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Baianas do Acarajé
A uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira
Gerlaine Torres Martini
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Universidade
de Brasília.
Orientador:
Prof. Dr. José Jorge de Carvalho
Brasília
2007
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Universidade de Brasília
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Baianas do Acarajé
A uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira
Gerlaine Torres Martini
Brasília
2007
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Agradecimentos
Este trabalho de tese somente foi possível a partir do financiamento da bolsa do
CNPq, através do Programa de s-Graduação em Antropologia Social da Universidade de
Brasília. Não é possível deixar de mencionar também a inestimável colaboração e
disponibilidade de Rosa e Adriana da secretaria.
É necessário relembrar neste espaço o apoio dos familiares e amigos próximos que
sempre se fez presente em todos os momentos. Agradeço a todos os que me auxiliaram
através do diálogo, das sugestões, dos recursos oferecidos em diversos planos, do
acolhimento nos momentos de dificuldades.
Agradeço ao professor José Jorge de Carvalho pela compreensão de minhas
posições, pelo respeito à minha autonomia no campo do saber e pelo voto de confiança que
isso representou.
Agradeço a Pai Air José de Jesus e à acolhida que me foi dada pelo Pilão de Prata
em Salvador. Relembro aqui também a interlocução e o estímulo que me proporcionou José
Renato Baptista em pleno campo e que me fizeram avançar inúmeras vezes em meu
trabalho de pesquisa.
O contato com o professor Vivaldo da Costa Lima, inclusive o acesso à sua
biblioteca particular, foi bastante valioso, e também o agradeço muito.
Enfim, não poderia deixar de enfatizar a grande disponibilidade de todas as
vendedoras de acarajé, que mesmo interrompidas na atribulação de seu trabalho se
dispuseram a falar longamente e a serem observadas em seu ofício. A contribuição da
Associação das baianas de acarajé e mingau foi imprescindível e sempre acrescida de
gentileza.
4
Resumo
Este trabalho tem por objeto de estudo o comércio tradicional de acarajé que se originou
das práticas votivas dos cultos afro-brasileiros, tornando-se uma atividade secular na
história da cidade de Salvador, caracterizada como um ofício feminino. A análise do ofício
implicou em uma história das transformações sofridas por suas formas tradicionais de
venda a partir do século XX, sempre confrontadas pelos poderes públicos e, recentemente,
pelas novas correntes evangélicas das igrejas neopentecostais. Esses confrontos conduziram
finalmente ao registro desse ofício como bem imaterial do patrimônio nacional brasileiro,
processo aqui discutido a partir das reações desta atividade tradicional com relação às
novas tentativas institucionais de uniformização.
Resumée
Ce travail a pour objet le commerce traditionel d’acarajé, dont l’origine se rencontre dans
les pratiques votives des cultes afro-brésiliens, et qui est devenu une activité seculaire dans
l’histoire de la cité de Salvador, caracterisée comme un métier traditionel féminin.
L’analyse de ce métier a impliqué une histoire des transformations que ses formes
traditionelles de vente ont souffert depuis le XXème siècle, toujours confrontées aux
pouvoirs publiques et il y a peu de temps aux nouveaux courants évangéliques des églises
neopentecôtistes. Ces confrontations ont mené à l’inscription du métier au patrimoine
immatériel national brésilien, ce qu’on discute ici selon les reactions de cette activité
traditionelle par rapport aux nouvelles tentatives institutionelles d’uniformisation.
5
Sumário
Introdução----------------------------------------------------------------------------------------------7
A antiga cidade: baianas mercantes e a origem de uma imagem feminina afro-brasileira
Mulheres mercadoras desde os princípios---------------------------------------------------------12
O problema das distinções étnicas------------------------------------------------------------------16
Africanas nas ruas e seus trajes: para além das distinções étnicas, os recortes de gênero---26
A roupa da baiana: passado revivido em novos sentidos----------------------------------------28
As peças do vestuário: trajetória das adaptações sobre concepções estéticas africanas-----36
Tessituras do oriente----------------------------------------------------------------------------------37
Os feitios que cobrem o corpo-----------------------------------------------------------------------42
Indícios dos postais: preservação de um estilo afro-barroco----------------------------------- -49
O turbante: exclusividade feminina, permanência e apropriação-------------------------------49
Os pés descalços e as sandálias enfeitadas---------------------------------------------------------69
Contas e metais preciosos: talismãs emblemáticos que desapareceram do cotidiano--------73
Pano-da-costa: legado étnico------------------------------------------------------------------------85
Cores e listras: pureza, proteção, contenção e perigo--------------------------------------------92
Formação da culinária local e seus aspectos rituais
Gamelas e tabuleiros: um percurso dos produtos------------------------------------------------101
Dieta africana do tabuleiro-------------------------------------------------------------------------115
O tabuleiro e o caruru: feminino e infância aliados na representação
da desordem das ruas--------------------------------------------------------------------------------138
Intervenções e tentativas de controle sobre as mercadoras
Abastecimento e o cerceado trabalho feminino nas ruas de Salvador------------------------163
Uniformização do século XX----------------------------------------------------------------------178
Ascensão da imagem típica da baiana------------------------------------------------------------191
6
Mulheres empreendedoras em família
Uma construção afro-brasileira alternativa ao mercado formal de trabalho-----------------202
Como se vende hoje acarajé: formato ainda tradicional----------------------------------------206
Aprendizado tradicional e a racionalidade dos cursos e treinamentos------------------------217
Descaracterizações e argumentos religiosos-----------------------------------------------------228
Registro do acarajé: buscando a justiça e a concórdia------------------------------------------236
Novas apresentações do acarajé-------------------------------------------------------------------242
Últimas considerações: ofício tradicional e tecnologias de higiene-----------------------249
Referências bibliográficas------------------------------------------------------------------------259
Fontes históricas------------------------------------------------------------------------------------269
Referências iconográficas-------------------------------------------------------------------------270
Imagens anexas-------------------------------------------------------------------------------------274
Distribuição espacial de tabuleiros-------------------------------------------------------------290
7
Introdução
O trabalho de pesquisa que resultou na elaboração desta tese foi inspirado por
algumas indagações iniciais sobre a natureza e a importância da atividade da venda de
acarajé em Salvador e o alcance que as disputas entre as baianas do acarajé mais
consagradas tinham na mídia nacional. Motivou-me também o surgimento do chamado
“acarajé de Jesus”, prática bastante recente da venda de acarajé por baianas convertidas ao
protestantismo, principalmente o neopentecostal, que almejava se desvincular totalmente da
tradição. O registro do acarajé como bem imaterial a ser preservado pelo IPHAN, que
aconteceu durante o período de meu curso na pós-graduação do Departamento de
Antropologia, veio a confirmar esse primeiro impulso.
As relações com Salvador, enquanto campo de pesquisa, vinham de um projeto
anterior que resultou em minha tese de mestrado sobre a fotografia de Pierre Verger e seu
papel no que foi considerado uma “antropologia nativa” expressada através de uma
linguagem predominantemente visual. Uma convivência também anterior com o universo
dos cultos afro-brasileiros em Salvador foi intensificada durante o trabalho de campo, no
final do ano de 2004 e em 2005, quando residi num terreiro de candomblé e de onde tirei
algumas informações valiosas. Esse contexto encontra-se refletido no texto, permeado pelo
diálogo com o candomblé e com suas expressões visuais.
Além de residir num terreiro localizado na Boca do Rio (Ilê Odô Ogê - Pilão de
Prata), também permaneci um período no Pelourinho, onde se encontra a sede da
Associação das Baianas do Acarajé e Mingau, que me orientou sobre a localização de
pontos de venda e sobre questões mais imediatamente relevantes para a categoria como um
todo. Procurei visitar diversos bairros, as festas de largo e busquei inclusive os tabuleiros
dos considerados evangélicos. Observei o cotidiano de venda nos pontos, desde os de
menores recursos até os mais consagrados pela opinião popular.
O tema do acarajé e do tabuleiro da baiana está inserido também em uma tradição
de estudos sobre antropologia da alimentação brasileira. Alguns de seus principais
desenvolvimentos foram expressos e sintetizados na produção de, entre outros autores,
Maria Eunice Maciel, como ocorre, por exemplo, em seu texto Identidade Cultural e
8
Alimentação (2005) onde trata da cozinha brasileira partindo do ponto de vista de uma
culinária originalmente produzida dentro do processo de colonização, analisando os pratos
mais corriqueiros como o arroz com feijão e a exaltada feijoada. A autora também
menciona as cozinhas regionais, que agem como referenciais identitários, lugar onde situa o
interessante caso da culinária brasileira afro-baiana, com as emblemáticas baianas do
tabuleiro.
Como a ppria autora coloca em destaque, estas vieram a se tornar emblema da
nacionalidade, o que podemos verificar por sua presença na nota de 50 mil cruzeiros reais e
em canções como No Tabuleiro da Baiana (1936), composição de Ary Barroso e O que É
que a Baiana Tem? (1939) de Dorival Caymmi, esta última tendo alcançado divulgação
internacional através da cantora Carmen Miranda.
Em se tratando de comida brasileira, um dos principais referenciais continua sendo
Luís da Câmara Cascudo em sua monumental História da Alimentação no Brasil (2004).
José Reginaldo Santos Gonçalves (2002), que participou da discussão para a elaboração do
inventário do acarajé, faz uma análise de seu trabalho sobre alimentação e o situa dentro do
enfoque do paladar, complementando a abordagem dos autores que se preocuparam com as
questões da nutrição e da fome no Brasil, como Josué de Castro. Câmara Cascudo seria
uma das fontes nativas no caso da culinária nacional, tendo captado, em sua obra de fôlego,
elementos identitários das refeições e das cozinhas de nosso país.
No caso bastante específico de Salvador, é impossível não falar de Vivaldo da Costa
Lima e de seu projeto de uma antropologia da alimentação, proposta que se caracterizou
como um dos desenvolvimentos de sua relação com a pesquisa dos cultos afro-brasileiros.
A familiaridade com o mundo dos candomblés traz a percepção do papel crucial das
refeições no universo religioso e, conseqüentemente, nas relações dos cultos com os outros
mundos com que sempre teve de se confrontar. O presente trabalho termina confirmando
esse ponto de vista, anunciado há décadas atrás por Costa Lima.
O trabalho do inventário sobre o acarajé, elaborado com a finalidade de formar os
subsídios necessários para o tombamento, vem se acrescentar como referência nesta área.
Raul Lody, que participou diretamente do inventário, também se caracteriza como um autor
com um histórico de estudos envolvendo o universo dos cultos.
9
Por causa do inventário, uma longa pesquisa em torno dos aspectos culinários e de
uma espécie de catalogação de um sistema nesse sentido estava em curso, no mesmo
período de trabalho que eu vinha desenvolvendo. Esse investimento relacionado à
preservação deixava claro que o acarajé era uma parte emblemática de algo maior,
obviamente relacionado com o candomblé. Senti que havia a necessidade de uma discussão
em torno desse algo que saía da culinária e surpreendentemente retornava a ela, e que
parecia relacionado à figura da baiana do tabuleiro. As querelas e discussões em torno do
acarajé apontavam quase sempre para as tentativas de atingir uma imagem típica da
baianidade - que chegou a alcançar o status de uma imagem de brasilidade e, mais ainda,
exclusivamente feminina. Após as primeiras indagações, esse trabalho optou, então, por
investigar essa imagem da baiana do acarajé, o que o levou na direção de uma análise
detalhada, que atravessa mais de três séculos, de vários aspectos históricos de sua
construção.
Deste modo, a primeira parte foi dedicada ao vestuário. A própria identidade da
baiana do tabuleiro está ali expressa, sendo a indumentária um primeiro objeto pelo qual as
baianas do tabuleiro lutaram no sentido de preservar o ofício. O tratamento voltado mais
para uma determinada história de Salvador surgiu no sentido de dar mais clareza à ppria
memória do candomblé, não simplesmente expressada oralmente, mas também
visualmente. Era necessário contextualizar essa roupa com mais referências que fossem
além de uma constatação de sua natureza afro-muçulmana, inclusive detectando aspectos da
indumentária européia, do colonizador, nas próprias expressões do vestuário em si. O texto
veio surgindo, então, como um diálogo interior com a memória do candomblé. Esse
diálogo, detalhado neste primeiro capítulo, incluiu os aspectos outrora étnicos, que sempre
precisam ser colocados em questão, quando se trata do universo do candomblé, o qual tira
seu prestígio das diferenças e especializações, como se estas fossem um índice de
preservação do saber dos antigos.
Durante o trabalho de campo, havia, no entanto, nas declarações das vendedoras,
afirmações recorrentes a respeito da roupa típica que não eram uma referência estrita à
tradição que eu conhecia dos cultos afro-baianos, a qual formava a identidade dessas
vendedoras em relação ao ofício do tabuleiro, mas que mostravam e a favor de uma
inusitada concordância com as baianas que eram contra a tipicidade do vestuário “acara
10
de Jesus”. Havia uma insistência em legitimar a roupa típica como se ela tivesse a
capacidade de cumprir as mesmas exigências de um uniforme idealizado para os
empregados de estabelecimentos comerciais especializados em refeições – de roupa sagrada
ao uniforme de vendedora, uma nova guerra cultural parecia em ação.
Esse aspecto passou a direcionar a pesquisa, como se pode verificar ao longo dos
capítulos. Parecia necessário buscar noções de pureza no universo das comidas de
candomblé que pudessem se relacionar com a tendência ao elogio da assepsia encontrada
na fala dessas vendedoras. No entanto, a assepsia aparecia sempre como um elemento
circundante ao ofício. Podemos encontrar essa discussão, com um enfoque culinário, no
segundo capítulo, que terminou colocando em ênfase a refeição votiva do caruru. Ao
mesmo tempo, o caruru demonstrou ser um aspecto chave na definição das comidas de
tabuleiro e na relação das vendedoras com o cotidiano das ruas.
A assepsia, tal como definida ao longo do século XX pelas ideologias
modernizantes e disciplinadoras das elites brasileiras, não fazia parte da tradição do
tabuleiro, o que se verificava pela relação gravada na memória dos cultos e das vendedoras
com a indumentária e a comida. Era preciso procurar entender por que esse tipo de
atribuição de falta de assepsia incomodava a ponto de funcionar como argumento a ser
incorporado pelas próprias baianas, para que não se voltasse contra a preservação das
expressões culturais (materiais e imateriais) típicas do ofício. Essa constatação orientou a
pesquisa para a análise da relação dessas mulheres com seu local de trabalho. Assim, o
cotidiano das ruas da cidade está explicitado no terceiro capítulo. Ali se revelam as
atribuições seculares de desordem que foram lançadas sobre esse ofício feminino e seu
papel na história de Salvador.
A última parte concentra-se no momento presente dessa tradição secular, onde as
fontes do argumento asséptico puderam ser abordadas com mais clareza, definindo uma
espécie de rede de domesticação que vem atuando sobre as baianas do acarajé. Essa rede
não estaria situada apenas no plano de controle da assepsia, mas também na busca de uma
eficiência deste comércio em relação à lógica do planejamento e do lucro, por sua vez
relacionada à indústria do turismo. Esses aspectos lançam um contraste que termina
revelando a própria concepção de trabalho tradicional dessas mulheres, mais uma vez
interligada à construção de valores do candomblé em Salvador.
11
Deste modo, o acarajé, enquanto representação da ntese de comidas que fazem
parte do tabuleiro e ainda povoam as ruas da atual Salvador, conduziu a análise através de
uma dimensão histórica que pôde elucidar o percurso que levou a essa presença constante e
cotidiana dos elementos materiais e imateriais consagrados pelos terreiros, que tornaram o
tabuleiro uma fonte emblemática dos valores afro-brasileiros. Nesse sentido, a elaboração
desta tese encontra-se na articulação entre etnografia e história, reiterando a idéia de uma
Antropologia que não pode se expressar com mais plenitude separada da História.
12
A antiga cidade: baianas mercantes e a origem de uma imagem feminina
afro-brasileira
Mulheres e mercadoras desde os princípios
Muitos recursos dos quais as vendedoras de comida do tabuleiro hoje dispõem são
retirados dos modelos tradicionais que foram sendo construídos ao longo de um processo
iniciado no tempo colonial. A cidade de Salvador, fundada em 1549, era um atraente sítio
com muitas riquezas naturais, além de lugar estratégico por causa da visão privilegiada
proporcionada pela acessível enseada marítima.
Desde suas origens, Salvador apresentava vocação mercantil, pois era um porto
natural que foi se aparelhando pela mão dos que nele se estabeleceram e de seus
descendentes. A cidade dos dois séculos seguintes à fundação ficou profundamente
marcada pelas trocas comerciais, como nos descreve Kátia Mattoso (1978: 101) no clássico
Bahia: A Cidade de Salvador e seu Mercado no Século XIX: “Um mundo pleno onde os
habitantes mourejam e labutam para ganhar o pão de cada dia em mil e uma atividades,
todas elas ligadas à grande dominante que é o comércio”.
O primeiro núcleo de povoamento da cidade se constituía por uma parte de edifícios
públicos e pelo largo da feira, praça onde se desenrolava o comércio incipiente (Mattoso
1978: 89). Esta ficou caracterizada por uma divisão entre a parte alta e a parte baixa, sendo
que a última se situava na outrora estreita faixa litorânea ao longo das formações rochosas
que sustentam os lugares mais altos.
As ladeiras que davam acesso de uma parte a outra logo tomaram importância,
tornando-se escoadouros de mercadorias, trazidas por indígenas e pequenos lavradores
vindos do interior (Mattoso 1978: 101). A principal mercadoria a ser exportada pela colônia
era a cana-de-açúcar e o mundo rural que cercava a nascente cidade tinha seu foco sobre
os engenhos. Logo o tabaco viria se juntar à cana como produto de exportação (Verger
1966).
Assim, ainda segundo Mattoso, Salvador se desenvolveu como uma espécie de
posto avançado da metrópole portuguesa, cumprindo o papel de metrópole colonial. Dessa
13
forma, a cidade se posicionou como central com relação ao seu entorno rural, mas
indissociável deste. Seu abastecimento recorria à produção agrícola local, mas Salvador
também importava alimentos e produtos portugueses. Podemos perceber seu papel de
destaque como principal intermediária da colônia com o mundo além mar. Essa
predominância se estende até meados do século XVIII. Essa ênfase no papel de porto
atravessador de mercadoria interferiu na construção da urbanidade soteropolitana.
Os primeiros registros sobre as mulheres que iniciaram a tradição do tabuleiro e
antecederam as baianas do acarajé recuam para um período anterior ao da primeira
descrição desse alimento. No século XVII, em 1631, como indica documento das posturas
do Arquivo Municipal de Salvador, as “pretas eram obrigadas a ter licença para poder
vender na rua, em pouco tempo após a fundação da cidade (Vasconcelos 2002: 36)
1
. Luís
da Câmara Cascudo (2004: 599) detecta a venda ambulante de alimentos desde 1584
2
e
situa a formação do costume de apregoar doces em meados do século XVIII, sendo o
primeiro registro pertencente a Salvador. Esse tipo de venda ambulante coincide com a
consolidação da paisagem urbana de Salvador, mesmo porque as feições próprias de uma
cidade se delinearam a partir de meados do século XVII até meados do século XVIII
(Vasconcelos 2002: 92-3), quando a população dobrou em número.
Ao constatarmos a antiguidade da atividade de vendedoras africanas nas ruas da
cidade, fica a pergunta: haveria alguma predominância étnica na origem desse mercado?
Muitas vezes, as referências mais fortes recaem sobre os costumes mercantis do povo
africano de língua ioruba, mas o tabuleiro, assim como outros aspectos, inclusive o
candomblé - instituição da qual o tabuleiro foi uma extensão durante séculos – é produto de
uma reunião de estratégias e códigos de vários povos reinventados em terra brasilis.
Certamente, durante o longo cativeiro em terras brasileiras, que foi conformando a
vida daqueles que foram escravizados a condições muito particulares de natureza regional,
os saberes trazidos de algumas zonas do continente africano tiveram de ser adaptados.
Embora abalado por uma ruptura, o modus vivendi daqueles povos envolvidos e capturados
pelo tráfico de mão-de-obra, naquele período, o foi totalmente apagado no recôndito das
senzalas ou dos porões das casas urbanas provinciais.
1
Nem sempre produtos de gênero alimentício faziam o tabuleiro. Fazenda de tecidos também eram
comercializadas e foram proibidas em 1653 (Vasconcelos 2002: 83).
2
Salvador é construída entre 1549 e 1551 (Mattoso 1978: 100).
14
Um dos aspectos mais interessantes dessa maneira de viver, não de todo
generalizável a um enorme continente cuja diáspora trouxe às terras brasileiras uma grande
diversidade de povos, é a importância do mercado enquanto lugar de expressão da vida
política de grupos divididos a partir de construções tradicionais de gênero.
Esse é o caso dos iorubas, da costa ocidental africana
3
, que tinham um lugar
especial para a mercancia. Seu mercado cercava-se de aparato ritual, sendo, de um ponto de
vista da própria sociedade iorubana, uma espécie de foco cultural, que poderia parecer, ao
olhar estrangeiro àquela sociedade, um traço distintivo dela própria. Este mercado
organizava-se a partir de um sistema dual sexual, o que dava autonomia às mulheres
(Verger 1992; Matory 1994: 209; Amadiume 1997).
Mais tarde, essa característica da sociedade iorubana vai se destacar dentre os
costumes soteropolitanos, quando este povo for transportado, em grande número, para a
capital a partir do século XVIII. No entanto, os dados demonstram uma atividade feminina
mercantil muito mais anterior, demonstrando que, às antigas formas de venda pela rua,
decerto empreendidas por mulheres de regiões africanas mais ao sul do continente, foram
agregadas as maneiras mais recentes e iorubanas do pregão. Essas formas mais antigas
também possuíam um forte aspecto luso-africano centro ocidental, pois foram criadas a
partir das adaptações culturais realizadas entre Portugal e as regiões de Congo e Angola
desde o culo XV. O próprio tabuleiro era um instrumento de trabalho usado por
vendedoras nas ruas de Portugal, naquele período, como pode ser observado em detalhes de
monumentos históricos em azulejo, dos quais a atividade representada está atestada por
documentos portugueses do século XV.
Nessa época um pouco mais recuada, também se tem notícia dos quilombos que se
encontravam no litoral. Onde se encontra o famoso largo do Rio Vermelho, hoje tão
próximo e acessível, além de ser um point de venda de acarajé, teria havido um quilombo
4
-
segundo Décio Freitas (1977), citado por Vasconcelos (2002: 44). Essa simples
coincidência provável incita a reflexão sobre o que se encontra para além das coincidências.
Os quilombos, de áreas outrora afastadas, hoje se encontrariam dentro do perímetro urbano
3
As regiões de Angola e do Congo, de onde também chegaram diferentes etnias, ficam definidas neste
trabalho como África Central Ocidental.
4
Local também de resistência indígena, onde cinco aldeias foram incendiadas pelo governador Duarte da
Costa em 1555 (Risério 2004: 93).
15
e foram antecedentes de um lugar de sociabilidade e resistência africana mais urbanizado,
que foi a antiga versão, provavelmente mais familiar, dos atuais terreiros de candomblé
5
.
É preciso abordar com clareza as diferenças entre os terreiros do passado, mais
próximos de uma resistência quilombola, e os candomblés de hoje. Embora possa parecer
redundante essa afirmação, do ponto de vista histórico, a ideologia dessas casas de culto
hoje conhecidas como candomblé procura velar estes aspectos, como se as mudanças de
condição e da própria sociedade passassem ao largo de suas tradições. Ao mesmo tempo,
guarda mitificado o saber a respeito de seus próprios percursos históricos. José Jorge de
Carvalho (1987: 14) chama este aspecto de dinâmica de conservação. O discurso desses
cultos enfatizaria a conservação e o estático encobrindo uma prática constante de reposição
do perdido.
Talvez, por isso, passe desapercebido para os adeptos dos cultos afro-descendentes e
para o senso comum do qual não estão excluídas as próprias baianas de tabuleiro
algumas distinções que foram vivenciadas e exteriorizadas por volta do século XVII e
XVIII, como aquela entre africanos propriamente ditos e os seus descendentes nascidos em
território nacional. Esse aspecto teve importância durante longa parte da história de
Salvador
6
.
Essas distinções eram explicitadas pelas irmandades, instituições que reuniam
africanos ou brancos organizados. Praticamente a única forma de associação civil local à
época, as irmandades seguiam um modelo católico romano, o único permitido na sociedade
dominante colonial. Mas os africanos que, a meu ver, se converteram predominantemente
por questões de tática
7
naquele período, tinham como sede autêntica, porém implícita, uma
espécie de sustentáculo territorial localizado em outros lugares para além dos templos
barrocos cristãos.
Eram estes algumas casas urbanas e os próprios quilombos. Em ambos os casos,
estes locais dariam lugar, aos poucos, e lentamente, a terreiros que surgiam, algumas vezes,
5
Enquanto os terreiros, que foram roças afastadas, são hoje predominantemente urbanos, as comunidades
remanescentes de quilombos são rurais (Moura 2001) fruto de um outro tipo de desenvolvimento que a
resistência africana produziu. Na Bahia, temos como ícone de comunidade remanescente a de Rio das Rãs,
uma das primeiras a ser reconhecida como terra quilombola (Carvalho 1996).
6
A propósito do “emaranhado de situações sociorraciais e étnicas” ver João José Reis (2003: 23).
7
A preocupação inicial e predominante das irmandades de cor era a de obter recursos para um sepultamento
decente dos seus, acesso o qual a condição servil impedia, e também proporcionar auxílio mútuo. Ver Reis
(1997: 122-23). Tornar-se católico facilitava esse acesso.
16
nas mesmas áreas afastadas, trazendo conservadas suas qualidades rurais, de fora dos
portões da cidade, para os locais que se urbanizavam. Por isso, o terreiro de hoje ainda
guarda características da “roça”, como também continua sendo chamado, mesmo quando
se situa em meio a grandes metrópoles.
As associações de africanos oficializadas reuniam-se dentro das igrejas católicas, ou
melhor, nos arredores daqueles templos. Provavelmente estas mantinham contato com a
resistência dos que ainda se encontravam de fora, e perpetuavam suas crenças de origem e
modos próprios de se relacionar, encobertos pela submissão das irmandades aos cânones
temporais e seculares ditados pela Igreja. A igreja da Barroquinha é um dos melhores
exemplos dessa ambigüidade.
Essa igreja, que hoje se encontra em restauração
8
, fica praticamente no centro
histórico e turístico da cidade e é antecedida por um declive no terreno. Naquele período,
sua posição não poderia ser vista como tão central, mas era muito próxima dos principais
edifícios das instituições coloniais. Em seu espaço disponível atrás do templo é que teria se
iniciado o “terreiro” da Barroquinha, através de uma irmandade que vai dar origem mais
tarde, segundo a tradição, ao terreiro da Casa Branca, hoje patrimônio nacional
9
.
Nesse contexto encontramos as vendedoras nas ruas, presentes desde o século XVII.
Elas formavam, junto com quilombos, nascentes irmandades e espaços que culminarão em
terreiros, um grupo que representava a forma como os africanos buscavam sobreviver e
socializar-se.
O problema das distinções étnicas
Essas distinções definem-se como um problema porque, na grande região
metropolitana de Salvador do século XXI, não fazem mais sentido. O resultado das
trocas que hoje podemos definir como universo afro-brasileiro regional baiano muitas
vezes encarado como a representação nacional da afro-brasileiridade tem, no entanto,
8
A construção da capela da confraria de N. S. da Barroquinha foi iniciada em 1722, conforme Inventário de
Proteção ao Acervo Cultural da Bahia, monumentos do município de Salvador (Vasconcelos 2002: 109).
9
Segundo alguns autores, a irmandade africana em questão cultuava a Nossa Senhora da Boa Morte (Verger
1982: 65; Reis 2003: 333). Para uma síntese problematizada ver Renato da Silveira (2005).
17
uma face étnica específica, que agora se globaliza cada vez mais. As baianas de tabuleiro
têm estreita relação com esse tipo de representação, fazem parte dela.
As irmandades traziam o diverso espectro das diferenças étnicas do período colonial
cuja memória, em Salvador, nunca se perdeu, embora tenha se mitificado através dos
candomblés
10
. Os que tinham vindo da região de Angola, chamados “angolas
11
, teriam
uma relação mais próxima com os crioulos descendentes de africanos que podiam se
confundir com os “pardos e considerados como da terra, pois participariam do grupo
que teria chegado primeiro, começando cedo sua história como parte pertencente do novo
território. João José Reis (2003: 332) sintetiza a situação:
Crioulos e angolanos parecem ter desenvolvido estratégias assemelhadas de
sobrevivência e resistência à escravidão. Talvez porque os angolanos
estivessem aqui desde o início da colonização, por terem sido pais e mães
dos primeiros crioulos e pardos; se outros continuavam a chegar de Angola,
os aqui presentes introduziam-nos às maneiras e malícias da terra do branco,
facilitando pela experiência a adaptação dos novos. Quando no século XIX
os africanos ocidentais começaram a chegar em massa, já havia uma longa
tradição angolana de interação com o meio brasileiro e seus habitantes, entre
os quais os crioulos.
Os interesses crioulos nem sempre eram os mesmos dos africanos estrangeiros,
como bem atesta a série de rebeliões africanas ocorridas em Salvador e seu entorno no
século XIX. Numa revolta de 1822, “pardos se posicionaram como colaboradores dos
brancos e contra “pretos cativos e forros (Reis 2003: 96). Muitos crioulos adotavam a
profissão de caçadores de escravos (Reis 2003: 101) ou de feitores. Eles foram
identificados como aqueles que serviam a casa grande e que se recusavam a participar das
revoltas (Reis 2003: 110). Esse tipo de relação entre africanos e crioulos também fez parte
da rebelião em Salvador que terminou com a deportão de grande parte de africanos
libertos em 1835.
No entanto, a agregação entre etnias diversas e seus descendentes nascidos no
Brasil parece ter sido predominante, contando-se um longo período de tempo. Pelo menos,
10
A preservação da memória nos candomblés soteropolitanos parece ter sofrido um processo diferenciado dos
cultos afro-brasileiros em outras regiões, por uma conservação quase minuciosa de diferentes aspectos étnicos
e de diversas adaptações barrocas destes aspectos.
11
Segundo Reis (1997: 122), os “angolanos eram uma “identidade que encobria diversas etnias deportadas
através de Luanda e Benguela”.
18
de algum modo, em meio às diferenças, conseguiu-se criar e manter um sistema próprio e
extensivo a todas elas, que foi incorporando elementos diversos ao longo do tempo, como é
o caso dos cultos afro-brasileiros, que terminaram mitificando a memória dessas diferenças.
O próprio contexto propiciava a busca de solidariedade, visto que a justificativa daquela
sociedade colonial para a opressão dos africanos não era a origem étnica, muitas vezes
ignorada, mas a cor da pele, já que a violência colonial buscava colar sobre o corpo humano
as condições de dominação que ela própria havia construído, uma essencialização que
certamente visava fazer perdurar o statu quo.
Assim, a contribuição cultural daqueles africanos, que chegaram primeiro à região e
que falavam línguas cuja síntese é conhecida hoje como grupo linguístico banto
12
, define-se
como uma camada mais antiga da identidade afro-brasileira que se construía. Linda
Heywood (2001:63l) descreve a diversidade étnica desses africanos:
Os escravos de Angola vinham de três povos que falavam línguas distintas
quimbundu, mbundu e quikongo e moravam em diferentes Estados, sendo
que os mais importantes deles eram o reino do Congo, os Estados mbundus
chamados Ndongo, Matamba, Njinga e Kasanje, e os Estados de Ovimbundu
das terras altas do interior. Ainda hoje os mbundus, congos e ovimbundos
formam a maioria esmagadora da população de Angola. Os governantes e
povos dessa região que fornecia escravos para os portugueses tinham várias
características culturais em comum, inclusive línguas fortemente
aparentadas, crenças e práticas religiosas; e costumes similares, até mesmo
danças, ritos de iniciação e instrumentos musicais. As suas ideologias
políticas tinham muitos pontos parecidos, entre eles as idéias fundamentais
sobre quem deveria governar, as obrigações dos reis, os procedimentos para
exercício do poder, e rituais religiosos comuns que influenciavam a política.
Além disso, todos tinham rituais públicos altamente formalizados que
permitiam a socialização dos jovens e o seu ingresso em várias organizações
religiosas e seculares.
Maria Inês Côrtes de Oliveira (1997) prefere enfatizar as diferenças entre esses
primeiros povos aqui embarcados, contrapondo-se à uniformização com que foram tratados
desde então. Segundo a autora, embora as primeiras designações para africanos chegados à
Bahia, no século XVI, tenham sido “negro da Guinée “gentio da Guiné, esses termos
12
“Desde que Bleck criou, em 1860, o termo “banto” para classificar um conjunto de aproximadamente 2.000
línguas africanas, este termo serviu, não raro, para designar outras realidades bem distantes daquela proposta
pelo seu criador” (Oliveira 1997: 54).
19
podem ser interpretados como uma categoria geral para cativos oriundos de toda costa
ocidental africana. Ela explica que, apesar das dúvidas que os registros disponíveis não
conseguiram elucidar, é consenso que o fluxo do tráfico para a Bahia, a partir de Angola,
foi predominante no século XVII. Seria discutível quais povos daquela região teriam vindo
parar em nosso território e também seria questionável sua unidade cultural:
Para a Bahia, como não existe grande variedade nos etnônimos aplicados
pelo tráfico durante o Ciclo de Angola, o que se deduz é que uma boa parte
dos cativos classificados como sendo de origem congo ou angola, não
pertencia sequer a povos que viviam em áreas de influência destes reinos,
mas sim a outros reinos e “nações” do interior da África subequatorial
(Oliveira 1997: 54).
Se esses povos de Angola formaram as primeiras associações religiosas, as
irmandades chamadas “jejes (língua fon) ou “nagôs (língua ioruba) vêm posteriormente,
como que se sobrepondo e mesclando-se à contribuição dos primeiros
13
. Fica evidente que
estas se instauram, no século XVIII, seguindo as tentativas de adaptação e resistência
fundadas pelos de Angola e por sua descendência direta
14
, em paralelo à resistência dos
próprios quilombos a qual, por sua vez, poderia ter bebido de algum contato com os
habitantes das aldeias indígenas que povoavam o litoral longínquo e que também eram
oprimidos
15
.
As etnias recém chegadas a partir do século XVIII, que tomaram o epíteto
generalizador de “sudaneses”, encontraram formas de convivência construídas pelos “da
terra” e as recriaram, legando a sua contribuição. Não fizeram melhor, simplesmente
transformaram. O nome desse complexo de permanências culturais e adaptações ficou
conhecido, portanto, com o nome de seu último acabamento, do ponto de vista étnico, o
chamado nagô e, mais recentemente, “nação ketu
16
, num tom mais específico ao campo
da religiosidade afro-brasileira dos candomblés.
13
Três irmandades de “angolas instituem-se entre 1686 e 1700. Os jejes se associam em meados do século
XVIII (Vasconcelos 2002: 80) e o Compromisso da Irmandade do Senhor dos Martírios de Cachoeira é o
registro mais antigo (1765) que comporta essa designação (Oliveira 1997: 70).
14
Os pardos, que podemos considerar um dos desenvolvimentos dos crioulos, formam uma irmandade em
1718 (Vasconcelos 2002: 80).
15
A colaboração indígena suscita discussões. Por exemplo, Reis (2003) duvida que ela seja um fato numa
revolta de 1814. Tânia Almeida Gandon (1997) discute a paradoxal relação entre africanos e indígenas em
bairros de Salvador a partir da memória popular.
16
Para os sacerdotes baianos, nagô reúne ketu e ijexá (Ordep Serra 1995: 63, 69), regiões na Nigéria de fala
ioruba. Mas outros povos iorubanos, que relacionavam suas origens a Oyo ou a Ife, também se abrigaram sob
20
A designação “nagô” não foi exclusiva da região da Bahia, tendo variações
regionais, assim como os nagôs não chegaram somente ao litoral baiano
17
e seu
comportamento pôde se expressar, em nosso território, tomando tonalidades locais. Porém
refiro-me, acima, especificamente ao nasoteropolitano. Não é fácil dar um significado
sintético, ou mesmo local, a uma palavra tão densa e com diferentes versões, todavia
semelhantes, para algumas regiões nacionais. Por causa dessa complexidade e da variação,
a única conclusão mais segura é que, definitivamente, os povos que vieram da costa e do
interior da Nigéria e do Benin e que incorporaram tal denominação de nagôs, que se tornou
mais generalizada e mais corrente no Brasil, foram marcantes
18
. Essa denominação
terminou por designar grande parte do que se refere ao legado cultural, tido como nacional,
dos afro-descendentes. O papel de uma expressão que pretenderia manter maior
proximidade com antigos costumes africanos terminou lhe sendo atribuído, enquanto suas
interpretações desses costumes se tornaram marcas de autenticidade.
Parece mais evidente, hoje, que não há nem “pureza nagô”, nem nagô como símbolo
da antônima mistura e daquilo que deve ser evitado
19
. A palavra “nagô” tomou uma
conotação ideológica perpetrada por alguns estudiosos em busca de africanismos e de
instituições africanas que teriam alcançado certa permanência na diáspora, como Roger
Bastide e Pierre Verger. No entanto, o que eles chamaram de candomblés mais puros
(Bastide 1961: 18) ou de “jeje-nagô (Verger 1999) suponho ser simplesmente o nome de
uma síntese de elementos africanos dos chamados “angola-congos”, jejes e iorubas que se
amalgamaram no Brasil, principalmente no caso particular de Salvador.
É claro que o oficiante de um terreiro “congo-angola não admitirá que está
praticando um “amálgama”, muito menos o líder de um candomblé ketu, mais prestigiado.
Porém, ao observarmos a ocorrência de diversas formas de adaptações realizadas por
diversos povos africanos ao longo do tempo, uma se sobrepondo a outra, poderíamos
explicar, por exemplo, porque o candomblé ketu adquiriu certa preeminência. Tal prestígio
essa denominação. O termo “ioruba aplicava-se originalmente aos habitantes de Oyo e depois toma
conotação abrangente como uma das etnias em território nigeriano (Oliveira 1997).
17
Aportavam em Salvador e migravam para outras regiões ou aportavam em outros portos da costa, conforme
o período. Sobre o tráfico interno ver Richard Graham (2002).
18
Vivaldo da Costa Lima (1976) e Joana Elbein dos Santos (1976), citados por Oliveira (1997), apresentam
duas versões da origem do termo. O autor o considera um apelido jocoso recebido dos fons e a autora defende
que o termo seria de origem ioruba.
19
O relato da visão sergipana sobre o que é nagô, em comparação ao toré, nos traz essa versão (Beatriz Góis
Dantas 1988).
21
tem como uma de suas causas um tipo de “nagocentrismo” incentivado por esses estudos
africanistas, os quais acabaram servindo de fonte de divulgação e marketing para as casas
de “nação ketu”. Outras nações de candomblé, num contexto fora de Salvador, passaram até
mesmo a se afiliar ao “ketu”.
Uma perspectiva de sobreposição explica a semelhança estrutural entre as nações de
candomblé, na disposição de suas cerimônias, em sua estrutura e base, que possibilita tais
afiliações e a participação de adeptos de nações diferentes nos rituais tanto de uma quanto
de outra
20
. As nações de candomblé hoje, reminiscência das irmandades étnicas de
africanos do Brasil colonial, atuam mais como um estilo cerimonial, como afirma
Mundicarmo Ferreti (2000)
21
.
A sobreposição também explica como a “nação ketufoi agregando valor para os
adeptos. Os descendentes de nagôs parecem ter conseguido, a partir do legado multiétnico
recebido, responder a certos problemas relacionados com a busca de uma africanidade
brasileira hoje considerada pelos adeptos mais legítima e expressiva. Porém, isso não foi
conseqüência meramente de suas habilidades, mas também de uma ambiência particular.
Por causa da menor distância para com supostas raízes africanas, os nagôs assumiram essa
imprevisível posição vantajosa de um “estilo autêntico”.
Estavam mais próximos temporalmente dos costumes africanos por sua chegada ao
Brasil no período final do tráfico. Estavam mais próximos geograficamente por desfrutarem
de um contínuo intercâmbio com a costa ocidental africana em tempos mais recentes.
Algumas conjunturas – a própria busca dos africanismos - os fizeram retomar algum
contato quando este ia diminuindo, longo tempo depois dos primeiros sinais de corte no
intercâmbio, que foram as deportações e a verdadeira extinção do tráfico
22
.
Para os descendentes de etnias do grupo banto, o contato com o lugar de origem
não foi tão intenso e significativo quanto o das etnias da costa ocidental. Estes chegaram
em maior número muito anteriormente. Enfrentaram uma opressão colonial mais acirrada e
20
Ordep Serra (1995: 61-2) descreve em detalhes a participação de nagôs em ritos de “Angola” e vice-versa.
21
Bastide (1961: 17) e Vivaldo da Costa Lima (1987) descrevem esses diversos estilos cerimoniais.
22
Segundo Nina Rodrigues (1988), que acreditava numa superioridade nagô, as causas de sua expansão
seriam o predomínio numérico, a difusão do idioma e a organização sacerdotal. Beatriz is Dantas coloca
em relevo o papel dos intelectuais no Brasil. Ordep Serra faz um balanço, apontando os exageros de Dantas, e
busca demonstrar os nagôs como sujeitos do desenvolvimento e expansão de sua expressão cultural. Lívio
Sanzone (2002: 261-2) acredita que a opinião de viajantes estrangeiros e relatos coloniais sobre o “avanço” da
cultura iorubana foram o impulso inicial na preferência generalizada pela mesma.
22
a labuta rural em áreas mais isoladas, que foram se urbanizando aos poucos. Mesmo assim,
estabeleceram o fundamento para o que iria ocorrer na cidade: a construção, em
contribuição com outras etnias, de uma identidade afro-brasileira. Fica claro que a cultura
“bantonão tomou explicitamente a predominância na simbolização do afro-brasileiro por
condições históricas e não por inferioridade ou maleabilidade.
O que temos nos candomblés atuais é uma lembrança oral da diversidade étnica,
expressada através de certos cânticos e evocações em línguas diferentes, nem sempre
rigorosamente condizentes com as atuais línguas faladas nos países africanos de origem.
Nunca é demais repetir que todo o cerimonial de um terreiro é genuinamente afro-brasileiro
e não africano. Sendo assim, carrega também as contribuições dos “angolas e “congos e
da identidade crioula, além do jeje e nagô.
Como o repertório continuou sendo o mesmo, aconteceram alguns desdobramentos
interessantes. Essa tradição cerimonial, cujo formato se estabilizou sob a égide dos nagôs
23
e, creio, deveria ser encarada simplesmente como ritual afro-brasileiro matriz - começou
a sofrer mudanças e a circular em território nacional durante o século XX. Vai encontrando,
em outras regiões, correspondentes também formadas ou por nagôs ou por outros africanos
e vai se tornando homogênea enquanto “candomblé”, o que ainda vem acontecendo em
nossos dias embora o estilo cerimonial do candomblé nem sempre tenha o nome de
“candomblé”.
Porém, a ritualística afro-brasileira, fundada nessa tradição matriz, passou por
processos de outra natureza, como diferenciações, cisões, apropriações. Elementos étnicos
disponíveis em seu repertório foram chamados na definição de novas configurações. Nomes
“bantosforam usados como termos definidores de novas práticas: “macumba” e depois
“umbanda”. No entanto, os legados “bantos sempre estiveram presentes e conformaram a
tradição mais antiga à qual depois se “opuseram”, por obra dos africanismos e também da
própria ideologia embranquecedora dos participantes da chamada umbanda. Essas duas
formas de oposição construída velaram a participação conjunta de aspectos “bantos e
nagôs na formação da tradição matriz afro-brasileira.
23
O que para os autores de longa convivência com a “soterópolise com esse debate é uma forte constatação,
como demonstra a recente afirmação de Vivaldo da Costa Lima (2005: 7-8): “Se não hegemonia nagô nos
cultos afro-brasileiros na Bahia – e esta premissa é discutível - existe, com certeza, uma clara preeminência
ioruba/ fon (ou jeje/ nagô) nos rituais dos candomblés, na língua das cantigas sagradas e nos ritos
operacionais do culto. Mesmo nos terreiros bantos e de caboclos”.
23
Por um lado, do ponto de vista acadêmico, Roger Bastide desclassifica a macumba
carioca por considerá-la inapropriada na tradução das permanências africanas que busca
encontrar no Brasil
24
. A “macumba” já não remete com eficácia a um referencial de origem
africana que venha a reproduzir formas de organização e estruturação como as do
candomblé baiano que, afinal, é o modelo ideal do autor. Ele a opõe ao candomblé baiano
para valorizá-lo. No entanto, aspectos vivenciados na macumba e as primeiras adaptações
“bantosresidem na base luso-africana da própria formação do candomblé baiano.
A umbanda, em seu próprio discurso, segue o caminho inverso. Ela se opõe ao
candomblé de um modo geral para sua própria auto-valorização, baseada em idéias
kardecistas de lastro evolucionista
25
. Assim, as permanências perseguidas por Bastide
tornam-se, para o discurso umbandista, “primitivismos” a serem controlados pela
hierarquização ou mesmo eliminados. Ou seja, o espaço concedido ao repertório “banto
pela umbanda se legitima a partir da domesticação desse repertório. É curioso como o
discurso umbandista se prevalece de valores que, em sua interpretação, se revestem de uma
posição invertida quanto ao desenvolvimento do repertório afro-brasileiro, como o
definimos. Vejamos como isto acontece.
A memória mítica dos cultos afro-brasileiros retrata a africanidade primeva em
território brasileiro, sintetizada no termo “banto , como uma aliada das expressões
autóctones indígenas, como podemos observar no caso de Salvador. Nessa cidade, os
“negros da terra(afro-descendentes), até pouco tempo, se auto-designavam caboclos”
(Serra 1995: 109)
26
. O candomblé de caboclo é a própria expressão religiosa dessa aliança
mítica e foi uma espécie de molde que a umbanda aproveitou em seu favor, nele despejando
outros conteúdos
27
.
24
Bastide (1961: 18) enumera as influências exteriores indesejáveis que esta sofre: ameríndias, católicas e
espíritas.
25
José Jorge de Carvalho (1987: 18) menciona a impressão de que o Xangô de Recife parece ter assimilado as
doutrinas do evolucionismo clássico na antropologia quando acredita que pode encontrar congelado em outras
cidades um conhecimento ritual compatível com o que existia em Recife há meio século. No caso da
umbanda, o congelamento no tempo visa legitimar uma idéia racista sobre o suposto primitivismo atávico de
descendentes africanos que se estende aos espíritos tidos como africanos e afro-brasileiros.
26
Essa expressão remete, ao mesmo tempo, aos indígenas quando escravizados e aos crioulos, negros
nascidos aqui, considerados diferentes dos africanos que chegavam da Costa. Também uma relação entre
os movimentos soteropolitanos de independência no século XIX com a belicosidade de tropas formadas por
mestiços e a figura romântica do guerreiro indígena transformado no caboclo do 2 de julho, procissão
originalmente antilusitana.
27
Sobre o candomblé de caboclo ver Jocélio dos Santos (1995).
24
Porém, essa identificação de crioulos com indígenas não conseguiu corresponder às
expectativas da umbanda, embora esta tenha ido beber na mesma fonte das tradições
baianas. O discurso da umbanda cindiu as representações, colocando a figura do caboclo
como significante apenas dos povos indígenas, muitas vezes pressupondo sua superioridade
em relação aos povos africanos, na figura dos pretos e pretas velhas. Para coroar essa
contradição, o nome dado a esse culto - que ficou sendo visto como uma espécie de apogeu
do sincretismo - foi um nome “banto”, referência ao repertório original da matriz do
candomblé. Nesse processo de recriação mítica da umbanda, além da separação entre
indígenas e crioulos, unidos antes por sua natividade, ocorreu também o reforço da
dissociação artificial entre o repertório “bantoe o nagô, este último visto como expressão
do candomblé tradicional. O primeiro, domesticado, combateria o segundo, tido por
primitivo e cruento.
Assim, um extrato de aspectos mais anteriores na formação de uma tradição cultural
afro-brasileira passou a significar o seu contrário, sinal de maior “avanço” e de recusa de
um “atraso” que deveria pertencer ao passado. Podemos concluir, por essa observação de
algumas relações e significações de palavras como “nagô”, “macumba” e “umbanda”, que o
uso desses termos étnicos como marcadores de temporalidades fora do lugar e do contexto
em que surgiram como expressão – os quais não conseguem ser reconhecidos - tem
confundido o campo dos discursos sobre o que vem a ser afro-brasileiro, seja em termos
acadêmicos, religiosos ou de conhecimento geral da sociedade.
O não reconhecimento por vezes consciente e intencional – da conjuntura e,
portanto, do contexto temporal e lingüístico, no qual essas expressões emergem, dá margem
a reincorporações fora de lugar, a favor de generalizações visando interesses específicos,
com o propósito de legitimar discursos não comprometidos com todos os sentidos que tais
expressões carregam. As contribuições dos grupos chamados “bantos estão
inseparavelmente entrelaçadas às contribuições nagôs, tendo sido cerzidas através do
próprio desenrolar de suas histórias. Se puxarmos um fio, toda trama será afetada, mesmo a
contragosto. Mesmo assim, como vimos, houve apropriações indevidas e tentativas de
obscurecimento de uma trama integral.
No entanto, os sentidos propositalmente ignorados podem ser chamados a qualquer
momento, fazendo aparecer paradoxos que parecem surpreendentes, mas que são o efeito
25
de simples redirecionamentos de termos étnicos a favor de uma realidade mais imediata. Há
necessidade de trazer à tona os processos específicos que sofre esse repertório étnico ao
longo do tempo, para maior compreensão da questão. Assim também acontece com as
baianas típicas e o acarajé.
Três aspectos se tornam importantes do ponto de vista da abordagem das baianas de
tabuleiro. Um deles é que elas se utilizam desse mesmo repertório para se identificar e se
diferenciar. O outro é que sua história corre entretecida à própria construção desse universo
afro-brasileiro e, assim, ser baiana do tabuleiro é também lançar mão dessa síntese de
elementos étnicos e dos significados consagrados do que descrevi acima por exemplo, do
corrente apelo soteropolitano ao que é reconhecido como “nagô”, sendo praticamente
impossível ignorá-lo, mesmo quando não explicitado.
Um terceiro aspecto, que também merece nossa atenção em termos da história do
ofício dessas vendedoras de tabuleiro, é aquele que nos mostra inícios fundados em
mulheres de Angola e Congo, visto a data recuada dessa atividade registrada nos
documentos (1641), apesar de a comida hoje vendida nas ruas ser caracteristicamente
herdeira, em sua maior parte, da culinária nagô, certamente adaptada.
As mulheres mercantes também são atravessadas historicamente por uma
multiplicidade de sentidos e de identidades. São elas inicialmente oriundas de uma
formação cultural que podemos chamar angola-congo lusitana e passam a se emancipar
com mais facilidade por causa de sua condição feminina. A raridade de mulheres no Brasil
Colônia fez com que contraíssem laços de uniões forçadas ou consensuais com homens
livres e fez com que sua descendência se tornasse uma nova geração crioula,
complexificando as hierarquias sociais.
Transformaram-se, então, numa maioria liberta e suas filhas crioulas perpetuaram
uma tradição profissional de vendedoras. Aos poucos, as iorubanas que chegavam no
território brasileiro, mais especificamente em Salvador, incorporaram as suas estratégias e
realizaram a manutenção dessa cultura de trabalho africana feminina através do repertório
nagô, trazendo o legado do mercado de gêneros alimentícios como domínio e fonte de
renda femininos.
A palavra acarajé é mais um exemplo a respeito desses processos. Originalmente,
acará é o nome ioruba designativo do bolinho. Mas a expressão acarajé nasceu em
26
território nacional, nas ruas de Salvador, e pode ter sido o pregão das vendedoras de rua,
que significa “comer acará”.
As africanas nas ruas e seus trajes: para além das distinções étnicas, os recortes de
gênero
No século XVIII, as mulheres que tinham acesso às ruas, de um modo geral, eram
em sua maioria de origem africana. Senhorinhas brancas não se expunham freqüentemente
a esse “vexame” e a crença no desdouro da rua perdurou por muito tempo
28
. Segundo
Hildegardes Vianna (1979), que viveu grande parte da transição soteropolitana para a
modernidade, descrita em suas crônicas, essa visão da rua se modificou após a Segunda
Guerra mundial.
Há muitos relatos, no século XVIII e XIX, de mulheres africanas nas ruas de
Salvador e espanto quanto ao seu rico trajar. Um relato de 1718 do viajante francês Le
Gentil de la Barbinais, citado por Verger (1992: 102-3) e por Vasconcelos (2002: 90-1 )
conta dos famosos ornamentos de ouros e de rendas dessas mulheres. A impressão que se
tem é a de que todo luxo e sensualidade em exagero, vetados às mulheres brancas de
origem portuguesa, era canalizado para o corpo daquelas que consideravam suas servas.
Esse costume parecia mais escandaloso no caso das religiosas que viviam reclusas
em seus conventos, às quais toda exibição de riqueza deveria ser proibida, segundo os
cânones católicos romanos. Assim ficou registrada, numa carta pastoral de 1764
(Vasconcelos 2002: 135), a reprimenda ao uso de jóias pelas próprias religiosas
franciscanas do convento do Desterro uma das ordens mais ricas da época - que também
ornamentavam suas mucamas para exibi-las em cadeiras que passeavam pelas ruas, como
se fossem suas representantes.
Embora em 1636 tenha sido baixada uma portaria real proibindo o “luxo exagerado”
das escravas do “Estado do Brasil” (Verger 1992: 103) e em 1708 tenhamos o registro do
28
Para Roberto Da Matta (1997) a casa e a rua formariam um par estrutural de opostos na gramática social
brasileira. No entanto, ao longo deste trabalho, o enfatizamos a rua como domínio da aplicação da lei, mas
seus aspectos enquanto representação de um território popular historicamente pouco permeável e resistente às
disciplinas do poder público.
27
comentário de ordens reais da mesma natureza pela Câmara de Salvador (Vasconcelos
2002: 87), os relatos sobre o luxuoso trajar das africanas continuam brotando por dois
séculos afora. Neles, os viajantes, por vezes explícitos, deixaram perceptível um olhar
filtrado pelo desejo masculino, que via uma correlação entre essas mulheres escravizadas
que freqüentavam a rua e certa liberdade sexual, a qual se revestia de uma ambiência
cortesã comercializável.
Mais uma vez, as mulheres africanas viviam papéis proibitivos para as senhoras a
elas impostas, que provavelmente não lhes deixavam muitas opções se é que teriam
alguma opção naquela sociedade. Esses papéis se acresciam de mais exploração sobre
qualquer tipo de serviço adicional que pudesse ser oferecido pelas cativas, como os lucros
auferidos, em termos financeiros ou de informação, do serviço sexual dessa criadagem
feminina. Além de cumprir um trabalho forçado não remunerado, as africanas poderiam
obter, através desses e de outros serviços específicos, uma renda que ia parar nas mãos
daqueles que as possuíam.
As africanas das ruas experimentavam, então, uma estranha mistura de pobreza e
opulência
29
, opressão e mobilidade, a inveja de suas senhoras e as piores condições
possíveis de sobrevivência. Foram essas mulheres, vivenciando uma espécie de
duplicidade, que criaram o visual da baiana de turbante e saia rodada, imagem que, mais
contemporaneamente, se cristalizou por algum tempo, mas que tem se dissolvido, e que
será discutida mais tarde.
Eis a origem histórica do atrativo glamour da baiana, que foi apropriado pela
cantora e atriz portuguesa Carmen Miranda, na década de 40 do culo XX, num primeiro
ensejo de “globalização”. O processo de superficialização que ocorre a partir daí muitas
vezes não deixa vislumbrar o trágico por trás da fantasia e a própria resistência cultural que
esse modo de trajar representou.
29
Kátia Mattoso (1997) apresenta um artigo tratando dos vários sentidos que essa palavra teve e de como
caracteriza as noções de prestígio na sociedade soteropolitana do século XIX.
28
A roupa da baiana: passado revivido em novos sentidos
A roupa hoje consagrada como vestimenta da baiana do acarajé e que se tornou a
própria marca de um tipo regional - a baiana - carrega uma mistura de influências
muçulmanas, iorubanas e européias de época. Basta observarmos alguns depoimentos do
século XVIII e XIX que chegaram até nós para concluirmos que o traje considerado típico
não mudou muito em seu feitio. As mudanças recaíram sobre seus usos.
Essa roupa é um excelente ponto de partida objetivo para suscitar análises sobre
como as baianas do acarajé se posicionam hoje e como utilizam o repertório nagô nas
táticas cotidianas que mantêm a atividade do tabuleiro viva. Como suas manobras táticas
são sempre empreendidas através do discurso da tradição face à adaptação, situá-las nessa
dinâmica é como mergulhar incessantemente nas construções do passado para emergir no
presente.
A imagem das vendedoras do passado, que nos é relatada pelo olhar dos viajantes,
evoca elegância e sensualidade, curiosamente dois predicados perseguidos pela mulher
moderna das páginas publicitárias. Como vimos, as africanas das ruas coloniais, grosso
modo, serviam de “vitrine” para a opulência de suas supostas senhoras e senhores e, mais
tarde, adotaram as mesmas insígnias de poder que foram forçadas a exibir, numa estratégia
complexa de resistência.
No entanto, elas não se vestiam exatamente como cópias de suas senhoras. Havia
toda uma habilidade em se diferenciar que foi sendo construída lentamente e que também
trazia componentes étnicos àquela época. Provavelmente, as mulheres brancas não
pretendiam se ver destituídas de sua posição de poder em relação às cativas, o que fazia
com que a diferença entre africanas e européias viesse bem a calhar para o pensamento
dominante.
Calhava também de as africanas, ao lhes ser permitida a diferença, receberem o
quinhão de frágeis vantagens, em comparação com suas senhoras, por causa mesmo de sua
subalternidade, o que na roupa se traduzia pela permissividade dos decotes e exageros, ou
até mesmo o que se poderia chamar despudor naquela época, em oposição ao recato
aparente exigido pela ideologia dominante pregada pela Igreja Católica Apostólica
Romana, em sua costumeira opressão sobre as mulheres.
29
As africanas, enquanto excluídas dessa ordem católica romana, mesmo que
convertidas, ocupavam um lugar maleável. A maleabilidade era astutamente
instrumentalizada no sentido de uma maior dominação - daí a exclusão quase absoluta que
sofria a africana escravizada. No entanto, essa dominação guardava lacunas que poderiam
se transformar em irreverências permitidas.
Na maioria das vezes, a permissividade em torno da figura da africana era mais uma
forma de exploração. Quando a branca era resguardada, aparentemente, do assédio sexual
dos homens num regime patriarcal, sofrendo o controle para a manutenção do mesmo, a
africana - que havia sido subtraída ao regime de foco sobre a linhagem do pai em terras, por
exemplo, iorubanas, ou seja, havia sido retirada de uma outra forma de dominação
estrutural masculina
30
- via-se num estado quase liminar, para que pudesse absorver a
demanda sexual dos reprimidos e agressivos senhores em forma de descontrole, abuso, por
causa da exclusão dessas africanas do confinamento feminino da mulher branca da
colônia.
31
Nesse sentido, a roupa que envolvia seus corpos foi, e ainda é, enquanto
permanência que vai se re-traduzindo constantemente, objeto de especulação e desejo,
culminando na imagem hollywoodiana da baiana rumbeira dos anos 40 ou em recriações do
mais recente carnaval espetáculo, seja na ala das baianas, mais fiel ao original, ou na
indumentária de porta-bandeira ou nas fantasias mais exíguas de passistas que são também
herdeiras da “baiana” estilizada de teatro de revista tão divulgada nos anos 40. No entanto,
o visual estilizado do século XX, que hoje faz parte do espetáculo carnavalesco, guarda
muitas diferenças e re-interpretações que enfatizaram os aspectos considerados como
atrativos da insinuação ou exibição das formas corporais femininas, enquanto a roupa
cotidiana tradicionalmente usada na venda de acarajé, apesar de adaptações, enfatizou a
manutenção da função identitária da roupa, sentido preservado apenas em parte pela ala das
baianas no carnaval.
A roupa tradicional da venda, no entanto, se lermos as entrelinhas dos relatos, era
vista como extremamente sensual, embora se tenha cristalizado, para tempos mais recentes,
30
Ifi Amadiume (1997) discorda sobre este ponto propondo uma relação mais equânime entre lado do pai e
lado da mãe, para um numeroso grupo de povos do continente africano, que acredita ter sido mal interpretada
por estudiosos do Ocidente. Porém, suponho que mesmo quando esse equilíbrio existe respaldado por
instituições tradicionais, ele não necessariamente descarta a dominação masculina.
31
Sobre a vulnerabilidade das mulheres no Brasil Colônia, ver também Mary Del Priore (1993).
30
a imagem da indumentária como característica de senhoras de ascendência africana, idosas,
consideradas “de respeito e habilidosas na cozinha, na costura e nos saberes tradicionais.
O tipo da baiana como figura folclórica passou a ser definido por esses aspectos, e a idade
mais avançada tipificada faz referência ao pertencimento a um passado que deveria parecer
inatualizável. No entanto, o estilo da baiana vem sendo constantemente atualizado e
recriado no cotidiano mesmo da venda de tabuleiro, uma atividade que não se restringiu a
datas comemorativas específicas, nem à memória folclorizada, mas é levada acabo
cotidianamente em Salvador, ou nas temporadas de cidades litorâneas do país.
As roupas que hoje são consideradas como não provocantes compulsoriamente, não
o eram necessariamente dois séculos atrás e não o seriam conforme a localização física
de estilos de vestuário. A roupa da baiana é um exemplo disso.
A mostra do colo, por exemplo, foi considerada indecente em certos períodos, para
ser considerada como símbolo de elegância em outros principalmente no século XVIII. A
própria exposição dos seios não era necessariamente carregada de erotismo num Egito sob
o Antigo Império se comparada ao Egito islâmico de agora. Vestes de algodão e seios
desnudos são passíveis de serem interpretados como algo corriqueiro a partir das
representações encontradas em sítios arqueológicos egípcios.
Estes exemplos tornam-se mais interessantes se os englobarmos no contexto de uma
tradição comum a rios países sub-saarianos e norte-africanos, como o Egito. Temos um
colo em exposição num costume tradicional antigo distribuído pelo continente africano
32
sendo transportado para um lugar onde vai encontrar a moda dos seios saltando dos decotes
de damas européias ibéricas.
Isso nos faz repensar os bustos de mulheres retratadas por Jean Baptiste Debret, no
século XIX, que buscou mostrar nessa imagem como se apresentavam as várias nações
africanas no Brasil. Essa imagem específica mostra as africanas vestidas em trajes de visita
bastante europeizados. Porém, de um modo geral, mesmo nas vestimentas mais luxuosas
envergadas pelas africanas, o que parece eminentemente europeu nem sempre o é. Se
observarmos outros retratos de Debret ou Johann Moritz Rugendas, perceberemos que, para
além do decote em voga na Europa, as africanas em seus ofícios nas ruas mantinham os
32
O estilo de enrolar faixas de tecido sobre o corpo a partir dos seios ainda hoje é encontrado na costa
ocidental africana como uso tradicional (Bárbara Sumberg 1995; Elisha Renne 1995). Sobre a antiguidade do
estilo, ver Alberto da Costa e Silva (1996: 458-9).
31
seios livres de sustentação de forma bastante expressiva e explícita, como ainda é costume
em terreiros de candomblé e em baianas de tabuleiro mais tradicionais, mesmo após a
universalização do sutiã, no século XX. As descrições narradas por outros viajantes que
estiveram em Salvador desde o século XVIII corroboram, nesse aspecto, as imagens dos
retratistas.
Isto está bastante explícito na imagem de um mercado de africanas do Rio de
Janeiro na primeira metade do século XIX, de autoria de Henry Chamberlain. A bata mole,
de tecido branco e liso, que deixa entrever os seios, está presente nas quatro mulheres que
carregam cestos e tabuleiros, com o colo valorizado por colares cuja cor, provavelmente,
deve estar querendo expressar o dourado
33
. A mesma caracterização se com a venda em
Recife representada por Rugendas. As européias, embora também não usassem a peça de
sustentação no período, não faziam esse tipo de exposição
34
. Até mesmo usavam decotes
muito cavados, como vemos em imagens de Joaquim Cândido Guillobel ou mesmo em
Debret, mas não com um dos ombros de fora em locais públicos, nem com aparente
displicência.
Todos esses viajantes nos legaram imagens do que eles consideravam, do ponto de
vista europeu, tipos que caracterizavam os habitantes das terras brasileiras. Jean Baptiste
Debret, da missão artística francesa, morou no Brasil quinze anos (1816 a 1831). Seus três
volumes de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil foram publicados entre 1834 e 1839 em
Paris para leitores europeus (Debret 1989).
O artista alemão Johann Moritz Rugendas aqui ficou entre 1822 e 1825 e sua
publicação Viagem Pitoresca através do Brasil surgiu em Paris entre 1827 e 1835. Segundo
Valéria Piccoli (2005), esta trazia pranchas de lugares onde este nunca esteve, como
Pernambuco, São Paulo e Goiás, quando Rugendas somente passou pelo Rio de Janeiro e
Minas Gerais, voltando para a Europa através de Salvador. Também se identifica na obra
do tenente britânico Chamberlain Vistas e costumes da cidade e dos arredores do Rio de
Janeiro, publicada em Londres, 1822 - figuras de gravuras do militar português de origem
33
Moura (2000-24) chama a atenção para a frágil fidedignidade das cores que aquarelistas contratados por
certos livreiros aplicavam sobre as gravuras e litografias.
34
Em seu artigo sobre a opulência, Kátia Mattoso (1997) traz um relato setecentista de Luís dos Santos
Vilhena, em resposta à reprovação estrangeira do modo desmazelado de vestir das senhoras brasileiras, no
qual fica claro que estas também andavam com golas largas e tecidos transparentes semelhantes aos das
africanas, com a diferença de que os usavam somente no interior de suas casas por causa do clima quente.
32
belga Joaquim Cândido Guillobel, segundo Piccoli e Carlos Eugênio Marcondes Moura
(2000: 25). Guillobel, por sua vez, registrou tipos populares do Rio de Janeiro e do
Maranhão no início do século XIX, que circulavam no país como conjuntos em pequenos
volumes encardenados.
Piccoli explica que, nessas publicações sobre o Brasil, gravuras de outros autores
podiam ter sido reproduzidas ou reformuladas pelos próprios pintores ou pelos editores a
título de ilustração para instruir o público europeu. Os mesmos motivos, figuras e temas -
com origem numa determinada imagem - também podem ser encontrados em gravuras de
diferentes autores, utilizados como elementos para, em composição, expressarem a visão
particular de cada um desses viajantes. O testemunho ocular nem sempre foi prerrogativa
para esses pintores.
Isso não invalida, mas reforça a constatação de que há uma espécie de visão
estrangeira o que lhe confere algum estranhamento que nos parece interessante do ponto
de vista da informação desses registros – coletiva reproduzida por esses autores de imagem.
Como nos relatos escritos, precisamos interpretá-las e traduzir o que estes estrangeiros
queriam mostrar como uma imagem geral do país.
Se os retratos construídos expressam a visão de quem os realiza, não podemos
deixar de levar em consideração também o olhar etnocêntrico por parte do artista, por vezes
carregado de uma espécie de romantismo exotizante e o desejo de tornar esteticamente
agradáveis as cenas
35
, além do filtro de uma posição dominante masculina. No entanto,
esses documentos também exibem algo para além deste olhar, se soubermos neles buscar
alguns aspectos étnicos.
O caso dos seios expostos parece ser algo que se desejava ressaltar. Poderíamos
arriscar que a instituição da ama-de-leite africana talvez fosse fator de grande
estranhamento por parte dos europeus, daí a representação de um ombro sempre desnudo,
sugestão da facilidade de acesso ao seio, como encontramos explicitamente na aquarela de
Guillobel Família brasileira a passeio, em que a mucama de ombro desnudo carrega um
menino de colo branco.
Decerto, a maior parte das representações desejava evocar a atitude coquete das
africanas nas ruas. Mary Del Priore (1987) sugere que a não exposição da parte debaixo do
35
Boris Kossoy (1994) chama atenção para este aspecto em sua obra.
33
corpo, visto os seios estarem mais corriqueiramente expostos, traduzia uma estratégia de
sedução ao encobrir o que via ser a parte mais desejada pelos homens nas mulheres
brasileiras desde então: as ancas e o derrière.
Porém, por mais corriqueiro que tivesse se tornado, o peito descoberto não poderia
deixar de ser objeto de perturbação. Se expor partes do corpo feminino era considerado
proibitivo num contexto de culpabilização através do que o catolicismo apostólico romano
considerava pecados carnais, isso se flexibilizava com as permanências da despreocupação
das classes populares européias em relação à nudez e com as modas de uma classe
mercantil ibérica abastada, em paralelo com a nobreza monárquica mundana e cortesã. A
concepção de natureza predominantemente étnica a respeito do seio livre terminou por
adquirir esses diversos significados nudez despreocupada, moda, em oposição à moral
católica - num novo contexto, porém sem perder a informação de aspecto cultural africano
específico da camada anterior sobre a qual se sedimentaram esses valores. Essa situação
contraditória não passa desapercebida pelo olhar europeu.
Isso aponta para um maior cuidado ao falar da roupa enquanto algo que torna
atrativa a vendedora baiana típica do passado. Se a atração se originava do desejo pelo
proibido, ela era a manifestação masculina de um erotismo europeu reprimido por idéias de
pudor católicas. Se o seio passou a ser exposto e foi até um instrumento do trabalho servil
das africanas, a eroticidade se transferiu para as partes que continuaram cobertas. Todavia,
os estrangeiros continuaram entendendo e traduzindo os ombros desnudos como uma
liberalidade faceira e exótica das afro-brasileiras.
ainda o fato de que, em localidades africanas, a nudez nessa parte do corpo não
foi necessariamente erótica, como o seria para um espectador moderno, que foi formado
por uma padronização midiática, herdeira direta, aliás, do erotismo construído em
referência às partes proibitivas pelo pudor católico. A interpretação das fontes de relatos e
imagens de viajantes deve ter o cuidado em tentar não projetar visões atuais sobre outras
concepções locais e temporais, não esquecendo que as visões de época às vezes podem
subitamente emergir de novo.
Um vestuário não se faz do que fica descoberto. Basta observarmos O negro e a
negra da Bahia de Rugendas e teremos uma idéia do que vestiam essas africanas que
circulavam nas vias públicas e foram descritas pelos viajantes do século XVIII e XIX.
34
Falando especificamente da Bahia, a partir desses registros históricos, podemos concluir
que as mercantes africanas se vestiram de modo semelhante em vários núcleos urbanos do
país durante um longo período.
Salvador era um “entreposto- na expressão de Graham (2002) para os cativos
que fariam uma jornada em direção a outras partes do país. Provavelmente se configurava
também como centro irradiador de certas expressões culturais afro-brasileiras que ali
vinham sendo moldadas e que poderiam se refletir, por exemplo, nas peças de vestuário,
embora com variações regionais
36
.
A mulher retratada por Rugendas não usa o costume europeu das que representam
várias nações africanas segundo Debret. Nesse ensaio de bustos feito por Debret, pela
maior uniformidade dos outros acessórios, a diferença se centraliza nos penteados – e este é
um ponto importante, pois este sinal de diferença vai atravessar séculos e se tornar algo
central para as baianas nas ruas soteropolitanas de hoje.
A negra da Bahia” de Rugendas também se apresenta com os ombros expostos,
uma espécie de bata solta sobre o corpo e enrolada num pano listrado importante marca
étnica. Não muito diferente das negras descritas acima ou de suas antecessoras no século
XVIII, as Negras vendedoras representadas por Carlos Julião
37
, que, no entanto, cobrem
braços e ombros, costume de época ou talvez um signo de islamização reforçado pelo breve
que uma delas carrega.
Quando observamos estes retratos antigos, podemos apreciar, ao nosso modo, a
beleza dessas mulheres e a beleza estética desse vestuário. O que hoje podemos enxergar
como sensual por exemplo, o decote insinuante - ou como objeto de desejo por ser a
roupa típica da baiana é conseqüência da visão católica apostólica, acrescida de mais
valores, agora concentrados numa exotização moderna, que valoriza em acréscimo a
antiguidade e um suposto arcaísmo da imagem.
Todavia, também novos valores hoje tidos como libertários somente agora
representáveis por esse mesmo estilo de roupa. No caso da roupa de baiana, esses novos
sentidos são, ao mesmo tempo, formados pelos valores anteriores identitários africanos. Por
36
Eduardo França Paiva (2004) caracteriza as pencas, corriqueiras entre as escravas e alforriadas da Bahia,
como uma peça rara em Minas Gerais, porém nunca inédita.
37
Oficial do exército português que retratou os figurinos do vestuário brasileiro no século XVIII, tendo
documentado regiões do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia (Moura 2000: 24).
35
exemplo, as mulheres, ao menos as ocidentalizadas, agora deixam transparecer os seios
para se mostrarem femininas, sensuais e independentes, ou seja, o fato de “ousarem” não
permite automaticamente o assédio masculino nem lhes caracterizaria como excluídas,
como poderia acontecer no século XIX em Salvador. Esse novo sentido se agrega à
conquista anterior dos decotes das africanas nas ruas. No entanto, a ausência do sutiã como
algo emblemático permanece como pano de fundo e as mais antigas no candomblé ainda
relembram que o costume que identifica uma adepta é o de não usar um moderno sutiã em
certas situações rituais.
No entanto, de modo sutilmente depreciativo, a mulher arrumada como baiana típica
pode vir a traduzir uma alteridade exótica e desejável porque objetificável por seu
exotismo. Vê-la como objeto exótico é herança do olhar europeu que naturalizou a
inferiorização a que as afro-descendentes foram forçadas. Ao mesmo tempo, a baiana típica
pode evocar a mulher poderosa, por representar a resistência das sacerdotisas africanas e a
detenção de poderes vistos como mágicos, sobrenaturais poder feminino das excluídas,
que emerge por sua exterioridade em relação à ordem social e aos saberes modernos, como
veremos - o que reforça o exotismo, tornando-se uma via de mão dupla.
Pois ao potencializar, essa insígnia típica também subtrai poder, por estar associada
à sensualidade, numa complexa e contraditória relação com a autonomia sexual de um
corpo feminino livre, em termos estéticos, do controle masculino estrutural, “liberdade” que
no fundo foi exclusão, outrora utilizada como mecanismo de balanceamento da repressão
sexual colonial. Hoje, a parte libertária se colocaria mais em evidência, na medida em que,
de um modo geral, expor o próprio corpo conforme bem entender sem ser molestada seria
um direito feminino já bem mais reconhecido em ambientes urbanos e modernos.
Sob essas camadas de significados reunidas, encontramos uma base que teria sido
predominantemente étnica e que hoje faz referência à identidade afro-brasileira. Essa
identidade pode mostrar suas faces a partir de trajetórias do vestuário, e o que desse
processo ele carregou consigo em relevo, até hoje. Ela pode nos levar além, para elementos
africanos ainda detectáveis na facilidade do intercâmbio atual com países desse
continente - e para construções míticas onde um Egito Antigo é a origem lendária dos que
fundaram a antiga capital iorubana de Ifé, imaginário muito destacado na guinada inicial
dos blocos afro em Salvador. Seios soltos sob tecidos transparentes de algodão branco não
36
destoariam de todo dessa origem lendária
38
. Eles ainda se configuram um hábito típico do
candomblé e de baianas do tabuleiro mais velhas que se permitem o rigor do traje das
baianas “antigas. Enquanto isso, movimentos de valorização da negritude utilizam a seu
favor recriações de indumentária egípcia registrada em representações arqueológicas.
As peças do vestuário: trajetória das adaptações sobre concepções estéticas africanas
Sensuais, é assim que os viajantes enxergavam as cativas em Salvador, sem ao
menos perceber o que estas mulheres insistiam em usar como insígnias de respeito e
reverência em sua própria tradição, da qual foram subtraídas, e que buscavam
desesperadamente reinventar naquela sociedade de exclusão. O que era sensual na visão
européia tinha sido um costume menos erotizado na tradição africana.
A sensualidade, num período colonial mais recuado, não se configurava exatamente
como a conseqüência direta de uma visão das partes desnudas. A Europa, durante o século
XVI, ainda não havia internalizado totalmente valores que erotizavam o corpo despido
(Norbert Elias 1994: 165) e tampouco nosso mundo colonial seria um contexto dos mais
favoráveis à rigidez idealizada pelos clérigos.
Seios em exposição faziam parte de um conjunto que sinalizava um acesso mais
facilitado ao corpo feminino, como vimos, e as descrições admiradas de europeus com o
comportamento e porte das africanas remetem, sem vida, ao atrativo de uma alteridade
feminina inferiorizada que foi construída em solo brasileiro. Um longo tempo depois,
muitos desses significados migraram para a mulata do carnaval, num outro contexto de
nudez.
Temos temas recorrentes nos relatos, relacionados às roupas propriamente ditas e
aos acessórios. Sobre as roupas, uma referência insistente nas rendas, nos proibidos
38
A arte ímpar das peças esculpidas encontradas em Ifé, no início do século XX, por Leo Frobenius
interessado na reconstrução histórica de rculos culturais de concepção difusionista levou a especulações
sobre a semelhança entre os seguintes elementos: os ornamentos de cabeça representados em Ifé, as coroas da
Núbia e de Meroé e a serpente uraeus usada na fronte dos faraós (Silva 1996: 458; 460-1). Tais especulações
foram frutíferas, criando uma tradição de estudos preocupados com o papel fundamental da antiga civilização
egípcia para uma região abrangente do continente africano, como Martin Bernal e Cheikh Anta Diop.
37
tecidos de cambraia, de seda ou de Holanda
39
. Proibidos, pois denunciavam luxo e, ao
mesmo tempo, creio que o caimento desses tecidos e sua transparência deviam perturbar
um pouco as autoridades por explicitar demais o objeto da libido reprimida por esta
sociedade, como atestam as portarias reais, como, por exemplo, esta de 1683 (Verger 1992:
103): “Com este luxo as escravas causam uma baixa de moral nas capitanias, pervertem os
homens brancos, do que resulta o cruzamento das raças e o aumento sempre crescente do
número de pessoas de cor, o que de modo algum é conveniente”.
Alguns relatos recolhidos por Verger (1992) são de viajantes como Le Gentil de la
Barbinais no século XVIII - o cônsul JamesWetherell, Robert Avé-Lallement, o príncipe
Maximiliano da Áustria, o turista Henri Knight - no século XIX. Vasconcelos (2002)
também transcreve relatos do oficial Frezier, no culo XVIII, e portarias reais que
tentavam controlar a exposição do luxo das escravas. A chamada ode à mulher baiana feita
por Luis dos Santos Vilhena (apud Mattoso 1997) valorizada fonte histórica para
Salvador nos setecentos também se perfila aqui. Sobretudo existem as imagens de artistas
plásticos do século XVIII e XIX que chegaram anós. Também temos o testemunho de
postais fotográficos a partir do século XIX.
Em síntese, as principais peças de vestuário descritas ou retratadas nestes registros
são as blusas de musselina bordada, sempre muito transparentes e frouxas, que deixam
entrever um ombro, enfeitadas com rendas; saias volumosas e saiotes rendados; xale e
turbante, lenços largos. Os tecidos recorrentes são a musselina, cambraia e a seda para
turbantes e lenços largos. Entre os acessórios, temos chinelas menores que os pés, e uma
profusão de jóias que chamamos balangandãs. Também temos a descrição de uma postura
ereta e do balançar das ancas.
Tessituras do oriente
O algodão foi destinado a cobrir a nudez dos escravizados na colônia, mas logo as
africanas haviam empreendido a dinâmica das ruas, primeiramente com os recursos de
39
Esses relatos urbanos formam contraste com a vestimenta proposta inicialmente para as cativas, que
permanece sendo predominante nas lavouras: tecido de algodão grosso e pouco pano.
38
seus senhores a serem exibidos, depois com os recursos de seu próprio esforço, na maioria
das vezes o que conseguiam angariar através de diversas estratégias, principalmente o
ganho. Assim, as vendedoras de rua dos núcleos urbanos tiveram acesso a tecidos mais
sofisticados, que eram importados e considerados caros.
A musselina era a grande vedete das batas usadas pelas mucamas nas ruas, que hoje
se cristalizaram nos camisus da “roupa de baiana ou “roupa de crioula”. A musselina era
um tecido feito em Mossul, no Iraque, e que começou a ser importado para a Europa no
século XVII, época da consolidação geográfica do centro antigo de Salvador. No século
XVIII, passou a ser fabricada na Inglaterra e França e foi se tornando designação geral para
tecido fino e firme feito de algodão, seda ou lã.
A musselina de seda, versão mais luxuosa da província, reunia a tecelagem típica do
Oriente Médio com o fio do Extremo Oriente e o transporte comercial dos europeus. A
seda, de origem chinesa, era conhecida dos europeus desde o século XII e também não era
desconhecida em terras africanas. A roupa da baiana já nascia como um produto da era das
navegações e do intercâmbio entre lugares distantes.
Dentre os panos de algodão
40
, temos o morim, muito próximo do pano de madrasto
citado por Raul Lody (2003), mais rústico, cuja origem se situa em Madras, na cidade de
Calicute, Índia, e ainda é muito utilizado dentro dos terreiros, na roupa simplificada do dia
a dia ritual, chamada “roupa de ração. Temos também a cambraia, tecido muito fino e
transparente de origem francesa, que também pode ser de linho. A cambraia era usada
como camisa íntima pelas européias e combinava com o ambiente tropical, por causa do
calor
41
. Entre as afro-baianas, o madrasto era aproveitado para os ojás rituais faixas de
tecidos para torços ou laços sobre vestimentas ou objetos e a cambraia para os lenços de
rua.
O tecido de Holanda é um tecido fino de linho, seguindo a mesma linha da leveza
dos panos correntes entre as mais bem vestidas africanas soteropolitanas do século XVII e
40
Os tecidos mais grosseiros de algodão usados por cativas são classificados, na maior parte, por seus padrões
e cores. Segundo Emanuel Araújo (2004: 54), são a chita (colorido), o riscado (listrado) e o zuarte (mescla de
fios de duas cores), usados nas saias; linho, ganga (mais escuro e colorido) e baeta (lã felpuda) para vestidos.
41
Segundo Vilhena, citado por Mattoso (1997), os tecidos usados em casa pelas senhoras, ao contrário dos
tecidos grosseiros usados em Portugal, eram a cassa e a cambraia (tecidos finos de algodão), sendo o cetim
reservado para ocasiões importantes. A Bretanha de Hamburgo era tecido também leve e exclusivo das
“negras(bretanha se refere ao tipo de trama local francesa assim como a cambraia). Estas também usam, nas
ruas, a cassa, a cambraia, saias de cetim e becas de lemiste (lã preta e leve) “finíssimo”.
39
XVIII. Junto com a cambraia, forma uma das contribuições européias para o vestuário da
baiana típica. As rendas e bordados se somam à parte do feitio europeu da roupa.
A renda, de um modo geral, foi uma atividade muito significativa para todas
mulheres da colônia. Leila Mezan Algranti (1997: 121-22) descreve como essas mulheres,
fiéis aos costumes do Reino, bordavam as roupas de cama e mesa e de como inventários
seiscentistas de São Paulo demonstraram que “à pobreza generalizada se contrapunham as
redes de abrolhos, as toalhas rendadas de mesa e de ‘água à mão’ ou as almofadas de
cetim”. A renda, então, poderia traduzir uma forma peculiar de opulência.
A renda, inicialmente, foi um elemento importante na diferença que as senhoras do
Reino pretendiam demonstrar, relacionada à própria origem européia, encobrindo, assim, a
situação precária que as igualava às outras mulheres da colônia. No entanto, o rendado
carregou este significado para outras instâncias, expressando de modo mais generalizado
uma aparência de “nobreza”.
Viraram sinal de luxo, ou de barroquismo, as rendas bordadas nas batas, saias e
lenços. Uma espécie de trabalho de enfeite acessível que possibilitava uma ascensão
aparente, o que funcionava para as damas do Reino e passou a funcionar para as damas
africanas
42
. Todavia, a roupa do cotidiano da africana ou afro-brasileira que trabalhava com
o ganho nem sempre foi retratada com profusão de rendas. Essa roupa mais comum da
labuta pode ser chamada de roupa sura, uma das primeiras composições da baiana, segundo
Lody (1996)
43
, sendo bem semelhante à atual roupa do cotidiano ritual dos terreiros, a
“roupa de ração”.
As rendas podem ser observadas, entre as africanas, em trajes mais festivos, como
aqueles da aquarela de Debret, que são usados por mulheres prestes a adentrar a igreja: uma
saia com aplique de quatro camadas de barra rendada
44
amarrada ao peito por laços
45
,
complementada pela cabeça raspada, no que parece ser uma roupa ritual, mesmo que o
título pareça mencionar o “batismo” das crianças que elas carregam, mas cuja ambiência
muito se assemelha a uma missa de iaô, a neófita dos cultos afro-brasileiros.
42
Miriam Moreira Leite (1984), na sua coletânea de literatura de viagem sobre o Rio de Janeiro, traz relatos
do século XIX, tanto de senhoras que complementavam seu orçamento com rendas como de “negrinhas que
fabricavam crivo para seus senhores.
43
Sobre a origem islamizada da roupa e a densidade da palavra sura ver p. 83.
44
Os falbalás franceses, novo ornamento criado por volta de 1700 (Köhler 2001: 421).
45
Percebe-se aí a recriação do estilo de panos enrolados.
40
As rendas pareciam ser apreciadas por causar distinção, afinal eram um artesanato
recente do século XV e bastante elaborado. O padrão dos desenhos trazia um pouco do
arabesco oriental somado à técnica, que se consolidou européia, de criar orifícios entre os
desenhos. Esta tessitura se desenvolveu em duas cidades comerciais: Veneza e Flandres.
Veneza se especializou na renda de agulha, enquanto Flandres concentrou-se sobre a renda
de bilros e ambas técnicas tomaram um estilo próprio em algumas cidades francesas.
Além das rendas, os bordados. Vilhena, citado por Mattoso (1997: 174) descreve
os trabalhos manuais do século XVIII usados pelas cativas quando apareciam nas ruas junto
de suas senhoras, em grandes ocasiões, vestidas com “camisas de cambraia, ou cassa,
bordadas de forma tal, que vale o lavor três, ou quatro vezes mais que a peça”. Temos outro
signo de opulência na riqueza produzida pelo trabalho artístico que qualifica os tecidos.
Certos bordados feitos pelas afro-brasileiras se consagraram como mais tipicamente
baianos, o que ocorreu no caso do bordado em richelieu e do bordado inglês. Segundo
Lody (2003 b), o richelieu está a meio caminho entre o bordado e a renda, pois se define
como um bordado com a retirada de tecido entre os motivos. Legado de um período
anterior ao da renda, o richelieu foi chamado primeiramente ponto de Veneza e ficou
marcado como um estilo renascentista (Lody 2003b: 32):
A sinuosidade de folhas, flores, arabescos inspirados nas letras ficas e
outros ritmos orientalizados estavam no Renascimento, período de franco
uso do bordado de fundo tirado. Tais características estão ainda presentes:
vê-se muita sinuosidade e forte fixação de um iberismo orientalizado na
técnica do richelieu.
O bordado foi batizado com o nome do cardeal Richelieu, homem forte do governo
de Luís XIII, que chegou a primeiro ministro em 1624, defendendo o catolicismo
apostólico romano e a absolutização do poder monárquico. O cardeal vestia-se com golas e
punhos alvos assim bordados. Mas seu exagero nos bordados foi precedido pelo estilo de
Maria de Médicis, com suas enormes golas de renda engomada, costume habitual de
algumas gerações de mulheres da historicamente famosa família nobre florentina. A
rivalidade de ambos termina por colocar em relevo as semelhanças do vestuário.
Gilles Lipovetsky (2005) relaciona o surgimento de modas na Europa com a nova
relevância de uma dimensão erótica e sensual do luxo, sendo a moda uma invenção social
41
histórica do Ocidente, datada na metade do século XIV. Poderíamos pensar em Veneza e,
portanto, no contato mais intenso com o Oriente, como centros irradiadores desses novos
costumes de luxuosidade e moda. Assim, segundo Lipovetsky (2005: 39), “uma nova
manifestação social do desperdício ostentatório vem à luz sob o signo da antitradição, da
inconstância, da frivolidade”. O richelieu foi um dos elementos desse tipo de ostentação
ainda incipiente.
A conservação do bordado como peça da baiana, designada conforme a predileção
do cardeal do século XVII, ainda hoje parece apontar para uma certa absorção de um estilo
de vestir da corte francesa pela Salvador colonial. Esse detalhe barroco alcançou o
repertório de estratégias de auto-valorização por parte dos afro-descendentes e permaneceu
até o presente como uma de suas marcas. Com poucas fontes iconográficas, fica a
indagação se as baianas do século XVII usavam o richelieu, se havia ocasiões para
envergá-lo e se isto lhes foi transmitido como um dos sinais de distinção de suas pretensas
senhoras, como parece ser.
No entanto, não à moda da côrte, o richelieu também foi referência à estética
barroca do período, o estilo da restauração católica. Mesmo os panos característicos de
adornar as igrejas, segundo a “memória nacional”, são os de richelieu (Lody 2003b: 33). A
imitação do cardeal era a imitação de um chefe religioso que combateu politicamente os
protestantes.
Alto dignitário do poder secular e temporal, Richelieu evocava uma aura de
autoridade que pode ter sido usada em mais uma estratégia de afirmação, sem, no entanto,
haver uma dependência em se saber quem era ou quem foi esse personagem histórico, mas
simplesmente porque o bordado passou a carregar essa aura, esquecendo-se a causa
particular. A frivolidade da peça, que foi substituída por outra moda de corte, passou a ser
consagrada pela utilização afro-brasileira, que a transformou numa tradição regional e
nacional.
O bordado inglês é outro tecido comum, ainda hoje, no traje tradicional da baiana e
nas roupas rituais. É um bordado de agulha com linha branca sobre fundo branco, original
do século XVI, que se popularizou no século XIX. Seu padrão se define por desenhos
menores e mais delicados, com poucos orifícios, geralmente em delgadas faixas de tecido
que se aplicam sobre as roupas brancas. O bordado inglês tornou-se industrializado
42
rapidamente, a partir do final do século XIX. Embora continuem consumindo tecidos em
bordado inglês, as baianas mantiveram uma tradição de artesanato apenas do estilo
richelieu, apesar de hoje sua produção também poder ser mecanicizada.
Hildegardes Vianna (1979: 159-61) dedica uma de suas crônicas à atividade
desaparecida da costura e do ornamento de toalhas e tecidos entre baianas do início do
século XX, que vendiam comida pronta nas ruas, incluindo o acarajé, ainda frigido em
casa. Elas usavam os intervalos entre a chegada de um cliente ou outro para dar
continuidade a seus trabalhos de crivo, de richelieu, que valorizavam suas roupas. Com o
acréscimo dos enfeites a roupa deixava de ser sura, então sinônimo de roupa simples. Esse
é um dos aspectos que demonstra a íntima ligão entre a venda de comida e a
indumentária que se complementavam como diferentes aspectos de uma mesma tradição
feminina afro-brasileira.
Os feitios que cobrem o corpo
Como vimos, o tronco das baianas era, geralmente, coberto ou pouco coberto
por peças finas, leves e transparentes. As que labutavam tinham recurso nos panos tecidos
de algodão tipo morim, bem refrescantes. Algumas mucamas eram trajadas por suas
senhoras de modo a demonstrar mais luxo, enquanto acompanhantes ou intermediárias
entre a casa e a rua.
Embora a sociedade colonial vivenciasse o que poderíamos chamar de relações sem
ênfase na separação da intimidade dentro das moradias, bem como uma “porosidade entre a
casa e a rua” (Mary Del Priore 1997), as soteropolitanas de origem européia não tinham o
costume de ir à rua, comportamento remanescente até meados do século XX, como fica
evidente pelos hábitos e crenças de ojeriza à rua que Hildegardes Vianna relata em suas
crônicas. A rua estava destinada a exibir cotidianamente uma maior proporção de modelos
de roupa afro-descendentes, basicamente formados por saia longa, camisa leve e pano
avulso.
uma diferença entre a camisa íntima que compunha a roupa sura simples do
trabalho e as chamadas batas das baianas. Parece ter acontecido uma subdivisão da mesma
43
peça, conforme foram ocorrendo as alforrias e a formação dos terreiros, visto que as
primeiras vendedoras tinham pouquíssimos recursos materiais.
Hoje, nos terreiros, as batas sinalizam grau hierárquico, enquanto o camisu é traje
menor, podendo fazer a vez da camisa íntima por baixo da bata. A subordinação ritual
durante a iniciação está caracterizada pela falta de peça para o tronco, usando-se apenas
uma saia amarrada sobre o peito
46
. O uso da saia como peça única para as cativas parece
corriqueiro, pois temos representações de mulheres portando apenas saias, o tronco
despido, em ambientes rurais, navios negreiros e mercados, por vezes em esteiras
amamentando crianças. A memória dessa peça única – uma saia substituindo o pano
enrolado no corpo - permanece no candomblé, servindo para expressar que a neófita é
“escrava do orixá”.
Ao mesmo tempo, em nossa iconografia, também temos representações de mulheres
com saia e bata larga, de mangas curtas ou médias. No candomblé, conforme se assume
importância dentro do cerimonial religioso, passa-se do camisu de bordado inglês à bata
rendada. As batas podem ser colocadas sobre o camisu, indicando senioridade no culto, o
mesmo valendo para o richelieu.
Todavia, as batas também são a marca comum das baianas de tabuleiro na rua,
deixando de significar hierarquia e passando a ser uma vestimenta que demonstra cuidado
na aparência, o estar bem vestido para uma ocasião. As baianas entrevistadas todas
reafirmaram a importância de estarem bem arrumadas, fazendo referência à brancura dos
tecidos, à lisura e às peças de valorização da baiana, como a bata.
Pude observar que a bata ainda é uma das poucas peças que não está caindo em
desuso. Uma espécie de unanimidade recai sobre ela. As baianas podem se apresentar
tradicionalmente, ou optar por um traje até mais moderno, mas o branco, o bordado ou a
bata sempre estão ali como referência e invariantes estéticas.
Assim, a famosa Cira (Jaciara de Jesus Santos) de Itapuã se apresentou, em sua
entrevista, com saia e blusa rendadas, a última como se fosse uma bata estilizada. Assim, a
filiação evangélica de uma baiana entrevistada na Ribeira lhe tirou todas as insígnias, mas
ela trazia uma blusa branca de mangas um pouco mais bufantes, hoje conhecidas como
46
Novamente chamamos a atenção para a tradição africana dos panos enrolados. No trabalho setecentista de
Carlos Julião podemos observar africanas com os quadris enrolados numa única peça de pano listrada, o peito
nu, porém em postura de bem vestidas, enfeitadas com laços de fita, turbante e acessórios de joalheria.
44
“manga príncipe, um estilo semelhante às mangas dos camisus do candomblé, menos
exageradas. O mesmo ocorreu na festa do Bonfim, antes de as baianas “se arrumarem” no
local para o evento da lavagem - pois não seguiram a procissão para armar suas sombrinhas
- ou no presente do Rio Vermelho: a bata sobre a calça jeans ou sobre a bermuda, às vezes
sobre blusas de alça ou camisetas os camisus da modernidade. A bata, apenas por si
mesma, avisa que ali está uma baiana de tabuleiro, mesmo que sem paramento, por foa
das circunstâncias.
O caimento das batas parece não ter sofrido nenhuma modificação, desde o século
XVIII. As versões de mangas mais curtas ou médias conviveram, mas o que passou ao traje
típico foi a manga curta, trabalhada, acompanhando o decote ombro a ombro, como nos
vestidos de noite das damas européias da segunda metade do século XIX.
As vendedoras do século XVII e XVIII até mesmo “antecipam” esse estilo
fortemente decotado com suas largas e transparentes batas deixando exposto todo o colo e
peito, numa inspiração mais afro-muçulmana (mas não islâmica). O que agora é nomeado
como camisu, no entanto, tem mangas mais justas e bem próximas das mangas usadas no
século XVIII na Paris pós-revolução e nas metrópoles européias.
As saias rodadas sofreram outros desdobramentos e hoje não se encontram mais
tão constantes como vestes de rua. Em primeiro lugar, as saias foram muito mais
vivenciadas de acordo com a instabilidade das modas européias do que como uma
permanência de fundo étnico. Podemos notar que a roupa básica, talvez luso-africana,
formada no século XVII - Salvador é fundada em 1549 – tomou um estilo, no século XVIII,
muito aproximado dos trajes europeus.
Um dos aspectos desse estilo era a cintura ser marcada logo abaixo dos seios,
deixando o restante da peça com um leve caimento, como uma comprida veste sem rodado
sobre o corpo. Esse estilo ficou conhecido na Europa como diretório, em referência ao
período do governo do diretório, de 1795 a 1799, antes da tomada de poder de Napoleão
Bonaparte.
A história desse estilo é interessante e carregada de uma nostalgia neoclássica do
mundo antigo. As escavações arqueológicas em busca da cultura material da Grécia antiga
inspiraram, desde 1760, o gosto francês por reviver modelos greco-romanos. Logo após a
Revolução Francesa, as parisienses sentiram necessidade de aprofundar essa modificação
45
em seu vestuário. Ficaram conhecidas como merveilleuses. O decote baixo, que tanto
agradava nossas baianas, usado pela nobreza seiscentista e setecentista
47
, permaneceu, mas
as saias armadas para os lados com anquinhas ficaram fora de moda.
As anquinhas tinham sido unanimidade no século XVIII, apesar de extremamente
incômodas. Köhler (2001: 419-20) nos descreve seu poder de uniformização: “(...) a moda
difundiu-se tão rapidamente que, ao iniciar-se o reinado de Luís XIV, as mulheres de todos
os países (fossem princesas ou operárias) estavam usando este tipo de acessório, sem o qual
se era olhada com desprezo”.
Provavelmente, as baianas e as senhoras coloniais, ao menos em ocasiões festivas,
foram afetadas por esses ditames com algum atraso e, a seu modo, devem ter partilhado da
“obrigatoriedade” das anquinhas. Felizmente, os tempos mudaram para melhor e para
maior conforto na tropical colônia.
Na França, com a eliminação das anquinhas, e de outros elementos que revelavam
certa superfluidade aristocrática, criava-se um visual mais simples, descrito por Köhler
(2001: 463-4):
Ricos e pobres tinham cuidado de vestir-se da maneira mais despojada
possível, pois qualquer pessoa cuja aparência a colocasse sob a suspeita de
ser um aristocrata, corria risco de vida. (...) O quitão grego, ou túnica um
traje de estilo semelhante ao das camisas então usadas pelas inglesas -, foi
escolhido como a indumentária típica do novo movimento do vestuário, que
atingiu seu ponto culminante em 1800, com o costume à la sauvage. Todas
as vestes de baixo foram eliminadas; o peito e os braços ficavam nus. Os
tecidos empregados na confecção desses trajes eram sempre os de espessura
mais fina (...). Os cabelos eram bem curtos, a la Titus, encaracolados e
cobertos por um turbante.
Qualquer semelhança com o traje das baianas não é mera coincidência, mas
acontece porque a roupa das africanas foi se construindo plurietnicamente e carregava
também modos de expressão africana possíveis, que a Europa generalizava como orientais.
Coincidiam modos de vestir afro-muçulmanos e subsaarianos - que refletiam as condições
de um continente de clima quente e de fios passíveis de se obter e tecer nesta região - com
os modos europeus que já começavam a incorporar um orientalismo nascente. A
47
O decote, pouco apreciado na corte espanhola e referência constante na francesa, tornou-se muito baixo
nesta última, em meados do século XVII, uso que foi revogado pela marquesa de Maintenon no final deste,
todavia o decote continuou em alta conta durante o século XVIII (Köhler 2001).
46
coincidência aconteceu numa terra de calor – a brasileira - entre mulheres que se dedicavam
à labuta.
Assim, os europeus re-atravessavam para o outro lado do Atlântico uma
interpretação recente do estilo afro-muçulmano impregnada de orientalismo (o estilo
diretório), vindo este estilo a se superpor ao pprio estilo afro-oriental precedente
48
, que
aqui já havia aportado antes. Um pormenor chave, porém, tornava esse estilo uma
referência mais direta à sua fonte de origem: ele era usado e reelaborado por africanas e
suas descendentes.
Napoleão fez sua famosa excursão ao Egito entre 1798 e 1799. O estilo diretório,
por sua vez, após se transformar no estilo império, acrescentou algumas peças orientais ao
vestuário, como o turbante citado, enquanto a imperatriz Josefina lhe dava continuidade
no início do século XIX. Após o repúdio de Josefina, Juliette Récamier, rica herdeira de
banqueiros da elite parisiense, manteve em alta a linha império que também tomou seu
nome.
Esse é o estilo que vamos encontrar nas africanas mais bem vestidas retratadas por
Debret e Rugendas. Podemos observá-lo nas aquarelas Negros e escravos de diferentes
nações; Negros indo para o Batismo; O Jantar (Senhora brasileira em seu lar) e Visita a
uma Fazenda de Debret, as últimas representando mucamas negras entre senhoras de
sociedade vestidas de maneira semelhante. Aliás, Debret retrata a fazenda como se fosse
um harém. Rugendas também não escapa de orientalizações
49
.
Carlos Julião, que realizou aquarelas sobre Salvador e Rio de Janeiro, o fez
anteriormente a Rugendas e Debret. Debret chega ao Rio de Janeiro em 1816, oito anos
após a chegada da família real portuguesa em 1808. Assim, temos a roupa de vendedora
típica do século XVIII definida nas aquarelas de Carlos Julião, nas figuras de mulheres com
peixe e tabuleiro de frutas sobre a cabeça de Negras vendedoras. O estilo destas mulheres,
em comparação à visão de outros autores, é mais sóbrio e, embora largas, suas batas são
mais bem compostas, com mangas compridas ou médias, caracteristicamente manipuláveis
em seu comprimento, podendo as mulheres arregaçá-las a qualquer momento.
48
O estilo poderia ser definido como luso-africano com um quê de mourisco e veneziano.
49
Refiro-me a imagens como Mercado de negros, onde as africanas estão em poses lânguidas dignas da tela
Banho Turco do pintor Ingres e usam peças listradas semelhantes ao bolero de origem espanhola.
47
Em Chamberlain - que recria, entre 1820 e 1821, trabalhos anteriores, como a obra
de Guillobel do início do século XIX - as quitandeiras aparecem na Barraca do mercado,
carregando, sempre sobre a cabeça, cesto de grãos e tabuleiro de recipientes para bebidas,
sob uma cobertura armada na rua, espécie de tenda. Aqui as batas estão folgadas e caídas,
as mangas flexíveis, mas a composição da roupa é a mesma de Carlos Julião. Com todas as
ressalvas, esses são indícios de que, sobre o modelo básico, largo e confortável, houve uma
diminuição de panos e um aumento no caimento acentuado dos tecidos, talvez por causa
das novidades do diretório. Na gravura Uma história, trabalho de Chamberlain, vê-se o
estilo diretório nas senhoras que se contrastam com a africana de roupa típica, próxima a
uma janela protegida por uma gelosia. O decote, no entanto, pela semelhança, faz a ligação
entre as figuras femininas na composição.
De algum modo, esse novo olhar orientalista incide sobre as afro-brasileiras do
outro lado do Atlântico, ainda nas primeiras décadas do século XIX. Entretanto, elas trazem
algo bem mais autêntico sobre as cabeças, pois seus turbantes e rodilhas não são mero
acessório exotizado, que é parte de um neoclassicismo europeu em construção. Protegem
do sol, assim como os turbantes asiáticos e africanos
50
e permitem que se carregue, por
sobre a cabeça, toda sorte de objetos.
Seios quase desnudos, nenhuma peça modelando o corpo, como o espartilho, nem
limitando os movimentos - provavelmente por questões práticas - saias leves e pouco
rodadas, cintura marcada quase sob os seios, poucas rendas: assim se desenha a silhueta das
vendedoras africanas nas ruas, através dos artistas que as retrataram.
No entanto, não foi essa a linha preservada pelas atuais baianas do acarajé em seu
traje típico, nem pelas vestimentas rituais do candomblé. No que parece ser uma insistência
pelo gosto barroco e sua expressão de opulência, a tradição das baianas, em relação aos
seus legados europeus, concentrou-se nos babados e nas saias armadas.
Durante o século XIX, o modo de se vestir europeu sofreu grandes transformações,
além da crescente industrialização têxtil. A moda francesa, uma das frentes européias na
propagação desses flutuantes hábitos urbanos, fez reviver rendas, fitas e amplas saias,
durante o Segundo Império. O que parece a busca de uma restauração do esplendor
50
O turbante africano tampouco tinha finalidade simplesmente utilitária. Helen Bradley Griebel (1995)
argumenta que a diversidade dos usos do pano-de-cabeça servia de elemento de distinção e de identificação
entre povos africanos ocidentais e que seu uso se torna popular por volta do século XVIII.
48
monárquico, em termos de vestuário, foi atribuído a Eugênia, a imperatriz da França, que
era de origem espanhola. Casada com Napoleão III desde 1853, ela lançou as saias rodadas
sobre armações e a cintura marcada, como num revival das outrora poderosas anquinhas.
A partir de então, as mulheres começaram a usar inúmeras saias engomadas em
conjunção com muitos ornamentos, tendo o período sido designado como segunda era
barroca” (Köhler 2001: 528). A anágua espessa surge primeiro, seguida pelas de tecido
encorpado, enquanto as damas abastadas mantinham anáguas de seda, algodão ou de
tecidos brancos bordados (Köhler 2001: 541). A crinolina, uma armação feita com crina de
cavalo, surge como um acessório em substituição às anáguas em 1857.
As mulheres de Salvador passaram a incluir esses enchimentos em suas vestimentas,
a partir da técnica da goma, que foi se aperfeiçoando. A saias rodadas se incorporaram ao
traje das adeptas do candomblé e ao das atuais baianas do acarajé. Essas anáguas ainda são
usadas, em festas rituais ou populares, como o Bonfim, e por baianas do acarajé que fazem
questão de rigor no traje típico. As anáguas são de algodão branco com bordados, como
aquelas que foram usadas pelas “damas abastadas” européias.
O que foi anteriormente considerado esteticamente agradável, ou mesmo um traje
para ocasiões especiais, signo de estar bem vestida para o século XIX, cristalizou-se como
roupa pica e passou, até mesmo, a diferenciar nações de candomblé, que são estilos
cerimoniais baseados em pequenas diferenças nos códigos rituais que remetem a diferenças
étnicas que se tornaram míticas. Certas nações usam saias mais armadas que outras.
Ironicamente, um traço de estilo europeu serviu para significar as diferenças entre afro-
brasileiros. Talvez, essa diferença tenha acontecido inicialmente entre os mais arraigados
africanos, que não permitiam anáguas, e os mais flexíveis crioulos, que buscavam inserção
no prestígio adquirido através das peças européias da moda.
Isso demonstra como algumas peças da baiana o capturadas em sentidos que lhes
foram atribuídos pelas estratégias de construção de um lugar que pudesse servir de inclusão
na sociedade vigente. Também as peças européias servem de nítido signo de demarcação.
49
Indícios dos postais – preservação de um estilo afro-barroco
Com o advento da fotografia no século XIX, surgem representações das vendedoras
africanas em estúdio como podemos verificar nos postais ainda conservados em museus de
Salvador. Sofia Olszewski Filha (1989) analisa algumas imagens desse período. Ela nos
notícia sobre a atividade de daguerreotipistas em Salvador desde o fim da década de 40 do
século XIX (Olszewski 1989: 45). A impressão das imagens sobre suporte em papel data do
final de 1850, quando se criam condições para a reprodução dos postais (Olszewski 1989:
69). O pitoresco que instruía os europeus acerca das alteridades passou a ser tarefa da
fotografia.
Afora o modismo dos retratos de personalidades e imagens produzidas sobre
paisagens do exterior, também acontecia, ao mesmo tempo, uma produção de imagens de
paisagens soteropolitanas que podemos encontrar no Museu Tempostal a serem
enviadas como lembrança pitoresca para o exterior (Olszewski 1989: 50). Também foram
retratados trabalhadores de rua, ainda chamados ganhadores à época, como material
turístico, assim como as vendedoras de tabuleiro.
Estes postais nos mostram trajes como os descritos anteriormente e com muito mais
realismo. Há uma espécie de continuidade com as imagens dos retratistas, que com um
estilo mais ao século XIX. Temos registradas as mangas conforme ficaram definidas no
estilo da baiana atual, o decote ainda baixo, porém menos exagerado, cintura mais baixa,
saias não tão bufantes como poderia esperar a atual ortodoxia conservadora das práticas do
candomblé , porém rodadas, turbante, balangandãs e o reincidente pano-da-costa listrado.
Vejamos a trajetória desses acessórios distintivos documentados na fotografia, que parecem
ser as peças menos europeizadas se comparados com o restante do vestuário.
O turbante – exclusividade feminina, permanência e apropriação
Muitas culturas fizeram e fazem o uso de cobertura da cabeça, às vezes, insígnias
ricas em significados, por vezes, simples protetores contra o clima. O uso de turbante
evoca, para um mundo ocidentalizado, os trajes tradicionais de regiões do Oriente Médio,
50
Índia e África. No Oriente Médio, o turbante ainda é usado como cobertura mais típica para
a cabeça masculina (keffiyeh), enquanto o véu é acessório feminino. Também as
representações tradicionais da Índia trazem homens de alta casta portando turbantes.
O termo “turbante” vem do original turco tülbend. No entanto, o turbante como traje
feminino remete diretamente ao continente africano. Segundo Helen Bradley Griebel
(1995), não se sabe com certeza se esse uso feminino na costa ocidental da África teria sido
introduzido através de costumes árabes, mas há muitas teorias que sugerem essa origem. Se
assim tivesse ocorrido, o turbante das africanas teria sido derivado do uso muçulmano
masculino.
O turbante também faz parte de repertórios que vão se construindo como
orientalistas, numa interpretação européia de culturas orientais. Num primeiro momento,
ele se incorpora aos estilos de vestuário europeu via tradição muçulmana ibérica. O
turbante era conhecido da corte portuguesa pelo menos desde o século XII, e depois foi
proibido por ser um acessório usado pelos mouros (Lody 1996), que haviam conquistado a
África do Norte e tinham ficado em embate com Espanha e Portugal até o século XVI. Essa
proibição era até mesmo mais direcionada para os us femininos que poderiam cobrir as
cabeças das portuguesas, do que para turbantes. No período colonial português, ainda
associação do turbante com essa memória recente de uma alteridade adversária, porém
atraente.
Num outro momento, particularmente voltado aos aspectos que nos interessam, o
orientalismo se traduziu numa abordagem atravessada pela euforia republicana francesa e
pela conquista francesa do Egito. A libertação dos trajes que evocavam a aristocracia
pretendia ser um retorno ao despojamento da túnica e ao traje “selvagem” que incluía o
turbante. Esse “retorno” do turbante não se restringiu, como moda, à corte francesa. Mesmo
a rainha Carlota Joaquina aparece retratada por Debret com uma espécie de turbante
diretório com plumas.
No caso das regiões subsaarianas, Griebel acredita que este acessório feminino não
tenha sido, de forma alguma, uma imposição estrangeira, nem mesmo árabe. Se
concordarmos com a autora, diminuiríamos o papel de indumentária tipicamente masculina
da peça, o que está bem de acordo com seus usos no Brasil. Ele seria um artigo genuíno da
costa ocidental africana, com a peculiaridade de ser, desde o princípio, um híbrido de
51
estética africana e material europeu, que as evidências até agora apontam para o uso
popularizado desse tipo de cobertura na África Ocidental somente a partir do século XVIII.
Anteriormente, o tecido teria sido um item escasso, reservado aos mais ricos, o que
reforçava seus sentidos de poder e autoridade, tornando o enrolar da cabeça uma raridade
suntuária. Participante do complexo formado pelo estilo de enrolar tecidos sobre o corpo, o
pano de cabeça para se usar como turbante passou a ser mais acessível a partir de um
influxo de tecidos europeus, que se consolidou com os cada vez mais constantes contatos.
De qualquer modo, para Griebel, o uso do turbante teria sido preservado, com
poucas variações, por séculos, entre as afro-americanas, pelo fato de ser um traço distintivo
de uma visão de mundo africana que enfatizaria a cabeça humana, privilegiando-a
esteticamente. Uma visão de mundo centrada na cabeça não estaria muito longe dos cultos
do candomblé que, aliás, possui uma divindade representante da cabeça humana, o ori.
As mulheres da Costa Ocidental certamente trouxeram consigo esse costume do
pano de cabeça enrolado, hoje ainda corrente em algumas localidades africanas. No Brasil,
foi parte integrante do traje das africanas das diferentes etnias trazidas para cá, de suas
descendentes em diversas regiões do país e, depois de abandonado, continuou como
elemento da roupa da baiana de tabuleiro. O lenço amarrado na cabeça teve vida mais
duradoura no gosto popular nacional para vestimentas
51
.
Chamado de “pano-de-cabeça”, principalmente no linguajar dos terreiros, o turbante
também é conhecido como torço. Vê-lo na rua, sem que pareça excêntrica sofisticação ou
exotismo excessivo, é prerrogativa das baianas do acarajé, pois é parte de sua roupa
cotidiana. Desde as primeiras representações até os postais, o torço é marca quase
invariável em relação às imagens de vendedoras africanas de rua que levam produtos à
cabeça, geralmente junto com rodilhas para apoiar os balaios, gamelas e tabuleiros.
exceções, como a aguadeira que transporta um porrão pesado sem proteger a cabeça, ao
lado do tipo que transporta abacaxis no desenho aquarelado de Guillobel (Escravos de
Ganho, 1812) e uma vendedora de frutas da Venda em Recife de Rugendas, ou a jovem que
vende Banha de cabelo bem cheirosa de Debret, certamente com um penteado à mostra
para valorizar seu produto.
51
Lody (2003: 245) o define como “indício visual eminentemente banto”.
52
Quando estas mulheres são representadas em interiores, podemos encontrá-las mais
freqüentemente sem torço, porém com outros arranjos. Elas podem apresentar penteados
em feitio diversificado que a aquarela de Debret Negros e escravos de diferentes nações
nos descortina - exceto os números dois e treze que mostram turbantes. A modelo do
número dois foi classificada por Debret como livre e de origem “Congo” em traje de visita
(Debret apud Giacomini 1988). Teríamos no número treze uma “escrava Moçambique” em
casa de gente abastada. De acordo com essa imagem, parece que o torço era considerado
acessório de bom tom entre as africanas, não afetando a aparência de riqueza que as casas
mais bem colocadas gostavam de exibir. A modelo do número dezesseis também tem a
cabeça enrolada por um pano cujas pontas caem muito soltas, uma variante usada por essa
quitandeira de origem “Angola”.
Os penteados podiam ser exageradamente armados no século XVIII. Os
apresentados por estas mulheres, no século XIX, continuam bem armados e variam entre
o uso de coques, apliques, cachos, faixas com flores, que podiam passar pela testa, vidrilhos
pendentes e todo tipo de diademas além de uma espécie de véu em baeta (lã felpuda) usado
pela “Crioulada quinta figura numerada. As flores em guirlanda apresentadas pela quarta
mulher eram usadas para ocasiões tais como levar uma criança para ser batizada. Os
cabelos em cachos são trazidos por uma “Cabra” “filha de mulato e negra” - e por uma
“Mulata” caracterizada como “concubina”. Como sinaliza a legenda da primeira modelo,
esta imita “com sua carapinha” o penteado de sua senhora.
A maior parte desses acessórios e alguns dos arranjos eram modelos que também
poderiam ser usados pelas senhoras. De fato, é recorrente, nas imagens que analisamos, o
coque para as mulheres livres de origem européia, por vezes com faixa ou com longos véus
transparentes. As mulheres de aparência ibérica costumavam deixar seus cabelos bem
compridos, podendo passar de um metro de comprimento. Para conservá-los arrumados,
faziam longas tranças e os prendiam. Dentre as figuras de mulheres brancas do século
XVIII retratadas por Carlos Julião, uma delas, em trajes domésticos, exibe o longo cabelo –
item apreciado naquela sociedade - com um pente à mão. Outras m o cabelo preso e
amarrado com panos. Todavia fazem isso de maneira ligeiramente diferente das africanas,
com os panos formando uma espécie de coifa ou touca. Se não as utilizam, trazem um véu.
Nas imagens mais recentes dos outros autores, elas portam, geralmente, o coque alto, talvez
53
uma faixa, às vezes um véu. Chapéus com enfeites parecem lhes ser exclusivos e não muito
freqüentes.
Há uma variação do torço que o aproxima do costume das mulheres brancas e que é
uma espécie de coque protuberante no alto da cabeça, talvez um aplique, com um pano de
cabeça em torno deste ou o envolvendo inteiramente. O próprio torço enrolado pode fazer a
vez de coque
52
. Podemos observar o torço simples e o pano com coque entre nove mulheres
representadas na litografia de Rugendas Praça de N. S. da Piedade na Bahia. Também
vemos, em Negra da Bahia de Debret, um pano xadrez alaranjado envolvendoo apenas a
protuberância bem alta, mas todo o cabelo.
Hildegardes Viannna (1979: 223) cita um penteado usado na primeira metade do
século XX chamado oguxó, que consistia em manter o cabelo preso ao alto da cabeça num
coque. Ainda segundo Vianna (1979: 37), oguxó também é uma palavra nagô que designa a
maneira de se fazer fogo com o bagaço da fabricação de óleo de dendê. Raul Lody (2003:
101; 111) define o verbete Agunxó ou Ogoxi como as folhas de dendezeiro usadas para
fazer fogo. De qualquer maneira, teríamos uma relação entre o dendê ou talvez o formato
do chumaço de dendê usado para o fogo e o coque usado por mulheres nagôs, que se
somaria ao torço como mais um elemento étnico para enfeitar os cabelos.
Basta cabeleira feminina crespa e solta é muito rara, mas podemos encontrá-la
representada por Guillobel mais de uma vez, por exemplo, em Interior de uma casa do
baixo povo. Suponho que esse tipo de cabelo passou a ser associado à chamada cafuza,
enquanto as que se identificavam como africanas e crioulas faziam arranjos elaborados nos
cabelos. É possível concluir, por nossa iconografia, que as mulheres africanas e as mulheres
afro-descendentes não costumavam sair com a cabeça descoberta ou sem acessórios na rua
e isso deve ter perdurado por um longo período. Podemos concluir - sem esquecer que as
imagens falam das próprias construções dos artistas europeus interpretando os costumes das
africanas que a cabeça descoberta podia vir a ser sinônimo de despenteada, desarrumada,
até mesmo despojada de qualquer bem. Apesar da roupa folgada, de um braço fora da
manga ou do esgarçado entre manga e ombro da única peça que se possuía, causado pelo
costume de livrar braço e peito, a cabeça permanecia devidamente coberta, como se fosse
52
O que parece semelhante ao que Raul Lody (2003 b) caracteriza como torço cachoeirano.
54
um decoro de natureza étnica. Era preciso manter o decoro, o que se reforça pela concepção
local do período que entendia a rua como lugar apropriado para se demonstrar a opulência.
Em Salvador, a opulência não seria privilégio apenas dos mais afortunados, nem se
relacionava unicamente à aparência de riqueza. Conforme explica Kátia Mattoso (1997:
157), dessa opulência participaria até mesmo a massa dos escravos quer dizer, a própria
base humana de produção dessa riqueza sem ser sua maior beneficiária. Nestes, respingaria
o esplendor e o brilho dos mais prósperos, exemplos de prestígio que buscariam seguir. As
formas solidárias de utilização da riqueza e a aquisição de consideração geral eram os sinais
de opulência na Bahia, conforme Mattoso (1997: 178-79) nos coloca:
A riqueza da Bahia se baseia, levando-se em conta certa flexibilidade das
hierarquias sociais, na convicção de que cada um dos níveis dessas
hierarquias engendra suas próprias elites, isto é, seus homens e suas
mulheres capazes de dar proteção e apoio. As redes de solidariedade, o
desenvolvimento das instituições de crédito, das associações religiosas ou
sociais, das sociedades de comerciantes ou de negociantes são sinais de
riqueza, de opulência.
Os sinais mais exteriores de riqueza não seriam simplesmente ostentatórios, mas
identificariam homens e mulheres em sua rede de relações. Quem tinha apoio usufruía a
opulência em variados níveis. Assim também acontecia com as cativas desprovidas de bens,
mas bem vestidas por suas senhoras. Quando libertas, adquiriam, com trabalho árduo e
também com estratégias inteligentes, acessórios que eram sinais de uma mobilidade social,
formando suas próprias redes de apoio.
Estar vestida com a roupa sura, de cabelo bem arrumado envolvido por um turbante,
com um peculiar tecido jogado sobre o corpo e umas poucas “jóias de axé também
indicava estar protegida numa irmandade. Era uma condição em que não se estava
totalmente excluída, nem completamente submetida aos códigos europeus. Afinal,
vivenciava-se um outro código muito próprio, que se construía no cotidiano, acessível
apenas aos que dele participavam. Apesar do status de indefinição dentro da ordem
dominante, que era eurocêntrica, havia uma lógica própria e sólida interior a essa rede
feminina de relações entre as vendedoras de rua. Flexível resistência difícil de vencer, de
apropriar. Tanto que seus inofensivos trajes desfilam por até hoje, apesar da circulação
massiva da imagem fantasiosa de baiana rumbeira.
55
Se as redes de apoio se traduziam, nesse caso, em irmandades, elas eram católicas
por uma questão de incorporão tática. As igrejas, onde o véu era obrigatório, ficavam
repletas apenas com negros e negras, segundo Vilhena, citado por Mattoso (1997: 175). No
interior desses templos, onde era necessário envergar a melhor indumentária,
provavelmente as africanas não mudavam seu penteado, e o torço praticamente
representava seu véu, quando estas o usavam. Havia ainda o pano-da-costa, com sua
versatilidade, para fazer a vez de cobertura.
Não é bem assim que as encontramos na imagem de Rugendas, Missa na igreja de
N. Sra. da Candelária em Pernambuco. Essa imagem, porém, é controversa, visto que
Rugendas não esteve em Pernambuco e não templo de Nossa Senhora da Candelária em
Recife (Piccoli 2005). Poderíamos classificá-la como uma ilustração “genérica” de uma
missa no Brasil. Nela percebemos algumas mulheres brancas sem véu, inclusive a figura
central ajoelhada, assim como africanas sem turbante. Temos também duas mulheres de
cabelos lisos, porém curtos, que parecem ser de ascendência indígena e, curiosamente, um
encapuzado. A imagem parece ser uma ntese visual de tipos encontrados na missa, que
embora não seja em Salvador, mesmo assim contradiria Vilhena a respeito da cor dos
assistentes, se soubéssemos esta não ser uma função religiosa muito especial.
O turbante não foi somente símbolo de opulência, ou de respeito nos templos
católicos. Também foi e continua sendo um signo de hierarquia no candomblé. No entanto,
não é o simples portar da peça que prestigia, mas o modo de enrolar o que forma mais
uma metáfora que representa o valor do saber fazer relações com as coisas e não
propriamente o valor das coisas em si. O prestígio seria alcançado quando se acessasse
na particularidade dos códigos, nesse caso nagôs, em quais relações este reside e quais
habilidades este demanda para ser expressado.
No caso do torso, usá-lo com as pontas aparentes, porém pontudas, quando o tecido
é bem engomado, demonstra o saber sinalizar uma alta posição, já que a posição é
decorrência de conhecer os códigos e manipulá-los bem, conforme o tempo de prática
dentro do culto. Isso, no candomblé, também envolve disciplina corporal, como veremos.
Nesse caso é saber fazer o turbante ser um signo desde o início do processo, ou seja, desde
a preparação do tecido com a goma.
56
Raul Lody (2003 b) identifica os diversos estilos de se arrumar pontas do torço,
enquanto o torço simples as oculta. Segundo Lody, cada um deles indica a divindade, a
partir do gênero desse divino, à qual a pessoa se consagrou. O turbante então fala do
gênero, como veremos adiante. No caso das baianas do acarajé, mais do que os pormenores
dessas distinções específicas, o fato de apenas desconhecer a existência delas seria o que
denunciaria uma baiana do acarajé menos ortodoxa ou “evangélica”.
Como algumas me disseram, a baiana do acarajé evangélica, que segue a portaria
municipal de se vestir tipicamente para os turistas ou que tenha se convertido, se conhece
pelo modo de colocar o torço, distinção mais eficiente do que olhar para suas contas do
pescoço. As contas, signo que a sociedade em geral interpretaria como o mais específico do
candomblé, são, hoje em dia, o que de menos específico e mais variável, pois seu uso
autêntico, respeitando o sentidos e restrições históricos que o candomblé preservou, se
restringiu bastante ao mundo dos cultos.
Todavia, uma outra característica herdada desse universo religioso será mais
importante, do ponto de vista de quem vende no tabuleiro. É o fato de o turbante ser
acessório exclusivamente feminino. Ele sempre foi usado por toda espécie de vendedora
ambulante em nossa iconografia. No caso específico da venda de acarajé, ele se torna um
artigo feminino que carrega mais um sentido: indica uma adepta que foi consagrada a uma
divindade também feminina.
Inicialmente, na tradição soteropolitana de cultos nagôs, apenas mulheres se
consagravam a divindades, masculinas e femininas, com o objetivo de incorporá-las nas
cerimônias – apesar de poucas as irmandades católicas femininas. Ruth Landes (2002: 321)
observa essa centralização dos cultos no feminino ainda na última década de 30 e declara:
A tradição afirma que somente as mulheres estão aptas, pelo seu sexo, a
tratar as divindades e que o serviço dos homens é blasfemo e desvirilizante.
Embora alguns homens se tornem sacerdotes, a razão, ainda assim, é de um
sacerdote para 50 sacerdotisas. Muita gente acha que os homens não devem
tornar-se sacerdotes e, em conseqüência, um homem alcança esta posição
apenas em circunstâncias excepcionais. De qualquer modo, jamais pode
funcionar tão completamente como uma mulher.
Verger (1992) tenta explicar esse costume em termos de cultos da realeza de Oyo
em oposição às práticas populares iorubanas patriarcais - restritos a sacerdotisas cujo
57
modelo veio parar em Salvador circunstancialmente. Para a parte iorubana, Matory (1994)
busca esclarecer as relações do feminino com o poder real. Segundo o autor, a cidade
iorubana de Oyo, ao se tornar um estado em expansão territorial, durante os séculos XVI e
XVII, constituiu uma corte palaciana onde as mulheres puderam alcançar funções de
confiança (o que inclui o sacerdócio) e postos no conselho real
53
e onde representantes e
emissários do rei tomaram a acepção estrutural de esposas reais”, podendo chegar a se
travestir como mulheres (Matory 1994: 9). Podemos especular se esse tipo de concepção de
linhagem feminina que secunda o poder de um monarca não teria, em Salvador, tomado
uma expressão diversa através das libertas, mulheres que tinham mais poder de atuação e
estavam em maior número que os homens. De qualquer maneira, os candomblés de
Salvador considerados como pertencentes aos grupos étnicos nagôs, em sua acepção mais
estrita, foram construídos sobre uma estrutura que privilegiou a exclusividade feminina
54
na
liderança.
Com o tempo, o costume de exclusividade feminina se abrandou, mas as principais
casas de filiação nagô (ioruba) continuam mantendo lideranças femininas até o presente
momento. Basta dar uma olhada nos diagramas de sucessão apresentados por Vivaldo da
Costa Lima (1977: 197-8; 2003: 204-5) em seu trabalho A família de santo nos candomblés
jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações intra-grupais. São genealogias exclusivamente
femininas de líderes dos terreiros do Alaketu, Engenho Velho, Gantois e Opô Afonjá, onde
as mulheres ainda continuam a exercer o cargo mais alto. Essas casas são um modelo de
prestígio em nível nacional.
Nem todas essas genealogias o totalmente inquestionáveis, mas é de
conhecimento público e da tradição oral que esses terreiros foram levantados por mulheres,
embora a participação masculina tenha sido um auxílio valioso em alguns momentos.
Teresinha Bernardes (2003: 13; 53), por exemplo, critica Verger (1992) por seu artigo
sobre a contribuição das mulheres ao candomblé não deixar clara a continuidade da
liderança exclusivamente feminina e por atribuir a fundação do Alaketu a um personagem
do sexo masculino, em confronto com a vertente da tradição oral que enfatiza o papel
53
O autor relaciona essas facilidades ao fato dessas mulheres estarem excluídas da linhagem masculina que
poderia reclamar o trono.
54
Uma exclusividade relacionada a corpos anatomicamente femininos.
58
feminino. Ainda acrescenta que, em outras reges, como o Maranhão, casas de culto na
foram também fundadas por mulheres.
Os questionamentos fazem parte de uma reação, creio que predominantemente
masculina, às afirmações contundentes de Ruth Landes, como vimos acima, no fim dos
anos 30, baseada não em suas observações em campo, mas na própria visão de Edison
Carneiro que participava do mundo dos cultos. Essa reação se traduziu em tentativas, por
parte das próprias casas, de diminuir o papel das mulheres, através de versões de história
oral que procuram equilibrar a balança de saberes e poderes entre os sexos dentro do ritual
e da consolidação dos terreiros
55
.
Podemos imaginar se a motivação para a ênfase posterior no papel dos homens faria
parte de uma dinâmica de conservação que se quer fidedigna às linhagens patriarcais
iorubanas originais, que em território brasileiro não teriam predominado, ou se faria parte
de uma legitimação do processo mais recente de entrada dos homens, provavelmente
herdando cargos por descendência, nas áreas outrora restritas a mulheres dentro do
candomblé
56
. Talvez ambas motivações justifiquem a busca de ênfase no papel masculino
que se seguiu a Ruth Landes e que se refletiu nas pesquisas posteriores. Mesmo assim,
apesar de variadas inflexões procurando balancear o papel dos gêneros masculino e
feminino na ritualística, ou reafirmando um modelo de sociedade patriarcal circundante aos
terreiros, os dados contidos nos diagramas genealógicos que citamos acima continuam
explicitando a predominância feminina na direção dos terreiros tradicionais nagôs de
Salvador, fontes de prestígio, uma confirmação que nos interessa mais diretamente, pois a
venda de acarajé parece seguir o mesmo modelo.
O vestuário típico, antes predominante em todas as instâncias afro-brasileiras e que
em parte se exibe, hoje, na venda do tabuleiro, corrobora a existência desse sistema
feminino. Ele nos revela como essa predominância feminina, nas ruas e nos terreiros,
aconteceu a partir da divisão do trabalho que se formou em território brasileiro através do
repertório africano, mais do que a partir da memória de cultos nigerianos restritos a
sacerdotes do sexo feminino. Do trabalho da ganhadeira é que se vai formar grande parte
55
Assim, chegamos à versão de associações femininas cívico-religiosas e clandestinas que se unem a
irmandades masculinas africanas e católicas para fundar o primeiro terreiro nagô.
56
Essa “herança de cargo aconteceu entre algumas baianas do acarajé que não tiveram descendência
feminina disponível para dar continuidade à atividade, como veremos.
59
dos elementos emblemáticos que depois irão se recolher ao espaço do candomblé. Tornar-
se ganhadeira era um patamar alcançado que poderia facilitar a alforria, como podemos
verificar na definição de João José Reis (2003: 351):
As relações escravistas na cidade se caracterizavam pelo sistema de “ganho”.
O escravo ganhador era obrigado a dar ao senhor, a cada dia ou semana, uma
quantia previamente acertada. “Pagar a semana”, como rezam os
documentos, era um acerto mais comum. Muitos escravos e escravas viviam
fora da companhia dos senhores e pagavam a semana.
O estilo de vida proporcionado por esse sistema de ganho dava oportunidades para
que, através de manobras específicas, o cativo conseguisse gradualmente guardar dinheiro
para comprar a liberdade. O candomblé se caracterizaria por um culto cuja estrutura está
fundamentada no modelo do ganho, na emancipação proporcionada por este ganho e na
predominância de grupos femininos que atravessam, em primeiro lugar, este processo,
mantendo-se coesos, através do mesmo, na construção de uma estratégia de resistência que,
num primeiro momento, utilizou-se de táticas mais imediatas.
Vejamos como isso ocorreria mais especificamente, segundo esta suposição.
Inicialmente, as comunidades de vendedoras devem ter se formado como juntas de alforria
e auxílio mútuo. As emancipadas pela junta ficariam devendo lealdade e serviço à
comunidade que havia financiado sua liberdade, para poder contribuir na libertação de
outros membros. O serviço devido poderia se traduzir em uma nova relação de ganho, de
obrigação para com os que haviam comprado esse novo membro, e a relação de trabalho
obrigatório se estenderia até que pudesse equivaler financeiramente ao valor empregado em
sua compra. Esse tipo de relação teria se transferido para o âmbito ritual, para o candomblé,
que foi originalmente um culto familiar. A dificuldade de manter, em grupos maiores, laços
familiares baseados na consagüinidade, num sistema escravista, deve ter contribuído para
essa transferência.
Para detectarmos o modelo do ganho, basta observar como funcionava o ingresso na
comunidade de um terreiro em tempos mais recuados. As noviças ingressavam nas
comunidades devendo “obrigações para as divindades, ou seja, devendo indiretamente
para as deres que representavam e dirigiam a comunidade e que eram as responsáveis em
apresentar as oferendas às divindades. Portanto, quando recém iniciadas, as noviças tinham
60
a tarefa de angariar recursos para a comunidade da qual participavam e à qual se
submetiam, indiretamente, pela submissão à divindade particular que recebiam sobre seus
corpos através desse coletivo de pessoas. A relação de submissão era quase como uma
reprodução da relação de ganho. Afinal, este era o modelo disponível.
Assim, as iniciadas passavam a exercer uma atividade rentável, relacionada à
divindade a que tinham sido consagradas, que era caracterizada pela produção de alimentos
oferecidos e atribuídos a esse divino. uma sutileza nesse caso, que nos remete ao culto
da cabeça e ao turbante. Ao ser iniciada, a adepta tinha a divindade simbolicamente
depositada em sua cabeça. Sobre ela só poderiam ser carregados os atributos daquela
divindade. Como vimos, as vendas se faziam, predominantemente, com as mercadorias
sobre a cabeça. Isso reforça o sentido de o candombconstituir por excelência um culto
das mercadoras de comida.
Quando entrasse para a comunidade religiosa através dos rituais de iniciação, a
adepta se tornava posse da líder sacerdotal. Deste modo, a renda obtida pelas iniciadas,
geralmente pelo ganho, ia para o terreiro, enquanto elas permaneciam morando ali, sob a
tutela da líder dessa rede de apoio. Depois de algum tempo, as recém iniciadas poderiam se
auto-resgatar financeiramente, conforme fosse o caso, tornando-se um pouco mais
independentes. Arthur Ramos (2001: 61) faz uma clássica descrição da memória ritualizada
de um resgate financeiro, na última década de 30:
Pertencendo à mãe de santo, depois de iniciada, a filha de santo poderá
voltar para a casa dos seus parentes depois da cerimônia da compra. Esta é
efetuada pelo marido, pessoas da sua família ou qualquer outra previamente
aceita pela filha de santo. O preço varia de acordo com as posses do
comprador. Na cerimônia da compra, faz-se às vezes uma espécie de leilão
dos objetos por ela usados durante o noviciado: é a quitanda das iaôs. Finda
a compra é a filha de santo conduzida por um grande cortejo até a casa do
comprador com quem se obriga viver de então em diante.
Essa descrição está baseada em observações do início do século XX, quando o
ganho já havia desaparecido e sua memória se adaptava a outras condições. A “quitanda da
iaô faz aqui a reprodução das relações de trabalho do ganho no contexto da comunidade
do culto. A partir do que produziam e usavam, durante a reclusão ritual, as mulheres
podiam demonstrar, durante a cerimônia, seus serviços a serem contratados, seguindo o
61
modelo do ganho, ou seja, se fosse o caso, seus serviços seriam transferidos de um
proprietário para outro mediante pagamento, até que pudessem se emancipar ou serem
emancipadas se o comprador fosse um benfeitor ou um parente. Senão, continuariam
prestando serviços ao terreiro representado por sua líder, até que pudessem realizar seu
próprio resgate, alcançando uma posição hierárquica superior.
A “quitanda da iaô traria a possibilidade de, em parte, um resgate antecipado, mas
é principalmente a cerimônia que define para onde serão alocados os serviços da iniciada
durante o os anos de “obrigaçõesque ela ficará devendo à comunidade. As africanas que
trabalhavam no sistema de ganho costumavam treinar outras cativas em seu ofício para que
as substituíssem quando pudessem obter financeiramente sua liberdade. O tema da
substituição pode ser encontrado no caso das noviças que permaneciam no terreiro, porque
a líder sacerdotal muitas vezes poderia ensinar ou fazer aprender à iniciada a nova atividade
que exerceria, segundo sua divindade tutelar, em prol da comunidade. Enquanto a líder
administrava a comunidade, suas subordinadas trabalhariam para ela ou a auxiliariam em
seu próprio ofício.
Durante os tempos do regime de escravidão, as mulheres do ganho estavam em
melhor situação financeira que seus companheiros, com os quais nem sempre formavam
uniões estáveis (Reis 2003: 408-17)
57
. Nesse período de formação do candomblé, é bem
mais provável que predominasse a situação em que uma sacerdotisa principal - espécie de
líder familiar - usufruísse, durante um bom tempo, dos serviços das mulheres que lhe
pertenciam. E é possível que isso tenha começado com a transferência irrevogável de
mulheres africanas cativas dos portugueses para o serviço de libertas que aumentavam seu
negócio, numa mescla de vantagem financeira e solidariedade étnica, dentro de certos
limites. O conceito da opulência que engloba solidariedade e hierarquia, próprio da
mentalidade soteropolitana da Colônia e do Império, contextualiza muito bem esse tipo de
situação. Não havia maridos ou muitos parentes próximos em situação cômoda a quem
recorrer. Eram justamente esses grupos de ganhadeiras que recriavam relações de
parentesco entre africanos e afro-descendentes.
57
Nem mesmo no final da década de trinta, contemporânea de Arthur Ramos, os maridos desempenhavam um
importante papel econômico, segundo a visão de Edison Carneiro, descrita por Ruth Landes (2002: 81). De
acordo com o que apresenta a autora, entre as mulheres de candomblé, não havia grande quantidade de
maridos e estes não seriam de confiança.
62
João José Reis (2003: 352) estima que um ganhador, que sofria um regime de
exploração financeira bastante elevada, levaria nove anos para conseguir comprar sua
alforria. As ganhadeiras tinham a possibilidade de fazer dinheiro mais depressa.
Curiosamente, são necessárias “obrigações renovações de seus votos com custo
financeiro - até sete anos dentro de uma casa de culto para que o iniciado possa cumprir
uma espécie de emancipação, passando a ser considerado como uma pessoa mais velha no
culto, portanto respeitável e capaz de demonstrar maior independência sacerdotal. Assim, a
“quitanda da iaô é também a forma reduzida da quitanda da ganhadeira sintetizada numa
cerimônia de resgate. Porém, de modo mais amplo, consistia em prestar serviços de
vendedeira para a comunidade à qual se pertencia. Os serviços seriam determinados pelos
atributos da divindade à qual essa pessoa estava ligada por sua própria ancestralidade ou
pela da comunidade. Fazer acarajé para vender nas ruas é o principal modelo desse tipo de
atividade mercantil e sacra, podendo até ser denominado como uma “obrigação.
Usar o turbante e vender o bolinho na rua, produto emblema das comidas feitas com
azeite de dendê, era prerrogativa, então, das filhas da divindade feminina Oiá. Isso quer
dizer que o turbante se tornou um símbolo duplamente feminino: um acessório de mulher,
protegendo a cabeça dessa mulher, ao mesmo tempo em que protege o feminino divino ali
depositado.
Essa intensa feminilidade, do ponto de vista afro-brasileiro, é ainda corroborada
pela saia, outro acessório exclusivamente feminino. Para Hildegardes Vianna (1979: 146),
na Salvador da primeira metade do século XX, as chamadas “mulheres de saia”, em
oposição às mulheres que usavam vestido, eram uma categoria que englobava:
Mulheres de gamela, vendendo fato de boi, peixe, mingau, mulheres de
tabuleiro, mercando cuscuz, cocadas, bolos, mulheres de balaio ou
ganhadeiras, negociando pão, verduras, produtos da Costa d’África,
caxinheiras, mascateando rendas e bicos de almofada, palas de camisa e
barras de crochê, artigos de procedência africana (...), mulheres
compradeiras de tempero e todas as demais integrantes de profissões da
mais ínfima categoria (...).
Lody (2003b) sintetiza o que se entende hoje pelo termo: “Estar de saia, usar saia,
pode referir-se ao elaboradíssimo conjunto que monta a roupa típica da baiana”. A
divindade Oíá, quando incorporada, também “usa saia sendo substituído o turbante pelo
63
diadema, para que se expresse a partir da cabeça coberta de outra maneira, já que o diadema
é símbolo de realeza feminina, por isso mais adequado para a ocasião. Não se usa a roupa
típica de baiana (a saia) apenas para incorporar a deusa Oiá, mas toda divindade do panteão
do candomblé que se manifesta a partir de um corpo de anatomia feminina: “Ainda no
âmbito religioso, a baiana é base para as roupas dos orixás, voduns e inquices, acrescidas de
detalhamentos peculiares em cores, matérias e formatos, contando, também, com as
ferramentas –símbolos funcionais dos deuses” (Lody 2003b: 28).
Se as adeptas incorporam divindades do gênero masculino, pode-se apelar ao
recurso do saiote, mas o emblema da saia continua ali, marca da feminilidade de um corpo
que tem, em termos anatômicos, a preferência na manifestação do divino. A incorporação
estaria, de certa forma, reservada para a mulher, assim como o uso da saia e turbante. Se ela
incorpora uma divindade feminina, essa é uma marca ainda mais indelével.
Dessa maneira, as baianas do acarajé usam estes elementos simbólicos da
indumentária exclusivamente feminina para discutir sobre os homens que, mais
recentemente, têm seguido a mesma profissão. Pude encontrar dois tipos masculinos na
venda do tabuleiro. O tipo mais comum e bem aceito é o ajudante, que auxilia na hora de
“despachara comida e de receber o dinheiro, ou que auxilia no processamento dos
alimentos, geralmente realizado na casa da baiana, e no transporte dos alimentos e
utensílios até o local de trabalho.
Tradicionalmente, o ajudante está representado pela figura do “moleque, como me
informou Vilson Caetano de Sousa Júnior. O “moleque, geralmente filho pequeno da
baiana de tabuleiro, tornou-se o ajudante típico, representado nos mitos afro-brasileiros por
meninos travessos que também seriam certas divindades, como veremos. Hildegardes
Vianna (1979: 48) define moleque: “Moleque, por si só, significava negro pequeno de
pouca idade, filho ou parente de escravo ou forro, independendo de seu bom ou mau
comportamento. Depois é que a palavra passou a designar falta de dignidade ou demasiada
travessura”.
A autora dedica uma crônica a um tipo específico de moleque da antiga Salvador, o
“moleque comprador de tempero, espécie de intermediário entre a venda nas ruas e os
domicílios familiares, passando periodicamente pelas residências para saber se precisavam
de algo. O moleque seria, então, um atravessador por excelência, pequeno, mais disponível
64
que os adultos - como a mulher que comprava tempero - e ágil. Esse moleque também
passou a aviar, com sua mobilidade, as necessidades do tabuleiro, quando este se tornou
fixo e foi identificado, no plano mítico, com o domínio de divindades afro-brasileiras
especializadas nesse tipo de atividade.
Hoje, esse trabalho infantil diminuiu, mas podemos vislumbrar o papel do moleque
entre os ajudantes (ou componentes), jovens rapazes que auxiliam na venda do bolinho. As
mulheres mais moças também podem exercer o mesmo papel, mas são geralmente
encaradas como aprendizes preferenciais, assim como deviam ser as meninas que
acompanhavam avós, tias e mães anteriormente.
O segundo tipo masculino presente na venda do tabuleiro é menos tradicional e mais
polêmico. Seria o baiano que faz a vez da baiana dona do tabuleiro. Líder familiar e artesão
gastronômico, ele faz a massa – ou coordena sua feitura - e dá o tempero, além de
tradicionalmente manter mais constante sua presença do outro lado do tabuleiro,
imprimindo sua marca pessoal, na hora de fritar o bolinho na rua, vestido a caráter.
A hora de fritar o bolinho é um momento crucial que a marca do produto. Quem
faz a fritura, a princípio, pela tradição histórica, deveria ser a cozinheira que preparou a
massa, ou seja, a dona do tabuleiro. A divisão das tarefas entre os familiares, entretanto,
facilitou o trabalho que sobrecarregava uma ou duas pessoas, quando a demanda foi
aumentada. Ao invés da dupla dona do tabuleiro mais auxiliar, surge um número maior de
auxiliares, geralmente filhos e filhas, parentes por aliança ou agregados e aprendizes,
fazendo a vez de caixas, transportadores ou preparando o produto para entregá-lo ao
cliente. No entanto, as baianas não vêem com bons olhos quem frita a massa alheia,
produzida por outra equipe, mas a vende como se fosse sua. Rosângela Araújo, vendedora
da festa do Bonfim, define essa prática malvista: “Tem muitos que não são quem faz,
pegam pessoas que vendem acarajé, mas estão sem condição de manter a guia, e botam pra
trabalhar para eles. Vendem, têm o ponto, mas não sabem praticar”.
Ter o ponto e vender o produto se caracteriza assim como a marca do principal
empreendedor, mesmo que este não esteja constantemente em seu ponto, mas conte com
uma rede de auxiliares substitutos. No entanto, é imprescindível o saber fazer para ser dono
desse negócio tão tradicional e ser digno de ser mencionado como vendedor do tabuleiro,
mesmo criticamente. O baiano do acarajé que gerencia o tabuleiro respeitando essas
65
condições - sabendo praticar - é a figura polêmica digna das discussões entre baianas
vendedoras e clientes, por não fazer parte da tradição.
Mercadores do sexo masculino podiam, tradicionalmente, trabalhar com alguns
tipos de alimentos e produtos, como os verdureiros, vendedores de porcos, de aves ou de
tabaco, presentes em nossa iconografia. Porém, não os encontramos cozinhando na rua,
como as mulheres sentadas no chão ao lado de um largo caldeirão fumegando sobre a lenha
(por exemplo, a prancha 56, Rio de Janeiro, ou prancha 121, Cenas de rua no Rio de
Janeiro de Debret). Cozinhar iguarias afro-brasileiras, seja nas ruas ou fora delas, vestida
de saia e turbante, é algo tipicamente feminino, nesse período, para africanos e seus
descendentes.
Os homens, nessas imagens, costumam usar gorro, chapéu de palha-da-costa (ráfia
africana) e tecidos sobre a cabeça, mas não colocados em forma do torço tradicional.
Também não usam saias, com exceção de uma figura masculina vestida para o batismo
(prancha 127), com um tipo de saia curta presa à altura do peito por faixa de pano cor-de-
rosa de modo semelhante ao das africanas que identificamos anteriormente, num modelo
que evoca o das iaôs quando em iniciação nos terreiros. Outro tipo de saia masculina pode
ser identificado numa espécie de túnica que vemos numa figura em Carlos Julião e também
em Debret. Essas túnicas curtas masculinas costumam fazer composição com breves
carregados no pescoço, lembrando um traje muçulmano e eram usadas pelos africanos
islamizados que vieram para o Brasil.
Do período de nossa iconografia até hoje, o turbante e a saia mantiveram sua
posição, mas a atividade deixou de ser, de maneira gradativa, exclusivamente feminina,
como nas modificações ocorridas no campo dos cultos afro-brasileiros. Nesse sentido,
aconteceram adaptações na indumentária dos cultos. No entanto, as adaptações foram mais
restritas dentro dos templos. No caso de um homem ter sido designado a ser possuído por
um orixá do gênero feminino, isso o obriga a trajar uma espécie de saia. Assim, o signo da
saia, não só como conjunto, mas como peça, não pôde ser totalmente abolido. No tabuleiro,
isso aconteceu de outra forma.
Quando o baiano é dono de um tabuleiro de acarajé, ele deve se vestir com um
modelo masculino – calças, bata (camisa tipo abadá) e um barrete típico - para estar
apresentável, segundo a maioria das baianas que entrevistei. Algumas acreditam que
66
deveria vender acarajé quem estivesse vestido de saia e turbante porque esta é uma
atividade consagrada a Oiá. Para essas, portanto, seria mais legítimo um homem que se
travestisse filho de Oiá vendendo acarajé. Como, segundo elas, somente homossexuais se
permitem colocar chamativos turbantes e maquiagem, estes estariam próximos do modelo
da saia. Ou seja, o turbante aqui valeria pelo conjunto que significa estar de saia, a parte
pelo todo, já que homem não usa turbante de “crioula”, segundo a tradição.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o fato de ser legítimo vender acarajé apenas
trajando saia e turbante, seria impedimento da atividade para os homens, segundo as mais
ortodoxas. Entretanto, tudo muda de figura se o baiano vem de uma tradição feminina de
família e pretende dar seguimento a esta. Mais ou menos como pode ocorrer num
candomblé, o homem pode dar continuidade à tradição através de suas filhas ou sobrinhas,
formando um elo na cadeia de mulheres. Este tipo masculino não é necessariamente
considerado como homossexual por desempenhar um papel tradicionalmente feminino. Sua
legitimidade não vem do transformar-se em feminino, mas do perpetuar uma tradição vinda
de família e protegida por uma divindade ancestral feminina, geralmente protetora dessa
família ocupada com um ofício feminino, para que esta divindade possa reencontrar sua
expressão maior no corpo de uma jovem mulher nascida nessa família
58
. A indumentária
desse homem é geralmente masculina e afro-brasileira, como descrevemos.
Em ambos os casos, toda essa indumentária e performance pública não têm relação
direta com a orientação sexual desses homens do acarajé. Às vezes, eles podem preferir se
feminizar, o que não quer dizer necessariamente que são homossexuais, embora se
permitam parecer com estes. Às vezes, eles fazem a linha masculina, mas não são
heterossexuais estritamente. Mesmo assim, os dois estilos de masculinidade do tabuleiro
ou de feminilidade para o masculino são os que permanecem disponíveis na cartela, em
constante mudança, da expressão pública.
Curiosamente, um dos baianos do acarajé, o Cuca, usa um gorro típico de mestre-
cuca, que fica bem alto sobre a cabeça. Duas relações podem ser feitas, a partir dessa
inovação. Primeiro, ela é criativa e não ultrapassa totalmente os códigos afro-brasileiros a
58
A respeito de indícios sobre a matrilinearidade em sentido estrito no candomblé, Edison Carneiro, através
do relato de Ruth Landes (2002: 78), define a posição hierárquica de “irmão da mãe” dentro do culto como
mais importante do que a de “pai” que equivaleria a ogã. Martiniano do Bonfim teria ocupado esse importante
cargo cerimonial ao lado da líder sacerdotal Mãe Aninha no terreiro do Opô Afonjá, antes desta falecer.
67
respeito da cabeça. Cobertura alta da cabeça masculina significa poder e remete ao trajar de
alguns sacerdotes que se apresentam como pertencentes à tradição de culto de procedência
jeje (fon). Segundo, ela faz referência às tradições de gastronomia européias, em que o
cozinheiro é um homem, um artista e um mestre, o mestre-cuca.
O mestre-cuca é sinônimo de chefe de cozinha (chef de cuisine), outrora um maître
de ofício ou mestre culinário que coordenava os banquetes da corte francesa. uma
palavra, em francês, que remete a uma ocupação semelhante, o maître coq, que usualmente
designa alguém ocupado com produtos e receitas à base de aves, mas que também pode
estar relacionado à palavra coq, que ao invés de significar galo, faria alusão ao cozinheiro
de bordo, tendo sua origem no latim coquus (simplesmente cozinheiro ou cozinheiro de
taverna ou padeiro).
Mestre-cucapode ser uma derivação da palavra em francês, mas em português
produz outros sentidos. Curiosamente, a palavra “cuca designa também, em português, a
cabeça, justamente o lugar que o chapéu de mestre-cuca quer colocar em evidência. Assim,
o baiano do acarajé Cuca se valoriza em todos os sentidos nessa profissão e legitima seu
lugar de mestre, embora seja um homem, através de uma referência à culinária européia,
onde culinária é uma arte representada por uma figura masculina.
Essa figura de cozinheiro artista europeu já esteve muito próxima da figura do
alquimista, o que podemos observar na proximidade entre dietética, medicina e culinária
européia antes do século XVIII, como está descrito em Flandrin&Montanari (1998). Hoje,
esse alquimista emerge novamente em outra roupagem, quando a cozinha se transforma em
laboratório e o conhecimento microscópico de reações químicas pode dar ensejo ao prato
perfeito. A entrada dos homens no ofício do tabuleiro coincide com uma nova versão da
função do torço feminino.
É numa nova acepção de gorro de cozinheiro, ou boné, que o turbante começa a
sentir ocultar a densa significação que o universo religioso afro-brasileiro lhe deu. Nessa
ocultação, o turbante deixa de expressar seu percurso afro-brasileiro e passa a ser um
simples artefato típico do folclore nacional, cuja função, no fim das contas, seria de
natureza higiênica. O que antigamente era um vistoso penteado feminino, agora é
interpretado como artifício para esconder o cabelo crespo e, mais ainda, para impedir que o
cabelo “contaminea comida. Muitas baianas de tabuleiro evangélicas gostam de relembrar
68
essa nova versão higiênica do turbante, já que o acarajé seria para elas um “fruto da terra
como outro qualquer.
Como vimos, primeiramente, a africana não poderia estar despenteada, descoberta
nas ruas, mas isso era genuinamente um simbolismo para seu papel social entre as redes de
apoio e uma estratégia de diferenciação em meio às tentativas de inclusão que se faziam
necessárias para poder acessar mais recursos numa sociedade hierarquizada e excludente.
Nesse momento de largo uso do torço pelas africanas, não parecia estar em ação o mesmo
mecanismo que Norbert Elias (1994) definiu ao descrever as exigências da classe alta
aristocrática das monarquias européias para com seus serviçais, relativas à ocultação do
corpo e das funções corporais como sinal de respeito por parte dos considerados inferiores
pelas classes que se julgavam superiores.
Ocultar os cabelos, para aquelas afro-descendentes, não se configurava,
inicialmente, como sinal da exigência de submissão, mas como algo genuinamente étnico
que viria a ser marca das “crioulas. Aos poucos é que vai adquirindo essa conotação
menor por sua própria relação com a afro-descendência e, por conseguinte, com a exclusão.
Finalmente, passa a significar, durante algum tempo, uma espécie de inferioridade ou de
incapacidade para ascender socialmente. Apenas depois de ser esquecido em nível nacional,
vai se transformar em artigo feminino típico regional. Mesmo em Salvador, ele vai se
restringir aos cultos e às vendedoras típicas.
No fim do século XIX, quando os segmentos afro-descendentes tentam empreender
uma participação mais inclusiva na sociedade, as mulheres procuram se vestir exatamente
como os modelos europeus copiados pela maioria das brasileiras e o turbante começa a
sumir. Basta observar o postal, esmaecido na reprodução, de Pedro Gonsalves da Silva, que
exibe um casal afro-descendente, ela com vestido acinturado de gola alta e mangas
compridas bem ajustadas ao corpo, cabelo descoberto, aparado (Olszewski 1989). Outro
postal de 1880, autoria de Guilherme Gaensly, mostra uma transição: a figura feminina está
de bata rendada, grande xale e saia xadrez bem ampla, porém exibe seus cabelos penteados
em um coque, muito diferente dos arranjos de africanas do ensaio de Debret ou de outras
imagens analisadas. É o início do desuso do turbante.
Mesmo assim, o turbante não deixou de se expressar como acessório afro-brasilerio.
Porém, vieram se acumulando sobre o turbante outros significados que distorceram sua
69
primeira função. Ele passou a servir como elemento que designa o baixo calão social, ao
que vai se acrescentar uma espécie de conotação de feminino vulgar, segundo a sociedade
dominante, quando começa a povoar o universo do vestuário de teatro de revista. De
repente, retoma o sentido da inferiorização proveniente da suposta desordem que precisa
ser contida, como vem acontecendo agora, quando as próprias vendedoras começam a vê-lo
como uma peça essencialmente relacionada com a higiene.
Assim, por detrás da higiene, podemos reconhecer o tema da ocultação por respeito
a uma classe dominante que se julga superior. Na Europa, esse ocultar o corpo buscou
construir distinções e hierarquizações. No caso do torço afro-brasileiro, tentou-se imprimir
o mesmo sentido de hierarquização sobre um costume de natureza étnica. A cobertura que
dignificava passou a significar uma ocultação de diferentes características físicas, as quais
ficaram essencializadas como sinal biológico de inferioridade pelas classes dominantes.
Ao se exacerbar, a ocultação culminou no desejo de uniformização, quando os
cativos portadores dessas marcas de diferença deixaram de ser indispensáveis ao sistema
produtivo, tornando-se, para o pensamento dominante, uma categoria cuja história e
lembrança deveriam ser apagadas através da desafricanização e do embranquecimento. O
torço, sendo um sinal historicamente distintivo, sofre, a partir de então, tentativas de
apropriação por parte desse anseio que visa invisibilizar a diferença.
Os pés descalços e as sandálias enfeitadas
No Brasil colonial e imperial, os sapatos eram proibidos para cativos. Assim, as
imagens do período mostram, no exemplo mais típico dessa situação, africanos vestidos
com luxo e colorido, porém descalços, carregando cadeiras de arruar. Esse aspecto parece
ter sido uma das últimas barreiras a serem transpostas pelos que conseguiam ascender
socialmente com o objetivo de se libertar. Tudo era permissível, como descrevemos:
tecidos, jóias, penteados, librés para os homens, menos os calçados. Estar calçado era a
principal marca da emancipação.
A memória do candomblé guardou essa lembrança em seu cerimonial. As recém
iniciadas que, como vimos a respeito da quitanda da iaô, são consideradas como uma
70
espécie de “escrava dos orixás - condição também indicada pelo nome dos acessórios que
usam - ou seja, cativas da comunidade do terreiro, devem andar descalças. Ao passar,
durante a iniciação, pela reprodução mítica de um processo sofrido pelas mulheres
escravizadas no passado, a noviça entra numa condição de menor liberdade perante a
comunidade. Para conseguir maior liberdade dentro do culto, deverá cumprir algumas
“obrigações”, até que possa ter maior autonomia, o que é simbolizado pelo portar certas
insígnias em determinadas ocasiões, como, por exemplo, chinelas. Assim, andar descalço é
um hábito que se prolonga por um bom tempo para o adepto. Ele precisa esperar anos para
poder se locomover calçado em toda e qualquer parte dos aposentos de um terreiro. Certos
locais sagrados ainda pedem sempre a deferência de estar descalçado.
Deste modo, as vendedoras de nossa iconografia apresentam-se, na maioria das
vezes, com os pés nus. Porém, as que dão sinais de maior poder aquisitivo podem estar
calçadas. A proibição social, aparentemente, é bem mais flexível para as mulheres A
chinela de couro, baixa e cobrindo a ponta do pé, surge mais de uma vez entre as
vendedoras. Uma das figuras africanas femininas de Carlos Julião (Vendedores
ambulantes), da segunda metade do século XVIII, porta uma chinela com saltinhos, ao lado
de rara figura masculina com saiote e breves.
O modelo baixo pode ser observado na africana escarificada em Negro e negra da
Bahia de Rugendas. Outras imagens da mesma autoria mostram a mesma chinela: Negras
do Rio de Janeiro e Venda em Recife. Das duas africanas retratadas como personagens do
Rio, somente uma delas, mais bem vestida, com laços, com brincos e anágua traz o calçado
e parece comerciar artigos do gênero com um pequeno baú
59
. Na representação de uma
venda típica da cidade de Recife, apenas uma entre seis mulheres mostra nitidamente sua
chinela e também exibe um cachimbo. Ela parece evocar o tipo regional carioca da
vendedora de milho cozido que Debret representou. Este tipo usava roupas mais
trabalhadas, jóias e longos tubos de cachimbo (Lody 2003). O cachimbo se define então
como uma distinção que acompanha o sapato.
Raul Lody (2003 b: 28) atribui origem muçulmana a essa chinela outrora comum,
que caracteriza como: “(...) chinelos de pontas de couro branco, couro lavrado, o chamado
changrim”. Chagrin é o nome francês para sagri, palavra turca que designa couro com
59
Parece representar a mulher caxinheira descrita acima por Hildegardes Vianna.
71
saliências, usado para forrar objetos. Em relação aos aspectos muçulmanos dos calçados
das africanas, podemos encontrar também chinelos com a biqueira comprida e torcida para
cima no postal Creoulas da Bahia do século XIX, da coleção do Museu de Arte da Bahia.
Vemos nele duas mulheres cobertas de pesados correntões com crucifixos, sorridentes
segurando sombrinhas, que estavam em moda nessa época. Os chinelos lembram
ilustrações saídas de uma obra literária como As mil e uma noites. Curiosamente, um senhor
de posses retratado por Debret em O jantar no Brasil, sentado à mesa, ladeado por serviçais
africanos - levando a faca à boca e não o garfo - está usando sapatos bordados no mesmo
estilo. Podemos pelo menos concluir que, no Brasil, esse tipo de calçado não era apreciado
exclusivamente pelos africanos. Outra personagem histórica conhecida que foi fotografada
com chinela de ponta virada é Pulcheria Maria da Conceição. Assim foi identificada a
senhora coberta com enormes braceletes (os “copos) num retrato feito pela Photographia
Diamantina (Olszewski 1989). Pulcheria foi uma das líderes do tradicional Terreiro do
Gantois.
Em alguns momentos, os calçados usados pelas africanas também podiam ser
extremamente ornamentados à maneira européia. A cena de batismo, retratada por Debret,
que traz duas jovens vestidas apenas com saias de babados à altura do peito, amarradas por
laços, prestes a entrar numa igreja com um clérigo negro de sobrepeliz, também apresenta
uma africana com sapatos claros bordados e de salto, leque na mão, trajada quase como
uma européia, porém com o torço e uma manta escura. As jovens têm o cabelo raspado e
uma delas usa uma tornozeleira, cujo significado pode ir além do enfeite. Essa mulher bem
vestida parece fazer a vez de madrinha de ambas mulheres e suas crianças
60
. Enquanto
todos estão descalços, embora bem adornados com babados e jóias ou chapéu e bengala, ela
e o clérigo usam sapatos. No entanto, os sapatos que ela usa são muito mais suntuosos. Nas
aquarelas de Carlos Julião sobre os cortejos dos africanos nas festas de Reinado, estes estão
representados com sapatos de fivela típicos do século XVIII, também artigos de luxo no
período. Assim, no universo dos cativos, algumas pessoas e algumas ocasiões poderiam
realizar a exibição de sapatos mais luxuosos.
60
Guardando diferença com as cenas de africanas portadoras de crianças brancas a caminho do batismo, essa
cena mostra crianças negras carregadas pelas descalças enquanto a mulher calçada supervisiona tudo.
72
Outros relatos de estrangeiros falam de sandálias forradas em tecidos caros com
botões de ouro. Manuel Querino (1938: 327), nascido em meados do século XIX, descreve
sua memória das “sapatinhas de pellica branca, com enfeites de seda” que eram calçadas
nas ocasiões de festas.
O cônsul britânico James Wetherell (apud Verger 1992: 104) descreve uma
peculiaridade do estilo de calçar das “mulheres negrasde Salvador: “Para os pés nus,
usam sapatos muito pequenos cobrindo apenas a extremidade dos dedos. Os saltos são
muito altos e finos, e não chegam ao calcanhar”. Parece que esse aspecto reforçava o
requebrado e aumentava o contraste na exibição de um porte equilibrado. Uma arte de
andar que distinguia essas mulheres havia sido construída, e os europeus a consideravam
provocante, do ponto de vista da atração sexual, segundo suas declarações. Manter o tronco
ereto e balançar apenas os quadris não é uma característica exclusiva das afro-brasileiras,
mas um movimento corporal bem conhecido das danças do Oriente Médio.
Ao lado dessas pequenas chinelas de origem mourisca, sobreviveu, até início do
século XX, o costume da “gente de cor se descalçar como sinal da sua condição, de
acordo com Hidelgardes Vianna (1979: 136): “Desde a porta da rua, tirava os chinelos ou
sapatos, enfiando-os discretamente nos dedos das mãos escondidas nas costas, por
constituir falta de respeito permanecer de pés calçados em frente de senhoras ou senhores
de consideração”. Posteriormente, ao contrário das chinelas que se tornaram típicas, esse
sinal de subserviência continuou apenas dentro dos cultos nos terreiros.
Mas também podemos apreciar, ainda hoje, nos candomblés, o modelo mais simples
de chinela rasa em couro branco, que, aliás, é comerciado, junto com outros artigos em
couro, próximo à Igreja da Barroquinha que está em restauração. Outros tipos de calçados
são também usados durante as cerimônias, sempre na linha de sapatos que possam se
descalçar com facilidade, como os chinelos que podem ser enfeitados, ou como o que se
chama, hoje, “tamanco”, espécie de chinelo menos delicado com salto, além das delicadas
sandálias.
Para a vendedora de tabuleiro, hoje em dia, sapato é o item cotidiano dos menos
tradicionais. Durante as festas de largo, principalmente a do Bonfim, temos um visual típico
mais caprichado e, então, podem surgir as chinelinhas.
73
Contas e metais preciosos: talismãs emblemáticos que desapareceram do cotidiano
A joalheria exibida pelas africanas e suas descendentes em Salvador ficou
conhecida pelo nome que designa uma determinada peça que caracterizava o estilo, os
balangandãs. Essa palavra, de origem onomatopaica, hoje nos evoca uma profusão de
vistosos penduricalhos em metal trabalhado. Vários tipos de acessórios compunham o
coletivo geral chamado balangandãs. São eles correntes com muitas voltas, ricos colares,
grandes brincos pendentes na orelha, cruzes e placas sobre a fronte, pulseiras, braceletes e
braçadeiras, correntes de tornozelo. Percebemos uma grande quantidade de balangandãs nas
variadas imagens de época e sabemos como inicialmente e forçosamente essas jóias
eram indicativos da opulência da casa à qual a africana servia, na vitrine de um corpo
escravizado. No entanto, os africanos que assim eram tratados trouxeram suas idéias
próprias sobre ourivesaria.
Alguns povos que vieram para o Brasil dominavam a fundição do ferro havia
alguns séculos, notadamente os iorubas (Silva 1996: 455), e a arte dos metais. Imagens
esculpidas na nigeriana Ifé, entre os séculos XII e XV, em terracota, latão ou cobre quase
puro, mostram figuras humanas realistas com coroas de contas e panos enrolados no corpo,
além de adereços como colares, braceletes e tornozeleiras (Silva, 1996: 459; 463). Estes
acessórios eram provavelmente insígnias de poder, o que é comum a diversos tipos de
sociedades. Havia um interesse regional particular por contas de pedra e de vidro colorido
como sítios do mesmo período demonstram.
Os adereços costumavam marcar as chefias e o poder político em outros locais do
continente, além da área nigeriana, como o atual Benin e o Congo, e o material corrente era
o latão, miçangas ou marfim (Junge 2004). As miçangas eram apreciadas tanto pelos povos
da África centro ocidental quanto de sua costa ocidental. Por isso, a importação dessas
contas de vidro era muito difundida no continente africano desde a antiguidade. Nesse
período, elas vinham do norte, do próprio Egito, ou de Roma. Mais tarde, a costa oriental
introduzia contas indianas através do comércio árabe. A partir do século XVI, elas
passaram a chegar da Europa, vindo de Veneza, Amsterdã e de regiões da atual República
Tcheca (Junge 2004: 239). Os cultos afro-brasileiros herdaram essa preferência pelo latão e
por contas de vidro, ainda usados como símbolos de pertencimento dentro do culto. As
74
vendedoras de rua recriaram, no Brasil, o papel de exibir materiais considerados de
prestígio, tais como a miçanga, elaborados esteticamente.
Com o tempo, a exibição de peças em metais, como ouro ou prata, pelas africanas
das ruas de Salvador, incipiente no século XVII, passou a se tornar acessível, em termos de
posse, às africanas que exerciam a atividade do ganho. A criação de peças destinadas à
demanda das ganhadeiras passou a unir o saber de mestres artesãos africanos e portugueses.
Parece que existia uma produção local, em discretas e escondidas oficinas de Salvador, com
ourives nagôs islamizados (Haydée di Tommasso Bastos 1943 apud Olszewski 1989: 72).
Raul Lody (2001: 81) afirma que contas em ouro ou prata dessa joalheria típica tiveram seu
fabrico na Bahia e na região do Douro em Portugal. Todavia, as peças que vemos nos
museus e foram usadas por baianas típicas são de um estilo único, embora mesclem
símbolos de várias procedências. Tamanha peculiaridade deve ter envolvido uma produção
local de certo porte.
No entanto, fabricar as peças não era uma atividade cita aos africanos. Emanoel
Araújo (1995: 14) descobriu um documento do século XVIII que descreve uma
comemoração em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo, na qual os “congosfaziam
seu Reinado. Nele, o rei é descrito portando incríveis peças de ourivesaria cravejadas com
diamantes: cordões, cinto, coroa, manilhas e um pendente em forma de lagarto, verdadeira
obra de arte do ourives, de acordo com o documento. Segundo Araújo (1995: 14) a partir
deste registro:
(...) toma-se conhecimento da existência da Corporação dos Ourives Negros
em Santo Amaro. E foi possivelmente para coibir a infiltração dos negros no
ofício da ourivesaria que surgiu a proibição de seu exercício e a quebra das
bancas dos ourives negros no Rio de Janeiro e na Bahia, através de um
decreto português de 1776. Esse decreto, por sua vez, já reforçava outro
existente desde 1621 que ordenava que “nenhum negro ou mulato ou índio,
posto que forro, exercesse a arte da ourivesaria”.
Apesar das condições descritas acima, foi desenvolvida uma arte dos balangandãs
em Salvador. Ao adquirirem mais independência, as comerciantes do ganho passaram a
exibir sua própria opulência de maneira corrente, porém distinta. Por isso, os símbolos dos
balangandãs podem até coincidir com aqueles tradicionalmente católicos, como cruzes ou
pombos e rosáceas, mas têm uma estética diferente. Além da simbologia judaico-cristã,
75
outros elementos, inclusive alusões ao próprio ganho. O peso do metal precioso também é
maior e como que para evidenciá-lo, as peças são trabalhadas de modo a demonstrar isso
através das formas e dos volumes.
O como essas ex ou quase ex-cativas angariaram recursos para mostrar opulência
tem definições variáveis. A visão dessas mulheres como naturalmente detentoras do papel
feminino destinado a prestar serviços sexuais formou narrativas tradicionais que insinuam
certo tipo de negociação:
Também é sabido que algumas negras e crioulas eram donas de partes das
jóias que portavam, criando lendas de que, em função dos seus encantos, elas
conquistavam, em troca de favores sexuais, os adornos que muitas vezes
eram vendidos para as alforrias das pprias ou para as caixas de alforrias,
fundos comuns para a libertação de escravos (Lody, 2001: 50).
Mesmo que figuras como Chica da Silva, ícone que reúne os atributos de africanas
que conseguiam forçar barreiras sociais a partir de seus atrativos femininos, tenham
suplantado outras referências do imaginário nacional, é mais provável que essas mulheres
estivessem angariando peças distintivas através de estratégias administrativas de seus
parcos recursos, fundadas no apoio coletivo de sua comunidade, que em Salvador se
consolidava principalmente a partir de irmandades e da fundação de terreiros.
Também há a possibilidade de terem aproveitado um pouco do esplendor aurífero
do ciclo do ouro em Minas Gerais, para onde muitos africanos e muitas africanas de
Salvador foram transportados, junto com os senhores, que buscavam riquezas na região
(Graham 2002)
61
. Assim, as cativas passaram a exercer uma ocupação relativa às minas.
Podiam vender comida na área em questão, evitando a locomoção dos trabalhadores
forçados, como sintetiza Cláudia Chaves (1999: 57): “As negras de tabuleiro (forras ou
escravas) vendiam gêneros comestíveis, geralmente próximo às lavras e faisqueiras e por
isso, eram responsabilizadas pelo desvio de ouro. Ao vender seus produtos aos escravos,
desviavam parte do jornal devido aos donos destas lavras”. Podiam também auxiliar na
lavagem do cascalho durante o processo de mineração (Figueiredo 2004: 143). Assim elas
se apresentam na imagem Lavagem do ouro de Rugendas, subindo ou descendo com
61
A Bahia também produziu algum ouro no século XVIII na região de Jacobina e Rio das Contas (Risério
2004: 287).
76
gamelas a encosta de onde nasce uma queda d’água, enquanto os homens discutem ou
trabalham na correnteza.
Suas gamelas, ao invés de transportar alimentos, carregavam outra espécie de
riqueza, porém oculta. Essa riqueza lavrada também era levada sobre a cabeça quando essas
mulheres, com mais facilidade para transitar que os homens, roubavam, lendariamente,
ouro em pó em seus cabelos crespos sob os torços. Hildegardes Vianana (1979: 138) chama
atenção para o costume dos homens de cor em esconder navalhas ou cilindros com pó entre
os cabelos. Assim, corporações africanas resistentes, artimanhas, trocas e irmandades
tornavam o metal bem mais acessível.
É impossível negar que estas mulheres conseguiram realmente juntar jóias que eram
de sua propriedade, o que nos pareceria um tanto improvável se tomássemos uma posição
rígida quanto à sua classe social. As jóias nos dão seu testemunho na coleção do Museu
Carlos Costa Pinto em Salvador. Também podemos apreciá-las nas figuras dos postais do
século XIX, cobertas de punhos (largos braceletes que cobrem todo o antebraço) chamados
“copos. Porém, bem menos em nossa iconografia pictográfica. Nela encontramos, às
vezes, um breve aqui, um terço acolá ou um belo par de brincos como peças isoladas. Às
vezes um conjunto de colares. A suntuosidade das jóias que aparece nas fotografias
pertenceria a um vestuário de gala que estaria relacionado às celebrações das irmandades
religiosas africanas. No dia a dia, aqui representado em sua maior parte pela pictografia, as
vendedoras de rua traziam seus balangandãs de maneira mais discreta.
Um Debret de 1824 (Vendedora de cajus) mostra a famosa penca da baiana
62
, que
hoje não é mais usada como jóia corrente, ao contrário das outras peças. A penca se
caracterizava por um conjunto de pendentes, geralmente em prata, reunidos num suporte
que pode ser chamado broche, aro, “naveou “meia-lua (Lody 2003: 251). Na cintura, o
suporte se prendia em panos enrolados, correntões de prata ou tiras de couro (Lody 2001:
19). A corrente podia vir em diagonal do pescoço até a cintura conforme descreve Eduardo
França Paiva (2004).
A vendedora de cajus de Debret traz a penca apenas pendurada na cintura, e sem a
forma de alfinete. Ela também exibe sinais de pintura branca no rosto e escarificações em
62
Ver também em Negras livres vivendo de seu trabalho, de Debret, uma africana com penca pendurada na
cintura em frente a uma casa de modas.
77
“x” num dos braços. As marcas feitas nos braços são semelhantes ao que hoje se costuma
chamar de “curas”, marcas ainda realizadas em alguns candomblés regionais durante a
iniciação. A penca da vendedora de caju parece ser dourada, nessa aquarela, representando
talvez o ouro, e tem penduricalho de figa e de frutos. Raul Lody (2001: 19) afirma que a
penca tem relação simbólica direta com as ganhadeiras:
Na busca de uma possível origem para as pencas de balangandãs, tão em
voga nas roupas de crioula e nas ‘becas’ ocorrentes no século XIX na Bahia,
especialmente no Recôncavo (Salvador e Cachoeira), constata-se um forte
referencial de caráter religioso e outros nitidamente alegóricos a temas e
situações próprias dos “ganhos” e outras atividades comerciais.
Por isso, encontramos nelas, além de símbolos considerados sagrados, vários tipos
de frutas e referências a utensílios. Lody (2003: 251) inventaria 911 objetos feitos de prata
reunidos em 27 pencas do Museu Carlos Costa Pinto, identificando cinco temas gerais. A
descrição dessas peças isoladas, com o acréscimo de observações sobre nosso recorte
iconográfico e sobre o trabalho de campo, fornecem uma interessante síntese.
dois tipos principais de objetos. Objetificações da natureza são as frutas, folhas,
flores, animais ou parte de animais terrestres, voadores ou marítimos, partes do corpo
humano, figuras humanas, astros (sol, lua e estrela). Objetos construídos pelo homem são
utensílios e instrumentos de trabalho, armas, brinquedos, instrumentos musicais, miniaturas
de casa e chaves, cachimbos, artigos de toucador.
também figuras cujo significado consagrado se refere a crenças específicas.
Os símbolos judaicos são a estrela-de-Davi, de cinco pontas ou o signum salomonis (selo de
Salomão)
63
, de seis pontas, este último especificamente atribuído mais estritamente à
judaica, enquanto o islã preferia motivos decorativos mais próximos da estrela de oito
pontas. O crescente (ou chifres como crescente) não está ausente das pencas, nem os olhos
de inspiração mais propriamente árabe, embora estes últimos costumem ser identificados
com os olhos da santa cristã Luzia. A cruz com destaque para a “cruz de palmito - e
santinhos resumem a cristandade. A figa é um símbolo mediterrâneo e representa a sagrada
união sexual
64
, um dos atributos mais apartados dos monoteísmos já citados e que,
63
Embora o símbolo possa migrar rapidamente para o repertório islâmico, onde Salomão se torna Sulaiman, o
adivinho e mágico da tradição popular islâmica ou o sábio que aparece no texto corânico (Reis 2003: 197).
64
Lody (2003: 180) agrupa a figa em dez tipos.
78
curiosamente, é o que mais evoca atualmente os acessórios da baiana pica. As efígies de
damas nobres nos “copos remetem ao classicismo europeu.
Toda vivência, cotidiana e mais imediata tanto quanto abstrata e religiosa, das
vendedoras de rua, está sintetizada nessas peças. Estas serviam para demonstrar sua
ascensão, sua opulência, sua atividade e, ao mesmo tempo, para além da distinção, proteger
magicamente a atividade, os instrumentos de trabalho, inclusive o próprio corpo físico e
invocar fertilidade, atributo básico para se ter uma vida próspera segundo a visão de mundo
dos cultos afro-brasileiros.
Prosperidade era uma necessidade para estas mulheres empobrecidas e em sua
crença, o ouro, magicamente preparado, poderia atrair tudo aquilo que representa em
termos de riqueza. É possível arriscar dizer que o tema básico dos objetos e da
materialização de bênçãos religiosas plurais seria a prosperidade, o que está intimamente
relacionado com a opulência e o ganho, o trabalho. São objetos que florescem, frutificam,
iluminam, damas ricas, bens materiais e de produção. Naquele período, os bens tinham uma
aura muito maior de riqueza porque eram pouco acessíveis, além de serem fabricados para
terem maior durabilidade do que os bens de consumo em escala industrial.
Junto aos metais, outros materiais que tinham fama, não no continente africano,
de possuir poderes mágicos, vieram sendo empregados nesses badulaques de rua. Por
exemplo, dentes de certos animais encastoados na prata ou ouro. Dentre as presas, o
marfim, bastante apreciado do outro lado do Atlântico, continuou a ser signo de distinção
entre os africanos do Brasil. O que conhecemos por pedras preciosas apresenta alguns
materiais recorrentes nessa joalheria que, curiosamente, não são pedras em sentido estrito.
O âmbar, por exemplo, é uma resina vegetal que se petrificou e que pode ser encontrada
nessas jóias, embora seja bem raro no conjunto afro-brasileiro.
Segundo Paiva (2004), o coral foi muito usado pelas alforriadas do século XVIII,
sendo mais comum o coral vermelho. O akuri, coral azulado oriundo da costa da Guiné e
talhado em forma de pérola no Benin, tinha alto valor e circulava também nesse período.
Era chamado em francês de aigri, termo que mais tarde passou a designar todo tipo de
conta azul em pedra ou vidro (Lody 2001: 96). Lody também afirma que esse coral é o que,
no Brasil, a comunidade religiosa afro-brasileira hoje conhece por segui. No entanto,
Alberto da Costa e Silva (1996: 456) atribui à cidade iorubana de Ifé uma antiga e anterior
79
tradição de fabrico de contas azuis tubulares conhecidas como segi. Atualmente, o segui
que costuma ser usado nos cultos significa mais o termo geral pedras azuis - e
especificamente, pedras cilíndricas alongadas azuladas e porosas, a porosidade criando uma
certa transparência vitrificada muito discreta nas peças mais opacas.
Apesar da arraigada valorização desse tipo de conta azul, o coral vermelho manteve-
se no mesmo patamar e continua sendo prestigiado nas atuais comunidades religiosas afro-
brasileiras, terminando por designar também contas marrom avermelhadas porosas, nem
sempre corais vermelhos legítimos, que são hoje matéria-prima bem cara, quando não
tingidos. Naquele período, o âmbar e o coral vermelho que entravam nos balangandãs eram
importados através da Europa e também chegavam à África por intermédio dos
comerciantes venezianos, de modo semelhante ao que ocorria com as contas de vidro.
Por fim, vamos encontrar, atuando nesses enfeites, as propriedades consideradas
mágicas de madeiras nacionais ou de origem africana. Jacarandá, guiné, pau de angola são
alguns exemplos de madeiras usadas em balangandãs para propiciar proteção e poder. A
louça também podia ser usada, conferindo delicadeza aos berloques.
Os pendentes feitos destes materiais e de metais que caracterizavam os balangandãs
eram usados ainda em outros acessórios, além das pencas, onde se tornavam elementos
mais decorativos, tais como bolas de metal trabalhadas (“confeitadas com filigrana) ou
não; contas redondas, ovais, em forma de cilindros, gotas (como as pérolas irregulares
chamadas aljôfar) ou de pitangas, feitas em diversos materiais; aros e argolas. Vemos então
um conjunto de colares formados por elos de dimensão variada, rosários com contas;
brincos de argola e brincos pendentes com materiais encastoados - os predecessores dos
brincos de pitanga e de “barrilzinho hoje envergados em cerimônias relativas à
comunidade religiosa afro-brasileira -; pulseiras e braceletes de contas e placas.
Os “copos eram uma peça inteiriça com filigranas, assim como os anéis. Estes
punhos e anéis aparecem mais nos postais do século XIX em trajes de gala, mas quase
nunca nos retratistas antecessores, a não ser os anéis, em mulheres afro-descendentes que
pareciam exibir grande poder aquisitivo em relação às outras. O traje de gala traduzia
exagero na opulência e, como veremos, ficou restrito às cerimônias públicas – nesse caso, é
bom frisar que estas eram realizadas em logradouro público, nas ruas de irmandades
religiosas locais.
80
O uso cotidiano dos talismãs se restringiu, assim como as vendedoras ambulantes e
seus balangandãs foram desaparecendo, permanecendo as vendedoras de tabuleiro, cujo
produto principal é o acarajé. Grande parte desses acessórios descritos continuou sua
trajetória histórica internalizando-se aos espaços do candomblé, que, para além dos
terreiros, se relaciona com as ruas de Salvador através das festas do calendário católico.
Nas ocasiões de festas de largo ou de irmandades que ficaram conhecidas como “de cor,
algumas dessas peças voltam em cena.
A imagem que se cristalizou dessa joalheria da ganhadeira está nas composições de
Dorival Caymmi: argolas de ouro, corrente de ouro, pulseira de ouro, rosário com bolotas
de ouro. Essas jóias eram usadas para se ir à festa do Bonfim ou outras festividades
católicas das quais as “irmandades de cor participavam. Por isso é recorrente a referência
aos rosários, cruzes e pombas do divino. No entanto, as festas típicas com baianas
paramentadas diminuíram muito em mero. Entre as que permaneceram, as mais
emblemáticas em relação à indumentária da baiana são a do Bonfim e a que homenageia
Santa Bárbara.
Porém, as baianas típicas bem vestidas não usam mais tantas jóias nas festas. Os
acessórios que acompanham a roupa da baiana passaram a ser semelhantes a alguns
daqueles utilizados nos candomblés, como os próprios fios-de-conta de miçangas, que não
costumam ser feitos em contas de ouro ou prata. No cotidiano das ruas, menor ainda se faz
a presença de metais preciosos e, surpreendentemente, de fios-de-conta. Usa-se, na maior
parte das vezes, simples menções aos fios sem que elas se caracterizem em peças
consagradas através dos rituais a divindades tutelares. Fios-de-conta autênticos, portanto,
na maioria das vezes, são usados apenas no âmbito do terreiro.
A penca caiu em desuso, mesmo nas festas. No entanto, os penduricalhos em
conjunto - que costumavam ultrapassar a dezena e seu simbolismo permaneceram na
memória nacional através das pulseirinhas de balangandãs, permanentemente recriadas para
a bijouteria feminina ou infantil. Em Salvador, podemos encontrar, no Mercado Modelo,
reproduções das pencas para consumo turístico, geralmente em alpaca ou prata.
Atualmente, é na tradição da Irmandade da Boa Morte, formada por mulheres afro-
descendentes em Cachoeira, no Recôncavo, que vai ser encontrado o “traje de beca, a
mais luxuosa reminiscência da joalheria do período que abordamos. Esta rara irmandade
81
católica feminina tem estado ativa desde o início do século XIX, e pode ter mantido
contatos com a irmandade feminina da Boa Morte que, supostamente, teria sido responsável
pela fundação do terreiro da Casa Branca em Salvador (Falcon 1997)
65
.
Reza a tradição, de acordo com Raul Lody (2001: 51), que os elos dos correntões
cachoeiranos, outrora feitos de ouro, representavam a aliança de um português obtida por
uma noite de amor. Todavia, conhecemos caminhos alternativos para a elaboração das
jóias, cuja exibição é memória de uma rica composição visual barroca. O uso do “traje de
beca, que deveria ser mais popular durante funções públicas que desapareceram, ao
contrário da roupa típica de baiana, ficou restrito às cerimônias de Nossa Senhora da Boa
Morte no mês de agosto. Esse seria o traje da “baiana de galaou do “partido alto:
Saia preta e plissada com barrado de vermelho interno, não leva armação, na
cintura três lencinhos brancos com bico trabalhado e detalhamentos em
richelieu. O camizu, camisa de rapariga ou camisa de crioula é toda em
richelieu engomado e bem branquinho. Uma espécie de blusa comporta o
traje, pois dos largos e barrocos bordados do richieieu boa parte dos seios
ficava à mostra. Essas blusas possuíam abotoamento a ouro, hoje apenas se
mantêm as blusas brancas e bem engomadas. (...) O pano-da-costa é também
característico, preto de veludo ou de tecido encorpado, com forramento em
cetim vermelho (...). o torço do traje de gala é um oujá branco e comum,
recebendo tratamento de richelieu e goma. A maneira de utilizá-lo é
totalmente peculiar (...) lembrando mais um penteado do que um torço
propriamente dito.
As jóias, bolas encadeadas, correntões trabalhados, trancelins em muitas
voltas, peças em filigranas, arcos de cintura com amuletos, braceletes,
punhos, anéis e brincos em ouro não atuam mais como marca do traje de
gala das Irmãs da Boa Morte. Hoje alguma coisa é mantida, alguma prata
dourada e muitos fios de metal comum, além das contas dos orixás patronos
(Lody 2001: 138).
Podemos comprovar como o exagero do passado descrito pelo autor diminuiu, ao
observarmos as baianas da irmandade de Cachoeira fotografadas por Adenor Gondim
(1997) na última década de 90. Porém, o estilo ainda pode constituir exagero aos olhos do
senso comum, se este não conseguir distinguir o uso de metais menos valorizados nas
65
O papel crucial e quase exclusivo de uma irmandade feminina na fundação desse terreiro emblemático não
é um ponto consensual, embora até mesmo Verger, tão pouco afeito aos exageros a respeito do papel das
mulheres, concordasse com ele.
82
peças. A fotografia de Gondim enfatiza certas partes do corpo que este percebeu como
portadoras dos símbolos da irmandade.
Os punhos filigranados dourados aparecem no close de mãos femininas que se
juntam, assim como as bolas douradas e gravadas com motivos em relevo. As mãos
também exibem anéis e o colo se ornamenta de longas correntes douradas, em elos lisos ou
torcidos, mais estreitos ou bem largos, ou de fios com contas de metal. Vemos os
correntões que consistem em elos formados por duas alianças encaixadas uma na outra. Há
os fios-de-conta e pulseiras que lembram as usadas em aros pelas adeptas que dançam
durante as cerimônias públicas de candomblé, os chamados idés.
O resto da indumentária é um pouco diferente do que vimos até agora, onde
predominavam tecidos leves, brancos ou claros e transparências de onde sobressaíam
rendados e bordados. É um estilo mais encorpado e barroco, mas semelhante ao primeiro.
Alguns postais do século XIX mostram mulheres em “traje de beca.
Podemos perceber como, nessa história da joalheria da baiana típica, objetos menos
preciosos, mas esteticamente semelhantes, continuaram perfazendo o estilo da ganhadeira e
das participantes das irmandades. Porém, grande parte deles saiu do cotidiano e se recolheu
ao espaço de eventos da comunidade religiosa de candomblé. As peças trabalhadas como
símbolos e amuletos migraram das pencas para os fios-de-conta usados em cerimônias.
Uma boa parte dos símbolos que vimos pode vir a arrematar os fios usados no candomblé.
Essa espécie de fecho é um elemento importante, do ponto de vista ritual, para o fio.
Os fios-de-conta não estão de todo ausentes de nosso material pictográfico. Uma
interessante característica é o fato de os colares, nessas gravuras, serem usados, muitas
vezes, em conjunto, enquanto a estética européia prefere a peça única ou várias voltas de
uma única peça. As adeptas de agora comportam vários fios coloridos no pescoço para
demonstrar o conjunto de divindades que lhe fazem a tutela direta, como o patrono
principal, ou indiretamente. Poderíamos afirmar que é como se os fios estivessem sendo
usados em “penca”. Os arremates dos fios também formam um conjunto sob a nuca,
protegendo as costas do portador. A concepção é a mesma da penca de balangandãs
transportada das ruas para o âmbito estritamente religioso. Esses arremates, chamados de
“firmas - porque firmam fechando o círculo formado pelo colar - ainda são amuletos,
trazendo consigo a memória das atividades das ganhadeiras.
83
Também continuidade desse estilo das ganhadeiras nos materiais dos fios, das
firmas e de outros acessórios relacionados aos cultos. No entanto, as imitações são bem
mais comuns hoje em dia. Massa vitrificada ainda tem a preferência e entra na composição
das miçangas e de firmas nacionais ou das chamadas firmas “africanascom sua técnica
diferenciada em policromia ou com a evocação da porosidade dos corais - que são mais
valorizadas que as nacionais. Há também firmas de louça. Pendentes de metal, madeira ou
pedras podem valorizar um fio-de-conta em acréscimo à firma. Caninos de animais ou
marfim continuam sendo usados, como na fotografia de Gondim, em que um dorso
feminino revela, dependurados no fecho da corrente e do fio-de-conta, uma figa em
madeira escura e uma presa de animal.
O coral continua tendo destaque nos acessórios de candomblé. O “coral marrom
avermelhado é um atributo da divindade que preside a venda de acarajé. Os brincos em
forma de “barrilzinho, geralmente imitando coral, são seu complemento. Pitangas de coral
ou de pedras podem enfeitar as orelhas, assim como os búzios se tornaram bastante comuns
em joalheria. Ainda é possível se observar estes últimos acessórios em baianas bem
vestidas para as festas de largo.
No cotidiano, cheguei a observar algumas vendedoras com fios-de-conta
tradicionais do candomblé, como, por exemplo, na Pituba. Outras baianas do acarajé
explicam que não usam os fios por não serem iniciadas nos cultos, atitude que visa evitar
qualquer “ousadia em relação às divindades patronas do tabuleiro. Na maioria das vezes,
eu vi imitações algumas chegando a ser grosseiras, em plástico - ou ausência de fio-de-
conta. Uma das vendedoras chegou a dizer que os fios eram muito pesados e que a roupa
muito paramentada aumentava o calor do verão.
Parte das informações aqui registradas parece confirmar que a roupa deu uma
guinada no século XIX, europeizando-se cada vez mais, porém de um modo barroco,
exagerado. A gala é demonstração disso, embora tenha por base uma culminância da
síntese de vestuários que vêm se entrelaçando desde o século XVII. Tecidos encorpados e
anáguas armadas são uma contribuição do período final de arremate do estilo de gala. A
ânsia da inclusão social parece ter apagado a sensibilidade estética de matriz africana que
tende às formas simples em tensões simétricas. Assim foram produzidas roupas pesadas e
superposições encorpadas, enquanto elementos da gala se transferiram, num processo
84
gradual, das festas para o cotidiano. As vendedoras do século XVIII ou do início do XIX,
como vimos, não usavam esse tipo de roupa calorenta para o trabalho, nem muitas jóias. A
abundância ficava reservada para a penca. É cansativo carregar produtos sobre a cabeça
durante o dia, ou ficar próxima a um fogareiro, se a roupa e os acessórios não forem mais
leves.
Todavia, a indumentária que se consagrou como a roupa ideal para a venda turística
é a da baiana bem arrumada para festa. Apesar de leveza não ser sinônimo de deselegância
ou desleixo, a concepção de roupa aprumada do século XIX contaminou o traje que
vinha sendo construído de modo barroco, mas ainda com certo equilíbrio. Mesmo assim,
esta não parece ter sido a pior escolha, quando a outra opção era jogar fora os turbantes e se
contentar com uma fina corrente no pescoço, à européia, como podemos observar em
alguns retratos de afro-descendentes do século XIX.
Hoje, apesar de pareceram “pesados”, os fios-de-conta ainda podem ser encontrados
na venda de acarajé. Esse costume tem uma particularidade. Os fios-de-conta que são
exibidos na rua, ou no próprio tabuleiro, geralmente são apropriados para a rua ou
preparados para ela, porque certas sacralidades materializadas em objetos dentro do terreiro
não podem participar do cotidiano da venda, senão estariam expondo e desprotegendo os
que as possuem, segundo as concepções de algumas comunidades religiosas de terreiro.
Ouvi dizer que as “arraigadas, ou seja, as vendedoras que pertencem a candomblés
considerados mais tradicionais e que são ortodoxas, não usam fio-de-conta na rua; no
máximo um fio-de-conta de coral marrom, trazido muito discretamente.
A baiana de tabuleiro também não carrega acessórios de explícita submissão para o
candomblé, como a senzala ou a “escrava. Essas peças são dois tipos de braceletes
usados pelos neófitos durante as cerimônias iniciáticas do candomblé. o o nome, mas
a forma lembram ferramentas de aprisionamento: “A braçadeira lembra um tipo de ferro de
escravo que era usado e combinado com correntes, daí talvez o nome. Também a senzala
feita de palha-da-costa trançada com aplicações de búzios e miçangas nas cores específicas
do deus é comumente usada sob a escrava” (Lody 2003: 232).
Outras peças e modos de vestir, usados no período de iniciação, evocam o mesmo
tipo de situação: as tornozeleiras com guizos, o uso de uma única peça para cobrir o corpo,
a obrigatoriedade dos pés descalços. Apenas uma das peças que foi usada antigamente pelas
85
ganhadeiras nas ruas traz em seu nome a recordação do processo de submissão. Esta peça é
o suporte da penca de balangandãs, também chamado “nave. Durante a iniciação,
membros de um mesmo grupo formam um “barco, que atravessa todo o processo de
submetimento à divindade e, portanto, aos líderes sacerdotais. Depois de uma travessia
simbólica, esses membros são comprados, como vimos, ou passam a pertencer ao terreiro.
Como a penca também é um mbolo do ganho, pode carregar do imaginário afro-
brasileiro, ao mesmo tempo, a viagem dos tumbeiros, a morte iniciática, o renascimento, a
relação de submissão à divindade e de pertencimento à comunidade e a prosperidade que
emancipa.
Pano-da-costa: legado étnico
Antes de se consolidar o intercâmbio com os navegantes europeus, ainda não havia
um fornecimento regular de tecidos no continente africano. Por isso, os turbantes só
começaram a se tornar mais populares, na costa ocidental, depois de instaurado o comércio
com a Europa. A partir do século XVIII, teríamos, então, uma estética africana para a
indumentária, incorporando novos produtos europeus, principalmente tecidos. No entanto,
havia tradições locais anteriores de fabricação de tecidos com teares típicos, em pequena
escala. Alberto da Costa e Silva (1996: 37-8) descreve como acontecia seu processo
artesanal:
Teciam-se a ráfia, a e o algodão. Em alguns poucos lugares, conhecia-se a
seda. Onde se implantou a prática da tecelagem, a tendência era para que
houvesse teares em quase todas as casas. Teares em geral estreitos, dos quais
saía uma tira de fazenda, que se ia juntar a outras tiras semelhantes, para
formar o pano. Na África Ocidental, um pano forte, grosso, durável, bonito.
Que era objeto de comércio interafricano. E exportado para fora do
continente. Desde o século XII, para a Europa, onde as palavras mandingas
bouracan e bougran designavam certo tipo de fazenda. Desde o século XVI,
para o Brasil e outras partes do continente americano, onde a escravaria
criou amplo mercado para os tecidos da África Atlântica.
Ainda segundo o autor, os tecidos que vieram para o Brasil freqüentemente tinham
sua origem na região ioruba. Em nosso território, serviam de indumentária para as africanas
86
que vendiam nas ruas, como comprova nossa iconografia. O autor também relata sobre sua
produção do outro lado do Atlântico:
A fiação e a tecelagem faziam-se em casa. No agbo ile iorubano. No
compound ou conjunto de habitações de uma família. Na intimidade criada
pelo muro ou pela cerca. Bem como em oficinas familiares. Nisso não se
distinguia das outras atividades manufatureiras, todas de pequena escala,
baseadas na mão-de-obra doméstica.
Apesar de não ser em grande escala, Alberto da Costa e Silva afirma haver uma
significativa produção de tecido que permitia a troca de diferentes estilos étnicos entre as
reges produtoras. As peças feitas em Ijebu (região ioruba), que eram azuis ou de listras
azuis e brancas, vieram em grande quantidade para o Brasil, durante o século XVIII (Silva
1996: 540). Nossa iconografia pode atestar que panos listrados eram muito usados pelas
ganhadeiras.
Embora essas imagens feitas por estrangeiros primassem por uma estética própria
do autor ou do encarregado em colorir as obras para reprodução, mais do que pela
fidelidade à escolha cromática dos africanos retratados, muitas delas preservaram
determinados aspectos formais e cromáticos que informam, com alguma fidelidade, sobre
características observadas no Brasil. Nos caso dos postais, que registraram indumentárias
que comprovadamente existiram, as cores preta, branca e cinza uniformizam; todavia
outros aspectos são apresentados detalhadamente. As listras, por exemplo, estão presentes
nos panos fotografados, e a trama do tear pode, às vezes, ser percebida na imagem
fotográfica.
Duas mulheres, numa aquarela de Carlos Julião, empregam panos listrados de azul e
branco para amarrar suas crianças às costas, enquanto carregam, na cabeça, um tabuleiro de
frutas ou um peixe, ficando com as mãos completamente livres, numa demonstração da
postura corporal predileta e construída pelas africanas da Costa. Este é apenas um exemplo,
pois o pano é muito recorrente nas imagens e o costume de carregar as crianças deste modo
também. Até se equiparar ao xale europeu, o pano-da-costa parece ser a peça de vestuário
mais marcadamente africana e local (tradição ioruba), chegando a ser importado. Seu uso e
sua existência devem-se aos hábitos exclusivos dos africanos ocidentais.
87
Ao longo de nossa explicação, os trajes parecem indicar que vão sendo construídos
em função de certos encargos próprios das mulheres, encargos que são, ao mesmo tempo,
distinções privilegiadas e marcações na divisão do trabalho. As mulheres devem cuidar das
crianças de sua família em suas comunidades, mas também devem mercadejar os produtos
que obtêm da terra. Por isso, as batas largas para arejar e para facilitar os movimentos e
também a amamentação, panos largos para transportar os filhos, enquanto se realiza
qualquer atividade ao mesmo tempo. A tarefa feminina de cuidar das crianças da família e
da comunidade, extremamente comum num espectro cultural diverso, costuma ser encarada
como uma atribuição natural do feminino, inclusive pela comunidade religiosa do
candomblé e pelas próprias baianas de tabuleiro. A roupa perdeu sua função imediata e
permaneceu como símbolo de feminilidade, mas de uma feminilidade maternal. Talvez seja
por isso que o pano-da-costa, assim como o turbante, mas menos complexamente que este,
constitua acessório exclusivamente feminino.
Não os panos vieram da Costa como também a própria técnica de tear africana
terminou por criar uma tradição em Salvador. Lody (2003 b: 18) faz um relato sobre o
último mestre-tecelão soteropolitano, Abdias do Sacramento Nobre, falecido na década de
80:
Mestre Abdias, natural de Salvador e descendente de africanos, era o único,
então, a fabricar panos-da-costa. Recebeu os ensinamentos de Alexandre
Gerardis da Conceição, seu padrinho, que era africano e trabalhava
exclusivamente para os terreiros, fornecendo os panos que eram usados pelas
filhas-de-santo.
A pesquisa de Lody, feita na década de 70, nos informa que, naquela época, esse
tipo de atividade dava seu último suspiro. A confecção do pano era muito trabalhosa e
levava três meses por pano, tornando o artigo caro para o poder aquisitivo das adeptas do
candomblé. A produção vinha se voltando, então, para o turismo e colecionadores como
aconteceu no caso das pencas. Em termos de consumo, o costume das vendedoras nas ruas
acabou se voltando novamente para o âmbito do terreiro. Hoje, os panos-da-costa
continuam sendo uma roupa de candomblé, e podem ser feitos em qualquer tecido
industrializado, deixando opções conforme o poder aquisitivo do cliente. Não estão mais no
cotidiano das ruas.
88
Como os teares foram ativos em Salvador, no passado, também havia vendedoras de
tecidos produzidos na cidade, que os transportavam dentro de cuias
66
. Estes panos eram
tecidos em algodão e bicolores como os africanos, com faixas em larguras que variavam de
quinze a vinte centímetros, em torno do tamanho padrão de dois metros por 60 centímetros.
Ficaram conhecidos tradicionalmente como “pano-de-cuia. O nome de “pano-de-cuia”
não é mais usado. outras opções para designar o pano-da-costa: “pano-de-madrasto” e
“pano-de-alacá” (Lody 2003 b).
O madrasto é nome corrente atribuído a um tipo de tecido indiano que se caracteriza
por ser confeccionado em algodão fino. No entanto, pode ser encontrado no ambiente ritual
afro-brasileiro como referência específica ao morim ou ao cretone, tecidos de algodão
branco de que são feitas as roupas cotidianas do terreiro, sendo o morim bem mais fino.
Madrasto também pode indicar algodão tingido com corante vegetal, com padrão xadrez
grande, um padrão que podemos encontrar tanto nos tecidos indianos do século XIX quanto
no pano de tear da creoula baiana do postal de Lindemann, hoje na coleção do Museu
Tempostal.
O alacá é um nome usado para os panos que são vestidos pelas iniciadas em
possessão nas cerimônias públicas. diversas maneiras de se utilizar um pano nos
terreiros de candomblé. Enrolá-lo no corpo como faziam as ganhadeiras é uso
exclusivamente feminino e o mais comum, por ser portado durante os afazeres das iniciadas
que ainda não ascenderam hierarquicamente, relembrando o antigo uso de carregar
crianças, que desapareceu, embora alguns terreiros de São Paulo coloquem esse aspecto
como um dos itens da reafricanização (cf. foto em Gonçalves da Silva 1995: 283). Panos
usados de banda, atravessando diagonalmente o corpo, são prerrogativa do gênero
masculino, lembrando que, em estado de possessão de um corpo físico feminino, o gênero
que prevalece, nesse caso, é o da divindade. Panos sobre um dos ombros podem ser as
toalhas brancas destinadas a enxugar o rosto dos que dançam incorporados pelas divindades
ou sinal de senioridade, usado correntemente por mulheres como se fosse uma espécie de
“embrulho. Esta última foi uma modalidade absorvida pelas baianas bem arrumadas dos
atuais tabuleiros, embora o pano-da-costa não tenha parecido, em meu campo, tão
66
Manuuel Querino (1938: 95) descreve a atividade de africanos libertos que esticavam os panos vindos da
Costa, para abrandar sua aspereza, e que os tingiam novamente, para renová-los.
89
emblemático para baianas atuais quanto outros aspectos, principalmente por causa do
contraste com o que acontecia no passado: ele era a peça que marcava a afro-descendência
e o ganho ou a venda segundo os costumes afro-brasileiros. No entanto, deixou de sê-lo.
Podemos observar as várias funções do pano entre as antigas vendedoras, além de
servir para levar crianças amarradas às costas. O pano servia para ser retorcido e amarrado
à cintura para carregar as pencas ou chaves
67
, mas também podia ser enrolado em todo
corpo, como uma grande manta, ou fazendo a vez de um grande babador amarrado ao
pescoço, cobrindo os seios desnudos pelo caimento das batas. Às vezes, substituía a parte
de cima da roupa.
Não servia apenas para o corpo. Podia também tapar a vitrine enquanto se arrumava
a venda (Lody 2003: 115). Aliás, as mulheres retratadas podiam carregar vários panos,
enquanto apenas um deles compunha a roupa. Os outros forravam o chão, ou se enrolavam
para carregar seja o que fosse ou para fazer rodilhas. Também podiam, mais raramente,
cobrir alimentos, o que podia ser feito mais freqüentemente com folhas de bananeira. Havia
uma tradição de vários panos enrolados ao corpo, que nos remete diretamente à costa
ocidental africana, onde até hoje esse é um modo de vestir não incomum em certas reges.
A participação do pano-da-costa na composição da roupa de quem vende acara
todos os dias não sumiu completamente, mas se deslocou. Com a gradual modificação dos
costumes, a roupa de festa de largo se deslocou para o tabuleiro turístico e o pano perdeu
funções que o evidenciavam anteriormente. Podemos observá-lo com destaque apenas entre
as baianas em dia de festa, geralmente no ombro e com bata, porque elas adotaram o visual
mais elaborado das mulheres que se situam numa posição hierárquica superior dentro do
culto ou da “seita- como surpreendentemente ainda costumam designar o candomblé uma
grande parte das vendedoras de acarajé.
Este é mais um elemento que comprova como a atividade do tabuleiro não adotou as
insígnias de submissão próprias das comunidades dos terreiros tradicionais. Na roupa típica
do acarajé, turbante engomado com orelhas, fios-de-conta feitos num único fio, bata e pano
no ombro são sinais do bem vestir permitidos a quem tem maior grau hierárquico.
Novamente, a instituição do ganho mantém aqui sua memória, como a manteve no
67
Uma imagem surpreendente muito recorrente em Debret: serviçais cativas carregando instrumentos de
soltura.
90
candomblé. A baiana do tabuleiro quer ser vista bem vestida, outrora sinônimo de
emancipada.
No entanto, a atividade da venda de acarajé surgiu no contexto da escravidão, assim
como todos esses emblemas. Em primeiro lugar, a venda de alimentos pelos africanos
surgiu como um ganho, relação de exploração imposta pelos proprietários europeus do
cativo, dando uma margem mínima de possibilidade de alforria a partir da renda obtida pelo
trabalho de anos de vida, somente possível enquanto o tráfico continuasse aprisionando e
enviando pessoas que pudessem substituir as que se libertassem, pois grande parte dos
homens livres sobreviviam a partir da renda desses cativos e a economia estava baseada
nessa situação. Em segundo lugar, o ganho foi aos poucos se tornando uma ferramenta para
a alforria, principalmente de mulheres que passaram a dominar o pequeno comércio. Elas
instituíram interpretações afro-brasileiras particulares a respeito do ganho, que se tornou
instrumento de coesão coletiva, sem, no entanto, deixar de ser uma instituição servil.
Gradualmente ritualizado, o ganho adaptou-se à memória dos cultos familiares e passou a
sistematizar novas relações, mantendo, por sua própria natureza, um sentido hierárquico.
As divindades familiares passaram a ter papel relevante como patronas das vendedoras, de
modo mais ou menos semelhante aos santos patronos de corporações de ofícios medievais.
Nessa época, o ganho era indissociável de seus sentidos corporativos e religiosos.
A partir de então, a venda de acarajé poderia se caracterizar como uma obrigação
servil, que carrega um significado religioso, adquirida quando a iniciação fazia a neófita
pertencer ao coletivo de emancipados representantes de divindades ancestrais. Ao mesmo
tempo, era o instrumento para se alcançar uma posição melhor e até mesmo aspirar à
capacidade de gerir uma comunidade, ou seja, de poder angariar recursos e distribuí-los
entre aqueles que passariam a lhe pertencer. Esse sistema enfatizava a independência da
comunidade, mas não de seus membros, o que caracterizava uma estratégia de resistência
peculiar.
Mesmo caracterizada como algo obrigatório no contexto religioso, a venda de
acarajé não ficou restrita a esse sentido e passou a expressar, recebendo reforços constantes,
a independência social e financeira, que era, nos tempos antigos, um atributo apenas da
comunidade e não do indivíduo. Com o desaparecimento do ganho e da maior parte de
modalidades femininas de venda de alimentos, a venda de acarajé recrudesceu e ressurgiu.
91
Menos próxima das comunidades de terreiro, ela guardou sua memória da hierarquia para
novas relações de família e de pessoas que se agregam ao grupo familiar. O líder da família,
geralmente uma mulher, agora se apresenta atrás do tabuleiro, com sua simbologia
emancipatória de liderança, e com seus amuletos de prosperidade.
Não sinais de submissão estariam ausentes. Alguns traços europeus do legado
deixado pelas baianas de beca, que encontramos nos cartões postais do século XIX, não
chegaram a ser transmitidos para a indumentária das novas empresárias do acarajé, apesar
de terem sido aquisições recentes. O pano-da-costa não absorveu a caracterização de xale
que vinha tomando, adquirindo franjões e sendo portado mais como estola nas poses
fotográficas. A sombrinha apenas permaneceu como guarda-sol do tabuleiro, deixando de
compor a vestimenta, embora fizesse referência ao símbolo de poder que o guarda-sol
representava em terra ioruba (Reis 2003: 208). Os laçarotes que marcavam a cintura, ou a
linha sob os seios, desde o século XVIII, das africanas em trajes mais sofisticados para o
período, também desapareceram.
Apesar de ser uma roupa trabalhada em babados, fitas e motivos delicados, a
vestimenta típica da baiana não se caracteriza por lacinhos e laçarotes que venham a
ornamentar ou marcar os tecidos no corpo. Apenas o candomblé mantém faixas de tecidos,
os ojás, que são chamadas, surpreendentemente, de “laço”, quando fazem composição com
o pano-da-costa enrolado no corpo, cumprindo a função de sustentá-lo envolvendo o corpo,
sendo passadas sob as axilas e amarradas como se fossem laços de fita. Os formatos de
arremate dessas faixas e o local onde os arremates se localizam (no peito ou nas costas), no
caso de uma adepta incorporada, representam o gênero da divindade tutelar e outras
características desta divindade. Embora sirvam para amarrar os panos, os “laçosusados
pelo gênero feminino lembrando que o gênero da divindade predomina sobre o gênero
daquele que lhe é dedicado são nitidamente uma apropriação dos laçarotes europeus que
lembram borboletas. Essa peça não faz parte das marcas indumentárias de quem ascende na
hierarquia. Pessoalmente, não vi nenhuma baiana de acarajé portando especificamente um
“laço, no dia-a-dia, tampouco as baianas arrumadas para a festa de largo.
O Projeto Roupa de Baiana, uma realização que envolveu a Funarte e a Associação
das Baianas de Acarae Mingau na valorização da roupa típica, atuou com oficinas de
aprendizado da confecção da indumentária, voltadas para comunidades em Salvador. Seu
92
catálogo, publicado em 2003, traz uma fotografia que reúne elementos considerados
característicos da roupa de baiana ojá, camizu, calça (o calçolão, uma roupa de baixo,
peça íntima outrora, usada como peça de decoro no candomblé), bata, saia, richelieu e fios-
de-conta depois apresentados separadamente. A baiana Noélia, que pousou de modelo
para a foto, traz uma singular faixa de tecido de bicos bordados amarrada displicentemente
à cintura, não especificada como as outras peças, uma espécie de ojá
68
. Porém, este foi um
dos usos do pano-da-costa no passado, enquanto pano avulso que amarrava a penca, pano
este que se recolheu aos terreiros para sinalizar a senioridade das mulheres que o portam.
Cores e listras: pureza, proteção, contenção e perigo
Ao analisar o registro das cores de época de nossa iconografia, devemos levar em
conta as possibilidades de tingimento do período em questão e as limitações cromáticas dos
retratistas para a criação e reprodução de suas pranchas. Ao mesmo tempo, devemos ter
noção de que estão em jogo escolhas pessoais dos autores relacionadas à prioridade dada à
composição do retrato, ao invés da estrita fidelidade ao que era observado. O cruzamento
entre as informações visuais e as escritas pode proporcionar um bom resultado, como
viemos demonstrando ao longo do trabalho. A memória preservada pelo candomblé seria
uma terceira vertente de consulta, em diálogo com essas imagens, que apontaria o percurso
das peças e como elas são concebidas hoje, diante de valores recentes e açambarcadores da
modernidade. Assim, podemos levantar alguns aspectos que caracterizavam o estilo
cromático das ganhadeiras e como este se transferiu para a indumentária da baiana típica
atual.
A concentração em imagens de natureza pictórica deve-se ao fato de que, apesar das
fotografias serem excelentes indícios - se interpretadas em seu contexto de gabinete e
exotismo – elas são imagens que guardam uma lacuna com relação às cores. Mesmo
podendo funcionar como gravuras esculpidas pela luz, a serem aquareladas como as
68
Como vimos, o opode ser de cabeça ou de peito, sendo uma faixa mais delgada de pano-da-costa ou
tecido comum, esta última distinção tendo se apagado bastante hoje.
93
gravuras convencionais do período, a fotografia que se preservou sobre nosso tema
caracteriza-se por postais em preto e branco.
Não havia uma única cor predominante na roupa das vendedoras do passado. No
entanto, o branco nas camisas e as listras nos panos-da-costa são recorrentes. A cor clara do
algodão cru era aquela que os africanos que trabalhavam no eito recebiam para cobrirem o
corpo. Porém, gradualmente, os trabalhadores de ganho em Salvador vão demonstrando
suas preferências dentro de determinados limites materiais. O branco para as camisas
femininas é uma delas e os tecidos leves, considerados como roupa íntima pelos europeus
também.
O candomblé herdou essa preferência pelo branco que, nesse caso, se transformou
em cor dominante. No Brasil, ele se tornou uma cor cerimonial para os cultos afro-
brasileiros, símbolo de pureza e também de poder, representando o poder cósmico. Da
mesma maneira, o branco também significava pureza para a mentalidade européia que se
confrontava com as primeiras construções de pureza afro-brasileiras. Segundo Michel
Pastoureau (1996: 78):
Durante muitos séculos, da época feudal até a segunda revolução industrial,
a sensibilidade ocidental não tolerou que o vestuário e os tecidos que
tocavam diretamente o corpo nu (camisas, véus, ceroulas, lençóis) fossem de
outra cor que não brancos ou crus. (...) Tais prescrições vinham do fato de a
cor passar por qualquer coisa de mais ou menos impuro (sobretudo se ela era
obtida por meio de matérias animais), de mais ou menos inútil e muito
imodesto. Era preciso afastá-la dessa superfície íntima e natural que constitui
a pele.
Deste modo, o uso, pelos africanos cativos, de roupa clara apenas para cobrir do
corpo partes que não deviam ser exibidas (a função da roupa íntima), terminava se
coadunando com o ideal de subserviência imposta pelos europeus
69
. Era um modo de vestir
que significava pobreza e modéstia, dois atributos que, lançados sobre os cativos, tomavam
a conotação de obediência. Temos, então, o branco do tecido representando um tipo de
contenção.
69
Lembremo-nos que o ideal de ocultação do corpo como sinal de submissão não estaria atuante aqui, pelo
contrário, quanto menos coberta, mais submetida está a pessoa na hierarquia do sistema vigente.
94
Por outro lado, havia uma idéia de pureza ritual que a cor branca poderia significar e
traduzir na mentalidade de povos africanos transportados para cá. Os habitantes da cidade
de Ifé, região ioruba, atribuíam à indiferenciação e à ancestralidade criadora do cosmos
essa cor (Juana Elbein dos Santos 1986). Os haussás, que eram islamizados e viviam num
território próximo aos iorubas no continente africano, tinham a cor branca como
indispensável para a vestimenta sacerdotal. Segundo Reis (2003: 206): “A idéia de pureza
ritual destacada na sura solar marcava um outro símbolo da presença islâmica entre os
africanos da Bahia: o uso de uma roupa branca, espécie de camisolão comprido chamado
abadá”.
Como Reis continua explicando, algumas descrições do uso do abadá, no período da
significativa presença de africanos islamizados em Salvador, não o colocam como
necessariamente de cor branca ou como muçulmano, enquanto outras descrições afirmam o
contrário. Mesmo diante dessa inconsistência, suponho que as túnicas brancas, pelo menos
as usadas em Salvador, costumavam ter o feitio de um abadá, o que depois se tornou
indissociável. Essa seria, então, uma das vestes brancas relacionadas à pureza exigida para
o exercício do sagrado.
Ainda segundo a análise do autor, uma outra roupa se caracterizaria, essa sim, pela
cor branca. Seria um tipo de camisola usada pelos homens iorubas, a roupa suliya.
Provavelmente, essa roupa originou algo do vestuário cotidiano do terreiro, que
conhecemos também pelo nome de roupa sura
70
. A cor branca, vista como apropriada às
práticas rituais, pode ter sido a passagem para essa designação, com a representação de
pureza da roupa masculina sendo adotada pelo sacerdócio feminino.
Primeiro, o branco foi considerado uma cor sagrada, ou preferencial, ainda em
território africano, segundo as crenças iorubas ou islâmicas. A própria palavra sura reúne
duplo significado na língua portuguesa, significando, implicitamente, a cor branca. Não
faz referência aos capítulos do Corão, como também é o nome dado ao vinho de palma (de
cor clara), um atributo por excelência da divindade suprema e criadora do panteão
iorubano, caracterizada, no candomblé, por vestes exclusivamente brancas. No Brasil, o
branco, usado pelas pessoas comuns em terras islamizadas vizinhas dos iorubas, adquiriu
um caráter de veste de recolhimento e oração porque propriamente identificava esses
70
Esse nome ainda pode se referir à roupa sem enfeites, como vimos.
95
africanos islamizados. Isso ocorria em conseqüência de estes serem conhecidos por sua
resistência exaltada ao regime de escravidão
71
, embasada primordialmente em sua
observância religiosa, a ponto de a opção cromática que os distinguia deixar de ser usada
nas ruas, para não atrair perseguição policial (Reis 2003: 206). Esse tipo de episódio
reforçava a associação do branco com a pureza, a religiosidade e a resistência, ao menos
para os africanos de um modo geral. Desta forma, tendo se transformado literalmente em
hábito de recolhimento, o costume dos islâmicos foi recriado como indumentária sagrada
pelos nagôs, tornando os sentidos de resistência, pureza distintiva e de divindade politeísta
do cosmos hoje indissociáveis no vestuário da comunidade religiosa afro-brasileira.
Assim, uma provável roupa de recitação da sura e a roupa suliya, com o tempo,
passaram a ser reconhecidas apenas pela cor branca e por uma função ritual generalizada do
que antes havia sido um uso especializado e islamizado. Tornou-se a roupa cotidiana dos
terreiros, que são locais de preparo do sacerdócio feminino, um aspecto bem distante dos
cânones da ortodoxia islâmica. Se a ortodoxia deixava a desejar em território haussá, no
Brasil o Islã se divulgou de maneira ainda mais adaptada e com nítido acento nagô.
A cor branca passou a reunir, então, todas as atribuições que lhe foram feitas por
africanos, islamizados ou não, e por europeus, o que chegou à peculiar concepção popular
que se tem dessa cor na Salvador atual, principalmente como emblema dos cultos afro-
brasileiros
72
. À idéia de contenção juntou-se a de sacralidade, separação e, portanto, de
pureza. Como a túnica branca foi usada pelos rebeldes nagôs islamizados durante suas
rebeliões, poderia também ter reforçado a idéia européia do perigo que precisava ser
contido, a cor simbolizando, ao mesmo tempo, essa ppria contenção e esse perigo.
Uma variação do branco, que eram os tecidos riscados em branco e azul, também
recebeu interpretações as quais constelou. Vimos como o azul dos corais era apreciado, seja
na costa do Benin, que também produzia o corante azul índigo, seja em Ifé mais ao interior.
A bicromia de branco e azul era característica dos panos que vinham da África para
Salvador, principalmente no século XVIII.
71
Embora a lógica da escravidão não lhes fosse desconhecida e almejassem não aboli-la, mas invertê-la com
suas rebeliões.
72
Vivaldo da Costa Lima (2005: 37) menciona convites impressos para celebrações particulares do Caruru de
São Cosme festejo afro-brasileiro hoje divulgado em todos setores da sociedade soteropolitana, como
veremos solicitando roupa branca aos convidados, demonstrando a suposição popular que associa a cor à
totalidade dos rituais afro-brasileiros.
96
O azul era uma preferência na necessidade de tecidos listrados. Os teares
tradicionais tinham capacidade para confeccionar apenas tiras mais delgadas, o que
terminava interferindo a favor da escolha estética de tecidos listrados, formados pela união
das tiras. O azul era uma cor predileta nesta escolha. As listras eram bastante valorizadas
entre os africanos da Costa, embora também pudessem ser proibidas para algumas pessoas,
segundo tradições oraculares iorubanas que migraram para o candomblé. Esse tipo de
proibição reforça o papel relevante das listras naquela sociedade. Por outro lado, o
listrado também fazia parte de um estilo de vestuário oriental que logo foi apropriado por
uma espécie de orientalismo medieval europeu nascente e que, posteriormente, fez parte do
repertório orientalista da corte de Napoleão, através do estilo império de vestuário e
mobiliário
73
.
Desse modo, o listrado entrou para o repertório europeu como um atributo que
indicava ambivalência e perigo. Todavia, tornou-se também símbolo de subordinação,
como esclarece Pastoureau (1996: 48): “Tanto de maneira independente como em
associação com as suas antigas conotações de impureza ou de transgressão, as riscas
tornam-se pouco a pouco o sinal de uma condição servil, ou de uma função subalterna”.
Quando as listras passaram a indicar servidão, ao mesmo tempo, elas começaram a
ser atribuídas aos domésticos de origem africana, num processo que se inicia no século
XVI, segundo Pastoureau (1996: 50):
Nas imagens, as criadas de blusa, vestido ou aventais listrados abundam.
Abundam igualmente, sobretudo na viragem dos anos 1500, os pagens, os
lacaios e escravos negros pintados de vestes listradas. A risca doméstica
reforçou-se aqui de uma importante dimensão exótica. O fenômeno é
inicialmente italiano e mais ainda veneziano, mandando o alto patriarcado de
Veneza vir de África jovens adolescentes destinados a servir nos seus
palácios. Este toque africano torna-se rapidamente uma moda, estendendo-se
a uma grande parte da península e depois para lá dos Alpes. Cada palácio,
cada corte teve os seus “escravos negros” que os senhores se deleitam a
vestir de riscas. Estas exprimiam simultaneamente a origem oriental (para a
civilização medieval, a África fica no Oriente), o nascimento pagão e a
condição servil.
73
Djellaba ou galabeyas listradas caracterizam as roupas típicas do sul do Egito.
97
Assim, as listras, primeiramente interpretadas por uma visão orientalista nascente,
passam do repertório eurocêntrico para o repertório que subdivide o mundo geo-politico em
civilização, hierarquicamente superior, e barbárie, processo analisado em pormenor pelo
clássico de Norbert Elias (1994). Em outra escala, civilização também implicava maneiras
que distinguissem as classes que emergiam como uma elite, cujo objetivo era legitimar sua
própria posição através de uma diferenciação construída que as separasse dos hábitos
comuns a todos, populares. Com o primeiro processo colonial, as listras se tornaram
representantes de uma parte considerada não civilizada em duplo sentido: por ser africana, e
portanto oriental” ou seja, exótica, ambígua e perigosa - e por estar associada a um
estado “selvagem, que os europeus naturalizaram através da cor da pele, como continua
Michel Pastoureau (1996: 52):
Esta associação entre o negro e a risca teve uma vida particularmente longa
na gravura, no teatro e em todos os espetáculos ou rituais em que
interviessem disfarces.Ao longo de toda época moderna, dotar-se de riscas é
o suficiente para se transformar em “selvagem”, para transgredir a ordem
social e cultural. Extravasando mesmo o quadro da África, a risca no
vestuário torna-se o sinal genérico de toda forma de exotismo ou de uma
vida mantida no estado natural. (...) Para o Ocidente, a risca, ou pelo menos
uma certa risca, tornara-se a marca obrigatória dos povos mais afastados da
“civilização”.
Essa constatação nos traz maior entendimento do como os europeus que retrataram
as vendedoras de rua em território brasileiro lançaram seu olhar sobre elas e sobre seu
modo de vestir. Enquanto havia, por parte das africanas e afro-descendentes, uma
afirmação da origem, e da sofisticação estética de que era capaz o tear africano, no uso do
pano-da-costa listrado, os europeus o viam como um sinal de alerta, como uma diferença
ameaçadora que era preciso subjugar. O listrado começa, a partir de uma exacerbação local
da idéia que o associa com a escravidão, também a definir a subordinação e obediência,
numa inversão de seu sentido.
Essa ambivalência do listrado, tão específica do período em que o pano africano era
exibido nas ruas, estendeu-se, no caso do Brasil, para os panos fortemente coloridos e
geometrizados e para as estampas floridas de chitões, atualmente representativos de um
gosto popular. No entanto, o colorido alegre nunca chegou a se transformar num padrão dos
98
uniformes de empregados domésticos, como ocorreu com as listras, no processo ocidental
descrito por Pastoureau.
No Brasil, mais do que as listras, foi o branco total, envergado dos pés à cabeça, que
continuou como um signo de afro-descendência, com a carga correspondente às atribuições
desses que foram historicamente submetidos. No entanto, a longo prazo, emergiram
sentidos de perigo relacionados ao branco que estavam adormecidos. Assim, essa cor
também se definiu como predileta no vestuário da figura do malandro, potencialmente
transgressora
74
. No entanto, paralelamente, a cor branca, num processo mais abrangente do
mundo ocidentalizado, terminou como uma das cores uniformizantes dos subordinados,
sempre presente na roupa dos empregados domésticos. Aqui, o significado mais local de
emblema dos africanos reuniu-se à expressão muito pouco prestigiada do serviço
doméstico. O sentido moderno e recente da cor como tonalidade apropriada para ambientes
com risco de contaminação, como hospitais e atividades relacionadas à manipulação dos
alimentos, veio se somar aos significados anteriores.
Para além das cores evidentemente típicas, como o branco e o riscado de azul, a
África orientalizada da visão européia, mencionada por Pastoureau em relação às listras,
transparece, algumas vezes, através de elementos da indumentária de africanas nas ruas de
Salvador. Dentre estes elementos, estão as musselinas, os turbantes femininos - que, no
final do século XVIII, viraram moda da elite francesa - as chinelas de biqueira virada, que
fazem aparição em postal do século XIX. As listras do pano-da-costa, embora referência ao
vestuário islamizado e exótico “afro-orientalista” do ponto de vista europeu, são um artigo
genuinamente ioruba, mesmo que a região ioruba, ou nagô, guardasse um histórico de
contatos como o Islã. Mesmo assim, devem ter entrado para o mesmo repertório que reunia
tudo sob a marca do oriente. Mais uma vez, à peça puramente distintiva de uma estética
africana, vieram se agregar significados de subalternidade implícitos na exotização.
Assim como os balangandãs, o pano-da-costa, incluindo o de padrão listrado ainda
hoje usado, se recolheu ao âmbito do candomblé. As listras não tiveram o mesmo destino
que o turbante branco que permaneceu nas ruas através das baianas de tabuleiro. O sentido
de transgressão do branco e do turbante, memória de sua inspiração nagô e muçulmana,
74
Refiro-me, por exemplo, ao malandro já mitificado através da entidade Pelintra, cujo visual é
invariavelmente o branco total, sendo essa entidade da umbanda considerada ambígua e astuta nos cultos afro-
brasileiros.
99
vem sendo suplantado pelos sentidos de pureza e assepsia também atribuídos a estes
elementos. O branco, agora, passa a manter predominante, nesse vestuário, seu complexo
simbólico de contenção.
Deste modo, a função do turbante não é mais distintiva e sim utilitária. O branco da
roupa de baiana que vai ao Bonfim não é mais sagrado em primeiro plano. As roupas e
toalhas alvas usadas na atividade do tabuleiro, cuja alvura indica capricho da baiana, agora
são muito mais um signo de limpeza, significam muito menos o destaque e relevância da
pureza que diferencia, pois a limpeza não necessita de outros aspectos para que se cumpra
sua qualidade, a não ser a anódina assepsia.
Todavia, pela própria ambigüidade desse processo, as baianas de tabuleiro
percebem os novos valores assépticos como lhes tolhendo alguma coisa que não desejam
perder apenas quando os enxergam projetados na atitude explícita das mulheres que se
converteram e que pretendiam vender acarajé vestidas de uniforme branco e boné branco
ou rede branca sintética prendendo os cabelos. Mas não reconhecem o mesmo processo
quando afirmam que a função do turbante é simplesmente a de manter a assepsia. Não que
elas creiam piamente na assepsia do turbante, mas a reafirmam constantemente porque este
é um valor que o poder público lhes exige, assim como muitos clientes. Há uma
necessidade de se legitimar através dos valores dominantes, pois grande parte da vivência
desse grupo, ao longo de sua história em Salvador, foi marcada pela tentativa de sua
eliminação das ruas, fato que chegou a se cumprir em outras regiões do país.
Mais um fator contribui para confundir esse incômodo sentido pelas baianas em
relação ao uniforme. A divisão entre modos considerados civilizados e modos pouco
“modernos” ou “atrasados” paira sub-reptícia às afirmações sobre a assepsia proporcionada
pelo turbante típico. A “modernidade” transformou-se em valor positivo relacionado à
produção industrial e à organização que uniformiza e que, muitas vezes, se confunde com o
controle sanitário. Como o “fato branco e o boné demonstraram ainda ser algo de
inaceitável para a maioria das baianas e para os órgãos de turismo municipais que
pretendem faturar sobre a tipicidade da profissão, a roupa da baiana passa a assumir
aspectos que teriam sido originalmente os de um uniforme. Isso culminou, em 2005, na
determinação da Secretaria de Serviços Públicos de Salvador da obrigatoriedade do torço,
bata e saia rodada. Depois disso, o turbante adquiriu uma justificativa oficial para sua
100
função não apenas pica e preservadora da cultura, mas principalmente para a função de
manter o cabelo ordenado e a comida limpa, já que se aproximou da categoria dos
uniformes.
Apesar de, no turbante, conviverem com valores culturais afro-brasileiros, medidas
higiênicas costumam ser atribuídas à interrupção de práticas tradicionais, com o argumento
de que não se é feito mais como antigamente por questões de limpeza, quando nem sempre
isso parece se confirmar. Quando os valores higiênicos conseguem suplantar todos os
outros, a memória histórica parece se chapar em causas imediatas relacionadas à contenção
de doenças e contaminações. No caso das baianas de tabuleiro, parece que ocorre um
processo em que valores culturais afro-brasileiros e os valores higiênicos se equivalem,
correndo em paralelo, visto que os primeiros ainda não puderam ser relegados a mero
folclore do passado.
101
Formação da culinária local e seus aspectos rituais
Gamelas e tabuleiros: um percurso dos produtos
O ganho se caracterizava por diversas atividades. Uma delas era a venda de neros
alimentícios, empreendida inicialmente pelas escravas de ganho. Com o tempo, esta
terminou sendo perpetuada por libertas que muito dela se valeram para sua alforria. Podia
ser dividida, no caso da mão de obra feminina, entre as ambulantes e a categoria mais tardia
de mulheres que vão se fixando em pequenas vendas, as quais tomaram a acepção mais
recente e brasileira da palavra “quitanda, originalmente o coletivo da feira, do mercado
em umbundu
75
. Com o tempo, a quitanda tomou um sentido para além das reuniões de
vendedoras ambulantes. O próprio Debret (apud Leite 1984: 97), que as retratava
profusamente, relata, em 1816, como viria a se caracterizar a quitandeira:
(...) as mais ricas e donas de mercadorias chamam-se quitandeiras, situação
que exige o ajutório de um mulato ou negro livre, operário, para o
pagamento do aluguel e das roupas; a atividade da quitandeira deve
conseguir o restante e o lucro deve bastar ao abastecimento da mercearia e à
aquisição de dois moleques que ela educa no trabalho ou no comércio de rua
para com seus salários garantir os recursos da velhice.
Desse modo, a quitandeira é uma vendedora que angaria recursos para se assentar
em um ponto, porém se transforma numa espécie de micro-empresária da época,
reproduzindo o ganho a partir de “moleques que “adquire como ajudantes e que podem
continuar também com a venda ambulante. Mais tarde, estes podem lhe garantir a velhice,
trabalhando para ela. A adoção de moleques ajudantes através do ganho é uma situação que
foi empregada como modelo para a constituição dos candomblés tradicionais, inicialmente
grupos femininos de ganhadeiras, que compartilhavam do auxílio periférico de meninos e
adultos do sexo masculino, aos quais, posteriormente, foi reservado um lugar específico
entre os rituais e a culinária afro-brasileira.
75
Segundo Selma Pantoja (1999: 35): “Os mercados tão comuns por todo continente africano, na região da
África Central Ocidental, mais especificamente entre os umbundu, são designados de kitanda, que,
aportuguesada, virou quitanda”.
102
As quitandeiras, no início, confundiam-se com as ganhadeiras que comerciavam nas
ruas. As operações comerciais de grande porte e os estabelecimentos maiores como
armazéns ou lojas eram um ramo dominado pelos portugueses. No entanto, o pequeno
comércio ambulante feminino existia em Portugal enquanto foi metrópole, empregando
mulheres livres. Luís Mott e Luciano Figueiredo (cf. Figueiredo 1993: 34) descrevem tal
comércio a partir de documentos que legislavam sobre essa ocupação e que, no caso da
coroa portuguesa, foram, à primeira vista, localmente protecionistas. Luís da mara
Cascudo (2004: 610-11) cita o monopólio feminino de doces portugueses em sua fabricação
e venda e também uma lei de 1496 na qual o rei D. Manoel determinava que o caramelo de
nome mourisco “alféloa” fosse vendido exclusivamente por mulheres, com pena de
punição, por açoite, dos infratores do sexo masculino. Além dos doces, as portuguesas
também se ocupavam em vender sardinhas em retalho ou no atacado (Cascudo 2004: 270)
de onde se origina, provavelmente, a expressão “regateira” para caracterizar as vendedoras
ambulantes. Outros produtos de Portugal, como hortaliças, azeitonas e alhos também eram
vendidos pela ambulância livre feminina. Se o culo XV conhecia a venda livre desses
produtos, o século XVI trará um novo quadro, com quatrocentas africanas comerciando nas
ruas de Lisboa (Cascudo 2004: 284).
Linda Heywood (2001) nos traz a notícia da formação de uma comunidade luso-
angolana em Lisboa no século XV, através da Irmandade do Mais Sagrado Rosário de
Nossa Senhora dos Homens Negros de São Salvador da Matta, situada no monastério de
São Domingos de Lisboa. Irmandades católicas africanas, com celebrações que reforçavam
esta identidade, na própria sede da metrópole portuguesa, demonstram que muitas
adaptações culturais feitas em Portugal foram transferidas para o Brasil posteriormente,
como conclui Heywood. Essa situação também inclui a venda ambulante feita pelas
africanas e o tabuleiro de doces que veio, no Brasil, se juntar à gamela nagô e à sua comida
de sal.
Paralelamente ao Brasil, temos também o desenvolvimento de uma cultura de venda
feminina de gêneros alimentícios em Luanda, como descreve Selma Pantoja (1999). As
quitandeiras de Luanda também tinham, tradicionalmente, exclusividade feminina do
mercado e da produção agrícola, de maneira semelhante aos grupos iorubanos. A
dominação portuguesa, ao longo do tempo, procurou restringi-las através de matrículas,
103
licenças e do recurso mais recente das reformas urbanas de cunho ideológico civilizatório,
fatos que também ocorreram no Brasil em outro contexto. O grande diferencial foi a
manutenção da produção agrícola por parte das mulheres naturais e mestiças de Luanda,
donas de arimo, que era a terra cultivável, enquanto em Salvador a produção seguia outros
caminhos, entrecortados pela predominância dos engenhos.
Temos na venda feminina ambulante, portanto, uma situação de exclusividade
feminina que ocorreria concomitantemente em três locais. Esta estava embasada em uma
convergência resultante do encontro de práticas culturais lusitanas com aquelas dos grupos
étnicos de Angola e do Congo. A exclusividade feminina era um ponto em comum e que
por isso se reforçava. No Brasil, que bebeu desse encontro luso-africano centro ocidental,
uma terceira vertente arremataria o domínio feminino sobre a venda ambulante, através dos
valores nagôs aqui re-adaptados.
Um outro fator, próprio da realidade dos núcleos urbanos que se formavam no
Brasil, viria matizar o comércio ambulante com valores e uma estética própria. Estes
valores, apesar de mesclarem diversas matrizes culturais, foram criados a partir da visão
das africanas, por sua vez limitada pela escassez de recursos da situação do cativeiro. Esse
enfoque não poderia ter acontecido com as vendedeiras lusitanas livres, nem com as
africanas libertas em Portugal depois da segunda metade do século XVIII (Heywood 2001),
nem mesmo com as angolanas que permaneceram em terra natal. Ele foi fundado, nos
espaços urbanos do Brasil colonial, pela desigualdade entre européias e suas descendentes -
privilegiadas socialmente, porém reclusas - e as africanas escravizadas - porém detentoras
da mobilidade nos locais públicos, apesar de assomadas por outras grandes desvantagens.
Essa situação estrutural teve como matriz a cidade de Salvador. Aos poucos, os valores
construídos em nossa primeira sede foram circulando internamente e se conformando a
cada situação regional.
Assim, não foi somente em Salvador que ocorreu o domínio do pequeno comércio
alimentício pela mão-de-obra feminina e africana. Temos, por exemplo, as negras de
tabuleiro em Minas Gerais que vendiam alimentos perto das áreas de mineração e eram
vistas como contrabandistas de ouro, prováveis prostitutas e suspeitas de cumplicidade com
rebeldes quilombolas (Chaves 1999: 56-7; Figueiredo 1993; 2004). Muitas imagens
retratam as vendedoras ambulantes do Rio de Janeiro, em sua transição de sede colonial dos
104
chamados vice-reis para capital do Império. Mais tarde, depois da rebelião de 1835, em
Salvador, grande quantidade de afro-soteropolitanos terminaram sendo transferidos ou se
transferindo para a capital do Império (Soares 2001), reforçando os costumes retratados por
Debret desde a segunda década do século XIX. As vendedeiras também povoavam as ruas
de São Paulo no século XIX, onde possuíam uma autonomia bem menor, se comparada à
adquirida em outras regiões, como se conclui pela descrição de Maria Odila Leite da Silva
Dias (1995). Em Recife, as africanas que vendiam nas ruas tinham grande semelhança com
as ganhadeiras de Salvador, com histórias que corriam quase em paralelo desde o século
XVIII (Maciel Silva 2005).
Essa variação regional dentro de certa uniformidade deixa entrever o porquê do
tabuleiro. As africanas eram empregadas como uma espécie de extensão das outras
mulheres que, inicialmente, eram reclusas e muito gradualmente foram acessando maior
mobilidade. O tabuleiro era a principal ferramenta da mobilidade das africanas. Por isso,
em diversas regiões, uma condição feminina muito semelhante produzia um cenário de
africanas perambulando com comestíveis.
A demanda da força de trabalho masculino no eito facilitava a afluência das
mulheres africanas para essas atividades. Do mesmo modo, nas cidades, boa parte dos
africanos de ganho realizava trabalhos tidos como mais pesados, embora a atividade
feminina das vendedoras implicasse também em força física e em riscos para a saúde e
integridade pessoal, o que podia ocorrer no caso da vendedora de mingau, por exemplo,
como veremos. Ainda que houvesse alguns tipos de vendedores ambulantes, como
podemos perceber em nossa iconografia, a venda se sedimentou enquanto trabalho
tradicionalmente feminino.
O tabuleiro era utilizado por causa da mobilidade requerida pela vendedora.
Hildegardes Vianna (1979: 50), que testemunhou seu derradeiro papel no comércio
ambulante, elucida sua função: “Ficava então algm à janela esperando que passasse
balaio, gamela ou tabuleiro, trazendo o que se queria ou sucedâneo”.
A falta de maior mobilidade das senhoras brancas necessitava, obrigatoriamente, da
mobilidade das africanas. Outro instrumento primevo dessa função parece ter sido a
gamela, de menores proporções, e as guloseimas nela vendidas eram mais especializadas.
Muitas baianas do acarajé atuais dizem se lembrar de suas bisavós ou avós carregando
105
comida pronta para vender sobre gamelas. O preparo dos alimentos que não vinham in
natura acontecia nas cozinhas das casas, por vezes, dos terreiros que iam se desenvolvendo
junto com a gradual emancipação das ganhadeiras. O alimento pronto saía às ruas para ser
comercializado. Lentamente, o tabuleiro passa a englobar a versão da “taboleta (Lody
2003: 15), uma espécie de vitrine móvel feita de vidro e madeira a ser instalada num ponto
de venda, enquanto cai em desuso o comércio de janela em janela e começam a entrar em
cena as pequenas lojas de quitanda. As formas antigas e as mais recentes conviviam.
No princípio, nem sempre a principal empreendedora era a própria afro-baiana.
Muitas vezes, as senhoras deviam coordenar esse tipo de comércio, como na descrição da
historiadora Mary Del Priore (1997: 290), imaginando a mãe de Antônio Gomes Castelo
Branco, que viveu no século XVIII, em seu lar de engenho baiano, de tamancas, presidindo
a fabricação de doces e arrumando-os em tabuleiros que seus escravos levariam para vender
na cidade. A partir desse tipo de empreendimento senhorial se constitui o ganho, com as
vendedoras tomando alforria e autonomia aos poucos.
Havia também certa diferenciação que depois ficou apagada, com a síntese que o
tabuleiro atual terminou criando. Os doces eram elaborados pelas senhoras de origem
européia ou pelas irmãs que residiam nos conventos. A doçaria era uma tradição portuguesa
que foi, como afirma Luis da Câmara Cascudo (2004) em sua História da Alimentação no
Brasil, replantada no Brasil, tornando-se rapidamente generalizada em todos os centros de
povoamento durante o período da colônia, marcado por grande produção de açúcar. No
entanto, ingredientes genuinamente africanos teriam criado pratos da culinária afro-
brasileira mais especificamente através da comida de sal. Porém, alguns doces foram re-
adaptados ao gosto das auxiliares africanas que trabalhavam nas cozinhas dos engenhos,
depois passando ao tabuleiro das ganhadeiras e das alforriadas. Assim como no vestuário,
os doces de tabuleiro também ensejam um reencontro entre a interpretação portuguesa da
culinária mourisca oriental e a tradução africana de seus pratos, quando a África era
considerada parte do Oriente pelo pensamento dominante.
Tal como as regateiras portuguesas, as ganhadeiras vendiam toda espécie de
produtos, fossem alimentícios (frutas, hortaliças, aves, peixes, bebidas ou comidas prontas,
como bolachas e mingau) ou mesmo artefatos de costura e tecidos, além de cosméticos
elaborados com produtos vegetais e animais. Podemos observar alguns desses produtos nas
106
imagens supracitadas. Na iconografia do século XVIII e XIX, encontramos mais vezes
vendedoras de gêneros in natura. A imagem recorrente é a da mulher que leva à cabeça
tabuleiros com frutas. Ela está presente na figura do final do século XVIII desenhada por
Carlos Julião, com seu pano-da-costa listrado de azul e branco carregando uma criança e
um tabuleiro com diversas frutas tropicais, mal cobertas por uma única e singela folha de
bananeira. Em Venda do Recife e em Negras do Rio de Janeiro de Rugendas, as frutas estão
dentro de um cesto sobre a cabeça, cobertas também por folhas de bananeira. Há a
vendedora de cajus de Debret e até mesmo melancias são levadas à cabeça por uma
vendedora de Salvador retratada por Maria Callcott (sem data), autora que viveu entre o
século XVIII e XIX.
Nos postais do século XIX, essa figura se repete, como na vendedora de bananas
posando no estúdio, o cabinet, com pano-da-costa listrado carregando uma criança, sobre a
cabeça uma gamela com o produto
76
. Era o registro indicial da própria vendedora
estereotipificando em estúdio as ambulantes e seus produtos. Junta-se a este retrato um
muito semelhante de autoria de Gêneroso H. Portella (1898), feito em Salvador, em que a
vendedora apóia suas mãos sobre a gamela de frutas em cima de uma mesa redonda. Temos
também a imagem de uma vendedora, dessa vez com uma gamela de abacaxis sobre a
cabeça e pitando (cf. Olszewski 1989), fazendo com que a fantasia estilizada da pequena
notável não pareça tão despropositada assim.
Além das frutas, as baianas transportavam outros produtos. Na Tenda do mercado
de Henry Chamberlain, as mulheres carregam balaio com grãos e tabuleiro com recipientes
para bebida. Na dupla de figuras femininas, acompanhadas de um cachorro, desenhadas por
Carlos Julião, uma das mulheres carrega um grande peixe diretamente sobre a cabeça. Em
Negro e Negra da Bahia, de Rugendas, um cesto com peixes, que se supõe pertencer à
mulher, está sobre o chão. Além disso, temos figuras com enormes porrões de barro sobre a
cabeça, provavelmente recipientes para água. Debret nos mostra uma vendedora de folhas
de bananeira (prancha 40) que, como vimos, faziam a vez de cobertura para os alimentos e
também de material para o preparo das comidas cozidas. Conversei com uma líder de
terreiro que chamou a atenção para o fato de essa folha ter sido usada pelos “antigos” para
manter o alimento protegido de insetos enquanto exposto em meio à rua.
76
A market woman, autor desconhecido.
107
Todas essas mulheres ambulantes vão desaparecendo aos poucos. Primeiro, as
relacionadas aos perecíveis colhidos ou cultivados em pequena escala, bem como
vendedoras de peixes e de vísceras. As feiras ou quitandas, que foram primeiramente
aglomerados dessas mulheres em determinados locais, permaneceram, mas a ambulância
deixou de ser necessária.
Isto acontece quando as descendentes das européias ou aquelas que se europeizaram
para ascender socialmente começaram a ter mais autonomia. No século XIX, com a
ascensão de discursos médico-científicos positivistas, inicia-se um processo em que essas
mulheres se livram gradualmente da reclusão - que começou a ser considerada pouco
saudável - até se tornarem mais responsáveis pela socialização dos filhos e por uma atuação
zelosa dos valores vigentes na sociedade. Essa possibilidade de interferência conservadora
lhes deu maior mobilidade.
Bastante representativo da natureza dessas mudanças foi um pormenor
arquitetônico, a abolição das gelosias e rótulas dos sobrados em 1809 no Rio de Janeiro,
modificação que Salvador, segundo Adriana Dantas Reis (2000), então desprovida da corte,
não experimentou na mesma intensidade. Com a lenta remoção das barreiras entre as
mulheres reclusas e as ruas, a ambulância, assim, vai gradualmente perdendo sua principal
demanda.
Por volta de fins do século XIX e início do XX, as soteropolitanas socialmente
privilegiadas, chamadas a um novo modelo de participação em suas redes de relações,
inclusive como educadoras, passaram a exercer um papel moralizador das mulheres sem
recursos ou afro-descendentes, na tentativa de controlá-las em um nível de sutileza maior
que o das contínuas ações dos poderes municipais. Alberto Ferreira Filho (2003: 76)
identifica essa postura nas senhoras católicas praticantes e engajadas na segregão -
supostamente protetora - das mulheres com poucos recursos, numa surpreendente tentativa
de inversão da penosa reclusão feminina, outrora aristocrática. As aspirações a esse tipo de
segregação vieram se somar a uma ambiência pouco favorável em outros aspectos às
ambulantes remanescentes.
Adriana Dantas Reis (2000: 132-3) conclui que tanto a Igreja quanto o então novo
modelo médico racionalista, aparentemente opostos, coadunavam-se numa mesma imagem
conservadora do feminino. Uma convergência que denunciaria essa afinidade entre
108
católicos e os que se auto-proclamavam progressistas seria a tentativa de restaurar o
controle, em termos um pouco divergentes do regime anterior, de recém egressas da
escravidão e de suas descendentes, até então salvaguardadas por seu ainda indispensável
papel de intermediárias com a rua. Para isso se contava com a atuação das mulheres outrora
totalmente reclusas, que agora galgavam maior grau de atuação dentro de sua própria
subordinação.
Com um longo tempo, a venda ambulante mostra uma face transformada e os
produtos passam a ser vendidos em feiras que se tornaram pontos fixos traduzidos por
construções e que não são mais reuniões de mulheres em locais estratégicos da cidade.
As ambulantes das comidas prontas permaneceram um pouco mais, junto com homens
vendendo hortaliças e leite pela manhã, e vendedoras de artigos de armarinho. Com o
avanço do século XX, todos estes vendedores desapareceram, o serviço tendo passado para
estabelecimentos comerciais, “verdurões” e padarias. O acarajé foi raro produto que não
desapareceu nem perdeu totalmente sua ambulância. Também era vendido como comida
pronta. No entanto, seu preparo na própria rua sobrepujou o costume de vendê-lo pronto na
gamela.
Algumas figuras especializadas na venda de diversos produtos alimentícios,
corrente em tempos coloniais e imperiais, ainda foram descritas por Hildegardes Vianna
(1979) para o período anterior à Segunda Guerra Mundial. Certos tipos de comidas prontas
permaneceram como últimos remanescentes das ruas. As mais resistentes acabaram sendo
absorvidas pelo tabuleiro de acarajé, tais como a cocada, que era apregoada pela mulher da
cocada anteriormente. A cocada, que era doce vendido por uma ambulante, foi parar no
tabuleiro.
Outras sumiram, como a mulher da gamela do fato cuja memória é preservada
pela venda da passarinha”, o ncreas de boi já assado e ainda encontrado em muitos
tabuleiros de acarajé. Debret representa uma mercadora de tripas em sua prancha 26. Esta
leva à cabeça o produto e uma faca sobre um tabuleiro retangular. Outra figura de Debret
(prancha 114) parece levar carne vermelha à cabeça e carrega à o tripas de um animal
recém abatido. Ferreira Filho (2003: 108) atribui o sumiço da mulher fateira, que
109
costumava adquirir seu produto em abatedouro no bairro do Retiro
77
, a uma postura
municipal de 1904.
A vendedora de acaçá também desapareceu. O acaçá pode ser considerado um
pudim de milho branco
78
, consistente, tradicionalmente envolvido em folha de bananeira.
Como não havia possibilidade de resfriamento em geladeiras, eram realizados outros
procedimentos para dar consistência à massa
79
. Do contrário, o que se obtinha era um
mingau. Citado por Pierre Verger (1987: 523), Debret descreve duas novidades chegadas ao
Rio de Janeiro em 1822 pelas mãos das africanas que abandonavam Salvador por causa dos
conflitos da independência. Era o “atacaçá”, creme de arroz frio açucarado enrolado em
folha de bananeira
80
e o “bolinho de cangica”, massa açucarada de farinha de milho e leite
em folha de mamoeiro. Estas parecem ser variantes do acaçá da Bahia.
O acaçá tradicional é sem açúcar, e geralmente acompanha pratos salgados, como
foi descrito nas receitas de Manuel Querino (1938) para o início do século XX, mas
também pode ser feito com leite de coco acrescentando-se açúcar, ou pode ser adoçado
posteriormente com mel, como se verifica em seu consumo atual pelas comunidades
religiosas afro-brasileiras. Dentre as oferendas, o acaçá se destaca, até hoje, como
acompanhamento. Geralmente, pode acompanhar a oferenda de pratos muito específicos de
cada divindade, circulando entre a maioria delas. Sua flexibilidade o fazia também popular
nas ruas em vários horários. Seu sumiço é surpreendente, devido a todas as funções
alimentares que cumpria, conforme o gosto de outrora, que Hildegardes Vianna (1979: 122)
relembra:
O acaçá era merenda de menino dengoso ou enfermiço, complemento
alimentar de gente grande anêmica ou de crianças perebentas pelo acúmulo
de sangue novo, espécie de refrigerante para cidadãos encalorados, remédio
obrigatório para as mães que precisavam de amamentar os seus filhos,
77
O Matadouro Público que funcionava no Barbalho foi transferido para o Retiro em 1876 (Vasconcelos
2002: 213; 252).
78
também variações: acaçá de milho vermelho e de arroz, como nos informa Hildegardes Vianna (1979:
125).
79
Segundo Hildegardes Vianna (1979: 124): “Para o acaçá ficar lustroso, vidrado, sem bolotas, trêmulo e
consistente, elástico nos movimentos, nada friável, era preciso cozer com bastante água (...). Para o acaçá
ficar uma finura, requeria uma hora de mexe-mexe, muito suor, braços ardendo, algumas queimaduras de
praxe no pula-pula da fervura”.
80
Conferir na imagem Pavimentadores, Vendedora de Atacaçá, de Debret, os longos cones em folha dessa
iguaria.
110
acompanhamento indispensável para certas comidas de azeite. Quem comeu
caruru ou efó com acaçá dificilmente se terá esquecido da delícia do gosto.
Caruru, efó, vatapá, xinxim, feijão de azeite, todas as comidas pediam acaçá.
O acaçá servia para tudo. Podia ser comido puro, semiprotegido pelas folhas
que o envolviam, às colheradas molhadas no açúcar. Batido com açúcar e
dissolvido em água ou leite, quente ou frio, transformava-se em bebida das
melhores. Acaçá, o eterno acaçá das merendas de 10 e 15 horas, tinha o seu
prestígio firmado e gozava de preferências gerais.
Essa popularidade, na primeira metade do século XX, tinha origem nos costumes
das ganhadeiras. Muitas comidas deixaram as ruas e o cotidiano, porém se transformaram
em pratos típicos, ainda preparados nas casas e restaurantes em diversas ocasiões. A própria
função da fateira e dos homens que carregavam carnes em seus “caçoás, conforme me foi
relatado por um ogã, foi substituída pelos serviços do açougue. Porém, o acaçá
simplesmente se recolheu à liturgia do candomblé. Talvez pudéssemos atribuir sua
substituição como acompanhamento ao arroz, mas ambos guardam muitas diferenças, com
o acaçá abrangendo o papel de merenda, remédio e refrigerante. No entanto, o acaçá é
alimento importante como contraponto à comida feita com azeite de dendê, que conseguiu
permanecer nas ruas e no cotidiano. Feito à base de milho, um produto nativo do Brasil, ele
segue as mesmas definições sobre origem que Câmara Cascudo reservou para a comida de
dendê em sua obra, como veremos adiante.
O mingau, nome das papas quidas e doces na culinária brasileira, não teve a
mesma sorte do acaçá e continuou nas ruas até hoje, pelo menos na conservadora Salvador.
A mulher do mingau, que vendia seu produto de porta em porta pela madrugada foi
substituída por homens que empurram, também em outras horas do dia, carrinhos
metalizados sobre rodízios, onde se inscreve mingau”, apesar dessa categoria feminina
estar incluída na associação de baianas do acarajé. Encontrei o mingau num ponto fixo na
rua, vendido em copos por mulheres, sobre uma mesa, no dia de Iemanjá, no Rio Vermelho,
onde as pessoas que não queriam enfrentar uma enorme fila ou a multidão foram obrigadas
a chegar pela manhã bem cedo.
A mulher do mingau não deveria causar tanta nostalgia, pois o feliz acréscimo
técnico do carrinho terminou com o problema do carregamento de latões de metal sobre a
cabeça, do qual o uso prolongado parece que fazia cegar essas mulheres, segundo
111
Hildegardes Vianna
81
. No entanto, o próprio trabalho de carregar as latas pesadas e quentes
na cabeça era sofrimento bastante para que seja um alívio vê-lo eliminado. Nem sempre
havia sido assim, se atentarmos para algumas vendedoras de alimentos líquidos em nossa
iconografia, que carregavam potes viáveis ou pequenos recipientes em grande quantidade.
Eram, provavelmente, libertas, diferenciando-se dos cativos de ambos os sexos que
carregavam água para as casas em pesados porrões ou dos africanos domésticos que eram
obrigados a jogar o esgoto no mar. O emprego do latão parece ter sido um retrocesso a este
tipo de serviço penoso.
Entretanto o sofrimento também foi motivo para glamour. A descrição da elegância
das vendedoras da rua às vezes é atribuída à sua postura, uma conseqüência direta do fato
de carregarem tudo à cabeça. Pierre Verger sempre foi fascinado por este tema e ainda
retratou o costume em sua obra fotográfica, fixando em imagem as ruas de Salvador na
década de 40, após a Segunda Guerra. Não só as mulheres como também os homens, nessa
década, ainda transportavam cargas pesadas ou em grande montante dessa maneira.
Elementos os mais disparatados sobre a cabeça das pessoas foram fotografados por Verger.
O fotógrafo, enquanto autor (Verger 1992: 105), explica o motivo da insistência
nessa imagem. Seria essa uma postura herdada das mercadoras nagôs:
O que determina esse porte altivo das mulheres negras da Bahia é o hábito
que ela tem de transportar na cabeça os mais diversos fardos que vão desde
as trouxas de roupa para lavar até aos cestos repletos de mercadorias,
passando pelos tabuleiros, bandejas enfeitadas com rendas sobre as quais
elas dispõem para a venda, nas esquinas das ruas, produtos alimentares e
guloseimas. Andam assim, o busto erguido, os ombros e a nuca suportando
sua carga, conservando sempre uma linha horizontal e estável (...).
Ainda segundo Verger, essa elegância vinha dos modos urbanos das mulheres nagôs
adquiridos na África, no território estrito da iorubalândia (1992: 107). Temos nessa mesma
citação a própria definição do tabuleiro, uma espécie de gamela aperfeiçoada que pode ser
colocada num ponto fixo e depois levada de volta para a casa sobre a cabeça. O tabuleiro
remete às práticas luso-angolanas e terminou substituindo as gamelas com as quais
convivia.
81
Jorge Amado enlouquece sua personagem Luísa, tia de Antônio Balduíno, pelo fato de tanto carregar
mingau quente na cabeça, em sua obra Jubiabá, como nos destaca Paloma Jorge Amado Costa (2003: 263).
112
Mais uma vez, a ambulância está relacionada com o porte e a altivez dessa mulher
das ruas, por oposição aos modos contidos daquela outrora considerada sua senhora e sua
superior. Outros olhares masculinos nos traziam ainda um tipo de filtro erótico. No entanto,
a cabeça erguida, em conjunto com o balanço dos quadris, é também uma tradução da
resistência e da flexibilidade necessária para empreendê-la, aspecto que ficou velado para o
olhar androcêntrico e etnocêntrico dos viajantes do passado, mas que Verger talvez tenha
começado a enxergar.
No caso específico do mingau, carregar algo literalmente quente em comparação
ao acarajé, que é simbolicamente quente - sobre a cabeça contraria algumas recomendações
rituais do candomblé. Essas recomendações têm relação com os atributos que cada cabeça
carregaria individualmente, criando proibições restritivas, o que dava sentido a cada
atividade da ganhadeira. “Cabeça quente”, na mitologia nagô, envolve significados que
demonstram uma situação que deve ser controlada, reservada para momentos especiais de
dramatização dos mitos e para pessoas apropriadas e afinadas com os atributos do calor.
Relatos sobre cegueira ou histórias de enlouquecimento vêm reforçar esse discurso.
Os antigos mingaus ainda hoje apreciados em Salvador são, geralmente, feitos de
milho, como o acaçá, ou de produtos extraídos da mandioca, configurando também
alimentos preparados com espécies nativas. Para cozinhá-los é usado geralmente o leite de
coco, o que denuncia sua antiguidade, pois o leite de vaca e seus derivados, desde tempos
coloniais, não tiveram produção nem acesso facilitados por um longo período, interferindo,
através de sua ausência, na conformação da cozinha afro-brasileira. São de milho o
mugunzá (milho branco em grão cozido) e a canjica (milho verde em creme, também
conhecido como curau no Sudeste). Pertencem aos derivados da mandioca o mingau de
carimã (preparado com a massa da mandioca previamente amolecida em água), ou o de
tapioca (goma extraída da mandioca no processo de prensa que produzia farinha). As
denominações demonstram um modo de preparo que foi contribuição indígena, sendo
mingaú, carimã e tapioca nomes tupis, com exceção do mugunzá e da canjica, nomes de
origem quimbundo. Estes mingaus baianos formam modelos que precederam variações,
adaptações regionais e incrementos como ovos e leite de vaca. Como são uma categoria
açucarada, terminam por associar o ingrediente, seu processamento e seu modo de fazer,
elementos baseados no saber indígena, à doçaria da tradição portuguesa (empregando o
113
leite de coco como substituto do leite). De sua venda, o mais tipicamente africano foi
mesmo a postura de suas mercadoras.
Hildegardes Vianna (1979: 119-21) também identifica uma mulher do cuscuz,
vendendo pela manhã, como a mulher do mingau, e utilizando alguns dos mesmos
elementos básicos do mingau. Na tradição de Salvador, segundo a autora, era prato que
podia ser feito de milho, arroz, carimã, tapioca ou inhame. O procedimento de cozinhar a
farinha obtida no vapor define esta iguaria, além de uma certa mescla entre sal e doce.
Novamente, o leite de coco e seu bagaço entravam no preparo do cuscuz da vendedeira
soteropolitana. A origem do cuscuz é mourisca, alcançando outras regiões da África do
Norte. Sua base era, inicialmente, sêmola de trigo, arroz ou sorgo, sem leite de coco
(Cascudo 2004: 187). Ele faz parte do repertório muçulmano que adentrou Portugal antes
das navegações e que compreendia novos estilos de tessitura, vestuário e grande parte de
sua doçaria. No Brasil, re-entrelaçam-se elementos culturais muçulmanos via Portugal com
os que são trazidos por africanos em contato com o Islã. O cuscuz baiano reside nesse
encontro, adaptando-se a ingredientes nativos e outros replantados e elegidos como
indispensáveis pelo gosto local que se consolidava. Assim, essa iguaria se tornou prato
matinal e merenda em Salvador, podendo ser incorporada à atividade do mingau. Porém,
Manuel Querino sequer o inclui entre suas receitas, sejam as consideradas africanas ou as
baianas.
Com o desaparecimento das ambulantes ainda testemunhadas por Hildegardes
Vianna, estes produtos e comidas prontas tomaram um percurso que os afastou da venda
nas ruas. No entanto, a variedade dos alimentos oferecidos na ambulância foi sintetizada no
tabuleiro da baiana do acarajé. O acarajé, originalmente produto notívago (Hildegardes
Vianna 1979: 76), resistiu na preferência dos passantes, passou a ser preparado na própria
rua, fixou-se em pontos tradicionais e reuniu os alimentos remanescentes, que ainda eram
procurados, em seu tabuleiro. Assim, passou a constelar alguns produtos que deixaram de
povoar as gamelas sobre as cabeças protegidas com turbantes e rodilhas. O tabuleiro não é
do acarajé, mas também pode ser do abará, das cocadas, de outros doces e bolinhos, do
peixe frito ou da passarinha, acompanhados do “refri, apelido dado às bebidas
carbonatadas de produção industrial.
114
Ao invés de apregoarem de porta em porta, as baianas modificaram a configuração
da venda, sendo agora procuradas em seus pontos, muitas vezes concorridos e apinhados de
clientes. Ao invés de uma jornada a pé pelas residências, vendedoras agora se sentam,
enquanto os clientes costumam comer em pé, numa inversão de posições. Isso aconteceu
porque africanas e suas descendentes conseguiram criar, em Salvador, uma cultura culinária
e com ela exigências sobre ingredientes e preparo. O gosto se tornou tão especializado que
os consumidores, ao saborearem o alimento, podem identificar se todas as exigências
culinárias, formadas historicamente, foram cumpridas para que se resultasse determinado
sabor.
Esse tipo de empreendimento, levado a cabo pelas baianas afro-descendentes, não
poderia ser considerado algo menor do ponto de vista das relações sociais. Por isso mesmo,
o costume do acarajé extravasou para outras regiões como comida tradicional nas altas
temporadas litorâneas, em feiras, picas ou não, e em restaurantes de comida regional. Ao
invés de serviçal, a baiana do tabuleiro conseguiu se fazer perceber como senhora de
saberes e de sofisticações apreciados em diversos segmentos sociais, regionais e
internacionais. Considerar o acarajé como “outro alimento qualquer”, um famoso
argumento das baianas convertidas à crença “evangélica,
seria escamotear a memória de
um processo inseparável do próprio percurso histórico e social das mulheres afro-
descendentes.
Geralmente, esse argumento as incomoda, pela tênue consciência articulada que
uma boa parte delas possui sobre o valor e prestígio adquiridos através da consolidação do
hábito de oferta e procura de acarajé, justo por este ser particularmente o acarajé, resultado
de uma longa história, signo de ascensão social que conseguiu preservar a diferença e a
identidade face a ambientes de uniformização controladora a serviço de saberes e poderes
dominantes. Dessa consciência resulta a contra-argumentação que se resume à frase à qual
constantemente se remetem as baianas: Não se deve “desfazer do acarajé”.
115
Dieta africana do tabuleiro
Os tipos de vendedoras nos dão uma idéia de como se desenvolviam as atividades
das ambulantes nas ruas durante o período colonial até o início do século XX. Também nos
revelam uma dieta. Segundo Vivaldo da Costa Lima (1999: 320-1), a cozinha africana “vem
se fixando na dieta do povo desde o século XVIII”, o que ele respalda com a citação do
relato da carta do professor de grego Luiz dos Santos Vilhena - também citada por Cascudo
(2004) - que viveu na Bahia deste mesmo século.
O professor descreve alguns dos pratos que hoje ainda são vendidos no tabuleiro, e
outros que tomaram outros percursos de comercialização:
Não deixa de ser digno de reparo ver que das casas mais opulentas desta
cidade, onde andam os contratos e negociações de maior porte, saem oito,
dez e mais negros a vender pelas ruas, a pregão, as coisas mais
insignificantes e vis; como sejam, mocotós, isto é, mãos de vaca, carurus,
vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, isto é, papas de milho, acassás,
acarajés, abarás, arroz de coco, feijão de coco, angus, pão-de-ló de arroz, o
mesmo de milho, roletes de cana, queimados, isto é, rebuçados, a 8 por um
vintém e doces de infinitas qualidades, ótimos, muito deles pelo seu asseio,
para tomar por vomitórios; e o que mais escandaliza é uma água suja feita
com mel a que chamam aloá que faz vezes de limonada para os negros.
Em primeiro lugar, a descrição torna perceptível como a venda desse tipo de gênero
alimentício é inicialmente financiada pelas “casas mais opulentas. A comida popular
tem intimidade com a cozinha senhorial, embora não necessariamente com o consumo das
famílias abastadas, que permaneciam fiéis aos produtos importados portugueses, acessíveis
aos que tinham maior renda. Essa intimidade com a cozinha das casas opulentas explica
como, posteriormente, alguns pratos vão se transformar em cozinha típica de classes
socialmente privilegiadas. Por exemplo, o vatapá, que na primeira metade do século XX
era apresentado como uma iguaria refinada e emblemática da cozinha nacional num
banquete em Paris (Querino 1938).
Inicialmente financiadas pelos senhores mais ricos da Colônia, as comidas vendidas
nas ruas para populares produziam renda através do ganho. Com o tempo, a venda vai se
tornando autônoma, atividade de libertas. O espaço da cozinha pôde se instalar ao ar livre –
como nos exemplos cariocas retratados por Debret do início do século XIX ou outros
116
arranjos possibilitados pelo contexto de falta de recursos. Mesmo a cozinha senhorial
possuía poucos recursos técnicos, mas isso não a tornava ineficiente.
Sabemos, pelo testemunho de Hildegardes Vianna, que até a primeira metade do
século XX, os fogões a gás ainda eram raros. Do mesmo modo, processar os grãos ainda
era uma tarefa trabalhosa, e os instrumentos utilizados eram a pedra de ralar
82
da qual
Hildegardes Vianna sente falta pelo sabor inigualável que proporcionaria ao alimento - ou o
pilão. Do mesmo modo, numa cozinha senhorial bem sortida, além desses instrumentos,
havia um fogão a lenha, que era complementado por utensílios de barro, talheres de
madeira e raras panelas ou tachos em metal.
Os terreiros preservam essa memória de cozinha colonial bem sortida, continuando
a colocar em uso alguidares em cerâmica como travessas, quartinhas de barro para líquidos,
panelas de barro no caso de um preparo especial, colheres de madeira, gamelas, tacho de
cobre, esse último reservado especialmente para o acarajé. Fogão a lenha - com paredes de
tijolo e chapa metálica - é um artigo tradicional em terreiros bem consolidados. Os pilões
não são mais utilizados cotidianamente, mas enquanto artigos que representam algumas
divindades, assim como panelas de barro, sopeiras e outros inúmeros recipientes e
instrumentos que se originariam numa cozinha, reforçando a concepção desse tipo de culto
como uma construção de ganhadeiras em íntima relação com o espaço da cozinha.
Recentemente - em termos de três séculos de candomblé soteropolitano - criou-se
uma aura em torno da famosa pedra de ralar. Mães de santo de casas menos tradicionais
fora de Salvador, em busca de legitimidade, declaram que ela ainda está em voga, como se
fosse possível imaginá-la sendo usada em terreiros de São Paulo. A meu ver, o tempo
requerido por uma pedra de ralar não consegue ser encaixado em exigências
contemporâneas dos adeptos, mesmo que estes residam nas roças de candomblé. Vivaldo da
Costa Lima (1997: 67) afirma, no entanto, que nunca se utilizam moinhos manuais ou
elétricos no preparo das comidas rituais. Porém, as próprias ganhadeiras possuíam uma
tradição formada por readaptações para facilitar a vida na venda das ruas, que era
indissociável de sua ambiência ritual.
Apesar das exigências dessa técnica, que maltratava mãos e braços, podendo
lesionar por esforço repetitivo, a pedra de ralar parece ter sido o instrumento escolhido,
82
Instrumento típico em que se moem os grãos através de uma pedra rolada.
117
nesses discursos dos candomblés, para ser defendido como ideal de manutenção - e não
outras antiguidades que hoje foram substituídas por adaptações como fogões a gás, panelas
de alumínio, e inúmeras outras comodidades, prontamente aceitas. O porquê disso deve
residir no fato de que a pedra de ralar entra na feitura do tradicional acarajé que, como
veremos, alcançou o patamar de patrimônio imaterial, um produto a ser preservado por
excelência. Por isso, constante referência à questão do sabor do alimento ralado na
pedra, mesmo se isto possa vir a implicar o sofrimento da exploração da força de trabalho
de outras mãos, geralmente femininas, seguindo-se a tradição.
Quando as ganhadeiras libertas começaram a dominar o mercado, a comida
preparada na rua emergiu com mais força, pois inicialmente, era muito improvável que
tivessem acesso à cozinha colonial bem sortida, morando em lojas no subsolo, em locais
exíguos ou longínquos. Mesmo assim, a tradição mais forte parece ter sido a das comidas
preparadas em casa e depois circuladas de porta em porta ou nos mercados, chamados de
quitandas. Conheciam-se pequenos fogareiros como a trempe, ou fogões de “tacuru(um
nome indígena), improvisados sobre pedras. bem mais tarde virão fogareiros (e fogões)
a carvão feitos de metal. Uma das adeptas do candomblé, com quem convivi, Mãe
Nicinha
83
, lembra que o carvão, em sua infância, ainda podia ser produzido nos terrenos
adjacentes da roça, sendo usado para alimentar o fogo a domicílio e o excedente vendido. O
carvão seria feito em fornos na terra com barro por cima e uma cruz, a madeira “ficando ali
dias. Com o carvão e dendê como combustíveis acessíveis, as ganhadeiras devem ter
começado a cozinhar autonomamente em fogos improvisados, pequenos e simples
84
. Por
isso, em Debret, as encontramos sentadas no chão, até mesmo sem esteira ou pano que
fizesse sua vez, remexendo uma única panela sobre o fogo na rua
85
. Esse ato foi precursor
da fritura do acarajé nos pontos.
No entanto, no início, eram vendidos produtos prontos, vindos da cozinha
senhorial, que não se envergonhava de lucrar ofertando alimentos ao gosto popular. A
descrição de Vilhena menciona produtos hoje ainda muito apreciados, a maioria ao gosto
típico do soteropolitano. A formação desse gosto levanta indagações, nem sempre
83
Elenice Oliveira da Conceição, do Terreiro Olufanjá, na Travessa Tancredo Neves.
84
Fogareiros improvisados, instrumento que fundamenta a atividade, são uma das principais causas de
acidente de trabalho das baianas do tabuleiro.
85
Junto com a “taboleta, viriam banquinhos baixos, por vezes ornamentados, enquanto o solo continuava
sendo uma opção de assento.
118
solucionáveis, sobre a origem dos pratos, pois, segundo esse registro, a maioria das iguarias
que já foram tão populares são também oferendas nos cultos nas de candomblé.
Câmara Cascudo se pergunta se as oferendas que participam dos cultos afro-
brasileiros no período de seu processo de consolidação e que também estão na rua no
século XVIII, como testemunha Vilhena no início do século XIX, teriam alcançado o papel
de iguarias ofertadas às divindades por sua popularidade ou se, inversamente, se tornaram
populares por se configurarem como oferendas. A falta de registros sobre o cardápio dos
orixás no fim do século XVIII e o testemunho de Vilhena para o período levam mara
Cascudo a concluir pela relevância das “popularíssimascomidas vendidas publicamente,
sendo que algumas delas são reconhecidas como oferendas para os orixás até hoje. Assim,
os africanos e seus descendentes saboreavam seus quitutes primariamente nas casas pobres,
fora do santuário
86
. Segundo Câmara Cascudo (2004: 837):
Não esperariam os baianos que o candomblé revelasse as delícias do vatapá.
No mínimo, à existência no recinto nagô corresponderia a popularidade
exterior do quitute, desde que o negro possui na Bahia os elementos capazes
de sua elaboração, começando pela improvisação com os possíveis
sucedâneos locais que terminaram definitivos na preferência.
Essa afirmação de Câmara Cascudo é reforçada por sua visão da cozinha afro-
baiana como uma criação particularmente local e bastante adaptada, reconhecida como
brasileira pelos descendentes dos povos para transferidos que permaneceram no
continente africano. Aliás, para o autor, a atual culinária africana de países que entraram em
contato com o domínio português a partir do século XVI é um produto desse mesmo
contato, acrescentado de ingredientes das Américas, triangulados pelos navegantes em sua
faina mercantilista.
As pesquisas sobre a data de origem dos candomblés que hoje se auto-reconhecem
como originários de Ketu e que podem ser entendidos como pertencentes ao complexo
nagô, do qual falamos, apontam para finais do século XVIII e início do século XIX
(Vivaldo da Costa Lima 2003). Práticas semelhantes aos cultos dos terreiros, chamadas
“calundus, são mencionadas desde o século XVI, reforçando o sentido de que as
cerimônias de candomblé afro-brasileiras e os locais a elas destinados, arduamente
86
Versão interessante, pois os primeiros cultos africanos em Salvador teriam sido realizados em casas.
119
conquistados e permanentemente perseguidos, não se instauraram do nada, mas sobre uma
base congo-angolana adaptada ao espírito do Brasil Colônia. Assim, o registro das comidas
populares e da fundação dos terreiros nagôs têm datas coincidentes, o que demonstra, até
agora, um emergir concomitante. Tudo se torna bem mais complexo se enxergamos a
situação dentro de um processo que vem atuando desde o encontro cultural entre Portugal e
os grupos étnicos do Congo e de Angola, que teria sido a base comum desse emergir.
Segundo o testemunho de Vilhena, constatamos que ainda fazem parte, hoje em dia,
do tabuleiro e, ao mesmo tempo, das oferendas, o acarajé e o abará, que são comidas
preparadas com azeite-de-dendê. Para Câmara Cascudo (2004: 834), o modo de preparar e
o uso do azeite-de-dendê definem a cozinha africana recriada no Brasil com elementos
locais e conhecida como brasileira em países da África Ocidental de onde se originaram os
povos aqui instalados. Assim, elementos portugueses e indígenas são “tornados africanos
pelo batismo do dendê” (Cascudo 2004: 828). O caruru, na lista de Vilhena, alimento
recente do tabuleiro também temperado pelo dendê, é um caso a parte, como veremos. Os
doces típicos se juntam ao complexo particular formado pelo prato de caruru que, após
algumas flutuações, passou a denominar uma refeição comunal preceitualmente seguida por
grande parte dos soteropolitanos no mês de setembro, sem que deixasse de estar associada
ao tabuleiro da baiana. Vejamos as concepções da procedência desses alimentos e sua
provável trajetória até o tabuleiro.
Os cultos afro-brasileiros, de um modo geral, reafirmam a origem africana para
pratos de dendê que também configuram oferendas votivas, como nas colocações de
Vivaldo da Costa Lima (1997: 64) em relação ao nosso quitute específico e emblemático:
O acarajé veio com os escravos nagôs das regiões iorubas da Nigéria e do
atual Benin. Foi aliás no Benin, então Daomé, que o padre Pierre Bouche
encontrou o acarajé e o descreveu com precisão, chamando-o de “un hors
d’oeuvre, presque une friandise” (A Costa dos Escravos e o Daomé, 1885).
Essa forma de pensar sempre em referência a origens africanas remete o quitute à
iguaria semelhante que na África Ocidental se conhece pelo nome de akara, enquanto prato
originário do acarajé. Vivaldo da Costa Lima prossegue, em seu texto, analisando o “acará
em termos da culinária iorubana, mas termina revelando que esta inclui uma variante em
que o acará é frito no óleo de amendoim, lembrando que o amendoim saiu do Brasil para a
120
África. Desta forma, ameniza a via de mão única, África em direção ao Brasil, utilizada
pelo discurso tradicional do candomblé.
Alberto da Costa e Silva (2004: 59) também percebe a comida de dendê como
originariamente africana e empobrecida de seus temperos em território brasileiro:
É certo que, na travessia do oceano, muitas coisas se perderam ou
empobreceram. Pouco ficou, na nossa música, da polirritmia da áfrica
ocidental, e, na Nigéria, a terrina do vatapá está sempre rodeada por dez ou
doze cumbucas com diferentes acompanhamentos e temperos. Mas há
candomblés baianos onde os tambores continuam a falar como no Iorubo, e
nas nossas cozinhas fazem-se o efó como em Lagos e o acarajé como em
Ilexá.
Câmara Cascudo tem uma visão bastante diversa. Em primeiro lugar, atribui a
riqueza de condimentos das cozinhas coloniais a uma origem portuguesa, inclusive para a
comida africana. O autor, que está buscando pensar em termos de história da alimentação,
também concebe o processo a partir da direção inversa, à qual Costa Lima faz alusão, no
caso do amendoim. Assim, ele entende a formação da culinária das ganhadeiras - e
portanto, como vimos, dos terreiros a partir do intercâmbio entre a costa africana e
Portugal, que vinha acontecendo desde o século XV, logo depois englobando a costa
brasileira, que faz contato com o outro lado do oceano intermediada pela então metrópole
portuguesa.
Assim, os costumes africanos, aqui primeiramente re-adaptados, teriam trazido
um certo sabor português, pois havia a forte predominância de uma cultura luso-angolana
que vinha se sedimentando, anterior à incorporação de nosso território às possessões
portuguesas. Foi a partir desta vertente cultural que se compôs a base de um tipo de
alimentação barata e transportável, a qual passou a acompanhar os cativos durante sua
jornada até a recente colônia do outro lado do Atlântico. Por sua vez, espécies brasileiras,
como a mandioca e o milho, enviadas para a África a partir da segunda metade do século
XVI, vieram a integrar o regime dos cativos desde sua mobilização no próprio continente
africano (Cascudo 2004: 92; 199-202; 834).
Câmara Cascudo alude às plantações nas possessões portuguesas de Angola,
destinadas aos capturados. Usualmente, os cativos, antes de embarcarem, acabavam sendo
forçados a se acostumar com as farinhas de mandioca ou de milho, umedecidas em água,
como principal refeição. Nesse prato pouco nutritivo, cuja função era manter sobreviventes
121
pessoas consideradas peças, temos uma espécie americana, preparada ao gosto africano das
papas, o mais simplificado possível, a partir da visão mercantilista portuguesa. O Brasil
também passou a exportar víveres – os surrões de farinha - para esse tipo de dieta.
Câmara Cascudo (2004: 92) declara que houve imposição da farinha de mandioca
pelos portugueses em suas possessões, a partir da ampliação das roças de mandioca do
Brasil, e da melhora de seu beneficiamento com máquinas de ferro nas casas de farinha,
tornando a farinha de mandioca indispensável e “exportando-a para as colônias africanas,
impondo, habituando, viciando o negro da orla atlântica do continente negro com a
revelação da mandioca, farinha, beiju, mingau, pirão”. Essa dieta imposta era a mesma à
qual o cativo teria acesso em seu trabalho forçado nas terras brasileiras, aqui, porém,
melhorada com feijões, frutas, carne-seca e toucinho. Como essa dieta envolvia espécies
fáceis que podiam proporcionar elementos para o preparo das papas, tão agradáveis e
habituais ao paladar africano, no final do século XVIII, “mandioca e milho estariam
divulgados na África e participariam, na orla do Atlântico, da refeição negra, escrava ou
livre” (Cascudo: 2004: 200). No Brasil, a esta base que foi primeiramente imposta, somente
após decorrida uma gradual adaptação, puderam se acrescentar acordes mais específicos de
grupos étnicos nas comidas. Esse aspecto, captado por Câmara Cascudo, foi pouco
enfatizado pelos discursos tradicionais de procedência da culinária sagrada e popular de
Salvador.
A comida de dendê seria um dos acordes acrescentados à alimentação
primeiramente imposta aos escravizados, sendo este óleo uma preferência africana, que
depois formou uma demanda por parte dos cativos e primeiros forros do litoral do
Nordeste, principalmente de Salvador. A procura do óleo fez com que a palma fosse
replantada no Brasil. O crescimento de sua demanda também fez com que o óleo viesse de
Angola e do Daomé para atender ao grande mercado consumidor tornado popular.
Segundo Câmara Cascudo (2004: 535), o dendê utilizado especificamente como
óleo alimentar na África aparece mencionado apenas em relato sobre os hábitos do Congo
do final século XVI. Ainda segundo o autor, a nossa palmeira de dendê veio de Angola e a
palavra “dendê” é um vocábulo quimbundo e umbundo. Seu consumo teria se estabilizado
no século XVIII e o produto teria escoado mais intensamente, além de Salvador, para as
cidades de Recife e do Rio de Janeiro. Seu uso entre os africanos no Brasil era paralelo ao
122
uso do azeite de oliva pelos portugueses, que era um produto importado e caro, nem sempre
disponível. A alternativa popular ao dendê seria a banha, de origem animal.
Assim, o dendê, elemento básico nas origens da culinária baiana, pode ser
considerado como um elemento mais propriamente africano, porém muito próximo da base
luso-congo-angolana, se concordamos com a concepção de mara Cascudo. O autor vai
mais longe quando na fritura um modo de preparar tipicamente português. Em terras
africanas, o papel primário do dendê seria o de tempero. Então, seu uso na cozinha baiana
da rua guardaria um aspecto português no preparo das frituras de peixe e do próprio acarajé.
Segundo essa visão, o abará passaria à frente do acarajé, como alimento africano
genuíno, por ser um bolo cozido em vapor, visto que, antes de os portugueses entrarem em
contato, os africanos apenas assavam, tostavam e cozinhavam, além de fazerem das féculas
papas suculentas e constantes (Cascudo 2004: 167-8). O vatapá também concorreria, por
sua consistência pastosa, ao alimento mais genuíno, contrariamente às proposições de
Querino. Porém, seus ingredientes levantam dúvidas e complexidade. É o caso do leite de
coco. O fruto teria vindo de Cabo Verde para o Brasil, mas seu leite não seria usado na
culinária da costa ocidental africana durante o século XVI - somente na oriental, via oceano
Índico (Cascudo 2004: 182). Fica difícil detectar se sua utilização seria uma contribuição
mais estritamente africana.
Portanto, segundo os termos da história de Câmara Cascudo, se o modo de preparo
de uma iguaria é tido como tipicamente africano, os ingredientes nem sempre o são, o
mesmo ocorrendo de modo inverso, levando a análise de uma maior fidelidade africana às
raias do preciosismo. Porém, para os cultos afro-brasileiros, a oferenda de fritura do acarajé
continua sendo considerada genuinamente africana e proveniente das regiões iorubanas,
assim como a maior parte das oferendas ainda empregadas no candomblé.
Raul Lody (1992) discorre sobre a ampla utilização do dendê no candomblé. Não
o óleo extraído é utilizado nas comidas, como as próprias palmas e os feixes de taliscas da
palmeira, além dos frutos in natura, desempenham um papel na elaboração de ferramentas
de orixás, peças oraculares e elementos estéticos nas vestimentas. Outrora, o próprio vinho
de palma e certos ungüentos também fariam parte do uso ordinário do dendê, tendo sido
substituídos por bebidas e cosméticos similares. Todo um complexo mitológico gira em
torno do dendê, que faz a vez de elemento definidor de oposições simbólicas entre os orixás
123
através das modalidades do quente e do frio. Lody (1998: 157) aborda esse tipo de oposição
num quadro que se divide entre as qualidades “com dendê e sem dendê; quente e frio;
colorido e branco; com tempero e sem tempero”, confrontando, por fim, os orixás
masculinos Xangô e Oxalá, aos quais pertenceriam estes atributos nessa mesma ordem.
Apesar da ênfase tica no dene, deste modo, em sua origem africana, por parte
das comunidades dos terreiros, a comida de azeite-de-dendê não é, como ficou
demonstrado, necessariamente, uma reprodução literal da culinária dos países que
forneciam cativos na época, ao contrário do que seria uma concepção africanista de
permanência. Não os modos de preparo, mas também as espécies nativas se
entrecruzaram, embora isso nem sempre seja admitido pela memória de alguns povos no
continente africano, para a qual certos alimentos, como o milho, pareceriam autóctones,
como explica Câmara Cascudo (2004: 166). Por exemplo, a atual cozinha da Nigéria priva
de ingredientes que foram trazidos do Brasil, como a mandioca e o amendoim americano.
Nem sempre existe uma consciência para esse tipo de processo, seja por parte das
comunidades tradicionais ou por parte dos atuais adeptos paulistas da reafricanização do
candomblé.
Dessa culinária regada a dendê, o acarajé, o abará, o vatapá e o caruru atravessaram
mais de um século como costume arraigado de comida vendida pelas ruas, a princípio
através de pregão. Temos a notícia de Vilhena, sintetizando as guloseimas que se
estabeleceram no século XVIII. O registro da receita dessas comidas virá um pouco mais
tarde.
Manuel Querino (1938: 181), quase que contemporaneamente à estadia de Câmara
Cascudo em Salvador durante sua juventude, legou-nos uma receita de acarajé publicada
em 1928, cuja memória original é de 1916, segundo Vivaldo da Costa Lima. Querino
apresentou esta receita classificada entre os alimentos que ele considerava puramente
africanos, dentre os quais ele incluiu o abará, enquanto sua receita de vatapá de galinha
figura em seu sistema alimentar baiano. Tal receita de acarajé continua sendo seguida sem
grandes alterações para quase um século transcorrido, apresentando invariavelmente dois
dos principais ingredientes das iguarias emblemáticas do tabuleiro, o feijão-fradinho e o
dendê:
124
A principal substância empregada é o feijão fradinho, depositado em água
fria até que facilite a retirada do envoltório exterior, sendo o fructo ralado na
pedra.
Isto posto, revolve-se a massa com uma colher de madeira, e, quando a
massa toma a forma de pasta, adicionam-se-lhe, como temperos, a cebola e o
sal ralados.
Depois de bem aquecida uma frigideira de barro, ahi se derrama certa
quantidade de azeite de cheiro (azeite de dendê), e, com a colher de madeira
vão-se deitando pequenos nacos da massa, e com um ponteiro ou garfo são
rolados na frigideira até cozer a massa. O azeite é renovado todas as vezes
que é absorvido pela massa a qual toma exteriormente a cor do azeite. Ao
acaragé acompanha um môlho, preparado com pimenta malagueta, secca,
cebola e camarões, moído tudo isso na pedra e frigido em azeite de cheiro,
em outro vaso de barro.
O feijão, para Câmara Cascudo (2004: 827), seria um ingrediente brasileiro: “O
material manuseado na Bahia é essencialmente brasileiro, feijão, milho, mandioca,
cimentos do edifício culinário”. Para o autor (2004: 434), o próprio local de origem dos
feijões que hoje circulam no mundo seria nebuloso. Assim, a procedência asiática da
espécie é matéria controvertida, enquanto a cultura de feijões na África é bem antiga. Ainda
segundo sua visão, Portugal conheceria a denominação “feijão” desde o século XIII, antes
das navegações, mas o se sabe qual espécie designaria, sendo a fava um produto pré-
estabelecido e mais tipicamente europeu. Ainda haveria referências de feijões de origem
sul-americana.
O nome científico usado pelo autor para designar o feijão, inclusive o fradinho,
vigna sinensis, abrange diversas denominações, como o feijão de corda, o feijão-da-praia, o
feijão de macassar, o feijão-de-olho preto, o feijão-miúdo-da-china e o feijãozinho-da-
Índia. O nome científico vigna unguiculata, mencionando um formato de unha, também
abrange todas essas denominações.
As baianas costumam distinguir entre pelo menos duas delas, sendo a principal
distinção feita entre o fradinho e o macassar, que seria de menor qualidade. Cira, a famosa
vendedora de Itapoã, explica que o “macassoé um feijão vermelho mais barato e mais
“graudinhoque “presta para fazer acarajé”, porém trabalho para lavar e, às vezes, fica
roxo. Ainda assim, segundo Cira, o “macasso”, às vezes, um feijão bom, seria preciso
ver se não foi tirado verde, se está bem “sequinho. Seria quase o mesmo feijão que se
125
chama “corujinha”. Dona Lindinalva, baiana do acarajé de Pituba, classifica o “macasso
como um fradinho mulato e mais barato. o feijão “olho preto seria um dos nomes do
fradinho, como complementa Cira, e ela se apressa em afirmar que só compra do fradinho.
Vivaldo da Costa Lima (1997) classifica o fradinho como especificamente do
gênero Dolichos, vindo a ser o Dolichos monachalis. Grão atribuído aos monges ou frades,
o feijão fradinho deve esse nome a uma origem portuguesa. Com o feijão, de onde quer que
ele tenha surgido, mais uma vez a dominação portuguesa impôs um hábito alimentar, dando
impulso ao seu plantio no Brasil Colônia, para auxílio no povoamento e na fixação de
aldeias, em estilo europeu de colonização, por causa da facilidade de cultivo (Cascudo
2004: 439). Os canteiros de feijão, como as hortas, ficavam ao lado das residências e os
cuidados com esse tipo de agricultura ficaram caracterizados como um labor
exclusivamente feminino (Cascudo 2004: 439-40). Isso quer dizer que traços de
exclusividade feminina, construídos numa fórmula particularmente local, se mostraram
presentes desde a produção agrícola do ingrediente básico do acarajé e do abará
87
antes que
esta se tornasse mecanizada.
Segundo a clássica receita de Querino, o complemento do acarajé, ou abará, seria o
molho de pimenta com camarões, que não é mencionado no depoimento de Vilhena, mas
nos parece implícito, seguindo o que Câmara Cascudo convencionou como hábito africano
de papas e bolos umedecidos em molho, com condimentos. A pimenta, apreciada tanto em
terras africanas como por grupos indígenas e europeus, sofreu, pela ação dos portugueses
em sua exploração atlântica, apenas uma permuta entre gêneros diferentes. A pimenta
nativa em nosso território (Capsicum frutescens) foi enviada para a África no século XVI, e
tendo adquirido predileção tomou o nome da própria pimenta africana (Aframomum
melegueta), pertencente a outro gênero, a chamada pimenta da Costa, conhecida pelos
nagôs como atarê. Esta última foi citada por Querino como um tempero comum, porém
empregado em quantidade reduzida entre os africanos de Salvador, principalmente no
caruru. Hoje em dia, se restringiu à sua função litúrgica, junto com outros alimentos que se
recolheram aos terreiros. A nossa malagueta se tornou popular em ambas as costas
87
Podemos encontrar alguma correspondência com o mito afro-brasileiro da mãe d’água recontado em Zora
Seljan (1973: 103-5) e Deoscoredes dos Santos (1963: 56-8). Na lenda a mãe d’água é forçada a contrair
aliança com o homem que a surpreende apanhando feijões ou favas em sua roça. No entanto, fica sub-reptício
o pertencimento dos feijões à próspera mãe d’água, espécie de divindade feminina.
126
marítimas. A pimenta-do-reino, especiaria indiana preferida dos portugueses, como o
próprio nome demonstra, não conseguiu tamanha popularidade entre africanos e afro-
descendentes. Câmara Cascudo (2004: 585) definiu o molho de pimenta, também
representativo da invenção culinária nagô:
Os dois molhos mais vulgares e queridos na culinária popular baiana são o
molho de acarajé, faz-se com a pimenta malagueta seca, cebola, sal,
camarões secos, moídos na pedra ou sob um machucador cilíndrico. Frige-se
em azeite-de-cheiro (dendê). Acompanha o acarajé. O molho de nagô
(escravos sudaneses da Nigéria), comporta os mesmos ingredientes, pimenta,
camarões secos, sal, ralando-se até quase obter um pó, juntando-se quiabos e
jilós (Solanum malangen Dun), cozidos e esmagados, borrifando-se sumo de
limão e completando-se com o caldo do cozinhado que o vai acompanhar.
Presentes nos molhos típicos, dendê, pimenta (a nossa malagueta) e camarões secos
tornaram-se os ingredientes que dão um colorido afro-brasileiro a uma grande variedade de
pratos e viandas. Acompanhando os bolos de feijão, esses três ingredientes formaram a
comida típica de tabuleiro que conseguiu se manter no costume da tradicional venda de rua.
O camarão tem sido um alimento constante no cardápio de diversas populações
litorâneas, inclusive o foi entre os indígenas de nossa costa e entre grupos da outra costa
atlântica. O peixe conservado seco, típico do menu de variados grupos africanos, tinha
presença na Salvador de outrora. Este desapareceu, mas o camarão seco continuou a
participar da culinária até hoje. O crustáceo parece ter sido um dos poucos a ter o privilégio
da especificidade étnica de grupos da costa ocidental africana, na concepção da cozinha
baiana por Câmara Cascudo (2004: 554): “Essa fórmula denuncia o preto sudanês, o nagô e
demais povos da Nigéria até o Senegal, com clareiras de ausência, embora o camarão seja
popularíssimo nessa região inteira”. Ainda assim, Câmara Cascudo (2004: 585) enxerga no
uso soteropolitano do crustáceo algumas propriedades tipicamente afro-baianas: “Encontrei
nos mercados nativos africanos o camarão mas nunca como o vemos na Bahia, o espeto de
camarões secos , destinados à condimentação”.
Sob o ponto de vista de um processo de troca, o tabuleiro e seus quitutes se
revestem de uma conotação bastante local, consolidada como uma criação soteropolitana,
mesclando ingredientes e modos de preparar de origem diversa, sob as circunstâncias das
imposições portuguesas e do regime baseado no tráfico de mão-de-obra africana
127
escravizada. O dendê, como base, deu um tom geral e espontâneo africano, também os
bolos e as papas. O camarão seco trouxe o gosto peculiar da Costa dos Escravos. Fritura e
sal seriam acréscimos que se tornariam indispensáveis. Houve algumas substituições, como
a da pimenta.
ainda dois pratos emblemáticos da comida de dendê e do tabuleiro, citados por
Vilhena, que antigamente eram comercializados separados, mas que sofreram uma
transformação, tornando-se elementos do próprio complexo alimentar do acarajé, quando
este se estabilizou e tomou a frente na permanência das vendas. São estes o vatapá e o
caruru, papas que agora acompanham o bolinho. O caruru teve um percurso particular.
Antes de se tornar um recheio, experimentou outras modificações, passando de iguaria
indígena a prato nagô, que veio nomear uma refeição comunal criada nos moldes das
tradições afro-brasileiras.
O vatapá não foi considerado como puramente africano por Manuel Querino,
provavelmente porque, ao contrário dos outros elementos do tabuleiro, não constitui
oferenda para os cultos. Câmara Cascudo (2004: 833) definiu o vatapá como:
(...) cozido de peixe ou de galinha, podendo-se fazer de carne verde, peixe
fresco ou salgado, assando-se ou de bacalhau. A base é a espessa papa de
arroz ou de farinha de mandioca, camarões e adubos tradicionais, europeus e
amerabas (...). O azeite-de-dendê, a pimenta e o leite de coco são
fundamentais.
A receita de Querino é preparada com galinha. Mas ele citou as substituições mais
comuns, como o peixe (especialmente a garoupa
88
), podendo ser peixe salgado ou assado, o
bacalhau ou a carne verde. O bacalhau, aliás, não era um ingrediente caro na antiga
Salvador, mas popular. Querino também cita o de arroz, ao invés da farinha de
mandioca. As receitas de hoje, no entanto, como atesta o livro de receitas do restaurante do
Senac no Pelourinho, utilizam o pão dormido sem casca e embebido de leite de coco para
dar a massa do vatapá. A canção de Dorival Caymmi, em sua licença poética, menciona o
“fubá”.
O vatapá seria bem diferente do acarajé e abará, como já percebia o próprio Querino
no início do século XX, por ser um prato que se tornava “elegante. Câmara Cascudo,
88
Animal que foi adotado como um dos símbolos nacionais, pois temos sua imagem na nota de cem reais.
128
quando residiu em Salvador em 1918, também reparou na ascensão do vatapá às mesas das
residências que freqüentava e na sua ausência das ruas, ao contrário do acarajé e do acaçá,
ainda presente nos mercados. O vatapá foi se afastando das comidas do candomblé e tomou
outras feições. A receita de vatapá de Querino somente incluía os temperos pertencentes ao
molho de pimenta. As mais recentes acrescentaram, como imprescindíveis, gengibre,
cheiro-verde, alho - temperos de origem portuguesa - amendoim e castanha de caju.
O acréscimo de temperos denuncia esse tipo de afastamento. As oferendas de
candomblé, geralmente, são baseadas apenas em cebola e camarão seco, sendo o alho
proibido, o que, por exemplo, torna uma heresia o ato de acrescentar alho ao acarajé. Este
assunto, aliás, é sempre mencionado pelas baianas atuais, demonstrando que o alho está
invadindo terrenos ainda intocados na dinâmica da história da culinária baiana.
Porém, mesmo após sair das ruas e ter se transformado, o vatapá resistiu e retornou
como recheio opcional do acarajé, que deixou de ser opção para se tornar complemento
quase obrigatório. Junto com essa modificação veio a escolha de um tipo de acarajé maior,
a ser dividido para receber o vatapá.Vivaldo da Costa Lima (1997: 70) explica o processo:
Sempre houve, na Bahia, entretanto, uma certa variação no tamanho do
acarajé, provavelmente decorrente do modelo próprio de certos grupos
étnicos bem diferenciados entre os nagôs, isto é, entre os iorubás da Bahia.
Mulheres da nação egbá, por exemplo, faziam acarajés bem menores,
chamados de acarakere em Abeokutá. O povo de Ilexá, por sua vez, fazia
um acarajé bem maior, chamado de acaraje. De todo modo, no processo
de assimilação dessas diferentes formas na Bahia resultou um tamanho
médio sem que de todo desaparecessem as formas originais.
Esse tamanho médio é o que faz Alberto da Costa e Silva (2004: 59) afirmar que o
acarajé das baianas se prepara como em Ilexá. Os acarajés menores, embora tenham
deixado de ter a preferência, maior quando eram comercializados prontos, voltaram
recentemente como petiscos de buffet. Mas esses quitutes cresceram nas ruas para se
tornarem uma refeição completa, com o atual molho de camarão - que é uma variante do
molho de pimenta com camarões inteiros – vatapá e a recentíssima salada.
Em relação ao tamanho, Raul Lody (1992: 64; 1998: 148) descreve os acarajés
elaborados em Recife como uma permanência africana, comparando-os ao acarajé baiano:
129
Entre as ofertas dos tabuleiros ou bancas vale destacar a permanência dos
acarajés no Recife. São pequenos, redondinhos, verdadeiros bolinhos de
feijão fritos em dendê, iguais aos africanos vendidos em ruas, praças e
mercados tão próximos e iguais aos daqui do outro lado do Atlântico. São
encontrados esses acarajés - os mais africanos - nas ruas centrais do Recife,
bastando seguir o cheiro das frituras. os acarajés baianos, vendidos em
tabuleiros mais suntuosos e de caráter barroco, por mulheres à moda saia
estampada, bata, pano-da-costa, fios de contas, turbante e folhas de axé
colocadas atrás da orelha ou no próprio tabuleiro, com pequenas imagens de
Santo Antônio, moedas e outros preparados para garantir boa venda eles
são grandes e redondos, diga-se mais próximos do ideal de sanduíche do que
dos bolinhos africanos. Estes acarajés são servidos com vatapá, camarões
secos ou com a herege salada, sendo este conjunto um verdadeiro almoço.
Percebemos, por essa declaração, que acarajés menores e sem os acompanhamentos
untuosos são considerados mais autênticos. Também Vivaldo da Costa Lima definiu o
acarajé como, originalmente, uma entrada (hors d’oeuvre). Quase uma guloseima,
semelhante aos “enganos - nome genérico dos doces de tabuleiro mencionado por Câmara
Cascudo - o acarajé, apesar de maior e mais substancioso, continua sendo encarado como
um tira-gosto, um petisco. O horário em que é consumido o comprova.
Na praia - não exatamente na orla calçada da praia, espaço de horário mais flexível -
as baianas, que geralmente encontramos pela manhã, descrevem clientes que comem mais
de um bolinho, “antes de almoçar”. Ele continua sendo apreciado nos intervalos das
refeições, na hora da “merenda” - palavra usada cotidianamente em Salvador, ao invés do
anglicismo do lanche. À noite, em seu horário tradicional, o acarajé é ainda encarado como
comida que antecede o jantar.
Os pontos de acarajé, construídos em função da proximidade de bares, também
reforçam seu caráter de petisco. O conhecido ponto do Rio Vermelho, por exemplo, tem
sua história entremeada com a desse tipo de estabelecimento. Na memória da conhecida
baiana do acarajé Dinha (Lindinalva de Assis), relatada por sua filha Cláudia (Eliana
Cláudia de Assis), havia ali - outrora uma vila de pescadores - uma padaria que pertencia a
um espanhol, hoje local do Bar Vermelho e também uma farmácia que se transformou em
bar, sendo a causa desse tipo de transformação o próprio acarajé de Dinha. Com o tempo, o
comércio se deslocou um pouco por causa do estacionamento e foi construída uma praça,
mais recentemente, durante a prefeitura de Lídice da Mata, no início dos anos 90, atraindo
mais baianas do acarajé. Ana Paula Almeida da Cruz, que trabalha com Cira de Itapoã,
130
chama atenção para o fato de a baiana do acarajé valorizar o bar, dando movimento e
atraindo clientes, o que literalmente acontece no caso de Cira, uma das mais célebres no
ramo. Porém, o acarajé não é mais visto como tira-gosto strictu sensu. Num bairro como o
Comércio, as vendedoras explicam que ele é consumido como refeição barata, que “enche a
barriga.
O consumo de acarajés menores passados em molho de pimenta - cujo sabor picante
pediria o acompanhamento de uma bebida refrigerante, alcoólica ou não - seria, portanto,
uma tradição em vias de modificação. O molho de camarão, vatapá e até mesmo a salada e
o caruru vieram ajudar a transformar o acarajé de petisco em refeição.
O acaramaior, porém, não seria uma invenção recente em função da necessidade
de mais substância para uma refeição. Ele tem, como vimos, uma origem étnica (Ilexá) e
também tem seu lugar entre as oferendas votivas das comunidades de candomblé. As
oferendas apresentam o acarajé em vários formatos, porém sem recheio, como uma
configuração permanente dessa tradição votiva originalmente criada como afro-brasileira
nas comunidades nagôs de cativos.
O pprio Raul Lody (1992: 66) nos descreve os tamanhos a serem oferecidos para
as divindades afro-brasileiras que apreciam receber o acarajé: “O acarajé grande e redondo
é de Xangô; os menores servem para as iabás como Iansã, Obá e os Erês têm em seus
cardápios votivos os pequeninos acarajés de formato bem redondo (Bahia)”.
O tamanho e o formato, então, permitem identificar o destinatário divino do quitute
e poderiam, anteriormente, identificar também anaçãoa que pertenceria a dona do
tabuleiro. Porém, acarajés para oferenda não são abertos, valendo, nesse caso, um sentido
que alia estética e sinais de integridade do que é presenteado. É interessante constatar que a
grande maioria das baianas de tabuleiro conhece o acarajé como oferenda e grande parte
declara publicamente poder receber encomendas de oferenda de acarajé, contanto que
sejam prevenidas antecipadamente. A maioria também enfatiza seu conhecimento restrito
ao modo de se cozinhar a oferenda. Todavia, entregá-la seria dever específico de uma
sacerdotisa treinada para isso, em respeito às prescrições dos candomblés.
Cláudia, filha de Dinha do Rio Vermelho, designa a oferenda de acarajé como
“acará, um acarajé maior com camarões por cima. A maioria das outras baianas conhece a
oferenda também pelo nome de “acará. Ana Paula da Cruz explica que o “acaráé um
131
acarajé maior que o tamanho normal, onde se colocam por cima sete camarões secos
inteiros, que não podem estar cozidos, se for uma oferenda destinada ao orixá Iansã. A
oferenda para Xangô seria mais comprida informação conferida, durante nosso diálogo,
com outra ajudante mais velha – e também com sete camarões por cima. A pessoa levaria o
produto “enrolado, puro. Josefa Maria da Conceição, vendendo na festividade do Bonfim,
sintetiza: “o de Iansã é redondo, o de Xangô é comprido”. Ela acrescenta, como boa parte
das baianas, que a maior saída desse tipo de oferenda acontece no período de festa de Iansã,
durante dezembro, quando se comemora Santa Bárbara. Margarida, uma vendedora de
acarajé que trabalha em Ubatuba, no estado de São Paulo, mas freqüenta o candomblé em
Salvador, explica que é difícil fazer o “acará, que é bem grande. Ele exigiria habilidade da
cozinheira na hora de virá-lo, que poderia sentir necessidade de usar certos artefatos, como
a escumadeira ou o pires. Mas a demanda de “acaráem São Paulo seria rara, embora no
Rio de Janeiro este costumasse ser pedido. Em Salvador, a oferenda sai bastante. Esta
espécie votiva é algo intermediário entre as restrições e especializações das comunidades
dos terreiros, com várias exigências rituais, e um culto popular mais divulgado originário
do candomblé.
Com exceção do vatapá, o trio do acarajé, abará e caruru forma-se de oferendas
votivas que até hoje circulam nas ruas através do tabuleiro o acaçá tendo desaparecido.
Quando se constata o emergir desses pratos, enquanto iguarias populares,
concomitantemente aos tempos iniciais da formação do candomblé em Salvador, pode-se
concluir que a oferenda vem da popularidade, como o fez Câmara Cascudo. Mas também se
pode concluir que tais alimentos povoaram as ruas ao mesmo tempo em que se instalaram
os preceitos rituais que as ganhadeiras instituíram para formar seus grupos sistematizados
de mulheres. Assim, neófitas iam vender nas ruas as oferendas de seus deuses tutelares para
conseguirem arcar com as despesas de suas “obrigações”. A renda era recebida pelas
ocupantes dos altos cargos sacerdotais que se recriavam e era empregada, então, na
construção simbólica e material dos primeiros terreiros. O acará e o acarajé estão nesse
espaço intermediário que soleniza a rua e, ao mesmo tempo, populariza as oferendas.
Durante um certo período, comprar esse tipo de comida deve ter sido um ato de
cumplicidade com a emancipação dos afro-descendentes, ao mesmo tempo em que era uma
oferta indireta para o nascimento de um representante, consagrado em carne e osso, de
132
certos atributos de seu próprio deus tutelar. Obter e saborear os produtos vendidos no
tabuleiro significou contribuir com a consolidação dos templos soteropolitanos da
comunidade afro-brasileira. Hoje, as comidas são simplesmente comercializadas por causa
da tradição e do paladar que foi habituado ao gosto da comida de dendê. Mas as comidas
não deixaram de ter íntima relação com as oferendas ainda realizadas dentro do culto. O
intermediário acará é prova disso.
O caruru, apesar de também ser variante de uma oferenda do candomblé, é um caso
à parte, porque se tornou tão comum que jamais deixou de ser consumido sem uma
conotação votiva. Esse aspecto devocional tomou um verniz católico popular, que foi a
deixa para que pudesse se expandir em vários extratos sociais. Somente depois de sua total
consagração como refeição votiva é que retornou ao tabuleiro como outra opção de recheio.
Mas vejamos primeiro qual percurso tomaram as comidas que foram descritas por Vilhena
e que não ficaram no tabuleiro.
Podemos comprovar, pela descrição de 1802, muito rica, apesar do olhar
etnocêntrico de Vilhena, que as mesmas comidas que eram vendidas na gamela ainda são
apreciadas e consumidas hoje em outro contexto, muitas vezes em contexto nacional,
embora a diferença na produção como um todo (inclusive agrícola) tenha acarretado
variações a longo prazo que devem ter interferido inclusive no sabor. No entanto, essa
lacuna na história da alimentação soteropolitana é quase intransponível, mesmo que exista a
oportunidade de experimentar um desses pratos produzido no terreiro, em meio à sua
cerimoniosa e tradicional cozinha, a qual pode exigir técnicas arcaicas. As lacunas, porém,
não chegam a obscurecer a percepção de uma culinária que se manteve, a longo prazo,
mesmo porque a culinária é um campo favorável para esse tipo de ocorrência de longa
permanência.
Vilhena conta dos mingaus, canjicas, pamonhas, angus, mocotós, feijão-de-coco,
arroz-de-coco, pão-de-ló de arroz e de milho, roletes de cana queimados e aloá. Esses
produtos não estão no atual tabuleiro fixado da baiana do acarajé. Naquele período, o
próprio acarajé era vendido de forma ambulante. Alguns destes alimentos continuaram, por
um longo tempo, sendo vendidos segundo este modelo, outros integraram o menu dos
típicos pratos regionais da culinária baiana, como o feijão-de-coco e o arroz-de-coco.
133
Manuel Querino classificou o feijão-de-coco, que chamou de “feijão de leite
(preparado com leite de coco) entre os alimentos baianos, que vieram do “regime alimentar
português melhorado pelo africano”, ou seja, no mesmo rol do vatapá. Na culinária baiana
atual, conhece-se o prato descrito por este autor, preparado com feijão mulatinho.
Pelo nome, podemos inferir que o arroz-de-coco poderia ser um doce, o português
arroz-doce feito com leite de coco, segundo a visão de mara Cascudo, ou poderia ser um
acompanhamento sem doce para os outros pratos salgados que eram servidos. Querino não
o mencionou, apenas legou uma receita do arroz de haussá (uma etnia africana islamizada),
cuja especificidade seria a carne seca, dando sabor à papa de arroz cozida na água sem sal.
Para uma versão atual, o livro de culinária do Senac do Pelourinho apresenta o arroz
de coco como um prato salgado feito no leite de coco. Nessa caracterização de prato
salgado, podemos encontrar variantes do arroz de haussá também preparadas com leite de
coco. O arroz não está ausente da antiga culinária baiana, nem mesmo da culinária dos
terreiros, porém ficou vinculado com os costumes de africanos islamizados, na memória
das comunidades afro-soteropolitanas. No candomblé pode constituir oferenda.
Quanto aos mocotós, encontramos aqui um prato cozido das patas (daí “mãos de
vaca) e miúdos do boi, refeição pesada que não se restringe a uma região do país. O
próprio Querino tinha ciência disso no início do culo XX. O mocotó seria prato
conhecido em diversos locais do país. Encontrá-lo neste cardápio de Salvador demonstra
sua antiguidade, mesmo porque Querino queria defendê-lo como um prato baiano que foi
adulterado posteriormente em outras regiões, assim como o vatapá e o feijão-de-leite. Por
ser cozido, e com as carnes do boi, remete a uma origem portuguesa, assim como a
feijoada.
O mocotó devia ser prato apreciado pelos carregadores, incluindo os de cadeiras de
arruar, do século XVIII, assim como o feijão e o arroz afro-baianos. Pelo menos, por quase
todo século XX, pratos cozidos e substanciosos constituíam o comer cotidiano de
estivadores em Salvador, se tomamos o testemunho de Câmara Cascudo (2004: 839-40),
em 1918, e o de Paloma Amado (2003: 115), na década de 60, ambos estudantes nos
respectivos períodos, que freqüentavam a “rampa do mercado”, onde eram oferecidas
refeições em pontos fixos. Câmara Cascudo fala de feijão mulatinho cozido com carne
ou peixe servido em prato de alumínio, comida dos trabalhadores do porto, e outros pratos
134
cozidos servidos no mercado em mesinhas na hora do almoço, sempre junto da
indispensável farinha de mandioca. Paloma Amado cita o mocotó, também comido com
farinha e pimenta em prato de flandres com colher de alumínio, servido num caminhão que
estacionava em frente ao Mercado Modelo no horário madrugador das cinco da manhã.
Segundo a autora, outros alimentos típicos da rampa seriam a feijoada e o sarapatel, ou
seja, comidas fartas e bem calóricas, apropriadas para uma jornada estafante que
demandava força física. Antônio Vianna (1979: 25), que nasceu no século XIX, também
cita, em uma de suas crônicas, essa forte refeição antes do amanhecer, então custeada pelos
empregadores dos que trabalhavam no porto.
A pamonha, outro alimento energético, tamm consta da lista de Vilhena. Junto
dos mingaus e canjicas, sobre os quais lançamos nosso olhar, pertenceria ao complexo
das festas de São João que têm alcance nacional e maior importância na região Nordeste.
Seria uma iguaria de milho vista como pertencente a um mundo caipira, embora ela esteja
extremamente urbanizada no registro desse período recuado, quando viveu Vilhena.
Encontrar a pamonha provavelmente iguaria aprimorada do cardápio indígena - entre os
produtos baianos do século XVIII demonstra que houve, nela, um melhoramento africano,
no sentido esboçado por Querino, o qual, todavia, não a cita. Câmara Cascudo (2004:137)
faz relações da pamonha com o universo alimentar indígena e africano:
A pamonha (pomong, pegajoso, grudento, viscoso) de milho ou arroz, bolo
gelatinoso, adoçado, envolto em folha de bananeira, tanto pode ser comido
isolado quanto dissolvido n’água, garapa de pamonha, correspondendo ao
africano acaçá, sem açúcar, que acompanha o vatapá ou o caruru e é também
bebida, garapa de acaçá. É o pacoute do Sudão, o akasan do iorubano, da
Costa dos Escravos, onde é pão de milho ralado.
Apesar das semelhanças descritas, as quais demonstram a intervenção de mãos
africanas, pamonha e acaçá sempre guardaram algumas diferenças. A atual pamonha,
divulgada em nível nacional, traz um formato opcional salgado, enquanto o acaçá,
tradicionalmente um acompanhamento insosso, adquiriu uma variante adocicada. Deste
modo, a pamonha - com seu nome indígena - corresponderia ao acaçá, porém os dois
conviveriam no século XVIII, como podemos concluir a partir do relato que examinamos.
Câmara Cascudo fala em folha de bananeira, mas a pamonha que nos é contemporânea
costuma ser envolvida na própria palha do milho. A receita de pamonha baiana apresentada
135
por Paloma Amado (2003: 268) difere das pamonhas conhecidas no Sudeste por ser feita
com leite de coco e não de vaca, um ingrediente soteropolitano arcaico por excelência.
Podemos concluir que a pamonha, do mesmo modo que o mocotó, são comidas hoje
consideradas brasileiras cuja origem, antes da posterior difusão, remete, em certos aspectos,
à culinária afro-baiana. Sem dúvida esse é o caso do mocotó, como sugere Querino. A
pamonha poderia ter sido reinvenção de outra região incorporada aos quitutes de Salvador,
ainda no século XVIII, mas creio ser muito mais provável que tenha nascido ali.
O angu, também citado por Vilhena, tem uma história semelhante, em alguns
pontos, à história do acarajé. Era feito à base de farinha, de mandioca ou de milho. Esta
última era denominada “fubá em quimbundo, vocabulário do qual também faz parte a
palavra “angu. Esse tipo de papa, que foi consagrada pelo preparo com o milho
americano, ficou muito divulgado tanto do outro lado do Atlântico quanto no Brasil.
Tornou-se também alimento pico dos cativos na região Sudeste. Estamos, mais uma vez,
no campo dos alimentos de base luso-angolana. O prato sofreu um desenvolvimento e, ao
fubá cozido na água, foram acrescentados outros ingredientes. Assim surgiu o angu de
quitandeira”, angu acrescido de vísceras de boi, dendê e alguns legumes. Como o mocotó,
era uma iguaria substanciosa vendida aos africanos empregados em serviços pesados.
Podemos observar quitandeiras remexendo este angu em grandes caldeirões sobre trempes
de pedra próximos da área portuária do Rio de Janeiro em Negras vendedoras de angu de
Debret. Do angu carioca surgiram as “casas de anguno século XIX, que se transformaram
nas casas de zungu”, espaços para socialização e abrigo de africanos, precursores dos
terreiros no Rio de Janeiro (Soares 2006). Nesse sentido, o angu foi um alimento que se
relacionou no Rio de Janeiro, assim como o acarajé em Salvador, com as ganhadeiras
(quitandeiras) e as fundações dos primeiros terreiros – no caso de Salvador, pelo menos dos
terreiros nagô que seguem a exclusividade feminina na liderança e se tornaram um modelo
cerimonial englobante. O angu também se tornou conhecido em várias regiões do Brasil e
continua sendo consumido, mas não com o valor de tipicidade do acarajé, o qual ainda se
comercializa através de uma nova configuração da quitandeira, que é a baiana do acarajé
tipicamente vestida.
Alguns outros produtos comuns na época de Vilhena se restringiram à culinária
religiosa. Já falamos do sumiço do acaçá. O aloá seguiu o mesmo caminho. Seria, na versão
136
mais antiga, uma espécie de bebida doce feita de rapadura e milho, ou de casca de abacaxi,
fermentados (Querino 1938; Cascudo 2004; Lody 2003), que passou a ser popular apenas
dentro dos terreiros
89
. Anteriormente, fazia parte do complexo de refrescos ou bebidas
refrescantes, ou ainda limonadas”, que parecem sugerir uma acidez fermentada, talvez
precursora da soda limonada carbonatada atual. Câmara Cascudo (2004: 832) também
encontra um aloá feito de arroz, ou seja, arroz desfeito em água, assim como pode ocorrer
com o acaçá, ao qual são creditadas propriedades refrescantes. Segundo Câmara Cascudo
(2004: 555), o acaçá dissolvido na água com açúcar lembraria o gosto do vinho de palma
recém extraído, também chamado sura, que foi consumido localmente em Salvador até o
final do século XIX, como um subproduto da palmeira do dendê. Em sua descrição do aloá,
Câmara Cascudo sugere algum parentesco entre as bebidas refrescantes fermentadas afro-
brasileiras e as cervejas angolanas.
Em um interessante trecho de seu relato, a norte-americana Ruth Landes (2002: 72)
descreve como experimentou uma bebida de sabor refrescante oferecida pelo babalaô
Martiniano do Bonfim na década de 30, a qual parece ser a “jacuba, segundo a definição
de Câmara Cascudo. Em seu diálogo, Martiniano argumenta:
“- Vejam. Primeiro, um bom copo d’’água filtrada, Depois, uma colherada
de farinha... Olhem como é alva, como os grãos são finos! Terceiro, um
quarto de limão. Agora, açúcar! E despejou uma colherada bem cheia.
Agitando a mistura no copo cantarolou: - Bebam isto meus caros amigos!
Bebam isto! Quero ouvi-los dizer: Ah-h-h!”.
“Encheu um copo para cada um de nós e de fato a bebida era suave e
refrescante. Então preparou uma para si, lenta, cuidadosamente, e, por fim,
saudou a bebida Ah-h-h dando estalos com a língua e sorrindo. é de
encher as medidas, hein? Agora, olhem como faço, e comam a farinha do
fundo. Quando acabamos, Martiniano dirigiu-se a mim, observando: - Podia-
se fazer fortuna vendendo uma bebida assim na sua terra não é?”.
Se nos fiarmos no relato de Landes, o diálogo demonstra, por parte de Martiniano,
uma visão atenta à formação de uma indústria de produtos alimentícios em terras
estadounidenses, visando um grande mercado de consumo e conseqüente lucro. Também
demonstra a bebida como similar ao refrigerante, o que fica reforçado pela afirmação
89
A bebida com nome de “aloá” que pude experimentar dentro do âmbito dos terreiros era constituída de
rapadura e gengibre ralado dissolvidos em água e coados.
137
anterior de que tal bebida pode substituir gelo, sorvete e soda para refrescar o estômago.
Soa como uma valorização do produto nacional perante uma sobressaltada Ruth Landes.
Não era apenas um talento e astúcia pessoais do babalaô que perpassavam esse diálogo,
mas também sua formação dentro dos cultos que lhe ensinou um olhar atento para as trocas
simbólicas e mercantis, principalmente as alimentares.
Desde o final de 2005, as baianas de tabuleiro foram proibidas, pela Secretaria de
Serviços Públicos, de vender refrigerantes e cerveja. É digno de nota afirmar que bebidas
refrigerantes sempre acompanharam o comércio de acarajé, embora nem sempre tenham
sido vendidas pela baiana do tabuleiro. No entanto, vários produtos que eram vendidos em
separado reuniram-se atualmente no tabuleiro da baiana. Portanto, o refrigerante não destoa
da tradição, neste caso.
Por fim, os ambulantes da época de Vilhena vendiam doces, categoria representada
no tabuleiro, mas não exatamente pelos produtos açucarados citados por Vilhena. A
atividade de apregoar doces descendia diretamente do comércio de vendedoras portuguesas.
Pão-de-ló de arroz e de milho são referências aos bolos doces. O pão-de-ló é um tipo de
bolo muito consolidado, “o bolo mais antigo em Portugal e mais nacional e popular no
Brasil” (Cascudo, 2004: 606)
90
. Os rebuçados são também portugueses, balas de pasta de
açúcar vítrea, de onde os queimados, balas de melaço, seriam uma variante, porém
preparada com um tipo de refugo do fabrico do açúcar. Os roletes de cana vêm completar o
conjunto de doces que Vilhena achou por bem citar, frisando que haveria mais uma grande
variedade. São os “engodoscitados por Câmara Cascudo, sempre vendidos em tabuleiro.
Hoje ainda podemos observar, em nível nacional, a venda ambulante de balas e doces
industrializados, inclusive chocolates e picolés, o que não acontecia nos séculos anteriores
ao XX.
No século XV, o produto adoçante proveniente da cana-de-açúcar, conhecido dos
povos árabes e por eles divulgado no mediterrâneo, passou a ser produzido em algumas
ilhas onde era cultivável e às quais a Europa tinha facilidade de acesso. O açúcar de
Portugal vinha da Ilha da Madeira e de São Tomé, que transplantou a cana para o recém
descoberto território brasileiro, onde aumentou bastante sua produção, a partir dos
90
Para uma imagem do pão-de-ló vendido no século XIX, ver Vendedora de pães-de-ló de Debret, onde os
encontramos em fatias, numa forma arredondada.
138
engenhos brasileiros (Lemps 1998: 611-13). Os africanos que foram escravizados vieram
para o Brasil com a finalidade de trabalhar nessas plantações de cana e na extração do
açúcar. Como não poderia deixar de ser, o produto adoçante da cana desempenha um papel
simbólico nos cultos afro-brasileiros, embora tenha sido originalmente uma tradição luso-
mourisca e tenha carregado a memória da imposição, de modo semelhante à farinha de
mandioca. Assim, a cana e o seu úcar guardam uma particularidade quanto às oferendas
votivas. No candomblé, pratos adoçados com açúcar não constituem o principal das ofertas,
mas podem ser presenteados a algumas divindades. No entanto, o mel de abelhas é muito
utilizado.
Os roletes de cana, doces in natura, outrora produto das ruas, também podem ser
oferendas e estão relacionados à infância e a uma dupla de divindades gêmeas, da mitologia
afro-brasileira de origem iorubana, bastante complexa, pela absorção de novos sentidos em
Salvador. A maioria dos produtos doces da cana-de-açúcar relaciona-se com esse universo
mitológico dos gêmeos iorubanos que também são crianças divinizadas, além de mártires
católicos adultos e curadores da tradição católica apostólica romana. Mesmo nossos doces
contemporâneos industrializados estão sempre incluídos no que poderia ser chamado
complexo do caruru.
O tabuleiro e o caruru: feminino e infância aliados na representação da desordem das
ruas
Como testemunhou Vilhena, o caruru era uma refeição bastante popular. Os carurus
citados pelo professor, embora sejam uma referência à palavra que hoje designa um quitute
de quiabo no azeite de dendê, parecem se remeter ao nome genérico – e de origem indígena
- usado para certos esparregados de verduras, restritos atualmente a ocasiões litúrgicas, no
caso dos cultos afro-brasileiros. Câmara Cascudo (2004: 832) o coloca nos seguintes
termos: “O caruru, tal como o conhecemos presentemente, é prato africano, mantendo a
denominação indígena, mas com outro e bem diverso conteúdo, galinha, peixe, carne
crustáceos”.
139
Manuel Querino (1938: 182-3) inclui o caruru entre os “alimentos puramente
africanos, mas na categoria dos efós, que é o nome afro-brasileiro para esse tipo de prato
com verduras e suas variações, preparado com as folhas fervidas e espremidas as quais,
depois deste processo, retornam ao fogo junto com os temperos habituais e dendê, segundo
a receita de Querino. Ainda segundo o autor, o efó podia ser acompanhado de peixe, mas o
peixe não entrava como um ingrediente constituinte no preparo do prato. O caruru, por sua
vez, observaria o mesmo processo do efó, podendo ser feito, nas palavras de Querino:
(...) de quiabos, mostarda ou de taioba, ou de oió, ou de outras gramíneas
que a isso se prestem, como sejam as folhas dos arbustos conhecidos nesta
capital por unha de gato, bertalia, brêdo de Santo Antônio, Capéba, etc., às
quaes se addicionam a garoupa, o peixe assado ou a carne de xarque e um
pouco d’água que se não deixa seccar ao fogo.
Essa variedade de ervas, muitas delas denominadas “bredos”, deu o nome ao prato,
pois muitos bredos são também chamados de caruru, em tupi “folha comestível” (Silveira
Bueno 1998). A língua de vaca, por exemplo, principal ingrediente do efó de Querino, é um
caruru, o oió também é um caruru, o caruru-da-bahia (Barros 1999). Os bredos preferidos
para repasto seriam os suculentos, mucilaginosos, como o próprio quiabo. A principal
particularidade dessa espécie, dentre as verduras empregadas nos efós ou carurus de folha,
seria a genuína origem africana, uma característica também extensiva ao inhame, em
relação a todos alimentos empregados na culinária do candomblé. Por isso mesmo, quiabo e
inhame não poderiam deixar de figurar no cardápio religioso dos candomblés tradicionais
de Salvador, como ainda figuram, possuindo um alto prestígio de referência às origens e de
memória ritual.
O quiabo é o principal elemento de uma oferenda destinada ao orixá Xangô,
conhecida como amalá. Esse seria o nome genérico de uma iguaria cujas variantes seriam
oferecidas a outras divindades, segundo Edison Carneiro (1936: 76), inclusive ao orixá
Ibeji, que deu origem ao costume da refeição comunal do caruru. A oferenda de amalá é,
portanto, o equivalente do caruru atual encontrado em alguns tabuleiros e na refeição típica.
No entanto, o caruru alcançou as ruas quando ainda devia ser a denominação geral de
vários tipos de verduras esparregadas, sendo vendido pelos ambulantes como testemunhou
Vilhena. Porém, apenas o caruru de quiabos - com seu prestígio de genuinidade africana -
140
se transformou numa refeição coletiva e votiva, comungada durante o mês de setembro, a
ser oferecida para crianças convidadas, adultos acompanhantes e demais pessoas que
estejam presentes - inclusive desconhecidos que porventura tenham aparecido, ou tenham
sido trazidos por outras pessoas - com a finalidade de trazer fertilidade e prosperidade ao
ofertante.
Depois que se tornou consagrado como alimento a ser comungado durante o mês de
setembro, um costume que atingiu todos os extratos sociais em Salvador, o caruru
finalmente voltou ao cotidiano das ruas não mais como o produto de ambulantes que tinha
sido outrora, mas como complemento do acarajé servido no tabuleiro, sem deixar de ser a
comida mais divulgada e consumida, conscientemente, como votiva. Essa divulgação
aconteceu através do que Monique Augras (1994: 81) chama de “processo de interpretação
desencadeado pela imposição do catolicismo e geralmente descrito sob o nome um pouco
abusivo de ‘sincretismo’ ”.
O culto ioruba dos Ibeji - nome que significa uma dupla de gêmeos - relacionava-se
ao nascimento de gêmeos na comunidade. Em Salvador, passou a se exprimir através da
devoção aos santos católicos Cosme e Damião, também gêmeos, porém mártires. O
martírio não deixa de formar uma certa correlação, pois o culto de gêmeos nas terras
iorubanas inicialmente também se ligou à morte sacrificial de ambos os gêmeos e sua mãe,
ou somente dos gêmeos ou de apenas um deles (Lima 2005; Augras 1994).
O caruru de preceito se tornou, então, uma versão, à qual se sobrepôs o catolicismo,
do culto aos gêmeos em terras iorubanas. Como representante “mundanodo amalá de
Xangô, este passou a ser o prato atribuído aos gêmeos que viraram santos. O amalá, prato
que pode ser oferecido a Xangô e a Ibeji, demonstra a proximidade entre estas divindades,
confirmada pelas relações mitológicas de Xangô com os gêmeos, por identificação ou
paternidade.
É preciso compreender que essas comidas de dendê, que resistiram durante séculos
nas ruas, estão reunidas em torno dos mitos afro-brasileiros do próprio azeite e das
divindades relacionadas ao fogo e ao calor, aspecto atribuído ao dendê nos cultos. O caruru
é referência ao amalá do orixá Xangô, divindade masculina relacionada ao calor e ao fogo
que cai do céu. Xangô é o par por excelência da divindade feminina Oiá, também senhora
do fogo, que domina o universo de preparo das comidas de dendê representadas pelo
141
acarajé, sua oferenda predileta que também pode ser ofertado a Xangô, como vimos.
Ambos seriam precedidos pela divindade Exu, o trickster ou trapaceiro arquetípico dos
mitos iorubas, que apreciaria, particularmente, da palmeira do dendezeiro (cujos
subprodutos são utilizados em prol de várias divindades), o próprio óleo de dendê, base da
culinária afro-baiana. Exu é representado como um mensageiro, uma divindade das ruas e
também do fogo (ver Bastide 1961: 208-44) e de certos combustíveis, como o carvão que
alimenta os fogareiros. Seu domínio das ruas, do dendê e do comércio o torna um dos
deuses patronos da atividade empreendida pelas ganhadeiras.
A atividade do acarajé foi construída sob os auspícios da exclusividade feminina,
com a proibição inicial da incorporação das divindades pelos homens, e da prática
masculina do serviço culinário em torno dessas divindades, cuja repercussão ainda hoje
causa constrangimento e discussões a respeito de pessoas do sexo masculino que ocupam o
lugar principal de baianos do acarajé no tabuleiro. No entanto, quanto às divindades
africanas re-adaptadas em Salvador, nesse culto inicialmente feminino (e não
necessariamente do feminino), fossem elas masculinas ou femininas, seriam contempladas
ritualmente em sua totalidade pelas ganhadeiras.
Deste modo, Xangô, o lado masculino de Oiá-Iansã, está presente numa versão do
mito de origem do acarajé, assim como o próprio caruru - um atributo seu, por causa do
quiabo, seu alimento preferido faz parte da ritualística do tabuleiro e do saber culinário
que se demanda da baiana do acarajé. O mito relatado por Nancy da Souza em entrevista a
Raul Lody (apud Mendonça & Pinto 2002: 48, nota 1), para o projeto de tombamento do
acarajé, é longo, mas coloca em evidência esses aspectos mitológicos, ainda atuais para as
baianas do tabuleiro e para as discussões em torno da atividade.
Nesse mito, especificamente, vemos a divindade feminina Oxum, relacionada ao
frescor das águas, mas que se caracterizaria também como senhora dos mercados, a líder e
representante das mulheres nas feiras iorubanas, a iyalodê, título da senhora encarregada
dos negócios públicos, que tinha lugar no conselho supremo dos chefes urbanos (Bernardo
2003: 35-6). Eis, em parte, o relato oral do mito por Nancy de Souza (os grifos são nossos):
O acarajé, para mim, é um rapaz subjugado a uma mulher. Porque, na
realidade, aca é uma bola de fogo; então acará era um segredo entre
Oxum e Xangô. Oxum sabia preparar o acarajé, a forma figurada do
142
agerê, que é aquele fogo feito na segunda obrigação de Xan(o dia do
agerê), representado de duas formas: primeiro, o orixá entra com suas
esposas levando a panela do agerê, ou seja, a panela de sua comida, a
famosa panela que Oxum preparava, tampava e dizia para Oiá que botasse
em sua cabeça e levasse para Xangô. Oiá sempre levava e entregava a
Xangô, e Xangô se retirava da frente de Oiá e depois voltava e devolvia a
panela, como se já houvesse comido o que ela continha.
Nancy continua narrando a longa história oralmente. Em síntese, quando Oxum
ficou cansada do assédio masculino de seu esposo, resolveu então dividi-lo com Oiá
91
, e
isso deveria ser selado pelo ato de partilhar o segredo. Oxum deu a deixa para que Oiá
espiasse a panela e descobrisse a comida de Xangô, comida que também significava o
poder de Xangô. Oiá vê o conteúdo e vai se encontrar com Xangô:
Então, quando Oiá chegou, Xangô olhou bem nos olhos dela e perguntou:
você viu o que eu como? Sim, acará, ela respondeu. E ele continuou: o
que é o acará? Ela disse: é fogo, Xangô come fogo. Então ele concluiu;
minhas esposas podem saber meu segredo, minhas esposas comem. Mas
não era bem assim, Oxum preparava, mas não comia. E ele lhe ordenou:
meta sua mão porque vai comer comigo agora. E ela olha o fogo e
come acarajé je significa comer em Yorubá; acarajé quer dizer,
portanto, comer acará. Então Oiá passa a usar o acarajé também para
ela (...). Ela passou a ser esposa de Xangô.
Essa versão local, que reconstrói o mito africano do roubo do fogo de Xangô por
Oiá, começa descrevendo o poder feminino de subjugar o masculino que estaria
representado no acarajé. Essa frase revela a suposta submissão de Oiá a Xangô como um
eufemismo para seu arrebatamento do poder de Xangô, tornando-se sua igual, sua esposa.
A equiparação acontece no momento em que Oiá desrespeita a proibição e vê o acará, o que
obriga Xangô a deixar que ela coma também desse fogo. Mas ele precisa realizar uma
performance de alguém que está ordenando aquilo que se cumpriu como uma
transgressão, como se salvasse as aparências. Assim, Oiá come o fogo. Oxum pode
preparar o acará, porém só Oiá o coloca na cabeça, somente a ela está destinado esse poder,
por ser da mesma natureza ígnea de Xangô. Oiá se torna então a ganhadeira ambulante de
outrora, carregando acará na cabeça. Porém é também aquela que comunga do alimento-
poder que carrega.
91
Idéia legitimadora de uma poliginia que tinha lugar na sociedade iorubana.
143
Essa narrativa descreve, numa das camadas de seu formato mítico, a própria história
das ganhadeiras, com ênfase na exclusividade feminina que ganhou força nos ritos
africanos reinventados em território brasileiro. Nela, a atividade culinária é desempenhada
pelas divindades femininas. Oxum é uma memória da iyalodê, sempre sagaz, incentivando
a emancipação de Oiá, num surpreendente ato de irmandade e cumplicidade feminina, pois
Oxum e Oiá são descritas como rivais na maior parte dos mitos (Augras 1989: 19). Oiá, que
representa a ganhadeira, com a sagacidade de Oxum, toma para si algum poder, através do
consumo de alimentos, do acarajé especificamente. Todavia, Xangô “salva as aparências” e
continua a ser homenageado como o senhor daquele poder. Ainda fica reforçada a idéia do
corpo feminino estar preparado para comungar da divindade masculina não o contrário:
Oiá, ganhadeira e noviça, provocada e, ao mesmo tempo, guiada por Oxum, incorpora o
poder do fogo, consumindo o próprio fogo.
O acará, antes de ser uma oferenda comercializável muito requisitada às baianas do
acarajé - pelo menos em Salvador, como vimos - era o nome do próprio fogo, numa
cerimônia em que as filhas do orixá Xangô demonstravam os atributos divinos do deus
nelas incorporado “comendo” chumaços de algodão embebidos em dendê que pegava fogo
(Lody 2003). Verger (1999: 308) classifica o agerê - mencionado no mito de origem do
acarajé supracitado - e o acará como cerimônias de Xangô na África. O agerê seria um
alguidar furado de onde se elevariam chamas, a ser carregado na cabeça pelos iniciados de
Xangô em transe, num tipo de prova complementada pela prova do acará, onde os iniciados
engoliriam fogo na forma de mechas inflamadas que enfiavam em potes com dendê
fervente. Temos, então, por essa descrição, ao que parece, transes espetaculares que
permitiam colocar as mãos na fervura, engolir e cuspir fogo, sem ferimentos, como enfatiza
Verger. Talvez houvesse alguma técnica africana de treinamento corporal aliada a um
transe anestésico e ao forte controle mental das reações corporais.
Em terras iorubanas, todavia, o sentido e as cerimônias, embora bastante próximos
dos mitos contados no Brasil, guardam suas diferenças. Em Salvador, o agerê de Xan
passa a ser figurado na forma do acarade Oiá, assim como o acará, que é o próprio
acarajé. A panela, contendo chamas, carregada por Xangô, passa a ser levada por Oiá. Essa
transição é uma das facetas que o mito relatado por Nancy quer nos contar. Do mesmo
modo que o acará, o caruru de quiabos termina sob a jurisdição de Oiá, ou seja, do tabuleiro
144
feminino, assim como as divindades gêmeas, equivalentes a Xangô ou paternalizadas por
este. Este caruru será doravante a comida dos gêmeos, que serão considerados filhos
também de Oiá.
O nascimento de gêmeos era um acontecimento perturbador na sociedade iorubana,
e estes, em tempos mais remotos, costumavam ser sacrificados. Com o seu falecimento, em
substituição à presença extraordinária desses gêmeos nas comunidades, esculpiam-se
efígies de ambos, ou de apenas um, caso seu par permanecesse ainda entre os vivos. Essa
transferência do nascimento de gêmeos para o âmbito do sagrado, mesmo através da morte
com sentido ritual, demonstra o quanto sua presença era interferente para com o
ordenamento da sociedade na visão de mundo iorubana. Portadores de uma desordem
estrutural, que se colava ao próprio corpo físico, que era como que duplicado, os gêmeos
precisavam ser reordenados, o que poderia se traduzir no ato literal de mandá-los de volta
para sua origem pré-mundana.
No entanto, em épocas mais recentes, a sacralização tomou uma face menos
violenta, em relação à sumária eliminação da desordem. Os gêmeos passaram a ser
reordenados de outro modo, com a vinda de um terceiro filho e com o culto público da
maternidade de gêmeos. As efígies continuaram a serem esculpidas, mesmo com a morte
natural dessas crianças. A mãe, também poupada, ficaria encarregada de realizar oferendas
periódicas que envolveriam toda comunidade ou um pequeno coletivo, como nos conta
Vivaldo da Costa Lima (2005). O autor, ele mesmo testemunha de certas obrigações
adquiridas pelas mães de gêmeos na Nigéria, também explica que este par peculiar de
irmãos, fossem eles seres viventes ou efígies herdadas do culto familiar, passou a ser
alimentado semanalmente com um prato específico, que depois seria distribuído entre as
outras crianças da casa dos gêmeos e da vizinhança. Mas este prato não seria o amalá nem
o caruru, e sim o ecuru, que é uma oferenda também registrada por Querino.
O ecuru mencionado por Querino, feito com fradinho, é comparado por este com o
acarajé, porém se aproxima muito do abará, por ser cozido em banho-maria envolto em
folha de bananeira, como o abará. No entanto, no ecuru, o bolinho é desfeito e misturado
com mel ou com dendê. Temos um prato que pode ser doce, o doce do mel se estendendo
ao melado e ao açúcar da cana para formar as comidas típicas do caruru-refeição dos santos
gêmeos em Salvador.
145
Em Salvador, especificamente, os gêmeos - já tornados santos gêmeos - eram
cultuados com oferendas alimentares pelo menos desde o século XIX. Tal fato é noticiado
pelo testemunho de oferendas realizadas ao estilo do candomblé diante das efígies de
Cosme e Damião em domicílios pertencentes a extratos sociais privilegiados, o que
demonstra o alcance já então centenário da crença (Nina Rodrigues 1988: 229), como
coloca em relevo Vivaldo da Costa Lima. Edison Carneiro e Ruth Landes testemunharam o
caruru na última década de 30, em Salvador, e escreveram sobre a cerimônia.
Em Salvador, esta reproduz, um pouco diversamente, a distribuição periódica de
comida que ocorre no costume iorubano. Porém a prescrição para salvar a ordem e, deste
modo, retornar a um estado auspicioso - e, portanto, próspero - tornou-se uma escolha por
parte de quem quisesse homenagear os santos gêmeos, restringida a uma única data do
calendário linear católico, 27 de setembro, a qual, por razões de praticidade, se estendeu ao
mês inteiro. Os gêmeos passaram a patronos da fertilidade e, conseqüentemente da
prosperidade, equivalência que seguiu um padrão simbólico recorrente entre as
ganhadeiras. Encontramos um desenvolvimento do significado basilar africano. A busca do
reordenamento, com a geração e vinda de um terceiro filho, identificada aos votos de um
breve nascimento que a distribuição de comida às crianças representava, carregou, em si
mesma, a insígnia da fertilidade e da prosperidade, que foram transformadas em atributo
dos gêmeos e depois dos santos. Esses atributos passaram a ser intercambiáveis numa troca
que envolve a realização do caruru em homenagem aos santos.
O papel do terceiro filho, assim como de sua cerimônia propiciatória, seria
fundamental. Este terceiro viria com a finalidade de se tornar uma espécie de primeiro
Augras (1994) o chama de filho substituto - reinstaurando uma nova ordem. Por isso
mesmo, ele teria íntima relação com o orixá Exu, divindade que precede todas as operações
rituais no candomblé. Vivaldo da Costa Lima (2005: 24) e Monique Augras (1994:80)
afirmam, através de um provérbio nigeriano, a relação da criança que vem após os gêmeos
com essa divindade. Ao mesmo tempo em que reordena, Exu, por ser um trapaceiro divino,
corrobora a desordem que havia sido iniciada pelo fato do surgimento dos gêmeos. Assim,
em compensação ao seu papel reordenador, a terceira criança tenderia a um temperamento
insuportável, como qualifica Augras.
146
Os intempestivos Xangô e Oiá, precedidos de Exu, em tripla divindade, podem se
identificar com os gêmeos ou com sua ascendência direta. Este trio reúne-se nos mitos em
torno do caruru, os quais apontam constantemente para a desordem, acompanhada da
criatividade. Esses mitos também dão suporte ao plano simbólico que sentido ao
tabuleiro. Neles, os três orixás - e outros, que se apresentam mais esporadicamente, como
Oxum, Oxóssi, Ogum ou Iemanjá - formam famílias, geralmente poligênicas, nas quais as
posições de cada orixá variam e os filhos podem formar uma réplica do pai ou da mãe,
inclusive os gêmeos, na sucessão de irmãos que estes obrigam à existência. No entanto,
Exu e Ibeji estariam sempre entre a descendência.
Um outro fator reforça a qualidade desordeira representada pelos Ibeji. O culto
gemelar aqui discutido surgiu, assim como as pequenas efígies juvenis, em função de
recém-nascidos e tomou um caráter de ritualização da infância. Vivaldo da Costa Lima
(2005: 42) afirma que erê, ou seja, “criança”, é o nome nagô dado às efígies de Ibeji. No
candomblé de Salvador, erê é o nome de um dos estados de transe das neófitas. Quando
possuídas pelo erê, estas dramatizam um comportamento infantil correspondente à sua
divindade patrona, como se esta fosse uma criança (Ordep Serra 1980), pois a iniciação
implicaria o nascimento da divindade e o renascimento da noviça. Para Ordep Serra (1980:
28), essa dramatização envolveria uma subversão da ordem em que a vida decorre,
comportando uma subversão do plano da natureza, no retorno à infância, e do plano da
sociedade, que recuaria ao seu limiar. Nos Ibeji, também encontraríamos, segundo Augras
(1994: 83) “um estado permanente de alteridade, uma ambigüidade que pode deslizar para
o reino da liminaridade”. Deste modo, a criança traria a liminaridade por ainda ser recém-
chegada ao mundo construído pelos adultos e a gemelidade intensificaria esse estado
liminar, pois os gêmeos são erês, mas também são Ibeji, são duplos.
Os ritos para Ibeji e as dramatizações de ese entreteceram em Salvador. Edison
Carneiro (1981: 150) explica em uma nota, sem elucidar completamente: “Todas as pessoas
que têm santo têm também um erê, que pode ser de Cosme, de Damião, de Doú ou de
Alabá. Este erê como que suaviza as obrigações da feita em relação ao seu Orixá”.
Doú seria o nome iorubano, com sotaque soteropolitano, do filho substituto, que
terminaria correspondendo, em mais uma expressão catolicizada, ao santo mártir Crispim,
como explica Augras (1994: 81). Crispim seria representado por uma terceira imagem
147
menor, entre as imagens dos gêmeos. Alabá seria o nome de um quarto filho
especificamente do sexo feminino, após a seqüência inaugurada pelos gêmeos (Lima 2005:
29; Augras 1994: 79). Poderíamos concluir que essa menina corresponderia ao santo
católico Crispiniano, martirizado junto com Crispim, porém sem ser seu irmão gêmeo.
Crispiniano seria o quarto irmão na segunda seqüência descrita por Augras em seu artigo.
Como veremos, existe menção a uma personagem Crispina, talvez uma tentativa popular de
adaptação.
Essas nomeações formaram uma seqüência consagrada, em Salvador, de até sete
irmãos, com algumas variações de nomes e posições. A seqüência de sete parece se revestir
de certa obrigatoriedade, do mesmo modo como os nomes são obrigatórios. Segundo
Augras (1994: 79-80): “Antes de mais nada, o fato do nascimento dos gêmeos introduz uma
ordem significativa na sucessão dos irmãos, pois o nome das crianças que se seguem não é
escolhido livremente, mas indica sua posição em relação a seus irmãos”.
Portanto, depois de gêmeos, sempre virão mais cinco crianças, assim como sete é o
número mínimo de crianças a serem convidadas para o caruru de preceito. Para tornar a
sucessão completa, Doú e Alabá se desdobram de Crispim e Crispiniano, enquanto mais um
personagem é acrescentado, podendo vir antes dos gêmeos ou após todos irmãos, ser
menino ou menina, segundo as diferentes versões do mito, além de possuir também
características incomuns para não destoar do padrão de excepcionalidade.
As baianas do acarajé estão familiarizadas com esse universo e costumam se referir
a, pelo menos, dois tipos de caruru para os meninos: o de setembro e o de outubro.
Rosângela Campeiro, que trabalha na Ondina, faz menção ao “caruru das mulheres. Ela
afirma que “assim como os gêmeos, as gêmeas”. O mês de outubro seria, então, um
mês de homenagem a Crispina, segundo Rosângela, ou às santas gêmeas. Outubro é o
mesmo mês em que a Igreja comemoraria Crispim e Crispiniano. Dezembro, para fechar o
ciclo, também seria um mês de caruru dedicado à principal divindade feminina que preside
o tabuleiro, Oiá, correspondente a Santa Bárbara. Setembro não deixa de ser um mês
também de homenagem a Xangô, identificado com São Jerônimo, numa comemoração
muito próxima à de Cosme e Damião, no último dia do mês. Na concepção das baianas, o
equilíbrio se estabelece, recebendo homenagens e caruru tanto Xane os gêmeos quanto
148
as gêmeas e Oiá. Vemos emergir, neste caso, uma relação de identidade e réplica entre os
orixás e as crianças.
A provavelmente recente comemoração das gêmeas levanta algumas questões sobre
o gênero dos Ibeji. Encontramos no relato de Ruth Landes (2002: 173), a menção a
Crispina, através de uma sacerdotisa menos ortodoxa dos cultos afro-brasileiros, que além
de possuir imagens de Cosme e Damião, De Alabá, guardava efígies de três casais de
gêmeos com nomes comuns. Em acréscimo a essa profusão de imagens cultuadas, ela ainda
apresentava outras: “Eu tenho outros gêmeos aqui Crispim e Crispiniano e Crispina e
Crispiniana. Assim tenho muita felicidade junto de mim!”.
Tanto no discurso da baiana do acarajé, quanto no da devota dos anos 30,
percebemos que, quando ocorre um mesmo sexo para os gêmeos, imediatamente a
duplicidade é compensada por outra dupla com o mesmo sexo entre si, porém oposto ao da
dupla anterior. A expressão “dois-dois, comumente usada para os gêmeos em seu culto,
não deixa de guardar a mesma fórmula, a qual, por sua vez, pode ser encarada como uma
fórmula ordenadora.
Monique Augras (1994) afirma que a dupla divindade, no panteão ioruba, estaria
representada sob os traços de uma menina e de um menino. Ainda segundo a autora, a
devoção popular no Brasil acabaria se dirigindo a dois casais de gêmeos, sob o nome de
Cosme e Damião, Crispim e Crispiniano. No entanto, a mitologia ioruba, na visão de
Vivaldo da Costa Lima (2005: 42), teria nos gêmeos uma exceção à regra da polaridade
simbólica expressada pelo casal, ou seja, pelo par complementar que apresenta masculino e
feminino. O princípio polar, que seria fundamental aos padrões míticos iorubas, não estaria
representado na imagem dos gêmeos:
Um conhecimento menos superficial da mitologia e da teogonia ioruba faria
lembrar que as representações materiais e simbólicas de seus mitos baseiam-
se no princípio arraigado da dualidade, da polaridade simbólica. Mas os
gêmeos é que são, precisamente, a exceção a essa regra, à regra da dualidade
das representações. Isto pelo fato de que as figuras dos meos o
expressam o par complementar das polaridades, o homem e a mulher, mas
representam, na verdade, o gêmeo ou os gêmeos mortos.
Em termos biológicos, sabemos que o nascimento de uma dupla de gêmeos dentro
de uma família pode variar entre um par do sexo masculino, um par do sexo feminino ou
149
um casal. Deste modo, podemos concluir que o sexo das imagens esculpidas também
variou, conforme os casos ocorridos dentro de cada família iorubana. Todavia, quando isso
se transferiu para o plano da representação, os Ibejis parecem ter sido arrebatados pela
regra da polaridade. Pelo menos, foi o que pude observar, em relação às gêmeas e ao papel
de Oiá, representando as mulheres no tabuleiro, como provedora e também consumidora do
caruru em dezembro. Em confirmação, a crença soteropolitana nos aponta irmãos de ambos
os sexos (e não apenas de um único) na seqüência obrigatória, pelas denominações dos
gêmeos, das gêmeas, ou de crianças de determinado sexo em determinada ordem. Fica
claro, também, que o culto absorveu fortemente o gênero dos santos católicos, todos do
sexo masculino. Porém a presença do feminino é sempre tão fundamental que temos
variações como Crispina
92
, as gêmeas e a permanência de nomes de meninas, como Alabá.
Por fim, na sucessão de sete irmãos, estes poderiam ser identificados tanto com orixás do
sexo masculino, quanto do sexo feminino. Ao focarmos sobre o tabuleiro, o emergir dessa
polaridade remete-nos, mais uma vez, a Xane à sua face feminina, Oiá, sua esposa e
igual, por partilhar da sua natureza ígnea.
As baianas do acarajé não mantêm apenas uma relação periódica com o caruru e
com os gêmeos, mas cotidiana. Embora, durante setembro especificamente, sejam mais
requisitadas para preparar o caruru encomendado por algum cliente e, nesta época, a
procura do acará aumente, como algumas me afirmaram, o período de caruru se estende
muito adiante. A partir de setembro, abre-se um ciclo do caruru, que compreende os meses
seguintes até o fim do ano, à exceção de novembro. Mesmo assim, foi instituída uma data
comemorativa da própria baiana em fins de novembro. Com janeiro e fevereiro, m as
festas de largo e o carnaval, as vendas e o ritmo amainando apenas em março.
Além do extenso período em que se oferece caruru, que é uma refeição que
comporta todos os pratos comuns do tabuleiro e algo mais, as baianas possuem rituais que
são prescritos para a abertura cotidiana de seu comércio se desejam uma boa venda.
Segundo elas relatam, tão ambiguamente quanto o próprio papel dos gêmeos, as primeiras
oferendas do dia para se obter uma boa venda sempre se relacionam a crianças e, ao mesmo
tempo, aos que cuidam das ruas, ou seja, ao complexo de apreciadores da refeição-caruru.
92
Cheguei a encontrar na praia em frente ao Ondina Apart uma baiana de acarajé de nome Crispina, que
substituía sua filha no dia. Este pareceu ser um nome comum, mas com relações com o tabuleiro.
150
O material utilizado para atrair dinheiro e clientes é constituído por alimentos,
perpetuando o padrão culinário dos cultos. Do universo de baianas com que tive contato,
muitas o apelidam de “água de chama. A operação ritual para chamar coisas boas começa
com a lavagem do local onde se vai trabalhar. Nesse ponto todas concordam, porque a
pureza ritual se confunde com a higiênica assepsia, aceita unanimemente entre baianas
“católicas”, que são as que se permitem freqüentar cultos afro-brasileiros, as de “seita -
termo que, surpreendentemente, ainda vi ser usado para significar o candomblé e as
“cristãs”, categoria que engloba protestantes, pentecostais e neo-pentecostais. Uma delas
me mencionou um banho corporal da própria baiana com ervas, “para abrir os caminhos”,
ao estilo do candomblé.
Com exceção da limpeza do ponto onde se vai trabalhar, as receitas para atrair boa
venda variam, porém sempre em torno de dois ingredientes: água e açúcar (ou mel, menos
comum). Essa água também pode ser água-de-cheiro” ou conter ervas (não reveladas)
adicionadas ao açúcar. As ervas propiciatórias que se expõem são colocadas em pequenos
vasos sobre o tabuleiro e também variam. A arruda, por exemplo, é bastante citada. As
festas de largo trazem a obrigatoriedade de se colocar flores no tabuleiro. Encontrei no
Bonfim plantas que elas descreveram como aroeira, são gonçalinho, e genericamente
“folhas de caboclo. Encontrei também, como no tabuleiro de Rosângela, em Ondina,
imagens em madeira de indígenas típicos. Uma frase de Gilnate Silva Araújo, que encontrei
no Bonfim, define a grande finalidade desses apetrechos: “Boto folha, perfume, pra ficar
bem docinho....”. Portanto, a proteção e a atração de boa clientela, decorrentes do uso
dessas substâncias, seriam potentes em função do emprego do açúcar, elemento
emblemático de Ibeji.
Além disso, como complemento da receita que chama coisas boas, temos a oferenda
feita para os meninos. Esta pode ser a própria água açucarada que “é bom para dar aos
meninose, preferencialmente, sete bolinhos de acarajé pequenos. Esse ato de oferta pode
ser chamado de “despachar a rua. A ação é uma referência ao orixá Exu (Rodrigues 1988:
228; Ramos 2001: 43; Carneiro 1936: 42; Bastide 1961: 221), cujo sentido desliza entre
mandar embora a entidade, enviá-la para algum lugar ou mandá-la fazer algo, e rápido. É
interessante notar que as baianas empregam o termo “despacharpara o ato de entregar o
alimento ao cliente, ou mesmo o troco.
151
Assim, o procedimento se resume a fritar os primeiros sete bolinhos do dia e colocá-
los à parte na rua, algumas vezes “nos pés de uma árvore. Uma das baianas, além de
realizar essa operação, também dá bolinhos pequenos, “purinhos”, para crianças com
menos de doze anos de idade que aparecem diante do tabuleiro, sem cobrar.
Outra baiana do acarajé, Tânia, que vende no Farol da Barra, tem a percepção de
que essa oferenda, muitas vezes, continua sendo tradicionalmente feita pelas baianas sem
que se possua mais um conhecimento profundo dos mitos que envolvem o tabuleiro. Desse
modo, ficaria estabelecida a dúvida sobre os destinatários dos bolinhos. Todavia, como
vimos, a dúvida surgiria da própria ambigüidade que paira sobre essas divindades, sendo
elas próprias um signo do ambíguo. Assim, os bolinhos estariam relacionados à sucessão
das sete crianças encadeada pelos gêmeos, mas também se caracterizariam como uma
primeira oferta àquele que vem primeiro. Tânia atribui essa ambigüidade ao
desconhecimento a respeito da tradição:
Tem baianas que falam que esses sete bolinhos são oferecidos a Cosme e
Damião. Quando na realidade, pelo pouco que eu sei do candomblé, porque
eu nasci dentro de candomblé, esses sete bolinhos não são oferecidos para
Cosme e Damião. Pelo pouco que eu sei, eles estão abrindo as portas. Na
verdade, são oferecidos para a escrava da rua, o escravo do dia, daquele
orixá. Então tem baianas que fazem isso porque viram a mãe ou a avó ou a
tia fazer. Sentam no tabuleiro e vão fazer e não sabem nem porque estão
fazendo aquilo.
Ela própria, mesmo possuindo alguma informação, declara não realizar esse tipo de
oferenda, em respeito à fidelidade com que devem ser seguidas as prescrições rituais do
candomblé, cuja transgressão parece ser algo bastante sério. “Fazer pela metadeseria uma
“ousadia para o candomblé, o que pode ser interpretado como uma ousadia para com as
divindades patronas do tabuleiro e, portanto, para com o próprio tabuleiro.
Segundo essa fala apresentada pela baiana, são os “escravos ou “escravas de cada
orixá que recebem a oferta das ruas, ou seja, os exus que trabalham para tornar manifesto o
poder de cada divindade, por terem o papel de atravessar do mundo para o além-mundo e
vice-versa. Roger Bastide (1961: 233) fala desse papel: “Com efeito, todos os nossos
informantes são concordes em que todo Orixá tem seu ou seus Exu, que são como que seus
servos ou seus escravos”. Mas a memória da baiana lhe traz primeiro à boca a palavra no
152
gênero feminino: escrava da rua. Esses detalhes pinçados no discurso informam o quanto a
idéia das gêmeas ou das escravas está presente, em constante referência a divindade
feminina, cuja tradução predominante do tabuleiro é Oiá.
A servidão dos meninos, quer dizer, dos descendentes que são filhos, faz parte de
uma concepção básica do candomblé - um culto formado por ganhadeiras, - em que a
relação do ganho, que implicava ser escravo de alguém, passa a traduzir a ação de trabalhar
por ou trabalhar em prol de uma comunidade pela qual se tivesse sido adotado. Os exus,
então, servem os orixás, sendo réplicas suas, de certa forma menores, que andam a cumprir
tarefas mundanas, realizações materiais. Por isso, com relação ao tabuleiro, os primeiros
acarajés seriam a eles destinados.
A figura do moleque, ajudante típico do tabuleiro, geralmente filho (ou filha) da
vendedora, encarregado de pequenos serviços, como buscar troco ou “trocar a água,
termina se confundindo no plano mítico com os meninos que são filhos e que são, ao
mesmo tempo, servos.
O acarajé e o açúcar - na forma de alimentos adoçados - fariam parte do menu
cotidiano dos meninos. Do mesmo modo, o bolinho e os doces são as comidas servidas no
tabuleiro. vimos que o tabuleiro, basicamente, compõe-se de acarajé, abará também
apreciado pelos meninos (quando se transforma em ecuru) e, sob o ponto de vista de
Câmara Cascudo, uma das formas mais autenticamente africanas, por não ser uma fritura,
sendo preparado envolvido com folhas de bananeira molho de pimenta com camarões e
vatapá.
O caruru de quiabos sobreveio recentemente. Por não ser tradicionalmente servido,
é visto com certa reserva e argumentos higiênicos não faltam para justificar a sua ausência
de alguns tabuleiros. No entanto, sua presença não confronta de modo algum o tabuleiro,
por fazer parte de seu complexo mítico, complementando simbolicamente e agora
literalmente - o acarajé. Curiosamente, a salada, muito mais intrusa, adaptou-se
rapidamente sem causar polêmicas. O formato da salada se consolida no Brasil apenas no
final do século XIX (Câmara Cascudo 2004: 496-7). Sua chegada ao tabuleiro seria, então,
durante o século XX, para dar ao acarajé um aspecto de refeição.
Os doces vêm se somar ao acarajé. Representam uma tradição portuguesa
abrasileirada. As balas, rebuçados de outrora, e os roletes de cana saíram do cotidiano do
153
tabuleiro e se transportaram para a homenagem setembrina dos meninos. Hoje as baianas
descrevem como doces de tabuleiro o bolinho de estudante, as cocadas e o docinho de
tamarindo. Outros acompanhamentos, mais esporádicos, podem ser servidos no tabuleiro
também, como a passarinha e o peixe frito, ou até mesmo frango frito no dendê.
O bolinho de estudante é feito com a tapioca a fécula da mandioca, também
conhecida como a “goma frito ou assado e passado na canela. O assado seria mais
tradicional e mais gostoso, segundo minha informante Gilsa, que já trabalhou com o
acarajé. Em outras cidades, como Recife e Rio de Janeiro (Lody 1998; informação de
vendedoras em outros estados), as baianas vendem beijus de tapioca junto com o acarajé, o
que marca a presença da tapioca no padrão do tabuleiro.
As cocadas ou “quejadas
93
de coco branco, de coco queimado e de amendoim são
nacionalmente conhecidas, do mesmo modo que o acarajé. também a cocada-puxa, cuja
consistência lembra a origem mourisca dos doces portugueses, sintetizada na alféloa, uma
espécie de caramelo cuja venda era exclusivamente feminina. O docinho de tamarindo é um
alimento bem local, que forma uma pasta escura da cor da fruta. Ao contrário do coco, o
tamarindo não deixa dúvidas sobre sua origem africana, tendo sido replantado no Brasil.
Merece um aparte, a passarinha. É uma víscera bovina bastante encontrada no
tabuleiro e faz parte da tradição pois, como relata Valdicéia, que vende em frente à praça da
Sé, “quem era de Ogum vendia fato, quem era de Iansã vendia acarajé. Como o tabuleiro
sintetiza os alimentos vendidos pelas ambulantes, a passarinha é bastante representativa. O
fato e as vísceras do boi eram uma vianda bem apreciada e, como vimos, as vendedoras de
fato desapareceram no início do século XX. Mãe Nicinha informou-me que
tradicionalmente o acarajé poderia ser vendido por quem pudesse carregar azeite de
dendê na cabeça, uma atividade permitida somente a certas filhas de Iansã. Todavia,
mulheres tuteladas por Iansã também poderiam vender o fato e a carne.
A própria Mãe Nicinha se lembra de um doce de tabuleiro chamado “amoda, que
era doce de gengibre e rapadura, hoje em dia não sendo mais comum. Um pouco diversos
dos doces atuais correntes no tabuleiro, os doces típicos da refeição-caruru que me foram
93
Segundo Hildegardes Vianna (1979: 133): “À base de coco cortado aos fiapos ou simplesmente com
amendoim (sem coco) a queijadinha exige rapadura, açúcar mascavado ou mesmo branco, resultando numa
gostosura fácil de fazer e facílima de comer”.
154
mais citados são os roletes de cana, rapadura e a banana frita. A refeição traz também as
iguarias salgadas do tabuleiro e algo mais da culinária afro-baiana.
Edison Carneiro (1969: 93) descreve os pratos que acompanhavam o caruru dos
candomblés em sua época nesse caso, na década de 40: feijão fradinho, abará, acarajé,
galinha de xinxin, acaçá, banana da terra em azeite de dendê, milho branco, inhame, farofa
de azeite de dendê com camarão, pipocas. E acrescenta: “De faca em punho, as mulheres
cortam roletes de cana, pedaços de coco. Outras fazem aluá, uma garapa de cascas de
abacaxi em fusão ou de gengibre com rapadura. De tudo isto, porém, é indispensável o
caruru”.
Ruth Landes (2002: 160-79), junto com Édison Carneiro, na última década de trinta
em Salvador, também presenciou um caruru oferecido por uma mulher que pertencia a uma
tradição vista como não ortodoxa e “cabocla. Nesse episódio, o caruru servido no chão
para as crianças fazia uma composição com acarajé, vatapá, galinha cozida, amendoim
torrado e roletes de cana. Depois de as crianças terem terminado de comer, os adultos
sentaram-se à mesa e degustaram caruru-de-candomblé (que devia ser uma versão do amalá
sem adição de castanhas e outros temperos), abará, vatapá, galinha, castanhas de caju,
farofa, ovos cozidos, feijoada, banana frita e mugunzá. Acaçá e aluá, que não aparecem
nessa descrição de um caruru menos ortodoxo, deveriam estar se recolhendo aos
terreiros, embora Câmara Cascudo os soubesse populares uma vintena de anos antes.
A refeição não se modificou muito em algumas décadas, embora tenha sido
simplificada e tenha adquirido alguns aspectos novos, o que também aconteceu com o
próprio prato do caruru. Este foi incrementado com a adição, no próprio preparo, de
gengibre, de castanha e de amendoim – os últimos, como vimos, servidos separadamente na
década de 30. As baianas do tabuleiro descrevem os mesmos pratos, tais como os
imprescindíveis acarajé e abará, além de vatapá, feijão fradinho, farofa de dendê, banana
frita, cana e rapadura. Feijão branco
94
e arroz também aparecem. As pipocas às vezes são
citadas, às vezes não. As regras para o preceito permaneceram quase inalteradas. Edison
Carneiro (1936: 45) as relata: “Muito interessante (...) é o costume de dar comida às
crianças numa grande bacia, que se coloca no chão, sobre uma esteira, onde se assenta a
meninada para comer em comum, utilizando apenas as mãos”.
94
Apesar de poder configurar uma proibição nos cultos, ele me foi citado.
155
Como sabemos, a comida é servida depois do primeiro bocado ter sido tirado
para os gêmeos. Landes presenciou, na versão menos ortodoxa, o uso da toalha no chão e
de travessas com os alimentos separados, mas o comer com as mãos, fazendo lambança,
permaneceu. Apesar da tradição prescrever sete crianças, as que Ruth encontrou
ultrapassavam a soma de vinte.
Hoje, pelas descrições das baianas sobre o caruru popular, mais divulgado, as
comidas são servidas em pequenas porções em pratinhos descartáveis, tirando-se primeiro
dois pratinhos para Cosme e Damião. Sete meninos se sentam no chão num pano branco e
são servidos, como informa Ana da Cruz, do acarajé de Cira. Esta faz anualmente seu
caruru, onde, segundo Ana, compareceram “mais de oitocentas pessoas”. É interessante
observar que Cira é uma das baianas mais bem sucedidas de Salvador. Seu caruru
numeroso e rigorosamente renovado reforça o discurso tradicional sobre os poderes dos
gêmeos em propiciar prosperidade.
Dois aspectos são interessantes para nossa discussão. O comer no chão sobre uma
esteira era um costume colonial bastante arraigado que permaneceu entre os fazendeiros do
sertão até o século XX, e não denotava pobreza, sendo a mesa reservada para refeições
cerimoniosas (Câmara Cascudo, 2004: 820). Os candomblés mantêm o costume de comer
no chão para os iniciados sem senioridade como, aliás, também mantêm uma porção de
costumes coloniais e barrocos, dando-lhes uma justificativa de preceito ritual.
Um segundo aspecto, a lambança, relaciona-se também com a falta de cerimônia.
Temos nessa característica a marca do que os gêmeos representam: a desordem, o ambíguo,
o liminar, a exceção. JoJorge de Carvalho (1994: 106) encontra na jurema um culto
agregado ao do xangô de Recife, porém mais sincrético e considerado mais perigoso pelas
outras formas de religião católica ou de origem africana - um comportamento de inversão
aproximado da lambança dos meninos. Em certo momento da sessão de jurema, as
entidades os Mestres da jurema - manipulam alimentos, jogando-os no chão ou
esmagando-os, o que os torna uma espécie de anti-comida que deve ser provada para que
cada entidade possa propiciar sua proteção e boa disposição em relação aos assistentes.
José Jorge de Carvalho nesses comportamentos de impureza, em grande parte,
uma paródia do ato de preparar e servir comida, tipicamente ordenado, dos candomblés
tradicionais. No entanto, podemos concluir que, a partir do caruru, aos meninos ficaria
156
reservada a permissão de se mostrarem desordeiros em meio à ordem, para que da
insinuação deste estado liminar, ou melhor, original e caótico, surgisse algo criativo, uma
nova vida, a abundância de vida que trouxesse realização material.
Deste modo, as crianças podem, nesse dia, esfregar as sobras do caruru em suas
mãos em todos os lugares, na toalha, nas roupas dos adultos ou no próprio corpo,
“abençoando cada parte com a substância gosmenta e pegajosa dos quiabos. Essa
lambança mistura-se ambiguamente com a ordenação dos pratos e das sete crianças em
roda em torno da toalha branca
95
. O caruru não se caracteriza como anti-comida, mas é
viscoso. Mary Douglas (1976: 53) em seu estudo sobre impureza descreve longamente o
estado viscoso como representativo da própria ambigüidade, por se classificar entre o
sólido e o líquido. Alimentos viscosos, como o mel, o melado um dos estágios do açúcar
da cana – e o caruru, são os alimentos de Ibeji.
Não apenas as sete crianças convidadas para o caruru, mas também os possuídos
pelos erês têm esse comportamento de lambança. José Jorge de Carvalho lembra que uma
moça em transe na jurema procurava baratas para comer. O transe de alguns erês, que se
dentro dos candomblés tradicionais seguindo a ordem ritual, também leva a esse
comportamento considerado asqueroso. Os erês podem se referir às baratas com
eufemismos, tais como “camarão, assim como macarrão, inversamente, pode ser chamado
de “minhoca”. No candomblé, esse tipo de comportamento sofre, no entanto, mais controle.
Dentro dos candomblés, pessoas adultas em estado de erê geralmente reclamam por
comidas e bebidas doces o mel dos Ibejis - e sempre planejam e executam traquinagens,
travessuras e diabruras. Isso os aproxima de Exu que, por sua vez, identifica-se com o
terceiro irmão dos gêmeos. Essa tessitura mitológica reforça o sentido de desordem, que se
transfere para o tabuleiro. Não exatamente a total desordem, mas o limiar onde ela começa.
Enquanto símbolo de um portal, de um lugar de transição, a atividade do tabuleiro leva às
ruas parte do ritual cumprido nos terreiros, através dos alimentos, criando uma espécie de
duplicidade que leva à cumplicidade com os cultos, nem sempre consciente, de quem
consome esses alimentos. O tabuleiro passagem à disseminação não completamente
explícita do culto dos terreiros.
95
Na versão de Carneiro, tem-se a impressão de que os alimentos se reúnem numa bacia, menos ordenados.
157
A rua também é um território onde a desordem tem licença para imperar, na visão
do candomblé. É o domínio de Exu por excelência e do dendê como alimento. A própria
história das ganhadeiras refere-se a essa memória da rua como o lugar em que as africanas
escravizadas podiam escapar da ordem do regime servil mediante algumas inversões, por
vezes vantajosas para seus proprietários e proprietárias no afã de exploração de seu trabalho
forçado e de sua mobilidade, causada por uma posição limítrofe na sociedade.
No limiar se localizam os erês, os gêmeos, acompanhados por Exu que transita,
junto com os alimentos, entre terreiro e tabuleiro. O tabuleiro também desordenaria a
própria urbanização idealizada e almejada pelo poder público soteropolitano ao longo de
séculos. Isso se comprova pelas tentativas de controle e matrícula da ambulância, das
vendedoras e, posteriormente, dos tabuleiros, que ainda hoje sofrem interferências
municipais em busca de uma eficiência quanto ao lucro comercial e quanto à higiene, que
por vezes vai além do campo da saúde em que deveria se manter confinada.
Em sua história secular, as próprias baianas do acarajé, mães simbólicas e criadoras
de toda esta desordem, se achavam classificadas a priori pela sociedade dominante,
desde os tempos coloniais, em uma posição marginal, pelo fato de terem nascido com um
corpo anatomicamente feminino. Ou seja, além de africanas destinadas à servidão, eram
também mulheres. Os europeus envolvidos no processo de colonização das Américas e no
tráfico de cativos africanos guardavam um imaginário que associava o feminino à
indefinição e às pulsões corporais consideradas indomáveis e perigosas, como a
sexualidade. Mais tarde, invadindo o campo dos conceitos, essas associações se
exacerbaram e ganharam justificativas racionais. Desse modo, surge o que Michel Foucault
considera, em sua obra, uma patologização da mulher, criando a necessidade de controle do
corpo feminino pela medicalização (Michelle Perrot 2005: 497).
As vendedoras baianas, ao longo de sua história, foram atingidas em cheio por essas
idéias dominantes. Isso aconteceu principalmente no século XIX e no início do século XX,
quando os saberes da medicina que se institucionalizava buscavam manipular o que
consideravam patologias do feminino, enquanto medidas sanitárias baseadas também neste
saberes tentavam reorganizar o espaço urbano. As baianas do tabuleiro encontravam-se no
ponto nodal do que se pretendia controlar, no limiar. Embora algumas pudessem ter se
emancipado e ascendido, ainda dominavam as ruas com seu pequeno comércio, praticavam
158
rituais que reconheciam a força de divindades desordeiras, traziam essa experiência para o
cotidiano da cidade e, por fim, entravam em transe, o que era considerado uma peculiar
patologia feminina, uma espécie de histeria
96
. A construção do candomblé e da
exclusividade feminina, advinda do trabalho das ganhadeiras, reforçava o sentido de
desordem, por enfatizar uma preponderância feminina.
Em meio a esse processo, exercer controle passou a ser uma questão de saúde e,
portanto, de higiene. Ferreira Filho (1998: 245) descreve algumas conseqüências desse tipo
de controle que nos interessam mais imediatamente:
A qualidade da comida da rua passou a ser uma preocupação obsessiva. O
suor desprendido na rotina profissional, particularmente dos pretos, pelo seu
“odor nauseabundo’’, o contato manual com as iguarias vendidas e as
condições de fabricação das comidas de rua, segundo o pensamento
higienista em voga, era a porta de entrada para os miasmas e,
posteriormente, dos micróbios e dos vírus, que tanto debilitavam a precária
saúde dos baianos.
Se Vilhena, tendo vivido no século XVIII, via pouco asseio nos doces e sujeira no
aloá, a desordem simbólica finalmente se tornava uma construção palpável e, desse modo,
controlável, para o pensamento dominante e materialista do século XIX. Pois agora, a
desordem, traduzida pela falta de limpeza, que porventura residisse nos alimentos, era
passível de emanar das próprias vendedoras
97
, que deveriam ser higienizadas
(medicalizadas e normatizadas) mental e corporalmente. Disso dependeria a higiene do
próprio espaço urbano. Era preciso, portanto, conhecer e mapear esse território desordenado
das mulheres afro-descendentes e dos terreiros. Nina Rodrigues, um homem de sua época, é
uma referência nesse mapeamento. Ele também utilizou um discurso médico, na tentativa
de apreender esse vasto campo sócio-cultural. Enquanto isso, os candomblés sofriam uma
perseguição policial também controladora.
Se, com a passagem do tempo, o discurso médico foi substituído por outros saberes
especializados na compreensão dessa realidade afro-brasileira, a higiene continuou sendo
um instrumento de avaliação da culinária das ruas. A preocupação obsessiva com a
qualidade da comida da rua não passou, de modo algum. Podemos dizer que as
96
Arthur Ramos (2001: 200-226) se detém longamente no assunto e coloca imagens de uma filha-de-santo em
transe ao lado de desenhos de um “ataque histérico.
97
Embora tivessem concepções de asseio tradicionais, baseadas na pureza ritual, ainda em vigor nos cultos.
159
interferências das antigas campanhas sanitaristas, apesar de levantarem resistências,
conseguiram bastante sucesso. Criaram, no entanto, uma eficiência que o conseguiu ficar
restrita à assepsia. Os poderes públicos conseguiram finalmente persuadir as mulheres das
ruas que elas deveriam se subordinar ao seu controle por questões de assepsia que,
entretanto, confundem-se com questões raciais e com o que estas acarretam em falta de
recursos sociais e econômicos. A suposta impureza das vendedoras que nos remete à
desordem simbólica que sua condição particular sempre representou - foi naturalizada, sob
o discurso universal da higiene. Este, por sua vez, se propõe universal, mas a obsessão com
higiene, o tom de exagero, continuam a acompanhar o tabuleiro, enquanto as regras
higiênicas costumam ser menos levantadas ou discutidas em outras áreas – por exemplo, no
processamento industrial de alimentos ou nos casos de poluição causada por sujeira
química, tão mortal ou mais que a contaminação biológica.
Assim, mais recentemente, as tradições femininas recriadas por afro-descendentes
em Salvador perdem-se na memória da história guardada pelas comunidades, enquanto
justificativas higiênicas se sobrepõem a elas. A principal função do turbante não seria mais
o adorno da cabeça, o signo da opulência, mas sim a higiene da comida e, indiretamente, o
“domar o cabelo crespo A alvura dos tecidos esquece-se de seu simbolismo para se tornar
um sinal estrito de limpeza.
A higiene como valor maior não reside apenas na definição das roupas, mas também
na escolha dos utensílios e aparelhos de trabalho. Assim, pormenores tornam-se
fundamentais. A vitrine que deixa o alimento exposto nos tabuleiros modelo não deve
permitir que o calor estrague os alimentos, devendo ser feita de policarbonato com proteção
contra os raios ultravioleta. Tudo deve ser padronizado e estar completamente desinfetado.
As baianas não podem “colocar a mão no carvão e manipular os alimentos, como se fazia
quando os fogareiros, de modo geral, usavam o carvão para o fogo. O problema do carvão é
exemplar, pois não sendo uma substância suja, no sentido de infecta, produz um
enegrecimento indesejável das mãos.
As exigências complicam a vida das baianas, quando antes se podia “fazer tudo
sozinha, como explica Maria de Jesus Cerqueira, uma das baianas que trabalha próxima a
Cira de Itapoã. As exigências trazem a necessidade de mais auxiliares. Essa expressão
160
mostra a preocupação da baiana não com a informalidade do trabalho - considerado
“precário por um pensamento dominante - mas com a autonomia que este pode lhe dar.
A busca da mecanização, que aumentaria a produção, parece uma aspiração inócua.
Porém, mesmo a posse de um aparelho de processamento semi-industrial, que parece
acenar com a promessa de bons negócios, carrega a marca de uma uniformização do
alimento, de um arrebatamento deste alimento do contato com as mãos da cozinheira, que
pode se traduzir, de forma sub-reptícia, no desejo de que o acarase desprenda de seus
laços simbólicos com a desordem. Desejo inconfessável, logo legitimado por justificativas
que remetem à sujeira produzida pelo contato com o corpo humano.
Esse desejo de uniformização é compartilhado pelas baianas do acarajé evangélicas,
pressionadas por seus líderes religiosos, num plano mais direto e franco, de forma
assumida. Elas têm noção de que o confronto se encontra num plano simbólico-religioso
que, como nós sabemos, é também político. Para elas, o problema residiria na conversão
não alcançada de todas as baianas ao monoteísmo cristão. Este prega que todos os
alimentos são “frutos da terra”, numa espetacular uniformização estratégica que transfere
todas as coisas para a jurisdição do único foco de poder de um deus masculino.
Enfim, o desejo de uniformização do alimento é o desejo de eliminação da
alteridade e de sua visão de mundo, ambos encarados como atributos demoníacos ou
resquícios atávicos perigosamente próximos de pules agressivas e transgressoras. Essas
fórmulas biologizantes, que parecem saídas do século XIX ou da primeira metade do século
XX, se revestiram com nova roupagem e terminaram por se ancorar no discurso da higiene.
Por isso, a higiene, nesse caso das comidas de tabuleiro, ainda é uma questão de
domesticação e de controle. As constatações a respeito da existência da sujeira e as
expressões de exigência dessa higiene, entretanto, tornaram-se mais sofisticadas, menos
perceptíveis como interferência, por vezes, arbitrária. A dificuldade ocorre precisamente no
ponto em que é necessário identificar o que é a demanda real e legítima de assepsia e o que
é um jogo de impureza disfarçado. Com a ascensão do discurso da higiene, o acarajé vai
ficando cada vez mais próximo do laboratório, domínio masculino dos mestres de
gastronomia que agora querem associá-la à química.
Assim, o bolinho passa a ser esquadrinhado, medido em suas calorias, pensado em
termos de engenharia de alimentos. Por outro lado, seus ingredientes passam a ser
161
processados separadamente, como o feijão fradinho que é comumente vendido quebrado. A
serialização também acompanha o próprio serviço e a baiana que faz a massa não realiza
mais a fritura, por exemplo. Alguns ingredientes se transformam em alimentos semi-
prontos, ou mesmo os pratos são vendidos em pacotes de semi-prontos na rede entre
computadores
98
. Sobrevêm as mudanças na composição, que buscam alimentos menos
calóricos e mais simplificados no preparo. Esse processo de industrialização, que não deixa
de ser criticável, parece mesmo inevitável.
Essas mudanças englobam um processo uniformizador dos alimentos que é bem-
vindo pelo discurso de uma higiene pouco afeita à diversidade. A higiene, reciprocamente,
pode se tornar uma desculpa para a industrialização, mesmo quando existe a ciência de que
o macro-processamento industrial é pouco passível de um total controle higiênico. Nesse
sentido, a comida artesanal, em seu micro universo, teria uma possibilidade muito maior de
seguir as restrições assépticas recomendadas pelas prescrições da medicina, além de ser
muito mais saudável em relação a aditivos químicos. A insistência na pureza higiênica, que
se confunde com a uniformização industrial, age, assim, como a última camada lançada por
sobre as velhas ferramentas de eliminação da alteridade.
As baianas do acarajé tentam comunicar seu protesto: “não se deve desfazer do
acarajé”. Ao mesmo tempo, têm que lidar com normas de higiene e normas de controle
disfarçadas em normas de higiene, as quais precisam incorporar porque seus clientes,
locais, nacionais ou internacionais vão colocar valores pseudo-higiênicos como universais,
podendo, assim, exigi-los taxativamente. Todavia, seriam outros tipos de valores
politicamente dominantes que estariam sendo empurrados para debaixo da universalidade
das regras de higiene ocidentais.
Em conseqüência desse quadro geral, as baianas são obrigadas a justificar sua
tipicidade através de valores higiênicos, como se houvesse uma estética da higiene por
detrás dos trajes típicos e das travessas de comida. Tudo se passa como se uma permissão
houvesse sido dada mediante certas condições. Seria permitida a indumentária da baiana. A
concessão ocorreria pelo caráter exótico e atrativo, em termos de turismo, da roupa. Porém,
o consentimento se basearia na manutenção de regras de manipulação e padronagem.
98
A empresa de produtos Oya Alimentos, por exemplo, oferece na rede pacotes de farinha de feijão fradinho,
mistura para vatapá, sabor galinha ou sabor camarão, azeite de den, kit para acarajé e farinha para acaçá,
anunciando como produtos sem conservantes.
162
Dessa maneira, institui-se a regra de usar uma “farda” de baiana típica colorida com
as tonalidades referentes ao orixá patrono de cada dia da semana. Uma medida de proteção
diante da ameaça de uniformes padronizados usados por pessoas empregadas em setores de
venda de alimentos. Todavia, uma proteção mediante a recíproca concessão de tornar o
traje típico em alguma medida signo de higiene.
163
Intervenções e tentativas de controle sobre as mercadoras
Abastecimento e o cerceado trabalho feminino nas ruas de Salvador
O acarajé começou com a ganhadeira, que foi o protótipo da vendedora de tabuleiro
e cujo trabalho englobava a venda de gêneros alimentícios in natura e comidas prontas. As
ganhadeiras povoavam as ruas, junto com as lavadeiras e as cativas que apanhavam água
para abastecer as casas, enquanto outros serviços domésticos eram realizados por africanas
que se transformavam nas mucamas de suas senhoras. A atividade das vendedoras, no
entanto, guardou a particularidade de vir sendo recorrentemente regulamentada desde o
princípio de sua consolidação, assim como sua indumentária também sofreu interferências
nesse sentido. Desde cedo, a licença e o registro implicavam em tributo e receita, mas a
questão nunca se reduziu ao aspecto econômico.
Se em 1641, as “pretas deviam ter licença para vender nas ruas - o que foi uma das
primeiras formas de controle por parte do governo português - temos notícia, em 1769,
de uma tentativa de reforma urbana, empreendida pelo segundo Marquês do Lavradio, que
era então governador da capitania da Bahia. Caracteristicamente, a reforma, que pretendia
organizar a cidade, tentou retirar as quitandas das ruas (Vasconcelos 2002: 131).
Esse episódio acontece num momento de transição para Salvador, com a descoberta
de ouro em Minas Gerais, no fim do século XVII e a transferência da capital para o Rio de
Janeiro (1763), que se torna porto de escoamento do ouro, Salvador ainda se mantém como
principal praça comercial, mas o centro difusor de bens simbólicos passa gradualmente a
ser a nova sede do governo. Mais tarde, Salvador vai perdendo também seu papel central na
economia que se consolidava como nacional.
Na mesma época da transferência da capital, parece ter acontecido um acirramento
da repressão aos quilombos em Salvador. O quilombo do Buraco do Tatu, que existia desde
1743, foi atacado por forças governamentais aliadas a uma aldeia indígena em 1763
(Vasconcelos 2002: 150). Um fechamento da repressão sobre os africanos aquilombados é
representativo de um contexto que começa a se tornar menos favorável ainda aos africanos
da urbe e, portanto, às vendedoras africanas e afro-descendentes.
164
Podemos perceber que, a partir do século XVIII, emerge um argumento norteador
das tentativas de controlar ou expulsar as vendedoras, com intento de diminuir seu poder de
atuação, mas sem perder seus serviços fundamentais. Esse argumento se traduziu como
necessidade premente de organizar a cidade. No entanto, por detrás das tentativas de
“melhoria” urbana, a motivação para esse tipo de ão, tomada por parte do município ou
da província, tinha outras razões e interesses implícitos. Por exemplo, a incipiente
concorrência que faziam as ambulantes com o setor de comerciantes livres, o que causava
conflitos nem sempre expressados. Esse incômodo que causavam em relação aos outros
comerciantes acabava gerando proibições e regulamentações da transitoriedade das
vendedoras tanto literal como simbólica. Conforme as ganhadeiras se emancipavam, sua
ocupação não era mais do interesse das famílias senhoriais que outrora financiavam o
pequeno comércio alimentício. Esse fato as tornava mais desprotegidas e fazia com que a
regulamentação se intensificasse.
Segundo o documento do Archivo de Marinha do Ultramar (Vasconcelos 2002:
131), em 1782, por reclamações de comerciantes, o Marquês de Valença proibiu a venda de
ambulantes “mascates, ciganos..., marinheiros, negros...”, com pena de perda de
mercadoria, de multa e de prisão. A partir de 1770, já havia começado a chegar em
Salvador um grande contingente de africanos provenientes das regiões de fala fon e de fala
ioruba, fator que deve ter incrementado ainda mais o pequeno comércio africano, o que
nem sempre era bem-vindo para os órgãos municipais.
Talvez por isso mesmo, algum tempo depois, em 1790, tenha sido destinado um
lugar específico às vendedeiras de comestíveis na cidade, em cabanas construídas pela
Câmara fora das portas de São Bento, para além das muralhas da cidade (Vilhena apud
Vasconcelos 2002: 132). No término do período de transição que inaugurou as tentativas
recorrentes de reordenar as vendedoras ambulantes em Salvador, a política exterior ficou
bastante conturbada, no rastro da Revolução Francesa, pela independência de Saint
Domingue, que se transformou no Haiti (1791). A independência do Haiti havia implicado
na abolição violenta e inédita, por parte de cativos, de um regime escravagista e colonial.
Esse aceno para uma possibilidade de emancipação da condição servil preocupou os
senhores de engenho, dando alento aos que aqui se encontravam escravizados
99
. Episódios
99
Há evidências de que os negros no Brasil sabiam do Haiti, segundo Reis (2003: 84).
165
como esse, que causavam temor nos extratos dominantes soteropolitanos, terminavam por
aumentar a vigilância sobre os escravizados e a desconfiança para com os libertos,
incluindo as ganhadeiras.
As africanas e suas descendentes, no entanto, continuavam em sua luta cotidiana.
Luis dos Santos Vilhena (apud Reis 2003: 353) reconheceu três quitandas da cidade entre
1787 e 1799, uma na Praia (Cidade Baixa), outra no Terreiro de Jesus, e outra nas Portas de
São Bento. Vilhena também afirmou que as ganhadeiras, nesse mesmo período,
monopolizavam a distribuição de peixe e de verdura. Esse tipo de monopólio demonstra o
papel significativo dessas mulheres, pois a cidade sofria um problema crônico em relação
ao abastecimento, o que gerava constantes revoltas e saques. Salvador apresenta um longo
histórico de motins por causa da carestia de alimentos, cujas causas Kátia Mattoso (1978)
procurou desvendar em sua obra.
As ganhadeiras estavam implicadas no comércio de pelo menos um alimento básico
de produção local, que era a carne fresca de boi, ou carne verde. Como vimos, as fateiras
redistribuíam a carne dos matadouros públicos. Para complementar o mínimo necessário à
alimentação cotidiana, o soteroplitano tinha elegido, além da carne, a farinha de mandioca e
o feijão (Mattoso 1978: 301) - esse último podendo ser considerado matéria-prima da
culinária afro-baiana de pratos e petiscos vendidos prontos nas ruas. Esse trio indispensável
nem sempre podia ser acessado, e a população local ainda sofria a concorrência do
consumo das tripulações que ali abarcavam. Uma agricultura local voltada para a
exportação de produtos específicos, e não para a subsistência, e uma complexa rede de
atravessadores nessa região contribuíram constantemente para prolongar situações de crise
e falta de gêneros de primeira necessidade na história de Salvador.
Às crises de abastecimento se misturavam revoltas, ora de escravos, ora de
militares, que vieram num crescendo até culminarem em um século de muitas rebeliões em
Salvador, que foi o século XIX. Sete anos depois do Haiti, aconteceu nessa cidade a
Sedição dos Alfaiates, em 1798, cuja peculiaridade era a aspiração em abolir o regime de
escravidão, além de contar com a participação de lideranças populares, de descendentes de
africanos e de libertos. Depois da repressão deste movimento, que prenunciava diversas
crises políticas, Salvador entrou no século XIX cada vez mais assolada por conflitos.
166
Ao mesmo tempo, é deste período o relato das comidas vendidas nas ruas (1802) e o
início da formação dos terreiros em locais acessíveis tanto aos africanos quanto aos afro-
descendentes segmentos geralmente separados por diferentes interesses - próximos ou
afastados do ambiente mais urbanizado, com seus rituais de oferendas alimentares. Essa
expansão demonstra como as vendedoras ambulantes ganhavam campo, principalmente na
construção dessas instituições religiosas voltadas para oferendas alimentares e onde as
fronteiras entre africanos e crioulos parecem muito complexas, ambigüidade própria do
papel das mulheres africanas.
Por outro lado, visto que qualquer movimento destoante do statu quo envolvia
sempre a participação de africanos – recém-chegados ou não - e da rede de relações
formada por seus descendentes mais adaptados - porém ainda em situação precária -, as
ganhadeiras estavam quase sempre implicadas também nessas agitações desordeiras,
principalmente naquelas relacionadas à taxação de alimentos e à alta de preços devido ao
ocultamento de mercadorias das quais elas não detinham o monopólio. Porém, as
ganhadeiras foram muito mais associadas à desordem espacial urbana do que à desordem
civil.
Em 1802, o próprio Vilhena descreve os doces e aloás vendidos pelos ambulantes
como iguarias pouco limpas, querendo expressar seu asco. Essa visão não era incomum.
Tentativas de deslocamento de quitandas buscavam se legitimar como benfeitorias que
desobstruíam espaços e poupavam os olhos do comportamento dos escravizados e libertos,
tido como licencioso. Para a visão dominante, o comportamento indesejável se confundia
com a sujeira local, tornando inevitável uma duradoura associação das vendedoras com a
rua enquanto lugar desprestigiado que abrigava a sarjeta. Esta última se encontrava no meio
da rua, onde eram depositados os dejetos produzidos pelos habitantes, ao ar livre. A sarjeta
nas ruas do período colonial e também do imperial foi uma constante. Viajantes relataram
uma situação até mesmo deplorável das vias, principalmente da Cidade Baixa, onde o
pequeno comércio era mais intenso.
A rua se identificava com a sarjeta e, ao mesmo tempo, constituía o espaço de
trabalho do coletivo de escravizados, além de ser abrigo dos desajustados socialmente.
Maria Graham (apud Verger 1982: 18) descreve esse local destinado aos dejetos, ainda em
uso em 1824:
167
A rua pela qual entramos através do portão do arsenal ocupa aqui a largura
de toda a cidade baixa da Bahia, e é sem nenhuma exceção o lugar mais sujo
em que eu tenha estado. É extremamente estreita; apesar disso todos os
artífices trazem seus bancos e ferramentas para a rua. Nos espaços que
deixam livres, ao longo da parede, estão os vendedores de frutas, de
salsichas, de chouriços, de peixe frito, de azeite e de doces, negros trançando
chapéus ou tapetes, cadeiras (espécies de liteiras) com seus carregadores,
cães, porcos e aves domésticas, sem separação nem distinção; e como a
sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira das diferentes lojas, bem como
das janelas. Ali vivem e alimentam-se os animais.
Depurando o etnocentrismo das observações de Maria Graham como sabemos, no
mesmo período, as ruas de cidades européias também eram lamacentas e sujas - chegamos
a algumas conclusões interessantes. A falta de distinção é um ponto a ser ressaltado tanto
no que diz respeito à ordenação da rua quanto no que tange a identificação dos vendedores
com a rua. A rua caracteriza-se, então, como duplamente impura, pela sujeira e pela
indistinção.
Nela estão os excluídos e existem fronteiras indefinidas entre eles, a rua, os animais,
assim como os próprios animais estão misturados. Essa indefinição se reflete no próprio
lugar do vendedor na sociedade. Principalmente, no caso da ganhadeira, que não se
enquadrava mais como completamente submetida, nem tampouco era realmente autônoma
quando tinha adquirido o status de liberta. Essas mulheres formaram um grupo majoritário
cuja prole passou a ser considerada da terra (“crioula”), mas que ainda não havia sido
inserida e que ficaria marcada racialmente. É assim que Reis (2003: 365) nos descortina a
realidade dessas mulheres:
Na corrida pela alforria, as mulheres africanas levavam vantagem sobre os
homens, tanto porque predominavam em setores rentáveis do mercado o
comércio de comida, por exemplo, - como porque podiam desenvolver mais
facilmente laços de afetividade com senhores e senhoras que lhes facilitavam
a compra ou a obtenção gratuita de alforria.
Assim, essas mulheres povoavam um lugar da viscosidade social. Com o tempo,
lentamente se vai construindo a elaboração de um discurso de assepsia para encobrir as
tentativas de controle social da massa escravizada que gradualmente se libertava. A
mudança das vendedoras para partes mais afastadas dos edifícios oficiais à época (para as
168
portas da cidade, ou seja, seus limites) está impregnada dessa concepção reguladora, e
posteriormente higiênica, ainda em formação. Mas a estrita falta de assepsia,
especificamente, não deixava de ser um caso crônico. Mattoso (1978: 182) descreve essa
situação crônica da antiga Salvador:
Cidade sem esgotos, o asseio das ruas é um dos grandes problemas para os
administradores da cidade, o Conselho municipal. Quer fosse na cidade
baixa quer na cidade alta as condições estão as piores possíveis. O costume
de deixar no centro das ruas uma sarjeta para o escoamento das águas
pluviais, torna este canal, na prática diária, um veículo de despejo de águas
sujas (...). Com efeito, as sarjetas viviam imundas e se achavam
temporariamente limpas quando desabavam os aguaceiros. Águas sujas às
quais se deve ainda acrescentar lixo e outras imundícies contra as quais
dificilmente se lutava.
Assim, o cotidiano das vendedoras continuou longamente misturado ao estigma das
ruas. Porém estas, como lugar exclusivo das africanas e crioulas, davam-lhes mobilidade e
a rentabilidade requerida para a emancipação e conseqüente melhoria, ainda que talvez
irrisória, na qualidade da vida que elas levavam.
No início do século XIX, a chegada da família real portuguesa, que se instala na
sede fluminense, e a nova condição do país que se transforma em Reino Unido a Portugal
provocam algumas modificações. Em Salvador, cresceu uma atitude antilusitana e um
sentimento popular de separatismo, estando o Rio de Janeiro e a região Sudeste, desde
então, ainda mais associados a Portugal e a seu domínio. Ao mesmo tempo, aconteciam
novas tentativas de ruptura locais, em um encadeamento de episódios violentos.
Os recém-chegados haussás povo africano de origem islamizada que
compartilhava as vizinhanças do rio ger e alguma rivalidade com a região iorubana -
teriam organizado duas revoltas a serem deflagradas nas cercanias da cidade. Uma ocorreu
em 1807, sendo exclusivamente masculina, e a outra, em 1809, comportava algumas
mulheres. Em 1814, uma liderança muçulmana, mencionada em documento da época, teria
se unido a um grupo de etnia nagô em mais uma tentativa de rebelião, também partindo das
redondezas de Salvador. Em 1816, eclodiu um movimento de africanos insurgidos pelo
Recôncavo (Reis 2003: 70-93). Essa ambiência aumentava a vigilância e a repressão
cotidiana, que provavelmente interferiu nos negócios do pequeno comércio feminino.
169
Com o processo de independência que se seguiu, a situação local se tornou muito
precária, pois Salvador precisou resistir a um comandante fiel a Portugal que ocupou a
cidade com suas tropas. Os conflitos se estenderam desde 1822 até 1823, empurrando
muitas vendedoras para o Rio de Janeiro, como testemunhou Debret. Durante essa guerra,
as fugas de africanos se intensificaram e suas revoltas não cessaram. Quando a situação foi
regularizada, ficou cada vez mais difícil controlar constantes rebeliões, pois os africanos
tinham experimentado momentaneamente o afrouxamento de sua opressão em prol da
prioridade dada ao combate contra os portugueses, o que parece ter lhes renovado o ânimo.
Prosseguiram as revoltas, após os conflitos de independência. Na descrição de Reis
(2003: 100-5), uma delas, agora com o predomínio da etnia nagô, começou no ano de 1826
em Cajazeiras, no Pirajá, e rumou para o denominado quilombo do Urubu no Cabula.
Havia, nesse movimento, uma liderança feminina, chamada Zeferina, além da participação
de algumas mulheres. Após o conflito com as autoridades, foram encontrados, no Urubu,
indícios de um candomblé ou, como reflete Reis, de uma “religião tradicional africana de
transe”. Afinal, ainda havia a fina distinção entre africanos, geralmente recém-chegados, e
crioulos ou adaptados. Eram esses indícios objetos rituais que, pela descrição, são muito
familiares aos elementos do candomblé, o qual deve tê-los apropriado, enquanto tradição
afro-brasileira. Impossível não colocar em relevo, mais uma vez, uma liderança feminina,
ao mesmo tempo em que ocorrem fortes indicações de elementos incorporados pelo
candomblé, instituição por excelência das ganhadeiras.
Pequenos levantes nas cercanias de Salvador continuaram acontecendo desde 1827
até 1831. Em 1830, ocorreu uma rebelião a partir da própria cidade liderada por uma
vanguarda de “ladinos que libertaram africanos recém-chegados e atacaram lojas na
Cidade Baixa. A repressão foi forte. Apenas em 1835 voltaria a acontecer um episódio
semelhante, a repercutida rebelião dos malês, principal objeto da obra de João José Reis
(2003), empreendida por nagôs islamizados, cujo desfecho culminou na deportação de
africanos, inclusive libertos, para o continente africano. Depois do acontecimento, muitos
nagôs escravizados foram transferidos para outras regiões do país, tamanho o temor que
causavam a seus primeiros proprietários. Essa migração envolveu, mais uma vez,
vendedoras e a divulgação de sua culinária típica.
170
As ganhadeiras também tiveram relação com os insurgentes malês. Segundo a
pesquisa de Reis (2003: 373), havia catorze vendedoras de rua entre os envolvidos no
processo judicial pós-rebelião. Uma vendedora de comida, Sabina da Cruz, tendo tido um
conflito conjugal com seu companheiro conspirador, foi quem terminou por incentivar a
denúncia feita por outra liberta a alguns senhores que levaram o assunto às autoridades
(Reis 2003: 127). Como foi uma revolta quase exclusivamente masculina (quantitativa e,
sobretudo, qualitativamente) e de inspiração fortemente islâmica, a insurgência não parece
ter levado bastante em conta a rede de relações e o papel das mulheres na questão, e ficou
demonstrado ser esta uma de suas principais fraquezas. A denúncia funcionou e, como
resultado do insucesso de 1835, sobreveio uma das piores repressões conhecidas por
Salvador, com forte abalo do universo cultural afro-brasileiro que se havia criado na cidade,
embora fosse aparentemente uma derrocada mais estritamente africana. Estava instaurada
uma longa perseguição, ápice de proibições que vinham se acumulando conforme os
levantes anteriores eram debelados: proibição aos cativos da livre circulação à noite, dos
batuques, da freqüência em tavernas (Mattoso 1978: 232). Um primeiro corpo de polícia
voltado para a cidade havia sido criado em 1825 (Mattoso 1978: 184). Muitos libertos e
candomblés incipientes tiveram que se mudar para locais mais afastados e foram obrigados
a uma grande discrição.
Ao mesmo tempo, nessa fase de levantes, a cidade vai sofrendo suas tragédias
particulares e parcas reformas na intenção de sanear os problemas. Em 1812, por causa de
chuvas ininterruptas, aconteceu um grande desmoronamento, na parte da cidade voltada
para o mar, paralisando grande parte da vida comercial. Não enchentes, mas estiagens
periódicas ocorriam e interferiam na vida social e comercial. O abastecimento sofria as
conseqüências da instabilidade climática e da falta de infra-estrutura urbana.
Mesmo assim, a vida mercantil ambulante vicejava e era fundamental. Mattoso
(1978: 186) descreve a atividade do pequeno comércio nessa fase atribulada, o que
demonstra como a venda nas ruas, apesar de posturas municipais, taxações e instabilidade,
estava bastante divulgada, sendo parte essencial para a subsistência da população:
Assim, por volta de 1831 eram praças para o mercado público: o campo
lateral da Igreja da Soledade, o campo de Santo Antônio na frente da
fortaleza, o Largo da Saúde, o Campo da Pólvora, o Campo da Igreja da
171
Vitória, o Largo do Pelourinho, o Largo de São Bento, o Largo da Cabeça, a
Praça da Casa do Comércio e o Caes Dourado. Nessas praças vendia-se todo
tipo de gênero, com exceção do peixe e fatos de gado cuja venda era
circunscrita a campo fronteiro aos currais, na praça dos quinze Mistérios, na
Praça de Guadalupe, na Praça de São Bento, no Largo de S. Raimundo, na
Rua das Pedreiras e, finalmente, frente aos Arcos de Santa Bárbara. Eram
ainda destinados como praças de mercado público, os largos das Igrejas do
Pilar e do Noviciado.
Isto para o comércio ambulante e móvel. Quanto às quitandas estas se
localizavam na ladeira da Rua do Paço, na baixa dos Sapateiros, na Rua das
Laranjeiras, e na Rua da Piedade que ia para o largo de São Raimundo.
Segundo determinação municipal “todas as mais praças, largos, cais e ruas,
que não vão indicados, ficarão sempre livre e desimpedidos para o trânsito
e serviço público”. Resolução que aliás não impedia que os vendedores
ambulantes prolongassem até as ruas e casas dos habitantes da cidade essa
efervescência de comerciar que caracterizava a cidade. Por outro lado a
promiscuidade entre os pontos de venda localizados nas áreas residenciais,
dificultava seguramente a tarefa de mantê-las limpas e asseadas. Prolongadas
estiagens multiplicavam certamente por mil os problemas postos pelas
prerias condições sanitárias. Mas o povo vivia, se comunicava e quiçá, se
esquecia das duras condições da vida diária e cada um, nesse mundo tão
pouco asseptizado socialmente, encontrava a própria razão de sua existência.
Além de calamidades públicas como enchentes ou secas - essas últimas adiando o
saneamento da sarjeta, que contava com as águas pluviais para sua limpeza - incêndios
eram muito comuns, principalmente em estabelecimentos comerciais, tais como depósitos
no cais e em quarteirões onde se fazia o mercado. Uma longa onda de incêndios durante o
século XIX, descritos por Mattoso (1978: 192-3) se iniciou em 1833 estendendo-se à
década de 70 daquele século. Os que abrangeram áreas mais extensas, segundo Mattoso,
estavam sempre relacionados a períodos de crise social, como o que aconteceu durante a
Sabinada.
Em 1837, mais uma vez, a Sabinada – menos libertária que a Sedição dos Alfaiates -
eclodiu como movimento na cidade, de maior abrangência social e com aspirações
federalistas. A eliminação dos dissidentes resultou em grande número de mortos. A essa
altura, os conflitos desse século XIX vinham acompanhando uma depressão econômica e
recorrentes crises de falta de comida, comuns em situações menos excepcionais. Esse
processo atribulado certamente afetou bastante as ganhadeiras, mas desviou um pouco a
atenção do controle do espaço urbano para o controle dos eventos políticos.
172
Uma paz mais duradoura, nessa região, aconteceria a partir de 1840, quando
Pedro II assumiu efetivamente o Império, reprimindo ou apaziguando anseios separatistas.
Na questão mais local, o tráfico de escravos foi diminuindo, desde a abolição oficial em
1831 e o comércio com a costa africana se arrefeceu. Não havia mais grande quantidade de
africanos recém-chegados e desprovidos do peso da memória da repressão de 1835, que
ficou bem marcada. Salvador vai se isolando. Em 1850, o tráfico de escravos é abolido
efetivamente, golpe, ainda inicial, no sistema de ganho que só se sustentava e se reproduzia
com o constante suprimento humano vindo da África.
Com a relativa pacificação política, e um contexto exterior mais favorável do ponto
de vista econômico, iniciaram-se as reformas urbanas. As ruas começaram a ser
pavimentadas de forma sistemática entre 1842 e 1855 (Vasconcelos 2002: 183). Mesmo
assim, continuava a insegurança. Em 1843 ocorreram novos desmoronamentos e, em 1848,
novo incêndio na Cidade Baixa (Mattoso 1978: 191-2). Na década de 50, a vida cotidiana
das ganhadeiras continuaria a enfrentar desastres climáticos cujas conseqüências se
traduziriam em epidemias, episódios que abalaram a vivência da urbe.
Aos anos chuvosos de 1851 e 1852, seguiram-se anos de seca (1853; 1858). Uma
epidemia de febre amarela entre 1849 e 1854, com seu auge em 1850, e uma epidemia de
cólera em 1855 e 1856 aconteceram então na cidade e seus arredores, enquanto
desapareciam do mercado os gêneros básicos para a subsistência soteropolitana: farinha de
mandioca e carne que era distribuída por vendedoras ambulantes. Fornecedores se
afastaram, os preços aumentaram e a crise provocou um motim (Mattoso 1978: 236).
Por fim, as epidemias terminaram desencadeando grandes mudanças urbanas a
longo prazo, como o processo de afastamento dos segmentos soteropolitanos mais
privilegiados das zonas centrais da cidade (Vasconcelos 2002). Também por causa da
cólera em 1855, a tarefa de desobstruir as ruas e recolher o lixo deixou de ser uma
obrigação dos habitantes e foi assumida pelo governo provincial que buscou contrato com
firmas particulares, porém sem muito resultado (Mattoso 178: 182). A virulência dessas
doenças, nesse segundo período do século XIX, veio a ser um dos estímulos para as
medidas sanitárias do início do culo XX, as quais viriam interferir muito na vida das
mercadoras.
173
Apesar das calamidades e contínua carestia, as reformas urbanas recém iniciadas
prosseguiam, com a implementação do transporte coletivo (de tração animal), da
iluminação pública (ainda não elétrica), de um incipiente serviço de limpeza público, e com
a ampliação do serviço de abastecimento de água (ainda não encanada, mas acessível
através de fontes e chafarizes).
Essas novidades interferiram na venda de comidas e do petisco típico, quando a
cidade conseguiu renascer do quadro das perdas causadas. Talvez para melhor, no caso de
fornecimento de água, imprescindível para a atividade culinária. A limpeza pública ainda
deixaria a desejar por um bom tempo. A iluminação deve ter mudado aspectos visíveis da
profissão notívaga de venda de acarajé. Decerto, os lampiões costumeiramente carregados
pelas vendedoras foram desaparecendo aos poucos.
O foco se voltava, gradualmente, para os serviços públicos dentro da cidade. Estes
começaram a adquirir contornos mais nítidos, sistematizando-se, e se tornaram disciplinas
especializadas necessárias ao bom andamento da urbe, de um ponto de vista de setores
dominantes. A rua, que sempre esteve “ao deus dará, tinha a atenção agora voltada para si.
O domínio das ganhadeiras começou, então, a sofrer uma campanha de controle, ainda em
seus primórdios. Sem dúvida, houve uma acentuada e bem-vinda melhoria nas condições da
rua, mas não necessariamente essa melhoria deveria atingir as vendedoras, mesmo porque
esta não era pensada prioritariamente em função do bem-estar dos segmentos populares.
Logo depois da epidemia, em 1857, aconteceu em Salvador um movimento de
caráter grevista, mas de molde pré-sindicalista, por parte dos grupos masculinos de trabalho
entre africanos organizados etnicamente, que ainda integravam um sistema de ganho (Reis
2000; 2003). Esse movimento, pacífico, foi uma conseqüência da repressão acirrada desde
1835, que se somava às reformas urbanas e às tentativas de disciplinar e controlar setores
populares que trabalhavam nas ruas, os quais tinham sido o motor de numerosos levantes.
As crises de doenças contagiosas parecem ter aumentado o temor em relação aos
trabalhadores de rua pelo restante da sociedade. Assim, houve uma tentativa municipal de
matricular e taxar os ganhadores que ainda faziam o transporte na cidade de pessoas e
cargas. A resposta foi uma paralisação.
Esse movimento demonstrou como os escravizados podiam deter instrumentos de
pressão organizada e eficiente, criados numa situação local, sem a necessidade de
174
reproduzir ou adaptar um modelo sindicalista de uma matriz européia industrializada.
Não se encontrava caracterizado como os motins espontâneos durante as crises ou como as
revoltas, com uso da força, contra a escravidão. Seu repertório e recursos locais utilizados
configuraram uma contribuição alternativa na concepção das relações de trabalho. As
ganhadeiras compartilhavam dessa concepção, embora não estivessem organizadas em
grupos étnicos muito rígidos; afinal constituíam um grupo diverso dos grupos de africanos
especializados. Estavam mais próximas de grupos femininos formados por crioulas,
nome em voga no século XIX para definir as vendedoras, pelo menos nos cartões postais do
período, como podemos verificar. No entanto, a concepção alternativa que surgiu não teve
tempo suficiente para florescer completamente, interrompida pelo processo de
modernização que viria a ser implantado a partir de idéias externas à lógica daquela
sociedade.
Os ganhadores veriam sua ocupação modificar as feições bem rapidamente, em
conjunto com as ruas e logradouros públicos, sem ter tido o tempo de elaborar um pouco
mais sua visão trabalhista divergente. O transporte de passageiros começou a ser absorvido
por novas linhas de bonde (1866, 1868, 1869; ver Vasconcelos 2002: 220), deixando aos
ganhadores apenas o carregamento de cargas da cidade portuária. Também durante essa
década de 60, Salvador entrou de novo em depressão econômica, aliada à Guerra do
Paraguai. Ao mesmo tempo, apesar da depressão, a Cidade Baixa, domínio do pequeno
comércio, ia sendo remodelada com novos aterros.
Ainda no mesmo estado econômico de depressão, as décadas de 70 e de 80 são
marcadas pelas liberdades legais concedidas aos cativos que culminaram na Abolição de
1888 e na República em 1889. Incêndios e desmoronamentos também povoaram a década
de 70. O ano de 1878 é marcado por uma nova crise grave de abastecimento (Mattoso
1978: 237-38; 193) e por uma sucessão de incêndios que vêm acontecendo desde 1877.
Kátia Mattoso sugeriu uma relação entre os incêndios, sempre em locais de mercado, com
depósitos e armazéns, e as crises de abastecimento. Enfim, o estopim das revoltas políticas
e movimentações estaria sempre envolto pela falta de comestíveis, matéria-prima da
atividade das ambulantes.
As próprias ambulantes foram, de certo modo, relacionadas a agitações mais
corriqueiras, conforme nos legaram documentos do culo XIX, como os registros policiais
175
analisados por Cecília Moreira Soares (2001). Esses registros demonstram que eram
geralmente punidas por transgredirem as posturas municipais e que eram vistas como
causadoras da desordem pública. No entanto, o comportamento tido por desordeiro se
traduzia como uma reação, uma tática, instrumento mais imediato, que depois se construiu
como estratégia, estratégia essa que marcou a imagem das vendedoras como mulheres
desbocadas, que não levam desaforo para casa, criando a expressão nacional “rodar a
baiana”. Soares (2001: 36) explica esse tipo de reação, segundo seus agentes provocadores:
As mulheres negras que viviam nas ruas estavam sujeitas a violências e
agressões relacionadas a seu gênero, sua cor e classe. A isso elas respondiam
com comportamento aguerrido, enfrentando situações difíceis. Ousadia e
agressividade eram procedimentos necessários para enfrentar a opressão
social, o racismo, o patriarcalismo, enfim, as enormes dificuldades da vida,
podendo contar ou não com a ajuda de aliados.
Assim, as vendedoras baianas ficaram com a fama de respondonas, barulhentas, e
perturbadoras, por falarem alto e brigarem nas ruas pronunciando palavras de baixo calão,
cumulando o cotidiano com agitações por causa de suas querelas. A imprensa reforçou essa
imagem, noticiando desavenças, brigas nas ruas e comportamentos considerados
inadequados, de modo bastante pejorativo para as envolvidas, principalmente na primeira
metade do século XX, quando também desabonava os candomblés. Nessas reportagens, não
faltavam menções à suposta falta de higiene dessas mulheres e do candomblé.
Os últimos vinte anos do século XIX são um período de transição. Reis (2000: 218)
identifica a saída paulatina dos africanos e a entrada de “negros e mestiços brasileiros”,
principalmente da própria província baiana, nos grupos masculinos de ganho. Também
identifica a intervenção mais vigorosa do Estado sobre os ganhadores, agora em grande
parte libertos. Após a abolição, segundo Nina Rodrigues (1988: 101), africanos de áreas
rurais afluíram e se concentraram em Salvador, ocupando-se do pequeno comércio e de
fretes.
O pequeno comércio sempre havia sido uma atividade típica das ganhadeiras. Estas
tinham se tornado, então, vendedoras livres e tinham formado uma tradição de trabalho que
acolheu os recém libertados das lavouras ou do trabalho doméstico urbano que estavam
sem ocupação. Ao mesmo tempo, essa tradição era um estilo de trabalho muito satisfatório
aos egressos de um regime de exploração brutal como foi a escravidão no Brasil, pela
176
autonomia que proporcionava. Para o fim do século XIX, Nina Rodrigues (1988: 102)
descreve os locais de mercado das mulheres consideradas por ele africanas remanescentes:
As mulheres são encontradas neste último ponto, na rua da Vala, canto de
São Miguel, na rua do Guadelupe, na rua do Cabeça e largo Dois de Julho,
no cais de desembarque, na ladeira do Boqueirão em Santo Antônio. Em
geral não se separam tanto, como os homens, segundo as suas
nacionalidades.
A ambigüidade em torno desse feminino afro-brasileiro, que povoou as ruas,
estendeu-se até mesmo às distinções étnicas, tão caras à resistência cultural e,
posteriormente, à memória preservada pelos cultos afro-brasileiros. Um lugar de
viscosidade social lançava a indefinição sobre essa categoria de mulheres, tanto para o
extremo social dominante, quanto para o extremo oprimido, dentro do regime de
escravidão. As mulheres africanas e seus descendentes, apesar de uma mínima mobilidade
social, estavam excluídos dos privilégios e sofriam tentativas de controle e repressão.
Porém, tampouco estariam completamente comprometidas com uma ruptura total, como o
episódio da denúncia dos malês nos fez compreender. Por isso, eram consideradas,
genericamente, “crioulas, durante o século XIX.
Mesmo assim, Manuel Querino (1938: 98-9) fala de suas etnias no início do século
XX, descrevendo algumas características. As mães mais “amorosas seriam as de origem
Gêge, Ige-chá e Egbá, as quais se distinguiriam pela correção escultural e não
possuiriam escarificações. As Angola, Gêge e Congo seriam peritas na arte culinária. As
Aussá e Ige-chá, por serem consideradas de índole mais branda, seriam boas amas-de-leite.
Gêge, Congo, Angola e Mina eram sensuais, insinuantes, tinham porte senhoril e maneiras
delicadas, “por isso chegaram a confundir-se com as creoulas elegantes. Segundo o autor,
estas se vestiam como se quisessem disfarçar sua origem africana e assimilaram melhor
“nossa civilização. Querino ainda afirma que as mulheres Geges e Angolas costumavam
manter relações amorosas com os “oriundos do paiz.
Essa descrição demonstra, para além do olhar claramente androcêntrico, o quanto as
mulheres originais, e talvez mais ainda perpetuadoras, de etnias pertencentes às regiões de
Angola e do Congo eram consideradas como “crioulas e estariam relacionadas com a
culinária que, como vimos, se desenvolveu embasada em aspectos luso-africanos centro-
177
ocidentais. A ausência da menção a mulheres nagôs propriamente ditas também é
interessante. Querino apenas cita as egbás e as ijexás, de regiões iorubanas, que seriam
como especificações do nagô
100
. As haussás islamizadas seriam boas amas de leite. As jejes
aparecem em quase todas as categorias e fazem parte do grupo que desejava se adaptar.
Mina é uma classificação complexa, que poderia englobar outras etnias, se significasse o
porto de escoamento de várias delas para a América, ou poderia designar um povo que
havia recentemente migrado para costa do Daomé, o mina-popo (Reis 2003: 328), também
tendendo à adaptação por causa de contatos prévios com a cultura portuguesa em seu local
de proveniência no continente africano.
Algumas dessas distinções étnicas podem ser encontradas em pormenores de nosso
trabalho, como as saias sem enchimento ou o formato do acarajé. No entanto, a vendedora
de acarajé assumiu o visual da chamada “crioula, ou seja, uma construção barroca de
vários elementos pertencentes a diferentes etnias africanas, ao trajar muçulmano e à moda
européia. O tabuleiro de acarajé sintetizou os mesmos aspectos em termos culinários,
conforme a vivência da rua. Da parte étnica, restou o protótipo da cozinheira como a
mulher que vem de regiões angolanas, ou seja, uma memória que aponta para sua maior
antiguidade no território e para relações melhor estabelecidas com a cultura lusitana.
As distinções étnicas das mulheres desapareceram das ruas no mesmo século em
que Nina Rodrigues ou Querino ainda puderam testemunhá-las. Mais uma vez, elas se
recolheram aos terreiros de culto-afro-brasileiro, a vertente religiosa que prosseguiu,
embora tivessem existido outras mais genuinamente africanas adaptadas a Salvador
101
. As
etnias citadas por Querino relacionam-se, na memória dos terreiros, a algumas divindades
próprias das reges de onde vieram. Alguns dos atributos femininos descritos não se
encontram muito longe dos atributos destas divindades relacionadas com esses
etnônimos/topônimos. Alguns usos de etnias islamizadas ficaram preservados nos terreiros
em associação a certas famílias de divindades, cujo atributo principal terminou sendo a
100
Segundo um contexto específico de guerras nas regiões africanas, um grande contingente de egbás e ijexás
chegou em Salvador nas décadas de 30 e de 40 do século XIX. Os haussás aportaram na cidade do início do
século até a década de 20 (Reis 2003:174, 548).
101
Segundo Ordep Serra (1995: 109): “Há notícia de grupos de culto que no século passado, congregavam
apenas africanos e se opunham como tais aos terreiros crioulos”. Essa conclusão foi elaborada a partir da
entrevista de Vivaldo da Costa Lima (1987: 19) com a vodunce Runhó. De um modo simplificado, os
africanos transmitiam ritos familiares em casas e depois de certa soteropolitanização, o conhecimento dos
ritos vai sendo absorvido desde a formação dos terreiros, num sistema mais local, menos fechado em estritos
cultos familiares e étnicos.
178
pureza do branco. “Angola” e congo” o nomes que se preservaram, na distinção de
estilos cerimoniais, embora não signifiquem especificações propriamente étnicas, tais como
ambundo ou bacongo e funcionem mais como uma generalização, assim como “mina”,
embora Querino os tenha utilizado para classificar certos grupos femininos mais crioulos,
como vimos.
Uniformização do século XX
Com inovações uniformizadoras, o século XX vai modificar definitivamente a
paisagem urbana de Salvador e a venda ambulante, deixando as distinções étnicas no
trabalho de rua cada vez mais apagadas. A ambulância tradicional de mulheres vai
diminuindo ao longo do século e desaparece após a Segunda Guerra. Uma ideologia
higienista legitima uma nova intervenção dos poderes públicos sobre o pequeno comércio
dominado pelas mulheres, na tentativa de retirá-las das ruas e de remanejá-las para lugares
com mais expectativa de controle público.
na primeira década, ocorreu a eletrificação de diversos serviços tais como
iluminação e transporte. Lá se vão os lampiões e chegam os serviços do bonde elétrico. São
realizados o contrato de serviços de esgoto e também o saneamento da área central em 1905
(Vasconcelos 2002: 263, 291). Iniciam-se várias obras portuárias. As grandes reformas que
vão ocorrer nas duas primeiras décadas, no entanto, não são simplesmente reformas
urbanas, como coloca Alberto Ferreira Filho (2003: 26):
Aos sombrios e decadentes casarões, às ruas estreitas e insalubres, à ameaça
constante de epidemias e endemias, acrescentava-se a predominante tez
escura da população, os costumes africanizados, largamente difundidos, a
licenciosidade das mulheres pobres, a omissão dos homens frente à criação
dos filhos. Higienizar o espaço público era tarefa que exigia novos padrões
de sociabilidades, com vistas a uma reorganização radical da família, do
trabalho, dos costumes.
Quem melhor abraçou esse modelo de cidade disciplinar foi José Joaquim
Seabra, enquanto chefe do executivo estadual, em seu primeiro mandato
(1912-1916), e Francisco Marques de Góes Calmon (1924-1928). Foi
179
justamente entre as décadas de dez e de vinte que as tradicionais formas de
inserção das mulheres no espaço urbano viriam a ser questionadas e revistas.
Como o próprio autor afirma, esse projeto modernizador se chocaria com valores,
normas e instituições típicos da cultura popular, gerando combinações que Ferreira Filho
classifica de “esdrúxulas”, sem propriamente especificá-las. As mulheres dos extratos
médios e das elites começaram a se liberar do hábito secular de reclusão e as ruas passaram
a ser freqüentadas num novo contexto de lazer familiar dessas camadas, sob a tutela dessas
mulheres.
Dessa maneira, a infra-estrutura sanitária e as novas formas de socialização vão
retirando das vias públicas a conotação de um local a ser evitado. Também as praias
adquirem outros significados, a princípio terapêuticos, para as camadas privilegiadas
(Risério 2004: 474-84), o que preparou terreno para o comércio de bebidas e petiscos – e do
acarajé à beira mar num contexto mais tardio. Isso demonstra que mesmo com tantas
medidas e a nova visão das ruas, ao invés de ser eliminado, o comércio de comidas prontas
se reproduzia com insistência, readaptando-se a novos espaços públicos.
As reformas mudaram o perfil da cidade, com o alargamento da Avenida Sete de
Setembro e a derrubada de antigas igrejas, ocasionando a perda de monumentos de valor
histórico irrecuperável. Ao mesmo tempo em que as mudanças deslocavam vendedores e
populares de seus costumeiros pontos, novas posturas municipais eram lançadas, em
reforço às obras de engenharia.
Segundo Ferreira Filho (2003: 108), no início do culo, as matrículas das
vendedoras de rua casadas ficariam condicionadas à permissão de seus maridos, e o auxílio
dos filhos menores de 14 anos no ofício seria proibido. Apesar de apresentarem as supostas
melhores intenções da mentalidade letrada à época, tais medidas eram um golpe no aspecto
mais importante que a atividade guardava, que era a autonomia feminina.
Autorização marital e impossibilidade de cuidar dos filhos pequenos durante o
trabalho - além de não podê-los introduzir numa tradição familiar de ofício, tampouco
inclui-los no mercado que se formalizava - seriam medidas com vistas a extinguir a
insistência num tipo de profissão incompatível com um novo regime de trabalho industrial.
Esse tipo de controle demonstrou ser claramente uma tentativa de arrancar as mulheres do
180
legado de ambigüidade das ganhadeiras e jogá-las num lugar de subordinação bem
definido.
O lugar para elas imaginado era fora do mercado de trabalho, dando exclusividade
aos homens como provedores, quando popularmente estes eram omissos em relação ao
sustento das famílias, como enfatiza Ferreira Filho. Em meio a essa contradição, restavam
as opções de trabalhar sob o sistema disciplinar do trabalho industrial nascente, geralmente
em fábricas têxteis ou de charutos, com uma remuneração mais baixa por causa da própria
condição feminina a qual passou a se restringir, como norma, ao constante apoio do
trabalho doméstico não remunerado à profissão masculina - ou continuar com a atividade
secular da mercancia feminina, encarando interesses intervencionistas disfarçados em
protecionismo às mulheres.
Havia também posturas de natureza higiênica. As fateiras foram proibidas de
exercer seu ofício em 1904, porém continuaram clandestinamente até pelo menos 1922
(Ferreira Filho 2003: 108; 111). A higiene se tornou, desde então, um instrumento de
discriminação, que se disfarçava de inatacáveis valores médicos universais. o apenas
fatores econômicos estão envolvidos no porquê de as fateiras não terem se tornado
majoritariamente donas de estabelecimentos de açougue, quando essa tinha sido sua
atividade secular, mas todo contexto social que lhes vetou o comércio da carne.
Nesse período inicial e atribulado, ocorreram resoluções municipais com a
finalidade de reunir os vendedores de comestíveis nas ruas em edifícios considerados
apropriados para esse tipo de atividade, que seriam grandes mercados, antecessores de
nossas contemporâneas redes de supermercados. Alguns desses locais, destinados à
comercialização de diversos produtos, já existiam desde o século XIX, próximos do cais da
Cidade Baixa, como o Mercado do Ouro e o Mercado de Santa Bárbara santa protetora,
como sabemos, das comidas de dendê.
O Mercado de Santa Bárbara teve uma história envolta em devoção popular. Parece
que mercadores realizavam festas em honra à santa numa capela neste local, que não era
um templo, mas lugar de comércio, desde 1644. Depois, por causa de incêndios, a festa se
transferiu para a Cidade Alta, no século XX, onde continuou sendo tradicionalmente
cumprida, com o acréscimo de alguns aspectos mais tardios muito interessantes,
181
relacionados ao corpo de bombeiros, um serviço público prestado especializadamente a
partir do século XX
102
.
Próximo ao Mercado de Santa Bárbara, havia o Mercado São João (1819), um dos
santos católicos relacionado ao orixá Xangô. Novamente o par que domina simbolicamente
o fogo e o dendê se encontra representado patronizando (e matronizando) locais de
mercancia, dos quais o tabuleiro perfaz um micro-universo. O Mercado do Ouro, um pouco
mais distante, era uma construção bem mais recente, do final do século XIX, que ainda hoje
pode ser observada. Esses mercados se encontravam bem próximos do cais, mas a área
sofreu remodelações com aterros, principalmente os realizados no espírito do início do
século XX.
Porém, o principal modelo de mercado de conceito higienista foi justamente o
Mercado Modelo, inaugurado em 1912. Como afirma Ferreira Filho, destinada ao comércio
apenas de alimentos, esse tipo de construção foi mais uma tentativa de controle tributário e
também social. No entanto, após essa tentativa de instaurar o novo conceito de mercado, as
normas municipais não foram seguidas. O comércio dentro do mercado não se restringiu à
venda de gêneros alimentícios e formou-se uma feira “no lamaçal” em torno do edifício
(Ferreira Filho 2003: 110). Todavia, a persistência da mercancia arcaica, ao lado de
inesperadas utilizações do espaço, não pôde resistir à destruição total do mercado por um
incêndio em 1922. Na época, comentava-se que o fogo teria sido proposital, segundo
depoimento de um membro do grande comércio, ainda criança neste período
(Borges&Lemos 2002: 48). Esse episódio inaugurou um histórico de incêndios.
Durante o século XX, o mercado, recuperado, foi incendiado mais duas vezes, uma
em 1943 e outra em 1969, ambas consideradas propositais. Na segunda vez, o que sobrou
foi demolido, sendo feita em seguida a ligação da avenida França com a avenida Contorno,
obra que vinha sendo impedida pelo próprio prédio do mercado (Borges&Lemos 2002: 48-
9). Em 1971, este se transferiu para o antigo edifício da Alfândega, original do século XIX,
o qual também não escapou de um incêndio em 1984, no período do conturbado
103
processo
de tombamento da área do Pelourinho, logo acima na Cidade Alta.
102
Almanaque do Centro Histórico de Salvador, publicação do MBTC e do Instituto de Hospitalidade.
103
Segundo o depoimento de Clarindo Silva, do estabelecimento Cantina da Lua no Pelourinho, foi um
período em que ocorreram incêndios nessa área.
182
Na história de Salvador, parece que o fogo que servia à revolta contra a carestia
também serviu a interesses contrários, quando a ideologia de limpeza e desobstrução
urbana foi levada aos extremos, ou mesmo quando a especulação imobiliária se confrontou
com a valorização de áreas em vias de tombamento. O fogo, elemento representativo da
culinária afro-brasileira, através de suas divindades patronas, apadrinhou também as ruas.
Era o acará, bola de fogo, e a quentura do dendê dominando as ruas, mescla de poder e
perigo. Para os africanos, poder da rebeldia e do domínio das ruas através do perigo de
emancipação que ambos representavam diante dos poderes vigentes. Para a sociedade
dominante, perigo da rebeldia das ruas e poder destrutivo do incêndio a serviço do controle.
A festa de Santa Bárbara, uma comemoração na qual se ingressou o corpo de
bombeiros, demonstra o reconhecimento popular do perigo do incêndio e do sagrado poder
do raio e faísca que podem produzir incêndios, sendo o raio um atributo de Santa Bárbara,
também senhora dos mercados. Os festejos buscam atuar como homenagem e controle
desse poder atribuído à santa, poder este que pode acabar favorecendo um outro tipo de
controle, cujos interesses costumam se contrapor aos valores legados pelos outrora
socialmente desprestigiados, os quais, porém, souberam ocupar as ruas com seus mbolos
e práticas, sem passar por elas de maneira inócua.
No século XX, incêndios acompanhando crises de carestia não eram tão
freqüentes. O abastecimento foi se regularizando
104
, ao menos para os que possuíam maior
poder aquisitivo, e a situação da fome generalizada adquiriu outros contornos, como nos
expõe Maria do Carmo Soares de Freitas (2003), que fez uma pesquisa recente sobre a
experiência da fome num bairro pobre de Salvador, porém bastante central. A falta literal
do alimento deu lugar ao encarecimento dos comestíveis, enquanto as condições de vida
das classes populares ficaram piores
105
.
Mário Augusto da Silva Santos (2001:68-70) descreve os produtos alimentares de
largo consumo nas três primeiras décadas do século XX. Carne fresca (verde), farinha de
mandioca e feijão continuaram entre os básicos. A carne de charque era mais acessível ao
consumo popular que a carne verde. O mesmo ocorria com o bacalhau, que era barato.
104
Essa conquista, motivada por uma revolução agrícola, foi atingida pela Europa no século XIX, e por outras
regiões do mundo, de um modo geral, em meados do século XX (Flandrin 1998: 703).
105
Flandrin (1998: 703) menciona o retorno das crises de fome em várias regiões do Terceiro Mundo,
particularmente no continente africano, no final do século XX.
183
Além da banha, condimentos, sal e açúcar, vieram a fazer parte do cardápio cotidiano o
café e o pão de trigo. Se o cardápio básico se mantinha e incluía novos produtos, as
comidas típicas diminuíam em popularidade, como o acaçá, por exemplo. Por vezes, novos
produtos, que haviam migrado do consumo em outras regiões, podiam passar a substituir
uma iguaria local no horário da refeição.
A estabilização do abastecimento era uma melhoria que afetava diretamente as
vendedoras em relação ao fornecimento de matéria-prima para seu trabalho. Por outro lado,
as modificações que proporcionavam tais melhorias tornavam o serviço das ambulantes
dispensável. Como sabemos, as comidas prontas vendidas de porta em porta somente
prosseguiram até a primeira metade do século. Todavia, a venda de alimentos de toda
espécienos grandes mercados de então, ou em suas portas, continuou, assim como em
determinados locais das ruas e praças, nesse último caso, até um certo momento.
Das ambulantes de comidas prontas restou a venda específica do acarajé. A venda
de alimentos in natura, ingredientes para o preparo das refeições, no entanto, saiu das ruas.
Atualmente, a grande feira livre de São Joaquim ou mesmo o mercado das Sete Portas
guarda a memória de como funcionava esse comércio e os mercados tradicionais. Essas
feiras ainda são fornecedoras de produtos para as vendedoras de acarajé, como declara a
maioria.
A estabilização gradual do abastecimento gerou ainda outras mudanças. Nas
primeiras décadas do século XX, os motins da população sofreram uma transformação que
lhes tirou o foco da alimentação. Apesar do descontentamento com os preços dos
alimentos, as manifestações de violência passaram a incluir reivindicações sobre o
transporte público e o movimento de operários se acrescentou ao dos consumidores (Santos
2001:149-52). O autor registrou três episódios de crise na primeira década. A segunda
década, mais atribulada, contou, em 1913, com manifestações pela baixa de preços de
alimentos, de transporte e de aluguel, além dos protestos relacionados à derrubada de casas,
conforme as reformas que mencionamos eram implementadas, sem a construção de novas
moradias para o setor popular. Logo depois, a situação de guerra mundial no exterior
reforçou esse contexto de agitação. No revolucionário ano de 1917, Salvador protestava,
mais organizadamente, contra a alta do preço do pão, um recente produto do cardápio.
Após 1919, os movimentos contra a carestia tornaram-se mais raros e Santos (2001:160)
184
descreve as causas do novo enfoque, mostrando toda a reorganização da sociedade em
termos do trabalho assalariado:
Correção nos salários e vencimentos que, se não os faziam acompanhar pari-
passu a marcha dos preços, pelo menos davam a ilusão de aumento,
acalmando a revolta dos que viviam de rendimentos fixos; reivindicações
sociais desenvolvidas a partir das associações profissionais, voltadas para as
melhoras gerais das condições de trabalho; reorganização administrativa do
estado da Bahia, com regularização de serviços e pagamentos em dia do
funcionalismo, a partir do governo Góes Calmon; estados de sítio e
endurecimento de repressão, também no mesmo governo.
Assim, Salvador se disciplinarizava. Em meio a todas as reformas e à modernização,
as vendedoras ambulantes perdiam seu espaço. Mas sua atividade se estenderia até a
Segunda Guerra Mundial. Os espaço e atuação pública conquistados pelas irmandades
religiosas até o século XIX seriam doravante concedidos a associações leigas e
profissionais e aos emergentes sindicatos. Mattoso (1978: 207-8, 219, 223) reconhece o
desaparecimento das irmandades desde 1870. Porém, os afro-descendentes construíram
redes de solidariedades que permaneceram, cujo modelo mais evidente é o dos terreiros de
candomblé, que vinham sendo perseguidos desde as rebeliões africanas do século XIX. No
século XX, a perseguição tornou-se mais sistemática e recebeu da imprensa uma forte
pressão para total enrijecimento.
Paralelo a todo desenvolvimento inicial sofrido por Salvador, o candomblé manteve
sua relação com as ruas e o mercado, sem configurar uma organização nos moldes das
modernas associações leigas, através do modelo de obrigações que tinha como referência
simbólica o antigo sistema de ganho. Foi apenas gradualmente, ao longo do século XX, que
terreiros tradicionais de Salvador formaram associações e recorreram ao tombamento de
seus terrenos e edifícios, buscando garantias legais de preservação. A auto-preservação
desse tipo de nicho, anterior a essas garantias legais, parece ter tido relação com o pequeno
comércio das vendedoras, cumprindo papel de suporte e apoio. Em outras regiões do país,
que não possuíram fortes tradições de culto afro-brasileiro
106
, as vendedoras afro-
descendentes típicas desapareceram por completo. A venda de comidas ao estilo do
106
O que não deve ser o caso de Recife, Maranhão ou Rio de Janeiro, por exemplo, que mereceriam uma
análise mais detalhada desse tipo de relação. Soares (2006) faz uma incursão sobre o assunto, examinando o
zungu carioca.
185
tabuleiro, com algumas modificações, retornou ao âmbito nacional quando foi
novamente importada do modelo baiano para as cidades de praia de outras reges.
Em Salvador, no momento que a rua deixou de ser estigma e a ambulância
desapareceu, as afro-descendentes instalaram-se em pequenas lojas chamadas quitandas ou
em barracas e tabuleiros que se fixavam num ponto cotidianamente com a finalidade de
mercar comidas - aos poucos apenas as comidas prontas - ou artigos africanos. Não houve
total desaparecimento, mas o que era comum e corrente no século XVIII, depois de
inaugurados novos hábitos uniformizadores, virou “típico”. Assim, deu-se a gênese da
comida baiana típica. Os produtos africanos, que foram um dia produtos correntes, também
adquiriram essa espécie de tipicidade.
Na primeira metade do século em discussão, notícias de vendedoras afro-
descendentes em pontos ou em feiras que se tornaram famosas por terem sido guardadas na
memória dos candomblés. Assim, no fim da década de 30, Ruth Landes (2002: 123) viu
Mãe Menininha, principal sacerdotisa do Terreiro do Gantois, vendendo doces num
tabuleiro sobre um pequeno suporte em frente à sua casa, próxima do Cruzeiro de São
Francisco, hoje uma área bem turística no Pelourinho.
Landes (2002: 310; 313) também presenciou uma baiana anônima diante de um
tabuleiro de doces, sentada no meio-fio, numa festa da Ribeira - que segue o ciclo das festas
de largo de janeiro - e outra no próprio Terreiro do Engenho Velho, hoje patrimônio
nacional, vendendo novamente doces “sentada no alto dos degraus, perto da casa de Exu”.
A autora (2002: 84-5) menciona ainda a personagem Luzia, que era a mãe-pequena (braço
direito) deste terreiro à época e que havia feito bom dinheiro “vendendo carne numa
gamela, no Mercado de Santa Bárbara, na Baixa dos Sapateiros”
107
. Quando Landes a
conheceu, possuía uma “tendinha” para seu comércio. Ela chama a atenção para a falta
de higiene dessa tenda fazendo, a partir de sua experiência, uma generalização a todos
mercados do país sobre a falta de higiene no comércio da carne
108
. Além de mercar carne,
Luzia tinha comprado uma venda de “adornos e gêneros sagrados para os cultos”
109
.
107
Como vimos, o mercado já havia se transferido para a Cidade Alta.
108
A escrita de Landes parece estar impregnada pelo diálogo com seu principal informante, Edison Carneiro.
109
Edison Carneiro (1969: 122) calcula para o Engenho Velho, em 1938, durante um festejo, a presença de
pelo menos 16 vendedoras ambulantes pertencentes à comunidade, num total de 40 mulheres. Quando o
critério era avaliar a geração mais nova, o número caía de 16 para 2, mostrando como a atividade vinha sendo
abandonada.
186
Agenor Miranda (Santos &Nóbrega 2000: 50-1) conta sobre outra líder sacerdotal
do Terreiro do Opô Afonjá, Aninha que, como Menininha, morava num sobrado do
Pelourinho, embaixo do qual possuía “sua quitanda e vendia coisas africanas”. Sua
sucessora, a famosa Mãe Senhora, tinha uma barraca dentro do Mercado Modelo, cujo
nome era Vencedora. Segundo Agenor “vendia tudo que representasse a Bahia: fitas, figas,
essas coisas todas”. Celina de Jesus (Santos & Nóbrega 2000: 62) uma adepta com cargo no
Opô Afonjá, complementa:
A barraca era boa, vendia frutas: araçá, tamarindo, mangabada e ori.
Acordávamos de madrugada, eu amarrava a saia na cintura para cortar as
frutas aqui no São Gonçalo, pra vender na barraca que ficava do lado da
rampa do mercado, na Alfândega. Levávamos mangas das mangueiras
próximas das casas de Exu e do Ibó.
Assim, Senhora teve comércio de alimentos, de produtos africanos e de produtos
afro-baianos. Segundo Celina, Senhora também vendia doces na festa da Ribeira, em um
ponto, ao invés de barraca. Parece que uma outra mulher, Epifânia, mantinha o ponto para
ela, vendendo para Senhora, que ia para a Ribeira na alta temporada. Dos depoimentos em
memória de Senhora, as pessoas se lembram de como fazia e vendia doces, tais como
manauês, bolachas de goma, cocada e pão-de-ló. Do que colhia da roça, ela colocava no
cofre comunitário “de Xangô”, uma espécie de fundo de assistência utilizado pela
comunidade, que lembra as juntas de assistência do período de escravidão. Mas também
utilizava a mão-de-obra de suas filhas, para colher frutas, quebrar cocos, tomar conta dos
pontos de venda. Todo esse serviço se confunde muito com o trabalho dentro do próprio
terreiro para realizar oferendas, como se a rua alimentasse o terreiro e vice-versa. Esses
depoimentos nos dão uma noção do micro-universo do pequeno comércio empreendido
pelo terreiro em nome de sua líder num contexto mais amplo.
A maior parte dos exemplos que citamos são sobre vendedoras de doces.
Geralmente, o que se podia carregar à cabeça, (atributos de cada tutor divino), no tempo da
ambulância, era o que se comercializava para o caixa do coletivo de mulheres, administrado
por uma líder sacerdotal, consagrada por sua emancipação e senioridade. Mais tarde, o
comestível atribuído a cada divindade era o que iria ser comerciado sobre o tabuleiro. Os
doces, muito comuns, além de se relacionarem a Ibeji eram, de certa forma, como
substitutos do mel quando a presença de um produto açucarado se faz possível nas ruas
187
através do divulgado açúcar - atributo da divindade Oxum
110
, que também aparece no mito
de origem do acarajé aqui transcrito. É de conhecimento público que Menininha e Senhora
pertenciam a essa tutora divina.
Uma outra líder de terreiro tradicional, Olga do Alaketu, tendo por patrona a própria
Oiá, em entrevista a Teresinha Bernardo (2003: 134-5) declarou ter chegado a trabalhar
fora do terreiro com o tabuleiro, como vimos acontecer com outras líderes. Sua fala enfatiza
o lado ritual da venda de acarajé: “Antigamente, vender com o tabuleiro fazia parte da
obrigação. Quem era de Iansã, vendia acarajé”.
No século XX, a recente “tipicidade” das comidas regionais, frente a uma maior
nacionalização da culinária como, por exemplo, na adoção geral do arroz e feijão - e
outras uniformizações da modernidade, também afetou o consumo. As vendedoras não
comiam mais, ou não tão correntemente, se pensarmos no relato de Vilhena, o que vendiam
ou ofereciam, como por exemplo, o caruru e efós que eram bem mais divulgados no
cotidiano de outrora.
Podemos observar que Senhora almoçava habitualmente feijão com arroz e farinha,
o trivial baiano, que havia acrescentado o arroz
111
. Colocava o prato no colo, fazendo
bolos com as mãos, segundo depoimento de Roberto Pinho (Santos&Nóbrega 2000: 160).
Como vimos, o contato da comida com as mãos sempre foi muito importante nas
cerimônias afro-brasileiras, que sempre tiveram uma noção alternativa de pureza. Nessa
concepção, ênfase no contato com o alimento que purifica o corpo, o que se opõe à
noção dominante de que o corpo, principalmente as mãos, contamina e suja os alimentos.
Edison Carneiro (1969: 49) também comenta esse trivial dos terreiros:
A alimentação normal não se afasta do padrão conhecido para as classes pobres. Pão
ou bolacha com café ou restos de comida da véspera, pela manhã; carne seca com
farinha, seja como pirão ou como farofa, feijão, às vezes os restos de galinhas
sacrificada aos orixás, no almoço; pão ou bolacha e café, novamente, à noite.
Raramente há as comidas chamadas baianas vatapá, caruru, efó, etc., - pois para
fazê-las, precisa-se de tempo e dinheiro; peixe e mariscos quase nunca há, porque os
candomblés estão sempre longe da praia e é necessário andar quilômetros para obtê-
los, mesmo a preços elevados; o mocotó, uma comida feita com as patas, o
110
O mel é o ingrediente preferencial para adoçar pratos do candomblé. Bastide (1952: 11) confirma a
ausência do açúcar nas oferendas dos cultos, o que não ocorreu em Cuba, segundo o autor.
111
Senhora viveu mais da totalidade da primeira metade do culo, tendo nascido em 1900 e falecido em
1967.
188
focinho e as vísceras do boi, apesar de mais fácil, é mais raro, por ser considerado
alimento muito forte, de digestão demorada; a mesma coisa acontece com o
sarapatel, feito com as vísceras do porco. Em todas as comidas entram, em grande
escala, azeite de dendê e pimenta. Poucos legumes e verduras, quase nenhuma fruta,
exceto as da roça. Para comer, raramente se usam garfos e facas muito primitivos e
facilmente azinhavráveis: a mão substitui o talher (manuscrito, como dizem os
negros).
Carneiro apresenta um quadro interessante que mescla trivial e típico. As comidas
típicas geralmente eram e são preparadas como oferendas quando a comunidade encontra-
se reunida para homenagear os deuses em datas especiais. Estas, então, chegam a ser
compartilhadas em comunhão. Para fazê-las precisa-se de tempo e dinheiro, conjuntura que
ocorre nessas ocasiões especiais. Não resta dúvida que é a comida dos deuses - aquela que
carregou elementos étnicos sobre um fundo geral de hábito alimentar que as condições
sociais ofereciam aos cativos - que foi parar na rua, inicialmente para reverter renda para as
comunidades.
No entanto, no cotidiano dos terreiros observados por Carneiro, mesmo durante o
tempo de preparo das oferendas, come-se o mais acesvel, ou às vezes não se fazem todas
as refeições. Do século XX em diante, come-se o consagrado nacionalmente, café com pão,
e o trivial baiano, ou seja, farinha, feijão, carne seca ou as partes das aves que não são
oferecidas às divindades, os pratos sendo geralmente regados com dendê e pimenta. Por
isso, acarajé e abará consistem comida fora do horário, guloseima, por este lugar especial
de oferenda, e não comida cotidiana, que lhes é dedicado, apesar de serem comercializados
na rua cotidianamente. Ocupam um lugar que é corriqueiro e, ao mesmo tempo, se destaca,
relacionado ao compartilhar alimento que também é oferenda.
Carneiro descreveu um candomblé que, porém, apesar das semelhanças com as
comunidades atuais, se modificou extremamente, entre a década de 60 e de 70. Essa
modificação também atingiu a venda do tabuleiro, que havia se transformado no
principal estilo de comércio típico de alimentos. A segunda metade do século ficou
marcada, ao menos localmente, pelo confronto entre crescente industrialização e profissões
consideradas arcaicas. Esse confronto foi impulsionado pelas modificações introduzidas na
primeira metade do século.
Cercear as comidas tradicionais preparadas artesanalmente para um nicho de
tipicidade fazia parte do processo mais amplo de disciplinar os setores populares. A linha
189
dura da ditadura no fim dos anos 30 não se prolongou em relação à vigilância dos
candomblés, assim como as reformas desse período, que consolidaram um modelo
formalizado para as relações de trabalho, criaram, por oposição, mais categorias para
açambarcar os que não se encaixavam - e sequer tinham essa opção - nas aspirações
modernizantes do poder público, tais como “vadiagem” ou “malandragem”. O trabalho
autônomo do pequeno comércio tradicional, que exigia poucos recursos financeiros e
nenhuma escolaridade, ficava muito próximo desse tipo de classificação.
Ao mesmo tempo, talvez paradoxalmente, começava um processo que levaria a
imagem da baiana vestida tipicamente a se tornar emblema da nacionalidade. O costume de
dançar com um pequeno balaio sobre a cabeça para realçar o requebrado (Lody 2003: 221),
o chamado “balainho de frete”, havia começado como representação e memória do próprio
andar da ganhadeira, de torso ereto o porte “escultural” que menciona Querino e ancas
baloiçantes, e das brincadeiras que essas mulheres deviam fazer com seu instrumento de
trabalho durante os períodos de descanso nas ruas, dançando em rodas improvisadas.
O balaio se transformou em um pequeno emblema, a deixa para demonstrar
habilidade no requebrado. Essas coreografias e principalmente a roupa típica teriam sido
absorvidas em parte pelo teatro de revista
112
, sendo finalmente apropriadas pela cantora
Carmen Miranda (Barsante 1985), que as lançou internacionalmente como um símbolo
nacional tendendo para uma representação também da América Latina. Carmen começou
sua carreira inserida no repertório de canções populares, sambas e representações teatrais
do universo artístico carioca, bastante íntimo do carnaval no Rio de Janeiro, que
buscavam reproduzir e recriar aspectos afro-brasileiros e alguns tipos de regionalidades
enquanto parte de uma cultura nacional que se afirmava para um público cada vez maior.
A cantora, então, incorporou a personagem da baiana, que era uma figura
carnavalesca conhecida. Cecília Meireles (1983), em um estudo realizado entre 1926 e
1934 descreveu, com riqueza de detalhe, a baiana legítima que ainda podia ser encontrada
nas ruas do Rio de Janeiro, muito semelhante à vendedora soteropolitana. Também
descreveu a baiana de carnaval, a partir da qual podemos vislumbrar de onde veio a
inspiração da Pequena Notável. Cecília Meireles destaca na baiana do carnaval as “saias
duras de polvilho”, laçarotes da camisa, e saia de seda ou chita colorida. A bata não era
112
Refiro-me, por exemplo, às atrizes Aracy Cortes e Durvalina Duarte.
190
mais branca, porém colorida, orlada de folhos”. Ainda trazia o “xaile” (pano-da-costa)
usado de modo insinuante, numa “nova faceirice”. Os colares e alguns elementos merecem
transcrão, porque foram literalmente reproduzidos pela cantora. Os colares foram depois
reincorporados como acessórios que se esperam de uma baiana do acarajé em Salvador, por
parte do turista:
Chega a vez dos colares: - não apenas o colar de guia, o fio de miçanga que
acompanha a boa baiana toda a vida mas metros e metros de contas de
vidro de todos os tamanhos, de todas as cores, com chispas, cintilações,
brilhos e sombras de mil cambiantes, reproduzindo todo o fausto das pedras
preciosas num amontoado monumental, das orelhas aos ombros,
imobilizando o pescoço, que dificilmente pode rodar para a esquerda e para a
direita, com a solenidade vagarosa de um pescoço de ídolo....”.
Os braços ficam recamados dessas mesmas contas, salvo se esta cabrochinha
tiver comprado braceletes de metal dourado, com recortes e embutidos (...).
E agora? Estará pronta? Não. Falta-lhe a trunfa quer dizer - o pano da
cabeça, que pode ser igual à saia, ou à blusa, ou completamente diverso. (...)
Enrolam-no como um turbante, escondendo as pontas na frente ou dobram-
no de maneira a tornar-se uma espécie de diadema, cobrindo a parte da
frente do penteado. (...).
Sobre essa trunfa não irá o balaio das compras, mas a sua lembrança: um
pequenino balaio fixado ao pano, pelo fundo, e contendo pequenas frutas
artificiais, ou flores de papel, de aspecto muito decorativo. Em alguns casos,
o balaio é substituído por um minúsculo tabuleiro, coberto por uma pequena
toalha de renda.
Agora está pronta a cabrochinha sestrosa, que é como quem diz a mulatinha
faceira. Não lhe falta mais que enfiar as sandálias ou chinelas novas,
menores do que os pés, para fazerem o andar saltitante e instável sandálias
de salto muito fino, geralmente pretas, com forro vermelho, umas bordadas,
outras pintadas e até às vezes orladas de pluma.
Na trajetória desse vestuário, surpreendentemente, a “mulata” terminou sendo
exaltada através de uma portuguesa nata, enquanto o balaio foi eliminado das ruas para
subir aos palcos. A atuação de Carmen Miranda no cinema nacional e de Hollywood ficou
marcada por esse vestuário que estiliza a baiana ambulante, com o acréscimo de peças que
caracterizavam a dançarina de rumba. No que toca à baiana, temos o pequeno balaio com
frutas artificiais transbordando sobre um turbante e os balangandãs, correntões e pulseiras
de bolotas acompanhados de brincos argolões. Variações sobre o mesmo tema levaram a
estilização de Carmen a se afastar cada vez mais dos elementos da baiana.
191
Ascensão da imagem típica da baiana
Enquanto a imagem, ainda que simulacro, da baiana vendedora começava a ser
divulgada internacionalmente de maneira mais incisiva que os postais pitorescos do século
XIX, os candomblés, apesar da repressão policial, conseguiam algum reconhecimento.
Lembremo-nos que grande parte de seu contingente provavelmente ainda era constituída
por vendedoras na tradição das ganhadeiras – do que Carneiro nos dá uma amostragem (ver
nota 109) e que o vestuário e algumas comidas estavam se recolhendo ao seu interior
perante o potente processo de uniformização europeizante iniciado no começo do século.
A obrigatoriedade do registro policial para funcionar e da licença para a realização
de cerimônias públicas demonstra o quanto o controle das ruas se estendeu até os nichos de
convivência e preservação que eram as comunidades dos terreiros. Mesmo neste contexto
desfavorável, os candomblés conseguiram se desenvolver, apelando gradualmente para
recursos legais e formando alianças com pessoas relacionadas a instâncias oficiais no
governo.
Jocélio Teles dos Santos (2000: 72-3) traz o depoimento do babalaxé Luís Sérgio
Barbosa
113
, que explica em detalhes como as redes de fidelidade formadas pelo candomblé
chegaram a alcançar o poder executivo federal, conseguindo a permissão para se tocar
atabaques então proibidos - nas cerimônias em plena ditadura do Estado Novo. O autor
analisa os desenvolvimentos posteriores dessas relações com autoridades oficiais, que vão
dando, ao candomblé soteropolitano, uma imagem mais positiva, da qual um dos sintomas
seria a transformação do discurso da imprensa.
A partir da década de 30, não só a aliança com autoridades fazia parte da agenda dos
candomblés, como a incorporação de relações com jornalistas, pesquisadores e artistas. Ao
imediatismo de uma tática cotidiana formada na espontaneidade de confrontos com as
intervenções dos poderes públicos nas ruas - como podemos vislumbrar a partir das
desavenças de rua das vendedoras africanas e afro-brasileiras descritas por Cecília Moreira
Soares vem se consolidar paralelamente uma busca de medidas estratégicas, tendo por
base as ações dos candomblés.
113
Ver também Vivaldo da Costa Lima (1987).
192
Ordep Serra (1995) e Jeferson Bacelar (2001) descrevem a formação de quadros de
intelectuais, tanto brasileiros como estrangeiros, que procuraram divulgar uma imagem
descriminalizada dos candomblés e de suas extensões culturais, e a formação de instituições
com a mesma finalidade. Como vimos, esse processo se inicia a partir da década de 30.
Ordep Serra (1995: 127-8) coloca Edison Carneiro como um fundador nesse sentido, ao
criar a União das Seitas Afro-Brasileiras em 1937, a qual teve duração efêmera, mas foi a
semente para a criação da Federação Baiana do Culto Afro-brasileiro (Febacab) em 1942,
uma instituição que nos interessa diretamente.
Segundo Ordep Serra, Carneiro empreendeu a ação política de organizador dos
cultos com vistas a conseguir uma liberação da prática religiosa do candomblé. Porém,
havia uma perspectiva de controle, um controle que a União gostaria de assumir no lugar da
polícia. Assim, o autor afirma ter ocorrido uma simbiose policial-religiosa na história das
organizações que sucederam essa primeira. Ou seja, a posterior Federação estaria
comprometida de alguma maneira com formas de controle estratégicas. De qualquer
maneira, mesmo se não tivesse ocorrido um determinado perfil policial como o autor
sugere, qualquer organização que tivesse a finalidade de matricular as casas de culto
exerceria alguma forma de controle. Nesse caso particular, o controle ficou, ao menos, a
cargo de um grupo de atuação que havia saído das comunidades ou mantinha com elas
alianças e fidelidades.
No entanto, o acesso oficial a esse controle e à liberdade dos cultos demorou ainda
duas décadas. Jocélio Teles dos Santos (2000) analisa aspectos do processo de
transformação da concepção oficial dos poderes públicos em relação às práticas culturais
afro-brasileiras, doravante não mais encaradas como um fator de atraso a ser eliminado,
graças ao estabelecimento de relações do candomblé com um círculo de pessoas influentes,
criando para essa tradição um discurso favorável, que a tornaria posteriormente uma
atração baiana.
Um dos trechos jornalísticos da imprensa baiana no início da década de 60, citado
pelo autor (Santos 2000:71), traz uma interessante mudança de abordagem, que principia a
aceitar a troca do controle policial dos candomblés pelo controle “científico”, uma
perspectiva muito próxima daquela de Nina Rodrigues no século XIX, que acreditava ser, a
193
questão, de natureza médica. Aos poucos, essa questão passou a ser vista, de um modo
geral, como da alçada das ciências humanas e sociais.
O autor capta o momento da virada em que criminalidade e anormalidade deixam de
ser compartimentos onde se encaixa o candomblé, e este passa a ser uma marca registrada
da Bahia, incorporada por órgãos públicos, empresas privadas e pela mídia (Santos 2000:
78). Isso ocorreu durante a década de 60. Ao lado do candomblé, ainda segundo o autor,
culinária e capoeira também são alçados a mbolo de baianidade. A crítica se transformou
em enaltecimento, porém bem compartimentado. O Brasil redescobria a África a partir de
Salvador. Como define Jocélio Teles dos Santos (2000: 81), essa cultura afro-brasileira
enaltecida seria vista “através de uma glorificação artística, como a matéria-prima de uma
nova política externa e desenvolvimento do país”. Este seria um dos primeiros passos para
a patrimonialização dessa cultura, tornando-a um bem imaterial.
O turismo teve um papel crucial nesse sentido. Ele vinha crescendo e, desde a
década de 40, se encontram publicações sobre a cidade de Salvador com pendor turístico
(Osmundo Pinho 1998: 112). Em 1952, podemos encontrar o Roteiro Turístico da Cidade
de Salvador (Vasconcelos 2002: 319), publicado pela prefeitura. Na década de 60, o
turismo começou a tomar seus primeiros contornos como setor estratégico na economia de
Salvador e do estado da Bahia.
Depois do golpe militar, implementou-se uma política nacional autoritária, voltada
para o desenvolvimento. Segundo Jocélio Teles dos Santos (2000: 84), para o enfoque
oficial do governo, o campo específico dos bens culturais deveria priorizar políticas de
preservação do patrimônio direcionadas para obras arquitetônicas, que ficariam associadas
ao incremento do pólo turístico no final dos anos 60 e início da década de 70. Dessa
maneira, a política desenvolvimentista militar conciliava-se com a preservação de valores
tradicionais através do turismo como instrumento de desenvolvimento econômico regional.
Nesse período, então, a preservação ficou vinculada ao turismo e este ficou fortemente
relacionado a aspectos identificados como “culturais” em relação aos recursos paisagísticos
e naturais de áreas regionais do país (Santos 2000: 85-87).
A Bahiatursa, órgão encarregado do turismo no Estado da Bahia, foi criada nesse
contexto, em 1968. Além de uma primeira preocupação com a infra-estrutura urbana
voltada para o turismo e o setor hoteleiro em Salvador e no Recôncavo, esse órgão também
194
seguiu a política nacional de preservação e desenvolvimento. Para Jocélio Teles dos Santos,
a preocupação governamental, que priorizava a restauração da área do Pelourinho desde
esse período inicial, reunia ambos aspectos de preservação e turismo. No entanto, no caso
de Salvador, essa política cultural e turística foi além do reconhecimento arquitetônico e
buscou se definir através de elementos afro-baianos (Santos 2000: 94-5).
Procurava-se desenvolver uma mentalidade turística e promover visitas à Bahia. O
tipo de divulgação requerido para atingir este objetivo foi fundamentado, então, em uma
espécie de imagem cotidiana baiana” que foi sendo construída envolvendo representações
afro-baianas. Nesse sentido, os elementos escolhidos como definidores do específico da
baianidade foram a religiosidade com atenção especial para o candomblé - e o estilo de
vida singular (Santos 2000: 96-7). Essas características baianas eram identificadas com uma
herança africana que era vista como popular e embletica. Assim, o candomblé se tornou
oficialmente atração turística, e, portanto, economicamente estratégico, podendo finalmente
deixar de ser encarado como assunto de polícia, na década de 70.
Deste modo, em 1976, após uma campanha da Federação Baiana do Culto Afro-
Brasileiro, empreendida no início dos anos 70, a favor da extinção da obrigatoriedade de
registro policial e licença para as casas de culto afro-brasileiro em Salvador, o registro dos
terreiros passou a ser tarefa da Febacab, onde policiais ligados ao candomblé, porém contra
o registro policial, tiveram papel de destaque (Serra 1995: 140). Mesmo com essa
conquista, a história posterior da Federação não foi marcada pela unanimidade, como é
comum em órgãos que exercem algum tipo de controle, e alguns candomblés tradicionais
chegaram a se desligar dela. Todavia, com percalços e discordâncias, essa se tornou uma
instituição bem consolidada
114
.
Por centralizar e tratar de assuntos concernentes ao candomblé, a Federão, nesse
período, também cuidou dos registros das baianas do acarajé antes do surgimento da
associação de baianas em 1992. Uma verdadeira prova institucional da dependência da
atividade para com as comunidades de culto. Hoje, a Federação e a Associação registram
paralelamente as vendedoras de acarajé.
114
Alguns conflitos em relação à posição política dos dirigentes e algum temor de cassação de “alvará de
funcionamento” de casas de candomblé discordantes não são incomuns, por este ser um órgão de controle.
195
Com o candomblé liberado e promovido a atração turística, as baianas do acarajé,
em seu domínio das ruas e praças de Salvador e da culinária, tornaram-se um dos emblemas
de baianidade mais divulgados nacionalmente e internacionalmente. O lugar que ocuparam
permanentemente durante quatro séculos transformou-se em um lugar privilegiado, do
ponto de vista turístico, que surgiu no século XX. No entanto, embora a perseguição
uniformizadora do progressismo do início do século tivesse cessado, pelo fato de a baiana
típica ter se transformado subitamente em promotora de uma imagem que propiciaria uma
atividade estratégica altamente rentável para o município e o estado, o controle público não
deixou de tributar e cercear essas artesãs. O turismo não demonstrou deixar margem para a
concepção tradicional de autonomia dessas mulheres, mas lhes impôs novas exigências
econômicas e de profissionalização ou “qualificação”. A gradual incorporação à sociedade
dominante, agora numa ordem capitalista industrial, teve seu preço.
Na segunda metade do século XX, a atividade do acarajé foi adquirindo as feições
de hoje. O comércio deste alimento típico se separou cada vez mais do mundo dos cultos,
para se tornar atração turística. Após a Segunda Guerra até o final dos anos 50, Salvador e
seu mercado de trabalho iriam se transformar bastante rápido, como sintetiza Bacelar
(2001:187-8):
A partir da década de 1950 e sobremodo nos anos 1970, assistimos a uma
completa transformação da nossa sociedade. A Bahia, naqueles momentos se
compatibilizava com a estratégia de consolidação do fordismo nos países
centrais e de internacionalização do capitalismo, via modernização
desenvolvimentista. A nova industrialização, com modernas empresas
instaladas no Complexo Petroquímico de Camaçari, com grande
concentração de capital e voltadas para a produção de bens intermediários,
tornavam-na o pólo dinâmico da economia regional.
Os modos alternativos de produção eram inteiramente suplantados pela nova
industrialização e serviços modernos, porém, os mesmos persistiam e se
recriavam como um expediente de sobrevivência cada vez mais utilizado por
amplas faixas da população. O pequeno comércio ambulante, o artesanato
urbano, a fabriqueta e o “bico” eram estratégias contumazes da população
menos qualificada e empobrecida. Processou-se, por sua vez, a alteração do
traçado urbanístico, com significativa expansão da cidade, com os novos
bairros ricos e sofisticados e a periferização avassaladora, sem os mínimos
requisitos em termos de serviços e habitabilidade para os contingentes
pobres.
Enfim, o fordismo como regime de trabalho e de consumo alcançou a Bahia.
No entanto, jamais se generalizou, restringindo-se aos bolsões modernos que
196
se expandiam, de alguma forma vinculados às grandes empresas, estatais e
privadas, nacionais e multinacionais.
A atividade do acarajé assumiu um determinado lugar neste quadro geral.
Caracterizada como um modo tradicional de produção em face do novo regime de trabalho
assalariado, ela poderia ser classificada entre as ocupações que absorveram um setor
marginalizado ou uma reserva de mão-de-obra ou o que mais recentemente se propõe como
trabalhadores da economia informal (Machado da Silva 2002: 86-7) diante de um regime
assalariado que se tornou o parâmetro das relações de trabalho.
Em Salvador, o chamado setor informal não seria somente produto do
desenvolvimento capitalista na economia baiana. Ele também seria caracterizado por essa
própria persistência em ocupações típicas, anteriores a esse desenvolvimento, que a
industrialização recente, proporcionada pela implantação do Centro Industrial de Aratu e do
Pólo Petroquímico, teria estimulado, com sua demanda crescente de serviços (Guimarães
2002: 244-5). O conceito de informalidade elaborado a partir do trabalho assalariado como
referência terminou englobando as categorias históricas de trabalhadores autônomos de
Salvador.
Com a industrialização, enquanto algumas ocupações tradicionais exercidas por
conta própria entraram em franco processo de extinção, como verdureiros a domicílio, e
outras ainda permaneceram num núcleo residual de trabalhadores, o acarajé se manteve em
expansão, assim como outras atividades exercidas pela mão-de-obra familiar, em domicílio,
no próprio bairro ou em pequenos estabelecimentos (Guimarães 2002: 245). Essa
característica o coloca numa posição de exceção, como foi definido por Carvalho&Souza
(1980: 88) em relação à atividade artesanal a qual “(...) assegura a sua permanência por
transformações no seu valor de uso e voltando-se para um mercado de mais altas rendas,
estimulado, inclusive pelo turismo (...)”.
Embora o acarajé possa estar numa faixa entre uma atividade mais rentável - como
no caso das baianas que alcançaram fama em nível nacional - e o pequeno comércio de
alimentos voltado para as necessidades de uma clientela popular mais empobrecida, sem
dúvida sua permanência se deve à história da construção de seu prestígio empreendida
pelas ganhadeiras e vendedoras e apropriada como atração turística.
197
Atualmente, vender acarajé pode se caracterizar como uma estratégia de
sobrevivência ou como a construção de um pequeno negócio no ramo da alimentação, de
produção em menor escala. Essa visão da atividade do acarajé como uma incipiente micro-
empresa é bastante recente e a postura anterior de considerar a venda de acarajé
exclusivamente como um “biscate” não desapareceu
115
. Porém, na cada de 80, mesmo
encarada como “biscate”, a venda de comida típica em pontos turísticos da cidade foi
descrita como uma atividade temporária - geralmente limitada ao final de semana - muito
mais rentável que outros tipos de serviço na estratégia da sobrevivência (Vianna 1980:
208).
Durante a década de 70, até o início dos anos 80, a Bahiatursa promoveu diversos
eventos em que apresentava baianas do acarajé em outros estados ou mesmo outros países.
Ouvi relatos sobre esses eventos, que estavam relacionados à conjuntura política
soteropolitana do período
116
. Era a divulgação da imagem de baianidade, como vimos, a
partir de então aliada à mídia televisiva. Creio que é neste período que surge a figura da
“baiana de evento”, como costumam definir as próprias baianas do acarajé. Ela se
caracteriza por se trajar muito bem e tipicamente e se apresentar em exposições, festivais,
encontros culturais, feiras itinerantes ou em campanhas de políticos esse último caso
muito comum em Salvador durante o período de eleições. Como afirmamos acima, as
apresentações e o crescimento do turismo renderam algum trocado às mulheres dispostas a
vender acarajé em pontos turísticos nos finais de semana. Nesse momento, ao se tornar um
trabalho temporário mais rentável e, portanto, mais procurado enquanto estratégia para
aumentar o orçamento dostico, a atividade do acarajé começou a se desprender das
tradições dos cultos e mesmo da Febacab.
A década de 80 foi marcada pela consolidação do turismo enquanto uma das
principais fontes de renda para Salvador, com o novo Centro de Convenções, com a cidade
alcançando a posição de Patrimônio Histórico da Humanidade e com o investimento na
atração do turismo internacional. Blocos de carnaval, a princípio mais politizados, vieram a
se juntar às atrações turísticas, com o desenvolvimento da indústria fonográfica da axé
115
Temos o exemplo do atual prefeito de Salvador João Henrique do PDT, um protestante, como me foi
comentado por baianas do acarajé, que em sua campanha eleitoral televisiva apresentou a atividade como
biscate.
116
São eventos que as pessoas relacionam, de memória, a Antônio Carlos Magalhães.
198
music. Apesar da crise econômica que atravessava o país, esse turismo regional se
incrementou cada vez mais, trazendo benesses que puderam ser usufruídas, por sua vez,
pela venda de acarajé.
A década de 90 significou uma guinada interessante do ponto de vista econômico.
Uma nova situação mundial, num contexto geopolítico de inovações tecnológicas,
informatização, mundialização da produção, do consumo e das comunicações, apoiado por
tendências neoliberais, provocou a reestruturação da organização produtiva capitalista, ou
seja, provocou uma crise no fordismo mais especificamente uma crise do regime de
acumulação fordista - do qual nos falou Bacelar.
Um novo conjunto de relações passou a ser norma do mercado de trabalho. Este, de
um modo geral, se flexibilizou, através da sub-contratação generalizada, chamada de
“terceirização”, com vistas a uma diminuição de custos nas empresas, e se “precarizou”,
através da perda, pelo trabalhador, de cobertura legal, de estabilidade no emprego e de
benefícios trabalhistas.
O impacto dessa reviravolta se mostrou muito singular em relação a Salvador, onde
a chamada informalidade sempre teve um papel estrutural por causa de sua história
econômica e pela importância do comércio nessa cidade, enquanto o estado se concentrou
no setor agro-exportador. Como afirmam Druck&Borges (2002: 114) sobre o setor
comercial:
(...) nesse setor, os contratos e relações de trabalho sempre foram
estruturalmente flexíveis, isto é, a remuneração por comissão de venda,
contratos por tempo determinado (em alta estação) e a rotatividade elevada,
que caracterizam as relações de trabalho nesse setor, de certa forma,
anteciparam o novo padrão de contratação do trabalho pelo capital que vem
sendo imposto ao conjunto da economia.
Tradicionalmente ligada à chamada informalidade, mal tendo vislumbrado um
processo tardio de industrialização e de regulamentação do trabalho, Salvador se viu às
voltas novamente com uma revalorização do “trabalho flexível”. Desse modo, o trabalho
autônomo e os pequenos negócios familiares, que foram as formas de trabalho tradicionais
encontradas pelos libertos para se contrapor ao regime de exploração escravagista,
passaram a uma posição menos desprivilegiada na visão da sociedade dominante. A pecha
de trabalho reservado aos “atrasados” e à “gente de cor”, na concepção do início do século,
199
ou aos “ignorantes”, sem instrução formal, mais recentemente, à gente que não podia
acessar o tão valorizado mundo do operariado
117
- com sua regulamentação e conseqüentes
benefícios, idealizados como garantia de segurança que recompensaria a aceitação das
disciplinas típicas do processo de produção industrial começou a deixar de pesar sobre as
seculares ocupações tradicionais.
A “nova informalidade” do final do século XX, além de provocar uma revisão
nessas concepções, teve uma significação nacional diferenciada, como explicam Lima
&Soares (2002: 167):
Seria o retorno do ônus da reprodução da força de trabalho na própria família
e o enfraquecimento da regulação sobre o mercado de trabalho. Poderíamos
chamar isso de “nova informalidade”, por incorporar contingentes de
trabalhadores antes no mercado formal e protegido. Juntam-se aos
trabalhadores do “velho informal” autônomos de todos os tipos e atividades.
Em comum, agora, a falta da perspectiva de inserção na formalidade, antes
vista como o futuro desejado. A “nova informalidade” pode ser considerada
como sinônimo da flexibilidade dos novos tempos.
Nada de novo, se pensarmos nos países periféricos, nos quais amplos
contingentes de trabalhadores sempre estiveram no informal e sempre
dependeram da família para sua reprodução como força de trabalho.
Devemos considerar, ainda, que os processos de formalização, nos países
periféricos, não chegaram a atingir a maioria dos trabalhadores, tendo
crescido no período 50-70 e declinado em seguida. Entretanto, muda a
perspectiva, a informalidade deixa de representar algo transitório, para
constituir-se em definitivo.
Esse quadro nacional, em que o considerado informal não representa nada de novo,
fica mais exacerbado no caso da região soteropolitana. Os autores mencionam um futuro
desejado, representado pelo pleno emprego formal, o qual deixou de ser uma expectativa
geral. Porém, essa talvez nunca tenha chegado a ser uma expectativa, no caso de alguns
grupos afro-descendentes relacionados com a tradição popular e secular de trabalho
soteropolitana, representada, em síntese, pela venda de acarajé. Essa tradição não esteve
comprometida com a tendência neo-liberalizante da década de 90 apesar das tentativas de
117
O qual surgiu mais recentemente como uma das opções de emprego formal, além dos relacionados à
burocracia dos órgãos públicos, apesar do acesso aos dois tipos não ser uma opção para uma maioria sem
muitos recursos sociais e econômicos, segundo as exigências do mercado assalariado. Sobre a classe operária
numa “sociedade urbana influenciada por formas de representação não-classistas, como a tradição cultural
afro-brasileira ver Agier&Guimarães (1995).
200
apropriação, via turismo e os treinamentos em empreendedorismo e também não havia se
identificado com o ideal e a possibilidade de trabalho regular - apesar de melhor
remunerado e protegido - subitamente levantada a partir da metade do século. É uma
tradição de trabalho que conseguiu guardar uma visão alternativa, justamente por sua
antiguidade.
Por causa dessa visão alternativa, que alia trabalho autônomo à identidade de um
grupo, a industrialização não conseguiu extinguir esse tipo de atividade. Também as
tentativas de tornar a venda de acarajé desvinculada de seu processo artesanal,
uniformizando a produção para aumentar os lucros na “lógica do mercado”, não
conseguiram desfigurar o que talvez ainda possa acontecer a tradição familiar de venda
nas ruas. Há algumas incursões nesse campo, comprometido prioritariamente com o
aumento dos lucros e com negócios em grande escala, envolvendo investimentos maiores e
racionalização do processo produtivo, como veremos. Porém, vender acarajé ainda faz parte
do “velho informal”, que envolve o trabalho autônomo e em família.
Segundo boa parte das baianas do acarajé com que tive contato, a década de 90 teria
sido uma década de crescimento da atividade, produtiva em termos de rendimentos. Como
sabemos, foi também uma década de valorização da atividade, período em que surgiu a
associação de baianas do acarajé
118
. O retorno prometido pela venda e a valorização trouxe
novos elementos para o mercado das baianas, até então quase reservado às mulheres que
tinham uma relação de aceitação com os cultos afro-brasileiros. Surgiram, então, as
polêmicas sobre a venda de acarajé por homens, em relação à qual a Febacab tomou uma
posição conservadora, sendo contra essa inovação (Argollo 1996). Surgiram também as
discussões em torno do que ficou conhecido como “acarajé de Jesus”, o acarajé vendido por
mulheres e homens “evangélicos” que queriam desvincular a venda de suas raízes afro-
brasileiras.
Em parte, as baianas do acarajé conseguiram protegê-lo da desfiguração pretendida
pelos evangélicos, conseguindo a obrigatoriedade da indumentária da baiana para a venda
do quitute e uma posição de bem imaterial tombado para o acarajé. No entanto, como o
118
Com as obras de restauração do Pelourinho, iniciadas neste período, uma terceira imagem da baiana típica
surge, uma espécie de simulação, na qual mulheres vestidas com saias de lamê sustentadas por enchimentos
em armação de metal perambulam por essa área, oferecendo-se para posar em fotos com os turistas pelo preço
de um real.
201
próprio irmão Valdemir afirma, enquanto vendedor do acarajé e “pregador”, a concepção
evangélica do acarajé enquanto um alimento como outro qualquer abriu prerrogativas para
outras reivindicações na comercialização do produto. Ou seja, esse passa a ser um nicho
cobiçado por prováveis redes de fast food, supermercados e empresas de alimentos prontos
ou semi-processados. Embora seja possível a convivência da tradição com essa novas
abordagens comerciais concorrentes, podendo até mesmo alimentá-las, esse tipo de situação
não parece muito auspicioso às baianas, pois elas percebem que o maior valor de sua visão
alternativa, a autonomia, ficaria ameaçado a longo prazo.
O longo cerceamento sofrido pelas vendedoras durante quatro séculos continua,
então, com outra roupagem. O conflito histórico com as regulamentações municipais se
amenizou, mais efetivamente quando o município protegeu elementos afro-brasileiros da
venda do acarajé, como a indumentária, por sua vez altamente atrativa para o turismo na
cidade. Por outro lado, a defesa da tradição do trabalho instaurou uma relação de
dependência com uma apropriação turística.
Assim, mesmo com essa mínima proteção bem recente, surgiram exigências de
profissionalização e de “qualificação”, aliadas ao discurso da higiene, renovado em
comparação às políticas de saneamento do início do século XX. As mudanças também não
liberaram o trabalho informal nas ruas – e o emblemático comércio do acarajé – do controle
residual dos poderes públicos, num mundo onde a regulamentação e a chamada
informalidade estariam entrelaçadas no estímulo ao desenvolvimento do capital.
Em uma comparação dos atuais trabalhadores de rua com aqueles do século XIX,
Bruno Durães (2002: 305) identifica uma continuidade em relação à vigilância das
atividades por estes empreendidas:
No que se refere ao controle do poder público, os trabalhadores informais,
em Salvador, são alvo de repressão, sendo “perseguidos” e combatidos”
pela prefeitura municipal. Uma tentativa de esconder as atividades informais,
ou de inibi-las, como ocorria no século XIX, com as sucessivas perseguições
aos “ganhadores” e “carregadores” (...). Hoje, os vendedores ambulantes
regulamentados são obrigados a usar crachá de identificação, em alguns
casos fardas, noutros delimitação da quantidade de produtos na barraca, o
uso de cadeiras, o uso do espaço público, enfim, o trabalho informal ainda é
permeado por uma gama de fatores coercitivos, que, entre outras coisas,
possibilitam a identificação, padronização e o controle.
202
As tentativas de esconder ou inibir ainda são uma realidade para os vendedores
ambulantes, os camelôs de Salvador. Mas as baianas do acarajé, apesar de constituírem uma
atração a ser exposta, não estão tão longe disso, pois teriam, em tese, obrigação de tirar
licença, usar sombrinhas e tabuleiros padronizados, não podendo se estabelecer em certos
locais, principalmente durante o carnaval, nem comercializar certos produtos, como
refrigerantes, por exemplo. Como no caso dos vendedores ambulantes, recorre-se à burla
para amenizar esse tipo de coerção, correndo-se riscos durante as fiscalizações.
Apenas um aspecto ficou diferenciado, o fato de a farda obrigatória ser a
indumentária afro-brasileira, o que se traduziu por uma conquista das vendedoras
tradicionais, mas que também levou a desordem simbólica ao caminho da padronização.
Essa indumentária está sofrendo um processo de redefinição de sentido, ainda que
incipiente. Isso pode ser demonstrado através dos discursos elaborados em torno do uso do
torço, que superpõem, à identidade e à história da tradição afro-brasileira, renovados
sentidos de higiene tirados do baú das hierarquias e distinções raciais.
203
Mulheres empreendedoras em família
Uma construção afro-brasileira alternativa ao mercado formal de trabalho
Na costa ocidental africana, feiras tradicionais locais ainda são um domínio
feminino. Algumas vezes, esse domínio é dividido com os homens e produtos específicos
definem uma divisão sexual de trabalho. Assim, mulheres vendem inhames enquanto os
homens ficam encarregados de prover noz de cola, como acontece entre os ashantes em
Gana (Gracie Clark 1994: 253). Nesse caso, porém, embora dividindo espaço com os
homens, as mulheres são maioria e se organizam diferenciadamente.
Entre os mercados nigerianos dos iorubas e dos igbos, essa organização acontece de
modo mais separatista em relação aos homens. As associações de mercadoras são, ao
mesmo tempo, uma associação local de mulheres, em que gênero e trabalho o estão
especializados, ou seja, separados. Portanto, elas se recusam a submeter-se à liderança
masculina de organizações que englobam várias associações (Clark 1994: 256). Essa recusa
é uma das reações à perda gradual de uma equanimidade tradicional de gênero (ver
Amadiume 1997: 110-11, a propósito de um “sistema dualigbo), pois o poder político das
mulheres não poderia ser desvinculado do embasamento econômico feminino na atividade
das feiras.
Assim, apesar de as mulheres igbos terem mantido seus tradicionais conselhos
femininos, imposições colonialistas masculinizaram a política local e a economia de capital
enfraqueceu seu poder. A crescente opressão feminina foi expressada pela perda de
autonomia dessas associações étnicas de mulheres e pela perda do domínio do mercado.
Essa situação gerou conflitos e recusas, como se pode verificar nos eventos ocorridos no
mercado de Afor Nnobi durante a última década de 80, descritos por Amadiume (1997:
131-39).
No Brasil, o que foi incorporado do modelo dessa instituição feminina tradicional
africana sofreu um processo diferenciado. Não ocorreu o choque de uma tradição
territorializada com uma política colonialista associada a uma economia de capital bem
definida e industrialista, como aconteceu no fim do século XIX, na expansão do domínio
204
europeu sobre o continente africano. No período colonial, o Brasil mesclou formas de
comércio femininas tradicionais de várias origens, inclusive européias.
Porém, as africanas para transportadas tiveram que fazer um esforço de
resistência e reinvenção talvez ainda maiores, ao mudarem de território; ao serem
empurradas para alianças com outras etnias - às vezes vizinhas e rivais na origem, às vezes
não; ao serem obrigadas a um sistema escravista de exploração de sua mão-de-obra que
lhes retirava completamente a autonomia. A irremediável ausência de laços familiares com
a terra e com as pessoas parece de fato uma grande desvantagem para as mulheres da
diáspora.
Mesmo assim, elas conseguiram refazer essa instituição, que foi semelhante, em
alguns aspectos, aos mercados africanos atuais mencionados acima, se comparados à
atividade feminina africana em território brasileiro durante o período colonial e imperial.
As mulheres vendiam produtos coletados, produtos que cultivavam em pequena escala e
outros bens produzidos artesanalmente, além da comida pronta. Associadas à ambulância,
as vendas também aconteciam em mercados que se estabeleciam em alguns pontos de
diversos núcleos urbanos. Porém as mulheres nunca detiveram controle sobre a produção
agrícola no caso do território brasileiro.
Hoje não ocorrem mais, e os mercados outrora femininos são feiras mistas, apesar
de um formato mais tradicional, como o da feira de São Joaquim em Salvador. A imagem
de uma vendedora típica não se relaciona mais ao comércio de produtos vegetais e mesmo
de outros produtos não perecíveis em mercados regionais e centrais, como ainda se
caracteriza nas regiões africanas que citamos. Essa imagem pública de trabalho feminino
sofreu outras interferências e terminou se construindo de outra maneira. Ela também teve
que se restringir regionalmente, em relação à importância e distribuição que possuía no
passado.
Durante o período colonial, a tradição de venda de comida por mulheres
primeiramente africanas e cativas e gradativamente crioulas de origem africana e libertas
tomou conta de várias partes do território nacional. Salvador conseguiu manter um grande
contingente feminino mercando em suas ruas ao longo de quatro séculos. No restante do
país, a visão de mulheres transportando víveres transformou-se com mais velocidade em
apenas mais uma memória.
205
A ambulância predominantemente feminina que oferecia produtos de primeira
necessidade foi substituída, com a crescente industrialização, por vendedores que hoje
identificamos aos chamados camelôs, os quais vendem produtos especializados. E mesmo
em Salvador, muitas das atividades femininas de mercancia desapareceram com a
modernização do século XX. No entanto, ao menos uma delas, a venda de acarajé, como
vimos, guardou em sua atuação a síntese de um ofício feminino antes mais abrangente.
Não que esse seja um ofício de pouca importância ou uma particularidade regional
exótica. Assim, o que se em diferentes expressões da entrada das mulheres no mercado
de trabalho nacional é, em Salvador, relativamente sui generis. Em primeiro lugar, porque
as soteropolitanas sempre sustentaram grande parte das famílias pobres. Em segundo lugar,
porque a ocupação dessas mulheres nunca esteve desvinculada do pequeno comércio,
principalmente da venda de alimentos. Apesar de o acesso a um mercado de trabalho
formal ou considerado mais qualificado lhes ser pouco possível, essas mulheres
continuaram assegurando a sobrevivência de famílias inteiras via uma atividade tradicional.
Essa predominância feminina entre os chefes de família de setores economicamente
desfavorecidos tem sido bem marcante e suscitou pesquisas locais de abordagem
sociológica. Pode-se até identificar uma tradão de estudos soteropolitanos preocupados
com a venda ambulante, o que os torna indiretamente vinculados aos valores regionais
seculares representados no pequeno comércio: o feminino como o núcleo familiar que
sustenta, a família como uma empresa, a tradição familiar de trabalho ligada à mãe e à avó,
o produto alimentício como principal opção.
No entanto, o enfoque tem sido sobre a informalidade, a precariedade e a não
inserção no mercado de trabalho. Essa abordagem sócio-econômica, por vezes, acaba por
ocultar algumas aquisições positivas de valores e de melhorias na qualidade de vida, do
ponto de vista da emancipação dessas mulheres, a ser possibilitada por esse tipo de trabalho
tradicional.
Enfoque formado, em parte, pela própria herança do receio e da desvalorização da
atividade de africanas nas ruas por parte dos poderes públicos. Em relação ao controle
municipal, o que era claramente um problema de ordem étnica e racial, passou a se
apresentar como da alçada da saúde e segurança pública - com mais ênfase a partir da
206
República. No processo, a questão teve ressaltadas as feições de um problema de classe,
sentido que passa a restringir e ocultar as causas consideradas anteriormente.
Entretanto, o caráter aparentemente desordenador dessas mulheres mercantes em
relação à urbe ou ao trabalho formal - guarda o sabor de uma reação e resistência aos
ditames de um poder primariamente senhorial cuja exploração vai assumindo aspectos
capitalistas mais avançados, que se tornaram ideologicamente legitimados por pressupostos
de um sanitarismo positivista e de metas econômicas desenvolvimentistas. Como pano de
fundo, a desigualdade racial e de gênero nunca deixou de ser um problema fundamental.
Como se vende hoje acarajé: formato ainda tradicional
Salvador se tornou uma capital cujo crescimento formou uma região metropolitana
com nove municípios. A população alcançou a cifra de dois milhões e quase quinhentos
mil, sendo as regiões administrativas mais populosas São Caetano e os chamados Subúrbios
Ferroviários, mais ao norte e ao interior em relação à soterópole.
A maior parte dos chefes de família que sustentam um domicílio recebe de um a três
salários mínimos
119
. No entanto, o desemprego vem aumentando, em função de um quadro
recessivo crônico, e grande parte da população vai buscar sua renda no mercado
informal, onde um dos principais ramos é o da alimentação. Entretanto, existem outros
fatores para além de uma determinação econômica, nessa busca pelo mercado informal,
como tem sugerido nossa reflexão.
Ao lado de barraquinhas onde se vende todo tipo de alimento que poderia ser
encontrado em outros pontos do território nacional salgadinhos, cachorro-quente,
quentinhas, churrasquinho ou produtos comuns às cabanas na orla de qualquer cidade
litorânea - está a atividade tradicional das baianas
120
. Essa atividade, uma “exceção”
tornada típica no restante do país, com ressalva para as cidades litorâneas - mais
119
Salvador em dados (2005), encarte da Prefeitura Municipal de Salvador (SEPLAM).
120
Existem por volta de quatro mil baianas de acarajé de acordo com a secretaria de Serviços Públicos da
Prefeitura de Salvador. Quando visitei a Abam (Associação das baianas de acarajé e mingau) havia o registro
de 1748 baianas, que provavelmente aumentou. Cerca de 50 mil acarajés são vendidos por dia, número que
dobra na alta temporada, uma estatística que pode ser traduzida em termos qualitativos pela visível atividade
em diversos pontos da grande metrópole em diversos horários diariamente.
207
propriamente em alta temporada - é corrente em Salvador durante o ano todo e em toda a
região.
Podemos constatar, em Salvador, períodos em que a venda de acarajé está a todo
vapor, principalmente durante as temporadas de férias do turista nacional e do visitante que
vem de outros países. Essas temporadas não coincidem, o que uma margem de tempo
maior para a obtenção de renda com o turismo. As baianas vendedoras comentam que
quando chega abril “é dureza”. Julho começa a melhorar e, daí por diante, temos períodos
cada vez mais prósperos, com seu auge em dezembro, janeiro e fevereiro.
Geralmente, na alta temporada, muitas se convertem em vendedoras apenas para o
período, aproveitando a riqueza do momento. O acarasempre teve, na longa duração de
mais de dois séculos, demanda para o ano todo, sendo um produto tradicional apreciado
pela população local. Continua sendo, mas o turismo, atividade que foi crescendo durante o
século XX, agora outras feições à periodicidade da venda. No entanto, mesmo com as
interferências e demandas da indústria turística, a produção do acarajé ainda não se despiu
de sua peculiaridade tradicional, nem se uniformizou, ainda.
Por isso mesmo, as baianas de agora não conseguiriam ser confundidas com o
comércio ambulante - nem tão tipicamente local - de Salvador como a venda de pipocas,
amendoins, picolés, água, queijo, café e cigarros (as duas últimas muito comuns na área
considerada turística, como o Pelourinho). No passado, no entanto, o acarajé era um
produto da ambulância das mulheres de porta em porta ou nos pontos de reunião de
quitandas.
Provavelmente, não constituía apenas a renda de ganhadeiras que perambulavam à
cata de um “lucro” muito peculiar, relacionado à sua emancipação. Podia também tomar
outro formato esporádico, sem uma origem específica, muito comum em qualquer tipo de
venda de alimentos: o estabelecimento comercial localizado na própria moradia. Esse estilo
nos remete às boutiques medievais, onde os moradores comerciavam o fruto de seus ofícios
no andar térreo de suas casas (Desportes 1998: 431-4). Às vezes, a venda se efetuava pela
janela de uma lojinha. Na cidade contemporânea de Salvador, a venda de alimentos na
própria moradia não é algo incomum, em contraste com os estabelecimentos do corcio
de produtos industrializados.
208
Este é um estilo tradicional que sempre deve ter sido parte do repertório da venda de
comidas que se tornaram típicas. No caso do trabalho feminino, as atividades dentro de casa
ou nos arredores diminuem o peso da jornada doméstica que fica a seu encargo. No entanto,
é importante enfatizar que o costume das mulheres que legaram as tradições nagôs era o
mercado, que se configurava como reunião de mulheres, com liderança constituída, a qual
implicava, muitas vezes, longas caminhadas desde os locais de moradia e de produção de
gêneros agrícolas até os pontos de reunião (Verger 1992). O pano-da-costa foi uma peça
que fez parte desse complexo, que foi reforçado em território nacional pela falta de
mobilidade das consumidoras portuguesas. A readaptação, em Salvador, do mercado nagô
com a coordenação de suas iyalodes (representantes das mulheres nos mercados), manteve
o uso da peça para transportar a prole em tenra idade numa situação de cativeiro e transferiu
a liderança do mercado para os terreiros, em sua acolhida aos africanos e afro-descendentes
que haviam perdido suas referências de organização social.
Sabemos que os pontos de reunião de ganhadeiras, as quitandas, tomaram a acepção
de estabelecimentos comerciais. Com o desaparecimento da ambulância para os gêneros
alimentícios básicos embora ela continue para guloseimas e, no dizer soteropolitano,
“merendas” a quitanda permaneceu como a loja de comerciantes que ascenderam
socialmente, principalmente as ganhadeiras, também chamadas de quitandeiras. As
quitandas foram um movimento em direção ao formato da venda a partir da moradia,
mesmo porque, inicialmente, seria muito caro às recém egressas do cativeiro manter dois
imóveis.
Assim, a venda caseira é algo bastante arraigado em se tratando de trabalho
feminino e ainda hoje há quem venda, em Salvador, na porta de casa. Baianas reconhecidas
como Cira de Itapoã vendem pximas de casa, embora com muito mais recursos. Muitas
baianas m mais facilidade de vender seu produto no próprio bairro onde moram e isso é
bastante comum, como encontrei, por exemplo, em Amaralina, Pituba, Boca do Rio,
Liberdade, Alto do Cabrito. Muitas vezes, a baiana está inserida no espírito comunitário do
bairro.
Em pelo menos dois locais, pude constatar a consolidação da venda na porta de casa
enquanto um negócio bem sucedido. Em ambos casos, a atividade é familiar, como, aliás,
na maioria das vezes. Num desses locais, a memória da tradição familiar remonta ao tempo
209
em que o pai de Gersonita Anunciação Goés possuía um armazém e vendia cuscuz na
antiga rua da Lama. Na casa onde mora hoje, no atual beco do Garcia, no bairro do Garcia,
Gersonita retomou a tradição quando começou a vender abarás na década de 90.
Ela aprendeu a fazer os bolinhos com a irmã Deusoíta, que tinha um ponto de
acarajé na Barra, onde vendeu por mais de vinte anos. As irmãs de Gersonita se juntaram a
ela vendendo produtos diferenciados. “Tia” Leda e Célia com o feijão e comida caseira e
Laís com doces e salgados. Jaci, filha de Gersonita, assumiu o abará da mãe. Mais uma
irmã, Nilzete, faz suco e comida pra fora.
A venda de comida transformou quatro moradias geminadas em um conjunto de
restaurante e barzinho chamado Beco do Feijão, bastante freqüentado, apesar de se localizar
numa parte com forte característica residencial e bem pouco evidente num beco. Mesmo
assim, pessoas de bairros distantes como Pituba e Itapoã o bairro da consagrada Cira
vão ao Beco do Feijão, como declara a terceira geração de mulheres que cuida do negócio
de família.
Menos sorte teve o abará “grande e caseiro” que sai à noite no bairro da
Liberdade, numa pequena casa da ladeira de São Cristóvão. A baiana do abará estava
traumatizada com o recente assalto seguido do falecimento de seu marido alguns metros
de casa e seu “sobrinho” (sobrinho por consideração) somente quis falar através das grades
da residência. No entanto, o negócio que “vem de família” - parece estar dando retorno,
até mesmo chamando a atenção indesejável de ladrões, visto a preferência da vizinhança
que ali faz fila para comer de noite.
Estes exemplos são extremos da fixação da baiana à sua casa que deram certo.
Geralmente, é mais fácil encontrar baianas vendendo em pontos mais ou menos próximos
da produção (caseira) da massa do acarajé, mas também há as baianas que se deslocam
bastante para vender suas comidas em pontos mais lucrativos longe dos bairros onde
moram. Algumas fazem todo esse transporte mesmo com poucos recursos, apesar da feitura
do acarajé ser bastante cansativa. Esse tipo de deslocamento não deixa de ser um outro
aspecto também tradicional diante de novas circunstâncias.
O atual local de trabalho da baiana cuja face se mostra mais visível é o ponto. O
ponto pode ser definido como um lugar público que muitos prováveis fregueses
freqüentam. O ponto pode ser feito por situações exteriores à baiana, por exemplo, quando
210
está próximo a um bar ou se localiza nos arredores de um shopping. O ponto também pode
ser feito pela própria baiana. Nesse caso, elas explicam a paciente construção de um ponto,
a partir de um lugar movimentado, que precisa dos requisitos da simpatia e do acarajé bem
feito, saboroso, e mais, “Tem que ser tudo zelado, tudo limpinho”, como declara Raimunda
dos Santos Silva.
O processo de feitura de um ponto pode levar, em dia, um ano, tempo explicado
em outros termos como “começa fraco, depois vai fazendo...”. Há também pontos
temporários, chamados pontos de festa, locais onde as baianas costumam vender durante as
celebrações típicas festas de largo - como a do Bonfim ou do Rio Vermelho. Temos
algumas modalidades de venda através das combinações de pontos: venda em pontos fixos
(ou em casa) e nas festas ou vendas somente durante as festividades. Uma terceira opção é
deixar as festas de fora, o que as vendedoras de tabuleiro evangélicas ortodoxas costumam
fazer. Ainda existe a modalidade do acarajé para eventos, como mencionamos, que não
envolve o ponto.
O ponto certamente adquire um alto valor se for bom e os pontos também podem ser
comercializados
121
. Porém, poucas baianas se referem ao ponto nesses termos, embora haja
a prática. Falam da raridade da operação de venda do ponto ou até mesmo que “isso não
existe” e o “cargo”
122
deve ser abandonado, quando uma baiana se muda do local em que
vendia. Passar o ponto pra frente tende a significar que está sendo herdado por suas
descendentes consangüíneas incluindo a linha lateral de sobrinhas ou por auxiliares e
aprendizes que foram agregadas à família e que aprenderam o ofício com elas, o passar o
ponto “por camaradagem”.
Quando um ponto é adquirido, tradicionalmente ou o, ele automaticamente
poderes de certo monopólio sobre o local: “A maioria são registrados, são fixos, e se não
der permissão, não vai sentar ninguém”, segundo Airan Araújo, cujo enfoque é mais
tradicional e permeado por valores do candomblé. Algumas se queixam de outras baianas
que têm um ponto bom, mas não o utilizam, nem deixam outras vendedoras o utilizarem
essa era reclamação de uma baiana da Ribeira que vendia na calçada da praia.
121
Ouvi falar em valores desde R$ 1300 até R$ 4 mil (para um ponto considerado bom). Os pontos que são
mais vendidos são os de praia.
122
Expressão que nos remete ao candomblé.
211
Se este ponto foi “oficializado” com a retirada da licença na prefeitura
procedimento que formaliza o local de trabalho ao informá-lo à prefeitura e que, segundo a
Abam (Associação das baianas de acarajé e mingau), comporta a despesa de uma taxa de
entrada de sete reais, mais a cobrança anual de 120 reais como imposto pelo uso do solo
123
-
fica mais difícil para outras baianas desfrutarem de um ponto que teria sido como que
registrado, embora sua detentora esteja ausente.
A prefeitura também pode interferir nos pontos e algumas baianas têm histórias
tristes a este respeito. Nós até poderíamos chamá-las de histórias ancestrais, que vêm se
repetindo e que mudam conforme as conjunturas particulares de cada período, cujo tema é
sempre o mesmo: baianas deslocadas, que foram expulsas para organizar a cidade e, mais
recentemente, o turismo da cidade. Assim, elas tiveram que se mudar, por exemplo, da
parte detrás da Igreja para calçadas mais distantes, durante a festa no largo do Bonfim.
Maria de Lourdes dos Santos conta que vendia mais de vinte anos, no Campo
Grande, durante o carnaval, mas perdeu o ponto com a entrada do prefeito Imbassay
124
,
cuja prefeitura começou a cobrar por uma licença para vender no carnaval. A partir de
então, apesar do pagamento da licença, os locais assim permitidos eram desfavoráveis para
o comércio do acarajé. Vemos como o ponto se desloca forçosamente da tradição para a
comercialização, num sentido de auferir mais lucros aos poderes públicos, através da gestão
das festividades que se voltaram para o turismo por parte da prefeitura.
A demanda da prefeitura encarece a atividade. Seu Nélio, motorista de táxi e um de
meus informantes e guia na cidade, calculou por alto o valor do “dinheiro do solo” das
barraquinhas na “lavagem” de Itapoã (do ciclo de festas, em 27 de janeiro) que ficaria em
torno de dois mil reais. Isso demonstra como licença mais concorrência colocam um preço
na participação das vendas durante o carnaval. Pelo fato de elas não disporem dessa quantia
quase a mesma requerida para investimento de quem pretende iniciar em boas condições
um pequeno negócio de acarajé esses custos dificultam a vida das baianas com menos
recursos e que não tiveram a oportunidade de fazer fama. Assim, elas se mudam mais uma
vez.
123
Ouvi das vendedoras referências à anuidade com outros valores, tais como 25 reais ou 60 reais.
124
Antônio José Imbassay da Silva (quando pertencia ao PFL), cuja primeira prefeitura se iniciou em 1996.
212
Aliás, nem sempre as baianas possuem a licença da prefeitura, e falam disso num
tom que parece, por vezes, de protesto. Sem escapar ao estereótipo criado do “rodar a
baiana”, mas sem a caricatura e o exagero dos que reclamavam dos bate-bocas do passado,
podemos dizer que as baianas não se acanham em protestar. Uma delas, que prefiro não
identificar por não seguir o que determina a prefeitura, afirmou que prefere não pagar
licença e manter a “carteira de baiana” que foi de sua mãe. Para ela, não ter licença própria
não constitui um problema, já que o “rapa” - fiscal que usa uma roupa azul - “não bole com
a gente”.
Mas nem sempre os fiscais são vistos tão positivamente. Outra baiana relaciona a
atitude do “rapa” diretamente ao governo de cada prefeito. Ao referir-se ao novo prefeito
João Henrique
125
, declarou não ter visto ainda o “rapa” bater em ninguém como acontecia
com o prefeito anterior Imbassay - em cujo governo o “rapa batia, matava, derrubava”.
Essa baiana também não queria saber de tirar licença, explicando que “tirar licença é
dinheiro, eu quero é ajuda”. A relação com a prefeitura continua conflituosa, agravada pela
pressão das secretarias de turismo que ambicionam controlar e aumentar a produtividade
das vendas em função da renda que lhe retorna indiretamente. Esse contexto se reflete em
todas instâncias, como, por exemplo, nos pontos de venda.
Como vimos, a própria casa da baiana pode se transformar num ponto ou num
point”, como definiu a baiana do Beco do Feijão. Esse paralelo entre ponto e pointé
sempre enfatizado, para além da semelhança ortográfica. Os vendedores gostam de lançar
mão do pointpara que o ponto de acarajé se transforme também num ponto de encontro,
como no caso do Point do Acarajé no bairro do Canela, estabelecimento que pretende
seguir um modelo fastfood de lanchonete para o acarajé.
Assim, todos os dias ou em determinados dias, as baianas vão até o ponto em
determinados horários para vender os quitutes de seu tabuleiro. Se elas trabalham nas
praias, costumam preferir vender pela manhã até às cinco da tarde, ou mesmo escolher um
turno à tarde, dependendo do local. Mas a tarde e a noite têm a preferência da baiana para
vender seus quitutes e esse horário é consagrado tradicionalmente.
A outra face do local de trabalho da baiana geralmente é sua residência, onde ela
prepara a massa do seu acarajé e outros pratos agregados ao bolinho, como o vatapá. Ali ela
125
João Henrique Carneiro do PDT, no cargo desde 2005.
213
acorda cedo e labuta bastante porque é trabalhoso fazer a massa. Seus auxiliares nessa etapa
e na posterior são pessoas da família ou consideradas da família. Ainda seu trabalho
acontece num terceiro lugar, na feira onde faz a escolha dos ingredientes, geralmente a feira
de São Joaquim algumas também citam o Mercado das Sete Portas - que oferta produtos
alimentares de produção local. A compra é semanal, como explica Rosângela Araújo, pois
são adquiridas “coisas que não pode comprar e deixar estocado dentro de casa, tem que
trabalhar logo, fica o azeite, o resto nada fica”. São esses ingredientes e o saber das
vendedoras que determinam a qualidade de seu bolinho.
Mas é no ponto que a baiana mostra seu produto, em que seus trajes e modo de se
comportar fazem sobremaneira parte desse produto. Ali ela reúne os atuais aparatos que um
tabuleiro precisa comportar, não sem reclamar das exigências da prefeitura, pois esses
aparatos, que perfazem a parte material de seu tabuleiro, são os bens mais caros a serem
adquiridos por baianas com poucos recursos.
Todo conjunto do tabuleiro, também conhecido como barraca, pode variar, mas não
muito e sempre será composto ao menos por um tabuleiro propriamente dito, onde ficam
expostas travessas ou panelas de aço inox, na versão oficializada pela Associação das
baianas de acarajé e mingau – com os ingredientes que compõem o bolinho: vatapá,
camarão seco, molho, salada, às vezes, caruru. Também teremos colheres para servir, um
tacho onde o bolinho é frito, um fogareiro. O sombreiro que cobre o conjunto também é
obrigatório.
Recentemente, no final do ano de 2005, foi reforçada pela regulamentação da
Secretaria de Serviços Públicos a exigência de padronização dos pontos de venda e também
da indumentária tradicional, uma conquista da associação das baianas
126
. O tabuleiro deverá
comportar as dimensões 1,40 X 0,80 m o que significa um aumento de tamanho em
relação ao costume anterior - enquanto o sombreiro deverá ser de 2,5 X 2,5m, na cor
branca. Sabemos que a cor não foi uma escolha inusitada. Essa uniformização vinha
sendo implementada pela associação alguns anos e continua seu processo, agora com
mais força.
126
Lembrando que a regulamentação dessa profissão por decreto municipal já fazia a maior parte das
exigências desde 1998.
214
O tabuleiro consagrado pela Abam - uma referência à “taboleta”, espécie de vitrine
móvel tradicional que podia ser carregada na cabeça - é feito de fibra de vidro ou acrílico e
madeira e foi uma das primeiras providências na tentativa de padronização e melhoria do
trabalho com acarajé por parte da associação. Segundo o baiano evangélico Valdemir de
Souza Neves, um tabuleiro de aço é caro, custando duzentos reais, enquanto o de madeira e
vidro custava, no início da implementação, quinhentos reais, sendo mais caro ainda.
Esse material passou por inovações, digamos, tecnológicas e modificações ao longo
do tempo. A última novidade é a exigência de um material transparente, à prova dos raios
solares, para a exposição da comida. O sombreiro agora é de lona, pode expor publicidade
ou patrocínios ou pode tomar o formato de tenda com toldo para um ponto fixo bem
estabelecido. Nas festas de largo, é necessário todo um engenho com pedras e pesos para
mantê-lo em pé se, ao invés de uma tenda, a baiana dispõe desse guarda-sol móvel.
Mudaram materiais, mas um certo padrão tradicional foi conservado. A barraca
apenas mudou sua estrutura de madeira para metal. Podemos apreciar sombreiros
precursores, em tom escuro, na gravura da Recife do século XIX, Vista do Pátio da Penha
(Mercado de Verduras) de Luís Schlappriz (1863). O tabuleiro vitrine, observado em
gravuras antigas, foi consagrado pela associação. Alguidares e outros utensílios se
modernizaram, seguindo as mesmas funções.
O fogareiro, por sua vez, passou por modificações. Deixou de ser a carvão, costume
também antigo, para se tornar um fogãozinho a gás. Embora o outro tipo tenha sido
proibido, isso não é seguido tão rigorosamente e ainda existem os perigos das explosões de
bujão, que faz com que sejam distribuídos folders nas praças, alertando para a manutenção
desses aparelhos, principalmente para o perigo das trempes que se encaixam em botijões de
cinco a treze quilos – muito usados para cozinhar nas ruas.
Como as vendedoras se deslocam de casa para os pontos, deparam-se com questões
de transporte do produto e do material para a tenda provisória cotidiana. As exigências
desses materiais específicos dificultam bastante sua vida e autonomia. Então, procuram
criar novas soluções para manter o estilo tradicional. O material mais pesado pode ser
guardado no local com cadeados, enterrado na areia ou transportado, se a baiana tiver um
215
bom carro. Podem também usar, por vezes, táxi como transporte
127
. Uma opção corrente é
não atender todas exigências, quando seu talento e/ou o contexto do local, mesmo com
poucos recursos, tornam desnecessária certa parafernália. Uma boa parte das que não
possuem muitos recursos usa o ônibus como transporte, o que foi pejorativamente retratado
pela campanha eleitoral do atual prefeito, segundo os comentários que escutei a partir delas.
Nas duas faces da venda do acarajé, temos dois tipos de produção: a caseira e a que
se realiza na hora da compra. A produção da massa de feijão se define como geralmente
caseira e pode envolver apenas a mão-de-obra familiar, com o auxílio de alguns
eletrodomésticos, ou pode abranger até por volta de vinte funcionários – o que não deixa de
ser um contexto familiar somado ao “amadrinhamento” e à vizinhança e utilizar
processadores de alimentos de escala industrial, quando o negócio se torna uma pequena
empresa.
Processar os alimentos da venda do tabuleiro é, em primeiro lugar, transformar o
feijão em massa. Para isso, segundo a tradição, a primeira etapa seria quebrá-lo, mas este
também pode ser adquirido quebrado, opção menos artesanal motivada pelas próprias
proporções que o comércio de acarajé alcançou. Numa segunda etapa será preciso depurar o
feijão de sua casca, deixando-o de molho com antecedência, para depois lavá-lo. Quando
este tomar um aspecto alvo e livre de todas as cascas, será secado para depois ser moído
numa terceira etapa. É claro que a pedra de ralar não entra em cogitação, mas sim moinhos
adaptados a um motor ou industriais. Dessa maneira, se obtém uma massa leve à qual serão
acrescentados temperos. Segundo Rosângela Araújo, a segunda etapa toma bastante tempo:
“Passa um dia para lavar o feijão, para no outro dia cozinhar tudo para sair para trabalhar, o
trabalho é o triplo”.
Os principais temperos que se acrescentam na hora do preparo são cebola batida e
sal, lembrando-nos da heresia do alho ou do gengibre, como cheguei a ouvir de cozinheiras
e cozinheiros críticos e em favor da tradição. Então, é preciso bater e provar a massa. Nesse
momento, com o advento da fritura no bairro próximo de casa e, depois em lugares mais
distantes, para que se pudesse comer o quitute quente e, portanto, ainda crocante, aconteceu
uma divisão do processo de preparo.
127
As que começam a trabalhar por encomenda, ou para supermercados e estabelecimentos que não fritam o
quitute na hora, podem usar o táxi em alguns casos, como me foi contado.
216
A massa deve ser transportada para o ponto, hoje, podendo-se usufruir o recurso de
conservação refrigerada da massa. Dentro do universo de vendedoras e do candomblé com
que convivi, ouvi críticas de algumas baianas do acarajé a respeito do congelamento da
massa, porque o processo poderia azedá-la ou escurecê-la. Há, portanto, uma certa
premência de que a massa chegue logo ao ponto de venda. Ali seria preferencialmente
batida. E a fritura acontecerá diante do freguês, num tacho fundo com grande quantidade de
dendê fervente numa temperatura constante. que se tomar cuidado com colheres de
metal e com o uso delas em travessas de outros ingredientes, para não desandar a massa.
Essa seria a outra face, visível, da produção de acarajé.
Podemos perceber que o preparo tem suas próprias regras de pureza tradicionais.
Seriam estas, em síntese: deixar o feijão alvo; deixar o feijão secar; moê-lo no ponto certo
dado pela destreza humana, que opera com outros mecanismos; não acrescentar temperos
diferentes; não congelar; bater a massa com o-de-obra humana, de preferência feminina;
usar um óleo puro, sem acréscimo de outras substâncias oleosas para render; não misturar
colheres e utensílios. Quando a industrialização bate à porta, suas regras de uniformização,
que implicam valores de pureza eivados de uma concepção higiênica moderna, estão
claramente opostas às exigências de pureza tradicional. Toda interferência que procura
melhorar o desempenho dessa produção em termos de tempo e rendimento bruto da
matéria-prima, que é a massa, descaracteriza justamente o que a diferencia e que é a sua
marca atrativa.
Para aumentar a produção, o que é próprio dos processos de grande escala
industrial, muitos aspectos tradicionais são quebrados. Elimina-se a total ausência das
cascas, a pausa da secagem, a moagem artesanal que interfere na leveza do produto, se
mencionarmos apenas a etapa de produção da massa. De resto, contatos mínimos com
outras substâncias e com o metal, além da necessidade da mão humana, não são levados em
consideração por essa abordagem.
No entanto, esses procedimentos estão sendo implementados, como aliás ocorre em
todos os ramos da alimentação voltados para a comercialização. Quando a demanda é muito
grande
128
e a massa de feijão de alguma vendedora acaba, durante um evento próximo aos
128
O tabuleiro de uma baiana conhecida e divulgada ou uma loja de acarajé pode chegar a vender por volta de
1500 acarajés por dia.
217
locais mais freqüentados, como por exemplo, o Pelourinho, essa pode recorrer à massa
passada vendida pela associação, cuja sede fica no mesmo local. Esse tipo de episódio me
foi relatado por uma das baianas que vende num ponto do Pelourinho. Pode-se perceber
como é difícil manter um padrão artesanal e personalizado nas áreas propriamente turísticas
e visadas. A Febacab também havia tentado tomar iniciativas parecidas para facilitar o
acesso à massa, buscando fornecê-la para um número maior de vendedoras, utilizando o
congelamento, através do projeto Fábrica de Acara (Argollo 1996; Tânia Dias 1997) ou
Central de Produção do Acarajé de meados da década de 90. Um de seus argumentos era a
garantia de padrões de higiene para o produto.
Entre o consumo de uma multidão de turistas e o exigente paladar dos
soteropolitanos, gradações de uma produção em maior escala e outra que condiz com o
preparo tradicional e mais cuidadoso. Neste mercado, ainda sobra espaço para as
cozinheiras de poucos recursos, que aproveitam os respingos dessa “opulência” num
contexto da indústria do turismo. Assim, a uniformização da produção, quando a favor das
vendedoras ou das associações, não é um item tão preocupante em suas agendas. Ao
mesmo tempo, elas pressentem um certo incômodo quando esta funciona em função de uma
provável concorrência com sua própria categoria tradicional e majoritariamente feminina,
como é o caso das lojas ou lanchonetes de acarajé. Esses tipos de estabelecimento também
pressionam para que elas se uniformizem, afim de o saírem perdendo diante de novas
condições.
Aprendizado tradicional e a racionalidade dos cursos e treinamentos
A unidade básica da fritura de acarajé é composta por uma baiana e um ajudante,
mas a baiana pode dar conta sozinha do serviço de fazer e despachar”, ou seja, entregar o
acarajé ou outro produto, receber o pagamento e trocar o dinheiro se necessário.
Geralmente, as baianas formam pequenas organizações familiares de produção e venda de
acarajé. A liderança desse ofício é transmitida de e para filha ou sobrinha. Se um homem
se torna herdeiro desse tipo de empresa, e se for um líder familiar, pode optar por trabalhar
com a tia, irmã ou prima, enquanto prepara as filhas ou sobrinhas para assumir seu lugar. A
ausência de descendência feminina, ou algum corte nesse sentido, sempre é reparada
lateralmente. sempre uma mulher ao lado de um baiano do acarajé que também trabalha
218
com ele, incorporada na tradição familiar. A família que trabalha junto pode agregar
também afilhadas e afilhados.
O trabalho do tabuleiro é regido por um regime tradicional familiar em sua
organização, produção, venda e remuneração. De modo semelhante ao esquema da
sacerdotisa e, ao mesmo tempo, ganhadeira emancipada que usufruía o serviço de seus
filhos cerimoniais e carnais, há uma líder do tabuleiro, uma fundadora que começou
trabalhando sozinha. Os filhos ou pessoas que se colocam sob sua proteção aprendem o
ofício observando e auxiliando nas tarefas menos especializadas, como no candomblé
129
.
A introdução ao universo do acarajé, quando o diretamente relacionada com o
candomblé, sempre se caracterizou pelo costume de levar as crianças ao ponto desde
pequenas, até mesmo recém-nascidas, uma vantagem que diminuía os encargos domésticos
na criação dos filhos e, com o tempo, formava mão-de-obra competente. A partir da
disciplinarização do século XX, da exigência de escolaridade e das proibições do trabalho
infantil, as coisas mudaram um pouco de figura. Hoje, os filhos estudam – nem sempre com
efetividade, mas muito mais e ajudam no tabuleiro. alguns membros dessas famílias
que possuem terceiro grau, e jovens que ficam entre o tabuleiro e a escolha de outras
profissões na época do vestibular, como Jeane do Nascimento Bastos, do tabuleiro do
baiano Gregório, ao lado do Shopping Barra.
Os auxiliares agregados à família também entram na categoria dos filhos e dos
moleques, podem morar com as vendedoras e não são necessariamente remunerados
formalmente. Seu auxílio pode ser encarado, inicialmente, como uma contra-doação
equivalente à dádiva do aprendizado. Aos poucos, vão ganhando confiança, até terem
aprendido o ofício e terem adquirido destreza, podendo, conforme seu talento e disposição,
colocar seu próprio tabuleiro.
Até chegar ao tabuleiro próprio, as pessoas seguem uma espécie de percurso em
formas de pagamento tradicionais. Os que realizam tarefas auxiliares, filhos carnais ou não,
podem receber conforme a féria do dia. Aqueles mais próximos, esforçados e mais
considerados pela detentora do tabuleiro, ou suas prováveis sucessoras, podem passar a um
esquema percentual, ao venderem para o detentor principal do tabuleiro, em uma espécie de
129
Encontrei vendedoras que aprenderam com a mãe, a tia, a avó, a irmã, a vizinha, a vendedora do bairro,
outras “tomaram curso”.
219
substituição, recebendo um “agrado”, como explica a vendedora Maria Luísa de Jesus
Sales, num ponto próximo ao elevador Lacerda: “O que ela vender é da pessoa. Quando
volta, acerta com a pessoa o quanto dá. Se o lucro for cem, divide cinqüenta com cinqüenta.
Se for duzentos, cinqüenta a ela e fica com cento e cinqüenta. É normal entre família”.
No entanto, como afirma Emília Santos Barros, da praia do Flamengo, “Tem dia que não
tira a metade do dinheiro que gastou no lucro”. Por fim, geralmente sucessores, mas
também outros parentes, conforme a história de vida familiar, chegam a ter o tabuleiro
cedido pela detentora para retirar sua própria receita durante alguns dias da semana
combinados previamente.
Nos pontos, pessoas amadrinhadas ou parentes que se tornaram independentes e
formaram seu próprio tabuleiro podem trabalhar próximos ao tabuleiro matriz. A
regulamentação que exige uma certa distância entre dois ou mais pontos deixa de levar em
consideração este aspecto tradicional - o que é próprio das regulamentações. Dessa
proximidade deriva o costume de se vender em redes familiares durante as festas de largo.
Quando os membros se tornam independentes, tamm pode ocorrer um sistema
tradicional de franquias. Isso acontece com as baianas do acarabem sucedidas ou de
tradições muito antigas. O ponto de um grupo familiar termina se distribuindo em mais de
um bairro, numa expansão do tabuleiro. Com a era dos pontos turísticos e dos shoppings
esse tipo de franquia se tornou mais forte, mas podemos perceber como era tradicional se
manter pontos em locais diferentes, ao encargo de pessoas de confiança, como o fazia a
sacerdotisa Mãe Senhora.
Na década de 90, o moderno franchising se tornou uma opção interessante para
expandir o negócio, sem descaracterizá-lo completamente (Dias 1997). Porém, alguns anos
depois, pude constatar, durante a minha pesquisa, que esse recurso não demonstrou ser
muito satisfatório. Cláudia, do acarajé de Dinha, conta que este chegou a ter nove pontos,
“Ia um para cada ponto, mas acarajé é muito de mão. O cliente reclamava. Uma pessoa é
melhor, centraliza tudo, fica melhor controlar”. Essa constatação relembra que uniformizar
a atividade tradicional através de uma marca tem seus percalços, devido à procura de uma
mão particular que se perpetue passando através da família, por uma sucessora talentosa
treinada na tradição para representar quem lhe antecede, como se entrasse em jogo uma
espécie de consangüinidade construída sobre a transmissão da “boa mão” para o acarajé.
220
Os diversos pontos independentes que derivam de um ponto principal costumam se
aglomerar espacialmente. Encontrei grupos familiares trabalhando lado a lado nas festas de
largo. Os tabuleiros de um grupo formavam conjuntos enfileirados. Por exemplo, a família
de Isaura Araújo Silva, que vendia durante a festividade do Bonfim. Sua tradição começou
em Cachoeira de São Félix. Seu avô trabalhava na roça e vendia acarajé com sua avó “na
ponte de Cachoeira”. Tiveram dezoito filhos. Uma de suas filhas, que veio a ser sua mãe,
deu origem ao ramo de sua família. Num grupo de sete irmãs envolvidas com acarajé, ela
perpetuou a atividade e teve mais cinco filhos, quatro mulheres e um menino. Suas quatro
filhas continuam a tradição. A seu lado, em tabuleiros separados, estavam as filhas Gilnate
e Rosângela. A filha de Gilnate está aprendendo. Essa família também vendia durante a
festa do Rio Vermelho.
Nessa outra festividade encontrei a família de Andrelina Oliveira Santos. De um
grupo de irmãs, suas descendentes, as mais velhas, Jorgina e Jacira (ausentes neste dia),
aprenderam observando a vizinha, dona Astrogilda, e ensinaram suas irmãs Andrelina,
Marina, Jocilene, Marilena - sobrinhas e filhas. Havia um grupo enfileirado ao longo do
meio fio de tias, sobrinhas e primas. As mais novas e, ao mesmo tempo, filhas e sobrinhas
eram Marcela, Andréia e Suely. Esses grandes grupos trabalham em contato e formam
tradições bem consolidadas. Isso também acontece com as baianas do acarajé mais
conhecidas. Entre estas últimas é mais visível a expansão espacial do ponto fixo em outros
locais através da cidade
Quando esses grandes grupos femininos das festas de largo mencionam os homens
da família, que são os descendentes de uma mulher na tradição os maridos não são muito
cogitados - sempre é feita uma referência às suas filhas, se estão no ramo ou não. Fica claro
o padrão de matrilinhagem, quando as vendedoras se referem às primas, filhas dos irmãos
da mãe ou das tias. Não é pouco comum os homens trabalharem com o acarajé, mas
geralmente são citados como ajudantes.
No entanto, vendedoras e vendedores solitários, que quase sempre receberam
ensinamento também de uma tradição familiar ou observaram o membro de uma família do
acarajé. Ultimamente, o ensinamento pode vir a ser ministrado através de um curso do
Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). O Senac constitui uma instituição
voltada para a capacitação de profissionais no comércio e no setor de serviços, que iniciou
221
suas atividades em Salvador após a Segunda Guerra Mundial, momento crucial para
modificações marcantes nos costumes soteropolitanos.
O Senac procurou se consolidar nas três décadas seguintes para, em 1975, instalar-
se no Pelourinho, quando este ainda era um local pouco preservado e se encontrava em
estado precário, criando ali o Centro de Formação em Hotelaria e Turismo. Nas duas
décadas seguintes, o restaurante do Senac tomou fama e virou ponto turístico do
Pelourinho, onde a comida típica tinha, inicialmente, preço bastante acessível. Esse
investimento do Senac na cozinha típica, reforçado pelo processo de tombamento do
Pelourinho e pelo seu novo papel local turístico, culminou, no fim dos anos 90, com o
certificado de cozinheiro típico, único em território nacional. Na mesma década de 90,
formou-se um curso para ensinar como fazer acarajé. Encontrei alguns vendedores do
acarajé, mulheres ou homens, com curso no Senac.
Jarles Antônio Braga Garrido é um baiano do acarajé que vende próximo do ponto
de Irmão Valdemir, na ladeira do Pepino. Ele fez um ano de curso e se formou no Senac em
1984. Nessa época, o curso era remunerado, o que não ocorre mais. Trabalhou durante
dezesseis anos em restaurante e hotel. Sua família é do candomblé, mas não de uma
tradição de venda de acarajé. Para Jarles, a indumentária é de menor importância e o torço
tem função higiênica um ponto de vista comum entre vários vendedores, mulheres ou
homens, cristãos convertidos (evangélicos) ou não. Ele acredita que o acarajé irá se
descaracterizar e afirma: “Vai indo, vai indo, vai chegar uma época em que vai ter pessoa
de toda espécie vendendo acarajé”.
Os baianos de acarajé o têm uma relação tão forte com a indumentária quanto as
mulheres, o que acaba se refletindo na sua relação com todo tabuleiro, como se pode
perceber na fala de Jarles. Lançam mão de símbolos exógenos de maestria masculina na
cozinha, como vimos, e estão mais abertos às inovações. Enquanto Dinha renovava uma
franquia consagrada tradicionalmente, durante a década de 90, Gregório, filho de Maria
Francisca dos Santos, um dos baianos do acarajé mais conhecido em Salvador, perpetuador
de uma linhagem familiar de venda, lançava o acarajé a quilo e o disk acarajé. Os homens
parecem ter mais afinidade com a figura do cozinheiro profissionalizado nos moldes atuais,
fora do âmbito doméstico tradicional e com tendências ao empreendedorismo.
222
Damiana Martins Santos, além de trabalhar na festa do Bonfim, vende na porta de
casa no Alto do Cabrito e tem dez anos de profissão. Ela também fez um curso no Senac.
Damiana reconhece a fonte do discurso a favor da indumentária: “O pessoal acha que é um
preceito que tem que ter ao mencionar o preceito ela está falando dos valores
tradicionais do candomblé. No entanto, ela é católica e não se considera “de preceito, o
que não a impede de apreciar a roupa típica por deixar a baiana “mais composta. Podemos
perceber como os emblemas tradicionais vão perdendo a função identitária e vão assumindo
novos papéis, tais como higiênicos ou estritamente estéticos. Os cursos introduziram esses
novos tipos de valores com sua prática de ensino. São valores que vão se tornando
legitimadores, mesmo para as vendedoras que seguem à risca a tradição.
O próprio Senac se apropriou da culinária típica baiana e a inseriu num contexto
disciplinar. O saber popular ali se tornou uma especialização acessível mediante requisitos
e cumprimento de tarefas. Esse saber, em novo formato, tornou-se comercializável e passou
a interceptar os mecanismos de continuidade da atividade culinária tradicional. Esse saber
se agrega ao discurso do poder público, informando-o e, a partir dessa posição de poder,
ditando padrões estéticos e padrões higiênicos. As baianas do acarajé são obrigadas a se
comportar sempre em referência a esses padrões, preço para seu reconhecimento e
legitimação.
Esse saber especializado foi uma sofisticação de outras maneiras mais antigas de
controle da atividade autônoma das baianas do acarajé em logradouros públicos. No
entanto, embora as baianas de tabuleiro tenham conseguido, durante três séculos, perceber
as tentativas de controle da prefeitura em relação à sua atividade e tenham reagido a elas,
essa sofisticação do controle público da Salvador modernizada não aparece imediatamente
à sua consciência. A adequação aos padrões é, para elas, um valor positivo, pois estaria
relacionada à segurança alimentar do consumidor, ou seja, à demanda do freguês. Elas
terminam por incorporar um apelo geral, mas em nada popularmente genuíno, a respeito de
“segurança alimentar”.
Um episódio recente reforçou o poder de legitimação dos cursos e ampliou seu nível
de atuação. Em 2002, uma reportagem do programa televisivo Fantástico, veiculado na
Rede Globo aos domingos, divulgou uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia com
o quitute. Segundo essa pesquisa, 100% dos acarajés apresentavam contaminação pela
223
presença de coliformes fecais. Isso gerou uma diminuição no consumo soteropolitano do
acarajé, o que ficou comprovado por uma pesquisa posterior realizada pela Universidade de
Salvador (Unifacs), em conjunto com a associação das vendedoras do acarajé
130
.
O assunto, que teve divulgação nacional em um canal televisivo aberto, tomou uma
certa proporção e estava diretamente ligado a uma das principais fontes de renda do estado
baiano, o turismo. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) se viu compelida a
interferir, o que fez através do Programa de Alimento Seguro (PAS) em parceria com o
Sebrae (Serviço de apoio às micro e pequenas empresas), Sesi (Serviço social da indústria)
e Senai (Serviço nacional de aprendizagem industrial), além do próprio Senac, do Sesc
(Serviço social do Comércio) e do Instituto de Hospitalidade. A solução aplicada com o
fomento destes órgãos reuniu a racionalização do processamento tradicionalmente artesanal
com aspectos regionais e típicos do caso.
Surgiu, deste modo, o Programa Acarajé 10, no mesmo ano, com a pauta de
seminários, curso de manipulação de alimentos, visitas ao ambiente de produção do quitute,
geralmente doméstico, e ao ponto, exames dos alimentos e certificado, que veio a ser
conhecido pelo nome de selo de qualidade, como é chamado pelas vendedoras. Este
programa foi lançado ainda na gestão de Clarice dos Anjos para a associação das baianas,
tendo sido uma de suas fundadoras. Atualmente, a grande maioria das baianas com que
conversei conhecem o selo e reforçam o prestígio do certificado, como se este significasse
um diferencial, o que é, propriamente, seu objetivo principal.
O principal veículo do Acarajé 10 é o curso de capacitação. Uma apostila, adquirida
no Sebrae, de um curso de higiene na manipulação dos alimentos voltada para o público
alvo “baianas de acarajé”
131
uma amostra do conteúdo repassado às vendedoras que
desejam se qualificar nessa atividade típica. Basicamente, esta traz noções de higiene: quais
são as fontes de contaminação de alimentos animais, pessoas doentes, contaminação
cruzada, utensílios, acúmulo de resíduos, deterioração e como reconhecer o bom estado
dos alimentos (voltada para os ingredientes do acarajé). Também ensina como armazenar e
conservar alimentos, as temperaturas adequadas e as principais causas de intoxicação
alimentar ou “toxinfecções”.
130
Publicação do Sebrae Conexão Bahia, maio de 2002.
131
Padrão Consultoria e Treinamento em Higiene de Alimentos, Salvador (2001).
224
Algumas dessas medidas ensinadas ficaram mais memorizadas pelas baianas, que as
citam, como a colher de sopa de água sanitária (“quiboa”) que vai no preparo da água
clorada, com a finalidade de desinfetar os legumes da salada que passou a acompanhar
recentemente o acarajé, além da obrigatoriedade do congelamento da salada e de aferventar
o camarão. O uso de álcool também é lembrado, em relação à assepsia do tabuleiro. O
turbante é uma referência constante. Uma delas mencionou que as folhas tradicionais que se
colocam sobre o tabuleiro poderiam atrair mosquitos.
Certos procedimentos, aconselhados pela apostila no momento da produção
doméstica do bolinho, podem ser destacados, tais como tomar banho antes de começar o
trabalho; escovar os dentes; conservar as unhas curtas; evitar usar anéis e colares; prender o
cabelo e cobrir com lenço, touca ou boné, além da proibição do uso de perfume.
O momento da fritura no ponto também necessitaria de alguns procedimentos a
serem adotados para a excelência da segurança alimentar: roupas limpas; não usar
perfume; manter os cabelos cobertos (“usar sempre o turbante”); jamais usar anéis; jamais
usar esmalte; não fumar; não passar as mãos nos cabelos”; não mascar chiclete ou palito
de fósforo; evitar pegar em dinheiro; não falar” durante a fritura do acarajé. É também
solicitado à baiana que lave as mãos constantemente, procedimento dificultado pelo fato de
a atividade ser feita em pontos na rua, sem acesso à água encanada, o que é resolvido pelo
expediente de grandes garrafões ou tambores de metal, ou ainda recipientes menores
contendo água.
Essas regras destacam um elemento pico, além dos ingredientes, que é o turbante,
dando a ele um sentido utilitário, por supostamente evitar o passar das mãos no cabelo e o
cair dos cabelos. Também reforçam o sentido de transmissão, ou contaminação cruzada”
“bactérias de uma área contaminada transportadas para outra área limpa como algo
essencialmente negativo. A transmissão como algo negativo a ser evitado constitui o
contrário das noções tradicionais de transmissão dos atributos divinos através dos alimentos
e das mãos da iniciada que os prepara, carregando em seu corpo a divindade, com a
promessa de contato e purificação do corpo de outrem. O inevitável suor, uma benção na
visão tradicional, é execrado por este tipo de sistema higiênico extremamente idealizado,
visto que a atividade ocorre longe de água corrente, nas ruas, em clima quente junto ao
calor do fogareiro. Mais contrastante ainda, até mesmo com os próprios recursos
225
tradicionais apropriados pelo marketing do turismo, é a proibição da fala, quando há
unanimidade em se reconhecer que a imagem da baiana boa de prosa um aspecto que
creio ser bastante autêntico - é um forte atrativo turístico. O receio dos fluidos corporais
fica patente, assim como a impossibilidade de total controle laboratorial de um ambiente
público que tem uma natureza consideravelmente diferente dos estabelecimentos para
refeição, como os restaurantes.
Obviamente, as baianas vendedoras não se relacionam com a sujeira de modo tão
diferente quanto o restante da população de nossas diversas regiões nacionais. É impossível
manter o nível de assepsia aspirado por esses manuais, tanto fritando nas ruas quanto
produzindo em escala industrial qualquer alimento. Uma variação constante do ambiente ou
uma grande quantidade de matéria a processar são praticamente aspectos incontroláveis. O
problelma reside em se considerar e se divulgar apenas a atividade doméstica ou artesanal
como locus de sujeira e um campo a ser disciplinado.
O incômodo dos consumidores com a contaminação biológica é algo pontual,
motivado pela mídia, e seletivo, pois não vi surgir nenhuma perturbação quanto ao fato de
se ingerir, ainda que minimamente, água sanitária, componente que, embora oficialmente
declarado inofensivo, provavelmente altera o sabor, se rezarmos pela cartilha dos experts
em gastronomia e pela do gosto popular tradicional
132
. Assim, a ênfase recai sobre a
contaminação biológica e indícios de poluição química são ignorados, como aditivos
químicos agrícolas utilizados no cultivo do feijão. O consumidor não elabora muitas idéias
a respeito do que está comendo, mas possui noções tradicionais de limpeza mescladas com
noções mais recentes de assepsia. Acarajé gostoso, num tabuleiro bem cuidado, e baiana de
roupas asseadas seriam indícios de limpeza para o freguês. E a limpeza, apesar dos fortes
elementos de discriminação racial que acompanham a história de Salvador, não deixa de ser
um dos aspectos atribuídos às tradições africanas e nagôs - mesmo que a detração
interessada dos ambulantes por parte da sociedade dominante e seu reforço no início do
século XX tenham tido um forte efeito no imaginário social a partir de sua associação
equivocada entre africanidade e insalubridade.
Assim, podemos observar Antônio Vianna (1979: 39-42), em sua crônica Quintal de
Nagô, fazendo a defesa dos africanos desse período, que eram pobres e sem condições de
132
A salada não é um produto tradicional de longa data no tabuleiro e ainda comporta esse tipo de problema.
226
habitação, porém se mantinham limpos e acumulavam objetos em suas casas numa espécie
de atividade precedente, em alguns aspectos, das reciclagens da modernidade. Vianna
apresenta uma visão alternativa ainda no auge da ideologia sanitarista: “A Higiene andava
farejando focos de imundícies e, quando examinava o local, verificava que tudo estava
limpinho, sem mosquitos e sem as inconveniências de muita casa boa, de gente emproada
que detratava do ‘Quintal de Nagô’ ”.
As baianas do acarajé o estão mais profundamente enraizadas numa casa como a
descrita nesta crônica, com vários moradores, onde se criavam alguns animais para o abate,
plantas, onde se encontravam potes de barro para bebidas, tinas para lavar roupas e
produtos de limpeza tradicionais, inimagináveis na era química da modernidade, como a
cinza e a areia. Mesmo com o aval da memória de certo asseio próprio das fundadoras do
ofício, a casa das baianas vendedoras, hoje, precisa se confrontar com a fiscalização e,
muitas vezes, com reformas, se elas desejam alcançar um certificado de qualidade, uma das
exigências para “colocar o nome em pontos novos.
Um dos itens obrigatórios para o certificado são as visitas às instalações domésticas,
feitas por baianas associadas a Abam. Conforme me foram descritas, estas comportam a
observação da cozinha, se esta possui azulejos brancos, local adequado para guardar
panelas, para congelar a salada, utensílios e equipamentos em bom estado, incluindo o
balde que lava o feijão e os aparelhos, como o moinho. As visitantes ainda observam se a
baiana possui avental. Uma das fiscalizadoras observa tudo e escreve. São duas visitas, a
primeira é avisada e a segunda é feita de surpresa. Duas visitas também são feitas ao ponto.
Segundo minha informante, que prefiro não identificar por causa do assunto em
questão, todas as cadastradas no Pelourinho tiveram de fazer o curso e passar nesses
exames. As que passaram ganharam reformas, se necessário, um tabuleiro padrão,
sombrinha e panelas, além de fogareiro e cascadeira para o preparo das cocadas. O
Pelourinho é uma espécie de cartão postal turístico da cidade, além de a sede da associação
se localizar ali, juntamente com o Memorial da Baiana, no Belvedere da Praça da Sé, em
frente à Cruz Caída. Algumas baianas se ressentem do grupo que se formou em volta da
associação, como se o Pelourinho tivesse se tornado um domínio desse grupo, e reclamam
que não recebem benefício algum, como receberam as vendedoras que trabalham neste
local – como sabemos, depois de adquirir o certificado. Como nem todas baianas passam no
227
curso, surgem querelas, enquanto as dirigentes da associação ficam zangadas e contra-
argumentam que “alimento é coisa séria, que muitas vendedoras parecem não se
importar com todos esses aparatos e exames.
Num plano geral, o processo, para além das questões pessoais e das posições
estruturais, se caracteriza pela especialização, racionalização, seriação, e pela padronização
que visa a uma uniformidade mais controlável e higiênica. uma inevitável
descaracterização, principalmente dos valores de autonomia que as baianas prezam. Ainda
assim, as vendedoras continuam se posicionando como grupos, segundo seu próprio
modelo familiar, porém mais agregados pela localidade, justamente diante dessas questões
de padronização, seja em sua defesa, seja com protestos, ou seja com uma suposta
neutralidade estratégica, como se percebe na fala de quem trabalha para as baianas do
acarajé mais conhecidas. O selo de qualidade se tornou um valor disputado, pois significa
um certo investimento na atividade, ao qual nem todas têm acesso. Por sua vez, o
ressentimento demonstra como a maioria almeja alcançar essa posição de qualidade,
premiada com legitimação, investimento e proteção. O discurso dominante sugere que esses
ganhos deveriam se estender a todas vendedoras, deixando-se ficar no plano ideal, enquanto
no cotidiano da labuta isso não acontece e apenas algumas se tornam privilegiadas,
circunstancialmente ou através da atuação política nas relações pessoais como no sistema
de redes construído pelo candomblé. No entanto, quando são auferidas vantagens por parte
de algumas destas mulheres, grupos inteiros construídos como uma grande família
hierarquizada saem ganhando e não apenas alguns indivíduos com mentalidade empresarial
ou pequenos núcleos.
Apesar da manutenção de um estilo mais familiar e distributivo em face das
inevitáveis inovações, não é algo evidente, para esses grupos de vendedoras, que a
apropriação do acarajé por padronizações públicas - indissociáveis dos investimentos
aplicados no ofício - também pode, em certos aspectos, representar um risco. Assim, o
descontentamento proibido pela legitimação aceita, unanimemente, de valores que se
impõem como universais encontra, então, outra válvula de escape, mais apreensível e
anterior.
O discurso contra a uniformização se volta para o plano religioso, contra as
evangélicas que “desfazem do acarajé, que se recusam a aceitar sua história e a tradição,
228
que o colocam como qualquer outro fruto da terra do qual o ser humano pode dispor pela
autoridade outorgada por um deus patriarcal que afasta qualquer atributo divino dos
alimentos in natura ou preparados. Parece claro que o discurso das evangélicas ameaça
fazer o acaraperder o sentido que lhe dá seu contexto secular, sendo um dos aspectos
desse contexto a autonomia da vendedora, a subsistência sem subordinação.
O registro do acarajé como bem imaterial tombado e a exigência de uma
indumentária tradicional através da prefeitura formaram ações estratégicas, que se
aproximam de uma institucionalização, com seus riscos de uniformização e de controle,
com o objetivo de refrear uma homogeneização mais imediata e concorrente, as
descaracterizações propositais das baianas evangélicas, tais como o uso do guarda-pó. No
entanto, a institucionalização vem acarretando, de maneira diferenciada, um outro tipo de
descaracterização.
Os poderes públicos apoiaram a causa das baianas do acarajé, porém a finalidade de
sua atuação sempre esteve voltada para a rentabilidade da indústria turística, na qual a
imagem da baiana típica cumpre um importante papel. Provavelmente, se as vendedoras
não tivessem se construído como sujeitos de um ofício tão resistente e com uma identidade
tão impactante, a ponto de se tornar desejável sua apropriação mercadológica, os guarda-
pós não teriam sido rechaçados com o apoio da prefeitura e de órgãos estatais.
Descaracterizações e argumentos religiosos
Como vimos, as discussões se concentram no plano religioso. Os homens que
passaram a vender acarajé criaram alguma polêmica, e a Febacab tomou uma posição
conservadora, por sua ligação com o candomblé. A Abam encarou a questão de forma mais
aberta, e alguns homens se declaram inscritos nessa associação como baianos do acarajé.
As próprias baianas que vendem o quitute costumam amenizar a entrada masculina,
justificando a necessidade dos homens em arrumar um emprego para cuidar da família.
Podemos afirmar que o baiano agora é bastante aceito, se este mantém a tradição, inclusive
o baiano do acarajé assumidamente homossexual.
229
Edivaldo F. dos Santos, que vende no Engenho Velho de Brotas e na festa do
Bonfim, declara que, em catorze anos de venda, se sentiu menos discriminado agora do que
uns seis anos atrás. Ele se posiciona contra a venda pelos evangélicos, posicionamento
geral desse grupo. Os baianos gays do acarajé também costumam se agrupar em pontos
próximos
133
, mantendo o padrão tradicional, assim como é recorrente terem aprendido
observando mulheres ou madrinhas. Alguns rapazes insistem em ser auxiliares de baianas,
o que elas terminam permitindo, como pude observar na festa do Rio Vermelho. As
vendedoras também possuem uma opinião bastante favorável a respeito deles, e afirmam
que “trabalham direitinho, ou que são mais dedicados que algumas mulheres. A dedicação
sugere um tom de busca da legitimação, o que é encarado com simpatia, porque não se
embate frontalmente com a tradição. Sabemos que existe, nesse caso, um modelo
tradicional de incorporação dos homens, oriundo do candomblé, o que facilita bastante essa
inserção.
A polêmica dos vendedores evangélicos mobilizou muito mais, e ainda mobiliza, as
baianas do acarajé - a partir de então, em consenso com os baianos do acarajé que
partilhavam do mesmo ponto de vista - porque representava uma tentativa de desfiliação
radical das raízes afro-brasileiras. Porém, os evangélicos continuaram vendendo, pois
acreditam que precisa haver uma opção para os fiéis que são consumidores da comida
típica. Comer o quitute na rua seria perigoso, porque a baiana pode ter feito oferenda dos
primeiros acarajés, tornando seu produto como que enfeitiçado. Claro que outros fatores na
insistência evangélica em vender o acarajé estão em jogo, como a sobrevivência e a
provocação, visto que este tipo de crença costuma se auto-afirmar a partir de uma imagem
negativa do candomblé.
À primeira vista, o que se destaca com relação aos evangélicos, ou cristãos, que
vendem acarajé, é uma tendência à inversão do papel masculino. Pelo menos dois baianos
evangélicos me confirmaram que ensinaram suas mulheres a fazer o quitute e que fizeram o
ponto onde elas agora trabalham. Fora isso, as baianas que vendem próximas aos templos
133
Locais de pontos que me foram citados: Ribeira (depois do fim de linha), Ladeira de Amaralina, Ladeira da
Pituba (“mais para cima do Quiosque). Pessoalmente, não cheguei a vê-los reunidos o numerosos como
nos grupos familiares, mas as vendedoras sempre os descrevem como grupos de rapazes seguindo o modelo
tradicional.
230
são geralmente coordenadas pelos pastores locais e são estes que determinam se devem
usar a indumentária para não causar problemas com a prefeitura e como devem proceder.
Em relação ao registro, os evangélicos também tiram carteira. As mulheres que
trabalham com eles são uma espécie de álibi perante a tradição. Uma baiana evangélica no
Comércio, que participa da Assembléia de Deus, me apresentou sua carteira da Federação,
em que posa de turbante branco na foto três por quatro, chamando a atenção para o registro
no documento como vendedora e não como baiana do acarajé – como se este termo tivesse
relação com as praticantes do candomblé. Ela reside próxima do local em que vende, onde
quem faz a massa é o marido, do qual se encontra “separada. Este aprendeu o ofício com
uma baiana, quando se encontrava “desviadoda fé, situação que ainda perdura e parece
gerar certo conflito familiar. A atividade mantém a convivência entre o casal. Para o
registro, foi necessária a imagem feminina dessa mulher, assim como sua presença no
trabalho tem um papel importante, mesmo no caso de ser um acarajé “evangélico”.
O Irmão Valdemir - Valdemir de Souza Neves, de uma comunidade evangélica
cristã no Caminho de Areia - afirma ter seu registro na Abam, pois a Federação não permite
que ele se registre, segundo me relatou. Sua mulher também aprendeu com ele e trabalha
em outro ponto, que ele mesmo fez, no Caminho de Areia. Explica que os fregueses
preferem seu acarajé ao dela com a ressalva de que isso seria coisa da cabeça do cliente,
porque a massa seria a mesma e o tempero também, apesar de ele ter mais experiência em
deixar o quitute crocante e macio. A crença na “mão boa” se encontra atuante aqui, embora
Valdemir tente negá-la a princípio. Nesse caso, o feminino tem seu papel diminuído ao
nível de auxiliar, numa diminuição legitimada por um valor tradicional, a ausência de uma
“boa mão” para fritar essa iguaria. Este vendedor trabalha perto de um templo, como é
costume entre os baianos evangélicos. Ele afirma ter aprendido de uma receita passada por
uma baiana, porém sozinho, ele “e Deus”.
Apesar do ponto de partida para o acarajé de um evangélico estar sempre envolvido
com uma tradicional baiana do acarajé, a transmissão e a organização familiar do ofício não
seriam tão explícitas nesse caso, embora aconteçam. A baiana do Comércio, por exemplo,
tinha o auxílio de sua filha, enquanto Valdemir trabalhava sozinho. A necessidade das
facilidades que o grupo familiar proporciona em termos de flexibilidade com relação à
remuneração e ao desempenho do serviço termina definindo um padrão familiar como o
231
tradicional, porém sem a visão de uma continuidade do ofício, pois estes vendedores
buscam encará-lo como outra profissão qualquer, para ganhar a vida.
De um modo geral, a indumentária é um problema delicado. Vi muitas evangélicas
sem a roupa típica, assim como vi vendedoras sem esse tipo de afiliação com roupa
comum
134
, embora muitas vezes com algum detalhe típico. No caso específico dos baianos
evangélicos, a roupa masculina parece facilitar a variação e a burla do típico. Valdemir
afirma que usou muito “a bata e o gorro, mas “enjoou e preferiu colocar a camisa com
sua marca (Acarajé do Irmão Valdemir), de vez em quando ainda usando o traje típico. É
perceptível como este escolheu a roupa usada pelos componentes dos grandes tabuleiros
tradicionais camiseta com a marca na tentativa de não destoar completamente,
justificando assim seu uso.
No caso das mulheres, baianas do acarajé evangélicas, observei a roupa preta, com
lenço preto na cabeça, uma cor proibitiva para a tradição do candomblé, usada com o
objetivo de se diferenciar. Geralmente usam roupas comuns - e não o guarda-pó completo -
em ambientes populares, como pontos de ônibus ou na proximidade de bancas de jornal e
templos. Lenços e redes de tecido sintético ocorrem muito. Podemos nos deparar também,
por causa das exigências, com evangélicas de indumentária, mas com displicências
estéticas que sinalizam sua crença.
Não é impossível encontrá-las vestidas bem tipicamente. Na terça-feira, na benção
de Santo Antônio, dia da semana em que se programam eventos no Pelourinho, além da
tradicional missa na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, encontrei,
lado a lado, uma baiana do acarajé, Cristina, que se declarou “católica para evangélica;
outra de candomblé, Dona Ivete, com galhos de arruda no torço; Jucilene e Cristiane, que se
diziam não pertencentes a nenhuma religião; Dona Nilda, católica que freqüenta o
candomblé e Bela, testemunha de Jeová convertida, já tendo participado do candomblé.
Todas estavam vestidas a rigor como baianas, pois este é um dos locais de Salvador em
evidência.
Como podemos perceber, não é incomum, em meio às vendedoras, uma certa
fluidez entre conversão e desvio da “cristã. Na festa do Rio Vermelho, uma das
134
As baianas trajadas costumam criticar as vendedoras de “shortinho na praia, ou as que usam bustiê e
cabelo solto, ou ainda bermuda camiseta e lenço.
232
baianas me declarou já ter sido evanlica quando congregavana Igreja Fonte de Água
Viva – cujo pastor não lhe proibia a indumentária típica - de onde se afastou, voltando a ser
católica. Naquele momento, ela estava “curtindo Iemanjá. Renilda Conceição Moreira
pertence ao tabuleiro fixo no Rio Vermelho de Regina dos Santos, que vende
tradicionalmente no bairro da Graça, mas se transferiu, no fim da década de 90, para um
local próximo ao ponto antigo e consagrado de Dinha no Rio Vermelho, o qual terminou
mantendo, apesar de ter gerado certa polêmica. Renilda trabalha num grupo familiar
predominantemente pertencente ao candomblé, enquanto sua mãe, que também trabalhou
com Regina por muitos anos, havia se tornado uma cristã batista por causa de seu pai,
que sua avó materna era também do candomblé. No mesmo local, Cláudia, filha de Dinha,
explica que sua bisavó, que fez o ponto mais de sessenta anos, era da Igreja batista,
enquanto enfatiza ser “católica praticante”, ao passo que sua mãe é uma católica que
freqüenta o candomblé.
Cláudia relata casos curiosos sobre os consumidores evangélicos que, por vezes,
comem de seu tabuleiro e afirma: “Aqui perto tem universal e batista e são meus clientes.
Não vêm com tanta freqüência, mas tem. O pessoal da Assembléia de Deus, fazendo
campo, entrega papelzinho, passa o oleozinho na gente e come. É normal”. Podemos
perceber, nessas histórias, a dinâmica das conversões e retornos ao afro-brasileiro, na vida
de um único indivíduo ou entre as gerações, provocadas por um proselitismo da parte dos
evangélicos, abertos ao acarajé até um certo ponto, para angariar mais fiéis. O catolicismo
se delineia aqui como um campo de neutralidade ou uma transição entre as outras duas
crenças, consideradas como extremos.
Porém, nem sempre os evangélicos fazem concessões. Os consumidores evangélicos
utilizam certos expedientes para comerem um acarajé que acreditam não estar vinculado às
práticas dos cultos apesar de sua vinculação histórica ao candomblé praticamente
indelével. Não são necessárias inscrições cristãs sobre o tabuleiro, de natureza mais
provocativa, como uma excepcional bíblia, que foram terminantemente proibidas. Ou
evitam comer na rua e compram de vendedoras de sua comunidade religiosa ou
procuram “saber da baiana, como me informou um rapaz de uma família pertencente à
Igreja Universal do Reino de Deus há mais de quinze anos. A baiana não precisa ser
233
“crente, mas também não pode “curtir candomblé. Na dúvida, deve-se orar antes de
comer, “para não acontecer nada”.
Às vezes, esses consumidores são mais incisivos e passam pelo tabuleiro
pronunciando esconjuros, como me foi relatado por Tânia do Farol da Barra: “Ele olha meu
tabuleiro todo, passa para lá. volta, olha para mim, me maquiada, me vê de turbante,
de colares e faz Tá amarrado Satanás”. Tânia ainda explica que já viveu situações em que
crianças pedem para comer acarajé e recebem uma negativa com a explicação de que
aquele ponto seria do “diabo”. Tânia, como vimos, sequer faz uso das oferendas afro-
brasileiras do tabuleiro, por respeito ao rigor do candomblé.
Parece que o problema pontual reside nessa prática, que já analisamos, a respeito
dos primeiros bolinhos oferecidos à rua. Irmão Valdemir é enfático: “O deus que eu sirvo
não preciso alimentar com bolinho na encruzilhada, o deus que eu sirvo é vivo e até o delas
mesmo, porque espírito não come”. E complementa, posteriormente: “Para fazer o que é
melhor, eu não preciso estar fazendo sete bolinhos e jogar na encruzilhada. É só fazer com
amor”. O simples fato da oferenda, mesmo sem uma iniciação formal da baiana vendedora,
poderia, então, segundo a crença evangélica, contaminar o bolinho com ofensas ao deus
único que cultuam. Em decorrência do problema pontual com a oferenda, os evangélicos
parecem ainda desconfiar do oferecimento de quaisquer alimentos aos fregueses, em atos
generosos que saiam fora da lógica comercial.
A tentativa de desvincular o acarajé de seu papel de oferenda termina acarretando
uma espécie de desenraizamento prejudicial à manutenção desse ofício. Irmão Valdemir,
um “pregador”, tem um modo elaborado de “desfazer do bolinho”. Segundo ele, quem faz o
acarajé é o homem e, portanto,“Deus cria, ele existência ao que não há, como é que eu
não posso comercializar o que vem dele se eu sou co-herdeiro? Os intrusos são os outros.
Esse deus não é o meu que eu sirvo?”.
Essa visão que coloca os sujeitos históricos que construíram o ofício do tabuleiro e
o gosto pelo acarajé como intrusos se caracteriza por uma absolutização totalmente
uniformizadora e apropriadora. Deste modo, os critérios de valor do quitute são, para o
irmão Valdemir, a qualidade do produto, a higiene e as inovações técnicas – relacionados às
suas idéias de “procurar fazer o melhor”. Seus critérios demonstram que procura se afastar
da tradição e da singularidade, para se afastar das práticas de oferendas. Não parece
234
apreciar o tabuleiro oficial inspirado na “taboletachegando a usar, em substituição à
peça, uma mesa de comida a quilo que foi obrigado a retirar. O tacho que utiliza para fazer
o acarajé é um enorme recipiente próprio para se fritar pastel. Ele se orgulha de ser o único
“ambulante” a possuir um ponto de luz da Coelba, Companhia de Eletricidade do Estado da
Bahia, enquanto outros ainda usam “fifó” – um pequeno lampião.
No caso da qualidade do produto, ele não consegue, porém, se desvincular tão bem
do tradicional. Suas críticas às premiações de acarajés pouco saborosos ou às adulterações
do abará feito com farinha de milho, que “engana” o consumidor, e ainda sua defesa do
registro do acara não diferem das opiniões de grande parte de baianas do acara
pertencentes aos cultos afro-brasileiros. Isso demonstra como é impossível utilizar qualquer
critério valorativo do acarajé em si sem uma referência ao seu histórico de oferenda afro-
brasileira. Pois determinados modos consagrados de preparo do acarajé não são uma
simples tradição culinária, mas são também uma tradição religiosa, ainda praticada no
presente.
Em um exercício de previsão, utilizando a comparação que me foi sugerida por
Vivaldo da Costa Lima, se o acarajé vier a se transformar num alimento como a pizza, cuja
base invariante recebe toda sorte de complemento, a sua diferença ainda residino seu
papel de oferenda, mesmo que este papel tenha se tornado simples memória. Todavia, não
será a memória de uma comida regional apreciada, que termina sendo oferecida a
divindades comunitárias de uma mesma região para agradá-las, mas a de um alimento que
foi construído como oferenda desde o princípio, num determinado contexto.
Irmão Valdemir ainda usa um segundo argumento, menos convencional, para
“desfazer do bolinho”, ou melhor, para declarar que o início de sua desvinculação do papel
desempenhado nos cultos não é culpa dos evangélicos. Ele explica, com a finalidade de
criticar as baianas do acarajé mais conhecidas:
“Antigamente, o pessoal do candomblé comercializava o acarajé para
sustentar a quartinha do santo. Não colocar na quartinha do santo e ir usar era
pecado na sua religião. Quando colocam dinheiro na sua própria conta, elas
passaram por cima de sua própria doutrina. Não era para se manter, era para manter
o quarto do santo. E hoje, elas são grandes empresárias vendendo acarajé. Se tem
alguém violando, quem está violando são elas. Segundo elas, o acarajé que é
oferecido a Iansã é o acará e elas não fazem o acará, fazem acarajé comum”.
235
Esse argumento logo cai em contradição quando, em retrospectiva, percebemos que
o problema gira exatamente em torno das oferendas - chamadas acarás - que as baianas do
acarajé, iniciadas ou não, ainda fazem, nas ruas, ou que ainda vendem em determinadas
épocas, para pessoas de um culto popular menos restrito que os candomblés tradicionais.
Tal costume arraigado demonstra como o acarajé não se desvinculou de seu aspecto votivo
em âmbito popular, embora tenha deixado de contribuir para sustentar as comunidades de
candomblé. Se a renda não retorna tão maciçamente às casas onde são cultuadas as
divindades afro-brasileiras, a oferenda continua acontecendo e se destinando a esses orixás
sem intermediação, através desse culto popular. A contribuição do acarajé para o
candomblé tornou-se muito mais uma questão de valor do que monetária, na manutenção
das roupas e práticas nas ruas. E, como sabemos, as próprias baianas do acarajé, mesmo
não adeptas dos cultos, fazem o acará, além da refeição votiva do caruru, não apenas para
comercialização como oferenda, mas também em proveito próprio, oferecendo seus
acarajés e carurus no cotidiano e em datas específicas. Irmão Valdemir critica uma suposta
“violação” a qual ele próprio apóia, visto que, em sua crença, o “espírito não come”,
portanto as oferendas seriam absurdas.
Em relação ao costume relembrado pelo pregador, fazer acarajé por “obrigação”,
após a iniciação, não é mais tão comum assim. Geralmente as noviças trabalham em
outras profissões e ficam menos tempo no espaço do terreiro, embora ainda usem parte de
sua remuneração na contribuição com o terreiro. A praxe de serviço, digamos, braçal e
mercantil, que era tradicionalmente devido ao coletivo da comunidade religiosa, tomou
outras formas, embora algumas mais velhas, feitas de Oiá, ainda possam se lembrar de ter
vendido durante uma festa de largo, em homenagem à deusa tutora, como uma “obrigação”.
A reação aos argumentos que “desfazem” do acarajé nem sempre se caracteriza por
um dar de ombros, embora este seja muito comum. Muitas baianas reclamam das
descaracterizações e arrogância, principalmente as que participam do candomblé, mas não
só estas. Uma delas, católica, contou-me sobre a discussão que teve em sala de aula,
durante um curso de atendimento ao turista, com uma vendedora evangélica, fazendo com
que esta chorasse.
Durante as aulas, havia sido enfatizado o papel da indumentária na identificação da
baiana do acarajé pelo turista. A aluna evangélica declarou que não vestia o traje, mas um
236
guarda-pó e um boné, ao que nossa narradora prontamente respondeu: “Então você é
vendedora de cachorro quente, de lanche, porque quem põe guarda-pó e põe boné é
vendedor de lanche”. A evangélica procurou argumentar que possuía um tabuleiro ao que
respondeu a outra, segundo seu relato: “Se você senta em um tabuleiro, você tem que vestir
um traje de baiana”. E a baiana do acarajé continuou contando, com mais ênfase:
“Aí, ela começou a desfazer, eu peguei e disse a ela: – Por que vocês
reclamam? E por que você vende o acarajé que é o bolinho dos deuses? O acarajé é
comida de Iansã, o abará é comida de Ogum e Xangô. E por que você vende? Não
deveria vender - ela não gostou e ficou chorando. É porque ela precisa, mas está
dividida. Eu disse assim: - Foi à toa que você foi vender o acarajé? Você aprendeu a
fazer acarajé com quem, tomou curso no Senac?e ela disse assim: Não, meu pai
era pai-de-santo, tinha casa aberta. Eu me entreguei a Jesus há dois anos e meio -
mas antes, o pai dela era pai-de-santo e ela chegou a ser feita de santo. O pai dela
faleceu. Eu disse: - vendo aí, minha filha, votem o pé na senzala e por que
está desfazendo do acarajé? Não desfaça, você tem raízes igual a nós”.
Podemos perceber, nessa discussão, que a principal argumentação das baianas do
acarajé tradicionais refere-se às raízes e ao candomblé como a origem dessa iguaria. Mais
uma vez, o ponto de partida para o negócio evangélico com o acarajé é sempre uma baiana
ou um nicho tradicional. Nesse caso foi um candomblé, que a convertida insistia em
desvirtuar através da descaracterização do acarajé. Percebemos, também, movimentos de
conversão geracionais nem sempre estáveis, pois a necessidade de sobreviver do acarajé
leva a um conflito religioso por parte dos tidos como cristãos, por mais que se queira
acreditar que este é um alimento como outro qualquer. Nesse caso, a baiana evangélica se
deparou com o questionamento de sua posição, que lhe provocou uma forte reação
emocional. A pressão geral por causa da inadequação profissional dessa mulher deve ter
aumentado muito, conforme as regulamentações do ofício dos últimos anos. Talvez sua
conversão não tenha resistido, ou talvez tenha se adaptado com mais flexibilidade à
indumentária, pelo menos.
Registro do acarajé: buscando a justiça e a concórdia
Regulamentação foi uma das conseqüências para essas rusgas cotidianas e para a
polêmica em torno do “acarajé de Jesus”. As baianas do acarajé, mobilizadas através dos
237
moldes formais típicos do século XX, puderam apelar para as políticas culturais de
preservação também características do período. A urbanização e as disciplinas desse século
também formaram alguns aparatos que as baianas terminaram por acessar a seu favor, no
complexo diálogo com o poder público. Um destes foi a política cultural de preservação.
A política de preservação de monumentos, de bens de natureza material, que depois
abrangeu os bens culturais intangíveis, tem uma recente história de atuação em nosso país,
a partir da última década de 30 (Kersten 2000: 61-107; Sant’Anna 2003). Esta década foi
marcada pela ideologia governamental trabalhista e pela emergência dos emblemas
nacionais. Os atuais órgãos envolvidos com a proteção do patrimônio tiveram sua matriz
surgida nesse contexto de identificação e valorização de bens e expressões culturais que
pudessem ser considerados como bens nacionais. As vendedoras típicas da década de 30,
ainda ambulantes, sofreram a perseguição da ideologia trabalhista. Ao mesmo tempo,
iniciava-se a exaltação de sua imagem em outro plano. Através dos emblemas nacionais,
elas obteriam uma espécie de compensação posterior, ao se tornarem uma representação
dos valores africanos do Brasil, como vimos.
Inicialmente voltada para monumentos e obras arquitetônicas, além dos museus e
suas coleções, a política patrimonial do país passou a englobar objetivos de preservação das
culturas populares, de seus saberes e fazeres. Em meados da década de 70, no mesmo
período do incentivo ao turismo aliado ao desenvolvimento, essa atenção especial para com
as culturas populares nacionais se principia, podendo começar a florescer com a abertura
política no país. A partir daí, as políticas patrimoniais vão se direcionando para a
intangibilidade dos bens e para a preservação dos processos e expressões culturais de
diversas comunidades.
Esse novo olhar voltado para as expressões populares se refletiu na história de
Salvador a partir da segunda metade da década de 80, quando ocorreu o processo de
tombamento do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, oficializado em 1986, com a
declaração do terreiro como patrimônio nacional, o que o fez escapar das ameaças da
especulação imobiliária. Ao mesmo tempo, o Centro Histórico de Salvador, a famosa área
do Pelourinho, também passava por um processo de aquisição de salvaguarda e de
encaminhamento para a restauração, o que ocorreu na década de 90. Logo em seguida,
vários terreiros tradicionais de Salvador foram protegidos pelo município e terminaram
238
sendo também tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), como o Opô Afonjá (1999), o Gantois (2002), o Bate-Folha (2003) e, mais
recentemente, o Alaketu (2005). A maioria desses terreiros faz parte do estilo cerimonial
que aqui caracterizamos como tipicamente nagô, com exceção do Bate Folha, de estilo
“congo-angola”. Esses tombamentos e a restauração do Pelourinho coincidem com o
investimento pesado no turismo e com a ascensão das baianas do acarajé a uma grande
visibilidade, como vimos.
Assim, ao serem protegidos pelo município após o tombamento da Casa Branca,
estes terreiros formaram um histórico de preservação material de seus conjuntos
arquitetônicos e de suas áreas verdes, que implicou na proteção de suas práticas,
precedendo, deste modo, o registro do acarajé como bem imaterial, com pelo menos dois
terreiros tendo adquirido a salvaguarda do IPHAN antes da virada do século. Mais uma
vez se confirma o vínculo entre essas comunidades e o tabuleiro do acarajé.
Quando, no ano de 2000, o registro de patrimônio imaterial foi instituído, a
atividade do tabuleiro se encontrava em meio à polêmica dos vendedores evangélicos,
apesar do decreto municipal de 1998. Em 2001, um episódio pitoresco, mas muito
marcante, visto que uma grande diversidade de baianas do acarajé o mencionou em nossas
conversas
135
, parece ter precipitado as baianas tradicionais e aqueles que as apoiavam para
uma atuação mais enérgica. A promoter Lícia bio, como me foi contado na própria
Abam, instituiu o prêmio Acara de Ouro para a melhor vendedora de Salvador, com
votação através da “internet”. Surpreendentemente, a vencedora foi a chamada Loura do
Acarajé (Deny Costa Ramos ou Edinalva do Horto), uma praticante do ofício de cabelos
tingidos, segundo algumas vendedoras, com um tabuleiro pouco consagrado num bairro
afastado e pouco popular, que também era evangélica. Era o auge da visibilidade da
polêmica com os evangélicos. Aquela que menos poderia representar o acarajé, pelo fato de
querer parecer loura, moderna e pelo fato de ter uma crença contrária às raízes da iguaria,
havia sido premiada justamente por causa do quitute, do qual sobrevivia e ao mesmo tempo
se “desfazia”, na opinião das outras baianas do acarajé.
135
A maioria das baianas, e outras pessoas com quem conversei, não se lembravam bem das datas e detalhes,
mas se lembravam da indignação pelo fato de a loura ter arrebatado o prêmio.
239
Depois deste episódio, a Abam, que estava em atividade desde 1992, inicialmente
com objetivos relacionados aos benefícios da previdência social para as vendedoras, reagiu
institucionalmente à polêmica. Aliou-se a um dos terreiros recém tombados pelo IPHAN, o
Opô Afonjá, e ao CEAO (Centro de Estudos Afro-Asiáticos) para fazer o pedido de registro
do acarajé, um produto representativo do ofício das baianas de tabuleiro, no Livro de
Registro dos Saberes.
O pedido foi realizado quase logo depois da instituição do registro, no ano de 2002,
e parecia haver uma certa premência, não só pela pontual indignação com o prêmio da loura
evangélica, mas muito mais provavelmente por causa das constantes polêmicas cotidianas,
com os evangélicos abrindo precedência para outro tipo de comercialização do acarajé,
desvinculada da tradição das mulheres.
Em 2003, depois da crise sobre segurança alimentar que se seguia às outras
polêmicas, a figura da baiana foi tema do carnaval de Salvador. A partir de então, um
trabalho em prol da imagem da baiana do acarajé tradicional foi sendo desenvolvido em
paralelo ao processo de tombamento. Após uma longa pesquisa, o acarajé teve seu
inventário completamente levantado em 2004 e foi tombado naquele mesmo ano
136
.
Posteriormente, a Abam exibia orgulhosamente cartazes coloridos da celebração do
tombamento em sua sede.
O processo de inscrição como bem imaterial suscitou uma longa pesquisa na
elaboração desse inventário sobre os saberes que envolvem a culinária das vendedoras que
mantêm uma tradição afro-brasileira nas ruas. Como frisou Márcia Santa’Anna (2003: 52),
este tipo de registro equivale ao ato de identificar e documentar o bem, registrando sua
trajetória no tempo. Ainda segundo a autora, como o bem imaterial é dotado de uma
dinâmica de desenvolvimento e transformação, a forma de preservá-lo será buscar apoiar
sua continuidade, sem intervenções que sejam impactantes. Essa natureza peculiar faz com
que o registro tenha que ser refeito a cada dez anos.
Os órgãos oficiais se colocaram, portanto, como guardiões desses saberes, no caso
de Salvador, mais especificamente, da cozinha do candomblé feita para as ruas. O saber
fazer o acarajé, com suas representações e expressões, é assim conservado letradamente e
136
O parecer do professor e Conselheiro Roque Laraia (2004) em relação ao registro do ofício detalhes do
processo e situa o acarajé como parte de um conjunto cultural mais amplo.
240
em outros suportes, enquanto, em paralelo, as baianas do acarajé mantêm a tradição visual e
oral de ensino a partir da transmissão direta de uma trabalhadora experiente, geralmente
num grupo familiar.
Não creio que o registro tenha, até então, interferido na produção artesanal, contra
seus próprios interesses. Aquilo de que o discurso de salvaguarda do patrimônio intangível
procura se resguardar tem ocorrido mais propriamente através dos cursos, capacitações e de
suas racionalizações em favor da indústria do turismo, pelo menos de maneira indireta. O
registro oficializado chegou bem depois da crise sobre a higiene do bolinho e da reação a
ela, embora o pedido tenha sido feito no mesmo ano desse episódio, alguns meses depois.
No entanto, a oficialização do registro do acarajé deu respaldo para as exigências
posteriores da Secretaria de Serviços Públicos com relação ao comércio do acarajé em
2005, ou mesmo para programas, em continuação, do aumento da qualidade do produto,
que proclamam se inserir nas linhas de ação do Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial.
Como sabemos, essas exigências nem sempre são bem vindas, porque dificultam
uma tradição de trabalho informal e de autonomia dessas mulheres, muito desvalorizada
pelo discurso dominante. Assim, se fizermos um balanço dessa regulamentação de 2005, a
obrigação da indumentária foi uma conquista para restringir a ação dos evangélicos e as
descaracterizações, apesar das controversas interpretações a respeito do turbante, por
exemplo. A padronização e o aumento de tamanho do tabuleiro, pouco acessível a todas, é
vantajosa do ponto de vista da imagem, tão central para o marketing turístico, e de ideais
higiênicos, porém engessa outros aspectos típicos, como a opção de praticar o ofício apenas
em altas temporadas mobilizando somente os recursos domésticos de que se dispõe, num
investimento de pouca monta, temporário e flexível. A proibição da colocação de mesas e
cadeiras segue à risca a tradição de se comer em . O acarajé transfere esse conforto,
então, para o bar mais próximo do tabuleiro. Ao mesmo tempo, a proibição da venda de
refrigerante e cerveja por parte das baianas instaura a simbiose entre estes outros
estabelecimentos e as quituteiras. Essa medida, apesar de visar impedir a comercialização
do quitute por barracas de praia que, muitas vezes, colocavam baianas do acarajé como
empregadas e com descaracterizações, não segue a tradição propriamente. Ela faz
concessões para que outros aspectos tradicionais o sejam completamente eliminados.
241
Mais uma vez, da convivência entre tabuleiro e barracas de praia é que o consumidor vai
poder ter acesso ao petisco acompanhado tradicionalmente de bebidas refrigerantes.
O refrigerante era recentemente vendido como acompanhamento pelas baianas do
tabuleiro a um preço mais acessível. “Refrigerante é pra acompanhar o acarajé, não pega
lucro no refrigerante”, afirmou Jeane Bastos do Shopping Barra. No seu caso, por causa
desse preço acessível, as pessoas começaram a querer comprar apenas o refrigerante no
tabuleiro e a lanchar dentro do shopping, onde uma loja especializada também vende
acarajé, a um preço mais alto. Esta loja pertence a uma rede bem estabelecida no ramo da
alimentação em Salvador, pioneira em oferecer comidas típicas como se fossem
salgadinhos ou doces em uma boutique de alimentos, como veremos. Assim, o tabuleiro de
Jeane se viu obrigado a aumentar o preço do refrigerante a ser consumido sem o acarajé.
Isso demonstra o papel tradicional do refrigerante, para atrair o freguês ao tabuleiro,
agora não mais oficialmente ao alcance das vendedoras. Resta a questão sobre as vendas
que ocorrem dentro do shopping nas lojas que não restringem bebidas refrigerantes, porém
também não restringem a venda do quitute, como se pretende em relação às barracas de
praia.
O registro do acarajé se caracteriza como uma institucionalização que se pretende
guardiã do saber fazer acarajé de maneira artesanal, porém sem interferir em sua dinâmica e
transformações. Podemos dizer que este deu visibilidade nacional ao problema vivido pelas
vendedoras em relação aos evangélicos. Porém, o problema de higiene noticiado pela
imprensa parece ter sido muito melhor divulgado. Após o pedido, para poderem se
legitimar enquanto aguardavam o registro, as baianas tiveram que demonstrar sua
preocupação com as questões da Anvisa; tiveram de fazer concessões a algumas aspirações
exageradas dos cursos de capacitação e do selo de qualidade; tiveram que se adequar a uma
espécie de guarda-pó invisível, branco, com touca e luvas invisíveis ou disfarçadas através
dos turbantes e dedos sem esmalte e sem anéis. Apesar do tombamento como garantia, a
tipicidade e o fazer artesanal têm permissão para sobreviver apenas através da assepsia. Ou
seja, a limpeza de traços indesejáveis se transformou numa espécie de domesticação através
da limpeza, enquanto valor universal e uniformizador.
242
Novas apresentações do acarajé
Segundo irmão Valdemir, os evangélicos abriram mais espaço para que o acarajé
pudesse ser comercializado por lojas contrariando as formas tradicionais: “Para conseguir
botar o acarajé no balcão, elas alegaram que os evangélicos estariam vendendo acarajé. Por
que não botar o acarajé, sair do tabuleiro e botar no balcão? A Perini entrou na justiça
alegando isso. Quem está quebrando a tradição é a própria Perini”.
A Perini é a famosa loja do shopping ao qual nos referimos anteriormente. Esta
começou como uma padaria em 1964 e em 42 anos se transformou numa rede com lojas em
vários bairros de Salvador, inclusive dentro de shoppings centers. Ao longo dos anos, a
Perini foi se expandindo e foi diversificando seus produtos, passando da padaria à
pastelaria, doceria e sorveteria, além de também englobar boutique de carnes, peixaria,
venda de importados e de cestas de café. Atualmente, tem investido no papel de
delikatessen, com a venda tradicional de importados, no papel de creperia e no de centro
gastronômico, numa linha que procura atrair um consumidor sofisticado.
A Perini produz muitos de seus produtos e o faz num local centralizado de Salvador,
a partir de um processo que chama de “artesanal”, sem aditivos químicos ou conservantes,
com as máquinas sendo usadas apenas para mexer e misturar as massas”. Esse é seu
diferencial como empresa alimentícia, e talvez resida sua investida na expansão para as
comidas típicas de Salvador e, portanto, do tabuleiro. Assim, essas comidas entram, através
da loja, num rol de delicadas e elaboradas iguarias consideradas de prestígio, vendidas num
ambiente sofisticado. Nessa posição, esses pratos locais terminam guardando certo
exotismo em seu próprio lugar de origem, por estarem dentro de ambientes artificiais que
pretendem evocar alto poder aquisitivo e padronizações estéticas que se lançam na
aspiração de uma suposta uniformidade produzida para se repetir em escala global em todos
as praças de alimentação ou lojas modernizadas do mundo.
A Perini vende todos os produtos que caracterizam o tabuleiro: acarajé, abará,
vatapá, caruru, cocadas, cocada-puxa, bolinho de estudante, lelê, beiju, cuscuz de tapioca.
Ela ainda vai além e vende “acaçá ao leite”, retomando a iguaria típica que sumiu das ruas,
e similares como a pamonha de milho e a de carimã. Oferece o mingau, produto também
representado na associação das baianas vendedoras típicas, comercializando o mugunzá, a
243
canjica, o mingau de carimã e de tapioca e, por fim, o arroz-doce, que inclui na sua lista de
comidas típicas
137
.
Nesse tipo de loja, o acarajé é apresentado pronto sobre o balcão, como descreveu
Valdemir, e pode haver uma mulher trajada mais ou menos tipicamente para simplesmente
acrescentar recheio e vendê-lo, como pude encontrar no Aeroclube Plazza Show. Esse
local, com sua particularidade de shopping aberto classificado, no Brasil, de shopping
mall - coloca a Perini próxima de quiosques de baianas tradicionais consagradas que
expandiram seu ponto para esse tipo de ambiente, contrariando o padrão das lojas dentro
dos shoppings e das vendedoras fora deles, um padrão que muito nos lembra a rampa do
outrora moderno Mercado Modelo.
Essa prática de vender o acarajé pronto sobre o balcão (ou prateleira) não se
restringe a esse tipo de loja, mas também acontece em alguns supermercados de Salvador,
como me foi relatado, o que contraria todas as exigências a respeito do comércio de acarajé.
Procurei investigar como o acarajé chega até o balcão, mas as pprias baianas tradicionais
não fazem muita idéia e as empregadas que apenas estão servindo costumam ser arredias.
Ouvi comentários sobre algumas baianas anônimas que preparam os quitutes e os entregam
para os supermercados. A Perini declara obter seu acarajé de sua central de produção
“artesanal”.
A venda de acarajé pronto já foi um aspecto tradicional, mas em comparação a esses
casos, a lógica é completamente diferente. O acarajé a quilo do baiano Gregório,
geralmente encomendado para eventos, com o quilo rendendo de cem a oitenta unidades
138
,
também retoma o antigo modelo da venda de acarajé pronto numa gica moderna, mas
preserva o grupo familiar na gerência do negócio e, com isto, outros aspectos tradicionais,
como o próprio tabuleiro nas ruas - embora a família prefira investir em pontos próximos a
shoppings. Assim também pode acontecer com o acarajé a domicílio, serviço onde
Gregório também já investiu, uma modalidade comum e optativa para pratos picos que
foram transformados em refeição rápida a ser distribuída por uma rede de estabelecimentos,
como a comida chinesa e as massas italianas, seguindo um sistema de alimentação
137
Estas informações estão no site
www.perini.com.br , permanecendo mesmo depois de 2005.
138
Segundo Jeane Bastos, o quilo em seu tabuleiro, um dos pioneiros e modelo neste tipo de venda, custava
vinte reais em 2005.
244
estadounidense que foi exportado para diversos países. Esse sistema ainda não aconteceu
para o acarajé, mas existem tentativas de aproximação.
Por exemplo, as lanchonetes de acarajé
139
, como o Point do Acarajé no Canela,
aberto quase dez anos, que se intitula a “primeira casa de acarajé da Bahia”. Nestas, a
venda, especificamente, se afasta menos da tradição do que nas lojas e supermercados. O
acarajé é frito na hora e, pelo menos no caso do Point do Acarajé, por baianas trajadas, pois
o mesmo não ocorre com outros estabelecimentos, como a Central do Acarajé.
O criador do Point do Acarajé, Edimilton Ribeiro, tem a postura de empreendedor,
que visa principalmente atividades lucrativas. Começou nesse negócio sem entender de
acarajé, mas procurou baianas do acarajé menos famosas para aprender com elas, além de
ter experimentado “todos” acarajés consagrados de Salvador. Chegou a ser sócio de uma
baiana em Itapoã; no entanto, como as vendas não iam bem, segundo Edimilton, esta
preferiu ter uma remuneração certa como empregada. Esse tipo de situação demonstra
como nem todas vendedoras apreciam os riscos e a insegurança da nova e da velha
informalidade, embora a tradição tenha sempre privilegiado a liberdade de se “aventurar”.
Edimilton passou, então, a contratar as baianas como funcionárias para fazer o
acarajé, agora sob suas prescrições, tendo aprendido o ofício. Inicialmente, estas
funcionárias, ao adquirirem vínculo empregatício, começam como garçonetes e depois
podem passar a cozinheiras. Estas ficam, inclusive, encarregadas de preparar a massa do
acarajé, com a fiscalização de Edimilton. De fato, a profissão da baiana do acarajé é
reconhecida oficialmente como a de cozinheira, sem levar em conta suas particularidades.
Edimilton enfatizou que além do salário elas também ganham uma parte de comissão.
Havia seis contratadas no estabelecimento, quando estive lá. Este reunia elementos
culinários inseparáveis: acara e cerveja. Funcionava mais como um bar, sendo
freqüentado à noite, mas estava entrando no ramo de comida a quilo na hora do almoço. O
tabuleiro era bastante visível, no formato de canoa, mais uma das inovações de Edimilton.
Outra delas, de natureza mais polêmica, foi a de começar a temperar o acarajé com
gengibre. Também tentou instalar o sistema de delivery, que não emplacou em Salvador,
segundo reportagem da Gazeta da Bahia de 12 de julho de 1999, uma das muitas notícias
sobre seu negócio que estavam coladas nas paredes de seu estabelecimento.
139
Também ouvi o nome acarajeria.
245
Uma das poucas iniciativas de Edimilton a favor da tradição deixou de ser
interessante porque ameaçava diminuir a clientela. Mesmo tendo sido criado na fé da
Assembléia de Deus, este resolveu decorar as instalações do Point do Acarajé com pinturas
de orixás. No entanto, nem sempre estas eram bem recebidas, segundo seu relato: “A
imagem começou a ficar cansativa por aqui porque um gostava, o outro não gostava. O
crente, se ele vê um orixá, sai correndo”. Deste modo, as pinturas foram, então, retiradas.
Como pude observar, as baianas do acarajé não estavam, até então, perdendo tanto o
mercado para esse tipo de comercialização, o que pode não mais se confirmar futuramente.
Pude verificar uma convivência em transição. Tina Moreira da Conceição, que vendia
próxima ao Point, mas à tarde, afirmava: “Mesmo que eu vendesse à noite, eu fico na
minha, ele na dele. Quem vai para o Point é porque quer cerveja. Quem quer acarajé,
não”. Outras lanchonetes de acarajé também funcionam durante o dia, enquanto as
vendedoras podem ficar, às vezes, mais ou menos bem próximas nas calçadas, como na
avenida Sete de Setembro e adjacências. Apesar da convivência, elas não aprovam esse tipo
de venda.
O diferencial do Point do Acarajé se caracteriza pela receita de acarajé própria, por
um sistema que não deixa de ser próximo do artesanal e pelo padrão de atendimento.
Muitos acreditam que esse seja o melhor caminho a ser tomado pelas vendedoras, uma
racionalização que organize a produção e as vendas, com vistas à expansão, diversificação
e à construção de uma marca própria, ou seja, uma profissionalização dentro dos padrões
tidos por competitivos.
A pesquisa de Tânia Maria da Cunha Dias (1997), na área da administração, buscou
comprovar, através de outras duas, - uma pesquisa mais restrita, no carnaval de 1996, com
18 baianas e um questionário com o universo de 55 baianas no mesmo ano - que as
vendedoras de acarajé, em seu sistema familiar, não fazem uso do controle de estoque, nem
do planejamento dos lucros, não sabendo qual o custo do acarajé, nem como se determina
seu preço de venda. Portanto, elas não compartilhariam de uma lógica mercadológica.
No entanto, as baianas do acarajé mais conhecidas principiavam a adentrar neste
campo desde meados da década de 90 e este aspecto, ele próprio, suscitava a pesquisa em
administração. Algumas baianas consagradas passaram a incorporar essas opções, que
podemos chamar de empresariais, e passaram a representar um exemplo bem sucedido,
246
desse ponto de vista, a ser seguido pelas outras vendedoras. Márcia Rios (1999), em seu
excelente texto, define a situação: “A grife impressa no tabuleiro de algumas baianas
constitui-se em marca distintiva reveladora da necessidade de se rearticular símbolos
identitários de culturas locais em época de economia e informação globalizada”.
No entanto, a rearticulação não poderia deixar de levar em consideração o próprio
modelo de trabalho tradicional que foi preservado pelas baianas do acarajé. Estas m uma
noção muito particular de custo e de preço e privilegiam os grupos familiares, até mesmo
aquelas baianas mais conhecidas que montaram um negócio de maior porte, o que não
deixa de ser uma versão alternativa interessante a ser preservada nesse quadro de nova
informalidade.
Em meu campo, muitas demonstraram conhecer, a seu modo, o custo e a qualidade
dos ingredientes. Quando lhes era mencionado o acarajé vendido por cinqüenta centavos (o
preço mais baixo encontrado), muitas tinham uma reação indignada, indicando que a
vendedora teria que necessariamente usar produtos de baixa qualidade das sobras da feira,
para não “quebrar a guia”. Uma delas, que trabalhava na praia, declarou a impossibilidade
de cobrar esse preço, por causa da necessidade de pacotes de garfos e pratinhos de plástico
que custavam entre dois e três reais.
Ao mesmo tempo, elas também puderam comparar seus preços mais acessíveis com
os estabelecidos pelas baianas mais conhecidas, que vendem o acarajé a dois e cinqüenta e
a três reais, quando acompanhado de camarão. A baiana Tina, que vende em frente à Escola
de Belas Artes e próxima ao Point do Acarajé, fez uma reflexão do controle de preços: “É o
mesmo material, pode mudar o sabor e a qualidade, mas é a mesma coisa. É ir à feira
(Feira de São Joaquim) e fazer a pesquisa com os barraqueiros, é o mesmo feijão”. No
entanto, ela vendia seu acarajé a setenta centavos ou a um real
140
, sendo que não comprava
feijão pelo preço mais barato que era 85 centavos o quilo, segundo Tina. Tina também
descreveu os valores do quilo de camarão o ingrediente mais caro - entre oito e vinte
reais, especulando que Cira e Dinha deveriam usar o camarão de dezoito reais, pois
trabalhavam com camarões maiores, concluindo que o seria tão puxado para ela comprar
o camarão de dezoito se também vendesse a três reais o quitute. Tina não é um fenômeno
140
Também encontrei o preço intermediário do acarajé de dois reais e dois e cinqüenta.
247
isolado e outras baianas falaram dos custos dos ingredientes, do guardanapo e das
tradicionais embalagens de papel, onde se pode encontrar inscrito sanduíche ou acarajé.
Uma das mais conhecidas, a baiana Cira, por sua vez, tinha uma opinião que se
contrapunha, em certo nível, à de Tina. Ela não confiava nos preços mais baratos da feira,
nem na uniformidade do produto que chega ali: “Tem camarão podre de cinco reais, tem
feijão podre de um real, elas compram e fazem”. Porém, sem contrariar as expectativas da
outra baiana, Cira declarou que seu camarão era um produto de maricultura, criado no
viveiro e adquirido com um fornecedor particular da feira sendo, justamente por isso, mais
caro.
Com estes depoimentos, podemos perceber que as baianas do acarajé consagradas
trabalham com uma equipe maior, com um nome conhecido e com maior volume de
vendas, o que não passa despercebido pelas outras vendedoras. Isso implica no preço mais
alto do acarajé em seus tabuleiros. A partir deste preço, elas chegam a dar o tom de
valorização do produto no mercado. Seus tabuleiros o um referencial, uma espécie de
regulador que se constituiu tradicionalmente.
Detectamos também que a centralização tradicional do fornecimento dos
ingredientes em uma ou duas feiras facilita as noções de custo e que, de um modo geral, as
vendedoras percebem as diferenças de preço e de material como variantes sobre uma
mesma base. Elas também não estão alheias a outras questões sobre custo e produção, como
a do transporte. Porém, terminam sendo interpretadas fora do contexto de seu próprio saber.
Se conseguirmos enxergá-las minimamente dentro desse contexto, uma atitude que parece
pouco hábil para os negócios aos olhos de quem geralmente esquece o peso histórico da
atividade se configura numa outra visão do comércio, mais de acordo com um cotidiano
palpável do que com uma economia racional e suas previsões a longo prazo.
Embora essas noções não passem pela ótica mercadológica de planejamentos e
cálculos, nem pela do emprego formal, elas m sido uma ferramenta eficiente para as
finalidades mais imediatas das vendedoras e combinam com suas expectativas
diferenciadas a respeito de uma profissão. Deste modo, as vendedoras sabem, sem calcular
os detalhes com exatidão, se a margem de lucro que podem obter lhes permitirá sobreviver
e que, em certos períodos, poderão passar por dificuldades. Essa incerteza gera certa
itinerância que não está de todo desvinculada da história desse ofício.
248
A longa duração do ofício se baseou num mecanismo também visto como
desvantajoso nos negócios, o que demonstra mais uma incompatibilidade entre ambas
visões discutidas. No ofício do acarajé, pressentir qualquer possibilidade de falência, num
plano mais imediato, inclui a opção de se parar, sem grande prejuízo, por causa do
investimento de recursos mínimo. Haveria, ainda, outras opções: a de se variar,
principalmente nos locais de venda, e a de esperar melhores tempos.
A própria Cira se lembra que em sua juventude ela e outras baianas alugavam uma
kombi para “aventurar numa festa de largo, caracterizando a alma do negócio do acarajé
como uma aventura, em sua lembrança. Noção que se afasta bastante da do emprego
formal. Esta ainda não me parece de todo ausente, pois cheguei a ouvir comentários sobre
um costume de se manter empregos flexíveis somente até o carnaval. As baianas do acarajé
fazem um movimento inverso, trabalhando no carnaval e, ao mesmo tempo, participando da
festa. Pude observar que muitas delas se entretinham e trabalhavam, ao mesmo tempo. Não
pela natureza do serviço, mas por uma atitude assumida perante o próprio trabalho e por
uma postura de pertencimento às redes familiares e às comemorações tradicionais.
No entanto, os tempos mudaram, como admite Cira: Hoje, tem muita gente no
mundo”. Isso demonstra sua ciência de que o ofício está passando por mudanças e que vem
sendo realizado em várias instâncias por uma maior quantidade de pessoas diferentes
daquelas que se consagravam a ele tradicionalmente. Enquanto isso, as baianas do acarajé
vão procurando se adaptar, sempre pautadas em seu cotidiano imediato.
249
Últimas considerações
Ofício tradicional e tecnologias de higiene
O acarajé se encontra, a partir de sua trajetória histórica, no cruzamento entre
mercadoria palpável e consumível e um complexo sistema simbólico religioso que permeia
os cultos afro-brasileiros, que o construíram como uma oferenda, sem buscar uma
separação ou especialização que pudesse diferenciar o plano mercadológico do plano
sagrado.
O ofício das baianas de acarajé de Salvador trilhou sua trajetória histórica em
recorrentes envolvimentos e confrontos com os poderes públicos, desde as tentativas de
organização espacial da antiga cidade, até a transformação de Salvador numa sociedade
moderna e disciplinar no século XX. Hoje, a venda de acarajé se encontra em meio a um
processo de adaptação da prática artesanal à reformulação do comércio de gêneros
alimentícios segundo uma sociedade que se tornou parte de uma economia industrial e de
consumo.
O papel das vendedoras tradicionais e a insistência na preservação de um sistema
simbólico religioso afro-brasileiro como respaldo de sua atividade durante essa trajetória se
assemelha ao que Michel Foucault (1989: 97) denomina resistência difusa, ao se questionar
sobre as práticas religiosas em relação às peregrinações ao santuário de Lourdes:
Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças
arcaicas ainda não desaparecidas não serão elas uma forma atual de luta política
contra a medicalização autoritária, a socialização da medicina, o controle médico
que se abate essencialmente sobre a população pobre; não serão essas lutas que
reaparecem nessas formas aparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são
antigos, tradicionais e supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas?
Apesar das diferenças entre a prática do ofício do acarajé e as peregrinações a
Lourdes, a proposição de Foucault não deixa de ser instigante para se pensar este ofício,
pois as vendedoras foram constantemente acusadas de manter práticas religiosas arcaicas
inconciliáveis com a venda de alimentos, durante o século passado, e ainda continuam o
sendo por alguns setores religiosos oponentes ou da economia de mercado. Essa
manutenção suscitou, inicialmente, a interferência de aparelhos de repressão que,
250
posteriormente, foram substituídos pelo controle da saúde blica, sempre em ação
conjunta com as instituições que administram a cidade.
No entanto, Foucault se refere ao universo religioso europeu, onde as formas de um
fenômeno residual reaparecem, enquanto as vendedoras, sem abandonar suas crenças,
mantiveram ininterruptamente suas práticas - não em lugares circunscritos, como nas
ruas - dentro do peculiar universo da religiosidade brasileira. A reflexão de Foucault estaria
inserida no que José Jorge de Carvalho (2001) descreve como um mundo desgastado das
sociedades européias, distanciado das identidades tradicionais, após dois séculos de uma
auto-imagem de homogeneidade a partir das religiões chamadas éticas.
Todavia, essa pergunta, que busca refletir sobre o reaparecimento de formas
tradicionais de cura diante dos recursos da moderna instituição laica da medicina, incita-nos
a pensar na relação que as vendedoras típicas estabelecem com os alimentos diante dos
apelos da instituição preventiva de contaminação biológica chamada segurança alimentar.
As práticas tradicionais preservadas pelas baianas do acaraparecem corresponder a uma
espécie de resistência à socialização da medicina mencionada por Foucault, em seu formato
específico de controle da saúde pública e da segurança alimentar.
Ao analisarmos a história do ofício e as intervenções com que se confronta
atualmente, a abordagem deste autor se revelou cada vez mais apropriada, visto que, do
século XX em diante, este ofício passou a ser o objeto não apenas de uma vigilância
sanitária, mas também de técnicas de capacitação disciplinadoras em função da indústria do
turismo soteropolitana.
Foucault (1989: 188) define este tipo de disciplina como um novo tipo de poder,
uma invenção da sociedade burguesa que foi um instrumento fundamental para a
constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente. Em
Vigiar e Punir (2005), ele analisa a instauração das relações disciplinares de poder a partir
do nascimento do sistema carcerário. Estas não estariam, entretanto, restringidas a esse
universo particular, mas divulgadas em várias instâncias da sociedade, como os hospitais, a
escola e a fábrica.
A história do ofício feminino da venda ambulante, que via se sintetizar na atual
venda do tabuleiro, constitui um recorte que coloca em relevo aspectos de um terreno
específico onde se desenrola uma espécie de preparação para a instauração desse tipo de
251
relação. Ao mesmo tempo, este terminou por constelar diversos tipos de intervenção
disciplinar em andamento.
Durante os primeiros séculos de consolidação da venda ambulante de alimentos em
Salvador por mulheres africanas e afro-brasileiras, a não observância das posturas
municipais e dos decretos reais relativos a esse pequeno comércio, principalmente ao
comportamento das vendedoras, podia ser considerada como uma ilegalidade tolerada no
sentido que Foucault imprime ao termo, para definir o comportamento das camadas
populares num contexto jurídico ainda não disciplinar - dentro do perímetro urbano, por
causa do papel fundamental destas vendedoras na sociedade. Como vimos, estas prestavam
serviço ao setor feminino livre na sociedade colonial que, porém, encontrava-se restringido
por regras sociais que lhe impediam de se movimentar com facilidade pelas ruas. Ou seja,
as mulheres livres dependiam da mobilidade das africanas. Com as alforrias e um número
maior de libertas, a sociedade soteropolitana, em última instância, passou a depender de sua
atividade na distribuição dos alimentos e das relações que formavam no comércio de
gêneros alimentícios.
Um dos indicadores da importância das ambulantes eram as crises de abastecimento
que a sociedade soteropolitana colonial sempre enfrentou, o que provocava revoltas
populares. No entanto, estas revoltas sempre estiveram permeadas pela questão de fundo
das constantes rebeliões dos africanos que não aceitavam a condição de escravo. Havia o
convívio das ilegalidades toleradas em relação às mulheres afro-brasileiras que trabalhavam
no ganho com o sistema rígido de controle e punição de escravos, uma combinação que
parece ter se tornado bastante explosiva.
Este lugar da sociedade por onde transitavam as ganhadeiras somava a insatisfação
popular às rebeliões escravas. Tais aspectos sofreram uma intensificação durante o século
XIX, deixando claro seu potencial de ameaça à estabilidade das hierarquias sociais. Isso
suscitou uma forte reação por parte do restante da sociedade soteropolitana e dos poderes
públicos. Dessa forma, começaram a emergir novas formas de controle desse suposto
estopim, que vieram se desenvolvendo até a atualidade e que podem ser, a partir da
definição de Foucault, compreendidas como:
“(...) uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de
vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos
252
aparentemente sem importância; significa uma outra política a respeito dessa
multiplicidade de corpos e forças que uma população representa”.
Com o arrefecimento dos levantes e com a abolição, que permitiu oficialmente aos
africanos e seus descendentes se somarem, de fato, à insatisfeita plebe livre – porém sempre
permeados pela desigualdade racial - os setores governamentais de Salvador investiram em
formas de vigilância e contenção da população que provaram ser menos dispendiosas -
inclusive em termos de violência, se comparadas com os instrumentos de controle da
escravidão - e mais eficientes. Isso desencadeou, no século XX, uma onda de
regulamentações, regularizações e de criação de instituições de controle, como os modernos
sistemas penal, fabril, escolar e hospitalar descritos por Foucault, contudo adaptados à
realidade local.
Especificamente no caso das vendedoras ambulantes em Salvador, essas instituições
seguiram de perto seus passos. O pequeno comércio das mulheres foi interpelado por focos
disciplinares tais como a vigilância policial, as tentativas de formalização do comércio, a
medicalização de seu universo de trabalho através do sanitarismo, e, mais recentemente, no
caso do tabuleiro, as exigências de eficiência pautadas num modelo fabril e as tentativas de
escolarização do aprendizado tradicional a partir de cursos de culinária e higiene.
No contexto maior de uma cultura de trabalho construída como afro-brasileira,
houve uma recusa histórica em se adaptar ao novo tipo de subordinação instaurado pela
disciplina do modelo fabril, provavelmente em função do longo regime exploratório
escravista. Reis (2003) define essa cultura de trabalho, que já se delineava durante a
escravidão, como uma cultura baseada na valorização da autonomia, ao analisar a
desobediência de grupos de carregadores africanos perante as tentativas de matrícula e
controle público de seu ofício depois de 1835:
Pelo menos em algum nível os africanos conseguiam fazer o que eles
consideravam de seu interesse. E parece que não lhes convinha trocar a escravidão
pura pela escravidão assalariada. Eles tinham referências históricas próprias de
relações de trabalho livre em suas Áfricas e foi nessa direção que tentaram
modificar e até se livrar do escravismo, e não só na Bahia.
Ao lado dos carregadores, as vendedoras resistiam a seu modo, através de respostas
culturais às situações imediatas que se interpunham em seu caminho. Escapavam da
cobrança de impostos, ignorando portarias, aliando-se aos que precisavam de sua renda,
253
através do ganho, constituindo grandes famílias, buscando novos pontos, buscando
prestígio e construindo uma rede de relações indispensável para a sociedade. Todo este
saber mercantil, necessário ao cotidiano alimentar da cidade, não foi simplesmente
aprendido na situação de cativeiro, mas comportava uma herança cultural de povos
africanos, com valores pré-capitalistas, que foi adaptada a Salvador.
Quando o regime assalariado se tornou um parâmetro, essa concepção de trabalho
tradicional ainda não havia sido abandonada e era mantida principalmente pelas mulheres
afro-brasileiras, por sua própria posição na sociedade, através dos poderes que ainda
podiam exercer nos limites do pequeno comércio. Estes foram uma herança do que
Foucault (2005: 74) denomina “infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas, que,
neste caso específico, se prolongou durante dois séculos. Com as modificações do século
XX, essas mulheres perderam seu papel fundamental no abastecimento da cidade, mas
continuaram com suas práticas, consideradas, desde então, arcaísmo e atraso.
Como vimos, o desprestígio crescente dessas práticas deu vazão a justificativas para
diversas formas de controle disciplinar. Primeiramente, as ambulantes sofreram a repressão
por parte da lei, através da perseguição policial aos candomblés, aos quais ainda estavam
muito vinculadas
141
. Ao mesmo tempo, enfrentaram as tentativas de controle do seu espaço
e de sua movimentação nas ruas, as partir dos grandes deslocamentos forçados pelo
governo e das construções de grandes mercados, para organizar e matricular o comércio
alimentício de natureza feirante. Essas ações governamentais se iniciaram baseadas em
argumentos em prol da saúde pública, mas não intervinham tão diretamente sobre seus
corpos e a manipulação dos alimentos, como agora.
Essas políticas conseguiram eliminar muitos ofícios tradicionais e uma das
primeiras atividades a desaparecer, o comércio das fateiras e vendedoras de carne, estava
estritamente relacionada ao tema da higiene. À primeira vista, isso pode parecer muito
legítimo devido às condições insalubres gerais e não especificamente relacionadas apenas
às vendedoras ambulantes do comércio da carne no período. Porém, se pudermos pensar
em termos dos costumes alimentares relativos à carne passada e que eram apreciados
141
O candombtambém foi objeto das instituições psiquiátricas. As mulheres do candomblé, nesse mesmo
período, detinham o papel de entrar em transe, que era encarado como um desvio de personalidade nessas
instituições. Apesar de uma certa superação dessa fase de objeto psiquiátrico a ser medicalizado, isso também
se tornou um estigma de atraso.
254
popularmente em Salvador, como o peixe salpreso – muito citado por Câmara Cascudo - ou
que hoje são iguarias sofisticadas como a carne faisandé, semi-decomposta, o quadro dessa
situação toma outros contrastes. Torna-se perceptível como a atividade da venda de carne
foi retirada das mãos das ambulantes e transferida a outros setores mais privilegiados,
naquele período, não pura e simplesmente por uma questão pontual de segurança alimentar,
mas seguindo o contexto de controle dos ofícios da população.
No entanto, o ofício do acarajé resistiu e se perpetuou através do tabuleiro. No
momento de consolidação da fixação dos pontos, a perseguição policial aos cultos afro-
brasileiros começava a cessar e a sua liberação seria oficializada mais tarde. Nesse
momento, mais uma vez, a definição de poder disciplinar vem ao auxílio da compreensão
dos processos relativos ao tabuleiro. Quando o controle dos candomblés deixou de ser
tarefa da polícia e passou a ser realizado por uma federação dos cultos, este foi transferido
para um determinado grupo representativo dos que antes eram perseguidos. Porém, o
controle em si não cessou, nem deixou de ser acessível aos poderes públicos, juntamente
com os saberes produzidos pelos levantamentos das casas de candomblé e, desde então, dos
pontos de acarajé. Instaura-se uma intermediação e, nas complexas e micro relações entre
as casas, as vendedoras, a federação e a prefeitura, as disciplinas continuam sendo
negociadas e implantadas, em troca da legitimação e do apoio. Ao mesmo tempo, por esse
tipo de relação, alguns valores tradicionais conseguiram chegar ao âmbito da lei, mediante
algumas concessões.
Quanto mais as atuações explícitas de repressão foram diminuindo e houve um
movimento de legitimação, o controle dos poderes blicos foi tomando uma espécie de
sofisticação e sutileza, sendo incorporado à vivência das vendedoras através das disciplinas
relativas ao aprendizado em cursos, ao treinamento - inclusive corporal, numa espécie de
pedagogia culinária - e relativas à higiene. Essa legitimação ocorre, em primeiro lugar,
através da consagração da imagem do candomblé e da baiana típica como emblema da
africanidade no Brasil, um tema que depois passou a ser interessante do ponto de vista do
Estado e da indústria turística.
Em função dessa imagem, que começou a ser explorada mercadologicamente,
adquirindo também valor econômico, os terreiros se organizaram em associações e
começaram a pleitear garantias jurídicas para sua conservação, através de instituições
255
patrimoniais, o que implicou um maior apoio, também financeiro, por parte do Estado ou
do município. As baianas do acarajé, logo em seguida, se organizaram separadamente dos
cultos, através da Abam. Surgiram as primeiras regulamentações relacionadas à tendência
de profissionalização das baianas do acarajé. Quando lhes foi possibilitada uma garantia
através da instituição do registro de patrimônio imaterial, as baianas do acarajé seguiram os
mesmos passos dos candomblés, no sentido de proteger e angariar apoio para atividade a
partir de órgãos do governo.
Nesse ponto, os poderes disciplinares, os poderes públicos e as instituições jurídicas
e patrimoniais passaram a se interpelar mais intensamente. Questões sobre a capacidade de
uma instituição em preservar um bem imaterial a ser garantido pelo patrimônio nacional
estão inscritas nessa situação. De um lado, detectamos um discurso a favor da tradição do
ofício, a ser protegida pela regulamentação e pelo patrimônio. Do outro, são feitas
exigências disciplinares para a consolidação desse apoio, que se colocam a serviço do
controle das instituições governamentais. No entanto, as tecnologias disciplinares
demonstraram ser contraproducentes na proteção dos valores tradicionais. Desse modo, o
Estado busca preservar e proteger aquilo a que as técnicas de disciplina que trabalham em
favor do controle desse mesmo Estado se opõem.
Portanto, o registro que visou proteger o acarajé como bem imaterial termina
reforçando, por um lado, aspectos tradicionais da venda, mediante a oposição dos que, por
motivos religiosos ou mercadológicos, desejam realizar este comércio fora dos moldes mais
domésticos e artesanais e fora do universo simbólico afro-brasileiro dos cultos de
candomblé. Por outro lado, o uso de mecanismos institucionais e jurídicos reforça a
aplicação de exigências disciplinares com relação às vendedoras, sendo que algumas destas
exigências trabalham em função de inovações dentro da lógica capitalista do mercado e em
função do controle corporal para manipulação dos alimentos, através de noções de assepsia.
Inovações voltadas para o mercado e controle corporal se opõem à preservação de aspectos
tradicionais.
Num dos casos, a visão da venda de acarajé como um pequeno negócio que pode ser
lucrativo interfere na organização familiar e cooperativa tradicional. A busca de um
planejamento e do aumento da produtividade leva à aquisição de bens de produção, tais
como moinhos industriais ou à procura da matéria prima já processada, o que diminui a
256
autonomia tradicional desse ofício e suas relações consagradas pelo costume com
fornecedores da feira. O conseqüente aumento da cadeia de pessoas envolvidas na produção
interfere na flexibilidade temporal típica do ofício. Este deixa para trás aspectos temporais
mais acessíveis às mulheres que possuem encargos também no âmbito doméstico, como a
opção da periodicidade das grandes temporadas e o emprego do tempo autônomo. O
aumento da produtividade passa a exigir um tempo disciplinar, planejado, inspirado no
modelo fabril, integralmente útil. Cria-se um novo ambiente competitivo entre as ricas
redes familiares de um tabuleiro matriz, em função não da excelência do paladar o gosto
construído a partir de valores afro-brasileiros - ou da prosa simpática que eram os principais
valores do atendimento tradicional. A competição gira agora em torno da qualidade do
tabuleiro, da limpeza da baiana, do quanto ela pode consumir ao investir em produtos
padronizados.
Chegamos, então, ao segundo caso, o da assepsia. A concepção de segurança
alimentar se apóia num gido sistema de tecnologias de limpeza totalmente dependente da
produção industrial. Produtos mais artesanais usados tradicionalmente na venda
142
, embora
eficientes e, por vezes, baratos, vão sendo oficialmente descartados por não
corresponderem ao formato imposto pela indústria de limpeza. As vendedoras também
ficam obrigadas a adquirir mais produtos para garantir a limpeza. Ou seja, ambos os casos
convergem para uma crescente industrialização e uniformização do tabuleiro.
Diante dessas inovações, a preservação, se levada às últimas conseqüências,
buscaria, no sistema simbólico afro-brasileiro, não apenas o específico culinário, mas o
sistema como um todo, inclusive suas noções sobre pureza e higiene. No entanto, não se
trata disso, mas sim de uma tentativa em preservar adaptando ou, melhor dizendo,
submetendo esse sistema ao sistema da assepsia, que se encarrega de introduzir a atividade
a valores hegemônicos. E, no entanto, não se trata simplesmente de assepsia, mas de
controle de um grupo historicamente marcado pela atribuição de desordem, emblema
considerado um estigma do ponto de vista dominante. Mary Douglas (1976: 50) sintetiza a
questão nos seguintes termos:
Se pudermos abstrair patogenia e higiene de nossa noção de sujeira,
estaremos diante da velha definição de sujeira como um tópico inoportuno. Esta é
142
Por exemplo, o tabuleiro simples, sem proteção solar, que dispensa coberturas menos acessíveis, os
azulejos sem a exigência do branco para a cozinha, o carvão como combustível.
257
uma abordagem muito sugestiva. Implica duas condições: um conjunto de relações
ordenadas e uma contravenção desta ordem. Sujeira, então, não é nunca um
acontecimento único, isolado. Onde sujeira, sistema. Sujeira é um subproduto
de uma ordenação e classificação sistemática de coisas, na medida em que a ordem
implique rejeitar elementos inapropriados. Esta iia de sujeira leva-nos diretamente
ao campo do simbolismo e promete uma ligação com sistemas mais obviamente
simbólicos de pureza.
Em relação às noções de assepsia disciplinares ensinadas às baianas do acarajé, se
estas forem retiradas do contexto de patogenicidade, poderíamos identificar um outro
sistema em funcionamento. Este estaria relacionado aos processos de interceptação das
resistências culturais africanas perante à dominação colonial européia em território
soteropolitano. Haveria uma tentativa de longa duração em ordenar, que se traduziu
primeiramente na eliminação e, posteriormente, na incorporação deste grupo.
Como vimos, a desordem que lhe foi sendo atribuída se apresentou sob diversos
aspectos. Talvez o mais fundamental seja a relação feita entre as mulheres e o limiar no
próprio sistema afro-brasileiro, o que fica evidente na discussão sobre o caruru das
divindades gêmeas. Este sistema, ele mesmo, por sua vez, também seria liminar dentro de
uma ordem maior imposta. É importante lembrar que seus valores foram sendo construídos
em torno do trabalho feminino das afro-descendentes, como viemos argumentando. Sua
definição consistiria no que José Jorge de Carvalho (2001) caracteriza como um dos pólos
da dimensão do sagrado, ligado ao devaneio e ao lúdico tão presente no culto aos gêmeos
e aos exus, eles mesmos extensões dos deuses patronos do tabuleiro - da tradição dionisíaca
das religiões afro-brasileiras, em contraposição à sisudez do cristianismo. Ou seja, a
presença deste sistema simbólico, na história da cidade de Salvador, foi caracterizada
também como algo desordenador pela religião oficial e pelos poderes públicos. Ao mesmo
tempo, este conseguiu crescer neste domínio, por oferecer respostas em áreas negadas pelo
catolicismo e, mais recentemente, pelas instituições disciplinares laicas - sem, contudo,
muitas chances de confrontá-los abertamente - e por se mostrar muito presente no cotidiano
da cidade, a partir das próprias mercadoras afro-brasileiras.
Assim, o universo dos cultos do candomblé apresenta uma noção sobre sagrado que
abarca o considerado impuro e desordenante, como nos aponta José Jorge de Carvalho
(2000) em seu texto. Essa noção é perceptível no próprio ofício, através de diversos
indicadores, como a predominância feminina em conjunto com os moleques e crianças no
258
trabalho, sempre a apontar para o estado de liminaridade e transição que representa,
inclusive dentro da própria história da cidade, e como o tratamento sacralizador das
oferendas votivas às divindades infantis e desordeiras e à divindade feminina do quitute,
Oiá. Ao mesmo tempo, o caráter desordeiro fica reforçado pela ambigüidade da divindade
Exu, moleca e traquinas, patrona da venda nas ruas, cuja instabilidade a torna apropriada
para as questões do confronto imediato e para o trânsito em função de uma resolução rápida
dos percalços do cotidiano.
Com a diminuição do poderio da sisudez católica, outras formas cristãs de religião,
que se contrapõem às identidades tradicionais, alcançaram maior evidência. Em Salvador,
esse fato se traduziu, muito recentemente, por uma nova contestação dos aspectos
encarados como desordenantes nos cultos afro-brasileiros. As religiões protestantes mais
tradicionais em Salvador, como a Igreja Batista, e as igrejas pentecostais, como a
Assembléia de Deus, tiveram seu fôlego renovado pelo crescimento das neopentecostais,
como a Igreja Universal do Reino de Deus, que se posicionaram em franco combate aos
valores tradicionais do candomblé que permeiam o ofício do acarajé.
Desse modo, as baianas do acarajé tiveram que se confrontar, em meio ao processo
de imposição do controle sofisticado das novas instituições disciplinares, com o
questionamento aberto de seus valores e com tentativas de convencimento para adesão às
doutrinas religiosas dos chamados evangélicos, às vezes bruscas. Essas tentativas as
empurraram para as alianças com os poderes públicos com a finalidade de proteger o ofício
das descaracterizações que o ameaçavam mais imediatamente, através dos evangélicos.
Essa situação acelerou o processo de legitimação do ofício em relação à sociedade
dominante e o lançou no jogo de concessões a longo prazo uniformizadoras com vias à
domesticação.
Diante dos evangélicos, os valores tradicionais conseguiram se reforçar, por uma
oposição clara. No entanto, a reação abriu brechas para a insidiosa atuação de outros
valores exógenos ao complexo simbólico do acarajé. Estes vêm se sobrepondo a elementos
tradicionais da venda, como a indumentária e, particularmente, o torço, que começa a ser
concebido, pelas próprias vendedoras, como uma peça com funções higiênicas de anti-
contaminação.
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In MOURA, C. M.:
A market stall. 1819. Gravura colorida.
Huma historia. Sem data. Gravura colorida.
DEBRET, Jean Baptiste.
In Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil:
Banha de cabellos bem cheirosa. Prancha 25.
Marchand de noir de fumée. Marchand de tripes. Prancha 26.
Rio de Janeiro. Prancha 56.
La reine Carlota Joaquina. Prancha 64.
Négresse de Bahia. Prancha 106.
Diversos tipos (fateira). Prancha 114.
Scènes de la rue a Rio de Janeiro. Prancha 121.
Négre habillé pour le baptême. Négre fugitif. Prancha 12.
271
In MOURA, C. M.:
Marchande de feuilles de bananier. 1823. Aquarela.
Négresse tatouée vendant des fruits de caju. 1827. Aquarela
Boutique de cordonnier. 1834-1839. Litografia.
Esclaves nègres de différentes nations. 1834-1839. Litografia.
Le diner. 1834-1839. Litografia.
Marchande de pandelos. 1834-1839. Litografia.
Négresses marchandes d’angou. 1834-1839.
Paveurs. Marchande d’atacaçá. 1834-1839. Litografia.
Une visite à la campagne. 1834-1839. Litografia.
In Arte e Religiosidade no Brasil:
Negras indo à igreja para o Batismo. 1834-1839. Litografia aquarelada.
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In MOURA, C. M.:
Interior de uma casa do baixo povo. 1820. Desenho aquarelado.
In SOUZA, L. M. (org.):
Escravos de Ganho. 1812. Aquarela.
In PICCOLI, V.
Família brasileira a passeio. Aquarela.
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In MOURA, C. M.:
Negras vendedoras. 1776. Aquarela colorida.
Vendedores ambulantes. 1776. Aquarela colorida.
Vestimentas de escravas. 1776. Aquarela colorida.
In SOUZA, L. M. (org.):
Sem título (mulher se penteando). Segunda metade do século XVIII. Aquarela.
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In MOURA, C. M.:
272
Hospice de N. S. da Piedade à Bahia. 1835. Litografia.
Lavage du minerai d’or près de la montagne Itacolumi. 1835. Litografia
Négre et négresse de Bahia. 1835. Litografia
Négresses de Rio de Janeiro. 1835. Litografia.
Venta à Reziffé. 1835. Litografia.
In PICCOLI, V.:
Missa na igreja de N Sra. da Candelária em Pernambuco.
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Pinacoteca do Estado de São Paulo.
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In OLZEWSKI Filha:
Pedro Gonsalves da Silva. Retrato de casal sem identificação. Cartão de visita. Sem data.
Coleção Museu Tempostal.
Guilherme Gaensly. Retrato de mulher negra em pose sentada. 1880. Retirada de A
fotografia no Brasil 1840-1900 de Gilberto Ferrez.
Autor não identificado. Creoulas da Bahia. Retrato de duas mulheres com jóias e
sombrinhas. Identificado como pertencente ao século XIX. Museu de Arte da Bahia.
Photographia Diamantina. Retrato de Pulcheria Maria da Conceição Mãe-de-santo do
Terreiro de Gantois. Sem data. IGH Bahia.
Rodolpho Lindemann. K. Creoula. Mulher com pano xadrez. Cartão Postal. 1909 (data de
envio do cartão). Museu Tempostal.
Generoso H. Portella. Retrato de mulher com criança e gamela sem identificação. Cartão de
visita. 1898 (data da dedicatória). Museu Tempostal.
273
Fotógrafos estrangeiros anônimos. Mulher com gamela de abacaxis sobre a cabeça. Sem
data. Retirada de Sete lendas africanas da Bahia (Odebrecht, 1978).
In MOURA, C. M.
Autor não identificado. A market woman. Mulher com criança e gamela de bananas na
cabeça. In Vincent, 1890.
274
Imagens anexas
Figura 1 – Vestimentas de escravas; Negras vendedoras (Carlos Julião)
Figura 2 – Escravos de ganho (Guillobel); Huma história (Chamberlain)
Figura 3 – A market stall (Chamberlain)
Figura 4 – Marchande de feuilles de banannier; Négresse tatouée vendant des fruits de caju
(Debret)
Figura 5 – Esclaves négres des différentes nations (Debret)
Figura 6 – Negras indo à igreja para o batismo (Debret)
Figura 7 – Nègre et négresse de Bahia (Rugendas)
Figura 8 – Négresses de Rio de Janeiro (Rugendas)
Figura 9 – Venta à Reziffé (Rugendas)
Figura 10 – Hospice de N. S. da Piedade à Bahia (Rugendas)
Figura 12 – Creoula; Creoulas da Bahia
Figura 13 – Roupa de baiana
Figuras 14 a 16 – fotos da autora:
14 Da esquerda para a direita, Isaura Araújo Silva que trabalha com um grande
grupo familiar e tem ponto fixo em Ondina; Tânia em seu ponto no Farol da Barra e
o tabuleiro modelo.
15 Baiano Cuca com a marca de seu gorro, tem ponto em Ondina; Edivaldo do
Solar Boa Vista em bata de richelieu.
16 As filhas de Maria de Lourdes dos Santos (ponto de Piatã) e a inovação do
penteado feminino, numa interessante recriação do estilo turbante; Rosilaine e
Luciano, casal que trabalha junto cujo tabuleiro esafilado ao matriz do Baiano
Cuca.
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Distribuição de tabuleiros pela numeração no mapa
1- Associação das baianas de acarajé e mingau; Memorial da Baiana; Ponto de Maria
Luísa; ponto de Valdicéia.
2- Ponto de Antonivalda Cruz dos Santos no Comércio.
3- Mouraria: ponto de Gilnate, da família de Isaura Araújo.
4- Próximo à Ladeira do Pepino: Jarles e Irmão Valdemir.
5- Ponto de Edivaldo no solar Boa Vista (Engenho Velho de Brotas).
6- Garcia: Beco do Feijão da família de Gersonita Góes.
7- Canela: Point do Acarajé; ponto da Tina.
8- Regina da Graça.
9- Calabar: Rosilaine Santana e Luciano Cruzeta.
10- Barra: baiana Tânia do Farol; nos arredores do shopping, Jeane Bastos do acarajé da
Chica e Gregório e outro ponto de Josefa Conceição.
11- Ondina: Rosângela Campeiro e Baiano Cuca; ponto na praia de D. Crispina; Ponto
de Isaura Araújo Silva.
12- Rio Vermelho: Acarajé da Dinha e outro ponto de Regina.
13- Pituba: quiosque das baianas, onde se encontra D. Lindinalva.
14- Piatã: Maria de Lourdes dos Santos.
15- Itapoã: Acarajé de Cira e ponto de Maria de Jesus Cerqueira (afilhada da mãe de
Cira) e de sua irmã Tânia.
16- Alto do Cabrito: Damiana Martins Santos, na porta de casa.
17- Ribeira: Eliete Maria, em frente ao Quiosque do Moreno.
18- Abará da Liberdade.
291
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