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Adail Sebastião Rodrigues Júnior
A representação de personagens
gays na coletânea de contos Stud e
em sua tradução As Aventuras de
um Garoto de Programa
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
Março de 2006
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2
Adail Sebastião Rodrigues Júnior
A representação de personagens
gays na coletânea de contos Stud e
em sua tradução As Aventuras de
um Garoto de Programa
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos
Lingüísticos da Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito para a
obtenção de título de Doutor em
Lingüística Aplicada.
Área de Concentração: Lingüística
Aplicada.
Linha de Pesquisa: H – Estudos da
Tradução.
Orientadora: Profa. Dra. Eliana
Amarante de Mendonça Mendes
(UFMG)
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
Março de 2006
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3
Tese de doutorado apresentada em 27/03/2006 à Banca Examinadora
constituída pelos Professore(a)s:
Drª. Eliana Amarante de Mendonça Mendes – Orientadora
Universidade Federal de Minas Gerais
Drª. Diva Cardoso de Camargo
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – São José do
Rio Preto
Dr. João Azenha Jr.
Universidade de São Paulo – São Paulo
Drª. Sônia Maria de Oliveira Pimenta
Universidade Federal de Minas Gerais
Dr. Carlos Alberto Gohn
Universidade Federal de Minas Gerais
4
A você, querida mãezinha
(1938-2004), dedico esta tese.
Sempre tive a certeza de que
você me inspirou durante
todo o processo de
desenvolvimento desta
pesquisa. Assim, com infinito
amor e gratidão, lhe dou este
presente.
5
Agradeço a Deus, fonte
inexaurível de sabedoria;
À minha orientadora, Profª.
Drª. Eliana Amarante de
Mendonça Mendes, pela
orientação sensata e,
especialmente, por ter
acreditado em mim;
Ao meu querido pai, Adail,
por ter me apoiado durante o
desenvolvimento desta
pesquisa e investido em meu
aperfeiçoamento intelectual;
À Cibele, Tati, Sil, Carol,
Letícia, Roberta e Paulo, pela
amizade e carinho;
À Profª. Drª. Célia
Magalhães, por ter feito
parte desta história;
À Profª. Drª. Sônia Pimenta e
ao Prof. Dr. Carlos Gohn,
pelas ricas sugestões a este
trabalho durante meu exame
de qualificação;
Ao Tobbit (in memoriam), por
tanto amor e fidelidade e,
principalmente, por ter me
ensinado a beleza da
mansuetude;
E, sobretudo, ao Edemar, por
ter suportado conviver com
minha ausência durante a
escrita desta tese e,
principalmente, pelo
companheirismo, paciência e
amor.
6
A lot is really expected of
hustlers, I guess. They are
sort of supposed to be like
priests or psychiatrists or
bartenders.
Phil Andros, Stud, p.58.
7
RESUMO
Seguindo a tradição das abordagens discursivas aplicadas à tradução, sobretudo
um modelo hallidayano para análises textuais, esta tese investiga como as
personagens gays são representadas na coletânea de contos intitulada Stud, escrita
originalmente nos anos 1960 no contexto norte-americano, e em sua tradução As
Aventuras de um Garoto de Programa, traduzida cerca de trinta anos depois no
contexto brasileiro. O sistema de transitividade foi eleito como recurso lingüístico
para a análise das experiências de mundo das personagens gays por meio de suas
ações, comportamentos, sentimentos, relações e falas. A gramática sistêmico-
funcional tem sido usada por um grupo considerável de pesquisadores no campo
dos Estudos da Tradução interessados, sobretudo, na compreensão da tradução
literária de um ponto de vista discursivo. No entanto, no que tange à literatura gay,
o sistema de transitividade ainda não foi aplicado na investigação de como
personagens gays são representadas em narrativas de primeira pessoa. Esta
pesquisa, pois, além de analisar o sistema de transitividade de um corpus
Inglês/Português de contos gays, também utiliza o software WordSmith Tools para
quantificar os dados e analisá-los discursivamente. A metodologia usada teve como
principais etapas os pontos seguintes: (i) todo o corpus foi digitalizado e corrigido;
(ii) em seguida, o corpus foi anotado manualmente a fim de mostrar que papéis
discursivos o narrador e as outras personagens gays assumiam nas estórias – ou
seja, se as personagens estavam agindo, se comportando, sentindo, pensando,
falando, dentre outros aspectos discursivos, de acordo com o processo (verbo)
vinculado a cada uma delas; (iii) por fim, as personagens gays foram investigadas
através do ponto de vista do narrador, admitindo-se que os contos são narrados em
primeira pessoa, com narrador participativo. As análises demonstram,
especialmente, que há uma freqüência significativa de processos que representam
participantes humanos agindo sobre o mundo em seu derredor, bem como partes
dos corpos das personagens, vistas como agentes ou participantes abstratos, que
igualmente agem sobre o mundo ao seu derredor. Os resultados também apontam
para a aplicação de outras possibilidades teóricas para a investigação realizada
nesta pesquisa, principalmente os valores e interesses ideológicos que subjazem à
publicação de Stud nos E.U.A. e sua tradução, cerca de trinta anos depois, no
Brasil.
Palavras-chave: contos gays; estudos da tradução; gramática sistêmico-
funcional; análise textual; transitividade; wordsmith tools.
8
ABSTRACT
Based upon a discursive tradition of Translation Studies, more specifically a
hallidayan model for textual analysis, this dissertation aims at unveiling how gay
characters are represented in a collection of short stories entitled Stud and firstly
published in the 1960s in The United States of America, as well as in its translation
entitled As Aventuras de um Garoto de Programa, which was done around thirty
years later in Brazil. The transitivity system was chosen as a linguistic resource to
make visible the way gay characters represented their world experiences through
their actions, behaviours, feelings, relations and speeches. Systemic functional
grammar has been used by a broad range of scholars in the field of Translation
Studies, who are interested in understanding principally literary translation from a
discursive perspective. Regarding gay literature, however, the transitivity system
has not yet been applied to investigating the way gay characters are represented
through first person narrative. So, this work, besides focussing on the system of
transitivity of an English/Portuguese corpus of a collection of gay stories, also uses
WordSmith Tools software to quantify the data as well as analyse it discursively.
The methodology adopted followed the following steps: (i) the whole corpus was
scanned and corrected; (ii) after that, the corpus was manually tagged in order to
show what role the narrator or any other gay character played in the stories – that
is, if the gay characters were acting, behaving, feeling, thinking, speaking, and so
forth, according to the process (verb) linked to each one of them; (iii) finally, the
gay personages were investigated through the narrator's point of view, since the
short stories are narrated through a first person standpoint, with a participating
narrator. The analyses carried out strikingly show there is a higher frequency of
processes that represent human participants acting upon the world, and parts of
the characters’ bodies, interpreted as abstract agents or participants, which act
upon the world as well. The results also point to the application of some other
theoretical possibilities to the investigation pursued in this dissertation, mainly the
ideological values and interests that lie behind the original publication of Stud in
the U.S. and its translation about thirty years later in Brazil.
Keywords: gay short stories; translation studies; systemic functional grammar;
textual analysis; transitivity; wordsmith tools.
9
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1...................................................................................................................................................... 66
QUADRO 2.....................................................................................................................................................169
QUADRO 3......................................................................................................................................................178
QUADRO 4.....................................................................................................................................................183
QUADRO 5.....................................................................................................................................................187
QUADRO 6.....................................................................................................................................................190
QUADRO 7.....................................................................................................................................................193
QUADRO 8.....................................................................................................................................................199
QUADRO 9.....................................................................................................................................................203
QUADRO 10...................................................................................................................................................206
QUADRO 11...................................................................................................................................................208
QUADRO 12...................................................................................................................................................212
QUADRO 13...................................................................................................................................................214
QUADRO 14...................................................................................................................................................216
QUADRO 15...................................................................................................................................................218
QUADRO 16...................................................................................................................................................220
QUADRO 17...................................................................................................................................................221
QUADRO 18...................................................................................................................................................222
QUADRO 19...................................................................................................................................................224
QUADRO 20...................................................................................................................................................227
QUADRO 21...................................................................................................................................................228
QUADRO 22...................................................................................................................................................230
QUADRO 23...................................................................................................................................................233
QUADRO 24...................................................................................................................................................235
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1........................................................................................................................................................ 40
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 ....................................................................................................................................................146
GRÁFICO 2 ....................................................................................................................................................154
GRÁFICO 3 ....................................................................................................................................................158
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 ......................................................................................................................................................141
TABELA 2 ......................................................................................................................................................143
TABELA 3 ......................................................................................................................................................145
TABELA 4 ......................................................................................................................................................162
TABELA 5 ......................................................................................................................................................174
TABELA 6 ......................................................................................................................................................175
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................12
O escopo desta pesquisa ...................................................................................................12
Meu interesse pelo tema ...................................................................................................17
A LSF, o corpus, a metodologia e os objetivos desta pesquisa....................................19
CAPÍTULO 1 - TRADUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS GAYS..26
1.1 A proposta de Keith Harvey........................................................................................27
1.2 Lingüística Sistêmico-Funcional e representação de personagens gays: a
proposta desta pesquisa....................................................................................................33
1.2.1 Circunstâncias ..........................................................................................................44
1.2.2 Processos ...................................................................................................................50
1.3 Transitividade e representação no gênero do discurso literário...........................60
CAPÍTULO 2 - ABORDAGENS DISCURSIVAS DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO..71
2.1 Definindo o escopo das abordagens discursivas da tradução ...............................71
2.2 Modelos e pesquisas em tradução de base discursiva............................................73
CAPÍTULO 3 - ABORDAGENS NA INTERFACE LINGÜÍSTICA SISTÊMICO-
FUNCIONAL COM OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO DE BASE EM CORPUS...........90
3.1 Pesquisa de base em corpus....................................................................................90
3.2 Estudos da Tradução de base em corpus.............................................................92
3.3 Corpus de pequena dimensão.................................................................................96
CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.......107
4.1 O corpus ......................................................................................................................107
4.2 Contextualizando o corpus: motivo de sua escolha..............................................110
4.3 O software WordSmith Tools, a preparação do corpus e as categorias de
análise...............................................................................................................................118
4.3.1 Preparação do corpus e categorias de análise .................................................123
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DOS DADOS E SEUS RESULTADOS ...........................141
5.1 Analisando o original e sua tradução por meio da Wordlist .....................................141
5.1.1 Representação do narrador/protagonista por meio de tipos de processos..... 146
5.1.2 Representação das personagens por meio de tipos de processos.................154
5.1.3 Representação do narrador/protagonista juntamente com outras
personagens por meio de tipos de processos..............................................................158
5.2 Processos-chave em Stud e Garoto .....................................................................160
5.3 Processos-chave em Stud e Garoto e suas (re)textualizações ....................168
5.3.1 Processos-chave materiais vinculados ao nódulo <protagonista>.......169
5.3.2 Processos-chave comportamentais vinculados ao nódulo
<protagonista>..............................................................................................................178
5.3.3 Processos-chave mentais vinculados ao nódulo <protagonista> .................183
5.3.4 Processos-chave verbais vinculados ao nódulo <protagonista>.........................187
5.3.5 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo <protagonista>............190
11
5.3.6 Processos-chave materiais vinculados ao nódulo <personagem>.........193
5.3.7 Processos-chave comportamentais vinculados ao nódulo <personagem>
............................................................................................................................................198
5.3.8 Processos-chave mentais vinculados ao nódulo <personagem> ..................203
5.3.9 Processos-chave verbais vinculados ao nódulo <personagem> ...................206
5.3.10 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo <personagem>...........208
5.3.11 Processos-chave materiais vinculados ao nódulo <protagonista +
personagem> ...................................................................................................................212
5.3.12 Processos-chave comportamentais vinculados ao nódulo <protagonista +
personagem> ...................................................................................................................214
5.3.13 Processos-chave mentais e verbais vinculados ao nódulo <protagonista +
personagem> ...................................................................................................................215
5.3.14 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo <protagonista +
personagem> ...................................................................................................................215
5.4 Processos-chave no original Stud e seus equivalentes na tradução Garoto
............................................................................................................................................218
COMENTÁRIOS FINAIS ................................................................................................238
REFERÊNCIAS ................................................................................................................247
12
INTRODUÇÃO
O escopo desta pesquisa
Os estudos emergentes gays e lésbicos receberam, segundo Culler (1999),
atenção significativa, no campo do conhecimento dos Estudos Literários, a partir
dos questionamentos epistemológicos influentes da filósofa norte-americana
Judith Butler. Esta teórica propõe, em seu livro Gender Trouble (1990),
sustentando-se na teoria performativa de Austin (1962) e nos Estudos Culturais,
que o gênero masculino ou feminino é um construto performático, resultado de
ações executadas por atores sociais que se reconhecem homem, mulher, lésbica,
gay, transexual, travestido, bissexual, dentre outras variações que mudam de
indivíduo para indivíduo. A execução de atos repetidos e aceitos como típicos de
um gênero social em particular fazem da pessoa que os performam a representação
daquela identidade emblemática.
Ampliando suas discussões num livro intitulado Bodies that Matter: on the
discursive limits of ‘sex’, Butler (1993) acrescenta o caráter reiterativo dos
enunciados performativos à construção do gênero social, cuja particularidade é
renomear, recorrentemente, determinado indivíduo como homem ou mulher,
construções de gênero reconhecidas e legitimadas social e culturalmente, até que
ele ou ela se reconheça como tal. Com base nessas ponderações, Butler (1993)
afirma que o uso do termo ofensivo "queer" para se referir a gays ou lésbicas traz,
em si, a força citacional imputada a ele pela historicidade pejorativa e
13
discriminadora que esse termo tem recebido em um eixo temporal que remonta aos
anos 1960. Tendo como foco de atenção essas colocações, Butler (1993) abre um
campo polêmico de discussões de cujas bases epistemológicas tem origem a
"política queer". Essa política, conforme Butler (1993) afirma, tem por objetivo
reverter a ação pejorativa do termo por meio de seu uso citacional como referência
identitária a gays e lésbicas. Butler (1993), então, propõe que o termo "queer" deve
representar o campo de interesse dos Estudos Queers, a partir dos quais a
investigação da formação histórica da homossexualidade, bem como as formas de
apropriação que o termo tem recebido, serão temas de real importância para os
propósitos epistemológicos desses estudos. Dentro do escopo dos Estudos Queers,
o termo, segundo Butler (1993), receberá novas resignificações, sendo
recorrentemente (re)citado enquanto campo de saber até atingir seu status
identitário reconhecido nas construções discursivas que dão forma às idéias sociais.
Inúmeras são as pesquisas nos Estudos Literários e Lingüísticos nacionais e
internacionais que se preocupam com essa questão epistemológica (para um
mapeamento significativo de teóricos nacionais e internacionais nessa linha de
interesse, ver ABELOVE, BARALE e HALPERIN, 1993; LIVIA e HALL, 1997;
SANTOS e GARCIA, 2002). Já nos Estudos da Tradução, foco de interesse desta
tese, os teóricos que têm se preocupado com a temática "queer" são Keenagham
(1998), Mira (1999) e, sobretudo, Keith Harvey (1998, 2000a, b). Keenaghan
(1998) focaliza suas análises em itens lexicais com o fito de investigar como
mudanças na estrutura lexical do texto traduzido, em comparação como o texto
original, facilitam e/ou repudiam a inserção de conceitos da cultura gay em leitores
14
mais conservadores da cultura receptora. Mira (1999), por sua vez, baseia-se em
teorias dos Estudos Pós-Coloniais e dos Estudos Culturais para observar as
estratégias políticas das traduções gays, destacando que a explicitação da literatura
gay como estilo de escrita, por meio de traduções, é considerada uma estratégia
política de libertação dessa mesma cultura, prática esta intitulada the out-of-the-
closet politics.
Keith Harvey (1998, 2000a, b) elabora suas investigações na interface da
Lingüística, dos Estudos Culturais e da Crítica Literária, caracterizando sua
pesquisa como interdisciplinar. Admitindo, em seu trabalho acadêmico, as
ponderações acerca da política "queer", conforme proposta por Butler (1990, 1993),
Harvey tenta centralizar suas investigações acerca das experiências homossexuais
performadas quando do uso lingüístico do estilo verbal "camp" e as funções que
ele exerce no contexto social da cultura do texto original, bem como os impactos
que este estilo verbal causa na cultura receptora do texto traduzido. Esses estudos
lançam luz sobre as formas discursivas por meio das quais as identidades gays dos
personagens do texto original são construídas durante a tradução. Isso porque,
para Harvey, as estratégias tradutórias do estilo verbal "camp" muito dependerão
da avaliação que o(a) tradutor(a) fizer desse estilo. Para levar a cabo suas
investigações, Harvey utiliza teorias lingüísticas (BARRET, 1997) e a teoria de
polidez (BROWN e LEVINSON, 1987), nomeando sua pesquisa, repito, como sendo
de cunho interdisciplinar.
15
Ao ler os trabalhos de Harvey, pelo fato de este teórico também privilegiar
análises lingüísticas em sua pesquisa, diferentemente de Keenaghan (1998) e Mira
(1999), senti falta de um detalhamento mais minucioso dos papéis discursivos de
representação dos sujeitos gays que esse teórico em tradução apresentava em seu
estudo. Embora seu trabalho seja reconhecido e legitimado pelos Estudos da
Tradução, devido ao seu critério de análise, o detalhamento, no nível lingüístico,
desses participantes não foi, na verdade, a proposta de Harvey, mas, sim, a
identificação mais ampla, de nível sociopolítico, de elementos ideológicos que
subjaziam às construções identitárias de atores sociais gays de sua pesquisa. O que
se vê, de fato, na pesquisa do teórico, são associações de elementos lingüísticos
presentes em suas análises com os traços ideológicos e culturais dos contextos em
que se inserem tanto o texto original quanto o texto traduzido, numa preocupação
constante com o(a) leitor(a).
Diferentemente de Harvey, o enfoque que pretendo realizar nesta pesquisa
privilegia os aspectos discursivos do texto original e de sua re-textualização, dentro
do escopo da Lingüística Aplicada (ver HATIM e MASON, 2004: 8), especialmente
como as personagens gays do corpus de estudo escolhido são representadas. Em
virtude dessas observações, percebi o potencial da Lingüística Sistêmico-Funcional
(doravante, LSF) para análises tradutórias e, então, decidi pesquisar como a figura
do homossexual masculino (doravante, gay) se construía na trama dos textos,
original e tradução, e suas relações com as construções dessa figura nos contextos
sociais do texto original e de sua tradução. Ou seja, os propósitos desta pesquisa de
doutorado centram-se na noção de representação a partir da perspectiva
16
Sistêmico-Funcional (EGGINS, 1994, 2004; EGGINS e MARTIN, 1997;
HALLIDAY, 1978, 1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004; MARTIN e
ROSE, 2003), em cujo cerne de análise a linguagem é fator preponderante,
sobretudo o sistema de transitividade, para a construção representacional das
personagens gays do corpus de estudo desta tese. Dentro dessa perspectiva, tentei
desenvolver um trabalho que contribuísse para pesquisas dos Estudos da Tradução,
nos contextos nacional e internacional, que utilizam a LSF como base teórica de
suas investigações. É fato, pois, que a temática aqui tratada, na interface dos
Estudos da Tradução no Brasil e a LSF, revela-se original, uma vez que, até o
presente momento, eu desconheço pesquisas nacionais que utilizam a LSF para a
investigação dessas questões.
1
1
Durante o exame de qualificação desta tese, os Ilmos. Professores Doutores Sônia Pimenta e Carlos
Gohn questionaram-me por que eu não havia utilizado a Análise Crítica do Discurso (ACD) como teoria e
método para investigar o tema desta pesquisa. Diante desse questionamento, creio ser pertinente esta
nota de pé de página explicando, mesmo que sucintamente, o motivo de minha escolha pela LSF.
Primeiramente, a ACD, sobretudo os trabalhos de Norman Fairclough (CHOULIARAKI e
FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2003), tem como base a LSF para suas análises discursivas. No
entanto, além da investigação da linguagem como um dos elementos constitutivos das práticas sociais,
Chouliaraki e Fairclough (1999) apresentam outras questões de fundamental interesse da ACD, quais
sejam, (i) os problemas sociais circunscritos à vida enquanto sistema aberto a mudanças; (ii) relações de
poder e hierarquias; (iii) sociedade e cultura como resultados de práticas discursivas; (iv) o discurso
enquanto ideologia; (v) a historicidade do discurso; e, sobretudo, (vi) o discurso como prática social e
agente de mudanças. Uma pesquisa que abrangesse todos esses aspectos deveria, sem dúvida, limitar-se
a um corpus muito mais resumido do que o utilizado nesta pesquisa de doutorado, uma vez que o(a)
pesquisador(a) necessitaria lançar mão de teorias sociais e culturais para a investigação de elementos
discursivos presentes (e também velados) em seus dados que apontassem essas questões. Fairclough
(2001: 230) se posiciona a esse respeito esclarecendo que se o diálogo entre as teorias da linguagem e as
teorias sociais e culturais pretende ser relevante, há que se adotar uma perspectiva transdisciplinar, e
não apenas interdisciplinar. Desta forma, Fairclough (2001) situa a análise lingüística e semiótica em um
plano cuja relencia depende do(s) problema(s) sociais eleitos pelo(a) analista para investigação.
Segundo, Fairclough (2001, 2003) esclarece que os interesses analíticos da ACD partem de um
problema social para, então, verificar suas formações discursivas, usando, para tal, teorias sociais e
culturais sobre ideologia, interdiscursividade, poder, hegemonia e identidade. No caso desta tese, eu não
parti de um problema social, mas, especificamente, do propósito de investigar como personagens gays
são representadas nos dados aqui analisados. Assim, meu enfoque é eminentemente discursivo.
Em virtude dessas ponderações, a LSF revelou-se teoria pertinente aos meus propósitos de
pesquisa, por ser uma teoria de investigação da linguagem que leva em conta os aspectos sociais
peculiares ao discurso e aos sujeitos (gays) representados por intermédio dele.
17
Meu interesse pelo tema
Além disso, meu interesse pela temática gay nasceu sobretudo de minha
própria experiência em movimentos gays no Brasil com agendas políticas e sociais
que defendiam, e ainda defendem, a naturalização dos discursos estereotipados a
respeito do homossexualismo na sociedade heterossexual brasileira. O que se vê
atualmente é uma tentativa do que eu denominaria “desguetificação gay”, ou seja,
a busca pela notoriedade por meio do abandono do confinamento espacial e social
dos gays em locais privados, de modo a atingir o reconhecimento das diferenças e
de viabilizar a convivência do contexto heterossexual com essas diferenças sem
marginalizá-las.
Em um estudo interessante sobre o conceito de "Comunidade", Bauman
(2003:105), sociólogo polonês, assim se expressa sobre a definição de "gueto":
[u]m gueto (...) combina o confinamento espacial com o
fechamento social: podemos dizer que o fenômeno do gueto
consegue ser ao mesmo tempo territorial e social, misturando a
proximidade/distância sica com a proximidade/distância moral
(...) (ênfases no original)
Tendo em vista a definição de Bauman, percebe-se que não é novidade o fato
de os gays terem de se confinar geralmente em bares e boates como locais
“secretos” de manifestação de suas ações sociais cotidianas, o que, de fato,
caracterizou a cultura gay como a cultura do gueto. Como bem lembra Berutti
(2002), a cultura gay atual encontra sua fundamentação histórica nos turbulentos
anos 1960 nos Estados Unidos, principalmente com o ocorrido na noite de 27 de
18
junho de 1969 no bar gay The Stonewall Inn, que operava na Christopher Street,
número 53, Nova Iorque. Nessa data, uma batida policial provoca uma revolta geral
nos freqüentadores do Stonewall, a qual durou cinco dias, e, embora o bar tenha
sido definitivamente fechado, os manifestantes gays continuaram suas
reivindicações. Após um ano, com a intenção de comemorar a revolta nesse bar
gay, a passeata do Gay Pride (“Orgulho Gay”) sai às ruas de Nova Iorque,
estabelecendo, então, o marco histórico do aparecimento público dos movimentos
gays nos Estados Unidos: os movimentos gays, portanto, se fortaleceram
suficientemente para vir a público e constituir notícia.
O que se vê é que o episódio no Stonewall (BERUTTI, 2002: 28) “tornou-se
emblemático na história dos Estados Unidos assim como na literatura, uma vez que
foi igualmente transformado em um marco divisório na produção literária gay”.
Acredito, portanto, que a LSF pode lançar luz sobre os estudos de literaturas gays e
suas formas de construção discursiva das personagens que nelas se inserem. Em
virtude do exposto, nesta pesquisa aplico a transitividade como forma de
inaugurar a contribuição da Lingüística Aplicada para o estudo de obras literárias
gays. Sobretudo, a relevância desta pesquisa é mostrar a contribuição da LSF, mais
precisamente o sistema de transitividade, para a compreensão da representação
das experiências de mundo das personagens gays presentes nos dados desta tese e,
conseqüentemente, para o entendimento de seus discursos. Isso posto, percebe-se
que os resultados da análise limitam-se às possibilidades analíticas da LSF, mais
especificamente à representação das personagens gays com base no sistema de
transitividade.
19
A LSF, o corpus, a metodologia e os objetivos desta pesquisa
A LSF remonta à década de 1960, especialmente aos trabalhos do lingüista e
semioticista Michael Alexander Kirkwood Halliday, seu fundador. A teoria
sistêmica de Halliday foi influenciada pelo trinômio epistemológico dos estudos de
Malinowski – Firth – Whorf. O antropólogo Malinowski (1923) influenciou
Halliday ao afirmar, com base em sua pesquisa nas ilhas Trobriand, na Polinésia,
que termos lingüísticos específicos de uma determinada cultura não podem ser
traduzidos sem se levarem em conta os aspectos sociais e culturais daquela
comunidade. A partir disso, Halliday percebeu que a linguagem não é um sistema
auto-suficiente, mas dependente do contexto em que é usada.
As contribuições dos estudos do gramático Whorf (1956) à teoria hallidayana
recaem sobre a própria linguagem, uma vez que Whorf, contrariamente a
Malinowski, e a partir de seus estudos gramaticais, privilegiava a linguagem como
elemento essencial de ordenação e organização social. Neste sentido, Halliday
conclui que a gramática é fundamental para se entender os níveis mais amplos da
estrutura social. Contudo, Halliday afirma, influenciado por Malinowski, que uma
gramática que dê conta de representar o social e, ao mesmo tempo, constituí-lo,
deve ser funcional em sua base. Neste ponto, Halliday percebe a importância dos
trabalhos do lingüista Firth (1957) às suas perquirições. Firth, sustentando-se em
Malinowski, elege, como ponto de vista de suas análises, o eixo paradigmático
enquanto instância sistêmica de uma determinada língua que confere múltiplas
escolhas aos seus usuários para a representação de realidades de mundo por
20
intermédio da linguagem. Para levar a cabo suas investigações, Firth acrescenta ao
conceito de “contexto de situação” de Malinowski, ou seja, a visão de que a
linguagem, para significar, depende do contexto em que é usada, a noção de
“sistema” – conjunto de possibilidades de uso da linguagem.
Avançando em suas pesquisas, sem, no entanto, perder de vista as
ponderações de Firth, Halliday (1985) sistematiza sua Gramática Sistêmico-
Funcional (doravante, GSF), cuja base epistemológica é a visão sistêmica da
linguagem. Segundo Halliday (1985: xiv), “[a] teoria Sistêmica é uma teoria de
significado como escolha, por meio da qual a linguagem, ou qualquer outro sistema
semiótico, é interpretada como redes de opções que se imbricam”.
2
Tendo como
base essa ponderação, Halliday (1985) desenvolveu uma gramática (GSF) que
representasse as realidades de mundo dos usuários da língua (meta-função
ideacional), através de suas interações e construções de significados interpessoais
com seus interlocutores (meta-função interpessoal), através de textos organizados
para determinados fins ou objetivos comunicativos (meta-função textual). Para os
propósitos desta pesquisa, a meta-função ideacional, sobretudo a função
experiencial, foi eleita como teoria-chave para a análise. Isso porque a meta-função
ideacional representa os participantes envolvidos na realização discursiva de suas
ações, comportamentos, pensamentos, relações e falas, por meio de processos a
eles vinculados, e das circunstâncias que contextualizam e caracterizam suas
2
Minha tradução de: "Systemic theory is a theory of meaning as choice, by which a language, or any
other semiotic system, is interpreted as networks of interlocking options..."
21
realizações discursivas, configurando-se, portanto, como a teoria-base para a
representação das personagens gays que ora investigo.
Cabe ressaltar que, para os propósitos desta pesquisa, o software
WordSmith Tools, versão 4.0, foi escolhido como ferramenta de análise pela
facilidade de organização e seleção automática dos dados e, sobretudo, porque tem
sido usado na interface com a LSF e suas categorias de análise por alguns
pesquisadores dos Estudos da Tradução no contexto internacional, como é o caso
de Mona Baker, Sara Laviosa, Jeremy Munday, Dorothy Kenny, dentre outros.
O corpus de análise desta pesquisa é uma coletânea de contos gays, escrita
na década de 1960 por Samuel Steward, com o pseudônimo de Phil Andros, no
contexto norte-americano, e sua tradução para o português brasileiro, feita por
Dinah Klebe, ao final da década de 1990, constituindo-se, pois, em um estudo de
caso
3
. Segundo Smith (1993), os anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos se
caracterizaram pelo fortalecimento de movimentos de minorias, dentre eles o
feminismo, o racismo e, sobretudo, os movimentos gays e lésbicos. Estes últimos
encontraram resistência acirrada de ações coletivas radicais e discriminatórias
principalmente na década de 1960. Os movimentos sociais que ocorreram nesse
período histórico norte-americano foram o ponto de partida para inúmeras
manifestações e reivindicações de grupos minoritários por seus direitos, muitos dos
3
Por ser um estudo de caso, os resultados obtidos nesta pesquisa limitam-se ao corpus investigado.
Todavia, esses resultados, bem como a metodologia usada nesta investigação, abrem espaço para
discussões futuras acerca da representação de personagens gays em discurso literário e não-
literário.
22
quais iam de encontro às normas de conduta marginalizadoras estabelecidas pela
ideologia política e social dos Estados Unidos.
A primeira edição da tradução de Stud para o português brasileiro, intitulada
As Aventuras de um Garoto de Programa, pela Edições GLS, de São Paulo, é
lançada em 1998, cerca de trinta anos depois da escrita do texto original, em um
contexto social nacional em que os movimentos gays se fortaleciam e,
conseqüentemente, criavam meios de expandir suas ideologias. Uma das formas
utilizadas para essa expansão foi a crescente venda de livros e revistas nacionais
cujas temáticas e chamadas, respectivamente, apresentavam, declaradamente, a
vida gay como estilo e prática social a caminho da legitimação (TREVISAN, 2004).
Segundo Culler (1999), com o advento dos Estudos Culturais, literaturas
consideradas canônicas abriram espaço para literaturas minoritárias ou
marginalizadas, as quais passaram a ser o foco de atenção de teóricos dos Estudos
Literários engajados na legitimação desses tipos de literatura como
reconhecidamente importantes para a (re)afirmação dos grupos sociais que elas
representavam. As narrativas que compõem as literaturas marginalizadas, afirma
Culler (1999: 84), “são a principal maneira pela qual entendemos as coisas, quer ao
pensar em nossas vidas como uma progressão que conduz a algum lugar, quer ao
dizer a nós mesmos o que está acontecendo no mundo”. Esta é a primeira
justificativa de minha escolha pela coletânea de contos que investigo neste
trabalho. Em outras palavras, por meio dos contos de Stud e de sua tradução, é
possível perceber como as personagens gays de suas estórias são representadas,
23
isto é, como elas agem, comportam-se, pensam, falam e se relacionam umas com as
outras, caracterizando, assim, formas de vida homossexual possivelmente análogas
às de seus leitores (gays).
Um outro ponto que chamou minha atenção para essa coletânea de contos
foi exatamente o eixo histórico e político em que ela surgiu, mais precisamente, no
contexto norte-americano da década de 1960, em cuja década várias manifestações
gays e lésbicas ebuliram e estabeleceram o marco para o surgimento dos
movimentos gays que perduram até hoje (BERUTTI, 2002; FACCHINI, 2005). A
coletânea de contos que ora investigo foi escrita em um contexto social norte-
americano conturbado, em que seu autor buscou expressar a cultura gay da época,
sobretudo a construção social do homossexual masculino em suas estórias. Seus
contos tentam representar o modus vivendi dos gays e suas ações em sociedade.
Essa representação pode ser percebida nas escolhas lingüísticas que o autor fez
para retratar a realidade gay de sua época e, ao mesmo tempo, reafirmar uma
cultura que emergia dos guetos em busca de inclusão social.
No caso da tradução, cerca de trinta anos depois, a década de 1990 no Brasil
caracterizou-se, segundo Trevisan (2004), como o período de reafirmação dos gays
em um momento social crítico do pós-AIDS. Nesse contexto, a sociedade brasileira
reergueu-se depois da avassaladora contaminação do vírus HIV causada,
principalmente, por relações sexuais “ilícitas”. Esse fato histórico foi denominado
"peste guei", como coloca Trevisan (2004). Percebe-se, então, que a tradução de
Stud surgiu em um contexto social polêmico, fato que me levou às seguintes
24
questões: como foram representadas as personagens gays na coletânea de contos
Stud e em sua tradução As Aventuras de um Garoto de Programa? Que
constribuições teóricas e metodológicas a LSF pode oferecer para o entendimento
dessa representação? O contexto social em que Stud foi produzido, bem como o
contexto social da tradução, influenciaram a representação dessas personagens?
Em virtude desses questionamentos, surgiram, então, os objetivos desta
pesquisa, em nível descendente de generalidade: (i) contribuir para as abordagens
discursivas da tradução com a análise da representação de personagens gays na
colenea de contos Stud e em sua tradução As Aventuras de um Garoto de
Programa; (ii) mapear e analisar elementos centrais (processos e participantes) e
analisar elementos periféricos (circunstâncias) nas orações do corpus investigado;
e (iii) investigar como essas personagens são representadas, por meio da análise de
processos, participantes e circunstâncias presentes na estrutura experiencial das
orações da coletânea de contos Stud e em sua tradução, levando em conta a variável
de campo do registro de ambas as obras (ver Capítulo 1).
Esta tese compõe-se de seis capítulos. No primeiro, adentro a temática
específica desta pesquisa, qual seja, as abordagens teóricas da tradução que
investigam a construção do discurso gay, com enfoque nos estudos de Keith
Harvey. Ainda nesse capítulo, apresento a abordagem da GSF como base teórica de
minhas análises. No segundo capítulo, faço o mapeamento das abordagens
discursivas dos Estudos da Tradução enquanto campo teórico em que meu trabalho
se insere. No terceiro capítulo, faço um mapeamento das abordagens discursivas da
25
tradução que elegem a LSF como teoria de base e a Lingüística de Corpus como
princípio metodológico, sobretudo as pesquisas que utilizaram o software
WordSmith Tools. No quarto capítulo, discuto os critérios metodológicos desta
pesquisa e os procedimentos de tratamento dos dados. No quinto capítulo,
apresento as análises do corpus desta pesquisa, dando ênfase aos processos-chave
apresentados pela ferramenta Keywords do software WordSmith Tools 4.0 e suas
(re)textualizações. No sexto e último capítulo, declino os comentários finais,
sobretudo os pontos principais dos resultados desta pesquisa e as perspectivas de
outras possíveis aplicações aos dados desta tese.
26
CAPÍTULO 1 - TRADUÇÃO E A REPRESENTAÇÃO
DE PERSONAGENS GAYS
“... gay readers will turn to gay fiction in order to see reflected
and illuminated aspects of their own experience and
also to have reconfirmed the existence of other voices
who speak of struggles and joys comparable to their own. “
Keith Harvey, Gay Community, Gay Identity and the Translated Text, p.138.
Dois teóricos no campo dos Estudos da Tradução que focalizam a questão
das identidades gays em traduções são Keenaghan (1998) e Mira (1999) nas
vertentes dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais
4
. Keenaghan se baseia em análises
lexicais para investigar como uma mudança no léxico da tradução, quando
comparada com o original, força a inserção de conceitos da cultura gay em leitores
4
No âmbito dos Estudos Culturais, as questões acerca das minorias ganharam vulto com os
trabalhos de Stuart Hall, Raymond Williams e Richard Hoggart (cf. EDGAR e SEDGWICK, 2003),
fundadores do Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies, em 1964. Segundo Edgar e
Sedgwick (2003: 116), “[o] termo 'estudos culturais' pode ao mesmo tempo ser amplamente usado
para se referir a todos os aspectos do estudo da cultura, e como tal ser tomado para incluir as
diversas formas em que a cultura é compreendida e analisada, por exemplo, na sociologia, na
história, na etnografia, na crítica literária e mesmo na sociobiologia, e, mais precisamente, ser usado
para se referir a um campo distinto da pesquisa acadêmica”.
A perspectiva pós-colonialista a que me refiro no texto indica, nos trabalhos de Keenaghan
(1998) e Mira (1999), a ênfase a acontecimentos sociais, políticos e econômicos que ocorreram no
período após a Segunda Guerra Mundial. Esses autores analisam as estratégias discursivas e
políticas de representação da identidade gay no discurso literário do pós-guerra. Loomba (1998)
afirma que o termo pós-colonialismo tem recebido interpretações heterogêneas, devido à gama de
aspectos teóricos com os quais ele lida, tanto no âmbito dos estudos culturais, econômicos, políticos
e sociológicos, quanto no âmbito dos estudos literários, de gênero social e de identidades.
Os propósitos desta pesquisa de doutorado, como ficarão claros a seguir, estão centrados na
noção de representação a partir da perspectiva Sistêmico-Funcional (EGGINS, 1994, 2004;
EGGINS e MARTIN, 1997; HALLIDAY, 1978, 1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004;
MARTIN e ROSE, 2003), em cujo cerne de análise a linguagem é fator preponderante, sobretudo o
sistema de transitividade, para a construção representacional das personagens gays do corpus de
estudo desta tese.
27
mais conservadores da cultura receptora. Mira, por seu turno, sustenta-se em
teorias dos Estudos Pós-Coloniais e dos Estudos Culturais para investigar as
estratégias políticas das traduções gays, afirmando que o fato mesmo de explicitar a
literatura gay através de traduções é uma estratégia política de libertação dessa
mesma cultura (the out-of-the-closet politics).
Já a pesquisa de Keith Harvey (1998, 2000a, b) localiza-se na interface da
Lingüística, dos Estudos Culturais e da Crítica Literária, portanto, uma pesquisa de
cunho interdisciplinar. O interesse central de Harvey é investigar os aspectos
sociais e ideológicos circunscritos à figura do indivíduo gay que subjazem à
tradução, através da aplicação de teorias lingüísticas e pragmáticas, como a
sociolingüística (BARRET, 1997) e a teoria de polidez (BROWN e LEVINSON,
1987). Para os objetivos desta pesquisa, centrar-me-ei nos estudos de Harvey, por
ser o teórico que focaliza estruturas lingüísticas em sua análise, ainda que esta seja
de base eminentemente cultural.
1.1 A proposta de Keith Harvey
Em sua tese de doutorado, Harvey (2000b) aborda, à luz das teorias
dos Estudos Culturais e dos Estudos Lingüísticos, a associação de um estilo
verbal específico dos homossexuais masculinos norte-americanos, conhecido
em língua inglesa como camp, a personagens de romances americanos do período
pós-guerra e modificações desse estilo na tradução desses romances para o francês.
Segundo Harvey (1998), camp tem sido considerado o estilo verbal usado para
28
representar as identidades de personagens homossexuais no discurso literário
ficcional. Há, conforme Harvey (1998), duas dimensões distintas que precisam ser
levadas em conta ao se investigar esse estilo verbal: a dimensão micro, ou
lingüística, facilmente perceptível na superfície do texto original, e a dimensão
macro, ou os valores culturais mais amplos que têm sido estabelecidos como
representativos das identidades homossexuais ou gays contemporâneas, cujos
traços distintivos não são facilmente percebidos pelo tradutor. Essas duas
dimensões, segundo Harvey (1998), constituem a representação dessas
identidades, tendo na dimensão macro os valores que irão fundamentar as
identidades gays.
Tendo como base fundamental as teorias literárias acerca da paródia,
Harvey desenvolve uma análise descritiva desses romances, declarando que há uma
característica de feminilidade no discurso das personagens que pode levar o(a)
tradutor(a) a encontrar problemas de interpretação cultural das identidades gays
no texto original. Embora tais características de feminilidade possam ser
facilmente identificadas nas estruturas do texto original e de sua tradução, na
dimensão cultural, afirma Harvey, sobretudo nos contextos culturais norte-
americano, britânico e francês do pós-guerra, o estilo camp pode ser visto como
estratégia textual com funções discursivas e culturais diferenciadas. Essas funções,
sublinha Harvey, estão relacionadas principalmente com os aspectos subjetivos
relativos a essas identidades, em relação à sua comunidade social, sua participação
política pela defesa de direitos e liberdades e, notoriamente, como produto, ou
comódite cultural, oriunda de movimentos gays da década de 1990 nos Estados
29
Unidos. Sustentando-se nessas premissas, Harvey desenvolve um modelo
intercultural de análise de personagens gays, em especial o homossexual masculino
dos anos 1990, que tentam ser reconhecidos e respeitados nos contextos sociais,
políticos e culturais da era pós-moderna. Harvey vê na tradução uma ponte para
essas manifestações interculturais, desenvolvendo, assim, um modelo cultural e
lingüístico para investigar essas manifestações.
As análises das traduções na pesquisa de Harvey (2000b) revelaram
negociações complexas acerca do estilo camp por parte dos tradutores franceses, os
quais tendiam sempre a minimizar as construções culturais do contexto norte-
americano, representando as personagens gays enquanto pertencentes a sub-
culturas significativamente mais veladas. A fim de explicitar essas relações
interculturais por meio de traduções, Harvey (2000a) sugere uma abordagem que
associe a “identidade gay” à “comunidade gay”, uma vez que a primeira tanto se
constrói na segunda, quanto contribui para a construção desta. Para Harvey, os
termos “comunidade” e “identidade” podem ser entendidos somente um em
relação ao outro, uma vez que, segundo este teórico, o processo de identificar-se
como gay pressupõe a convivência com outros indivíduos gays inseridos em grupos
ou comunidades afins. Referindo-se mais especificamente à escrita gay e sua
tradução enquanto instrumento de validação da identidade e comunidade gays,
Harvey (2000a: 140) pontua que
‘a escrita gay’ é, talvez mais que tudo ou qualquer outra coisa, um
gênero literário que explora os parâmetros da experiência gay com o
30
intuito de validar uma posição identitária e criar um espaço
interacional para a formulação e a recepção de vozes gays. A
tradução enquanto atividade -- e os textos traduzidos enquanto
produtos -- operam na elaboração textual dessa posição identitária,
ou para introduzi-la como um recurso inovativo no polissistema da
cultura receptora, ou para modificá-la (acentuando-a ou atenuando-
a) para o(a) leitor(a) da cultura receptora, como conseqüência das
pressões culturais às quais esse(a) leitor(a) está sujeito(a).
5
(destaques no original)
Em virtude dessa definição, o objetivo central de Harvey (2000a) é perceber
como a tradução da escrita gay é realizada na comunidade receptora e se há formas
de censura desse tipo de escrita nesta mesma comunidade, visto que para esse
teórico (2000a: 139) é perfeitamente possível ocorrer estratégias de ‘domesticação’,
no sentido exposto por Venuti (2002), tornando a leitura mais ‘fluente’ e ‘palatável’
para o(a)s leitore(a)s da cultura receptora.
Em um artigo intitulado Gay Community, Gay Identity and the Translated
Text, Harvey (2000a: 154-157) faz uma análise de um excerto da peça teatral
Angels in America, a Gay Fantasia on National Themes; Part One: Millennium
Approaches, de Tony Kushner. O trecho da peça expressa o desespero de Louis a
respeito da situação política norte-americana, de seu amor por Prior e de sua
própria saúde, visto que Louis, infectado pelo vírus da AIDS, apresenta os
primeiros sintomas de desenvolvimento da doença. Sua interação conversacional se
dá com Belize, um amigo gay.
5
Minha tradução de: “‘gay writing’ is, perhaps above all else, a literary genre that explores the
parameters of gay experience in order to validate an identity position and create an interactional
space for the formulation and reception of gay voices. Translation as an activity -- and translated
texts as products -- operate with the textual elaboration of this identity position, either to introduce
it as an innovative device in the target cultural polysystem or to modify (heighten or attenuate) it for
the target reader as a consequence of the target cultural pressures to which he or she is subject.”
31
BELIZE: [...] Look at that heavy sky out there...
LOUIS: Purple.
BELIZE: Purple? Boy, what kind of homosexual are
you, anyway?
That’s not purple, Mary, that colour up there is (Very
grand) mauve.
A análise de Harvey (2000a) pontua o peso cultural do adjetivo purple como
fonte de humor quando Belize se autoparodia como gay ao expressar uma espécie
de sensibilidade a fatos relacionados com cores que, segundo Harvey, são usados
para estereotipar os homossexuais enquadrando-os como profissionais de belas
artes ou como cabeleireiros. Belize, neste sentido, critica Louis pela má aplicação
de seus conhecimentos acerca das cores, o que não se enquadra ao perfil de um
homossexual.
O mesmo acontece na tradução para o francês, em cuja análise Harvey
(2000a) sublinha que, embora a sensibilidade às cores seja um fato cultural em
ambas as culturas do texto original e do texto traduzido, as questões sobre valores
identitários e de comunidade são peculiares aos sujeitos gays e seu modus vivendi
e, portanto, com características próprias em cada um desses contextos culturais.
BELIZE: [...] Regarde comme le ciel est lourd là-haut...
LOUIS: Pourpre.
BELIZE: Pourpre? Mais, enfin, quel genre d’homosexuel
es-tu? Ça ce n’est pas du pourpre, Josiane, cette
couleur là-haut (Très grandiose) c’est du mauve.
32
O ponto central para Harvey se encontra não na equivalência entre os
termos purple-pourpre e mauve, mas no uso de Mary, no original, que reafirma a
condição gay de Louis de uma forma satírica, direcionando o leitor para o uso de
uma colocação (collocation) em língua inglesa, Muscle Mary, que retrata um
homossexual afeito ao culto ao corpo (bodybuilder). Já na tradução, o uso do
substantivo Josiane possui um potencial cômico que causa outro tipo de impacto
no público-leitor francês, sinalizando para a idéia de “uma mulher de classe
trabalhadora, tagarela e provavelmente vulgar”
6
(p.158).
Embora o modelo de Harvey traga muitas contribuições para os Estudos da
Tradução, nesta pesquisa me proponho a uma análise com base em outros
referenciais teóricos discursivos para o estudo das representações das personagens
gays no corpus como um todo, dado que, ao ler os trabalhos de Harvey, senti falta
de uma análise discursiva mais ampla que referendasse melhor os resultados da
pesquisa do teórico. Fazendo um movimento contrário aos estudos de Harvey, os
quais partem de uma perspectiva eminentemente cultural para avaliar traduções e
perceber como as identidades gays são nelas representadas, nesta pesquisa parto
de uma análise lingüístico-discursiva, principalmente do sistema de transitividade,
para perceber como as personagens gays, mais especificamente o homossexual
masculino, do corpus de estudo desta tese representam suas realidades de mundo.
Nesta pesquisa, pois, privilegio a instância discursiva, de modo a poder
correlacionar as análises lingüísticas do original e da tradução com os contextos de
situação em que ambas as obras surgiram.
6
Minha tradução de: “... a working class woman, loud-mouthed and probably coarse...”
33
Em virtude dessas ponderações, a abordagem na interface entre a teoria
Sistêmico-Funcional e pesquisas em corpus de pequena dimensão parece ser mais
produtiva para os objetivos deste trabalho. A escolha pela LSF se deu pela
necessidade de se focalizar mais o texto e perceber que escolhas lingüísticas são
feitas para a representação das realidades de mundo dessas personagens gays. Já a
motivação por pesquisas em corpus de pequena dimensão surgiu do potencial
analítico e descritivo que os estudos em corpora têm oferecido às pesquisas em
tradução, sobretudo pesquisas que tencionam investigar aspectos discursivos de
corpora pequenos, como é o caso desta pesquisa. Na seção seguinte, portanto,
apresento o sistema de transitividade da GSF de Halliday e suas categorias,
explorando-as e desdobrando suas aplicações conforme os estudos de Simpson
(1993), Montgomery (1993), Martin e Rose (2003), Eggins (1994, 2004) e Eggins e
Martin (1997), já demonstrando as categorias de análise escolhidas para esta
pesquisa.
1.2 Lingüística Sistêmico-Funcional e representação de personagens
gays: a proposta desta pesquisa
A base teórica da teoria Sistêmico-Funcional hallidayana remonta ao Cours
de linguistique générale, de Ferdinand de Saussurre (1916), de cuja obra Halliday
(1978) extrai a noção de dimensão “sintagmática” e “paradigmática” que inspira
sua teoria. Enquanto que para Saussurre o eixo sintagmático se posiciona na
horizontalidade da oração gramatical, dado que as palavras se estruturam em
34
seqüências, e o eixo paradigmático reflete as escolhas lexicais do usuário da língua,
para Halliday (1978; 1985; 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) a relação
sintagmática é mormente vista como uma “cadeia” (chain) que estrutura a oração,
ao passo que a relação paradigmática é interpretada como “escolhas” (choices) que
o usuário da língua executa com base num “sistema” (system) amplo e abstrato de
opções léxico-gramaticais. Segundo Halliday (1978, 1985, 1994), a teoria que subjaz
à sua é conhecida como teoria ‘sistêmica’, ou seja, uma teoria de significados como
escolhas, através da qual uma língua, ou qualquer outro sistema semiótico, seja
interpretada como uma cadeia de opções que se imbricam.
Em virtude dessas colocações, Halliday (1978) adiciona às relações
sintagmáticas e paradigmáticas de Saussurre a noção de “sistema” originária de
Firth (1957). Este teórico vê o fenômeno lingüístico aliado ao contexto de uso da
língua, ao passo que Saussurre (1916) privilegia sobremodo a langue, ou seja,
conjunto de signos da língua ou sistema lingüístico abstrato partilhado pelos
falantes de uma língua, em detrimento da parole, isto é, atos específicos de
comunicação lingüística ou enunciados reais produzidos por falantes em situações
reais. Neste sentido, Firth (1957) se preocupou em explorar o papel do indivíduo
como membro da sociedade, dando ênfase ao modelo tripartite homem-natureza-
linguagem.
Seguindo a linha de raciocínio de Firth, Halliday (HALLIDAY e HASAN,
1985) igualmente sustenta sua teoria Sistêmico-Funcional nos estudos do
antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1923), quando este teórico cunha o
35
termo “contexto de situação”. A idéia central que está por trás dessa noção é o fato
de que para compreendermos um enunciado, há que se conhecer não apenas os
significados literais das palavras, mas, sobretudo, o contexto social donde o
enunciado surgiu. Ou seja, “significados culturais emergem do entendimento de
como os indivíduos usam sua língua natural” (SPRADLEY, 1979: 82, itálico no
original)
7
. O antropólogo suíço Dan Sperber (1992: 25) esclarece bem essa questão:
Se definirmos ‘significação’ de uma maneira precisa, como em
lingüística, os factos de significação estão, com certeza,
omnipresentes na cultura, mas nunca isolados: entrelaçam-se com,
por exemplo, os factos ecológicos e psicológicos duma outra
natureza.
Noutras palavras, a constituição de significados por meio do uso da linguagem em
contexto faz emergir as representações de mundo que os usuários da língua
constroem ao interagirem uns com os outros em determinadas situações sociais.
A fim de descrever essa rede complexa de relações sociais, Halliday
(HALLIDAY e HASAN, 1985) aplica a noção de “contexto de situação” à análise
discursiva de textos escritos ou falados
8
, esclarecendo que textos são, na verdade, a
realização ou materialização do sistema semiótico de um determinado contexto
social. Na tentativa de interpretar o contexto social donde o processo comunicativo
se origina, Halliday (HALLIDAY e HASAN, 1985) explora o termo “contexto de
cultura”, também desenvolvido por Malinowski, com o fito de ampliar a noção de
7
Minha tradução de: “Cultural meaning emerges from understanding how people use their ordinary
language”.
8
Para Halliday (HALLIDAY e HASAN, 1985: 10),qualquer instância de linguagem em uso que
exerça papel significativo em um determinado contexto de situação é, por este motivo, denominada
texto” (minha tradução). Adoto esta definição para fins de clareza do termo.
36
“contexto de situação”. À primeira noção (contexto de cultura), Halliday alia o
conceito de “gênero”; à segunda noção (contexto de situação), Halliday associa a
definição de “registro”.
Segundo Halliday (HALLIDAY e HASAN, 1985), gêneros são processos
sociais com objetivos específicos, englobando desde rotinas diárias que os usuários
da língua executam (compras, trabalho, dentre outras) até formas particulares de
vida social (ir à igreja, assistir à TV, dentre outras). De igual modo, Halliday
também inclui nessa categoria os gêneros típicos da área educacional, tais como,
aulas expositivas, narrações, palestras, dentre outras. O importante para Halliday é
esclarecer que esses gêneros possuem suas estruturas distintas, dado o propósito
social que exercem em cada cultura. Com efeito, os gêneros ocorrem em situações
específicas, com características igualmente específicas. Essas “situações
específicas” formam o “contexto de situação” cunhado por Malinowski (1923) e
associado por Halliday (HALLIDAY e HASAN, 1985) ao “registro”.
O registro ganha características discursivas conforme variações contextuais
expressas por intermédio do “campo” (field), das “relações” (tenor) e do “modo”
(mode)
9
. O campo, para Halliday, se refere ao que ocorre num determinado
contexto de situação, à natureza da ação social em andamento e às atividades ou
práticas sociais que os participantes da ação desempenham; as relações se referem
9
Adoto, nesta pesquisa, as traduções dos termos da teoria Sistêmico-Funcional hallidayana
aprovadas pela Equipe de Investigação da FLUL, da Universidade de Lisboa, e do Projecto Direct da
PUC/SP, participantes integrantes de uma lista de discussão cuja proposta é traduzir para o
português a GSF de 1994. Para acesso à lista e maiores informações, ver http:
//lael.pucsp.br/sistemica/.
37
à interação dos participantes da ação, seus papéis sociais e suas hierarquias; por
fim, o modo expressa a função da linguagem na constituição de significados no
contexto de situação, a organização simbólica dos textos, o canal lingüístico
utilizado (oral, escrito, semiótico, etc.) e como os participantes usam a linguagem
para fins de significação.
Eggins (2004) esclarece que dois aspectos notórios da teoria Sistêmico-
Funcional que a diferenciam das outras abordagens funcionais da linguagem são (i)
o fato de que aquela busca desenvolver uma teoria acerca da linguagem enquanto
processo social e (ii) o fato de que tenciona apresentar uma metodologia analítica
que permita descrever detalhadamente a sistemática das estruturas da linguagem
em uso. Com base nessas premissas, Halliday (1978, 1985, 1994) apresenta três
grandes categorias lexico-gramaticais, ou melhor, meta-funções, que representam
como os indivíduos usam a linguagem, aproximando suas análises do campo
léxico-gramatical, na tentativa de estabelecer critérios semânticos de investigação
mais detalhada da linguagem.
Neste sentido, Halliday (1978, 1994) direciona o vetor do campo, das
relações e do modo (contexto de situação) para a esfera semântica, apresentando
três meta-funções da linguagem que se relacionam diretamente com este contexto
de situação. A primeira, “meta-função ideacional” (ideational metafunction), es
vinculada à variável de campo do registro, materializando as experiências de
mundo dos usuários da língua, inclusive suas sensações, pensamentos, atos,
comportamentos, etc., e como essas experiências são realizadas pelas relações
38
lógicas das orações. A segunda, “meta-função interpessoal” (interpersonal
metafunction), vincula-se à variável das relações do registro, materializando as
interações sociais dos usuários da língua, bem como suas opiniões pessoais e
avaliações. A terceira e última, “meta-função textual” (textual metafunction), está
ligada ao modo através do qual os usuários da língua organizam suas mensagens
com vistas a se relacionarem com as outras mensagens com as quais lidam em seus
cotidianos sociais. No dizer de Halliday (1994: xiii),
(...) os componentes fundamentais do significado na linguagem são
componentes funcionais. Todas as línguas se organizam de acordo
com dois tipos principais de significado: o ‘ideacional’, ou reflexivo,
e o ‘interpessoal’, ou ativo. Esses componentes, denominados
‘meta-funções’ (...), são a manifestação, no sistema lingüístico, dos
dois propósitos gerais que subjazem a todas as formas de uso da
linguagem: (i) compreender o ambiente que a cerca (ideacional) e
(ii) exercer ações sobre os outros nesse ambiente
(interpessoal).
Aliada a essas duas meta-funções, há uma terceira, denominada
‘textual’, a qual confere relevância às outras duas.
10
Estratificando ainda mais suas análises, Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004) atinge a esfera léxico-gramatical da estrutura lingüística,
asseverando que os significados ideacionais se realizam na dinâmica da língua por
meio do sistema de “transitividade” (transitivity), modelando as experiências de
mundo no entorno de participantes, processos e circunstâncias. Os significados
interpessoais, por seu turno, realizam-se léxico-gramaticalmente nos sistemas de
10
Minha tradução de: “(…) the fundamental components of meaning in language are functional
components. All languages are organized around two main kinds of meaning, the ‘ideational’ or reflective,
and the ‘interpersonal’ or active. These components, called ‘metafunctions’ (…) are the manifestation in the
linguistic system of the two very general purposes which underlie all uses of language: (i) to understand the
environment (ideational), and (ii) to act on the others in it (interpersonal). Combined with these is a third
metafunctional component, the ‘textual’, which breathes relevance into the other two.”
39
“modo oracional” (mood) e “modalidade” (modality), em cuja estrutura as trocas
lingüísticas ocorrem entre interactantes através de posições ou papéis sociais
expressos em suas mensagens, sejam estas orais ou escritas. Finalmente, os
significados textuais se realizam por meio de relações de “tema e rema”
(theme/rheme) que expressam as informações ideacionais e interpessoais
presentes na esfera léxico-gramatical da língua.
Para Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004), as esferas
léxico-gramatical e semântica da linguagem representam o conteúdo desta última
expandido em estratos. De acordo com o papel que a linguagem exerce em cada
estrato, nós, enquanto usuários da língua, damos sentido ao conteúdo discursivo de
nossas experiências de mundo e sustentamos nossas interações com outros
interlocutores. Neste sentido, os significados potenciais originários do contexto de
cultura do qual fazemos parte são transformados em significado semântico e,
seqüencialmente, transformados em realizações lingüísticas no estrato da léxico-
gramática, isto é, onde nossas experiências de mundo e interações com outros
interactantes são realizadas discursivamente.
Todo esse complexo sistêmico e funcional da teoria de Halliday pode ser
visto tridimensionalmente na Figura 1, inspirada em Halliday e Matthiessen (2004:
25), elaborada aqui apenas para expressar as partes do sistema lingüístico que
serão foco de análise nesta pesquisa.
40
Figura 1: Complexo Sistêmico-Funcional de M. A. K. Halliday
Com base na Figura 1, torna-se possível vislumbrar toda a ordem
paradigmática da linguagem em uso como se vista da parte superior de um funil. O
ângulo de dimensão mais ampla seria o contexto de cultura, englobando o contexto
de situação, as meta-funções e, por fim, o ângulo de dimensão mais densa, isto é, o
sistema léxico-gramatical da linguagem. O ângulo de dimensão mais ampla
aglutina o que ocorre “fora da linguagem” (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004:
24). Ao passar do ângulo do contexto de cultura para o ângulo do contexto de
situação (registro), o significado potencial
11
do sistema lingüístico da língua se
11
Halliday (1973: 72-4) define significado potencial como um conjunto de opções, ou alternativas,
de significados (semânticos) do sistema da língua disponíveis aos falantes/escritores ou
ouvintes/leitores. Para Halliday, o contexto de cultura define o significado potencial da linguagem à
medida que esta é usada em registros diferenciados por falantes ou escritores. Assim, em
determinados registros, ou variedades funcionais da linguagem, a probabilidade de certas
41
realiza por meio de uma “variedade funcional da linguagem” (HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004: 27) própria a cada tipo de situação em que a língua se
acondiciona para realizar significados. Esses significados são reconhecidos
discursivamente a partir de suas realizações na esfera léxico-gramatical da língua,
através da qual modelamos nossas experiências de mundo (meta-função
ideacional), interagimos com nossos interlocutores (meta-função interpessoal) e
materializamos nossas experiências e interações por meio dos textos que
produzimos (meta-função textual). Essa esfera caracteriza-se como “densa” pelo
fato de representar a língua em uso em orações, no sentido de estratificar mais
ainda as características do sistema lingüístico em realizações lógico-semânticas,
típicas da estrutura gramatical e discursiva de cada língua, através de grupos
nominais e grupos verbais, caracterizando-se, portanto, como a “ordem
sintagmática” da língua (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 20). Daí depreende-
se que a cultura tanto constitui ou determina as escolhas léxico-gramaticais
pertinentes a um determinado contexto de situação, quanto é constituída ou
determinada pelas escolhas léxico-gramaticais dos usuários da língua.
É neste sentido que a GSF parte das noções antropológicas de cultura e
suas relações com a linguagem, mapeando, desta forma, sua própria
epistemologia. Fica clara, portanto, a definição de “realização” (realization),
conceito-chave para Halliday (1978: 39), em que os fenômenos pertinentes à
expressões ocorrerem em detrimento de outras depende da situação em que são utilizadas e da
cultura que elas representam. No caso do corpus desta pesquisa, por exemplo, há certas escolhas
léxico-gramaticais típicas deste corpus, tais como, partes dos corpos das personagens, escolhas
lexicais que denotam sensualidade e erotismo, dentre outras (ver capítulo de análise). Portanto, o
significado potencial é, na verdade, a potencialidade de uso de determinadas escolhas lingüísticas
submissas ao registro em que são usadas.
42
ordem paradigmática “se realizam” por meio de sua materialização na
organização sintagmática da oração. Ou seja, a teoria Sistêmico-Funcional vê o
social constituindo o textual e, simultaneamente, sendo constituído por este,
ou melhor, por uma ampla rede discursiva que o forma e caracteriza.
Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) apresenta, em
sua GSF, a oração enquanto unidade mínima de realização das experiências de
mundo em que participantes, ou atores sociais, se engajam para constituírem
significados. Essa constituição de significados reproduz as experiências de mundo
desses participantes, sendo que a forma de representá-la se dá por meio de
processos que expressam ações, acontecimentos, sensações, significados,
identidades e transformações, ou seja, um conjunto de impressões experienciais,
tanto íntimas quanto exteriores, que Halliday denomina “goings-on” (1994: 106).
Sendo a oração, para Halliday, um modo de representação da experiência de
mundo dos participantes envolvidos em processos, o sistema gramatical por meio
do qual essa representação é ativada é o da transitividade, isto é, sistema que
constrói o mundo experiencial com base em tipos de processos. Martin e Rose
(2003) denominam essa construção discursiva como ideação. Para esses teóricos, a
ideação “focaliza o ‘conteúdo’ do discurso: que tipos de atividades são exercidos, e
como os participantes dessas atividades são descritos, como eles são classificados e
do que eles são compostos” (p.66)
12
.
12
Minha tradução de: “... focuses on the 'content' of a discourse: what kinds of activities are
undertaken, and how participants in these activities are described, how they are classified and what
they are composed of.”
43
Os componentes que constituem esses processos são (HALLIDAY, 1985,
1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004): (i) o processo em si, realizado pelo
grupo verbal na oração; (ii) os participantes envolvidos no processo, realizados
pelo grupo nominal da oração; e (iii) as circunstâncias associadas aos processos,
realizadas por grupos adverbiais e sintagmas preposicionados. Esse aspecto
experiencial do discurso é considerado por Halliday e Matthiessen (2004) como
uma “matriz semiótica” (figure), ou seja, um complexo oracional que constitui
realidades internas e externas de mundo, configuradas por meio de processos,
participantes e circunstâncias. Um exemplo, extraído de Martin e Rose (2003: 70),
ilustra bem essa configuração:
... as a 18-year-old // Helena // met // a young man in his 20s
(1) (2) (3) (4)
Dentro da configuração experiencial, “Helena” (2) e “a young man” (4) são
os participantes envolvidos na representação oracional da realidade de mundo na
qual eles experienciam aspectos do mundo ao seu derredor. O núcleo dessa
configuração, ou elemento oracional que estabelece os papéis discursivos exercidos
pelos participantes, é o processo material “met” (3), o qual indica que os
participantes em seu entorno configuram-se como agentes em uma ação executada
por eles mesmos, e não como, por exemplo, pacientes de ações executadas por
outrem. Por fim, a circunstância de papel “as a 18-year-old” (1) funciona como
“modificador” (modifier) ou “classificador” (classifier) do “núcleo” (head)
44
“Helena”, o que oferece um “pano de fundo para caracterizar os participantes
envolvidos no processo: as circunstâncias se prestam, pois, ao ‘embelezamento’ da
configuração experiencial, recurso muito útil no discurso literário” (GOUVEIA,
comunicação pessoal)
13
. Em outras palavras, a circunstância de papel foi escolhida
não apenas para expressar uma peculiaridade de “Helena”, mas, sobretudo, para
servir de base para a configuração de “Helena” como uma participante com
características que configuram a experiência de mundo da qual ela participa e a
qual é representada oracionalmente. A fim de apresentar as principais
circunstâncias, remeto-me a Halliday e Matthiessen (2004).
1.2.1 Circunstâncias
Desde sua GSF fundadora, Halliday (1985) esclarece que as circunstâncias
podem ocorrer com todos os tipos de processos. Halliday e Matthiessen (2004:
260-1) apresentam três perspectivas que orientam a definição de circunstâncias.
São elas:
(i) Circunstâncias estão associadas a processos, referindo-se a
complementos que indicam, por exemplo, local de um evento no espaço
e no tempo, seu modo ou sua causa. As circunstâncias, na verdade,
expressam idéias que respondem às seguintes questões: quando, onde,
como e por que alguma coisa acontece ou ocorre?
13
Minha interação com o Prof. Carlos Gouveia, da Universidade de Lisboa, se deu durante o
“Simpósio Internacional Abordagens Sistêmicas da Linguagem, em 29 de novembro de 2004, na
Faculdade de Letras da UFMG.
45
(ii) Circunstâncias exercem o papel de adjuntos, não apresentando
características de sujeitos. Em língua portuguesa, as circunstâncias são
realizadas por meio de adjuntos adverbiais.
(iii) Circunstâncias são tipicamente expressas por grupos adverbiais ou
sintagmas preposicionados.
Os tipos de circunstâncias, e seus respectivos exemplos, apresentados por
Halliday e Matthiessen (2004: 263-77) são os seguintes:
CIRCUNSTÂNCIA DE EXTENSÃO: apresenta realização gramatical que
expande o processo em um continuum de espaço e tempo que indica
distância e duração, formada normalmente por grupos nominais que
expressam quantidades definidas ou indefinidas, tais como, “five days” e
“many miles”, respectivamente. Exemplo: “He and seven others survived
by climbing to a floating fish container for hours.”
CIRCUNSTÂNCIA DE LOCAL: apresenta realização gramatical que
expande o processo em um continuum de espaço e tempo – ou seja, o
local em que a experiência ocorre ou quando ela ocorre. Exemplo: “The
foundation stone of the cathedral was laid by Governor Macquairie on
August 31, 1819...”
46
CIRCUNSTÂNCIA DE MODO: apresenta realização gramatical do modo
ou maneira por meio da qual o processo se desenvolve. A circunstância
de modo se subdivide em quatro categorias:
De meio
: refere-se aos meios pelos quais o processo (ou
experiência de mundo de participantes) ocorre. Exemplo: “It
seems to me that answers to most such questions have to be
learned by experiment.”
De qualidade
: expressa-se normalmente por um grupo adverbial
terminado em –ly, em inglês, e –mente, em português, na posição
de núcleo de um grupo nominal que forma a circunstância de
modo. É também formada por palavras que caracterizam, em
inglês, o processo em termos de qualidade, do tipo “well” ou
“alone”. Exemplos: “Morgan calmly surveyed the scenery from the
top of Rock island” e “We know it well that none of us acting alone
can achieve success.”
De comparação
: é normalmente expressa por um sintagma
preposicionado iniciado, em inglês, com as preposições like ou
unlike, ou por um grupo adverbial que expressa comparações
indicativas de semelhança ou diferença entre participantes. Em
português, essa subcategoria expressa-se por preposições do tipo
como, ao contrário, dentre outras, ou também por grupo
adverbial que expressa comparações indicativas de semelhança ou
47
diferença entre participantes. Exemplo: “As you well know, we
sometimes work like the devil with them.”
De grau
: tipicamente formada por grupos adverbiais com
indicação de grau, como, por exemplo, much, a lot, ou cuja
colocação (collocation) se restrinja a advérbios de grau do tipo
deeply, profoundly, heavily, dentre outros. Em português, esses
grupos adverbiais são formados por expressões e palavras do tipo
muito, pouco, completamente, até certo ponto, dentre outras.
Exemplo: “As a writer of short-stories for adults, she has worked a
great deal with these themes.”
CIRCUNSTÂNCIA DE CAUSA: estabelece o motivo ou razão pela qual o
processo se realiza lingüisticamente. Além disso, circunstâncias de causa não
somente apresentam o motivo da realização lingüística do processo, mas, de
igual modo, o propósito ou intenção presente na construção do grupo
nominal dessas circunstâncias. Ademais, as circunstâncias de causa também
expressam o beneficiário da ação realizada pelo processo. Exemplos: “Assad
died of heart failure” (causa/razão); “President Bush is rallying the nation
for a war against terrorism’s attack on our way of life” (propósito); “Do
any of your characters ever speak for you?” (benefício).
CIRCUNSTÂNCIA DE CONTINGÊNCIA: especifica o elemento que expressa
a realidade da experiência de mundo de participantes circunscritos a
48
processos os quais se vinculam a esse tipo de circunstância. Subdividem-se
em:
De condição
: expressa idéia de condição para a realização do
processo, como, por exemplo, “Get back to the bedroom and
change clothes in case of bloodstains”.
De concessão
: realiza uma causa que Halliday e Matthiessen
(2004: 272) denominam “causa frustrada”, formada, em língua
inglesa, por preposições do tipo “although”, “despite”,
“notwithstanding”, “regardless of”, dentre outras. Em português,
circunstâncias de concessão expressam-se por preposições do tipo
“embora”, “apesar de”, “não obstante”, dentre outras. Exemplo:
“To the extent that the system works at all, it works despite Ofsted,
not because of it”.
De falta
: expressa idéia ou sentido de negação e é construída por
sintagma preposicionado com preposições complexas, tais como,
“in the absence of”, “in default of”, “without”, dentre outras.
Exemplo: “In the absence of any prior agreement between the
parties as to the rate of salvage payable, the amount is assessed,
as a rule, by the Admiralty Court”.
CIRCUNSTÂNCIA DE ACOMPANHAMENTO: expressa uma forma de
participação conjunta circunscrita ao processo ao qual se liga. Representa os
significados expressos pelas conjunções, em língua inglesa, “and” e “or”, e
49
pelo advérbio de negação “not”. As circunstâncias de acompanhamento são
expressas por sintagmas preposicionados com preposições do tipo “with”,
“without”, “besides”, “instead of”, dentre outras. As circunstâncias de
acompanhamento dividem-se em duas categorias:
Comitativa
: representa o processo como um acontecimento
singular, embora dois participantes estejam envolvidos. Exemplo:
“I was traveling up the west coast of Florida with my father in a
boat...”
Aditiva
: representa o processo por meio de dois acontecimentos
singulares em que os participantes envolvidos compartilham a
mesma função, não obstante um deles possa ser representado
através de contraste. Exemplo: “Instead of dingy velveteen he had
brown fur, soft and shiny”.
CIRCUNSTÂNCIA DE PAPEL: essa categoria estabelece que os processos
“be” e “become” são construídos circunstancialmente. O papel corresponde
ao atributo ou valor de uma oração relacional intensiva. Inclui as seguintes
sub-categorias:
De guisa
: corresponde ao sentido construído pela resposta à
questão Como?, constituindo o significado de “be” na forma de
circunstância. Exemplo: “As a Young boy, he spent long hours
with his father”.
50
De produto: corresponde ao significado de tornar-se (“what
into?”), no sentido de “become”, como, por exemplo: “Kukul grew
into a handsome young man with jet black hair and skin the colour
of cinnamon. He was quick of mind and excelled at any task he
was given. As a young boy, he spent long hours with his father.
Together, they would study the stars”.
CIRCUNSTÂNCIA DE ASSUNTO: está relacionada a processos verbais,
equivalendo-se à verbiagem, ou seja, o que é descrito, referido, narrado,
dentre outros. Exemplo: “Tell me about the Paris Review”.
CIRCUNSTÂNCIA DE ÂNGULO: relaciona-se também a processos verbais e
mentais. Refere-se ao (i) dizente de uma oração verbal ou (ii) ao
experienciador de uma oração mental quando esta última pode ser
projetada, neste caso, sendo a oração projetada uma oração de idéia (“idea
clause”). Exemplo: “It seems to me that answers to most such questions have
to be learned by experiment”.
1.2.2 Processos
Dando prosseguimento ao estudo da configuração dos processos presentes
na função experiencial, Halliday (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) sublinha
que a forma prototípica de expressão das experiências de mundo exteriores aos
usuários da língua ocorre por meio de ações e eventos, dado que os participantes
agem, realizam coisas fazendo com que elas se tornem realidade. Já a expressão
51
interna, ou subjetiva, peculiar aos participantes, se dá por meio de uma inter-
relação entre as experiências exteriores e subjetivas, representadas por intermédio
de ‘estados’ conscienciais. A primeira forma prototípica de representação das
experiências de mundo realiza-se por meio de processos materiais; a representação
da inter-relação entre mundo exterior e subjetivo realiza-se através de processos
mentais.
Os processos materiais são tipicamente relacionados a ‘ações’, cujos
participantes são: “ator” (actor), aquele que executa a ação, sendo, pois, um
elemento obrigatório na oração; “meta” (goal), participante que representa a
entidade para quem, ou o quê, a ação é direcionada. A meta não se configura como
participante obrigatório na constituição da oração, sendo, portanto, opcional. Dois
exemplos extraídos de Halliday e Matthiessen (2004: 180) demonstram essa
relação: (i) The lion (ator) sprang (processo material que representa a ação
circunscrita apenas ao ator da oração) e (ii) The lion (ator) caught (processo
material) the tourist (meta que indica a ação direcionada ao ‘turista’).
Simpson (1993) esclarece que os processos materiais podem ser
subdivididos conforme suas distinções de significado. Ou seja, os processos
realizados por seres animados são conceituados como “processos de ação” (action
processes), como, por exemplo, The lion sprang; já os realizados por seres
inanimados são denominados “processos de evento” (event processes), como, por
exemplo, The car backfired. Os processos de ação podem ainda ser subdivididos
em “processos intencionais” (intention processes), cujo ator realiza a ação
52
voluntariamente (e.g. The lion sprang), e “processos supervencionais”
(supervention processes), quando a ação acontece por si mesma (e.g. Mary
slipped).
Simpson (1993) também aponta para o papel das circunstâncias nas orações.
Para este teórico, as circunstâncias oferecem informações adicionais à constituição
da oração, dos tipos como, quando, onde e por quê. Por serem informações
adicionais, Simpson afirma que as circunstâncias podem ser omitidas da oração.
Talvez o motivo para esse tipo de omissão se encontre no fato de que as
circunstâncias normalmente descrevem situações físicas, espaços, relações de
tempo, modo, causa, papéis, dentre outros, presentes na marginalidade da oração
(BLOOR e BLOOR, 1995). Halliday (1994: 151), porém, esclarece que se pensarmos
na “circunstanciação” (circumstantiation) como um conceito geral, inserida no
contexto da estrutura da oração, perceberemos o ‘espaço semântico’ por ela
construído. Uma das maneiras que Halliday apresenta para a identificação do papel
das circunstâncias na oração é associá-las aos processos com os quais elas se inter-
relacionam.
Os processos mentais expressam sentimentos, pensamentos e percepções,
sendo, portanto, distintos dos processos materiais. Os elementos constituintes da
oração circunscritos aos processos mentais são denominados “experienciador”
(senser), ou aquele(a) que sente, pensa ou percebe, e o “fenômeno” (phenomenon),
ou aquilo que é sentido, pensado e percebido, como no exemplo I (experienciador)
don’t like (processo mental) cockroaches (fenômeno) either. As características
53
gerais dos processos mentais são: (i) as orações comumente possuem um
participante humano; (ii) os fenômenos podem ser tanto coisas quanto fatos, sendo
estes últimos considerados por Halliday (1994: 115) “meta-fenômenos”, ou seja, um
participante construído através de “projeções”, ou discurso direto (quote), indireto
(report), ou indireto livre (free indirect speech); e (iii) as formas verbais não-
marcadas dos processos mentais ocorrem mormente no presente do indicativo e as
formas marcadas ocorrem geralmente a partir da construção do presente-no-
presente, ou construção do gerúndio.
Um aspecto discursivo característico dos processos mentais é a possibilidade
de “projeção”, dividindo o complexo oracional em duas orações, a “projetante” e a
“projetada”, sendo que apenas a projetante é realizada pelo processo mental, ao
passo que a projetada pode ser constituída por qualquer outro tipo de processo.
Temos um exemplo desse tipo de construção oracional em I don’t believe (oração
projetante com processo mental “believe”) that endorsing the Nuclear Freeze
initiative is the right step for California (oração projetada com processo relacional
“is”). Uma construção discursiva muito explorada na constituição do discurso são
as orações projetadas configuradas em discurso indireto ou indireto livre, uma vez
que, segundo Gouveia (comunicação pessoal)
14
, “o discurso indireto e o indireto
livre prestam-se mais à manipulação se comparados ao discurso direto”. Isto
significa dizer que o discurso indireto ou indireto livre sofre a manipulação de
quem o produz, admitindo-se que a oração projetada indiretamente ou livremente
14
Ver nota de pé de página número 13
54
é re-interpretada por quem a projeta. Tais características são igualmente típicas
dos processos verbais analisados mais à frente.
Há, ainda, um terceiro componente dessa representação que traduz a
maneira como se generalizam experiências externas e internas de participantes,
relacionando fragmentos de nossa visão de mundo uns com os outros, a fim de
atribuir-lhes características e, portanto, significados dentro de uma rede discursiva
de relações. A esse componente do sistema de transitividade Halliday dá o nome de
processo relacional, isto é, o processo por meio do qual nós classificamos e
identificamos uns aos outros.
Segundo Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004),
existem três tipos de processos relacionais: (i) o intensivo, que expressa a relação
lógica [portador/participante + processo relacional + atributo – e.g. Sarah is
the
leader.]; (ii) o circunstancial, que expressa a relação de circunstância,
acontecimento, [circunstanciador + processo relacional + circunstância em que
ocorre o fato – e.g. The fair is
on Tuesday.]; e (iii) o possessivo, que expressa posse
por meio de relações [possuidor/participante + processo relacional + coisa
possuída – e.g. Peter has
a piano.].
Todos os três tipos de processos relacionais se subdividem em duas
categorias: atributivas e identificativas. As atributivas conferem ‘atributos’,
‘qualidades’, aos participantes (“portadores”) do processo relacional, ao passo que
as identificativas conferem ‘referência’, ‘classificação’ (“identificadores”), aos
participantes (“identificados”). Duas características centrais que diferenciam a
55
categoria atributiva da identificativa é que a ordem oracional desta última pode ser
revertida (e.g. Alice is the clever one/The clever one is Alice); além disso, a
identificativa pode ser também transformada em voz passiva (e.g. Cat is spelt c-a-
t), dentro da cadência da oração em língua inglesa, ao passo que as atributivas não
são reversíveis e nem transformadas em passiva. Halliday (1985, 1994; HALLIDAY
e MATTHIESSEN, 2004) elenca algumas características mais específicas que
diferenciam os processos relacionais atributivos dos identificativos. São elas:
ATRIBUTIVOS: (i) os elementos gramaticais que circundam o processo
relacional são comumente adjetivos e substantivos comuns (e.g. He is Charles
Darwin [substantivo]); (ii) os verbos que realizam o processo relacional são da
classe dos “de atribuição” (ascriptive class), do tipo, tornar-se, manter,
assemelhar-se a, ser, estar, sentir, etc., sendo os verbos ser, estar e sentir
considerados ‘neutros’ (e.g. He grew into a man)
15
; (iii) o teste de identificação
desses processos se encontra nos seguintes questionamentos: o quê?, como?,
parecer-se com o quê?; e (iv) não há, para os atributivos, formas passivas em
língua inglesa.
IDENTIFICATIVOS: (i) os elementos gramaticais que circundam os
processos relacionais identificativos são comumente substantivos comuns, ou
“núcleos” (heads) de grupos nominais, precedidos de artigo definido, ou outro
elemento gramatical da ordem dos determinantes (“a”, “the”, “some”, “this”,
“each”), ou um pronome (e.g. The chicken skin was definitely the best
.); (ii) os
15
Halliday (1994: 120) apresenta, para a língua inglesa, os seguintes processos que realizam a classe
dos de atribuição. São eles: become, turn (into), grow (into), get, go, remain, stay (as), keep, seem,
appear, qualify as, turn out, end up (as), look, sound, smell, feel, taste (like), be.
56
verbos que realizam o processo relacional identificativo são da classe dos “de
eqüidade” (equative class), do tipo, funcionar como, indicar, sugerir, igualar-se a,
exemplificar, ser, estar, tornar-se, etc., sendo os verbos ser, estar, tornar-se e
permanecer considerados ‘neutros’ (e.g. What’s the foot represent
for you? I asked,
like an inquiring reporter)
16
; (iii) o teste de identificação desses processos se
encontra nos seguintes questionamentos: qual?, quem?, qual/quem ... como?; e
(iv) os processos relacionais identificativos podem ser revertidos para a forma
passiva com mais naturalidade em língua inglesa (e.g. Hamlet was played by
Mr.Garrick).
Partindo agora para os três tipos de processos denominados por Halliday
(1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) “processos subsidiários”
(subsidiary processes), temos o “processo comportamental” (behavioural process),
o “processo verbal” (verbal process) e o “processo existencial” (existential process).
Os processos comportamentais expressam tipicamente comportamentos
psicológicos e fisiológicos do “comportante” (behaver), do tipo, respirar, tossir,
sorrir, sonhar, dentre outros. A maioria dos processos comportamentais tem
apenas um participante, o “comportante”, como, por exemplo, na oração He
coughed loudly, em que “He” é o comportante, “coughed” o processo
comportamental e “loudly” a circunstância de modo (exemplo extraído de EGGINS,
2004: 234). Quando o processo comportamental se estende a outro(s)
16
Halliday (1994: 123) apresenta, para a língua inglesa, os seguintes processos que realizam a classe
dos de eqüidade: play, act as, function as, serve as, mean, indicate, suggest, imply, show, betoken,
mark, reflect, equal, add up to, make, comprise, feature, include, represent, constitute, form,
exemplify, illustrate, express, signify, realize, spell, stand for, mean, be, become, remain.
57
participante(s), temos o “fenômeno” (phenomenon), como no exemplo George
sniffed the soup, em que “the soup” é o fenômeno (exemplo extraído de EGGINS,
2004: 234).
Os processos existenciais representam a ‘existência’ ou ‘acontecimento’ de
algo (existente), tendo como verbo principal o ‘haver’ ou ‘existir’, em língua
portuguesa, e o ‘there to be’, em língua inglesa, além de outros verbos, como, por
exemplo, exist, arise e occur. O participante principal do processo existencial é o
“existente” (existent), como no exemplo Should there arise any difficulties, em que
“arise” é o processo existencial e “any difficulties” o “existente” (exemplo extraído
de EGGINS, 2004: 238).
Os processos verbais, por sua vez, são processos relacionados à enunciação,
isto é, eles englobam qualquer espécie de troca simbólica de constituição de
significados. No que tange aos processos verbais, seus participantes não
necessariamente têm de ser participantes conscientes, mas simplesmente devem
verbalizar, através de signos, alguma informação ou significado. Os principais
participantes do processo verbal são o “dizente” (sayer), o “receptor” (receiver) e a
“verbiagem” (verbiage), como no exemplo So I asked him a question, em que “I” é
o “dizente”, “him” o “receptor” e “a question” a “verbiagem”. Uma característica
notória dos processos verbais, conforme expresso nos processos mentais mais
acima, é a possibilidade de “projeções” (projections), dentro da estrutura lógico-
semântica da oração, e de construções oracionais paratáticas, independentes, ou
hipotáticas, dependentes, que configuram a oração de maneira interdependente
58
entre orações, dentro de um mesmo complexo oracional. Esse tipo de configuração
pode se dar, segundo Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004),
por meio de (i) proposições (e.g. [He told me] it was Tuesday. [oração projetada])
ou (ii) propostas (e.g. [He promised] to go home.[oração projetada]).
Foi apresentada, até o momento, a função experiencial da linguagem, parte
da meta-função ideacional da léxico-gramática hallidayana. Para os propósitos
desta pesquisa, cabe também apresentar, sucintamente, dois elementos essenciais
da função lógica da linguagem, quais sejam, as relações paratáticas e hipotáticas.
Halliday e Matthiessen (2004: 309-10) afirmam que a meta-função ideacional se
divide em função experiencial e lógica. A função experiencial, para estes teóricos,
representa a linguagem como a organização de experiências de mundo de
participantes de processos, ao passo que a função lógica expressa relações lógicas
entre complexos oracionais e grupos nominais. Halliday e Matthiessen (2004: 373)
esclarecem que as relações entre orações se dão por meio de dois sistemas básicos:
(i) o grau de interdependência, ou taxe, e (ii) a relação lógico-semântica. Esta
última se subdivide em três relações fundamentais: (a) a expansão, em cuja
estrutura a segunda oração expande a primeira através de elaboração (relação de
igualdade entre orações), de extensão (relação de adição entre orações, comumente
relacionadas por meio de conjunções aditivas) e de intensificação (relação de
multiplicação entre orações, comumente relacionadas por meio de conjunções
conclusivas, adversativas, dentre outras); (b) a projeção, em que a segunda oração
é projetada pela oração principal denominada oração projetante, representando,
assim, uma locução, através de processo verbal, ou uma idéia, por meio de processo
59
mental. O grau de interdependência, ou taxe, por ser o interesse maior desta
pesquisa, é detalhado a seguir.
Relações paratáticas expressam elementos que possuem status semelhante
no nível da oração. Isso significa que, no componente lógico, ambos os elementos
relacionados parataticamente são independentes um do outro, como nos exemplos
extraídos do corpus desta pesquisa:
I took it from him and looked at him
Eu agradeci e fui embora
Há, como se percebe nos exemplos acima, uma relação de independência dos
elementos da oração, de cujas estruturas podemos extrair duas orações – I took it
from him /[I] looked at him e Eu agradeci /[Eu] Fui embora . Há igualmente uma
relação simétrica entre eles, uma vez que ambas as orações podem ser divididas em
dois níveis de igual status, ligados apenas pelas conjunções aditivas “and”, em
inglês, e “e”, em português.
Relações hipotáticas, por sua vez, expressam elementos que possuem status
desigual no nível da oração, isto é, há uma relação de dependência entre duas ou
mais orações, como nos exemplos extraídos do corpus desta pesquisa:
I stopped that by switching to pen and ink
Dei um fim nisso, passando a usar uma caneta
Existe uma relação de dependência entre as orações acima, o que faz com que, no
componente lógico, relações hipotáticas sejam assimétricas, diferentemente das
60
orações paratáticas. A oração dependente “by switching to pen and ink” é uma
hipotaxe não-finita dependente da oração principal “I stopped that”. Já a oração
“passando a usar uma caneta” possui um verbo não-finito que expressa a relação de
dependência com a oração principal “Dei um fim nisso”.
Eggins (2004) esclarece que o estudo das orações complexas,
principalmente das relações paratáticas e hipotáticas, confere recursos estruturais
para a análise das conexões lógicas dos eventos experienciais realizados
lingüisticamente. A teórica ainda salienta que o estudo associado das funções
experiencial e lógica permite-nos expressar os significados ideacionais no momento
em que as experiências de mundo são, de certa forma, traduzidas em texto. Não
obstante esta tese focalize a função experiencial da linguagem, as relações
paratáticas e hipotáticas serão exploradas eventualmente no decorrer da análise
dos dados.
1.3 Transitividade e representação no gênero do discurso literário
Partindo das categorias de transitividade da GSF hallidayana, Montgomery
(1993) propõe uma abordagem lingüística para a análise de personagens no
discurso literário. Segundo este teórico, as opções gramaticais da transitividade, no
nível da oração, podem expressar o papel que as personagens assumem numa
narrativa por meio de suas ações, pensamentos, relações e falas. Em outras
palavras, Montgomery esclarece que a análise da transitividade em narrativas pode
61
desvelar “quem faz o que a quem e como” (1993: 132).
17
Ao analisar o conto The
Revolutionist, de Hemingway, Montgomery afirma que a análise da transitividade
do conto mostra que o título “The Revolutionist”, embora sugira um protagonista
mais ativo e mais seguro de si, expressa uma idéia falsa com relação ao personagem
principal do conto, uma vez que as escolhas de transitividade feitas para
representar o protagonista mostram, sobretudo, atributos de timidez e juventude
ao mesmo.
Além disso, Montgomery salienta que o protagonista aparece muito mais
como paciente do que como agente em verbos de ação, sendo denominado, por
Montgomery (1993: 138), como uma “entidade afetada” (affected entity). Segundo
Montgomery (1993: 138), “[a] imagem geral que emerge da análise, pois, é aquela
na qual o revolucionário é um
EXPERIENCIADOR e um DIZENTE em proporções
aproximadamente equivalentes aos casos onde ele é inscrito no papel de
AGENTE”.
18
Isto é, as experiências de mundo do revolucionário o caracterizam mais como um
protagonista que tanto fala do mundo ao seu redor, como pensa sobre ele e o sente,
do que como um agente de ações que falaciosamente sugere o título do conto. O
artigo de Montgomery (1993), portanto, abre perspectivas muito interessantes para
a análise de personagens em narrativas, por meio da transitividade, sendo, para
esta pesquisa de doutorado, um referencial teórico e prático norteador.
17
Minha tradução de: “... who does what to whom and how”
18
Minha tradução de: “The overall picture that emerges from the analysis, therefore, is one in which
the revolutionist is a
SENSER and a SAYER in roughly equivalent proportions to cases where he is
inscribed into the role of
AGENT”.
62
Com base nas categorias de transitividade de Halliday (1985), Simpson
(1993) expande suas análises para identificar a representação das personagens em
gêneros do discurso literário. Este teórico investiga principalmente o papel que as
personagens exercem na trama ficcional através dos processos eleitos para
representá-las e quais circunstâncias periféricas ao processo oferecem informações
sobre como, quando, onde e por que os processos ocorrem. Explorando o papel das
personagens em narrativas literárias, Simpson (1993) estabelece duas categorias
que ele denomina, simplificadamente, como: (i) narrativas dentro da categoria A,
isto é, narrativas em primeira pessoa, narradas por um “personagem participante”
(participating character) e (ii) narrativas dentro da categoria B, ou seja, narrativas
em terceira pessoa, narradas por um personagem ‘invisível’, “desincorporado”
(disembodied) da narrativa, portanto, um “narrador não-participante” (non-
participating narrator). A preocupação central de Simpson (1993) com essa
categorização é justamente compreender o ponto de vista ou ângulo da narrativa
por meio da investigação da linguagem enquanto representação ou projeção das
perspectivas e posições das personagens na trama ficcional. Para tanto, Simpson
(1993: 104) enfatiza a importância do sistema de transitividade desenvolvido pela
GSF hallidayana para
... tornar explícito como certos significados são destacados
enquanto outros são suprimidos ou ofuscados. Desta forma, o
modelo de transitividade proporciona uma maneira de investigar
como a percepção de um leitor ou ouvinte acerca do significado de
um texto é direcionada para uma determinada interpretação, e como
63
a estrutura lingüística de um texto efetivamente codifica uma ‘visão
de mundo’ particular.
19
Segundo Simpson (1993: 32), o corpus de estudo desta pesquisa caracteriza-
se como uma narrativa positiva, ou seja, uma narrativa homodiegética em que “o
narrador é uma personagem dentro da estória”
20
narrada. Essa posição do
narrador/protagonista em relação às estórias dos contos aqui investigados faz com
que seu ponto de vista narrativo realize uma espécie de “seleção” dos discursos
produzidos pelas outras personagens, representando-os lingüisticamente por seu
intermédio. Tal fato vai ao encontro da definição de ponto de vista narrativo dada
por Simpson (1993: 4): “[n]o contexto da narrativa ficcional, ponto de vista se
refere geralmente à perspectiva psicológica por meio da qual uma estória é
contada”.
21
Nesta pesquisa, então, além de utilizar as categorias de transitividade
propostas por Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004), as
análises a serem feitas terão como base analítica a investigação de como as
personagens, ou participantes, no corpus deste estudo, são representadas através
dos processos e, sobretudo, da relação dessa representação com o ponto de vista
narrativo.
Martin e Rose (2003), ao aplicarem várias categorias da LSF ao estudo de
textos variados, inclusive do texto literário, esclarecem que o sistema de
19
Minha tradução de: “... to uncover how certain meanings are foregrounded while others are
suppressed or obfuscated. In this way, the transitivity model provides one means of investigating
how a reader’s or listener’s perception of the meaning of a text is pushed in a particular direction
and how the linguistic structure of a text effectively encodes a particular ‘world-view’.
20
Minha tradução de: “... a narrator is a character within the story”.
21
Minha tradução de: “ In the context of narrative fiction, point of view refers generally to the
psychological perspective through which a story is told”.
64
transitividade, além de configurar os participantes por meio de processos e
circunstâncias, pode igualmente oferecer elementos de construção ou
representação de suas identidades em narrativas. Tal construção se dá por meio de
todo o conjunto de qualidades, classes e partes atribuídas a esses participantes à
medida que o texto se desenvolve. A seqüência das atividades exercidas pelos
participantes inseridos em gêneros do discurso variados, tais como, interações
conversacionais, narrativas, contos, discursos de sala de aula, dentre outros, e os
processos e circunstâncias a eles ligados, criam, segundo Martin e Rose (2003),
expectativas para a análise do campo (field) do discurso. Tal fato demonstra a
relação entre transitividade e campo e, conseqüentemente, a ligação com gêneros
do discurso que, conforme Martin e Rose (2003), são processos sociais orientados,
com objetivos específicos, uma vez que utilizamos gêneros do discurso para
interagirmos uns com os outros e atingirmos nossos objetivos comunicativos.
Digno de menção neste ponto é o trabalho de Eggins e Martin (1997). Estes
teóricos sistemicistas se pautam nas análises de registro e gênero para
identificarem diferenças e semelhanças entre textos, partindo do nível da léxico-
gramática até atingir o nível do registro, apontando para aspectos culturais aos
quais se vinculam os textos. Para os propósitos desta tese, centrar-me-ei apenas na
análise do registro, mais precisamente no campo (field) do discurso e suas relações
com a transitividade e as escolhas lexicais, dado que, segundo Martin e Rose (2003:
252),
65
[p]or definição, um campo é um conjunto de seqüências de
atividades que são orientadas para certo propósito global dentro
de instituições de família, comunidade ou sociedade. As
seqüências de atividades, as matrizes semióticas em cada passo
de uma seqüência, e suas taxonomias de participantes criam
expectativas para o desenvolvimento do campo do discurso.
22
O conceito de registro para Eggins e Martin (1997) origina-se das escolhas
que fazemos como falantes de uma determinada língua para representarmos, por
meio da linguagem, nossas realidades de mundo. Para estes teóricos, “[o] conceito
de registro é uma explicação teórica da observação do senso-comum de que nós
usamos diferentemente a linguagem em situações distintas” (EGGINS e MARTIN,
1997: 234, ênfase no original)
23
. Um ponto fundamental expresso por Eggins e
Martin é o fato de que as escolhas léxico-gramaticais feitas são probabilísticas,
conforme o contexto de situação onde se insere o(a) falante. Em outras palavras, a
tendência de se fazer uma escolha lexical em determinado contexto de situação é,
sem dúvida, muito mais influenciada por este próprio contexto do que pela finitude
de escolhas disponíveis no sistema da língua. Assim, o contexto de situação
estabelece que escolhas serão feitas para servirem aos propósitos comunicativos de
falantes inseridos neste contexto. Halliday e Matthiessen (2004: 27-8) ilustram
bem essa relação:
Um registro é uma variedade funcional da linguagem (...) – os
padrões de instanciação de todo o sistema associado a um dado tipo
de contexto (um tipo de situação). Esses padrões de instanciação
mostram-se quantitativamente como ajustes nas probabilidades
22
Minha tradução de: “By definition a field is a set of activity sequences that are oriented to some
global purpose within the institutions of family, community or society. The activity sequences, the
figures in each step of a sequence, and their taxonomies of participants create expectations for the
unfolding field of a discourse”.
23
Minha tradução de: “The concept of register is a theoretical explanation of the common-sense
observation that we use language differently in different situations”.
66
sistêmicas da linguagem; um registro pode ser representado como
um contexto particular de probabilidades sistêmicas. (ênfases no
original)
24
Segundo Schleppegrell (2004: 51), “o campo do discurso, ou do assunto do
qual a linguagem trata, está intimamente ligado às noções ordinárias do que
significa utilizar a linguagem de maneira efetiva”.
25
A realização lingüística da
variável de campo do registro ocorre sobretudo por meio de substantivos, verbos e
outras expressões que Schleppegrell (2004: 51) denomina “palavras de conteúdo”
(content words). A variável de campo do registro se expressa conforme a realização
lingüística apresentada no QUADRO 1 abaixo, tendo como base Schleppegrell
(2004: 47):
QUADRO 1
Gramática e Contexto de Situação
VARIÁVEL DE CAMPO REALIZAÇÃO LINGÜÍSTICA
APRESENTANDO IDÉIAS - Sintagmas nominais/grupos nominais
(participantes);
- Verbos (tipos de processos);
- Sintagmas preposicionados, adjuntos e
outros recursos para informação sobre
tempo, lugar, modo, etc. (circunstâncias);
- Recursos para elaboração de relações
lógicas (sobretudo orações paratáticas e
hipotáticas).
24
Minha tradução de: “A register is a functional variety of language (...) – the patterns of
instantiation of the overall system associated with a given type of context (a situation type). These
patterns of instantiation show up quantitatively as adjustments in the systemic probabilities of
language; a register can be represented as a particular setting of systemic probabilities.”
25
Minha tradução de: “... the field of discourse, what the language is about, is closest to ordinary
notions of what it means to use language effectively”.
67
No caso desta pesquisa, as escolhas lexicais realizadas na coletânea de
contos, mais especificamente os colocados no entorno de processos, bem como as
escolhas no sistema de transitividade, serão analisadas tendo-se em vista a variável
do campo do registro em que foram produzidas, ou os tópicos
26
dos contos e suas
estruturas de transitividade, além do contexto de situação da publicação do original
e da tradução.
Para a análise dos colocados, levarei em consideração a definição de “área de
influência” (area of influence) ou “gravidade lexical” (lexical gravity) de Mason
(1997: 374), em cujo trabalho o autor aponta para a assimetria dos padrões de
colocados de um texto, afirmando que algumas construções gramaticais podem
aumentar a variação dos colocados num ambiente textual imediato. Isto significa
dizer que cada palavra gramatical possui um horizonte (span), ou limite espacial de
um nódulo, diferenciado e que, portanto, deve ser analisado conforme os limites
lingüísticos, ou horizontes (spans), adjacentes a essa palavra (para uma discussão
sobre o conceito de span semelhante à de Mason, ver também HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004: 38). Neste sentido, a análise dos elos coesivos lexicais,
dentro da coesão lexical, a qual “opera dentro do léxico e é ativada por meio da
escolha de itens lexicais”
27
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 535) no horizonte
da área de influência de um processo, embora não seja o enfoque principal desta
tese, será feita em alguns casos nos quais a escolha de um processo, e sua
26
Eggins (1994: 67) afirma que “[s]ometimes field can be glossed as the 'topic' of the situation...”.
Neste trabalho, sobretudo na análise por meio do utilitário Aligner, os tópicos dos contos
investigados serão levados em conta como representativos da variável de campo do registro em que
os contos surgiram, tanto originais quanto traduções.
27
Minha tradução de: “... operates within the lexis and is achieved through the choice of lexical
items”.
68
conseqüente classificação, podem sugerir representações de mundo das
experiências das personagens diferentes daquelas expressas textualmente pelo
processo. O exemplo a seguir, extraído do corpus desta pesquisa, ilustra bem este
aspecto:
I made a sound of admiration
Como visto no exemplo acima, o processo to make é material, porém é
influenciado pelo complemento a sound, o qual situa o processo na região limítrofe
entre material e comportamental. Em outras palavras, a área de influência do
processo revela a possibilidade de uma outra classificação para o processo to make
como um elemento gramatical que associado ao grupo nominal a sound representa
uma realidade de mundo do participante I enquanto um experienciador, e não
como um ator.
28
Além dessas análises, grupos nominais associados a processos também serão
analisados em alguns casos. Um exemplo disso pode ser visto no corpus desta
pesquisa. O que se busca na análise dos dados é, grosso modo, a representação das
personagens gays do corpus desta tese através do sistema de transitividade. Se
elegermos, por exemplo, o processo comportamental como núcleo da configuração
dos participantes em seu entorno, teremos, então, segundo Martin e Rose (2003),
um ‘espectro’ de como as personagens se comportam e, conseqüentemente, como
são representadas neste tipo de configuração. Escolhendo as cinco primeiras linhas
28
Para os procedimentos de classificação dos processos do corpus desta tese, ver capítulo
“Metodologia e procedimentos metodológicos” mais adiante.
69
de concordância dos dados desta tese (ver capítulo de metodologia), temos uma
noção superficial de como se dá a representação das personagens no original e em
sua tradução. Os processos comportamentais estão em negrito.
... up my legs with a look almost as tangible as a caress. I smiled.
... and grinned a little. He grinned back. We were alone in the
elevator.
... was looking down and to the side a little, half smiling.
He looked slyly at me.
Ace was lying on the bed, naked, and fingering himself lazily.
O que se percebe nas linhas de concordância escolhidas do original é o
predomínio de processos comportamentais configurando as personagens enquanto
participantes que utilizam o corpo em suas interações uns com os outros. Parece
comum, pelo menos nesta pequena amostragem, que a representação de
personagens está relacionada com seu comportamento, através do qual usam seu
próprio corpo, o que pode indicar um valor deste último na construção discursiva
das realidades de mundo dessas personagens. A tradução também parece
representar, mais explicitamente do que a amostragem do original, as personagens
de forma semelhante.
... ele passou a andar com a cabeça baixa olhando o tempo todo
para os pés das pessoas que passavam.
Movendo-se como se estivesse em transe...
Eu me joguei sobre a cama e cruzei as mãos atrás da cabeça.
Ele se sentou na cadeira...
Respirei fundo e me senti um pouco estimulado.
70
Se atentarmos para os participantes, diretos ou indiretos, dos processos em
negrito, veremos que o corpo parece exercer papel essencial na construção das
personagens apresentadas na pequena amostragem do corpus desta pesquisa.
Neste sentido, a configuração dos processos, seus participantes e as circunstâncias
no entorno desses processos, associada às escolhas lexicais ligadas a eles, oferecem
meios de se identificar que construção discursiva o autor dos contos e a tradutora
dos mesmos realizaram acerca das personagens. O sistema de transitividade, em
relação à coesão lexical, mais especificamente as colocações na área de influência
dos processos, parece configurar-se como recurso lingüístico apropriado para a
identificação dessa construção no corpus aqui investigado.
71
CAPÍTULO 2 - ABORDAGENS DISCURSIVAS DOS
ESTUDOS DA TRADUÇÃO
2.1 Definindo o escopo das abordagens discursivas da tradução
As décadas de 1970 e 1980 assistiram à influência paulatina da Lingüística
Textual sobre os Estudos da Tradução, sobretudo com os trabalhos de House (1977)
e Blum-Kulka (1986), aliada ao reconhecimento dos programas acadêmicos de
treinamento de tradutores (VENUTI, 2000). O principal motivo que levou os
estudiosos da tradução a se interessarem por essa vertente “textual” originou-se da
busca por soluções de problemas tradutológicos pertinentes à Lingüística, uma vez
que o conceito polêmico de “equivalência” na tradução passou, com o trabalho de
Nida (1964), a ser visto sob uma ótica “funcional”, isto é, dependente do contexto
social e cultural em que se insere. A idéia central que subjaz aos estudos desse
teórico é a importância de uma definição funcional para o significado das palavras,
visto que estas adquirem sentido quando usadas em contexto numa dada cultura. A
concepção de discurso enquanto forma de representação ou textualização de
aspectos sociais e culturais pertinentes ao texto original sobre a cultura do texto
traduzido havia sido lançada no campo teórico dos Estudos da Tradução.
Somente com o reconhecimento da Análise do Discurso, em meados dos
anos 1980, como campo teórico e metodológico de investigação da linguagem em
uso e como elemento integrante das relações sociais de uma cultura, é que as
72
abordagens lingüísticas dos Estudos da Tradução direcionam seu foco para análises
eminentemente discursivas. Segundo Munday (2001: 89), “enquanto a análise
meramente textual se concentra na descrição da forma como os textos se
organizam (estrutura da oração, coesão, etc.), a análise do discurso investiga como
a linguagem comunica relações sociais de significado e poder”.
29
Embora a
diferenciação que Munday faz entre a análise textual e a análise discursiva,
aplicadas à tradução, seja relativamente vaga, a própria delimitação dos elementos
lingüístico-discursivos investigados por analistas do discurso muito dependerá das
bases teórico-metodológicas que eles escolhem em suas pesquisas. Como bem
colocam Charaudeau e Maingueneau (2004: 45), em seu Dicionário de Análise do
Discurso,
[a] análise do discurso, situada no cruzamento das ciências
humanas, é muito instável. Há analistas do discurso antes de
tudo sociólogos, outros, sobretudo lingüistas, outros, antes de
tudo psicólogos. A essas divisões acrescentam-se as divergências
entre as múltiplas correntes. Assim, nos Estados Unidos, a
análise do discurso é muito marcada pela antropologia.
Independentemente das preferências pessoais deste ou daquele
pesquisador, existem afinidades naturais entre certas ciências
sociais e certas disciplinas da análise do discurso: entre as que
trabalham com as mídias e a sociologia ou a psicologia social,
entre as que estudam as conversações e a antropologia, entre as
que estudam os discursos constituintes e a história ou a filosofia
etc. (itálicos meus)
Curioso, porém, é o fato de Hatim e Munday (2004: 8) apresentarem os
desenvolvimentos teóricos e metodológicos dos Estudos da Tradução de maneira
29
Minha tradução de: “... while text analysis normally concentrates on describing the way in which
texts are organized (sentence structure, cohesion, etc.), discourse analysis looks at the way language
communicates meaning and social and power relations”.
73
interdisciplinar, incluindo a vertente da análise do discurso aplicada à tradução no
âmbito das investigações da Lingüística, em paralelo à lingüística textual, à
lingüística contrastiva, à lingüística de corpus, à lingüística cognitivista, à
sociolingüística, à pragmática e à semântica. Parece-me, pois, que Munday
(HATIM e MUNDAY, 2004) revisitou sua definição expressa em Munday (2001:
89), fazendo a distinção entre a análise do discurso aplicada à tradução,
preocupada, sobretudo, com as construções lingüístico-discursivas de textos
originais e de traduções, e a análise do discurso de base crítica (CHOULIARAKI e
FAIRCLOUGH, 1999; PEDRO, 1997; van DIJK, 1998; dentre outros), cuja teoria se
preocupa não somente com os aspectos discursivos de organização e produção
textual, mas, especialmente, com as relações de poder e as ideologias que subjazem
aos textos, sejam estes originais ou traduções. No que se segue, portanto, apresento
uma resenha dos principais trabalhos em tradução de base discursiva, com o
objetivo principal de situar o escopo de minha pesquisa, apresentado no capítulo
anterior, no campo teórico dos Estudos da Tradução.
2.2 Modelos e pesquisas em tradução de base discursiva
O modelo discursivo de House (1977, 1997) para a investigação de traduções
é legatário da teoria Sistêmico-Funcional de Halliday, embora House apresente, em
seu modelo, uma variedade de abordagens e, conseqüentemente, de conceitos e
terminologias que, a priori, tornam sua abordagem complexa. Quanto a este fato,
74
assim se expressa a própria teórica num artigo em que ela revisita sua abordagem
(HOUSE, 2001: 134):
Enquanto o modelo funcional para tradução apresentado em House
(1977, 1997) seja principalmente baseado na teoria sistêmico-
funcional Hallidayana, tal modelo igualmente se sustenta, de
maneira eclética, nas idéias da escola de Praga (...), na teoria dos
atos de fala, na pragmática, na análise do discurso e nas distinções,
baseadas em corpus, entre linguagem oral e escrita. O modelo
original também adapta o esquema com base em registro de Crystal
e Davy (1969) para análise estilística contrastiva.
30
Enfatizando suas análises na relação comparativa entre texto de partida (TP)
e texto de chegada (TC), House tenciona desenvolver um modelo de avaliação da
qualidade de traduções, salientando possíveis ‘erros’ de interpretação.
Sustentando-se na análise de registro de Halliday (1978), House desenvolve um
modelo que situa o TP em seu contexto de situação (da cultura de onde se origina),
acrescentando a essa análise uma perspectiva ideacional e interpessoal, a fim de
estabelecer que papel ‘funcional’ o TP exerce em seu contexto de cultura. A mesma
metodologia é aplicada ao TC, ressaltando que House propõe uma comparação
entre TP e TC, apontando possíveis inviabilidades ou ‘erros’ na tradução em relação
ao registro do TP e sua transferência para o contexto de situação e de cultura do
TC. Assim, a proposta de House tem como foco a análise do registro do texto
original e do texto traduzido, extraindo dessa relação uma avaliação da qualidade
da tradução.
30
Minha tradução de: “While the functional model for translation provided by House (1977, 1997) is
mainly based on Hallidayan systemic-functional theory, it also draws eclectically on Prague school
ideas (...), speech act theory, pragmatics, discourse analysis and corpus-based distinctions between
spoken and written language. The original model also adapted Crystal and Davy's (1969) register
based schema for contrastive stylistic analysis”.
75
A partir do modelo exposto, House (1997) estabelece duas definições para a
tradução: (i) “tradução explícita” (overt translation), ou tradução que não tenciona
assemelhar-se ao texto original, mas que possibilita ao leitor da tradução
identificar os traços culturais e discursivos expressos no texto original, e (ii)
“tradução implícita” (covert translation), ou tradução que expressa o mesmo
status do texto original em seu contexto de cultura, recriando, reproduzindo e
representando no texto traduzido os traços funcionais que o texto original possui.
Munday (2001) argumenta que House encontra dificuldade em demonstrar que, na
verdade, a relação entre tradução explícita e implícita não é vista como um par
binário em oposição. Para Munday, essa relação apresenta problemas de
interpretação das funções dos originais e suas representações nos textos
traduzidos, principalmente quando existem incompatibilidades culturais entre os
contextos de cultura do TP e do TC. Embora o modelo de House tenha contribuído
para os Estudos da Tradução de base discursiva, sua estrutura de análise foge aos
interesses desta pesquisa, pelo fato de esta não pretender avaliar seus textos
traduzidos em comparação com os originais.
Outro estudo influente na área é o de Blum-Kulka (1986). Neste artigo, a
autora apresenta uma abordagem que investiga a “explicitação” das relações
semânticas do texto original no texto traduzido, com base em teorias dos estudos
discursivos, sobretudo a coesão. A abordagem discursiva de Blum-Kulka se
sustenta numa tendência textual, que investiga as relações semânticas do texto
original e do texto traduzido, além de propor uma abordagem cognitivista que
analisa padrões de leitura e processamento textual da parte da recepção de textos
76
traduzidos. Nas palavras dessa teórica, “eu advogo a favor de uma abordagem
psicolingüística para o estudo dos efeitos da tradução. Somente tal abordagem (...)
pode validar ou refutar apelos por mudanças de significado em traduções”
31
(BLUM-KULKA, 1986: 34). Sustentando-se na tendência textual, a autora compara
as estruturas coesivas do texto original e as possíveis “mudanças” (shifts) que
comumente ocorrem na tradução dessas estruturas. Essa teórica afirma que as
mudanças coesivas no texto traduzido se dão basicamente por dois motivos: (i)
como resultado de preferências estilísticas e lingüísticas, relacionadas ao registro
do texto traduzido, e/ou (ii) como evidência do fenômeno de “explicitação”
(explicitation), ou aumento das relações semânticas no texto traduzido ao
compará-lo com o texto original, comum ao processo tradutório. Com base na
segunda tendência, Blum-Kulka salienta que as mudanças na coerência do texto
traduzido ocorrem por duas razões: (i) falhas de interpretação do leitor do texto
traduzido, pelo desconhecimento das pressuposições culturais compartilhadas
entre autor e leitores da cultura de partida, e/ou (ii) falhas de interpretação do
tradutor, durante o processo tradutório, acerca dos significados implícitos do texto
original. Em virtude disso, Blum-Kulka finaliza seu artigo, como dito
anteriormente, em defesa de uma abordagem psicolingüística, de base contrastiva,
para a investigação do processo tradutório e seus efeitos de recepção.
Como se percebe, Blum-Kulka mescla em seu artigo aspectos teóricos e
aplicados tanto de uma dimensão textual de análise comparativa de textos originais
31
Minha tradução de: I advocate a psycholinguistic approach to the study of translation effects.
Only such an approach (...) can validate or refute claims pertaining to shifts of meaning through
translation”.
77
e traduzidos quanto de uma dimensão empírico-cognitiva de investigação do
processo tradutório. Seu estudo, pois, tornou-se o leitmotiv que diferencia
pesquisas tradutológicas que privilegiam os aspectos discursivos do fenômeno
tradutório daquelas que se preocupam eminentemente com o processo da
tradução. No caso desta pesquisa, a aplicação da abordagem de Blum-Kulka se
revela problemática, visto que meu interesse é sobretudo descrever
ideacionalmente o texto original e sua tradução. Em outras palavras, o enfoque
desta pesquisa é o produto, e não o processo tradutório.
Um outro estudo bastante influente entre os teóricos da tradução é o de
Mona Baker (1992). Nesta obra, Baker faz uma resenha das principais aplicações
lingüísticas à tradução que emergiram como teorias e métodos discursivos ao final
dos anos 1980 e início dos anos 1990. Nos três primeiros capítulos de seu livro, a
autora discute o conceito de equivalência em três níveis: o lexical, o colocacional e o
gramatical, explorando os significados semânticos que permeiam essas três
categorias. Nos capítulos 5 e 6, Baker se sustenta na abordagem Sistêmico-
Funcional hallidayana para investigar as relações textuais de equivalência, com
ênfase quase que exclusiva nas relações de tema e rema (theme/rheme) aplicadas à
tradução e nos recursos coesivos (referência, substituição, elipse, conjunção e
coesão lexical) desenvolvidos no modelo de análise textual inaugurado por Halliday
e Hasan (1976). Na última parte de seu livro-texto, Baker se dedica ao estudo das
relações pragmáticas do texto original e sua(s) tradução(ões), tendo como base
teórica e analítica os aspectos intencionais da linguagem, as pressuposições, a
coerência, as máximas conversacionais de Herbert Grice (1975), dentre outras. Na
78
verdade, a importância do trabalho de Baker (1992: 4), sobretudo para esta
pesquisa, é sua preocupação em esclarecer que
quase todo aspecto de vida em geral e da interação entre
comunidades de fala em particular podem ser considerados
relevantes para a tradução, uma disciplina que deve se preocupar
com as formas de produção de significado dentro dos e entre os
vários grupos sociais em variados contextos culturais.
32
Por fim, um outro modelo discursivo aplicado à tradução é o de Hatim e
Mason (1990, 1997). Embora estes autores atentem para a dimensão “semiótica”
das relações entre texto original e traduzido, ou seja, uma dimensão que
sistematiza a interação dos variados elementos discursivos em termos de ‘signos’
(HATIM e MASON, 1990), a perspectiva teórica apresentada por eles não oferece
uma base ou modelo facilmente aplicável à análise de traduções. Sem dúvida, a
noção de semiose no trabalho de Hatim e Mason emerge da teoria semiótico-
discursiva do semioticista e analista crítico do discurso Gunther Kress (1989),
quando este teórico acrescenta à noção de semiótica social de Halliday (1978) a
concepção de discurso desenvolvida por Foucault (1971). Em sua obra Linguistic
Processes in Sociocultural Practice, Kress (1989) desenvolve o conceito de
representação social como um processo de materialização de signos que formam
redes discursivas de significação de determinadas instituições. Com efeito, Hatim e
Mason ampliam o escopo de suas análises lingüísticas até atingirem a esfera do
32
Minha tradução de: “[a]lmost every aspect of life in general and of the interaction between speech
communities in particular can be considered relevant to translation, a discipline which has to
concern itself with how meaning is generated within and between various groups of people in
various cultural settings.”
79
“discurso”, pontuando a importância de se entenderem os processos ideológicos
circunscritos no âmbito das práticas tradutológicas.
Ademais, Hatim e Mason (1990, 1997) privilegiam as funções ideacional e
interpessoal da teoria Sistêmico-Funcional, sobretudo o conceito de “significado
potencial” (meaning potential) explorado por Halliday (1978), por meio do qual há
uma valorização do ambiente semiótico em detrimento do textual. Esses teóricos,
por exemplo, sublinham que mudanças na estrutura de transitividade do texto
original para o texto traduzido podem causar diferenças de representação na
tradução, da mesma forma que mudanças da estrutura de modalidade entre
originais e traduções, dentro da função interpessoal, podem causar falhas de
interpretação da parte da comunidade-leitora do texto traduzido. Percebe-se que a
abordagem de Hatim e Mason parece requerer uma investigação da recepção de
traduções em suas culturas de chegada, uma vez que busca analisar falhas de
interpretação da comunidade-leitora do texto traduzido, o que foge aos objetivos
desta pesquisa.
Como visto até aqui, o modelo discursivo que mais tem influenciado os
Estudos da Tradução é a LSF de Michael Alexander Kirkwood Halliday (cf.
MUNDAY, 2001). No entanto, parece-me que a maioria das pesquisas na interface
tradução e sistêmica não tem se preocupado em apresentar uma descrição
epistemológica satisfatória do modelo hallidayano que dissipe as dúvidas que esta
teoria pode gerar quando da sua aplicação em questões tradutológicas. Munday
(2001), em seu livro Introducing Translation Studies: theories and applications,
80
afirma que “a gramática de Halliday é extremamente complexa”
33
(p.91), o que
justifica sua iniciativa de apenas resenhar, simplificadamente, algumas pesquisas
em tradução que tenham como base a teoria hallidayana.
Quando falo de descrição epistemológica, refiro-me à natureza, variedade,
origem, objeto de análise e limites da teoria Sistêmico-Funcional (ver Capítulo 1) ,
com o objetivo de explorar a noção de discurso aplicado aos Estudos da Tradução
de base sistêmica. É importante salientar que a Lingüística Sistêmica (Systemic
Linguistics) declara-se uma abordagem “funcionalista” por tentar combinar
informações estruturais da língua com fatores sociais e culturais de uma dada
cultura e, em tradução, de culturas distintas. Conforme Trask (2004: 184),
os adeptos da [Lingüística Sistêmica] fazem o tempo todo estas
perguntas: O que é que a pessoa que escreve, ou fala, está tentando
fazer? De que mecanismos lingüísticos poderia valer-se para fazer
isso, e com base em que faz suas escolhas?
Com base nas teorias da LSF aplicadas à tradução, Coulthard (1991)
estabelece dois conceitos importantes que influenciaram as abordagens discursivas
da tradução no contexto internacional e, sobretudo, nacional. São eles:
textualização e re-textualização. Para esse teórico, a textualização retrata a noção
de que um texto se forma a partir de uma variedade de possíveis textualizações em
sua cultura original, privilegiando, sobretudo, o aspecto ideacional da linguagem.
Segundo Coulthard, “[d]evemos (...) ver qualquer texto escrito, independentemente
33
Minha tradução de: “Halliday's grammar is extremely complex”.
81
do grau de aprovação dos leitores, como uma possível textualização da mensagem
do autor” (1991: 2). Seguindo essa mesma linha conceitual, Coulthard (1991)
apresenta o termo re-textualização, no âmbito da tradução, como sendo a
transferência de significados ideacionais da cultura de partida para a cultura
receptora. O que o autor coloca como ponto central de sua discussão acerca desses
termos é que tanto a textualização quanto a re-textualização são tentativas do
autor e do tradutor, respectivamente, em produzir textos tendo em vista seus
leitores ideais, os quais, na verdade, são previamente estabelecidos pelo tópico do
texto. Segundo Coulthard (1991: 2), “[t]odas as decisões em termos de conteúdo,
expressão, seqüência e recursos retóricos são tomadas com referência a este leitor
ideal”. Nesta pesquisa, vejo traduções como re-textualizações, e textos originais
como textualizações.
Dois discípulos de Coulthard no Brasil, Professora Rosa Konder e Professor
Walter Carlos Costa, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina, aplicaram
em suas análises alguns aspectos teóricos e metodológicos da LSF hallidayana
(KONDER, 1991; COSTA, 1992). Konder (1991) afirma que a equivalência dos
tempos verbais no par lingüístico inglês/português tem sido um problema
constante enfrentado por tradutores. Ao classificar, em seu artigo, os tempos
verbais em três momentos no tempo, a saber, passado contemporâneo, passado
próximo e passado remoto, a autora assevera que o tempo verbal que mais expressa
certa dificuldade ao ser traduzido é o Simple Present no inglês e suas possíveis re-
textualizações como pretérito perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito. Além disso,
Konder ilustra alguns casos em que igualmente ocorrem esses problemas de
82
equivalência ao analisar os tempos verbais do conto Eveline, de James Joyce, e sua
tradução feita por Hamilton Trevisan. São eles: (i) uma possibilidade de re-
textualização de was about to para o tempo verbal pretérito imperfeito e outra
como pretérito imperfeito de
IR + infinitivo, ao passo que para was to houve uma
re-textualização para o futuro do pretérito. Para was going to, ocorreram duas re-
textualizações, uma como futuro do pretérito e outra como futuro do pretérito de
IR
+ infinitivo. O outro caso de re-textualização que Konder salienta, com dezessete
ocorrências, foi would + infinitivo, com a predominância do futuro do pretérito
como escolha de tradução (treze ocorrências), além das formas do pretérito
imperfeito (duas ocorrências), do pretérito imperfeito do subjuntivo (uma
ocorrência) e sem tradução ou tradução nula (uma ocorrência).
Konder também ressalta que a tradução apresentou algumas mudanças de
tempos verbais, fato que sugere, segundo ela, a existência de possíveis dificuldades
de re-textualização enfrentadas pelo tradutor. Neste sentido, Konder (1991: 94,
ênfase no original) esclarece que “o tradutor tem de, dentro do contexto, procurar
captar o significado temporal das formas verbais da língua do original para poder
efetuar as transposições semanticamente corretas”. Não obstante o trabalho de
Konder enfoque, de forma indireta, algumas categorias de transitividade
apresentadas pela teoria hallidayana, sua abordagem ainda parece permanecer na
descrição pura de fatos lingüísticos da relação original-tradução, sem considerar, a
contento, os aspectos semânticos e contextuais dos textos que a autora investigou.
83
Costa (1992), em sua tese de doutorado intitulada A Linguistic Approach to
the Analysis and Evaluation of Translated Texts, discute as categorias genéricas de
textos originais e traduções a partir da teoria de registro de Halliday (1978) para
investigar o estilo literário de Borges e suas formas textuais híbridas, as quais,
muitas vezes, causam problemas no momento da tradução. Costa afirma que as
normas genéricas do texto Borgiano são comumente veladas, isto é, encontram-se
“por trás” das realizações lingüísticas do texto, fazendo com que tradutores tenham
certa dificuldade em identificá-las. Costa afirma que essa dificuldade é oriunda de
dois fatores primordiais: (i) as normas genéricas estão longe de serem claras e
explícitas e (ii) são semânticas por natureza, aparecendo sob disfarces lingüísticos
variados. Costa sublinha que as estruturas genéricas dos textos Borgianos impõem
determinados problemas de tradução, pelo fato de Borges não se preocupar em
seguir as normas genéricas comuns às prosas e poesias de escritores e escritoras
contemporâneos ocidentais. Esse hibridismo estilístico de Borges pode, portanto,
causar problemas tradutórios caso o(a) tradutor(a) não levar em consideração as
variáveis do registro em que o texto foi produzido e para o qual o texto será re-
textualizado.
Costa (1992) igualmente salienta a importância de se considerar o texto
traduzido como uma construção textual que detém certa autonomia em relação ao
seu equivalente na língua de origem. Segundo Costa (1992: 23), “o plano autônomo
do texto traduzido tem a ver com sua qualidade enquanto texto, isto é, como as
84
unidades (palavras, orações, parágrafos, capítulos, etc.) são agrupados”
34
. Essa
noção de autonomia do texto traduzido é fundamental para esta pesquisa,
sobretudo porque tanto o texto original quanto sua tradução, corpus desta tese, são
analisados independentemente como veículos de representação do sujeito gay por
meio das personagens investigadas neste estudo (ver análises feitas por intermédio
da ferramenta Concord mais adiante). Na verdade, considero originais e traduções
como textos autônomos, embora interdependentes, dado que ambos veiculam
discursos inerentes aos contextos de cultura em que se inserem. O texto traduzido,
por seu turno, além de autônomo, representa discursos que se deslocam da cultura
do texto original para se assentarem nos discursos da cultura receptora, formando,
assim, um hibridismo discursivo capaz de causar mudanças sociais e culturais na
cultura do texto traduzido (cf. RODRIGUES JÚNIOR, 2004). Para os propósitos
desta tese, no entanto, considero textos originais e traduzidos como textos
autônomos, mas também com certo grau de interdependência, uma vez que o
original passa a ser representado por seu equivalente na cultura do texto traduzido.
Um outro estudo pioneiro no Brasil que realiza, por assim dizer, uma
descrição mais ampla da teoria Sistêmico-Funcional aplicada à tradução é o de
Vasconcellos (1997)
35
. Esta teórica aborda questões relativas à Lingüística,
enquanto campo de saber, e aos Estudos da Tradução, enquanto campo de
34
Minha tradução de: “… the autonomous plane of the translated text has to do with its quality as
text, that is, how units (words, clauses, paragraphs, chapters, etc.) are put together”.
35
São igualmente dignos de menção os trabalhos sobre tema e rema, sob a ótica funcionalista
hallidayana, de Muriel Vasconcellos (1991, 1992a, b). No entanto, para fins de desenvolvimento da
proposta desta pesquisa, mais precisamente a representação de personagens gays por meio do
sistema de transitividade, centrar-me-ei no trabalho de Maria Lúcia Barbosa de Vasconcellos (1997)
enquanto base teórica e metodológica que lança luz sobre a abordagem discursiva que tenciono
explorar.
85
constituição de saber e aplicação da LSF como um quadro referencial teórico que
relaciona satisfatoriamente discurso e sociedade. A autora salienta que as
abordagens lingüísticas da tradução não definem ao certo “de que lingüística (...)
falam”
36
(1997: 20). Para Vasconcellos, os teóricos da tradução precisam delimitar
que perspectiva lingüística eles abordam em suas análises tradutórias, a fim de
situar o escopo de suas investigações.
No contexto nacional, o trabalho de Vasconcellos (1997) se destaca pelo fato
de a autora ter explorado a relação entre a Lingüística e os Estudos da Tradução na
tentativa de inserir as teorias de tradução no quadro teórico e metodológico mais
amplo da Lingüística Aplicada. Ao identificar a complexidade dessa relação,
Vasconcellos (1997) sublinha que as abordagens lingüísticas são usadas e aplicadas
num sentido “monolítico”. Ou seja, existe, entre os teóricos da tradução que
advogam uma perspectiva lingüística às suas análises, uma redução dessa
abordagem a uma perspectiva singular que ignora as características e tendências
típicas das investigações da linguagem em uso, sobretudo as relações entre
sociedade, cultura, política e linguagem. Percebe-se que a teórica parece destacar a
abordagem de Hatim e Mason (1997), que privilegia o semiótico em detrimento do
textual, ao passo que problematiza as abordagens lingüísticas que se pautam numa
análise meramente textual, circunscrita à descrição de fatos sintagmáticos do texto
original e sua tradução.
36
Minha tradução de: “Of which linguistics do they speak?”
86
Por conseguinte, Vasconcellos identifica a necessidade de uma abordagem
lingüística para a tradução que não somente privilegie o textual, mas que se
preocupe com a constituição de significados expressos no texto e sua relação com
os contextos social, cultural e político mais amplos nos quais se insere o texto sob
análise. Neste sentido, Vasconcellos explora a teoria Sistêmico-Funcional
hallidayana aplicando-a à tradução. Segundo a autora, há sete critérios que
identificam na LSF um arcabouço teórico, metodológico e prático para os Estudos
da Tradução: (i) a ênfase na análise semântica e não sintática; (ii) o casamento
ideal entre gramática e significado; (iii) a análise lingüística de textos como base de
construção de significados; (iv) a visão do texto enquanto unidade lingüística
fundamental; (v) a observação do papel das estruturas lingüísticas para a
elaboração do texto como unidade semântica; (vi) a ênfase no texto enquanto
realização de escolhas lingüísticas em meio a uma variedade de escolhas léxico-
gramaticais disponíveis; e (vii) a base puramente paradigmática de investigação da
linguagem.
Dentro dessa perspectiva, Vasconcellos (1997) sublinha o papel central do(a)
tradutor(a), uma vez que será ele(a) quem fará as escolhas léxico-gramaticais
conforme seu conhecimento enciclopédico tanto da cultura de origem, ou cultura
do texto original, quanto da cultura receptora, ou cultura do texto traduzido.
Vasconcellos, pois, destaca o papel dos significados ideacional e interpessoal na
prática tradutória, visto que o(a) tradutor(a) será o(a) mediador(a) entre as duas
8
7
culturas, decidindo “o que e para quem re-textualizar”
37
(1997: 32, itálicos no
original). Essas reflexões nos remetem aos apontamentos discutidos em seguida.
Em um artigo recente sobre avaliação de traduções sob a ótica do tradutor e
do lingüista, Halliday (2001) esclarece que, ao investigarmos traduções, estamos,
na verdade, contrastando dois sistemas: o da cultura de origem e o da cultura
receptora. No entanto, Halliday aponta duas direções distintas entre tradutor e
lingüista: enquanto este último vê a tradução como um sistema, aquele a interpreta
enquanto instância textual. Para o tradutor, segundo Halliday, a equivalência
tradutória deve ser percebida através do texto, ao passo que para o lingüista a
equivalência se dá a partir de uma identificação adequada entre os registros, ou
subsistemas, das duas culturas. Mais especificamente, Halliday (2001) afirma que
são nos registros das duas culturas que se encontram as partes do sistema
[cultural] que lidam com a constituição da experiência humana por meio das
relações sociais para a criação de discurso. Assim, Halliday sublinha a
importância de se investigar o conteúdo ideacional do texto como produto nos
Estudos da Tradução e, sobretudo, o papel do conteúdo ideacional na
constituição discursiva de realidades sociais, culturais e políticas pertinentes a
ambas culturas. Conforme Halliday (1994: xv),
... a análise lingüística pode nos dar condições de afirmar porque o
texto é ou não efetivo em seus propósitos -- em que aspecto ele é
bem sucedido, em que aspecto ele falha ou é menos bem sucedido.
Tal objetivo é mais difícil de ser alcançado, uma vez que requer
uma interpretação não apenas do texto em si, mas de seu contexto
37
Minha tradução de: “... what and to whom to retextualize.”
88
(contexto de situação, contexto de cultura) e da relação sistemática
entre texto e contexto.
38
Com base nessa premissa, a noção de discurso para análises de textos
traduzidos abrange não somente aspectos lingüísticos ou de instância textual, mas,
de igual modo, aspectos pertencentes às culturas de ambos textos – original e
tradução –, interpretando textos como produtos lingüísticos dentro de um evento
comunicativo (BLOOR e BLOOR, 1995: 4) e traduções como re-textualizações de
textos oriundos de eventos comunicativos distintos.
O que se percebe, pois, nas abordagens discursivas da tradução são
aplicações de ferramentas teóricas e metodológicas da LSF em paralelo com
ferramentas de análise de outras vertentes da Análise do Discurso, tais como, a
pragmática, a sociolingüística interacional, a análise crítica do discurso, dentre
outras (cf. BAKER, 1992; BLUM-KULKA, 1986; FAWCETT, 1997; HATIM e
MASON, 1990, 1997; HOUSE, 1977, 1997). Em virtude dessa variedade de olhares e
perspectivas analíticas, que muitas vezes causam problemas de aplicação de
metodologias para a investigação do fenômeno tradutório, procuro limitar esta
pesquisa ao campo teórico-metodológico da teoria Sistêmico-Funcional de Halliday
e sua interface com o uso do software WordSmith Tools, muito utilizado em
pesquisas em tradução, principalmente no âmbito da Lingüística de Corpus. O
38
Minha tradução de: “... the linguistic analysis may enable one to say why the text is, or not, an
effective text for its own purposes -- in what respects it succeeds and in what respects it fails, or is
less successful. This goal is very much harder to attain. It requires an interpretation not only of the
text itself but also of its context (context of situation, context of culture), and of the systematic
relationship between context and text.”
89
enfoque do próximo capítulo, portanto, recai sobre as pesquisas em tradução que
utilizam o WordSmith Tools como ferramenta de análise.
90
CAPÍTULO 3 - ABORDAGENS NA INTERFACE
LINGÜÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL COM OS
ESTUDOS DA TRADUÇÃO DE BASE EM CORPUS
3.1 Pesquisa de base em corpus
Discussões teóricas sobre o estatuto da Lingüística de Corpus têm sido
freqüentes em questões que tratam da epistemologia da disciplina, cuja base é
a visão empírica da linguagem, em contraponto com a visão racionalista ou
apriorística de abordagem de dados lingüísticos legatária da tradição
chomskyana (BERBER SARDINHA, 2004: 30-38). Além da visão empírica
sobre os dados de interesse da Lingüística em geral, um outro elemento central
da Lingüística de Corpus é a visão probabilística da linguagem. Nesse ponto,
há, segundo Berber Sardinha (2004), uma ligação entre a Lingüística de
Corpus e a LSF de Halliday, dada a perspectiva probabilística de língua em uso
que Halliday apresenta em sua teoria. Segundo Berber Sardinha (2004: 30):
Halliday vê a linguagem como probabilidade, enquanto
Chomsky a enxerga como possibilidade (...). A lingüística
chomskyana gerativista enfatiza a determinação de quais
agrupamentos sintáticos são possíveis (permissíveis) dado o
conhecimento que um falante nativo possui de sua língua. Já
a lingüística hallidayana descreve a probabilidade dos
sistemas lingüísticos, dados os contextos em que os falantes
os empregam. (ênfases no original)
91
O conceito de probabilidade da teoria sistêmica apresenta o ato de
comunicação como dependente do contexto de situação em que o(a) falante ou
escritor(a) se insere. Ou seja, as escolhas léxico-gramaticais usadas para
constituir significados serão feitas conforme o contexto de produção das
mesmas, uma vez que a probabilidade de escolha desta ou daquela expressão
está, na maioria das vezes, submissa ao registro.
Ao apresentar a interface profícua entre a Lingüística de Corpus e a LSF
de Halliday, Berber Sardinha (2004) questiona o estatuto da própria
Lingüística de Corpus: será ela um método ou uma teoria? Conforme Berber
Sardinha, as duas possibilidades são possíveis. O que define, na verdade, o
estatuto da Lingüística de Corpus são os objetivos da pesquisa que nela se
baseia. Se a Lingüística de Corpus é apenas um instrumento de análise para
outras teorias, então ela é apenas uma metodologia. Se, porém, novos
conhecimentos são produzidos a partir da aplicação dos pressupostos da
Lingüística de Corpus, como fez Sinclair (1991) em seu estudo fundacional das
colocações e das prosódias semânticas, então ela é tanto método como teoria.
No caso desta pesquisa de doutorado, a Lingüística de Corpus é utilizada
como método, principalmente por meio do uso do software WordSmith Tools,
tendo como suporte teórico a LSF. Esta tese, pois, caracteriza-se como uma
pesquisa de base em corpus. Neste sentido, apresento as pesquisas no âmbito
dos Estudos da Tradução que utilizaram a Lingüística de Corpus como método
de investigação.
92
3.2 Estudos da Tradução de base em corpus
O estudo pioneiro de Mona Baker (1993) acerca da relação entre Lingüística
de Corpus e tradução inaugurou, por assim dizer, o ‘casamento’ entre esses dois
ramos de pesquisa, delimitando, assim, sua interdisciplinaridade. Para Baker, os
textos traduzidos devem ser considerados textos autênticos, passíveis de
investigação da mesma forma que os textos originais são estudados pelos lingüistas
aplicados. Quase uma década após a publicação do artigo de Baker (1993), surge o
Reader dos Estudos da Tradução no circuito editorial internacional (VENUTI,
2000), como uma compilação de artigos e ensaios fundamentais para o campo de
pesquisa em questão. Todavia, o The Translation Studies Reader reserva pouco
espaço para a relação entre Lingüística de Corpus e tradução, tecendo comentários
breves sobre ‘normalização’, ‘explicitação’, ‘sanitização’, dentre outros,
considerados ‘universais’ em fenômenos tradutológicos (BAKER, 1997; KENNY,
1998, 2001). Tal espaço, no entanto, já pode ser uma indicação da legitimação pelo
próprio Reader dessa vertente nos Estudos da Tradução.
Para Berber Sardinha (2004) e os lingüistas de corpus, os textos de
interesse da vertente da Lingüística Aplicada que dialoga com a Lingüística de
Corpus são textos naturais, em formato eletrônico, produzidos para fins de
comunicação em contextos variados, agrupados com o fito de constituírem um
corpus representativo. Em virtude disso, com o advento da Lingüística de Corpus
os textos passaram a ser compilados, formando grandes bancos de dados, para fins
93
de estudos lingüísticos, de acordo com critérios definidos conforme os objetivos de
investigação (SINCLAIR, 1991).
De igual modo, traduções são mais facilmente investigadas a partir da
abordagem de corpus, a fim de observar como as realizações lingüísticas do texto
original se re-materializaram no texto traduzido em busca de significação. Venuti
(2000: 336) sintetiza essas considerações ao indicar que
... análises computacionais podem elucidar padrões tradutórios
significativos em um corpus de textos originais e suas traduções,
sobretudo se esses padrões são avaliados em contraste com um
corpus extenso de ‘referência’ tanto na língua-fonte quanto na
língua-alvo.
39
Delimita-se, pois, uma metodologia para a investigação de traduções, mais
especificamente as escolhas lingüísticas que o(a) tradutor(a) realiza em
comparação com as escolhas lingüísticas do original e, concomitantemente, a
verificação se tais escolhas são freqüentes em corpora de textos naturalmente
produzidos tanto na língua original quanto na língua traduzida.
Com efeito, descortina-se um campo de investigação de textos traduzidos
com o advento da Lingüística de Corpus, através do qual Mona Baker (1993, 1995,
1996, 1998, 1999) consolidou uma agenda teórica e metodológica no campo dos
Estudos da Tradução. A proposta dessa teórica é aliar os estudos descritivos em
tradução, com base na teoria de Gideon Toury (1978/1995/2000), às descobertas
do lingüista John Sinclair (1991), que a partir da compilação de corpora
39
Minha tradução de: “... computer analysis can elucidate significant translation patterns in a
parallel corpus of foreign texts and their translations, especially if the patterns are evaluated against
large ‘reference’ corpora in the source and target languages.”
94
computadorizados desenvolveu uma metodologia de pesquisa que superasse as
várias limitações inerentes ao pesquisador e, sobretudo, minimizasse aportes de
base eminentemente intuitiva.
Dentro do escopo dessa metodologia, Kenny (1998, 2001) destaca a
importância de se estudarem colocações (collocations) em textos traduzidos, no
âmbito da estrutura lexical, como forma de identificação das “forças culturais”
presentes nos textos. Para tanto, a autora propõe uma metodologia que requer a
disponibilização de (i) um corpus (texto original e texto traduzido), (ii) um corpus
de referência de grande dimensão na língua do original e (iii) um outro corpus de
referência de grande dimensão na língua da tradução. A partir daí, faz-se a
comparação entre texto original e texto traduzido, em seguida, texto original e
corpus de referência na língua do original e, por fim, texto traduzido e corpus de
referência na língua da tradução. Esse tipo de metodologia comparativa, segundo
Kenny, inspirando-se no trabalho de Stubbs (1996), possibilita a investigação de
escolhas lexicais que são pistas para características culturais.
Todavia, no caso de pesquisas na área desenvolvidas em universidades
brasileiras, Berber Sardinha (2002) esclarece que um dos motivos do
relacionamento não muito estreito entre lingüistas de corpus e pesquisadores em
tradução se deve pelo fato do difícil acesso à tecnologia, ou seja, o acesso aos
corpora de amplas dimensões propriamente ditos e aos programas computacionais
para exploração desses corpora voltados para a tradução. Segundo Berber
Sardinha, a maioria dos textos investigados pela tradução são impressos, o que
95
exige do(a) pesquisador(a) um trabalho custoso e metódico de digitalização desses
textos e seu preparo até atingir o formato eletrônico, sem falar dos problemas com
os direitos autorais dos mesmos. Tal fato, por si só, já inviabiliza a aplicação in toto
da metodologia da Lingüística de Corpus aos Estudos da Tradução. Um outro
ponto corriqueiro, conforme esboça Berber Sardinha (2002), é a deficiência de
manuseio de software para investigação lingüística apresentada pelos
pesquisadores em tradução, como bem expresso, por exemplo, no II Encontro
Internacional de Tradutores, realizado em Belo Horizonte, na UFMG, em que o
tema foi “Translating the New Millennium: Corpora, Cognition and Culture”.
Berber Sardinha (2002: 21) assim se expressa sobre esse fato:
Em suma, o pesquisador ou tradutor que deseje fazer incursões na
exploração de corpora para a investigação da tradução enfrentará o
problema de maior escassez de recursos para sua área, da
necessidade de aprender a utilizar software especializados, além de
necessitar executar algumas tarefas comuns da Lingüística de
Corpus, como a organização, formatação e exploração de corpus.
Em virtude disso, o próprio escopo da Lingüística de Corpus, qual seja, a
compilação de um grande banco de dados de linguagem autêntica, usada em
contexto, para fins de pesquisa dos traços lingüísticos proeminentes e peculiares de
cada língua (BAKER, 1995; LAVIOSA, 1998), ganha matizes diferenciados em
pesquisas tradutológicas no contexto brasileiro. Desta forma, os objetivos de
pesquisa em corpus e tradução devem se desmembrar em subprojetos que
interdependentemente desenvolvam pesquisas com interesses análogos, com o
intuito de criação de um banco de dados em língua portuguesa e línguas
96
estrangeiras que sirva de base para um projeto mais amplo. Surgem, então,
interesses de pesquisa voltados para corpus de pequena dimensão (GHADESSY,
HENRY e ROSEBERRY, 2001), a fim de investigar descritivamente textos
originais e traduções com foco em teorias discursivas dos Estudos da
Tradução. Para isso, a LSF tem demonstrado ser um referencial teórico
eficiente para se levar a termo objetivos de pesquisa nessa linha de interesse. É
nessa vertente de pesquisa que esta pesquisa de doutorado está inserida. No
que se segue, apresento, detalhadamente, o que vem a ser o objeto de estudos
com corpus de pequena dimensão (small corpus studies), as pesquisas,
nacionais e internacionais, realizadas nessa vertente e como se insere este
estudo nesse nicho teórico-metodológico.
3.3 Corpus de pequena dimensão
Para Sinclair (2001), o tamanho do corpus certamente influencia o tipo de
pesquisa a ser realizada, mas isso em nada compromete a qualidade da pesquisa:
para ele, tudo depende dos objetivos do(a) pesquisador(a). Com essa afirmação,
Sinclair inicia o prefácio da coletânea Small Corpus Studies and ELT: theory and
practice (GHADESSY, HENRY e ROSEBERRY, 2001), considerado um marco
histórico para a Lingüística de Corpus, em especial as pesquisas que utilizam
corpus de pequena dimensão para demonstrar sua aplicabilidade e validade para a
Lingüística Aplicada (BERBER SARDINHA, 2004).
97
Continuando suas explanações, Sinclair expressa considerações
interessantes sobre o conceito exato de ‘dimensão’ de um corpus, uma vez que as
pesquisas baseadas em corpus vêm se aprimorando progressivamente, à medida
que o mercado da informática disponibiliza novos softwares para análises
lingüísticas. Por exemplo, na década de 1960, Nelson Francis e Henry Kuçera, na
Brown University em Rhode Island, EUA, compilaram um corpus de ‘grande
dimensão’ com cerca de um milhão de palavras. Nos dias de hoje, esse corpus é
considerado de pequena dimensão, devido ao aprimoramento de técnicas de coleta
de dados que a Lingüística de Corpus tem desenvolvido nos últimos anos,
principalmente em universidades britânicas, dando origem a imensos Bancos de
Dados para estudos lexicográficos, gramaticais e discursivos. (BERBER
SARDINHA, 2004). A diferença básica entre um corpus de pequena dimensão e
um de grande dimensão é o fato de que neste podem-se observar repetições, ou
uma variada gama de escolhas léxico-gramaticais recorrentes, enquanto que
naquele isso não se torna metodologicamente viável, afirma Sinclair (2001). Neste
sentido, ao investigar um corpus de pequena dimensão, o(a) pesquisador(a) adota
uma postura que Sinclair (2001: xi) denomina “intervenção humana antecipada”
(early human intervention), isto é, o(a) pesquisador(a), com uma meta bem
delimitada, seleciona um corpus de pequena dimensão para investigar ocorrências
peculiares àquele corpus. Tal metodologia tem lançado luz sobre pesquisas
discursivas aplicadas aos Estudos da Tradução em que pesquisadore(a)s tencionam
averiguar fenômenos lingüísticos típicos do corpus sob investigação, sem
98
generalizações que somente um corpus de grande dimensão poderia permitir.
Acerca dessas discussões, Rodrigues Júnior (2005: 18) acrescenta que
(...) o advento dos corpora de pequenas dimensões abriu novas
perspectivas teóricas e metodológicas de análise de textos
originais e suas respectivas traduções, preenchendo a lacuna que
o conceito de representatividade apresentava quando da
investigação de corpora menores. A noção de
representatividade, pois, torna-se flexível ao se abrir para as
especificidades dos objectivos de pesquisa, para os interesses
do(a) pesquisador(a) e, notadamente, para os problemas de
pesquisa exeqüíveis ao seu tamanho. A questão da
representatividade, neste enfoque, passa a depender dos
interesses que o(a) pesquisador(a) tenciona perseguir em sua
pesquisa, levando sempre em consideração que os resultados da
mesma serão cada vez mais genéricos e pontuais quanto maior o
corpus, tanto em número de ocorrência de palavras quanto de
gêneros textuais. (ênfase no original)
Estudos nessa vertente têm demonstrado a utilidade de ferramentas
computacionais para a investigação de fenômenos peculiares ao corpus sob análise,
suas formas de construção discursiva e suas escolhas léxico-gramaticais (a esse
respeito, ver SINCLAIR, 2001). Nesse ramo de pesquisa temos o estudo de Munday
(1998a), de base Sistêmico-Funcional, em que este teórico analisa traduções para o
inglês de romances do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Sustentando-
se numa abordagem baseada em corpus, Munday analisa tanto o produto quanto o
processo social da tradução, através de métodos computacionais automáticos do
software WordSmith Tools (SCOTT, 1996, 1997, 1999), mais especificamente os
alinhadores (Aligner) e as linhas de concordância (Concord). Em suas análises,
Munday salienta a importância das ferramentas computacionais da Lingüística de
Corpus e como estas podem ser utilizadas heuristicamente para desvelar estruturas
99
lingüísticas não facilmente visualizadas por mera análise manual do(a)
pesquisador(a). Essa visão ‘heurística’, indica Munday, verte a atenção para as
escolhas lexicais individuais do tradutor, na tentativa de demonstrar como tais
escolhas influenciam o texto como um todo.
Em um outro estudo sobre relações temáticas no discurso do texto original
comparado ao texto traduzido, Munday (1998b), com o suporte da GSF hallidayana
(HALLIDAY, 1994), sublinha que a organização tema-rema difere-se de uma língua
para outra, como é o caso do inglês e do espanhol. Ao investigar o conto El verano
feliz de la señora Forbes, de Gabriel García Márquez, e sua tradução Miss Forbes’
Summer of Happiness, feita por Edith Grossman, Munday (1998b) afirma que o
sistema lingüístico da língua inglesa poderia criar uma diferença considerável na
progressão temática do discurso do conto de Gabriel García Márquez. Em outras
palavras, ao se traduzir o conto do espanhol para o inglês, a liberdade inerente de
posicionamentos temáticos comum à língua espanhola pode não ser possível em
língua inglesa, visto que nesta os temas são mais não-marcados se comparados aos
temas da língua espanhola. Para Munday, essa rigidez temática pode igualmente
afetar as relações de espaço e tempo nas narrativas do escritor colombiano.
Esses estudos de Munday culminaram em um ensaio (MUNDAY, 2002) cujo
enfoque é o desenvolvimento de um modelo de três estágios. Com base nos Estudos
Descritivos da Tradução (TOURY, 1978/1995/2000)
40
, Munday esclarece que os
40
Hatim e Munday (2004: 338) definem os Estudos Descritivos da Tradução como um campo dos
Estudos da Tradução que envolve a análise empírica e não-prescritiva de textos originais e traduções
com o objetivo de identificar características gerais e, conseqüentemente, estabelecer normas de
tradução.
100
dois primeiros estágios de seu modelo se erigem a partir da identificação
sistemática de “mudanças” (shifts) na tradução, orientado pela teoria Sistêmico-
Funcional de Halliday e auxiliado pelas ferramentas da Lingüística de Corpus. O
terceiro estágio do modelo localiza os resultados da análise feita nos dois primeiros
estágios dentro dos contextos editorial, político e sociocultural com o intuito de
identificar fatores externos que tenham motivado essas “mudanças”. Em seu
modelo, Munday explora um texto de Gabriel García Márquez a respeito do
naufrágio em terras norte-americanas de um garoto cubano, Elián González, ao
final do ano de 1999, traduzido para o inglês em dois jornais de ampla circulação
nos Estados Unidos da América, The Guardian, jornal britânico, e The New York
Times, jornal norte-americano, e uma versão em inglês traduzida pelo grupo
cubano Granna International e disponibilizada via Internet. Investigando as três
meta-funções desenvolvidas por Halliday (1994), Munday (2002) demonstra que
os editores, e talvez os próprios tradutores, tenham sido motivados por questões
ideológicas e políticas ao produzirem versões diferenciadas da narrativa em torno
do dilema do garoto cubano, através de mudanças na transitividade dos textos
traduzidos (aspecto ideacional) (p.85), de expressões discursivas de modalização
(aspecto interpessoal) (p.86), de aumento ou diminuição de citações do nome Elián
nas traduções (aspecto textual) (p.87), dentre outros fatores. Percebe-se, pois, que
a teoria Sistêmico-Funcional e a Lingüística de Corpus, aliadas à teoria de Estudos
Descritivos da Tradução (Descriptive Translation Studies), oferecem meios
analíticos e metodológicos para a investigação de escolhas léxico-gramaticais em
traduções motivadas por questões ideológicas e hegemônicas. Munday, a partir do
101
referencial da GSF hallidayana, sistematiza adequadamente esse movimento do-
texto-ao-contexto-e-vice-versa, partindo de análises textuais e apontando para
possíveis impactos na cultura receptora que o texto traduzido possa causar.
Um outro estudo, na área da tradução, baseado em corpus e amparado pela
teoria hallidayana é o de Ghadessy e Gao (2001). Estes teóricos analisaram
quantitativamente as estruturas de tema/rema (HALLIDAY, 1994) de textos
originais em língua inglesa e suas traduções para o chinês. A amostra de textos
investigada é de livros-texto usados para o ensino de tradução em universidades
chinesas. Após identificar os limiares sintagmáticos das orações para a
identificação dos temas, Ghadessy e Gao classificaram-nos em categorias conforme
suas funções oracionais, oferecendo um elenco variado de tipos de temas
encontrados no corpus por eles estudado. Os resultados da pesquisa levaram os
autores a averiguarem uma semelhança na estrutura temática do texto original em
comparação com o texto traduzido, embora, segundo Ghadessy e Gao, tenham
ocorrido diferenças relevantes na quantidade e nos tipos de temas em ambos os
corpora. Para os autores, esse tipo de pesquisa, longe de responder aos
questionamentos sobre tradução e equivalência, conduz-nos para uma melhor
compreensão de aspectos discursivos (relações temáticas) significativos dos textos,
os quais exercem papel importante em nossas decisões acerca do conceito de
equivalência em tradução (2001: 353).
No Brasil, os estudos na interface Estudos da Tradução e Lingüística de
Corpus se deram pioneiramente com as pesquisas de Cruz (2003), Mauri (2003),
102
Jesus (2004), Assis (2004) e Bueno (2005). Cruz (2003) examina o texto original
Harry Potter and the chamber of secrets e sua tradução para o português
brasileiro, Harry Potter e a câmara secreta. A instância do discurso que a
pesquisadora investiga são os verbos de elocução (reporting verbs) e os processos
de transitividade que os mesmos configuram. O aspecto principal de investigação
são as escolhas que a autora Joanne K. Rowling fez dos verbos de elocução para a
construção de suas personagens e como a tradutora, Lia Wyler, re-textualiza essa
construção através dos verbos de elocução. Os resultados da pesquisa de Cruz
apontam para um predomínio, no texto original, de ocorrências de verbos de
elocução em torno do processo verbal say, diferentemente da tradução, em que a
tradutora opta pelo processo verbal perguntar, sinalizando um ato de fala das
personagens. Além disso, no texto original percebe-se o uso freqüente de processos
que sinalizam sons de animais e expressões faciais das personagens, ao passo que
na tradução a utilização desses processos é bem reduzida. Por fim, ao utilizar, em
número maior, processos comportamentais, a autora Joanne K. Rowling constrói
personagens conscientes de seus comportamentos físicos e psicológicos; já na
tradução, Lia Wyler, ao preferir processos verbais, “apresenta os personagens como
falantes, podendo ser conscientes ou não, sem focalização específica de
comportamentos físicos e psicológicos” (CRUZ, 2003: 189).
Mauri (2003) realizou uma análise contrastiva dos contos Laços de família,
de Clarice Lispector, e sua tradução para o italiano, Legami familiari, feita por
Adelina Aletti. O objetivo da pesquisa concentrou-se nos aspectos indicadores de
semelhanças e diferenças no uso dos verbos de elocução, tanto em língua
103
portuguesa quanto italiana, a fim de observar se os níveis de introspecção das
personagens femininas variavam na tradução. Os resultados apresentados por
Mauri sinalizam para um número considerado de processos mentais sendo
utilizados como verbos de elocução no original. Na tradução, a seu turno, essas
mesmas escolhas nem sempre ocorriam, devido às estruturas da língua italiana, ou
levando-se em conta o contexto sociocultural do texto de chegada, ou o estilo da
própria tradutora.
Jesus (2004) investiga padrões de textualização característicos do estilo do
escritor e tradutor Érico Veríssimo. Após a publicação de sua tradução, em 1934, da
obra do autor inglês Aldous Huxley, Point counter point, cujo título foi
Contraponto, Érico Veríssimo escreve Caminhos cruzados em 1935, sofrendo
críticas por ter recriado neste último as técnicas ou estratégias de textualização
presentes em Point counter point. Jesus, pois, investiga os três romances, i.e.
original e sua tradução e Caminhos cruzados, sob a perspectiva do sistema de
transitividade de Halliday (1994), mais especificamente focalizando o processo
mental think e sua tradução pensar, com o intuito de avaliar padrões de
textualização nas três obras analisadas. Os resultados da pesquisa demonstram que
Veríssimo-autor e Veríssimo-tradutor textualizam o processo mental pensar de
maneiras diferenciadas, apresentando distinções em ambas as relações de
textualização. No dizer de Jesus (2004: 115),
[e]nquanto Huxley enfatiza a representação do conteúdo das
personagens através do uso de citação e paráfrase, configurando
uma significação condizente com o gênero da obra -- um
104
romance de idéias, Veríssimo, por outro lado, focaliza, em
Caminhos cruzados, a fragmentação dos pensamentos das
personagens, através do uso de sintagma preposicionado e
relato descontínuo, aspecto também condizente com o gênero da
obra -- um romance urbano moderno, entre a crônica de
costumes e a notação intimista.
Assis (2004) investiga a representação discursiva da personagem Sethe
no romance original Beloved, de Tony Morrison, em comparação com a
tradução Amada, feita por Evelyn Kay Massaro. Privilegiando o sistema de
transitividade da GSF de Halliday (1994), Assis focalizou a protagonista Sethe,
de acordo com os tipos de processos utilizados para representá-la, como Ator
(processo material), Experienciador (processo mental), Dizente (processo
verbal), Comportante (processo comportamental) ou Portador (processo
relacional), dando origem à nomenclatura AEDCP. A fim de analisar a
construção discursiva de Sethe inserida a partir dessa metodologia, Assis
selecionou as instâncias discursivas em que Sethe era narradora onisciente e
onipresente. Dessa forma, Assis explorou a representação de Sethe no original
e em sua tradução, podendo constatar que as re-textualizações dos processos
relacionais e verbais ocorreram de forma mais “flexível” (2004: 111), ao passo
que os outros processos assumiram padrões de (re)textualização análogos.
Partindo da perspectiva de criatividade lexical (KENNY, 2001), da
transitividade (HALLIDAY, 1994 e HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004) e da
coesão (HALLIDAY e HASAN, 1976; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004),
Bueno (2005) apresentou uma análise descritiva de Macunaíma, de Mário de
Andrade, e sua re-textualização para o inglês feita por E. A. Goodland.
105
Sustentando-se na metodologia da Lingüística de Corpus, mais
especificamente, a ferramenta Keywords, para selecionar os itens lexicalmente
criativos, neste caso, o “brincar” e suas possíveis re-textualizações, e a
ferramenta Concord, para analisar os processos em ambas as obras e os
participantes a eles ligados, sobretudo Macunaíma, e o campo semântico
desses processos por meio da coesão lexical, Bueno esclarece que o item
“brincar” assume conotações sexuais na tessitura das orações, bem como as
associações deste último item com outros, tais como, “rir”, “festa”, dentre
outros, que igualmente assumem conotações sexuais. O ponto central do
trabalho de Bueno está na observação do processo material “make” e sua
colocação com “love”, fato lingüístico que confere uma semi-materialidade a
make, uma vez que “love” expressa significados mais mentais que materiais.
Bueno conclui seu trabalho apontando para uma maior “mentalização” do
processo material “make love” como escolha para re-textualizar processos
tipicamente materiais com nódulo “brincar”.
As pesquisas elencadas nessa seção demonstraram o potencial da teoria
Sistêmico-Funcional hallidayana para a análise de (re)textualizações. De igual
modo, pudemos perceber a natureza dessa teoria, ou seja, seu enfoque
paradigmático, o objeto de estudo da mesma, isto é, as relações semânticas na
estrutura da oração que apontam para as relações ideológicas que constituem
os textos e, em contrapartida, são por eles constituídas. Neste sentido,
Halliday (1978) apresenta uma perspectiva sócio-semiótica da linguagem,
106
cujas características básicas podem ser resumidas no excerto seguinte,
extraído de sua obra seminal Language as Social Semiotic (1978: 126):
Uma perspectiva ‘sócio-semiótica’ implica uma interpretação
dos ‘deslocamentos’, das irregularidades, das desarmonias e das
tensões que caracterizam a interação humana e os processos
sociais. Essa perspectiva tenta explicar a semiótica da estrutura
social em ambos os aspectos de persistência e de mudança,
incluindo a semântica da classe social, do sistema de poder, da
hierarquia e do conflito social. Essa perspectiva tenta
igualmente explicar os processos lingüísticos através dos quais
os membros da sociedade constroem a semiótica social e a
realidade é modelada, limitada e modificada -- processos que,
longe de tenderem para uma construção ideal, admitem e até
institucionalizam uma visão míope, o preconceito e os
desentendimentos.
41
Além disso, as pesquisas aqui apresentadas retrataram o potencial da
Lingüística de Corpus para as investigações em tradução, sobretudo a utilidade
de ferramentas computacionais para a viabilização de análises tradutórias em
comparação com originais.
No capítulo seguinte, apresento o corpus de estudo desta pesquisa,
detalho, com base em um eixo histórico e temporal, as características sociais
dos contextos em que a coletânea de contos Stud e sua tradução As Aventuras
de um Garoto de Programa surgiram e, por fim, apresento os procedimentos
metodológicos realizados para o preparo do corpus e sua conseqüente análise.
41
Minha tradução de: “A ‘sociosemiotic’ perspective implies an interpretation of the shifts, the
irregularities, the disharmonies and the tensions that characterize human interaction and social
processes. It attempts to explain the semiotic of the social structure, in its aspects both of
persistence and of change, including the semantics of social class, of the power system, of hierarchy
and of social conflict. It attempts also to explain the linguistic processes whereby the members
construct the social semiotic, whereby social reality is shaped, constrained and modified -- processes
which, far from tending towards an ideal construction, admit and even institutionalize myopia,
prejudice and misunderstandings.”
107
CAPÍTULO 4 - METODOLOGIA E
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
4.1 O corpus
O corpus de análise desta pesquisa é uma coletânea de doze contos gays,
escrita na década de 1960 por Samuel Steward, com o pseudônimo de Phil Andros,
no contexto norte-americano, e sua tradução para o português brasileiro, feita por
Dinah Klebe, ao final da década de 1990. A contracapa da tradução apresenta uma
pequena biografia de Phil Andros e a gênese da obra Stud:
Phil Andros é o nome pelo qual Samuel Steward, um
professor com Ph.D. em literatura inglesa, tornou-se conhecido
e cultuado nos Estados Unidos ao narrar as aventuras de um
michê bonito, culto e gay. Steward foi amigo de Gertrude Stein
42
e Alice B. Toklas, freqüentou os círculos americanos e europeus
de homossexuais famosos (a quem dedicou-se em seduzir), e,
sempre inquieto, uniu seu amor por artes gráficas e corpos
masculinos tornando-se tatuador, profissão na qual criou fama.
Em resposta ao desafio de um amigo, escreveu as histórias
de estréia de “Phil Andros”, um homem inteligente e bem
dotado que faz uso de sua sensualidade mediterrânea para
ganhar a vida. Pela primeira vez a sexualidade gay era
apresentada como um fato corriqueiro, o que conquistou de
imediato leitores em todo o mundo, cansados de material
negativo sobre homossexuais. Este público permanece fiel ao
humor fino e aos personagens exóticos que caracterizam as
aventuras de Phil, fazendo dele um clássico sempre presente em
antologias gays.
42
Gertrude Stein (1874-1946), escritora americana de estilo excêntrico, lésbica, viveu grande parte
de sua vida em Paris, junto de sua companheira Alice B. Toklas, em meio a grandes artistas e
escritores da época. Publicou, dentre outros, Three Lives (1909), The Making of Americans (1906-
08), e seu maior sucesso, The Autobiography of Alice B. Toklas (1933), sendo, na verdade, sua
própria biografia. Sua obra e sua vida influenciaram a produção literária de Samuel Steward. Fonte:
http: //www.writing.upenn.edu/~afilreis/88/stein-bio.html
, acessado em 26/12/05.
108
Os seis primeiros contos de Stud selecionados para análise (ver justificativa
de escolha dessa amostragem em “Preparação do corpus e categorias de análise”
mais à frente) apresentam a vida gay caracterizada por eventos nos quais Phil
Andros, narrador e protagonista dos contos, se envolvia com outros gays em
situações variadas. O primeiro conto, The Poison Tree, apresenta Phil Andros como
guia turístico do Glacier National Park, o qual era cercado pelas montanhas
Garden Wall, em Montana, EUA. Clayton, o outro guia turístico recentemente
contratado, incomodava Phil em todas as suas ações. Do incômodo persistente que
Phil Andros sentia em relação a Clayton surgiu uma atração muito forte, ódio
mesclado com lascívia, a qual culminou em uma relação sexual entre ambos. Por
este fato, Phil Andros foi acusado por Clayton de homossexual, atributo este que
caracterizava uma atitude “desviante” àquela época. Porém, a dona do parque, Srª.
Barley, não acreditou em Clayton, demitindo-o em seguida. Phil Andros se safa da
acusação e continua trabalhando no Glacier National Park.
No segundo conto, Mirror, Mirror, on the Wall, Phil Andros trabalha como
mensageiro de um hotel, vindo a se interessar por um de seus hóspedes chamado
Rex Rhodes. No entanto, Phil não chega a se relacionar sexualmente com ele. No
decorrer do conto, o narrador e protagonista, após alguns anos, reencontra o
hóspede e se envolve, juntamente com ele, em uma orgia com vários outros gays.
Ao final, Phil desenvolve uma admiração excêntrica por Rex Rhodes, embora este
adote um estilo de vida solitário e auto-suficiente, nunca se envolvendo
afetivamente com outros parceiros.
109
O terceiro conto, The Easter Kid, apresenta Phil Andros como um michê
gay
43
que aceita um programa com outro michê gay italiano de nome Pasquale, o
qual aparecia em São Francisco somente na época da Páscoa. Os dois, após longas
horas de conversas sobre auto-iluminação e zen-budismo, visto que Pasquale dizia-
se budista, relacionaram-se sexualmente. Ao final, Phil Andros descobre que
Pasquale criou a estória de auto-iluminação da mesma forma que ele fazia com os
gays os quais ele se envolvia, fato este que contrariou Phil. Pasquale vai embora da
cidade sem deixar pistas de seu paradeiro, forçando, pois, Phil a aguardar o período
da Páscoa do ano seguinte para acertar as contas com Pasquale.
O quarto conto, The Green Monkey, apresenta Phil Andros como um michê
gay que se envolve com um sapateiro gay “pedólatra”, ou seja, viciado em pés,
fazendo disso um fetiche. Depois de se envolver com esse sapateiro, chamado Karl,
Phil começa a se apaixonar por ele, até que um dia Karl, ao tentar beijar os pés de
um garoto nas ruas de São Francisco, é agredido violentamente por um grupo de
jovens dos subúrbios da referida cidade, vindo a falecer dias depois. Phil se
entristece profundamente e deixa a cidade de São Francisco, mudando-se para o
Texas.
No quinto conto, Ace in the Hole, Phil Andros começa a trabalhar em um
hotel no Texas. Nesse local, ele se interessa por um dos mensageiros, um michê
bissexual, negro, alto, bonito e muito bem-feito de corpo, chamado Ace. Depois de
43
É importante ressaltar que em todos os contos Phil Andros é um michê gay. Contudo, com
exceção dos contos The Easter Kid e The Green Monkey, nos quais Phil Andros assume plenamente
sua identidade de michê gay, o narrador e protagonista disfarça-se como trabalhador comum, em
parques e hotéis, a fim de conhecer outros gays e se envolver sexualmente com eles.
110
várias tentativas, Phil finalmente consegue se envolver com Ace. Dado o grande
preconceito existente no Texas, sobretudo nos anos 1960, os dois freqüentemente
se encontravam às escondidas, até que um dia foram descobertos, sendo obrigados
a fugirem do Texas e se mudarem para a cidade de Chicago. A essa altura, Phil
Andros já havia se apaixonado por Ace, embora temesse viver com ele em Chicago,
uma vez que o racismo nos Estados Unidos, sobretudo em Chicago, era muito
violento àquela época.
O sexto conto, Two-Bit Whore, mostra a decadência de Ace na cidade de
Chicago, sobretudo porque ele não conseguia programas na referida cidade, devido
ao preconceito bastante acentuado. Depois de um bom tempo, Phil consegue
arranjar programas com outros gays negros para Ace, o qual, mais tarde, reserva-se
a apenas se relacionar com seus clientes negros, abandonando Phil. Este,
desiludido, sofre várias humilhações da parte de Ace, as quais culminaram em
agressões físicas e psicológicas e, por fim, no término da relação. Isso faz com que
Phil Andros revisite seus conceitos existenciais e problematize seu próprio estilo de
vida. No entanto, Phil não desiste de suas aventuras como michê gay, deixando o
leitor curioso em saber quais serão suas próximas ações e artimanhas.
4.2 Contextualizando o corpus: motivo de sua escolha
Segundo Smith (1993), os anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos se
caracterizaram pelo fortalecimento de movimentos de minorias, dentre eles o
feminismo, o racismo e, sobretudo, os movimentos gays e lésbicos. Estes últimos
111
encontraram resistência acirrada de ações coletivas radicais e discriminatórias
principalmente na década de 1960. Os movimentos sociais que ocorreram nesse
período histórico norte-americano foram o ponto de partida para inúmeras
manifestações e reivindicações de grupos minoritários por seus direitos, muitos dos
quais iam de encontro às normas de conduta marginalizadoras estabelecidas pela
ideologia política e social dos Estados Unidos. Conforme Berutti (2002: 23),
Os anos 1960 ficaram registrados como o período mais
turbulento deste século nos Estados Unidos. Aquela década
lançou questionamentos e desafios ao tão consagrado american
way of life através de uma série de protestos contra o
conformismo social, a segurança política e a prosperidade do
pós-guerra.
Segundo Berutti (2002) e Facchini (2005), o marco na história dos
movimentos gays e lésbicos dos Estados Unidos foi a batida policial no bar
Stonewall Inn, em Greenwhich Village, em Nova Iorque, onde vários gays e
lésbicas foram rendidos por policiais e espancados. O referido bar havia se
popularizado por diversos motivos. Dentre esses motivos, destacam-se: (i) as
batidas policiais eram menos freqüentes no Stonewall do que em outros bares
straights (bares para heterossexuais), motivo pelo qual o bar passou a ser um
ponto seguro para encontros entre homossexuais masculinos e femininos; (ii)
conseqüentemente, os gays e as lésbicas podiam dançar e namorar livremente; e,
por último, (iii) a clientela do Stonewall Inn era variada, desde street queens
(travestis que fazem programas) até os moradores do luxuoso East Side de Nova
Iorque. O Stonewall Inn foi considerado, em 1966, um negócio extremamente
112
lucrativo, uma vez que rendia mais de US$ 5.000,00 por semana e mais de US$
6.500,00 aos sábados. Além disso, ocorriam transações ilegais no bar, desde
prostituição masculina até tráfico de drogas e de armas de fogo. Em virtude dessas
ações ilícitas, na noite de 27 de junho de 1969, o bar foi invadido por policiais,
conforme informações do Boreau of Alcohol, Tobacco and Firearms (Batf) –
Departamento de Álcool, Fumo e Armas de Fogo – acerca dessas práticas ilícitas
que aconteciam no referido bar. Os policiais prenderam os proprietários do
Stonewall e espancaram, violentamente, vários freqüentadores, numa mistura de
justiça e homofobia. A partir de então, o fato histórico acontecido no Stonewall Inn
deu origem a várias manifestações de movimentos de minorias gays e lésbicas
contra a homofobia e a discriminação. Após um ano, nasce a primeira manifestação
do Gay Pride, por meio da qual as minorias vêm a público e se tornam notícia.
Nesse contexto de manifestações gays, Samuel Steward lança, em 1969, a
primeira edição de sua coletânea de contos intitulada Stud, que tem como
protagonista e narrador-participante um michê gay que se aventura em situações
eróticas as mais variadas e complexas com outros gays. Samuel Steward, Ph.D em
Literatura Inglesa pela Ohio State University, com o pseudônimo de Phil Andros,
inicia a escrita dessa coletânea com seu primeiro conto “The Poison Tree”, em
agosto de 1963, o qual aparece pela primeira vez na revista amigo, um periódico de
estudos da linguagem inglesa e alemã de Copenhagen. Outros contos da obra de
Andros também apareceram na revista Der Kreis (O Círculo), em Zurique, e na
revista eos, em Copenhagen. Ao introduzir a obra de Phil Andros, John Preston
(1982) afirma que o autor inaugura sua carreira literária lançando-se num mercado
113
editorial que se abria para esse tipo de “ficção adulta”. A primeira edição de Stud
saiu em 1969, no contexto norte-americano, pela já extinta Guild Press Ltd., sendo
reimpressa em 1982, pela Alyson Publication Inc., fundada em 1980. Essa Editora
tem publicado livros para todos os tipos de leitores gays, desde adolescentes, gays e
lésbicas balzaquianos, até filhos de casais homossexuais. A Alyson Publication
tornou-se a Editora líder no mercado editorial norte-americano desse tipo de
literatura, tendo reeditado todos os títulos da Guild Press Ltd. e lançado inúmeros
outros no mercado dos Estados Unidos.
44
Nesta pesquisa, investigo a reedição de
1982 de Stud.
A primeira edição da tradução para o português brasileiro de Stud, intitulada
As Aventuras de um Garoto de Programa, pela Edições GLS de São Paulo, é
lançada em 1998, em um contexto social nacional o qual os movimentos gays se
fortaleciam e, conseqüentemente, criavam meios de expandir suas ideologias. A
Edições GLS, lançada em 1998, durante a Bienal do Livro de São Paulo, surgiu no
mercado editorial nacional em nível de semelhança às Editoras Brasiliense e
Record, já consagradas como Editoras que publicavam literatura denominada
homoerótica (Revista Cult, 2003). Vista, atualmente, como a Editora principal de
obras literárias e não-literárias gays no Brasil, a Edições GLS tem expandido seu
catálogo com a inserção de vários títulos, desde literatura até obras não-ficcionais e
de auto-ajuda.
44
Informações do site da Editora Alyson Publication Inc. http:
//www.alyson.com/html/aboutalyson.html.
114
Uma das formas utilizadas para essa expansão foi a crescente venda de livros
e revistas nacionais cujas temáticas e chamadas, respectivamente, apresentavam,
declaradamente, a vida gay como estilo e prática social a caminho da legitimação.
Trevisan (2004: 375-6) esclarece que, na década de 1990 no Brasil,
... nas grandes livrarias criaram-se seções especiais com livros
de temática homossexual, sem falar da primeira livraria
exclusivamente GLS do Brasil, a Futuro Infinito, em São Paulo,
e das Edições GLS, editora especializada em livros de ficção e
ensaio voltados para esse público.
Ademais, Facchini (2005: 174) acrescenta que
os anos 1990 assistiram a uma definitiva inserção dos
homossexuais no mercado, com o surgimento de várias revistas,
jornais, livrarias, editoras, agências de turismo, de namoro etc.
especificamente orientados para o público homossexual e,
também, de seções em grandes jornais, livrarias, editoras e
agências de viagem.
De igual modo, os anos 1990 no Brasil foram decisivos para a afirmação dos
movimentos gays e lésbicos e para sua visibilidade enquanto grupo social,
sobretudo após o advento da AIDS e suas conseqüências desastrosas. Historiadores
e cientistas sociais, como Berutti (2002), Facchini (2005) e Trevisan (2004),
asseveram que a AIDS exerceu papel decisivo na redefinição principalmente do gay
na sociedade nacional, como elemento constitutivo e de pertencimento a essa
sociedade, e integrante de uma comunidade (gay) que crescia, e continua
crescendo, celeremente. Tal fato é bem ilustrado na afirmação de Facchini (2005:
167-8):
115
Para além de qualquer apoio oferecido pelo Ministério da Saúde
[do Brasil], por meio do Programa Nacional de DST/Aids, seja
na forma de recursos para o desenvolvimento de projetos
financiados, seja na forma de incentivos à organização do
movimento e ao seu engajamento na luta contra a epidemia, a
Aids propiciou um debate social acerca da sexualidade e da
homossexualidade, à qual foi associada, em particular. Sem
dúvida, a epidemia da Aids, sua associação à homossexualidade,
todo o debate que se deu neste sentido e os encaminhamentos
das políticas públicas de saúde – visando promover ações de
prevenção e cuidados que envolvessem a participação da
‘comunidade homossexual’ e/ou dos grupos/organizações do
movimento – estão bastante ligados à própria viabilidade
alcançada pela política de identidades homossexuais no Brasil.
Nesse contexto social nacional dos anos 1990, além de uma maior
visibilidade social dos gays e lésbicas, uma outra forma de reafirmação dessas
minorias, sobretudo a minoria de homossexuais masculinos, tema desta tese, foi a
crescente venda de livros literários que traziam o modo de vida gay à baila da
sociedade brasileira. Assim, uma das principais causas que me levou a investigar a
obra Stud e sua tradução As Aventuras de um Garoto de Programa (doravante,
Garoto) foi o lançamento do número 6 da Revista Cult, em fevereiro de 2003, cuja
temática eraLiteratura Gay: bandeira política ou gênero literário?. Esse número
da Revista Cult problematizava o conceito de literatura gay, definindo-a como “uma
vertente mais contemporânea, vinculada ao processo histórico de liberação gay, de
conscientização gay (...); em suma, seria literatura homoerótica pós-68, pós-
Stonewall” (p. 48). Parece, então, que a primeira edição de Stud, em 1969, no
contexto social norte-americano, teve, dentre outras obras literárias que traziam à
tona questões a respeito de minorais, um papel fundamental para a comunidade
gay dos E.U.A., sobretudo como um dos instrumentos de afirmação do gay
116
enquanto ator social reconhecido em sua comunidade. Harvey (2000a: 140) explica
esta questão afirmando que
‘a escrita gay’ é, talvez, acima de todas as outras, um gênero
literário que explora os parâmetros da experiência gay a fim de
validar uma posição identitária e criar um espaço interacional
para a formulação e recepção de vozes gays. (ênfases no
original)
45
Além disso, houve igualmente uma crescente produção de obras literárias
nessa linha temática, como explicita Young (2005). Em seu artigo The Paperback
Explosion: how gay paperbacks changed America
46
, Young afirma que os
movimentos gays nos Estados Unidos e na Inglaterra ocorreram paralelamente à
explosão de lançamentos de livros nos mercados editoriais desses países cujos
temas tentavam legitimar a vida gay como estilo de vida não-estereotipado que
buscava espaço social de visibilidade nesses contextos. A escrita gay, portanto,
ganhou vulto nas culturas anglo-americana e anglo-saxônica, a qual passou a ser o
elemento-chave das agendas políticas de Editoras nacionais e internacionais que
publicavam esse tipo de escrita.
Ainda nesse número da Revista Cult, a editora-chefa da Edições GLS, Laura
Bacellar, durante o lançamento da editora na Bienal do Livro de São Paulo, em
1998, se coloca a respeito das questões acadêmicas concernentes ao gênero do
discurso em que se insere a escrita gay. Ao selecionar as obras que seriam
45
Minha tradução de: “‘gay writing’ is, perhaps above all else, a literary genre that explores the
parameters of gay experience in order to validate an identity position and create an interactional
space for the formulation and reception of gay voices”.
46
Disponível em http: //www.ianyoungbooks.com/GayPbks/Paperbacks.htm e acessado em
07/09/2005.
11
7
traduzidas para o português brasileiro e editadas pela Edições GLS, Bacellar (2003:
51) afirma que “os critérios literários não foram predominantes. (...) Preferi as
obras que apresentassem conteúdo não-ficcional prático e sem preconceito, ou
obras de entretenimento com modelos de vida e consciência homossexual bem
positiva”. Parece-me que o motivo que levou Bacellar a preferir esses tipos de obras
literárias e não-literárias foi a necessidade de estabilização de práticas sociais gays
do pós-AIDS no contexto nacional, como coloca Trevisan (2004), em seu livro
Devassos no Paraíso. Embora já apresentassem uma certa visibilidade social
reconhecida, sobretudo após o advento da AIDS, como visto mais acima, essas
práticas sociais sofreram, e ainda sofrem, achaques discriminatórios variados, uma
vez que, segundo Trevisan (2004), tornaram-se, perante a sociedade brasileira, o
fato gerador principal do contágio e disseminação do vírus da AIDS.
Parece-me, pois, que o surgimento da tradução Garoto no contexto nacional
é, dentre as outras obras de literatura gay traduzidas pela mesma Editora, uma
espécie de marco que Laura Bacellar, Editora-chefa da Edições GLS, estabeleceu
para mostrar a vida social gay, sobretudo a recuperação histórica das relações gays
legatárias das décadas de 1960 e 1970 dos Estados Unidos, como uma forma de
reinserção do homossexual masculino brasileiro no continuum histórico de sua
própria comunidade. Neste sentido, a investigação da representação do sujeito gay
nos contos de Stud e de sua tradução Garoto, por meio do sistema de transitividade
da GSF, torna-se fundamental, sobretudo porque inaugura, por assim dizer, o
estudo da representação gay pelo viés da LSF no contexto brasileiro.
118
Em virtude das discussões tecidas até agora, surgiram minhas perguntas de
pesquisa:
Como são representadas as personagens gays no corpus Stud-Garoto, a
partir da análise de processos, participantes e circunstâncias?
Quais são as características discursivas de Stud e de Garoto, enquanto
gêneros do discurso contos gays, na perspectiva de análise de registro, em
especial a variável de campo do contexto de situação?
Esta pesquisa, portanto, tenciona revelar as construções discursivas das
personagens gays no original e na tradução da coletânea de contos sob análise, por
meio da transitividade e da análise de registro, mostrando, assim, a importância da
teoria Sistêmico-Funcional para o entendimento de como as personagens gays dos
contos investigados são representadas e, conseqüentemente, como seus estilos de
vida são construídos no discurso.
4.3 O software WordSmith Tools, a preparação do corpus e as
categorias de análise
O software utilizado nesta pesquisa é o WordSmith Tools 4.0, programa
computacional que demonstra como as palavras ‘se comportam’ em contexto,
desenvolvido originalmente por Mike Scott (SCOTT, 1996) e comercializado pela
editora da Oxford University. Após a digitalização de todo o corpus, original e
tradução, a correção ortográfica dos mesmos em arquivo .doc e a transformação do
corpus em arquivo .txt, os dados ficaram prontos para serem inseridos no
119
WordSmith Tools para análise. As ferramentas do programa usadas nesta pesquisa
foram a “lista de palavras” (WordList), a “lista de palavras-chave” (Keywords), as
“linhas de concordância” (Concord) e o utilitário “alinhador” (Aligner).
A lista de palavras propicia a criação de uma lista de todas as palavras do
corpus. Através dessa ferramenta, torna-se possível identificar as características do
léxico presentes no corpus investigado. Os elementos dessa ferramenta que
serviram de base para a análise dos dados desta pesquisa foram os tokens, ou
número de itens, ou ocorrências, no corpus; os types, ou número de formas, ou
vocábulos, também presentes no corpus; a razão type/token, ou razão forma/item,
ou vocábulo/ocorrência, obtida a partir da divisão do número de ocorrências das
formas pelo número de ocorrências dos itens; e a razão type/token padronizada,
que desconsidera as repetições comuns em textos maiores. Segundo Berber
Sardinha (2004: 94-95),
a razão forma/item indica a riqueza lexical do texto. Quanto
maior o seu valor, mais palavras diferentes o texto conterá.
Em contraposição, um valor baixo indicará um número alto
de repetições, o que pode indicar um texto menos rico, ou
variado, do ponto de vista do seu vocabulário. [A razão
forma/item padronizada, por sua vez,] é empregada para
neutralizar a influência do tamanho do texto (...), já que
textos maiores por natureza apresentam mais repetições (...).
A ferramenta Keywords, por sua vez, compara listas de palavras com outra
lista de palavras de um corpus de referência a fim de apontar palavras do corpus de
estudo que, em relação às suas ocorrências em outro corpus de referência maior e
mais variado, têm freqüência inusitada, maior ou menor. Os componentes
120
fundamentais dessa ferramenta são a lista de palavras feita a partir do corpus de
estudo, ou corpus que se pretende investigar, e a lista de palavras de um corpus de
referência, também conhecido como corpus de controle, a fim de se estabelecer um
paralelo entre os dois corpora e identificar as palavras denominadas ‘chave’ no
corpus de estudo. Essa comparação é feita por cálculo estatístico não-paramétrico
denominado qui-quadrado ou log-likelihood. As palavras com freqüência muito
maior ou muito menor no corpus de estudo, quando comparadas com um corpus
de controle significativamente maior, passam a ser consideradas ‘chave’ e, por isso,
compõem uma listagem de palavras-chave com indicação do “grau de chavicidade”
(keyness) de cada uma. Segundo Scott (2001), a noção que subjaz à análise das
Keywords é a “notabilidade” (outstandingness) das palavras e sua relação com
contextos sociais mais amplos. Essa ferramenta, portanto, revela-se bastante útil
para selecionar que processos-chave do corpus, em comparação com o corpus de
referência maior e mais variado, têm relação com a variável do “campo” (field)
associada ao original e à tradução, admitindo-se que o “campo” do discurso,
segundo Martin e Rose (2003: 243), “refere-se ao que está acontecendo, à natureza
da ação social que está ocorrendo”.
47
A partir da seleção desses processos-chave,
será feita a análise da “área de influência” desses processos para verificar suas
colocações.
48
47
Minha tradução de: “... refers to what is happening, to the nature of the social action that is taking
place...”
48
Os corpora de referência usados nesta pesquisa para o original Stud e para sua tradução As
Aventuras de um Garoto de Programa foram, respectivamente, a lista de palavras do British
National Corpus (BNC), disponível em http: //www.lexically.net/wordsmith/
, feita a partir de um
corpus de referência (BNC), com cerca de noventa milhões de palavras, e ocio-Ref, dispovel em
http: //www.nilc.icmc.usp.br/lacioweb/tipopesq.php
, com cerca de dez milhões de palavras.
121
Scott (2000) também é claro ao afirmar que a ferramenta Keywords do
software WordSmith Tools possibilita a observação de itens lexicais que
apresentam “pistas” da natureza do texto sob investigação e, sobretudo, “do
que esse texto trata” (aboutness). Além disso, Scott (2000: 108) é bem
explícito ao asseverar que o assunto ou tópico de um determinado texto está
também relacionado à meta-função ideacional da léxico-gramática hallidayana,
admitindo-se que, segundo Scott, um texto possui significado quando
representa experiências de mundo ao nosso derredor. Essa ferramenta revela-se
bastante útil para selecionar as palavras-chave que irão servir de base para as
investigações sobre as construções discursivas do sistema de transitividade do
corpus de estudo e suas relações com o contexto de situação de ambas as obras,
original e tradução.
Uma outra ferramenta útil para as análises desta pesquisa é o Concord. Por
meio dele, fazem-se as linhas de concordância que disponibilizam no centro de
uma frase a palavra selecionada pelo pesquisador, a qual é denominada “palavra-
nódulo” (node word), ou “palavra de busca”, ou simplesmente “nódulo” (BERBER
SARDINHA, 2004), juntamente com as palavras que vêm antes e após a palavra
nódulo, distância esta denominada “horizonte” (span), em cujos limites o
pesquisador observa os colocados circunscritos aos processos. A análise dos
colocados, por sua vez, permite verificar a “área de influência” ou “gravidade
lexical” (MASON, 1997) do processo sob estudo, uma vez que, a partir das linhas de
concordância, a palavra de busca é visualizada em contexto. A esse tipo de
concordância dá-se o nome de
KWIC, sigla que significa KEY WORD IN CONTEXT, ou
122
“palavra de busca em contexto”. No dizer de Berber Sardinha (2004: 106), “[a]s
concordâncias são instrumentos reconhecidamente indispensáveis no estudo da
colocação e da padronização lexical e, por isso, fundamental na investigação de
corpora”. As linhas de concordância, portanto, revelam-se úteis também para
demonstrar como o narrador/protagonista e as personagens experienciam suas
realidades de mundo, por meio de tipos de processos, no decorrer da coletânea de
contos.
Por fim, com o intuito de fazer o contraste dos textos originais com suas
traduções, utilizo o utilitário denominado “alinhador” (Aligner), disponível no
menu utilities da tela principal do programa WordSmith Tools, versão 4.0. Esse
utilitário disponibiliza, em linhas paralelas, marcadas desde o início do período até
o ponto-final, os períodos do texto original (L1) e os correspondentes períodos nas
traduções (L2), e assim sucessivamente. Através do Aligner, a análise paralela do
texto original e do texto traduzido se torna mais pontual, uma vez que é possível
perceber como as escolhas dos processos, no sistema de transitividade de ambos os
textos, se realizam no sistema lingüístico de cada língua. A versão 4.0, no entanto,
utilizada nesta pesquisa, disponibiliza os parágrafos do original ao lado dos
respectivos parágrafos da tradução. Uma vez que essa versão foi eleita como
ferramenta para a análise dos dados desta tese, investigo os parágrafos do corpus
de estudo da maneira que o utilitário Aligner os dispõe.
Os detalhes de uso dessas ferramentas, aplicadas às investigações do corpus
desta pesquisa, podem ser vistos no capítulo de análise, onde faço uma análise
123
integrada dos dados com base nessas ferramentas. Em outras palavras, a análise
dos dados se dá através de um continuum ou crescendo que se inicia com a análise
dos dados pela WordList e pelas Keywords, cujos resultados suscitam hipóteses
para investigações mais pontuais e direcionadas por meio da análise dos dados
através da ferramenta Concord e do utilitário Aligner.
4.3.1 Preparação do corpus e categorias de análise
Para que os dados desta tese pudessem ser lidos pelo software WordSmith
Tools 4.0, os mesmos precisaram passar por um tratamento minucioso e bastante
demorado de digitalização, correção dos dados em arquivo .doc e transformação
dos dados em arquivo .txt, a fim de que se tornassem um corpus propriamente dito
(BERBER SARDINHA, 2004). Berber Sardinha (2002) explica que uma das razões
da difícil interface entre Lingüística de Corpus e tradução são as dificuldades de
tratamento dos dados até atingirem o formato eletrônico ideal. Segundo Berber
Sardinha (2002: 20),
[o]s corpora de tradução são de difícil compilação, já que muitos
tipos de texto traduzidos são disponíveis somente em papel, o que
torna muito custosa a sua transferência para mídia eletrônicas (...).
Além disso, o tratamento dos dados até que eles atinjam o formato
eletrônico ideal e seu conseqüente uso muito dependerão dos objetivos do
pesquisador. No caso desta pesquisa, o formato eletrônico ideal do corpus Stud-
Garoto, além de sua digitalização, correção em arquivo .doc e transformação em
124
arquivo .txt, é o corpus anotado manualmente (tagging). Esse procedimento
metodológico se deu para tentar responder, basicamente, à primeira pergunta de
pesquisa desta tese (ver mais acima).
A anotação manual do corpus em formato eletrônico deve ser planejada
conforme a base teórica utilizada na pesquisa e os objetivos da mesma. Para esta
pesquisa, o sistema de transitividade da léxico-gramática hallidayana definiu como
a anotação manual do corpus ocorreria. Ou seja, se um dos objetivos da pesquisa é
mensurar, quantitativamente, a realização, no nível da oração, da representação
das personagens do corpus em análise, por meio do sistema de transitividade,
necessário se fez definir os participantes do corpus e os processos a eles vinculados.
Esse procedimento metodológico vai ao encontro dos propósitos de Matthiessen
(1999) em estabelecer perfis quantitativos para o sistema de transitividade – no
caso desta pesquisa, exclusivamente para o sistema de transitividade do corpus
Stud-Garoto.
A anotação manual do corpus é um trabalho minucioso e demorado, além de
precisar de revisões constantes. Para esse tipo de procedimento, é preferível que o
tamanho do corpus seja de pequena dimensão, a fim de que o analista consiga
prepará-lo em tempo hábil e da forma mais apropriada. Além disso, Sinclair (2001)
afirma que o tamanho do corpus influencia o tipo de pesquisa a ser feita, o que, no
entanto, não compromete sua qualidade, visto que pesquisas com corpus de
pequena dimensão investigam eventos particulares dos textos sob análise.
Matthiessen (1999: 12) se expressa bem a esse respeito, cuja ponderação ecoa
125
perfeitamente na escolha do corpus desta pesquisa e no escopo da mesma: “(...)
admitindo-se que uma análise em larga escala da transitividade deve ser feita
manualmente, tal fato estabelece um limite real ao tamanho da amostra”.
49
Isso posto, a seleção aleatória dos seis primeiros contos de Stud e de sua
tradução Garoto se deu pelo fato de a anotação manual do corpus de estudo ter
sido minuciosa, o que levou bastante tempo para prepará-lo. Com efeito, a escolha
dos seis primeiros contos justifica-se também na assertiva de que a probabilidade
de repetição das características discursivas da representação das personagens gays
encontradas na amostragem investigada seria relativamente alta nos seis últimos
contos do original e de sua tradução. Desta forma, toda menção feita ao corpus de
análise refere-se à amostragem selecionada. Ressalto, igualmente, que a coletânea
de contos Stud e sua tradução Garoto estão disponibilizadas in toto em CD-Rom
junto desta tese.
Assim sendo, a classificação dos processos seguiu as orientações da GSF
(HALLIDAY, 1985, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004). Em outras
palavras, os processos foram classificados isoladamente, logo após cada processo
sob análise, desconsiderando-se o co-texto em que eram realizados
lingüisticamente.
50
Tal escolha de classificação fundamenta-se na estrutura
49
Minha tradução de: “... since full-scale transitivity analysis has to be carried out manually, this
sets a very real limit on the size of the sample”. Além disso, Matthiessen (1999: 12) acrescenta: “...
especially in a case such as this where the study was not a funded research project with research
assistants”, exatamente como esta pesquisa de doutorado se caracteriza.
50
O co-texto será levado em consideração quando da análise da área de influência (MASON, 1997)
no entorno dos processos para verificar as colocações dos mesmos (ver capítulo de metodologia
mais adiante).
126
experiencial do grupo verbal. Halliday e Matthiessen (2004: 336) apresentam um
exemplo desse fato para o inglês:
... couldn’t [finito] have [auxiliar] been [auxiliar] going to [auxiliar] be [auxiliar] being
[auxiliar] eaten [evento]
No exemplo, como para a classificação dos processos desta pesquisa, leva-se
em consideração o “evento” (eaten) como processo que representa a realidade de
mundo expressa pela oração couldn’t have been going to be being eaten. No corpus
desta tese, temos vários exemplos desse tipo de construção textual, os quais foram
selecionados por meio da ferramenta Concord. Alguns trechos são apresentados,
em negrito, a seguir:
been hustling for a few years, but here at Lake McDonald I had to
go easy on that angle of living, at least for the summer. I was what
We were standing behind the desk. I was supposed to be showing
him the ropes. He opened several of the drawers below counter
your dishes from the table to the dishwasher after you’ve
finished.” “Some day I’ll be senior here,” he said darkly. “
... just before I was to go on duty, and I had to refuse.
I tried to stop him, but he wouldn’t--until Mrs. Barley saw him one
day, and chewed him
... in that nasal voice that I grew to hate so much. “You eat there
one day and me the next.” I looked
Claytie couldn’t ever ride another of his hosses.” I hadn’t heard
that little bit of good news. “And Mrs. Barley says Claytie’s nothin’
but
there was another kind of expression on his face, as if he were
seeing me for the first time.
You could see the charm being turned on, like a spigot. I hated to
look at him.
pretend to be asleep, but I always watched him.
127
A classificação dos processos do corpus em português desta pesquisa
também seguiu as orientações de Halliday (1985, 1994) e Halliday e Matthiessen
(2004). Alguns excertos contendo esses exemplos em português destacados em
negrito, extraídos da tradução Garoto e selecionados pela ferramenta Concord, são
mostrados a seguir:
Minha verdadeira função era vender os tais passeios. Fui
desenvolvendo um estilo próprio à medida que aprendia mais a
respeito do trabalho
Estávamos atrás do balcão. Eu devia passar a ele as
coordenadas. Ele abriu várias vezes as gavetas dos com
Preciso ganhar alguma grana. Tenho uma bolsa de estudos na
universidade.
-- Eu não estava em serviço. Estava revendo amigos. Encontrei o
velho Angus.
Eu ainda não tinha ouvido esta boa notícia. E Mrs. Barley disse
que Claytie não passa de um
E então surgiu uma outra expressão em seu rosto, como se
estivesse me vendo pela primeira vez.
Eu estava pensando -- ele disse. -- Você agora vai ficar sozinho.
O barulho sempre me acordava. Eu fingia estar dormindo, mas
sempre acompanhava seus movimentos.
Fui uma ou duas vezes, mas normalmente só ficava olhando,
bebendo um uísque ou dois.
Eu estava cantarolando um pouco quando entrei no quarto.
Pensei comigo que a maçã
Dando continuidade às explicações acerca dos procedimentos de anotação
manual do corpus desta pesquisa, os processos foram anotados um a um, em
arquivo .txt, com as seguintes siglas em caixa alta e entre parênteses angulados
(<>):
128
<PROMAT>, para processo mateiral;
<PROCOMP>, para processo comportamental;
<PROMEN>, para processo mental;
<PROVERB>, para processo verbal;
<PROREL>, para processo relacional; e
<PROEXIST>, para processo existencial.
O uso de parênteses angulados possibilita que o software WordSmith Tools
4.0 leia ou não leia as siglas dos processos, visto que o pesquisador pode selecionar
o comando ignorar ou não ignorar, apagando o símbolo <*> que representa os
parênteses angulados no menu “Settings” na opção “Mark-up to ignore”.
A divisão dos processos seguiu a classificação de Butt et al. (2000: 51), em
que estes sistemicistas dividem os processos em três categorias a saber:
Verbos de ação, divididos em processos materiais e processos
comportamentais;
Verbos de projeção, divididos em processos mentais e processos
verbais;
Verbos de estado e existência, divididos em processos relacionais e
processos existenciais, respectivamente.
129
Essa divisão justifica-se, segundo Butt et al. (2000), pelas construções
discursivas análogas que cada grupo de processos realiza léxico-gramaticalmente.
Os processos materiais realizam experiências do mundo externo, ao passo que os
comportamentais realizam experiências fisiológicas que se aproximam do papel
discursivo executado pelos processos materiais. Os processos mentais e verbais
podem ou não projetar idéias, no caso dos mentais, ou discursos, no caso dos
verbais, caracterizando-se, portanto, como “verbos de projeção”. Por fim, os
processos relacionais e existenciais indicam relações de existência, no caso dos
existenciais, ou relações de existência entre participantes que os caracterizam ou
identificam segundo os papéis sociais que estejam exercendo por meio da
construção semântica dessas relações, no caso dos relacionais.
A relação entre processos materiais e comportamentais tem sido discutida
desde a GSF fundadora (HALLIDAY, 1985: 128), em que Halliday aponta para as
proximidades de significado desses dois tipos de processos. No corpus desta
pesquisa, há uma ocorrência significativa de processos materiais na região limítrofe
dos processos comportamentais, como no exemplo abaixo:
I made <PROMAT> a sound of admiration
Como pode ser visto, o processo to make é material, porém é influenciado
pela extensão a sound, o qual situa o processo na região limítrofe entre material e
comportamental. Diante desse fato, o entorno do processo, denominado “área de
influência” (MASON, 1997), tem papel fundamental na análise dos colocados que
130
vão influenciar aquele processo e, conseqüentemente, a representação de mundo
do(s) participante(s) a ele vinculado(s). Assim, as classificações isoladas serão
reinterpretadas, durante a análise dos dados, como é o caso de “made a sound”, de
modo a revelar outras maneiras de representação da realidade de mundo das
personagens da coletânea de contos investigada. Halliday (1985: 313) assim se
expressa a respeito do papel semântico e discursivo dos colocados:
... colocações são freqüentemente e especificamente associadas a
um ou outro registro particular, ou variedade funcional da
linguagem. Isso é verdade, claro, para itens lexicais individuais,
muitos dos quais nós consideramos como ‘técnicos’ por
aparecerem exclusivamente, ou quase exclusivamente, em um
tipo de texto. No entanto, é útil notar que itens lexicais ordinários
freqüentemente aparecem em colocações diferentes de acordo
com a variedade do texto.
51
Portanto, a análise dos colocados do corpus Stud-Garoto pode esclarecer
a interconexão das escolhas lexicais do original e da tradução com o contexto
de situação em que a obra Stud originalmente foi escrita, ou seja, nos anos
1960 no contexto norte-americano, e sua relação com o contexto brasileiro, via
tradução, cerca de trinta anos depois.
Retomando a divisão dos processos, a seqüência dos outros tipos de
processos, de acordo com Butt et al. (2000: 51), se estabelece a partir das
características discursivas pertinentes a cada um. Os processos mentais e
verbais guardam possibilidades de projeção (ver capítulo teórico desta tese),
51
Minha tradução de: “... collocations are often fairly specifically associated with one or another
particular register, or functional variety of the language. This is true, of course, of individual lexical
items, many of which we regard as 'technical' because they appear exclusively, or almost exclusively,
in one kind of text. But it is also noteworthy that perfectly ordinary lexical items often appear in
different collocations according to the text variety”.
131
ao passo que os processos relacionais e existenciais expressam relações
identitárias e existenciais (ver capítulo teórico desta tese).
Alguns exemplos, em negrito, dessa classificação, extraídos do corpus
Stud-Garoto, por meio da ferramenta Concord, são apresentados a seguir:
VERBOS DE AÇÃO:
“but I heard <PROMEN> Claytie went <PROMAT> to her, and ...
and ... “Yeah, Bull,” I said <PROVERB>, “what’s it a
I laughed <PROCOMP>, too, and pretty soon I left
<PROMAT> and went <PROMAT> out
um belo trato em mim e no tapete sem a menor pressa e então me
vesti <PROMAT> e fui <PROMAT> embora, depois de pegar
<PROMAT> os vinte paus.
-- Isto basta -- ele disse <PROVERB> e sorriu <PROCOMP>.
Seus dentes eram realmente brancos.
VERBOS DE PROJEÇÃO:
The first day, when he heard <PROMEN> that he had to eat in
the messhall with the rest of the help, he said
“Clayton has made <PROMAT> a very serious charge against you.
He said <PROVERB> that last night after the dance, you made
<PROMAT> homosexual advances
Sentei <PROCOMP> e fiquei pensando <PROMEN> que o
resto do verão poderia ser bem interessante.
Ele dormia <PROCOMP> nu com meias brancas de lã, pois dizia
<PROVERB> que seus pés congelavam com o vento frio da
noite.
VERBOS DE ESTADO E EXISTÊNCIA:
Pete was <PROREL> snuggled against my side, his nose in my
armpit.
There was <PROEXIST> a long silence then. I began to fret
<PROMEN> again about his not
132
Ele falava <PROVERB> alto, era <PROREL> extrovertido e
barulhento. Eu era <PROREL> o seu superior,
Havia <PROEXIST> um tumulto em minha mente. As peças
do quebra-cabeça
Após a classificação de todos os processos do corpus de estudo, selecionei os
nódulos <PROMAT>, <PROCOMP>, <PROMEN>, <PROVERB> e <PROREL>,
por meio da ferramenta Concord do software WordSmith Tools 4.0, para realizar a
anotação manual de todos os participantes vinculados aos processos. Cada nódulo
gerou um arquivo que identifica separadamente os participantes vinculados àquele
processo específico. Segundo Halliday e Matthiessen (2004: 176), “[p]articipantes
(...) estão diretamente envolvidos no processo, causando sua ocorrência ou sendo
afetados por ele de alguma forma. A natureza dos participantes variará, pois,
conforme o tipo de processo”.
52
Por exemplo, ao selecionar o nódulo <PROCOMP>, o Concord
disponibilizou em sua tela todos os processos comportamentais e seus respectivos
participantes. A partir daí, selecionei todas essas linhas de concordância e as salvei
em arquivo .doc, a fim de realizar uma nova anotação manual. Essa nova anotação
foi feita tendo-se em vista a classificação dos participantes do corpus Stud-Garoto
como, neste caso, comportantes. Nesse exemplo, a anotação manual para
participante-comportante, detalhada in toto mais à frente, seguiu o seguinte
critério:
52
Minha tradução de: “Participants (...) are directly involved in the process, bringing about its
occurrence or being affected by it in some way. The nature of participants will thus vary according to
the type of process...”
133
(i) <protagonista>, quando o narrador/protagonista se
comportava;
(ii) <personagem>, quando uma personagem se comportava,
representada pelo discurso do narrador; e
(iii) <protagonista + personagem>, quando o
narrador/protagonista se comportava juntamente com outra
personagem, construindo suas realidades de mundo
simultaneamente.
Cabe ressaltar que apenas os participantes cujas experiências de mundo
construíam realidades homossexuais foram classificados por meio de anotação
manual. Além disso, os processos existenciais não foram selecionados, uma vez que
todas as ocorrências de <PROEXIST> no corpus de estudo não estão vinculadas
diretamente às personagens dos contos, apenas servindo, conforme Halliday e
Matthiessen (2004: 257) esclarecem, para “apresentar participantes centrais”
53
nas
narrativas.
Exemplos dessa classificação, extraídos do corpus de estudo desta pesquisa,
são apresentados a seguir em negrito:
NARRADOR/PROTAGONISTA COMO ATOR:
I <protagonista> threw <PROMAT> myself down full length
on the studio bed, and <protagonista> folded <PROMAT> my
hands behind
53
Minha tradução de: “... to introduce central participants...”.
134
<protagonista> Fui desenvolvendo <PROMAT> um estilo
próprio à medida que aprendia
Como visto no exemplo em português <protagonista> Fui
desenvolvendo <PROMAT> um estilo próprio à medida que aprendia, o
pronome pessoal “Eu”, referente ao protagonista/narrador do corpus de
estudo, está elidido no processo material “Fui”, ocorrência lingüística muito
comum no português do Brasil e de Portugal (para uma discussão, de base
sistêmica, acerca de pronomes elididos em processos em português, ver
GOUVEIA e BARBARA, 2004). Por este fato, a anotação manual
<protagonista> antecede o processo. Assim, todos os tipos de participantes da
coletânea de contos investigada, vinculados a tipos de processos variados com
pronomes elididos nos mesmos, seguem esse padrão de anotação.
NARRADOR/PROTAGONISTA COMO COMPORTANTE:
hefted <PROMAT> it over to the studio couch where I
<protagonista> was sitting <PROCOMP>, and began to turn
<PROMAT> the pages slowly
Fui <PROMAT> uma ou duas vezes, mas normalmente só
<protagonista> ficava olhando <PROCOMP>, bebendo
<PROMAT> um uísque ou dois.
NARRADOR/PROTAGONISTA COMO EXPERIENCIADOR:
Then I <protagonista> decided <PROMEN> that even San
Francisco might not be cosmopolitan
Mas <protagonista> achei <PROMEN> que a melhor coisa a
fazer era ficar <PROREL>
135
NARRADOR/PROTAGONISTA COMO DIZENTE:
a time of it this summer, aint you? he asked <PROVERB>.
“Yeah,” I <protagonista> said <PROVERB>. “You are gettin’
most of the hotel help on your
eu e Ace estávamos escalados para trabalhar juntos e
<protagonista> decidi tentar conversar <PROVERB> com ele
mais tarde.
NARRADOR/PROTAGONISTA COMO PORTADOR E/OU IDENTIFICADO:
I <protagonista> was <PROREL> so mad, except that I
<protagonista> hate being <PROREL> a patsy for anybody.
Eu estava suando <PROCOMP> e <protagonista> molhado
<PROREL>.
Cabe ressaltar que no exemplo Eu estava suando <PROCOMP> e
<protagonista> molhado <PROREL>, o atributo “molhado” vem após a elipse do
processo relacional “estava”, isso porque, segundo Halliday e Matthiessen (2004:
569), “a elipse está amplamente limitada à oração precedente imediata”.
54
PERSONAGEM COMO ATOR:
I <personagem> been gettin acquainted <PROMAT>.
<personagem> Met <PROMAT> old Angus
Tudo faz parte do Todo. Ele <personagem> esfregou
<PROMAT> o seu pau e sorriu <PROCOMP> para mim.
Em vários exemplos de personagens como participantes de processos, os
pronomes pessoais “I”, em inglês, e “Eu”, em português, referem-se a personagens
54
Minha tradução de: “... ellipsis is largely limited to the immediately preceding clause”.
136
representadas por meio do discurso do protagonista e narrador em 1ª pessoa dos
contos. Isso é bastante comum no corpus de estudo desta pesquisa.
PERSONAGEM COMO COMPORTANTE:
Ace <personagem> was lying <PROCOMP> on the bed,
naked, and fingering himself lazily.
Ele <personagem> olhou <PROCOMP> para mim com
aquele olhar sexual sonolento e pesado
PERSONAGEM COMO EXPERIENCIADOR:
But I <protagonista> think <PROMEN> that on the whole Ace
<personagem> liked <PROMEN> me.
como seria duro arranjar trabalho em Chicago, até mesmo
programas, <personagem> acho <PROMEN> que teria
ficado na ensolarada terra do sul
PERSONAGEM COMO DIZENTE:
the shock was too much for him, worse even than if I’d
<personagem> just asked <PROVERB> him what an
ordinary queer would.
-- Eu não vou admitir... -- Ms. Wilson -- disse <PROVERB>
Ace <personagem>, um pouco mais áspero.
PERSONAGEM COMO PORTADOR E/OU IDENTIFICADO:
and that he <personagem> always seemed <PROREL> to be
aloof and detached from ordinary life.
educados o bastante para ter fantasias. Se não <personagem>
fossem <PROREL>, e precisassem depender somente de
fricção,
137
PROTAGONISTA + PERSONAGEM COMO ATORES:
We <protagonista + personagem> stood <PROMAT>
outside the bar at the curb.
Ace e eu <protagonista + personagem> vivemos
<PROMAT> numa espécie de trégua armada
PROTAGONISTA + PERSONAGEM COMO COMPORTANTES:
We <protagonista + personagem> watched <PROCOMP>
it. Some buildings came between our
We <protagonista + personagem> were all breathing
<PROCOMP> hard and some of them
Nós <protagonista + personagem> ficamos olhando
<PROCOMP>. Vimos <PROMEN> alguns
Isto não adiantaria nada. <protagonista + personagem>
Estávamos todos respirando <PROCOMP> pesadamente
Apenas duas ocorrências de <protagonista + personagem> como
comportantes foram encontradas no original Stud e na tradução Garoto.
PROTAGONISTA + PERSONAGEM COMO EXPERIENCIADORES:
his little transistor radio out of his suitcase, that we
<protagonista + personagem> found <PROMEN> out
what had really happened and who
Nós ficamos olhando <PROCOMP>. <protagonista +
personagem> Vimos <PROMEN> alguns prédios passarem
por nossa janela
e então <protagonista + personagem> pudemos ver
<PROMEN> novamente a parada.
Ace catou <PROMAT> o pequeno rádio transistor de sua mala,
que <protagonista + personagem> descobrimos
<PROMEN> o que realmente aconteceu
Os outros desconfortos e nojos eram suportáveis.
<protagonista + personagem> Podíamos suportar
<PROMEN> a pintura do banheiro
138
Apenas uma ocorrência de <protagonista + personagem> como
experienciadores foi encontrada no original Stud e quatro ocorrências de
<protagonista + personagem> como experienciadores foram encontradas na
tradução Garoto.
PROTAGONISTA + PERSONAGEM COMO DIZENTES:
and yet he couldn’t find <PROMAT> any work. Neither of us
<protagonista + personagem> could say <PROVERB> how
the alienation began
Apenas uma ocorrência de <protagonista + personagem> como dizentes
foi encontrada no original Stud. Em Garoto, no entanto, nenhuma ocorrência
de <protagonista + personagem> como dizentes foi encontrada.
PROTAGONISTA + PERSONAGEM COMO PORTADORES E/OU
IDENTIFICADOS:
the type that really turned me on when I wanted <PROMEN> a
man. We <protagonista + personagem> didn’t have
<PROREL> a fight or anything like that
Pete e eu <protagonista + personagem> ficamos
<PROREL> juntos por quase um ano, e então ele
As classificações dos processos e participantes a eles vinculados seguiram o
sistema de transitividade desenvolvido por Halliday (1985) e suas revisitações a
esse modelo (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004). Além disso,
139
é importante destacar que as realidades de mundo das personagens dos contos,
inclusive as do narrador/protagonista, são realizadas discursivamente por
intermédio do ponto de vista narrativo deste último.
Com base nessa classificação, é possível observar não só a representação de
mundo das personagens dos contos, mas, de igual modo, as características do
registro ao qual se liga o texto. Halliday e Matthiessen (2004: 174) apresentam uma
síntese dessa relação:
Orações de tipos de processos diferentes, pois, fazem
contribuições distintas à construção da experiência nos textos.
(...) Parte do ‘sabor’ de um texto particular, e também do registro
ao qual ele pertence, se encontra na mistura de tipos de
processos. (...) A mistura de tipos de processos característica de
um texto pertencente a um registro particular tipicamente se
modifica no curso progressivo do texto. Por exemplo, o contexto
ou orientação de uma narrativa é freqüentemente composto por
orações ‘existenciais’ e ‘relacionais’; porém, a principal linha de
evento é construída predominantemente por orações ‘materiais’.
55
Portanto, a meta-função ideacional, mais precisamente a função
experiencial, realiza lingüisticamente, por meio de tipos de processos e
participantes a eles vinculados, as características da variável “campo” (field) do
discurso em que as realidades de mundo desses participantes foram construídas.
De igual modo, as escolhas de tipos de processos feitas na tradução Garoto podem
revelar como as experiências de mundo das personagens dos contos foram
55
Minha tradução de: “Clauses of different process types thus make distinctive contributions to the
construal of experience in text. (...) Part of the ‘flavour’ of a particular text, and also of the register
that it belongs to, lies in the mixture of process types. (...) The mixture of process types
characteristic of a text belonging to a particular register typically changes in the course of unfolding
of the text. For example, the setting or orientation of a narrative is often dominated by ‘existential’
and ‘relational’ clauses, but the main event line is construed predominantly by ‘material’ clauses”.
140
construídas via tradução, além de apresentar a relação dessa representação com o
“campo” discursivo do contexto de situação do corpus Stud-Garoto. Neste sentido,
a LSF, com o auxílio do software WordSmith Tools 4.0, revelam-se teoria e método,
respectivamente, para uma descrição detalhada da representação das personagens
gays do corpus de estudo desta pesquisa e suas relações com os registros dos
corpora aqui investigados.
141
CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DOS DADOS E SEUS
RESULTADOS
“... we cannot explain why a text means what it does, with all the various readings
and values that may be given to it, except by relating it to the linguistic
system as a whole; and equally, we cannot use it as a window on the
system unless we understand what it means and why”.
Halliday e Matthissen, An Introduction to Functional Grammar, 3 ed., 2004, p.3.
5.1 Analisando o original e sua tradução por meio da Wordlist
Na TAB. 1, demonstro os resultados que a ferramenta Wordlist apresentou
do corpus aqui investigado.
TABELA 1
Características do corpus apresentadas pela ferramenta Wordlist
Características/Obras Stud Garoto
Tokens/Ocorrências 55.077 53.221
Types/Vocábulos 6.429 7.379
Razão Type/Token 11,67 13,86
Razão Type/Token
Padronizada
44,33 47,29
Como se percebe, o número maior de ocorrências de itens lexicais (tokens)
em Stud, bem como o número menor de ocorrência de vocábulos, parecem indicar
que a tradutora utilizou uma maior variedade vocabular e menos repetições em
Garoto. Em outras palavras, ela usa mais formas e menos itens, fato corroborado
142
por uma razão forma/item (type/token ratio) mais alta na tradução, indicando uma
maior variedade vocabular.
Essa variedade vocabular também pode indicar uma característica discursiva
da própria língua portuguesa, cuja variedade tem sido investigada no âmbito da
metodologia da Lingüística de Corpus com os trabalhos lexicográficos de Francisco
S. Borba (2002, 2004), a partir de um banco de dados do Laboratório de
Lexicografia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, em Araraquara, São
Paulo. Há também as pesquisas realizadas por Tagnin (2005) para a criação de um
dicionário bilíngüe inglês-português/português-inglês de colocações verbais. Com
esse projeto, Tagnin afirma que as “combinações lexicais representam a ‘marca’ da
linguagem dos falantes nativos” (p.198), e, uma vez desconsideradas tais ‘marcas’,
Tagnin explica que os falantes nativos apresentam problemas com as colocações de
sua língua materna, sendo, pois, considerados “falantes ingênuos” (p.198). Assim,
percebe-se que a língua portuguesa tem sido alvo de investigação por
pesquisadores que utilizam os métodos da Lingüística de Corpus para tais fins. No
caso do corpus desta pesquisa, especificamente a re-textualização Garoto, o
número maior de vocábulos (7.379) em comparação com o número de vocábulos
em Stud (6.429) indica que a tradutora também utilizou os recursos léxico-
gramaticais da língua portuguesa para re-textualizar as construções discursivas de
Stud.
A razão type/token padronizada, por sua vez, usada para neutralizar a
influência do tamanho do texto e, conseqüentemente, dos itens repetidos,
143
apresenta também uma diferença não significativa entre Stud e Garoto. Mesmo
assim, houve um acréscimo do percentual dessa razão em Garoto, o que indica que
a tradutora evitou utilizar vocábulos repetidos. Esse dado igualmente corrobora o
percentual encontrado na razão type/token, ou seja, uma razão maior na tradução
em contraste com o original. Segundo Kenny (2001: 34), “onde há um alto índice de
repetição, podemos esperar que a razão forma/item seja menor se comparada aos
casos em que escritore(a)s evitam reempregar as mesmas palavras.”
56
A TAB. 2 mostra os resultados que a ferramenta Wordlist apresentou dos
tipos de processos, anotados manualmente, que ocorreram no corpus Stud-Garoto.
TABELA 2
Ocorrência de processos no corpus Stud-Garoto
Stud Garoto
PROMAT (793) PROMAT (865)
PROCOMP (287) PROCOMP (288)
PROMEN (285) PROMEN (265)
PROVERB (544) PROVERB (530)
PROREL (235) PROREL (280)
PROEXIST (58) PROEXIST (44)
Total: 2.202 Total: 2.272
Percebe-se, claramente, uma proeminência de processos materiais em
ambas as obras, principalmente em Garoto, sugerindo que o corpus aqui
investigado seja caracterizado por ações com agentes fazendo algo a alguém
ou alguma coisa, portanto, construindo as personagens enquanto atores que
56
Minha tradução de: “Where there is a lot of repetition, we can expect the type/token ratio to be
lower than in cases where writers avoid re-using the same words”.
144
executam ações. Percebe-se também que a tradutora Dinah Klebe re-
textualizou personagens como participantes de processos materiais com uma
freqüência um pouco maior se comparados ao original. Isso pode indicar a
diferença relativa à realização léxico-gramatical de processos materiais do
sistema de transitividade das duas línguas e, portanto, a escolha da tradutora
por processos materiais para representar outros processos presentes no
original.
Comparando os processos materiais com o total de processos
encontrados no corpus Stud-Garoto, o valor percentual de ocorrência de
processos materiais em Stud é de 36,01%, sendo que em Garoto é de 38,07%,
portanto um valor percentual com diferença pequena quando comparado ao
original. Essas estatísticas demonstram que, não obstante Stud e Garoto
apresentem uma freqüência proeminente de processos materiais, quando
comparados aos outros processos, é fato, também, que em Stud há processos
mentais, relacionais, verbais e comportamentais com uma freqüência
significativa, bem como em sua tradução. Isso, portanto, sugere que o corpus
Stud-Garoto apresenta, em seus contos, personagens igualmente
experienciadores, portadores/identificados, dizentes e comportantes. Em
outras palavras, o corpus apresenta personagens que, além de agirem no
mundo ao seu redor, igualmente se relacionam e se identificam com ele e
pensam e, sobretudo, falam acerca dele, devido à presença significativa de
processos verbais no mesmo. Os processos existenciais, por seu turno,
exercem o papel, como já expresso por Halliday (1985, 1994; HALLIDAY e
145
MATTHIESSEN, 2004), de introduzir participantes na narrativa, bem como de
descrever os locais e eventos em que a trama dos contos ocorre, não estando, portanto,
relacionados diretamente com as personagens.
A representação das personagens via tradução parece assemelhar-se ao original,
conforme os processos apresentados na TAB. 2, embora existam algumas pequenas
diferenças de escolhas de processos entre o texto original e o texto traduzido. Essas
diferenças de escolha de processos talvez se dêem pelas características discursivas
comuns à obra Stud, originalmente publicada e editada na década de 1960 no contexto
social norte-americano, em comparação às de sua tradução para o português
brasileiro, publicada ao fim da década de 1990, com diferenças sociais no tocante à
época em que foram escritas.
A TAB. 3 mostra, em valores percentuais, os processos do corpus Stud-Garoto.
TABELA 3
Ocorrências em percentuais de processos no corpus Stud-Garoto
Processos Stud Garoto
PROMAT 36,02% 38,07%
PROCOMP 13,03% 12,67%
PROMEN 12,94% 11,67%
PROVERB 24,71% 23,33%
PROREL 10,67% 12,33%
PROEXIST 2,63% 1,93%
Total 100% 100%
As percentagens da TAB. 3 indicam que as escolhas de tipos de processos no
corpus Stud-Garoto são, até certo ponto, análogas, sugerindo que a tradutora
146
procurou seguir as escolhas léxico-gramaticais do original, traduzindo-as em Garoto,
pelo menos no que tange aos processos aqui apresentados. Cabe ressaltar, no entanto,
que em Garoto há uma freqüência um pouco maior de processos materiais e
relacionais quando comparado a Stud, indicando que a tradução instancia
personagens mais atores e portadores ou identificados do que o original,
respectivamente.
5.1.1 Representação do narrador/protagonista por meio de tipos
de processos
Dando prosseguimento à análise, cabe agora investigar, separadamente, como
as personagens do corpus de estudo foram representadas discursivamente. Os
resultados referentes ao narrador/protagonista podem ser vistos no GRÁFICO 1 a
seguir:
GRÁFICO 1 – Pontos percentuais de processos no corpus Stud-Garoto com nódulo
“Protagonista”
0
5
10
15
20
25
30
35
Promat
Procomp
Promen
Proverb
Prorel
STUD
GAROTO
14
7
Como pode ser visto no GRÁFICO 1, o narrador/protagonista exerce o papel
discursivo de ator de processos materiais em cerca de 30% em Stud, um pouco
menos que em Garoto, em cuja tradução o narrador/protagonista exerce esse
mesmo papel em cerca de 32% de processos materiais. Essas escolhas feitas pelo
autor Phil Andros se explicam pelo fato de o narrador/protagonista construir
ativamente sua realidade de mundo com as outras personagens, além de os
processos materiais serem muito comuns em vários gêneros do discurso, inclusive
em narrativas (para uma análise da presença proeminente de processos materiais
em gêneros do discurso literário, ver CRUZ, 2003 e ASSIS, 2004). Halliday e
Matthiessen (2004: 174) se colocam a esse respeito:
[a] mistura de tipos de processos característicos de um texto
pertencente a um registro particular tipicamente se modifica no
curso do desenvolvimento de um texto. Por exemplo, o contexto
ou orientação de uma narrativa é freqüentemente formado por
orações ‘existenciais’ e ‘relacionais’, mas a linha do evento
principal é constituída predominantemente por orações
‘materiais’.
57
(ênfases minhas)
Além disso, pelo fato de o narrador/protagonista ser um michê gay, por se
envolver sexualmente apenas com outros gays, boa parte da construção de sua
realidade de mundo se dá por meio de ações materiais com outras personagens.
Segundo estudos históricos sobre a homossexualidade nos Estados Unidos
(BERUTTI, 2002; FACCHINI, 2005), a escolha léxico-gramatical de processos
materiais parece representar, no corpus de estudo aqui analisado, uma tentativa
57
Minha tradução de: “The mixture of process types characteristic of a text belonging to a particular
register typically changes in the course of unfolding of the text. For example, the setting or
orientation of a narrative is often dominated by ‘existential’ and ‘relational’ clauses, but the main
event line is construed predominantly by ‘material’ clauses”.
148
ativista de mostrar realidades de mundo homossexuais que emergiam nos anos
1960 no contexto social norte-americano, ainda na fase de ruptura da
clandestinidade dos homossexuais nesse contexto.
A predominância de processos materiais na tradução Garoto também se
explica pelo contexto de situação, dentro do eixo histórico dos anos 1990, ao qual a
coletânea de contos traduzida foi inserida: um contexto de reestruturação da
comunidade gay do pós-AIDS, no qual seus leitores (gays) necessitavam encontrar
no discurso literário formas de ação que viabilizassem sua naturalização após o
período traumático da chamada “peste guei” (TREVISAN, 2004: 438). No contexto
brasileiro, a edição da tradução de Stud, lançada pela Edições GLS, representa a
agenda política da própria Editora em veicular “obras de entretenimento e
consciência homossexual bem positiva” (Revista Cult, 2003, p.51), como salientou
sua Editora-chefa, Laura Bacellar. De igual modo, As Aventuras de um Garoto de
Programa, ao apresentar a constituição da realidade de mundo de um michê gay
que se aventurava em experiências homossexuais com várias personagens gays,
tenta retornar à cena da realidade brasileira a naturalização da boemia
homossexual por meio de processos materiais na tradução.
Uma explicação, de âmbito social, para a predominância de processos
materiais em Garoto, como estratégia de naturalização das experiências de mundo
dos gays, seria a associação da disseminação do vírus da AIDS à prática sexual
entre homossexuais ao final da década de 1980 e início da de 1990. Nessas décadas
houve medidas coercitivas e de vigilância sanitária, do tipo, “fechar saunas de
149
freqüência homossexual e proibir a realização de bailes gueis, durante o carnaval
carioca” (TREVISAN, 2004: 438). Com essas medidas coercitivas, as autoridades
políticas da época disfarçavam a intenção camuflada de “propor um basta nos
‘direitos dos homossexuais’” (TREVISAN, 2004: 438).
Ademais, essas características textuais parecem ir ao encontro do estilo
literário de Phil Andros. Kissack (2005), numa crítica às obras desse autor,
apresenta uma síntese de sua personalidade literária:
Phil Andros foi um informante peregrino dos mistérios e
fantasias multifacetadas da experiência sensual que contradizia
os conceitos de infelicidade, culpa e homossexualidade trágica e
cômica do mercado de massa homossexual.
58
A tentativa de Andros parece ter sido a de demonstrar, por intermédio de
seus contos, o ressurgimento do homossexual à realidade social norte-americana da
época. Isso explica a presença proeminente de processos materiais no corpus sob
análise, visto que a ocorrência maior de processos materiais ligados ao
narrador/protagonista é significativa talvez pelo fato de a obra se inserir num
contexto social norte-americano que via na literatura uma forma de ação da
comunidade gay da época. Em virtude disso, a proeminência de processos materiais
ligados ao narrador/protagonista parece revelar uma característica social da época,
isto é, uma necessidade de o leitor (gay) agir por meio da literatura.
58
Minha tradução de: “Phil Andros was a pilgrim reporting on the multi-faceted mysteries and
fantasies of a sensual experience that contradicted the mass-market concepts of the unhappy, guilt-
ridden, tragicomic homosexual.” Disponível em http:
//www.planetout.com/news/history/archive/philandros.html, acesso em 2005.
150
Alguns exemplos de processos materiais no corpus Stud-Garoto reforçam
esse posicionamento, sobretudo a tentativa de representar nos contos uma
realidade gay da época de liberação de suas próprias práticas sexuais sem censuras,
nem discriminações.
59
When I finished <PROMAT>, Pete shrugged <PROMAT> his
shoulder just a little and moved <PROMAT>
Tirei <PROMAT> a minha roupa do modo como ele me disse
<PROVERB> para fazer
He was sweating <PROCOMP>. He reached <PROMAT> for
my belt but I unbuckled <PROMAT> it quickly. He grabbed
<PROMAT> the top edge of my pants and
Eu o coloquei <PROMAT> na cadeira e me ajoelhei
<PROCOMP> à sua frente para desafivelar
Além disso, a presença estatisticamente significativa de processos verbais
vinculados ao narrador/protagonista do corpus Stud-Garoto, como mostrado no
GRÁFICO 1, igualmente revela uma tentativa de Phil Andros de verbalizar
explicitamente essas mesmas realidades homossexuais por meio dessa
personagem, com o intuito de demonstrar a dinâmica dessas relações e como elas
são construídas experiencialmente por intermédio dos discursos das próprias
personagens. Ademais, a presença de processos verbais vinculados ao
narrador/protagonista se caracteriza também pelo gênero do discurso conto como
uma narrativa em que as personagens, por meio do discurso direto ou indireto,
59
Os exemplos apresentados nessa seção foram extraídos das linhas de concordância
disponibilizadas pela ferramenta Concord do software WordSmith Tools 4.0. Tais exemplos,
portanto, não demonstram excertos do original e suas respectivas traduções. A análise dos
equivalentes entre original e tradução será feita quando do uso do utilitário Aligner mais à frente.
151
referem-se umas às outras com o objetivo de constituírem suas próprias realidades
de mundo através desses tipos de processos.
Alguns exemplos de processos verbais, extraídos do corpus Stud-Garoto,
demonstram a construção discursiva das realidades de mundo do
narrador/protagonista, por meio dos quais essa personagem interage com outras
personagens e concomitantemente traça relações dialógicas com as mesmas:
“I -- y-yee!” I stuttered <PROVERB>. “Not on your life! That’d
be too much.” He went on staring at
-- Isto é um verdadeiro rubor de donzela virtuosa -- eu disse
<PROVERB> ironicamente. -- Caras como você deveriam
estar acostumados <PROREL>
“Take the pants off, Whitey.” “Ace, not tonight,” I said
<PROVERB> in a halfhearted protest. I knew <PROMEN> he
would pay no attention
-- Tire as calças, branquelo. -- Ace, esta noite não -- eu disse
<PROVERB>, num protesto sem muita veemência. Eu sabia
<PROMEN> que ele não
A presença de processos mentais ligados ao narrador/protagonista do
corpus, um pouco menos na tradução do que no original, caracteriza-o como
experienciador, numa tentativa de expressar suas possibilidades de pensar sobre o
mundo ao seu derredor, de querer realizar ações e percebê-las, ações estas típicas
do ser humano. HALLIDAY e MATTHIESSEN (2004: 197), ao afirmarem que os
processos mentais sinalizam uma mudança de eventos que se dão
consciencialmente, ilustram os papéis de reflexão, sensação e desejo que os
processos mentais representam. Essa representação expressa, pois, “ações” do
narrador/protagonista no nível mental, como forma de explicitar seus desejos,
152
receios e pensamentos e, concomitantemente, construir sua realidade de mundo
subjetiva. Ademais, as formas de representações dos pensamentos, desejos e
reflexões das personagens, bem como do narrador/protagonista, se dão por meio
de orações projetadas que, léxico-gramaticalmente, dependem da oração projetante
para realizar seu significado ideacional.
Exemplos dessas representações no corpus Stud-Garoto são vistos a seguir:
his body was black and monolithic and gleaming. And all of a
sudden I felt <PROMEN> a great welling up of love or lust or
desire or all of them together
seu corpo era negro monolítico e radiante. E de repente senti
<PROMEN> emergir em mim uma onda de amor e lascívia, ou
desejo, ou todos eles juntos
And I hate <PROMEN> anybody who screws and tells--only in
this case he didn’t have to
produzir estrelas vermelhas de encontro à cortina preta de meus
olhos fechados, e eu pensei <PROMEN> que a agonia e o
êxtase não fossem jamais chegar ao fim...
As presenças não muito significativas de processos comportamentais e
processos relacionais vinculados ao narrador/protagonista, com levíssimas
diferenças entre original e tradução, também nos levam a percebê-lo como,
respectivamente, alguém que se comporta, muitas vezes junto de outras
personagens, e como alguém que se relaciona e se identifica com elas. Os processos
comportamentais demonstram um narrador/protagonista que constrói suas
realidades de mundo em níveis fisiológicos e psicológico-comportamentais, na
região limítrofe entre processos materiais, mentais e verbais. Os processos
relacionais, por sua vez, servem para caracterizar e identificar o
153
narrador/protagonista, construindo-o discursivamente como alguém que possui
atributos que o identificam como uma personagem pertencente ao contexto social
em que se comporta e age. As presenças de processos comportamentais e
relacionais no corpus Stud-Garoto revelam as características sociais de
posicionamento dos sujeitos gays como indivíduos que se comportam e se
relacionam diferentemente de outros indivíduos, revelando, portanto, aspectos do
contexto de situação em que as obras sob análise foram escritas. Esses aspectos são
representados por meio da construção das realidades de mundo do
narrador/protagonista enquanto comportante, junto de outras personagens, e por
meio de sua própria identificação com esse contexto e, concomitantemente, com as
personagens com as quais ele se relaciona.
Em outras palavras, conforme Halliday (1978), Halliday e Hasan (1985),
Eggins (1994, 2004) e Martin e Rose (2003), os significados potenciais do contexto
de situação, quando instanciados por meio de tipos de processos, referem-se ao
sistema semiótico que representa as realidades de mundo de participantes ligados a
tipos de processos específicos. No caso do narrador/protagonista do corpus Stud-
Garoto, as realidades de mundo de seu contexto social, com base nas escolhas de
processos feitas para representá-lo, talvez ecoem na comunidade de leitores da
coletânea de contos, criando uma possível identificação com a realidade de mundo
desses leitores.
Exemplos desses tipos de processos no original e na tradução são
apresentados a seguir:
154
I asked <PROVERB> him one day as I got up <PROCOMP>
from the reclining chair in his back room and sat
<PROCOMP> down on
E então, por estar tão excitado, grunhi <PROCOMP>
avidamente, e o tomei <PROMAT> violenta e dolorosamente,
I had <PROREL> my pants tightened and “tucked,” just the
way I’d had them fixed
Eu estava <PROREL> nervoso e suando <PROCOMP>. Esta
tinha sido a primeira vez que eu vira
5.1.2 Representação das personagens por meio de tipos de
processos
Cabe, agora, investigar as outras personagens. O GRÁFICO 2 apresenta os
tipos de processos ligados ao nódulo <personagem>.
GRÁFICO 2 – Pontos percentuais de processos no corpus Stud-Garoto com nódulo
“Personagem”
0
5
10
15
20
25
30
35
Promat
Procomp
Promen
Proverb
Prorel
STUD
GAROTO
Um ponto central ligado ao GRÁFICO 2 é o fato de as personagens
construírem suas realidades de mundo por meio de tipos de processos através do
155
narrador/protagonista, uma vez que a narrativa é em primeira pessoa com
narrador incorporado na trama. Percebe-se, então, que a figura do
narrador/protagonista exerce papel fundamental na constituição das experiências
de mundo, tanto suas, quanto das outras personagens, uma vez que seu ponto de
vista narrativo perpassa por toda a trama.
O primeiro aspecto que chama atenção no GRÁFICO 2 é a ocorrência
estatisticamente proeminente de processos materiais e processos verbais ligados às
personagens um pouco maior do que no GRÁFICO 1 mais acima, tanto no original
quanto na tradução. Isso se explica pelo fato de o narrador/protagonista referir-se
discursivamente às personagens como forma de construir as cenas das quais elas
participam e nas quais elas constroem suas realidades de mundo por meio de
processos materiais e verbais. Alguns exemplos dessa característica discursiva
ligada às personagens são mostrados a seguir:
Then he turned <PROMAT> his attention to the counter and
started rearranging <PROMAT> things on
-- Todos brancos? -- Sim. Ele balançou <PROMAT> a cabeça. -
- Melhor vir comigo -- ele disse <PROVERB>.
Ace growled <PROVERB>. “Seems like the hustlin’s twice as
hard up here.
-- OK -- ele disse <PROVERB>. -- Acha que pode <PROMAT>
com ele? Ele é <PROREL> muito bem-dotado.
É importante mencionar igualmente que a ocorrência significativa de
processos verbais vinculados às personagens do corpus se dá devido ao uso de
discurso direto, em sua maioria, e discurso indireto, por meio dos quais as
personagens, enquanto dizentes, expressam discursivamente seus pensamentos,
156
narram fatos e interagem entre si por intermédio do discurso que produzem. A
ocorrência um pouco menor de processos verbais vinculados às personagens na
tradução, em comparação com o original, justifica-se possivelmente pelas
diferenças sistêmicas de cada língua, visto que na língua inglesa há um uso maior
do processo verbal “said” exercendo o papel de iniciador de discurso direto ou
indireto, ao passo que, na língua portuguesa, o uso de outros tipos de processos
com essa função discursiva é mais freqüente do que no inglês (para uma discussão
sobre a ocorrência de processos verbais em corpus de língua portuguesa e inglesa,
ver CRUZ, 2003 e MAURI, 2003).
Outra característica discursiva presente no GRÁFICO 2 que chama atenção é
a ocorrência estatisticamente menor de processos mentais quando comparada ao
GRÁFICO 1. Isso se dá pelo fato de o narrador/protagonista não se referir, com
freqüência significativa, aos pensamentos, desejos e reflexões das outras
personagens. Tal referência ocorre, na maioria das vezes, por meio de orações
projetadas, através das quais as personagens expressam seus pensamentos e
concomitantemente constroem suas realidades de mundo consciencial.
Vejamos alguns exemplos no corpus Stud-Garoto:
I learned <PROMEN> that he liked <PROMEN> gin, and on
the old theory that only those who have been drunk together
E ele sabia <PROMEN> como distinguir os dois perigosos e
patogênicos que devem ser evitados.
I became <PROREL> the symbol then of all he hated
<PROMEN>. “Integration”, no matter how skillfully
attempted or with what
157
Nestas horas eu me tornava <PROREL> o símbolo de tudo o
que ele odiava <PROMEN>. A “integração”, não importa o
quão intensamente se tentasse
Já os processos comportamentais e os processos relacionais presentes no
GRÁFICO 2, quando comparados aos mesmos processos do GRÁFICO 1, não
apresentam diferenças estatisticamente significativas. Os processos relacionais do
GRÁFICO 2, no entanto, ligados às personagens, ocorrem com maior freqüência na
tradução em relação ao original. Talvez isso aconteça pelas possibilidades
sistêmicas de tradução do processo relacional “to be” em língua portuguesa, fato
que pode explicar a ocorrência significativa desses tipos de processos na tradução
Garoto.
Alguns exemplos são apresentados a seguir:
He grinned <PROCOMP>.Maybe Ill do just that, he said
<PROVERB>.
He was <PROREL> naked, and his body looked horrible. It
was a mottled mass of bruises
você é <PROREL> bastante bonito. Ele me olhou
<PROCOMP> de novo no rosto e riu <PROCOMP>.
Você parece <PROREL> bom demais para ser desperdiçado.
Ele tomou <PROMAT> um gole de cerveja
158
5.1.3 Representação do narrador/protagonista juntamente com
outras personagens por meio de tipos de processos
Para finalizar essa subseção, apresento os tipos de processos do GRÁFICO 3
por meio dos quais o narrador/protagonista constrói suas realidades de mundo
juntamente com outras personagens.
GRÁFICO 3 – Pontos percentuais de processos no corpus Stud-Garoto com nódulo
“Protagonista + Personagem”
0
10
20
30
40
50
60
70
Promat
Procomp
Promen
Proverb
Prorel
STUD
GAROTO
Mais uma vez, o dado que chama atenção no GRÁFICO 3 é a ocorrência
estatisticamente significativa de processos materiais vinculados ao nódulo
<protagonista + personagem>. Este dado revela que o narrador/protagonista age
juntamente com outras personagens, delas dependendo para a construção das
realidades de mundo que lhe são peculiares. Em contrapartida, o número
estatisticamente menor de ocorrências de processos comportamentais, mentais e
verbais, sendo que estes últimos não ocorrem na tradução Garoto, vinculados ao
narrador/protagonista em associação com outras personagens, revelam que aquele
159
constrói suas realidades de mundo como, respectivamente, comportante,
experienciador e dizente muito mais como narrador/protagonista apenas, do que
em conjunto com outras personagens.
Alguns exemplos dessas ocorrências são mostrados a seguir:
In the time since Ace and I <protagonista + personagem> had
sneaked <PROMAT> out of Texas, things had not been
We <protagonista + personagem> watched <PROCOMP> it.
Some buildings came between our
his little transistor radio out of his suitcase, that we
<protagonista + personagem> found <PROMEN> out what
had really happened and
After that, Ace and I <protagonista + personagem> managed to
be <PROREL> together about once a week.
Neither of us <protagonista + personagem> could say
<PROVERB> how the alienation began,
De vez em quando <protagonista + personagem> íamos
<PROMAT> para a minha casa,
Nós <protagonista + personagem> ficamos olhando
<PROCOMP>.
e então <protagonista + personagem> pudemos ver
<PROMEN> novamente a parada.
Ambos <protagonista + personagem> vestíamos <PROREL>
roupas idênticas, desde as jaquetas
Tal fato também pode explicar a ocorrência não muito significativa de
processos relacionais ligados ao nódulo <protagonista + personagem>
fornecida pelo GRÁFICO 3. Mesmo assim, os dados em que o
narrador/protagonista constrói suas relações em conjunto com outras
personagens, e não isoladamente, se comparados às outras construções
experienciais em que o narrador/protagonista se comporta, experiencia e fala,
160
juntamente com outras personagens, parecem ser relevantes. Esses dados,
então, podem indicar uma ligação com o contexto de situação do corpus de
estudo, o qual expressa uma probabilidade maior de o narrador/protagonista
agir juntamente com outras personagens em suas aventuras homossexuais,
bem como se identificar e se relacionar em conjunto com essas personagens, do
que se comportar, experienciar e dizer coisas com elas.
5.2 Processos-chave em Stud e Garoto
Como afirmei no capítulo “Metodologia e procedimentos
metodológicos”, a ferramenta WordList do software WordSmith Tools, versão
4.0, possibilita a realização das primeiras análises dos dados, facilitando,
assim, a construção de hipóteses relativas aos mesmos. No entanto, para
investigar a relação entre campo do discurso e transitividade, torna-se
necessário expandir a investigação por meio da freqüência de palavras-chave
do corpus de estudo paralelamente à freqüência de palavras-chave de um
corpus de referência bem maior.
Scott (2000) sublinha que a noção que subjaz ao conceito de
“chavicidade” (keyness) é fundamental, visto que por meio das palavras-chave
de um determinado texto o(a) pesquisador(a) compreende o texto porque
apreende o tópico, ou tema, do mesmo, relacionando-o com a esfera mais
ampla do contexto de situação em que se insere o texto sob análise. Neste
sentido, a análise das palavras-chave de um texto abre espaço para a
161
compreensão da relação entre os seus níveis semântico e discursivo, no caso
desta pesquisa, a transitividade e a variável de campo do registro,
respectivamente.
De igual modo, ao comparar o corpus de estudo desta pesquisa com um
corpus de referência bem maior, é possível identificar, por meio da ferramenta
Keywords, as escolhas de processos-chave enquanto escolhas que representam
relações sistêmicas do corpus de estudo com seu contexto de situação. Em
virtude do exposto, utilizei a ferramenta Keywords para selecionar os
processos-chave que servirão de base para as próximas análises. Na TAB. 4,
apresento os processos-chave de Stud e de Garoto.
Scott (2000) também é claro ao afirmar que a ferramenta Keywords do
software WordSmith Tools possibilita a observação de itens lexicais que
apresentam “pistas” da natureza do texto sob investigação e, sobretudo, “do
que esse texto trata” (aboutness). Além disso, Scott (2000: 108) é bem
explícito ao asseverar que o assunto ou tópico de um determinado texto está
igualmente relacionado à metafunção ideacional da léxico-gramática
hallidayana, admitindo-se que, segundo Scott, um texto possui significado
quando representa experiências de mundo ao nosso derredor.
Os processos-chave do corpus Stud-Garoto e o número de vezes que eles
ocorrem no referido corpus são mostrados a seguir:
162
TABELA 4
Processos-chave no original Stud e na tradução Garoto
Processos-chave
em Stud
Ocorrências dos
processos-chave
em Stud
Processsos-chave
em Garoto
Ocorrências dos
processos-chave
em Garoto
SAID 863 DISSE 543
LOOKED 165 ESTAVA 209
WAS 857 ACHO 59
GRINNED 37 HAVIA 132
GOT 154 OLHEI 32
TURNED 71 OLHOU 43
GRINNING 18 PERGUNTEI 32
ASKED 73 VIROU 21
GRABBED 20 SORRIU 37
HAD 379 DEI 30
WENT 78 BALANÇOU 9
WANTA 6 PEGAR 18
HUSTLING 7 TENTEI 12
SHOOK 24 ERA 250
LAUGHED 23 SENTEI 13
WORKIN 6 ODIAVA 9
PULLED 26 VOU 37
LIKED 23 FIQUEI 22
HATE 18 RIU 16
LOOKING 49 ESTÁVAMOS 15
BEGAN 45 FUI 34
TOOK 60 COLOQUEI 7
SMELL 18 PEGUEI 11
SMILED 24 PEGO 7
SAT 30 ESTAVAM 32
GET 110 SORRI 10
SQUEEZED 11 CONSEGUI 11
SMELLED 8 GOSTAVA 18
DRESSED 17 ERGUI 7
GROWLED 8 OLHANDO 18
NODDED 18 ODEIO 6
HATED 12 TIRAR 18
OPENED 27 SORRINDO 21
SHRUGGED 13 BALANCEI 4
HOLLERED 4 CONSEGUIA 11
UNBUCKLED 4 VIREI 7
LOOKIN 5 SUANDO 5
SWINGING 3 TERMINEI 5
CLOSED 24 SIDO 24
HOOKED 8 AGARREI 6
GETTIN 5 TINHA 107
163
BENT 12 JOGOU 6
SWEATING 7 PENSEI 13
KNEW 39 ESFREGOU 6
SAYING 4 COMEÇANDO 8
STUTTERED 4 PARECIA 39
WRITIN 3 GOSTARIA 7
FAVORED 3 COMECEI 10
UNDRESSED 5 ACONTECEU 11
EYED 6 TIREI 7
FELT 38 DESAFIVELAR 3
GOTTA 13 TRANSAR 3
YANKED 4 TER 58
HADN’T 19 PUXEI 4
PICKED 16 QUER 34
SCOWLING 4 --- ---
STEPPED 11 --- ---
STARTED 28 --- ---
CAME 53 --- ---
HAVE 140 --- ---
BE 184 --- ---
HAS 14 --- ---
ARE 60 --- ---
IS 102 --- ---
Os processos-chave com maior freqüência na TAB. 4 são “Said” (863,
processo verbal), “Was” (857, processo relacional), “Looked” (165, processo
comportamental) e “Had” (379, processo relacional). Em comparação com o corpus
de referência, de cerca de 100.000.000 de palavras, o processo com maior número
de ocorrências é o processo verbal “Said”. Duas explicações são factíveis para isso:
(i) o gênero do discurso conto enquanto narrativas curtas que utilizam verbos de
relato na continuidade do discurso das personagens e (ii) a representação dessas
personagens enquanto participantes dizentes, isto é, como participantes que falam
do mundo ao seu redor e de suas experiências cotidianas.
A tradução Garoto, por sua vez, apresenta, conforme os dados da TAB. 4
acima, o processo-chave verbal “Disse”, com freqüência de 543 no corpus de
164
estudo, e o processo-chave relacional “Estava”, com freqüência de 209 em Garoto.
O número de ocorrências do processo “Disse” (543) indica uma tentativa de re-
textualização de “Said”, embora a ocorrência de “Said” (863) seja significamente
maior que a ocorrência de “Disse”. Contudo, a presença desses processos-chave em
Garoto parecem sinalizar um padrão de re-textualização da tradução em relação ao
original Stud, dado que o processo verbal “Said”, que ocorre 863 vezes, e o processo
relacional “Was”, que ocorre 857 vezes, presentes na TAB. 4, parecem ser os
processos que deram origem à tradução de “Disse” e “Estava”, respectivamente.
Talvez a explicação para as outras re-textualizações de “Said” como
outros processos diferentes de “Disse” esteja no fato de a tradutora ter
preferido outras escolhas léxico-gramaticais mais apropriadas à tessitura do
próprio co-texto, ou talvez devido a seu estilo de escrita. No que tange às
outras re-textualizações de “Was” diferentes de “Estava”, o próprio sistema da
língua portuguesa parece ter propiciado tal fato discursivo, uma vez que os
verbos de ligação ser, estar e ficar são as mais freqüentes re-textualizações de
to be. Neste sentido, “Was” pode ter sido re-textualizado diferentemente de
“Estava”, conforme a tessitura do texto em que os eventos discursivos das
narrativas dos contos se desenrolavam.
Como bem colocam Halliday e Matthiessen (2004: 174), existe
predominância de processos materiais em narrativas, os quais caracterizam os
eventos das tramas em que personagens constroem suas realidades de mundo.
Concomitantemente, a observação dos processos-chave da TAB. 4 apontam para
165
uma proeminência de processos materiais (na cor azul), tanto em Stud quanto em
Garoto. Isso indica que as realidades de mundo das personagens, inclusive do
narrador/protagonista, fundamentam-se em ações. Sobretudo, a ocorrência
significativa de processos materiais como processos-chave indica igualmente que o
corpus de estudo desta pesquisa representa probabilidades sistêmicas, através de
tipos de processos, de um contexto de situação cujas características primordiais são
ações executadas por participantes desse contexto. No caso da obra Stud e de sua
tradução As Aventuras de um Garoto de Programa, desde o título das mesmas
podemos verificar a influência de um contexto de situação que permite o uso
específico de processos materiais para representar o campo discursivo das
personagens, ou seja, a natureza de suas ações sociais, sobretudo do
narrador/protagonista, tais como, trabalhar (workin), tirar a roupa (unbuckled,
undressed), agir como michê gay (hustling), dentre outras, enquanto ambiente de
ações materiais em que as personagens interagem ativamente umas com as outras.
Em contrapartida, a presença não significativa de processos verbais (cor
vermelha) como processos-chave em ambas as obras revela que esses tipos de
processos são considerados probabilidades sistêmicas típicas do gênero do discurso
conto, por serem muito freqüentes em narrativas, exercendo o papel discursivo de
criação dessas narrativas por meio de passagens dialógicas. Em outras palavras, a
escolha de tipos de processos verbais em Stud-Garoto não apresenta “notabilidade”
significativa, admitindo-se que os tipos de processos verbais escolhidos são
comumente poucos em corpora desse tipo, não obstante sua freqüência
relativamente elevada. Sobretudo, por se tratarem de narrativas, as estórias são
166
construídas discursivamente por meio do narrador/protagonista, por ser o corpus
Stud-Garoto uma coletânea de contos narrados em primeira pessoa com narrador
homodiegético. Neste sentido, as outras personagens exercem o papel de dizentes
por intermédio do narrador/protagonista, dependendo deste para a construção de
suas realidades de mundo enquanto participantes de processos verbais.
Já a presença significativa de processos comportamentais (cor verde), como
processos-chave, revela que as escolhas léxico-gramaticais nos sistemas de ambas
as línguas possibilitam perceber que esses processos são escolhas probabilísticas
que tipificam as personagens enquanto comportantes. Além disso, a presença de
processos comportamentais no corpus de estudo sugere que a coletânea de contos
representa lingüisticamente elementos do contexto de situação ao qual se vincula,
ou seja, um contexto de situação cujas escolhas de tipos de processos recaem
também, com ênfase considerável, sobre os processos comportamentais. Ou seja,
processos comportamentais no original, apresentados pela TAB. 4, do tipo, looked,
grinned, smiled, sat, sweating, dentre outros, e na tradução, tais como, olhei,
sentei, sorri, virei, suando, dentre outros, demonstram que seus participantes,
diretos ou indiretos, constroem suas realidades de mundo em situações que levam
em conta o papel social que seus corpos exercem para a constituição de suas
experiências de mundo.
Sobretudo, é importante perceber, conforme a TAB. 3 mais acima, que
há uma proeminência de processos comportamentais no corpus Stud-Garoto,
fato este que caracteriza suas personagens enquanto comportantes. Isso,
167
portanto, mostra que a coletânea de contos representa as realidades de
mundo de suas personagens como participantes que se comportam ou se
expressam fisiologicamente e/ou psicologicamente umas com as outras.
Ademais, a ocorrência considerável de processos comportamentais no
corpus Stud-Garoto parece ser típica desse corpus, uma vez que algumas
pesquisas com base no sistema de transitividade da léxico-gramática
hallidayana, como são os casos de Martin e Rose (2003), Montgomery (1993)
e Simpson (1993), no contexto internacional, não levam em consideração os
processos comportamentais. Já no contexto nacional, por exemplo, Bueno
(2005) sublinha, sustentando-se em Halliday e Matthiessen (2004), que as
regiões limítrofes dos processos comportamentais são tênues, em interface
com processos materiais e mentais, como expresso nesta pesquisa. No
entanto, no corpus Stud-Garoto, com alguma similitude ao Macunaíma, de
Andrade (BUENO, 2005), os processos comportamentais se ligam, em sua
maioria, a experiências de mundo das personagens gays quando em
interações que sinalizam sensualidade e erotismo. Isso ficará mais claro nas
análises que se seguem.
Por fim, as presenças de processos-chave como processos mentais (cor
vinho) e processos relacionais (cor preta)
60
indicam que a coletânea de contos
60
O processo-chave “Havia” é o único classificado como processo existencial. Como afirma Halliday
(1985; 1994; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004), os processos existenciais são comumente
empregados em narrativas para introduzir personagens e situações a elas ligadas, bem como
aspectos espaciais e temporais. Por este fato, o processo existencial “Havia” não será investigado
como processo-chave, uma vez que em todas as suas ocorrências no corpus Stud-Goroto ele exerce
esse papel funcional.
168
Stud e sua tradução Garoto representam suas personagens enquanto
experienciadores e portadores ou identificados. Isso também indica que as
escolhas probabilísticas desses tipos de processos, dentro do sistema de
ambas as línguas, caracterizam o corpus de estudo como coletânea de contos
que revela personagens que experienciam sensações, se relacionam ou se
identificam com outras personagens, além de possuírem atributos e/ou
qualidades, como ficará mais evidente nas análises seguintes. Tal fato revela
igualmente que as realizações léxico-gramaticais do corpus Stud-Garoto
apresentam características de uma dimensão contextual que leva em conta as
sensações e identidades de seus participantes, neste caso, personagens gays.
5.3 Processos-chave em Stud e Garoto e suas (re)textualizações
Após a seleção dos processos-chave, por meio da ferramenta Keywords, fiz a
busca desses processos-chave para os nódulos <protagonista>, <personagem> e
<protagonista + personagem>, a fim de verificar as características discursivas de
cada um. Em seguida, observei as ocorrências de cada palavra-chave da referida
tabela com as palavras-nódulo <protagonista>, <personagem> e <protagonista +
personagem>, separadamente. Por meio da ferramenta Concord, selecionei cinco
linhas de concordância de processos-chave, tanto para o original quanto para a
tradução, tendo como base de escolha os tipos de processos-chave apresentados
169
pela TAB. 4 acima, e não os equivalentes entre original e tradução
61
. Com isso,
pretendo verificar que escolhas lexicais ocorriam na área de influência de cada
nódulo e observar quando o nódulo <protagonista>, ou <personagem>, ou
<protagonista + personagem>, separadamente, era participante direto desses
processos-chave. Tal seleção se deu com o fito de analisar a construção das
realidades de mundo do narrador/protagonista, das personagens e do narrador
juntamente com outras personagens enquanto participantes diretos desses
processos-chave. A primeira busca, com o nódulo <protagonista>, deu origem aos
QUADROS 2, 3, 4, 5, e 6 a seguir, nos quais os processos-chave encontram-se em
negrito.
5.3.1 Processos-chave materiais vinculados aodulo
<protagonista>
QUADRO 2
Exemplos de processos-chave materiais com nódulo “Protagonista” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROMAT couldn’t ever ride
<PROMAT> another of his
hosses.” when I
<protagonista> got
<PROMAT> to the cabin.
And then I <protagonista>
turned <PROMAT> the
page, and saw <PROMEN>
Rex Rhodes.
I <protagonista>
undressed <PROMAT>
Eu <protagonista> o
coloquei <PROMAT> na
cadeira e me ajoelhei
<PROCOMP> à sua frente
Então eu <protagonista>
consegui desafivelar
<PROMAT> o cinto de sua
Levis
Eu <protagonista> o
agarrei <PROMAT> sob as
axilas molhadas e
61
Excertos do original e suas respectivas traduções serão analisados por meio do utilitário Aligner.
170
the way he told
<PROVERB> me to
Then I <protagonista>
managed to unbuckle
<PROMAT> the belt of his
levis
I was <PROREL> at the
desk in one jump, and
<protagonista> had picked
<PROMAT> up the duffel
bag the guy had set on the
floor
<protagonista> o ergui
<PROMAT> o quanto pude.
Então, dando um grande
empurrão contra sua bunda,
eu <protagonista> o ergui
<PROMAT> com um braço
em torno de sua coxa.
<protagonista> Tirei
<PROMAT> a minha roupa
do modo como ele me disse
O narrador/protagonista como ator de processos materiais representa suas
realidades de mundo em ações comumente realizadas com outras personagens. Se
pensarmos na conceituação de “tópico” apresentada por Scott (2000), temos aqui
uma relação direta com os títulos das obras, Stud, no original, como escolha lexical
que representa um homem sexualmente ativo e eficaz em suprir as necessidades
sexuais de seus parceiros, e As Aventuras de um Garoto de Programa, na tradução,
com escolhas lexicais que enfatizam as ações materiais (suas aventuras como michê
gay) do narrador e protagonista dos contos, chamado Phil Andros.
Andros também é ator em orações expandidas hipotáticas e paratáticas,
respectivamente, como expressos nos exemplos a seguir extraídos do QUADRO 2
acima.
couldn’t ever ride <PROMAT> another of his hosses.” when I
<protagonista> got <PROMAT> to the cabin.
And then I <protagonista> turned <PROMAT> the page, and
saw <PROMEN> Rex Rhodes.
171
A ação exercida pelo narrador/protagonista em orações hipotáticas e
paratáticas mostra que a função lógica da meta-função ideacional serve de base
para complementar as experiências de mundo de Andros. Outro aspecto que chama
atenção nos processos materiais do original em que o narrador/protagonista é ator
são os participantes envolvidos nesses processos. Os exemplos abaixo expressam
bem tal ponto:
I <protagonista> undressed <PROMAT> the way he told
<PROVERB> me to
Then I <protagonista> managed to unbuckle <PROMAT> the
belt of his levis
No primeiro exemplo, temos “I” como ator, neste caso o próprio
narrador/protagonista, que caracteriza sua ação material de “undressed” por meio
da oração paratática com valor circunstancial de modo “the way he told me to”. Já
no segundo exemplo, temos novamente “I” como ator do processo material
“unbuckle” e “the belt of his levis” como meta da ação exercida pelo
narrador/protagonista. Percebe-se, então, que participantes inanimados são
convocados a construir a realidade de mundo de Phil Andros como ator de
processos materiais. Além disso, a escolha pelo processo material “unbuckle” e
pelos participantes diretamente envolvidos “I” e “the belt of his levis” sinalizam, no
corpus aqui investigado, uma experiência de mundo no contexto de ações sociais
eróticas e sensuais. Tal fato justifica-se pelo próprio tópico da coletânea de contos,
como dito mais acima, e pelo contexto de situação da época: contexto social norte-
americano em que o modo de vida gay emergia e tentava legitimar suas próprias
172
ações sociais. O que se percebe, pois, é uma articulação dessas ações sociais com o
discurso produzido por atores sociais gays que representam suas realidades de
mundo por intermédio das escolhas lexicais que fazem para tecer o significado das
narrativas dos contos.
Na tradução, temos realizações lingüísticas parecidas com as do original. Os
participantes de processos materiais diretamente envolvidos são o próprio Phil
Andros e, sobretudo, participantes inanimados chamados a construírem as
realidades de mundo do narrador/protagonista e suas ações sociais. Os exemplos,
extraídos do QUADRO 2 acima, são os seguintes:
Eu <protagonista> o coloquei <PROMAT> na cadeira e me
ajoelhei <PROCOMP> à sua frente
Então eu <protagonista> consegui desafivelar <PROMAT> o
cinto de sua Levis
Eu <protagonista> o agarrei <PROMAT> sob as axilas
molhadas e <protagonista> o ergui <PROMAT> o quanto
pude.
Então, dando um grande empurrão contra sua bunda, eu
<protagonista> o ergui <PROMAT> com um braço em torno
de sua coxa.
<protagonista> Tirei <PROMAT> a minha roupa do modo
como ele me disse
No primeiro exemplo, temos como ator “Eu”, representando o
narrador/protagonista, e como meta “o”, representando uma personagem com a
qual Phil Andros experiencia suas ações materiais. A circunstância de localização
“na cadeira” contextualiza o processo material “coloquei”, sendo uma construção
léxico-gramatical comum do construto experiencial desse tipo de processo. É
173
curioso perceber também que o primeiro exemplo é, na verdade, uma expansão
paratática realizada pela conjunção aditiva “e” que reintroduz o
narrador/protagonista “Eu” como comportante de sua própria ação-comportante
(“me ajoelhei”), o que indica uma submissão ao participante com o qual ele constrói
sua realidade de mundo. Na verdade, Phil Andros é o paciente da ação-
comportante de “se ajoelhar”, uma vez que o tópico desse exemplo indica o início
de uma relação sexual que se dará entre ambas as personagens, ou seja, entre o
narrador/protagonista e outra personagem. Em virtude dessas ponderações, nesse
exemplo o narrador/protagonista, embora seja ator do processo material
“coloquei”, na oração paratática ele compensa essa ação sujeitando-se à outra
personagem e, assim, igualando-se a ela no ato sexual.
Os outros exemplos da tradução são realizados léxico-gramaticalmente com
o ator de processos materiais “Eu”, representando o narrador/protagonista, com
participantes inanimados, em sua maioria, partes dos corpos da personagem com a
qual Phil Andros constrói sua realidade de mundo, e com circunstâncias de modo,
acompanhamento e localização. Particularmente, o exemplo “Então, dando um
grande empurrão contra sua bunda, eu <protagonista> o ergui <PROMAT> com
um braço em torno de sua coxa”, a oração hipotática com verbo não-finito “dando
um grande empurrão contra sua bunda”, além de exercer um papel discursivo
semelhante ao de circunstância de modo, também apresenta, em sua estrutura, o
ator “Eu” implícito, a extensão “um grande empurrão”, que caracteriza o processo
material “dando”, e a meta “contra sua bunda”, a qual representa parte do corpo da
personagem (“bunda”) como participante direto do processo material. Percebe-se
174
com isso, portanto, que partes dos corpos das personagens participam diretamente
da construção de suas próprias realidades de mundo, sendo elementos
fundamentais nas ações sociais dessas personagens.
Tal afirmação pode ser corroborada, nos dados disponibilizados pela
ferramenta Keywords na TAB. 5 abaixo, por meio das freqüências das escolhas
lexicais, do original Stud, que representam partes dos corpos das personagens gays
considerados “chave”.
TABELA 5
Escolhas lexicais representando partes dos corpos das personagens em Stud
Partes dos
Corpos
Freq. Stud Stud % Freq.
Corpus
Referência
Corpus
Referência
%
Chavicidade
(keyness)
Legs 34 0,06 69 --- 65,7
Crotch 13 0,02 5 --- 51,0
Muscles 14 0,03 19 --- 34,6
Thigh 9 0,02 5 --- 32,0
Hair 41 0,07 202 0,02 31,8
Lips 20 0,04 54 --- 30,9
Foot 26 0,05 99 0,01 28,4
Chin 13 0,02 22 --- 28,3
Thighs 9 0,02 8 --- 27,1
Armpits 7 0,01 3 --- 26,7
Tongue 12 0,02 21 --- 25,6
Skin 19 0,03 60 --- 25,4
Como podemos perceber, os elementos lexicais com maior freqüência no
corpus de estudo Stud são “Legs” (34 vezes) e “Hair” (41 vezes). Embora “Hair” seja
mais freqüente que “Legs”, este último, quando comparado com o número de vezes
que ocorre no corpus de referência com cerca de 90 milhões de palavras (British
175
National Corpus – BNC), apresenta um grau de chavicidade superior. Esse grau de
chavicidade superior indica que o elemento lexical “Legs” é, digamos, mais chave
que “Hair”, por ter um papel discursivo significativo no corpus de estudo.
Outro elemento lexical culturalmente significativo, apresentado pela TAB. 5,
é “Crotch”, o qual ocorre 13 vezes no corpus de estudo contra apenas 5 vezes no
corpus de referência. Tal fato também indica que o grau de chavicidade de “Crotch”
é significativamente elevado, uma vez que sua presença nos contos aqui analisados,
enquanto escolha discursiva para a representação da genitália das personagens
gays, demonstra seu papel discursivo para a constituição das experiências de
mundo dos participantes das narrativas dos contos de Stud.
Cabe agora ver, na TAB. 6 a seguir, que escolhas lexicais representativas de
partes dos corpos das personagens são consideradas “chave” quando do uso da
ferramenta Keywords.
TABELA 6
Escolhas lexicais representando partes dos corpos das personagens em Garoto
Partes dos
Corpos
Freq.
Garoto
Garoto % Freq.
Corpus
Referência
Corpus
Referência
%
Chavicidade
(keyness)
Axilas 11 0,02 0 --- 71,7
Bunda 10 0,02 1 --- 58,5
Pernas 35 0,07 157 0,01 58,0
Pêlos 10 0,02 2 --- 54,5
Ombros 32 0,06 157 0,01 48,9
Pele 21 0,04 60 --- 48,8
Músculos 13 0,02 17 --- 45,0
Tornozelos 7 0,01 1 --- 39,6
Coxas 9 0,02 7 --- 37,2
Rosto 56 0,11 534 0,04 36,5
176
Costas 26 0,05 178 0,01 27,7
Tórax 5 --- 1 --- 27,2
Maxilar 4 --- 0 --- 26,1
Contrastando os dados da TAB. 6 com os dados da TAB. 5, percebemos uma
diferença explícita entre as partes dos corpos tidas como ‘chaves’ em Stud e as
partes dos corpos re-textualizadas em Garoto e identificadas como ‘chaves’ através
da ferramenta Keywords. Na TAB. 5, as quatro primeiras palavras-chave com graus
de chavicidade mais elevados são “Legs” (34 vezes), “Crotch” (13 vezes), “Muscles”
(14 vezes) e “Thigh” (9 vezes), que, segundo as características discursivas dos
contos sob investigação, representam, em sua maioria, eventos discursivos ligados
a relações de erotismo e sensualidade entre as personagens, como têm mostrado as
análises por meio da ferramenta Concord (essa afirmação também será
corroborada nas análises feitas por meio do utilitário Aligner mais à frente).
Embora as quatro primeiras palavras-chave com graus de chavicidade mais
elevados na TAB. 6 também estejam ligadas a relações de erotismo entre os
participantes dos contos, a escolha lexical “Bunda” (10 vezes) aparece como ‘chave’
no texto traduzido, diferentemente do texto original, em cuja textualização a
ferramenta Keywords não identificou nenhuma possível escolha lexical em inglês
para “Bunda” como palavra-chave. Isso, pois, indica que “Bunda” é discursiva e
estatisticamente significativa apenas na tradução.
Outra escolha lexical relevante no original, conforme mostrado na TAB. 5, é
a palavra-chave “Crotch”, com grau de chavicidade considerável, uma vez que, em
comparação com o corpus de referência, possui freqüência elevada no corpus de
177
estudo. Porém, não há uma possível re-textualização para “Crotch” presente no
conjunto de palavras-chave da TAB. 6 acima, o que indica que essa escolha lexical,
relacionada à genitália masculina, é ‘chave’ apenas no original, e não na tradução.
Trevisan (2004), em sua obra Devassos no paraíso, registra o papel
social que o corpo tem na construção discursiva da homossexualidade
brasileira, principalmente nas décadas de 1980 e 1990. De igual modo, no
contexto das Ciências Sociais, Giddens (2002: 76) fala da conscientização do
indivíduo acerca do papel social que seu “corpo” exerce como parte do projeto
da “modernidade tardia”
62
, uma vez que “[a] reflexividade do ‘eu’ se estende
ao corpo, onde o corpo (...) é parte de um sistema de ação em vez de ser um
mero objeto passivo.” (itálicos no original). Neste sentido, partes dos corpos
das personagens em Stud, bem como em Garoto, têm papel fundamental na
construção das experiências de mundo desses participantes. Essas
características discursivas representam uma relação direta com o contexto de
situação em que o corpus Stud-Garoto foi (re)textualizado, ou seja, no
contexto emergente da vida gay norte-americana dos anos 1960 (BERUTTI,
2002) e no contexto de redefinição do papel social do gay na sociedade
brasileira contemporânea do período pós-AIDS, como indivíduo socialmente
reconhecido e pertencente a uma comunidade específica que constitui,
juntamente com a comunidade heterossexual, a sociedade brasileira
(FACCHINI, 2005; TREVISAN, 2004).
62
Giddens (2002: 221) explica que a modernidade tardia é “a presente fase de desenvolvimento das
instituições modernas, marcada pela radicalização e globalização dos traços básicos da
modernidade”.
178
5.3.2 Processos-chave comportamentais vinculados ao
nódulo <protagonista>
O QUADRO 3 seguinte apresenta alguns excertos de processos
comportamentais considerados “chave” tanto em Stud quanto em Garoto.
QUADRO 3
Exemplos de processos-chave comportamentais com nódulo “Protagonista” no corpus Stud-
Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE EM
STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE EM
GAROTO
PROCOMP I picked <PROMAT> up
the duffel bag and
<protagonista> grinned
<PROCOMP> at Mr.
Rhodes
I <protagonista> looked
<PROCOMP> him straight
in the face
Let’s go see,” I said
<PROVERB>,
<protagonista> swinging
<PROCOMP> my legs from
the bed to the floor.
but I <protagonista> was
sweating <PROCOMP>
like hell by the time we
closed
“Don’t scare me,” I said
<PROVERB>,
<protagonista> laughing
<PROCOMP>, but for some
reason feeling just a trifle
uneasy
Eu <protagonista> olhei
<PROCOMP> para os seus
profundos olhos azuis
Eu <protagonista> olhei
<PROCOMP> para o seu
pau e dei <PROMAT> um
sorrisinho.
-- É uma grana que eu vou
recuperar -- eu disse
<PROVERB>,
<protagonista> sorrindo
<PROCOMP>.
Eu <protagonista> o olhei
<PROCOMP> assim
deitado nu na cama.
<protagonista> Sentei-me
<PROCOMP> na cama e
<protagonista> olhei
<PROCOMP> pela janela.
Era um dia cinzento de
março
179
Os processos comportamentais, por sua vez, tendo como participante direto
o narrador/protagonista Phil Andros enquanto comportante, revelam
características discursivas semelhantes às dos processos materiais discutidos
acima. Em sua maioria, especialmente na tradução, conforme exemplos do
QUADRO 3, referem-se a situações contextuais de sensualidade e erotismo, em
cujas situações o narrador/protagonista se comporta perante outras personagens.
Os exemplos do original Stud são os seguintes:
I picked <PROMAT> up the duffel bag and <protagonista>
grinned <PROCOMP> at Mr. Rhodes
I <protagonista> looked <PROCOMP> him straight in the face
“Let’s go see,” I said <PROVERB>, <protagonista> swinging
<PROCOMP> my legs from the bed to the floor.
but I <protagonista> was sweating <PROCOMP> like hell by
the time we closed
“Don’t scare me,” I said <PROVERB>, <protagonista>
laughing <PROCOMP>, but for some reason feeling just a
trifle uneasy
As áreas de influência dos processos comportamentais dos exemplos acima
apresentam o comportante “I”, representando o narrador/protagonista dos contos,
comportando-se mediante processos nas regiões limítrofes entre comportamental e
material (“grinned” e “swinging”), entre comportamental e mental (“looked”), entre
comportamental e verbal (“laughing”), além de apresentar o processo
comportamental “sweating” como puramente fisiológico. A área de influência
desses processos também nos permite ver os colocados associados aos processos-
chave dos exemplos acima, como, por exemplo, o processo material “picked” que
influencia o processo comportamental “grinned”, localizando-o em sua região
180
limítrofe, além do que o processo-chave “grinned” se dirige a Mr. Rhodes (“grinned
at Mr. Rhodes”), como se este último exercesse o papel discursivo de meta; e o
processo verbal “said”, localizando o processo comportamental “laughing” em sua
região limítrofe, portanto, caracterizando-o como processo híbrido, bem como
acontece ao processo comportamental “grinned”. Esse hibridismo comum aos
processos comportamentais é notório, uma vez que “[o]s limites dos processos
comportamentais são indeterminados”
63
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004:
251).
Observando-se ainda as áreas de influência dos processos comportamentais
dos trechos acima, percebemos que as circunstâncias exercem papel de
contextualização desses processos, como, por exemplo: “in the face” e “from the bed
to the floor”, com papel de circunstâncias de localização, e “like hell”, com papel de
circunstância de comparação. Além das circunstâncias, há as orações hipotáticas
expressando papéis circunstanciais, tais como, “by the time we closed”, como
oração hipotática finita exercendo papel circunstancial temporal, “swinging
<PROCOMP> my legs”, como oração hipotática não-finita exercendo papel
circunstancial de modo e como complemento da oração “I said”, e o próprio
processo comportamental “laughing”, exercendo papel tanto de processo quanto
de oração hipotática não-finita que caracteriza a oração principal “I said”.
As circunstâncias associadas aos processos comportamentais dos exemplos
acima, bem como as orações hipotáticas vinculadas a esses tipos de processos e
63
Minha tradução de: “The boundaries of behavioural processes are indeterminate”.
181
exercendo papéis circunstanciais, parecem complementar os comportamentos do
narrador e protagonista Phil Andros por meio da contextualização de suas
experiências com outras personagens. Ademais, a associação dos processos
comportamentais a processos verbais nos exemplos acima revela-se característica
típica desses processos; isto é,
“enquanto orações ‘comportamentais’ não projetam discurso
indireto ou pensamento, elas freqüentemente aparecem em
narrativas ficcionais introduzindo discurso direto, como uma
forma de associar um traço comportamental ao processo verbal
‘disse’ [saying]”
64
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 252).
Os processos comportamentais da tradução Garoto presentes no QUADRO 3
também apresentam a ocorrência significativa de partes dos corpos de outras
personagens como participantes indiretos em suas áreas de influência. Os exemplos
são apresentados a seguir.
Eu <protagonista> olhei <PROCOMP> para os seus profundos
olhos azuis
Eu <protagonista> olhei <PROCOMP> para o seu pau e dei
<PROMAT> um sorrisinho.
-- É uma grana que eu vou recuperar -- eu disse <PROVERB>,
<protagonista> sorrindo <PROCOMP>.
Eu <protagonista> o olhei <PROCOMP> assim deitado nu na
cama.
<protagonista> Sentei-me <PROCOMP> na cama e
<protagonista> olhei <PROCOMP> pela janela. Era um dia
cinzento de março
64
Minha tradução de: “... while 'behavioural' clauses do not project indirect speech or thought, they
often appear in fictional narrative introducing direct speech, as a means of attaching a behavioural
feature to the verbal process of ‘saying’”.
182
A presença notória de circunstâncias de localização com participantes
inanimados (partes dos corpos de outras personagens) na área de influência dos
processos comportamentais dos exemplos acima, tais como, “para os seus
profundos olhos azuis”, “para o seu pau” e “nu na cama” denotam relação intrínseca
do comportante “Eu”, elíptico ou não, com partes dos corpos das personagens com
as quais ele constrói suas realidades de mundo no nível da sensualidade e do
erotismo.
Outra característica marcada no exemplo “Eu <protagonista> olhei
<PROCOMP> para o seu pau e dei <PROMAT> um sorrisinho” é a presença do
processo materialdei na área de influência do processo comportamentalolhei,
fazendo com que este último adquira fuão discursiva na região limítrofe de
verbos de ação. Em outras palavras, embora o processo “olhei” seja
comportamental, a presença do processo material “dei” na oração paratática
introduzida pela conjunção aditiva “e” influencia a construção de sentido expressa
por “olhei”. Percebe-se, então, que a escrita gay inerente ao corpus de estudo desta
tese possui características discursivas diretamente relacionadas com o contexto
social em que ela se insere, com escolhas léxico-gramaticais disponíveis tanto no
sistema da língua inglesa e da língua portuguesa, como nas probabilidades de
ocorrência dessas escolhas nos registros aos quais se liga o corpus desta pesquisa.
De maneira análoga, a extensão “um sorrisinho” indica que o processo material
“dei” não perde totalmente sua função discursiva comportamental, uma vez que sua
área de influência apresenta uma extensão que sugere o comportamento vinculado
a “sorrir”.
183
5.3.3 Processos-chave mentais vinculados ao nódulo
<protagonista>
No QUADRO 4 abaixo, os processos mentais no original Stud têm a
característica marcada de serem textualizados como orações paratáticas e
hipotáticas com algumas exercendo papel circunstancial.
QUADRO 4
Exemplos de processos-chave mentais com nódulo “Protagonista” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROMEN I’d had <PROREL> a little
alteration done on my pants
by a tailor I <protagonista>
knew <PROMEN> in San
Francisco.
But I didn’t know
<PROMEN> just how I
<protagonista> felt
<PROMEN> about those
New York gang-bangs.
his nose in my armpit. I
stroked <PROMAT> his
shoulders, and
<protagonista> felt
<PROMEN> them moist
with sweat.
He wasn’t <PROREL> the
type that really turned me
on when I <protagonista>
wanted <PROMEN> a
man.
his hand move slowly
toward his crotch ... And
<protagonista> Pensei
<PROMEN> que os olhos
de Mr. Rhodes eram como
os do tritão
e então ele foi cantar
<PROMAT> em outra
freguesia. <protagonista>
Acho <PROMEN> que se
cansou <PROCOMP> de
mim porque eu nunca
cooperava
<protagonista> Acho
<PROMEN> que minha
personalidade ficou
bastante abalada
E eu <protagonista> odeio
<PROMEN> quem transa e
conta
servir <PROMAT> de suas
habilidades especiais. Para
dizer a verdade, eu
<protagonista> gostava
184
then after a while I
<protagonista> knew
<PROMEN> from his
breathing that he had
finished
<PROMEN> daquilo
As orações hipotáticas, apresentadas no QUADRO 4 acima, com valor
circunstancial de meio “by a tailor I <protagonista> knew <PROMEN> in San
Francisco” e de tempo “when I <protagonista> wanted <PROMEN> a man”
caracterizam, respectivamente, os processos mentais “knew” e “wanted” como
escolhas que contribuem para a construção de significado dos processos relacionais
“had” e “wasn’t”. Esse tipo de realização lógico-semântica indica que os processos
mentais “knew” e “wanted” contextualizam os significados expressos pelos
processos relacionais “had” e “wasn’t”, uma vez que “knew” complementa a relação
de posse em “I’d had”, e “wanted” justifica a ausência de atributo em “He wasn’t”.
Além disso, visto do ângulo da ergatividade
65
, no exemplo “I’d had
<PROREL> a little alteration done on my pants by a tailor I <protagonista> knew
<PROMEN> in San Francisco”, o ator é “by a tailor”, o processo é material (“done”)
e a meta é “on my pants”. Neste ponto, “tailor” passa a ser “fenômeno” do processo
mental “knew”, trazido à cena do fato por intermédio do conhecimento do
65
O sistema de transitividade também apresenta verbos com características ergativas, isto é, verbos
com características híbridas, podendo tanto ter um agente que executa a ação expressa pelo verbo
ou não. Halliday (1985) esclarece que esses verbos não podem ser catalogados como intransitivos,
como acontece na gramática descritiva, uma vez que eles representam ações sem, no entanto,
figurarem um agente específico que as tenha executado. Um exemplo típico, extraído de Halliday
(1985: 146), é o seguinte: The rice cooked e Pat cooked the rice. No primeiro exemplo, “rice”
sofreu uma ação, embora nenhum agente exterior a essa ação tenha sido apresentado. Já no
segundo exemplo,rice sofreu a ação de ser cozido por Pat, sendo esta o agente da ação. O ponto
central da discussão dos ergativos apresentado por Halliday (1985) é que “rice” sofre a ação de ser
cozido em ambas as situações, fato lingüístico que descarta a hipótese de intransitividade para o
primeiro exemplo.
185
narrador/protagonista. Ou seja, a presença do processo mentalknew na área de
influência de “by a tailor” faz com que este último seja dependente daquele para sua
construção de sentido. Os exemplos de Stud presentes no QUADRO 4 são
reproduzidos a seguir:
I’d had <PROREL> a little alteration done on my pants by a
tailor I <protagonista> knew <PROMEN> in San Francisco.
But I didn’t know <PROMEN> just how I <protagonista> felt
<PROMEN> about those New York gang-bangs.
his nose in my armpit. I stroked <PROMAT> his shoulders, and
<protagonista> felt <PROMEN> them moist with sweat.
He wasn’t <PROREL> the type that really turned me on when I
<protagonista> wanted <PROMEN> a man.
his hand move slowly toward his crotch ... And then after a
while I <protagonista> knew <PROMEN> from his breathing
that he had finished
Outra característica peculiar aos processos mentais é a capacidade de
projeção de uma idéia como, segundo Martin e Rose (2003: 75), “uma unidade
singular de significado, uma mensagem unificada”.
66
No exemplo “I
<protagonista> knew <PROMEN> from his breathing that he had finished”, a
oração projetada “that he had finished” apresenta o participante “he”, isto é, a
personagem com a qual Phil Andros se envolvia sexualmente, como um construto
de “ideação”, conforme Martin e Rose (2003: 66), em que a realidade é traduzida
em discurso simbólico por intermédio da interpretação mental do experienciador,
neste caso, o próprio narrador/protagonista. Além disso, a circunstância de meio
“from his breathing” caracteriza o processo mental “knew” como uma ideação do
66
Minha tradução de: “... a single unit of meaning, a unified message”.
186
narrador/protagonista originada do comportamento (“breathing”) do participante
com o qual ele se envolvia. Esse fato tipifica a oração projetada como “uma outra
oração ‘fora’ da oração ‘mental’ enquanto representação do ‘conteúdo’ da
consciência
67
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 206) do experienciador Phil
Andros.
Os processos mentais em português apresentados no QUADRO 4 mostram
características discursivas equivalentes às do original Stud, dada a composição do
construto experiencial circunscrito a esses processos com participantes definidos e
de forma não-marcada, ou seja, com elementos típicos do processo mental
(experienciador processo mental fenômeno), além de exemplos cujos
elementos experienciais apresentam orações projetadas, similarmente ao original.
Os exemplos são os seguintes:
<protagonista> Pensei <PROMEN> que os olhos de Mr.
Rhodes eram como os do tritão
e então ele foi cantar <PROMAT> em outra freguesia.
<protagonista> Acho <PROMEN> que se cansou
<PROCOMP> de mim porque eu nunca cooperava
<protagonista> Acho <PROMEN> que minha personalidade
ficou bastante abalada
E eu <protagonista> odeio <PROMEN> quem transa e conta
servir <PROMAT> de suas habilidades especiais. Para dizer a
verdade, eu <protagonista> gostava <PROMEN> daquilo
Como pode ser visto nos exemplos acima, todos os processos mentais, com
exceção do último excerto, projetam orações as quais são traduzidas como orações
67
Minha tradução de: “... another clause 'outside' the 'mental' clause as the representation of the
'content' of consciousness...”
18
7
hipotáticas, em relação de dependência, equivalentemente a algumas textualizações dos
processos mentais do original Stud mostradas no QUADRO 4. Isso indica semelhanças
sistêmicas entre as duas línguas ou escolhas feitas pela tradutora semelhantes às do
original, uma vez que os processos mentais do corpus Stud-Garoto apresentados no
GRÁFICO 1 mais acima não mostram diferenças significativas em pontos percentuais
quando da comparação entre original e tradução.
5.3.4 Processos-chave verbais vinculados ao nódulo
<protagonista>
O QUADRO 5 seguinte apresenta alguns exemplos de processos verbais cujas
estruturas discursivas dos excertos abaixo são o discurso direto e o indireto.
QUADRO 5
Exemplos de processos-chave verbais com nódulo “Protagonista” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE EM
STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE EM
GAROTO
PROVERB “Never mind, Bull,” I
<protagonista> said
<PROVERB>. “He’s gone
too far this time.
good old Martin, whose
photographs had started me
out so well, and
<protagonista> asked
<PROVERB> if I could
come down <PROMAT> to
the studio
“Shall we what?” I
<protagonista> asked
<PROVERB>, sort of surly.
“Are you good for another
Você foi avisado de que não
poderia beber em serviço –
eu <protagonista> lhe
disse <PROVERB> de
modo gelado.
-- O que aconteceu? -
<protagonista> perguntei
<PROVERB> com
verdadeira inocência.
Quem é o vagabundo? --
<protagonista> perguntei
<PROVERB> a Lefty, que
estava sentado ao meu lado
-- Vai matá-lo um dia desses
188
round?”
“Can you fix it, then?” I
<protagonista> asked
<PROVERB>. “Not by
sewing it together,” he said
<PROVERB>.”
Finally, getting nowhere
with Ace, I <protagonista>
said <PROVERB> straight
out: “Where’s the action
here in town?”
– eu <protagonista> disse
<PROVERB>. Ele deu
<PROMAT> de ombros
daquele jeito italiano
Ace, esta noite não -- eu
<protagonista> disse
<PROVERB>, num protesto
sem muita veemência.
É curioso perceber que as orações projetadas constroem tanto as
experiências de mundo do narrador/protagonista com as personagens dos contos
com as quais ele interage quanto estruturam a narrativa de modo a compreender as
intenções discursivas dos participantes do corpus Stud-Garoto. Em outras
palavras, os processos verbais “contribuem para a criação da narrativa ao tornar
possível o estabelecimento de passagens dialógicas”
68
(HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004: 252). Os exemplos do original Stud são os seguintes:
“Never mind, Bull,” I <protagonista> said <PROVERB>. “He’s
gone too far this time.
good old Martin, whose photographs had started me out so well,
and <protagonista> asked <PROVERB> if I could come down
<PROMAT> to the studio
“Shall we what?” I <protagonista> asked <PROVERB>, sort of
surly. “Are you good for another round?”
“Can you fix it, then?” I <protagonista> asked <PROVERB>.
“Not by sewing it together,” he said <PROVERB>.”
Finally, getting nowhere with Ace, I <protagonista> said
<PROVERB> straight out: “Where’s the action here in town?”
68
Minha tradução de: “... contribute to the creation of narrative by making it possible to set up
dialogic passages”.
189
Os processos verbais acima representam o eixo oracional do qual ocorre a
projeção e conseqüentemente a realização da experiência de mundo dos
participantes como dizentes em forma de discurso direto ou indireto. Similarmente,
os processos verbais do exemplo acima formam o eixo oracional para o qual a
oração projetada converge, dado o seu papel discursivo no entendimento da oração
projetada; isto é, a oração projetada, embora pertença, na maioria das vezes, a um
outro complexo oracional, com outros tipos de processos diferentes dos processos
verbais das orações projetantes, depende diretamente da oração projetante para a
realização lingüística de seu significado semântico-discursivo.
O mesmo acontece com os processos verbais da tradução Garoto:
Você foi avisado de que não poderia beber em serviço – eu
<protagonista> lhe disse <PROVERB> de modo gelado.
-- O que aconteceu? - <protagonista> perguntei <PROVERB>
com verdadeira inocência.
Quem é o vagabundo? -- <protagonista> perguntei
<PROVERB> a Lefty, que estava sentado ao meu lado
-- Vai matá-lo um dia desses – eu <protagonista> disse
<PROVERB>. Ele deu <PROMAT> de ombros daquele jeito
italiano
Ace, esta noite não -- eu <protagonista> disse <PROVERB>,
num protesto sem muita veemência.
Os exemplos em português, a seu turno, trazem as circunstâncias de modo
“de modo gelado”, “com verdadeira inocência” e “num protesto sem muita
veemência” como caracterizações dos processos verbais aos quais se vinculam,
localizando-os nas regiões limítrofes dos processos comportamentais. Neste
190
sentido, a configuração da área de influência dos processos verbais dos exemplos
acima muito dependerá dos traços semânticos que as circunstâncias de modo a eles
ligadas apresentarem. Essas características discursivas são típicas da “escrita gay”
do corpus de estudo desta tese, sobretudo o papel discursivo das circunstâncias de
apresentar subsídios co-textuais e contextuais inerentes à construção das
realidades de mundo do narrador/protagonista enquanto dizente.
5.3.5 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo
<protagonista>
Para finalizar a análise dos processos-chave vinculados ao
narrador/protagonista, os processos relacionais, presentes no QUADRO 6 abaixo,
compõem uma categoria de tipos de processos que apresentam participantes aos
quais atributos são dados e os quais são identificados, ou caracterizados, por meio
desses processos.
QUADRO 6
Exemplos de processos-chave relacionais com nódulo “Protagonista” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROREL I wanted <PROMEN> a
drink or else I
<protagonista> was
<PROREL> chilly. It never
snows or gets icy in San
Francisco
I detailed <PROVERB> a
little plan I <protagonista>
Eu <protagonista> era
<PROREL> o seu superior,
pois já estava lá havia mais
tempo
Eu <protagonista> tinha
<PROREL> certeza de que
o meu rosto estava rígido
191
had <PROREL> in mind.
He shook <PROMAT> his
head slightly.
I <protagonista> was
<PROREL> just like the girl
who had been led down the
garden
Needless to say, I
<protagonista> was
<PROREL> a sensation--
especially in the leather
bars.
He had just taken off
<PROMAT> his white
jacket and I <protagonista>
had <PROREL> a whiff of
him--musky, healthy, a
sexual odor
para falar a verdade, ainda
não sabia se <protagonista>
era <PROREL> homo,
hétero, bi ou assexuado.
Isto me transformava numa
piada. Eu <protagonista>
estava <PROREL> danado
da vida que um maldito e
falso filósofo
Depois de alguns minutos
deste tratamento eu
<protagonista> estava
<PROREL>
sensibilizadíssimo e
frenético, mais excitado do
que havia estado
<PROREL> em anos
O original Stud apresenta o narrador/protagonista como uma personagem
que é identificada através de comparação com uma figura imaginária de estórias de
romantismo (“the girl who had been led down the garden”), como no exemplo “I
<protagonista> was <PROREL> just like the girl who had been led down the
garden”; o narrador/protagonista também é caracterizado por meio de atributos (“a
sensation”) que são ressaltados pela escolha da circunstância de localização “in the
leather bars”, como no exemplo “Needless to say, I <protagonista> was
<PROREL> a sensation--especially in the leather bars”; e o narrador/protagonista
é tipificado como uma personagem que possui algo, neste caso, o odor da
personagem com a qual ele se envolve sexualmente, como no exemplo “He had just
taken off <PROMAT> his white jacket and I <protagonista> had <PROREL> a
whiff of him--musky, healthy, a sexual odor”. Este último exemplo é significativo
192
porque a área de influência do processo relacional “had”, representada pelo grupo
nominal “a whiff of him”, localiza-o na região limítrofe dos processos mentais, mais
precisamente os do tipo “perceptivo” (perceptive). Embora Phil Andros seja o
possuidor de algo, na verdade, sua caracterização enquanto participante direto da
oração relacional se dá muito mais como alguém que sente do que como alguém
que se relaciona com outra personagem.
Os exemplos em português disponibilizados no QUADRO 6 apresentam o
narrador/protagonista como identificado e possuidor. São eles:
Eu <protagonista> era <PROREL> o seu superior, pois já
estava lá havia mais tempo
Eu <protagonista> tinha <PROREL> certeza de que o meu
rosto estava rígido
para falar a verdade, ainda não sabia se <protagonista> era
<PROREL> homo, hétero, bi ou assexuado.
Isto me transformava numa piada. Eu <protagonista> estava
<PROREL> danado da vida que um maldito e falso filósofo
Depois de alguns minutos deste tratamento eu <protagonista>
estava <PROREL> sensibilizadíssimo e frenético, mais
excitado do que havia estado <PROREL> em anos
Os processos relacionais “era”, “tinha” e “estavam” caracterizam o
narrador/protagonista como portador e possuidor, portanto alguém que
constrói suas experiências de mundo ao relacionar-se com outras personagens.
No exemplo “Depois de alguns minutos deste tratamento eu <protagonista>
estava <PROREL> sensibilizadíssimo e frenético, mais excitado do que havia
estado <PROREL> em anos”, a oração hipotáticamais excitado do que havia
193
estado <PROREL> em anos” complementa a caracterização do
narrador/protagonista como alguém que estava “sensibilizadíssimo e
frenético”. Phil Andros, pois, experiencia suas realidades de mundo por meio
de processos relacionais que o caracterizam como portador e, sobretudo, como
personagem que depende de outras personagens para se relacionar e
concomitantemente representar suas ações sociais como gay juntamente com
outras personagens com as quais se envolve.
5.3.6 Processos-chave materiais vinculados ao nódulo
<personagem>
Seguindo o mesmo procedimento, analiso agora alguns excertos de
processos-chave, em negrito, vinculados às outras personagens, representadas
pelo nódulo <personagem>, que constroem suas realidades de mundo por meio
do discurso do narrador/protagonista Phil Andros.
QUADRO 7
Exemplos de processos-chave materiais com nódulo “Personagem” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROMAT Clayton <personagem>
came <PROMAT> back
at six. “I <personagem>
been gettin’ acquainted
<PROMAT>.
<personagem> Met
<PROMAT> old Angus”
“Good boy, Phil,” he said
Quando <protagonista>
cheguei <PROMAT>, ele
<personagem> jogou
<PROMAT> seu palito de
dentes fora e riu
<PROCOMP>.
Bull <personagem>
entrou <PROMAT> no
194
<PROVERB>, and
<personagem> squeezed
<PROMAT> my shoulder.
them, as if there’d been a
rehearsal, headed for Rex
Rhodes when he
<personagem>
undressed <PROMAT>.
He opened <PROMAT>
his eyes as I raised
<PROCOMP> up.
standing there in the
middle of the room, with a
quick movement he
<personagem>
unbuckled <PROMAT>
his belt. His trousers slid
to the floor. He had no
underwear on.
quarto. <personagem>
Esfregou <PROMAT> os
pés no chão, olhando
<PROCOMP> para baixo
Ele <personagem>
esfregou <PROMAT> o
seu pau e sorriu
<PROCOMP> para mim.
colocou <PROMAT> o
salto no seu pau e
<personagem> começou a
desafivelar <PROMAT>
a bota.
eles <personagem>
gostavam de transar
<PROMAT> a três e
<personagem> pagavam
<PROMAT> sempre uns
vinte
Os processos materiais do original Stud referentes ao nódulo <personagem>
indicam experiências por meio das quais esses participantes constroem suas
realidades de mundo junto com outras personagens, principalmente com o
narrador/protagonista. Sobretudo, é por intermédio do discurso deste último que
as personagens experienciam determinadas ações sociais, formando seqüências de
eventos que caracterizam essas mesmas ações. Tais características discursivas
presentes nos dados do QUADRO 7 são ilustrativas da relação entre transitividade e
ações sociais. Halliday (1978: 143) aborda esse aspecto da seguinte maneira:
A seleção de opções em sistemas experienciais – isto é, na
transitividade, nas classes das coisas (objetos, pessoas, eventos
etc.), em qualidade, quantidade, tempo, local, dentre outros –
tende a ser determinada pela natureza da atividade: em qual
195
ação socialmente reconhecida os participantes estão engajados,
para cuja ação a troca de significados verbais contribui.
69
Em termos da GSF hallidayana, os “objetos”, “pessoas”, “eventos”, dentre
outros, constituem os participantes vinculados a determinados processos, sendo
por estes classificados, ao passo que os termos “qualidade”, “quantidade”, “tempo”,
“local”, e outros, representam as circunstâncias dentro do espectro experiencial. No
QUADRO 7, temos “Clayton”, “my shoulder” e “his eyes” compondo os
participantes diretos dos processos-chave “came”, “squeezed” e “opened”,
respectivamente. Os elementos “at six”, “for Rex Rhodes”, “with a quick movement”
e “to the floor” compõem as circunstâncias que caracterizam as ações executadas
pelos processos-chave materiais destacados. É esse tipo de “seleção de opções” que
forma as ações sociais das personagens gays do corpus Stud-Garoto. Os excertos de
processos-chave materiais do QUADRO 7 são os seguintes:
Clayton <personagem> came <PROMAT> back at six. “I
<personagem> been gettin’ acquainted <PROMAT>.
<personagem> Met <PROMAT> old Angus”
“Good boy, Phil,” he said <PROVERB>, and <personagem>
squeezed <PROMAT> my shoulder.
them, as if there’d been a rehearsal, headed for Rex Rhodes
when he <personagem> undressed <PROMAT>.
He opened <PROMAT> his eyes as I raised <PROCOMP> up.
standing there in the middle of the room, with a quick
movement he <personagem> unbuckled <PROMAT> his belt.
His trousers slid to the floor. He had no underwear on.
69
Minha tradução de: “The selection of options in experiential systems – that is, in transitivity, in
the classes of things (objects, persons, events etc.), in quality, quantity, time, place and so on – tends
to be determined by the nature of the activity: what socially recognized action the participants are
engaged in, in which the exchange of verbal meanings has a part”.
196
É importante ressaltar o papel das orações paratáticas e hipotáticas na
construção de significados dos exemplos acima. A área de influência que circunda a
oração paratática “and <personagem> squeezed <PROMAT> my shoulder
mostra a função de contextualização que esta última confere ao processo verbal
“said”, chamando atenção para o fato de que a construção discursiva da
personagem como dizente se completa com a ação (“squeezed”) expressa na oração
paratática que lhe sucede.
A oração hipotática “when he <personagem> undressed <PROMAT>,
exercendo papel discursivo de circunstância temporal, caracteriza a personagem
Rex Rhodes como ator que executa ações de sensualidade e erotismo,
explicitamente mostradas pelo processo material “undressed”. Como afirma Eggins
(2004), os complexos oracionais, sobretudo as relações de parataxe e de hipotaxe,
conferem aos usuários da língua meios lingüísticos de construírem conexões lógicas
entre os eventos experienciais nos quais estão envolvidos. No caso dos dados
apresentados nesta pesquisa, percebe-se que as orações paratáticas e hipotáticas
complementam a construção discursiva experiencial das personagens com
informações adicionais.
No que tange aos processos-chave materiais da tradução Garoto
apresentados no QUADRO 7 acima, é curioso observar que boa parte dos
processos-chave materiais da tradução, vinculados ao nódulo <personagem>,
remetem as ações de seus participantes a relações de erotismo e sensualidade
explícitas, ao passo que os processos-chave materiais do original Stud,
197
apresentados no QUADRO 7, apontam para esse tipo de construção experiencial de
maneira um pouco velada, menos explícita. Os exemplos, em negrito, de processos-
chave materiais da tradução Garoto, expressos no QUADRO 7 acima, são os
seguintes:
Quando <protagonista> cheguei <PROMAT>, ele
<personagem> jogou <PROMAT> seu palito de dentes fora
e riu <PROCOMP>.
Bull <personagem> entrou <PROMAT> no quarto.
<personagem> Esfregou <PROMAT> os pés no chão,
olhando <PROCOMP> para baixo
Ele <personagem> esfregou <PROMAT> o seu pau e sorriu
<PROCOMP> para mim.
colocou <PROMAT> o salto no seu pau e <personagem>
começou a desafivelar <PROMAT> a bota.
eles <personagem> gostavam de transar <PROMAT> a
três e <personagem> pagavam <PROMAT> sempre uns
vinte
As orações paratáticas “e riu”, “e sorriu <PROCOMP> para mim” e “e
<personagem> pagavam <PROMAT> sempre uns vinte” complementam,
respectivamente, a construção discursiva experiencial das personagens ligadas aos
processos-chave materiais “jogou”, “esfregou” e “transar”. As orações hipotáticas
“Quando <protagonista> cheguei <PROMAT> e “olhando <PROCOMP> para
baixo”, a primeira exercendo papel discursivo de circunstância de tempo e a
segunda de circunstância de modo, completam, respectivamente, as experiências de
mundo dos participantes vinculados aos processos-chave materiais “jogou” e
“Esfregou”.
198
É importante ressaltar que nos exemplos acima há uma predominância
de participantes inanimados exercendo papel na construção experiencial das
personagens, sendo dois deles partes dos corpos dessas personagens. Nos
exemplos “ele <personagem> jogou <PROMAT> seu palito de dentes fora”,
Esfregou <PROMAT> os pés no chão,esfregou <PROMAT> o seu pau e
“<personagem> começou a desafivelar <PROMAT> a bota”, as metas “seu
palito de dentes”, “os pés”, “o seu pau” e “a bota” são participantes inanimados,
dois deles partes dos corpos das personagens, que tipificam o evento
experiencial no qual se inserem esses participantes. Ou seja, essas metas
estabelecem uma construção de mundo em que os participantes utilizam partes
de seus corpos e outros elementos abstratos para explicitarem suas ações uns
com os outros. O corpo, pois, parece ser elemento central na construção
discursiva das personagens gays da coletânea de contos investigada, sendo,
portanto, elementos constitutivos da realidade de mundo desses participantes
e, possivelmente, uma característica discursiva marcada da escrita gay do
corpus desta pesquisa.
5.3.7 Processos-chave comportamentais vinculados ao nódulo
<personagem>
Os processos-chave comportamentais do original Stud mostrados no
QUADRO 8 abaixo também expressam uma semelhança discursiva com os
processos-chave materiais analisados anteriormente.
199
QUADRO 8
Exemplos de processos-chave comportamentais com nódulo “Personagem” no corpus
Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROCOMP ‘I’ll-never-be-lonely-again’
pants.” He looked
<PROCOMP> down and
<personagem> grinned
<PROCOMP> too. “If
you’re not hustlin’,
He <personagem> was
scowling <PROCOMP> a
little, and he moistened
<PROMAT> his lips with
his tongue.
“For all night--maybe
twenty or twenty-five.”He
<personagem> looked
<PROCOMP> at me.
“From now until midnight,”
he said <PROVERB>,
“twenty-five?”
he straddled <PROMAT>
the seat and <personagem>
bent
<PROCOMP>forward. And
then I lashed <PROMAT>
him tightly to the
motorcycle, hands to the
He <personagem> was
sweating <PROCOMP>.
He reached <PROMAT> for
my belt but I unbuckled
<PROMAT> it quickly.
Ele <personagem> me
olhou <PROCOMP> de
cima a baixo e então
<personagem> suspirou
<PROCOMP>.
Ele virou <PROMAT> seu
belo rosto negro em minha
direção e <personagem>
sorriu <PROCOMP>
brevemente, um tipo de
sorriso superficial sem
nenhuma verdadeira
intenção
a porta finalmente se
fechou, Ace saiu
<PROMAT> do armário.
Ele <personagem> estava
suando <PROCOMP> em
bicas e <personagem>
exalando <PROCOMP>
doces odores.
o acordo estará desfeito.
Entendeu <PROVERB>?
Ele <personagem> estava
sorrindo <PROCOMP>
maliciosamente e umedeceu
<PROMAT> seus lábios
com a língua.
Ele cobriu <PROMAT> o
bocal do fone e
<personagem> se virou
<PROCOMP> para mim:
Quer ir a uma orgia? -- ele
disse <PROVERB>.
200
As áreas de influência dos processos-chave comportamentais do QUADRO 8
sinalizam a presença de elementos ou grupos nominais que nos remetem a
experiências de mundo dessas personagens enquanto participantes que se
envolvem em relações de sensualidade e erotismo com outras personagens,
sobretudo o narrador/protagonista Phil Andros. Essa mesma construção discursiva
pode ser vista nos processos-chave comportamentais da tradução Garoto. Os
exemplos do original são os seguintes:
‘I’ll-never-be-lonely-again’ pants.” He looked <PROCOMP>
down and <personagem> grinned <PROCOMP> too. “If
you’re not hustlin’,
He <personagem> was scowling <PROCOMP> a little, and
he moistened <PROMAT> his lips with his tongue.
“For all night--maybe twenty or twenty-five.”He
<personagem> looked <PROCOMP> at me. “From now
until midnight,” he said <PROVERB>, “twenty-five?”
he straddled <PROMAT> the seat and <personagem> bent
<PROCOMP> forward. And then I lashed <PROMAT> him
tightly to the motorcycle, hands to the
He <personagem> was sweating <PROCOMP>. He
reached <PROMAT> for my belt but I unbuckled
<PROMAT> it quickly.
Os processos-chave comportamentais em negrito dos exemplos acima
localizam-se, por exemplo, em orações paratáticas (“and <personagem> grinned
<PROCOMP> too” e “and <personagem> bent <PROCOMP> forward”),
complementando as construções experienciais discursivas iniciadas,
respectivamente, pelo processo comportamental “looked down” e pelo processo
material “straddled”. Além disso, as áreas de influência dos processos
201
comportamentais acima mostram elementos inanimados e partes dos corpos das
personagens (“pants”, “lips”, “tongue”, “hands” e “belt”, respectivamente) enquanto
complementos que integram a constituição de mundo dessas personagens.
Construções discursivas análogas podem ser vistas nos exemplos de Garoto
expressos no QUADRO 8 acima:
Ele <personagem> me olhou <PROCOMP> de cima a baixo
e então <personagem> suspirou <PROCOMP>.
Ele virou <PROMAT> seu belo rosto negro em minha
direção e <personagem> sorriu <PROCOMP> brevemente,
um tipo de sorriso superficial sem nenhuma verdadeira
intenção
a porta finalmente se fechou, Ace saiu <PROMAT> do
armário. Ele <personagem> estava suando <PROCOMP>
em bicas e <personagem> exalando <PROCOMP> doces
odores.
o acordo estará desfeito. Entendeu <PROVERB>? Ele
<personagem> estava sorrindo <PROCOMP>
maliciosamente e umedeceu <PROMAT> seus lábios com a
língua.
Ele cobriu <PROMAT> o bocal do fone e <personagem> se
virou <PROCOMP> para mim: Quer ir a uma orgia? -- ele
disse <PROVERB>.
As áreas de influência dos processos-chave comportamentais dos exemplos
da tradução Goroto expressos no QUADRO 8 apontam para a presença de
elementos abstratos e partes dos corpos das personagens como participantes
diretos e indiretos na construção discursiva de suas realidades de mundo. Partes
dos corpos das personagens, portanto, exercem papel discursivo de meta, como no
exemplo “seu belo rosto negro”, do processo material “virou”. Neste trecho, a área
de influência demonstra uma similitude do processo material “virou” com o
202
processo comportamental “se virou” em “Ele cobriu <PROMAT> o bocal do fone e
<personagem> se virou <PROCOMP> para mim: Quer ir a uma orgia? -- ele disse
<PROVERB>. A diferença, no entanto, se expressa pelo fato de o processo
comportamental “se virou” representar uma postura corporal do participante “Ele”
por meio da pronominalização proclítica “se”, construção típica do português
brasileiro, segundo Mira Mateus et al. (2003: 47).
Já a construção discursiva “Ele virou <PROMAT> seu belo rosto negro em
minha direção” apresenta os elementos de transitividade inerentes ao processo
material, quais sejam, o ator “Ele”, o processo material “virou”, a meta “seu belo
rosto negro” e a circunstância de localização “em minha direção”, esta última sendo
um elemento periférico muito comum aos processos materiais (para a associação
de circunstâncias de localização a processos materiais, ver HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004: 266). Todavia, a área de influência desse exemplo expressa
a proximidade do processo material “virou” com um comportamento da
personagem “Ele”, sobretudo pela presença da oração paratática “e <personagem>
sorriu <PROCOMP> brevemente”, com processo comportamental “sorriu” e
circunstância de modo “brevemente”, esta última muito comumente associada a
processos comportamentais (para a associação de circunstâncias de modo a
processos comportamentais, ver HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 251).
203
5.3.8 Processos-chave mentais vinculados ao nódulo
<personagem>
Apenas poucos tipos de processos-chave mentais, apresentados no QUADRO
9 abaixo, tanto do original Stud (três exemplos) quanto da tradução Garoto (quatro
exemplos), para o nódulo <personagem>, apareceram quando selecionados pela
ferramenta Concord do software WordSmith Tools 4.0.
QUADRO 9
Exemplos de processos-chave mentais com nódulo “Personagem” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROMEN A century’s hates and
customs do not disappear
overnight. But I
<protagonista> think
<PROMEN> that on the
whole Ace <personagem>
liked <PROMEN> me.
Karl approached
<PROMAT> his
obsession, or whatever it
must be called. He
<personagem> knew
<PROMEN> and could
name <PROVERB> the six
or seven kinds of bacilli
and bacteria
“Claytie” was the
nickname I’d given
<PROMAT> him. It had
stuck, and he
<personagem> hated
<PROMEN> it.
Não sei -- ele disse
<PROVERB>. -- Isto
realmente não importa.
Mas eu <personagem>
não acho <PROMEN>.
Quero dizer... Acho
<personagem> que você é
<PROREL> muito
descolado para isso, cara.
“Claytie” era o apelido que
eu havia lhe dado
<PROMAT>. Tinha colado
e ele <personagem> o
odiava <PROMEN>.
Sim, eu <personagem> sei
<PROMEN>, -- ele disse
<PROVERB>. --
<personagem> Odeio
sentir-me <PROMEN>
preso.
-- Um pouco, eu disse
<PROVERB>. --
<personagem> Pensei
<PROMEN> que nós,
204
michês, não tivéssemos
<PROREL> emoções -- ele
disse <PROVERB>.
Os processos-chave mentais do original Stud apresentam as personagens
como experienciadoras e concomitantemente como participantes que constroem
suas realidades de mundo consciencial por intermédio do discurso do
narrador/protagonista. Isso porque Phil Andros, através de seu discurso, dá forma
aos pensamentos, desejos e reflexões das outras personagens, fazendo com que
estas últimas dele dependam para expressarem suas construções discursivas
conscienciais. Os exemplos de Stud, presentes no QUADRO 9 acima, mostram essa
construção:
A century’s hates and customs do not disappear overnight.
But I <protagonista> think <PROMEN> that on the whole
Ace <personagem> liked <PROMEN> me.
Karl approached <PROMAT> his obsession, or whatever it
must be called. He <personagem> knew <PROMEN> and
could name <PROVERB> the six or seven kinds of bacilli
and bacteria
“Claytie” was the nickname I’d given <PROMAT> him. It
had stuck, and he <personagem> hated <PROMEN> it.
Os exemplos de processos-chave mentais para o nódulo <personagem> em
Garoto, conforme vistos no QUADRO 9, expressam construções discursivas
semelhantes aos processos mentais em Stud.
Não sei -- ele disse <PROVERB>. -- Isto realmente não
importa. Mas eu <personagem> não acho <PROMEN>.
205
Quero dizer... Acho <personagem> que você é <PROREL>
muito descolado para isso, cara.
“Claytie” era o apelido que eu havia lhe dado <PROMAT>.
Tinha colado e ele <personagem> o odiava <PROMEN>.
Sim, eu <personagem> sei <PROMEN>, -- ele disse
<PROVERB>. -- <personagem> Odeio sentir-me
<PROMEN> preso.
-- Um pouco, eu disse <PROVERB>. -- <personagem>
Pensei <PROMEN> que nós, michês, não tivéssemos
<PROREL> emoções -- ele disse <PROVERB>.
O narrador/protagonista Phil Andros dá vida às realidades de mundo
consciencial das personagens com as quais ele se envolve por meio de seu próprio
discurso, ora através de discurso direto, como no exemplo “Não sei -- ele disse
<PROVERB>. -- Isto realmente não importa. Mas eu <personagem> não acho
<PROMEN>. Quero dizer... Acho <personagem> que você é <PROREL> muito
descolado para isso, cara”, ora indireto, como no exemplo “Tinha colado e ele
<personagem> o odiava <PROMEN>”. Segundo Halliday e Matthiessen (2004:
443), “[a]través da projeção, uma oração é constituída como a representação do
‘conteúdo’ lingüístico de outra – tanto o conteúdo de uma oração ‘verbal’ de diálogo
como o conteúdo de uma oração ‘mental’ de sentido”.
70
Isso significa dizer que a
construção de realidade de mundo consciencial das personagens depende
diretamente do ponto de vista narrativo, característica discursiva típica de
narrativas homodiegéticas, como é o caso de Stud.
70
Minha tradução de: “Through projection, one clause is set up as the representation of the
linguistic ‘content’ of another – either the content of a ‘verbal’ clause of saying or the content of a
‘mental’ clause of sensing”.
206
5.3.9 Processos-chave verbais vinculados ao nódulo
<personagem>
Os processos-chave verbais expressos no QUADRO 10 a seguir, por serem
processos que normalmente projetam discursos produzidos pelas personagens,
expressam igualmente o ponto de vista do narrador/protagonista Phil Andros. Os
exemplos de processos-chave verbais disponibilizados pela ferramenta Concord
para o nódulo <personagem> foram os seguintes:
QUADRO 10
Exemplos de processos-chave verbais com nódulo “Personagem” no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROVERB “You and him havin’ quite
a time of it this summer,
ain’t you?” he
<personagem> asked
<PROVERB>. “Yeah,” I
said <PROVERB>.
elegant fabric of his
trousers and jacket as he
sat <PROCOMP> there,
<personagem> saying
<PROVERB> very little,
occasionally smiling
<PROCOMP> that small
sidewise smile,
soube que teria de comer
no refeitório com o resto
da criadagem, ele
<personagem> disse
<PROVERB>: Por que não
nos alternamos na sala de
jantar?
Melhor manter as fichas
de inscrição aqui – ele
<personagem> disse
<PROVERB>, tirando-as
do lugar. -- E os lápis
aqui.
Temos, no original, uma oração com processo-chave verbal formado por
discurso direto e outra por discurso indireto. É importante ressaltar que a oração
hipotática não-finita de gerúndio “<personagem> saying <PROVERB> very little”
207
possui valor circunstancial de modo e, por este fato, exerce o papel de
contextualização do episódio narrativo pelo viés do ponto de vista do
narrador/protagonista Phil Andros. Ou seja, a oração hipotática, na verdade,
executa a função de contextualizar o episódio narrativo ligado ao processo
comportamental “sat” inserido numa circunstância de tempo, demonstrando que
ambas as ações ocorrem paralelamente e, desta forma, constroem discursivamente
a figura da personagem como comportante e dizente, dois papéis discursivos
diferentes porém complementares, através do ponto de vista narrativo.
Os processos-chave verbais de Garoto ocorrem freqüentemente como
“disse”, seguindo padrões análogos aos dos exemplos abaixo, extraídos do
QUADRO 10 acima:
soube que teria de comer no refeitório com o resto da
criadagem, ele <personagem> disse <PROVERB>: Por que
não nos alternamos na sala de jantar?
Melhor manter as fichas de inscrição aqui ele
<personagem> disse <PROVERB>, tirando-as do lugar. --
E os lápis aqui.
Os exemplos acima, expressos por meio de discurso direto, mostram,
novamente, que o discurso das personagens se dá mediante o ponto de vista do
narrador/protagonista Phil Andros. Além disso, a ocorrência significativa do
processo verbal “disse” na tradução Garoto sugere que a tradutora seguiu o padrão
de textualização do original Stud, em que a presença de “said” é significativa. No
que tange ao processo-chave “perguntei”, apresentado na TAB. 4 mais acima, todas
as ocorrências se vinculam ao narrador/protagonista.
208
5.3.10 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo
<personagem>
Por fim, restam analisar os processos-chave relacionais apresentados no
QUADRO 11 abaixo. No original Stud, os processos relacionais identificam as
personagens como portadores de atributos, como mostra os exemplos a seguir:
QUADRO 11
Exemplos de processos-chave relacionais com nódulo “Personagem” no corpus Stud-
Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROREL Oh, he <personagem>
was <PROREL> apple-
cheeked and black-haired
and heterosexual, and I
hated <PROMEN> him
“A peculiar guy,” he said
<PROVERB>. “He
<personagem> could
have <PROREL> anyone
in the world, with his
looks and money. But he’s
never been with
Oh, please don’t worry,
sirs, I <protagonista>
have <PROREL> a friend
here who <personagem>
is <PROREL> impotent
unless he’s <PROREL> in
bed with
Ele falava <PROVERB>
alto, <personagem> era
<PROREL> extrovertido e
barulhento. Eu era
<PROREL> o seu
superior,
Eu nunca tinha visto
<PROMEN> alguma coisa
parecida com aquilo.
<personagem> Estavam
<PROREL> todos sobre
Rex. Ele estava deitado
<PROCOMP> de costas
sobre o chão,
Ele era <PROREL> um
cara muito boa-pinta e,
com aquela roupa,
<personagem> parecia
<PROREL> forte também.
Acho que tinha
<PROREL> uns 24 anos e
era <PROREL> tão bem-
feito de corpo
209
Uma característica discursiva que merece menção nos exemplos
apresentados no QUADRO 11 é o papel que os processos relacionais possuem na
contextualização das realidades de mundo das personagens expressas por outros
tipos de processos. Se analisarmos os exemplos acima, veremos que o processo
relacional “was” em “he <personagem> was <PROREL> apple-cheeked and black-
haired and heterosexual” constrói a personagem como portadora de atributos que
sinalizam certa repugnância da parte do narrador/protagonista para com ela,
principalmente o atributo “heterosexual”, conforme visto na oração paratática que
lhe sucede “and I hated <PROMEN> him”. Isto é, os atributos da personagem,
expressos pelo processo relacional “was”, contextualizam o discurso do
narrador/protagonista preparando o(a) leitor(a) para pressupor que, logo em
seguida, uma escolha do tipo “hated” (processo mental) poderia ser feita.
Eggins (2004: 256), ao estudar os complexos oracionais, afirma que “sempre
onde há escolha, há significado”.
71
Essa afirmação vai ao encontro das escolhas
probabilísticas disponíveis no sistema da língua, realizadas por usuários da
linguagem, e suscetíveis ao registro aos quais pertencem os textos. No caso do
exemplo acima, o autor e narrador/protagonista dos contos escolheu textualizar
atributos pejorativos à personagem, relacionados às suas características corporais e
à sua orientação sexual
72
, como estratégia discursiva de contextualização das razões
71
Minha tradução de: “Wherever there is choice, there is meaning”.
72
Cabe ressaltar que no decorrer deste conto a personagem à qual se refere Phil Andros se envolve
sexualmente com este último, fato que me fez anotá-lo manualmente como <personagem>, devido à
escolha de proceder de tal modo somente com personagens que com ele se envolvessem
afetivamente (ver capítulo Metodologia e procedimentos metodológicos).
210
que o fizeram sentir ódio por ela. Sobretudo, o atributo “heterosexual”, imputado à
personagem, vai de encontro à orientação sexual gay do próprio
narrador/protagonista, indicando uma oposição de tendências comportamentais
vistas como antagônicas e, às vezes, repugnantes no contexto de ações sociais da
comunidade gay, representadas socialmente em atitudes homofóbicas, como bem
coloca Trevisan em seu livro Devassos no Paraíso (2004).
Phil Andros, portanto, constrói as personagens a partir de seu ponto de vista
narrativo, o que corrobora os estudos de Simpson (1993) acerca do papel da
transitividade para a representação de personagens em narrativas homodiegéticas.
Ademais, esse tipo de escolha sugere que Andros bordeja um campo de
identificação tipicamente gay das personagens com as quais se envolve,
caracterizando sua escrita como escrita gay, conforme os estudos de Keith Harvey
(HARVEY, 2000a, b).
Os exemplos de processos-chave relacionais da tradução Garoto,
apresentados no QUADRO 11, disponibilizados pela ferramenta Concord para o
nódulo <personagem>, mostram construções discursivas parecidas com as do
original Stud, dando destaque, porém, às partes dos corpos das personagens como
participantes diretos de processos relacionais. Os exemplos são os seguintes:
Ele falava <PROVERB> alto, <personagem> era <PROREL>
extrovertido e barulhento. Eu era <PROREL> o seu superior,
Eu nunca tinha visto <PROMEN> alguma coisa parecida com
aquilo. <personagem> Estavam <PROREL> todos sobre Rex.
Ele estava deitado <PROCOMP> de costas sobre o chão,
211
Ele era <PROREL> um cara muito boa-pinta e, com aquela
roupa, <personagem> parecia <PROREL> forte também.
Acho que tinha <PROREL> uns 24 anos e era <PROREL> tão
bem-feito de corpo
A circunstância de local “sobre Rex” denota que as personagens (“todos”) se
relacionam eroticamente com este participante (“Rex”), por meio do processo
relacional “Estavam” (“Estavam <PROREL> todos sobre Rex.”). Além disso,
partes dos corpos das personagens, ou referências a essas partes, enquanto
escolhas lexicais nas áreas de influência dos processos relacionais, são participantes
diretos na construção discursiva dessas personagens. Isso pode ser visto nas
escolhas dos grupos nominais “boa-pinta”, “forte”, “uns 24 anos” e “tão bem-feito
de corpo” para caracterizarem-nas como se apenas fossem compostas por esses
atributos. Há, neste exemplo, o que Eggins (2004: 43) denomina “relação de
expectância” (expectancy relation), ou seja, itens lexicais (atributos) que se ligam
mais probabilisticamente a alguns tipos específicos de verbos ou processos do que a
outros elementos. No caso dos exemplos acima, as áreas de influência dos grupos
nominais citados anteriormente indicam uma probabilidade bem maior de
ocorrência de processos relacionais, e vice-versa, do que de outros tipos de
processos. Parece-me, então, que a obra Stud e sua tradução Garoto se constroem
discursiva e semanticamente tanto por intermédio de elementos abstratos ou
inanimados referentes às partes dos corpos das personagens quanto por meio de
referências às personagens em si.
Para finalizar esta subseção, apresento os QUADROS 12, 13 e 14 seguintes,
nos quais se encontram os processos-chave, em negrito, disponibilizados pela
212
ferramenta Concord quando da escolha do nódulo <protagonista + personagem>.
Com isso, percebe-se como o narrador/protagonista experiencia suas realidades de
mundo juntamente com outras personagens, sendo, portanto, dependente destas
últimas para a construção de sua realidade experiencial.
5.3.11 Processos-chave materiais vinculados ao nódulo
<protagonista + personagem>
Inicio a análise com os processos-chave materiais expressos no QUADRO 12
abaixo:
QUADRO 12
Exemplos de processos-chave materiais com nódulo “Protagonista + personagem” no
corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROMAT We <protagonista +
personagem> slipped
<PROMAT> on part of our
clothes and <protagonista
+ personagem> went
<PROMAT> to the kitchen
I <protagonista> grabbed
<PROMAT> it and we
<protagonista +
personagem> squeezed
<PROMAT> each other
hard like a couple of
Ace’s landlady came out of
her room just as we
<protagonista +
personagem> started
---
213
<PROMAT> up the dark
stairs at his place.
“Who’s going to be here?”
I said <PROVERB> when
we <protagonista +
personagem> got
<PROMAT> to the top of
the stairs and were
waiting
Os processos-chave materiais do original Stud, como expressos no QUADRO
12, simbolizam ações conjuntas realizadas pelo narrador/protagonista juntamente
com outras personagens com as quais ele constrói sua própria realidade. A
dependência discursiva que outros participantes têm do narrador é típica das
narrativas de 1ª pessoa, ou narrativas homodiegéticas. No entanto, ao escolher o
nódulo <protagonista + narrador> para a tradução Garoto, não houve ocorrência
de processos-chave materiais que simbolizassem ações conjuntas entre o
narrador/protagonista e outras personagens. Este fato é curioso porque demonstra
que para a tradução Garoto nenhum dos processos-chave materiais apresentados
na TAB. 4 mais acima foram eleitos como escolhas léxico-gramaticais para a
representação do narrador/protagonista enquanto participante de processos em
conjunto com outras personagens, seja por meio de pronomes pessoais, seja por
referência ao próprio nome da personagem. Isso, então, demonstra que a tradução
Garoto ou não leva em conta essa ação conjunta, dada a sua inexistência como
escolha léxico-gramatical para representar as ações conjuntas de Phil Andros com
outras personagens, ou as “ações” conjuntas foram re-textualizadas por outros
tipos de processo.
214
5.3.12 Processos-chave comportamentais vinculados ao nódulo
<protagonista + personagem>
O contrário acontece com os processos-chave comportamentais. No original,
o narrador/protagonista não se comporta juntamente com outras personagens, ao
passo que na tradução isso ocorre. O único excerto que demonstra essa ocorrência é
o seguinte (QUADRO 13):
QUADRO 13
Exemplos de processos-chave comportamentais com nódulo “Protagonista + personagem”
no corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROCOMP --- lentamente por uma das
ruas a meia milha de
distância. Nós
<protagonista +
personagem> ficamos
olhando <PROCOMP>.
Vimos <PROMEN> alguns
prédios
A área de influência do processo comportamental “olhando” demonstra o
comportamento conjunto das personagens, sobretudo pelo processo auxiliar
“ficamos”, o qual expressa uma relação entre as personagens e que, ao mesmo
tempo, constitui a base do evento “olhando”. Para Halliday e Matthiessen (2004:
336), “[o] significado textual está incorporado na ordenação dos elementos”
73
do
grupo verbal. Em virtude dessa colocação, a escolha do processo relacional
73
Minha tradução de: “The textual meaning is embodied in the ordering of the elements”.
215
“ficamos” como verbo auxiliar do processo comportamental “olhando” estabelece
uma ralação entre as personagens; ou seja, elas juntamente compartilham a mesma
experiência e, concomitantemente, constroem suas realidades de mundo naquele
dado momento conforme o comportamento que assumem.
5.3.13 Processos-chave mentais e verbais vinculados ao nódulo
<protagonista + personagem>
A inexistência de processos-chave mentais e verbais, tanto no original Stud
quanto na tradução Garoto, que mostram o narrador/protagonista enquanto
experienciador e dizente juntamente com outras personagens, era de se esperar.
Isso porque o narrador/protagonista não pensava, nem falava, junto com outras
personagens, mas, sim, expressava, por intermédio de discurso direto ou indireto,
os pensamentos e as falas de outras personagens, tipicamente como acontece em
narrativas cujo narrador se insere na trama e vivencia suas experiências de mundo
em conjunto com outras personagens.
5.3.14 Processos-chave relacionais vinculados ao nódulo
<protagonista + personagem>
Já os processos-chave relacionais do original Stud apresentados no
QUADRO 14 abaixo são do tipo atributivo-possessivo, cujos participantes, neste
caso o narrador/protagonista juntamente com outras personagens, realizados
216
léxico-gramaticalmente pelo pronome pessoal “we” em inglês, são representados
como possuidores de atributos e de elementos que os tipificam.
QUADRO 14
Exemplos de processos-chave relacionais com nódulo “Protagonista + personagem” no
corpus Stud-Garoto
PROCESSO EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM STUD
EXEMPLOS DE
PROCESSOS-CHAVE
EM GAROTO
PROREL the type that really turned
me on when I wanted
<PROMEN> a man. We
<protagonista +
personagem> didn’t have
<PROREL> a fight or
anything like that
We <protagonista +
personagem> both had
<PROREL> identical
costumes on
I suppose <PROMEN>
part of it lay in the
consciousness that we
<protagonista +
personagem> had
<PROREL> of each
other’s color
<protagonista +
personagem> Estávamos
<PROREL> do lado de
fora do bar, na esquina
É importante ressaltar que os exemplos “We <protagonista +
personagem> didn’t have <PROREL> a fight or anything like that” e “I
suppose <PROMEN> part of it lay in the consciousness that we <protagonista
+ personagem> had <PROREL> of each other’s color”, mostram, conforme
análise das áreas de influência de ambos, que os significados dos processos-
chave relacionais atributivos possessivos “have” e “had”, respectivamente, se
217
aproximam semanticamente dos papéis discursivos exercidos pelos grupos
nominais “a fight or anything like that”, vinculando-o a uma ação material, e
“in the consciousness”, ligando-o a uma ação circunscrita ao pensamento. É
curioso perceber que a colocação “to have a fight” localiza o processo relacional
“have” na região limítrofe dos processos materiais, ao passo que a oração
projetante “I suppose”, cujo núcleo verbal é o processo mental “suppose”,
condiciona o processo relacional “had”, núcleo verbal da oração projetada, a
depender daquele semanticamente. Assim, nos exemplos acima, Phil Andros
constrói suas realidades de mundo, junto com outras personagens, por meio de
processos relacionais que se identificam com os papéis semânticos
desempenhados por outros tipos de processos.
O único exemplo de processo-chave relacional da tradução Garoto
expressa, por sua vez, o local em que se encontravam o narrador/protagonista
e outra personagem, por meio da relação circunstancial de localização “do lado
de fora do bar, na esquina. A região limítrofe do processo relacional
“estávamos” mostra que o narrador/protagonista Phil Andros constrói suas
ações sociais também por meio de dêixis espacial, isto é, referências que
expressam seu ponto de vista narrativo a partir de sua relação com o espaço em
que se encontra. Ademais, a construção da relação do narrador/protagonista
com outras personagens ocorre, necessariamente, por meio do espaço em seu
derredor, em cuja constituição discursiva a circunstância de localização “do
lado de fora do bar, na esquina” é o atributo do processo relacional
“estávamos”.
218
Na próxima subseção, analiso alguns processos-chave do original Stud e
de sua tradução Garoto através do utilitário Aligner, disponível no menu
“utilities” do software WordSmith Tools, versão 4.0. Este utilitário
disponibiliza os parágrafos e as orações do original e da tradução em linhas
paralelas, revelando-se muito útil para análises tradutórias.
5.4 Processos-chave no original Stud e seus equivalentes na
tradução Garoto
Seguindo o mesmo procedimento para a análise de processos-chave feita nas
subseções anteriores, fiz a busca de alguns dos processos-chave no corpus Stud-
Garoto alinhado. Os resultados apresentaram a proeminência de tipos de processos
mostrados nos QUADROS seguintes. Vale ressaltar que o critério de escolha dos
processos-chave por meio do utilitário Aligner se fundamentou nos tipos de
processos do original Stud, conforme destacado na TAB. 4 mais acima, e como
esses processos-chave foram re-textualizados em Garoto. Os resultados, e as
discussões dos mesmos, aparecem a seguir.
QUADRO 15
Processo-chave looked e respectiva tradução
I <protagonista> am <PROREL> sure my face looked <PROREL> strained, so I
<protagonista> relaxed <PROMAT> the muscles of it.
Eu <protagonista> tinha <PROREL> certeza de que o meu rosto estava <PROREL>
rígido, portanto <protagonista> tratei de relaxar <PROMAT> os músculos.
219
O original e sua tradução, como mostra o QUADRO 15, apresentam os
grupos nominais “my face” e “o meu rosto” como portadores dos processos-chave
relacionais “looked” e “estava”, respectivamente. Isso sinaliza o papel discursivo
que as partes dos corpos das personagens, inclusive as do narrador/protagonista
Phil Andros, exercem na caracterização da realidade gay de seus portadores. Em
outras palavras, partes dos corpos, tanto das personagens, quanto de Andros,
executam papéis de participantes diretos, neste caso, vinculados aos processos-
chave “looked” e “estava”. Esse papel discursivo demonstra igualmente que o corpo
tem função primordial na construção experiencial dessas personagens,
demonstrando que no corpus de estudo desta tese os sujeitos gays são agentes
sociais portadores de atributos e qualidades corporais inerentes às suas realidades
de mundo. Tal característica discursiva do corpus de estudo aqui analisado
representa a simbolização de ações sociais engendradas por homossexuais nas
décadas de 1960 e 1970 no contexto norte-americano, bem como no contexto
brasileiro de 1990, como formas de reconhecimento de seus próprios papéis sociais
e do entendimento dos discursos por eles construídos, conforme afirmam Berutti
(2002) e Trevisan (2004).
As personagens gays presentes no QUADRO 16 a seguir, quais sejam, Phil
Andros e seu namorado pedólatra Karl (ver capítulo “Metodologia e procedimentos
metodológicos”), iniciam o ato sexual em um quarto de apartamento. O
narrador/protagonista descreve detalhadamente a cena do ato, tópico deste
excerto, na qual Karl acaricia os pés de Andros antes de se entregar às suas carícias.
Para essa descrição, o narrador usa as partes dos corpos das personagens como
220
elementos ou participantes diretos no construto discursivo de suas realidades de
mundo. Em outras palavras, fragmentos dos corpos das personagens são chamados
à cena do tópico deste excerto para representá-las, como se vida independente
tivessem.
QUADRO 16
Processos-chave got, was, picked, closed, squeezed e took e respectivas traduções
“Yeah, man, sure,” I said, and smirked at him. “Don't you? He got down on both knees on
the floor and lifted up the foot that was not on the bed, put the heel of it in his crotch and
started to unfasten the buckle. Then suddenly he picked up the foot by the boot-heel and
raised it higher and laid his cheek against it, with his eyes closed. And startlingly, for no
reason I could think of, one small crystal tear squeezed itself out of one eye and took a
tentative uncertain course down the dark tan of his cheek.
Ele se ajoelhou no chão e ergueu o pé que não estava na cama, colocou o salto no seu
pau e começou a desafivelar a bota. Então pegou o pé pelo salto, ergueu-o mais alto e
colocou-o contra a sua bochecha, com os olhos fechados. E, de repente, sem nenhuma
razão aparente, uma pequena lágrima cristalina se espremeu de um olho seu e tomou
um rumo tortuoso pelo rosto bronzeado.
Os elementos, ou partes dos corpos das personagens, “knees”, “foot” e “eyes”
são participantes diretos dos processos-chave “got”, “was” e “picked”, e “closed”,
respectivamente. Na verdade, são os joelhos que se comportam, os pés que são
identificados por meio da circunstância de localização “on the bed”, além de
sofrerem a ação de serem levantados, e os olhos que se fecham, como visto pelo uso
do processo “closed”, neste caso, um processo ergativo. Construções equivalentes
podem ser percebidas na tradução.
O QUADRO 17 abaixo mostra o processo-chave comportamental “shrugged”
como escolha léxico-gramatical que tipifica o evento social descrito pela
221
personagem Phil Andros, simbolizando o término de uma relação afetiva que ele
teve com outra personagem gay de nome Pete.
QUADRO 17
Processo-chave shrugged e respectiva tradução
Pete and I lasted about a year, and then he moved on to tighter trousers. I guess he got
tired of me because I never would cooperate much with him. He wasn’t the type that really
turned me on when I wanted a man. We didn’t have a fight or anything like that--in those
circles you just shrugged, you never quarreled -- and we went on being good friends.
Pete e eu ficamos juntos por quase um ano, e então ele foi cantar em outra freguesia. Acho
que se cansou de mim porque eu nunca cooperava muito com ele. Ele não era o tipo que
realmente me excitava quando eu queria um homem. Não tivemos uma briga ou coisa
parecida -- nestes círculos as pessoas apenas se recolhiam, nunca brigavam -- e
continuamos sendo bons amigos.
No original, o processo-chave comportamental “shrugged” representa uma
ação comportante de Phil Andros em um contexto de situação específico o
término de uma relação afetiva entre gays. A ocorrência de tal escolha lexical não é
comum em contextos de situação descritos por Phil Andros. Ao consultar as
ocorrências de “shrugged” em inglês americano no 5-million-Wordbank from The
Bank of English, versão 3.0 de 2003, disponível em CD-ROM e comercializado pela
HarperCollinsPublishers, nenhuma ocorrência de “shrugged” como escolha lexical
que simboliza términos de relações afetivas foi encontrada. Parece, então, que Phil
Andros escolheu esse processo comportamental para caracterizar sua própria
realidade de mundo quando da ação por ele engendrada.
Já a tradução, por seu turno, explicita o significado semântico de “shrugged”
por meio de dois processos materiais em relação de parataxe, quais sejam, “se
222
recolhiam, nunca brigavam”, seguindo o mesmo padrão de textualização do
original “you just shrugged, you never quarreled”. A escolha pela oração paratática
representa a relação de igualdade das duas ações “recolher-se” e “brigar”,
simbolizando, assim, a forma de término de relações afetivas entre gays expressas
neste conto específico. É curioso perceber, entretanto, que o significado semântico
de “shrugged” expressa desimportância e falta de interesse, ao passo que os
significados semânticos de “se recolhiam, nunca brigavam” expressam ações
comportantes de recolhimento e silêncio diante de situações como as descritas no
QUADRO 17 acima. O mais importante, porém, é verificar que a escolha léxico-
gramatical “shrugged” feita por Phil Andros para representar seu desenlace afetivo
coloca seu corpo como elemento constitutivo da representação de suas realidades
de mundo, visto que seus ombros expressam seu sentimento e sua própria atitude
perante seu ex-parceiro. Na tradução, contudo, a escolha léxico-gramatical “se
recolhiam” não expressa esse papel discursivo.
O QUADRO 18 a seguir apresenta grupos nominais como “my trouser”, “to
the lower half of me” e “left corner of his mouth” como, respectivamente,
participante de circunstância de localização e fenômeno.
QUADRO 18
Processo-chave grinned e respectiva tradução
“Yessir,” I said. Mr. Perkins hardly fooled me at all, and by then I’d been around enough to
know that it wasn’t the crease in my trousers that kept drawing his glances down to the
lower half of me. I picked up the duffel bag and grinned at Mr. Rhodes, and said, “This
way, sir,” and went ahead of him to the elevator. When we got there, I looked at the guy
and saw the left corner of his mouth flicker in a kind of half smile.
223
Sim, senhor – eu disse. Mr. Perkins não me enganava. A esta altura do campeonato eu já
tinha bastante tempo de casa para saber que não eram os botões das minhas calças que
atraíam os seus olhares para a parte inferior do meu corpo. Apanhei a mochila, sorri para
Mr. Rhodes e disse: Por aqui, senhor – e fui na sua frente em direção ao elevador. Quando
chegamos lá, olhei para o cara e vi o lado esquerdo de sua boca se curvar numa espécie de
meio-sorriso.
No QUADRO 18, é notória a presença de partes dos corpos das personagens,
bem como de elementos inanimados e abstratos (trousers, the lower half of, smile)
compondo grupos nominais no sistema de transitividade das orações, exercendo o
papel de ora participantes diretos, no caso de “left corner of his mouth” como
fenômeno do processo mental “saw”, ora indireto, como nos casos de “the lower
half of me” e “a kind of half smile”, ambos exercendo o papel experiencial de
participantes de circunstâncias. Dado que a interação entre o
narrador/protagonista Phil Andros e o Sr. Rhodes se dá em um hotel em São
Francisco, no qual Phil era um dos mensageiros do hotel, as escolhas do sistema de
transitividade eleitas para representar as experiências de mundo dessas duas
personagens revelam que o corpo, sobretudo o de Phil Andros, foi fundamental
para que a interação, ou interesse, entre ele e o Sr. Rhodes pudesse acontecer. É
factível, então, que no corpus Stud-Garoto partes dos corpos das personagens, bem
como outros elementos inanimados e abstratos, surjam à cena das interações entre
as personagens como participantes essenciais na construção experiencial das
realidades de mundo das mesmas.
O QUADRO 19 apresenta parte do corpo como participante indireto
presente na circunstância de localização “around the waist”.
224
QUADRO 19
Processos-chave grabbed e went e respectivas traduções
I <protagonista> grabbed <PROMAT> him around the waist and off we <protagonista
+ personagem> went <PROMAT>.
Eu <protagonista> o agarrei <PROMAT> ao redor do peito e lá fomos <PROMAT>
nós <protagonista + personagem>.
Novamente, o corpo parece exercer papel fundamental na construção
discursiva das personagens gays da coletânea de contos investigada. No excerto do
original, o narrador/protagonista executa a ação material de levantar seu parceiro
pela cintura, preparando-se para o ato sexual sobre uma motocicleta, fato que
explica a escolha do processo material “and off we went”, na tentativa de relacionar
a interação sexual entre eles com uma corrida de motocicleta. Ademais, a escolha
pela circunstância de localização “around the waist” sinaliza as características de
sensualidade e erotismo inerentes à ação exercida por Phil Andros. Percebe-se,
então, que as escolhas léxico-gramaticais feitas pelo autor e narrador/protagonista
da obra Stud representam uma espécie de afirmação da atividade sexual entre os
gays em um contexto de situação, especificamente nas décadas de 1960 e 1970 nos
Estados Unidos, em que os apelos de reconhecimento das experiências de mundo
dos gays estavam em ebulição. Ou seja, a realidade gay da época era representada
na literatura como espaço discursivo que permitia aos leitores gays identificarem
suas realidades de mundo com as das personagens.
Já a re-textualização “ao redor do peito” apresenta outra escolha lexical para
“waist”. Ao consultar o 5-million-Wordbank from The Bank of English, versão 3.0
225
de 2003, disponível em CD-ROM e comercializado pela HarperCollinsPublishers,
pude verificar que a colocação “around the waist”, ligada a verbos do tipo “grab”,
“pick up”, “hold”, dentre outros, era bastante freqüente, ao passo que não havia
nenhum exemplo de colocação “around the chest”, equivalente de “ao redor do
peito” em língua inglesa, mas somente ocorrências significativas de “chest”
acompanhadas de pronomes pessoais do tipo “his chest” e “her chest”.
Ao consultar o Banco de Português, composto por 1.182.993 palavras e
disponível no endereço eletrônico http:
//www2.lael.pucsp.br/corpora/bp/conc/index.html, selecionei alguns exemplos de
ocorrências equivalentes à tradução acima. Os resultados foram os seguintes:
pegar sua mão e a apertei forte contra o meu peito
Comecei a relaxar e cruzei as mãos sobre o peito, na postura de
morto
e eu enchi o peito com ar puro
e que se caísse direto em cima do meu peito
com a água batendo no meu peito
Meu coração deu um salto dentro do peito
Esta dor que sinto agora no meu peito
dançando no peito
Deixei cair a cabeça sobre o peito
No meu peito?
nas palpitações do peito que arfa
senti o seu ombro tocar de leve o meu peito
apoiada sobre o meu peito
fazia uma espécie de burburinho no seu peito largo
cruzando as mãos no peito
Apertei-a ao peito e colei os meus lábios aos seus
sem levantar a cabeça, que deixara cair sobre o peito
226
ora espalmando-a em cheio sobre o peito
Embora a maioria das ocorrências do nódulo “peito” sejam circunstâncias
de localização, como na tradução Garoto, em nenhuma das colocações na área de
influência de “peito” apresentadas pelo Banco de Português aparece a colocação “ao
redor do peito”, sugerindo, portanto, que a escolha lexical feita pela tradutora não
se mostra adequada ao caso em questão. Mesmo assim, a ênfase dada ao corpo
também na tradução demonstra que uma das estratégias da agenda editorial da
Edições GLS é trazer à baila do público-leitor a relação das ações materiais eróticas
de homossexuais com um contexto de situação da década de 1990 no Brasil,
intitulado pós-AIDS, que se abria para esse tipo de literatura. Tal afirmativa
referenda-se na posição de Laura Bacellar, Editora-chefa da Edições GLS, em ter
escolhido a obra Stud como uma das representações de entretenimento e
naturalidade da vida de homossexuais masculinos, em entrevista à Revista Cult em
2003.
O QUADRO 20 a seguir possui o mesmo tópico discursivo do QUADRO 19
acima, o qual é caracterizado por um conjunto de atividades orientadas para
propósitos sociais e institucionais da interação em curso entre Phil Andros e
Pasquale (MARTIN e ROSE, 2003: 252). Em outras palavras, o tópico discursivo
expresso no QUADRO 20 abaixo tem como propósito socialmente orientado a
construção discursiva, por meio do sistema de transitividade e das escolhas lexicais
de grupos nominais presentes neste sistema, das realidades de mundo das duas
227
personagens, mais especificamente a representação das realidades pertinentes à
instituição social gay da época.
QUADRO 20
Processo-chave bent e respectiva tradução
Moving as if he were in a trance, he straddled the seat and bent forward. And then I
lashed him tightly to the motorcycle, hands to the axle of the front wheel, ankles to the
axle of the rear one. I pushed the heavy overstuffed chair against the side of the
motorcycle to help balance it better.
Movendo-se como se estivesse em transe, ele se sentou no banco e se inclinou para a
frente. Então eu o amarrei apertado na motocicleta, as mãos no eixo da frente e os
tornozelos atrás. Empurrei uma cadeira pesada contra o lado da motocicleta para ajudar a
equilibrá-la.
As circunstâncias de localização “hands to the axle of the front Wheel” e
“ankles to the axle of the rear one”, com partes dos corpos das personagens (hands
e ankles, respectivamente) como participantes dessas circunstâncias, representam
discursivamente as realidades de mundo de ambas as personagens, mais
especificamente o campo ou tópico da interação em curso – cenas de erotismo
fetichista em que Phil Andros e Pasquale iniciam a relação sexual sobre uma
motocicleta. Essa realização léxico-gramatical representa uma realidade de mundo
muito comum entre as personagens gays do corpus sob análise, fato que caracteriza
essa passagem, como várias outras de Stud-Garoto, como escrita gay. Com efeito,
leitores gays, segundo Harvey (2000a), recorrem à ficção com o intuito de verem
suas próprias experiências de mundo refletidas nessas ficções, da mesma maneira
como pode ser visto no excerto do QUADRO 20 acima.
228
A re-textualização das circunstâncias descritas foi feita por meio de relação
de parataxe entre as partes dos corpos das personagens, neste caso, “mãos” e
“tornozelos” (“as mãos no eixo da frente e os tornozelos atrás”). Essa relação indica
um status de igualdade entre as duas ações, uma a de amarrar as mãos no eixo da
frente e a outra os tornozelos atrás. Partes dos corpos das personagens, portanto,
são elementos essenciais para a construção da realidade social dessas mesmas
personagens e, concomitantemente, de seus leitores (gays).
O QUADRO 21 mostra realizações léxico-gramaticais semelhantes aos
QUADROS anteriores.
QUADRO 21
Processos-chave shook e said e suas respectivas traduções
He <personagem> shook <PROMAT> his head slightly. “No, thanks,” he
<personagem> said <PROVERB>. “Don’t worry about it. I’m on the way to ... to
Enlightenment anyway.
Ele <personagem> fez <PROMAT> um leve meneio de cabeça. -- Não, obrigado ele
<protagonista> disse <PROVERB>. -- Não se preocupe. Afinal de contas, eu estou a
caminho da Iluminação.
O trecho do QUADRO 21 mostra que a meta do processo material “shook” é
“his head”, o que demonstra que a área de influência do processo-chave em questão
o localiza na região limítrofe dos processos comportamentais. Uma outra pista
lingüística que referenda essa característica é a presença da circunstância de modo
“slightly”, a qual comumente ocorre junto a processos comportamentais, como
afirma Halliday (1994: 139). Em virtude da presença de “his head” como meta do
229
processo-chave material “shook”, percebe-se claramente que a personagem executa
uma ação comportante, usando, para isso, parte de seu próprio corpo. Admitindo-
se que os processos comportamentais são, segundo Halliday (1994: 139), processos
cujas características discursivas se aproximam mais de ações, típicas de processos
materiais, do que, na verdade, de comportamentos, no exemplo do QUADRO 21
acima temos a personagem agindo comportalmente sobre si mesma, uma vez que
ela usa parte de seu próprio corpo para tal. A realização léxico-gramatical de “He
shook his head slightly” é, então, definida, conforme Halliday e Matthiessen (2004:
189), como um tipo de ação (comportante) transformativa, isto é, uma ação que
transforma a experiência de mundo das personagens envolvidas na interação. No
caso do excerto do QUADRO 21, Phil Andros tenta convencer a outra personagem,
de nome Pasquale, de que esta é capaz de relacionar-se sexualmente com ele, uma
vez que Pasquale apresentava problemas de libido. Quando Andros propõe uma
forma de ajudá-lo, Pasquale faz um meneio negativo, transformando toda a
interação, a qual toma novo rumo. A representação dessa interação é claramente
visível no sistema de transitividade eleito para realizá-la léxico-gramaticalmente.
A tradução “Ele fez um leve meneio de cabeça”, por seu turno, distancia um
pouco, quando comparado ao original, o processo material “fez” da região limítrofe
dos processos comportamentais, devido ao fato de que a área de influência do
processo “fez” mostra que a meta deste processo é “um leve meneio” e que “de
cabeça” é sua extensão. Isso demonstra que o elemento “de cabeça” está mais
distante da área de influência do processo “fez”, ou seja, seu horizonte (span) é
maior (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004: 38-40; MASON, 1997). Esse tipo de
230
realização léxico-gramatical instancia uma escolha, disponível no sistema da língua
portuguesa, para representar esse tipo de ação comportante.
Além disso, as diferenças sistêmicas de ambas as línguas, inglês e português,
sujeitam as escolhas tradutórias às possibilidades de (re)textualização que o
sistema da língua-alvo proporciona. O corpo, porém, permanece como elemento
presente nos excertos apresentados no QUADRO 21, demonstrando que as
personagens gays da coletânea de contos sob análise utilizam partes de seus corpos
para representarem suas realidades de mundo.
Os trechos do QUADRO 22 abaixo mostram claramente que Phil Andros e
outra personagem representam, juntas, o sensualismo e o erotismo homossexuais
que emergiam no contexto norte-americano da década de 1960 e que, de igual
maneira, buscavam afirmação social. Esta passagem se dá em um quarto de
hospital na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, no qual Phil Andros cede
ao pedido de seu parceiro Karl, hospitalizado e muito enfermo por ter sido vítima
de espancamento. Andros, então, tira sua bota e meia esquerdas e estica seu pé
para que Karl possa acariciá-lo e concomitantemente masturbar-se.
QUADRO 22
Processos-chave said, pulled e took e suas respectivas traduções
“Okay,” I <protagonista> said <PROVERB>, weakening. I was sitting on what was his
left side of the bed, so I <protagonista> pulled <PROMAT> off my left boot. I
<protagonista> took <PROMAT> off the sock and laid it out flat, still warm and damp,
across his eyes and nose. And then I ever so gently swung my leg up and put my foot
beside his face. He turned his head a little to the left, and I sank slowly back on the bed
as wave after wave of pleasure traveled over and through my body. Beside me, under the
covers, I saw his hand move slowly toward his crotch...
231
OK – eu <protagonista> disse, cedendo. Eu estava sentado sobre o seu lado esquerdo da
cama, portanto <protagonista> tirei <PROMAT> minha bota esquerda. <protagonista>
Tirei <PROMAT> a meia e deixei o meu pé esticado, ainda quente e úmido em frente
aos seus olhos e nariz. E então ergui minha perna suavemente e pus o meu pé ao lado de
seu rosto. Ele virou o rosto um pouco para a esquerda e eu me esgueirei devagar para
trás na cama à medida que as ondas de prazer percorriam o meu corpo. Ao meu lado, sob
as cobertas, eu o vi mexer lentamente no seu pau.
As escolhas lexicais presentes no trecho do original Stud do QUADRO 22,
tais como, os grupos nominais “his eyes and nose”, “my leg”, “my foot”, “his face”,
“his head”, “my body”, “his hand” e “his crotch”, todas com pronomes possessivos
indicando as partes dos corpos das personagens e do narrador/protagonista Phil
Andros, indicam o papel discursivo que o corpo exerce na construção das
experiências de mundo das personagens gays dos contos analisados. Essas escolhas
também apontam para as características da variável do campo do registro, ou
variedade funcional da linguagem, que se instanciam textualmente por meio do
sistema de transitividade (participantes, processos e circunstâncias) do corpus de
estudo e, também, por intermédio das escolhas lexicais que textualizam os
participantes mais freqüentes desse mesmo corpus. As partes dos corpos das
personagens, portanto, são escolhas lexicais típicas desse corpus, cujo papel
discursivo parece ser a (re)afirmação de ações sexuais de homossexuais masculinos
polêmicas em um contexto social norte-americano dos anos 1960 e 1970 ainda
discriminador e estigmatizante.
Semelhantes escolhas lexicais como participantes ligados ora a tipos de
processos, ora presentes em circunstâncias ou em orações paratáticas, podem ser
vistas no trecho da tradução Garoto do QUADRO 22, tais como, “o meu pé”, “seus
232
olhos e nariz”, “minha perna”, “seu rosto”, “o rosto”, “o meu corpo” e “seu pau”. A
presença dessas escolhas lexicais na tradução Garoto, seguindo o mesmo padrão de
textualização do original Stud, inter-relaciona a instância textual, realizada pelo
sistema de transitividade do texto traduzido, à variável de campo de um contexto
de situação propício a essas escolhas, ou seja, um contexto de coito, bem como aos
aspectos sociais da década de 1990 no Brasil, os quais se caracterizavam pelas
polêmicas discussões acerca da liberação gay, como bem coloca Trevisan (2004)
em seu livro Devassos no Paraíso. A Edições GLS, ao publicar nessa década a obra
As Aventuras de um Garoto de Programa, reforçava os ideais gays de
reconhecimento de suas práticas sociais como naturais, da mesma forma que as
práticas sociais heterossexuais da pós-modernidade.
Todavia, o QUADRO 23 abaixo mostra uma realidade de mundo um pouco
diferenciada. O trecho do original Stud apresenta uma cena em que o
narrador/protagonista Phil Andros é forçado a ter relações sexuais anais com Ace,
uma personagem negra que vinha sofrendo discriminação racial na Cidade de
Chicago, Estados Unidos, onde ele morava junto com Andros em um quarto de
pensão na periferia da referida cidade. É importante perceber que as escolhas
léxico-gramaticais do trecho em questão que mostram que o narrador/protagonista
se sujeita às exigências de Ace são os grupos nominais relacionados às partes do
corpo de Phil Andros, como no trecho “with one hand at the back of my neck forced
me double over the foot of the bed”. Em outras palavras, as ações são imputadas às
partes do corpo de Ace (“with one hand”); ou seja, o agente da ação é, na verdade, a
mão de Ace, a qual o representa, através da circunstância de meio “with one hand”.
233
Esta última associa-se, por sua vez, à circunstância de localização “at the back of
my neck”, a qual representa a nuca de Phil Andros, personagem que sofre a ação de
“curvar-se”. Assim, as escolhas lexicais de partes dos corpos das personagens
representam as realidades de mundo do erotismo homossexual em ebulição na
década de 1960 nos Estados Unidos, bem como representam as próprias
personagens, construindo, portanto, suas experiências de mundo. O QUADRO 23 a
seguir mostra outros tipos de escolhas lexicais como realizações lingüísticas das
personagens dos contos.
QUADRO 23
Processos-chave said, sweating, unbuckled e grabbed e suas respectivas traduções
“Do like I tell you, you white bastard,” he <personagem> said <PROVERB>. He
<personagem> was sweating <PROCOMP>. He reached for my belt but I
<protagonista> unbuckled <PROMAT> it quickly. He <personagem> grabbed
<PROMAT> the top edge of my pants and peeled them down, and with one hand at the
back of my neck forced me double over the foot of the bed. Then, with the smell of lint in
my nostrils and the oversweet theatrical smell of the cold cream, I felt the incredible pain
begin, and go on and on until with each jolt my eyeballs were producing red stars against
the clenched black curtain of my eyelids and I thought the agony and the ecstasy would
never come to an end...
Faça o que estou lhe dizendo, seu branco desgraçado – Ele <personagem> estava
suando <PROCOMP>. Tentou pegar o meu cinto, mas eu <protagonista> o
desafivelei <PROMAT> rapidamente. Ele <personagem> agarrou <PROMAT> as
minhas calças e as puxou para baixo, e, com uma mão na minha nuca, me forçou a
curvar-me sobre os pés da cama. Então, com o cheiro de algodão em minhas narinas e o
doce e dramático odor do creme, senti a incrível dor começar e crescer até que a cada
impacto minhas órbitas oculares começaram a produzir estrelas vermelhas de encontro à
cortina preta de meus olhos fechados, e eu pensei que a agonia e o êxtase não fossem
jamais chegar ao fim...
Além das escolhas lexicais de partes dos corpos das personagens como
elementos constitutivos de seus papéis sociais, há outras também, como, por
234
exemplo, os grupos nominais “you white bastard”, referindo-se a Phil Andros, no
original, e sua tradução “seu branco desgraçado”, realizando lingüisticamente o
discurso racista predominante naquela época no contexto social norte-americano.
Há igualmente a construção léxico-gramatical que representa o
narrador/protagonista enquanto experienciador de dores físicas anais causadas por
Ace durante o ato sexual, como pode ser visto em “I felt the incredible pain begin,
and go on”, no original, e “senti a incrível dor começar e crescer”, na tradução.
Neste exemplo, o processo mental “felt” e sua re-textualização “senti”
complementam-se, respectivamente, pelas extensões “the incredible pain” e “a
incrível dor”, consideradas, aqui, como participantes diretas dos processos
materiais “begin, and go on” e “começar e crescer”. Essa realização léxico-
gramatical indica que embora Phil Andros seja o experienciador da “incrível dor”,
ele, ao mesmo tempo, está sujeito a ela, uma vez que a dor se torna ator do
processo material “começar e crescer”, cujo paciente da ação é o próprio
narrador/protagonista.
Ademais, a escolha do past continuous “were producing”, no original “until
with each jolt my eyeballs were producing red stars”, e sua re-textualização como
complexo verbal “começaram a produzir”, como expresso em “até que a cada
impacto minhas órbitas oculares começaram a produzir estrelas vermelhas”,
complementam a representação do ato sexual anal gay como uma ação com
características de sofrimento e de degradação. Judith Butler (1993: 226), teórica
norte-americana, feminista e lésbica, afirma que o termo “queer”, na língua inglesa,
do ponto de vista do discurso heterossexual, opera uma espécie de “prática
235
lingüística” que nomeia o sujeito homossexual como abjeto, como um sujeito
patologicamente sujo, devido à prática sexual anal, e vergonhoso, por não condizer
com as normas sociais heterossexuais hegemonicamente estabelecidas e
reconhecidas como legítimas na sociedade ocidental. Phil Andros, em sua coletânea
de contos, principalmente no trecho do QUADRO 23 acima, parece representar
muito bem essa realidade homossexual. Em virtude dessas colocações, percebe-se
que a LSF, sobretudo o sistema de transitividade e sua relação com a variável de
campo do registro, muito tem a contribuir com os estudos gays e lésbicos no escopo
dos Estudos Literários, bem como na área dos Estudos da Tradução.
Construções discursivas semelhantes podem ser vistas no QUADRO 24
abaixo, cujo excerto representa o mesmo tópico, ou campo do discurso, do
QUADRO 23 acima. As escolhas de tipos de processos do QUADRO 24 mostram a
relação discursiva entre o processo-chave comportamental “scowling” e o processo
material “to kneel”. Ou seja, o comportamento de Ace em fazer expressões faciais
que denotavam desapontamento e contrariedade induziu Phil Andros a ajoelhar-se
por entre suas pernas. O contexto de situação desse excerto, isto é, quarto de
pensão em que dois gays se relacionam sexualmente, apresenta as probabilidades
sistêmicas de ocorrências, por exemplo, das circunstâncias de localização “between
his legs”, “from the bed” e “under the armpit”.
QUADRO 24
Processos-chave scowling, started, got e grabbed e suas respectivas traduções
He was scowling. I started to kneel between his legs. Suddenly he got up from the bed
236
and grabbed me under the armpit with one huge hand.
Ele estava me olhando maliciosamente. Fui me ajoelhar entre as suas pernas. De
repente ele se levantou da cama e me agarrou pelas axilas com sua mão enorme.
A re-textualização, por sua vez, traz escolhas léxico-gramaticais um pouco
diferenciadas das do original, devido, em parte, às possibilidades sistêmicas da
língua portuguesa. No entanto, sobretudo no tocante à re-textualização do
processo-chave comportamental “scowling”, a tradutora Dinah Klebe ofuscou o
sentido semântico do processo-chave do original ao re-textualizá-lo como o
processo comportamental “olhando” associado à circunstância de modo
“maliciosamente”.
74
O sentido dessa escolha de transitividade leva o(a) leitor(a)
brasileiro a perceber o tópico do excerto do QUADRO 24 de uma maneira
diferenciada, mais com relação à malícia erótica e sensual do que ao
desapontamento e contrariedade claramente expressos no original por meio do
processo-chave comportamental “scowling”.
As outras escolhas lexicais da re-textualização demonstradas no QUADRO
24, tais como, as circunstâncias de localização “entre as suas pernas” e “da cama”, e
as circunstâncias de meio “pelas axilas” e “com sua mão enorme”, são escolhas
sistêmicas típicas do registro em que se insere o excerto, portanto, escolhas cuja
probabilidade de ocorrência é significativamente alta. De igual modo, essas
escolhas representam realidades de mundo que ultrapassam os limites do texto e
74
O Collins Cobuild Advanced Learner’s English Dictionary, da Editora HarperCollins Publishers,
de 2003, p. 1291, traz a seguinte definição de “scowl”: “When someone scowls, an angry or hostile
expression appears on their face”. O sentido de “scowl”, portanto, não é o mesmo expresso pela re-
textualização “me olhando maliciosamente”.
237
alcançam realidades sociais da comunidade gay dos anos 1960 e 1970 nos Estados
Unidos, as quais são representadas discursivamente nos contos do corpus aqui
analisado. Além disso, a tradução Garoto apresenta construções léxico-gramaticais
que transcendem o texto re-textualizado para representarem realidades do mundo
gay que, não obstante pertencerem a comunidades diferentes das do Brasil,
apresentam situações sociais igualmente presentes na comunidade gay brasileira.
Por fim, em todos os excertos analisados nesta subseção, bem como nos das
subseções anteriores, partes dos corpos das personagens gays, inclusive do
narrador/protagonista, agem, comportam-se, experienciam, se identificam e se
relacionam, sejam como integrantes de núcleos do complexo experiencial, sejam
como núcleos semânticos de grupos nominais que constituem os complexos
oracionais. Neste sentido, conclui-se, também, que a coletânea de contos Stud e sua
tradução As Aventuras de um Garoto de Programa também representam suas
personagens gays por intermédio do agenciamento de partes dos corpos dessas
mesmas personagens. O estudo de caso realizado nesta tese abre, pois, espaço para
pesquisas mais amplas cujo foco de análise seja a investigação de como
personagens gays são representadas no discurso literário e que espaço elas ocupam
no æuvre da escrita gay.
238
COMENTÁRIOS FINAIS
Dentre as críticas apresentadas por teóricos da tradução, como é o caso de
Lawrence Venuti (2002), à aplicação de abordagens lingüísticas em pesquisas neste
campo do conhecimento, as mais freqüentemente enunciadas são as que
caracterizam tais abordagens como “deliberadamente limitadas em seu poder
explanatório” (p. 45), as quais “projetam um modelo conservador de tradução que
restringiria indevidamente seu papel na inovação cultural e na mudança social” (p.
46). Embora a pesquisa de Venuti dialogue com outras vertentes, tais como, os
Estudos Culturais e Pós-Coloniais, vejo, contrariamente às suas ponderações, que o
entendimento da tradução pelo viés da LSF possibilita não apenas perceber as
pistas discursivas que representam textualmente o fenômeno das mudanças
sociais, mas, sobretudo, identificar nos textos as multifacetadas formas discursivas
que promovem essas mudanças. Admitindo-se que textos são, na verdade,
discursos, ou formas de representação, por meio da linguagem, das ações sociais de
indivíduos de determinados contextos socioculturais (HALLIDAY, 1978),
percebemos que traduções são as re-representações de discursos distintos que se
imbricam e se completam. Desconsiderar, pois, as ferramentas que a Lingüística
Aplicada oferece para desvelar aspectos dos textos originais e de suas traduções é
igualmente desconsiderar as possibilidades de identificação de questões sociais
relevantes veiculadas por intermédio de textos e sua conseqüente problematização
e mudança social.
239
A LSF tem sido usada por um número considerável de pesquisas em
tradução e tem-se revelado um campo de estudos bastante profícuo para as
investigações nessa linha de interesse. O que diferencia a LSF das outras
abordagens discursivas dos Estudos da Tradução é precisamente a construção
tripartite que a caracteriza, segundo Christie e Unsworth (2000): (i) todo e
qualquer estudo da linguagem deve orientar-se conforme três funções
significativas, quais sejam, representar experiências de mundo, sustentar relações
entre interlocutores e criar discursos organizados; (ii) devido ao seu caráter
sistêmico, a linguagem se modela mediante um conjunto de escolhas sistêmicas
disponíveis aos usuários da língua, com significados potenciais que possibilitam a
representação de suas intenções comunicativas; e (iii) a dependência do texto de
seu contexto de situação e a visão do texto como unidade de análise coesa e
coerente. Ao levar em conta esses três aspectos da linguagem, o(a) pesquisador(a)
abre um leque de oportunidades analíticas que facilitam suas investigações e que,
de igual modo, potencializam suas análises com ferramentas bem claras e
previamente estabelecidas.
O potencial da LSF pôde ser visto nas análises feitas neste trabalho. A
tentativa de conexão do discurso do texto original e de sua tradução com as
construções sociais do contexto de situação de Stud e sua relação, cerca de trinta
anos depois, com o contexto de situação de Garoto norteou todo o trabalho. Porém,
paralelamente ao enfoque dado às características sociais que condicionaram a
produção de Stud e de sua re-textualização Garoto, a preocupação com a
representação dessas características nos textos tornou-se a base de análise desta
240
pesquisa. Neste ponto, a GSF possibilitou-me perceber a representação de mundo
das personagens gays dos contos através do sistema de transitividade dos mesmos.
Essas explicações já respondem parte da pergunta de pesquisa em que apresentei a
questão sobre as contribuições teóricas e metodológicas da LSF, especialmente o
sistema de transitividade, para as investigações realizadas neste trabalho.
Para a verificação das possibilidades sistêmicas das escolhas feitas pelo
autor de Stud e pela tradutora desta coletânea de contos, Dinah Klebe, o software
WordSmith Tools 4.0 foi eleito como ferramenta metodológica para a análise dos
elementos dos sistemas de transitividade dos corpora paralelos. Assim, após o
tratamento dado ao corpus, desde sua digitalização, correção e anotação manual, o
software possibilitou-me quantificar os dados, mais precisamente, os participantes
e os processos a eles vinculados. Nessa tarefa, as ponderações de Berber Sardinha
(2002) acerca das dificuldades pertinentes ao processo de preparação de corpora
traduzido em relação ao seu original foram percebidas sobretudo no trabalho
moroso e minucioso da anotação manual do corpus desta tese.
No entanto, além da digitalização e correção do corpus, a anotação manual
dos processos e participantes proporcionou-me verificar as ocorrências de cada
item anotado. Esse procedimento metodogico já prepara o corpus desta pesquisa
para ser investigado, futuramente, à luz de outras abordagens de base Sistêmico-
Funcional, como, por exemplo, segundo Goatly (2004), em cujo trabalho este
sistemicista aplica a transitividade e a análise crítica do discurso para o estudo do
discurso literário de Harry Potter and the Philosopher's Stone. Além disso, a
241
preparação do corpus desta pesquisa possibilita-me investigá-lo sob outras óticas
teóricas, como, por exemplo, a partir da abordagem de Harvey (2000a) sobre o
papel das escolhas lexicais feitas em traduções para a representação da identidade
gay em textos traduzidos, dando privilégio maior aos processos relacionais.
Sobretudo, a anotação manual do corpus investigado nesta tese oferece-me
condições textuais para perceber, numa pesquisa futura, tanto o texto original
Stud, quanto sua tradução Garoto, enquanto discursos saturados de relações
ideológicas que tentam representar seus atores sociais (as personagens gays dos
contos) como elementos representativos da cultura gay de suas épocas (para os
primeiros passos em busca de uma abordagem crítica aos estudos de traduções
homoeróticas, ver RODRIGUES JÚNIOR, 2004). Van Dijk (1998) afirma que
ideologias são representações sociais compartilhadas cuja função principal é
representar grupos sociais específicos. Para esse teórico, o estudo do discurso é
fundamental para a identificação das ideologias e suas relações com ações sociais
mais amplas, especialmente para a observação de como as ideologias constituem os
discursos que as representam e, concomitantemente, os atores sociais que as
adotam.
Além disso, o software disponibilizou, em linhas de concordância, as
ocorrências significativas dos processos-chave do corpus Stud-Garoto identificados
pela ferramenta Keywords, quando da comparação deste corpus com um corpus de
referência significativamente maior para as duas línguas, inglês e português. Nesse
procedimento, percebi que as ocorrências de processos-chave materiais, tanto em
Stud, quanto em Garoto, eram significativas, indicando que as personagens,
242
inclusive o narrador/protagonista, Phil Andros, são agentes de ações. O mesmo
aconteceu para os processos-chave comportamentais, fato discursivo que revela
uma característica bem marcada do corpus Stud-Garoto: personagens
marcadamente comportantes, em cujas ões comportantes as partes de seus
corpos se comportavam como se fossem agentes independentes. Tal característica
discursiva do corpus já responde à pergunta de pesquisa que questiona o papel da
transitividade na investigação da representação das personagens gays do corpus
Stud-Garoto, abrindo novas possibilidades de investigações de outras coletâneas de
contos gays, traduzidas e publicadas principalmente pela Edições GLS, com o
intuito de verificar se as características discursivas de Stud-Garoto se aplicam a
essas coletâneas. Se tal ocorrência for verossímil, surge a hipótese de essas
características discursivas de contos traduzidos pela referida Editora fazerem parte
de sua agenda política enquanto Editora que veicula esse tipo de gênero do
discurso específico.
As ocorrências de outros processos-chave no corpus Stud-Garoto, quais
sejam, os processos mentais, verbais e relacionais, seguiram padrões análogos em
ambas as obras. Essas observações, juntamente com os comentários do parágrafo
anterior, respondem parte da questão sobre a relação, no âmbito discursivo do
sistema de transitividade, entre o original e a tradução, uma vez que não houve
diferenças significativas entre Stud e Garoto nesses aspectos. Isso indica, portanto,
que a tradutora, Dinah Klebe, procurou seguir os padrões de textualização do
original, embora as diferenças inerentes aos sistemas de ambas as línguas, inglês e
243
português, tenham-na levado, em alguns momentos, a escolher construções
discursivas disponíveis no sistema da língua portuguesa.
Outra facilidade proporcionada pelo software WordSmith Tools foi o uso
que fiz da ferramenta Concord, a qual disponibiliza em linhas de concordância o
nódulo, neste caso, os processos-chave e seus participantes, escolhido para análise
e as ocorrências de colocados em seu entorno. Além disso, usei também o utilitário
Aligner para disponibilizar as ocorrências de processos-chave no original e na
tradução e suas respectivas comparações. Elemento central para essas análises foi a
conceituação de área de influência de Mason (1997). A partir de seus estudos
experimentais, este teórico chegou à conclusão de que os limites textuais de um
nódulo são assimétricos, muito dependendo dos tipos de palavras que compõem os
nódulos. No caso desta pesquisa, tentei ampliar, dentro dos limites que as linhas de
concordância do software me possibilitavam, os horizontes (spans) dos processos-
chave, a fim de verificar seus colocados e, conseqüentemente, a influência que as
palavras ligadas a esses processos exerciam sobre eles. Em vários exemplos
analisados, os processos-chave, sobretudo os materiais e os comportamentais,
influenciavam outros processos, dependendo de suas localizações nas regiões
limítrofes, ou horizontes, ou spans, de cada processo-chave.
Os resultados obtidos a partir dessas análises respondem à pergunta de
pesquisa acerca do papel do campo do discurso e de suas relações com os contextos
de situação de Stud e de Garoto, por intermédio da análise do sistema de
transitividade, uma vez que as ocorrências significativas de processos
244
comportamentais e materiais no corpus Stud-Garoto, com fragmentos dos corpos
das personagens exercendo o papel discursivo de comportantes e atores,
respectivamente, parecem ser típicas desse corpus. Essas características parecem
também representar as realidades sociais de um contexto de situação norte-
americano que polemizava sobremaneira as práticas sociais da comunidade gay
(BERUTTI, 2002; FACCHINI, 2005). De igual modo, a presença proeminente de
processos materiais e comportamentais na tradução, com partes dos corpos das
personagens agindo e se comportando, revela traços sociais de reafirmação, por
meio de ações e comportamentos, da figura do gay na sociedade brasileira, após o
turbulento período em que a epidemia da AIDS se alastrou, caracterizando os
homossexuais, tanto norte-americanos, quanto brasileiros, como os responsáveis
pela “peste guei” (TREVISAN, 2004: 435-438).
Ademais, a ocorrência considerável de processos comportamentais no
corpus Stud-Garoto parece, repito, ser típica desse corpus, uma vez que algumas
pesquisas com base no sistema de transitividade da léxico-gramática hallidayana,
como são os casos, para citar apenas alguns deles, de Martin e Rose (2003),
Montgomery (1993) e Simpson (1993), no contexto internacional, não levam em
consideração os processos comportamentais. Já no contexto nacional, por exemplo,
Bueno (2005) sublinha, sustentando-se em Halliday e Matthiessen (2004), que as
regiões limítrofes dos processos comportamentais são tênues, em interface com
processos materiais e mentais, como expresso nesta pesquisa. Talvez sejam estas as
razões pelos desinteresses de algumas pesquisas, sobretudo internacionais, com
relação aos processos comportamentais.
245
No corpus Stud-Garoto, os processos comportamentais se ligam, em sua
maioria, a experiências de mundo das personagens gays quando em interações que
sinalizam sensualidade e erotismo. Tal característica discursiva de Stud-Garoto
revela que os corpos das personagens, enquanto elemento central no
comportamento das mesmas, é fator primordial para o entendimento de suas
práticas sociais. Neste sentido, a LSF aplicada aos dados desta tese revelou um
traço discursivo típico do corpus aqui investigado, abrindo um novo campo de
discussões para a análise discursiva da escrita gay no âmbito dos Estudos da
Tradução, conforme proposta por Keith Harvey (1998, 2000a, b).
Por fim, os resultados desta pesquisa, orientados pela LSF, possibilitaram
perceber que, em inúmeros casos, a construção discursiva das personagens gays
acontecia através de seus corpos, uma vez que eram eles atores de processos
materiais, comportantes de processos comportamentais e portadores ou
identificados de processos relacionais. A construção discursiva das personagens
gays da coletânea de contos investigada, por intermédio de fragmentos de seus
próprios corpos, revela um aspecto central para os Estudos Gays e Lésbicos em
pesquisas nacionais (SANTOS e GARCIA, 2002) e internacionais (BUTLER, 1993;
LEAP, 1997; LIVIA e HALL, 1997) e, sobretudo, para teóricos da tradução
interessados nessa temática (HARVEY, 1998, 2000a, b). Essa contribuição revela-
se promissora por abrir um espaço de discussão, no contexto brasileiro, que
privilegia a interface entre os Estudos da Tradução, a LSF e o discurso literário gay.
Ao admitirmos, segundo Bazerman (2005: 61), que “[o]s gêneros da cultura
literária fornecem alcances específicos de experiências e interações compartilhadas
246
que desempenham funções particulares para o indivíduo e a sociedade”, perceber
como as personagens gays do corpus Stud-Garoto representam suas realidades de
mundo em associação com o campo do discurso que tipifica essas ações é, na
verdade, representar realidades de mundo de seus próprios leitores, sejam estes
últimos gays ou simplesmente seus simpatizantes.
247
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