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SINÉIA MAIA TELES SILVEIRA
LINGUAGEM, SOCIEDADE E CULTURA: UMA INCURSÃO LÉXICO-
SEMÂNTICA EM TEXTOS DE CUÍCA DE SANTO AMARO
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Souza Castro
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional, da Universidade
do Estado da Bahia/ Campus V, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional.
SANTO ANTÔNIO DE JESUS - BAHIA
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA Biblioteca Central da UNEB
Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes CRB: 5/592
Silveira, Sinéia Maia Teles
Linguagem, sociedade e cultura: uma incursão léxico-semântica em textos de Cuíca de
Santo Amaro / Sinéia Maia Teles Silveira . Santo Antônio de Jesus, 2007.
114f.
Orientador: Maria Lúcia Souza Castro.
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia Departamento de Ciências
Humanas. Campus V. 2007.
Contém referências e anexos.
1. Lexicologia. 2. Semântica. 3. Historia oral. 4. Cultura popular. 5.Literatura de cordel
brasileira. 6. Cuíca de Santo Amaro I. Castro, Maria Lúcia Souza. II.Universidade doEstado
da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 412
4
SINÉIA MAIA TELES SILVEIRA
LINGUAGEM, SOCIEDADE E CULTURA:
UMA INCURSÃO LÉXICO-SEMÂNTICA EM TEXTOS DE CUÍCA DE SANTO AMARO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional.
Santo Antônio de Jesus, 01/ 06/ 2007.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Maria Lúcia Souza Castro (Orientadora) Univ. do Estado da Bahia - UNEB
Profa. Dra. Rita de Cássia Ribeiro Queiroz - Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Profa. Dra. Edleise Mendes Oliveira Santos Universidade Federal da Bahia - UFBA
5
DEDICO A
Deus, pela sabedoria e força
Hamilton, meu esposo amado, amigo, parceiro, pela cumplicidade na arte de viver e por ter
despertado em mim a curiosidade científica por Cuíca de Santo Amaro.
Débora e Yasmin, filhas amadas, ouvintes e incentivadoras incansáveis.
Meus pais, Carlos e Lita e meus irmãos, pelas orações e apoio.
Lúcia Castro, irmã de alma, pela sábia orientação, paciência, rigor científico e partilha.
Deije, amiga-irmã, pela doce presença e constante incentivo.
Adauto, Gercílio, Valentim, Luiz, Barramedas, Monsenhor Gaspar Sadoc, Vilma e Dagmar,
depoentes que partilharam suas memórias sobre Cuíca de Santo Amaro.
6
AGRADECIMENTOS
Agradecer é presentificar o sentimento de gratidão pelas sementes de incentivo, esperança e
conhecimento, plantadas por aqueles que transitam por nosso viver, contribuindo para a
colheita de um fruto de trabalho. E para agradecer, é preciso rememorar:
A angústia para definir o objeto da pesquisa e da alegria do encontro com a resposta.
Obrigada, Hamilton, por vivenciar comigo esses momentos e por ter me iluminado, falando-
me da sua admiração por Cuíca de Santo Amaro, desafiando-me a vencer meus limites e
incertezas;
O sofrimento pela espera de resultados na seleção e o incentivo, apoio, confiança depositados
por Hamilton, Deby, Mimim (auxiliares mirins na recolha e digitação dos depoimentos),
Deije, Suzy, Lúcia, Bárbara, amigos incondicionais;
As disciplinas cursadas no primeiro ano, o desafio de realizar pesquisas, seminários e o apoio
de professores do mestrado, incentivadores incansáveis: Charles DAlmeida Santana,
Cristóvão de Cássio da Trindade de Britto, Daniel Francisco dos Santos, Ely Souza Estrela,
Paulo de Assis de Almeida Guerreiro, Wilson Roberto de Mattos, Walter da Silva Fraga
Filho;
Agarimpagempor cordéis de Cuíca em bibliotecas, fundações, internet, livros e a alegria
em encontrá-los, em sua maioria, na Fundação Cultural da Bahia, onde fui acolhida com
carinho, e no Museu Casa do Sertão, representado pela colega de mestrado Cristiana Barbosa
de Oliveira Ramos;
A árdua etapa para aprender a definir, pesquisar, delimitar, seguir rumos, traçar caminhos. E
incansavelmente, estava Lúcia Castro, com observações oportunas, seu tino de pesquisadora,
seu perfeccionismo, apoio, soube dar muito de si e ao mesmo tempo desafiar-me para a
culminância desse nosso trabalho, fruto de muita cumplicidade;
O encantamento com a Memória Oral e a vontade de captar as vozes que ouviram o Cuíca, e o
encontro com os depoentes. As dúvidas sobre quem ouvir e a certeza alcançada quando
7
Hamilton me fez conhecer seu amigo de infância, o Luiz Penna, na cidade Baixa. A
empolgação quando este me levou aos outros depoentes, num circuito amigo que materializou
a lembrança do poeta;
A necessidade de ser ouvida, de discutir idéias, trocar experiências, dirimir dúvidas, contando
com a paciência de Hamilton (esposo), Hamilton Rodrigues dos Santos, Deije Machado de
Moura (colegas de mestrado), Carla de Quadros (colega de trabalho), Sally Inkpin (pela
escritura do abstract) sempre dispostos a partilhar;
As inúmeras despesas com pesquisas, viagens, livros e o apoio recebido através da bolsa de
estudos (bolsa PAC), financiada por minha Universidade do Estado da Bahia UNEB
(atrevo-me a usar um possessivo porque esta instituição faz parte da minha vida, afinal, aí fiz
a graduação, a especialização, agora o mestrado e também atuo como docente no Campus V).
A todos, eterna gratidão!
8
Atravessando não sei quantos anos, fica de Cuíca a lembrança
na minha mente do seu tipo esquisito para chamar a atenção,
da sua voz meio rouca, e principalmente da sua fortaleza. Era
um camarada corajoso. Naquele tempo, viver como Cuíca
viveu, afrontando às vezes grandes personalidades, tocando
em muitas chagas, deixando à vista tantas injustiças, ele foi
um homem corajoso. Porque hoje deputado, senador, [...] não
têm coragem de dizer a verdade, imagine um homem do povo,
pobre como Cuíca, dissertar sobre as injustiças do tempo! Ele
foi sempre o mestre da vida. Cada um ensina: o padre, o
mestre, professor, todo mundo ensina. Também os simples,
os pobres, abandonados, sofredores, também ensinam. Tem
lugar para todos os Cuícas todos do mundo e para todos os
Ruis Barbosas do mundo e ainda sobra lugar.
(Depoente: Monsenhor Gaspar Sadoc)
Cuíca de Santo Amaro fotografado por Pierre Verger.
9
RESUMO
Faz-se uma incursão léxico-semântica por alguns cordéis licenciosos e sensacionalistas de
Cuíca de Santo Amaro. Discute-se também o processo de tessitura identitária deste. Explana-
se como o poeta desenha em seus folhetos a fisionomia sócio-cultural de Salvador e de
diversas cidades do Recôncavo Baiano, desnudando em seus versos seu itinerário e também o
retrato da sociedade baiana configurado entre as décadas de 1940 a 1960. O corpus consta de
designações sexuais metafóricas, cujos processos semânticos são analisados, levando-se em
conta a relação entre língua e cultura. A preocupação central deste estudo é analisar os
recursos semânticos empregados por Cuíca, focalizando os mais significativos e perceber qual
a contribuição do contexto extralingüístico para a fixação do significado das palavras. A
análise evidencia como o poeta maneja a língua com criatividade, inovando-a, na medida em
que cria lexias e capta outros sentidos para as existentes, revelando um uso produtivo do
léxico. O trabalho situa-se no campo da Lexicologia e da Semântica. Subsidiariamente foi
feita uma interface com a História e a Memória Oral: cordéis remetem à história, esta é
ressignificada pela memória de alguns contemporâneos do poeta: ambas associadas à
Semântica dos textos, sentidos que se cruzam, elucidam e ressignificam a história vivida.
Utilizam-se as discussões teóricas apresentadas por Ullmann (1987) e os estudos
empreendidos por Bakhtin (1993), Lyons (1981), Lowenthal (1998), Hall (2003), Garcia
(1982) e Coelho (1980).
Palavras-chave: Lexicologia - Semântica Memória Oral Cultura Identidade.
10
ABSTRACT
This study involves a lexicon-semantic analysis of some of the licentious and sensationalist
cordéis* of Cuíca from Santo Amaro. The complex process of the development of Cuícas
identity is also discussed. The socio-cultural physionomy of Salvador and of several other
cities in the Recôncavo Baiano is described in the verses revealing Cuícas experiences and
painting a portrait of Bahian society during the decades of 1940 to 1960. The corpus of the
study is composed of metaphorical sexual designations, whose semantic processes are
analysed in the light of both language and culture. Our main intention was to analyse the
semantic resources employed by Cuíca and to focus on his most common semantic strategies,
as well as to try to ascertain the contribution of the extralinguistic context for the fixation of
word meaning. Our analysis testifies to the poet´s creative use of language in the innovative
way in which he creates expressions and captures new meaning for ones that already exist.
The study encompasses the fields of Lexicology and Semantics. The study also encompasses
the areas of History and Oral Memory: cordéis reproduce historical aspects which are
rekindled in the memories of the contemporaries of the poet. Both of these areas are
associated with textual semantics by which different meanings emerge and interplay
throwing light and new meaning on past lives. Theoretical discussions presented by Ullmann
(1987) and the studies by Bakhtin (1993), Lyons (1981), Hall (2003), Lowenthal (1998),
Garcia (1982) and Coelho (1980) have been used to carry out his study.
Key-words: Lexicology Semantics Oral Memory Culture Identity.
*cordel/cordéis are poetic pamphlets produced by the poets themselves.
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1: Depoente João da Silva Valentim 44
FIGURA 2: Depoente Adauto Antônio Costa 44
FIGURA 3: Depoente Francisco José da Silva Barramedas 46
FIGURA 4: Depoente Luís Penna Seara 47
FIGURA 5: Depoente Vilma Correia dos Santos 47
FIGURA 6: Depoente Monsenhor Gaspar Sadoc 50
FIGURA 7: Depoente Gercílio Montenegro da Silva 56
12
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 Metáforas designadoras de órgão sexual masculino 80
QUADRO 2 Lexias agrupadas em função dos atributos: formato e tamanho 81
QUADRO 3 Lexias agrupadas em função dos atributos: cortante e perfurante 83
QUADRO 4 Lexias agrupadas em função do atributo: dureza 83
QUADRO 5 Lexias agrupadas em função dos atributos: formato, dureza e comprimento 86
QUADRO 6 Lexias agrupadas em função da associação com fogo 88
QUADRO 7 Metáforas designadoras de órgão sexual feminino 90
QUADRO 8 Lexias agrupadas em função do atributo: alimento 90
QUADRO 9 Lexias agrupadas em função do atributo: odor forte 93
QUADRO 10 Metáforas designadoras de relações heterossexuais 96
QUADRO 11 Metáforas designadoras de relações homossexuais 99
13
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO 14
2 PERCURSO DA PESQUISA 18
2.1 O corpus escolhido 18
2.2 Caminhos palmilhados 20
2.2.1 Fontes escritas 21
2.2.2 Um mergulho em outras fontes 22
2.3 Etapas da pesquisa 23
3 PROCESSOS SEMÂNTICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES 25
3.1 Estudos de base semântica 26
3.2 Base teórica 29
4 O LÉXICO E A MEMÓRIA RESSIGNIFICANDO A HISTÓRIA DE CUÍCA
DE SANTO AMARO 40
4.1 Tessitura identitária 41
4.2 Formas de luta: transgressão e irreverência 42
4.3 Cotidiano de tensões e contradições 46
4.4 Uso da linguagem enquanto identidade 52
5 CORDÉIS DE CUÍCA: UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO 69
5.1 O corpo do corpus: formas e configurações 70
5.1.1 Cordéis de Cuíca: um retrato sócio-cultural 70
5.1.2 Cordéis de Cuíca: uma abordagem léxico-semântica 77
5.1.2.1 Metáforas designadoras de órgão sexual masculino 80
5.1.2.2 Metáforas designadoras de órgão sexual feminino 90
5.1.2.3 Metáforas designadoras de relações heterossexuais 96
5.1.2.4 Metáforas designadoras de relações homossexuais 98
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 105
14
REFERÊNCIAS 109
ANEXO 113
15
1 APRESENTAÇÃO
A língua metaforiza a própria vida, já que é um organismo vivo que pulsa
dinamicamente, transformando-se, enriquecendo-se a partir do contato com realidades
diversas, numa troca dialética com outras línguas, outras culturas.
Toda essa dinamicidade da língua pode ser perceptível principalmente no universo
lexical, visto como uma representação da herança cultural e acervo do saber vocabular de uma
comunidade sócio-lingüístico-cultural. Esse é um dos níveis mais instáveis da língua, já que
sempre surgem novos termos, revestem-se os existentes de outros sentidos, restringem-se
aqueles existentes, enfim, há uma grande volatilidade, na medida em que os falantes fazem
um trabalho social para referenciar e dar sentido o mundo que os rodeia. Sendo assim, não há
uma língua pronta e acabada que nomeie a realidade, ou espelhe o mundo, mas sujeitos ativos
que interagem entre si, dialética e dialogicamente, numa relação sócio-cognitiva processada
numa dada sociedade, numa dada cultura.
Pode ser possível fazer uma identificação de usos lexicais que caracterizam a forma de
ver o mundo de uma comunidade, as crenças que povoam a vida dos seus falantes, os valores
que estes pregam, os costumes que perpetuam e particularizam o seu existir. O léxico, por
conseguinte, descortina não só os traços lingüísticos, as evoluções semânticas, como também
o lado cultural nele existente, o modus vivendi de um povo, a forma como este enxerga e
estrutura o mundo circundante. E, na medida em que isso acontece, ou seja, em que há
recortes das realidades de mundo, também representa fatos culturais, realidades sociais.
Nesse sentido, pode-se compreender o léxico como um dos subsistemas da língua mais
revestido de dinamicidade. Na medida em que registra o que há de novo, o léxico reflete as
transformações pelas quais as comunidades, os grupos sociais passam, ora criando, ora
recriando, outras vezes revestindo o sentido já existente de traços semânticos específicos, os
quais podem explicitar traços sócio-culturais de uma determinada comunidade. Levando em
consideração essa dinamicidade, pesquisar um léxico possibilita, além de estudar e
caracterizar a língua, mergulhar nos meandros da cultura dos seus falantes, contribuindo para
compreender seu universo de valores, sua cosmovisão.
Os indivíduos, no uso do léxico, buscam adequar a língua àquilo que desejam expressar,
de modo que possam traduzir em palavras as suas idéias, a sua subjetividade e emoção. Nem
sempre o inventário lingüístico à disposição dá conta da amplitude do seu dizer, o que os leva
a criar novos elementos na língua ou ressignificar os já existentes. Nesse processo de
16
ajustamento lingüístico às suas necessidades de expressão, de nomeação do mundo que os
cerca, de se fazerem entender, provocam modificações no nível semântico das palavras, ora
ampliando, ora restringindo, ora inovando seu significado.
Esse uso produtivo e criativo da língua é muito perceptível na Literatura de Cordel. Com
intrepidez, os poetas populares ousam dizer a sua palavra, mostrando, pelos versos que criam,
a riqueza, as peculiaridades, a beleza, a poesia e o humor que residem na língua portuguesa,
potencializando o uso desta. Como sujeitos da sua própria linguagem, esses indivíduos não se
deixam vencer pelo preconceito lingüístico que poderia atingi-los, deslocá-los do seu lugar de
sujeito. Antes, a utilizam produtivamente como veículo de denúncia, mas também de
entretenimento, procurando alcançar um público diversificado.
O presente estudo levou em conta o léxico dos cordéis produzidos por Cuíca de Santo
Amaro em meados do século XX, restringindo-se a pesquisa àqueles escritos entre as décadas
de 1940 a 1960. Utilizaram-se especificamente os folhetos que abordam as temáticas
sensacionalista e licenciosa. Buscou-se analisar os recursos semânticos neles perceptíveis,
focalizando os mais significativos, e também perceber qual a contribuição do contexto para a
fixação do significado das palavras, no momento em que este poeta cria artifícios lingüísticos
para representar o mundo que o rodeia. E, nesse seu dizer, o que pode ter contribuído ou
interferido nos processos de inovação de sentidos.
Focalizaram-se apenas os aspectos léxico-semânticos, utilizando-se os conceitos da
Lexicologia e da Semântica. A Lexicologia é uma área da Lingüística voltada para o estudo
do léxico, centrando-se na estrutura das palavras, no que tange aos aspectos forma e conteúdo.
A Lexicologia é utilizada por ser fronteiriça com a Semântica, já que, para se voltar para o
léxico e a palavra, é preciso levar-se em conta sua dimensão significativa e esta disciplina, por
sua vez, por fazer fronteira com a Lingüística e os estudos literários e estudar o significado de
palavras e frases, cabendo-lhe explicar as regras gerais que condicionam a interpretação
semântica dos enunciados. Serão focalizados os aspectos léxico-semânticos, tendo-se como
suporte as discussões teóricas feitas por ULMANN (1987).
No segundo capítulo, descreve-se a metodologia de trabalho. Traça-se o caminho
percorrido para o desenvolvimento da pesquisa. Comenta-se como se chegou às fontes, quais
critérios foram empregados para a seleção do corpus, apontando-se a base teórica para a
análise dos dados. Discute-se também a utilização de outra fonte (Memória Oral),
restringindo-se o uso desta para a discussão empreendida no quarto e quinto capítulos, neste
último especificamente no tópico relativo ao retrato sócio-cultural. Por fim, salientam-se os
instrumentos empregados.
17
No terceiro, faz-se uma reflexão acerca da riqueza do universo lexical, como este, desde
os primórdios, suscita paixão e curiosidade das pessoas, dos estudiosos, pois, pelo léxico, o
homem capta e revela o mundo que o cerca. O nível lexical possibilita aos indivíduos
enxergar o mundo, já que esse nível da língua é o que mais permite transparecer valores,
costumes, crenças de um determinado grupo social, sendo um elemento identificador. Ainda
nessa parte, apresenta-se o fundamento teórico para a pesquisa, bem como alguns estudos de
base semântica já publicados. Em seguida, explicita-se a teoria embasadora da pesquisa, de
Stephen Ullmann, fazendo-se uma incursão nesta a partir do livro do autor, intitulado
Semântica: uma introdução à ciência do significado. Esclarece-se, ainda, que os estudos de
Bakhtin (1993), Marques (1990), Baldinger (1997), Garcia (1982) e Coelho (1980)
nortearam subsidiariamente a pesquisa, sempre que foi possível um diálogo entre eles. Os
estudos formulados por Ullmann, Baldinger e Marques foram empregados nas discussões
semânticas. As contribuições de Garcia e Coelho foram complementares a estas,
especificamente quando se discutiu sobre as figuras de linguagem, e Bakhtin foi inspiração
para os comentários sobre as imagens grotescas presentes em alguns cordéis trabalhados.
O quarto capítulo traz uma apresentação do produtor dos cordéis, Cuíca de Santo
Amaro: sua trajetória de vida, como ele vivencia, marca e demarca os lugares que percorre
divulgando o seu trabalho. Procura-se apreender qual o uso que o cordelista faz da língua,
como se dá a recepção desses cordéis pelo público, enfim, discute-se como se deu a
construção identitária do poeta, buscando-se captar um pouco do seu contexto de vida a partir
da intersecção entre os seus escritos e os depoimentos de alguns dos seus contemporâneos.
Para isso, utilizou-se a contribuição da fonte oral como auxiliar ao estudo lingüístico.
No quinto capítulo, faz-se uma incursão léxico-semântica por alguns cordéis licenciosos
e sensacionalistas do poeta, analisando-se as metáforas sexuais. Inicialmente, faz-se uma
relação entre o teor de alguns cordéis e o contexto sócio-cultural, evidenciando-se como tais
folhetos registram a forma de ver o mundo da sociedade da época.
No sexto capítulo, são apresentadas as considerações finais da pesquisa, salientando-se
o uso produtivo e criativo que Cuíca de Santo Amaro faz do léxico e como este permite ao
leitor captar um pouco do contexto sócio-cultural da época.
Evidencia-se, neste trabalho, a riqueza do estudo léxico-semântico, já que este permite
perceber o esforço permanente que o falante faz para ajustar as palavras àquilo que deseja
expressar. E quando o léxico disponível não abarca a multiplicidade de idéias, sentimentos,
pensamentos, o indivíduo modifica, amplia, cria, faz associações entre forma e sentido de
palavras, enfim, explora a linguagem com criatividade. Outra rica possibilidade é vislumbrar
18
a visão de mundo, os valores e a herança sócio-cultural de uma dada sociedade numa pesquisa
desse âmbito.
19
2 O PERCURSO DA PESQUISA
Na construção e registro da nossa história, a Literatura de Cordel tem desempenhado um
papel relevante, na medida em que os poetas populares recriaram e recriam fatos do cotidiano,
transformando em versos acontecimentos que marcam uma determinada época, deixando
desenhados perfis sócio-político-culturais do seu povo, da sua região, singularizando-a.
Esses poetas populares, apesar de serem em sua maioria semi-analfabetos, sabem
manejar a língua de forma singular, inclusive inovando-a, dispondo com criatividade dos
recursos por ela oferecidos. Esse tipo de produção literária constitui-se rica fonte de pesquisa,
devido ao uso produtivo do léxico, principalmente pelas criações neológicas de sentido,
abundantes polissemias, metáforas, dentre outros recursos, registrando poeticamente o
cotidiano e revelando nuances da vida sócio-cultural de um povo.
Essa riqueza do universo cordelístico despertou o interesse em analisar os cordéis numa
perspectiva semântica, já que há um uso produtivo do léxico e uma diversidade de sentidos a
serem explorados pelo leitor.
2.1 O corpus escolhido
A escolha do corpus deu-se a partir de informações sobre o poeta Cuíca de Santo
Amaro. Essas informações foram dadas pelo Sr. Hamilton Santos Silveira
1
, que, ainda
menino, conheceu e se encantou pelo cordelista, a quem sempre relembra, propagando as
histórias vividas e os títulos dos cordéis de Cuíca, extremamente sugestivos e criativos,
segundo o informante.
A partir desse primeiro contato com histórias sobre o poeta e a sua produção, sentiu-se
o desejo e a curiosidade em conhecer a trajetória ímpar desse poetarepórter, como ele mesmo
se definia, que cantava em versos a história da Bahia, desenhando a fisionomia política, social
e cultural de Salvador e de diversas cidades do Recôncavo, além de denunciar com uma
1
Hamilton Santos Silveira é esposo da pesquisadora. Ele é natural de Salvador, nasceu na cidade Baixa, local
mais freqüentemente percorrido pelo poeta Cuíca de Santo Amaro. Hamilton, ainda menino, quando saía
acompanhado pela sua mãe, Hilda Doralice Silva, via sempre o poeta divulgando cordéis e confessou que ficava
completamente seduzido pelo Cordelista, não só pelos versos (ainda retém alguns títulos na memória), mas
também pela voz forte e rouca do poeta. Tamanha admiração contagiou a pesquisadora, frutificando o presente
estudo.
20
linguagem satírica os desmandos políticos, sendo a voz dos excluídos e marginalizados, como
ele mesmo apregoava.
Assim, partiu-se para um estudo preliminar de textos do poeta, os quais, ao serem lidos,
despertaram um misto de curiosidade e encantamento não só pela sua figura, mas
principalmente pelos seus versos virulentos, controversos, recheados de abundantes figuras de
linguagem, plenos de sentidos, portadores de muitas imagens criativas e sugestivas.
Essa curiosidade frutificou o presente estudo, adotando-se neste uma perspectiva
léxico-semântica, tendo-se como objeto de pesquisa os textos produzidos por Cuíca de Santo
Amaro em meados do século XX, especificamente aqueles produzidos entre as décadas de
1940 a janeiro de 1960. Ressalve-se, portanto, que o texto é literário, repleto de figuras de
linguagem, porém, será feita uma abordagem léxico-semântica.
Dentre a sua produção, há os folhetos políticos, os licenciosos e os sensacionalistas.
Delimitou-se como corpus os folhetos sensacionalistas e os licenciosos, pois, após a leitura,
percebeu-se que os cordéis políticos, principalmente aqueles laudatórios, feitos sob
encomenda para divulgar políticos da época, são menos expressivos.
Conforme sentido dicionarizado em Cunha (1986), licencioso provém do Lat. Licentiosu
adj, desregrado; libertino; dissoluto. Nessa linha, enquadram-se como cordéis licenciosos
aqueles que versam sobre fatos picantes, engraçados, de insinuação sexual, de conotação
humorística, muitas vezes pejorativa. Os folhetos licenciosos de Cuíca, por exemplo,
documentam a vida sexual de meados do século XX, bem como deixam entrever diversos
tipos de preconceitos.
Já a expressão sensacionalista é definida por Ferreira (1986) como algo ou alguém que
causa sensação. São cordéis que divulgam ou exploram os escândalos, os fatos chocantes, de
modo exagerado ou espalhafatoso. Esse viés é muito explorado por Cuíca naqueles cordéis
em que ele narra histórias escabrosas, escândalos ocorridos na sociedade baiana, isso com
uma linguagem provocante, satírica e também muito rica devido ao jogo de palavras, imagens
utilizadas, ironias, chistes.
Os folhetos licenciosos e sensacionalistas, desta forma, apresentam uma maior riqueza
para esta pesquisa de cunho semântico, por veicularem um número significativo de expressões
metafóricas, de neologias, muitas palavras e expressões portadoras de designações averbadas
nos dicionários, porém, veiculando outros sentidos, revelando um uso bastante criativo do
léxico.
21
2.2 Caminhos palmilhados
A pesquisa aqui traçada teve um cunho descritivo-analítico. Inicialmente, foi feito um
mapeamento dos folhetos do poeta, selecionando-se como corpus aqueles que se
enquadravam em dois eixos temáticos: folhetos licenciosos e sensacionalistas, focalizando-se
os aspectos léxico-semânticos. Em seguida, procedeu-se a um levantamento dos itens lexicais
que apresentaram recursos semânticos relevantes para o estudo delineado. Por fim, elaborou-
se uma listagem com as ocorrências, identificando aquelas expressões que serviram de base
para o trabalho definido.
Além desse aspecto lingüístico, sentiu-se a necessidade de conhecer o produtor desses
folhetos, Cuíca de Santo Amaro. Para contemplar tais aspectos, utilizou-se também a
contribuição da fonte Oral como auxiliar ao estudo lingüístico e essa intersecção centrou-se na
análise de depoimentos de indivíduos que refizeram, através de um mergulho na memória, os
passos de Cuíca, seu contexto de vida, a construção da sua identidade, as impressões que ele
deixou no seu público leitor, a forma como praticou os espaços percorridos, transformando-os
em espaços enunciativos.
Fez-se, assim, uma interface com a Memória Oral, elegendo-se como método de análise
o qualitativo. Através dessa metodologia, comportamentos, técnicas, valores e ideologias das
pessoas podem ser revelados, pois ela explora a memória destas, organizando e traduzindo
para o outro aquilo que está nas suas lembranças, formado pela fusão entre o mundo interior
individual e o social. Não esquecendo que essa tradução se processa através da linguagem,
elemento que também ratifica o caráter social da memória, pois reduz, unifica e aproxima, no
mesmo espaço histórico e cultural, vivências tão diversas como o sonho, as lembranças e as
experiências recentes. Como afirma Queiroz (1988, p. 16), o relato oral está, pois, na base da
obtenção de toda a sorte de informações e antecede a outras técnicas de obtenção e
conservação do saber.
Recorreu-se aos conhecimentos dessa área especificamente no capítulo em que o poeta é
apresentado, discutindo-se como se deu a construção da sua identidade, já que a memória
retém eventos e fatos portadores de significados na vida dos indivíduos, os quais rememoram
suas experiências passadas, produzindo uma narrativa histórica de suas trajetórias. A memória
constitui-se, portanto, alicerce fundamental da construção identitária tanto individual quanto
coletiva. E essa memória, construída sobre a história vivida, é verbalizada pela Memória Oral.
Buscou-se também captar a influência desses cordéis no contexto e no público leitor.
22
2.2.1 Fontes escritas
No que concerne às fontes escritas, algumas dificuldades foram encontradas, dentre elas
o difícil acesso aos cordéis produzidos por Cuíca de Santo Amaro, já que muitos destes
desapareceram. Fez-se um levantamento bibliográfico do poeta, chegando a duas fontes
bastante elucidativas: Curran (1990) e Matos (1998), dois pesquisadores que se debruçaram
sobre a figura do poeta, numa perspectiva histórica, e que compilaram alguns cordéis por ele
produzidos. Estes pesquisadores apontam, ainda, algumas fontes bibliográficas relevantes e
ricas informações sobre a vida do poeta.
Os cordéis produzidos por Cuíca de Santo Amaro foram, aos poucos, sendo mapeados.
Inicialmente, em pesquisas feitas na Internet, teve-se acesso à cópia de dois cordéis e a
referências aos livros citados (de Matos e de Curran), os quais traziam cópias de alguns
cordéis. Uma contribuição de inegável valor veio da Fundação Cultural da Bahia, que possui
um ótimo acervo sobre o poeta. Por fim, o Museu Casa do Sertão, em Feira de Santana, que
mantém um arquivo digitalizado de folhetos do Cuíca de Santo Amaro. Chegou-se, assim, a
um número de setenta cordéis.
Depois do processo de busca, as seguintes etapas foram traçadas: a leitura desses
cordéis, agrupando-os por tipo (político, licencioso e sensacionalista); a definição dos dois
últimos como foco do estudo; a escolha e digitalização de trinta e sete folhetos definidos
como corpus
2
, para o estudo lingüístico, este inicialmente feito a partir de uma pesquisa do
significado dos itens lexicais selecionados nos seguintes dicionários: pequeno dicionário
brasileiro de língua portuguesa (FERREIRA, 1986); dicionário etimológico Nova Fronteira da
língua portuguesa (CUNHA, 1986) e dicionário de Gíria (GURGEL, 1998); recorreu-se a
outros folhetos para a discussão acerca da tessitura identitária do poeta; a análise dos
processos léxico-semânticos, focalizando as evoluções semânticas nele perceptíveis,
buscando-se levantar os recursos lingüísticos considerados relevantes. Posteriormente, fez-se
um levantamento dos itens lexicais correntes nos textos do autor citado, analisando-se
também a influência do contexto extralingüístico no processo de inovação semântica.
Desses itens lexicais, foram selecionadas dezenove lexias designadoras de órgão sexual
masculino; oito de órgão sexual feminino; cinco de relações heterossexuais; oito de relações
homossexuais, totalizando quarenta lexias. Após esta seleção, fez-se consulta aos dicionários
2
A relação dos títulos utilizados está arrolada no anexo.
23
citados, verificando-se se as designações selecionadas estavam registradas ou não. Em
seguida, as designações escolhidas foram organizadas em quatro grupos: designações
metafóricas para órgão sexual masculino; designações metafóricas para órgão sexual
feminino; designações metafóricas para relações heterossexuais; designações metafóricas para
relações homossexuais. O primeiro quadro subdividiu-se em cinco: lexias agrupadas em
função dos atributos formato e tamanho; lexias agrupadas em função dos atributos cortante e
perfurante; lexias agrupadas em função do atributo dureza; lexias agrupadas em função dos
atributos formato, dureza e comprimento; lexias agrupadas em função da associação com
fogo; O segundo desdobrou-se em três sub-grupos: lexias agrupadas em função do atributo
alimento; lexias agrupadas em função dos atributos aparência e funcionalidade.
Depois da categorização do corpus, procedeu-se à análise semântica, fazendo-se uma
interlocução com o contexto cultural, apresentando-se o contexto lingüístico das lexias,
situando-as nos trechos dos cordéis. Esclareça-se que foi mantida a convenção escrita
empregada pelo poeta em todos os trechos de cordéis citados ao longo do texto.
2.2.2 Um mergulho em outras fontes
A leitura dos cordéis traz à tona denúncias de fatos, crítica a alguns costumes, tabus,
preconceitos, formas de enxergar o mundo, as pessoas, suscitando no leitor diversas
indagações relativas ao tempo em que os fatos ocorrem e o que pode ter contribuído para essa
visão de mundo.
Esses questionamentos apontaram a necessidade de se investigar quem foi esse poeta,
como se deu sua tessitura identitária, de captar as vozes que ouviram a sua voz, que
vivenciaram esse mesmo período, experienciaram parte dessa história. Assim, chegou-se à
possibilidade de se enfocar também as fontes orais: os cordéis remetendo à história, a história
ressignificada pela memória daqueles que entrecruzaram o caminhar do poeta. Semântica dos
textos associada à Memória Oral: sentidos que se cruzam, elucidam, recuperam parte da
história vivida pelo produtor desses cordéis.
Através do depoente Hamilton Santos Silveira chegou-se ao segundo entrevistado, na
Cidade Baixa. Este, por sua vez, lembrou-se de um amigo de infância que também conhecera
o poeta, informando o endereço desse amigo. E, dessa forma, um entrevistado foi indicando
outro, formando-se um circuito de informações e depoimentos extremamente relevantes para
24
a pesquisa, já que cada depoente deixou entrever sua percepção a respeito do poeta, além de
esboçar sua visão sobre os acontecimentos narrados nos cordéis por ele produzidos, bem
como sentimentos e emoções em relação ao tema enfocado. Isso se deu no momento em que
construíram suas narrativas, complementando as fontes escritas, na medida em que trouxeram
à tona ecos da memória captadores e registradores de significados diversos sobre o tema.
A utilização dessa metodologia de pesquisa, centrada na coleta de depoimentos de
contemporâneos do poeta, foi realizada a partir dos passos a seguir descritos. Após contato
com as fontes orais, delimitou-se o número de oito informantes. Estes variaram em grau de
escolaridade (dois deles têm nível superior; três possuem o segundo grau completo; três têm
primeiro grau incompleto) e em sexo (seis homens e duas mulheres). Tais variáveis não foram
levadas em consideração, porém, podem contribuir para evidenciar como pessoas de
diferentes graus de escolaridade e gênero enxergam o poeta e a sua produção literária.
No primeiro contato com os depoentes, esclareceu-se o objetivo da entrevista, a
dinâmica do trabalho a ser realizado (entrevista não estruturada), solicitando-se a permissão
para a gravação desta. Propôs-se aos depoentes que se sentissem à vontade para falar livre e
espontaneamente sobre Cuíca de Santo Amaro. A entrevistadora pediu aos entrevistados que
deixassem fluir suas lembranças acerca do poeta. Procurou ouvir atentamente os depoimentos
e, de forma ética, evitou induzir respostas ou fazer julgamento de valor.
Em algumas entrevistas, no entanto, foi necessária a proposição de alguns
questionamentos curtos, a partir dos quais os depoentes iam discorrendo sobre como
conheceram Cuíca de Santo Amaro, em quais locais o viam, como se davam esses encontros.
Sendo assim, não se estabeleceu um padrão rígido de entrevista, pois o procedimento variou
de acordo com a situação comunicativa.
Numa etapa posterior, foi feita a transcrição das entrevistas, mantendo-se a linguagem
dos narradores. Após isso, fez-se a análise dos depoimentos colhidos e o mapeamento das
informações enriquecedoras para a discussão acerca do processo de construção da identidade
do poeta.
2.3 Etapas da pesquisa
Para a pesquisa lingüística, foram seguidas as seguintes etapas: levantamento
bibliográfico, consultas a livros, jornais e reportagens de inegável contribuição, que
25
retrataram o percurso, as peculiaridades da vida e obra do pesquisado, e que, principalmente,
veicularam seus folhetos. Imprescindíveis também foram os dicionários de Língua
Portuguesa, Etimológico e de Gíria para a definição dos itens lexicais selecionados.
Na fase de compilação e análise dos dados, foram empregados os meios eletrônicos
pertinentes, tais como: microcomputador Duron, impressora multifuncional Lexmark X1100,
CD-R de 48x80 min, com 700MB (para cópias de segurança) e papel ofício A-4 para
impressão dos dados. Para as entrevistas, utilizou-se gravador e fitas microcassete MC-60.
26
3 PROCESSOS SEMÂNTICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES
Antes de ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus
e era Deus. Assim, desde o princípio, a Palavra estava com Deus.
Evangelho de S. João, cap. 1, v. 1
Depois que o Eterno formou da terra todos os animais selvagens e todas as aves, ele
os levou ao homem para que pusesse nomes neles. E eles ficaram com os nomes que
o homem lhe deu.
Gênesis, cap. 2, v. 20
Desde os primórdios da humanidade, o homem sente a necessidade de nomear o mundo
circundante, talvez numa tentativa de captar a essência das coisas, de compreender aquilo que
o cerca e instiga a sua fértil imaginação. Isso se dá nas mais diversas civilizações, em todos os
espaços.
Na epígrafe, nota-se essa curiosidade, esse desejo de captar a essência da própria
palavra, de entender a formação do mundo pela Palavra, que aí é a personificação de um Ser
superior, criador dos céus e da terra, na perspectiva cristã: a palavra precedendo a criação e,
pela palavra, o Criador passando para o homem a tarefa de nomear, de identificar os seres
viventes.
A palavra, portanto, revela-se como um elemento que desperta a fascinação humana. É
cantada em prosa e verso, nas mais diversas situações, aguçando a curiosidade e o desejo de
entendê-la. O universo lexical, recheado de palavras de todos os tipos, tamanhos e sentidos,
descerra o mundo das idéias, desvendando mistérios, (re)nomeando sentimentos e sensações.
Pelo léxico, o homem capta o mundo. E esse mundo vai se revelando, aos poucos, pela
palavra, deixando entrever a cosmovisão dos falantes, seus sentimentos, seu modo de viver e
existir. Nesse sentido, o léxico acumula as aquisições culturais que particularizam um
determinado grupo social.
No léxico, diversos sentidos se imbricam, palavras se enroscam, às vezes nutrindo-se de
uma mesma raiz, mas revelando outras nuances; outras vezes, distanciam-se, surgindo
rebeldes de outras matrizes, porém, brincalhonas, confundem, dizendo a mesma coisa por
diferentes maneiras; fingem morrer, para mais tarde surgirem imperiosas, com o mesmo ou
outro sentido; em outros momentos, são aplaudidas, amadas, elevadas; depois, simplesmente
27
deixam de impressionar, perdendo sua força, à medida que novas realidades pedem novas
palavras que consigam dar conta de descrevê-las com intensidade.
Esse âmbito da linguagem, povoado de sentidos, mudanças, variações, tem suscitado
questionamentos, provocado a imaginação também de pesquisadores que se debruçam sobre
as palavras, buscando captar como se dá o seu processo de criação, de inovação, e se
questionam, desde a Antiguidade: as palavras surgem arbitrariamente, ou motivadas por
fatores diversos? Se são motivadas, quais fatores contribuem para isso? E o que contribui para
que umas sejam arbitrárias, sem ter qualquer conexão entre som e sentido, enquanto outras
impregnam-se de tonalidades emotivas, a ponto de fazerem eclodir os mais diversos
sentimentos?
E essa inquietação frutifica estudos diversos, empreendidos em épocas distintas, os
quais apontam possibilidades. Pesquisadores discutem, divergem entre si, elaboram teorias,
enfim, usando a palavra, buscam entender como esta se forma e como gera sentidos.
3.1 Estudos de base semântica
Os fenômenos ligados ao significado são bastante diversos e complexos. Essa
complexidade já começa a se delinear a partir da própria amplitude do termo. Por conta disso,
as investigações de base semântica se configuram em um caminho árduo, o que muito tem
contribuído para uma menor produção de pesquisa, nessa área, em relação a outros domínios
da linguagem.
Mesmo em face dessas dificuldades, alguns pesquisadores têm ousado adentrar nessa
área de investigação científica, contribuindo para dirimir dúvidas, tratar dos problemas
semânticos, suscitar curiosidade científica e, principalmente, ampliar a divulgação dos
progressos alcançados no domínio dos estudos semânticos.
Dentre esses pesquisadores que incursionaram pela área da Semântica, serão citados
alguns que fazem uma abordagem acerca da Lexicologia e da Semântica, domínios da
linguagem voltados para os problemas teóricos que embasam o estudo científico dessa área.
Apresentam, tais estudiosos, resultados de estudos que investigam questões léxico-semânticas
no âmbito da Língua Portuguesa do Brasil.
Ferreira (1994) desenvolve um estudo léxico-semântico, tendo como base a carta
lingüística 63 RÓTULA, do Atlas Lingüístico de Sergipe, contemplando 16 localidades deste
28
estado. Ela comprova o registro de diversas formas de referência à expressão rótula,
verificando, no dialeto dessas localidades rurais, a existência de metáforas de caráter popular
concernentes à expressão citada, as quais remetem a um só conteúdo semântico. Comenta
Ferreira que isso vem confirmar um polimorfismo lingüístico que se faz muito mais presente
nos falares rurais, provavelmente por estarem mais distantes da influência coercitiva da escola
e dos meios de comunicação.
Castro (1996), em sua dissertação de mestrado, presta significativa contribuição para os
estudos de base léxico-semânticos, ao empreender a pesquisa denominada Atualidade e
mudanças semânticas no léxico rural da Bahia. A autora discorre sobre os fatores
condicionantes que atuam no processo de mudança semântica no léxico pesquisado e para isso
utiliza, como corpus, cartas lingüísticas do Atlas Prévio dos Falares Baianos (APFB) e do
Atlas Lingüístico de Sergipe (ALS) que dizem respeito ao campo semântico “O homem,
além dos dados fornecidos pelos sujeitos da pesquisa. Ela apresenta, como fruto desse estudo,
resultados que confirmam a ocorrência de variações de significado, assim como aponta que
algumas bases lexicais estão em processo de desuso.
Quem também oferece uma contribuição relevante é Isquerdo (1998), no trabalho
intitulado Vocabulário do seringueiro. A autora faz uma abordagem da Lexicologia, ciência
que investiga o léxico, ocupando-se da teoria que embasa o seu estudo científico. Isquerdo
comenta ainda que, a despeito de grande parte das lexias terem a sua origem em formas
lingüísticas já existentes, são acrescentados traços semânticos motivados, provavelmente por
condicionantes sócio-culturais específicos do meio. Seu estudo contribui significativamente
para mostrar que há uma interação entre elementos lingüísticos e não-lingüísticos, o que gera
significado contextual das diferentes lexias.
Outra pesquisadora que investiga questões acerca do léxico no âmbito da Língua
Portuguesa do Brasil é Barbosa (1998). Esta desenvolveu a pesquisa “Da neologia à neologia
na literatura, destacando pontos relativos aos processos de estruturação vocabular, de modo
especial àqueles relativos ao âmbito do discurso literário. Ela afirma que neologia e
neologismo são relativos às variações diacrônicas, diatópicas, diastráticas e diafásicas. A
autora discorre, ainda, sobre a dinâmica lexical, normas, sociedade e cultura, mostrando a
relevância de estudos de inovação lexical, pois nesse processo dinâmico é possível observar
claramente as transformações pelas quais passa o sistema de valores que um grupo partilha.
A autora mostra, também, como a origem dos signos e a sua função social estão
estreitamente ligadas às necessidades sociais do grupo. Estudar esses processos permite
detectar traços importantes dos grupos sociais, seus objetivos, métodos, práticas, bem como
29
conseguir informações sobre suas fontes históricas, daí ser o universo léxico uma fonte de
novos valores, novos recortes culturais.
Outro estudo bastante enriquecedor é desenvolvido por Oliveira (1998). Em seu
trabalho, ela colhe dados que comprovam a criação de vocábulos, por alguns indivíduos,
motivados por fatores de ordem geográfica, física, social e cultural, atestando, assim, o social
atuando na representação da realidade. Nesse estudo fica evidente a necessidade de se levar
em conta a influência que o ambiente exerce na formação de uma língua, na medida em que o
contato entre língua e realidade circundante contribui para gerar a imagem de mundo
internalizada pelos indivíduos, daí a pertinência de se estabelecer relações entre os estudos
lingüísticos e os fatores sócio-culturais.
Aragão (2005), no artigo intitulado “O lingüístico e o cultural nos contos populares
paraibanos, faz uma discussão sobre as relações entre língua, sociedade e cultura,
esclarecendo que os limites entre elas são bastante tênues. A autora empreende um estudo de
base léxico-semântica enfocando os falares nordestinos a partir dos contos populares
paraibanos. Ela traça como objetivos a geração de novos mecanismos suplementares de
ensino-aprendizagem para a população rural, o incentivo à criação textual, bem como a
divulgação da cultura e da literatura populares. Aragão utiliza vinte e cinco contos populares
narrados por quinze informantes. Tais contos são delimitados como corpus e analisados numa
perspectiva léxico-semântica. O resultado aponta a relevância da criatividade lexical da
linguagem empregada nesses contos, perceptível a partir da presença de neologismos, de
lexias simples com conotação diferente da original, de lexias compostas e complexas
estruturadas a partir de lexias simples, às quais são atribuídos novos sentidos. A estudiosa
constata a presença de variados processos de formação de palavras na linguagem de tais
contos, o que contribui para o enriquecimento do léxico de uma língua. Pondera, por fim,
como a partir desta é possível enxergar a visão de mundo, os valores e crenças de uma dada
comunidade.
30
3.2 Base teórica
A presente pesquisa tem como suporte o estudo semântico proposto por Ullmann
(1987), em seu livro intitulado Semântica: uma introdução à ciência do significado.
Complementarmente são citados os estudos feitos por Bakhtin (1993), Marques (1990),
Baldinger (1997), Garcia (1982) e Coelho (1980).
Como um dos objetivos traçados neste trabalho é analisar a influência do contexto
extralingüístico para a fixação do significado das palavras selecionadas, também são
utilizadas as discussões empreendidas por Lyons (1981) sobre a relação entre língua,
sociedade e cultura.
Ullmann, na obra citada, estabelece como objetivo principal fornecer informações
acerca do progresso da Semântica. Faz um balanço das realizações alcançadas no passado, da
investigação atual e das tarefas futuras. Comenta que, durante a última década, cresceu de
forma considerável o interesse por esta área do conhecimento, ampliando-se a investigação a
respeito dos fatos semânticos.
No que tange à origem das palavras, Ullmann traça um panorama, mostrando que, desde
o século V a.C., os filósofos gregos demonstravam curiosidade em entender o universo da
linguagem, buscando captar a essência dos fenômenos ligados a tal questão. Entre eles, havia
os naturalistas, que acreditavam haver uma relação entre som e sentido, e os
convencionalistas, que criam ser o significado uma questão de tradição e convenção. Estes
defendiam ser arbitrária a relação entre palavras e coisas.
Entre os lingüistas modernos, Saussure deu mais relevo à arbitrariedade do signo, à
convencionalidade das palavras. Atualmente, sabe-se que todos os idiomas contêm palavras
arbitrárias e opacas, sem conexão entre som / sentido, e as motivadas e transparentes, que
mantêm esse tipo de relação.
No embate entre essas duas concepções a respeito da origem das palavras, surgem vários
estudos, revelando-se, entre os Antigos, uma curiosidade e uma preocupação em compreender
as questões inerentes ao significado. Ullmann cita que, no século V a.C., Proclus, filósofo
neoplatônico, debruçou-se sobre as mudanças semânticas, estabelecendo distinções entre
alguns tipos básicos, como a mudança cultural, a metáfora, o alargamento e a restrição de
significado.
Além desses, os olhares dos Antigos se voltam para outros focos, como o caráter vago
das palavras e os seus diversos empregos, atentando que a mesma palavra pode apresentar
31
diversos sentidos, assim como múltiplas palavras conseguem veicular o mesmo sentido. Esses
são alguns dos aspectos que até hoje despertam a atenção e interesse de pesquisadores, o que
evidencia, como bem assevera Ullmann, que o interesse e as conjecturas elaborados pelos
gregos e romanos sobre a palavra influenciaram, de certa forma, a semântica moderna.
Ullmann (1987, p. 12) ressalta que, apesar de os Antigos terem contribuído para uma
reflexão sobre o tema, dois fatores foram extremamente decisivos para o surgimento da
semântica, enquanto ciência do significado, em meados do século XIX: primeiro, o
surgimento da filologia comparada e da lingüística científica em um sentido moderno;
segundo, a influência do movimento literário do Romantismo, na medida em que, nessa fase,
os escritores se debruçam sobre as palavras, evidenciando-as em suas múltiplas nuances, em
suas várias faces, contemplando-as tanto em seu arcaísmo quanto ao seu exotismo.
Balzac, citado por Ullmann (1987, p. 15), traduz com eloqüência o fascínio que a
palavra exerce sobre o homem, inclusive antecipa, com agudeza de espírito, a necessidade de
uma ciência que a estudasse. Introduz tal necessidade na abertura de sua novela Louis
Lambert:
Que belo livro não se escreveria contando a vida e as aventuras de uma palavra? (...)
Todas estão marcadas por um vivo poder que recebem da alma e que lhe restituem
pelos mistérios de uma acção e de uma reacção maravilhosas entre a palavra e o
pensamento (...) Mas este assunto exige talvez uma ciência completa! (BALZAC,
apud ULLMANN, 1987, p. 15)
As investigações sobre as palavras trazem à baila diversas conjecturas sobre o conceito
de significado. Várias são as teorias que procuram dar conta de tal conceito. Ullmann diz que
há uma ambigüidade muito grande revestindo o termo significado, porém, isso tende a
desaparecer, caso a atenção seja limitada ao significado das palavras.
De modo geral, o autor indica a existência de duas escolas de pensamento na atualidade:
a analítica ou referencial, que busca a apreensão da essência do significado, e a operacional,
que se volta para o estudo das palavras em ação. Ele ressalta que o significado de uma palavra
só pode ser averiguado a partir do estudo do seu uso e chama a atenção do investigador para a
necessidade de se começar uma pesquisa a partir da reunião de um número adequado de
contextos, permitindo-se que o ou os significados surjam dos próprios contextos. Alerta,
ainda, para o fato de que as duas vertentes não são excludentes, mas complementares.
Marques (1990, p. 7), por sua vez, alega que essa complexidade que reveste o conceito
de significado é um dos motivos que complica a investigação científica de base semântica.
Para ela, não há, na Lingüística, uma resposta inequívoca que abarque o conceito de
32
significado, não sendo consensual sequer a terminologia a ser adotada, já que uns chamam de
significado, outros de significação, ou até mesmo de sentido. Ela critica o tratamento que os
lingüistas têm dispensado ao tema, aduzindo que as respostas dadas são diretas e
preestabelecidas, revestidas de ambigüidade.
Na verdade, as investigações sobre o significado foram impulsionadas e ganharam força
em decorrência do surgimento da lingüística moderna. Esta passa a ver a língua como uma
estrutura bastante organizada, tendo em sua constituição elementos que mantêm entre si uma
interdependência, além da idéia de que, para modelagem dos pensamentos, as palavras
desempenham um papel bastante significativo.
As palavras são tão significativas na estrutura da língua que há um ramo específico da
Lingüística para estudá-las, que é a Lexicologia, voltada para o estudo cientifico do léxico.
Esse ramo pesquisa como as palavras se estruturam e funcionam. Além disso, busca analisar
as relações existentes entre o nível lexical de uma dada língua e a sociedade e a cultura, daí
sua relevância para o presente estudo.
Sabe-se que, na realização das palavras, é possível haver variações de ordem fonética e
semântica. Neste último nível, a variação liga-se diretamente à questão da regionalidade, da
temporalidade e dos usuários. Tais fatores podem favorecer a inovação semântica. Sobre esses
processos evolutivos da palavra, Ullmann tece considerações valiosas, as quais embasam os
estudos aqui pretendidos.
A polissemia, por sua vez, é outro elemento desencadeador de flexibilidade na língua,
no momento em que uma dada palavra adquire um outro sentido, ou até mesmo vários outros,
sem, contudo, perder o original. Sobre isso, Baldinger (1997, p. 39) diz que uma mesma
palavra pode apresentar mais de um significado e a mesma imagem acústica suscitar
realidades distintas, conteúdos diversos, o que é muito perceptível no texto literário. Neste, a
palavra é burilada, revestindo-se de traços polissêmicos, buscando-se a multissignificação,
multiplicando-lhe os valores semânticos.
Os contextos ambíguos, por sua vez, também podem favorecer, em um primeiro
momento, duas interpretações de sentido. Por fim, a estrutura de um vocabulário, por ser
instável, por agregar novos elementos mais facilmente, contribui para a perda ou aquisição de
significados.
Ullmann (1987, p. 65) aborda também a relevância dos contextos lingüístico, de
situação e cultural para o estudo de uma língua. Explana que qualquer pesquisa desta natureza
deve ser conduzida simultaneamente com o estudo da cultura e do meio social, já que o
significado completo e o tom de certas palavras só podem ser captados se os colocarmos no
33
seu contexto cultural. Por conta disto, a Semântica moderna começou também a aperceber-se
mais precisamente do contexto para melhor apreensão do significado das palavras.
Para o autor, mesmo aquelas palavras mais impregnadas de simplicidade têm facetas
que mantêm uma dependência do contexto verbal e de situação, como também da
personalidade do seu falante. Baldinger (1997, p. 40) também ressalta a relevância do
contexto e alega que, portando uma palavra vários significados, o interlocutor se valerá do
contexto para determinar o específico a cada situação.
Há, na língua portuguesa, exemplos vários que confirmam essa importância do
contexto. Basta citar algumas palavras que, para terem os sentidos captados, dependem
diretamente do contexto. Dentre elas: manga, que pode ser: manga de camisa - parte de
vestuário que reveste o braço; manga de candeeiro revestimento de vidro que serve de
anteparo às chamas do candeeiro; manga, verbo - terceira pessoa do presente do indicativo do
verbo mangar; manga fruta; manga pasto, onde se coloca o gado; dente, que remete a:
dente - parte do corpo humano, localizada na boca; dente de leão flor; dente parte do alho.
Por conta disso, Ullmann ressalta a necessidade de o pesquisador levar em consideração
ambos os contextos, já que o situacional abrange todo o fundo cultural, que tem um papel
relevante na determinação do significado das palavras. Explicita, ainda, que na Lingüística
moderna isso foi bastante ampliado, sendo investigado de forma mais sistemática e
aprofundada.
Lyons (1982, p. 274) comunga com o posicionamento adotado por Ullmann (1987, p.
105) acerca da relevância do contexto, na medida em que aponta uma relação intrínseca entre
linguagem, sociedade e cultura. Defende que a língua tem um significado social, posto que é
utilizada para propiciar o estabelecimento e a manutenção de papéis e relações sociais.
Comenta que muitas palavras, para serem completamente entendidas, necessitam estar
situadas no contexto das culturas nas quais elas se encaixam, apontando um imbricamento e
uma interdependência entre língua, sociedade e cultura.
Levando em consideração tais aspectos, Lyons apresenta o estudo da linguagem como
interdisciplinar. Afirma, dentre outras coisas, que o conhecimento da própria língua nativa é
transmitido culturalmente, havendo uma interdependência entre o fator cultural e o emocional
da linguagem, o que certamente contribuirá para explicar alguns fenômenos sócio-culturais
perceptíveis no nível lexical, o que coaduna com o objeto de pesquisa delineado: o léxico da
obra de Cuíca de Santo Amaro.
Ullmann (1987, p. 265) discute, ainda, as tonalidades emotivas das palavras. Ressalta
que esse uso emotivo ocorre sempre que o falante busca expressar ou provocar sentimentos,
34
suscitar emoções, provocar atitudes. Cita como fontes que podem contribuir para dar um tom
emotivo à palavra: os fatores fonéticos; o contexto; os slogans; a derivação emotiva; palavras
que trazem elemento de avaliação sobreposto ao significado principal; palavras voltadas para
exprimir avaliação ou comentário emotivo; valores evocativos.
Dessas fontes, é relevante, para o presente estudo, destacar algumas. O contexto é uma
delas, já que qualquer palavra, a depender do contexto onde esteja inserida, pode revestir-se
de uma tonalidade emotiva, despertando emoções diversas. As palavras, realmente, têm uma
potência e um poder de sugestão muito grande. Podem evocar desejos e angústias que
perpassam a alma. Conseguem ferir, quando ríspidas e estranhas alcançam o coração; ou
desnudar sentimentos, afinal, quem nunca se emocionou com uma palavra de amor, ou não se
desestruturou com aquelas que rugem forte, expondo fragilidades? Ou mesmo outras que
caem geladas na alma, despidas de qualquer emotividade?
Os slogans, por sua vez, podem ser revestidos de uma intensa carga de emoção,
trazendo em seu bojo o poder evocador de sentimentos diversos, como a raiva, o ódio, o amor,
a ira, dentre outros. Quem não se lembra, no Brasil, da força da expressão caça aos marajás,
slogan que foi o carro chefe da campanha de Fernando Affonso Collor de Mello, em 1989?
Collor recebeu da mídia nacional o apelido de “Caçador de Marajás, por ter adotado medidas
contrárias aos interesses de funcionários alagoanos de altos salários, quando governador deste
Estado. Em 1992, quase três anos após sua eleição para presidente do Brasil, ele foi acusado
de corrupção e afastado do cargo mediante processo de impeachment. Esse enunciado, caça
aos marajás, tinha o poder de evocar, no povo brasileiro, um sentimento de ardor e paixão
muito grande, de suscitar o desejo de ver o Brasil passar por mudanças radicais no cenário
político. Posteriormente, esse slogan passou a despertar outros sentimentos: raiva,
desesperança. Perdeu a sua força, cedendo lugar à outra expressão tão potente que passou de
boca em boca: fora Collor, novo slogan que contribuiu para incitar o povo a lutar pelo
impeachemant deste presidente.
Outra fonte merecedora de destaque são os valores evocativos, os quais conferem a
alguns vocábulos uma grande expressividade. Ullmann (1987, p. 275) cita como exemplo os
vulgarismos, as palavras estrangeiras, o calão, dentre outros, que colaboram para conduzir o
leitor ao clima estilístico de que normalmente fazem parte.
Ullmann (1987, p. 274) também chama a atenção para a derivação emotiva, quando são
acrescidos alguns sufixos à palavra, os quais atrelam determinados juízos de valor ou tom
emotivo ao seu significado. Ele evidencia, ainda, outro perfil das tonalidades emotivas: os
artifícios emotivos. Estes conferem à palavra um toque especial, um tom diferenciado, o qual
35
contribui para reforçar a significação emotiva de determinadas palavras. Tais artifícios
distribuem-se em três grupos distintos: fonéticos, lexicais e sintáticos.
Dos grupos citados, os artifícios lexicais serão pormenorizados, por conta de abarcarem
a linguagem figurada, já que o corpus desta pesquisa se constitui de textos literários. Esse tipo
de linguagem exprime a emotividade de forma singular, desencadeia sentimentos diversos,
fazendo eclodir emoções, impregna as palavras de tonalidades extremamente emotivas, graças
ao uso de figuras de linguagem, como a metáfora, a comparação, a hipérbole, dentre outras.
É pertinente salientar que, assim como as palavras adquirem uma coloração emotiva,
graças ao uso de alguns dos fatores citados, elas também podem perdê-la, não mais trazendo à
tona sentimentos e emoções. Os slogans, por exemplo, podem deixar de evocar determinados
sentimentos, quando advindas outras circunstâncias, ou evocados em outros contextos. Como
ilustração, cabe lembrar o uso da palavra comunismo, no período da ditadura militar. Essa
expressão evocava, em algumas camadas sociais, verdadeira ojeriza, às vezes, pavor, por
conta de conceberem erroneamente que os comunistas roubavam terras, matavam pessoas.
Atualmente, essa palavra perdeu a força evocativa que tinha.
Em muitos casos, não há a possibilidade de permutar sentidos em determinados
contextos, sob pena de se perder a essência do que se deseja comunicar, do que se busca
evocar a partir da interlocução. Basta pensar, por exemplo, em uma situação bastante comum:
o uso de palavras tidas como sinônimas, a exemplo de careca / calvo; bonito / belo/ lindo;
querida/ amada. Cada uma dessas palavras comunica algo específico a determinada
circunstância, faz alusão a uma única referência, tem um tom diferenciado.
Ullmann (1987, p. 294) o nega a possibilidade de haver uma completa sinonímia em
alguns casos específicos, contudo, explica que essa possibilidade é reduzida, porque são
poucas as palavras que conseguem expressar um mesmo significado, permutar um mesmo
valor evocativo.
Apesar dessa limitação, a sinonímia é um recurso estilístico relevante, já que oferece a
possibilidade de se escolher a palavra que melhor veicule o sentido pretendido, adaptando-se
a contextos variados. Todavia, na utilização de tal recurso, dois riscos são possíveis: o
primeiro é passar a impressão de uma falsa elegância, caso o leitor capte a tentativa do
escritor em evitar a repetição; o segundo é a condução para a ambigüidade e para o erro, se o
sinônimo escolhido apresentar nuances que viabilizem diferenças de significado.
A ambigüidade é uma situação lingüística que pode surgir de situações diversas. Em um
viés estritamente lingüístico, Ullmann (1987, p. 323) aponta três tipos principais de
ambigüidade: fonética, gramatical e lexical. Para ele, entre a ambigüidade e a polissemia há
36
tênues limites. Alega que múltiplos fatores podem favorecer a polissemia, destacando cinco: a
mudança de aplicação; a especialização num meio social; a linguagem figurada; os
homônimos reinterpretados; por último, a influência estrangeira. Dessas fontes, ele ressalta
que as mais relevantes são as três primeiras, as quais serão brevemente comentadas.
Sobre as mudanças de aplicação, o autor esclarece que, a depender dos contextos nos
quais sejam utilizadas, as palavras podem apresentar alguns traços diferenciados. Uns podem
ser passageiros; outros podem se desdobrar em permanentes matizes de significado, as quais,
distanciando-se entre si, podem ser consideradas como sentidos diversos do mesmo termo.
Quanto à especialização em um meio social, observa-se que, numa mesma palavra, pode
haver um significado geral, na linguagem vulgar, e vários sentidos especializados em
contextos restritos. Desses sentidos, em determinados contextos, um só será veiculado. A
palavra despacho, por exemplo, no meio jurídico remeterá sempre à necessidade de
cumprimento de uma determinação de um juiz; em cultos afros, estará relacionada a oferendas
dirigidas a entidades religiosas, com o intuito de obtenção de um favor; no meio comercial,
terá sempre o sentido de envio de mercadorias para outros setores ou lugares.
Concernente à linguagem figurada, Ullmann (1987, p. 339) explica que, numa palavra,
múltiplos sentidos figurados podem ser veiculados, sem, contudo, ocorrer perda do sentido
original. O próprio termo palavra é um exemplo dessa transposição metafórica: quando
poetas dizem que a palavra é flecha, espada, canção, não há perda do sentido original, mas o
acréscimo de outros.
Ullmann (1987, p. 411) aponta uma multiplicidade de causas para a inovação
lingüística. Dentre estas, destaca três que são elencadas por Meillet: lingüísticas, históricas,
sociais. As lingüísticas podem surgir em decorrência de causas lingüísticas, sendo decorrentes
das associações feitas por atos de fala. Ullmann informa que pode ocorrer transferência de
sentido de uma para outra palavra, tão somente porque ocorrem em contextos variados,
concomitantemente, por um processo conhecido, a partir de Bréal, como contágio.
As causas históricas são fruto do conservadorismo advindo da tradição. Dessa forma,
objetos, instituições, conceitos científicos e idéias passam por mudanças, ao longo do tempo,
porém, os nomes sobrevivem, colaborando, de certa forma, para testemunhar tal tradição. Um
dos exemplos citados por Ullmann é a palavra átomo, cuja significação, no grego, era
indivisível, sentido que não mais cabível, tendo em vista que estudos científicos posteriores
reformulam tal conceito, refutando essa possibilidade.
As causas sociais, por sua vez, também influenciam o processo de inovação, em dois
movimentos distintos: quando ocorre a passagem de uma dada palavra da linguagem vulgar
37
para uma especializada, é possível que seu sentido seja restringido. Do mesmo modo, aquelas
oriundas da linguagem de um determinado grupo, quando transpostas para o uso comum,
tendem a ter o seu significado alargado. São perceptíveis, portanto, duas direções: por
especialização, quando há restrição de sentido; ou generalização, quando se efetua a
ampliação de sentido.
Essas causas, na verdade, não contemplam os processos mentais associativos e emotivos
que propiciam modificações de sentido, tais como os processos metafóricos e metonímicos.
Ullmann (1987, p. 417), a esses tipos, acresce outras três: de base psicológica (de matizes
subjetivos); a influência estrangeira; a necessidade de um nome novo.
No que tange às causas psicológicas nos processos semânticos, o autor citado considera
dois pontos, em particular, bastante relevantes: os fatores emotivos e o tabu. Em relação ao
primeiro, percebe-se que o interesse do indivíduo por um determinado assunto contribui para
a criação de metáforas e comparações, para se descrever outras experiências, com vistas a
retomar o foco de interesse. Citando o termo utilizado por Sperber, Ullmann (1987, p. 419)
esclarece que tais experiências se tornarão centros de expansão, os quais, por sua vez,
formarão centros de atração. Marques diz que nesses dois movimentos, ou seja, a expansão
e a atração, ganham relevância os fenômenos associados à origem de tabus, eufemismos,
evoluções pejorativas e valorativas de palavras e criações lexicais, dentre outras.
Com respeito ao segundo, o tabu sobre um determinado objeto, pessoa, estende-se aos
seus nomes o que, em muitos casos, provoca o abandono da expressão e a utilização de um
eufemismo. Esses tabus podem ser fruto de medo, de sentimentos de delicadeza, ou até
mesmo de sentido de decência e decoro, já que o ser humano tende a temer pronunciar
determinadas palavras ou expressões associadas a fatos, coisas ou sentimentos que evoquem
sensações desagradáveis, como a morte, o terror, espíritos diversos, coisas pouco
compreendidas.
Isso é perceptível quando alguém precisa fazer referência ao diabo: criativamente,
nomeia tal espírito com inúmeras expressões, tais como: espírito do mal, pé redondo, buti, o
coisa ruim, cramulhão, capeta, belzebu, tranca-rua, cão, dentre tantas outras expressões
comandadas pela fértil imaginação dos falantes. Além disso, também os indivíduos, por uma
questão de decoro, criam eufemismos para expressões relacionadas ao sexo, por exemplo.
Nos cordéis, temáticas que remetem ao tabu são bastante exploradas, pois a cultura
cômica popular encontrou nesse campo um modo irreverente de rebaixar tudo aquilo que a
cultura oficial busca elevar, sacralizar. O conceito de rebaixamento é apresentado por Bakhtin
(1993, p. 17) como a transferência de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato para o
38
plano material e corporal. Para ele, rebaixar significa aproximar da terra, entrar em
comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de
nascimento: quando se degrada, amortalha-se.” E degradar, nesse contexto, tem uma
significação singular, ou seja, é entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo,
do ventre e dos órgãos genitais.(BAKHTIN, 1993, p. 19). Isso é bastante perceptível nos
cordéis licenciosos e sensacionalistas, nos quais a linguagem é particularizada pelo uso
freqüente de grosserias, ou seja, expressões e palavras injuriosas (BAKHTIN, p. 15), que
busca dar visibilidade a tudo que é negado pela cultura oficial.
Outra temática discutida por Ullmann (1987, p. 440) é a natureza dos processos
semânticos. Para ele, independentemente daquilo que provoque modificações, haverá sempre
algum elo associativo entre o significado antigo e o novo. Isso pode advir de: semelhança de
sentido, ou metáfora; contigüidade de sentidos, ou metonímia; semelhança de nomes, ou
etimologia popular; contigüidade de nomes, ou elipse. Destes, serão discutidos os três
primeiros, levando-se em conta o foco de interesse do presente estudo.
Desses três tipos de processos citados, a metáfora tem um realce todo especial, por
trazer em seu bojo uma força criadora e grande originalidade, que impregnam a língua de rara
beleza e singularidade. Por conta da amplitude do seu raio de ação, é a metáfora um elemento
motivador, um artifício expressivo, além de geradora de sinônimos e expressões polissêmicas.
Sobre esse processo imagístico, como denomina Coelho (1980, p. 78), há dois termos
presentes: um real, que desaparece, ocultando-se sob o ideal, que é aquele traduzido em
palavras. A autora esclarece a origem grega do termo “metáfora: transportar. Ou seja, o
indivíduo, ao referir-se metaforicamente a algo real, transpõe uma realidade à outra, por meio
de elementos semelhantes que liguem as duas. Assim, a metáfora é configurada mediante uma
associação de caráter semântico, o que respalda o seu estudo no plano lingüístico.
A contigüidade de sentidos, ou metonímia, apesar de ser menos interessante que a
metáfora, contribui também para a inovação semântica. Coelho (1980, p. 80) esclarece que
no processo metonímico, algo é citado a partir de relações mantidas com a coisa a ser
substituída. Enquanto no processo metafórico o real é transposto para o plano ideal, no
metonímico o real continua no mesmo plano e tende a atribuir um significado concreto às
palavras abstratas. Garcia (1982, p. 90) ressalta que a metonímia e a sinédoque têm por
base uma relação real e, diferentemente da metáfora, não comparativa.
A semelhança de sentido, ou etimologia popular, é um fator que pode provocar
alterações tanto no significado, quanto na forma de uma palavra. Isso ocorre por conta de uma
relação errônea estabelecida com outra palavra, com a qual se assemelhe foneticamente.
39
Ullmann (1987, p. 473) também discute as conseqüências oriundas de processos
semânticos de construção de significações. No decurso do tempo, muitas palavras tiveram seu
significado ampliado ou restrito, sempre que novos contextos, novas realidades, outras
demandas suscitavam tal procedimento, ocorrendo, assim, a extensão e a restrição do
significado, as quais, com freqüência, decorrem de fatores sociais. Ullmann (1987, p. 476)
indica a especialização do significado como causa mais usual de restrição, seguida do
eufemismo, inclusive aquele que é mais sugerido pela ironia ou pelo tabu.
A extensão, por sua vez, é vista pelos lingüistas como menos comum que a restrição. Na
extensão, uma determinada palavra pertencente a um meio limitado, ao passar para o uso
comum, terá o seu significado ampliado. Nesse processo, alguns traços distintivos serão
perdidos.
Ullmann (1987, p. 481) também discute sobre as modificações na valorização: os
desenvolvimentos pejorativos e os ameliorativos. Por conta da grande freqüência, na língua,
dos desenvolvimentos pejorativos, os primeiros semanticistas viam neles uma tendência
fundamental.
Tal perspectiva foi contestada por Bréal (apud Ullmann, 1987, p. 482). Este acreditava
ser o eufemismo ou pseudo-eufemismo a força impulsionadora de muitos desenvolvimentos
desse tipo. Nesse sentido, quando o falante cria um eufemismo para amenizar uma idéia
desagradável, e este, por seu uso contínuo, torna-se muito próximo da expressão que buscava
suavizar, provocará uma depreciação permanente desse significado. Um exemplo claro disso é
o eufemismo criado para a idéia de morte: bateu as botas. Esta expressão, inicialmente
formulada para abordar um tema extremamente delicado, hoje, tornou-se bastante pejorativo.
Uma outra fonte desencadeadora da alteração de sentido pejorativo é a influência de
determinadas associações. Umas das exemplificações apresentadas por Ullmann é a expressão
latina captivus, e suas diversas ramificações semânticas, em distintas línguas. Em algumas
destas, a palavra atrelou-se a significados desfavoráveis: em francês, passou a ser chétif,
significando débil, doentio, pobre, miserável; em italiano, transformou-se em cattivo que quer
dizer mau.
Há, ainda, um terceiro fator propiciador de desenvolvimentos pejorativos: o preconceito,
o qual contribui bastante para atrelar significações desfavoráveis a uma palavra. Algo que
pode ilustrar isso são determinadas expressões advindas do preconceito contra pessoas que
optam por se relacionar sexualmente com outras do mesmo sexo, as quais são identificadas
preconceituosamente: homossexual passa pejorativamente a bicha, veado, dentre outras
similares.
40
As considerações tecidas ao longo deste capítulo permitem entrever a força propulsora
da linguagem no seio da sociedade. Isso, por si só, evidencia a relevância dos estudos de base
léxico-semântica, já que a linguagem é o elemento identificador de uma comunidade
lingüística, fonte inesgotável de seus traços culturais e identitários. Além de servir como fonte
identitária, a língua também se relaciona com a sociedade, porque ela expressa as
necessidades de o homem se consagrar socialmente, de construir e desenvolver o mundo.
Outro fator de extrema relevância, no que concerne à linguagem, é que, por intermédio
dela, os relatos históricos reestruturam as imagens do passado e, por este passado, é possível
ratificar a memória e a história. Assim, memória forma a identidade na medida em que tem o
poder de reconectar o indivíduo ao seu passado enquanto fonte identitária, já que a
consciência que o indivíduo tem do seu passado funda-se na memória, que tem a função não
de preservar, mas de ressignificar o passado para enriquecer o presente. Logo, a linguagem é
elemento que contribui para a preservação da história e para a captação dos diversos sentidos
que são construídos pelo homem para captar o mundo.
41
4 O LÉXICO E A MEMÓRIA RESSIGNIFICANDO A HISTÓRIA DE CUÍCA DE
SANTO AMARO
A tessitura identitária do cordelista Cuíca de Santo Amaro é abordada, discutindo-se
como este conquista espaços, transgride limites impostos por uma sociedade preconceituosa,
mesclando sua história a própria história da Bahia pós-abolicionista, que é palco do seu existir
e inventar.
Existência que se deixa vislumbrar pelo caminhar de um poeta que risca no chão
indelével da memória baiana o tracejado de sua vida, entrelaçada em outras vidas, numa
simbiose caótica, nem sempre por trilhas retas e planas, mas, muitas vezes curvilíneas e
tortuosas que descortinam a trajetória de José Gomes, Ele o Tal Cuíca de Santo Amaro. Ele
revela em seus versos não só o seu itinerário, mas também o percurso histórico da sociedade
baiana, configurado entre as décadas de 1940 a 1960, convertendo suas palavras em imagens
de um passado que é tanto individual quanto coletivo. Relembrar este, conforme Lowenthal
(1998, p. 79), é crucial para nosso sentido de identidade.
Percorrer o itinerário de Cuíca de Santo Amaro, rememorar suas idas e vindas pelas
ruas, vielas e becos da Bahia através de um mergulho na memória de pessoas que com ele
conviveram, na verdade, é perceber parte da história da Bahia pós-abolicionista. Desta forma,
a história expandirá a memória, cuja função é, como defende Lowenthal (1998, p. 210),
ressignificar o passado para enriquecer o presente, reconectando o indivíduo ao passado,
enquanto fonte identitária.
E, nessa tessitura, a história de Cuíca o aproxima de milhares de outras que recomeçam
com os mesmos passos no chão de um país há pouco escravagista, passos que conduzem esses
caminhantes a um palco de lutas e embates pela conquista de uma efetiva liberdade.
Para compreender como se deu o processo de construção da vida de Cuíca foi preciso
mergulhar na sua história. Percorreu-se esse itinerário bebendo-se em duas fontes básicas:
fonte escrita e oral.
A fonte escrita constitui-se de alguns cordéis produzidos pelo poeta, e também das obras
de Matos (1998; 2004) e Curran (1990). A primeira, folclorista e pesquisadora, traça em suas
obras um retrato minucioso do poeta, deixando impressas suas qualidades e defeitos, suas
façanhas e peripécias. O segundo, brasilianista que conheceu Cuíca de Santo Amaro através
das obras do poeta Jorge Amado, deixa-se seduzir pela imagem esboçada nas obras deste
escritor, passando a pesquisar e divulgar a vida e obra desse cordelista irrequieto e criativo.
42
A fonte oral centra-se na análise de depoimentos de indivíduos que trazem à tona a
imagem de Cuíca, sua forma de enunciação, o que era veiculado nos seus cordéis, como estes
eram recebidos pelo público, dentre outras peculiaridades.
4.1 Tessitura Identitária
Bahia, início do século XX, cenário ainda conturbado, espaço de contradições e de
muitas lutas pela conquista de uma liberdade almejada e efetivada em 1888, com a
promulgação da Lei Áurea. Para Xavier (1996, p. 155), tão somente um marco na história,
já que não significou, naquele momento e subseqüentes, um limite para os abusos e
dominações de um povo no seu processo de conquista por igualdade sócio-econômica-
cultural. Porém, enxergar o treze de maio apenas como um marco histórico é reducionista,
pois vai além disso, na medida em que foi a culminância de movimentos e lutas pelo fim da
escravidão e também marcou o início de outras lutas pela conquista de outros tantos direitos
do povo negro.
É nesse contexto, exatamente dezenove anos após a abolição da escravatura, ainda se
ouvindo ecos desse passado tão próximo, que nasce José Gomes, no dia 19 de março de 1907,
em Salvador, cidade baiana que fora palco de lutas pela liberdade. Negro, filho de pais
extremamente pobres, como tantos outros negros e filhos de ex-escravos que tentam
sobreviver numa sociedade seletiva, excludente, ainda presa a resquícios de um tempo de
dominação, acostumada a subjugá-los e condená-los a uma vida de privação e desrespeito.
Equivocadamente, alguns jornais e revistas divulgaram como local de nascimento do
poeta a cidade de Santo Amaro da Purificação, situada no Recôncavo Baiano, fato que é
elucidado pela pesquisadora Matos (2004, p. 20), através de uma fonte incontestável: a
certidão de nascimento de José Gomes. Na verdade, o equívoco não surge do nada, pois o
poeta nasceu em Salvador, porém, elegeu Santo Amaro como a sua cidade, a ponto de
registrá-la no nome artístico que adotou por toda a vida. Curran conjectura que a escolha pode
ter sido feita em decorrência do laço sentimental que José Gomes tinha com a cidade de Santo
Amaro da Purificação, deslocando-se freqüentemente para lá, quando jovem, para fazer farras,
tocar música e namorar. Matos acrescenta que desde 1935 ele já fazia uso deste pseudônimo,
segundo informações da esposa do Cuíca, Dona Maria do Carmo Sampaio, que casou com
este em 1941, após cinco ou seis anos de namoro.
43
Vivendo nesse período, cercado por uma realidade adversa, José Gomes alimenta a sua
memória nesse tempo que o envolve e o preenche, construindo a sua vida. Forma, aos poucos,
a sua identidade, aqui compreendida como aquela que é definida historicamente (HALL,
2003, p. 12). Nesse sentido, Cuíca não apresenta uma identidade homogênea, mas é visto
como um indivíduo que assume diferentes identidades, em momentos distintos. Sendo assim,
a sua identidade se forma ao longo da sua vida através de processos inconscientes, e não algo
inato (...), permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada
(HALL, 2003, p. 38).
Os pais de Cuíca, mesmo vivenciando uma pobreza extrema, desejam-lhe o melhor,
porém, as teias do destino traem esse intento: Maria José Gomes e Emídio Tibúrcio Gomes
seguem caminhos opostos, sendo o menino entregue à madrinha. Do pai, após a separação,
poucas notícias teve. A mãe, perdida nos labirintos de uma mente desequilibrada, caminhava
sem rumo pelas estradas da vida. Irmã, teve uma, porém, por ironia do destino, também
enlouqueceu, acompanhando a mãe em suas andanças.
Outra adversidade apanhou José Gomes de surpresa: a sua madrinha o retirou do Liceu
de Artes e Ofícios, ainda nas séries iniciais, colocando-o no mercado de trabalho. Esses
percalços, no entanto, não foram capazes de enclausurar a alma e o espírito de José Gomes.
Inconformado com sua sorte, criou meandros, inventou outros ardis para se libertar dos fios
que teimavam prendê-lo a uma trama de derrotas.
4.2 Formas de luta: transgressão e irreverência
Face às correntes de dominação que tentavam aprisioná-lo, como a pobreza, o
conformismo com sua sorte, José Gomes articulou formas de luta, deixando, desde cedo,
entrever um espírito forte, determinado a vencer as armadilhas do destino. Matos (2004, p.
21) ressalta que Cuíca morava em uma casa pequena e enxergou na rua o espaço ideal para as
transgressões infantis. Aprendeu, já nesse tempo, o sabor da indisciplina.
No ambiente escolar, revelou uma grande irreverência, vendo na rebeldia um modo de
oposição, sendo considerado uma das ovelhas desgarradas da escola, por não aceitar se
submeter aos rígidos moldes pré-estabelecidos. Matos informa que “No Liceu, os professores
persistiam em converter aqueles alunos que consideravam ovelhas desgarradas. José Gomes,
pela inquietação de seu espírito, pela inata tendência ao desregramento da fala, era uma dessas
44
ovelhas (MATOS, 2004, p. 21). Vê-se, portanto, que o poeta, desde a mais tenra idade,
buscou inventar seus espaços de liberdade.
Liberdade que para José Gomes tinha um significado bastante intenso e se configurava
em formas de questionamentos a tudo que lhe era imposto pela sociedade. Assim, não se
deixou prender a nada, nem a ninguém: família, escola, patrões. O sentido de liberdade era
algo tão marcante na sua personalidade que Cuíca teve dificuldades em aceitar as rédeas de
alguns empregos. Na obra biográfica que dele traçou Matos (2004, p. 22), depreende-se que o
poeta teve quatro trabalhos: numa tinturaria de um português, num trapiche de fumo, numa
fábrica de cadeiras de vime e, por último, numa companhia de bondes. Nenhum destes
conseguiu aprisionar o espírito do rapazote irrequieto, que correu atrás da sua sorte.
Cuíca busca forjar e delimitar seus espaços de autonomia e liberdade e, para isso,
diferentemente de alguns outros contemporâneos que circulavam pela Bahia, passa, então, a
ser seu próprio patrão, vendendo miudezas, espalhando simpatia entre os transeuntes,
ensaiando os primeiros versos, em seu percurso como camelô. Contou, para isso, com
algumas características peculiares, dentre elas, um vozeirão, uma grande criatividade e uma
singular capacidade de comunicador.
Matos esclarece que Cuíca, para aumentar sua renda e manter sua família, após o
nascimento dos filhos, passou também a revender folhetos da Pernambucana, barraca
pertencente a Nigro Silva, representante na Bahia de João Martins de Athayde, poeta popular
paraibano que editava folhetos de cordel. Assim é que Cuíca foi se deixando seduzir por esse
tipo de literatura, passando a enxergar dentro de si uma alma de poeta. E começou a produzir
folha volante, folhetos com versos em quadra ou sextilha, de temáticas variadas.
Esse tipo de literatura de folhetos surge na Península Ibérica, no século XVI, sendo
encenada nas ruas, becos, praças, feiras, dentre outros espaços coletivos, e que, aqui no Brasil,
encontra guarida, eclodindo em diversos cantos do país. Nesses folhetos, a influência da
escrita dá-se de modo parcial, pois nela as marcas da oralidade se afirmam, e a força da voz
viva se impõe de modo indelével (...) ponto de interseção entre oralidade e escritura.
(MATOS, 1998, p. 49).
E é com essa voz marcante e nesse espaço entre escritura e oralidade que o poeta se
inseriu, elegendo-se porta-voz do povo simples, do qual faz parte, assinando seus folhetos
com o pseudônimo de Ele o Tal Cuíca de Santo Amaro: o poeta! E como tal, cantou em
45
versos os acontecimentos do seu tempo, com humor e irreverência, mas também como veículo
de denúncias, segundo o depoente João Valentim
3
:
Fig. 01: Depoente João Valentim
da Silva Júnior
Todos os que passavam pela porta do Elevador Lacerda lembram
de Cuíca,... 1950, 1955, 1960, onde perpassava toda a situação
fechada, irreverente, com sua forma de falar, de expressar,
sobretudo a situação da política e da sociedade, toda a coisa
camuflada por interesses de alguns. [...] Falava de forma bem
irreverente e citava de tudo que era segredo, gostava de devassar a
privacidade de todos[...]. Devassando a política, devassando os
casos da sociedade, de adultérios, de postura política, irreverente a
toda uma questão política. [...] Ele falava de tudo: citava a cultura
popular e em meio a essa situação, [...], devassava a situação do
que não podia ser devassado, ele tinha a mania de meter o bedelho
e devassar a situação.
O depoente Adauto Antônio Costa
4
complementa, afirmando que Cuíca
Fig. 02: Depoente Adauto
Antônio
Costa
Falava sobre o mundo, mas com crítica [...] ele fazia
críticas de coisas que acontecia na época e mais eh, eh,
assuntos mais na parte de prostituição. Ele tinha vários
livretos que na época de hoje talvez até fosse
censurados porque eram [...] dava gosto de de ler, mas
eram livretos um pouco pesado em relação a linguagem,
que era mais na parte de prostituição, né? Falava na
época de, de, é mulheres que vivia na vida de
prostituição, ele sempre tinha essas personagem no seu
livreto.
Cuíca optou pelas temáticas sensacionalista, política e licenciosa, sendo, no universo
do cordel, (...) considerado, até hoje, o grande e escandaloso poeta satírico, o Gregório de
Mattos das ruas e ruelas da Baixa do Sapateiro. (MATOS, 2004, p. 61). Essa associação
também é feita pelo depoente Adauto Antônio Costa, quando diz que Cuíca (...) era um
historiador como foi ... como era o nome desse rapaz, desse antigo que tinha uma fundação?...
Foi Gregório de Mattos, ele foi Gregório de Mattos moderno.
3
Depoimento feito em 23/09/2005. João Valentim da Silva Júnior nasceu em 15/11/1950, na cidade Baixa, no
bairro do Bonfim, na capital baiana. Estudou até o 2º grau. Exerce a profissão de cabeleireiro no mesmo bairro
onde nasceu. Revelou, na entrevista, uma grande paixão pela figura de Cuíca de Santo Amaro.
4
Depoimento feito em 23/09/2005 por Adauto Antônio Costa, comerciário aposentado, nascido em 12/06/1942,
em Salvador, na cidade Baixa, no bairro de Itapagipe. Atualmente, mora no subúrbio de Salvador, no bairro de
Periperi. Ele informou que chegava a ver Cuíca de Santo Amaro até três vezes por dia.
46
Como fênix, Cuíca ressurgiu das cinzas de uma vida traçada para ser igual a outras,
conformista e conformada pela dominação, optando por conquistar seus espaços de
autonomia, assim como muitos outros filhos de ex-escravos da época. E, como que para
romper com as mordaças do passado, renomeou-se Cuíca de Santo Amaro, Ele o Tal, numa
alusão carinhosa a Santo Amaro da Purificação, cidade onde encontrou o amor da sua vida,
Dona Maria do Carmo, morena com quem selou seu destino.
Este pseudônimo Cuíca, no sentido dicionarizado no Aurélio Buarque, comporta duas
acepções: rato anfíbio malhado de preto e branco; instrumento feito com um pequeno barril,
e que tem numa das bocas uma pele bem estirada, em cujo centro se prende uma pequena
vara, a qual, ao ser atritada com a palma da mão, faz vibrar o singular tambor, produzindo
ronco. No dicionário etimológico, a palavra cuíca vem assim definida: cuíca¹ sf. marsupial
da fam. Dos didelfídeos1 1817. Do tupi *Kuika. ?? cuíca² sf. instrumento popular,
constituído de um pequeno barril, fechado numa das bocas uma pele bem esticada, em cujo
centro se prende uma vara, que, ao ser atritada com a palma da mão, produz um som rouco
característicoXX.
Verifica-se que a palavra cuíca é dicionarizada, contudo, para que o ouvinte/leitor
relacione esta forma com o que motivou a sua adoção como pseudônimo, pelo poeta, é
preciso que esse estabeleça, por associação, um conceito abstrato, um sentido pertinente.
Assim, esse sentido será afetivo ou conotativo, evocador, metafórico, como se pode perceber
na análise semântica deste pseudônimo: a cuíca emite um som rouco, forte; o poeta ronca,
ou seja, emite seus cordéis com uma voz rouca, ele ronca, vocifera com força e sem temor
seus versos. O termo O Talrevela um traço marcante na personalidade do poeta sua
grande auto-estima que é uma das armas utilizadas por ele para firmar a conquista efetiva
da sua liberdade. Ele mesmo apregoou essa intrepidez de espírito, quando poetizou:
O Cuíca de Santo Amaro
De fraque e cartola
Que de fato é o Tal
Parecendo um doutor
Abre o grande filme
Ao povo da Capital
Cuíca de Santo Amaro
Pois o mesmo é, leitores
Renomado trovador
Convidado especial
Faz sorrir a valer
Qualquer espectador
5
.
5
Trecho do cordel A Grande Feira encontrado em AMARO, 2000. p. 17.
47
4.3 Cotidiano de tensões e contradições
Cuíca tece a sua identidade a partir de relações afetivas, mas também de urdiduras para
mudar sua condição social, delimitando o território que o particularizava, num universo
recheado de outros Cuícas(negros, pobres, semi-analfabetos) que não conseguiram articular
formas de enfrentamento e superação desses entraves.
E assim, entre gracejos e versos, Cuíca reconfigurou os espaços coletivos por onde
circulou. Isso se evidencia, por exemplo, quando o poeta faz uso de meios de transporte
coletivos como trens, bondes e o vapor de Cachoeira não como meios para se deslocar de um
lugar para outro, mas como espaços de circulação e enunciação de seu trabalho, aproveitando
o grande afluxo de pessoas que transitam nesses, como se depreende do depoimento do Sr.
Francisco José da Silva Barramedas
6
:
Fig. 03: Depoente Francisco José
da Silva Barramedas
Cuíca de Santo Amaro, famoso pelo seu tipo folclórico.
Eu conheci Cuíca de Santo Amaro quando fui
mensageiro do Estado, em 1958, muito tempo, né?
E Cuíca de Santo Amaro era um homem bastante
popular e através dos seus livretos de, de é literatura de
cordel, ele fazia do seu Q.G. (quartel General) o
Elevador Lacerda, as dependências do Elevador
Lacerda, a passarela, e na Estação da Leste da Calçada.
É a lembrança que eu tenho assim de Cuíca de Santo
Amaro mais forte. Ele era inteligente, sim! Porque ele
conseguiu, eh, transmitir através de suas críticas é
literatura, né? E a pessoa entendia a mensagem dele.
Conseguiu atingir o público. Eu gostava. Eu achava
engraçado.
O depoente retrata Cuíca, sua popularidade, como também refaz o percurso do poeta
pelas ruas de Salvador, pormenorizando a forma de enunciação deste. E ainda relata como se
dava a recepção dos cordéis pelo público.
Os trens, as ruas, o Elevador Lacerda, o Centro Histórico, para Cuíca, são espaços de
jogo: do jogo com as palavras, do jogo com um público que ele não espera chegar, antes,
busca alcançar. E o inverso também se dá: Cuíca é um grande chamariz. Onde ele está, a
presença do povo é certa. E há uma simbiose tão grande entre ele e esses lugares, que os
6
Entrevista concedida em 25/09/2005. O Senhor Barramedas é aposentado da Petrobrás. Tem 58 anos, nasceu
em 31/12/1946, no Bonfim, bairro de Salvador-Ba.
48
depoentes, quando lembram do poeta, fazem-no a partir da associação entre ele, seus versos e
esses lugares, como se verifica nas palavras do depoente Luís Penna Seara
7
:
Dona Vilma Correia dos Santos informa outros lugares transitados por Cuíca e detalha o
teor dos folhetos
8
:
Fig. 05: Depoente Vilma Correia
dos Santos
Conheci Cuíca no trem, o trem que saía da Leste, na
Estação da Calçada, até Paripe. Eu saltava em Periperi,
no meio do caminho, então, ele fazia os versinhos dele.
Não sei onde ele morava, sei que ele estava no trem, no
horário das dezoito horas, que era o trem que eu pegava.
Ele passava lendo alto, a turma toda se divertia. Versos
assim picantes, era muito engraçado. [...] Quando eu
descia, ele continuava no trem.
Cuíca morava na Baixa de Quintas, na Avenida Garcia, nº 28, zona urbana da capital
baiana, conforme se verifica nas contracapas de alguns dos seus cordéis, em que ele informa
seu endereço aos leitores. Os bairros citados pela depoente localizam-se na zona suburbana,
para onde o poeta se deslocava no horário das dezoito horas, espalhando sua arte, tecendo sua
sobrevivência, informando ao povo simples os acontecimentos da semana, a notícia
7
Entrevista concedida em 21 de setembro de 2005. Luiz Penna Seara tem 62 anos, nasceu em 10/12/1943, tem o
2º grau e sempre morou na Cidade Baixa, no Bonfim. Conheceu e conviveu, desde a sua adolescência, com
Cuíca de Santo Amaro, vendo-o freqüentemente.
8
Entrevista feita em 22 de setembro de 2005, Dona Vilma Correia dos Santos, 68 anos, nasceu em 17/05/1937,
na cidade Baixa, no bairro de Itapagipe, em Salvador Ba.
Fig. 04: Depoente Luiz Penna
Seara
Cuíca tudo ali passava, né, porque era exatamente
onde tinha maior fluxo de pessoas e ele ficava
vendendo o produto dele e tinha que tá onde as
pessoas tivessem e ali era realmente muita gente
que circulava. Ali, na época, era o point, né, de
Salvador, era naquele trecho: Elevador Lacerda, a
Cubana, antiga Cubana que ainda hoje funciona. A
Cubana era uma lanchonete que até hoje funciona
na parte alta do Elevador. Mas ali, aquele conjunto
todo do Centro Histórico, o Pelourinho, então, a
Prefeitura, o Palácio do Governo, então, era um
espaço assim onde as pessoas se movimentavam,
circulavam por ali. E ouviam Cuíca.
49
fresquinha que chegava até este por intermédio do poeta, já que essa clientela não tinha como
comprar os poucos jornais da época.
Além disso, Cuíca veiculava algumas notícias que não eram publicadas nos jornais,
conforme depoimento do Sr. Luís Penna Seara:
Mas ele, os escândalos, os divórcios, as traições [...] a política, então ele retratava
esses casos, né? Eram, pelo menos, casos que circulavam mas não iam parar na
imprensa, não saía na mídia. Na verdade, a mídia naquela época era o quê, o jornal
e o rádio. Tinha o Diário de notícias, né, tinha o Jornal da Bahia, é que o Diário de
Notícias hoje já não existe mais, são pelo menos, esses dois eu lembro.
Isso é confirmado pelo depoente Adauto Antônio Costa, que revela como os cordéis de
Cuíca eram fonte de informação para a classe social menos favorecida. Cuíca, na verdade,
tinha uma rede de informações. Algumas notícias ele retirava dos jornais que circulavam na
época, como se verifica na contracapa do cordel intitulado Inundação de Cachoeira e Nazaré,
em que o poeta anuncia o próximo cordel: A maior bomba do ano: O médico tarado do
Uruguaye, abaixo do título, complementa: Reportagem transcrita do Diário de Notícias do
dia 16, 17, 18 de março de 1960.
Outros fatos Cuíca tomava conhecimento através do famoso boca-a-boca. E ele
provocava aqueles senhores que gozavam de prestígio na sociedade ou tinham alguma espécie
de poder para cerceá-lo ou mesmo retaliar os seus informantes, avisando-os que não
tentassem descobrir suas fontes informativas, como se vê no cordel O escândalo em
Amargosa ou o doido tarado:
Antes de iniciar
Esta minha narração
Aviso aos senhores
Os quais teem posição
Que não tentem saber
Quem me dá a informação
Pois quem quizer saber
Quem me deu esta notícia
Vá aos meus Advogados
Ou faça sua perícia
Ou pergunte ao Graça Lessa
Grande chefe de Polícia.
Outras vezes, o poeta informava que a matéria havia sido encomendada por alguém.
Isso é perceptível no cordel O que dizem de Ângelo Ribeiro, na contracapa, onde o poeta
insere uma nota esclarecedora, informando que Este livro é matéria paga, o Trovador popular
50
nada tem a ver com as anomalias de ninguém. Ele provoca a pessoa citada no cordel e
também seus leitores, como se vê neste folheto, quando anuncia:
Agora se o Ângelo
Que é cheio de malícia
Quizer saber quem
Me deu esta notícia
Ele... o próprio Ângelo
Vá perguntar a Polícia
Também se alguém
Estiver interessado
Principalmente quem gosta
De carne de Veado
Pergunte ao Arnaldo Silveira
Que é meu advogado.
O depoente destaca também como o poeta divulgava fatos inéditos, não veiculados pela
imprensa:
Quando eu tinha uma oportunidade ás vezes quando saía, jovem, jogava bola, eu,
eu vinha jogar futebol aqui no subúrbio, quando eu chegava na Leste [Estação de
trem] ele já tava lá com seu livreto, de classe em classe, declamando no trem,
declamando e oferecendo o seu livreto e cansei de adquirir porque o título que ele
dava ao trabalho era um título que dava prazer da pessoa adquirir. Ele era uma
pessoa que passava ás vezes coisa que os jornais na época não, não lançava, e o
Cuíca era, ele jogava, pro público menos favorecido, ele jogava geralmente essas
notícia para o público, 80% do público não adquiria um jornal ele tinha nos livreto
de Cuíca muita coisa que acontecia que a imprensa não divulgava na época.
É importante ressaltar que quando Cuíca, após lançar algum cordel sensacionalista,
descobria ter veiculado calúnias, retratava-se em um outro, procurando redimir-se junto ao
seu público leitor e ao ofendido. Um exemplo disso é quando publica um folheto
sensacionalista sobre Ângelo Ribeiro, O que dizem de Ângelo Ribeiro. Após essa publicação,
Cuíca, ao se dar conta das calúnias feitas, publica um outro cordel, O feitiço virou contra o
feiticeiro e declara, na contracapa:
Esclareço aos meus leitores e ao povo baiano, que estes versos expontaneos é para
fazer justiça a um homem, o qual por ser bom, justo e nobre, estava sendo
injustiçado por aqueles que já foram beneficiados por este mesmo cidadão. Refiro-
me ao Ângelo Ribeiro, ao qual peço desculpas por ter publicado anteriormente algo
ao seu respeito, culpa exclusiva dos seus adversários e inimigos gratuitos. N.B.
Este livro é sobre a inteira responsabilidade do autor.
51
Essa forma de atuação do poeta é lembrada pelo Monsenhor Gaspar Sadoc
9
, quando
procura esclarecer como se dá a participação de Cuíca na divulgação de alguns fatos:
Fig. 06: Depoente Monsenhor
Gaspar Sadoc
Ele falava do político. Dos políticos, ele falava, mas
você sabe, havia uma técnica que quando alguém
queria.. eu brigava com você e queria lhe fazer o mal.
Então eu chegava, não tinha coragem de falar de
você, aí preparava a coisa, e dizia: -Cuíca, aqui , ó....
Aí, é profissão e é tanto quanto carregar água. E ele
ia gostar. Ele vivia daquilo. Falava pra ele não o que
tinha acontecido, o que ele queria que fosse
propagado. Às vezes não acontecia assim, mas Cuíca
não era juiz. Ele falava e ele tomava nota. Às vezes,
ele cometia injustiça sem querer ser injusto. É como
o jornal de hoje: você manda uma notícia e ele
publica, embora no outro dia desminta.
O povo comprava ou parava para ouvir os cordéis produzidos por Cuíca porque, além de
lhe ser mais acessível financeiramente, o poeta extrapolava a notícia, brincava com a
linguagem, utilizava os recursos lingüísticos com criatividade e irreverência, despertando o
interesse e a curiosidade do povo, como o Sr. Adauto Antônio Costa elucida:
[...] o jornal lançava qualquer fato que fosse com aquele título, mas um título que
não chamava atenção e o Cuíca transformava é, um acontecido ne um grande
acontecido. Então, o que partia de Cuíca partia com mais sabor, com mais, viu? O
linguajar dele era um linguajar que, quem não gostava do Cuíca? Ele declamava,
ele transformava aquela notícia em coisa bem melhor do que as vezes você tê
adquirido no jornal.
E é assim que Cuíca de Santo Amaro cria uma geografia toda própria, impregnando os
lugares com suas memórias, registrando e disseminando, em versos, as vivências daqueles que
entrecruzavam o seu caminhar, na medida em que pintava, em seus cordéis, um retrato, uma
crônica popular da vida baiana, como evidencia o depoente João Valentim da Silva Júnior:
[...] Ele falava em versos que falavam de situações da sociedade, camuflados que
ele fazia em cordel e ele devassava. [...] Ele levava aquela coisa que chocava a
sociedade, estupros, adultérios, toda essa situação rasgada. Ele falava de tudo. não
especificamente de uma classe social: o que ele soubesse, o que viesse ao seu
conhecimento, ele falava principalmente de pessoas conhecidas, os tipos
populares, que tinham vida pública, ele falava. Ele falava de todo mundo, não tinha
papa na língua. Cuíca botava as coisas assim à tona.
9
Depoimento feito em 14/10/2005. O Monsenhor Gaspar Sadoc nasceu em 17/05/1937. Nasceu em Santo
Amaro da Purificação e veio para Salvador aos doze anos de idade. Passou doze anos no seminário, até 1941, e
via sempre o Cuíca. Fez o enterro do poeta, no Cemitério Baixa de Quintas, na capital baiana.
52
Essa mordacidade, essa língua desenfreada do poeta já se evidencia nos títulos de alguns
cordéis, tais como: Padre que enterrou cavalo dentro da igreja em Amargosa; Crente que
passou a filha pra traz; Bagunça no pleito eleitoral, Homem que casou com veado; Prefeito
que enguliu o motôr em Santo Antônio de Jesus; dentre tantos outros.
Cuíca compôs uma história plural de ricos e pobres, brancos e negros que conviveram
nem sempre pacificamente pelas ruas não só da capital baiana, como também de várias outras
que formam o Recôncavo Baiano, como Santo Amaro da Purificação, para onde o poeta
sempre se deslocava, como se verifica no cordel produzido, que tem por título Quem tem
inimigos não dorme:
[...]
Publicaram nos jornais
Que sobre a polícia escrevi
Em virtude deste ato
Da capital eu fugi
Mas estava em Santo Amaro
E agora estou aqui.
[...]
Como versejador
Faço declaração
Eu estava em Santo Amaro
Pois lhe tenho devoção
À Nossa Senhora
Virgem da Purificação.
O cordelista exibiu, em seus versos, experiências múltiplas de significados diversos,
pintando um retrato social de um cotidiano recheado de tensões e contradições que marcaram
o período compreendido entre as décadas de 1940 a 1960. Exemplos disso se verifica nos
cordéis de denúncias acerca da forma desigual de atuação da polícia: ao mesmo tempo em
que esta protegia aqueles que Cuíca apelidou de embromadores do povo, numa alusão
irônica aos políticos da época, aos engravatados, referindo-se aos ricos e poderosos,
perseguia e maltratava o povo pobre, os favelados.
10
Mesmo encarando a vida positivamente, Cuíca também teve um destino enviesado pelas
dificuldades, porém, engendrou formas de luta para driblá-las, contribuindo, de certa forma,
para mudar a realidade dos anônimos passantes que, como ele, percorriam um mesmo roteiro:
as feiras populares, as ruas periféricas, os trens suburbanos, os bondes, a Rampa do Mercado
Modelo, o Elevador Lacerda, o cais de Salvador e as estradas que levavam a outras tantas
cidades baianas que ele percorria, espalhando a sua arte, tecendo a sobrevivência familiar. Ele
10
Esses fatos citados podem ser comprovados em vários cordéis, dentre eles: Os embromadores do povo; O pau
comeu na invasão; Políticos demagogos e homens sem palavra.
53
colaborou para isso na medida em que denunciou os abusos cometidos contra os menos
favorecidos e suas vitórias pessoais serviram como incentivo para essas pessoas.
4.4 Uso da linguagem enquanto identidade
Desse grupo de andarilhos pobres do qual fazia parte, Cuíca se elegeu defensor. No
folheto Porque candidatei-me a vereador, ele esclarece os motivos dessa sua escolha:
Como trovador
Cumpro o meu dever
Ao povo massacrado
Eu hei de defender
Goste quem gostar
Doa em quem doer.
Na estrofe, nota-se que Cuíca considerava como um dos compromissos do trovador a
defesa dos direitos do povo simples, daí firmar em versos o seu intento. Buscou, pelo seu
linguajar virulento, denunciar desmandos, revelar injustiças, desmascarar as classes
dominantes, revelando o avesso das relações sociais desiguais.
Nessa guerra travada, a arma eficaz foi a palavra que, como flecha certeira, atingiu o
alvo, abriu feridas, expondo a podridão do mundo político, o jogo de interesses escusos do
clero, os problemas sociais que afligiam a Bahia e o país como um todo. E isso, conforme o
depoente João Valentim da Silva, através de uma linguagem mordaz, às vezes picante,
[...] uma linguagem bem popular, um jeito bem popular [...] de falar. Pura
irreverência, ele tinha aquela coisa de devassar, contado de forma humorada. Ele
tinha um português bem irreverente. Ele não tinha compromisso com o social. Ele
tinha uma cabeça bem avante, ele rasgava toda aquela hipocrisia, toda aquela
situação, coisas da igreja, ele não mentia o que falava. Ele não tinha meia medida.
Ele era um verdadeiro espalhabrasa da época [...] Espalhar a brasa é rasgar,
desmistificar tudo, romper com tudo, contar a verdade, gritada em praça pública. E
isso incomoda muita gente. Ele tinha uma postura bem aberta. No popular, ele
jogava a merda no ventilador. Merda é clássico. Ele não tinha história rebuscar
nada, ele era direto, simples e irreverente. Era escrachado, levava a coisa ao
escrachamento. Ele zombava e destronava toda e qualquer postura.
Pelos versos de Cuíca, é possível depreender as dificuldades e a situação de miséria do
povo, tema que é bastante utilizado na poesia folclórica mundial. Como destaca Curran, é
perceptível nos cordéis políticos de Cuíca:
54
[...] uma nota de luta de classe e de opressão (...) e há uma nota de solidariedade
que Cuíca expressa com os pobres e não privilegiados. (...) Cuíca foi um dos
poucos poetas politizados de cordel de sua época, mas (...) não no sentido teórico
sofisticado. Defendia o povo e reclamava a injustiça que via entre ele, contestava.
(CURRAN, 1990, p. 122)
Ele denunciava os desmantelos sociais, políticos e econômicos da sociedade baiana da
época como, por exemplo, o caos do transporte público, como se verifica nos versos abaixo,
extraídos do folheto intitulado O homem que virou esqueleto de tanto esperar o ruído do
telefone:
[...]
Os desastres aumentando
Vão se dando dia a dia
Morra neles, quem morrer
Não interessa a Companhia
Que sabe perfeitamente
Que os bondes não têm valia
Zombando ela do povo
Fez agora outra pirraça
Botando os seus calhambeques
Pela ladeira da praça
Isto dentro da Bahia?...
É uma verdadeira desgraça.
Traçou, no cordel Os embromadores do povo, o perfil dos políticos baianos, a quem
buscou conscientizar politicamente:
Vou mover uma campanha
Pra dizer aos meus leitores
Principalmente aos meus
Amigos trabalhadores
Que abram bem os olhos
Com os taes embromadores
Cuidado com os candidatos
E as suas embromações
Que tudo nos prometem
Em vésperas de eleições
E que na realidade
Não passam de Tubarões
[...]
Atravez dos seus comícios
Começam a nos embromar
Dizem ao povo analfabeto
Eu vou lhe ajudar
Eu tenho um lugarsinho
Para você trabalhar
55
[...]
Porque noventa pôr cento
Destes meus senhores
Aqui na Bahia
Como sabe os leitores
Não passam como se diz
De exímios embromadores.
Cuíca chamou os políticos de tubarões, empregando uma metáfora, figura de
significação que é explicada por Garcia (1982, p. 85) como aquela que consiste em transpor,
transferir, estender o sentido de uma palavra à outra, em função de similaridades perceptíveis
entre um traço característico do termo próprio (A), plano real, e um atributo do termo B, plano
imaginário ou poético, aquele em que o falante conseguiu perceber alguma relação ou
semelhança. Essa linguagem metafórica, segundo Ullmann (1987, p. 440), exprime a
emotividade de forma singular, operando tanto implícita quanto explicitamente. Ela
desencadeia sentimentos diversos, faz eclodir emoções, impregna as palavras de tonalidades
extremamente emotivas.
Tubarão, conforme dicionário etimológico, é a designação comum a todos os peixes
elasmobrânquios, pleurotremados, com fendas branquiais laterais, particularmente as espécies
de grande tamanho1.500, de origem incerta. (CUNHA, 1986, p. 795). Ferreira (1986) faz
constar, ainda, uma outra acepção: (Bras.) Industrial ou comerciante ganancioso que por
todos os meios procura elevar os seus lucros concorrendo para aumentar o custo de vida.
Percebe-se que esta palavra, quando empregada pelo poeta, é motivada semanticamente, na
medida em que há uma analogia, não a partir do étimo, mas de uma associação entre a
natureza do animal retratado (tubarão, predador, peixe grande, animal com fama de voraz, que
engole tudo o que vê pela frente) e as características do que se deseja evidenciar nos políticos:
tidos como indivíduos revestidos de algum tipo de autoridade, corruptos ferozes com um
apetite insaciável pelo poder, que atacam, engolemseus eleitores.
Cuíca denuncia a forma ineficaz de atuação desses políticos, pouco preocupados em
resolver os problemas que afligem o povo pobre da Bahia, como a fome, a falta de moradia, a
carestia dos alimentos, a deficiência do transporte público. E, com isso, traz à baila a atuação
política ineficaz e o descompromisso dos políticos da época. Revela para o seu público leitor
o pano de fundo das reuniões nas câmaras, nas quais predomina a excessiva demagogia.
Concomitantemente, o poeta descreve um perfil ideal do homem público, esboça o que
deveria ser discutido em plenária. Revela, portanto, ser um indivíduo politizado que busca,
através dos seus versos, conscientizar politicamente seus leitores, como se percebe nas
estrofes abaixo, veiculadas no cordel Os embromadores do povo:
56
Só se ouve no plenário
Somente coisas banaes
Chingamentos e etc
E discussões pessoaes
Saliva!... muita saliva
Saliva e nada mais
Nunca se viu no plenário
Se debater um problema
Para tirar o povo
De tal difícil dilema
Que é a fome que roe!
Como se fosse postema
Nunca se viu no plenário
Nem siquer uma discussão
Para tirar o povo
De tão horrorosa aflição
Que é aquele problema
O tal da habitação
[...]
O que o povo quer
Aqui dentro da Bahia
É que seus representantes
Deixem de Demagogia
E tratem de debater...!
O problema da carestia
[...]
Porque se o eleitor tiver
Vergonha e sentimento
Toma todo dinheiro
De todo máu elemento
E dará o seu voto
A quem tiver merecimento.
Por conta de sua intrepidez de espírito, de sua coragem em denunciar fatos ligados a
pessoas influentes, Cuíca, em alguns momentos, foi perseguido. Em 1942
11
, por exemplo, ao
publicar o folheto O ABC da Carestia, foi preso, permanecendo incomunicável dois dias, e
ainda teve seus folhetos apreendidos, conforme cita Curran (1990, p. 142). Nesse folheto, o
poeta personifica gêneros alimentícios, os quais discutem entre si a manipulação por parte de
comerciantes inescrupulosos e políticos corruptos para encarecer os preços. Foi solto através
de Sinézio Alves, (que fazia as xilogravuras para seus cordéis). Matos informa que Cuíca foi
o poeta de cordel recordista de registros de entradas policiais.(MATOS, 1998, p. 54).
Cuíca, em uma de suas paródias (outra forma que ele empregava para zombar,
denunciar, fazer chacota, provocar o riso), ri de si mesmo, brinca com o fato de ter sido preso
11
Há divergência quanto ao ano de publicação desse cordel: Curran cita o ano de 1942, enquanto que Matos
informa ter sido em 1938.
57
algumas vezes e diverte o público quando parodia a música Farinhada
12
e cita Pedra Preta,
uma penitenciária localizada na capital baiana:
Fiquei na pendenga
Fiquei pendengando
Fui pra pedra preta
Fui me requebrando (Bis)
[...]
Fiquei desmoralizado
Fui parar lá no xadrez
[...]
Fui parar na correção
Por causa dele
Lafaiete me prendeu
Outras vezes prenderam o bardo, porém, as grades das cadeias prendiam-lhe o corpo,
mas não a alma, muito menos a língua ferina, pois Cuíca, segundo o Sr. Gercílio
Montenegro
13
, era só desordeiro na língua, de denunciar os fatos, mas era uma pessoa de
fino trato. O depoente, sobre essas perseguições e prisões sofridas por Cuíca, diz:
Fig. 07: Depoente Gercílio
Montenegro
Ele [Cuíca] falava pra todo mundo que tinha tomado
porrada que fez livro tal, aí o ofendido pegava ele [...].
Ele ia preso . Era outro fato interessante. De vez em
quando bulia com alguém importante aí pegava e
mandava prender, o delegado prendia, passava lá... não
tinha como prender pa passar muito tempo mas pelo
menos o período que eles podiam prender, eles
prendiam. Ás vezes, quando ele citava casos de pessoas
importantes, influentes, né, que tinha prestígio para
mandar prender, na época era mais ou menos assim: as
pessoas, os coronéis é que mandavam e ele deve ter
sofrido muito.
Essa informação é corroborada pelo Monsenhor Gaspar Sadoc, que complementa:
Ele devia ter sido preso várias vezes, mas prisão não era de ficar, não! Ora, no outro
dia, ele fazia a mesma coisa: o governador estava fazendo isso, assim, assim.
Pegavam ele, botavam na cadeia. Ele, no outro dia, saía e fazia a mesma coisa.
Acho até que ele compunha na cadeia mesmo (risos). Ele não perdia tempo, não!
12
A fonte desta paródia encontra-se em MATOS, Edilene. Cuíca de Santo Amaro: o boquirroto de megafone e
cartola. p. 111.
13
Entrevista feita em 22 de setembro de 2005. O depoente nasceu em 09/04/1937, natural de Camaçari. Veio
para Salvador em 1955, época em que conheceu o poeta.
58
O Sr. Adauto Costa afirma que chegou a ver Cuíca todo quebrado, com o olho roxo,
dizendo que foi porrada que tinha tomado do pessoal do livro que ele tinha feito.
Questionado sobre a reação do poeta, após essa atitude violenta de alguns ofendidos, o
depoente esclarece:
Ele era corajoso, era, como se diz assim, um cara que tinha língua de trapo, tudo o
que viesse na língua dele, ele largava através do cordel. [...] Ele não respeitava
ninguém, porque ele narrava o fato e o fato ninguém podia negar, porque tinha
existido mesmo. A gente sabia da história da cidade toda através dele. [...] Ele
citava fatos que ninguém sabia que tinha acontecido. [...] Incomodava bastante.
Geralmente a prisão dele era por isso, porque ele não era desordeiro, não era nada,
era só desordeiro na língua, de denunciar fatos. Mas era uma pessoa de fino trato
[...] Ele conquistava as pessoas.
Ao fazer uso da linguagem para transgredir o estabelecido pelas convenções sociais
burguesas, Cuíca, representando o grupo dos dominados, deixou clara a sua função social,
procurando, na e pela língua, enquanto símbolo de identidade, exigir direitos para o grupo ao
qual pertencia e se apresentava como porta-voz. Essa função social é relembrada pelo
Monsenhor Gaspar Sadoc, depoimento que dispensa comentários, já que esboça com clareza
um perfil social do poeta:
Cuíca tinha uma função social e grande, no sentido de que a gente fala hoje, de que
as coisas sociais se avolumam conforme a quantidade de pessoas importantes que
há no bojo de uma questão. Mas ele retratou os costumes, boas coisas e más coisas
do seu tempo. Cuíca foi uma figura social. Muita coisa da Bahia você vai encontrar
lá, sendo que a história, eu disse a você, nunca a gente encontra numa fonte só, para
ser completo. Quando se tratar de coisas próprias de Cuíca, coisas da cozinha (no
sentido daquilo que se tenta esconder), as pessoas só fazem história da sala de visita
ou do quarto, a cozinha ninguém quer ir lá. Cuíca ia. A parte social, a cozinha da
sociedade, ele ia. Não tinha medo de nada. Já viu Cuíca ter medo? Cuíca ronca,
ronca Cuíca!
Cuíca de Santo Amaro, no cordel Porque candidatei-me a vereador, afirma não temer a
nada nem a ninguém:
Sou homem desassombrado
Sem ter medo de careta
Não pensem que ninguém
Me prende em sua gaveta
Quem assim o tentar
Sapeco-lhe a caneta
[...]
Com o meu desassombro
E a minha grande raça
Como nunca tive
Medo de ameaça
Quem não andar direito
59
Tem que subir na fumaça
E faz isso sem ter peias na língua, denunciando escândalos, conchavos, como informa o
depoente Adauto Antônio Costa, quando relata as denúncias que o poeta fez em relação a
Feira de Água de Meninos, onde houve um incêndio que obrigou os feirantes a serem
deslocados para São Joaquim. Este incidente, denunciado por Cuíca através do cordel A
Grande Feira, é descrito com riqueza de detalhes pelo depoente, acrescido de explicações
acerca do incêndio:
[...] era do São Joaquim, era a feira de Água de Meninos aquela que queimou que
teve incidente lá, pegou fogo e transferiram pra Água de Meninos. Hoje é São
Joaquim, agora a feira em si ainda é Água de Meninos. Dizem na época que o fogo
foi intencional. A feira era instalada perto de reservatório de petróleo, era a feira de
Água de Meninos. No fundo da feira tinha um poço de petróleo, é posto, sim, que
era da Esso, me parece da Shell. E parece que nessa época houve vazamento de
gasolina pela rede de esgoto aí pegou fogo destruiu a feira aí ela foi transferida para
São Joaquim, que fica perto da água de Meninos. Não gostaram porque naquela
época perda, ninguém tinha seguro. O da de São Joaquim era bem menor. Era uma
feira também que o lugar que ficava era de interligação geralmente com a
Liberdade, o lugar que ficava Água de Meninos, tinha mais interligação, a ladeira
de Santa Cruz, onde você sai já pra Liberdade, quer dizer ficava mais bem
centralizado. A feira de São Joaquim ele na época denunciou porque essa feira, o
problema é que essas companhias de petróleo que era instalada perto da feira eles
vinham lutando na época pra tirar toda feira dali, não conseguia porque os
sindicatos na época era um sindicato muito forte, aí eles lutava, lutava, apesar de
gastar muito dinheiro, ser capital americano, mas eles não conseguiam tirar a feira
dali. O sindicato era atuante na época e dizem que isso foi premeditado, o incêndio
foi premeditado para o povo ter de sair. Cuíca, aí nos livreto, ele jogava a pólvora
em cima do negócio, ele falava mesmo e não tinha nada que fosse impedir.
No filme A Grande Feira (PIRES, 1962), há uma alusão a este episódio. Cuíca de Santo
Amaro brada o teor do cordel de mesmo nome da feira de Água de Meninos, denunciando os
conchavos para o deslocamento desta para um outro local. Posicionado em frente ao Mercado
do Peixe, em São Joaquim, na Rua Frederico Pontes, na Cidade Baixa, capital baiana, Cuíca
abre o filme, rodeado por uma pequena multidão, proferindo mordazmente:
A feira de Água de Meninos, senhores, vai acabar! Vai acabar a grande feira!
Leiam com detalhes! A grande feira de Água de Meninos vai se acabar, engolida
pelos tubarões [...], devorada pelos tubarões! [...] Milhares de famílias condenadas
ao relento, centenas de saveiros sem porto, feirantes explorados. Um grande
escândalo!
Essa forma de atuação do poeta evidencia, conforme Signorini (1998, p. 336), um
indivíduo que se constitui entre linguagens, que constrói sua identificação na língua e por
meio dela, num permanente estado de fluxo.
60
Cuíca definiu e descreveu a sua função de defensor, evidenciando o motivo por tal
opção, quando, num dos seus folhetos intitulado Por que candidatei-me a vereador, o poeta
evidencia a sua luta engajada contra a corrupção, posiciona-se a favor do povo humilde e
denuncia os abusos cometidos pelos poderosos. E também revela o quanto estava sendo
retaliado por conta disso:
Por isso quando vi
Por causa deste povo
O povo abandonado
Muito tenho sofrido
Pelos tubarões
Por defender o povo
Tenho descoberto
Muita e muita bandalheira
Muito conchavo
Muita ladroeira
Comigo não tem bronca
Sapeco-lhe a madeira.
A linguagem, por conseguinte, é veículo de transgressão e irreverência. Burilando-a, o
poeta mesclou as linguagens oral e escrita, fundindo-as num espaço no qual a alma falava
pelo corpo, numa sinestesia de encantamento que seduzia os leitores / ouvintes das vielas,
feiras e praças da Bahia, transmutando esses espaços geográficos em espaços de enunciação.
Nestes, o negro semi-analfabeto superou os limites impostos pela vida difícil, aprendendo a
manipular a língua como instrumento de politização, ensinando aos caminhantes simples que
aí circulavam a acionar mecanismos de defesa dos seus direitos, a se rebelarem contra aqueles
que ele chama de granfinotes engravatados, de políticos embromadores do povo. Cuíca
esboça o perfil e o modo de operação destes políticos no cordel Porque candidatei-me a
vereador:
Depois que vêem
Os seus nomes sufragados
Dizem que os votos
Por eles foram comprados
Por isso eles deixaram
O eleitor abandonado
Muitos só desejam
Galgar o apogeu
Depois se esquece
Daquilo que prometeu
Principalmente do povo
Do povo que o elegeu
E assim permanece
O povo abandonado
Pois o seu representante
O deixa desprezado
61
Durante a sua gestão
Ganha o dinheiro calado
O fato de Cuíca compartilhar com muitos de seus leitores/ouvintes a mesma história de
dominação, pobreza e dificuldades possivelmente pode ter contribuído para o
estabelecimento, entre eles, de uma rede de solidariedade, como denomina Xavier (1996, p.
128) as ligações de amizade e ajuda mútua. Assim, Cuíca os defendia, posicionava-se como
uma espécie de justiceiro, denunciando negociatas, cambalachos, abusos de poder, o câmbio
negro de comida, a carestia de preços, a favelização, dentre outras mazelas da sociedade da
época. Em troca, eles compravam seus folhetos, aplaudiam-no, riam, ovacionando o bardo
sem gramática
14
, ajudando-o, desta forma, a prover o sustento familiar, como o poeta deixa
claro, quando diz:
Já passei decepções
Já fui vítima de intrigas
Já sofri mesmo o diabo
Já passei muitas fadigas
Só por causa da família
Que não passa com cantigas
Essa empatia entre o poeta e o povo simples fica bem evidente no depoimento feito pelo
Sr. Adauto Antônio Costa: “O povo aplaudia muito. Aplaudia muito que eu digo não é com
palmas, mas aplaudia quando parava pra ouvir. Era como se tivesse aplaudindo, gostando do
que ele tava fazendo. Depois que ele morreu, não apareceu mais ninguém.
Convém ressaltar que essa rede de solidariedade em torno do poeta não se limitava à
população de baixa renda. Por sua audácia e inventividade, Cuíca despertava o olhar e a
admiração de personalidades da época, tendo, sobre muitas destas, um efeito encantatório. O
escritor Jorge Amado era um dos seus grandes admiradores e, como escritor criador de
personagens emblemáticas que visam a subverter o discurso dominante, ele se inspira na
literatura de cordel, vendo-a como fonte de uma linguagem popular, direta (...), de uma visão
popular da sociedade, da cidade, do meio rural, das relações sociais.(ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 1999, p. 216). Curran (1990, p. 55) ressalta que Jorge Amado nutria por Cuíca um
carinho especial, a ponto de tê-lo inserido como narrador popular em alguns de seus
romances, como: Pastores da Noite; Tenda dos Milagres; Teresa Batista, cansada de guerra;
Bahia de Todos os Santos. Contribui, desta forma, para perpetuar a memória do poeta. Em um
destes, Jorge Amado, citado por Curran (1990, p. 32), destaca:
14
Entenda-se gramática aqui como a gramática normativa.
62
O mundo da Rampa do Mercado se delicia com os folhetos de Cuíca de Santo
Amaro. E ali, próximo ao Elevador Lacerda, vós o encontrareis, ao poeta. Seu
chapéu de coco, envelhecido de muitos invernos chuvosos, os cartazes cobrindo as
costas do peito, o rosto alegre, cantando seus versos. para os que passam (...) versos
anti-fascistas de Cuíca de Santo Amaro dizem da guerra e dos homens que lutam
pela liberdade contra o terror.
Esses olhares que se voltam e se debruçam sobre a figura mítica de Cuíca atraem
também olhares de fora: o retrato do poeta pintado com as tintas da sedução da pena de Jorge
Amado fisga outros, como Curran, que, fascinado pela forma como essas práticas rituais
subalternas, aparentemente consagradas a reproduzir a ordem tradicional, transgridem-na
humoristicamente,debruça-se sobre a história de Cuíca, dando-lhe maior visibilidade.
Roberto Pires, cineasta, é outro que se volta para o poeta, inserindo-o no filme baiano A
Grande Feira, em 1962. Neste, Cuíca representa a si próprio, anunciando as desgraças da
feira de Água de Meninos, cujo nome inspirou o título da produção. Esclareça-se que essa
inserção se apóia na proposta do Cinema Novo
15
que, na década de 1950, começa a produzir
filmes tematizando o Nordeste, propondo-se a ser uma retórica de conscientização, de
estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 273). A produção executiva desse filme é do Glauber
Rocha, que busca inspiração nas temáticas, mitos e na estrutura narrativa do cordel para fazer
um cinema que propale a conscientização acerca dos problemas da fome e escravidão
regionais.
Cuíca também encantou o escritor Dias Gomes, a tal ponto que serviu de inspiração
para o escritor criar o personagem Dedé Cospe-Rima, no livro O Pagador de Promessas. Dias
Gomes (apud AMARO, 2000, p. 13) retrata Cuíca da seguinte forma:
Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe-Rima. Negro, cabeleira
pixaim, sob o surrado chapéu-coco um adorno necessário a sua profissão de poeta
comerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês,
romances populares em versos. E dois cartazes, um no peito, outro nas costas. Num
se lê: ABC da mulata Esmeralda uma obra primae no outro Saiu agora, tá
fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na lua.
Essa imagem de Cuíca é também delineada pelo depoente João Valentim:
Ele era bem o Grande Otelo: aquela figura baixinha, de gravata borboleta, de
paletó, com aquele ar bonachão, com o cabelo todo, chapéu coco, simpático...um
15
O Cinema Novo, na Bahia, tem como precursor Walter Silveira. A proposta desse cinema é representar a
realidade brasileira, mostrando-a em sua essência, o que contribui, segundo Albuquerque Júnior, para reforçar
um perfil identitário nordestino miserável, sofrido. Maiores esclarecimentos vide ALBUQUERQUE JÚNIOR,
1999, p. 263-293.
63
tipo popular simpático. Alegre, sabia se fazer alegre, era sempre bem humorado,
não tinha expressão carrancuda, não.
O Sr. João Valentim faz alusão à paixão e interesse que Cuíca desperta no fotógrafo
francês Pierre Verger e descreve como este leva a imagem do poeta para o mundo através do
seu trabalho:
Verger representou bem tudo isso, mostrou muito bem tudo isso [...]. Verger teve
essa postura de levar essas imagens para a Europa pela câmera de Verger. Verger
mandou pra fora todo o belo que aqui se tinha [...] fez a imagem refinada dele
[Cuíca] fez o nosso Cuíca e a nossa Bahia estar fora representada da forma que é.
O contato com a produção de Cuíca, então, passa a ser visual, auditivo, sinestésico, no
momento em que há uma aliança entre as diversas linguagens, tecnologias e sentidos. Contato
que não se limita ao período em que vive o poeta, com seus contemporâneos, como Jorge
Amado, mas se amplia num universo que extrapola essa temporalidade, alcançando tempos
subseqüentes e atual. Ou seja, um mundo nutrindo-se da seiva do outro.
Astuciosamente, Cuíca cita, em alguns cordéis, os nomes de algumas dessas
personalidades da época que o admiravam, como meio de intimidar seus perseguidores. No
folheto já citado Quem tem inimigos não dorme, ele declara:
[...]
E eu a muita gente
Há anos tenho provado
Escrevo tudo direito
Sem nunca ter estudado
Isso tem afirmado
O escritor Jorge Amado.
De São Paulo ele mandou-me
Um bom livro para mim
Com todas as minhas obras
Eu vos digo tudo enfim
Bahia de Todos os Santos
Terra do senhor do Bonfim.
Muita gente então vendo
O cartaz que ele me deu
Deste dia para cá
A usura cresceu
Me disse um pai de santo
Que a anos me protegeu.
[...]
Vinte anos desta parte
Que eu vivo nesta luta
Escrevendo vários fatos
Com a minha pena batuta
Afirma Getúlio Vargas
64
E o general Gaspar Dutra.
No folheto Porque candidatei-me para vereador, Cuíca continua a elencar seus
admiradores, talvez como uma tática para intimidar represálias, suscitar admiração do seu
público e valorizar seu trabalho:
[...]
O escritor Jorge Amado
A quem rendo-lhe homenagem
Através do seu livro
Fez vasta reportagem
Enaltecendo o meu talento
E a minha grande coragem.
O professor José Lima
Lente na faculdade
Transcreveu os meus versos
Com a sua intelectualidade
Dizendo para o mundo
A minha capacidade.
A revista O Cruzeiro
Fez-me a maior cortesia
Através dos seus repórteres
Os quais me têm simpatia
Publicou os meus retratos
E a minha biografia.
O meu saudoso Getúlio!!!
Quando estava na gestão
Como meu compadre
Como amigo como irmão
Através de telegramas
... de me dar a mão.
Cuíca de Santo Amaro, assim como tantos outros negros, procurou, dentre as táticas de
luta pela sobrevivência, ver nessas redes de solidariedades a superação dos limites que
tentavam impedi-lo de trilhar o itinerário que traçou para a sua vida, como as perseguições
que sofreu por conta da sua luta engajada através da palavra.
Exemplo dessas perseguições é quando Cuíca comprou a briga entre os ambulantes e a
prefeitura de Salvador, escrevendo um folheto de denúncia às perseguições que estes estavam
sofrendo e clamando por justiça. Evidencia-se, assim, como se dá essa rede de proteção: os
ambulantes pediram a Cuíca para denunciar os fatos; este, além da publicação do folheto,
apelou para seu amigo, o Major Cosme de Farias, célebre rábula conhecido como advogado
dos pobres, o qual solicitou aos setores competentes as devidas providências para resolução
do impasse. Cuíca demonstra saber onde procurar ajuda, afinal, o Major Cosme de Farias,
conforme os depoentes, era alguém que se colocava como defensor dos pobres e oprimidos
65
que, mesmo sem ter conhecimento profundo da doutrina jurídica, como rábula, transitava nos
diversos tribunais da capital baiana, sendo brilhante em suas defesas.
Alguns depoentes, ao lembrarem de Cuíca, inevitavelmente, fazem uma associação
deste com o Major Cosme de Farias, também negro. Ambos, na perspectiva desses depoentes,
são grandes defensores do povo:
O major Cosme de Farias foi um rábula, [...] era muito atuante e ele era um
defensor do povo pobre, né, e qualquer coisa que acontecia assim no eixo de
pessoas que não tinha como pagar um advogado ou ter uma justiça melhor, o
Cosme de Farias tomava a frente, ele defendia muito bem o seu cliente.
16
Cuíca é uma riqueza que está escondida ainda. É o mesmo que o pobre do Cosme
de Farias, ainda se fala bem, se fala um bocado, mas ainda não se fez justiça. São
dois parecidos, da mesma época, parecidos. Os dois eram pessoas do povo que
defendiam a justiça. Cosme também era do povo. [...] . Mas o que fez toda a vida
foi defender o povo. Olhe, só quem vai condenado é pobre, porque rico, ninguém
condena rico. Ele partia disso, então, defendia os acusados. E você nunca viu rico ir
pra cadeia? Você me fez lembrar uma coisa: Cosme de Farias não atacava; só fazia
defender.
17
Nos seus folhetos, Cuíca revelou as contradições que marcavam as relações das
autoridades policiais com a população: a mesma polícia que protegia osengravatadose
embromadores do povocomo ele apelidava satiricamente os grupos dominantes, perseguia,
prendia e desrespeitava o povo pobre, principalmente aqueles de ascendência africana, ainda
vistos como marginais pela elite branca. Fraga Filho (2006, p. 224) informa que, depois da
abolição, a repressão policial e o preconceito ao grupo subalterno foram bastante reforçados e
isso pode ser visualizado nos folhetos O pau comeu na invasão, no qual o cordelista veicula
um escândalo da época, envolvendo um dos diretores do Cine Capri:
A polícia meu leitor
Não teve outro jeito
Vendo que os invasores
Queriam briga peito a peito
Distribuía borrachadas
A torto e a direito
18
A Bahia que era
Orgulho dos brasileiros
Antigamente gabada
Por todos os estrangeiros
Transformou-se por encanto
Em antro de marreteiros
16
Depoimento feito pelo Sr. Adauto Antônio Costa.
17
Depoimento do Monsenhor Gaspar Sadoc.
18
Trecho de cordel encontrado em CURRAN, 1990. p. 130.
66
Marreteiros granfinotes
Os quais vivem engravatados
Na arte da roubalheira
Já são eles inveterados
Mas são pela polícia
Dificilmente fichados
Porque muitas vezes
São homens de posição
Que dão bronca no comércio
Depois ganham na questão
Ainda chamam a polícia
Para a sua proteção.
19
Diversas vezes, Cuíca pode experienciar, na própria pele, esse tratamento desigual.
Numa dessas ocasiões, foi preso, sendo solto somente após a interferência de um influente ex-
patrão de sua esposa, Doutor Bião Cerqueira.
De outra feita, ele articulou nova estratégia para neutralizar a subjugação pela força, ao
fazer uso da lei para garantir seu direito de ir e vir, impetrando, por intermédio de Cosme de
Farias, um habeas corpus preventivo, mecanismo legal que foi expedido pelo Desembargador
Dr. Mário Lins. Cuíca, numa demonstração inequívoca de que conhecia e exercitava os seus
direitos constitucionais, inseriu, na contracapa
20
de alguns dos seus folhetos, a cópia desse
habeas corpus, divulgando o teor deste ao seu público leitor. Resguardou-se, desse modo, de
possíveis ameaças, criando um mecanismo de enfrentamento ao poder estabelecido, pelas vias
legais. Usou, assim, de uma sutileza que o permitiu transitar livremente pelo mundo dos
brancos, ampliando suas alternativas de sobrevivência.
Esses exemplos comprovam o que diz Fraga Filho: Numa sociedade fundada em
relações pessoais, a viabilização e ampliação da autonomia do indivíduo se faziam por meio
de constantes alianças e negociações tanto a nível horizontal quanto vertical (FRAGA
FILHO, 2006, p. 228). Ou seja, Cuíca estabeleceu o seu próprio jogo, um jogo de relações
permutantes: em alguns momentos, o dominante se coloca a serviço do dominado, a partir de
estratégias de sedução, reconfigurando, desta forma, o caminho estreito delineado que
teimava moldar seus passos, subjugá-lo a um espaço-limite. Exemplo disso é quando Cuíca
recorre em momentos de necessidade (prisões, perseguições) a pessoas influentes, que o
admiravam.
Outro comportamento também é utilizado pelo poeta, sendo, inclusive, muito criticado
por isso: o silêncio pago. Por uma questão de sobrevivência, ele, às vezes, usava uma tática
19
Trecho de cordel extraído da reportagem O clamor do povo, escrita por Adriana Jacob e veiculada no Jornal
Correio da Bahia, Salvador, vol. 2, dez. 2003. p. 14.
20
Há inserção da cópia desse documento em vários folhetos, dentre eles: O que dizem de Ângelo Ribeiro; A
mulher que casou com outra.
67
engenhosa e fatal: anunciava, na contracapa do folheto distribuído na semana, a próxima
publicação, exibindo, no título, um novo escândalo a ser divulgado, envolvendo pessoas
influentes da sociedade baiana. Desta forma, abria a possibilidade de o envolvido adquirir
toda a tiragem de folhetos, pagando mais caro por isso. Curran (1990, p. 100) ressalta que o
próprio Cuíca descreve esse seu modus operandi, em reportagens veiculadas por jornais da
época:
Antes de estourar uma bomba, eu anuncio, chamo a atenção, fica todo mundo de
orelha em pé, a cabeça ardendo... Se há interesses para que não seja divulgado o
que eu sei, escandalizado, comentado, deturpado por rodas de conversa, eu enfrento
qualquer acerto. Os livrinhos são escritos para serem vendidos, eu podendo vende-
los de uma só vez a uma única pessoa, tanto melhor.
Em um dos seus versos, Cuíca chegou a afirmar:
Por isto a minha pena
Que não é de brincadeira
Cai a carga em qualquer,
Que fizer sua sujeira,
Ou me larga a granolina
Ou sapeco-lhe a madeira.
Nestes versos, Cuíca usou a expressão granolina para se referir a dinheiro. Essa técnica
de receber dinheiro em troca do silêncio era uma das artimanhas de angariar fundos para
prover o sustento dos seus familiares. O poeta justificava tal postura alegando ter que
alimentar seus inchadinhos, como carinhosamente apelidava seus filhos. Muito criticado
por alguns, por conta desse comportamento, é defendido veementemente pelo Monsenhor
Gaspar Sadoc, que assim explica o comportamento do poeta:
No dia da morte [de Cuíca], morreu tudo com ele. Fiz o enterro dele, na Baixa de
Quintas, é onde eu era vigário. Ele morreu calmamente, humildemente, tudo foi
feito. Pra você ver, ele não se prevaleceu, pra ficar rico, porque há muita gente que
com duas coisas dessas enriquece. Com duas misérias dessas, os jornalistas vendem
uma fortuna para dizer misérias. Ele, não. Cuíca era pobre. Cuíca passou a vida
lutando, é o caráter. É um lutador que tinha caráter e queria justiça. Ele sabia muito
bem. Ele nunca, eu tenho a impressão, que nunca aceitou escrever que não fosse
com o objetivo de fazer o bem. Embora para fazer o bem tinha que... é mesmo que
um cirurgião: para salvar uma pessoa tem que cortar a perna. Corta a perna para
salvar. Ele tinha que fazer aquilo. Mas o objetivo dele era defender uma pessoa e
pra isso atacava outra.
68
Monsenhor Gaspar Sadoc traz à tona outro aspecto controverso da atuação de Cuíca de
Santo Amaro: veiculação de boatos, mexericos. O depoente esclarece como isso se dava e
defende o poeta, explicitando os motivos que levavam Cuíca a publicar tais notícias:
[...] mas você sabe, havia uma técnica que quando alguém queria.. eu brigava com
você e queria lhe fazer o mal. Então eu chegava, não tinha coragem de falar de
você, aí preparava a coisa, e dizia: -Cuíca, aqui , ó, aí, é profissão e é tanto quanto
carregar água. E ele ia gostar. Ele vivia daquilo. Falava pra ele não o que tinha
acontecido, o que ele queria que fosse propagado. Às vezes não acontecia assim,
mas Cuíca não era juiz. Ele falava e ele tomava nota. Às vezes, ele cometia
injustiça sem querer ser injusto. É como o jornal de hoje: você manda uma notícia e
ele publica, embora no outro dia desminta. Mas publicou, porque o que interessa é
o ... [...]. Mas, Cuíca era o retrato de quem mandou ele fazer. Ele tinha uma
capacidade, muita gente chama isso de hipocrisia, isso não é hipocrisia não, ele é
um artista, um profissional ali, ele vivia daquilo. Então, ele aceitava, pouco
interessava a ele, ele era um profissional. Ele achava que a pessoa tinha caráter
como ele, ele só dizia a verdade. E dizer mentira para tapear Cuíca. Ele não era
obrigado a pesquisar, ele era um aventureiro.
Monsenhor Gaspar Sadoc justifica a veiculação desses fatos, alegando que Cuíca era
uma espécie de jornalista popular. E defende que o poeta tinha seu código de honra. E isso é
comprovado em alguns dos seus cordéis.
Mergulhando em muitos desses textos, o leitor visualiza mazelas sociais que afligem o
homem deste século. O cenário político, apesar de ser outro, apresenta diversas similaridades
no que concerne à corrupção que grassa o país, ao perfil do homem público pouco interessado
nos destinos do povo, à angustiante desigualdade social que o aflige. Tais aspectos
evidenciam uma atualidade singular nos cordéis produzidos pelo poeta. Alguns depoentes
enxergam essa atualidade e evidenciam a relevância social de Cuíca e destacam como, se hoje
ele estivesse vivo, denunciaria os desmandos políticos, as mazelas da sociedade:
Hoje ele teria muito o que falar. Mensalão seria um prato bom pra ele, ó!
21
Hoje, se ele tivesse vivo, o que te acontecendo hoje na política brasileira, tinha um
prato cheio pra pra Cuíca de Santo Amaro. Daí ele ia pegar o pessoal cheio, como a
cueca cheia de dinheiro, aí meu irmão, mensalão, aí vamos mensalinho, o
carequinha cheio de dinheiro, almocando e cobrando né, não pagava nada ainda a
policia federal toma dos bandidos e lá dentro ta cheio de bandido também me dê
minha parte, vamos dividir. E assim. Hoje pra ele seria um prato cheio.
22
21
Depoimento do Monsenhor Gaspar Sadoc.
22
Depoimento do Sr. Adauto Antônio Costa, no qual ele faz uma alusão ao envolvimento do político baiano
Antônio Carlos Magalhães no episódio relativo à violação do painel eletrônico do Senado, durante a sessão em
que foi cassado o ex-senador Luiz Estevão.
69
Teria muita coisa pra contar. [...] Da escuta telefônica de ACM [Antônio Carlos
Magalhães], o painel, isso o cordel faria livro, o painel eletrônico do senado. Iam
ser cordéis bem interessantes.
23
Esse retrato entrelaçado por fios da memória coletiva contribui para enriquecer o
presente, trazendo à tona ecos de resistências de um negro pobre, semi-analfabeto, que venceu
medos e preconceitos pelo uso produtivo da linguagem. Sobre este poeta do povo, o
Monsenhor Gaspar Sadoc tece uma belíssima imagem:
Todo mundo conhece, fala de Cuíca de Santo Amaro, mas pouca gente conhece a
alma de Cuíca. E a alma dele eu conheci. Atrás daquela aparência toda, de
estardalhaço, às vezes de provocação, se escondeu uma pessoa muito simples,
desejosa de justiça. [...] Toda a luta dele foi para que o mal, ou o que ele julgava ser
mal pudesse desaparecer dentre as pessoas que são boas. Agora, nessa luta ele feria
muita gente, atropelava muita gente [...]. Mas ele nunca intentou fazer o mal como
mal [...] porque ele pretendia defender uma causa e ganhar sua vida. A causa que
ele achava justa.
Cuíca estabeleceu, pelo seu discurso contra-hegemônico, um espaço cambiante, no qual
fez ressoar a sua voz na defesa dos excluídos, dos marginalizados, esgarçando, assim, as
amarras do poder, rompendo, pela linguagem, as correntes do destino nos palcos nem sempre
iluminados da Bahia.
5 CORDÉIS DE CUÍCA: UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO
23
Depoimento do Sr. Gercílio Montenegro da Silva.
70
A relação entre língua, cultura e sociedade é bastante marcada no texto cordelístico. Isso
será discutido ao longo deste capítulo, sob uma perspectiva semântica e cultural, entendendo-
se que os contextos lingüístico, situacional e cultural devem ser considerados quando se
estuda uma língua, o que é respaldado por Ullmann, Baldinger e Lyons. Com base nisso, far-
se-á análise semântica das lexias selecionadas e, concomitantemente, serão explicados alguns
fenômenos sócio-culturais perceptíveis no nível lexical, procurando-se apreender a forma de
perceber o mundo da sociedade da época.
A riqueza do universo cordelístico de Cuíca de Santo Amaro dificultou a delimitação do
corpus, já que o poeta transita por diferentes temáticas, produzindo três tipos de cordéis. No
primeiro grupo, há os folhetos de cunho político, nos quais ele revela para o leitor o cenário
da política nacional, como também escreve sob encomenda, para, por exemplo, divulgar
candidaturas em períodos eleitorais. No segundo grupo, estão enquadrados os folhetos
sensacionalistas, cordéis que buscam explorar, com exagero, fatos chocantes, escândalos,
histórias escabrosas. No terceiro, encontram-se os licenciosos, que versam sobre fatos
picantes, de insinuação sexual. Os dois últimos serviram de base para este estudo.
Os cordéis, por serem textos literários, são polissêmicos por natureza e isso permite uma
maior flexibilidade da língua. Sendo assim, o poeta tem a liberdade de, a partir de uma
imagem acústica, multiplicar seus valores semânticos, revestindo-lhe de sentidos diversos que
evocam outras realidades, outras possibilidades de nomeação do mundo. Esse uso emotivo da
língua a partir da inserção de traços multissignificativos se processa sempre que o indivíduo
deseja exprimir sentimentos, instigar o leitor. No corpus em análise, há algumas fontes que
contribuem para revestir as palavras de um tom emotivo: o contexto, os valores evocativos, a
derivação emotiva e os artifícios emotivos.
O contexto é ressaltado porque, a depender deste, uma palavra pode trazer um tom mais
emotivo. Isso é bastante evidenciado no uso que Cuíca fez de determinadas expressões, como
uma das várias designações que ele dá para pênis: sputinick. Na verdade, para captar o sentido
que o poeta dá para esta lexia, é preciso que o leitor se valha do contexto lingüístico e do
extralingüístico.
5. 1 O corpo do corpus: formas e configurações
71
A língua representa e dá visibilidade a um emaranhado de valores, crenças, costumes de
um determinado grupo social. Tais relações são tão imbricadas que fica difícil precisar
limites, afinal, é na língua que a cultura de um povo aflora. A seguir, discute-se tal questão a
partir de alguns cordéis de Cuíca de Santo Amaro.
5.1.1 Cordéis de Cuíca: retrato sócio-cultural
No cordel Namoro no Cinema, Cuíca dá uma definição para este espaço cultural:
O Cinema na verdade
É um recinto tão belo
Onde todos os freqüentadores
Entram sempre em paralelo
Para fazer dali
Uma espécie de castelo
Todos sabem que o Cinema
É o antro da perdição
Faz o sugeito assassino
Faz o sujeito ladrão
É um livro onde as donzelas
Aprendem a prostituição
O Cinema é uma escola
Onde não há Professor
Ensina ele as Donzelas
A perderem o seu pudor
Castelo, no dicionário Aurélio, vem definido como (Bahia) casas de mulheres públicas. Cuíca
continua desfilando uma série de qualificações para essas salas de projeções cinematográficas,
citando o Cine Pax, cinema popular localizado na Baixa dos Sapateiros, onde também eram
exibidos filmes pornôs, em determinados horários. Além disso, no período em que tais cordéis
foram produzidos, as demonstrações de afeto em público eram censuradas. Os locais de
exibição são recintos fechados, com pouca luminosidade e as exibições feitas em som alto,
fatores que contribuem para camuflar e abafar as ações descritas pelo poeta. Os cinemas,
portanto, tornam-se propícios para a troca de carícias e afagos pelos casais que procuravam
neste recinto um ambiente ideal para namorar sem importunações. Tanto que Cuíca revela o
que aconteceu um dia, quando a luz foi acesa inesperadamente no cinema e todos viram uma
normalista com o pênis de um estudante na mão:
72
[...]
A luz então acêndeu
Uma cena interessante
No Cinema apareceu
Você sabe meu leitor
O que aconteceu?
[...]
Quando interrompeu
No cinema a projeção
Uma linda Normalista
Com um grande caldeirão
Estava com o guarda chuva
De um Estudante na mão
O pobre do Estudante
Ficou todo envergonhado
Guardou o guarda chuva
Que já estava quebrado
E saiu lá do Cinema
Completamente molhado
Por conta de fatos como este, o poeta generaliza o cinema como: antro de perdição, livro
onde se aprende a prostituição, escola que ensina a perder o pudor.
Cuíca detalha, ainda, os atos e fatos que se desenrolam no cinema: cavação, canjerê,
falta de respeito, perda da virgindade. Suas informações contribuem para o leitor apreender
como esse meio cultural é ressignificado pelos indivíduos, que o percebem como espaço
propício para atos licenciosos, tais como:
Vão pra dentro do Cinema
Fazer sua cavação
[...]
Moça com seu namorado
Lá dentro da matinée
Com sua mão bulinando
Toca a fazer cangerê
[...]
Acontece no Cinema
Esta falta de respeito
[...]
Muitas quando se casam
Dá até em dois macacos
O marido quando quer
Meter a viola no saco
Encontra na hora H
Um verdadeiro buraco
73
Evidencia-se, pelo teor dos cordéis, como se enxergava de forma preconceituosa esse
espaço cultural como um lugar de perdição, de fornicação, de desvios de comportamento.
Cuíca verbaliza isso ao escrever:
[...]
O Cinema sempre foi
A perdição da Humanidade
Ensina sempre as garotas
O Caminho da promiscuidade
Destaque-se como há um peso desigual para os dois gêneros: homens e mulheres
freqüentam o cinema, participam das mesmas ações descritas como impróprias, porém, no
final do cordel, Cuíca ressalta que é neste espaço que a mulher aprende a se promiscuir.
Já no folheto A moça que mordeu Santo Antônio, o poeta explicita o viés preconceituoso
em relação às mulheres que não casam ainda jovens. Cuíca narra a história de uma mulher
que, após os quarenta anos, pede uma ajuda a Santo Antônio para encontrar um noivo. Não
tendo o seu pedido atendido, morde o santo. O estereótipo de mulher que não casa é traçado
neste folheto. São mulheres que: ficam no barricão; não têm sorte na vida; depois de quarenta
anos, estão acabadas, não arrumam marido; sofrem. Tem-se, assim, uma imagem do
casamento como fonte de felicidade, saúde, sorte, atestando uma visão machista sobre o perfil
feminino.
No cordel intitulado A mulher que morreu no tira-gosto, Cuíca narra um fato
escandaloso envolvendo uma jovem chamada Ilze, que fora encontrada morta no bordel de
Dona Santa, na capital baiana. Matos (2004, p. 102) informa que o laudo médico, emitido por
Dr. Pitex, médico legista do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, na capital baiana, aponta,
como causa da morte, um colapso na hora do clímax da relação sexual. Cuíca, então, relata o
acontecido:
Disse o médico a Polícia
Isto foi uma ruína!!!
Um sputinick enorme
Penetrou nesta menina.
Ou seja, Cuíca, buscando nomear essa realidade diferentemente do laudo médico,
procura palavras que traduzam a sua explicação para o fato. Não encontrando no léxico
disponível uma designação exata para aquilo que procura transmitir, busca no contexto algo
que aproxime essas realidades. É assim que ele se apropria de uma palavra não dicionarizada
em português para designar o órgão sexual masculino: o nome dado ao primeiro satélite
74
artificial posto em órbita, em 1957, pela Rússia, batizado com o nome de Sputnick, sujeito
viajante, esfera metálica que media cinqüenta e oito centímetros de diâmetro e pesava oitenta
e três quilos e seiscentos gramas (OLIVEIRA, 2005).
Os valores evocativos, por sua vez, presentificam-se nos cordéis licenciosos e
sensacionalistas, dando a tônica aos enunciados. Tais valores conseguem tornar determinadas
palavras bastante expressivas, que impregnam o enunciado de uma força desencadeadora de
emoção, paixão, revolta, dentre outros sentimentos. É nesse sentido que Cuíca, naqueles
folhetos em que explora o grotesco, faz uso de expressões vulgares. Mas é preciso ressaltar
que muitas dessas expressões ele cria a partir de associações metafóricas e metonímicas,
revelando uma grande capacidade criadora. É assim que ele narra situações grotescas de
forma leve e divertida, com uma linguagem impregnada de jocosidade, utilizando imagens
que remetem ao princípio material e corporal, típicas de realismo grotesco, principalmente
nos cordéis licenciosos e sensacionalistas, particularizando-os a partir de um léxico marcado
por um número expressivo de metáforas sexuais.
No cordel Homem do Pau Miúdo não casa com Mulher da Curva Grande
24
, Cuíca faz
um trocadilho, utilizando as expressões curva grande e pau miúdo com duplo sentido:
As moças de curva grande
Desta vez estão com tudo
Resolveram a não casar
Com homem de pau miúdo
Gente desta redondeza
Quase não tem canudo
[...]
É por isto que eu digo
Que isto não me convém
Mulher da curva grande
Tem os seus caprichos também
Quando procura marido
É porque quer passar bem
Em tais versos, ele mescla sentidos: Pau Miúdo e Curva Grande, bairros da capital baiana,
são, também, pitorescamente, alusões a órgãos sexuais masculino e feminino,
respectivamente. Vale destacar como esse cordel chamou a atenção do público de Cuíca, tanto
que dois dos depoentes fazem alusão ao título do folheto e comentam a respeito: o Sr. Gercílio
Montenegro da Silva recorda:
24
Matos (2004) esclarece que este folheto foi escrito em 1939.
75
[...] eu me lembro desse: Mulher da Curva Grande não pode casar com homem do
Pau Miúdo. Eram títulos que ele fazia de propósito pra chamar atenção, vender o
livrinho dele [...] ele explicava que Curva Grande era um bairro, etc., mas o título
ele já jogava pra nego interessar pelo livro.
E Dona Vilma Correia dos Santos acrescenta:
Só me lembro desse cordel da mulher da Curva Grande que não casava com
homem do Pau Miúdo, os dois bairros que tem aqui [...]. O público sorria e
comprava muito o livreto dele, comprava bastante, gostava, né? Era a linguagem
popular, né?
Outro recurso utilizado por Cuíca é a derivação emotiva, a qual confere tons emotivos a
alguns enunciados. O poeta acresce sufixos a algumas palavras, e estes, por sua vez,
conseguem atribuir ao significado determinados juízos valorativos. Exemplo disso consta no
cordel que tem por título O menino que nasceu pedrêz, no qual é narrada a história de uma
negra que, desejando casar-se, tentou ficar branca (Espichou a cabeleira [...] Tomou banho de
potaça [...] Na pele fez fricção [...]). No decorrer da narrativa, Cuíca faz uso de alguns sufixos
que impregnam às palavras de tons emotivos pejorativos: negrita, neguinha, pretinha:
Ela em fladas (sic) de camisa
Depilava as sombrancelhas
Mas em vez de gilete
Era um pedaço de telha
As pestanas da negrita
Já estavam bem vermelhas
[...]
Pintou beiço, pintou tudo
Na pele fez fricção
Até mesmo no umbigo
A nêga passou loção
Eu sei que a neguinha
Ficou mesmo uma tentação
[...]
Porém a tal pretinha
Já estava até peijada
É imprescindível destacar que, dos setenta cordéis lidos, somente neste há uma alusão
desse tipo aos negros. Cuíca tem um perfil identitário marcado pela luta por liberdade,
igualdade de direitos, defesa dos excluídos e marginalizados, até porque ele fazia parte desse
grupo, já que era negro, pobre e semi-analfabeto. Sendo assim, entende-se que no folheto em
questão, o cordelista. critica a tentativa de branqueamento de uma negra que se recusa a
manter traços africanos, passando a incorporar características e valores da elite branca. Ele
76
esboça, aos poucos, o perfil da mulher em questão: aparentemente de condição social elevada,
como se percebe nos versos abaixo:
Depois chamou o empregado
Que se chamava José
[...]
Disse a negra vá correndo
Me comprar já um baton
Traga um Rouge de primeira
Mas só quero muito bom
[...]
Chamou a negra o garçom
Perguntou o quanto devia
Disse o garçon mil cruzeiros
Que bebeu [o marujo] durante o dia
A negra pagou a conta
[...]
Chamou uma Limousine
Meteu o marujo dentro
Depreende-se, por conseguinte, que a mulher tinha uma boa condição financeira, pois tinha
empregado, pagou a conta do americano, foi para a igreja de limusine e Cuíca a chama de
preta grã-fina. Ela busca uma proximidade com uma aparência branca, procurando assimilar
traços que mascarem a sua cor, moldando-se a um padrão branco de beleza (passa potaça,
esfrega-se muito, alisa o cabelo). Procura criar uma realidade simbólica na qual se refugia
para escapar da inferiorização que a sua cor expressa nesse tipo de sociedade, através do
casamento com um branco, mesmo que não seja aceita por este, como explicado no final da
história, pois o americano se desvencilha dela, agredindo-a verbalmente:
Deu ele um pulo da cama
Com um fedô de chulé
E perguntou para a negra
Como não lavou o pé?
Que catinga desgraçada
És parenta de coré?
Cuíca denuncia a visão do branco sobre o negro. O discurso do marido americano é
revelador de uma sociedade que vê traços que diferenciam, hierarquizam e inferiorizam
socialmente o negro: estes são sujos, fedem, recebem apelidos pejorativos, como se verifica
no trecho abaixo:
Acorda o cara assombrado
Quando viu um pau de piche
Deitado junto ao seu lado
[...]
Disse a negra, meu amor
Não sabes o que estaes dizendo
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O marujo respondeu-lhe
Você só vive fedendo
A negra foi abraça-lo
E ele sahiu correndo
Quando foi de madrugada
O marujo viajou
Escreveu um bilhetinho
Para a nega ele mandou
Lhe dizendo desgraçada
A sua catinga me pegou
A mesma forma preconceituosa se configura com relação àqueles que optam fazer
parceria amorosa com indivíduos do mesmo sexo. Os homossexuais são animalizados,
recebem nomes depreciativos, conforme se visualiza no cordel O Veado que matou o
Caçador, no qual Cuíca relata um episódio ocorrido em Santo Antônio de Jesus, cidade do
Recôncavo Baiano, envolvendo dois indivíduos que se relacionam sexualmente, atrás do
Departamento da Estrada de Ferro. Nesses versos, são empregadas metáforas animais para a
descrição dos homossexuais.
Com relação aos artifícios emotivos, especificamente os lexicais, estes dão tons
emotivos aos cordéis. Os textos trabalhados são literários, vazados numa linguagem figurada,
subjetiva, o que confere à narrativa uma coloração bastante emotiva graças à presença de
metáforas, metonímias, hipérboles, dentre outras figuras do gênero. Um cordel que evidencia
bastante tal questão é aquele em que o poeta denuncia a carestia e o racionamento dos
alimentos. No folheto, veiculado por Curran (1990, p. 122-127), os alimentos são
personificados e conversam entre si sobre o referido problema que se alastra na Bahia:
Toucinho hoje em dia
Anda de ração
[...]
Porque o pelancudo
Anda agora de avião
[...]
Mestre açúcar eu não falo
Porque me pediu segredo
[...]
O gáz que estava trepado
Em cima de um muro
Foi logo também dizendo/
- É espeto do duro
[...]
Lingüiça foi chegando
Sentou-se em uma caixa
Assistiu toda a conversa
Mastigando uma bolacha
Depois disse com orgulho
A mim ninguém não acha
Gritou carne de boi
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Deixe de arrelia
Não conte o seu pharo
Faça como eu
Desprezei a freguesia.
E assim, outros alimentos desfilam: a carne de sertão, o ovo, o aguardente, a batata, o
cominho, o alho, o café, o azeite doce, a massa de tomate, o azeite de dendê, todos
personificados, denunciando o aumento abusivo dos seus preços, suscitando, no leitor,
sentimentos diversos. No caso em tela, Cuíca metaforiza um problema social que aflige a
população baiana e, para isso, atribui aos alimentos palavras denotadoras de sentimentos
inerentes ao homem. É o ápice da criatividade e picardia de um poeta do povo que, com
maestria, aborda irreverentemente problemas sociais. Paradoxalmente, brincando com a
linguagem, ele toca em uma temática (a fome), conseguindo encontrar explicações políticas
para o fato, denunciando descaso e corrupção.
Uma das causas que pode contribuir para essas inovações lingüísticas é a psicológica.
Ullmann, a respeito disso, aponta dois fatores bastante significativos: os emotivos e o tabu.
No primeiro caso, a necessidade de Cuíca em vender seus cordéis para prover o sustento
familiar faz com que ele se volte para temáticas que despertem o interesse do público leitor,
como as licenciosas. Para retratá-las, então, ele cria metáforas e comparações que dêem conta
de suscitar imagens e experiências que, muitas vezes, são tabus para a sociedade da época,
principalmente àquelas relacionadas ao sexo. Então, por um sentimento de decoro, de
delicadeza ou até mesmo para não espantar o seu público, ele procura utilizar uma linguagem
metafórica, elemento expressivo que se configura, segundo Ullmann (1987, p. 440), por
associações de caráter semântico, conforme se comprova a seguir.
5.1.2 Cordéis de Cuíca: uma abordagem léxico-semântica
Após leitura, análise e muita reflexão foram eleitos vinte e dois cordéis, sendo quatorze
sensacionalistas e oito licenciosos. Elegeu-se como foco de estudo semântico as lexias que
evidenciam um grande poder criativo do poeta, aquelas designadoras de partes do corpo
humano e de tipos de relações sexuais. Com esse corpus definido, chegou-se a uma etapa
mais refinada: procurar ler, nas entrelinhas do texto, o que esse material lingüístico evidencia,
analisando-o do ponto de vista léxico-semântico. Feito isso, chegou-se a uma categorização
79
das lexias estudadas, a partir dos dicionários: brasileiro da língua portuguesa, de Aurélio B. de
Hollanda Ferreira, etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, de Antônio Geraldo
Cunha e o de gíria - Modismo Lingüístico, o equipamento falado do brasileiro, de J. B. Serra
e Gurgel.
As lexias foram subdivididas em quatro grupos: metáforas designadoras de órgão sexual
masculino; órgão sexual feminino; relações heterossexuais; relações homossexuais. Tais
grupos foram classificados em: lexias dicionarizadas com o mesmo sentido; lexias
dicionarizadas com outro sentido; lexias não dicionarizadas. As ocorrências foram
organizadas em tabelas. Na primeira coluna consta a referência pesquisada; na segunda, as
lexias dicionarizadas; na terceira, as lexias dicionarizadas com outro sentido; na última
coluna, inseriram-se as lexias não dicionarizadas. O número dessas colunas variou em função
do registro das lexias.
Observa-se que Cuíca de Santo Amaro, provavelmente por uma questão de tabu de
decência, como denomina Ullmann, sempre que faz referência a determinadas partes do corpo
relacionadas a sexo, utiliza expressões metafóricas. Ele faz esse uso não por falta de
expressão que dê conta de traduzir aquilo que deseja referenciar, afinal, já existe uma
denominação específica. Karl Bühler, citado por Garcia (1982, p. 85), destaca que a metáfora
pode ser empregada como um mecanismo de caracterização pitoresca, e é isso que o poeta faz
quando trata de temas de cunho sexual. E se defende de uma possível acusação de
imoralidade, quando enuncia, no cordel Namoro no Cinema:
Eu sei que muita gente
Vai dizer a autoridade
Que eu... o Cuíca
Só escrevo imoralidade
Mas dentro da Bahia
Falarei sempre a verdade
Em benefício do povo
E da Humanidade.
A metáfora constitui um mecanismo lingüístico bastante significativo para a inovação da
linguagem. Por meio dela, o indivíduo (re)nomeia realidades, descreve experiências, transpõe
elementos de uma realidade para outra, a partir de traços de similaridades captados pela
imaginação, pela sensibilidade não só do produtor, como também do leitor, visto que, para
construir sentidos, é preciso que este evoque determinadas imagens, estabeleça associações e
relações entre o que está sendo dito e o que aquilo significa, posto que na metáfora há uma
transferência de termos por relações de sentido.
80
É por isso que a compreensão de uma metáfora demanda, antes de tudo, que se saiba o
que a coisa real significa, quais atributos possui e, a partir daí, busque-se fazer analogias,
perceber quais dos atributos do termo comparado (A) são extensivos ao comparante (B),
criando-se relações de sentido. Garcia (1982, p. 86) salienta que, se ambos os termos estão
expressos, a metáfora é chamada de in praesentia; do contrário, se só o termo comparante está
presente, ela é pura, ou in absentia. Exemplo disso é quando Cuíca, ao contar um episódio
vivido por um doido tarado e algumas mulheres, em Amargosa, cidade do interior da Bahia,
utiliza algumas expressões para designar vagina e pênis, estando presente apenas o termo
comparante (terreno e esporão, metáforas nomeadoras de vagina e pênis, respectivamente):
Sem a menor cerimônia
Ela deu ao papai
Aquele terreno
Onde a polícia não vai
[...]
Esta foi a primeira
Que entrou em ação
O doido, com toda doidice,
Colocou o esporão
Nesta dona boa
Dentro de uma pensão.
Tais metáforas são possíveis de ser compreendidas a partir dos contextos lingüístico e
extralingüístico, já que o cordel é licencioso e narra a história de um homem que chega à
cidade e, por ser bonito, passa a ser procurado por muitas mulheres, com as quais mantém
relações sexuais. Com isso, provoca um escândalo, sendo levado, pelas autoridades, para um
sanatório na capital baiana. Os termos comparados (vagina e pênis) pertencem a universos
distanciados de terreno e esporão. Esse distanciamento entre os dois termos é apontado por
Ullmann como um fator relevante para que a metáfora seja realmente eficaz, já que isso
conferirá maior expressividade à mesma. Caberá ao leitor construir relações de sentido,
procurando verificar quais atributos são compartilhados entre os termos e, a partir daí, fazer
ilações pertinentes.
81
5.1.2.1 Metáforas designadoras de órgão sexual masculino
Para órgão sexual masculino, foram escolhidas dezenove lexias: seis dicionarizadas;
doze dicionarizadas com sentidos diferentes daquele empregado pelo poeta; uma lexia sem
referência nos dicionários. Todas constam no quadro abaixo. Algumas foram organizadas em
três sub-grupos, em função de apresentarem os mesmos atributos predominantes. Outras, por
apresentarem traços semânticos distintos, foram analisadas isoladamente.
Lexias dicionarizadas Lexias dicionarizadas com
outro sentido
Lexia não dicionarizada
PÊNIS
1. Cano
2. Canudo
3. Carabina
4. Inhame
5. Picolé
6. Pincel
1. Bico de cegonha
2. Camarada
3. Cartucheira
4. Cortante
5. Espingarda
6. Espinhela
7. Esporão
8. Fornalha
9. Fuzil
10. Lanceta
11. Punhal
12. Rabo de arraia
1. Sputinik
Quadro 1: Designações metafóricas para órgão sexual masculino
Os processos semânticos identificados no corpus foram classificados como processos de
inovação, pois, à medida em que se acresce a uma palavra um ou mais sentidos, entende-se
que se inovou a língua, já que esses sentidos são captados pela sensibilidade do indivíduo que
enxerga novas possibilidades semânticas para uma palavra, as quais poderão perdurar por um
tempo mais curto ou se estabilizar na língua.
As ocorrências metafóricas foram agrupadas a partir de traços comuns predominantes,
formando sub-grupos, com exceção da lexia sputinick, que será analisada isoladamente por
conta de ser a única que não é dicionarizada, neste quadro.
A lexia sputinick está inserida no cordel A mulher que morreu no tira-gosto, já
contextualizado anteriormente. Quando utiliza tal vocábulo, Cuíca cria uma metáfora cujo
sentido, para ser construído, demandará do leitor uma contextualização da palavra e, em
seguida, por analogia, o estabelecimento de relações de sentido. Ele faz alusão, intuitiva e
irreverentemente, ao tamanho do pênis, quando o relaciona ao satélite russo, criando uma
imagem grotesca de um órgão sexual exagerado. Há, nesse caso, uma associação entre o
tamanho da nave e o processo de penetração desta no espaço com as dimensões desse pênis,
82
que penetra violentamente na vagina, provocando a morte da mulher. Há, portanto, uma
motivação semântica de natureza metafórica para a lexia empregada, decorrendo disso uma
inovação lexical, na medida em que o poeta forja um novo sentido para uma palavra existente.
No primeiro sub-grupo, temos as ocorrências:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico Dic. Gíria
Cano Designação genérica de toda
espécie de tubo que permita
escoamento de líquidos ou
gases.
Qualquer espécie de tubo
que permita escoamento de
líquidosXIV.
Canudo Tubo, geralmente comprido;
tubo de palha ou plástico
através do qual se sorvem
bebidas frias.
Tubo geralmente grande
XIII.
Carabina Fuzil curto e leve.
Tipo de espingarda1813.
Pênis.
Espingarda Arma de fogo portátil e de
cano comprido.
Arma de fogo portátil de
cano longoXV.
Fuzil Arma de fogo de cano
comprido usada pela
infantaria.
Carabina, espingarda1873.
Não averbadas
Quadro 2: Lexias agrupadas em função dos atributos: formato e tamanho
As lexias cano, canudo e carabina constam nos dois primeiros dicionários com sentidos
distintos daquele empregado por Cuíca, porém, constam no terceiro (de Gíria) com o mesmo
sentido de pênis, o que não ocorre com as lexias espingarda e fuzil, registradas apenas nos
dois primeiros dicionários, porém, com sentido diferente do que consta nos cordéis.
Nas cinco lexias (cano, canudo, carabina, espingarda, fuzil), há atributos em comum: o
formato, o tamanho (são compridos) e o fato de apresentarem uma cavidade interna, pela qual
há escoamento (de líquidos, no caso do canudo e do cano, ou projéteis, nas armas de fogo).
Sendo assim, pode-se fazer uma associação entre tais atributos dos termos comparados e
algumas características do termo comparante (pênis): este também tem um formato cilíndrico,
possui uma cavidade interna que, no momento da ejaculação, serve de canal para a saída de
esperma. Outra ilação possível é quanto à função: as armas de fogo citadas disparam quando
os gatilhos são acionados; os canos e os canudos escoam líquidos. Do mesmo modo, o pênis
expele esperma quando há alguma espécie de estímulo.
É pertinente destacar que o poeta acresce alguns qualificativos às lexias fuzil e
cartucheira quando faz referência a homens que perderam a potência sexual, conforme se
visualiza no folheto O homem das 16 mulheres:
83
Ahi para o Julião
Será uma grande barreira
Pois se queimar o fusil
Ou gripar a cartucheira
Há de alimentar as mulheres
Então de outra maneira
Canudo é dicionarizado como tubo geralmente comprido, através do qual se sorvem
bebidas frias. No etimológico, tal lexia vem dicionarizada como qualquer espécie de tubo
que permita escoamento de líquidos. Nota-se que há uma associação entre o formato e a
espessura do canudo e do pênis descrito: arredondado, fino, com um orifício no interior que
permite escoar líquido, nesse caso, expelir esperma. Desta forma, a lexia é motivada
morfologicamente, pois é derivada de canoe também semanticamente, já que ocorreu a
substituição de uma palavra por outra, por meio de um processo interno, intuitivo, decorrente
de uma relação de semelhança entre um atributo do termo A pênis, que foi transportado para
o termo B canudo, provocando uma ampliação de sentido decorrente de criação metafórica.
Descreve um pênis pequeno e fino, incapaz de preencher os espaços de uma vulva grande.
Nos casos descritos há, portanto, uma motivação semântica, pois ocorreram
substituições de uma palavra por outra por meio de um processo interno, intuitivo, decorrente
de uma relação de semelhança entre atributos do termo comparado que foram transportados
para os termos comparantes.
É importante ressaltar o caráter machista dessas metáforas. Sempre que Cuíca cita o
órgão sexual masculino em histórias protagonizadas por heterossexuais, há representações
super dimensionadas do pênis: são grandes, compridos, potentes. No folheto O Veado que
matou o Caçador, já mencionado, Cuíca narra como um jovem com uma boa espingarda/
resolveu a fazer uma boa caçada. Quando avistou um homossexual, pôs-se:
De prontidão com o cano
Da espingarda preparada
Suspendeu a carabina
Botou-a na posição
[...]
O referido Veado
No momento da caçada
Deu um sopro bem grande
No cano da espingarda.
E assim o inusitado acontece e a história culmina com a morte do homem, chamado por
Cuíca de caçador. Nota-se, portanto, que as metáforas designadoras de pênis têm a função de
84
supervalorizar a masculinidade, o homem portando um membro forte, grande, uma arma que
lhe confere poder.
O segundo sub-grupo é formado por três lexias: cortante, lanceta, punhal. Estas são
definidas como:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico
Cortante De cortador, que corta; aquele que corta a
carne nos talhos.
Não há referência direta. Existe cortar,
fazer incisão em.
Lanceta Instrumento cirúrgico de dois gumes. Lança arma ofensiva?lanceta XIV.
Punhal Pequena arma branca de lâmina curta e
perfurante.
Punho mão fechada? punhal/ XIV.
Quadro 3: Lexias agrupadas em função dos atributos: cortante, perfurante
As três lexias designam objetos cortantes, perfurantes. Este é o traço predominante que é
transferido para o termo comparante, o pênis, que penetra na vagina. Algo que pode ter
contribuído para a criação de metáforas desse tipo são equívocos surgidos em torno da noção
de perda de virgindade atrelada à penetração peniana e ao rompimento himenal quando, na
verdade, tal ruptura só ocorre quando há a presença de hímen e este não é complacente.
Nesse caso, o hímen, membrana localizada na vulva, bloqueia parcialmente a entrada da
vagina e pode ser rompido na(s) primeira(s) relação(ões) sexual(is), com a penetração
peniana. Assim, dessa noção, pode advir a associação de pênis com objetos perfurantes,
cortantes.
O terceiro sub-grupo tem como lexias: bico de cegonha, espinhela, esporão, rabo de
arraia:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico
Bico (de
cegonha)
Bico Extremidade córnea da boca das
aves e de outros animais; ponta ou
extremidade aguçada de vários objetos.
Cegonha Ave pernalta de arribação.
Bico proeminência córnea da boca das aves
e de outros animaisXIII.
Cegonha ave da ordem dos ciconiformes/
XIV.
Espinhela Nome vulgar do apêndice xifóide. Espinha série de apófises da coluna
vertebral? espinhela/ XIV.
Esporão Saliência córnea do torso de alguns machos
galináceos.
?Espora instrumento de metal que se põe
no tacão do calçado para incitar o animal
que se montaXIII.
Rabo (de
arraia)
Rabo - Prolongamento da coluna vertebral
de alguns animais.
Arraia Peixe.
Rabo caudaprolongamento da coluna
vertebral de certos mamíferosXIII;
Arraia ? Raia designação comum aos
peixes elasmobrânquios hipotremados/
XVI.
Quadro 4: Lexias agrupadas em função do atributo: dureza
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As quatro lexias são formas vocabulares registradas, contudo, trazem um sentido
diferente do dicionarizado. O poeta, diante de um elemento a ser apresentado pênis, faz uma
associação deste com outros objetos com os quais tem familiaridade, que fazem parte de sua
experiência de mundo. Todas as metáforas utilizadas dizem respeito a partes do corpo de
animais (alguns são estendidos, na linguagem popular, para os humanos, como o esporão, a
espinhela). Têm em comum uma característica: a dureza.
Note-se que, no caso de bico, não é citado o de qualquer ave, mas de uma que possui um
bico de tamanho considerável. Essa lexia é sempre mencionada quando há alusão a pênis de
um heterossexual. No cordel O Homem que matou a “mulaporque não quis aceita-lo, Cuíca
relata um caso ocorrido em Nazaré, na Bahia. Narra a tentativa de um indivíduo em manter
relação sexual com uma mula, a qual, após consumação do ato, é morta com um golpe de uma
peixeira. O agressor é preso quando:
Descobriu-se finalmente
Que o cãibra sem vergonha
O qual passou na mula
O seu bico sem vergonha
Veio pra Nazaré
Porém morava no Onha
A lexia rabo de arraia está registrada no cordel Namoro no cinema na seguinte estrofe:
Então vi que a tal fulana
As que são de certa laia
Iam de V.8
Fazer a sua gandaia
Para dentro do Cinema
Receber rabo de arraia
Essa lexia também nomeia parte do corpo de animal, especificamente de um peixe que,
quando atacado, aciona um mecanismo involuntário, agitando seu longo rabo, enterrando o
ferrão, estrutura óssea de quase dez centímetros, em quem o ataca. Esse ferrão tem um tecido
glandular que o recobre, o qual se rompe no momento da ferroada, expelindo um veneno no
corpo da vítima. Por analogia, chega-se a uma associação: o pênis possui uma cabeça
chamada de glande, a qual se mantém recoberta por uma pele (prepúcio) quando o pênis não
está ereto (VILELA, 2006). Durante a ereção, há uma dilatação peniana e essa pele escorrega
para trás, deixando à mostra a cabeça do pênis, culminando esse processo com a ejaculação,
assim como o ferrão é recoberto por um tecido que é rompido durante a ferroada.
86
A lexia esporão consta no cordel O escândalo em Amargosa ou o Doido tarado, já
comentado. Cuíca, ao narrar o envolvimento sexual deste homem com algumas mulheres da
sociedade amargoense, diz que:
O doido com toda doidice
Colocou o esporão
Nesta dona boa
Dentro de uma pensão
Esporão é uma palavra derivada de espora, um elemento que confere virilidade ao galo.
É uma espécie de unha localizada na parte posterior das patas e é usada como arma de ataque,
durante, por exemplo, a disputa por uma fêmea. Semelhantemente, o pênis é um símbolo de
virilidade masculina utilizado durante o ato sexual.
Vê-se, desse modo, que essas lexias são motivadas morfológica e semanticamente, uma
vez que são compostas e surgem de uma associação entre um atributo dureza que é
transferido para o elemento aludido pênis.
Cuíca não faz associações aleatórias, antes, foge do lugar comum, buscando elementos
que transportem para a realidade a ser descrita idéias de virilidade, força, masculinidade.
Essas escolhas revelam a forma de pensar típica de uma sociedade machista, que confere ao
homem posição de superioridade: é ele que ataca (introduz o pênis), expele sêmen no corpo
da mulher. Esta, numa posição de subalternidade, tem uma função passiva de receber o órgão
sexual masculino e o seu líquido (esperma).
Esse machismo é muito forte e chega ao extremo quando as mulheres são acusadas
implicitamente de incitar o homem ao estupro, na medida em que o provoca com roupas e
atitudes sensuais. No cordel Garotas que andam sem camisa e sem cuéca, Cuíca critica uma
mudança na moda (as mulheres deixam de usar a anágua e passam a vestir roupas coladas ao
corpo, sem usar a combinação) e deixa entrever que tal costume surge com o intuito de atrair
tarados e transformam a mulher em prostituta:
[...]
Por isso elas usam
Os seus vestidos apertados
Bem justos! É natural
[...]
Com uma finalidade
Para atrair os Tarados
[...]
Mais tudo isto é a moda
[...]
A moda é quem prostitue
Muita garota granfina
87
Em outro cordel, Monstro de Nazaré, o poeta conta como um homem estuprou uma
criança, na cidade de Nazaré. Cuíca, antes de iniciar o relato, discorre sobre crimes desta
natureza, aduzindo que:
[...]
Ainda não divulguei
Os nomes dos camaradas
Porque certas granfinas
Metidas a taradas
Como se deve saber
São as únicas culpadas
Andam sem camisa
Com seu vestido apertado
As vezes transparentes
Grandemente decotados
Obrigam o sujeito
Sem querer virar tarado
Ou seja, se há tarados, a culpa é das mulheres que se vestem de forma indecente, sem
camisa (peça íntima que era utilizada por baixo do vestido, para não marcar o corpo),
despertando desejos sexuais nos homens, provocando-os, incitando-os a comportamentos
inadequados. Os homens são supervalorizados, as mulheres são inferiorizadas e, numa
retomada à versão bíblica da criação do mundo, culpadas por incitarem o homem ao pecado.
No quarto sub-grupo, inserem-se as seguintes lexias:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico Dic. Gírias
Picolé Sorvete solidificado em uma das extremidades dum
pauzinho, e que se toma segurando-o pela outra
extremidade.
Inhame planta da família das dioscoreáceas
pênis
Quadro 5: Lexias agrupadas em função dos atributos: formato, dureza e comprimento
A primeira lexia, picolé, está presente no cordel O homem que matou a mula porque
não quis aceita-lo (esse cordel já foi contextualizado anteriormente). Nele, Cuíca expõe um
caso inusitado:
Alisava ele a mula
Da cabeça até o pé
[...]
Ansioso... com vontade
De passar-lhe o picolé
88
A segunda, inhame, tem seu registro no folheto Namoro no Cinema:
Outro dia lá no Pax
Apareceu um tal
De tanto cumer inhame
Penso que lhe fez mal
Pois ao sair do Cinema
Só fedia a bacalhau
O inhame é uma planta medicinal e alimentícia, cujo tubérculo tem uma espessura
considerável, além de apresentar irregularidades na casca que o recobre, que lhe dão uma
aparência de enervações salientes, o que lembra, de certo modo, o aspecto do pênis, quando
intumescido Além disso, o formato, a dureza e o comprimento são traços predominantes
transferidos para o termo comparante. E há outro aspecto a ser ressaltado: tanto o picolé
quanto o inhame em determinado momento amolecem, o inhame após cozimento e o picolé
quando é retirado do ambiente refrigerado. Semelhantemente, o pênis, após a ejaculação, fica
flácido.
As lexias cartucheira e fornalha estão presentes nos cordéis: O Homem das 16 mulheres
e O marido que passou o cadeado na boca da mulher. No primeiro, o poeta faz chacotas com
o Julião, que mantinha relações sexuais com dezesseis mulheres, afirmando que:
Ahi para o Julião
Será uma grande barreira
Pois se queimar o fusil
Ou gripar a cartucheira
Há de alimentar as mulheres
Então de outra maneira
No segundo folheto, Cuíca registra as ameaças que a esposa faz ao marido, caso
comprove que continua sendo traída:
Um dia ela [a esposa] entendeu
De me falar na navalha
Bem as três da madrugada
Disse ela... seu canalha
Ou você anda direito
Ou lhe corto esta fornalha
Veja-se sentido dicionarizado para as lexias mapeadas:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico
89
Cartucheira Bolsa de couro para cartuchos >cartucho invólucro oblongo de papel ou
cartão
Fornalha parte de uma máquina ou fogão onde se
queima o combustível
<forno recipiente para cozer alimentos
Quadro 6: Lexias agrupadas em função da associação com fogo.
Ambas as lexias têm um atributo em comum: associação com fogo. Essa associação do
pênis com arma é confirmada no título de um dos cordéis do Cuíca: A mulher que deixou o
marido desarmado, ou seja, sem o pênis, já que ele conta a história de um homem que teve o
seu membro decepado pela esposa, irada por ter sido vítima de traição.
A cartucheira é uma bolsa de couro que serve para guardar cartuchos, que são cargas de
arma de fogo. A fornalha é parte do forno, máquina ou fogão onde se queima o combustível.
Ou seja, em ambas são guardados os instrumentos que provocarão combustão: os projéteis e a
lenha, que precisam ser acionados (o cartucho precisa ser disparado e a lenha acesa). E numa
associação semântica, é necessário haver um estímulo que provoque a ereção peniana
(combustão).
25
Há, ainda, lexias que não foram agrupadas, por não terem o mesmo atributo
predominante. São elas: pincel, camarada e manivela.
A lexia pincel consta no folheto O Crente que passou a filha para traz. Neste, o poeta
relata um caso de estupro:
Diz que um protestante/ Saiu fora da trilha/ Alvoroçou-se a tarado/ E avançou na
própria filha/ Diz ele que em Candeias/ [...]/ Viram o Protestante/ Com sua
barbaridade/ Arrancar da própria filha/ A sua virgindade/ Agarrou a própria filha/
E sapecou-lhe o pincel.
Pincel é definido pelo dicionário de Gíria como pênis sem ereção. No Aurélio há alusão
a um tipo de pincel conhecido como brocha, o qual tem pêlos flexíveis, sendo definido como
(chulo) indivíduo sem potência sexual. O uso que Cuíca faz do termo foge desse sentido,
pois a relação sexual se efetiva, culminando com a perda da virgindade, como se verifica nos
trechos do folheto:
[...]
Diz que um protestante
25
Para que o processo de ereção peniana ocorra, é preciso que haja a liberação da acetilcolina, de modo que os
principais eventos neurovasculares da ereção ocorram. Mais detalhes a este respeito podem ser encontrados em
Maia ([2005?]. (data provável)
90
Saiu fora da trilha
Alvoroçou-se a tarado
E avançou na própria filha
Diz ele que em Candeias
[...]
Viram o Protestante
Com sua barbaridade
Arrancar da própria filha
A sua virgindade
[...]
Agarrou a própria filha
E sapecou-lhe o pincel.
Depreende-se, desta forma, que houve a penetração sexual e isso não ocorreria com um
pênis sem ereção.
Cuíca aproveita o fato para discorrer sobre os desvios de comportamento de religiosos
em diversas cidades, como Candeias, Nazaré das Farinhas, Muritiba. Denuncia outros casos,
elucida como esses desvios ocorrem com participantes de distintas religiões, contudo, é
coerente a partir do momento em que não generaliza suas afirmações, ressalvando alguns
tipos de religiosos:
Todos sabem que a Religião
Não é como era antes
Existem atualmente
Muitos padres ignorantes
Também existem muitos
Falsos protestantes
[...]
Existem na Bahia
E em todos os Continentes
[...]
Muitos padres coerentes
Também existem muitos
Protestantes decentes.
A metáfora camarada é empregada no cordel Garotas que andam sem camisa e sem
cueca. O poeta explicita:
Quando entram [as mulheres] nos Ônibus
Ou o bonde que esteja lotado
E ficam na frente de gente
Com aquele seu requebrado
Tem um certo camarada
Que fica todo zangado
91
A lexia em questão é dicionarizada no Aurélio e no dicionário de Gíria como pessoa
que convive com outra. No Etimológico, há registro também, sendo definida como
companheiro. Cuíca cria um novo sentido para camarada que, neste contexto, designa o
órgão sexual masculino, o qual, em determinadas circunstâncias, precisa, metaforicamente
falando, ser amigo, ou seja, tornar-se ereto para conferir virilidade, status de macho ao seu
dono. Ressalte-se que nas duas referências há um envolvimento heterossexual.
Manivela é veiculada no folheto O homem das 16 mulheres. Cuíca conta a história de
um fazendeiro chamado Chico Julião, residente em Itaberaba, sertão da Bahia, que tinha
dezesseis mulheres. E o poeta noticia o que ocorre entre Chico Julião e essas mulheres:
A primeira que o Chico
Traqueja na manivela
E ele sempre gaba
A sua linda tutela
Manivela é dicionarizada como peça de uma máquina a que se imprime movimento com a
mão. uma associação entre o formato cilíndrico, a dureza e o comprimento da peça que,
por analogia, são estendidos ao pênis.
5.1.2.2 Metáforas designadoras de órgão sexual feminino
Foram identificadas oito metáforas empregadas para nomear o órgão sexual feminino, as
quais são dicionarizadas, porém, o poeta lhes confere um outro sentido. São elas:
Dicionarizadas com outro sentido
VAGINA
1. Biscoito
2. Boca da meta
3. Empada
4. Franga
5. Inimigo
6. Siri
7. Terreno
8. Saco
Quadro 7: Designações metafóricas para órgão sexual feminino
92
As oito lexias foram distribuídas em três sub-grupos, em função do atributo
predominante. Duas foram analisadas isoladamente, por não apresentarem relações
semânticas compatíveis.
No primeiro sub-grupo, constam as metáforas:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico Dic. Gírias
Biscoito massa de farinha de trigo,
açúcar e ovos, bem cozida no
forno
Bolinho doce feito à base de
farinha de trigo
pênis
Empada Iguaria de massa com recheio de carne, camarão, etc.,
assada em formas ao forno
1 pessoa que não sai nunca
do mesmo lugar; 2 pessoa
irritante, desagradável.
Franga galinha nova 1 Menina; 2 mulher que faz
sexo com todo mundo
Quadro 8: Lexias agrupadas em função do atributo: alimento
Biscoito, empada e franga estão presentes nos cordéis: O carnaval da bandalheira, O
que houve com D. Júlia (biscoito); A Moça que mordeu Santo Antônio (empada); A viúva
marreteira (franga).
Tais lexias têm em comum uma característica: são comestíveis, característica bastante
empregada no léxico usado em situações em que ocorre sexo, quando são criadas expressões
metafóricas direcionadas para o ato de comer, em referência ao ato sexual, e de comidas, em
relação aos órgãos sexuais. Por aproximação de sentido, passa-se a nomear a vagina com
nomes de alimentos, como os três citados.
No cordel O casamento do homem de Brotas, há uma referência que confirma a
associação feita. Cuíca cria essa história a partir de um caso verídico ocorrido em Salvador,
quando um homem tem o seu membro sexual decepado pela esposa. Esse fato é relembrado
pelo depoente Senhor Gercílio Montenegro da Silva, quando comenta qual era o teor dos
cordéis:
Ele [Cuíca] era como se fosse um folhetim da vida da cidade. Ele era eclético, de
fofoca à política, ele falava de tudo. Tudo o que acontecia de excepcional: mulher
que traía homem, homem que traía mulher. Ele falou muito sobre o homem de
Brotas que a mulher capou. Ele fez um livro, me lembro que ouvi ele recitar várias
vezes.
Depois de contar o fato no cordel A mulher que deixou o marido desarmado, Cuíca
inventa um casamento para o dito homem (ele mesmo confirma essa invenção na última
93
estrofe, dizendo ao leitor que a sátira foi feita em noite de lua, nas cordas da sua lira e que o
tal casamento é uma mentira). O poeta informa:
Vivia o pobre homem
Olhando a boa comida
Ele de olhos compridos
Dizia... ai minha vida
Lamento ter meu pescoço
Com a espinhela caída
“Boa comidaé uma metáfora para mulher, assim como a lexia biscoito é metáfora de vagina,
registrada em dois cordéis. No cordel Carnaval da bandalheira (já apresentado), Cuíca faz
alusão às vestimentas utilizadas pelas mulheres, nas ruas da capital. E informa:
Também se vê nas ruas
Muita moça se divertindo
Somente com uma tanga
O seu biscoito cobrindo
Também se vê aos lados
Os cabelinhos saindo
No folheto O que houve com D. Júlia, Cuíca se vinga da dona de um açougue em
Periperi, bairro suburbano de Salvador, alardeando no cordel a prisão da referida senhora e de
seus filhos, acusados de roubo. O poeta deixa claro que divulgou o ocorrido em represália por
ter apanhado desta senhora, no passado, por denunciar escândalo envolvendo o preço abusivo
praticado pelos açougueiros. Então, ele diz:
A filha [de D. Júlia] que é professora
Lá das bandas do Couto
Dizem que aquela senhora
Estando sem o V.8
Quando tomou um tapa
Botou na rua o biscoito
Veja só que vergonheira
[...]
Os Tarados de Piripiri
Olhando aquela senhora
Sobre o chão estendida
Com o biscoito de fora
O uso metafórico da lexia empada é perceptível no cordel A moça que mordeu Santo
Antônio, citado anteriormente. Cuíca diz o seguinte:
O santo foi a sala
94
Onde estava a camarada
Ele a vendo-a transparente
Principalmente a empada
Ficou sem demora
Com a face corada
A outra lexia, franga, é vista no folheto A viúva marreteira, no qual Cuíca denuncia uma
loira que utiliza mecanismos pouco recomendáveis, como o engano, para angariar vantagens
financeiras. Sobre ela, Cuíca diz:
Além disso a tál viúva
Que levara uma missanga
Evitando que o Otávio
Pinicasse a sua franga
É residente
Na Ladeira do Ypiranga
Conforme Aurélio, pinicar é beliscar, cutucar, sendo assim, a lexia pinicar a sua
franga pode ser compreendida a partir desse sentido e do contexto extralingüístico, já que a
viúva pede dinheiro emprestado ao Otávio, dizendo que era para comprar remédio. Convida-o
a ir à noite até a sua residência, avisando-o que o marido está viajando. Ela deixa implícito
que o pagamento será feito de outra forma. Quando ele vai ao local designado, descobre que a
referida senhora não é casada, nem reside naquele endereço, o que o impossibilitou de pinicar
a sua franga, ou seja, manter relações sexuais, já que franga, nesse contexto, remete a vagina
que pode ser pinicada, beliscada, metaforicamente falando.
Há uma outra lexia que será analisada isoladamente, siri, definida como:
Lexia Dic. Aurélio Dic. Etimológico Dic. Gírias
Siri nome comum a várias espécies de crustáceos sonso, manhoso matreiro
Quadro 9: Lexia que tem como atributo predominante: odor forte
A lexia está registrada no cordel O casamento de Orlando Dias com Cauby Peixoto,
dois famosos cantores da época, Cuíca relata que eles formalizam sua união (o poeta usa a
expressão emancebar-se) em Salvador e curtem sua lua-de-mel no Palace Hotel. O poeta narra
a decepção das fãs de Orlando Dias, com esse enlace:
As fans do Orlando Dias
As que não lavam o siri
Ficaram tão danadas
[...]
95
Porque o seu fan
Casou-se com o Cauby
Siri é um crustáceo muito utilizado como alimento, principalmente nas regiões praianas.
Poderia, por conta disso, ser inserido no quadro anterior, porém, a característica que é
estendida para o termo metafórico, na verdade, é outra: o traço de similaridade perceptível é a
relação feita a partir de uma característica marcante do crustáceo, que é o odor bastante
acentuado que desprende, o qual, por analogia, é atribuído à vagina por esta apresentar um
cheiro forte, quando não higienizada convenientemente.
O terceiro sub-grupo é formado pelas lexias: boca da meta e saco. Como lexias, não
são dicionarizadas, porém, seus termos, isoladamente, constam nos dicionários Aurélio
Buarque e Etimológico.
A primeira lexia é registrada no folheto O escândalo em Amargosa ou o doido tarado.
Cuíca esclarece que o tarado, quando via as garotas faceiras da cidade, ficava a olhar para a
boca da meta. No folheto, o contexto lingüístico é o seguinte:
Acontece que o doido
Que estava na pensão
Tinha segundo dizem
Bôa apresentação
Por muitas donas bôas
Despertava ele atenção
Depois que o doido fôra
Por algumas ... observado
Por muitas destas donas
Se pos a ser visitado
[...]
Hiam elas para a pensão
Do Plácido e da Bujinha
Ficavam com o doido
As vezes até a noitinha
Ele de araque
Ficava tirando linha
[...]
Ficava ele a olhar
Bem para a boca da meta
Vendo como podia
Entrar naquela roleta
As palavras que compõem a lexia boca da meta são dicionarizadas separadamente. No
dicionário Aurélio, são definidas como: boca: qualquer abertura ou corte que dê a idéia de
boca; entrada; meta: alvo, mira. Na linguagem futebolística, boca da meta refere-se à
96
pequena área, no campo de futebol, para onde são direcionados os chutes a gol. É o local onde
o goleiro se posiciona para evitar que a bola entre na trave. A partir desses sentidos, a lexia
faz referência à região pubiana, depreendendo-se que o doido ficava olhando para essa parte,
desejoso de fazer o gol, ou seja, introduzir seu pênis na entrada dessa pequena área, onde se
localiza a vagina, que é o alvo, a meta a ser atingida numa relação heterossexual.
A segunda lexia, saco, é registrada no cordel Garotas que andam sem camisa e sem
cueca (já abordado):
De fato esta moda
É um verdadeiro buraco
Tem mulheres que se apertam
Parecem até um macaco
Agente olha pra frente
E vê a viola no saco
Os músicos costumam guardar seus instrumentos musicais em receptáculos de couro,
plástico ou tecido, os quais são fechados, possuindo uma abertura que possibilite a entrada do
instrumento. O traço de similaridade, nestas metáforas, é a representação feita entre a
aparência e a funcionalidade dos termos comparantes e o termo comparado: oblongos, com
uma abertura circular externa que dá acesso a uma parte interna, sem saída, por onde são
introduzidos e armazenados objetos variados. Por analogia, ocorre esse mesmo processo
semântico no uso que Cuíca faz dessa expressão: a vagina tem um orifício na entrada, no qual
o pênis é introduzido para depositar os seus fluídos.
Inimigo é outra designação metafórica bastante curiosa. Consta no cordel Garotas que
andam sem camisa e sem cuéca:
Há mulheres quando abaixam
Parece até um castigo
Quem estiver observando
Vê até o inimigo
Ou então uma cortina
Que lhes serve de abrigo
Note-se que há um jogo de oposição: Cuíca chama o pênis de camarada e a vagina de
inimigo. Esta lexia é dicionarizada no Aurélio como adversário, contrário. Ou seja, o
inimigo é aquele que opõe resistência, que precisa ser vencido, dominado, subjugado. A
superioridade masculina é evidenciada a partir dessa escolha lexical: a mulher não é vista
como parceira, com quem o homem dividirá o prazer, pelo contrário, o que se estabelece é
uma relação de posse, aqui complementada pela outra lexia empregada pelo poeta para
97
designar a vagina: terreno, território, solo, chão, conforme o Aurélio. Metaforicamente, a
vagina é o espaço inimigo a ser ocupado por um adversário que o invadirá, demarcando seu
território.
As escolhas lexicais para nomear o órgão sexual feminino permitem delinear uma
sociedade que não aceita a igualdade de direitos entre homens e mulheres: o homem é o
encarregado de possuir, penetrar, tomar à força, desempenhando um papel ativo e assumindo
uma posição de superioridade. Em contrapartida, cabe à mulher uma posição de inferioridade,
de receber (inhame, rabo de arraia, esporão, picolé), de ser possuída (carabina, cano,
espingarda), rasgada (lanceta, punhal, cortante).
O léxico empregado denota uma posição de vassalagem da mulher no âmbito social.
Como se não bastasse, explicita ainda a culpa feminina pelos desvios de comportamento do
homem, o qual estupra, agride porque a mulher insinua-se provocativamente, incitando-o a se
desviar de comportamentos tidos como aceitáveis.
5.1.2.3 Metáforas designadoras de relações heterossexuais
Cuíca de Santo Amaro faz um fecundo uso do léxico e revela um grande potencial
criador quando faz alusão às relações heterossexuais. Das cinco lexias selecionadas, apenas
uma é dicionarizada, mesmo assim com outro sentido, já que meter a viola no saco é,
conforme dicionário de Gíria, ser obrigado a aceitar alguma coisa ou conformar-se. Nas
outras quatro lexias, o poeta, a partir de palavras já existentes, cria expressões metafóricas
bastante inusitadas, conforme explicitado no próximo quadro. Por conta de não suscitarem as
mesmas associações, nem terem em comum os mesmos atributos dominantes, as ocorrências
serão analisadas isoladamente:
Lexia dicionarizada com outro
sentido
Lexias não dicionarizadas
RELAÇÕES
HETEROSSEXUAIS
1. Meter a viola no saco 1. Cair no sustenido
2. Fazer canjerê
3. Fazer trovejo
4. Traquejar na manivela
Quadro 10: Designações metafóricas para relações heterossexuais
98
A primeira lexia, cair no sustenido, é veiculada no cordel O Carnaval da bandalheira,
no qual o poeta noticia:
São nestas casas suspeitas [bordéis]
Que vai muita beldade
Vender por miçanga
A sua virgindade
[...]
Depois do Carnaval
[...]
Não é somente a donzela
Que cai no sustenido
[...]
É porque no Carnaval
Muitas delas perdem a calma
Saem numas para as ruas
Como confessa o Djalma
E se entregam! Se entregam!
Se entregam de corpo e alma
[...]
Na quarta-feira de cinza
Rei Momo deixa a cidade
Deixando muito veado
Morto de saudade
E muita donzela chorando
A sua virgindade
Note-se que há a junção do verbo cair, definido pelo Aurélio como ser lançado ao chão;
decair; dare o substantivo sustenido: acidente musical que indica elevação de um semitom
da nota que está à sua direita. Por analogia, pode-se entender que nesse tipo de relação
sexual a mulher deita-se sobre o pênis ereto, ocasionando a penetração sexual.
A expressão fazer canjerê é formada pela junção do verbo fazer e do substantivo
canjerê. Este, segundo o dicionário Etimológico, é de origem africana, porém, de étimo
indeterminado, sendo definido pelo Aurélio como (Bras.) reunião de pessoas, em geral de
negros, para a prática de feitiçarias. Castro (2001, p. 198), em sua pesquisa sobre
vocabulário africano importado pelo português do Brasil, registra a lexia como procedente das
línguas banto. Tal lexia é encontrada no folheto Namoro no Cinema, no qual o poeta dá a sua
versão acerca do que ocorre no cinema:
Lá dentro do Cinema
A coisa é sempre mais séria
[...]
Moça com seu namorado
Lá dentro da matinée
Com sua mão bulinando
Toca a fazer cangerê
É ahi caro leitor
Que começa o misere
99
[...]
[...]
Ficam tocando buzina
[...]
Mordem o beiço da fulana
Amassam bem o seu peito
[...]
Com vaselina no bolso
[...]
Para passar no pescoço
Canjerê é definido por Castro como sessão de feitiçaria; feitiço. Outra descrição dada é
canjerê como uma festa homenageadora de entidades selvagens, na qual é travado um ritual
de combate entre entidades da mata contra espíritos pouco evoluídos. As entidades recebidas,
ao dançarem, gritam ao som de instrumentos musicais (FERRETI, 1993). No contexto em
que a lexia é empregada, canjerê relaciona-se à masturbação que faz parte do ato sexual, do
jogo de atração feito pelos homens quando querem, como diz Cuíca, Ensina[r] as donzelas a
perderem o seu pudor, o que se aproxima de uma luta que tem como arma a sedução, o
despertar do desejo feminino. E isso culmina, como informa o poeta, com a perda da
virgindade:
Uma vez passei na zona
E encontrei lá mais de cem
Elas!... as Donzelas
Que não davam a ninguém
Por causa do Cinema
Hoje não valem um vintém
A lexia traquejar na manivela é veiculada no folheto O homem das 16 mulheres, já
mencionado. Essa lexia não é dicionarizada, porém, isoladamente, as palavras que dela fazem
parte são definidas como: traquejarperseguir, exercitar; manivelapeça de uma máquina a
que se imprime movimento com a mão, sendo utilizada para pôr uma máquina em
movimento. Nesse sentido, traquejar na manivela remete, numa perspectiva semântica, ao
movimento de penetração peniana que ocorre durante o ato sexual, ao impulso que o homem
imprime ao seu corpo para executar o ato sexual.
No mesmo cordel, Cuíca refere-se ao ato sexual como fazer sempre o seu trovejo.
Trovejar, de acordo com o Aurélio, é retumbar, ribombar, lançar raios. Como o ato sexual
culmina com a ejaculação, é possível depreender que a característica em comum entre o termo
comparante e o comparado é o ato de lançar algo: no sentido real, raios; no metafórico,
100
esperma, durante a ejaculação. Além disso, alguns indivíduos, no momento do clímax,
costumam emitir sons altos, como gritos, que retumbamno ambiente.
5.1.2.4 Metáforas designadoras de relações homossexuais
É visível um discurso preconceituoso nos cordéis de Cuíca de Santo Amaro que
enfocam a homossexualidade. Aqueles que optam por se relacionar com pessoas do mesmo
sexo são referenciados em alguns desses folhetos como bichos, animais, bezerros, bicharia,
bichano, veados. São criadas metáforas animais, como denomina Ullmann (1987, p. 444), que
ocorrem quando há transferência de nomes típicos do reino animal para a esfera humana,
adquirindo, nessa passagem, significações grotescas, pejorativas, como se verifica no cordel O
que dizem de Ângelo Ribeiro. O preconceito já é visualizado na capa, quando o poeta informa:
Este Livro é matéria paga, o Trovador nada tem a ver com as anomalias de ninguém. No
decorrer da narrativa, verifica-se que o homossexualismo é visto como doença e como uma
aberração pela sociedade da época:
Diz a Deus e ao Mundo
Que o Ângelo é invertido
A muito... muito tempo
Sofre desta enfermidade
Ainda sobre os homossexuais, Cuíca informa, no cordel O Bezêrro de Nazaré:
Existem homens no mundo
[...]
Que tem um grande prazer
Em transformar-se em animais
[...]
Digo ao presado leitor
Aí é que está o êrro!!!
Também muito elemento
Que já está no destêrro
Também sentem o prazer
Em transformar-se em Bezerros
101
O poeta, com agudeza de espírito, para referir-se a esse tipo de relação sexual, associa
designações existentes, estabelecendo relações de semelhança entre traços característicos de
determinados termos comparantes, transpondo para o termo comparado determinados
atributos predominantes e, assim, forma metáforas criativas, conferindo maior expressividade
aos enunciados.
Cuíca serve-se de expressões reforçadoras de preconceito em relação aos homossexuais
que, assim como as mulheres, são inferiorizados, só que de forma mais perversa, pois,
enquanto para estas são usadas palavras menos agressivas, para aqueles o léxico empregado é
recheado de expressões pesadas, bastante chulas, como se percebe nas designações criadas, as
quais são explicitadas no quadro abaixo:
Lexias não dicionarizadas
RELAÇÕES
HOMOSSEXUAIS
1. Cair na peia
2. Castigar a matéria
3. Entrar no picolé
4. Receber a diferença
5. Receber instrumento na boca do formigueiro
6. Refrescar o fogareiro
7. Tomar no ralo
8. Trabalhar por detrás
Quadro 11: Designações metafóricas para relações homossexuais
As lexias constituem expressões metafóricas elaboradas com formas verbais e nominais,
conforme contextualizado no cordel O que dizem de Ângelo Ribeiro, que narra a história de
um possível
26
homossexual, Ângelo Ribeiro, que paga a jovens para manter relações com ele:
O Ângelo se sente bem
Gosta de fazer caridade
De preferência, senhores
A brotos de tenra idade
[...]
Dizem que o Ângelo
Que é cheio de dinheiro
Gosta de vez em quando
Quem refresque-lhe o fugareiro
[...]
Por causa do calôr
Entra sempre no picolé
Lá na sua residência
Sempre o Ângelo cae na peia
26
Diz-se possível homossexualporque, como já explicado, Cuíca publica posteriormente outro cordel
retratando-se por conta de ter veiculado mentiras a respeito de Ângelo Ribeiro, alegando que a culpa pelo
equívoco é da fonte de informação, já que o folheto foi matéria paga.
102
[...]
Acontece que os taes brotos?
É coisa muito séria
Pois nas costas do Ângelo
Castigam sempre a matéria
[...]
Dizendo que pegaram
O Ângelo no banheiro
Recebendo um instrumento
Na boca do formigueiro
Estava ele... o Ângelo
Em uma agonia imensa
Dentro do banheiro
Recebendo a diferença
[...]
Dizem também que o Ângelo
Que toma sempre no ralo
[...]
Aqui em Salvador
Há homens anormais
Alguns por prazer
Trabalham por detráz
E muitos e muitos outros
Se casam com animais
Algumas dessas lexias apresentam um traço característico comum: são iniciadas pelas
formas verbais: cair, entrar, receber, tomar, as quais, nesse contexto, são denotadoras de
passividade, conforme se depreende do sentido dicionarizado no Aurélio Buarque: cairir ao
chão, ser lançado ao chão; entrardeixar-se dominar; receber aceitar; submeter-se; tomar
receber; deixar-se possuir ou dominar.
Tais formas são sempre empregadas neste cordel quando verbalizam ações relacionadas
ao homossexual. Depreende-se, deste modo, que os versos de Cuíca refletem o modo de ver o
homossexualismo como uma relação marcada pela subordinação à vontade do outro, como
um ato de vassalagem que só ocorre quando um dos parceiros deixa-se subjugar, sujeitando-se
ao outro. Isso também fica claro no cordel O casamento de Orlando Dias com Cauby Peixoto:
o poeta conta a briga que houve entre ambos, na lua de mel, no hotel onde ficaram
hospedados:
Ouviu então o gerente
Uma voz dizer assim
Ai meu pae eterno!
Ai meu senhor do Bomfim
Cauby você tem de
Servir de mulher para mim
103
De mulher uma ova
O Cauby lhe respondeu
Você vae dar a mim
A quem outrem já deu
Portanto Orlandinho
Trate de me dar o meu
Disse-lhe o Orlando Dias
É preciso você saber
Você que também é
Precisa compreender
Que farinha com farinha
Nada pode resolver
Lá se foi o Orlando
Com sua voz de ouro
Lá se foi o Cauby
Também levando um tesouro
Mas saibam as suas fans
Que ambos não dão no couro
Saibam as fans destes caras
As quaes não teem vergonha
Que o Orlando e o Cauby
A anos já entortaram
O bico da cegonha
Seguem-se às formas entrar e cair os vocábulos picolé e peia, respectivamente, definidos
no dicionário de Gírias como pênis, e já analisados anteriormente. Duas formas nominais
são acrescidas a receber: instrumento e diferença, que são, nesse contexto, metáforas
designadoras do órgão sexual masculino. A primeira é registrada como pênis, no dicionário
de Gírias. A segunda é dicionarizada com sentido diverso do empregado pelo poeta, tendo
como significado qualidade de diferente, no Aurélio Buarque, enquanto que no cordel o
vocábulo nomeia o órgão sexual masculino.
Ressalte-se que, após o sintagma receber instrumento, há o acréscimo da expressão na
boca do formigueiro, que é uma nomeação metafórica para ânus (orifício na extremidade
terminal do intestino). Há, neste caso, uma relação de semelhança no que concerne à forma
dos dois elementos: formigueiro é o buraco ou a toca de formigas(Aurélio Buarque) cuja
entrada tem um formato circular de borda irregular; o ânus também tem configuração similar,
já que é arredondado e não apresenta uniformidade na parte externa.
A forma verbal tomar é seguida do vocábulo ralo, aqui empregada com sentido diverso
daqueles perceptíveis nos dicionários consultados que trazem as seguintes definições: lâmina
com muitos orifícios para coar água(Aurélio Buarque); lâmina com orifício para coar
líquidos(Etimológico); amasso, namoro(de Gírias). No cordel, a palavra faz alusão ao
ânus. Observa-se que há entre o termo comparante e o comparado uma característica comum:
104
a função de escoamento: o ralo recebe líquidos que são escoados, enquanto que o orifício
anal, numa relação sexual, recebe o esperma, após a ejaculação.
Nas lexias castigar a matéria, refrescar o fugareiro e trabalhar por detrás, os verbos são
relacionados ao parceiro sexual que assume o papel de ativo. Depreende-se que Cuíca,
refletindo a postura machista da época, descreve o ato homossexual como sofrimento
impingido àquele que é penetrado sexualmente por um parceiro que marca a sua posição de
superioridade.
O cordelista explicita sua não aceitação nesse tipo de relação no cordel O casamento de
Orlando Dias com Cauby Peixoto, deixando claro que é uma vergonha para a sociedade a
manutenção de ligações amorosas entre parceiros do mesmo sexo:
No Teatro Castro Alves
Aqui nesta capital
Foi realisado
O enlace matrimonial
Veja só que vergonha
Pra nossa terra natal
Matéria é dicionarizada no Aurélio Buarque como substância suscetível de receber
certa forma ou em que se atua determinado agente. É empregada no cordel em tela como
uma metáfora designativa de ânus, que recebe o órgão sexual masculino, nesse tipo de relação
descrita.
Refrescar o fugareiro também é metáfora para relação anal. O vocábulo fogareiro é
dicionarizado no Aurélio Buarque como pequeno fogão portátil para cozinhar ou para
aquecer. O Etimológico traz a seguinte acepção: fogareiro XVI <fogo desenvolvimento
simultâneo de calor produzido pela combustão de certos corpos. Nesse sentido, o vocábulo
fogareiro pode ser visto como uma designação metafórica de ânus, local que ao ser atritado,
durante a relação sexual, é irrigado pelo sangue, intumescendo, o que produz a sensação de
calor. Além disso, há uma relação de semelhança no que concerne à forma arredondada da
boca do fogareiro e do ânus.
Trabalhar por detráz consta no cordel O homem que casou com um veado. A construção
de sentido metafórico desta expressão é bastante evidente, já que um dos parceiros posiciona-
se atrás do outro para efetivar a penetração sexual.
Ao utilizar metáforas para designar a realidade que o cerca, Cuíca a apresenta sob um
novo enfoque, buscando no contexto extralingüístico algo que aproxime essas duas situações,
uma real, outra imaginada. A partir de características comuns, ele faz associações de caráter
105
semântico, o que demanda do leitor, para construir sentidos, a necessidade de fazer ilações, de
estabelecer relações com os contextos lingüístico e cultural.
106
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto cordelístico registra, com humor, a alma do povo, suas convicções, seus valores.
São folhetos que informam, divertem, discorrem sobre a vida e os costumes de uma época,
revelam preconceitos, medos, anseios, gostos, desejos, documentando e interpretando o que
ocorre no seio de uma sociedade.
Cuíca de Santo Amaro é um desses poetas do povo que, pela linguagem, disserta sobre
acontecimentos políticos, sociais e culturais, bem como sobre as injustiças do seu tempo. Ele
faz da linguagem seu instrumento de trabalho, através dela se impõe como um indivíduo que
precisa ser respeitado, constituindo-se na língua e através dela. E mescla os seus folhetos com
uma linguagem satírica, outras vezes muito lúdica, a depender daquilo que ele precisa
enunciar. E entre galhofas e mordacidades, o poeta ora acusa, ora defende, irritando alguns,
divertindo outros. Denuncia escândalos, informa fatos ocorridos em surdina, na cozinha da
sociedade, como diz o Monsenhor Gaspar Sadoc, defende direitos de excluídos; em
determinados momentos, atinge injustamente algumas pessoas, sempre muito irreverente,
irreverente, irreverente, como reforça o depoente João Valentim.
Cuíca é ambíguo muitas vezes, mordaz em outras situações, amado por uns, odiado por
outros, com comportamentos contraditórios, mas sempre lembrado por seu público como um
indivíduo pobre, negro, semi-analfabeto, que se imiscui e se impõe na sociedade baiana como
alguém que não se deixa vencer por preconceitos, não se amedronta com perseguições e
prisões, revelando uma personalidade marcante. Com uma auto-estima elevada (já delineada a
partir do pseudônimo Ele o Tal), ele se auto-define como um indivíduo inteligente, astuto,
sagaz, chegando a dizer que “O povo é sabedor/ Que eu tenho competência/ A minha
inteligência/ É o meu maior tesouro.
O poeta desafia os limites impostos pela vida, rompe com a ordem estabelecida, forja o
seu caminhar fazendo das ruas, praças, becos, trens e feiras o palco do seu existir,
transformando-os em espaços de enunciação. É assim que vai construindo sua identidade na
língua, expressando por meio desta as necessidades de se consagrar socialmente, constituir-se
enquanto sujeito da sua própria linguagem, afirmando sempre que enquanto eu vida tiver/
Seja ou não na capital/ Cuíca de Santo Amaro/ Sempre foi e é o Tal!!
E para dar força ao seu dizer, o poeta faz um uso fecundo do léxico e, quando este não
consegue dar conta daquilo que almeja enunciar, o poeta inova, brinca com as palavras, mexe
com os sentidos que estas têm, percebendo outros ainda não captados. Em vez de moldar seus
pensamentos à linguagem conhecida, Cuíca se torna senhor desta, inovando sentidos,
107
permutando outros já existentes. Transita com desenvoltura pelo nível lexical, junta palavras
de universos distintos, provoca modificações no nível semântico destas, utiliza a língua
criativamente. Com isso, revela a vivacidade, o humor e a beleza que impregnam a palavra e,
por esta, desnuda realidades sócio-culturais, testemunhando a história de comunidades
lingüísticas, assim como as normas sociais que as regem.
A leitura desses cordéis abre janelas que deixam entrever como vivia a sociedade da
época: os valores mais cultivados; os preconceitos escancarados e outros ainda latentes, mas
perfeitamente identificados nas entrelinhas do dito; a luta das classes populares por uma vida
mais humanizada; as relações desiguais entre ricos e pobres; os abismos sociais; os problemas
que afligiam o povo, como a falta de moradia, o desemprego, a carestia; o jogo assimétrico de
poder que favorecia aqueles que detinham domínio econômico; os conchavos; os jogos de
interesses voltados para a manutenção dos papéis sociais desiguais em que o clero, a polícia,
os políticos se unem em torno de um propósito, que era a perpetuação do domínio elitista.
Essas configurações já começam a ser evidenciadas nos títulos criativos que Cuíca dá
aos seus cordéis, permitindo ao leitor fazer uma previsão da leitura, aguçando-lhe o desejo de
verificar se esta se confirma. São títulos saborosos, picantes, controversos, outros chulos,
como diz o depoente Adauto Antônio Costa, verdadeiros chamarizes para um público ávido
por notícias, fofocas e divertimento. Mas não suscitam apenas vontade de saborear notícias e
fofocas. Despertam também a curiosidade científica que frutificou uma investigação cuja
preocupação central direcionou-se para analisar os recursos semânticos mais significativos
perceptíveis no corpus, bem como verificar se o contexto extralingüístico colabora para a
fixação do significado das palavras.
A contribuição do contexto foi evidenciada no momento em que, para captar o sentido
que Cuíca confere a determinadas lexias, o leitor precisa valer-se não só do contexto
lingüístico, como também do extralingüístico, conforme se explicitou na análise de algumas
lexias. Como defendem Ullmann e Baldinger, todo estudo lingüístico deve levar em conta o
estudo da cultura e do meio social, uma vez que o contexto cultural contribui para a apreensão
do significado de certas palavras. Isso foi feito na análise empreendida, ficando evidente que
os cordéis representam e trazem à luz os valores e crenças presentes na sociedade. O leitor
consegue compreender, a partir do teor dos cordéis, como se dá a ressignificação de fatos e
atos de determinada comunidade, percebendo formas de ver o mundo, estereótipos, dentre
outras nuances.
Verificou-se também que os valores evocativos tornaram determinadas lexias utilizadas
pelo poeta mais expressivas. E assim, Cuíca, através de imagens que remetem ao princípio
108
material e corporal, explorou o realismo grotesco a partir de escolhas lexicais impregnadas de
metáforas sexuais, algumas delas bastante singulares. Em outros momentos, empregou
palavras conhecidas, porém, acresceu-lhe sufixos que conferiram juízo valorativo a
determinados significados. Em outros momentos, juntou palavras dicionarizadas, formando
lexias inusitadas.
Comprovou-se também como o poeta, mediante uma linguagem subjetiva, conferiu à
narrativa uma coloração emotiva quando necessitou fazer referência a imagens e experiências
que, naquele determinado contexto, eram tabus para a sociedade, por remeterem às partes do
corpo relacionadas à vida sexual. Por necessitar vender folhetos para sustentar sua família e
saber que fatos picantes seriam chamarizes, o poeta driblou a censura de uma sociedade
hipócrita, fez uso de uma linguagem metafórica como um mecanismo de caracterização
pitoresca, configurada por associações de caráter semântico, tudo isso para atrair um público
diversificado. Uma das depoentes deixa claro que não comprava os cordéis por conta de
serem picantes, mas que os ouvia, quando se deslocava para Camaçari no mesmo trem que o
poeta. Vários depoentes fizeram alusão a essa picardia, a essa linguagem escrachada do
Cuíca.
O corpus selecionado permitiu a emergência de um outro olhar sobre esses cordéis, e a
análise apontou como o poeta manejou a língua com criatividade, inovando-a, na medida em
que criou lexias e captou outros sentidos para as existentes, revelando um uso produtivo do
léxico.
A linguagem metafórica se configura como fator principal para as criações na língua.
Nesse sentido, um dos principais fatores de motivação e de artifícios expressivos são as
designações metafóricas pitorescas e humorísticas perceptíveis no corpus, utilizados por
Cuíca para abordar temáticas relacionadas à esfera sexual, a fatos culturais controversos. Sem
dúvida, esse uso metafórico confere maior expressividade à enunciação do poeta.
É pertinente salientar como o léxico escolhido é revelador de uma sociedade, já que as
lexias relativas ao universo feminino empregadas por Cuíca, quando comparadas àquelas
direcionadas para o papel masculino, evidenciam uma posição de inferioridade da mulher que
é sempre possuída, penetrada, cabendo ao homem o papel de dominador. Além disso, nas
entrelinhas, é possível depreender que os estupros e agressões são crimes praticados pelos
homens face à provocação e insinuação feminina. São escolhas lexicais que contribuem para
elevar a masculinidade, reforçar o papel de dominador dos homens e da subalternidade das
mulheres. E dá visibilidade também a um grande preconceito em relação aos homossexuais.
109
Constata-se, de forma inequívoca, o papel significativo do contexto extralingüístico,
uma vez que as expressões metafóricas identificadas, em sua maioria, foram geradas em
função de um contexto situacional, refletindo, deste modo, uma estreita relação entre língua e
cultura.
Apesar de a análise não ser quantitativa, é válido destacar que o número de lexias
dicionarizadas com outro sentido e não dicionarizadas foi superior ao das dicionarizadas com
a mesma acepção atribuída por Cuíca. Das quarenta lexias analisadas, registram-se: seis
dicionarizadas (15%), vinte e uma dicionarizadas com outro sentido (52,5%), treze não
dicionarizadas (32,5%). Esses dados apontam para uma inovação lingüística significativa nos
cordéis trabalhados, na medida em que Cuíca de Santo Amaro foge do lugar comum,
enxergando novas possibilidades semânticas para a sua enunciação.
Pesquisar textos de Cuíca de Santo Amaro foi extremamente gratificante, pois ele é um
dos poetas que representam a voz do povo e tem um perfil identitário que suscita admiração,
já que conseguiu, pela linguagem, afirmar-se como sujeito da sua história, delineando, em
seus versos, a sua e a trajetória de tantos outros. É a voz subalterna que se eleva,
sobressaindo-se em meio à multidão, contando a história do povo, perpetuando em seus
cordéis as crenças, os costumes, os valores que impregnaram a sociedade da sua época.
A investigação feita procurou revelar dados significativos para os estudos semânticos e
contribuir para ressaltar a riqueza do universo cordelístico também nesse tipo de abordagem, e
pretende despertar uma maior curiosidade científica sobre a literatura de cordel numa
perspectiva semântica.
110
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executiva: Glauber Rocha. Elenco: Geraldo Del Rey, Helena Ignes, Luíza Maranhão, Antonio
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XAVIER, Regina Célia Lima. A Conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda
metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória, 1996.
114
ANEXO Lista dos cordéis utilizados na pesquisa
1. A bagunça no pleito eleitoral
2. A Grande Feira
3. A moça que mordeu Santo Antônio
4. A mulher que casou com a outra
5. A mulher que deixou o marido desarmado
6. A mulher que morreu no tira-gosto
7. A vingança do homem de Brotas
8. A viúva marreteira
9. A viúva que casou com Véu e Grinalda
10. Garotas que andam sem camisa e sem cueca
11. Homem de pau miúdo não casa com mulher da curva grande
12. Inundação em Cachoeira e Nazaré
13. Monstro de Nazaré
14. Namôro no Cinema
15. O ABC da carestia
16. O bezêrro de Nazaré
17. O carnaval da Bandalheira
18. O casamento de Orlando Dias com Cauby Peixoto
19. O casamento do homem de Brotas
20. O crente que passou a filha pra traz
21. O escândalo em Amargosa ou o doido tarado
22. O feitiço virou contra o feiticeiro
23. O Homem das 16 mulheres
24. O homem que casou com um Veado
25. O homem que matou a mula por que não quis aceitá-lo
26. O homem que virou esqueleto de tanto esperar o ruído do telefone
27. O marido que passou o cadeado na boca da mulher
28. O menino que nasceu pedrêz
29. O Padre que enterrou o cavalo dentro da igreja em Amargosa
30. O prefeito que enguliu o motôr em Santo Antonio de Jesus
31. O que dizem de Ângelo Ribeiro
115
32. O que há com teu Perú?
33. O que houve com D. Júlia
34. O Veado que matou o Caçador
35. Os embromadores do povo
36. Por que candidatei-me a vereador
37. Quem tem inimigos não dorme
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