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O mundo da Rampa do Mercado se delicia com os folhetos de Cuíca de Santo
Amaro. E ali, próximo ao Elevador Lacerda, vós o encontrareis, ao poeta. Seu
chapéu de coco, envelhecido de muitos invernos chuvosos, os cartazes cobrindo as
costas do peito, o rosto alegre, cantando seus versos. para os que passam (...) versos
anti-fascistas de Cuíca de Santo Amaro dizem da guerra e dos homens que lutam
pela liberdade contra o terror.
Esses olhares que se voltam e se debruçam sobre a figura mítica de Cuíca atraem
também olhares de fora: o retrato do poeta pintado com as tintas da sedução da pena de Jorge
Amado fisga outros, como Curran, que, fascinado pela forma como “essas práticas rituais
subalternas, aparentemente consagradas a reproduzir a ordem tradicional, transgridem-na
humoristicamente,” debruça-se sobre a história de Cuíca, dando-lhe maior visibilidade.
Roberto Pires, cineasta, é outro que se volta para o poeta, inserindo-o no filme baiano A
Grande Feira, em 1962. Neste, Cuíca representa a si próprio, anunciando as desgraças da
feira de Água de Meninos, cujo nome inspirou o título da produção. Esclareça-se que essa
inserção se apóia na proposta do Cinema Novo
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que, na década de 1950, começa a produzir
filmes tematizando o Nordeste, propondo-se a ser uma “retórica de conscientização, de
estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 273). A produção executiva desse filme é do Glauber
Rocha, que busca inspiração nas temáticas, mitos e na estrutura narrativa do cordel para fazer
um cinema que propale a conscientização acerca dos problemas da fome e escravidão
regionais.
Cuíca também encantou o escritor Dias Gomes, a tal ponto que serviu de inspiração
para o escritor criar o personagem Dedé Cospe-Rima, no livro O Pagador de Promessas. Dias
Gomes (apud AMARO, 2000, p. 13) retrata Cuíca da seguinte forma:
Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe-Rima. Negro, cabeleira
pixaim, sob o surrado chapéu-coco – um adorno necessário a sua profissão de poeta
– comerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês,
romances populares em versos. E dois cartazes, um no peito, outro nas costas. Num
se lê: “ABC da mulata Esmeralda – uma obra prima” e no outro “Saiu agora, tá
fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na lua”.
Essa imagem de Cuíca é também delineada pelo depoente João Valentim:
Ele era bem o Grande Otelo: aquela figura baixinha, de gravata borboleta, de
paletó, com aquele ar bonachão, com o cabelo todo, chapéu coco, simpático...um
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O Cinema Novo, na Bahia, tem como precursor Walter Silveira. A proposta desse cinema é representar a
realidade brasileira, mostrando-a em sua essência, o que contribui, segundo Albuquerque Júnior, para reforçar
um perfil identitário nordestino miserável, sofrido. Maiores esclarecimentos vide ALBUQUERQUE JÚNIOR,
1999, p. 263-293.