meio, também, pelo nome de Augusto Pechincheiro. “O
feitiço se virou contra o feiticeiro”. Porque sua fama de pechincheiro conduzia seus
clientes a usarem também esse artifício quando se dirigiam aa sua barraca para
comprar os produtos que ele negociava. Quando as pessoas pechinchavam, ele
dizia: “eu tenho esse apelido mesmo, (muitos risos), eu dava o desconto e o
cliente saía satisfeito (muitos risos)”. Conceder a pechincha ao cliente podia
significar aumento nas vendagens e a construção de uma clientela “cativa”.
Augusto Laranjeira dividia essa sua identidade com a de Augusto
Pechincheiro. Os “deslocamentos sofridos” na identidade pessoal de seu Augusto
Soares da Silva, leva-nos a pensar em um dos sentidos da composição da memória
defendido por Alistair Thomson quando afirma que temos a necessidade de compor
um passado com o qual possamos conviver. Ao conviver com as identidades de
Augusto Laranjeira e Augusto Pechincheiro, esse feirante vivenciava/vivencia na
prática aquilo que Thomson supõe existir: uma relação dialética entre memória e
identidade na teoria. Pois para este autor
Nossa identidade (ou “identidades”, termo mais apropriado para
indicar a natureza multifacetada e contraditória da
subjetividade) é a consciência do eu que, com o passar do
tempo, construímos através da interação com outras pessoas e
com nossa própria vivência. Construímos nossa identidade
através do processo de contar histórias para nós mesmos
como histórias secretas ou fantasias ou para outras pessoas
no convívio social.
152
Vitalina Souza, ao rememorar os dias em que muitos clientes de sua mãe
utilizavam-se do mecanismo da pechincha para obter vantagens, relembra que os
clientes acostumavam comprar um prato de refeição composta por feijão, arroz,
farinha e ensopado de carne e, após o pagamento, sempre solicitavam “ô moça,
bote mais um pedaçinho de carne”. Para dona Maria Plácida, que vendia refeições,
a carne cozida era o produto predileto de pechincha daqueles que a sua barraca se
dirigiam. Mesmo acostumada naquele ambiente onde a pechincha constituía-se em
uma prática corriqueira, dona Lina não gostava/gosta de pechinchar, “tem pavor a
152
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as
memórias. Projeto História. São Paulo, n. 15, Abr.1997, p. 57.
112
pechincha”, diferente de seu cônjuge, Antônio Souza, e seus filhos, que, segundo
ela, “Ave Maria! exageram na arte de pechinchar”.
153
Ao narrar as histórias lembradas sobre as experiências em relação à
pechincha e ratificar que não gostava desta prática no passado e continua não
gostando hoje no presente, o relato da depoente nos conduz à afirmativa de que
“compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e
presente e de certa forma, nós a compomos ou construímos utilizando as linguagens
e os significados conhecidos da nossa cultura”.
154
Talvez o fato de Vitalina Souza ter pavor à prática da pechincha esteja
associado às experiências da infância, quando vivenciava a carência econômica e
social de seus familiares e era obrigada a presenciar na feira clientes pedindo
descontos na compra dos produtos que sua mãe negociava. Ela compôs sua
memória no presente ratificando uma característica identitária construída no
passado em meio ao universo cultural no qual estava inserida.
Além da pechincha, outra artimanha que envolvia feirantes e clientes no
universo da feira-livre era a prática de comprar e vender mercadorias a crédito, o tão
conhecido fiado. Apesar da maioria dos feirantes não gostarem de vender fiado,
alguns fregueses souberam construir uma relação de amizade, respeitabilidade,
afetividade e confiança que assegurava a permanência desta prática naquele
cenário. Augusto Laranjeira era um feirante que não gostava de vender fiado, ele
concedia a “poucos de sua confiança” mercadorias para serem pagas a prazo.
A feirante Elza Froes era outra que comungava com a posição de seu colega
de profissão, Augusto Laranjeira. Ela vendia fiado a algumas pessoas em uma
semana para receber o pagamento das mercadorias na semana subseqüente. Mas
ela apenas vendia às pessoas que ela conhecia e tinha confiança, àqueles que ela
não acreditava honrar assiduamente com seus compromissos, o poderia ratificar
esse procedimento. Ela acostumava calcular “de cabeça” o valor das compras dos
seus clientes, porque seu pai não a colocara numa escola para aprender a ler, então
“como é que anotava na caderneta? A gente bastava lembrar na memória”.
155
153
Vitalina dos Santos Souza. Depoimento citado.
154
THOMSON. Op. Cit. p. 56.
155
Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.
113
Às vezes, o fiado, a depender da relação estabelecida entre feirantes e seus
clientes, se configurava como uma prática até prazerosa e de fácil aceitação. A
feirante Elza Froes, quando indagada se ela não esquecia de “anotar na memória”
alguma coisa que vendia fiado a seus clientes, diz “que não esquecia não e aqueles
que comprava eles tinha consciência também porque naquele tempo tudo que
vendia recebia”. É emblemático um caso relembrado por ela
Tinha um menino de Castro Arve mesmo, ele não tinha pena
de comprá e pagá não, ele gostava mesmo de compra e pagá.
Tanto gostava de comê como gostava de pagá. Ele não
pechinchava não. (muitos risos)
156
A narrativa da feirante Elza, os risos que emergiram na sua face, associados
a gestos de prazer e felicidade, traduzem o alto grau de fidelidade que existira entre
ela e esse seu cliente natural da cidade de Castro Alves. Honestidade e lealdade
foram ferramentas utilizadas para construir relações estáveis entre feirantes e
consumidores naquele habitat; embora, algumas vezes fossem surpreendidos e
desapontados pela desonestidade e deslealdade de alguns.
Anotar o fiado na memória não era uma prática apenas de dona Elza, o não
acesso ao “saber oficial” da escola levou Esmeraldo Nunes, João do Couro, Augusto
Laranjeira, dentre outros feirantes, a adotarem também essa prática. Todavia, a
vida, no dia-a-dia, tornava esses homens e mulheres doutores de um saber que
contagiava a todos aqueles que com eles direta ou indiretamente se relacionavam.
Mesmo enfrentando os preços altos da farinha e da carne, usando a arte da
pechincha para conseguir descontos nas mercadorias, estabelecendo relações que
lhes abriam a possibilidade de comprar a crédito, muitos homens e mulheres do
campo e da cidade seguiam sua rotina retornando para seus lares com seus balaios,
suas cestas com tampas ou sem tampas, cofos, sacos de linhagem e naylon com os
produtos da sobrevivência e os utensílios necessários ao recanto do “lar doce lar”.
Essa rotina nos permite afirmar que saber entrar numa feira, aprender a
pechinchar e escolher o melhor produto também é uma arte, muitas vezes
transmitida de geração para geração.
156
Idem.
114
3.5 – Em Meio ao Trabalho, o Lazer.
Em meio a um cotidiano fortemente matizado pelo trabalho, feirantes e
freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio de Jesus quebravam a tradicional
rotina de compra e venda de mercadorias, participando, apreciando e sorrindo diante
de situações e alguns espetáculos que naquele ambiente eram encenados.
Na rua Celestino Pimenta, onde funcionava a “Barganha”, considerada a “Feira
Pesada” por vender mercadorias volumosas como carvão, madeiras e animais em
geral, era comum nos dias de feira, principalmente no dia de sábado, vendedores de
burros e cavalos levarem seus animais para serem comercializados naquele espaço.
Chegando lá, os animais eram expostos ao público e os interessados em comprá-los
escolhiam o burro ou cavalo que queriam levar para casa. Porém, antes de serem
entregues aos seus novos donos, esses animais eram adestrados pelos
“amansadores de burro brabo” que amansavam esses animais ali no mesmo local.
Estudando o cotidiano de vaqueiros, cordelistas, cantadores e animadores
que expressavam a cultura regional, dando características próprias à cidade de
Feira de Santana e aos hábitos de lazer que a população vivenciava na feira-livre
daquela cidade, Izabel Lorene Borges de Oliveira ressalta a importância dos
vaqueiros naquele cenário. Ela observa que uma das situações em que o vaqueiro
se destacava era quando o gado se desgarrava do rebanho e ia parar no meio da
feira.
Esses eram momentos marcados por um misto de pânico e divertimento,
desespero e humor, medo e lazer que contagiava a todos. Para solucionar essa
situação entrava em cena o vaqueiro que segundo ela
Era visto com respeito e admiração, considerado um artista na
proeza de controlar o gado, amansar burro brabo, estando
pronto a qualquer momento para controlar o gado desgarrado,
proporcionando um espetáculo no meio da feira.
157
157
OLIVEIRA, Izabel Lorene Borges de. Op. Cit. p. 53.
115
Salvo as diferenças de contextos e personagens, a atividade de adestramento
de burros e cavalos na feira-livre de Santo Antônio de Jesus conferia a esses
homens características semelhantes às identificadas nos vaqueiros na feira-livre da
cidade de Feira de Santana na Bahia. Valentia e destreza, coragem e força eram
características que a platéia atribuía a esses artistas.
A arte de amansar burro brabo configurava-se em algo prazeroso e bonito de
se ver que atraía feirantes, freqüentadores da feira, crianças e outros grupos sociais
para assistirem àquele espetáculo. Segundo uma moradora que residia próximo a
este local, nos dias de feira ela e seus irmãos acordavam às cinco horas da manhã
para assistirem da porta e da janela de sua casa aquele show, enquanto sua mãe,
com medo dos animais brabos, ficava no fundo da casa gritando para que eles
entrassem. Para a depoente, o espetáculo alcançava o clímax quando um animal,
boi ou cavalo, “escapulia” e saía correndo pelo meio da feira. Era uma verdadeira
festa.
158
Ela conta ainda que, nos anos 50 e 60, era comum vaqueiros, oriundos de
várias regiões, passarem por ruas da cidade conduzindo suas manadas. E, às
vezes, algum gado desgarrava do rebanho e ia parar na feira causando pânico,
temor, alegria e diversão. Entravam em cena os amansadores de burro brabo,
homens que se constituíram, na feira-livre, em personagens de grande consideração
e respeito por causa do espetáculo que eles proporcionavam. Eram homens que
faziam com que “o burro brabo saísse daqui igual uma criança”.
Outra forma de se divertir e ainda com grandes possibilidades de ganhar
alguns trocados, era proporcionada pelo espetáculo das rinhas de galos que eram
montadas no meio da feira-livre ou nas suas imediações. O feirante Augusto
Laranjeira sempre apostava 10 ou 20 mil réis nas brigas de galo. Para esse feirante,
o valor da aposta poderia aumentar a partir da confiança que ele adquiria em galos
de amigos ou a depender do sucesso de sua vendagem num determinado dia de
feira.
Para atrair as apostas, as personagens principais dessa forma de
entretenimento tinham que adquirir confiança dos apostadores durante a
apresentação nas rodas que se tornavam verdadeiras arenas montadas a céu
158
Depoimento de Maria Conceição da Silva. Professora aposentada. Rua Sóter Barros, 29,
centro. Santo Antônio de Jesus, 73 anos.
116
aberto. A confiança poderia ser adquirida a partir de um ritual em que o apostador,
antes de começar a disputa, dispensava um tempo fixando um atento olhar nos
animais. Esse olhar observava o zelo, o garbo, a postura que o galo se apresentava
e, também, os cuidados que o dono possuía com o animal, que incluía na lista não
deixar qualquer pessoa por as mãos. Maneca dos galos tornou-se conhecido entre
os apostadores desse jogo na feira-livre por ser considerado um bom aparador de
galos.
Clifford Geertz acredita que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu. Para ele, a cultura são essas teias e sua análise,
portanto, não deve ser vista como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa que está sempre à procura de significados. Em seu
célebre ensaio intitulado Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos
Balinesa, ele diz: “Grande parte de Bali se revela numa rinha de galos. É apenas na
aparência que os galos brigam ali. Na verdade são homens que se defrontam”.
159
Neste ensaio Geertz mostra como uma briga de galo, aparentemente algo
sem grande importância, configura-se em um “ritual” cheio de significados
reveladores das múltiplas dimensões do viver da sociedade balinesa. Na feira-livre
de Santo Antônio de Jesus, não se pode afirmar que a rinha de galo se revestia em
uma forma de entretenimento onde ltiplos significados ali se apresentavam. O
que é possível revelar, é que a briga de galo assumia uma importância mais material
que simbólica, na vida de feirantes, jogadores e outros apostadores que perdiam ou
ganhavam dinheiro e também se deliciavam com o prazer e as emoções que esta
forma de entretenimento lhes proporcionava, como é o caso do feirante Augusto
Laranjeira.
O lazer, a descontração e o riso eram também garantidos no universo da feira
com um serviço de alto-falante, instalado na rua Dr. Gorgônio José de Araújo, de
propriedade do senhor Garrincha. Esse serviço se estendia até à praça Padre
Mateus levando várias informações e muita música que alegrava o cotidiano de
feirantes, fregueses e demais freqüentadores daquele ambiente.
As casas comerciais da cidade colocavam diversos anúncios nesse serviço,
trazendo informações a respeito de liquidações, baixa nos preços dos produtos e as
159
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981, p. 188.
117
novidades no ramo de vestuário e utensílios domésticos que chegavam de estados
como São Paulo, Rio de janeiro, dentre outros. A música invadia “o chão da praça”
nas vozes dos cantores: Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Carlos Garlhado, Silvio
Caldas, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Emilinha Borba, Luiz Gonzaga e tantos
outros.
Mas, o que mais despertava a atenção de todos neste serviço era os
recadinhos que várias pessoas, principalmente os homens, enviavam para as moças
com as quais pretendiam paquerar ou manter um flerte, sobretudo nos períodos de
festas, como por exemplo, no período da festa do padroeiro da cidade e São João.
Nesses recadinhos, geralmente os rapazes enviavam as suas pretendentes
lembranças, ofereciam músicas e ousavam marcar possíveis encontros. A forma
utilizada para se referir às moças, às quais os recados se destinavam, era
identificando-as com alguns adereços que elas estivessem usando naquele
momento. Era comum sair “notinhas” ou “bilhetinhos” para aquela menina de laço
vermelho na cabeça.
O flerte e o namoro podiam penetrar no ambiente da feira em qualquer
momento. Em meio ao trabalho, vários feirantes, casados ou não, usavam suas
artimanhas para conquistar outros feirantes e fregueses, porque a feira-livre servia
também como um local para paquerar, conhecer moças e rapazes que vinham de
outras cidades ou até mesmo reencontrar a paquera da semana anterior. Augusto
Laranjeira lembra que ele e muitas outras pessoas saíam da feira para namorar nas
imediações, principalmente na praça Duque de Caxias, local onde atualmente está
instalada a feira da cidade. Muitas relações entre vendedores e clientes poderiam
alcançar outros graus de intimidade.
O peso de um dia de trabalho podia ainda ser amenizado com boas notícias,
ou até mesmo a própria visita de parentes e amigos que desembarcavam na cidade
trazendo informações sobre quem havia casado ou ia se casar, dos batizados, quem
havia comprado bens e imóveis, notícias de parentes e amigos que foram para a
“cidade grande”, como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, etc.
Outra maneira de se descontrair, no dia-a-dia do trabalho, era ouvindo as
notícias sobre a vida privada de diversos atores sociais que, em tom de fofoca,
chegavam à feira-livre causando espanto e sutis gargalhadas. Notícias sobre a vida
alheia causavam um fascínio à parte naquele universo, atingindo seu clímax com as
118
fofocas que diziam respeito às práticas de adultério e homoerotismo, dimensões
outras da vida humana fortemente reprimida naqueles tempos.
Mais um espetáculo que atraía o riso dos feirantes, como também de todos
que pela feira perambulavam, era a figura de homens e mulheres embriagados que
encenavam suas performances naquele cenário. Além de exibirem “acrobacias” e
um gingado corporal que chamava a atenção de todos, eles imprimiram, naquele
ambiente, histórias engraçadas que ficaram na memória de vários sujeitos sociais
que por lá passaram. Era comum a presença de muitos bêbados na feira-livre,
notadamente ao final da tarde.
Vendedor de fígado ferventado, requeijão e “fato”, Manoel Ângelo era um
feirante que gostava de bebericar os diversos aperitivos que eram vendidos nas
barracas na feira e nos bares da praça. Conhecido no seu ambiente de trabalho por
ser considerado o vendedor do melhor fígado da feira, era chamado por seus
fregueses de Mané Anjo, talvez por tornar mais fácil a pronúncia do seu nome.
Todavia, quando esse feirante tomava uns aperitivos a mais e sua clientela, durante
a compra e venda dos produtos, o chamava de Mané Anjo, ele acostumava adverti-
los dizendo: “êpa! meu nome é Manoel Ângelo”, exigindo a pronuncia correta do seu
verdadeiro nome.
Em várias feiras do Brasil, principalmente no Nordeste, é comum a presença
de cantadores e repentistas, pessoas especializadas na arte de improvisar versos e
criar composições instantâneas. Na memória coletiva dos feirantes, a figura de
Fausto da Viola emerge como um repentista que perambulava pelos bares, ruas,
casas comerciais e na feira da cidade vendendo alegria para muita gente.
Outro momento de alegria, no meio da feira, era assistir a apresentação
daqueles que ofereciam produtos exóticos e remédios milagrosos como Purgantes,
couro de várias cobras, óleo de peixe elétrico, de tartaruga, dentre outros produtos,
e expunha ao público a famosa cobra elétrica dentro de uma bacia com água,
tartarugas e etc. Com um fone na boca, fazendo promessa de curar diversas
doenças, e com muita criatividade, os argumentos que estes homens utilizavam para
convencer as pessoas comprarem seus produtos era motivo de riso e descontração
naquele ambiente.
119
A comida, a bebida, o namoro, o riso, a chacota, a algazarra, o barulho, a
gritaria, a música e a piada davam o tom alegre da festa na feira. Os excessos
dessa festa eram protagonizados por homens e mulheres embriagados que
geralmente ao final da feira, no final da tarde, desfilavam proferindo xingamentos e
impropérios perante feirantes, fregueses e freqüentadores que na feira ainda se
encontravam, muitas vezes causando brigas e confusões. Vitalina Souza relembra
que as performances de alguns desses homens embriagados a deixava
envergonhada e muito chateada naquelas tardes de sábado, e esse foi também um
dos fatores que a levou a convencer sua mãe a deixar de vender na feira-livre. Mais
uma vez os conflitos de gênero protagonizavam naquele palco.
Um outro momento de festa na feira-livre de Santo Antônio de Jesus, era
quando as “gente perdida”, como eram representadas as prostitutas que
trabalhavam na rua do Gás, na Maria Nunes e na rua de Dentro, perambulavam pela
feira “influenciando” o povo da cidade e principalmente, o povo da roça, a se
deslocarem até os lugares que elas prestavam seus serviços. Exageradamente
maquiadas e vestidas com roupas bem extravagantes, de saltos altos, com um jeito
bem peculiar de seduzir, essas mulheres desafiavam a ordem circulando em meio a
bancas de jogos de azar, bebendo nas barracas e nos bares e se entregando nos
braços dos caipiras e citadinos. A “ordem e a desordem” estavam nos bastidores da
ordem na feira-livre em Santo Antônio de Jesus.
O barulho, a gritaria, o uso de expressões jocosas e engraçadas eram
elementos que faziam parte do cotidiano dos feirantes dando um ritmo no próprio ato
de mercadejar. Em meio à concorrência, promover a oferta dos produtos, exibir as
variedades e conseguir boas vendagens dependiam também da criatividade dos
feirantes em forjar mecanismos que pudessem atrair os clientes. Essa disputa se
acirrava em períodos de festa quando uma maior quantidade de mercadoria estava
à venda e os feirantes tinham diante de si grandes possibilidades de aumentar seus
negócios. A preocupação em fazer uma boa oferta e poder apresentar variedades de
produtos aos clientes intensificavam-se nesses períodos.
Entre uma venda e outra, clientes, feirantes e seus pares riam com as formas
engraçadas como eram apresentados os produtos aos fregueses. Propagandas
como: “Venha dona Maria pegar o melhor chuchu da Bahia” ou “quer ter o melhor
São João? venha comprar seus produtos na barraca do João”, ou ainda, a célebre
120
frase de Augusto Laranjeira: ”Vem me ver freguês, vem me ver” divertiam e atraíam
muitas pessoas naqueles dias.
O que procurei mostrar ao longo deste capítulo foi a possibilidade de se
pensar a feira-livre enquanto um espaço de um fluxo contínuo de corpos, idéias,
projetos, comportamentos, atitudes, valores, sentimentos, aspirações e fantasias
que marcavam o ritmo do fazer e do viver desses indivíduos. É pensar cultura na
perspectiva de Ginzburg quando afirma: “A cultura oferece ao indivíduo um horizonte
de possibilidades latentes uma Jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita
a liberdade condicionada a cada um”.
160
É nessa possibilidade abordada por Ginzburg que iremos seguir adiante com
o propósito de caminhar pelos horizontes da liberdade exercitada pelos feirantes no
mundo fora do trabalho.
160
GINZBURG. Op. Cit. p. 27.
121
4 Religião, Lazer, Arte e Prazer.
4.1 Festas Religiosas.
4.2 (En)cantos na Cidade.
4.3 O Tamanco e a Chita.
122
4.1 Festas Religiosas.
Gozemos, façamos a festa,
Todos nós em companhia
Que após ímpia carestia
Não nos dê mais sofrimento… (…)
Viva o pão e viva o trigo,
Viva a riqueza e a abundância, vamos
cantar… (…) (“L” Universale alegrezza dell
‘abondantia’. Século XVI.)
Em meio a labuta do trabalho duro e árduo, tanto na roça quanto na cidade,
os feirantes forjavam maneiras de “estar bem” participando ativamente de festas e
atividades lúdicas que lhes proporcionavam prazer e possibilidade de construção de
novas redes de sociabilidades.
Durante todo o ano, o mundo do trabalho dos feirantes se imbricava com um
rico calendário festivo que muitas vezes, possibilitava o cruzamento do tempo do
trabalho com o tempo da festa tanto na zona rural como nas urbes. Em meio a
festas religiosas ou profanas, em busca de lazer, arte e prazer, eles criaram
maneiras de se divertir se relacionando com as variadas linguagens culturais que
estavam ao seu alcance.
As festas não significavam apenas um momento de descanso e diversão, elas
exprimiam uma concepção de mundo, uma forma de estar nele, bem como os
valores e normas da comunidade na qual os feirantes estavam inseridos. Ou seja, a
participação na festa não pode ser vista dissociada de seus múltiplos significados.
Minha proposta nesse capítulo é acompanhar a vida dos feirantes fora da
feira, tendo como premissa que a vida desses sujeitos e suas experiências não se
resumiam apenas ao mundo do trabalho mesmo sabendo que em muitos
momentos o tempo do trabalho se entrecruzava ao tempo da festa. Nessa
perspectiva, será discutido as maneiras de se divertir e seus significados.
Ao estudar a presença dos santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia, nas
primeiras décadas do século XX, Wlamyra R. de Albuquerque assinala que
123
As festas públicas nos parecem um bom ângulo para
tentarmos perceber esta velha Bahia em tempos republicanos,
já que enquanto duravam se tornavam palco de disputa sociais
e políticas, assimilações e recriações culturais, todas girando
em torno das formas de apropriação do espaço urbano.
161
Em Santo Antônio de Jesus, também, uma das formas de apropriação do
espaço público na cidade se dava a partir da participação nas diversas festas que
acontecia nessa urbe em vários momentos do ano. Uma das festas que mais
seduziam os feirantes a se deslocarem de suas localidades e se dirigirem em busca
de aventuras e alegrias na cidade da Capela eram as festas religiosas que rendiam
homenagem a diversos santos católicos durante todo o ano.
O ciclo de festas religiosas na cidade abria-se com a festa de São Benedito,
realizada na segunda quinzena do mês de Janeiro na Paróquia do bairro que leva o
mesmo nome desse santo, atraindo a atenção de muita gente por ser uma festa bem
animada e movimentada. A feirante Vitalina Souza recorda: Eu gostava da festa de
São Benedito, minha mãe participava muito da festa de São Benedito. E a minha
companheira era ela e a gente participava todo ano.
162
A feirante Vitalina Souza “adorava” freqüentar a festa de São Benedito todos
os anos por causa dos atrativos que aquela festa lhe proporcionava. Nas décadas
de 50 e 60, a festa de São Benedito era movida ao som de maviosos cânticos, a
igreja e seu adro eram ornados com muitas luzes e flores em abundância, parques
de diversões eram montados com roda gigante, carrossel, dentre outros brinquedos,
e as quermesses que despertavam a atenção de moças e rapazes. No dia da festa,
a população da cidade era obrigada a acordar às 5 horas da manhã com uma salva
de 21 tiros e várias girândolas dos foguetes. Geralmente, às 10 horas era celebrada
a missa festiva que era campal e embalada por uma orquestra regida pelo maestro
Sóter Barros. À tarde, belíssima charola com a imagem de São Benedito, em
procissão, percorria rios trechos aos sons das Filarmônicas Amantes da Lyra e
Carlos Gomes e, entre o final da tarde e o início da noite, os participantes eram
161
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia: identidade cultural
na primeira república. Revista Afro – Ásia, Salvador, n. 18. CEAO – UFBA. 1996, p. 107.
162
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
124
agraciados com várias diversões no adro da respectiva Igreja, dentre elas
destacavam-se a Marujada e a Burrinha.
As apresentações da Marujada, da Burrinha e do Bumba-Meu-Boi ocorriam
nas festas de largo na cidade e também em festas religiosas na roça. O feirante
João do Couro não apreciava essas apresentações porque para ele “tudo aquilo era
besteira, era tudo bobagem”. O feirante Esmeraldo Nunes, apesar de ter assistido
poucas dessas apresentações, gostava da brincadeira e da diversão que esses
eventos lhe proporcionavam. a feirante Vitalina Souza costumava se ausentar
dessas apresentações na roça por causa da longa distância que separava o lugar
onde ela morava e o local onde ocorriam esses eventos. Enquanto ela e suas irmãs
ficavam em casa, seus irmãos, seu pai e sua mãe se deslocavam de sua residência
para apreciar essas apresentações.
Enquanto Maria Plácida ia para a festa da Burrinha e do Bumba-Meu-Boi nas
roças para vender cocada e bolacha de goma, seus filhos se divertiam cantando,
batendo palmas e correndo atrás das personagens principais dessa festa, quando
não estavam realizando apostas nos jogos de azar que se instalavam nas
imediações do lugar onde estavam ocorrendo as apresentações. Algumas vezes
eles retornavam para casa alegres pelo fato de terem ganhado nas apostas, outras
voltavam tristes e cabisbaixos porque perdiam todo o dinheiro que levaram no bolso.
Mas, o membro da família considerado o jogador nato era o esposo de Maria
Plácida, Antônio Pereira dos Santos, que se aproveitava dessas ocasiões e investia
todo o seu dinheiro em jogos de azar. Era comum sua esposa e seus filhos vê-lo
chegando em casa “todo mucho por ter perdido tudo no jogo”.
163
Para Edilece Souza Couto, o Brasil herdou essas manifestações folclóricas
dos colonizadores portugueses; conhecidas por danças dramáticas, elas eram
ligadas às cerimônias religiosas.
164
Essas festas se tornavam bastantes interessante
e complexa por articular elementos das três matrizes étnicas formadoras de nossa
cultura, nos auxiliando a repensar aspectos da suposta identidade brasileira.
165
163
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
164
COUTO, Edilece Souza. A puxada do mastro: transformações históricas da festa de São
Sebastião em Olivença (Ilhéus Bahia). Ilhéus-Ba: Editora da Universidade Livre do Mar e da Mata,
2001. p. 137.
165
Ibid.; p. 137.
125
Assim como é complexo o caráter constitutivo dessas manifestações, as
maneiras de estar na festa da Burrinha, do Bumba-Meu-Boi e da Marujada e as
representações construídas pelos feirantes sobre essas apresentações nos levam a
afirmar que esses momentos revelam também um mundo social complexo, onde
várias práticas culturais ali eram encenadas. Um bom exemplo dessa dinâmica pode
ser visto na própria performance da família da feirante Maria Plácida, descrita acima.
A forma dessa família está nessa festa, nos servem ainda de um rico elemento para
se pensar no imbricamento entre o tempo da festa e o tempo do trabalho que
naquele momento se entrecruzavam.
O calendário das festas religiosas sacudiam a cidade e zonas rurais, no mês
de junho, quando em toda a região do Recôncavo Sul ocorrem os louvores e
festejos a Santo Antônio, São João e São Pedro. Os festejos em louvor a Santo
Antônio, padroeiro da cidade, iniciava-se no dia 31 de maio quando várias pessoas
se reuniam em frente à Igreja Matriz na madrugada. A partir das 5 horas da
manhã, conduzidos pelo pároco local, os devotos saíam em caminhada percorrendo
as principais ruas da cidade: rua Espera Negro (atual rua Santo Antônio), rua Maria
Nunes, rua Velha e rua Sete de Setembro, ao som de foguetes e cantando o hino de
Santo Antônio. Esse ritual exercia a função simbólica de acordar a população e
anunciar que estava iniciando-se naquele ano os festejos ao “santo casamenteiro”.
Daí em diante, durante treze noites sucessivas, muitas pessoas lotavam a Igreja
Matriz para render homenagens ao padroeiro da cidade.
Durante o período do trezenário, cada noite a celebração era dedicada a
homenagear outras paróquias da cidade, bairros e ruas, alguns grupos sociais e até
algumas instituições. Havia a noite dos comerciantes, mas, tudo leva crer que esta
celebração era dedicada aos “homens de negócios da cidade”, excluindo os
feirantes, pelo menos oficialmente, desta homenagem litúrgica. Enquanto que uma
das noites mais esfuziante, cuja cidade “explodia” em foguetório, era a noite dos
fumageiros.
166
A festa se encerrava no dia 13 de junho com uma missa que ocorria pela
manhã, geralmente às 10 horas, e o ponto alto da festa era marcado com uma
procissão que percorria as principais ruas da cidade. As casas que se localizavam
nas ruas onde o cortejo desfilava eram enfeitadas com bandeiras, ramos verdes de
166
Maria Conceição da Silva. Depoimento citado.
126
plantas e, portas e janelas eram iluminadas à vela. Todo esse percurso era
embalado por uma charola que acompanhava a imagem de Santo Antônio e outros
andores de santos que eram também cultuados na cidade como São Benedito e São
José. A imponência desse cortejo devia-se ainda às brilhantes apresentações das
Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos Gomes que faziam com que esses
momentos fossem marcados por muita emoção entre os fiéis.
167
As festas públicas na cidade da Capela, principalmente as festas religiosas,
eram marcadas com a presença cativa das filarmônicas da cidade. As Filarmônicas
Amantes da Lyra e Carlos Gomes singularizavam o espaço da festa em meio às
pessoas que nelas estavam presentes levando alegria e emoção através de suas
performances e das músicas executadas. Essas filarmônicas exerciam uma função
social muito importante na cidade e na região.
168
Além da no santo casamenteiro, a apresentação das filarmônicas era um
dos atrativos que seduziam a feirante Elza Froes a participar desta festividade. Ela
lembra que ia muita gente de outras cidades para a festa de Santo Antônio e que era
uma festa muito bonita porque a missa era mais demorada e “bem mais celebrada
que as de hoje”. Durante os anos 50 e início dos anos 60, a Igreja Matriz fora
conduzida pelo padre Antônio Almeida de Oliveira, seguido por Jairo Ruy Matos da
Silva, José Amaral de Oliveira, Raimundo Araújo, em 1966, e Gilberto Vaz Sampaio
que assumiu a paróquia a partir de 1967.
169
As missas celebradas durante as treze noites da festa ganhavam um tom
especial com a presença de vários padres que Saíam de diversas cidades do interior
da Bahia e da capital para participar dessas celebrações. No ano de 1952, por
exemplo, quando a Paróquia festejou seu centenário, nos treze dias a festa fora
167
Sobre as festas religiosas na cidade de Santo Antônio de Jesus, os periódicos locais como O
Paládio, A Voz das Palmeiras, O Detetive, dentre outros, se preocupavam em descrever essas
festividades em suas matérias.
168
Sobre a importância das filarmônicas ver: SCHWEBEL, Horst Karl. Bandas, filarmônicas e
mestres na Bahia. Centro de Estudos Baianos. Salvador-Ba. UFBA, 1987, p. 23. Segundo este
autor, as filarmônicas eram instituições sem a qual a vida nas pequenas, médias e grandes cidades
seria impensável. A filarmônica fazia parte do cotidiano do cidadão. Ela estava onipresente em todos
os acontecimentos sociais, políticos e culturais, do nascimento à morte, no batizado como no
casamento, na festa religiosa como no baile, embelezando e dignificando o evento, com a sua
presença e a sua participação.
169
Livro de Registro de Casamentos 3 a 7 e Livro de Registro de Batizados 13 a 29 de 1948-
1971. APSAJ.
127
abrilhantada com a presença do bispo Dom Florêncio Vieira, domiciliado na sede de
Amargosa.
170
A feirante Elza Froes acostumava marcar presença na festa do padroeiro
várias noites, e outro motivo que a influenciava a participar dessa festa era o parque
de diversões que se instalava nas imediações da Igreja Matriz e, principalmente, a
roda gigante, que era o brinquedo que ela mais apreciava. Vitalina Santos Souza
também participava da festa do padroeiro na cidade da Capela. Um dos motivos que
fazia com que ela se deslocasse da Jueirana para participar dessas comemorações,
assim como dona Elza, era o parque de diversões. Vitalina tinha muito medo de
montar nos brinquedos que os parques ofereciam, mas o seu fascínio pela roda
gigante fizera com que, certo dia, acompanhada de seu irmão e seu cunhado,
desafiasse o próprio medo e desfrutasse das emoções e dos encantos que esse
brinquedo lhe proporcionava. Ela adquiriu tanta confiança na roda gigante que não
montava em nenhum outro brinquedo, “só na roda gigante”.
Vários elementos despertavam os interesses das feirantes Elza e Vitalina
nessa festividade, mas, o ponto alto da festa para elas, outros feirantes e muitas
pessoas da região que freqüentavam a urbe, era a procissão do santo padroeiro que
encerrava essas comemorações no dia 13 de junho.
As procissões foram introduzidas no Brasil desde o governo-geral de Tomé de
Souza, quando chegaram aqui os primeiros jesuítas. Segundo Mary Del Priori, no
período colonial, a difusão das procissões, em dias de festa religiosa, colocava em
evidência a mentalidade das populações que viam no rito processional uma função
tranqüilizante e protetora. Ao lidar com a demanda pietista dos colonos que viam nas
procissões um apoio espiritual, a Igreja passa a lhes dar justificativas histórica e
teológica. Mas, para Del Priore,
A Igreja aproveita também para disciplinar e controlar as
populações. Porque as procissões são simultaneamente
fenômenos comunitários e hierárquicos. Elas exprimem a
solidariedade de grupos sociais subordinados a uma paróquia,
reforçando os laços de obediência à Igreja e aos poderes.
171
170
Jornal Tribuna Santantoniense, 29/06/1952. AP.
171
DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 22-
23.
128
De fato, grande parte da comunidade rural e urbana santantoniense e da
região, se encontravam não durante o trezenário, como também, na procissão.
Carregando os andores de São Benedito e São José, moradores de bairros
populares e mais afastados do centro da cidade, como o Andaiá e São Benedito,
encontravam-se com as camadas mais abastadas que residiam no centro.
Chegando os fiéis se juntavam para demonstrar sua e, principalmente, para
receber publicamente, as homenagens daqueles que lhe deviam graças, milagres,
ajudas providenciais e indispensáveis.
Espaços de intercâmbios e interações culturais, a procissão de Santo Antônio
exprimia dimensões do mundo espiritual do qual alguns feirantes faziam parte e
reafirmava a presença desses homens e mulheres praticando o espaço urbano
também no tempo da festa. Longe de ser um espaço isento de hierarquias, o cortejo
apresentava uma ordem que, na prática, também reproduzia hierarquias sociais.
Essas diferenças eram marcadas pelo caráter multifacetado da procissão. Os
fogos de artifício que embelezavam o cortejo e asseguravam uma estética particular
à festa, conferiam um grau de importância também aos homens responsáveis por tal
função naquele momento. À frente do cortejo, o roco e demais eclesiásticos,
dividiam espaço com a elite local que geralmente eram os escolhidos para fazerem
parte da comissão da festa a cada ano. Junto ao andor, homens da roça ou da
cidade, ora disputavam, ora se revezavam na condução do Santo, excluindo as
mulheres dessa função. Assim como as mulheres da roça, inclusive as feirantes, não
eram escolhidas para fazerem parte da comissão da festa. Mas, mesmo diante
dessa realidade, cada um marcava seu lugar na procissão.
Das festas religiosas que ocorriam na cidade, a festa de Santo Antônio era a
que mais contava com uma presença massiva de homens e mulheres da roça. Mas,
mesmo assim, nem todos os anos os feirantes participavam da festa do padroeiro na
cidade da Capela porque moravam longe e não tinham como disponibilizar um meio
de transporte que pudesse os conduzir até o local da festa. Uma alternativa
encontrada para aqueles que desejavam homenagear o Santo e não podiam se
deslocar até a cidade, era participar das Rezas para Santo Antônio que ocorriam na
roça. Lá os participantes não contavam com as luzes dos parques de diversões, mas
as iguarias servidas e as cantorias entoadas iluminavam com cor e sabor a vida de
vários homens e mulheres da roça nas noites de 13 de junho.
129
O mês de junho se configurava como um período de festa muito especial para
os feirantes. Na memória da maioria deles, a festa de São João se constituiu em
uma das comemorações mais contagiantes, mais festiva, um momento em que som,
“luz”, dança e alegria se mesclavam, tornando a noite do dia 23 e a madrugada do
dia 24 um momento mágico e encantador na roça. Esse encanto e essa magia
emergiam nos gestos, no brilho dos olhos e no “ar” de felicidade dos sujeitos sociais
dessa pesquisa. Ao relembrar as festas juninas, homens, como Esmeraldo Nunes,
através de sua performance não conseguiam ofuscar a nostalgia em relação àquelas
noites de São João. João do Couro relembra que
São João na roça era bom, era bom. Aquela festa de muito
milho, toda casa tinha aquela fartura, né? De milho, amendoim,
um licorzinho. Aquelas pessoa que tinha condição um
queijozinho. A gente sa, dificimente as pessoa passava a
noite na casa própria. Sempre saía, um ia pra casa de um,
um ia pra casa de outro. As veze amanhecia o dia assim: um
visitando o outro; aquele Viva São João! e o forrozinho. Era
muito gostoso, era bom.
172
Esse momento levou-me a pensar na potencialidade da história oral na
perspectiva de Alessandro Portelli quando afirma que
A história oral se inicia na oralidade do narrador, mas é
encaminhada (e concluída) em direção ao texto escrito do
historiador. Os narradores orais estão cientes dessa distinção
escrita e têm isso em mente na medida em que dão forma às
suas performances; por outro lado, a tarefa do historiador “oral”
é escrever de tal modo que os leitores constantemente
relembrem as origens orais do texto que estão lendo. Por fim,
podemos definir a história oral como o gênero de discurso no
qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem conjuntamente,
de forma a cada uma falar para a outra sobre o passado.
173
A performance, não do feirante Esmeraldo Nunes, mas também de outros
sujeitos dessa pesquisa, como é o caso dos feirantes Augusto Laranjeira, João do
172
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
173
PORTELLI. Op. Cit. História oral como gênero. Projeto História, São Paulo, n.22, Jun. 2001, p.
13.
130
Couro, Vitalina Souza, dentre outros, nos possibilitou pintar o quadro das vivências,
das práticas e significados que esses sujeitos atribuíam a essas festas.
Um componente fundamental na festa de São João era o cardápio composto
por comidas típicas que seduzia os feirantes durante esses festejos. Para agüentar
dançar a noite inteira, esses homens e mulheres se nutriam e se deliciavam com
muita canjica, bolo de milho, bolo de puba, milho cozido, milho assado na fogueira,
amendoim cozido, laranja, galinha assada, lombo de carne de porco. Para suavizar
a garganta, bebia-se muito licor de cacau, tamarindo, maracujá, jenipapo,
considerado como a bebida tradicional desses festejos, doses de aguardente Buri,
Rio Fundo, Orgia e Sururu, esta última, produzida em Santo Antônio de Jesus, na
destilaria de Hilário Bulhões, era uma concorrente no mercado local e na região da
aguardente Orgia também produzida na cidade. Ambas eram consideradas de boa
qualidade na região, e no período dos festejos juninos parecia uma procissão a
quantidade de homens e mulheres, sobretudo da roça, que se dirigiam ao Alambique
de Clomar Orrico, localizado próximo a Barganha, para comprar a aguardente
Orgia.
174
Durante a noite do dia 23 de junho e também no decorrer do dia 24, quando é
comemorado o dia de São João, era comum na roça as pessoas saírem de casa em
casa, visitando parentes, amigos, vizinhos e conhecidos num verdadeiro ato de
celebração e confraternização de laços de amizade e outras formas de
sociabilidades. Essa visita consistia em um “ritual”: ao chegar em frete da casa que
seria visitada, as pessoas perguntavam: “São João passou por aí?” O proprietário ou
proprietária da casa e demais familiares respondiam: “passou”. Nesse momento,
estava concedida a permissão para que todos que estivessem envolvidos nesta
aventura, adentrassem aquela residência, saudassem os donos e familiares e em
seguida degustassem de todas iguarias oferecidas.
175
A festa assumia uma estética singular quando o u era realçado com muitos
fogos de artifícios tocados por crianças, jovens e adultos. Os foguetes ficavam a
cargo de jovens e adultos, e as crianças eram responsáveis pelos vários sons de
bombas, traques de bater e as faíscas de fogo das chuvinhas que coloriam o São
João no interior da Bahia. Mas, o elemento principal da festa, que não poderia faltar,
174
Maria Conceição da Silva. Depoimento citado.
175
Depoimentos de João Nunes dos Santos, Esmeraldo Nunes, Vitalina Souza, Elza Froes…
131
era o tradicional forró de serra, principalmente o do cantor Luiz Gonzaga,
responsável pela vibração e alegria, e também o motivador de muitas uniões de
rapazes e moças que, contagiados com o som da sanfona, iniciavam namoros que
poderiam resultar em casamentos.
Na roça era comum encontrar bons tocadores de sanfona, violão, zabumba,
pandeiro, dentre outros instrumentos utilizados para embalar a festa de São João,
mas muitos tocadores, que residiam na cidade, durante a festa junina se
deslocavam para roça e, junto aos tocadores locais, faziam grandes apresentações.
Bernardo, Martinho Veiga, Ioiô, Manoel Twister e Daniel eram conhecidos na cidade
e em muitas áreas rurais por serem considerados bons tocadores de sanfona e
violão e por suas brilhantes participações nos festejos a São João.
176
Outros tocadores que se destacaram neste período foram Francisco e
Chiquinho, domiciliados atualmente na cidade de Salvador, e Pedro que trabalhava
nas minas de Manganês que existia no Onha, atualmente município de Muniz
Ferreira. Foram homens que tiveram suas marcas registradas na memória popular
por serem bons cantadores e bons tocadores de pandeiro.
177
Nos relatos dos feirantes, a festa de São Pedro, considerado o Santo protetor
das viúvas, não era tão animada e divertida como a festa de Santo Antônio e a de
São João. Todavia, no calendário das festas juninas que sacodem a Região do
Recôncavo Sul durante o mês de junho, a festa de São João aparece como uma
festividade ímpar na memória desses sujeitos. Uma das lembranças que motivam
Esmeraldo Nunes a sentir saudade daquelas noites eram as grandes possibilidades
do flerte com as moças que participavam dessa festa. Esses festejos, muitas vezes,
traziam grandes possibilidades de um futuro e promissor namoro.
A possibilidade de namoro também influenciava dona Marcionília e o feirante
João do Couro a se sentirem atraídos por essa comemoração. Outro motivo que
deixava o feirante João do Couro feliz e animado era a grande quantidade de
chapéu de palha que ele vendia no período dos festejos juninos. Este adereço era
um elemento cultural importante do figurino do homem do campo e da cidade
176
Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.
177
Idem.
132
durante a festa de São João. Enquanto as mulheres usavam sortes
178
presas ao
cabelo como símbolo de elegância, charme e de feminilidade, o chapéu de palha era
a marca identitária que compunha a elegância e a beleza do universo masculino
durante os festejos juninos.
Durante esse período intensificava-se o ritmo do trabalho entre os feirantes,
principalmente entre aqueles que comercializavam produtos indispensáveis ao
cardápio das festas juninas como milho, laranja, amendoim, dentre outros produtos
como a lenha da fogueira e o chapéu de palha comercializado por João do Couro.
Os feirantes trabalhavam mais, mas também, ganhava-se mais. Este era um
momento em que a alegria dava um novo tom às práticas de mercadejar,
proporcionando uma dinâmica em que o tempo do trabalho sincronizava-se com o
tempo da festa. A feira-livre de Santo Antônio no mês de junho ganhava uma alegria
e um charme especial.
Embriagados com as cores, os ritmos e os sabores da festa de São João,
entre um forró e outro, e em meio a muitos “Viva o João!”, muitos desses
feirantes, em frente a suas casas ou em casas de amigos e conhecidos, firmavam
novas relações de compadrio nas noites de São João. Essa relação, denominada de
compadres e comadres de fogueira, consistia em um ato em que os “novos
compadres” retiravam dois pedaços de pau acesos da fogueira e os cruzavam de
maneira que esse simbolizasse uma cruz. Para ratificar esse ato, os envolvidos
pegavam um na mão do outro e começavam a saltar por cima dos tições da
fogueira, repetindo o mesmo ato por três vezes consecutivas. Este ritual ainda
tornava-se mais interessante com as cantigas que os compadres e comadres
entoavam no momento que estavam firmando esta relação. Era comum, na região,
homens e mulheres tornarem-se compadres e comadres embalados por esses
versos:
178
Sorte é uma flor feita de papel de seda que muitas mulheres na Região do Recôncavo Sul usavam
presas ao cabelo nas noites de São João como um adereço que contribuíam com o charme e a
beleza do universo feminino.
133
São Pedro, São Paulo
São Felipe, São Tiago
Hoje nós benze fogueira
Amanhã nós somo compade.
Juro por Deus do céu que você é meu compade
Boa noite meu compade, foi São João quem mandou.
A consagração da relação de compadres e comadres de fogueira não era
apenas uma mera brincadeira que fazia parte da festa de São João; ao contrário,
esta relação se traduzia em um firmamento cujas noções de respeito, confiabilidade,
consideração e lealdade se imbricavam e nutriam a perspectiva desses homens e
mulheres manterem laços permanentes durante toda sua vida. Os versos que eles
em tom de muita alegria entoavam nesses momentos, fortemente marcado por uma
representação de símbolos da Igreja Católica, podem nos fornecer elementos sobre
aspectos da religiosidade desses indivíduos. Uma religiosidade festiva, comunitária,
com uma dinâmica própria, constantemente recriada.
As pessoas que os feirantes escolhiam para serem seus compadres e
comadres de fogueira, segundo Esmeraldo Nunes dos santos, eram “pessoas de
consideração”. Essas pessoas de consideração eram escolhidas no seio da própria
família ou pessoas consideradas amigas, conhecidas ou de grande estima. Essas
pessoas eram também escolhidas para batizarem seus filhos, que poderiam receber
este sacramento na roça ou na cidade.
O feirante Esmeraldo Nunes batizou seus dois primeiros filhos na roça e os
demais na cidade. Sua primeira filha, Zenaide, fora batizada na zona rural,
localidade do Palma, e seu segundo filho, Valdelito, fora batizado na fazenda de
propriedade de Martins das Neves. Ele relembra que o pároco da cidade
acostumava se deslocar para as localidades do Cocão, Palma e outras áreas rurais
para realizar batizados de muitas crianças. Os batizados de crianças eram ocasiões
especiais em que compadres, comadres, familiares, vizinhos e amigos se reuniam
para celebrar esse acontecimento com uma “comida especial”.
179
179
Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.
134
Essa comida especial consistia em bolo, galinha de quintal, feijoada e,
sobretudo, o escaldado, que era servida acompanhada com refrigerante, licor e
aguardente. Nos dias de festa na roça, a comida especial não atraía parentes e
amigos para as residências de feirantes como também poderia causar
descontentamento entre membros de uma família. Uma dessas ocasiões que
contribuiu para que Vitalina e suas irmãs ficassem bastante chateadas com seus
familiares foi que em um dia de São João ela e suas irmãs acordaram bem cedo e
se deslocaram para tomar banho no rio Nagô, localizado nas imediações de sua
residência na Jueirana, ao retornar, arrumaram-se na esperança de saborear a
comida especial que sua mãe preparava, cujo prato principal era um escaldado que
parecia está tão delicioso “chega estava amarelinho”. Para a infelicidade de Vitalina
e suas irmãs, na hora do almoço, apareceram alguns amigos e colegas de seus
irmãos e vizinhos que ali se encontravam trocando prosa com seu pai e foram
convidados para desfrutar do almoço que sua mãe, Maria Plácida, tanto se
empenhara em preparar naquele dia. Segundo Vitalina Souza, “enquanto as visitas
foi cuo escaldado que chega tava amarelinho, ela e suas irmãs foi cucarne
de boi frita com arroz e farofa”. Essa situação a deixou muito inconformada porque
na roça eles se alimentavam no dia-a-dia com comidas simples como: carne de boi
fresca, fato, carne de sertão, mocotó, ovos, feijão e arroz, enquanto que a comida
especial só era servida em dias de festa como São João e Natal. Ela confessara que
ficou “puta da vida” naquele São João.
180
Mello Moraes Filho foi um dos primeiros historiadores memorialistas a se
dedicar ao estudo das festas e tradições populares no Brasil. Seu trabalho tornou-se
“original” por registrar as festas populares nos quatro cantos do país, ao mesmo
tempo em que às associava a uma suposta identidade nacional brasileira. Essa
suposta identidade do povo brasileiro se esfacelava quando no decorrer da análise,
o autor mostra que na prática, o exercício dessa nacionalidade ora era
compartilhada por todos, ora passível de expressar diferentes matizes sociais.
Um exemplo dessa realidade é quando o autor mostra um “casamento na
roça”, no interior do Rio de Janeiro, para dar um exemplo das diferentes identidades
culturais entre o “povo”. Os batuques dos escravos e as valsas e quadrilhas dos
convidados dos noivos realizavam-se, de início, em espaços sociais nitidamente
180
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
135
separados. Entretanto, mais tarde, os convidados não resistiram à tentação caindo
nos vários “requebros nacionais”.
181
Pode ser que as festas populares expressem uma identidade nacional. Mas, a
meu ver, elas expressam menos uma identidade de um “povo”, que um local de
encontro, conflitos, mistura e comunhão entre todas as etnias e classes sociais. As
festas trazem consigo traços que definem as regiões, o campo, a cidade e suas
gentes. Os relatos acima mencionados, sobre a presença e o viver dos feirantes nas
festas religiosas, expressam um local de criação, de vivências, de permanência e
mudanças de tradições, espaços re-elaborados e marcados por um continuum fluxo
de idéias, pensamentos, costumes, hábitos, corpos e comportamentos que
demonstram a possibilidade de um significativo trânsito cultural entre as pessoas e
seus variados estilos e jeitos de ser e estar no mundo.
Outra festa religiosa que traduz o jeito de ser e estar no mundo era a festa em
louvor a São José, patrono da família e dos trabalhadores rurais. Realizada na
paróquia do bairro Andaiá, parece que não conseguia atrair tanto as atenções
desses feirantes como a festa de Santo Antônio e a festa de São Benedito. A
feirante Vitalina não costumava freqüentar a festa de São José porque a distância
entre essa paróquia e a localidade em que ela morava era maior em relação à
paróquia de São Benedito e porque esta última era uma festa muito animada.
no dia 16 de agosto, muitos destes homens e mulheres se reuniam para
louvar e celebrar São Roque considerado pela Igreja Católica protetor dos
infortúnios (doenças) que podem acometer o corpo. João do Couro gostava de
participar da festa de São Roque acompanhando a procissão, geralmente realizada
à tarde no Mingau, localidade onde morava; e à noite indo às festas em algumas
residências de amigos e conhecidos. Uma dessas residências, que ele acostumava
freqüentar no período da festa de São Roque, era a casa do Sr. Militão, onde ele se
divertia muito, dançando e degustando as iguarias oferecidas aos participantes da
festa. Às vezes, a festa se estendia por toda a noite e quando o outro dia raiava ele
e outras pessoas ali presentes tomavam café, permanecendo na casa até o meio-dia
quando era servido uma deliciosa feijoada. “O dono da casa tinha aquele prazê de
fazê aquela festinha e dá até armoço”.
181
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979,
p. 21.
136
A participação em diversas festas religiosas na roça ou na cidade, expressava
dimensões dos modos de agir, sentir prazer, pensar e interagir, bem como a
dimensão espiritual de vários feirantes que atuaram nessa pesquisa. Um excelente
momento para se perceber essa dinâmica ganhava vizibilidade numa das
comemorações que mais se destacava na região do Recôncavo Sul, que era a Reza
de São Cosme, conhecida também como a Ladainha de Cosme.
Realizada geralmente nos meses de setembro e outubro, essa festa consistia,
na maioria das vezes, em um ato de pagamento de promessas do dono da casa que
estava oferecendo a ladainha aos Santos Gêmeos ou uma perpetuação de uma
tradição transmitida de geração a geração.
Os preparativos para a festa iniciavam-se logo ao amanhecer do dia, quando
a dona da casa reunia ao seu redor na cozinha, no quintal ou em alguma área
externa da casa, várias pessoas para ajudá-la a cortar o quiabo, matar e depenar as
galinhas, fazer o vatapá e o caruru, arrumar a casa e outras atividades inerentes a
esse festejo. Tudo isso ocorria em clima de muita festa e alegria, e em meio a
conversas e algumas doses de vinho, licor ou cachaça, muitos casos eram
recontados e lembranças de rezas anteriores eram revividas. À noite, a dona da
casa recebia parentes, amigos e vizinhos e uma rezadeira à frente, perante o Altar
dos Santos, assumia o papel de sacerdotisa, entoando ladainhas e benditos em
louvor a Cosme e Damião.
Quando o “caruru era de promessa”, obrigação, devoção ou preceito,
geralmente após a conclusão da ladainha, a dona da casa preparava dois pratos de
caruru e colocava no altar de São Cosme e São Damião, depois estendia uma
toalha branca no chão da sala, colocava sete meninos sentados em forma de círculo
e servia-lhes um prato de caruru acompanhado de porções de arroz, feijão, galinha e
vatapá. A proprietária ou o proprietário da casa, poderia acrescentar ao prato outros
ingredientes como pipoca, rapadura e cana. Os carurus dessa forma, simbolizavam
a presença de elementos religiosos de matrizes africanas também ali presentes. Os
meninos com idades que variavam entre três a sete anos deviam obrigatoriamente
comer o caruru pegando diretamente com as mãos, dispensando o uso de talheres,
e de preferência deveriam ser batizados.
Quando eles começavam a comer, todas as pessoas que estavam na reza,
em meio a palmas, entoavam uma seqüência de cânticos que embalavam e
137
envolviam num verdadeiro frenesi crianças, jovens e adultos que participavam do
louvor a Cosme e Damião. Uma das canções mais cantadas nesses momentos era:
Cosme e Damião vem comê seu caruru, isso é de todo ano
fazê caruru pra tu. Cosme e Damião vem comê a tua galinha
que isso é de todo ano rezá a tua ladainha.
Cosme e Damião, eles dois é meu, foi presente que minha avó
me deu. Cosme e Damião, eles dois é meu, foi presente que
minha avó me deu.
Quando eles estavam terminando de comer o caruru os participantes da festa
começavam a cantar: “Quem comeu caruru lavar a mão, todo mundo comeu eu
não. Quem comeu caruru lavar a mão, todo mundo comeu só eu não”.
Os cânticos em louvor a Cosme e Damião revelavam uma memória que re-
atualizavam uma tradição numa crença religiosa, cultural e o culto a uma
ancestralidade. As rezas eram espaços que de certa forma aproximavam tempos,
diferentes credos religiosos, reuniam e distinguiam os sujeitos sociais. Eram festas
que se repetiam todos os anos e atraíam muitas pessoas. João do couro era um dos
feirantes que se divertia muito nas rezas de Cosme e Damião na roça. Ele relembra:
Era bom, sempre eu gostava, sempre na influência de arranjá
uma namoradinha, né? Era bom, (muitos risos). É tinha a reza,
tinha aquele negócio de candomblé que eu não era chegado,
mais na influência de uma namoradinha ficava por ali. Não
sambava, não odeio, mas também não participava dessas
coisa não. (muitos risos)
182
João do Couro confessou ser um homem que não gostava de caruru,
dificilmente ele comia nas festas de Cosme e Damião. Ele também não era adepto a
bebedeira, apenas consumia uma pequena dose de licor que era servido. O que
tornava essa festa divertida, para ele, era o fato de que as festas dos “Santos
Gêmeos” se revestiam em grandes possibilidades de arranjar namoradas que faziam
com que as noites na roça se tornassem mais aprazíveis.O depoimento desse
feirante é relevante também para se pensar na relação entre o sagrado e o profano
em regiões da Bahia. Estudando essa relação na Bahia, Ordep Serra defende que
182
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
138
A idéia do profano tem sentido numa perspectiva religiosa,
ou seja, no domínio fenomenológico em que se opõe à noção
do sagrado. Essa oposição liga as duas referidas categorias de
forma necessária, numa estreita correlação. Aquele para quem
não há nada sagrado, nada pode considerar profano. A religião
é que divide o mundo nesses dois domínios.
183
A festa das Rezas de Cosme muitas vezes durava toda a noite e se estendia
até a manhã do dia seguinte com sambas, batucadas, às vezes incorporações de
santos e caboclos e outros signos e emblemas que fazem parte do universo das
religiões brasileiras de matrizes africanas ou indígenas. Essa dinâmica reafirmava as
diferentes convicções religiosas dos vários sujeitos que faziam aquela festa, ao
passo que balizava fronteiras e ligava possíveis oposições entre o mundo profano e
sagrado daqueles indivíduos. Mesmo não sendo adepto do candomblé, o feirante
João do Couro prolongava suas noites no período das Ladainhas de Cosme.
A realização do caruru de Cosme e Damião estava menos associado ao
poder aquisitivo e à condição social do indivíduo, do que às convicções religiosas de
cada um. Essa crença tornava-se tão importante que a feirante Vitalina Souza fez
questão de ressaltar que na localidade da Jueirana onde morava, por exemplo, os
donos de grandes propriedades rurais, como o Sr. Ranulfo e o Sr. Adalto, não
acostumavam “fazer ladainhas” para os “Santos Gêmeos”. Diferentemente de Maria
Plácida (sua mãe) e dona Fulô, que menos afortunadas, ainda assim, ano após ano,
cumpriam suas obrigações com Cosme e Damião.
Em sua casa, Maria Plácida acostumava rezar as ladainhas, mas não ofertava
o tradicional prato de caruru aos seus convidados, ela imprimia um caráter
específico àquela festa brindando parentes, amigos e vizinhos com bolos e biscoitos,
acompanhados de café, não permitindo sambas nem batucadas em sua casa. Outra
preocupação dessa feirante era com a penetração de outros valores e práticas
sociais no universo cultural de sua prole. É emblemática a rememoração de Vitalina
sobre a reação de sua mãe quando se esforçava em participar dessas festas:
183
SERRA, Ordep. Rumores da festa: o sagrado e o profano na Bahia. Salvador-Ba: EDUFBA,
2005, p. 53.
139
Minha mãe não freqüentava, não. Porque começava com o
samba e daqui a pouco tava candomblé. a minha mãe via
os povo caboclo e minha mãe dizia assim: “que nada
começou dá caboclo, vombora, vombora, vombora”, eu era
menina e ficava dizendo assim: por quê? Por quê? Por quê?”
Ela “vombora, vombora, aqui não dano não”. Ela botava a
gente na frente e ia embora.
184
Laura de Mello e Souza, num estudo sobre feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial, em uma de suas problemáticas centrais, tenta entender a
especificidade da religião vivida pela população colonial, por ser essa eivada de
reminiscências folclóricas européias e paulatinamente colorida pelas contribuições
culturais de negros e índios. O ponto de partida da autora é seguir a pista de uma
realidade em que a vida cotidiana na colônia era pautada na convivência e
interpenetração de populações de procedências várias e credos diversos. Ela afirma
“É nessa tensão entre o multifacetado e o uno, entre o transitório e o vivido que deve
ser compreendida a religiosidade popular da colônia e inscrito o seu sincretismo”.
185
Salvo as diferenças de contextos históricos, as idéias de Laura de Mello
servem para se refletir sobre os desdobramentos e as várias configurações que a
religiosidade popular assumiu no Brasil. O século XX trouxe consigo nuanças dessa
realidade, que talvez nos possibilite afirmar: é possível entender as crenças e a
religiosidade popular, sobretudo quando se trata da maioria das populações que
habitam a Região do Recôncavo Baiano, como um credo que se desenvolve e se
concretiza dentro de um espaço multifacetado, completado com um conjunto de
práticas que dão cor e forma a um tipo determinado e bem definido de
espiritualidade e materialidade. Aqui penso a vida festiva como um lugar onde
mesclas culturais de crenças e credos diferenciados interagiam, negociavam e se
conflitavam na circunstância da festa.
As Rezas de Cosme e Damião podem ser um exemplo disso, espaços onde
não apenas o sagrado interagia com o profano, mas, também, espaços de conflitos
para aqueles que comungavam de convicções religiosas diversas. Os “por quês” de
Vitalina à sua mãe traduzem a inocência de uma menina ainda em idade juvenil; que
gostaria de saber sobre aquilo que para ela era desconhecido. Mas, os “por quês”,
184
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
185
SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 99.
140
também, problematizam a história e a vida cotidiana, por trazer implícitas questões
referentes a noções e idéias de respeito, tolerância/intolerância e de que cultura
católica pode se falar no Brasil. As festas para os “Santos Gêmeos” eram mais um
momento em que as práticas cotidianas re-elaboravam e subvertiam determinadas
ordens e fronteiras sociais.
Na labuta do dia-a-dia, limites e fronteiras eram balizados através de múltiplas
maneiras de relacionamentos. Apesar de não gostar de participar de Rezas de São
Cosme e Damião que tivesse batuque, samba e outros rituais que lembrassem ou
fizesse parte do Candomblé, Maria Plácida mantinha relações de amizade com um
pai de santo que morava próximo a sua residência na roça, o qual, ela afirmava, era
uma pessoa “gente boa” e gostava muito dele, mesmo proibindo seus filhos de
transitarem nas mediações de seu terreiro e de participarem das festas e cerimônias
que ocorriam. Na cidade da Capela, era comum a perseguição e repressão às
pessoas que professavam religiões de matrizes africanas.
186
Os festejos aos “Santos Gêmeos-amigos”
187
não se restringia apenas à zona
rural, na cidade de Santo Antônio de Jesus, praticamente em todas as ruas, muitas
casas nos meses de setembro e outubro celebravam Cosme e Damião. O grau de
importância e a amplitude desses festejos podem ser melhor compreendidos em
muitos anúncios publicados com freqüência nos meses de agosto (quando
começavam os preparativos para a festa), setembro e outubro, em jornais da década
de 50, sobretudo no Jornal O Detetive, nos quais muitos donos e donas de casas, ao
convidarem os diretores e repórteres do jornal, anunciavam a data em que
realizariam a Ladainha de Cosme e os atrativos que ofereceriam aos participantes
da festa naquela noite. Um dos vários anúncios publicados no Jornal O Detetive
dizia:
Rua Maria Nunes, n 8 Srs. Diretores d’O Detetive, como nos
anos anteriores, faço questão vossas presenças nas festas de
Cosme e Damião, efetuarei dia 30, contando concurso gentis
senhorinhas nos tradicionais e suaves hinos. Além das vozes
excelentes e melodiosas dos jovens Manoel Jambeiro e
186
Sobre as perseguições às pessoas que professavam religiões de matrizes africanas ver o trabalho
Nas Encruzilhadas da Cura… Op. Cit.
187
A expressão: “Santos meos-amigos” foi utilizada por um repórter do Jornal O Detetive em de
Outubro de 1950. AP. Este Jornal consistiu em uma publicação da imprensa local, impresso
semanalmente.
141
Alvorino Vargas, que farão ouvir depois da devoção com suas
modinhas, assim também se manifestarão no gozado
candomblé, nossos camaradas: Ernesto, Lindo, Astério,
Jesuíno, Bernardo Joãozinho e muita gente… O caruru será
um sucesso e a orgia tomará o seu predileto lugar. Aguardo
as vossas pessoas e ficarei satisfeito se ouvir um improviso
d’um representante da imprensa. Gracindo.
188
O anúncio do jornal confirma a preocupação de Gracindo em repetir com
glamour e muita pompa a tradição de rezar as Ladainhas de Cosme e Damião. O
anúncio revela ainda a preocupação com a festa que se completaria com muita
música, batucada, candomblé e orgia. Todavia, algumas expressões que aparecem
nesse anúncio do jornal nos leva a algumas indagações. Como é que o dono da
reza de Cosme faz um convite e já prevê que nessa festa irão se manifestar, “cair no
santo” algumas pessoas convidadas e, ainda, chama de gozado candomblé? Será
que o dono da festa, e quem sabe, o caruru fosse de preceito, trataria seu convite
dessa forma? A orgia a que se refere o convite seria a cachaça ou de fato a
representação que ele fazia de sua festa?
Talvez, pelo fato desse periódico se identificar como um jornal humorístico,
literário e noticioso, o articulista dessa matéria tenha exagerado no quesito humor.
Mas, o que se pode afirmar de fato, é que a maioria dos Carurús de Cosme e
Damião na roça ou na cidade, eram festas que havia muito samba e candomblé.
Nessa perspectiva, nas festas dos santos-gêmeos dimensões do Catolicismo
Popular eram recriadas.
O glamour e a pompa que revestiam algumas dessas Rezas de Cosme e
Damião poderiam ultrapassar qualquer limite e abrir possibilidade de entendimentos
da relação direta entre e poder entre aqueles que rendiam homenagens aos
“Santos Gêmeos”. Em certa ocasião, um devoto desses santos, denominado
Madeira, morador da rua Maria Nunes, 22, festejou Cosme Damião por três dias
consecutivos. O dono da casa, além de oferecer um baile e chulas calorosas de
candomblé aos participantes, contratou uma hábil doceira da cidade do Rio de
Janeiro para confeccionar com arte e beleza um lindo bolo que ele denominara de
Cosme e Damião. Segundo o Sr. Madeira, figuras de alto valor na cidade se
188
Jornal O Detetive, nº 209. 09 de Setembro de 1951, ano 5. Arquivo Particular.
142
deixaram contagiar pelo entusiasmo excessivo que marcara a sua tradicional festa
de Cosme e Damião naquele ano.
189
Os festejos em louvor a Cosme e Damião atribuíam poder e respeitabilidade
aos organizadores da festa. Charles D’Almeida Santana, ao analisar a dimensão das
festas religiosas, sobretudo, as Ladainhas de Cosme e Damião entre os
trabalhadores rurais da cidade de Conceição do Almeida e Santo Antônio de Jesus,
afirma
[…] Que nos atos religiosos, era atribuída dignidade aos
participantes, independentemente de suas idades, sendo que o
organizador, orgulhoso, adquiria respeito. Uma religiosidade de
caráter festivo, que se distanciava do sacrifício, do auto-flagelo,
do pecado e da punição, aproximando-se da felicidade e do
prazer, do colorido integrado ao cotidiano […].
190
O cruzamento das narrativas de João do Couro e Vitalina Souza com os
anúncios publicados no Jornal O Detetive nos leva a afirmar que, tanto na roça
quanto na cidade, as Rezas de Cosme e Damião se traduziam em uma festa
frenética, contagiante, símbolo de prazer, alegria e felicidade, cujas possíveis
noções de pecado eram questionadas ou re-elaboradas naquele momento. Ali
poderia ser o espaço da contradição, mas poderia ser também o espaço da
pluralidade, da harmonia, onde o sagrado e o profano se demarcavam e se
aproximavam, se materializavam e se reafirmavam a partir das relações e práticas
sociais que naquele momento se manifestavam.
Alguns feirantes participavam também das Ladainhas de Cosme na cidade.
Naquela época, não consistia em obrigatoriedade ser convidado pelo anfitrião da
festa para poder participar, ao contrário, era uma tradição todo mundo que chegasse
em alguma casa onde estivesse sendo oferecido o caruru se integrasse à festa.
Outros feirantes tinham um motivo muito especial para gostarem deste período do
ano entre os meses de setembro e outubro.
Durante esses meses os feirantes que mercadejavam produtos que eram
utilizados para compor a festa de Cosme e Damião, como o quiabo e a galinha, por
189
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus-Ba. Nº 212. 30 de setembro de 1951, ano 5. AP.
190
SANTANA. Fartura e Ventura Camponesas. Op. Cit. p. 63.
143
exemplo, tinham suas vendas intensificadas. Augusto laranjeira se sentia muito feliz
neste período, porque as Ladainhas de Cosme e Damião, que ocorriam tanto na
roça quanto na cidade, movimentavam bastante seu comércio, nesses meses ele
vendia muitos pratos de argila chamados caxixi, utilizado para colocar caruru no altar
dos “Santos Gêmeos”, muringas para depositar água e puritanas de Cosme.
Esmeraldo Nunes vendia bastante azeite no “mês de Cosme”. Mulheres e homens
da urbe e da roça para a barraca desses feirantes se dirigiam atrás desses produtos.
Esse era um outro momento onde o tempo do trabalho harmonizava-se com o tempo
da festa de Cosme e Damião.
Não o prazer e alegria faziam parte do mundo festivo dos feirantes. O
“sacrifício”, algumas vezes, era outro componente que convivia ativamente nas
festas e celebrações religiosas que estes homens e mulheres promoviam. Durante a
Semana Santa, dona Maria Plácida acostumava sair da Jueirana a e se deslocar
até a Igreja Matriz para participar da Via-Sacra, e na Sexta-Feira da Paixão ela ia
para participar da procissão. Para sua filha Lina, “mãe era uma mulher que tinha
muita força de fé”.
A conduzia a feirante Maria Plácida a fazer sacrifícios maiores que
transcendiam os limites fronteiriços da Região do Recôncavo Sul. Ela acostumava
viajar de carro, todos os anos, para a Cidade de Candeias, localizada na Região
Metropolitana de Salvador, e chegando um barco a transportava em romaria para
cumprir sua devoção com Nossa Senhora das Candeias. Entretanto, sacrifício maior
dona Maria Plácida fizera em certa ocasião quando decidiu se deslocar a da
localidade onde morava, Jueirana, a a cidade de Milagres de Brotas. Em
companhia de uma filha e seu noivo, um vizinho e sua filha, eles saíram
predestinados a visitar Nossa Senhora de Brotas no Sertão da Bahia.
191
O sacrifício despendido nesses momentos era recompensado com o “ar” de
alegria, prazer e felicidade com que ela retornava para casa. Esse sacrifício tornava-
se possível, também, pelo fato de os filhos já estarem quase todos adultos e
trabalhando. Seu filho Alfredo trabalhava nas minas de manganês no Sapé,
enquanto que Firmino trabalhava nas minas localizadas na Pedra Preta. Essa
191
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
144
situação deixava dona Maria Plácida se sentir segura para sair e deixar sua casa por
vários dias sobre a responsabilidade de seus filhos.
192
O calendário festivo dos feirantes encerrava-se no mês de dezembro com as
festas natalinas e de final de ano. As festas natalinas aparecem na memória dos
atores dessa narrativa como um festejo simples, quando se fazia comida especial,
mas sem a animação, divertimento e as múltiplas possibilidades de “estar bem” que
outras festas poderiam lhes proporcionar. Mesmo assim, os feirantes se
preocupavam em comprar uma roupa nova para a ocasião e sair visitando várias
casas de amigos e vizinhos que montavam presépios em suas residências para
homenagear o nascimento do menino Jesus.
193
O trabalho árduo na roça ou na cidade não significava a ausência de lazer e
divertimento na vida dos feirantes. Na ambivalência entre o profano e o sagrado,
entre Rezas de Cosme e Damião, festa do Padroeiro na cidade e São João na roça,
correndo atrás de Burrinhas e Bumba-Meu-Boi, sem luz elétrica ou meios de
transportes mais eficientes, esses homens e mulheres participavam ativamente de
festas e diversões, souberam aproveitar as condições e possibilidades que eram
possíveis em cada momento, imprimindo-lhe um caráter peculiar que nos permite
perceber os sentidos e usos do tempo livre; mais do que isso, souberam ainda usar
da criatividade para criar uma sincronia efetiva entre o tempo da festa e o tempo do
trabalho.
Nesses encontros de pessoas, culturas, religiões, formas de lidar com as
coisas deste e do outro mundo, uma variedade de combinações ocorreram. As
festas religiosas eram frutos dessas combinações.
4.2 (En)cantos na Cidade.
As “luzes da cidade” seduziam homens e mulheres da roça a participarem
também de outras formas de lazer, festas, diversões e entretenimentos que a urbe
192
Idem.
193
Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.
145
oferecia. Uma das mais tradicionais festas realizada na cidade de Santo Antônio de
Jesus era a Micareta que atraía foliões de várias localidades, por causa das
batucadas, cordões e pranchas alegóricas
194
que atraíam muitas senhoras e
senhores, moças e rapazes a saírem por algumas ruas da cidade cantando e
dançando ao ritmo da folia momesca. A micareta era abrilhantada também com
lança-perfume, ventarolas, confetes e serpentinas que coloriam os três dias de festa
em Santo Antônio de Jesus e, sobretudo, as Quatro Esquinas, local próximo à praça
central da cidade, que era sempre o ponto central dessa festividade.
195
.
Nas Quatro Esquinas, geralmente, se encontrava um serviço de alto falante
que dava banhos de trovoadas nos ouvidos de todos os participantes da festa,
anunciando mais um ano de realização da festa pagã na cidade. A rua 2 de Julho e
a Praça Félix Gaspar tornavam-se verdadeiros arco-íris noturnos ao apresentarem
extensa e magnífica rede de lâmpadas multicores incentivando assim, que os bailes
se prolongassem até a madrugada.
Os cordões de adultos saíam das diversas ruas da cidade levando muita
animação e brincadeiras até as Quatro Esquinas, enquanto que os cordões infantis,
a exemplo do Cordão Princesas Infantis, exibiam evoluções denominadas caracóis
artísticos em saracoteios e bailados encantadores. Nos dias que antecediam a festa,
havia ainda a escolha da rainha e das princesas da micareta que se exibiriam pela
cidade nos dias da folia. Toda a festa era animada ao som de belas orquestras e um
ótimo serviço de doces e gelados, complementada com variadas bebidas que davam
um sabor muito especial à folia.
No final dos anos 40 e início dos anos 50, a micareta de Santo Antônio de
Jesus fora ameaçada de cair no ostracismo em face da falta de recursos do poder
público para realizá-la. Esta situação causou profunda indignação em alguns
moradores da cidade, sobretudo moças e rapazes que, ávidos pela folia, não
pouparam esforços em se organizarem para reivindicar a realização dessa festa. Em
uma correspondência enviada ao Jornal O Detetive, em 22 de janeiro de 1950, os
194
Prancha era a denominação dada ao carro alegórico que desfilava pelas ruas da cidade exibindo
em sua plataforma, moças em trajes carnavalescos que dançavam ao som das marchinhas de
carnaval. Nos anos 40, 50 e 60, a Prancha era um caminhão revestido de madeira compensado e
enfeitado com muitas luzes e muitos outros adereços. Anterior a este período, as pranchas alegóricas
eram movidas a carros de boi.
195
Sobre as peculiaridades da festa da Micareta na cidade de Santo Antônio de Jesus, ver os jornais
O Paládio, O Detetive, A Voz das Palmeiras… Esses periódicos trazem vários aspectos dessa festa
na cidade.
146
senhores Lino, Ernesto, Rômulo, Lauzinho, Nelson, Salvador, Avelino, Paulo e Regis
escreveram:
Exmº Sr. Diretor d’O Detetive saudações. Nós abaixo
assinados, sempre e sempre estivemos francamente ao lado
dos foliões carnavalescos e continuaremos intransigentemente
coesos neste modo de pensar. Não havemos de morrer, nem
tampouco chorar por causa do bife, dez cruzeiros! Por
conseqüência, tomamos a resolução definitiva de não deixar o
carnaval em nossa cidade das Palmeiras passar no ostracismo
em que se tem conservado nestes últimos anos; pelo que,
vamos trabalhar para fazer fortes e decentes brincadeiras
carnavalescas, contando desde já com a colaboração e
indispensável propaganda d’ O Detetive.
196
Apesar da carestia dos preços de alimentos, como a farinha de mandioca e a
carne que assolaram a cidade no início dos anos 50, os jornais O Detetive e o
Paládio tornavam público as reivindicações de muitos moradores e moradoras da
cidade, solicitando a realização da festa. A reivindicação dos moradores locais foi
atendida e a micareta realizada, apesar de não demonstrar a grande pompa e
vibração de anos anteriores.
A micareta realizada na cidade no ano de 1951, apesar de não corresponder
às expectativas de alguns, recebeu seus foliões com muito frevo nas Quatro
Esquinas. A cidade assistiu às apresentações dos Cordões Inocentes em Progresso,
da rua do Calabar, Garotas em Folia, da rua da Bela Vista, e o Batuque Malandros
Abandonados, da rua da Linha. Infelizmente, neste ano não saiu no primeiro dia o
Cordão do Pereira, mais conhecido como Clube do Silêncio, que acostumava
romper o sono da madrugada acordando todos para a folia momesca.
197
Segundo um jornal local, a pouca animação que marcara a micareta em 1951
era sintoma de um mal vindo de longe, do Rio de Janeiro, a capital do carnaval
brasileiro, onde também não houvera animação naquele ano. Na Bahia pela mesma
forma. Para o autor da matéria, era o custo de vida e a falta de trabalho as únicas
causas de toda a falta de animação, “porque ninguém se sente alegre com o bolso
196
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 22 de Janeiro de 1950. Nº 128, ano 3 – AP.
197
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 08 de Abril de 1951. Nº 188. Ano 4 – AP.
147
puro e desempregado”. Para acabar de completar o quadro de desanimação, a
chuva colocara água no brinquedo dos foliões.
198
Mas, nem tudo fora desânimo durante aquela micareta, no segundo dia de
folia, o domingo, todos os Cordões reuniram-se em frente à barbearia Cristal, na
Praça Padre Mateus, para receberem os seus prêmios em brindes e dinheiro
oferecidos pela Loja Brasil e outras casas comerciais que haviam nesta praça.
Houve muitos gritos, ovações e palmas. O serviço de alto falante não parou durante
toda a festa tocando discos animados e novos hits para os foliões.
À noite houve vários bailes na Sociedade dos Artistas, no Mercado Municipal,
na Sociedade Filarmônica Amantes da Lyra, no Sindicato Fumageiro e no Prédio
Escolar, todos eles, segundo a matéria do jornal, foram bailes muito animados que
se prolongaram até a “alta” madrugada.
199
FIGURA 09 – 1º TRIO ELÉTRICO
FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (1948)
198
Idem.
199
Idem.
148
Parece que no final dos anos cinqüenta e início da década de 60, a tradicional
micareta de Santo Antônio de Jesus ganhara um novo “vigor” com a introdução do
trio elétrico na festa momesca. Em 1958, o trio elétrico Palmeiras, de propriedade do
senhor Garrincha, fazia sua primeira apresentação na cidade animando foliões
de todas as idades. Em 1961, a cidade contava com a presença de mais um trio
elétrico, o trio Brasil, cujo proprietário era o senhor Diguinha.
200
Embora, segundo a
memória fotográfica, já em 1948 o primeiro trio elétrico teria aparecido na cidade.
Em suas lembranças do tempo que participava da micareta em Santo Antônio
de Jesus, a feirante Elza Froes da Fonseca relembra que essa era uma festa muito
boa e que o povo brincava muito. “Era uma festa alegre, divertida e que não havia
violência como as festas de hoje”. Na narrativa de pessoas que participavam dessa
festa na urbe, um dos momentos mais marcantes na Micareta em Santo Antônio de
Jesus era o desfile das Pranchas Alegóricas que exibiam beleza e alegria,
disputando a atenção dos foliões na cidade.
No ano de 1957, a senhorita Maria Clarice Santiago Almeida e sua irmã,
Maria da Glória, ambas atrizes que se apresentavam em peças de teatro no Cine
Glória e no Cine Rex, se empenharam em se apresentar na festa da micareta e
concorrer no concurso das Pranchas Alegóricas. Para realizar esse objetivo, Maria
Clarice e sua irmã destinaram uma alta quantia de dinheiro para contratar um
homem estrangeiro, denominado de Cheik, para confeccionar o carro alegórico no
qual elas iriam desfilar. O segundo passo foi comprar os tecidos na cidade de
Salvador para costurar as roupas que ambas iriam usar nos dias da folia da
micareta.
201
A roupa foi confeccionada com tecido Laquê vermelha e azul, com muito
brilho e muita Lantejoula. Elas usaram uma Calça cujo comprimento ia até o joelho e
uma blusa com muitas flores realçadas com Lantejoula. Para animar os foliões e
conquistar o júri, as duas irmãs contrataram uma Banda de jazz da cidade de
Salvador, considerada muito boa, cujos integrantes eram cegos que faziam parte do
Instituto de Cegos da Bahia, e durante os três dias de folia ficaram hospedados no
Hotel Palmeiras.
200
Depoimento Edmilson Barbosa Bittencourt. Músico. Aposentado. Praça Silvestre Evangelista
338, Santo Antonio de Jesus, 64 anos.
201
Depoimento Maria Clarice Santiago Almeida. Aposentada. Rua: Avenida Luiz Viana nº 596, Santo
Antônio de Jesus, 69 anos.
149
Essa Prancha Alegórica, denominada por elas de Pássaro Cativo, além da
presença delas e de outras moças que dançavam e exibiam suas performances e
formosuras na plataforma do carro (caminhão), exibia como destaque uma gaiola
com uma menina de seis anos de idade que, sentada dentro da gaiola, representava
os “sentimentos” de um passarinho quando está preso em seu cárcere. A música
composta para representar a temática escolhida por elas e animar a festa na cidade,
também vitoriosa naquele ano, trazia os seguintes versos:
Se eu fosse um passarinho
Escolheria meu alçapão
Eu comeria o meu alpiste
Na palminha da tua mão. (bis)
202
A micareta em Santo Antônio de Jesus consistia em espaço de festa e alegria,
mas também, em espaço de protestos, contestação, espaço na qual múltiplas
dimensões do viver humano se imbricavam. As modinhas cantadas pelas Pranchas
Alegóricas faziam com que os foliões não cantassem e dançassem, como
também refletissem sobre temas e questões que faziam parte do universo da
existência humana na contemporaneidade, desde a carestia dos preços,
desemprego, a questões mais subjetivas, como o exemplo da modinha da Prancha
Alegórica acima citada, que ao cantar a música Pássaro Cativo, metaforizava
questões referentes a dimensões de liberdade dos seres humanos e outros seres.
Talvez por serem mulheres que vivenciavam noções de liberdade fortemente
marcadas por padrões e normas ainda patriarcais, resolveram levar essa modinha
para as ruas durante a festa momesca tendo em mente aquilo que Durval Muniz de
Albuquerque Júnior diz ser o carnaval.
O carnaval é o momento de brincar com os códigos sociais, de
ultrapassagem de fronteiras estabelecidas pelos costumes,
valores e hábitos, momento de invenção do novo, de criação,
de confusão de fronteiras, de horizontalização das relações e
202
Idem.
150
questionamentos das hierarquias, momentos de brincar com as
identidades e construir o diferente.
203
Essas representações podiam ser vistas nas fantasias, nas danças, nos
gestos, nos nomes dos cordões e batucadas, nas modinhas e também na própria
forma de ocupar os espaços da rua naqueles dias de folia. João do Couro era um
feirante que não “pulava” a micareta, mas, às vezes, ia para a festa com sua esposa,
levar os filhos ainda pequenos para apreciar a folia, mas, logo cedo ele retornava
para casa. A participação mais efetiva dele nessa festa era como comerciante,
porque ele aproveitava para vender chapéu de palha no meio da rua durante os três
dias de festa na cidade. Nos anos 50 e 60, era comum as pessoas usarem chapéu
de palha na cabeça como um elemento a mais que compunha o figurino e as
fantasias de alguns foliões, também, na festa de Momo. As fronteiras entre a folia de
momo e a ocupação do espaço na rua eram também demarcadas com a
participação efetiva do feirante João do Couro vendendo um dos produtos mais
tradicionais do seu ramo de negócios.
A experiência em vender chapéu de palha em micareta não se restringia à
cidade da Capela, João do Couro acostumava se deslocar para a tradicional
micareta da cidade de Feira de Santana, considerada por alguns a mais antiga
micareta do Brasil. Chegando lá, juntava-se a outros vendedores residentes daquela
cidade, expondo no meio da feira, localizada na Rua Senhor dos Passos, chapéus
de palhas que, segundo ele, “fazia boas vendagens naquele tempo”.
O feirante Esmeraldo Nunes dos Santos não participava muito da festa da
micareta em Santo Antônio de Jesus, mas, nos anos que ele ia, achava muito
bonita, mas não dançava, ficava apenas olhando outros foliões realizar suas
performances. Diferentemente desse feirante, Vitalina Souza ia com freqüência à
Micareta da cidade e sentiu-se muito feliz quando completou a maior idade, porque
ia para a festa com as amigas Noêmia, residente atualmente na cidade de São
Paulo e Lina, que aproveitava a liberdade de estar sem sua mãe na festa para flertar
203
ALBUQUERQUE, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo: uma história do gênero
masculino (Nordeste 1920-1940). Alagoas: Catavento, 2003, p. 80-81. Sobre essa questão ver
também Mikail Baktin quando diz que as festividades tiveram sempre um conteúdo, um sentido
profundo, exprimiram sempre uma concepção de mundo. In: A cultura popular na Idade Médiap.
7.
151
com o feirante Augusto Laranjeira, bastante conhecido pelas moças da roça e da
cidade por sua fama de ser um grande namorador.
Entre alguns empurrões e algumas brigas, para Vitalina Souza, um dos
momentos mais marcantes da festa era ver os Cordões, repletos de gente,
chegarem ao seu destino final, nas Quatro Esquinas, quando havia uma acirrada
disputa entre eles para obter o título de melhor Cordão do ano.Muita gente se
aglomerava nas Quatro Esquina, na Praça Padre Mateus e imediações para
torcerem e vibrarem por seus Cordões prediletos. Esse espetáculo era apreciado por
sujeitos mais abastados da cidade que acompanhavam toda a movimentação e o
desenrolar do concurso das sacadas de seus sobrados, e o povo, em geral ao rés
do chão da praça nos passeios e calçadas, se divertia muito e, entre um flerte e um
olhar, aproveitava para paquerar e namorar.
204
FIGURA 10 – CORDÃO DE MICARETA
FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1950)
Parece-nos que, de fato, as Pranchas Alegóricas e cordões como Chiquita
Bacana, Garotas em Folia, Inocentes em Folia e a Batucada Malandros
204
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
152
Abandonados eram verdadeiros espetáculos a parte que faziam a alegria dos
foliões. O feirante Augusto Laranjeira desfilava em cordões e batucadas, às vezes,
no comando dos mesmos como puxador. Esses cordões corriam a cidade por
grandes distâncias a exemplo de cordões que saíam do arrabalde do Andaiá indo
até o bairro do Cajueiro e vice e versa.
O que nos chamou atenção nestes cordões, a exemplo do Bloco Chiquita
Bacana, é que para o folião se inscrever deveria se dirigir à sua sede localizada no
Palmeira Bar munido dos seguintes documentos: atestado de conduta, certidão de
Idade que provasse ser maior de 21 anos, atestado de saúde, provando não sofrer
do fígado, nem de moléstias contagiosas, atestado de independência social e
jurídica e, sendo casado, ainda o consentimento da esposa com firma reconhecida
pelo tabelião local.
205
Pelo menos no Bloco Chiquita Bacana não era o cil o folião ingressar
devido aos pré-requisitos que a direção desta entidade exigia. Tudo leva a crer que
esses cordões se organizavam reproduzindo as distinções sociais que aquela
sociedade apresentava, com fortes elementos de divisão de classe social. O
atestado de independência social e jurídica pode ser um forte indicador que balizava
essas fronteiras.
Essas fronteiras sociais também eram demarcadas nos vários espaços onde
se realizavam os bailes durante a folia momesca, Clube como o Palmeirópolis era
freqüentado pela alta elite da cidade e de outras localidades, enquanto que as
camadas populares citadinas se divertiam nos bailes que ocorriam nas sedes das
filarmônicas. Parece que essas barreiras desestimulavam a presença de feirantes
nos bailes durante o período de realização da Micareta.
Voltando aos prazeres que esta festa podia proporcionar, Vitalina Souza não
“namorava muito” na micareta porque tinha medo de ocorrer com ela o que
acontecia com outras moças. As moças que namoravam “demais”, segundo ela;
“namorava, namorava, namorava, aconteceu, ficou lá, aí a pessoa ficou
excluída”. Parece-nos que a feirante convivia com o medo de engravidar, enfrentar
“a língua do povo” e possíveis desavenças e desafetos com seus pais. Para ela,
essa situação poderia significar um possível estigma social e isso era algo que ela
205
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 19 de Novembro de 1950. nº 168, ano 4. A.P.
153
não desejava atrair para si. A feirante também revelou que não “dançava” nas festas
de micareta.
206
A experiência do não dançar aparece em alguns dos relatos dos sujeitos que
participavam da micareta na cidade. Ao que me parece, o ato do “não dançar” que
emergiu na memória destes homens e mulheres, a partir de suas narrativas, revelam
um momento fortemente marcado pelas diferenças e singularidades no dançar de
pessoas oriundas de universos culturais diferenciados. É possível que o jeito do
homem do campo, considerado “jocoso” por algumas pessoas, influenciasse numa
possível inibição. De fato os feirantes estavam mais acostumados a ouvirem e
dançarem hits de forrós e músicas mais próximas do contexto cultural ao qual
pertenciam. Os homens e mulheres da cidade da mesma forma.
Nessa perspectiva, acredito ser interessante pensar a festa da micareta
enquanto um espaço plural e singular, plural porque todos dançavam sim, mas,
dançavam cada um a sua maneira e, dançar cada um a sua maneira, significava
singularizar um espaço cujas diferenças eram presentes e marcantes. Mas, a própria
diferença abria possibilidades de criação de um jeito de ser e estar na festa, que
contribuía com a “sincronia e harmonia” que reinavam durante os dias de folia em
uma das principais micaretas existente no Recôncavo da Bahia.
Um outro grande atrativo para aqueles que participavam da Micareta em
Santo Antônio de Jesus era ver as luzes multicores que iluminavam a Praça principal
da cidade, as Quatro Esquinas, Praça Félix Gaspar e localidades próximas no
período da folia momesca. Em Salvador, a luz elétrica era um atrativo desde o final
do século 19 e a iluminação de alguns monumentos públicos tornou-se uma nova
forma de lazer, a exemplo da iluminação do monumento ao 2 de Julho, situado no
Campo Grande, que foi transformado em grande espetáculo.
207
Na cidade da Capela, a energia a lenha chegara ainda nas primeiras décadas
da República, no ano de 1928, através da usina, cuja máquina fora comprada na
Alemanha pelo senhor Rosalvo. Nos anos 40 e 50, a energia era fornecida do Rio
Paraguaçu (da região de Bananeira) na cidade de Muritiba.
208
Em 11 de novembro
206
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
207
FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário
em Salvador, 1897-1930. Salvador-Ba: EDUFBA, 2002, p. 42.
208
Amarílio Monteiro Orrico. Ex-vereador. Aposentado. Trav Castro Alves 67, Santo Antônio de
Jesus, 93 anos.
154
de 1960 o poder executivo assina convênio com a Companhia de Eletricidade da
Bahia (COELBA)
209
. Em 23 de Junho de 1962 inaugurou-se a energia elétrica na
cidade fornecida pela Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso.
210
No final dos anos 20 e nos anos 30 do século passado, apenas a Praça
principal da cidade, Praça Padre Mateus, era assistida com o serviço de energia
que, pela pouca potencialidade, fornecia eletricidade até as 10 horas da noite,
após esse horário a praça costumava a voltar à escuridão.
Tudo nos leva a deduzir que o processo de “expansão” desse serviço, no final
dos anos 40 e início da década de 50, seguiu uma ordem baseada em distinções
sociais, cujas primeiras ruas e bairros beneficiados com esse serviço foram aqueles
mais próximos do centro da cidade, como é o caso da Rua Rui Barbosa, Avenidas
Barros e Almeida e Luiz Viana, Rua dos Expedicionários e Bairro São Benedito, local
onde os moradores numa tarde de domingo fizeram uma grande festa para saudar o
prefeito Antônio Fraga pela iniciativa de ampliar a rede de iluminação pública até os
quadrantes daquele subúrbio.
Para a realização da festa, fora instalada na localidade um serviço de alto-
falante. Pessoas consideradas ilustres na sociedade santantoniense, como o artista
Adelino Costa Bitencourt, Dr. Antônio José de Araújo e a senhorinha Zilda de Castro
Araújo, no Coreto localizado no meio da referido bairro, na ocasião usaram a palavra
para exaltar a figura do prefeito pelos seus feitos.
O bairro estava ornamentado e fora oferecido à população um banquete
composto de sanduíches, licores e cerveja. Quando o prefeito proferiu seu discurso
foi ovacionado pelas pessoas que ali se encontravam e, em meio a confetes,
serpentinas e flores, ouviram o troar de várias girândolas dos foguetes. Houve várias
e atrativas diversões naquela tarde e, ao retornar para a sua residência à noite, o
prefeito Antônio Fraga fora acompanhado por uma passeata ao som das
emocionantes partituras tocadas pelas Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos
Gomes.
211
Ruas mais populares e mais afastadas do centro da cidade, como é o
exemplo da Rua do Calabar, só foram beneficiadas com o serviço de energia elétrica
209
Lei n. 17 de 1960. Livro de Leis, Decretos e Portarias. p. 141. APMSAJ.
210
Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.
211
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 16 de Abril de 1950, nº 140, ano 3. AP.
155
no ano de 1963, enquanto que a expansão desse serviço nas localidades rurais
fora posta como uma meta a ser cumprida pelo setor público nos anos 80 do século
XX. Além de uma necessidade às novas exigências que a vida urbana anunciava, a
luz elétrica proporcionava a inserção de homens e mulheres da roça em novas
formas de diversões, lazer e entretenimento que a urbe poderia lhes oferecer.
Uma dessas novas formas de entretenimento tornava-se possível porque nos
anos 50 e 60 a cidade de Santo Antônio de Jesus possuía o Cine-Teatro Glória e
Cine Rex que exibiam várias atividades culturais na cidade.
FIGURA 11 – CINE-TEATRO GLÓRIA
FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1950)
156
O Cine-Teatro Glória inicialmente fora uma construção arquitetônica de
propriedade da Filarmônica Amantes da Lyra que começou a construí-lo com o
objetivo de sediar essa instituição. A construção ficou abandonada e os
protestantes, então, queriam comprá-la com o intuito em transformá-lo num templo
religioso. Sabendo desta notícia, o pároco local expressou sua insatisfação dizendo
não querer os protestantes perto de sua Igreja. O iminente conflito fora resolvido
mediante a compra dessa construção, pelo padre da cidade, que custara 4 contos
de réis. A construção por vários anos ficou novamente abandonada servindo de
abrigo e hospedagem para pessoas que vinham de várias regiões do Nordeste
fugindo da seca. Logo após, o senhor Salustiano Almeida Sampaio tornou-se
proprietário desse imóvel transformando-o em Cine-Teatro, espaço cujo nome era
uma homenagem a sua primeira esposa que se denominava Glória.
212
Este teatro serviu de palco para várias apresentações na cidade. A atriz Maria
Clarice Santiago Almeida, filha de pais que moravam na zona rural, foi morar na
cidade por decisão de sua mãe que queria que ela desse continuidade aos estudos.
Uma das grandes paixões da adolescente era cantar, dançar e representar, sonhos
que ela conseguiu realizar encenando várias peças teatrais na cidade de Santo
Antônio de Jesus.
Uma das peças que ela e sua irmã – que também reunia essas características
e um grande talento para a música encenara no Cine Rex tinha como tema central
o desaparecimento de seus pais quando ainda estavam pequenas. Ao relembrar
momentos significativos para ela e a platéia que lhe assistia, ela recorda uma parte
final do texto em que ela representava uma moça chamada Dulce e contracenava
com sua própria irmã que na peça fazia o papel também de sua irmã, denominada
de Ivete, e uma vendedora de flores que dizia assim:
Vendedora: Com licença moça, quer fazer um favor de comprar
umas flores?
Dulce: Oh! Minha senhora, não é favor comprar tão belas
flores, é assim essa florzinha roxa como a saudade, fica
maravilhosa no cabelo.
Ivete: Mas Dulce, tu encontras todo dia o Aldo e anda sempre
com saudade? Ah é! O amor é assim minha filha.
212
Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.
157
Dulce: Não fala em Aldo Ivete, não fala em amor, a saudade
que eu sinto é de minha mãe.
Vendedora: A mocinha não tem mãe?
Dulce: Pensou que eu tenho minha senhora? É esse o grande
infortúnio da minha vida. Como se chamava seu marido?
Vendedora: Paulo Campos
Dulce e Ivete: Paulo Campos?
Vendedora: Vocês são minhas filhas Dulce e Ivete.
Dulce e Ivete: Mamãe, minha mãe.
213
Ao final da peça, com o som de uma música que dizia em seus versos “Ando
triste, a noite desce…”, uma comoção geral tomou conta do público, que ao final
estava a chorar. O sucesso fora tão grande que elas apresentaram este espetáculo
também na cidade de Cruz das Almas, localizada na Região do Recôncavo Sul da
Bahia.
A atriz Maria Clarice Santiago relembra também de um musical que ela
apresentou no Cine Glória que homenageava os estados do Brasil. Ela ficou com a
responsabilidade de representar o Estado do Pará. Para essa apresentação, seu
figurino fora um vestido amarelo de babado com uma faixa amarrada ao meio. Os
versos da música encenada por ela diziam:
Da borracha preciosa indústria
Outro império mais vasto não há
Mil riquezas ocultam em meu seio
Pois eu sou o Eldorado Pará.
214
Maria Clarice Santiago afirma que apesar da maioria dos freqüentadores dos
espetáculos no Cine-Teatro Glória e no Cine Rex serem pessoas oriundas da
cidade, pessoas da zona rural também freqüentavam. Dentre os sujeitos desta
pesquisa não apareceu nenhuma evidência de participação deles nos espetáculos
teatrais, parece que o teatro era uma linguagem que não os atraia, diferentemente
213
Maria Clarice Santiago Almeida. Depoimento citado.
214
Idem.
158
do cinema que, entre uma incursão e outra, aparece nas experiências de lazer e
entretenimento dos feirantes.
Aproximadamente sete meses depois de estrear em Paris, na França, chega
ao Brasil, em 28 de dezembro de 1895, o cinematógrafo pelo porto do Rio de
Janeiro, o maior centro cultural do país. Dois anos depois, Salvador seria palco da
primeira sessão pública do cinematógrafo, em 04 de dezembro de 1897, realizada
no Theatro Polyteama Bahiano.
215
Em Santo Antônio de Jesus, as primeiras
exibições de cinematógrafo ocorreram nos anos iniciais da década de 30 do século
passado. Esse fato contribuiu para que essa urbe, junto à cidade de Nazaré das
Farinhas, que inaugurou o cine Rio Branco em 1927, fosse uma das primeiras na
Região do Recôncavo Sul a proporcionar aos seus habitantes essa nova invenção
que iria revolucionar o “mundo do lazer” no século XX.
Era comum na imprensa local se encontrar anúncios informando aos leitores
a programação cultural das diversas apresentações e exibições que ocorreriam nos
Cines da cidade e também em outros espaços. Em 20 de maio de 1951, o Jornal O
Detetive trazia a programação do Cine-Teatro Glória:
Hoje no Cine-Glória
“O Máscara de Ferro”
Com
Louiz Wayward
Duelo! Sensação! Romance!
Tudo indica que nos anos 50 esse filme reunia ingredientes apetitosos que
estimulavam várias pessoas a saírem de suas residências e se dirigirem ao cinema.
Um filme que trazia para seus espectadores duelo, sensação e romance,
possivelmente seduzia moças e rapazes ávidos por aventuras e novidades. Os
filmes de Bang Bang causavam grande frison e expectativa na cidade.
Para atrair pessoas de todas as classes sociais, era prática comum, em Santo
Antônio de Jesus, colocarem cartazes em vários pontos estratégicos, sobretudo na
praça Padre Mateus, nas Quatro Esquinas e outras esquinas da cidade, anunciando
215
Fonseca. Op. Cit. p. 77-80.
159
os filmes, peças de teatro, luta de box, dentre outros eventos que ocorreriam nos
Cines. Para aumentar o prazer dos telespectadores nestes eventos, vendia-se, em
frente a esses Cine-teatros, guloseimas, pipocas e roletes-de-cana.
216
Vitalina Souza foi uma vez ao cinema no Cine-Glória com uma amiga
chamada Glória, que reside atualmente em Salvador na Bahia. O primeiro e único
filme que ela assistiu nas telas do cinema foi Tarzan, do qual ela gostou muito, e
nessa exibição estava presente muita gente da cidade. Ela declarou que aquilo era
uma bela novidade, e o que a impedia de freqüentar mais vezes as sessões de
cinema era o fato de morar na roça e não gostar de ir para a matineé, porque o
charme do cinema estava em ir à noite; para ela não fazia sentido se deslocar da
roça para ir ao cinema à tarde.
Um balanço feito dos anúncios da imprensa local, nos primeiros anos da
década de 50, sobre as exibições de filmes na cidade, mostra que elas ocorriam
com freqüência e sempre à noite. Entre os dias 08 e 13 de Julho de 1951, O Cine-
Teatro Glória exibiu dois filmes que se iniciavam às 19:40 hs. Um era o
extraordinário filme colorido: “O Menino dos Cabelos Verdes”, estrelado por Pat
O’Brieu Rober Rijau, e o outro era “A Vênus de Fogo” com Mercedes Borba e
Fernando Fernandes, baseado no Bolero “hipócrita”, ambos custavam Cr$ 5,00 valor
do bilhete para a sala principal e Cr$ 2,00 para o puleiro.
217
O horário das exibições tornava-se impróprio para Vitalina Souza porque ela
não dispunha de meios de transportes que pudessem transportá-la de sua
residência até o cinema. O feirante João do Couro também fora às sessões de
cinema poucas vezes. Ele recorda uma das passagens da sua vida quando estivera
num cinema na cidade de Feira de Santana, Sertão da Bahia:
Uma vez mesmo eu fui num cinema em Feira de Santana
com Dedé, um amigo meu, mas aí, antes de terminar o filme,
eu tava doido pra ir embora, pra ir dormir, pra ir pra pensão, no
cinema eu não gostava de nada.
218
216
Rolete-de-cana o pedaços de cana cortados em formas arredondadas e colocados espetados
em uma tala de bambu. Na Região era comum encontrar rolete sendo vendido em todos os lugares
onde havia festa.
217
Jornal O Detetive. 08-13 de Julho 1951, nº 200-201. Santo Antônio de Jesus. AP.
218
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
160
A narrativa do feirante nos permite chegar à conclusão que a Sétima Arte era
algo que não lhe seduzia. Nesse momento, cabe indagar: por que o cinematógrafo
não conseguira seduzir o feirante João do Couro?
O historiador Raimundo Nonato da Silva Fonseca, num estudo sobre a
chegada do cinematógrafo em Salvador e sua inserção social na vida dessa
população no período compreendido entre os anos 1897-1930, mostra que o cinema
era um elemento que fazia parte do projeto modernizador que iria contribuir com a
mudança de hábitos dos baianos na esfera do lazer. Porém, ele chama atenção
Que é necessário nos remetermos a momento histórico cultural
de datação pouco rigorosa. O fenômeno exige, por si só, que
compreendamos a modernidade enquanto um projeto amplo,
de conotações culturais, estéticas, sociais, raciais, e políticas
cronologicamente imprecisas.
219
O cinematógrafo chegou ao Brasil e à Bahia como um elemento que fazia
parte do projeto modernizador das cidades brasileiras iniciado ainda no culo XIX e
mais intensificado nas primeiras décadas do culo XX. O cinema trazia consigo
mudanças no comportamento, nos valores e nos costumes da sociedade baiana. Ir
ao cinema significava apreciar uma das formas de lazer moderna, que exigia uma
norma, uma disciplina, um jeito de portar-se, uma maneira nova de ver o mundo.
Uma das funções do cinematógrafo era civilizar a população, propiciar-lhes a
incorporação de novos hábitos e costumes que estivessem dentro de uma lógica
considerada “bons hábitos”. Era também uma forma de “civilizar” através da arte.
Talvez o ritmo do cinematógrafo fosse completamente diferente do ritmo do
feirante João do Couro que estava acostumado com outras formas de lazer e
divertimento. O lazer e o entretenimento desse feirante era vivenciado sobre uma
outra forma de interação, em ambientes que exigiam uma performance mais livre e
efetiva, outras maneiras de portar-se, outros tipos de comportamento que
possibilitavam outras formas de sociabilidades. A “escuridão” das festas na roça o
seduzia mais do que o “escurinho” do cinema.
219
FONSECA. Op. Cit. p. 22.
161
O preço do ingresso que dava direito à entrada nos cinemas da cidade não
era tão acessível às condições de alguns grupos menos abastados. Alguns feirantes
que gostavam da sétima arte e às vezes não tinham dinheiro suficiente para pagar o
bilhete que dava acesso à sala principal, onde era exibido os filmes, forjaram uma
maneira que lhes permitia a entrada no cinema e a apreciação do filme que estaria
em exibição.
No Cine-Teatro Glória, existia uma parte que era denominada de Puleiro ou
Galinheiro; essa era uma parte que ficava atrás da tela e era reservada para as
pessoas de baixa renda. Geralmente o valor do bilhete, para quem estava assistindo
o filme no Puleiro ou Galinheiro, custava aproximadamente 40% do valor real de
quem freqüentava a sala principal. Os freqüentadores do puleiro eram obrigados a
se acomodarem em bancos de madeira, enquanto os que pagavam o valor real
sentavam-se em cadeiras. O feirante Augusto Laranjeira lembra com muita alegria a
experiência de assistir filmes atrás da tela, porque as imagens eram vistas ao
contrário. Para aqueles que eram alfabetizados, tinham que ler a legenda ao
contrário. Para os que não eram, como é o caso desse feirante, o desafio das
possíveis leituras que o cinematógrafo permite se ampliavam.
Não era a exibição do filme que atraía a atenção e o interesse de várias
pessoas. Os casos e episódios que poderiam acontecer nas salas de cinema ou fora
delas traziam encantos que concorriam com a própria tela. O feirante Augusto
laranjeira lembra de um desses episódios que aconteceram no cine Glória, em que
um homem estava assistindo a um filme cuja temática tratava de índios. Em um
determinado momento do filme, o sujeito passou a cochilar e quando despertou
olhou para a tela, viu uma fogueira e começou a gritar: “Olha o incêndio, olha o
incêndio”. Todos que estavam assistindo ao filme naquele dia saíram correndo da
sala do cinema.
220
É possível entender este episódio numa perspectiva das discussões do
historiador Raimundo Nonato, quando fala dos acontecimentos cotidianos ocorridos
nas salas de exibição dos cinemas soteropolitanos, quando afirma que “Uma
220
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
162
diversão que atraía um público tão diversificado, para um espaço físico de certa
forma pequeno, favorecia episódios de várias naturezas”.
221
De fato, as salas de cinema atraíam um blico bem diversificado, a cidade
de Santo Antônio de Jesus apresentava um caráter bem peculiar em relação a esta
questão, pelo fato desse público diversificado estar dividido entre aqueles que
reuniam condições de assistir aos filmes na sala especial e a população mais
empobrecida que não possuíam condições de pagar o valor real do bilhete, restando
apenas a possibilidade de freqüentarem o Puleiro ou Galinheiro do Cine-Teatro
Glória. Diferentemente, no Cine Rex, que apresentava uma belíssima arquitetura
moderna e uma ampla sala de exibição de filmes e apresentação de espetáculos
com capacidade para mais de 500 pessoas, ainda dispondo de uma linda e luxuosa
mobília de madeira que fora fabricada na cidade de Valença na Bahia, não existia o
puleiro para as camadas menos abastadas.
222
Nos dias em que não eram exibidos filmes nos Cine-Teatro Glória e Cine Rex,
o público dispunha de uma programação intensa e variada que atendia a vários
gostos. O Cine-Teatro Glória e o Cine Rex, além das atrações da cidade,
apresentavam também artistas da capital do estado e a de fora do país. Uma
dessas atrações que se apresentou no Cine Rex foi o cantor Orlando Silva e um
cantor mexicano. Essas atrações faziam as senhorinhas da cidade e as moças da
roça suspirarem. O Cine-Teatro Glória apresentava lutas de box que atraíam
bastante a rapaziada, artistas como Maracacheira, humoristas e animadores da
Rádio Carioca, Marilene Oliveira, destaque da Rádio Excelsior da Bahia, e atrações
locais como o grupo musical Pepeu e Seus Pupilos.
223
Muitas dessas atrações não eram assistidas por feirantes por alguns motivos
que foram abordados anteriormente, como a falta de meios de transportes mais
eficientes que pudesse transportá-los, falta de recursos suficientes para pagar os
ingressos, dentre outros. Mas, o gosto ou preferência por determinadas formas de
lazer, diversão e entretenimento era elemento decisivo na hora da escolha das
maneiras de se divertir na cidade.
221
FONSECA. Op. Cit. p. 137.
222
Depoimento Olavo da Silva. Marceneiro. Aposentado. Av Mendes da Rocha 511, Bairro Jardim
Brasil. São Paulo, 78 anos.
223
Maria Clarice Santiago Almeida. Depoimento citado. Jornal O Detetive, O Paládio…
163
A magia do circo seduzia os feirantes a desfrutarem de uma outra forma de
lazer e diversão na cidade de Santo Antônio de Jesus. Circos como o Nerino,
Bertine, Bretanha, Vai-Quem-Quer, com atrações nacionais e internacionais,
acostumavam se apresentar exibindo palhaços, trapezistas, números musicais e
diversos animais.
224
O feirante João do Couro sempre que podia freqüentava os
circos que se apresentavam na cidade de Santo Antônio de Jesus, o que mais o
encantava e o divertia eram as apresentações dos trapezistas e animais como o
Elefante, Leão, Tigre, Onça pintada e o Cavalo Pônei. As atrações do circo
divertiam-no tanto que esse feirante não se preocupava em flertar nem namorar
quando estava diante das apresentações circenses.
FIGURA 12 – CIRCO VAI-QUEM-QUER
FONTE: Arquivo Particular de Amarílio Monteiro Orrico. (Década de 1960)
224
João Nunes dos Santos, Amarílio Monteiro Orrico, Jornal o detetive, O Paládio…
164
Os feirantes Esmeraldo Nunes, Josué Pereira e Elza Froes também
apreciavam as piruetas e peraltices dos artistas que se apresentavam nos circos que
se instalavam na cidade da Capela. Ao falarem de suas opções em relação às
formas de se divertir mais preferidas na cidade, um aspecto que nos chamou
bastante atenção, sobretudo no depoimento do feirante João do Couro, foi a sua
preferência pelo circo e a sua ojeriza pelo cinema. Ao que me parece, o caráter
identitário de cunho popular que caracteriza historicamente a linguagem circense
possibilitava uma identificação mais próxima com a cultura desse sujeito. A
performance do riso e as gargalhadas que o “estar no circo” possibilita, a disposição
em forma circular que permite um outro tipo de interação mais olho a olho, o
movimentar das mãos em função das palmas destinadas a homenagear os artistas e
o grande apreço pelos animais podem se constituir em elementos que lembram ou
se relacionam de uma maneira mais próxima às experiências desses indivíduos nas
festas na roça.
Outra forma de se divertir na cidade era assistir às partidas de futebol que
eram realizadas no Campo do Matadouro Municipal. Muitos times de futebol de
cidades do interior da Bahia e da capital se apresentavam na cidade. Times como o
Botafogo da cidade de Jequié, Azas da cidade de Salvador, Vasco da Gama de Bom
Jesus da Lapa, enfrentavam times locais como o Humaitá, Vasco da Gama, Bahia,
dentre outros.
225
.
O feirante Augusto Laranjeira apreciava os jogos de futebol, mas alguns deles
não acostumavam freqüentar o campo para assistir essas partidas. As mulheres
muito menos, não houve nenhum registro na pesquisa de que elas se dirigiram em
algum momento paro o campo com o propósito de apreciar uma peleja. João do
Couro lembra que quando era menino na roça não tinha condições de comprar uma
bola para jogar futebol, a saída encontrada por esse feirante era fazer bola de pano
ou usar maracujás no lugar da tradicional bola de plástico ou couro. Um outro motivo
que também pode explicar a sua falta de apreço pelo futebol era a falta de tempo
para brincar ou praticar esse esporte durante a infância, porque nesses momentos
estava sempre acompanhando seus pais nas atividades diárias que o universo da
roça exigia. Mas, talvez o motivo mais forte que impedira a prática e um possível
225
No jornal O Detetive nos anos 50 é comum este periódico trazer anúncios de várias partidas de
futebol realizadas na cidade da Capela.
165
gosto pelo futebol possa ser explicado em uma passagem de sua narrativa quando
relembra que
Eu fui criado de uma maneira que não existia, na minha
juventude os pai da gente tinha aquele modo diferente, achava
que o futebol era de malandro, que não podia ser um jogador,
né? (muitos risos).
226
Introduzido no Brasil e na Bahia pelos ingleses no final do século XIX, o
futebol, nas primeiras décadas da República, tornou-se uma paixão nacional. Em
Salvador, capital da Bahia, o futebol conquistou membros da elite local e da classe
média que praticavam esse esporte nos campos dos Mártires, da Graça e do Rio
Vermelho; enquanto que as camadas populares praticavam esse esporte em
diversas áreas públicas da cidade. Os populares que praticavam esse esporte eram
taxados de vagabundos, enquanto que os jogadores da elite e setores médios da
população eram chamados de Sportmen.
227
Os articulistas locais publicavam muitos anúncios nos jornais convocando a
população para as espetaculares partidas de futebol que ocorriam na cidade de
Santo Antônio de Jesus nas décadas de 50 e 60. Entretanto, de acordo com a
narrativa do feirante João do Couro, algumas representações do futebol como um
esporte ou uma prática de malandro, difundida por alguns setores nas décadas
iniciais do século XX, ainda permanecia no imaginário de seu pai.
Algumas formas de lazer e divertimento estavam associadas à jogos de azar
que ocorriam principalmente em dias de feira, significando também uma
possibilidade de ganhar dinheiro a depender da habilidade e da sorte dos jogadores.
Era comum nos dias de quarta-feira e sábado, em meio à várias transações
comerciais que se desenrolavam na feira, encontrar pessoas jogando cartas e
dominó apostados em bares instalados na Praça Padre Mateus, nas imediações da
feira ou até mesmo rodas de jogo montadas a céu aberto no meio da própria feira.
228
Os sujeitos sociais envolvidos nessa narrativa não freqüentavam nem eram
simpáticos às práticas dos jogos de azar. Essas experiências marcam alguns
226
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
227
FONSECA. Op. Cit. p. 56-60.
228
João Nunes dos Santos. Depoimento citado.
166
momentos de suas vidas a partir da lembrança de familiares que eram adeptos a tais
formas de lazer e divertimento. O esposo de Maria Plácida, Antônio Pereira dos
Santos, e o pai da feirante Elza, Francisco Froes, eram homens acostumados às
práticas de jogos de azar. Alguns desses homens praticavam esses jogos tão
corriqueiramente que seus salários tornavam-se insuficientes para cumprir com as
despesas do lar e suas obrigações.
Segundo Vitalina Souza, seu pai se empenhara tanto em apostar em jogos de
azar que sua mãe, Maria Plácida, tivera que se desdobrar em exercer várias funções
para dar conta da criação dos filhos. Durante a semana, ela desempenhava a função
de costureira, produzindo roupas para várias pessoas da região. Quando chegava a
sexta-feira, ela tornava-se doceira se empenhando em fazer bolos, biscoitos e outras
guloseimas para vender na feira dia de sábado. Quando conseguiu juntar algum
dinheiro a mais, a feirante comprou um cavalo, o qual ela destinara a alugar para
pessoas fazerem viagens para a cidade de Nazaré das Farinhas. Vitalina confessara
que “o cavalo deu muita comida a gente”
229
. Essa desenvoltura fazia com que Maria
Plácida fosse vista pelos filhos como “o homem e a mulher da casa”. Essa afirmação
nos chama a atenção para o fato de que dona Maria Plácida, assim como outras
mulheres, também desempenhavam, papéis sociais que faziam parte do universo
masculino.
A prática de costurar, fazer doces e salgados, alugar cavalos e vender na
feira, funções que Maria Plácida desempenhava, mostra que várias funções e ofícios
poderiam se manifestar na vida de um único indivíduo. Entender o que era ser
feirante naquele universo implica se libertar de concepções que engessam as
experiências e vivências de trabalhadores em categorias fixas e monolíticas.
Voltando às práticas dos jogos de azar, o pai da feirante Elza Froes,
Francisco Froes, acostumava freqüentar o bar de Zelito na praça Padre Mateus e,
entre uma partida e outra, ele se dirigia à barraca da família para apanhar os
trocados faturados com as vendas das mercadorias em dias de feira. Algumas vezes
a sorte o acompanhara, em outras não. Nos dias de azar, ele perdia todo o dinheiro
no jogo de cartas e retornava para casa em condições que nem o dinheiro do pão
levava. A situação tornava-se mais agravante quando chegava o dia de quarta-feira
e ele era obrigado a tomar dinheiro emprestado com seu genro para comprar
229
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
167
mercadorias como o cigarro, café e outros produtos, para abastecer a barraca da
família.
230
A busca por lazer e diversões poderia também acontecer em outras cidades
da Bahia, principalmente na capital. Muitos dos feirantes tomavam o trem na
Estação Ferroviária de Santo Antônio de Jesus indo até São Roque, em seguida
pegavam uma embarcação e desembarcavam na cidade de Salvador. O lazer para
muitos deles consistia em visitar parentes e amigos que moravam na capital. Os
feirantes Esmeraldo Nunes dos Santos e Elza Froes sempre iam para Salvador
visitar seus irmãos e outros parentes; apesar de nunca alimentarem sonhos de
morar nesta cidade e não freqüentarem as famosas praias da capital baiana, eles se
sentiam muito felizes quando viajavam para Salvador, porque a própria viagem de
trem já se configurava como um atrativo à parte para eles.
O feirante Augusto Laranjeira participava de muitas festas em Salvador, a
começar pela tradicional lavagem do Bomfim, realizada na segunda quinta-feira do
mês de janeiro, e a festa de Iemanjá, cujos adeptos rendem homenagem todo dia 02
de fevereiro. Essas eram festas consideradas muito boas por este vendedor, mas
uma das diversões que ele mais apreciava era caminhar na cidade observando as
fontes luminosas. Andar pelos bairros do Cabula e Nazaré era uma prática que lhe
trazia prazer naquela cidade.
231
Divertir-se na cidade de Santo Antônio de Jesus ou em outros lugares
significava poderosos momentos de trocas culturais e manifestações de múltiplas
maneiras de viver, sentir, se emocionar e de rir. As luzes da cidade proporcionavam
variadas formas de lazer, diversão e entretenimento a feirantes e muitos outros
homens e mulheres tanto da roça quanto da cidade. Apesar das dificuldades
enfrentadas na vida cotidiana, e outros percalços que poderiam impedir os feirantes
de se deslocarem até os locais onde poderiam encontrar diversão e arte, como por
exemplo a indisponibilidade de um meio de transporte, esses homens e mulheres
não pouparam esforços para “curtir” as delícias, os encantos e desencantos que a
urbe oferecia.
Em Santo Antônio de Jesus, em Feira de Santana ou em Salvador, capital da
Bahia, os feirantes buscavam, em meio à labuta cotidiana, possibilidades de sorrir
230
Elza Froes da Fonseca. Depoimento citado.
231
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
168
seja se emocionando com as artimanhas dos palhaços do circo, seja saindo
correndo do cinema pensando que o mesmo estava pegando fogo devido a uma
fogueira que estava sendo exibida na tela. Ao som das marchinhas da micareta, ou
simplesmente apreciando as luzes multicores da cidade num simples ato de
caminhar, eles namoraram, sorriram e choraram, viveram emoções fortes nos
“quatro (En)cantos da cidade”. Apesar do aspecto lúdico presente na festa, não era
apenas um momento de diversão; a vida festiva na qual estavam imersos, poderia
perpetuar certos valores da comunidade por um lado e por outro fazer a crítica da
ordem social.
232
4.3 O Tamanco e a Chita
O estudo feito pela historiadora Márcia Paim sobre as principais feiras de
Salvador, entre os anos 60 e início dos anos 70, afirma que os feirantes adequavam
suas vestimentas para um trabalho árduo, muitas vezes realizados em céu aberto,
sujeito às mudanças de temperatura. Segundo ela,
As mulheres vestiam saias, vestidos coloridos,
obrigatoriamente com bolsos, para colocar o dinheiro miúdo
arrecadado; as cédulas de maior valor eram guardadas entre o
seio e o sutien. As mais novas aderiam às calças compridas,
mas não dispensavam os chapéus de palha ou os lenços
improvisados com pedaços de panos para proteção da cabeça,
exposta ao sol causticante; usavam sandálias, ou melhor,
chinelos quando as condições permitiam, muitas trabalhavam
descalças.
233
Na feira livre de Santo Antônio de Jesus, nas cadas de 50 e 60, as
mulheres usavam para trabalhar um figurino similar às mulheres que trabalhavam
em feiras na cidade de Salvador. Elas usavam vestidos rodados que facilitava os
movimentos naquele ambiente de trabalho, com bolsos para guardar o dinheiro
232
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 87.
233
PAIM. Op. Cit. p. 127.
169
arrecadado com a venda dos produtos e, às vezes, “mais curtos” para facilitar as
longas caminhadas e vencerem as lamas que poderiam surpreendê-las em dias de
chuva. Esses vestidos geralmente eram confeccionados com tecidos mais simples
como Brim, Chita, Algodão ou Murim.
Uma outra alternativa para as mulheres era o uso de saias rodadas que
pudessem causar os mesmos efeitos dos vestidos. O uso de bermudas, shorts e
calças para elas era algo quase “impossível” de ser visto naqueles anos. Algumas
mulheres usavam chapéu de palha para se proteger do sol. O chapéu era utilizado
por mulheres que tinham seus comércios instalados a céu aberto. A feirante Elza
Froes era uma das exceções porque a sua barraca era coberta com zinco e o uso
deste adereço em seu figurino podia contribuir para a sensação de aumento do calor
que ela tanto sentia naquele ambiente.
Nos pés essas feirantes usavam sandálias e tamancos, em dias de chuvas
eram obrigadas a se deslocarem descalças porque essa era uma possibilidade de
conseguir dinamizar suas caminhadas em meio à lama. Os homens usavam calças
compridas ou calças com a barra dobrada até o joelho, camisas abertas ou fechadas
a depender das condições climáticas. Em dias de verão,quando o sol poderia estar
mais quente, alguns deles trabalhavam apenas de calças, sem camisas. No figurino
masculino o uso do chapéu de palha era mais freqüente, independentemente de
seus estabelecimentos estarem instalados a u aberto ou não. Eles geralmente
calçavam sandálias, sapatos ou a famosa bota de borracha, que se tornou um tipo
de calçado prático para os feirantes e freqüentadores da feira-livre, principalmente
durante o período de inverno.
234
O figurino dos feirantes se transformava quando os mesmos se preparavam
para participar de algumas festas e comemorações tanto na roça quanto na cidade.
Ao observador atento, era possível perceber a diferença entre as roupas utilizadas
para trabalhar e as utilizadas para os dias de festa. Peter Burke ressalta que toda a
imensa área da cultura material é um objeto em potencial para análise iconológica.
Segundo este autor,
234
Esmeraldo Santos, Augusto Silva, Vitalina Souza, Elza Fonseca…
170
As roupas formam um sistema simbólico, no qual o historiador
pode identificar variações regionais e distinção entre dias
comuns, de trabalho e festivos. E estas distinções podem vir
expressas numa aguda distinção entre as roupas de trabalho e
as “melhores roupas de domingo”.
235
A roupa de trabalho ou as roupas de domingo e festas eram confeccionadas
por costureiras e alfaiates, cujos tecidos eram comprados em várias lojas instaladas
no centro da cidade dividindo espaço com a feira livre, ou em outras lojas de tecidos
que existiam no seu entorno.
Lojas como A Nova América, Casa Lígia e a Loja Brasil vendiam os mais
variados tipos de tecidos como Lamê, Moiré, Faconé em Seda, vários tipos de
Morim, Sedas estampadas e Sedas lisas, Bramante em cores, Algodão, Chita,
Raion, Linho nacional e estrangeiro, Anarruga Quadriculada, Cassa Bordada,
Organdy, Organza Estampada, Reps, Brins, Popeline, Rendas, Bordados, Ligas
para enfeites de vestidos, dentre outros artigos.
236
Nos anos iniciais da década de 50, a carestia dos preços dos alimentos
básicos que compunham a dieta alimentar da população da Região do Recôncavo
Sul, como a farinha de mandioca e a carne fresca, estavam pela “hora da morte”
como fora abordado no capítulo anterior. A imprensa local se empenhava em fazer
uma campanha para que os preços dos produtos baixassem e a população, de
modo geral, endossava tal iniciativa, reclamando dos preços dos produtos quando
se dirigiam à feira-livre e a outros estabelecimentos comerciais responsáveis pela
comercialização de tecidos, roupas, sapatos, dentre outros artigos. Talvez esse fato
tenha contribuído para uma possível ameaça de diminuição na lucratividade desses
empresários. Era comum os donos das lojas fazerem propagandas de seus
estabelecimentos anunciando seus produtos com frases de alto impacto como:
A “Nova América” em ação, com seus preços de abafar.
Casa Lígia “Enfrentando a alta dos preços, cooperando para a
economia do povo, apresenta: cada preço uma vantagem.
Cada artigo uma boa compra”.
235
BURKE. Cultura popular na Idade Moderna. 2. ed. Op. Cit. p. 106.
236
Jornal O Paládio, O Detetive, … APMSAJ/AP.
171
Loja Brasil: “Constantes variedades. Preços fixos, lucros
mínimos e o máximo de produção”.
237
A feirante Vitalina Souza relatou que os tecidos mais utilizados na época em
questão eram Gazemira, Chita, Carrapicho, Linho, um tecido chamado “Pele de
Ovo”, Tropical e “Estrada de Ferro”, que era um tecido azul utilizado para
confeccionar roupas para homens. Tudo indica que os trabalhadores da Estrada de
Ferro de Nazaré usavam uma farda confeccionada com um tecido azul que dava um
certo status aos indivíduos que faziam parte desse grupo social. É provável que, nos
anos 50 e 60, esses trabalhadores desfrutassem uma posição social confortável em
relação a outras categorias profissionais da região. Falando sobre as relações da
moda com o corpo, Castilho nos indica
Que entendida como roupa ou como uma combinação de
elementos de decoração corpórea, a moda é uma linguagem
que plasma ou modela o corpo humano por intermédio da
apropriação do corpo biológico do sujeito. Promove nesse as
conseqüentes transformações que, ao serem operadas, lhe
agregam novos sentidos. A relação é então regulada pelo jogo
entre o ser/parecer. Por intermédio desse, o sujeito intervém no
seu próprio corpo biológico, com ações transformadoras que
lhe conferem novos valores. Essa oposição ao corpo natural
serve para reconstruí-lo e ressemantizá-lo por meio da ação do
traje. Imprime nele característica inédita, de acordo com o
programa narrativo que o mesmo protagoniza.
238
Muitos homens, feirantes ou não, se apropriaram do tecido azul conhecido
como “Estrada de Ferro” utilizado para confeccionar farda dos trabalhadores da
Estrada de Ferro de Nazaré, dando novos sentidos a outros momentos de sua vida
cotidiana. A confecção e o uso de roupas com esse tecido era uma linguagem que
conferia novos valores a esses indivíduos. O feirante Augusto Laranjeira não mediu
237
Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio de 1950, nº 2.342; 03 de novembro de 1950, 2357; 16 de
março de 1950, nº 2.337, respectivamente. APMSAJ.
238
CASTILHO, K. “Do corpo à moda: exercício para uma prática estética”. In: CASTILHO, K;
GALVÂO, D. A moda do corpo o corpo da moda. São Paulo: Esfera, 2002, p. 70.
172
esforços para entrar na moda, porque segundo ele “quem entrava dentro daquela
roupa, daquela farda, ia pra quarquer cidade” (muitos risos)
239
.
Alguns nomes de tecidos que emergiram na memória de alguns sujeitos
sociais dessa pesquisa não coincide com os verdadeiros nomes desses produtos,
como é o caso de Pele de Ovo e Estrada de Ferro. Acredito que a sabedoria
popular, fazia analogia das características do tecido com elementos simbólicos do
seu cotidiano que tornassem mais cil identificá-los. Assim, a denominação de Pele
de Ovo e Estrada de Ferro aos tecidos eram formas de assimilação inventadas para
facilitar algumas circunstâncias no desenrolar da vida cotidiana.
As camadas mais abastadas da cidade geralmente usavam roupas
confeccionadas com o tecidos Moiré que, no início da cada de 50, na Loja Nova
América, custava Cr$ 18,00, Sedas Estampadas Cr$ 20,00; Sedas Lisas Cr$ 25,00 e
Bramante Cr$ 30,00 o metro; enquanto as camadas mais populares recorriam ao
Lamê Cr$ 4,00; Chita Cr$ 1,50; Morim Cr$ 4,00 e Algodão Cr$ 4,00.
240
Maria Plácida, além de ser feirante, acostumava costurar roupas para várias
pessoas que moravam na Jueirana e também em outras localidades rurais do
município. Considerada uma excelente costureira na região, ela se especializara em
confeccionar roupas principalmente para os homens que trabalhavam nas minas de
Manganês que existiam no Onha, no Sapé e na Pedra Preta. Sempre acompanhada
de seus filhos Vitalina e seu irmão, que mora atualmente na cidade de São Paulo,
adentravam a noite segurando um candeeiro para que pudesse costurar. As roupas
que Maria Plácida confeccionava eram em maior quantidade produzida com tecidos
de Brim, Popeline, Algodão, Carrapicho, Pele de Ovo e Estrada de Ferro.
241
Os preços desses tecidos eram mais compatíveis com as condições sociais
dos feirantes, homens e mulheres da roça. Um balanço feito sobre a diferença de
preços dos tecidos de uma loja, que fizera uma promoção nos anos 50, revela que
nos tecidos considerados mais finos o percentual de desconto era entre 20% a 30%,
enquanto que os tecidos mais utilizados pelas camadas populares os descontos
variavam entre 50% a 60%.
242
Certamente eles aproveitavam a diferença dos preços
para adquirir esses tecidos, mas, a depender das circunstâncias, esses homens e
239
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
240
Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio 1950, n. 2.342. APMSAJ.
241
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
242
Jornal O Paládio, ano 49. 10 de maio 1950, n. 2.342. APMSAJ.
173
mulheres faziam determinados esforços para comprar também tecidos considerados
mais finos para a confecção de suas indumentárias.
Essa possibilidade poderia ocorrer em função do calendário festivo da cidade
de Santo Antônio de Jesus e das festas na roça. Geralmente era no mês de abril,
quando se realizava a micareta, no mês de junho em função da festa do padroeiro e
de o João, no mês de setembro quando se realizava as Rezas de Cosme e
Damião e no período de final de ano, que as lojas se empenhavam em comprar
tecidos e os mais variados produtos fabricados em São Paulo, Rio de Janeiro e das
principais casas da capital da Bahia para vender a preços mais baixos a seus
clientes. Essa prática caminhava em sintonia com o imaginário daquelas pessoas
oriundas de zonas rurais, sobretudo os feirantes, que mantinham o hábito de se
esforçarem em sempre fazer uma roupa nova para participarem do calendário
festivo na roça ou na cidade, potencializados pelas grandes possibilidades de
aumento nas vendagens.
O anúncio da loja, ao qual nos referimos pouco, ainda trazia a seguinte
observação a seus clientes:
Aguarde a lista de preço do próximo mês, o mês de junho, é o
mês da festa do padroeiro da nossa cidade, por este motivo é
que a Nova América, desde previne os seus fregueses que
está recebendo muita seda diretamente das fábricas, para
vender muito barato.
243
De fato, o mês de Junho consistia em um período em que grandes esforços
eram feitos para comprar a “tão sonhada roupa nova”, principalmente para os filhos.
A festa do Padroeiro na cidade ou as homenagens que esse santo recebia na roça e
a festa de São João eram motivos suficientemente fortes para mexer com o
imaginário e o bolso daqueles que, entre a devoção e a fé, festa e lazer, entravam
na moda com o objetivo de satisfazer a matéria e o espírito.
Outras possibilidades de comprar tecidos e roupas mais baratas era
aproveitando a tradicional “Fogueira de Retalhos” da popular loja Brasil. Essa era
uma prática dessa loja que todas as quintas-feiras vendia tecidos a preços bem
243
Idem.
174
acessíveis às populações de baixa renda. Retalhos de Seda e Algodão eram
vendidos, nos anos 50, a partir de Cr$ 0,20 centavos. Essa loja acostumava fazer
também uma promoção intitulada “artigos da noite”, vendendo tecidos como Seda,
Brin Carrapicho, Bramante, dentre outros a preços mais baixos.
Às vezes, não se precisava deslocar da roça para ir até a cidade de Santo
Antônio de Jesus comprar tecidos. Um exemplo disso era o vendedor senhor, de
nome Bernardo, que morava nas imediações da feira-livre de Santo Antônio de
Jesus; ele saía pelas áreas rurais da cidade com seu grande carneiro, revendendo
tecidos. Ele colocava uma carga de tecidos no animal e despertava a atenção de
todos, inclusive dos seus clientes, badalando um sino dependurado no pescoço do
carneiro. A feirante Maria Plácida era uma de suas clientes.
244
As cores dos tecidos utilizados pelos feirantes podia variar ao gosto e
perspectivas da moda de cada um, ou de acordo com concepções e representações
produzidas na vida social. A feirante Vitalina gostava de apreciar a micareta na
cidade também pelas vestimentas que as senhorinhas e rapazes usavam nos dias
da folia de Momo. As moças usavam vestidos bonitos, de cores fortes, os mais
simples eram vestidos de uma cor só, porém com vários detalhes. Devido às
representações construídas historicamente de que o negro ou afrobrasileiro não
poderia usar vestimentas de cores fortes e vibrantes, porque ficaria parecido com o
“Diabo”, Vitalina Souza e seus irmãos eram impedidos de usarem roupas de cores
vermelha ou amarela, por exemplo. Sua mãe se empenhava em combinar as cores
que ela acreditava ser compatível com a cor negra de seus filhos.
245
Entretanto,
essa rigidez poderia ser quebrada com o uso dos vestidos de Chitas nas festas
juninas que, mesclando várias cores e um belo estampado, causavam um efeito
singular nos corpos das moças nas noites de São João.
As sanções, sobretudo para as mulheres, poderiam ser ampliadas no que diz
respeito às noções e padrão de ser mulher, vigentes no imaginário dos sujeitos
sociais que estavam ao seu redor. Nos anos cinqüenta e sessenta, algumas
mulheres que eram feirantes e suas filhas estavam sujeitas a serem proibidas por
pais e maridos de usarem determinados tipos de cosméticos e outros elementos que
244
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
245
Idem.
175
contribuíam para o “embelezamento” do universo feminino. Essa afirmação pode ser
melhor compreendida a partir de uma lembrança de Vitalina:
Uma certa vez, eu me lembro, as meninas vinha fazê compra,
tinha um esmalte, Fátima, né? chegaram com essa Fátima
dentro de casa. Pra quê? Pai pegou e jogou fora. Ele disse
“quem usava era mulhê da vida”.
246
As fronteiras entre o ideal de “mulher de beme “mulher da vida”, além de
serem definidas por costumes, hábitos, maneiras e modos de se portar dentro do
grupo social e na sociedade de maneira mais geral, eram também definidas pelos
padrões estéticos. As maquiagens mais modernas não poderiam ser usadas por
algumas mulheres consideradas “mulheres de família” ou “mulheres de bem”. Elas
tinham que se contentar com apenas o uso do de arroz ou o rouge para realçar
os seus traços faciais.
Apesar das sanções quanto ao uso de determinados cosméticos, havia
liberdade no quesito referente à escolha dos calçados. Essas mulheres usavam
tamancos, sandálias e sapatos fechados parecidos com uma sapatilha. Os
tamancos eram usados no dia-a-dia em casa, no trabalho, ou poderia ser usado
também em festas a depender do tipo ou elegância do tamanco ou das condições
financeiras de cada um. Para as festas, as sandálias e os sapatos eram mais
utilizados. Para os homens não existia muita variação, usavam geralmente
sandálias, sapatos “bico fino” ou botas para trabalhar, e na hora das festas o calçado
oficial era o sapato, preferencialmente de cor preta.
Contrastando com os homens da cidade, principalmente os membros das
camadas sociais mais elevadas, que usavam nas festas um figurino composto por
calças, ternos, gravatas, chapéus de feltro e guarda-chuvas, os homens da roça
usavam calças, camisas de mangas longas ou curtas e chapéu de palha. Em
comum, eles tinham no figurino a preferência pela cor preta de seus sapatos e o uso
de chapéu, mesmo sendo este um adereço que variava de modelo, estilo e
qualidade ao sabor das possibilidades de compra ou características culturais de
246
Idem.
176
cada um. O chapéu de feltro e o chapéu de palha eram fortes marcas culturais que
afirmavam e distinguiam fronteiras entre o homem da roça e o homem da rua.
Além da preocupação com a vestimenta para os dias de festa, outras medidas
eram tomadas pelos feirantes com o objetivo de embelezar os seus corpos. Eles
faziam suas barbas e cortes de cabelo, revezando-se entre profissionais que
residiam na roça e barbeiros que tinham seus estabelecimentos instalados na
cidade. Parece que, em Dezembro de 1951, os barbeiros da cidade resolveram não
contribuir mais com a campanha da “Baixa do Custo de Vida”
247
deflagrada por
algumas lojas e casas comerciais que almejavam baratear o custo de vida na cidade
de Santo Antônio de Jesus, publicando um abaixo assinado em nome de Avelino
Santos, Daniel Oliveira, Benício Silva, Manoel Bomfim, José de Araújo, Silvestre
Santos e Pedro Hipólito, aumentando os preços do corte de cabelo para 4 réis;
Barba 3 réis e cabelo e barba 7 réis.
248
Para aqueles feirantes que queriam mudar de visual, deixando os cabelos
mais fixos e lustrosos, o uso da famosa brilhantina fazia a cabeça deles naqueles
anos não tão rebeldes assim. Seu João do Couro afirmou que às vezes usava
brilhantina. Os risos que ele exteriorizou nesse momento, achando graça de algo
que é “ultrapassado” hoje no setor da indústria moderna de cosméticos, nos remete
a pensar na evolução pela qual estes produtos passaram ao longo dos anos e nas
mudanças na moda e gostos que ele vivenciara ao longo do tempo. A brilhantina
assumia o papel do gel nos “tempos modernos”.
Facilmente se encontrava, nas lojas de perfumaria da cidade, vários artigos
destinados ao embelezamento e higiene pessoal do corpo. Água oxigenada utilizada
para descolorir o cabelo de algumas senhorinhas da cidade, Água de Colônia,
Loções e Extratos das marcas Madeira de Oriente, Embrujo de Sevilha e Florigrana,
Óleo Helga, Brilhantina Suspiro de Granada e outras marcas, Sabonetes Gessy,
Una Jóia, dentre outras marcas, talcos Una Jóia e Gessy, Leite de Rosas e Leite de
Colônia, faziam parte do arsenal de cosméticos e produtos disponíveis, no mercado
local, ao público em geral.
249
247
Sobre essa campanha ver Jornal O Detetive nos anos de 1951, sobretudo a edição 195 de 27
de Maio de 1951.
248
Jornal O Detetive. Santo Antônio de Jesus. 16/12/1951. nº 223 ano 5. AP.
249
Jornal O Paládio, O Detetive, ...
177
A feirante Vitalina Souza reclama que o cheiro e o efeito dos cosméticos,
desodorantes e perfumes não são mais como antigamente. Ela sempre usava Leite
de Rosas e Leite de Colônia como perfume. Para ela, as fragrâncias desses
produtos, hoje, são fracas em relação à época que ela usava e chamava a atenção.
Vitalina relembra que
Tinha uma menina que quando eu namorava com o primo dela,
ela chegou me deu um leite de rosas, eu usei, ela disse:
“Oh! Lina tu tá com cheiro de rico (muitos risos), Olha gente pra
Lina como tá cheirando a rico!”.
250
A narrativa acima nos leva a pensar em representações e estereótipos que
dicotomizam o cheiro e o odor do corpo baseado em distinções raciais, sexuais e,
principalmente, sociais. Essas concepções podem ser pensadas como um dos
aspectos de modelos civilizatórios criados na Europa, ainda no século XIX, e
transportado para o Brasil no final desse século e nas primeiras décadas da
República que, dentro de um projeto modernizador tentava também modernizar os
corpos. Tudo indica também que essas representações ainda estivessem muito mais
fortes no imaginário de algumas pessoas nas décadas 50 e 70, período de grandes
mudanças no país.
O certo é que desodorantes e perfumes eram utilizados pelos feirantes como
elementos que aromatizavam o corpo em diversos momentos de sua vida cotidiana.
Quando saíam da zona rural, o uso do perfume e de desodorantes era importante
porque fazia parte do “ritual” de se “arrumar” para ir para a cidade e também como
higiene pessoal porque o cheiro e o aroma desses produtos contribuía para a
conservação de um “cheiro no corpo”, em face aos odores do suor de homens e
mulheres que, muitas vezes, tinham pela frente o desafio de vencerem longas
caminhadas até chegarem na cidade.
Outros momentos muito especiais nos quais esses produtos eram
imprescindíveis, era no período de festas na roça ou na cidade, em momentos de
lazer, diversão e entretenimento, em que muitos feirantes, homens e mulheres da
roça, já iniciavam sensações de prazer e felicidade, que iriam desfrutar nesses
250
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
178
momentos, ainda em suas residências tomando um banho com sabor de festa,
vestindo a roupa nova ou ainda pouco usada, arrumando o cabelo em frente ao
espelho e, por fim, dando banhos de cheiros no corpo.
Mulheres vestidas com roupas de Chita ou Algodão, calçadas com sandálias
e tamancos, homens usando calça comprida, camisa de manga curta ou longa e
chapéus de palha, exibiam um figurino que complementava e enriquecia a estética
da diversidade humana no Recôncavo da Bahia. Com ou sem esmalte nas unhas,
usando de arroz no rosto e brilhantina no cabelo, os feirantes andavam também
na moda e imprimiram um estilo bem peculiar nos modos de vestir, calçar e se
“arrumar” nos determinados momentos que a vida cotidiana lhes requisitava. Estar
belo e “bem arrumado” eram práticas compatíveis a esses homens e mulheres que
transitavam livremente cruzando os espaços da roça e da cidade.
179
5 A Feira: Um Museu a Céu Aberto.
5.1 Visitando uma Exposição.
5.2 Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos.
5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar.
5.4 A Feira se Descasa.
180
5.1 Visitando uma Exposição.
Sou o espaço onde estou. (Noel Arnaud)
Não se encontra o espaço.
É preciso construí-lo sempre. (Bachelarb)
Visitar uma exposição numa galeria de artes, num museu ou em qualquer
outro espaço, significa ver e entrar em contato com uma exibição pública de
produtos artísticos ou industriais, de um só ou de vários produtores ou fabricantes. O
ato de se dirigir a esses espaços, notadamente àqueles destinados a exposição de
obras de arte, muitas vezes trazem consigo representações simbólicas de que arte é
sinônimo de grandes obras. Segundo Néstor García Cancline “O que chamamos
arte não é apenas aquilo que culmina em grandes obras, mas um espaço onde a
sociedade realiza sua produção visual”.
251
Partindo da concepção de Cancline, e entendendo que entre as principais
responsabilidades dos museus é “conservação” material e simbólica de seu acervo,
ouso convidar o leitor a pensar o espaço da feira-livre de Santo Antônio de Jesus
nos anos 50 e 60 do século passado, como um espaço em que seus praticantes
realizavam sua produção visual. Nesse sentido, é possível visualizar a feira da
cidade da Capela como um museu onde uma “exposição” com caráter permanente e
temporário ali se realizava.
Nesse capítulo final, procurarei mostrar como uma produção visual se
apresentava naquele ambiente; analisar algumas mudanças e transformações que
ocorreram no espaço da urbe nas décadas de 50 e 60 do século XX, os significados
e os impactos dessas mudanças na vida dos feirantes e o processo de resistência
desses sujeitos em face à retirada da feira-livre do centro da cidade.
Ao entrar em Santo Antônio de Jesus, todos os caminhos conduziam à feira-
livre desse município. Entrar na feira livre da cidade significava entrar também em
251
GARCÍA CANCLINE, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP, 2000, p. 246.
181
contato com uma produção visual de artífices não da cidade e da região como
também de vários lugares do Brasil. Trilhar um itinerário na feira não possibilitava
apenas relações de compra e venda de mercadorias, era momento também onde os
mais variados atores sociais se deparavam com as diferentes artes do fazer de
feirantes e demais sujeitos que protagonizavam aquele cenário.
Podemos iniciar esse itinerário inferindo que o processo artístico se
manifestava das mãos dos próprios feirantes, como é o caso do feirante João do
Couro, pelo fato de que várias barracas de madeiras e outros artefatos eram
confeccionadas por eles próprios, mostrando por um lado as suas múltiplas
habilidades, e por outro, aspectos de sua cultura, considerada rústica por alguns
setores.
Uma outra habilidade visível a todos que na feira adentravam era a forma
como esses vendedores arrumavam frutas, verduras e os diversos produtos que
eram ali comercializados. Apreciar a forma como Augusto Laranjeira arrumava os
produtos de cerâmica em sua barraca ou os objetos e artefatos vendidos por João
do Couro, era apreciar instalações que revelavam noções de estética desses
indivíduos.
Uma outra configuração que a feira-livre assumia era de um pequeno “Jardim
Zoológico” exibindo animais das mais variadas espécies. Na feira livre de Santo
Antônio de Jesus, principalmente no espaço chamado de Barganha, estavam em
exposição bois, cavalos, burros, porcos, perus, galinhas, patos, preás, tatus,
passarinhos, dentre outros. A compreensão da diversidade do mundo animal na
feira-livre pode ser observada no relato da feirante Vitalina Souza, quando relembra
sobre as barracas nas quais se vendiam carne.
Tinha assim aquelas barraca de carne do sol, carne de sertão,
tudo assim pelo mei da rua, assim por ordem, né? Bem de um
lado verdura, do lado de carne, carne e aqueles ossos que
hoje a gente nem tem, aqueles ossão, as abelha menino, umas
abelha de, tipo mosca, aquilo fazia zuummmmmmmmm.
252
252
Vitalina Santos Souza. Depoimento citado.
182
De fato, como bem lembra a feirante, em meio às barracas de carnes podia
se ver a diversidade das moscas e nas barracas que vendiam açúcar a performance
das abelhas. O zumbido que alguns insetos produziam aliado ao relinchar de
cavalos e outros sons emitidos por outros animais, davam uma característica
singular do mundo animal que ali se apresentava.
Naquele museu, feirantes, fregueses, vendedores ambulantes, fiscais,
freqüentadores e demais grupos sociais que para a feira da cidade da Capela se
dirigiam, podiam apreciar uma rica gastronomia que revelava as artes do cozinhar
da região do Recôncavo Sul. Feirante como dona Maria Plácida vendia pratos muito
saborosos como: o tradicional feijão com arroz, galinha caipira, escaldado de fato e
ensopado de carne de boi com mamão verde, considerado um dos pratos mais
saborosos dentre os que ela comercializava. Ela vendia também a famosa
aguardente pura e com variadas folhas, consideradas verdadeiros runs por homens
e mulheres (já abordado no capítulo II). A feirante Maria Plácida, assim como a
feirante Elza Froes, também faziam deliciosos bolos de puba, tapioca, milho, para
venderem junto à batata-doce, banana e aipim cozidos para o café da manhã.
A diversidade nas maneiras de vestir construía um caráter peculiar de uma
moda que traduzia o universo cio-cultural das centenas de indivíduos que
perambulavam naquele ambiente. Entre o vestuário de feirantes como João do
Couro, Marcionília Froes, Augusto Laranjeira, Maria Plácida, Maria Roxa, Josué
Pereira, dentre outros trabalhadores, misturavam-se o jeito de vestir de senhores e
senhorinhas da cidade que faziam parte de grupos sociais mais abastados. “Eles
iam para a feira como se estivessem indo para uma festa, de palitó e gravata”.
253
Para completar esse quadro, pessoas oriundas de Portugal, França,
Alemanha, Inglaterra, quase sempre donos de armazéns de fumo e de café, que
residiam na urbe ou por estavam a passeio, perambulavam também pela feira-
livre dando um efeito visual singular e plural àquele ambiente. Para entendermos
essa dinâmica, temos que partir do pressuposto de que
O vestuário deve ser considerado como elemento fundamental
de qualquer cultura, tanto por apresentar-se como linguagem,
como pelas características particulares que assume em
253
Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.
183
determinados contextos, nos quais se evidenciam códigos
culturais compartilhados por um grupo. O vestuário é, sem
dúvida, importante elemento cultural do qual os grupos lançam
mão na construção de fronteiras que demarcam territórios
simbólicos.
254
Além de expressarem as diversas culturas que se cruzavam na feira-livre, as
múltiplas maneiras de vestir, construíam e demarcavam fronteiras, afirmavam
identidades, projetavam linguagens e evidenciavam noções de estética e de moda.
Dessa forma, o espaço da feira-livre, era também uma passarela em que a
indumentária, entendendo aqui acessórios e peças de vestuário, revelavam
fronteiras de mundos diferentes, que ao se entrecruzar revelavam também as
distinções sociais presentes naquela sociedade.
Múltiplas eram as linguagens que interagiam naquele habitat. Uma das
características mais marcantes na cultura da maioria dos feirantes, e também de
muitas pessoas de zonas rurais que freqüentavam a feira-livre, era a oralidade que
expressava uma forma de ser e estar no mundo desses indivíduos. A feira era um
espaço por excelência, ritmado por esta oralidade, sotaques de homens e mulheres
da roça misturavam-se com os sotaques de citadinos e pessoas oriundas de outras
nações. Entretanto, mesmo no campo, esses homens e mulheres conviviam com a
cultura da escrita entrando em contato com almanaques, folhinhas, homilias, rádios,
etc. e na feira, além de ouvirem os recados e as notícias que eram divulgadas no
serviço de alto falante, a imprensa local, através de jornais como O Paládio, Tribuna
Santantoniense, O Detetive e a Voz das Palmeiras, circulava naquele universo. Os
diversos falares interagiam e balizavam diferentes matrizes culturais naquele palco.
O artesanato, principalmente os produtos de cerâmicas e de palhas, oriundos
de várias cidades da Bahia e de outros estados, como Sergipe, Pernambuco, dentre
outros podiam ser vistos nas barracas de Augusto Laranjeira e João do Couro.
Panos bordados eram encontrados dentro do Barracão da Farinha, construído em
1893. Nesse espaço, também conhecido como Mercado Municipal, nos dias de feira-
livre, vendia-se beiju de palha, farinha de mandioca, tapioca, rapadura, feijão, açúcar
preto, peixe, preá, carne de tatu, carne de jibóia e outros tipos de caças,
passarinhos, bonecas de pano
254
CASTRO, Ana Lúcia de. Bumba-Meu-Boi em São Paulo: a ressignificação da tradição. Projeto
História. São Paulo, n. 28, Jun. 2004. p. 186.
184
Além de ser um espaço onde se encontrava uma diversidade de produtos, o
Barracão da Farinha, configurava-se em um lugar em que ltiplas atividades se
desenrolavam em sintonia com a dinâmica da feira e também da vida cotidiana na
urbe. Um exemplo dessa realidade ocorria durante a festa do padroeiro da cidade,
quando durante os dias da semana, exceto sexta-feira e sábado, esse local
transformava-se em espaço de lazer e diversão, com quermesses, jogos de preá
255
,
Jogos de Vispa (bingos), dentre outras atividades. Em períodos de eleição, o
Barracão da Farinha servia de palco para a realização de comícios de candidatos a
prefeitos, vereadores e deputados. Durante a folia do Micareta tornava-se um salão
onde a alegria de momo reinava. Nessa perspectiva, o Barracão da Farinha era um
espaço multifuncional que dava operacionalidade às necessidades cotidianas dos
vários sujeitos sociais oriundos da cidade e do campo ao sabor das circunstâncias.
A botânica invadia o universo da feira, na figura de um dos feirantes mais
conhecido no ramo de vender folhas, ervas e plantas medicinais em Santo Antônio
de Jesus. Apelidado de Chapéu de Couro, Antônio, era um dos responsáveis pela
venda desses produtos, considerados por muitas pessoas “produtos sagrados” por
curar diversas doenças e levar conforto espiritual àqueles que recorriam às práticas
da medicina alternativa e de “sabedoria popular”. As folhas e ervas eram bastante
vendidas também em períodos em que se comemoram ritos e festas nas
comunidades que professam religiões de matrizes africanas e na passagem de fim
de ano, quando vários sujeitos de diversas classes sociais, movidos por crenças
diversas, preparavam banhos, defumadores e outras práticas com o intuito de
purificar o corpo e a mente, para esperar o ano novo, como um ritual de
passagem.
256
Circular pela feira, era também apreciar uma produção visual que se
expressava mediante a arquitetura de alguns prédios que disputavam espaço com a
feira-livre ou que estavam localizados em suas imediações. A arquitetura de prédios
como os das Filarmônicas Amantes da Lyra e Carlos Gomes e os sobrados
255
Esse jogo consiste em colocar várias casinhas feitas de madeira, papelão ou outro material
qualquer, em forma circular. Essas casas devem estar numeradas e os apostadores escolhem em
qual o número querem apostar. O jogo inicia-se quando o dono da banca coloca uma Preá dentro de
algum espaço, fazendo movimentos que possam deixar o animal atordoado. Ao soltar o animal, este
deve entrar em uma das casas numeradas, dando a vitória no jogo ao apostador que escolhera o
referido número da casa na qual a Preá entrou.
256
Sobre as práticas de cura na região do Recôncavo Sul, ver o interessante trabalho de SANTOS,
Denílson Lessa. Op. Cit.
185
presentes ali na praça revelavam o esplendor de uma cidade com fortes tendências
a alcançar uma opulência peculiar que fizesse jus ao ideal de urbe que tanto alguns
setores almejavam.
Outras construções, como o Cine-Teatro Glória, chamavam a atenção de
vários homens, mulheres e crianças da roça e da cidade, por suas formas
arredondadas, algo considerado incrível aos olhos de muitos curiosos. O Cine Rex,
também considerado uma obra bastante moderna para aqueles tempos, atraía o
a atenção de vários transeuntes, como também vários fazendeiros e coronéis de
toda região do Recôncavo Baiano e de outras cidades do interior da Bahia que, junto
a suas famílias, para a cidade da Capela se deslocavam a fim de apreciar a “boa
arte”, a “arte fina” que era exibida nesta localidade. Parece que a opulência do Cine
Rex contribuiu para a decadência do Cine-Teatro Glória nos anos 60.
257
O prédio do Barracão da Farinha, considerado uma “super” construção, com
uma bonita arquitetura e colunas arrojadas, pintado nas cores marrom e branco e
cercado com grades de ferro, povoava o imaginário daqueles que para a cidade da
Capela se deslocavam como um marco extremamente significante na urbe
258
. A
Igreja Matriz era também outro marco simbólico importante em Santo Antônio de
Jesus por abrigar a figura do glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade e
considerado por alguns feirantes o “patrono da feira”, por ser o santo que abençoava
e dava o caráter de sacralidade àquela feira-livre.
Além de assumir a sua vocação histórica de reunir, divulgar e oferecer de
tudo que se precisa para viver, caminhar pela feira-livre de Santo Antônio de Jesus,
além do processo de compra e venda de produtos, significava entrar em contato e
vivenciar um universo sensorial passível de aguçar os cincos sentidos que
caracterizam a experiência do corpo humano. Seguir tal itinerário era mergulhar num
ambiente onde cheiros, cores, sons, sabores e toques revelavam aspectos da
cultura de vários grupos sociais da região e demais localidades. Era sentir o prazer
de estar visitando a riqueza de uma exposição com caráter ao mesmo tempo
“temporário e permanente” num museu a céu aberto. A feira-livre era um lugar de
uma experimentação estética. É também um museu, porque é um lugar de memória.
257
Maria Conceição da Silva. Depoimento citado.
258
Idem.
186
5.2 – Entre Porcos, Galinhas, Perus e Jumentos.
Na cidade de Santo Antônio de Jesus era comum, ainda nas décadas de 50 e
60, a presença de animais em várias ruas da cidade. Esses hábitos começaram a
causar descontentamento a vários setores sociais que passaram a criticar essas
práticas, solicitando a mudança nos hábitos e costumes daqueles que praticavam a
urbe. Essa realidade não poupava os esforços da imprensa local em produzir várias
matérias denunciando a sujeira e a imundície que esses animais causavam na
cidade da Capela. Em uma matéria publicada em 1950, o articulista dizia:
É Justo Que Se Faça Uma Referência
alguma imundície em torno das barracas que estão
levantadas nas imediações da Estação, à praça Félix Gaspar,
nas quais se vende ao povo comestíveis, café, etc. Não
condenamos a existência das barraquinhas porque são
destinadas a servir ao povo, mas que haja pleno asseio ali, que
tudo se faça numa atmosfera higiênica, numa área sanificada.
No mesmo chão de onde se erguem as barracas encontra-se
uma leitôa presa por uma corda, um galo velho esperando
comprador, galinhas e muitas coisas mais que não são gêneros
de refeição, mas elementos que concorrem para a sujeira do
local, contaminado além disso por cascas de laranjas, de cana
e de bananas. É de esperar que tal estado de coisas tenha um
corretivo.
259
Apesar de defender a sobrevivência, não condenando as barraquinhas nas
quais se vendiam gêneros alimentícios próximo à Estação Ferroviária, o articulista
parece se chocar com uma dinâmica onde o “moderno” representado pela figura
do trem contrastava com os velhos hábitos de criar e vender animais próximos a
lugares que comercializavam refeições, além de cascas de laranjas, canas, bananas
e os excrementos que se juntavam àquele cenário. Ao que tudo parece, o
“embelezamento da urbe” era uma das questões que se tornaram pauta do dia no
cotidiano da cidade. Vale a pena reproduzir uma outra matéria de um outro jornal
que, de forma mais detalhada, mapeia o cotidiano de algumas ruas da urbe e
descortina a composição do lar de alguns moradores.
259
Jornal O Paládio. Ano 49, 3 de Novembro de 1950, nº 2357. APMSAJ.
187
É um velho e mau hábito do santantoniense ter de criar animais
domésticos e deixa-los soltos na rua, seja em que rua for,
encontramos soltos nas ruas perus, cachorros (Avenida Barros
e Almeida), porcos e as ninhadas atrás (rua 13 de Maio),
galinhas, porcos e jumentos (Praça da Matriz). Uma cidade
como a nossa é possível uma casa não ter sala de visita, mas
quintal e às vezes grande, é possível: e então porque deixar
soltos na rua, dando péssima impressão, cachorro, porcos,
perus, galinhas, jumentos e outros animais. Colabore com os
poderes público no sentido de melhorarmos o aspecto de Santo
Antônio de Jesus.
260
Insatisfeito com as imagens que seus sentidos apreendiam das ruas
principais do município e, sobretudo, da praça principal- Praça da Matriz- as
imagens de porcos, perus, jumentos, galinhas, cachorros e cavalos perambulando
em meio aos transeuntes, expelindo excrementos pela cidade, tornava esse o “lugar
da ignorância, do atraso e da limitação”. Uma contradição para aqueles que a viam
dentro de uma concepção “clássica”, como o lugar do saber, da comunicação, da luz
e da civilidade.
A cena descrita pelo editor do jornal e antigo morador de Santo Antônio de
Jesus explicita um dos conflitos, dentre tantos outros com os quais os moradores da
cidade se deparavam. Traduz também a construção de um “ideal de cidade
civilizada” a ser seguido por todos. Entretanto, a matéria jornalística traz à luz, o
quanto dos hábitos daqueles que viviam em zonas rurais, estavam presentes no
cotidiano da cidade e o quanto aquela situação incomodava alguns setores.
A matéria do jornal descortina, ainda, a composição física do “lar doce lar” dos
moradores dessa urbe, trazendo representações do que seria uma casa ideal
deveria ter uma sala de visita e a casa real da maioria dos moradores, composta
por um quintal. O autor da matéria invade o espaço privado dos habitantes da
cidade, ao mesmo tempo que tenta conectá-lo e subordiná-lo aos interesses e
domínios do poder público. Para ele, melhorar o aspecto de Santo Antônio de Jesus
dependia de mudança de práticas e valores, muitas vezes oriundos do mundo da
roça. E a disciplinarização dos animais era um dos primeiros passos a ser dado,
para “melhorar o aspecto da cidade” e conduzi-la ao “desenvolvimento”, isso
dependia da introdução de novos conceitos de higiene.
260
Jornal Semanário A Voz das Palmeiras, nº 38, 5/5/1954. Arquivo Particular de Amarílio Monteiro
Orrico.
188
No Brasil no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX,
inspirados pelos ideais de modernidade européia que implicavam em higienização,
mudanças de hábitos e práticas dos setores considerados menos “civilizados”, as
elites se empenharam em por em prática projetos que visavam mudanças e
transformações não nos hábitos e costumes da população, como também na
organização do espaço das cidades consideradas como as grandes urbes do país.
Tudo leva a crer que, dos anos 50 a 80, as idéias da política
desenvolvimentista implantada no país, também mergulharam nesse cenário,
alterando a vida cotidiana de diversos indivíduos e introduzindo diferenças
significativas nos modos de viver em várias partes do Brasil. Sem pretender
estabelecer marcos temporais ou categorias de análises fixas em periodizações,
ouso em falar de um primeiro processo modernizador e um segundo momento
marcado pela implementação de um projeto desenvolvimentista, apenas em termos
operacionais, para citar dentre tantas mudanças e transformações que singularizam
e diferenciam esses dois contextos históricos: a extinção do sistema de transporte
ferroviário cedeu lugar ao transporte de rodagem que cortava o Brasil de ponta a
ponta; os grandes deslocamentos populacionais ocorridos entre os anos 50 a 80 do
século passado, para não falar ainda, nas mudanças no vestuário, nos artigos e
utensílio domésticos, hábitos alimentares, de higiene, etc.
Analisando as diversas mudanças e transformações que ocorreram em todo o
Brasil durante esse período, João Manuel Cardoso de Mello e Fernando Novais
observam que
Os mais velhos lembram-se muito bem, mais os mais moços
podem acreditar: entre 1950 e 1979, a sensação dos
brasileiros, ou de grande parte dos brasileiros, era de que
faltava dar uns poucos passos para finalmente nos tornarmos
uma nação moderna […] Os trinta anos que vão de 1950 a
1980 anos de transformações assombrosas, que, pela
rapidez e profundidade, dificilmente encontram paralelo neste
século – não poderiam deixar de aparecer a seus protagonistas
senão sob uma forma: a de uma sociedade em movimento.
261
261
MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade
moderna. In: SCHWARCZ, Lília Moritz (org.). História da Vida Privada: Contrastes da Intimidade
Contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4. p. 560-585.
189
Tudo indica que essa sensação descrita pelos autores tenham invadido o
imaginário de alguns setores mais abastados da cidade de Santo Antônio de Jesus,
provocando a denúncia dos hábitos e costumes de muitas pessoas que vivenciavam
a urbe, dando início a uma série de mudanças e transformações que começariam a
ocorrer na cidade ainda no final da década de 40, com a construção da nova Igreja
Matriz em outra área, o decreto municipal que deslocava a feira-livre da praça Padre
Mateus para áreas mais afastadas, a demolição do Barracão da farinha, a
introdução de estradas de rodagens (BA e BR) e a extinção da Estrada de Ferro no
início dos anos 70.
As mudanças e transformações no cenário da urbe não paravam por aí. A Lei
15 de 31 de outubro de 1949
262
ratificava a demolição da antiga Igreja Matriz,
anunciando que naquele logradouro iria construir um parque. A Lei 20 de 27 de
julho de 1951 decretava a mudança de nome de várias ruas como a rua do Gás, a
rua das Queimadas, Rodagem do Campo, rua Velha, etc. O governo municipal
autorizava ainda a desapropriação de casas na cidade com o objetivo de fazer um
alinhamento das ruas. Na Lei sancionada em 13 de fevereiro de 1958, que falava
sobre o “Fundo de Planificação de Obras do Município”, determinava quais seriam
as obras a serem priorizadas e realizadas na cidade, num prazo de cinco anos;
dentre elas, destacava-se a construção do novo Mercado Publico na sede do
município de Santo Antônio de Jesus.
263
O ano de 1969 fora marcado pela desapropriação de áreas de terras e casas
situadas nas ruas Monsenhor Antônio Oliveira e Conselheiro Ursicino Pinto de
Queiroz, para realizar a construção do novo Mercado Municipal, loteamento para
box e abrir acesso ao centro de abastecimento.
264
Vale ressaltar também, que essas mudanças o ocorrem de maneira
isolada, elas se concretizam em paralelo à uma dinâmica que também está
ocorrendo em outras regiões, como é o caso da cidade de Feira de Santana, no
Sertão da Bahia, a segunda maior cidade do estado e outras áreas do país. O
262
As notas referentes a leis, atas, decretos, portarias e outros documentos que se encontram no
Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus, não constam de informações detalhadas do
tipo: Maço, Prateleira, Gaveta, etc., pela ausência de infra-estrutura apropriada para armazenamento
desses documentos.
263
Livro, Decretos e Portarias – 1945-1956. Livro de Leis, Decretos e Portarias 1956-1963. Arquivo
Público Municipal de Santo Antônio de Jesus.
264
Decreto nº 16 de 26/04/1969; Decreto nº 24 de 08/08/1969 e Decreto nº 27 de 02/10/1969.
APMSAJ.
190
processo de mudanças e transformações no espaço da urbe de Santo Antônio de
Jesus é do que trataremos a seguir.
5.3 O Patrono da Feira Muda de Lugar
No dia 2 de Junho de 1948 foi elevada a peça principal do telhado da Igreja
Matriz. A colocação da cumeeira reuniu, segundo o jornal O Detetive
265
, uma
pequena multidão que se agrupou no mercado municipal e em frente à nova Matriz.
Mesmo com a chuva que insistia em cair naquela manhã a “cerimônia foi
solenemente realizada” sob as músicas da Filarmônica Amantes da Lyra. Após a
realização desse ato, as pessoas ainda se reuniram para angariar novos fundos
para a construção, através da realização de um leilão improvisado com duas telhas
do novo telhado que foram leiloadas e se obteve o resultado de mil cruzeiros.
FIGURA 13 – ANTIGA IGREJA MATRIZ
FONTE: http://www.mma.com.br/mma3/media/images/saj/igreja2.jpg
265
Jornal O Detetive, 4 de Junho de 1948. Nº 46. Ano I. APSAJ.
191
A sensibilização da população para concretizar o ideal de construção de uma
nova matriz contou, também, com outros meios como panfletos expedidos pela
Comissão para os “filhos da terra” que se encontrava em outras cidades. Os dois
panfletos disponíveis no arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus datam de
janeiro de 1945. Em ambos o tom é de urgência para as obras, “pois a ‘Velha
Matriz’, em que pese a estima respeitosa que lhe devotamos, é bastante
inexpressiva, mal localizada, tornando-se impossível se lhe fazer consertos que a
elevem à altura de nosso desenvolvimento”.
266
Construída de adobe e taipa, localizada no meio da Praça Padre Mateus e da
feira-livre da cidade, a derrubada da secular Igreja Matriz, nos anos 50 do século
XX, concomitante à construção de um novo templo religioso, marca o início de uma
série de intervenções que começou ocorrer na urbe. Essas intervenções,
viabilizadas por vários setores sociais das camadas mais abastadas dessa cidade,
suscitaram explicações várias por parte das camadas mais populares, que
justificariam a demolição desse monumento.
Para o feirante Augusto Laranjeira, o motivo que explicaria a derrubada do
templo religioso foi o fato que “além de ser no meio da feira, era de adobe”. Para o
feirante João Nunes dos Santos, foi porque “a igreja era pequenininha, não era
como hoje, né? Que tem aquela Matriz”. Ao que me parece, apesar da importância e
respeitabilidade de que gozava a Igreja Matriz perante os feirantes, freqüentadores
da feira e todos que para a cidade se dirigiam, a sua localização no meio da feira-
livre não mais se adequava com a realidade de uma feira em expansão e as
concepções de desenvolvimento e progresso defendidas por alguns seguimentos na
urbe.
Para a construção de uma nova Igreja Matriz na cidade, que pudesse atender
aos objetivos do poder eclesiástico, de setores da elite que freqüentavam esse
templo sagrado e também pessoas de camadas sociais menos abastadas, tornava-
se necessário empreender muitos esforços para arrecadar soldos suficientes entre
os fiéis para investimento de tal envergadura. O Jornal o Paládio, em 28 de junho de
1950, trouxe entre tantas outras notícias a seguinte matéria:
266
Folheto Avulso. Janeiro de 1945. APSAJ.
192
A Nova Matriz
As contribuições pecuniárias para serem concluídas as obras
da nova Matriz não têm falhado, verdade seja dita, mas é
necessário mesmo que não venham a falhar, porque o templo
que está em obras vai se tornar um ornamento da mais perfeita
arquitetura nesta região da Bahia. Do ponto de construção em
que se acha, até a conclusão, numerário vultoso é ainda
necessário que exista, para não se dar um esbarro no trabalho
tão bem visto e elogiado por quantos se curvam perante as
coisas que o homem Deus traçou e determinou quando da sua
peregrinação à face da terra.Todos os meios honestos tem o
pároco da freguesia posto em prática para alcançar donativos.
De fato, não tem ele sido mal sucedido, mas ninguém se
esqueça que as obras estão em meio e os recursos para
custeá-las devem vir a miúdo. Ontem recebemos o negociante
Julio de Souza Ribeiro, de Dom Macedo Costa e ele nos
entregou 50 cruzeiros para o serviço do fôrro da nova Matriz.
Esse dinheiro, fizemos chegar imediatamente às mãos do
digno padre Antônio Almeida Oliveira, vigário da paróquia.
267
Parece que existia na cidade uma certa unanimidade em relação ao modo de
pensar que a arquitetura e a localização da velha matriz não estivessem mais
compatíveis com a dinâmica da cidade. O jornal também demonstra a necessidade
de empenho de todos, notadamente os fiéis, em somar esforços para angariar
fundos para a construção da nova moradia de Santo Antônio. Para a construção
desse novo templo, muitas campanhas foram feitas pelo pároco da Matriz, pelos
moradores da cidade e, sobretudo, pelo Jornal O Paládio que durante o final da
década de 40 e os primeiros anos da década de 50,
268
em seus anúncios, apelava
pela solidariedade de todos em contribuir com doações pecuniárias para essa
empreitada.
As doações não se restringiam apenas aos feirantes e cidadãos da cidade de
Santo Antônio de Jesus, muitos foram os Joãos, as Marias, os Antônios, os Júlios,
moradores de várias cidades da Região do Recôncavo Baiano, como Nazaré,
Conceição do Almeida, Lage, Mutuipe, Dom Macedo Costa, dentre outras, que
contribuíram com o projeto de construção da nova Matriz.
267
Jornal O Paládio. Ano 49, 28 de Julho de 1950 nº 2.349. APMSAJ.
268
As edições diárias do jornal O Paládio dos anos 49, 50,51 e 52, que estão no Arquivo Público
Municipal de Santo Antônio de Jesus, trazem vários anúncios pedindo a colaboração da população
local e residente em outros municípios com pecúlios para a construção da nova Igreja Matriz e longas
listas de agradecimento à aqueles que cediam doações.
193
FIGURA 14 – IGREJA MATRIZ EM CONSTRUÇÃO
FONTE: Arquivo da Paróquia de Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Analisando a imagem fotográfica acima, podemos afirmar que o articulista do
jornal tinha razão quando afirmava que nos anos 50 as obras ainda estavam pela
metade. Essa fotografia traz à luz um passado que revela, através de um olhar
fotográfico, um tempo e um espaço que fazem sentido. Um sentido individual que
envolve a escolha efetivamente realizada; e outro, coletivo, que remete o sujeito à
sua época. A fotografia deixa de ser uma imagem retida no tempo, para se tornar
uma mensagem que se processa através do tempo, tanto como imagem/documento
quanto como imagem monumento.
269
A imagem parece querer perenizar a dificuldade para se construir uma Matriz
com tamanha suntuosidade. Para tal êxito, esforços não foram poupados. Durante
quase uma década, o pároco local, e os fiéis se empenharam em manter um caixa
que pudesse conseguir dinheiro suficiente para a construção da nova Igreja
Matriz.
270
Para a construção do novo templo, o padre Monsenhor Antônio Almeida
de Oliveira, no período dos festejos em louvor ao padroeiro, junto à comissão da
269
CARDOSO, Ciro Flamarion; MAUAD, Ana Maria. História e imagem … Op. Cit. p. 406.
270
Sobre o demonstrativo do movimento da construção, ver jornal O Detetive 14 de outubro de 1951,
ano 5 214. Nesta matéria o jornal traz as receitas e as despesas com a construção. O caixa fora
iniciado no ano de 1943 e tudo leva a crer que nesse mesmo ano começou a compra de materiais
para a construção da Nova Igreja Matriz.
194
festa, montava um serviço de barraquinhas com comidas e bebidas, bilhetes
sonoros, telegramas, e outras atividades lúdicas em prol das obras de construção da
Matriz. O profano agia em prol do sagrado.
Para construir o lar de Santo Antônio, ele contratou o “melhor mestre de obra
da cidade” chamado Celestino Pimenta, e Vadú Jambeiro, engenheiro e “bom
mestre de obra”. Este último, segundo o feirante Augusto Laranjeira, “ia para o
trabalho parecendo que ia para festa, ia na roupa branca, era um preto que
andava alinhado”.
271
Uma pergunta se faz necessária neste momento: Por quê, aparentemente,
não houve reclamações quando se resolveu mudar de lugar a Igreja Matriz? Talvez
o motivo que contribuiu para que não houvesse reclamações entre os feirantes e
principalmente, os fiéis, no processo de mudança de lugar do templo sagrado, seja o
fato de que ele foi deslocado do meio da feira para um local mais estratégico.
Essa mudança, de qualquer forma, ampliava o espaço destinado à atuação
de feirantes, fregueses e demais grupos sociais que freqüentavam a feira-livre da
cidade. Mesmo mudando de lugar, em 19 de Junho de 1952, ano em que a Paróquia
completou o seu centenário, o glorioso Santo Antônio, padroeiro da cidade e patrono
da feira-livre, da praça ainda continuava sacralizando aquele espaço e levando
suas bênçãos a todos que por lá trabalhavam e perambulavam.
Com relação à demolição da antiga Igreja Matriz, parece-me que ela foi sendo
aos poucos abandonada pelos fiéis e pelas celebrações. Entre o final de 1951 e
início de 1952, os paramentos litúrgicos foram transferidos para a igreja Nova, onde
começaram ser realizadas as celebrações. Quanto à antiga Igreja Matriz, em
ruínas, logo após a inauguração do novo templo, o teto da antiga Igreja desabou,
culminando com sua demolição.
272
271
Augusto Soares da Silva. Depoimento citado.
272
Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.
195
5.4 – A Feira se Descasa.
Além das dificuldades de sobrevivência enfrentada por vários setores das
camadas sociais mais baixas, por causa do alto preço das mercadorias, nas
décadas de 50 e 60 na cidade de Santo Antônio de Jesus, esses anos foram
também fortemente marcado por discursos que pretendiam convocar a população a
alcançar um grau de civilização e progresso que era o ideal de alguns grupos
sociais. Como pudemos observar em outras passagens desse capítulo, a imprensa
local tornava-se uma das grandes porta-vozes desses discursos, chegando até
mesmo a identificar entre os diversos sujeitos praticantes da cidade quais seriam os
responsáveis por tal empreendimento. Em uma matéria publicada em 1954, um
jornal local preocupado com o andamento da civilização e do progresso na cidade,
publicou:
…Sem querer melindrar a ninguém, a porcentagem dos
nulos
273
em Santo Antônio de Jesus é assustadora. Correndo-
se interrogativa e cuidadosamente os olhos pela vastidão do
nosso mundo não encontramos um por cento do que realmente
necessita uma cidade como Santo Antônio de Jesus que a esta
altura de sua história, não comporta mais uma civilização de
aldeia ou vila, na carência reais de valores. (…) Somente
interessa o progresso pessoal, individual, secreto, para não
na vista. Perguntamos ao leitor qual a diferença de civilização
de uma vila ou aldeia para a nossa, isto é, de Santo Antônio de
Jesus? Onde estão os nossos intelectuais, os nossos
jornalistas, escritores, poetas, oradores, professores, pintores,
arquitetos, desenhistas, educadores, músicos; onde está nossa
sociedade, nossas instituições sociais.
274
O autor da matéria traz de maneira explícita sua concepção de progresso e
civilidade, colocando os vários sujeitos sociais da cidade em lugares opostos a partir
das noções de valores de cada um. A matéria revela também, de forma implícita, a
diversidade cultural e de práticas sociais dos diferentes atores que conviviam
naquele espaço. Para além das várias possibilidades de interpretações que esse
273
Para o autor da matéria os “nulos” seriam as pessoas que estavam acostumadas com hábitos,
valores e costumes considerados por ele incultos e incivilizados. Em sua concepção essas pessoas
representavam uma grande parcela da população da cidade.
274
Jornal A Voz das Palmeiras. Ano I, 30, 4 de fevereiro de 1954. Arquivo Particular de Amarílio
Monteiro Orrico.
196
discurso margem, o que mais me chamou a atenção é que o autor da matéria
lista enfaticamente quais grupos sociais seriam responsáveis em introduzir aos
demais grupos, concepções e noções de “bons hábitos” e novos valores que, por
fim, pudessem elevar a cidade de Santo Antônio de Jesus à categoria de urbe do
progresso e da civilidade. Exigências morais, higiênicas e estéticas se impunham
diante da necessidade de “ser” e “parecer moderno”.
O que o autor da matéria parece desconhecer é o fato de que pessoas dos
segmentos menos abastados também criticavam algumas práticas que contribuíam
para o “atraso” do qual fala o autor da matéria anteriormente mencionada. Porém,
não podemos afirmar se a noção de progresso e civilidade dessas pessoas
caminhava em direção àquelas pensadas pelas elites ou qual o ideal de civilização e
progresso essas pessoas carregavam consigo; talvez seja mais fácil pensar que os
produtores/consumidores da urbe não são apenas aqueles considerados “leitores
especiais da cidade”, representados por fotógrafos, poetas, romancistas, cronistas e
pintores, ou “leitores privilegiados”, aqueles com habilitações culturais, profissionais
e estéticas que os dotam de um olhar refinado.
Os “cidadãos comuns” ou “gente sem importância” também são expectadores,
produtores e consumidores da cidade e dela leitura fazem.
275
Um olhar refinado,
sensível e arguto em relação à urbe tanto pode estar no indivíduo de camada social
mais elevada, como no indivíduo que faz parte de um grupo social mais baixo. Assim
como pode estar no homem da roça como no da cidade.
Nessa perspectiva, a falta de infra-estrutura na cidade da Capela era algo que
suscitava crítica de feirantes, fregueses e diversos outros atores que viviam
experiências urbanas naquele cenário. Sem saneamento básico e rede de esgoto,
as questões relacionadas à higiene, no universo da feira, era algo que incomodava
aos feirantes, àqueles que por passavam e outras pessoas que exerciam alguma
função diretamente ligada a esse espaço. Em suas lembranças do tempo em que
trabalhou como guarda na feira, seu João Crizóstomo Sampaio recorda que
Aquele lugá ali que a igreja, até em baixo, ali era
mamoneira, era cagador, o povo marrava jegue, marrava tudo
275
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.8, n.16, p.279-90, 1995. p. 283-284.
197
ali. A igreja era lá, na frente, na frente pra lá, no mei, daí pra
o barracão, daí pra a igreja, o passei dessa artura, pra oo
povo não tinha lugá pra fazê fezes, fazia ali no mei, de manhã
era uma imundice desgraçada. Atrás da igreja, (muitos risos)
Deus ajudô que tiraro a igreja, butaro pra lá, em cinqüenta e um
eu fui, eu trabalhei na guarda, tomei conta ali um mucado de
tempo. Cinqüenta e um, no ano de cinqüenta e dois, cinqüenta
e três, nessa base aí.
276
O feirante Josué Pereira dos Santos lembra que tinha que guardar sua
barraca entre a mamoneira e os excrementos que encontrava no ambiente da feira-
livre e reclamava que “o povo fazia porcaria em tudo quanto era canto ali”, (muitos
risos). A feirante Vitalina Souza também reclamava da ausência de uma higiene na
feira. Já a feirante Elza Froes em sua narrativa foi categórica em afirmar “que o povo
fazia imundície ali naquela feira”. Assim como o feirante Augusto Laranjeira lembra
que “a feira não era muito limpa não”.
As narrativas dos feirantes e do ex-guarda da feira expressam a insatisfação
deles e de muitas outras pessoas com a falta de uma infra-estrura e de higiene
adequadas à vivência cotidiana naquele ambiente, como também a “ausência” do
poder público para solucionar problemas que competiam à sua alçada, visto que, no
tocante à cobrança de impostos aos feirantes, este era eficiente e sempre estava
presente nos dias de feira.
Longe de anacronismos, caminhando um pouco em direção às idéias de
Mikail Bakhtin que nas praças públicas, nas feiras e no carnaval da Idade dia
na Europa locais eminentemente grotescos, os risos, gestos e as expressões
“cagador”, “imundície” e “porcaria”, de autoria dos depoentes acima, trazem uma
forte representação simbólica que nos remete a pensar em um conjunto de imagens
cômicas do realismo grotesco que circulavam na feira livre daquela cidade.
Para Bakhtin, no realismo grotesco tudo está em relação mútua, não existe
nada isolado. E o corpo, grande categoria da cultura popular, é um corpo aberto que
está sempre interagindo com a terra, o universo e o meio em que ele vive. O corpo é
visto em sua totalidade. Segundo esse autor,
276
João Crizóstomo Sampaio. Depoimento citado.
198
O corpo começa a ser higienizado e disciplinado pela
burguesia nos textos literários e nos estudos sobre o corpo. O
baixo e alto material são categorias que estão sempre em
dialogismo um com o outro. Eram corpos que não estavam
ainda sob as imposições da disciplina moderna.
277
De fato, os corpos de muitos homens e mulheres oriundos de zonas rurais ou
da cidade, não estavam ainda disciplinados dentro das noções de higiene de vários
outros homens e mulheres da urbe, era um corpo que interagia com o meio e
dialogava com outros corpos. O espaço da feira que possibilitava a obtenção dos
gêneros alimentícios que sustentavam esses corpos, reservava também um espaço
(um lugarzinho) que recebia os detritos e dejetos que esse mesmo corpo expelia.
Talvez, o ato de expelir excrementos atrás do templo sagrado fosse uma forma de
linguagem encontrada por esses sujeitos para criticarem/reivindicarem saneamento
básico naquela localidade.
A mudança de lugar da Igreja matriz parece que foi algo que agradou a muita
gente em Santo Antônio de Jesus no ano de 1952. Todavia, um fato curioso que nos
chamou bastante atenção é que, em setembro do ano de 1948, o prefeito Antônio M.
Fraga sancionou um decreto estabelecendo uma outra feira na cidade que se
realizaria às quartas-feiras e apenas uma década após, no ano de 1958, o então
prefeito Olavo Galvão determinou que a feira pública fosse transferida do centro
financeiro comercial da cidade.
278
Apesar da lei, esta mudança ocorreu
paulatinamente.
A justificativa dada pelo poder executivo era que aquele espaço do jeito que
estava impedia o desenvolvimento do centro da urbe. A transferência da feira teria
que ser efetivada porque aquele espaço estava sendo ocupado por indivíduos com
costumes e hábitos inadequados para um centro comercial.
279
Tudo nos leva a
deduzir que os interesses de proprietários de casas comerciais que se localizavam
na praça Padre Mateus, no entorno da feira-livre, associados às pressões de
pessoas que faziam parte da elite” local, contribuíram decisivamente para essa
tomada de decisão. Segundo um ex-vereador, esse projeto teria sido realizado em
consonância com a lei federal que determinava que prédios e edifícios que
277
BAKHTIN. Op. Cit. Capítulos V e VI.
278
Essa expressão Centro Financeiro Comercial é de autoria do historiador Denílson Lessa dos
Santos, utilizada em seu trabalho: Nas Encruzilhadas da Cura.
279
Livro de Leis e Decretos 1958. APMSAJ.
199
estivessem localizados no meio de praças públicas deveriam ser transferidos de
lugar e acompanhar o alinhamento das residências.
280
Oficializada pelo decreto de
1958, a urbe começava a conviver com a idéia de que a cidade da Capela passaria
por uma das maiores transformações sociais, culturais e espaciais ao longo de sua
história, que seria o afastamento da feira-livre do centro principal da cidade para
áreas mais afastadas (atualmente praça Duque de Caxias).
281
Talvez Santo Antônio de Jesus tenha sido uma das primeiras cidades da
Bahia a concretizar o projeto de afastamento da feira-livre do centro da cidade para
outra área. Entretanto, esse fato não ocorre de maneira isolada na região, entre o
início dos anos 60 e os anos 70, as principais cidades da Bahia se empenharam em
deslocar suas feira-livres dos centros das cidades.
Movidos por interesses capitalistas, perseguindo ideais de civilização e
progresso, usando discursos das políticas higienistas, os setores considerados
“hegemônicos”, de várias formas, conseguiram por em prática seus projetos
desenvolvimentistas em várias urbes do Brasil e da Bahia. Essa dinâmica pode ser
observada em cidades como Salvador, capital do estado, que pretendia acabar com
as feiras que se realizavam no centro da cidade e, após um incêndio considerado
criminoso, transferiu a Feira de Água de Meninos para a enseada de São Joaquim,
em dezembro de 1964; Feira de Santana, objetivando implantar um centro industrial
no Sertão da Bahia, extinguiu sua feira-livre do centro da Princesinha do Nordeste
em 1977; e Santo Antônio de Jesus, que mesmo enfrentando a resistência dos
feirantes não conseguiu deslocar sua feira-livre logo de imediato após a publicação
do decreto em 1958, mas, ainda no final da década de 60, se via livre para
concretizar o sonho de um “centro comercial financeiro moderno”. Inaugurado em 27
de Janeiro de 1971, o Centro de Abastecimento Municipal, batizado com o nome de
Duque de Caxias, retirava o “caráter” de feira-livre da feira da cidade da Capela.
282
Esse processo de mudanças se constituiu em significativas transformações
nas relações sociais, culturais e econômicas de vários indivíduos em regiões da
Bahia. Em Santo Antônio de Jesus, as mudanças no espaço da urbe interferiram
diretamente na vida e na história de diversos sujeitos sociais da cidade e da região.
280
Amarílio Monteiro Orrico. Depoimento citado.
281
A feira-livre de Santo Antônio de Jesus continua até hoje na atual praça Duque de Caxias.
282
Decreto nº 44 de 22 de Janeiro de 1971; Decreto nº 6 de 2 de Setembro de 1971. APMSAJ.
200
Com ampla experiência em ser feirante, Augusto Laranjeira lembra que com a
mudança, inicialmente, não existia uma organização baseada em divisões por
boxes, quadras, ruas ou galpões, e as barracas ficavam espalhadas pelo meio da
rua. Isso prova que a preocupação das autoridades era menos com os feirantes do
que com os grupos interessados em organizar o centro financeiro comercial
Esse feirante conseguiu duas barracas, das quais uma ele utilizava para
vender seus produtos e a outra fazia de depósito. Para ele, a mudança foi boa
porque “lá na antiga feira era tudo muito apertado”. Augusto ainda tinha bons
motivos para não acreditar ter sido ruim a mudança da feira pelo fato de que ele
comercializava artigos de cerâmicas e estes produtos não enfrentavam a
concorrência já “desleal” em relação a alguns outros setores.
Josué Pereira dos Santos se diz também satisfeito com a mudança porque
ele conseguiu que sua barraca ficasse num lugar bom. Elza Froes também gostou
dessa medida pelo fato de sua barraca passar a ser coberta com telhas de amianto
ao inverso da que ela tinha na feira antiga que era coberta com zinco, porque
“melhorou a quentura”. Esmeraldo Nunes dos Santos vivenciou esse processo de
mudanças que interferiu diretamente em sua vida e, entre o hoje e o ontem
registrados em sua memória, ele faz um balanço do que ocorreu com as
reconfigurações sofridas pelo/no espaço e as condições materiais de sua vida e
seus pares ao longo do processo:
A feira é o seguinte, a feira hoje sendo mais pra os barão,
né? Pra os donos de supermercado que tem depósito grande,
né? Pra os mais pequeno de quarqué maneira hoje passa mais
dificuldade, né? Naquela época era melhó pra os pequeno
porque acontece o seguinte, porque não tinha tanto
concorrente, né? E hoje é o seguinte, hoje justamente os
grande hoje tomou conta da feira, né? Uns com depósito,
outros com supermercado, né? Então dificultou mais pra as
pessoas. Como é que diz? Pra as pessoas mais pequeno, que
tem menos capitá, ficou mais difíce um pouco.
283
O relato do feirante Esmeraldo mostra uma firme resistência perante às
mudanças e expressa o sentimento de “perda de espaço” para aqueles que ele
considera “os barão da feira”. Apesar de enfrentar a concorrência com empresários
283
Esmeraldo Nunes dos Santos. Depoimento citado.
201
donos de supermercados e depósitos ao longo da história, Esmeraldo Nunes
continua resistindo com o seu boxe na feira vendendo verduras como alho, cebola,
tomate, pimentão, etc., frutas como abacaxi, pinha, banana, laranja e outros
produtos como azeite de dendê, feijão e cestos. Talvez, o fato de considerar a
mudança de local da feira uma coisa boa ou ruim esteja relacionado às
oportunidades de alguns feirantes conquistarem mais privilégios que outros na
disputa por um novo “lugar” que, a depender do tipo de mercadoria que era
comercializada pelos feirantes, influía diretamente no andamento dos negócios.
Entretanto, podemos pensar esse processo numa perspectiva de existir uma
ambivalência nos relatos, porque os feirantes que em suas narrativas hoje no
presente disseram ter ficado satisfeitos com a transferência da feira, em alguns
momentos de seus depoimentos, falaram de suas reações negativas em relação à
mudança naquele momento e das formas pelas quais as pessoas protestaram. O
próprio espaço de tempo em que os feirantes ainda permaneceram na praça
principal da cidade vivendo a feira aproximadamente 10 anos após a publicação
do decreto que autorizava a transferência, são indicadores suficientes do processo
de resistência daqueles homens e mulheres.
Logo no início da transferência da localização da feira-livre de Santo Antônio
de Jesus, alguns deles perderam a metade da freguesia que não sabia onde os
encontrar. João Crizóstomo, um ex-guarda da feira, relatou que teve manifestações
dos feirantes mesmo que de forma não organizada ou coletiva e os protesto se
justificavam porque as pessoas estavam acostumadas com a localização dos
“pontos” dos feirantes e para “fazer outro pontoe, ainda, fazer a freguesia voltar
outra vez, tornava-se uma tarefa que consistia em re-elaborações das relações
sociais até então estabelecidas, agora deslaçadas por esse novo processo. João
Crizóstomo diz que “os que tinha consciência, saía procurando, gritando no meio da
feira, fulano! Fulano! Tá onde? Saía procurando até encontrar”.
Acostumados com os “seus pontos”, o processo de desenraizamento para os
feirantes representou a quebra e o afrouxamento de relações sociais sólidas
historicamente estabelecidas, agora deslocadas perante esta nova realidade. O
processo de procura dos clientes por seus antigos vendedores e comerciantes
possibilitava a continuidade dessas relações. O processo de desenraizamento
implicou também na separação de Santo Antônio com sua afilhada a feira-livre.
202
Sobre as bênçãos de Santo Antônio é que muitos feirantes começavam seu dia de
trabalho na feira-livre da cidade. E agora? Como ficaria a relação do padrinho com
sua afilhada?
Na visão dos feirantes, para quem tinha isso não era empecilho porque
poderia dar-se um jeito de arranjar um tempo se deslocando da nova feira até à
Igreja Matriz para pedir a benção ao glorioso Santo Antônio. Mas, não era apenas
isso que estava em jogo, imersos na transferência de “lugares” e dos novos limites
diante dos quais este conflito os colocara, os feirantes assistiram sólidos marcos
simbólicos se “desmancharem no ar”
284
. Muitos foram aqueles que reclamaram:
“prefeito ruim, de mudá o barracão de lugá e a gente ficá tudo se batendo das
coisas”.
O processo de deslocamento desses homens e mulheres implicou em
intervenções diretas na vida cotidiana destes sujeitos e novos arranjos tiveram que
ser forjados no processo de construção de novos lugares, de novas territorialidades.
Em meio a protestos e reivindicações explícitas ou surdas, os atores que
vivenciaram estas mudanças não se colocaram passivos diante daquela nova
realidade que os desafiava. Muitos feirantes decidiram continuar trabalhando na feira
e concordavam que aquela era uma decisão a ser tomada. O feirante Josué Pereira
junto a sua família decidiu ficar e acompanhar todo o processo. Ele acredita que
paulatinamente a feira-livre foi melhorando, melhorando e, assim como ocorreram
mudanças e transformações na feira, ocorreram também na sua vida, porque ele
conseguiu comprar um “bloco” e se sente um homem “realizado” com as benesses
que a feira lhe proporcionou.
Muitos também foram aqueles que decidiram não ficar na feira e partir em
busca de outras formas de sobrevivências. É exemplar a história de Vitalina Souza
que, acompanhando a sua mãe desde os dez anos de idade, após a transferência
da feira-livre, aconselhou-a que “saíssem deste negócio de barraca” e fossem
embora. Vitalina “achava chato serem bem conhecidas na cidade (muitos risos) e
com aquele negócio de coisinha de barraca, arrasta pra lá, arrasta pra cá, pelo mei
da rua”. E o que mais contribuía para o seu descontentamento com aquele tipo de
284
Utilizo esta expressão de Marshall Berman por entender que ela se adequa nesse contexto e
traduz bem as mudanças que ocorreram na cidade. In: Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: A
Aventura da Modernidade. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1986. Cap. V: Na Floresta dos
Símbolos: Algumas Notas Sobre o Modernismo em Nova Iorque.
203
trabalho era o fato de que quando se encerrava as atividades no final da tarde,
tinham que escutar palavrões e impropérios de bêbados, assíduos freqüentadores
deste universo. Ela e sua mãe aproveitaram um terreno que a família tinha na roça e
foram plantar e colher café para vender, atividade que ela considerou mais rentável.
Após a transferência da feira livre, Francisco Froes decidiu vender a sua
barraca e aconselhou sua filha Elza Froes a descansar e a não mais “trabalhar de
barraca”. Elza seguiu seus conselhos descansando durante algum tempo, mas
voltou a desempenhar o seu ofício. A feirante retornou à feira comercializando
miudezas, depois trocou esse ramo de negócios pela comercialização de roupas e,
em seguida, em função de começar a trabalhar com seu novo namorado, passou a
vender coco, manga, melão e pinha. A feirante Elza assumiu a frente desse negócio
quando seu cônjuge faleceu e depois de alguns anos resolveu “deixar a feira”.
O certo é que diante desta nova realidade um espaço de intervenção agora
emergia introduzindo a necessidade de uma nova invenção criativa dentro da
existência. Para esses feirantes novas fronteiras agora se impunham
285
. É difícil
afirmar quais eram os maiores interessados e quem de fato estava por trás de tais
projetos de mudanças e transformações na cidade. Nas reminiscências do ex-
guarda da feira João Crizóstomo
Todo projeto de tirar a Igreja da matriz de lugar e o Barracão
da frente do comércio, foi na gestão de Fraga, reuniu Mário
Sampaio, dona Guiomar França, Fraga e uns cabeçudo da
cidade e tirou a Igreja e o Barracão dali.
286
Os protagonistas desta história que aparecem no relato do depoente, são:
Antônio Fraga, ex-vereador e também ex-prefeito da cidade; Mário Sampaio,
proprietário da casa comercial São Luiz, atualmente uma das maiores lojas da
cidade que comercializa produtos diversos para toda a região; Guiomar França, ex-
chefa do extinto INPS (hoje INSS) uma das fundadoras da Congregação Mariana na
cidade; e os cabeçudos da cidade, isso é, alguns representantes da elite local.
285
BHABHA. Op. Cit.; p. 29.
286
João Crizóstomo dos Santos. Depoimento citado.
204
Todas essas personagens comungaram junto ao poder público das decisões
que iam gradativamente transformando a configuração físico-social dos espaços na
urbe. Uma questão se apresenta nessa reflexão: Quais os interesses que estavam
em Jogo? Vamos imaginar… O terreno baldio, onde fora mais tarde instalada a nova
feira era de propriedade de Chico Coqueiro e este acabou vendendo-o a Florentino
Almeida, ex-prefeito da cidade. E ele, segundo João Crizóstomo, “malandro vivo,
vendeu ao governo e o governo fez a feira ali”.
287
Alguns decretos, que estão no Arquivo Público Municipal da cidade, nos
informam que as terras desapropriadas, para ceder lugar à construção do novo
Centro de Abastecimento, eram de propriedade do senhor Gorgônio de Almeida
Araújo e suas irmãs, e algumas casas que se localizavam nas imediações, que
também foram desapropriadas, eram de propriedade dos senhores João Ribeiro dos
Santos e Arlindo Silva de Souza.
288
Em meio aos processos de mudanças e transformações que ocorreram na
cidade, a compra de terrenos baldios era uma necessidade preeminente nesta
dinâmica, e envolvia aqueles mais bem aquinhoados. Esta realidade nos leva a
pensar os contornos das relações sociais e as relações estabelecidas entre o
público e o privado na cidade de Santo Antônio de Jesus. Para o ex-guarda da feira
e alguns feirantes, malícias, peripécias e negócios escusos completavam aquele
quadro de mudanças.
O decreto que determinava a transferência da feira-livre do centro da cidade
para outra área data de 1958, mas o processo de resistência dos feirantes
conseguiu prorrogar essa mudança e a conseqüente demolição do Barracão da
Farinha do meio da principal Praça da cidade. No jogo duro da disputa pela
memória, no contexto da relação entre o individual e o coletivo, é difícil precisar
entre os diversos narradores dessa pesquisa uma data “exata” em que eles
deixaram àquela praça. Mas sabemos que não é exatamente esta a função da
memória, e mais importante do que estabelecer limites ou balizas temporais rígidas,
é entender e perceber os processos e desdobramento das “coisas”. Nesse sentido,
entendendo a região do Recôncavo como laboratório de uma experiência humana,
287
Idem.
288
Decreto 16 de 26 de Abril de 1969; Decreto 24 de 8 de Agosto de 1969; Decreto nº 27 de 2
de Outubro de 1969. APMSAJ.
205
as palavras de L. A. Costa Pinto nos serve de aprendizado quando diz que estudar
os variados grupos sociais que vivem/viveram nesta região tem sentido na
perspectiva de
Analisar e compreender o significado que têm estas
transformações para o homem que ali vive, e em que medida
essas transformações estruturais engendram e impõem
transformações conseqüente no seu vel e gênero de vida; no
quadro das posições e das relações sociais que entre si se
estabelecem; no conjunto de recíprocas e normas que os
mantém em vida associativa; no sistema de instituições que os
enquadra numa vida socialmente organizada e lhes a noção
de pertencerem a um todo que os transcende como indivíduos,
nos sistemas de valores e avaliações, pautas de conduta e
alternativas de escolha que regulam o seu comportamento, as
suas atitudes, os seus papéis, e que definem as suas
perspectivas, modelam as suas necessidades e as formas de
satisfazê-las, estabelecem constantes e definem variáveis, dão
sentido ao quotidiano e a ele impõem um ritmo e uma
direção.
289
Entre angústias e alegrias, na intersecção do fazer e do viver, o processo de
deslocamento forçava os feirantes e freqüentadores da feira-livre de Santo Antônio
de Jesus a construírem novas formas de inserção que dessem sentido as suas
vidas. O desmonte das “velhas estruturas espaciais” na cidade, implicavam também
em um processo de intervenção e mudanças nas relações sociais solidamente
estabelecidas por laços familiares, de confiança, de amizades, de vizinhança. Por
outro lado, esta nova realidade impelia à formação de novos arranjos que pudessem
reconstruir estas relações agora (des)laçadas pelas mudanças. Forçados a
deixarem o “chão da Praça”, a mudança para o novo Centro de Abastecimento da
cidade marcava também o início de novas trajetórias na vida dos feirantes e a
tomada de novas decisões.
Acredito ser importante ressaltar o leitor neste momento da discussão que
talvez os termos civilidade, civilização, progresso e modernidade não se adequem
no contexto histórico que estou analisando, mas utilizei estes termos porque são
eles que aparecem nos jornais locais. Minha intenção foi reproduzi-los por entender
289
PINTO, L. A. Costa. Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. In: Brandão, Maria de
Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação
Casa de Jorge Amado, 1998. p.159-160.
206
que essas concepções expressam formas de viver, sentir e pensar o urbano de
alguns grupos sociais na cidade da Capela.
Para concluir esta análise, não poderia deixar de pensar nas relações de
mudanças e permanências culturais que sobreviveram em meio a esse processo.
Talvez a palavra tradição tenha insistido em aparecer muitas vezes durante todo o
texto e agora o narrador tenha se dado conta disso. Dessa forma, cabe
perguntarmos, como pensar a tradição nesse processo?
Termo traiçoeiro da cultura popular, por isso mesmo suscetível a debates
intermináveis, acredito ser um campo frutífero pensar a tradição na perspectiva de
Stuart Hall, quando afirma que ela é um elemento vital da cultura, mas ela tem
pouco a ver com mera persistência das velhas formas. Ela está muito mais
relacionada às formas de associação e articulação de elementos. Segundo ele,
As tradições não se fixam para sempre: certamente não em
termos de uma posição universal em relação a uma única
classe. As culturas, concebidas não como “formas de vida”,
mas como “formas de luta” constantemente se entrecruzam. A
tradição é um campo de batalha, ela não pode possuir um
significado ou valor fixo e inalterado.
290
Pensar a tradição dentro da cultura dos feirantes significa tentar acompanhar
a trajetória, as experiências e vivências desses indivíduos sem perder de vista as
formas de associação e articulação, as formas de luta, as encruzilhadas da
negociação e dos conflitos e as formas de resistências criadas e forjadas nas
circunstâncias e nas fronteiras que a vida cotidiana demarcava dentro das
diferenças.
É pensar na história do feirante João Nunes dos Santos que, há mais de meio
século exercendo esse ofício, enfrentou o conflito com o IBAMA, por causa das
peles de animais silvestres que ele comercializava, obrigando-o a deixar de
comercializar estas mercadorias. Enfrentou também fiscais, vivenciou o processo de
desenraizameto, mas decidiu continuar na feira, reconstruindo/construindo novas
relações sociais.
290
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003, p. 259-261.
207
É pensar na história de um homem que usava chapéu de palha na cabeça,
agora usa boné para vender seus produtos. Um homem que continua vendendo na
feira em sua barraca de madeira ainda vários produtos que ele começou vender
mais de 50 anos atrás, como é o caso do chapéu de palha, candeeiro, abanos,
estilingues, quando os homens quase não usam mais chapéu de palha nas festas
juninas, as donas de casa não precisam mais de candeeiros e abanos e as crianças
não brincam mais com estilingues.
Refletir sobre tradição ganha sentido se percebemos que homens como
Augusto Laranjeira, já quase deficiente físico por causa da sua idade, continua
vendendo suas peças de cerâmica num modesto box na atual feira, mas ainda
expõe algumas de suas mercadorias no chão, acompanhado de sua filha Vilma que
se iniciou no mundo do trabalho auxiliando seus pais a vender produtos na antiga
feira-livre e de um dos seus netos, que entre uma brincadeira e outra, auxilia seu
avô nas vendas, mas também ouve palavras indignadas do mesmo falando que
quando tinha sua idade trabalhava na roça manipulando facão, enxadas e foices
e, hoje, as crianças dessa idade não querem saber de nada.
Pensar tradição implica entender que a feira foi o laboratório no qual muitos
feirantes inseriram seus filhos no mundo do trabalho, mas enquanto Vilma filha do
feirante Augusto Laranjeira, e Carlitos, filho de João do couro, continuam
exercendo essa profissão, outros filhos de feirantes não quiseram para si dar
continuidade a esse ofício como é o caso de Vitalina Souza. Josué Pereira, ao
resolver se aposentar recentemente e sair da feira, não tendo nenhum filho que
quisesse esse ofício, alugou seu box para um sobrinho, enquanto alguns de seus
filhos são proprietários de supermercados atualmente.
Os filhos caçulas de alguns feirantes ainda ajudam seus pais, como é o caso
de Esmeraldo Nunes e João do Couro, mas eles têm outros ritmos, outros jeitos de
vender e mercadejar, outras formas de se relacionar com os fregueses. o agora
alfabetizados, alguns são estudantes universitários, usam roupas da “moda“
completamente diferentes das usadas por seus pais.
Augusto Laranjeira deixou de vender frutas, sobretudo a laranja, João Nunes
dos Santos não vende mais peles de carneiro, Esmeraldo Nunes, em face à grande
concorrência com seus pares e proprietários de supermercados, não vende mais os
mais de 100 sacos de cebola que ele acostumava vender na antiga feira-livre da
208
cidade. Porém, eles continuam sendo conhecidos por todos na cidade e na região
do Recôncavo como Augusto Laranjeira, João do Couro e Esmeraldo da Cebola.
Tradição é acompanhar os passos da ex-feirante Elza Froes e perceber que
enquanto ela exerceu esse ofício ela mudava de ramo com freqüência, começou na
feira vendendo cafezinho, pão com manteiga, bata-doce, banana e aipim cozidos,
depois passou a vender miudezas e roupas, mais tarde a comercializar coco,
manga, melão e pinha. As várias mudanças no ramo de negócio, eram tentativas de
uma mulher do campo que veio enfrentar a cidade em busca da sobrevivência.
Para concluir, talvez deva informar ao leitor que, apesar de ter saído em
matéria de um programa nacional de uma das cinco “maiores” redes de TV do
mundo TV Globo
291
e ser o personagem central de uma composição musical de
um artista da terra
292
, mais uma vez, na prática da vida cotidiana, o feirante João do
Couro está enfrentando um novo conflito no início do século XXI, em face ao poder
público, por causa da nova política de urbanização vigente na cidade atualmente,
que tem como um dos objetivos centrais reordenar e reorganizar a “feira-livre”.
Nessa nova intervenção, os “planejadores da cidade” querem “enquadrar” o feirante
e seus produtos (de grande variedade e volume, como redes, esteiras, panacuns,
selas de animais e ninhos de galinha) em apenas um espaço de 4m². Mas esta é
uma outra história a ser contada.
Essas considerações me fazem acreditar ser menos movediço pensar que
tradição é algo dinâmico e percebermos e compreendermos a permanência do que
muda e a mudança do que permanece. Por outro lado, pensar a construção de uma
fisionomia urbana da cidade de Santo Antônio de Jesus ganha sentido se a
concebermos como um mosaico que pode ser montado com as múltiplas
experiências dos sujeitos sociais e como “algo” que se adentra por vários caminhos.
Seguir os passos e as caminhadas de feirantes oriundos de zonas rurais que iam
trabalhar na feira-livre, bem como de seus freqüentadores e freqüentadoras numa
perspectiva mais ampla, é entender que os espaços só ganham sentido e significado
com a arte do fazer e do viver da vida cotidiana de homens, mulheres e crianças,
pois o espaço é o lugar praticado.
293
Através de atitudes e decisões, em busca de
291
Programa Fantástico exibido pela TV Globo em 2005.
292
Cantor e compositor é Caetano Galvão. CD A feira de Santo Antônio. Abril de 2007. Rezak Studio.
293
CERTEAU. Op. Cit. p. 202.
209
sonhos e melhores condições de vida, entre encantos e desencantos, eles foram se
inserindo no universo da urbe desenhando/redesenhando a silhueta e a estética de
uma das maiores cidades do Recôncavo Baiano.
210
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa pesquisa me propus a investigar o cotidiano de homens e mulheres
que se deslocavam de várias áreas rurais, entre os anos de 1948 a 1971, com o
propósito de trabalhar como feirantes na cidade de Santo Antônio de Jesus. Nesse
período os jornais locais e alguns setores das elites, desenvolviam intensa
campanha contra hábitos e valores de alguns grupos sociais, como os feirantes, que
ocupavam o centro da cidade, acusando-os de contribuir para práticas e costumes
incivilizados.
Fazendo longas caminhadas a pé, carregando mercadorias em lombo de
animais ou na cabeça, subindo em pau-de-arara, enfrentando sol e chuva, contando
histórias, “causos” ou pilheriando, os feirantes forjaram formas para enfrentar as
múltiplas dificuldades que cruzavam seus caminhos até chegarem na cidade. De
“posse” da urbe, novas dificuldades surgiam em suas vidas, exigindo criatividade e
habilidades para superar os desafios que a cidade da Capela colocava em seus
caminhos.
Movidos pelo sonho de melhorar de vida e conseguir meios mais eficazes
para sustentar a família, alguns homens e mulheres decidiram “romper” com as
relações do mundo do trabalho, ao qual estavam submetidos na roça, e mudar seus
rumos com o objetivo final de alterar seus destinos. Para além do ato de compra e
venda de produtos e mercadorias, eles construíram relações sólidas, laços de
amizade e solidariedade, conquistaram territórios e, no ir e vir da vida cotidiana,
reconstruíram novas fronteiras dando uma outra dinâmica nas relações campo-
cidade.
Adentrando no universo urbano pelos quatro cantos da cidade da Capela,
esses homens e mulheres deram forma a uma feira-livre que vendia de tudo, frutas,
verduras, farinha de mandioca, arroz, feijão, rapadura, carne do sol, carne seca
(carne de sertão ou charque), carne fresca, animais vivos como cavalos, burros,
211
porcos, galinhas, perus, preás, ervas e folhas medicinais, louças, cerâmicas,
madeira, chapéu de palha, sandálias de couro, panelas de barro, comidas, beiju…
Mas a feira não era apenas um espaço para compra e venda de produtos ou
mercadorias, a feira-livre era também um espaço no qual corriam as notícias sobre o
cotidiano das pessoas da localidade e de toda região, onde trocava-se informações
sobre parentes e amigos, encontrava-se lazer e diversão, namorava-se, acertavam-
se negócios com terras e propriedades rurais. Na feira-livre se ensinava e se
aprendia noções de caráter, moral, ética, respeito, solidariedade e cidadania. Dentre
as suas múltiplas funções, ela assumia também a função pedagógica.
Essa configuração transformava a feira-livre de Santo Antônio de Jesus em
território dos encontros, uma vitrine da cultura local e da região do Recôncavo
Baiano, que também abria brechas para se perceber dimensões da cultura nacional
e internacional.
Ser feirante não significava apenas desempenhar a função de comprar e
vender produtos, era ser pai e mãe de família, cuidar e educar os filhos,
desempenhar várias funções ao mesmo tempo, saber lidar com o lugar do público e
do privado, lidar com culturas diferenciadas, circular e trabalhar em outras feiras da
Bahia, enfrentar e superar preconceitos, driblar estereótipos, saber negociar na hora
dos conflitos, criar uma noção de tempo, porque o tempo da feira, apesar de estar
no tempo, não é o “tempo do capitalismo”. Os feirantes foram homens e mulheres
que souberam criar uma realidade possível à sobrevivência a partir das
circunstâncias.
Mergulhar na vida cotidiana dos feirantes implicou na certeza de saber que
suas experiências e vivências não se resumiam apenas ao mundo do trabalho. Entre
festas religiosas no campo ou na cidade, participando da micareta, assistir uma
partida de futebol, assistindo filmes no cinema, participando de apresentações de
Bumba-Meu-Boi, Burrinha ou Marujada, desfrutando de viagens de trem até a capital
para visitar parentes e amigos, esses homens e mulheres se divertiam, gozaram os
prazeres que o cotidiano lhes oferecia naqueles momentos, imprimiam significados
simbólicos importantes em suas vidas. Souberam dar forma ao campo e a cidade
também através da festa.
212
Neste sentido, além de buscar uma compreensão físico-social da cidade, foi
imprescindível permear o âmbito das múltiplas relações sociais para uma
reconstituição histórica da vida dos feirantes, da feira-livre e da cidade, tendo o
cotidiano oferecido diversas possibilidades para o encontro dessas gerações.
Inconformado com a feira que aparece nos jornais e na mentalidade de alguns
sujeitos, como um lugar mecânico, fixo, de estruturas rigidamente estabelecidas, una
e homogênea, tentei entrar na feira de “cabeça, carne e osso”, sem pretensão de
buscar a verdade única e total, mas, buscar nas diversas narrativas, verdades que
deram e dão sentido à vida de homens e mulheres que souberam conduzir suas
histórias.
Passando pelas múltiplas transformações do tempo e das conjunturas sociais,
guardam uma memória como passos e marcas vivas de um passado que também é
presente e com ele dialoga constantemente. Os feirantes foram homens e mulheres
que elaboraram formas de resistências aliadas às necessidades daquele momento,
através de suas práticas, arranjos e improvisos, contrariavam a ordem vigente,
sobretudo daqueles que defendiam os ideais civilizadores e de progresso e queriam
modernizar a cidade a qualquer custo.
Ao longo da investigação, a garimpagem das fontes revelou uma trajetória de
aventura, onde muitas surpresas, como por exemplo, o fato de não haver uma
relação direta entre gênero/tipo de atividade desempenhada e as experiências de
alguns desses sujeitos extrapolarem os limites espaciais que o pesquisador
imaginava. As atividades e suas experiências não se resumiam apenas à feira-livre
da cidade da Capela, eram homens e mulheres desempenhando atividades
comerciais e relações sociais em outras regiões, como é o caso nas feiras de
Nazaré das Farinhas, Feira de Santana e Água de Meninos, na capital do estado,
levando-nos a pensar na idéia de que foram homens e mulheres que também
encenaram em outras feiras da Bahia.
Analfabetos, pais e mães de filhos, os feirantes aqui interpretados, foram
homens e mulheres oriundos de zonas rurais que se inseriram no universo da urbe.
Através de suas práticas culturais, foram criando uma geografia territorial e cultural
na cidade, que também contribuiu à construção de sua fisionomia urbana, sua
consolidação como um lo regional no Recôncavo Sul Baiano e talvez tenha
213
germinado a criação da representação de que goza hoje a cidade: o comércio
dinâmico e mais barato da Bahia.
Traçar um pouco o itinerário desses sujeitos nos ratificou a convicção das
múltiplas possibilidades de alargamento dessa pesquisa, que poderá implicar em
outros desdobramentos, outras abordagens. Algumas questões até aqui levantadas
podem ser mais esmiuçadas em outro trabalho, o que não foi possível realizar nesse
momento. A única certeza que tenho agora, no final desta aventura, é que outras
verdades e outras histórias da vida cotidiana clamam na escuridão, são vozes que
apelam para outros ouvidos.
214
FONTES
Orais:
Augusto Soares da Silva, feirante, 90 anos. Rua Marita Amâncio s/n, Santo
Antônio de Jesus – Bahia.
Augusto Silva, aposentado, 88 anos. Rua do Calabá 613, Santo Antônio de
Jesus – Bahia.
Amarílio Monteiro Orrico, ex-vereador, aposentado, 93 anos. Trav. Castro Alves
nº 67, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Carlitos Souza dos Santos, feirante, 49 anos. Caminho 9, Casa 12, Urbis 3, Santo
Antônio de Jesus – Bahia.
Edmilson Barbosa Bittencourt, músico, aposentado, 64 anos. Praça Silvestre
Evangelista, nº 338, Santo Antônio de Jesus Bahia.
Elza Froes da Fonseca, ex-feirante, dona-de-casa, 61 anos. Rua do Calabá
629. Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Esmeraldo Nunes dos Santos, feirante, Avenida Juracy Magalhães, 430, 66
anos. Santo Antônio de Jesus – Bahia.
João Nunes dos Santos, feirante, 75 anos. Avenida Juracy Magalhães 560,
Santo Antônio de Jesus – Bahia,
João Crizóstomo Sampaio, ex-guarda da feira, ex-trabalhador da indústria do
fumo, aposentado, 84 anos. Rua do Cala 726, Santo Antônio de Jesus
Bahia.
José de Souza Brito, ex-funcionário da COELBA, aposentado, 81 anos. Praça
Silvestre Evangelista nº 247, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Josué Pereira dos Santos, ex-feirante, aposentado, 73 anos. Rua Sóter Barros
101, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Macionília Froes dos Santos, ex-feirante, dona-de-casa, 65 anos. Rua Sóter
Barros, nº 101, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Maria Clarice Santiago Almeida, dona-de-casa. 69 anos. Avenida Luiz Viana,
215
596, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Maria Conceição da Silva, Ex-professora, aposentada, 73 anos. Rua Sóter Barros
nº 29, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Olavo da Silva, marceneiro, aposentado, 78 anos. Avenida Mendes da Rocha
511, bairro Jardim Brasil, São Paulo – SP.
Paulo Pereira do Santos, funcionário Funerária Andrade, 36 anos, Urbis 4,
Caminho 33, casa 21, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Valdenor Santos Rodrigues, Matemático, ex-funcionário da COELBA,
aposentado, 64 anos. Edifício Costa Azul, Aptº. 201, Costa Azul, Salvador
Bahia.
Vilma da Paixão Silva, feirante, 45 anos, Rua Marita Amâncio 483, Santo
Antônio de Jesus – Bahia.
Vitalina Santos Souza, ex-feirante, dona-de-casa, 70 anos. Rua do Calabá
301, Santo Antônio de Jesus – Bahia.
Escritas:
a) Jornais
JORNAL LOCAL PERÍODO
O Paládio Arquivo Público Municipal
de Santo Antônio de
Jesus
1945 a 1952
O Detetive Arquivo Particular 1950 a 1951
O Detetive Arquivo da Paróquia de
Santo Antônio de Jesus
Ano I, nº 46 - 04 junho
1948
A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 15 21/08/1953
A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 28 17/01/1954
A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 30 04/01/1954
A Voz das Palmeiras Arquivo Particular Ano I Nº 38 05/05/1954
216
b) Leis, Atas e Decretos.
LEIS, ATAS E
DECRETOS
LOCAL PERÍODO
Livro de Leis e Decretos Arquivo Público Municipal Stº
Ant. de Jesus
1958
Livro Ata Arquivo blico Câmara
Municipal Stº Ant. de Jesus
1959
Livro Ata Arquivo blico Câmara
Municipal Stº Ant. de Jesus
1953
Livro Decretos e
Portarias
Arquivo Público Municipal S
Ant. de Jesus
1945-1956
Livro de Registro de Leis Arquivo Público Municipal S
Ant. de Jesus
1948-1956
Livro de Leis, Decretos e
Portarias
Arquivo blico Municipal de Stº
Ant. de Jesus
1956- 1963
Decreto n.16
Decreto n.24
Decreto n.27
Decreto n.33
Decreto n.44
Decreto n.06
Decreto n.09
Arquivo blico Municipal de Stº
Ant. de Jesus
26-04-1969
08-07-1969
02-10-1969
18-12-1969
22-01-1971
02-09-1971
02-09-1971
c) Registros Eclesiásticos.
REGISTROS ECLESIÁSTICOS LOCAL
Livro de Tombo Nº 2 Arquivo Paróquia de Santo Antônio
Folheto Avulso. Janeiro de 1945. Arquivo Paróquia
Santo Antônio
Livro de Registro de Batizado Nº 13-29. Arquivo da Paróquia de Santo Antônio
1948-1971.
Livro de Registro de Casamento Nº 3-7.
Arquivo da Paróquia de Santo Antônio
1948-1971.
217
d) Fotográficas.
FOTOGRAFIAS
Acervo fotográfico de particulares.
Fotografias da pesquisa de campo.
Acervo fotográfico da Filarmônica Amantes da Lyra.
Acervo fotográfico do site MMA.
218
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literaturamedieval. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
224
ANEXOS
225
ÍNDICE DOS ANEXOS
FIGURA 01 – Mapa das Ruas de Santo Antônio de Jesus (2002)
FIGURA 02 – Feirante João Nunes dos Santos
FIGURA 03 – Barraca do Feirante João Nunes dos Santos
FIGURA 04 – Feirante Augusto Soares da Silva
FIGURA 05 – Feirante Josué Pereira dos Santos
FIGURA 06 – Feirante Vilma da Paixão Silva
FIGURA 07 – Feirante Esmeraldo Nunes dos Santos
FIGURA 08 – Feirante Carlitos Souza dos Santos
FIGURA 09 – Filarmônica Amantes da Lyra – 1965
FIGURA 10 – Cine Rex
FIGURA 11 – Equipe de Futebol Humaitá
FIGURA 12 – Rua da Mangueira
FIGURA 13 – Campo de Aviação
226
FIGURA 01 – MAPA DAS RUAS DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS (2002)
227
FIGURA 02 – FEIRANTE JOÃO NUNES DOS SANTOS
FIGURA 03 – BARRACA DO FEIRANTE JOÃO NUNES DOS SANTOS
228
FIGURA 04 – FEIRANTE AUGUSTO SOARES DA SILVA
FIGURA 05 – FEIRANTE JOSUÉ PEREIRA DOS SANTOS
229
FIGURA 06 – FEIRANTE VILMA DA PAIXÃO SILVA
FIGURA 07 – FEIRANTE ESMERALDO NUNES DOS SANTOS
230
FIGURA 08 – FEIRANTE CARLITOS SOUZA DOS SANTOS
FIGURA 09 – FILARMÔNICA AMANTES DA LYRA – 1965
231
FIGURA 10 – CINE REX
FIGURA 11 – EQUIPE DE FUTEBOL HUMAITÁ
232
FIGURA 12 – RUA DA MANGUEIRA
FIGURA 13 – CAMPO DE AVIAÇÃO
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