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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E
INSTITUCIONAL
Maria Aparecida Loss
AS POSSIBILIDADES DO ENGRAVIDAMENTO NA ADOLESCÊNCIA:
um desafio à integralidade nas práticas em Saúde Pública
Porto Alegre
2006
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Maria Aparecida Loss
AS POSSIBILIDADES DO ENGRAVIDAMENTO NA ADOLESCÊNCIA
um desafio à integralidade nas práticas em Saúde Pública
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Psicologia Social e Institucional. Programa de
Pós Graduação em Psicologia Social e
Institucional. Instituto de Psicologia.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador(a) Clary M. Sapiro
Porto Alegre
2006
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Dedico este trabalho à memória de
Nestor Nelson Loss
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro, lugar ao Programa de Pós-graduação e à Professora Clary
Sapiro por ter aceitado meu Projeto de Pesquisa, acreditado no meu investimento de
tempo e de estudo, apesar da restrição imposta pela carga horária de trabalho.
Agradeço também aos colegas do Centro de Saúde Bom Jesus, da Unidade de Saúde
Morro Santana e da Equipe de Saúde Mental que compartilham comigo dessas
experiências de trabalho relatadas nesse percurso de investigação.
À Nara, pela sua compreensão e apoio; à Clarice e Ana Paula pelo acompanhamento e
leitura de trechos do trabalho, pelas observações e indagações.
E agradeço, especialmente, aos adolescentes, sujeitos desse estudo, e também a
todos os adolescentes que interrogam a minha prática e as práticas de trabalho na
Saúde Pública.
À memória de Rafael, que deixou seus desenhos, suas histórias e um tratamento por
continuar...
À Michele, Camila, Cristiane, Jéssica, Aline, Pâmela, Jaqueline, Bruna, Mirziane,
Elisângela, Renata, Tatiane, Valéria, Vânia, Rosa, Angela, e também Zéca, Rogério,
William, Cleberton, César, Roger, Fernando, Jonathan, Dione, Rodrigo, Rodolfo ...
Todos os pais foram filhos, muitos filhos vêm a ser pais, mas uns
esqueceram-se daquilo que foram, e aos outros não há ninguém que possa
explicar-lhes o que serão.
(José Saramago)
SUMÁRIO
P.
RESUMO.............................................................................................................. 12
ABSTRACT.......................................................................................................... 14
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 15
1.1. APROXIMAÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA............................................. 19
1.2. A ESPECIFICIDADE DO OBJETO................................................................ 25
2. MÉTODO.......................................................................................................... 28
2.1. OS PASSOS METODOLÓGICOS................................................................. 33
3. DESCRIÇÃO DO CONTEXTO......................................................................... 37
3.1. O CAMPO DA SAÚDE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS................................... 38
3.1.1. Sobre as CNS e o nascimento do SUS................................................... 39
3.1.2. O reordenamento da saúde em Porto Alegre......................................... 49
3.1.3. Acolhimento: a construção de um conceito.......................................... 53
3.1.4. Como surgem os Programas de Saúde.................................................. 63
3.2. SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ADOLESCENTES........................ 67
3.3. O SERVIÇO (Equipe de Saúde Mental)........................................................ 78
3.3.1. A população.............................................................................................. 79
3.3.2. Como se dá o acesso ao serviço............................................................ 82
3.3.3. O grupo de acolhimento em saúde mental............................................ 86
3.3.4. Relato de uma experiência de acolhimento........................................... 89
4. HISTÓRIAS E FICÇÕES DE ADOLESCENTES............................................. 96
4.1. HISTÓRIAS CONTADAS............................................................................... 97
4.1.1. Da latência à adolescência...................................................................... 100
4.1.2. Como se utiliza o recurso do desenho para construção da narrativa 104
4.1.3. Renata........................................................................................................ 106
4.1.3.1. Uma breve descrição do contexto familiar............................................... 106
4.1.3.2. O desenho...............................................................................................
4.1.3.3. A narrativa................................................................................................
4.1.4. Andressa....................................................................................................
4.1.4.1. Uma breve descrição do contexto familiar...............................................
4.1.4.2. O desenho...............................................................................................
4.1.4.3. A narrativa................................................................................................
4.1.5. Priscila ......................................................................................................
4.1.5.1. Uma breve descrição do contexto familiar...............................................
4.1.5.2. O desenho...............................................................................................
4.1.5.3. A narrativa................................................................................................
4.1.6 A análise de conteúdo...............................................................................
4.2. VERSOS ESCRITOS.....................................................................................
4.2.1. Descrição da atividade em grupo............................................................
4.2.2. O que dizem os versos de rap: Ane, Larissa e Vanessa.......................
4.2.3. A análise de conteúdo..............................................................................
108
109
110
110
111
112
114
114
116
117
118
125
125
127
137
5. ANÁLISE DOCUMENTAL................................................................................ 141
5.1. DADOS E LEVANTAMENTOS ACERCA DA SAÚDE SEXUAL................... 142
5.1.1. Alguns dados históricos sobre saúde da mulher................................. 145
5.2. PRIMEIRO DOCUMENTO............................................................................. 147
5.2.1. A análise do primeiro documento........................................................... 148
5.2.1.1. Justificativa para prestação da assistência ............................................. 148
5.2.1.2. A relação entre partos e a contaminação pelo HIV................................. 149
5.2.1.3. A banalização da relação sexual............................................................. 151
5.3. SEGUNDO DOCUMENTO............................................................................ 152
5.3.1 A análise do segundo documento........................................................... 156
5.3.1.1. O protagonismo da mulher ou invasão da figura materna....................... 156
5.3.1.2. O privilégio da informação....................................................................... 159
5.3.1.3. A ênfase no Real.....................................................................................
6. CONCLUSÃO...................................................................................................
7. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS................................................................
APENDICE A........................................................................................................
APENDICE B........................................................................................................
APENDICE C........................................................................................................
APENDICE D........................................................................................................
APENDICE E........................................................................................................
ANEXO A..............................................................................................................
ANEXO B..............................................................................................................
ANEXO C..............................................................................................................
161
165
169
177
178
184
188
189
190
192
194
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Desenho de Renata......................................................................................108
Figura 2. Desenho de Andressa...................................................................................111
Figura 3. Desenho de Priscila.......................................................................................116
LISTA DE TABELAS E QUADROS
Quadro 1 Síntese das CNS............................................................................48
Quadro 2 Análise das narrativas...................................................................188
Quadro 3 Análise documental.......................................................................189
LISTA DE ABREVIATURAS E DE SIGLAS
AIDS- Acquired Imuno Deficiency Syndrome
AIH- Autorização de Internação Hospitalar
AIS- Ações Integradas de Saúde
CIMS- Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde
CIS- Comissão Interinstitucional de Saúde
CDS- Conselho Distrital de Saúde
CLS- Conselho Local de Saúde
COISA- Comitê de Informações sobre Saúde na Adolescência
CMS- Conselho Municipal de Saúde
CMS (1ª; 2ª; 3ª)- Conferência Municipal de Saúde
CNS- Conferência Nacional de Saúde
COAS- Centro de Orientação e Aconselhamento Sorológico
CTA-HIV- Centros de Testagem e Aconselhamento para HIV
CRAE- Centro de Referência Infanto-Juvenil
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
DST- Doenças Sexualmente Transmissíveis
FASC- Fundação de Assistência Social e Comunitária
FASE- Fundação de Assistência Sócio-Educativa
HMIPV- Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas
LA- Liberdade Assistida
LOAS- Lei Orgânica de Assistência Social
MP- Ministério Público
MS- Ministério de Saúde
NASCA- Núcleo de Atenção à Saúde da Criança e Adolescente
NASF- Núcleo de Apoio Sócio-Familiar
NTAHA- Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento
OMS- Organização Mundial de Saúde
OPAS- Organização Pan-americana de Saúde
Pacs- Programa de Agentes Comunitários de Saúde
PAICA- Programa de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente
PAIGA- Programa de Atenção Integral à Gestante Adolescente
PAISA- Programa de Atenção Integral à Saúde do Adulto
PAISC- Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança
PAISM- Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher
PAST- Programa de Atenção à Saúde do Trabalhador
PEMSE- Programa de Execução de Medidas Socio-Educativas
PNH- Programa Nacional de Humanização
PROSAD- Programa de Atenção à Saúde do Adolescente
PSC- Prestação de Serviços à Comunidade
PSF- Programa de Saúde da Família
SASE- Serviço de Apoio Sócio-Educativo
SMS- Secretaria Municipal de Saúde
SPA- Substância Psico-Ativa
SUDS- Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
SUS- Sistema Único de Saúde
UBS- Unidade Básica de Saúde
RESUMO
Este estudo partiu da prática psicológica no atendimento de adolescentes em um
serviço de saúde mental coletiva na cidade de Porto Alegre.
O tema investigado é o processo da adolescência em sua multiplicidade e
abrangência, considerando as experiências de engravidar, a construção da sexualidade
e os contextos sociais populares. Além disso, o campo da Saúde Pública, as políticas
públicas e o lugar ocupado pela saúde mental, constituem os eixos de abordagem.
Destacou-se a importância das relações de gênero sob o viés da teoria
psicanalítica, redefinindo o lugar e a posição subjetiva do(a) adolescente, onde a
recapitulação da diferença sexual anatômica produz novos efeitos imaginários para o
masculino e o feminino. Há um conjunto de situações e acontecimentos que são
próprios tanto da maturação pubertária e das transformações biológicas, quanto dos
novos modos de viver essas transformações, estabelecer parâmetros de gênero e
habitar um corpo sexualmente maduro com relação à aptidão reprodutiva.
Para a coleta de dados, utilizou-se a descrição de caráter etnográfico como
forma de circunscrever os domínios para a observação de campo e, partindo da técnica
do estudo de caso, onde o serviço de atendimento psicológico para adolescentes em
uma equipe de saúde mental foi o foco, estabeleceu-se uma triangulação entre
diferentes fontes de evidência, tais como: as narrativas individuais, a atividade nos
grupos e a análise documental. A análise de conteúdo tornou-se a estratégia para
identificar as categorias emergentes e interpretá-las à luz da psicanálise.
Enfatiza-se os aspectos subjetivos e inconscientes que envolvem a procriação
humana, sugerindo o neologismo “engravidamento” como um processo psíquico na
adolescência.
Como resultado, propõe-se a constituição de intervalos temporais (ato, dúvida,
cogitação e certeza) para o processo de engravidamento e problematiza-se o
tratamento do problema como epidemia, principalmente quando o foco volta-se para os
bairros populares do meio urbano e para a Saúde Pública. Discute-se o paradoxo da
condição adolescente, quando a adolescente “antecipa-se” a concluir, sem a
verificação” e “precipita-se” na experiência sem “se previnir”, revelando-se duas
inadequações nas práticas de saúde: o ideal higienista com a vigilância do corpo
feminino, por um lado e a fragmentação das políticas de saúde, por outro.
Descritores: Gravidez na adolescência. Sexualidade feminina. Saúde Pública.
Processos psíquicos.
ABSTRACT
This study started from the psychological practice on the teenagers’ attendance in
a collective mental health system in the city of Porto Alegre.
The researched theme is the adolescence process in its multiplicity and
comprehension, considering the experiences of becoming pregnant, the sexual building
and the popular social contexts. Moreover, the Public Health field, the public policies
and the place taken by mental health, constitute the approach shafts.
The importance of gender relations on the perspective of the psychoanalyst
theory was pointed out, redefining the place and subjective position of the teenager,
where the recapitulation of the anatomic sexual difference produces new imagining
effects for the masculine and the feminine. There is a whole of situations and events
which are typical of not only the puberty maturation and biological transformations, but
also from the new ways to live these transformations, establish gender parameters and
inhabit a sexually mature body in relation to the reproductive aptitude.
For the data collection, a description of the ethnographic character as a way of
circumscribe the domains for the observation of the field was used and, starting from the
case study, in which the psychological attendance for teenagers’ service in a mental
health team was the focus, it was established a triangulation between different sources
of evidence, such as: the individual narratives, the activities in the groups and the
documental analysis. The content analysis became the strategy for identifying the
emerging categories and interpreting them to the light of psychoanalysis.
The subjective and unconscious aspects are emphasized, which involve the
human procreation, suggesting the neologism “pregnancy” as a psychic process in
adolescence.
As a result, it is proposed the constitution of temporal gaps (act, doubt, cogitation
and certainty) for the process of pregnancy and the problem treatment as epidemic is
turned to a problem, mainly when the focus turns to the popular neighborhoods in the
urban area and for the Public Health. The paradox of adolescent condition is discussed,
when the teenager “starts earlier” to conclude, without the “verification” and “antecedes”
in the experience without “preventing themselves”, revealing two inadequacies in the
health practices: the hygienist ideal to the feminine body vigilance, on one side and the
fragmentation of health policies, on the other.
Key words: Pregnancy in adolescence. Feminine Sexuality. Public Health. Psychic
Processes.
15
INTRODUÇÃO
Essa pesquisa é fruto de um processo de aprendizagem, envolvendo ensaios e
erros, operações lógicas e cronológicas, curiosidade e inventividade, foco e devaneio,
aproximações sucessivas e digressões reflexivas, atividade constante de escritura e
interlocuções intermitentes, experiências concretas e vivências lúdicas, material objetivo
e campo subjetivo. Enfim, compõem esse trabalho, como veremos, uma sucessão de
histórias, relatos, narrativas, desenhos, discursos e escritas. E, para usar uma
terminologia mais adequada a um relato de pesquisa, esse trabalho incluiu “dados” e,
portanto, as atividades de observação, seleção, coleta, além de instrumentos,
procedimentos, análise e síntese.
O tema investigado é o processo da adolescência em sua multiplicidade e
abrangência, considerando as experiências de engravidar, a construção da sexualidade
e os contextos sociais populares. Além disso, o campo da saúde pública, as políticas
públicas e o papel da saúde mental nesse contexto, constituem os eixos de abordagem.
O ponto de partida: a experiência de trabalho no campo da saúde municipal, mais
especificamente em um Centro de Saúde Municipal situado em uma vila na cidade de
Porto Alegre, em uma equipe de saúde mental, circunscrevendo o período de 2003 e
2004, para a etapa de pesquisa que envolveu a seleção dos sujeitos participantes
16
(conforme capítulo três, tópico 3.3, sobre a apresentação da Equipe de Saúde Mental e
capítulo quatro, sobre as atividades com os adolescentes).
Nesse local, a partir de 1999, e seguindo a reestruturação dos serviços a partir
da municipalização plena de saúde em 1996 (ver capítulo três, tópico 3.1), organizou-se
uma equipe de saúde mental e, em 2000, teve início um projeto de Acolhimento para
todos os usuários, a partir da formação de grupos, por faixa etária. Assim, o
acolhimento em saúde mental para adolescentes tornou-se um dos pontos a serem
explorados nessa investigação.
A noção de “acolhimento” passou a ter importância e destaque no campo da
Saúde Pública, a partir do seu entendimento enquanto diretriz de humanização no
acesso do cidadão ao serviço de saúde, reafirmando os princípios do SUS (Sistema
Único de Saúde) e adquirindo, dessa forma, estatuto de conceito, explorado no capítulo
três (tópico 3.1.3) desse trabalho.
A experiência profissional, junto aos adolescentes dos bairros populares no meio
urbano
1
em Porto Alegre, veio a produzir esse recorte a respeito das possibilidades do
engravidar como um processo de construção da sexualidade feminina, a partir da
puberdade. Constituiu-se assim, desde uma prática de trabalho, o campo delimitado
para essa investigação, onde as interrogações são exploradas de forma retrospectiva.
Ou seja, optou-se selecionar entre o material de atendimento clínico, três adolescentes
que realizaram consultas individuais no ano de 2003 e três adolescentes participantes
de uma atividade em grupo, no ano de 2004 (ver capítulo quatro).
1
A opção para essa terminologia deve-se a Fonseca (2000). Durante o texto, mantém-se diferentes
denominações para as “classes populares”, na medida em que se levam em consideração os diversos
discursos que colocam em evidência o valor da questão social. Faz-se essa discussão no terceiro
capítulo (3.2). Na página 22, a seguir, menciona-se uma tipologia para os diferentes setores sociais
apresentada por Stern (1995), que utiliza os termos “meio urbano-marginal” e “urbano-popular”.
17
Nesse momento de apresentação de uma investigação terminada, pode-se dizer
que o efeito, produzido pela necessidade de sistematizar a riqueza das experiências
que se desvelavam, a partir da seleção do material contido em prontuários (chamados
“fichas de atendimento”), foi a configuração do método. De que forma? Em primeiro
lugar, a escolha do estudo de caso, enquanto uma técnica mais adequada para a
análise dos casos individuais, provou sua relevância também para o estudo de um
coletivo, tendo sua validade científica ancorada na construção de procedimentos para a
triangulação dos dados (Yin, 2002 e Stake, 1994), conforme desenvolvemos no capítulo
dois.
Assim, esse estudo remeteu-se ao serviço de atendimento psicológico para
adolescentes em uma equipe de saúde mental, a partir da interface entre o processo da
adolescência e a construção da sexualidade feminina nas classes sociais populares. E,
se “o caso” é uma entidade complexa, operando dentro de vários contextos (Stake,
1994), optou-se em destacar essa diversidade, a partir das várias fontes de dados, tais
como:
a) As evidências das práticas contextualizadas, o recorte da clínica em saúde
mental, a organização dos serviços e das políticas municipais (saúde da mulher,
saúde mental, saúde do adolescente etc, conforme tópico 3.1.4);
b) Os sujeitos “adolescentes” e os modelos de atenção em saúde, onde
“sexualidade e procriação” não faziam parte do modelo de atenção em saúde
mental (tópico 3.3);
18
c) Os documentos e manuais de orientação que, desde a gestão federal,
propunham abordagens para saúde da mulher, para saúde reprodutiva, para o
planejamento familiar e
d) Além disso, em 2004, o destaque para a visibilidade da mulher a partir da 1ª
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, onde a elaboração do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres viabilizou a criação da Norma Técnica de
Atenção Humanizada ao Abortamento
2
(NTAHA).
Enfim, foi nessa diversidade de contextos, com essa tessitura de fios e de linhas,
que se tentou seguir um traçado e estabelecer uma “costura”.
Além disso, o objeto dessa pesquisa – o processo de engravidamento na
adolescência, estava atravessado por esses outros enfoques relativos às investigações
sobre a “gestação precoce”, através de abordagens (quantitativas e qualitativas) e
levantamentos anteriores.
Com a leitura de diversos trabalhos, notou-se que a preocupação de muitos
pesquisadores voltava-se aos índices de gestação na adolescência, com um número
expressivo de pesquisas quantitativas e o tratamento do problema como epidemia,
principalmente quando o foco era as comunidades “de periferia” e a Saúde Pública
(Camarano, 1998; Gama, 2002; Carvalho, 2002)
3
. Isso demonstrava a necessidade de
novas abordagens e estudos sobre o tema.
A realidade das pesquisas na área da Saúde Pública sobre a gestação na
adolescência tomava uma proporção polêmica e alarmista, na medida em que cresciam
2
Ver capítulo cinco e Anexo C sobre a Portaria 1508/2005, que inclui a interrupção da gravidez nos
casos previstos em lei, sem a necessidade de um Boletim de Ocorrência (B.O.).
3
Ver capítulo três, tópico 3.2.
19
os índices e o controle epidemiológico, na mesma proporção em que se questionavam
as políticas e programas de planejamento familiar, de controle de natalidade, além das
noções de direitos sexuais e de direitos reprodutivos.
1.1. A APROXIMAÇÃO DO OBJETO ATRAVÉS DOS RELATOS ATUAIS DE
PESQUISA
O interesse em apresentar outras investigações sobre o tema da gestação na
adolescência é contextualizar a produção teórica existente e demonstrar a
especificidade da construção do objeto dessa pesquisa. Observa-se que os estudos
qualitativos dividem-se quanto à ênfase ora sobre as questões de gênero, ora sobre as
diversidades culturais e de classe social, ora sobre aspectos do desenvolvimento, com
destaque para o enfoque pedagógico ou educacional.
Sob esse último enfoque, Maria Carvalho Sant’Anna (2001) chama a atenção
sobre o início cada vez mais precoce da puberdade e da idade da menarca, o que tem
acarretado uma antecipação da iniciação sexual, mas não uma antecipação da
maturação emocional, portanto alguns fatores de imaturidade emocional podem ser
decisivos para a ocorrência de uma gestação: pensamento mágico, confirmação da
fertilidade, agressão aos pais, sentimento de culpa, desejo de ser mãe (decorrente e
como solução para suas dificuldades no relacionamento familiar, carência afetiva e
baixa auto-estima). Aponta ainda para uma correlação entre baixa escolaridade e
iniciação sexual precoce.
20
A pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP Gabriela Calazans
4
, citada
por Pimenta & Rios et al (2002, p. 49) produz respostas que têm nos estudos de gênero
seu mais forte argumento:
(...) acredito que devemos investigar melhor qual o sentido dessa experiência,
especialmente para as jovens pobres do sexo feminino. Às vezes, construo a
hipótese de que, nas situações em que essa experiência é desejada, tal
escolha está associada à desvalorização, ou descrença, nas possibilidades de
inserção na sociedade num padrão moderno, vinculado à profissionalização e à
escolarização, atendo-se, então, ao padrão tradicional de valorização feminina
por meio da experiência da maternidade. Assim, em paralelo à proposição de
construção de redes sociais de apoio aos jovens que optam pela gravidez,
maternidade e paternidade na adolescência, acredito que se tornam
necessárias a investigação e a intervenção sobre a valorização social dos
jovens pobres e a construção de alternativas de vida para esse grupo. (Pimenta
& Rios et al 2002, p. 49)
Nesse enfoque, muitos trabalhos salientam a necessidade de se prestar atenção
às atitudes, práticas e representações masculinas sobre a gravidez, investigando a
paternidade jovem e estudando as relações de gênero (Lyra, 1997; Medrado & Lyra,
1999), ou apontando para a necessidade de que os homens/rapazes sejam incluídos na
análise e nas estratégias de ação sobre a questão da gravidez na adolescência (Arilha
& Calazans, 1998; Leal & Fachel, 1999).
Entre os trabalhos que valorizam o enfoque sobre os meios culturais, as
pesquisas antropológicas sugerem que se deve ter em mente a relação entre
adolescência e organização familiar: o lugar do/a adolescente na família e a
reorganização de unidades domésticas. Leal & Fachel (1999) interrogam-se sobre a
4
A citação constitui uma fala em entrevista realizada pelas autoras referidas, para fins de pesquisa.
21
possibilidade da gravidez adolescente ser um marco para o sujeito se desvincular da
família de origem, ou uma estratégia para a construção de novos grupos familiares e
novas redes sociais.
Alberto Olavo Reis afirma que, nos últimos anos, vem crescendo o número de
gestantes adolescentes sem parceiro fixo ou sem companheiro. Enquanto nos anos 70
e 80 - no Brasil - a gestação na adolescência ocorria dentro do matrimônio e tinha um
forte apelo moral e também legal para a responsabilidade do pai, hoje em dia é comum
ocorrer uma repetição, ou seja, uma nova gestação tentando fundar um laço
matrimonial e, na maioria das vezes, sem sucesso. O autor salienta que esse fenômeno
é facilmente observável nas classes populares (Reis, 1998).
Existem culturas para as quais a maternidade aparece como fato consumado,
como destino para uma mulher, assegurando padrões tradicionais anteriores à
chamada revolução reprodutiva do século XX (Fuller, 2001; Coll, 2001).
Para Fuller (2001) é importante demarcar que a organização social
contemporânea vem produzindo uma virada no eixo que historicamente ordenava a
identidade feminina. Segundo essa autora, a maternidade deixou de ser, para muitas
mulheres, o principal sentido de suas vidas, entretanto a possibilidade de acesso a
novas opções e novos projetos de vida (como a participação política, o trabalho, os
estudos) não se abre de modo uniforme para as mulheres dos diferentes setores
sociais e grupos étnicos.
Além disso, considerando a adolescência, se a maternidade não se constitui
mais como o único pilar da identidade feminina, isso viabiliza que a passagem para a
vida adulta não se dê através da reprodução, como nas sociedades tradicionais, mas
possa percorrer outros caminhos (Fuller, 2001).
22
Passando dos estudos culturais para uma ênfase mais forte sobre as diferenças
de classe social, pode-se acrescentar ainda os trabalhos de Coll (2001) e algumas
análises propostas por Fonseca (2000).
Stern (1995)
5
, citado por Coll (2001, p. 433-434), estabelece uma tipologia para
os diferentes setores sociais, dos quais destaca-se três, onde diferentes fatores
contribuem para uma freqüência maior de adolescentes gestantes: o setor rural
tradicional; o setor urbano-marginal e o setor urbano-popular. Percebe-se, nesse
trabalho, a forte ênfase às diferenças de classe social.
No primeiro, segundo interpreta Coll (2001), a própria adolescência não tem
valor, pois muito precocemente se assumem responsabilidades familiares e laborais,
sendo a maternidade, antes dos 18 anos, considerada um evento normal e esperado.
No segundo, a insegurança laboral, as várias performances da violência e o
desenraizamento cultural – fruto das inúmeras migrações – levam muitas jovens a
procurar na maternidade uma saída num contexto de falta de opções.
No terceiro, predominam normas contraditórias entre as famílias com relação ao
exercício sexual para os filhos, ao uso de preservativos ou métodos anticonceptivos e à
educação sexual, gerando concepções falsas ou conflitantes e expondo as
adolescentes que engravidam à prática de aborto ou uniões insatisfatórias ou
maternidades solteiras.
Fonseca (2000) refere-se a um silêncio discursivo dos pesquisadores da
antropologia e da sociologia em torno do tema “popular”, o qual teve seu apogeu nos
anos 80 e que, na atualidade, a aposta está nos estudos étnicos. A autora afirma que
5
Stern, C. Embarazo adolescente: significado e implicaciones para distintos sectores sociales. Demos,
Vol 8, 11-12: México, 1995.
23
no Brasil, as análises ‘dos grupos marginais’ mantêm o cunho pragmático, ou seja, a
busca de soluções dos problemas sociais, sem aprofundar a compreensão das
alteridades inscritas no jogo da estratificação social e sem levar em conta a negociação
das fronteiras simbólicas na sociedade de classes.
A nossa tese principal é de que há elementos no caldeirão cultural brasileiro
que não podem ser explicados segundo as categorias usuais da etnologia –
etnia, sexo, religião, região – e só compreensíveis, em suma, levando-se em
conta a tradição das classes populares. Além disso, sugerimos que muitas
dessas práticas, longe de estarem desaparecendo, absorvidas pelo grande
avanço da modernidade, florescem e se transformam conforme uma lógica que
continua distante da dos planificadores, uma lógica que permanece opaca ou
invisível para boa parte dos analistas científicos. Enquanto esses se interrogam
cada vez mais sobre as identidades étnicas, as diferenças sexuais e a
identidade regional, a questão de uma cultura de classe é pouca examinada ou
completamente ignorada. (Fonseca, 2000, p. 212-213).
Sem esquecer das investigações na área da saúde (ver também capítulo três,
tópico 3.2), ainda faz-se necessário situar a abordagem complexa do estudo de
Pimenta & Rios et al (2002), que se apresenta abaixo, e dos trabalhos de investigação
que levam em conta propostas de intervenção. Simone Monteiro (1999), pesquisadora
da Escola Nacional de Saúde Pública, explicita que os aspectos normativos e
prescritivos das ações em saúde são predominantes, mas que as propostas de
intervenção deveriam ser desenvolvidas a partir do entendimento da lógica que rege o
comportamento dos adolescentes e dos grupos, tentando estabelecer como ela é
gerada, como se constitui e como se mantém.
24
Cristina Pimenta e Luis Felipe Rios (2002) associados a Richard Parker e a um
projeto da Unicamp com instituições internacionais de pesquisa (“Center for Sexual
Health Research of the University of Southampton”, “Center for Population Studies at
the London School of Hygiene and Tropical Medicine” e o “Thomas Coram Research”)
identificaram, a partir de uma análise contextual de diversos estudos sobre a gestação
na adolescência, os seguintes tópicos para a realização de investigações mais efetivas
acerca desse tema:
a) a necessidade da problematização do conceito de adolescência / juventude,
ultrapassando as limitações impostas pela visão médico-biológica; b) o
incremento na utilização de abordagens teóricas que permitam a exploração
dos contextos da atividade sexual, das identidades sexuais em interface com as
identidades socioculturais várias e dos significados que remetam à saúde
sexual e reprodutiva dos jovens; c) a necessidade de desenvolver perspectivas
metodológicas que vão além da capacidade de gerar dados concernentes à
freqüência de comportamentos sexuais específicos para comparação relativa,
considerando, sobretudo, os processos sociais e culturais que ajudam o jovem
a dar sentido a seus desejos sexuais, sentimentos e interesses. (Pimenta &
Rios et al, 2002, p. 54)
Após esse elenco de investigações precedentes, pode-se afirmar que na
perspectiva da presente pesquisa, a gestação na adolescência e suas manifestações
singulares (desejo ou demanda, alteridade ou geração, antecipação ou verificação,
cuidado ou risco) fazem parte de um contexto histórico e cultural específico, onde
estarão presentes as questões de gênero, de desenvolvimento, de etnias e de classe
social, entretanto a ênfase desse trabalho está nos processos psíquicos.
25
1.2. A ESPECIFICIDADE DO OBJETO DESSA PESQUISA
Duas noções foram investigadas a partir dessa temática: a sexualidade e a
função do engravidamento na adolescência; o contexto intergeracional de transmissão
de saber e a forma como os trabalhadores e técnicos de Saúde Pública comunicam e
informam os(as) adolescentes sobre saúde sexual e reprodutiva (ver capítulo cinco).
No capítulo quatro, através da análise de três histórias ficcionais contadas por
adolescentes e também com a análise de três letras de rap produzidas no âmbito de um
grupo terapêutico, trabalha-se a noção de engravidamento e discute-se sua função
como um processo de elaboração psíquica, onde está em jogo também o efeito
imaginário da linhagem e da herança geracional.
No capítulo cinco, o conteúdo de dois documentos provenientes do Ministério de
Saúde é analisado, procurando as balizas para a capacitação e para as práticas e
intervenções dos profissionais em saúde reprodutiva direcionada aos adolescentes.
Além disso, procura-se demonstrar que as possibilidades do engravidar na
adolescência articulam-se aos modos singulares de viver essa passagem, definindo os
processos subjetivos de construção e representação da feminilidade, nos bairros
populares do meio urbano, como determinantes para a noção de engravidamento.
O termo “engravidamento” (como um neologismo) foi adotado nesse trabalho por
dois motivos:
26
- Primeiro, porque permite delimitar a sutileza de um processo que coloca a
adolescente diante da dúvida quanto a sua condição de possibilidade de
procriação, inaugurada na puberdade e instaurada pela atividade sexual,
produzindo um efeito de disjunção entre “a possibilidade de engravidar” e a
“possibilidade de tornar-se grávida”
6
.
- Segundo, porque o tema da gestação ou da gravidez na adolescência vem
sendo de tal forma debatido, que corre um sério risco de ser banalizado. O
estranhamento causado por esse neologismo pode ajudar a tratar dessa
temática tão delicada, permitindo descentrar a palavra em relação ao significado
por ela representado, o nome em relação à idéia, ou seja, destacando a
“invenção” da palavra e instaurando interrogações.
A noção de engravidamento passa a ser um processo vinculado eminentemente
à experiência feminina, porque implicaria uma transformação no “corpo feminino”: a
fecundação e o início do estado de gravidez. Para as adolescentes, que ensejam uma
atividade sexual sem usar nenhum método anticonceptivo, surge uma interrogação:
como saber se ocorreu uma fecundação? As possibilidades de procriação ensejadas
em ambos os corpos, feminino e masculino, teriam como conseqüência: o
engravidamento do corpo feminino. Esse processo teria início numa hipótese e numa
expectativa/espera que seria resolvida num tempo posterior.
6
Pode-se falar também sobre o efeito de uma decalagem entre o simbólico e o real, onde o
engravidamento como processo psíquico permanece como possibilidade ou contingência ficcional para
um novo arranjo imaginário e simbólico do corpo na adolescência (mais simbólico do que imaginário, na
medida em que supõe o eixo significante do desejo enquanto falta para ser) e a gravidez como resto,
como transformação em curso e sobredeterminação sem retorno (tal qual o corpo em puberdade). Ver
capítulo quatro.
27
A noção de processo pressupõe uma sucessão de estados ou mudanças
produzidas numa passagem de tempo ou evolução. Portanto, dentre os objetivos dessa
investigação propõe-se identificar os intervalos temporais para o processo de
engravidamento na adolescência a partir da noção psicanalítica de tempo lógico
(Lacan, [1966] 1978), onde o instante do ato sexual (sem a utilização de métodos
anticoncepcionais) dá início à implicação subjetiva com esse ato, através da dúvida
(estar ou não estar grávida), passando por um tempo de espera e de cogitação (fiz,
logo estou) até a certeza antecipada que instaura a asserção subjetiva (ver tópico 4.2).
Para refinar ainda mais esse processo, é preciso considerar que a posse dessa
gravidez (possível, contingente ou necessária) no corpo feminino faz toda a diferença
nos modos de agir dos adolescentes do sexo masculino e feminino, ou seja, na
implicação subjetiva para os sujeitos de ambos os sexos, entretanto - por hora - nesse
estudo privilegia-se o gênero feminino. Portanto, importam aqui as implicações
subjetivas para as adolescentes quanto às possibilidades singulares de realizar uma
passagem de um “estado de espera” (um estado contingente, antecipatório) para um
“estado de confirmação” da gravidez (estado de afirmação ou certeza de uma gestação
em curso). Outro processo que, por hora, não foi trabalhado, diz respeito à experiência
gestacional propriamente dita e a passagem pelas três fases: ovular, embrionária e fetal
até o nascimento (parto) e, com isso, o acesso ao “estado de maternidade”.
As possibilidades do engravidar na adolescência, quando - em geral – a gravidez
adolescente é suposta na nossa cultura como “precoce” e de “risco”, vêm se articular
aos modos de viver essa passagem, ou melhor, de viver um outro processo que
costuma-se chamar “adolescência”. Portanto, faz-se necessário problematizar tanto
28
esta noção de um tempo precoce, quanto a própria noção construída culturalmente
para a juventude: a adolescência (ver tópicos 3.2 e 4.1.1).
Pode-se considerar que a lógica da procriação vem-se estabelecer através do
convívio entre gerações, a linhagem familiar e a filiação. Uma expectativa ou demanda
intergeracional pode ser suposta, por exemplo, quando um genitor (a mãe), ou
progenitor (a avó) estabelecem normas ou cuidados para a menina, a partir da
menarca. Sendo a menarca um signo definitivo da presença, no corpo da púbere, de
um útero e da conseqüente possibilidade de procriação, também se pode supor que há,
nessas circunstâncias, um saber feminino que se transmite na cadeia geracional avó-
mãe-filha. Nesse sentido, o engravidamento na adolescência é vivido de forma singular,
mas vem dar conta de um laço coletivo e de uma herança intergeracional
7
.
2. MÉTODO
Neste capítulo pretende-se radicalizar a concepção de que uma pesquisa não se
esgota, nem termina, com um relato; apenas seu relato vem apresentar um testemunho
de uma investigação produzida num espaço e tempo bem delimitados. Pretende-se,
portanto destacar o atravessamento entre o tempo e o espaço que foi constituinte
desse trabalho, apontando para uma reflexão sobre as acepções da palavra método.
Dessa forma, um bom exemplo para aproximar as noções de tempo e espaço poderia
ser a noção de deslocamento, caminho, trajetória ou percurso, na medida em que é
7
Remete-se o leitor às análises do capítulo quatro (tópico 4.2).
29
sobre um movimento de um ponto ao outro que tais noções podem ser
redimensionadas.
Ter um caminho a percorrer, planejar o deslocamento, a direção e o sentido a
seguir, não explicitam cada passo, pois trilhar um caminho é sempre uma experiência
única.
Com o passar do tempo, os passos dados no caminho escolhido para fazer o
percurso dessa investigação foram efetivando uma mudança. Essa mudança teve um
caráter subjetivo, e um objetivo. Primeiro, foi preciso sair da posição de trabalhador de
saúde e assumir a posição de pesquisador
8
; da mesma forma, em segundo lugar, foi
preciso transformar o que era experiência de trabalho, em pesquisa e o que era prática,
em investigação.
O interesse em investigar produz-se desde uma inquietação, ou curiosidade, a
partir de uma interrogação ou de um olhar que busca aprimorar o foco. A interrogação e
o foco acabam por se transformar em “problema de pesquisa”. Pode parecer estranho
falar de “problema”, nesse momento em que se finaliza o relato de uma pesquisa, mas
justamente por esse motivo, retornar um pouco no tempo e contar a história dessa
investigação reconstituem “um fazer metodológico”.
Parte-se da pergunta ou problema que orientou essa jornada, produzindo o foco
necessário sobre o objeto estudado:
8
É preciso ressaltar que assumir a posição de pesquisadora, na interface entre o lugar que se ocupa
como profissional e o cotidiano da prática de trabalho, é totalmente diferente de uma investigação
conduzida por um pesquisador que sai a campo em busca ou à procura de dados. Lacan ([1964]1988)
propõe que na pesquisa científica é importante diferenciar dois domínios: um domínio em que se procura
e o outro em que se acha (p.15), concluindo que ambos estão atrelados ao desejo do pesquisador.
30
De que forma essa investigação pode auxiliar na caracterização de um processo
que, por definir-se “entre-atos” (fabulação
9
e expectativa; confirmação ou não da
gravidez; manutenção ou interrupção), nomea-se “engravidamento”?
Além dessa pergunta, que conduziu a investigação, outras indagações
pertinentes ao campo de experiência e de trabalho surgiram, ora com o foco sobre os
sujeitos, ora com o foco sobre as Políticas Públicas:
a) Por que uma adolescente se antecipa diante do efeito pubertário que
produz sua possibilidade de engravidar e em que contexto social e
intergeracional isso ocorre?
b) Por que algumas adolescentes se engajam na maternidade, enquanto
outras – que compartilham da mesma realidade social – não se
engajam? Qual o valor que essa experiência tem nessas comunidades?
c) De que forma a Saúde Sexual e Reprodutiva, a Educação Sexual e os
Programas de Planejamento Familiar, no âmbito da Saúde Pública,
podem desprender-se do ideal higienista, pautado por repetidas
informações e prescrições de cuidados, os quais têm na esfera dos
9
Estamos utilizando esse termo na tentativa de salientar que o momento de dúvida sobre a concepção
inspira uma narrativa ficcional, no sentido de produção imaginária, ou seja, há algo que impele o sujeito a
conjeturar. Chemama (2002) define o termo ficção como estando para além do erro ou da exatidão: seria
“toda construção linguageira pela qual, de maneira mais ou menos direta e mais ou menos manifesta,
tentamos suturar a hiância sexual”. (p. 295)
31
comportamentos e na vigilância do corpo feminino suas únicas
estratégias?
d) Como efetivar, no SUS, práticas específicas na abordagem da
sexualidade dos adolescentes, que levem em conta sua realidade
social e também suas histórias (ficções e fantasias), suas elaborações
(construção de metáforas e de símbolos) e suas produções culturais?
Tais questões já antecipavam um delineamento qualitativo para a investigação.
O ponto de partida, em relação à escolha do “método” (caminho) que levaria a
encontrar as respostas para estas perguntas, passou a ser, então, a especificação do
modelo qualitativo para a pesquisa.
Tinha-se demonstrado, através da revisão de pesquisas anteriores, o quanto
muitas informações sobre Saúde Pública usam dados quantitativos e estatísticas para
avaliar as necessidades de saúde das populações jovens. Além disso, o uso desses
dados como indicadores nem sempre vêm acompanhados da necessária tradução e
reflexão sobre os contextos físicos, políticos, psicossociais e culturais das análises,
antes de serem usados na preparação de programas e serviços destinados aos
adolescentes (como veremos no capítulo 3, tópico 3.1.4 e 3.2).
Desde a prática em Saúde Pública com adolescentes, percebe-se a diversidade
e a singularidade das adolescências, mesmo se o foco dirige-se exclusivamente às
classes populares. Nesses contextos, pode-se afirmar que as adolescências vividas
pelos sujeitos desse estudo, por exemplo, demonstraram a importância de enfocar as
cenas locais: começando pelas diferenças de gênero, passando pelas configurações
32
familiares e geracionais, pelos valores culturais e pelas contingências sociais,
destacando os processos psíquicos (conforme análises do capítulo quatro).
Com essa experiência de investigação, pode-se comprovar o quanto a temática
da “adolescência” vem desafiando as ciências sociais e humanas a revisar conceitos e
a construir teorias, tentando dar conta de uma engrenagem sutil e de uma articulação
permanente entre o sujeito adolescente, seu tempo e sua cultura (ver capítulo três,
tópico 3.2.).
A abordagem da sexualidade e do engravidamento na adolescência leva a
reconhecer que “praticar sexo ou não”, “usar anticoncepcional ou não”, “usar
preservativo ou não” têm lugar não somente dentro de um contexto, mas partem
também de uma relação entre sujeitos, considerando que nesse período da vida (a
adolescência) “o se deixar levar”, os ensaios, os atos revelam os efeitos de um
trabalho psíquico
10
levado a cabo para fazer valer a constituição subjetiva.
Narring (2001) afirma que o uso de procedimentos para uma investigação das
narrativas dos adolescentes pode ser um bom exemplo para as pesquisas sobre o
comportamento sexual, através da metodologia de investigação qualitativa, porque
podem demonstrar como os jovens assumem uma posição em relação à saúde e às
estratégias preventivas, ampliando o campo de investigações para pontos mais
complexos, onde se privilegia o sujeito adolescente desde sua “fala”, reconhecendo
nele um discurso e um lugar para falar em seu próprio nome.
10
Para uma definição psicanalítica da adolescência Rassial (1997 e 1999) usa o termo “trabalho
psíquico”, operação subjetiva e “passagem” que reafirma ou põe à prova a constituição subjetiva. Ruffino
(1995 e 2003) vai falar em operação psíquica e também em “trabalho psíquico”, sob a perspectiva de que
o adolescente precisa lidar com o real imposto pelas mudanças pubertárias, acionando recursos
simbólicos conquistados durante a latência. Remete-se o leitor ao capitulo quatro.
33
Na presente investigação pode-se dizer que foram testados diferentes
procedimentos para que fosse possível lançar um olhar ao mesmo tempo abrangente e
específico. A descrição de caráter etnográfico vem valorizar o “lugar” onde os eventos
ocorrem e as narrativas dos sujeitos envolvidos, produzindo uma dimensão essencial
para o “contexto” tal qual ele se apresenta. A técnica do estudo de caso, sendo
escolhida para a observação de um coletivo (um serviço de saúde mental), demonstrou
servir aos propósitos de estabelecer relações entre diferentes contextos (políticos,
históricos, culturais) e diferentes discursos, ambos oriundos das práticas em Saúde
Pública.
Portanto, a seguir pretende-se esmiuçar os procedimentos de pesquisa e situar a
técnica do estudo de caso a partir da literatura.
2.1. OS PASSOS METODOLÓGICOS:
A CONSTRUÇÃO DE PROCEDIMENTOS, OU COMO SE PERCORREU O
CAMINHO
Duas referências teóricas têm sido amplamente usadas para a definição do que
é um estudo de caso: Stake (1994) e Yin (2003).
Stake (1994) enfatiza que a técnica do estudo de caso envolve um trabalho de
campo, sendo necessário estar preparado para a escuta e a implicação com o todo,
tentando entender as questões teóricas e políticas envolvidas, e evitando as idéias
preconcebidas.
34
A preocupação com a validade científica de um estudo de caso leva ambos os
autores a construir procedimentos para a triangulação dos dados. Assim o uso de
várias percepções (Stake, 1994) e várias fontes de evidência (Yin, 2001) aumentam a
confiabilidade das informações. Yin (2001) refere a possibilidade de utilizar entrevistas,
documentos, fotografias, etnografia de rua e observação participante, entre outras
fontes de informação. Stake (1994) salienta que o caso é uma entidade complexa,
operando dentro de vários contextos: físico, econômico, ético e estético.
O estudo foi realizado junto a uma equipe de saúde mental, inserida em um
Centro de Saúde, no município de Porto Alegre, a partir da experiência de acolhimento
e atendimento psicológico para adolescentes, consistindo em três etapas iniciais:
Primeira etapa: partiu-se das práticas em saúde mental coletiva, onde as
características de um serviço (Equipe de Saúde Mental) são perpassadas
por rotinas e procedimentos que levam em conta, de forma ampla, as
Políticas Públicas e uma rede de programas em constante
reordenamento. Para isso, antes de avançar sobre as características do
serviço, constrói-se sua genealogia, buscando situar o conjunto de
arranjos e ordenamentos responsáveis pelo Modelo atual de Gestão da
Saúde Pública, destacando sua perspectiva histórica desde o surgimento
do Sistema Único de Saúde (SUS), através dos relatórios das
Conferências Nacionais de Saúde.
35
Segunda etapa: direciona-se a investigação aos documentos produzidos
no âmbito da saúde, na forma de Programas e Políticas que tocassem
mais diretamente nas questões do estudo. Faz-se o levantamento de
materiais informativos e manuais para a abordagem da sexualidade
adolescente, onde os textos “Assistência em Planejamento Familiar:
Manual Técnico” (Brasil, 2002) e “Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres” (Brasil, 2004) são analisados em alguns fragmentos.
Terceira etapa: para selecionar os sujeitos envolvidos, opta-se em
trabalhar com casos retrospectivos, a partir de dados já registrados,
contidos em prontuários observando a Resolução Normativa de 09 de
janeiros de 1997 (01/97) da Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde e
respeitando as Diretrizes Éticas Internacionais e as Diretrizes e Normas
Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS
1993 e Resolução CNS 196/96), as quais destacam o compromisso com a
privacidade e confidencialidade dos dados utilizados
11
. Os sujeitos
participantes são jovens entre 12 e 16 anos que estiveram em
atendimento psicológico no período de 2003 e 2004. Priorizou-se o
atendimento psicológico das adolescentes do sexo feminino, a partir de
dois contextos: a construção de narrativas e ficções nas consultas
individuais e a participação em grupos de adolescentes, onde foram
selecionados dois momentos importantes para os propósitos desse
11
Ver “Termo de Compromisso para Utilização de Dados contidos em Prontuários” no Apêndice A.
36
trabalho: a realização de uma oficina de Rap e o momento de construir um
glossário
12
(chamado “dicionário de gírias” pelos adolescentes).
Em resumo, as três etapas consistem: na caracterização do local; na seleção de
documentos relativos à saúde sexual e reprodutiva na adolescência, como material
informativo direcionado aos adolescentes ou à capacitação para os profissionais da
saúde, e na seleção dos sujeitos participantes.
Portanto, as características desse estudo estabelecem linhas de orientação que
partem de situações específicas e tocam na amplitude relativa às Políticas Públicas de
saúde: partem do viés da experiência clínica com grupos – seus desdobramentos,
percursos e vicissitudes –, instauram um olhar sobre a particularidade dos processos
psíquicos vividos pelas adolescentes, no ensejo da atividade sexual e a partir das
possibilidades de engravidar, e ainda contam com a possibilidade da análise de
documentos, preconizada pela proposta de “triangulação dos dados”, mencionada por
ambos os autores aqui considerados, como uma das fases da investigação.
Para a interpretação do material coletado, optou-se pela análise de conteúdo das
narrativas das adolescentes participantes, bem como dos documentos selecionados,
onde as categorias emergentes foram interpretadas à luz da psicanálise.
Segundo Bardin (1977) os objetivos da análise de conteúdo são:
a) investigar o conteúdo manifesto das comunicações através de uma descrição
objetiva e sistemática;
12
O Glossário vai aparecer no Apêndice B, porque apesar da sua importância não vai fazer parte das
análises.
37
b) descobrir conteúdos e estruturas que confirmam ou não o que se procura
demonstrar;
c) conduzir a uma descrição de elementos e significações dos quais não se tinha
compreensão a priori.
3. DESCRIÇÃO DO CONTEXTO: PERSPECTIVA HISTÓRICA E CONSTRUÇÃO DAS
PRÁTICAS EM REDE
Este capítulo está dividido em três tópicos:
Um primeiro tópico sobre o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) como
Política Pública (PP); o processo de municipalização e modelos de atenção;
acolhimento e integralidade.
Um segundo tópico sobre Saúde e Políticas Públicas para adolescentes: a
construção de uma rede de serviços para essa faixa etária e a perspectiva de
gênero.
Um terceiro tópico sobre o Serviço: a Equipe de Saúde Mental, o Acolhimento
em Grupo para adolescentes e o relato de uma experiência.
Antes de dar início ao primeiro tópico, faz-se necessário um breve
esclarecimento conceitual sobre noção construída socialmente acerca das Políticas
Públicas.
38
Segundo Sposito e Carraro (2003), Políticas Publicas não devem se reduzir à
implantação de serviços. Em primeiro lugar, são projetos de natureza ético-política, que
podem envolver níveis diversos de relações entre o Estado e a sociedade civil, na sua
constituição. As PP não devem ser confundidas com políticas governamentais, na
medida em que órgãos legislativos e judiciários também são responsáveis por desenhá-
las. Um traço definidor característico das PP é a presença do aparelho público-estatal
em sua definição, acompanhamento e avaliação, assegurando seu caráter público,
mesmo que ocorram algumas parcerias em sua implantação.
3.1. O CAMPO DA SAÚDE E AS POLÍTICAS PÚBLICAS: MEMÓRIA E HISTÓRIA
A idéia deste tópico é utilizar algumas referências históricas relativas ao
surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS), através do percurso datado das
Conferências Nacionais de Saúde (CNS) e apresentar os eixos sobre os quais o
movimento real da Saúde Pública Municipal acontece em Porto Alegre, priorizando os
princípios da hierarquização e da regionalidade.
Não é intenção discorrer detalhadamente sobre os fatos históricos relativos à
constituição do campo da saúde, principalmente da Saúde Pública, a partir da sua
articulação no cenário nacional, apenas situar alguns pontos que podem ser
importantes para essa reflexão e que se relacionam com a conquista atual de um
modelo de gestão, levando em conta “governo e políticas públicas”, ou as práticas de
governo, desde o Estado até as intervenções coletivas.
39
Esse viés, portanto, trata de datar as CNS (Conferências Nacionais de Saúde)
13
,
tentando uma aproximação com um valor de transversalidade que a participação
coletiva veio produzir nesses encontros. Nota-se que as CNS passam, pouco a pouco,
a se constituírem como o principal dispositivo
14
de governo, na medida em que têm
maior interferência com o passar do tempo. Observa-se também que, de um fórum
esporádico e eventual, tornaram-se o principal âmbito de debates e de mudanças.
Aponta-se as CNS como dispositivos de governo (e não como dispositivos do
Estado), para evidenciar essa sutileza que separa Estado-governo-políticas públicas e
destacar os efeitos de poder que emergem de cada esfera. Por outro lado, a
consistência discursiva desse dispositivo, como veremos, produz relatórios, constitui
saberes e molda novas rotinas e práticas, estabelecendo uma dinâmica entre
governamentalidade e Políticas Públicas.
3.1.1. Sobre as CNS
15
e o nascimento do SUS
A primeira CNS, da qual se tem registro, é datada de 1941 e tem o papel de criar
o Departamento Nacional de Saúde. A segunda CNS acontece somente em 1950, nove
13
Ver quadro-resumo na página 48.
14
Conceito de dispositivo em Foucalt ([1979]1988) que se define como uma função estratégica
dominante, um imperativo estratégico com as mais diversas configurações: leis, discursos, instituições,
medidas administrativas, enunciados científicos etc, estabelecendo relações em rede a partir de uma
intervenção racional e organizada. “O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder,
estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que
igualmente o condicionam”.(Foucault, [1979]1988, p.246)
15
As referências utilizadas têm origem nas informações disponíveis no site http//www.datasus.gov.br/cns/
acessado em 15/05/05 às 21:20, bem como no texto de Pereira (2005).
40
anos mais tarde, preocupando-se com o “espaço institucional” da Saúde, destacando a
importância dos profissionais do setor. Entretanto, é interessante observar que, nesse
momento, a saúde está subordinada ao Ministério de Educação, já que o Ministério de
Saúde só seria criado em 1954.
Em 1963, em plena era “Jango” (referente ao Presidente João Goulart) e treze
anos após a segunda CNS, é lançada a terceira CNS que irá abordar a situação
sanitária nacional; a distribuição de atividades nos níveis Federal, Estadual e Municipal,
com a fixação do Plano Nacional, surgindo os primeiros indícios para uma
“municipalização” da Saúde. O documento dessa Conferência faz menção à lei 378 de
1937 que previa a convocação, em cada dois anos, de conferências como essa, onde
se reunissem os responsáveis pelas tarefas da Saúde Pública.
Com o golpe militar, em 1964, surgem as CNS de 1967, com debates limitados
ao RH (política permanente de recursos humanos na saúde), a de 1975, 1977 e 1980,
em plena vigência dos governos militares, até a “abertura política” em 1985, com a CNS
de 1986 e os movimentos sociais de 1988 (ano da Assembléia Nacional Constituinte e
da Reforma Sanitária).
Pode-se dizer que a quinta CNS (1975) localizava aspectos doutrinários ligados
ao setor de saúde, discutindo as estruturas programáticas, enquanto a sexta (1977)
ressentiu-se dos primeiros sinais da crise econômica, pautando uma visão mais crítica
da realidade e buscando mais liberdade de divulgação para estudos e pesquisas. Em
1980, a sétima CNS faz o resgate histórico da terceira CNS, criando um ambiente com
perspectivas de mudança para a sociedade, onde a grande mobilização popular e
profissional tentou rever conceitos e questionar a Estrutura do Sistema de Saúde.
41
Nesse momento, vale a pena fazer uma retomada de algumas questões
importantes, anteriores à Constituição de 1988 e à oitava CNS (1986), começando
pelos movimentos sociais no final da década de 70, no século passado.
A reorganização dos movimentos sociais junto aos profissionais de saúde
propiciou o início do Movimento Sanitário e as propostas de Transformação do Sistema
de Saúde Urgente. Em 1979, acontece o Primeiro Simpósio Nacional de Políticas de
Saúde e discute-se publicamente, pela primeira vez, o Sistema Único de Saúde (SUS).
Apesar da Ditadura Militar vigente, tal proposta passa a servir de base para as
reivindicações populares e para profissionais.
O governo, então precisou adotar idéias e proporcionar mudanças. Houve a
reorganização dos serviços com vários programas: o Sistema Integrado de Saúde –
Norte-Minas; o Plano Global, em 1980, com a proposta de implantar uma rede de
serviços básicos de saúde; e, em 1982, a adoção de medidas para a reorientação da
política de Assistência Médica, entre as quais destacam-se quatro: muda a forma de
pagamento com o setor privado contratado, celebra o repasse de recursos para
Estados e Municípios, utiliza a capacidade instalada pública e institui as AIH
(Autorização de Internação Hospitalar) e as AIS (Ações Integradas de Saúde).
As AIS representavam a primeira tentativa das instituições públicas de fazer um
planejamento em saúde articulado e integrado, proporcionando a criação dos CIS
(Comissão Interinstitucional de Saúde) e CIMS (Comissão Interinstitucional Municipal
de Saúde), e favorecendo a base de implantação do SUDS (Sistema Unificado e
Descentralizado de Saúde) e do SUS (Sistema Único de Saúde).
É importante ressaltar que as políticas de funcionamento do INPS/INAMPS
estavam subordinadas à Previdência Pública e, neste sentido, antes da Constituição de
42
1988, o direito à Saúde ficava atrelado aos trabalhadores, onde a assistência médica
era prometida somente a quem tinha carteira de trabalho assinada e pagava a
Previdência Social. A população que não podia pagar e “não tinha INPS” era chamada
de indigente ou carente.
Estudos e pesquisas demonstravam que o modelo adotado concentrava renda e
não transformava em benefícios sociais as arrecadações do sistema de previdência
social. A má administração, a falta de controle sobre os gastos, com decisões a nível
federal, sem autonomia para os Estados e Municípios e sem investimentos em ações
de prevenção e promoção em Saúde, vem tornar o sistema ineficiente.
Com a oitava CNS, em 1986, e com a Assembléia Nacional Constituinte (1988),
iniciou-se a tão esperada Reforma Sanitária Brasileira
16
, com a democratização da
Saúde no País. As propostas eram:
- Análise das condições de vida da população, desvinculando o conceito de saúde da
exclusiva assistência médica.
- A saúde da população é responsabilidade do Estado e da sociedade, por meio de
suas políticas econômicas e sociais. Isso supõe um governo que identifique as
necessidades da maioria da população.
- É essencial que a saúde não seja adquirida por meio de contratos e pagamentos, de
contribuição para a previdência ou outro tipo de seguro, mas que seja um direito que
as pessoas têm pelo simples fato de existirem, viverem numa cidade regida por leis
e contribuírem para o seu desenvolvimento. É, pois, um direito humano e de
cidadania.
16
É importante destacar a discussão sobre a Reforma Psiquiátrica, por ocasião da Primeira Conferência
Nacional de Saúde Mental, no ano de 1987.
43
- Por conseqüência, é responsabilidade do Estado
17
assegurar os meios para que as
pessoas tenham acesso aos bens e serviços que lhe assegurem a saúde. “A saúde
é um direito de todos e dever do Estado”. Aí está um princípio básico da Reforma
Sanitária.
Para que isto fosse realidade era necessário:
1) Políticas gerais de governo que contribuíssem para a melhoria da qualidade de vida;
2) Estrutura e organização com políticas adequadas à saúde das pessoas e da
coletividade;
3) Ações que visassem a promoção de Saúde, prevenção de doenças e atendimento
local;
4) Metas para cumprir a implantação do SUS, através do governo, estados e
municípios, priorizando seus princípios e características.
Sirena (2000) escreve:
A 8ª CNS definiu os princípios básicos do SUS. (...) O SUS teve como pilares
ideológicos a descentralização político-administrativa da gestão, a eqüidade e a
universalização do atendimento. A lei 8689 de 1993, que extinguiu o INAMPS e
aportaria MS/GM nº 545 que instituiu a Norma Operacional Básica – NOB
01/93, deflagaram o processo de municipalização da saúde em todo o País. (p.
34).
17
O Estado é entendido como o conjunto das instituições e políticas públicas da Sociedade. Para
Foucault ([1979]1988) o governo do Estado seria um governo em sua forma política, mas existem outras
formas de governo que estabelecem outras linhas de força e de poder. (p. 278)
44
Assim, as características do novo modelo, do Sistema Único de Saúde (SUS)
foram definidas da seguinte forma: atender a todos (universalidade); de forma igual
(eqüidade); atenção integral do ponto de vista físico e mental (integralidade);
descentralizado; oferta de acordo com a necessidade (racionalidade); resolutivo;
democrático através do controle e participação social, com a criação dos Conselhos
Locais de Saúde (CLS)
18
.
Seis anos após a oitava CNS, a Nona CNS, realizada de 9 a 14 de agosto de
1992
19
, em Brasília, apresentou como uma das deliberações a extinção do INAMPS e
da Fundação Nacional de Saúde, com o repasse imediato de suas unidades - rede
física, equipamentos, serviços e recursos humanos - para os estados e municípios,
implantando-se a estrutura organizacional descentralizada do SUS.
Foi aprovada uma série de outras ações, consideradas essenciais para a
implantação do SUS. Entre elas, incluem-se: a integração das Políticas de Saúde, de
Educação e de Ciência e Tecnologia, garantindo investimentos e liberação financeira
para a prestação de serviços; a absorção e formação de recursos humanos,
desenvolvimento e produção de insumos; bem como o desenvolvimento de programas
interinstitucionais que aumentassem a capacidade de intervenção estratégica e
operacional da União, dos estados e municípios sobre as doenças de impacto coletivo:
entre eles, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), criado em 1991, e
que, a partir de 1994, é incorporado ao Programa de Saúde da Família (PSF).
18
Em 1987, o regimento interno da CIMS (Comissão Interinstitucional Municipal de Saúde) estabelecia
que os usuários teriam poder de decisão e em 1992 a Lei Complementar Municipal 277 instituiu o
Conselho Municipal de Saúde (CMS) e, a partir daí, efetiva-se o controle social preconizado na 8ª CNS
com a organização dos Conselhos Locais Interinstitucionais de Saúde (CLIS) ou apenas Conselhos
Locais de Saúde (CLS).
19
É importante ressaltar que em 1991, na cidade de Porto Alegre, acontece a Primeira Conferência
Municipal de Saúde, seguida, no ano seguinte (1992), pela Primeira Conferência Municipal de Saúde
Mental, onde é aprovado o primeiro Plano de Saúde Mental para a cidade.
45
Além das mudanças no modelo de gestão do sistema de saúde, esta CNS veio
consagrar o controle social, a democratização das informações e o financiamento das
ações com a execução orçamentária acompanhada pelos respectivos Conselhos de
Saúde.
Passados mais quatro anos, sob o ministério de Adib Jatene, a décima CNS
ocorreu em Brasília, de 2 a 6 de setembro de 1996 e sua convocação aludia: “SUS
Construindo um modelo de atenção à Saúde para a qualidade de vida”. Os temas
principais seriam a gestão plena para os municípios; o fortalecimento de ações
intersetoriais
20
; e o lugar da saúde como produto social, portanto resultante de um
conjunto de direitos que envolvem o emprego, o salário, a habitação, a educação, o
transporte, o lazer, etc – de acordo com a Constituição de 1988.
A 10ª CNS reafirma o SUS como a mais importante proposta de democratização
do Estado no país, na medida em que representa a garantia à toda a população do
acesso às ações de prevenção, promoção, assistência e reabilitação da saúde, através
do processo de descentralização e consolidação da municipalização plena da saúde.
Em dezembro de 2000
21
, ocorre a 11ª Conferência Nacional de Saúde. O tema
central seria "Efetivando o SUS: Acesso, Qualidade e Humanização na Atenção à
Saúde com Controle Social". A intenção do Conselho Nacional de Saúde ao aprovar
esse tema foi contribuir para o avanço do SUS, priorizando o princípio organizacional
20
Nessa CNS ampliam-se os fóruns por temáticas como a CNS Mental, a CNS do Trabalhador, a CNS
Indígena, a CNS Bucal, a CNS e Medicamentos, etc. Essa conferência nacional, assim como a nona, fora
antecedida pelas conferências regionais. Em junho de 1996, em Porto alegre, realizou-se a segunda
Conferência Municipal de Saúde. Pode-se deduzir que a partir da oitava conferência, há uma
organização de quatro em quatro anos e de forma articulada com os estados e municípios.
21
Em maio desse ano, a 3ª Conferência Municipal reformula os territórios de saúde em adequação às
regiões do Orçamento Participativo (OP) e cria 17 Distritos Sanitários de Saúde, organizados em 8
Gerências Distritais. Dessa forma, os Conselhos Locais de Saúde (CLS) organizados em cada serviço,
como um fórum local entre usuários e servidores de saúde, passam a compor os Conselhos Distritais de
Saúde (CDS), como uma instância maior, com representatividade no Conselho Municipal.
46
do controle social para a obtenção de três metas fundamentais que freqüentemente têm
aparecido como demandas da população de usuários do sistema: o acesso universal e
com eqüidade aos serviços e ações de saúde, a qualidade desses serviços, ou seja,
sua capacidade de responder com eficiência às necessidades de saúde e a
humanização, isto é, o acolhimento e o estabelecimento de vínculos humanos
imprescindíveis para o sucesso da relação entre usuários, profissionais e trabalhadores
de saúde. Valorização de um modelo de atenção com foco na assistência preventiva e
na estratégia de saúde da família, através do PSF e do Programa de Agentes
Comunitários da Saúde (Pacs).
O tema da 12ª CNS, que ocorreu entre os dias 7 e 11 de dezembro de 2003,
sendo antecipada pelo governo do presidente Lula, foi "Saúde: um direito de todos e
dever do Estado - a saúde que temos, o SUS que queremos". O objetivo do encontro foi
propor diretrizes para efetivar esta proposta e consolidar o SUS, recomendando que as
Políticas de Atenção Integral à Saúde levassem em conta a saúde do trabalhador. Além
disso, outro ponto alto entre as deliberações trata da necessária democratização da
informação e da comunicação em saúde. Participaram representantes de órgãos
públicos, entidades de classe, conselhos profissionais de saúde, entidades da
sociedade civil e usuários.
A definição de políticas públicas baseadas na promoção à saúde do trabalhador
e à saúde ambiental, por exemplo, deveria ser articulada entre os ministérios da saúde,
previdência, trabalho e meio-ambiente. A Reforma Trabalhista que estava em curso,
atribuiu ao SUS a competência de execução plena das ações em saúde do trabalhador
como: Vigilância Sanitária e ambiental nos locais de trabalho, a partir de instrumentos
técnico-jurídicos a serem estabelecidos; parceria com a rede pública de serviços de
47
saúde para estabelecimento de diagnósticos das doenças e óbitos relacionados ao
trabalho, bem como da relação entre esses e o ambiente do trabalho, inclusive para
efeitos previdenciários; vigilância epidemiológica sobre os agravos à saúde
relacionados ao trabalho.
Quanto às deliberações relativas à modernização e democratização dos
sistemas de informação do SUS, fica a cargo do Conselho Nacional de Saúde definir
estratégias para elaborar e implementar políticas articuladas de informação,
comunicação, educação permanente e popular em saúde para as três esferas de
governo. O objetivo é garantir maior visibilidade das diretrizes do SUS, da política de
saúde, das ações e da utilização de recursos, visando ampliar a participação e o
controle social e atender as demandas e expectativas sociais.
A seguir, após a apresentação de um quadro com a síntese das CNS, toma-se a
experiência de implantação do SUS e de seus princípios em Porto Alegre, tentando
demonstrar a magnitude de práticas e rotinas que foram alteradas e reordenadas, seus
efeitos em cadeia e a obra gigantesca sempre inconclusa: a forma de atender o
paciente. O destaque dado ao processo de humanização dos serviços, na 11ª CNS,
ainda é o ponto nevrálgico para a verdadeira mudança: os modos de atenção podem
operar como linhas de cuidado, construindo uma trama ou rede mais humanizada? As
formas de receber o usuário-paciente podem constituir diferentes modalidades de
acolhimento e escuta? É possível transformar os trabalhadores em saúde em agentes
de humanização dos serviços?
48
QUADRO 1: SÍNTESE DAS CONFERÊNCIAS NACIONAIS DE SAÚDE
CNS Ano Resumo das principais características
I CNS 1941 Tem o papel de criar o Departamento Nacional de Saúde.
II CNS 1950 Preocupa-se com o “espaço institucional” da Saúde, valorizando os
profissionais; a saúde está subordinada ao Ministério de Educação e o
Ministério de Saúde é criado em 1954.
III CNS 1963 Aborda a situação sanitária nacional; distribui atividades nos níveis
Federal, Estadual e Municipal, com a fixação do Plano Nacional de
Saúde; surgem os primeiros indícios para uma municipalização da
Saúde.
IV
1967 Política permanente de RH; adoção de centros médicos sanitários.
V
1975 Localiza aspectos doutrinários ligados ao setor de saúde, discutindo as
estruturas programáticas.
VI
1977 Ressente-se dos primeiros sinais da crise econômica, pautando uma
visão mais crítica da realidade e buscando mais liberdade de divulgação
para pesquisas.
VII
1980 Criação do Plano Global com a proposta de implantar uma rede de
serviços básicos de saúde; há o resgate histórico da terceira CNS, com
perspectivas de mudança para a sociedade, onde a grande mobilização
popular e profissional tentou rever conceitos e questionar a Estrutura do
Sistema de Saúde.
VIII
1986 Tem início a Reforma Sanitária Brasileira com a democratização da
Saúde no País, a partir da ampliação do conceito de saúde; a criação
do SUDS e a construção dos princípios do SUS.
IX 1992 Extinção do INAMPS e da Fundação Nacional de Saúde, com o repasse
imediato de suas unidades - rede física, equipamentos, serviços e
recursos humanos - para os estados e municípios, implantando-se a
estrutura organizacional descentralizada do SUS. Tem início o
Programa de Agentes Comunitários da Saúde (Pacs), em alguns
municípios.
X 1996 Efetiva-se o controle social: consolidação, ampliação e autonomia dos
conselhos de saúde. Os temas principais são a gestão plena para os
municípios; o fortalecimento de ações intersetoriais e o lugar da saúde
como produto social, portanto resultante de um conjunto de direitos.
XI 2000 Humanização na atenção à saúde. Valorização de um modelo de
atenção com foco na assistência preventiva e na estratégia de saúde da
família, através do Programa de Saúde da Família e do Programa de
Agentes Comunitários da Saúde (Pacs).
XII 2003 A definição de políticas públicas baseadas na promoção à saúde do
trabalhador e à saúde ambiental; deliberações relativas à modernização
e democratização dos sistemas de informação do SUS.
49
3.1.2. O reordenamento da saúde em Porto Alegre
Para explicar o quanto o sistema de saúde foi passando por uma série de
transformações, irá-se situar a experiência de Porto Alegre, a partir da municipalização
plena que ocorreu em 1996.
Até 1994 a prefeitura administrava 11 serviços de saúde e, entre 94 e 96, a
secretaria de saúde (SMS) passou pelo processo de municipalização semi-plena e
plena, o que resultou na gestão atual de 144 serviços
22
. Portanto essa complexidade
exigiu uma organização descentralizada, constituindo os eixos de regionalização dos
serviços, bem como uma forte estrutura hierárquica no modelo de assistência, tal como
define Sirena (2000), a partir da segunda Conferência Municipal de Saúde, em Porto
Alegre:
A segunda CMS de POA, em 1996, teve como tema principal a discussão sobre
a municipalização da saúde com enfoque no modelo de financiamento, modelo
de gestão e modelo de atenção, confirmando a proposta de um modelo de
atenção amparado em um conceito ampliado de saúde que respondesse às
necessidades da população. (p. 35)
Nos anos seguintes (1997 a 1999) esta proposta de atenção, passou a ter outros
significados:
22
Até dezembro de 2004: 117 UBS; 2 Hospitais; 8 Centros de Saúde; 16 Serviços de Saúde Mental e a
Casa de Apoio Viva Maria.
50
Além de uma prática sanitária hierarquizada, descentralizada, que busca a
equidade, a integralidade e a universalidade, se almeja um SUS que possibilite
o acolhimento, o vínculo, a responsabilidade e o compromisso, utilizando a
epidemiologia e a clínica como ferramentas de trabalho. (Sirena, 2000, p. 36)
Ainda neste tópico (3.1), pretende-se trabalhar os conceitos de acolhimento e
integralidade (tópico 3.1.3), mas antes se faz necessário especificar mais esse
processo de reorganização dos serviços, identificando sua estrutura operacional e o
seu funcionamento, a partir da constituição de uma Rede.
Em geral, costuma-se chamar uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de “porta de
entrada” no sistema, no SUS e, portanto, na Rede de saúde. Isso porque uma UBS
deve garantir o atendimento público e gratuito para uma população local, via
cadastramento familiar conforme o endereço de moradia. Sendo assim, sua
responsabilidade refere-se a uma área pré-estabelecida e sua coordenação dependerá
da estrutura gerencial de um Distrito de Saúde
23
.
Essa Rede de serviços de saúde começa, então, a funcionar a partir de dois
eixos principais, duas lógicas, que são a lógica da hierarquização e a lógica da
regionalidade:
1) Hierarquia: estabelece o sistema de referência e contra-referência e os modos
de atenção: atenção primária, secundária e terciária.
2) Regionalidade: cria as áreas de atuação e as áreas de abrangência para cada
equipe de saúde (território).
23
Também chamado de Distrito Sanitário. São 17 distritos na cidade de Porto Alegre.
51
Assim, a primeira lógica determina os fluxos de encaminhamento, de um sistema
de menor complexidade para um sistema de maior complexidade, da seguinte forma: o
nível básico de saúde, com seu caráter promocional e preventivo, chamado “atenção
primária”; o nível de média complexidade relativo às especialidades terapêuticas,
chamado “atenção secundária”, e o nível de recuperação e/ou reabilitação chamado
“atenção terciária”.
Enquanto a segunda lógica, da regionalização, determina a população a ser
atendida e diz respeito às adequações, aos ajustes entre demanda reprimida e
capacidade instalada, p. ex.: os serviços de atenção básica ou unidades de saúde
trabalham com uma área fechada, chamada de área de atuação, o que significa dizer
que serão responsáveis pelo atendimento de um número limitado de usuários
residentes na área mapeada e, para isso, utilizarão o sistema de cadastramento
familiar.
Aqui vale um esclarecimento na composição da rede de atenção secundária, ou
rede dos serviços especializados, que incluem as equipes de saúde mental. Esses
serviços também têm uma área de responsabilidade, mas o recorte é mais amplo e é
estabelecido pelo “sistema de referência e contra-referência”, ou seja, a área de
responsabilidade de uma equipe especializada é composta por um número limitado não
de usuários/pacientes, mas de unidades básicas (UBS, PSF
24
), que podem e estão
autorizadas pelo sistema a referenciar (encaminhar) os seus usuários para um
tratamento específico.
24
Atualmente definem-se os Programas de Saúde da Família e as Equipes dos Ambulatórios Básicos de
Saúde (antigas Unidades Sanitárias) como Unidades Básicas de Saúde (UBS).
52
A internação hospitalar requer a AIH (autorização de internação hospitalar) ou
solicitação de leito (por telefone), dependendo de qual serviço gera a demanda, se for
um ambulatório básico ou ambulatório especializado, ou se for um serviço de urgência
e emergência (pronto atendimento). É importante ressaltar que, neste terceiro nível do
sistema, o acesso (ou baixa) não depende dos critérios de regionalidade, mas
respeitará esse critério quando referenciar o paciente de volta ao serviço de origem, por
ocasião da saída (ou alta). Ou seja, a contra-referência deve respeitar os critérios de
cadastramento regional e, após a internação ou recuperação do paciente usuário no
sistema de atenção denominado “terciário”, o mesmo deverá retornar ou continuar seu
acompanhamento no sistema primário.
Até aqui, pode-se perceber o quanto tudo parece estar previsto nessa
organização: como os sistemas e fluxos da Rede devem funcionar e como se
estabelece um “modelo de atenção” em saúde.
Tentando explicitar o que pode ser concebido como Modelo de Atenção, Sirena
(2000) revela:
“A leitura de uma determinada conjuntura epidemiológica, a maneira como são
organizadas e combinadas as ações de intervenção no processo saúde-
doença, a operacionalização de diretrizes sanitárias, a forma de organização
dos serviços, as práticas de atendimento à população e finalmente, a tradução
de princípios éticos, políticos, sociais, culturais e econômicos em um projeto de
atenção à saúde, se traduzem no que chamamos de modelo de atenção. Trata-
se de uma construção histórica, um processo dinâmico que envolve atores e
interesses diferentes e geralmente, quando sai do papel que o define para a
sociedade concreta, nunca é o que deveria ser.(p. 33).
53
Portanto, a partir de um Modelo de Atenção, é possível definir-se um Modelo de
Gestão. Entretanto, quanto mais funcionalista e ordenador passa a ser esse modelo,
tanto mais irá se constituir como “modelo disciplinar”, onde a precisão de normas e
diretrizes torna-se exaustiva e, muitas vezes, traz como conseqüência o esvaziamento
do próprio sentido de “encontro” entre o trabalhador de saúde e o sujeito que busca o
atendimento em saúde, banalizando essa interação e transformando o sujeito-
trabalhador em funcionário do sistema, enquanto ao sujeito-paciente cabe o lugar de
usuário do sistema.
Como se disse anteriormente, o desafio para todos os trabalhadores de saúde é
deixar emergir qualidades singulares, tanto em suas práticas de trabalho, quanto em
relação à escuta dos pacientes, porque essa seria a única forma de acolher.
3.1.3. Acolhimento: a construção de um conceito
A noção de Acolhimento em Saúde Pública já produziu muita discussão e
produção teórica, mas o momento em que foi construída e sistematizada, a partir de
Grupos de Trabalho regionais, se deu com o Projeto de Qualificação do Acolhimento na
cidade de Porto Alegre no decorrer de 2004, considerando o pressuposto de que
“acolhimento” passa a ser a principal diretriz de humanização e de operacionalização
do Sistema Único de Saúde, desde 11ª Conferência Nacional de Saúde, que ocorreu
em dezembro de 2000.
Dessa forma, tal Projeto apresenta a seguinte concepção:
54
Acolhimento é um processo no qual os trabalhadores de saúde e a organização
tomam para si a responsabilidade de intervir em uma dada realidade, presente
no seu território de atuação. Busca a promoção da saúde através de uma
relação humanizadora e acolhedora tanto em nível individual, quanto coletivo,
identificando as principais necessidades sociais de saúde. Objetiva a autonomia
do usuário, através de ações de governabilidade da equipe de saúde, da
organização do setor e das ações intersetoriais e interinstitucionais. (Ortiz et al,
2004, p. 50)
Além disso, propõe como “Equipe Acolhedora” a seguinte definição:
É aquela que em seu cotidiano de trabalho, se vale da escuta, do diálogo, do
saber dos seus trabalhadores (respeitando os saberes dos usuários), das
relações com a comunidade, da dimensão terapêutica e da dimensão
relacional. A Equipe, na sua responsabilização pela saúde dos usuários do seu
território, constrói vínculos, utiliza-se de todos os recursos disponíveis para
eliminar o sofrimento e as causas reais das necessidades sociais em saúde dos
usuários, visando a produção da autonomia no cuidado com a saúde. (Ortiz et
al, 2004, p. 51)
Essas duas tentativas de estabelecer uma nomenclatura para tais ações no
campo das práticas de saúde remetem a uma outra terminologia bastante utilizada:
“necessidades sociais de (em) saúde”.
Encontra-se em Cecílio (2001) uma taxionomia, organizada em quatro grandes
conjuntos, para definir o que seria “necessidade de saúde”, como a que segue abaixo:
55
a) “Boas condições de vida”: remete-se aos diferentes lugares ocupados pelos
sujeitos, em suas diferentes formas de levar a vida – “a maneira como se vive,
traduz-se em diferentes necessidades de saúde” (p. 2).
b) “Acesso a toda e qualquer tecnologia que possa prolongar ou melhorar a vida”:
cada tecnologia de saúde é sempre definida a partir da necessidade de cada
pessoa, em cada singular momento que vive.
c) “Criação de vínculos”: enquanto relação de confiança e de referência entre um
trabalhador de saúde e um sujeito, significando o estabelecimento de uma
relação contínua no tempo, pessoal e intransferível.
d) “Autonomia”: entendida como a necessidade de cada sujeito de ter graus
crescentes de autonomia no seu “modo de andar a vida”.
Esse autor faz uma diferença entre demanda e necessidade de saúde, da
seguinte forma: a demanda representa as necessidades de saúde modeladas pela
oferta que os serviços fazem, enquanto as necessidades se constituem de forma mais
enigmática, cabendo à equipe acolhedora a sensibilidade para decodificar o pedido e
traduzir a demanda em necessidade de saúde. A demanda pode aparecer como desejo
de exames, ou de medicamentos ou de consultas especializadas, “as necessidades
podem ser bem outras” (Cecílio, 2001, p. 3).
É interessante observar que essas noções de demanda e necessidade vêm
assumir estatuto de conceito, desde o ponto de vista da psicanálise, articulando-se aos
três registros para o funcionamento do aparelho psíquico, estabelecido por Lacan
(1992), a saber: o Real, o Imaginário e o Simbólico. Para a psicanálise a necessidade é
da ordem do Real; o desejo é Simbólico e a demanda se constitui como imaginária.
56
Portanto, a necessidade seria inegociável, imediata e sem substitutos arremessando o
sujeito ao vazio, à impossibilidade de simbolizar. O desejo viria se articular à cadeia
significante, portanto à fala, em sua possibilidade de gerar metáforas e metonímias,
deslocamentos e condensações.
Dessa forma, cabe destacar que reconhecer a subjetividade e o desejo implica
levar em conta que uma necessidade de saúde tal como foi mencionada anteriormente
não é a mesma coisa que “necessidade” de tratamento, ou melhor dizendo, é preciso
estar atento para os graus de autonomia e para o modo de “andar a vida” de cada
sujeito e abrir espaço para o desejo de tratamento. É assim na saúde mental, mas
também é assim em relação a qualquer outro sintoma.
Pode-se ainda indagar se o desejo de tratamento não estaria implicado na
formulação da demanda e seria ele, justamente, o pivô da transferência, a qual Cecílio
(2000) aproxima-se quando menciona a “necessidade” de criar vínculo. A transferência,
portanto, é um outro conceito psicanalítico, cunhado por Freud em 1895, que tem um
valor determinante para o início e para a continuidade de um tratamento. Para Freud
(1981), a origem desse sentimento que o paciente pode desenvolver pelo médico ou
pelo analista está nos afetos pelas figuras parentais amadas no passado e que são
deslocados para uma figura atual. A transferência seria a mola propulsora da relação
terapêutica, como veremos mais adiante.
Voltando às aproximações conceituais de acolhimento, Afonso Teixeira dos Reis
(1997), define acolhimento como a configuração de um novo modelo técnico-
assistencial para viabilizar de forma mais efetiva os princípios do SUS.
57
“Para tanto, o acolhimento busca: uma maior humanização do atendimento nas
unidades de saúde, uma ampliação das garantias de acesso a todos os sujeitos
que demandam algo dos serviços, uma efetiva responsabilização dos
profissionais com a saúde desses cidadãos e a conseqüente constituição de
vínculos; assim como visa imprimir uma maior resolubilidade às ações
desenvolvidas.”(p. 3)
O autor propõe que ao se pensar as “ações chaves” do Acolhimento como um
processo, o qual envolveria “receber, escutar, analisar, decidir, resolver ou encaminhar
e criar vínculo”, irá-se perceber a necessidade de repensar o trabalho em saúde e
constituir novas relações, onde as abordagens para o diagnóstico e para a execução
das terapêuticas possam ser executadas pelos profissionais de forma integrada e
multidisciplinar.
Portanto, no processo de trabalho em saúde pode-se perceber duas
dimensões, que na prática são imbricadas e com condicionamentos mútuos:
uma seria formada pelos saberes e ações de diagnóstico e de intervenção
terapêutica; a outra dimensão abarcaria o conjunto das relações que se
estabelecem no encontro entre uma pessoa portadora de alguma necessidade
em saúde e um trabalhador de saúde.(Reis, 1997, p. 1)
Reis (1997) aponta o modelo médico-curativo como um modelo de organização
do processo de trabalho em saúde, onde se define para o usuário (paciente) um lugar
que tange somente o corpo biológico, uma vez que o paciente é recebido enquanto
portador de alguma alteração ou dano que deve ser restaurado. Nessa concepção, as
dimensões psíquicas, sociais e culturais são negadas ou relegadas a um segundo
plano. A escuta funciona mais para filtrar a dimensão biológica, porque a partir dela irá
58
se decidir quais os meios e como se intervirá para recuperar o “corpo doente”. Os
objetivos dessa escuta não se dirigem a um sujeito que porta um determinado
sofrimento ou que formula demandas, nem são usados para compreendê-lo de forma
integral, em sua história e seu contexto de vida. Portanto, outro grande desafio em
Saúde Pública, seria radicalizar o conceito de integralidade.
Antes de se explorar esse outro conceito (a integralidade), faz-se necessário
destacar a noção de escuta, sob o ponto de vista de um outro autor e suas idéias
relacionadas a: encontro, questionamento, atenção e humanização, tal como são
trabalhadas por Fédida (1992).
Em primeiro lugar, esse autor destaca uma escuta que transforma o médico em
terapeuta, estabelecendo as condições para o encontro:
Para que o médico seja terapeuta e não somente médico, é preciso que ele se
coloque a justa distância que permita ao doente falar. Tal distância é a da
disposição local dos corpos no espaço, a dos rostos para que eles não se
choquem, nem se confundam – e ela deve ser tão justa quanto possível, pois
quem a regula é o tempo: o tempo para falar e o tempo para escutar, o tempo
que mede o desvio das memórias, fundando as condições do encontro
terapêutico. (p. 13)
Em segundo lugar, para investigar melhor a relação médico-paciente, o autor irá
explicitar uma diferença essencial entre um questionamento e um questionário, na
medida em que, numa consulta clínica, a prática da anamnese pode-se transformar na
aplicação de um questionário. De acordo com Fedida (1992), enquanto o
questionamento provém de uma escuta que sabe respeitar os lapsos de silêncio, o
59
questionário demonstra a intolerância ao silêncio, a precipitação na fala-informação, o
exílio e a impotência da fala para relembrar-se.
Portanto, como afirma ainda Fedida (1992), as questões que “não questionam a
linguagem” parecem ser intolerantes ao silêncio, estando sempre dispostas a obter
qualquer resposta que as informe, prontas a se satisfazerem com a fuga na qual a fala
se precipita, pois “ainda que a fala possa falar verbalmente, ela se encontra exilada da
linguagem e é impotente para relembrar-se” (p.17). Para o autor, aí estaria
representado o que deve ser nomeado como desumano e que ele irá chamar de
“questões-multidão”, porque levam o sujeito a esconder-se, a fugir em direção à sua
aglomeração compacta: a multidão, a massa.
Em terceiro lugar, Fédida (1992) menciona dois tipos de atenção que podem ser
dedicadas ao paciente-sujeito: uma atenção excessivamente ansiosa por curar e uma
outra, talvez um pouco erudita, que só possui a lembrança de seus conhecimentos
científicos adquiridos. Entretanto, se a fala do médico-terapeuta formar-se em um
questionamento singular e pessoal, ela pode despertar a linguagem em sua reserva de
silêncio.
A percepção, pelo “médico-terapeuta”, do “sujeito doente” na expressão singular
das manifestações de sua “doença” encontra-se no princípio do questionamento do
qual é feita a fala do médico. Para “o doente”, falar junto ao terapeuta significa sempre
um “colocar à prova a capacidade de escuta do terapeuta”.(p. 15).
Para aproximar um pouco as análises feitas até aqui sobre alguns conceitos-
chave no âmbito da Saúde Pública, é preciso dizer que o tempo passa a ser o principal
pilar para forjar esse encontro entre o terapeuta e o paciente. Além disso, pode
60
desvelar outros sentidos para o repetitivo refrão relativo à “Atenção Integral”, que será
abordada no próximo tópico, a partir da apresentação de alguns Programas de Saúde.
Esse tempo pode ser visto como uma elaboração a posteriori (como um “só
depois” ou après-coup), como uma escansão ou estado de suspensão, ou em seu valor
de espera e de silêncio.
No que se refere à dimensão de acolhimento, como uma espécie de entrevista
preliminar entre o médico da equipe básica e o paciente a ser encaminhado à saúde
mental, deve-se ressaltar esse valor do tempo como espera ou “reserva de silêncio”,
considerando sua potencialidade em fazer emergir essa dimensão difícil de situar e que
tem relação com o que se costuma chamar de princípio da integralidade, na medida em
que este é apreendido como a relação de interdependência constante entre o aspecto
físico e mental.
Entretanto, um falso juízo desse princípio seria achar que se trata da
integralidade do sujeito, já que é evidente que o sujeito é constituído desde sua divisão
(“ali onde penso, não sou”), uma cisão subjetiva que funda o inconsciente e coloca o
sujeito diante de um não saber sobre si mesmo: supõe um estado subjetivo que oscila
entre o físico e o mental, onde ao próprio sujeito o “corpo” que habita pode lhe parecer
“estranho” ou produzir uma linguagem (sintoma) cuja a significação lhe parece
indecifrável.
Portanto, é devido à sua fragmentação, ou multiplicidade, que se torna
importante reconhecer, desde as práticas de saúde, os diferentes domínios que
implicam a subjetividade (orgânico/psíquico; consciente/inconsciente; bio-psico-social;
classe/etnia/gênero; demanda/necessidade/desejo) e, dessa forma, encontrar as
superfícies nodais de sua configuração, ou melhor, os pontos e os nós de articulação.
61
Uma definição de integralidade, enquanto princípio do SUS, fala de um sujeito
como um todo indivisível (“cada pessoa é um todo indivisível e integrante de uma
sociedade”); enquanto uma outra definição remete-se à “integralidade da Atenção” e
explicita: “as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde formam um todo
indivisível e não podem ser fragmentadas”, acrescentando que “as unidades de saúde,
com seus diversos graus de complexidade, também formam um todo indivisível,
devendo formar um sistema capaz de prestar assistência integral”.
Cecílio (2001) irá aprofundar o conceito de integralidade e propor uma
reconceitualização do que seja “serviço de referência”, a partir da possibilidade de
pensar o sistema de saúde menos como pirâmide de serviços racionalmente
organizados de forma hierarquizada e mais como uma rede com múltiplas entradas,
múltiplos fluxos, para cuja construção, as representações e as necessidades sociais em
saúde são mais importantes.
Defendo que a lógica da integralidade, tal como desenvolvida no que denominei
de primeira dimensão da integralidade, a integralidade focalizada, como
preocupação de cada profissional e da equipe de cada serviço, deva estar
presente em todos os serviços. Precisamos deslocar nosso foco de atenção da
atenção primária como lugar privilegiado da integralidade, porque integralidade
é objetivo da rede. (p. 6)
Nesse enfoque é preciso considerar, portanto, que uma consulta médica, por
mais especializada que seja, não pode deixar de fazer uma certa escuta de outras
necessidades do “paciente”, que vão além da demanda referenciada que o traz ao
consultório.
62
O autor propõe uma radicalização das ações em saúde, a partir da idéia de que
“cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades, seja sempre o foco, o
objeto, a razão de ser de cada serviço de saúde”.(Cecílio, 2001, p.7).
Assim, percebe-se uma diferença e, ao mesmo tempo, uma complementaridade
entre a integralidade focalizada e a integralidade ampliada, tal como propõe Cecílio
(2001):
Chamemos, pois, de integralidade ampliada esta articulação em rede,
institucional, intencional, processual, das múltiplas integralidades focalizadas
que se articulam em fluxos e circuitos a partir das necessidades reais das
pessoas. (...) A integralidade ampliada seria esta relação articulada,
complementar e dialética, entre a máxima integralidade no cuidado de cada
profissional, de cada equipe e da rede de serviços de saúde. (p.7).
Esses conceitos, da forma como são trabalhados pelo autor, redimensionam os
princípios da reforma sanitária (universalidade, equidade e integralidade), constituindo
entre eles um entrelaçamento a partir da noção de necessidade de saúde e sua
apropriação (escuta, interpretação) pelos diferentes trabalhadores de saúde, em suas
mais diversas práticas, nos mais variados serviços, envolvendo também os gestores na
construção da lógica da atenção.
Cecílio (2001) conclui:
Podemos trabalhar com a idéia de que há necessidades diferentes de vínculos
para diferentes pessoas em diferentes momentos, assim como diferentes
necessidades de consumo de determinadas tecnologias de saúde, diferentes
necessidades ligadas às condições de vida e diferentes necessidades de
63
construção da autonomia. A busca da integralidade, se levada às últimas
conseqüências, revelaria as diferentes iniqüidades vividas por cada um que
busca os serviços de saúde. (...) por tudo que está em jogo: a infinita
variabilidade das necessidades humanas e as finitas possibilidades que temos
de compreendê-las. (p.12).
3.1.4. Como surgem os Programas de Atenção à Saúde
Segundo Figueiredo (2005), os Programas de Atenção à Saúde, no decorrer da
década de 80 (no século passado), foram resultado de propostas do Ministério de
Saúde para a assistência integral a diferentes setores da população e baseados em
indicadores epidemiológicos por faixa etária.
Assim, um destes programas, direcionado aos adolescentes, tinha a
nomenclatura de “PROSAD” (Programa de Atenção à Saúde do Adolescente),
enquanto “PAISA” era o Programa de Atenção Integral à Saúde do Adulto
25
. Além
destes dois havia o PAISM (programa de atenção integral à saúde da mulher), o PAISC
(programa de atenção integral à saúde da criança) e o PAST (programa de atenção à
saúde do trabalhador).
Veremos quais eram os objetivos definidos para o PROSAD, que foi oficializado
pelo Ministério de Saúde em outubro de 1988, segundo Figueiredo (2005, p. 278):
25
Em Porto Alegre, dez anos após a criação desse Programa, utilizou-se a sigla PAISA para o programa
direcionado aos adolescentes. Ver pagina seguinte.
64
1) Promover a saúde integral do adolescente, favorecendo o processo geral de seu
crescimento e desenvolvimento, buscando reduzir a morbi-mortalidade e os
desajustes individuais e sociais.
2) Normatizar as ações consideradas nas áreas prioritárias.
3) Estimular e apoiar a implementação dos programas estaduais e municipais, na
perspectiva de assegurar ao adolescente um atendimento adequado às suas
características, respeitando as particularidades regionais e a realidade local.
4) Promover e apoiar estudos e pesquisas multicêntricas relativas à adolescência.
5) Estimular a criação de um sistema de informação e documentação dentro de um
Sistema Nacional de Saúde, na perspectiva da organização de um centro
produtor, coletor e distribuidor de informações sobre a adolescência.
6) Contribuir com as atividades intra e inter-institucionais, nos âmbitos
governamentais e não-governamentais, visando à formulação de uma política
nacional para a adolescência e juventude, a ser desenvolvida nos níveis federal,
estadual e municipal.
Figueiredo (2005) escreve:
Foram considerados áreas prioritárias o acompanhamento do crescimento e do
desenvolvimento, a sexualidade, a saúde bucal, a saúde mental, a saúde
reprodutiva, a saúde do escolar adolescente, a prevenção de acidentes, o
trabalho cultural, o lazer e o esporte. (p. 278).
65
Em 1996, através dos dados obtidos por ocasião da 2ª CMS – Caderno de Teses
(reafirmando o sus e construindo uma cidade saudável), iniciava em POA a implantação
do PAISA (Programa de Atenção Integral à Saúde do Adolescente)
26
e afirmava:
Os adolescentes representam 21.76% da população, na região metropolitana. A
gravidez na adolescência acontece em cerca de 25%. A principal causa morte
nesta faixa etária é decorrente de causas externas. O atendimento ao
adolescente é realizado através das unidades de saúde, com ações de
assistência, prevenção e educação. (p. 34).
Em 95/96 foram realizadas as seguintes ações: curso de capacitação para
formação de multiplicadores no atendimento ao adolescente; oficinas de capacitação
para mais de cem alunos; organização do COISA (Comitê de Informações sobre Saúde
na Adolescência), orientando e assessorando as Unidades de Saúde na implantação do
PAISA e na elaboração de normas e rotinas de atendimento ao adolescente.
Até aqui, pode-se observar que o interesse na saúde do adolescente parece
surgir a partir dos levantamentos que indicam “gestação” e “morte por causas externas”
(portanto, envolvendo situações de violência).
Com a intenção de aprofundar a investigação e capturar o modelo de atenção
relativo à saúde sexual e reprodutiva, cita-se a seguir os objetivos apresentados para o
PAISM.
26
Percebe-se que, em Porto Alegre, uma década mais tarde em relação à criação dos Programas de
Atenção à Saúde pelo Ministério, essa sigla teve outra definição e concentrou as políticas de
planejamento em saúde para os adolescentes, ao invés de corresponder à denominação PAISA que se
destinava à saúde dos Adultos, onde as diretrizes pautavam alguns agravos específicos (hipertensão
arterial, tuberculose, diabetes mellitus, hanseníase e cardiopatias diversas).
66
Em relação ao Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM),
Figueiredo (2005, p. 276) refere oito objetivos:
1) Aumentar a cobertura e a concentração do atendimento pré-natal,
proporcionando iguais oportunidades de utilização do serviço para toda
população.
2) Melhorar a qualidade da assistência ao parto, ampliando a cobertura do
atendimento prestado por pessoal treinado, tanto no sistema formal como no
informal (parteiras tradicionais) e diminuindo os índices de cesáreas
desnecessárias.
3) Aumentar os índices de aleitamento materno, fornecendo as condições para
implantação do alojamento conjunto.
4) Implantar ou ampliar as atividades de identificação e controle do câncer cérvico-
uterino e de mamas.
5) Implantar ou ampliar as atividades de identificação e controle das doenças
transmitidas sexualmente (DSTs).
6) Implantar ou ampliar as atividades de identificação e controle de outras
patologias de maior prevalência no grupo.
7) Desenvolver atividades de regulação da fertilidade humana, implementando
métodos e técnicas de planejamento familiar, diagnosticando e corrigindo
estados de infertilidade.
8) Evitar o aborto provocado, mediante a prevenção da gravidez indesejada.
Na medida em que o surgimento desse programa foi em 1984, é interessante
destacar a importância dos itens cinco, sete e oito, os quais explicitam a preocupação
67
com o planejamento familiar e com o controle sobre as relações sexuais, desde a
perspectiva das DSTs.
Esses mesmos aspectos são salientados em 1996, em Porto Alegre, com
relação às ações de saúde da mulher, no documento elaborado como “Caderno de
Teses” para a segunda CMS (Porto Alegre, 1996). Ali se descreve que 33.1% das
mulheres porto-alegrenses encontravam-se em período fértil (10 a 49 anos) e referia o
PAISM como base para: “regulação da fertilidade com acesso aos métodos
contraceptivos”; atendimento e prevenção das DSTs e AIDS; grupos de sexualidade;
grupos educativos e informativos nas áreas de: DSTs e AIDS, contracepção, gestação,
adolescência, climatério, doenças crônico-degenerativas, saúde mental. Referia ainda
que o aborto estava entre as causas de morte materna, atingindo 18% das mulheres.
(p. 35-36)
27
.
3.2. SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ADOLESCENTES
O número de pesquisas em torno da adolescência vem crescendo em todas as
áreas do conhecimento. Psicanalistas, educadores, antropólogos, sociólogos,
psicólogos, ginecologistas, assistentes sociais, pediatras, enfermeiros, entre outros, têm
se debruçado sobre esse processo, principalmente no que este pode ser deflagrador de
situações de “risco” ou de “crise”.
27
Remete-se o leitor às páginas 147-150 e às análises do capítulo cinco.
68
Pode-se dizer que há uma concentração das pesquisas na área da saúde e,
principalmente, na saúde pública, na medida em que o adolescente representa de
alguma forma o “termômetro” para as ações e programas de prevenção em saúde, ou
seja, o adolescente vem orientar e dar indícios sobre as condições de efetividade
desses programas, no que diz respeito aos cuidados com o corpo e com a sexualidade.
Assim, pode-se observar dois temas que prevalecem nesse universo de
investigações científicas: o uso de drogas e a gestação na adolescência
28
. Mais adiante
no texto demonstra-se o quanto tais temas estão polarizados sobre as identidades
sexuadas (meninos e meninas) e, também, como vêm acionar programas (políticas
públicas) para a população de baixa renda.
Por hora, o que parece ser notável é a disparidade entre as intervenções que
levam em conta a gestação na adolescência, visando proteger e amparar a jovem
nessas condições e àquelas que pretendem dar conta do jovem envolvido (o termo
utilizado seria “em conflito”) com a lei, considerando que o uso de drogas continua
sendo motivo para ações do Juizado da Infância e da Juventude, através da chamada
Justiça Terapêutica e Práticas Restaurativas.
Apesar de inúmeras pesquisas e estudos “alarmistas” com relação à gravidez
precoce, como segue abaixo, a agenda das políticas públicas parece definir-se pelas
urgências sociais; urgências que deflagram um horizonte de hostilidade permanente
entre os “jovens de periferia” e “a ordem social”, estabelecendo uma constante:
violência, drogas e ato infracional; urgências que determinam a criação de uma
28
Outros temas bastante incidentes como abuso sexual e violência intrafamiliar não focam o adolescente
de forma tão específica, referindo-se mais à infância.
69
diversidade de programas com auxílio financeiro e que concentram os jovens “pobres”
do sexo masculino.
Por onde andariam as garotas? A equação parece simples: quando se trata de
violência e uso de drogas (SPA - substâncias psicoativas), lá estão os rapazes das
classes populares; quando se trata de “gravidez precoce”, lá estão as “gurias” também
das classes populares
29
.
Considerando as meninas: a gestação na adolescência (dita “precoce” e “de
risco” para a criança e para a futura mamãe) ocorre por inúmeras causas e, por isso,
estas adolescentes gestantes precisam ser exaustivamente quantificadas, avaliadas
demograficamente e, praticamente, viradas do avesso, para que se possa definir
políticas e programas de prevenção, desde a educação sexual reprodutiva no âmbito
escolar até assistência diferenciada (especializada) no âmbito da saúde pública,
passando pela distribuição de preservativos, pela disponibilização e dispensação de
comprimidos, através da formação de grupos de planejamento familiar voltados à
anticoncepção e à prevenção de doenças (DSTs e AIDS).
Cita-se três pesquisadores,
para demonstrar a importância desse viés quantitativo, justamente por que vêm produzir
a visibilidade feminina nos contextos de maior pauperismo social e econômico.
Marco Aurélio de Carvalho (2002), professor da Faculdade de Medicina de
Barbacena em Minas Gerais, desenvolveu uma pesquisa com 129 adolescentes
grávidas, na faixa etária entre 10 e 20 anos, de maio a novembro de 2000, na Santa
Casa de Misericórdia e unidades de saúde do município de Barbacena. Os resultados
encontrados apontam que 69,2% estavam com 16 anos e solteiras, sendo a idade
29
Salienta-se o termo “classes populares”, na medida em que a questão social de classe faz pesar sobre
esses adolescentes os estereótipos mais incoerentes, transparecendo na saúde publica, principalmente,
os ideais burgueses de higienização, educação e recuperação.
70
média em que a mãe da adolescente engravidou pela primeira vez, 20 anos – o que
explicitaria uma correlação entre a gestação na adolescência e a cadeia geracional
precedente; 51,2% não tinham completado o ensino fundamental e 66,7% evadiram da
escola a partir da gestação; 65,9% tinha renda familiar de até dois salários mínimos;
47,3% iniciaram sua vida sexual antes dos 15 anos e 9,3% tiveram já um aborto, sendo
que 45,1% não faziam uso de nenhum método contraceptivo e 29,5% usavam pílula. A
conclusão deste estudo aponta para uma prevalência de gravidez entre 10 e 20 anos
de 25,2%.
30
Quanto às taxas de fecundidade na população adolescente, Camarano (1998)
verifica que há uma tendência de crescimento dessas taxas nos três grupos etários
considerados (10-14, 15-19 e 20-24) em sua pesquisa. Essa é uma constatação
importante, pois é sabido que o índice de natalidade e de fecundidade geral no país
está em declínio, enquanto na população jovem está aumentando. Essa tendência
crescente nas taxas de fecundidade é bem mais marcante justamente nos grupos de
menor idade, de 10 a 14 e de 15 a 19 anos, enquanto nas jovens de 20 a 24 anos o
aumento verificado foi menor, apresentando uma certa estabilidade nos anos de 1995 a
1997. Esse comportamento é mais acentuado entre as mulheres jovens de baixa renda.
A diferenciação etária da fecundidade é um indicador determinante do crescimento
populacional, já que expressa o ciclo reprodutivo mais longo e um contingente maior de
mulheres.
Gama et al.(2002), em um estudo comparativo entre três grupos de gestantes:
menores de 20 anos, entre 20 e 34 anos – tendo sido gestante adolescente e, na
30
Estimativas do IBGE em 1994 indicavam que 20% do total de nascimentos envolviam mães menores
de 15 anos.
71
mesma faixa etária, sem nenhuma experiência anterior, demonstrou nos dois primeiros
grupos características como: baixa escolaridade; baixa renda; pouca ou nenhuma
atividade remunerada exercida por elas (87,9 e 70,9% sem trabalho); desejo por esta
gravidez (32,5 e 30,8% desejavam); presença do pai do bebê (34,3 e 18,3% não viviam
com o pai do bebê).
Analisando brevemente e de forma sucinta o impacto dessas adolescências na
saúde pública, é preciso citar os “programas” constituídos em torno desta faixa etária,
salientando que irá se observar duas modalidades, da seguinte forma: “programas” que
atendem também
os adolescentes (exclusivamente do sexo feminino) e “programas
pensados para” pré-adolescentes e adolescentes, os quais atingem significativamente o
sexo masculino.
Assim, nas periferias dos grandes centros urbanos e entre a população de baixa
renda, encontram-se programas de saúde e de assistência social que atingem
adolescentes predominantemente mulheres jovens, sem terem sido pensados como
programas direcionados a essa faixa etária
31
, tais como: programas de
acompanhamento pré-natal
32
; os programas de reabilitação nutricional (PRN) como
“pra-saber” e “pra-crescer”, os quais envolvem auxílio financeiro às mães (ambos
programas de acompanhamento do risco nutricional na gestação; nos recém-nascidos e
nas crianças menores de 5 anos) e o acompanhamento para gestantes e puérperas
soropositivas, buscando prevenir o contágio vertical. Além disso, observa-se um
31
Não se leva em conta o CRAE (Centro de referência para o abuso sexual na infância e adolescência),
porque uma gravidez nestas condições terá outros desdobramentos. Também é preciso salientar que
existem parcerias com instituições de caridade que mantêm casas-lares para as meninas grávidas que
são expulsas de casa.
32
Em Porto Alegre, o Hospital Presidente Vargas é considerado “especializado” para o acompanhamento
pré e pós-natal das jovens mães, através do Programa de Atenção Integral à Gestante Adolescente
(PAIGA), mas a orientação é de descentralização e de capacitação entre os profissionais das equipes
básicas de saúde para prestar essa assistência.
72
número crescente de meninas adolescentes, menores de 18 anos, que procuram os
Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA-HIV) e o Centro de Orientação e
Aconselhamento Sorológico (COAS). Quanto aos grupos de planejamento familiar das
Unidades Básicas de Saúde, quando existem, têm uma baixa adesão desta faixa etária.
Outros programas em parceria com o Ministério Público e/ou Assistência Social
Comunitária (FASC), Conselhos Tutelares e as políticas intersetoriais, envolvem o
adolescente, predominantemente jovens do sexo masculino, em conflito com a lei
(prática de atos infracionais e/ou usuários de substâncias psicoativas - SPA), em
situação de rua e evadidos da escola como: programa de execução de medidas sócio-
educativas – PEMSE e programa de prestação de serviços à comunidade – PSC, que
inclui uma bolsa-auxílio; o Programa de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente –
PAICA, o qual inclui abrigos, abordagens de rua, educação social de rua, projeto coruja,
a casa harmonia e o serviço de saúde mental do Pro-Jovem
33
; o serviço de apoio socio-
educativo – SASE, com inúmeras oficinas e atividades extra-classe; e o núcleo de apoio
sócio-familiar – NASF que prioriza as famílias de jovens envolvidos com drogas
disponibilizando um auxílio financeiro; também o programa de redução de danos
PRD
34
, para usuários de drogas injetáveis – UDI e/ou soropositivos, vem contribuindo
para alertar os jovens em relação às condutas que o expõem aos riscos de
contaminação para o vírus do HIV e auto-cuidado.
33
O pro-jovem atinge igualmente meninos e meninas, os quais são encaminhados pelo conselho tutelar
por abuso sexual, maus-tratos e uso de SPA. Não mencionamos o NASCA (núcleo de atenção à saúde
da criança e do adolescente), que compõe o PAICA, porque o trabalho é bastante restrito a uma
assessoria às escolas e tenta agilizar intervenções na área da saúde relativas aos problemas detectados
no âmbito escolar.
34
O programa de redução de danos procura trabalhar com uma lógica que permita conferir cidadania e
direito ao uso limpo de drogas injetáveis, partindo de uma abordagem que minimize os danos e
sofrimentos desta população em todos os âmbitos.
73
Para salientar a relevância desse lugar direcionado ao sexo masculino nas
práticas e intervenções de saúde, toma-se um levantamento realizado pela
Coordenação da Política da Saúde Mental, em Porto Alegre:
Em se tratando ainda da caracterização da Saúde Mental no município, um
levantamento recente sobre internações, efetuado pela CPSM (out/2005),
obteve indicação de um crescente aumento de internações de adolescentes em
razão de dependência química em Porto Alegre – compondo de 85 a 95% das
internações em leitos privados adquiridos pelo município por demanda judicial,
sendo destes cerca de 70% para pacientes do sexo masculino. (Porto Alegre,
2005).
Dessa forma, como se pode observar, a inserção do jovem nesses programas
depende de um “ato”, conduta ou comportamento identificado pelo poder público como
problema a ser resolvido, como situação problemática ou situação de risco que requer
intervenção e, nesse sentido, tais programas são gerados numa rede, numa malha de
instituições produtoras de registros, rotinas, normas, contratos e combinações com
esses adolescentes. A questão é saber até que ponto os adolescentes são capazes de
sustentar este lugar de ter que produzir respostas sobre os seus atos em vários pontos
da rede. Em outras palavras: até que ponto há uma demanda própria desses jovens e
qual seria sua posição transferencial em relação à rede.
Para acurar novamente o olhar para as diferenças de gênero, nas classes
populares, pode-se resumir, grosso modo, que a posição feminina parece encontrar
74
uma forma de inscrição social
35
através da maternidade; enquanto a posição masculina
parece demonstrar que precisaria adequar suas referências fálicas de origem (porte de
armas, violência, tráfico e/ou uso de drogas) a um outro sistema (prescritivo e
disciplinar) que prevê outras referências (ter uma ocupação/profissão, estudar) como
forma de corrigir os problemas sociais.
Então, dois problemas emergem daí: “trabalhar e estudar” se constituem para o
sujeito adolescente como um aprisionamento no discurso social e na sociedade de
controle, da mesma forma como pode significar um outro aprisionamento – ainda mais
problemático para suas necessidades – a saber: o aprisionamento no desejo materno
(ver as análises do capítulo quatro).
Para ampliar um pouco o foco sobre essas questões, é preciso salientar que as
condições do laço social contemporâneo impõem uma passagem entre um sistema de
dominação e um sistema hegemônico, com liquidação simbólica de todos os valores
(Baudrillard, 2005), o que significa dizer que os valores das classes dominantes ou os
ideais burgueses de trabalho e estudo podem estar gerando apenas efeitos imaginários
e não mais simbólicos. O sistema hegemônico é o domínio da simulação, de uma
simulação operacional de todos os valores, de todas as culturas, tornando a cada uma
sem efeito simbólico
36
.
Para Bauman (2001) a precariedade da existência social contemporânea inspira
uma percepção do mundo como um agregado de produtos para o consumo imediato. O
35
Entendemos inscrição social como essa ordem temporal – de um tempo singular – que vem
estabelecer o momento para o ingresso no laço social, para a busca de reconhecimento e de integração
social.
36
Outros autores (Melman, 2003 e Lebrun, 2004) mencionam um processo de dessimbolização
contemporâneo, que produz uma nova economia psíquica, a partir da substituição do simbólico pelo
traumático.
75
autor vai dizer que a nossa cultura não encontra lugar para tomar distância, nem para a
reflexão, nem para a recapitulação, para a continuidade e para a tradição, chegando
assim na auto-satisfação instantânea, constante e irrefletida.
Com essas visões, pode-se conjeturar que os valores licos, seja do tráfico ou
do uso de drogas, seja do estudo ou do trabalho, atualmente se equivalem em qualquer
classe social. Entretanto, para as classes populares do meio urbano, há um lugar a eles
designado dentro do laço social.
Assim, os programas mencionados anteriormente parecem adscrever um lugar
no laço social para o jovem que vive nos bairros populares do meio urbano, a partir da
diferença sexual: um lugar de “risco” externo para os rapazes a partir do binômio
“drogas e violência”; e um lugar de “risco” interno para as moças a partir das gestações
precoces. Não há como escapar desses determinantes culturais da adolescência, que
parecem demandar um agir próprio a todos os adolescentes, mas que vêm condenar o
jovem que vive “na periferia”.
Alguns autores como Jorge Lyra e Benedito Medrado (2002) apontam para a
perspectiva do protagonismo juvenil e do engajamento político como saída “positivante”
para os adolescentes “pobres” e se referem às políticas públicas como coadjuvantes da
cultura dominante na construção de uma imagem “negativa” para esses adolescentes.
Grande parte das políticas públicas direcionadas aos jovens parece estar
apoiada nessa retórica que ressalta a ameaça representada pela juventude,
com constante reforçamento da idéia do jovem como exposto a uma série de
riscos próprios a sua fase, os quais podem ser internos (crise identitária) ou
externos (violência). Em linhas gerais, circulam no cotidiano contemporâneo
idéias sobre adolescência e juventude que se associam à noção de crise,
desordem, irresponsabilidade, enfim, problema social a ser resolvido, que
merece atenção pública. Assim, o enfoque de risco, em particular, aparece
76
fortemente associado a esses repertórios, por meio de expressões como:
gravidez de risco, risco de contrair o HIV, risco de uso de drogas ilícitas, risco
de vida frente à violência. O risco generalizado parece, assim, definir e
circunscrever negativamente esse período da vida. (...) Indo mais a fundo, vê-se
subliminarmente a emergência de um discurso heteronômico no qual o(a)
adolescente é desprovido(a) de sua positividade, em detrimento de um padrão
que tem como referência a vida adulta. Por um malabarismo retórico termina-se
por quase afirmar que é preciso prevenir a adolescência. (p. 11-12).
O que se percebe, é que há uma discrepância entre as políticas de prevenção e
as políticas de intervenção, quando – na verdade – nem a prevenção deve estar a
serviço da identificação de fatores de risco, nem a intervenção precisa se pautar em
criar tantos serviços quantos forem os problemas existentes no contexto social.
Os autores referidos acima defendem que, em termos de políticas públicas,
aprende-se a dar mais importância aos programas do que aos sujeitos adolescentes,
mais atenção às práticas intervencionistas do que à fluidez de experiências no entorno
social.
Assim, quando as pesquisas afirmam que os adolescentes sem suporte
emocional, seja pela presença de conflitos na família ou pela ausência dos pais,
apresentam poucos planos e expectativas quanto à escolaridade e à profissionalização,
sendo mais vulneráveis aos fatores de risco dessa faixa etária (p. ex. gestação, uso de
drogas) é preciso interrogar que tipo de responsabilidade o poder publico é convocado
a assumir, a não ser aquela que se define como “tutelar” e que retira do sujeito a sua
possibilidade de asserção e sua propriedade de si?
Melman (1997) salienta que a nossa cultura mantém uma discordância entre os
estatutos biológico, subjetivo e social, donde se depreende que por um lado reconhece
a maturidade biológica do corpo adolescente e por outro subestima e considera o
77
sujeito adolescente incapaz para o exercício da sua sexualidade, no sentido de que
socialmente o adolescente não possui os meios legais para assegurar sua
emancipação a esse respeito. Ou melhor, “se não há reconhecimento simbólico do
lugar do adolescente, de seu estatuto de sujeito implicado na vida sexual, (...) a
resposta dos adolescentes a esta discordância se faria através de atos: passagens ao
ato ou acting out.” (p. 37). O autor distingue os atos “que não esperam mais nada de
ninguém” (passagens ao ato) e “os pedidos de ajuda a um Pai ideal” (actings out) como
sinais feitos ao meio e que expressam uma transferência
37
em curso.
Com outras palavras, esse autor aponta para um paradoxo da condição
adolescente, onde o desejo de reconhecimento se dá em uma contradição, ou melhor,
ser reconhecido por sua diferença, por sua contravenção: por fazer resistência ao laço
social como está proposto e tentar desprender-se dos ditos maternos e mandatos
sociais.
Cristina Pimenta (2002) ressalta a importância de identificar projetos sociais que
favoreçam a criação de referenciais próprios às culturas locais (regionais) para a
construção de identidades positivas
entre os jovens e intervenções que criem condições
alternativas, descoladas do paradigma saúde-doença, para superar a condição de
exclusão e promover valores “perdidos” como o convívio e a solidariedade
38
(Pimenta &
Rios et al, 2002).
37
Transferência é um conceito cunhado por Freud em 1895, já nos “Estudos sobre a Histeria”, onde o
paciente desenvolve sentimentos de amor pelo analista, possivelmente deslocados das figuras amadas
no passado.
38
É comum se pensar que as classes populares convivem em redes solidárias espontâneas, entretanto o
que se observa são redes de interdependência que produzem tantos conflitos quanto soluções. Ver item
3.3.3, página 87.
78
Para concluir este tópico relativo à saúde e às políticas públicas, é preciso
lembrar ainda que os adolescentes, de um modo geral, estão envolvidos em produzir
sua inscrição no social (Costa, 2001; Jerusalisky, 1997; Rassial, 1997). Viver a
passagem adolescente é trabalhar muito para produzir uma subjetividade que possa
sustentar sua imersão na cultura. Entretanto, podem-se identificar dois tipos de cultura:
a cultura global hegemônica, veiculada pela mídia e que tenta conformar um mesmo
imaginário para todas as classes sociais e as culturas locais, as quais só podem
sobreviver através das redes de transmissão de experiências e de biografias
compartilhadas.
3.3. O SERVIÇO
A ESM infância e adolescência da Gerencia Distrital Leste e Nordeste foi
organizada em agosto de 2004
39
e está composta por quatro psicólogas, duas
monitoras e uma psiquiatra.
Seu funcionamento respeita os critérios de regionalidade e hierarquização,
definidos nos tópicos anteriores. O acesso dos usuários dá-se mediante
encaminhamento formal da rede de atenção primária, consistindo, portanto, num
serviço de atenção secundária.
39
Nesta região, funcionava uma ESM para todas as faixas etárias desde 1998, sendo desmembrada em
duas equipes para contemplar a formação de um CAPs adulto na região. O modelo de equipe e
atendimento ambulatorial foi mantido para crianças e adolescentes.
79
Como forma de sistematizar a descrição de contexto, esse tópico está dividido
ainda em quatro itens:
Quem são os “usuários” ou as características da população
Como acessam o serviço
Como funcionam os Grupos de Acolhimento em Saúde Mental
O relato de uma experiência
3.3.1. A população
Pretende-se contextualizar brevemente a população atendida pela Equipe de
Saúde Mental, bem como os serviços que compõem a região.
Essa equipe é referência para todos os serviços da rede básica de saúde
40
localizados em uma gerência distrital de saúde, a qual abrange dois distritos sanitários,
que correspondem às regiões do orçamento participativo da cidade de Porto Alegre,
onde a maior parte das comunidades está composta por uma população precarizada
41
em todas os âmbitos: das condições de empregabilidade às condições de acesso à
educação, do acesso à informação ao acesso às diferentes mídias, desde as apostas
no presente até as visões de futuro.
40
São quatro Unidades de Saúde e 16 Programas de Saúde da Família – PSF.
41
O conceito de precarização é desenvolvido por Dejours na obra “A banalização da injustiça social”
(1999) e remete à vulnerabilidade dos sujeitos diante das transformações do trabalho: a
desregulamentação e a flexibilização das relações de trabalho.
80
O trabalho com adolescentes da mesma forma precarizados é um desafio e é
possível dizer, que o ethos desses adolescentes “excluídos” é conhecido por toda a
sociedade dita organizada: violência, drogadição, marginalidade.
Hoje em dia um rosto adolescente é a própria “face do crime” (vide a discussão
em torno da redução da idade penal). A partir desse modo de agir, que deflagra uma
ética da “máxima diferença” por estar à margem do imaginário social, é possível
perceber uma estética da “mínima diferença”, porque deflagra uma cultura onde se
produz a exegese dos estilos: “os hip-hop”, “os maloqueiros”, “os chinelos”, “os
grafiteiros”, os “patrãozinho”, “os manos”, “os boy”, “os arroz”, “os pagodeiros”, “os
crentes”, “os vagabundo”. Figuras deslizantes num universo líquido. Configurações
fluidas, intestinas, viscerais no seu universo próprio, mas por outro lado “figurações
estéticas” quando capturadas pela mídia e reproduzidas como imagem (vide o seriado
Cidade dos Homens, veiculado na TV Globo, em 2004).
Na tentativa de dar conta das características de vida na comunidade, ir-se-á
utilizar as referências construídas por Fonseca (2000) para responder a seguinte
questão: “qual seria a imagem da vida social comum às vilas populares na região
urbana?” (p. 25). A autora estabelece uma série de caracterizações, as quais foram
organizadas aqui em quatro pontos.
1. A “vila”, em primeiro lugar, é um reduto social e economicamente
discriminado pelos grupos dominantes, onde o sentimento de exclusão se
manifesta pelos ditos entre os moradores que constituem uma auto-
referência: eles se autodefinem como “nós, os pobres”.
81
2. As práticas sociais são constituídas como “interconhecimento”, ou seja,
extrapolam o eixo do que seria público e interferem na esfera privada,
estabelecendo relações de “intimidade social”, onde se torna impossível
manter um espaço reservado ao que se costuma chamar “privacidade”. “Aqui
não há nada ou muito pouco do proverbial anonimato das grandes cidades”
(Fonseca, 2000, p.24)
3. Neste sentido, faz-se notar uma crescente interdependência funcional dos
habitantes destes aglomerados suburbanos
42
, ou seja, as pessoas
dependem umas das outras para o mínimo vital: “não se pode prescindir do
vizinho”, mas “dessa ajuda mútua e constante nascem tanto ódios quanto
amizades e também uma infinidade de conflitos” (Fonseca, 2000, p. 28).
4. Por outro lado, há uma organização social própria, sem a intervenção da lei e
da polícia (anomia), que estabelece uma hierarquia interna de poder, onde
“os fortes” são aqueles que têm a possibilidade de impor sua vontade aos
outros: por exemplo, os comerciantes, os homens armados e os jovens
delinqüentes (maconheiros) colocam-se no alto, apesar de que os outros
(mulheres, velhos e pacíficos), que representam os fracos, encontram suas
brechas e táticas para neutralizar os mais fortes ou sua influência.
Nesse quarto aspecto, pode-se salientar a discussão proposta pela autora
quanto às balizas para a honra masculina, comparadas aos pontos de apoio para a
honra feminina, pois esses aspectos condizem com os fundamentos dessa pesquisa.
42
As terminologias utilizadas pelo IBGE (2004) são: “aglomerado subnormal” para favelas, “sem teto”
para moradores de rua, “cômodos” para cortiços ou “domicílio improvisado” para "mocós".
82
Na verdade, Fonseca (2000 p. 27 a 33 e 133 a 164) vai demonstrar que, para a
imagem pública do homem existem vários pontos de apoio, enquanto para as mulheres
haveria somente um: o orgulho da maternidade associado à eficiência no lar (“ela deve
ser uma mãe devotada e uma dona de casa eficiente” p. 131).
Entre os aspectos, salientados pela autora, que podem definir a honra masculina
aparecem: a virilidade (ligada à procriação); a força física; a influência na família ligada
ao controle da sexualidade das esposas/companheiras e das filhas
43
; o respeito entre
os “fortes” na hierarquia; status ou poder vinculado à atividade comunitária (igreja,
associação de moradores), ao comércio formal ou informal, ao uso de armas de fogo,
ao envolvimento com o tráfico, como mencionado anteriormente.
3.3.2. Como se dá o acesso ao serviço
Para as equipes de saúde mental, o modelo de atenção se efetiva, quando uma
concepção do conceito de acolhimento pode ser elaborada.
O acolhimento é toda ação que antecede o atendimento propriamente dito, é a
forma de receber a população de usuários cadastrados em um serviço de saúde e
orientar cada um dentro da rede pública de saúde, conforme sua necessidade. Assim,
o processo de acolhimento começa no acesso ao serviço. Começa quando “alguém”
escuta a demanda de atendimento.
43
A autora refere estudos antropológicos na região mediterrânea que definem o prestígio e o poder dos
indivíduos como dependendo, em grande medida, do controle familiar da sexualidade feminina.
(Fonseca, 2000, p. 135).
83
Nesse caso, pode iniciar com a marcação da consulta médica e com uma
“queixa”, a qual será traduzida em jargão médico (diagnóstico clínico) e transcrita para
um documento padronizado, chamado de DRCR (“documento de referência e contra-
referência”).
Observa-se que o primeiro contato do usuário-paciente dá-se em consulta
médica individual e pode resultar no seu encaminhamento para a saúde mental, mais
especificamente para o atendimento psicológico. Então, a primeira orientação na rede
seria, metaforicamente falando, como se o paciente recebesse um mapa indicando o
caminho a ser percorrido: “você vai até aquela mesa, apresenta este documento e
aguarda até sua consulta ser agendada na psicologia”.
Quando o usuário apresenta o documento diante da pessoa responsável, é
imediatamente informado que deverá checar semanalmente numa grade de
distribuição de consultas especializadas, se o seu nome consta para atendimento, em
qual local e em que data será a consulta solicitada.
Passado algum tempo, tendo em mãos novamente o mesmo DRCR, agora com
o campo de marcação preenchido, ou seja, o local, o nome do profissional, sua
especialidade, a data, a hora e a sala para a consulta, o paciente é informado que, em
se tratando de saúde mental, o primeiro atendimento poderá ser realizado através de
um Grupo com outros pacientes e respeitando a faixa de idade.
É importante esclarecer que esse primeiro atendimento em saúde mental poderá
ser agendado em consulta individual, a critério do médico ou por solicitação do
paciente. Entretanto, o objetivo desse primeiro contato é apenas definir a modalidade
de tratamento, informar sobre o funcionamento da equipe e estabelecer as prioridades
de ingresso, caso a caso.
84
As modalidades de tratamento incluem as psicoterapias individuais; o tratamento
psiquiátrico e medicamentoso; as psicoterapias em grupo por faixa etária; os grupos de
convivência ou oficinas terapêuticas; os grupos de apoio e orientação a pais e
cuidadores, terapia focal e terapia de família.
Da mesma forma, pode-se falar em modalidades de acolhimento, já que se
definem duas possibilidades: o acolhimento em grupo que será esmiuçado a seguir e o
acolhimento individual que, segundo os critérios de trabalho da equipe, irá se destinar
aos casos de pacientes egressos de internação, encaminhados por outras equipes de
saúde mental (incluindo os serviços especializados CAIS, Casa Harmonia, Pro-Jovem,
CRAE), ou referenciados pelo Plantão de Emergência em Saúde Mental e outras
situações avaliadas em interconsulta
44
.
Para essa investigação priorizamos a descrição do acolhimento em grupo.
A chegada no grupo parece normal. Muitos usuários (moradores da região) já
sabem que tem um movimento de pessoas que entram na sala da psicologia todos
juntos; muitos já conversaram com alguém que passou por essa experiência; outros
demonstram curiosidade e, ao mesmo tempo, estranhamento com relação a esse tipo
de atendimento. Mas na hora de viver essa experiência não é fácil e, por vezes, vence
o estranhamento.
Por que o grupo provoca situações como essa?
Porque nenhum grupo é igual, não se pode prever o que vai acontecer. Cada
agrupamento é único e “o encontro”, portanto, imprevisível.
44
Atuação dos profissionais de Saúde Mental para avaliar e indicar um tratamento aos pacientes que
estão sob os cuidados de outros especialistas ou na rede de atenção básica. Na Gerência Distrital estão
organizados cinco grupos de interconsulta para as USs e PSFs com reuniões mensais.
85
Por esse motivo, a noção de acolhimento em saúde mental tem um sentido
muito importante, na medida em que o modo de escutar os pacientes, novatos para
esse tipo de tratamento, produz, de imediato, uma diferença com relação ao modelo
clínico tradicional.
Ou seja, optar em acolher os pacientes em grupos por faixa etária, provoca um
descompasso entre a demanda explicitada e a necessidade oculta, entre discurso e
desejo, entre alienação imaginária e engajamento simbólico. Há uma diferença
essencial entre a prática clínica tradicional, onde a fala-queixa do paciente é traduzida
em discurso-diagnóstico para encontrar uma solução-remédio, e esse outro momento
onde há um “encontro”. Encontro de pessoas, de histórias, de experiências, de
silêncios e de falas.
Na modalidade de acolhimento em grupo faz-se necessária uma abertura
subjetiva, que consiste em uma disponibilidade para outras escutas, abertura para
outros sentidos e significações, para outros olhares e experiências. A alteridade,
mediada pelo grupo, pode conduzir até uma “familiaridade”, porque entre os habitantes
das comunidades locais pode haver uma certa proximidade relativa aos traços de
identificação: desde os acontecimentos e experiências partilhadas entre os habitantes
do lugar, até os traços culturais comuns, que perpassam o uso da linguagem, os
signos, os valores éticos, estéticos, religiosos.
O grupo pode desalienar também os profissionais que o coordenam, porque – no
grupo – aparecem mais facilmente as referências locais, o hibridismo cultural, os
valores compartilhados.
As “falas” no grupo são exemplos do que pode ser repetido por diferentes
sujeitos. Entretanto, quando algo da história desses sujeitos é escutado, algo do
86
encadeamento entre tempo e espaço, que pode ser relativo a ocupar um lugar, falar e
ser falado, pertencer a um grupo, família, comunidade, então é possível notar a forma
singular que as falas podem assumir na linguagem.
3.3.3. O Grupo de Acolhimento em Saúde Mental para adolescentes
O acolhimento em grupo para adolescentes parte de três princípios: o processo
grupal, o momento de escutar e o momento de falar.
A processualidade do grupo tem a ver com sua dinâmica que é única para cada
formação. Quantos vão participar, de onde vêm, quantos estão acompanhados, como
chegaram, a troca de olhares no corredor (a dinâmica da sala de espera), o momento
de entrar, os códigos silenciosos e os preceitos da “indiferença civil”
45
, até que a porta
se fecha e um grupo vai começar. A partir daí um espaço é criado como heterotopia
46
:
de repente, naquela sala, entre estranhos, pode abrir-se a possibilidade de um outro
convívio, com outros preceitos, com novas combinações como um faz-de-conta. Um
certo número de pessoas vai conversar, estabelecer seus próprios limites para dizeres
e emoções, compartilhar suas visões de mundo e seus sofrimentos durante cerca de
90 minutos.
45
Giddens (2002) refere a necessidade das populações urbanas desenvolverem estratégias de convívio
nos espaços públicos, sem efetivar interação.
46
Foucault ([1966]1999) apresenta a noção de outro espaço, um espaço dimensionado pela imaginação
individual ou coletiva, que inventa uma outra sintaxe (não-linear), uma outra ordem, que é pura
desordem e diversidade sem possibilidade de um ordenamento ou síntese: cada “palavra” ou “coisa”
ocupa um lugar exclusivo e único, sem que se possa estabelecer uma classe ou mesmo uma hierarquia.
87
O momento de escutar é um tempo de espera. Significa, para cada um, a espera
da sua vez de falar e essa espera não está determinada, porque cada um precipita-se
na fala a partir das suas possibilidades de “inclusão”, de implicação
47
, de enunciação e,
portanto, de “escuta”. Trata-se da disponibilidade interna de cada um e, em especial,
dos terapeutas coordenadores. Lúcia Ozório (2001) trabalha um conceito
especialmente caro no que se pode julgar ser tal disponibilidade: “a sensibilidade
etnológica”. A autora diferencia “os profissionais de saúde” dos “trabalhadores de
saúde”, na medida em que estes fazem uma aliança com a práxis, através do
“exercício de uma sensibilidade etnológica, que presta atenção aos modos de agir dos
seus moradores”.
Para os participantes do grupo, o momento de escutar é uma espécie de
momento de aprender. Uma aprendizagem quanto à ocupação de um lugar perante o
“trabalhador de saúde” e também perante os pares (seus “iguais” na multiplicidade).
Pode-se dizer que quanto mais rápida é a aprendizagem, menor é a escuta, porque o
que todos estão aprendendo é a invenção de um espaço, onde os preceitos e códigos
de convívio – por uma fração de tempo – parecem se reconfigurar podendo dar
margem às mudanças.
Quando se aprende muito rápido é porque se reproduz e repete-se um fazer ou
um saber, sem experimentar outros.
O processo do “vir-a-ser” próprio da adolescência, como processo de um sujeito
“inacabado”, pode ser algo bastante interessante nesse momento de escuta e,
47
Ozório (2003) apresenta o conceito de implicação como uma noção de pertencimento: o que fazemos
e o que somos como dimensões indissociáveis do viver.
88
portanto, na invenção desse espaço, como espaço para o exercício dessa
aprendizagem, ou seja:
Aprender a ser outro e passar a ocupar um outro lugar no discurso da
mãe, no discurso familiar, no discurso da lei, no discurso médico, no
discurso da escola, desprendendo-se das suas determinações.
Por fim, o momento de fala, do dizer sobre o motivo que trouxe cada um até o
acolhimento em saúde mental.
Em geral, nas consultas individuais, fala-se em queixa do paciente, mas aqui o
que era queixa dá lugar à outra coisa. Parecem ensaios de um dizer que não se
esgota, porque se espelha nos viveres múltiplos que são desvelados. Cada experiência
que é narrada traz para dentro da sala (desse espaço em configuração) um pouco da
realidade, dos traços coletivos em cada discurso “individual”, dos elementos da
realidade social que são compartilhados. Por isso, o que suscita em cada um é o
precipitar-se na fala, porque se vêem implicados, incluídos. As condições de implicação
não são só da ordem desse espelhamento coletivo. Há outras implicações que tocam o
sentimento de pertencer e interrogam esses sujeitos desde suas origens, crenças e
valores. Deleuze e Guattari (apud Lúcia Ozório, 2003) contrapõem aliança e filiação:
enquanto a filiação “é da ordem do imaginário, das correspondências, dos caracteres,
dos modelos, das cópias, das descendências...”, a aliança é feita entre heterogêneos,
através de uma “evolução comunicativa e contagiosa”, sem propor uma identificação,
uma imitação ou homogeneidade.
No grupo, há uma suposição de que todos estão escutando. Entretanto, falar na
presença de outras pessoas, nem sempre significa “ser escutado”, mas essa presença
poderia evocar a semelhança com “falar diante de testemunhas”. Essa suposição pode
89
facilitar ou constranger o momento de fala de cada um: como dizer em grupo o que
vieram dizer para o “doutor”(?), como evitar de dizê-lo (?) A contingência do grupo, o
imprevisível, é o que lança cada sujeito na reinvenção do dizer, no “ter que dizer de
outro modo” e, assim, encontrar as condições de enunciação e o exercício de sua
singularidade.
3.3.4. Relato de uma experiência de acolhimento em grupo
Enfim, como quarto e último item desse tópico, acrescentamos ainda o relato
vivo de uma experiência, a partir do acesso à saúde desde o nível primário, por uma
adolescente que foi acolhida e atendida em nível secundário, pela Equipe de Saúde
Mental em questão. A história dessa adolescente, a quem se deu o nome de Juliana,
constituiu-se no principal motivo para o empreendimento e a efetivação dessa
pesquisa. O relato começa com a sua chegada para atendimento no serviço (Equipe de
Saúde Mental).
3.3.4.1. Juliana
Em primeiro lugar, “o problema” de Juliana fora descrito no DRCR, pela médica-
pediatra, como “conflito familiar e falta de limite”.
90
Entretanto, na entrevista com a mãe aparecem outros significantes, a partir da
forma como seu comportamento é visto e interpretado na família. Sua mãe,
interpretando o que foi dito pela “Doutora”, diz: “fora de limite”.
Assim, aos doze anos, Juliana trouxe uma questão, que se apresenta como um
enigma proferido pela mãe, dando sinais de que talvez seu processo “adolescente”
tenha alguma relação com estar buscando algo “fora” do limite (da família?).
A primeira interrogação que se coloca é a seguinte:
Seria isso algo tão incongruente ou inaceitável do ponto de vista da
experiência “adolescente”?
As palavras, aparentemente revestidas com jargões e chavões, aparentemente
banais e repetitivas, principalmente em se tratando de queixas maternas a respeito dos
filhos(as) adolescentes e pré-adolescentes, deveriam ser capturadas também de forma
enigmática.
Uma segunda interrogação sobre esse caso poderia ser:
Por quê, para essa mãe, sua filha estaria “fora de limite”?
A mãe de Juliana completa o seu raciocínio dizendo: “Daí, eu tenho que bater
nela”.
A questão toda é apostar na singularidade dessa experiência e em outras coisas
que possam estar acontecendo com Juliana no espaço e no lugar que sua mãe lhe
supõe: um espaço “fora de limite”. O “dito” materno demonstra contradição, parece
incoerente que seja possível definir “o fora”, sem que primeiro se defina “o limite”.
Assim, se não há “o limite”, a borda, não há também o lado de “fora”.
91
Juliana gravita num espaço “sem lugar”, por isso sua mãe revela outras coisas
que estão acontecendo: “ela não consegue dormir, fica agitada à noite (...) fala que tem
vontade de morrer (...) às vezes chora o dia inteiro, porque ela acha que ninguém gosta
dela (...)”.
Quando Juliana comparece ao segundo encontro em grupo, dessa vez, sem a
presença da sua mãe, ela pode falar em nome próprio, diante de outros jovens. Fala do
seu pai: “de segunda à quinta não incomoda, mas na sexta recebe e compra bebida”.
Fala que seu pai bate em sua mãe: “eles sempre se pegaram no pau”; que sua mãe “se
defende até com faca”, que “ela quer se separar dele, porque ele bebe e incomoda
muito dentro de casa”. Mais adiante, falando dela mesma diz: “Se eu incomodo a mãe,
daí ela vem se botar em mim, quer me bater. Ela me bate todo dia”. Imediatamente, já
se percebe a semelhança entre Juliana e seu pai, relativa ao lugar que ocupam para a
mãe. Ela diz que não incomoda o pai, porque “ele trabalha e chega tarde (...)”. Depois
conta: “tudo começou porque um guri mais velho, de 17 anos, gostava de mim, mas
minha mãe não deixou eu namorar com ele(...)”.
Juliana conta que já teve um outro namoro escondido da sua mãe. Conta que
sua irmã é “uma peste”, “tem muito ódio” dela e sempre “faz intrigas”: “ela fala pra toda
a vila” que Juliana não é mais virgem. Juliana menstrua desde os 11 anos, e sua mãe
vive dizendo que ela “já se entrega pros guris e que vai pegar barriga”. Juliana chora,
“se ofende”, não quer ouvir os palavrões que a irmã e a mãe lhe dizem.
Passado algum tempo, agora com Juliana em tratamento psicológico individual,
o ambiente doméstico de desrespeito, violência, ameaça e violação de direitos se
intensifica e extrapola os limites domiciliares. A família de Juliana encena nas ruas da
sua comunidade, o desespero de estar “fora de limite”. E a intrigante frase da mãe para
92
se referir à filha passa a fazer sentido para além do espaço doméstico: uma família
“fora de limite”.
Um dos pontos desse desespero: a perda da virgindade da filha. A indignação
familiar em torno da vida sexual de Juliana é algo arrebatador que toma proporções
passionais e dramáticas.
Juliana vinha às consultas para contar as cenas familiares cada vez mais hostis
em relação a ela. Sua mãe queria obrigá-la a “casar”. Ameaçava o seu namorado e
todos os familiares dele, dizendo que o rapaz abusara da sua filha e que agora deveria
levá-la para morar com ele. Na comunidade onde mora, assim como nas falas da mãe,
“casar” tem esse significado: o rapaz tem o dever de “construir uma peça” e levar a
moça para morar com ele.
Tudo é muito dramático, porque Juliana coloca em ato uma espécie de morte
anunciada, da seguinte forma: Juliana vem construir uma cena sexual, a qual vinha
sendo exaustivamente “anunciada” e antecipada pela mãe e também por sua irmã mais
velha, desde os meses que antecederam seu décimo segundo aniversário. Assim, seu
ato não se constituiu em nome próprio, ele veio dar lugar à mãe e à irmã no arranjo
fantasmático de uma cena, que configura uma posição feminina sobredeterminada
também pela comunidade e pela cultura, na medida em que Juliana “se entregou” e
agora “não é mais moça”, passando ao estatuto de “mulher desfrutável” e vindo a
incomodar a posição das outras mulheres, principalmente se ela não se casar.
Juliana realiza (antecipadamente?) o que parece ser o destino de todas as
meninas-moças, mas ao mesmo tempo deflagra que o desejo de governar a
sexualidade feminina é exercido veementemente pelas próprias mulheres. Os homens
(quando pais ou chefes de família) exercem mecanismos de controle da sexualidade
93
das esposas / companheiras e das filhas, somente quando conseguem ocupar um
lugar de provedor (Fonseca, 2000).
Avaliando os contextos concretos de vida das classes populares, Fonseca
(2000) irá argumentar que é muito simplificado atribuir a uma “masculinidade
hegemônica” os efeitos desse controle sobre a vida sexual feminina, já que se tornam
cada vez mais evidentes as inúmeras formas de fragilidade da figura masculina, seja
por sua ausência nas tantas famílias “chefiadas” pelas mulheres, seja por sua
recorrente impossibilidade de ocupar o lugar de “provedor” da casa, pela falta de
emprego ou de condições para algum tipo de trabalho. No caso de Juliana, o seu pai
está numa posição bastante desvalorizada, devido ao abuso de álcool e também à
violência em relação a sua própria esposa.
Por outro lado, uma outra cena que vem compor o quadro dessa desordem
familiar, desvela-se sob o arrebatamento por assim dizer dos afetos, o que poderia
sugerir algo parecido com a “devastação entre mãe e filha”, referida por Lacan (citado
por Chatel, 1995, p. 48) e que, para Chatel (1995), é particular da fase adolescente.
A autora escreve:
“ter atravessado a devastação durante os anos da adolescência assegura a
uma mulher chances de se tornar mãe sem esbarrar nos efeitos devastadores
do ‘gozo da mãe’” (p. 49).
Segundo Chatel (1995), os estados de cólera e de destempero que mãe e filha
conhecem na devastação escapam à medida fálica, pois têm sua origem no excesso
94
de proximidade, na paixão de exclusividade amorosa, designada pelo termo “gozo da
mãe”.
Rassial (1999) vai referir uma questão feminina importante no período da
adolescência, que tem relação com a reatualização da Mãe primordial e arcaica,
renunciada no ingresso da fase edípica e que reaparece como modelo identificatório:
“os impasses pré-edípicos estão, para a adolescente, na ordem do dia”, escreve
Rassial.
Juliana, atualmente, não está em atendimento na equipe. O tratamento extinguiu
após 18 meses e algumas intervenções familiares. Sua mãe foi encaminhada para
acompanhamento em CAPs e a família cumpre medida de proteção junto ao Conselho
Tutelar.
A partir dessa experiência no atendimento de Juliana foi possível perceber a
importância de dar destaque às formas de simbolização que as adolescentes do meio
urbano popular podem engendrar para uma elaboração das cenas vividas e quais
elementos culturais estão disponíveis para refazer percursos e reinvestir objetos.
Por esse motivo, a próxima etapa de investigação consiste em uma tentativa de
demonstrar as possibilidades de tais elaborões, através das produções culturais na
adolescência.
Quando se conceitua a adolescência faz-se necessário ter em mente sobre o
que exatamente se busca: a adolescência como processo psíquico
48
; o sujeito
adolescente; a significação social ou a adolescência na cultura; a fase ou etapa de
desenvolvimento. Dessa forma, e de acordo com Melman (1997), poderíamos pensar
48
Ver nota de rodapé número dez, página 32.
95
em um estatuto subjetivo, um estatuto social e histórico, e um estatuto biológico e
pubertário para a adolescência.
O que se quer salientar no próximo capítulo é o processo da adolescência como
a necessidade de se reconciliar com os símbolos, para além do “brincar” infantil: com
desenhos, com contação de histórias, com produções de Rap.
Quais variações do brincar podem ser elaboradas pelo adolescente? Quais
seriam as novas formas lúdicas a serem apropriadas para mediar os acontecimentos e
as contingências da vida?
Winnicott (1978) busca produzir diferenças para o que ele denomina
genericamente de “três áreas da vida”: uma área consistiria na vida dos afetos, das
relações ou “a vida no mundo”; outra seria a “vida interior” ou realidade psíquica e uma
terceira área seria a “experiência cultural”. Esta “terceira vida” é “realidade
compartilhada” e também “viver de maneira criadora”, portanto compreenderia tanto o
jogo e a atividade lúdica, quanto as artes, os mitos históricos, as ciências, as
instituições sociais e a religião.
Para esse autor, a experiência cultural seria um desenvolvimento do conceito de
“fenômeno transicional”. Esta experiência é o que nos torna humanos, porque permite
uma diversidade e uma riqueza infinitas, tendo sua origem no espaço potencial entre a
criança e sua mãe.
Esse espaço transicional de Winnicott, feito das ausências da mãe e das
possibilidades da criança de restaurar fragmentos da sua presença, de alguma forma
se aproxima do que se pode encontrar nas experiências culturais dos adolescentes?
96
4. HISTÓRIAS E FICÇÕES DE ADOLESCENTES
Neste capítulo, dois tipos de produções, realizadas por adolescentes em
atendimento psicológico na rede pública, foram trabalhadas. Primeiro, a experiência de
contar uma história em espaço individual de consulta, a partir da produção gráfica de
um desenho e a construção de um personagem. Em segundo lugar, apresenta-se uma
experiência coletiva, com a produção de versos escritos, a partir de uma Oficina de Rap
proposta como atividade em um Grupo Terapêutico para adolescentes.
No tópico 4.1, portanto, foram trabalhadas três historias contadas por
adolescentes do sexo feminino, menores de 14 anos, que se encontram em etapa de
iniciação sexual. As histórias foram construídas oralmente, em consulta individual, para
dar significado às suas produções gráficas (desenhos).
No tópico 4.2, uma experiência coletiva é apresentada, a partir da realização de
uma oficina de Rap, em um grupo terapêutico para adolescentes entre 14 e 16 anos, a
qual tornou possível a escrita de versos de rap. Considerar-se-á, para a análise,
somente a produção escrita de três adolescentes do sexo feminino participantes da
atividade, mas para demonstrar a diferença nas temáticas trabalhadas optou-se em
inserir a produção dos quatro rapazes participantes do mesmo grupo, no Apêndice C.
Além do relato de cada “história contada” e de cada “verso escrito” pelas
adolescentes participantes, examina-se elementos biográficos e fragmentos da sua
“história clínica”, lembrando que todo esse material teve origem no processo de
Acolhimento em Grupo para Adolescentes (ver capítulo três, tópico 3.3.2) e durante o
97
percurso de atendimento de cada uma em consultas individuais e na formação de
Grupos Terapêuticos. Um resumo da análise de conteúdo encontra-se no Apêndice D.
4.1. HISTÓRIAS CONTADAS
As experiências apresentadas a seguir compuseram alguns atendimentos
individuais com três “pré-adolescentes” do sexo feminino, que tiveram como propósito a
construção de uma narrativa ficcional, a partir da criação de um personagem ancorado
imaginariamente na produção gráfica de um desenho da figura humana. Esse recurso,
a criação do desenho durante as entrevistas iniciais, será explicitado a seguir e a
intenção ao utilizar essa forma de expressão foi auxiliar as adolescentes no processo
de simbolização, valorizando a experiência criadora e ficcional como uma forma de
elaboração psíquica.
Entende-se que a produção gráfica (o desenho) vem ocupar um lugar importante
no processo de construção do relato de cada atendimento, porque imprime a
necessária particularidade a cada adolescente estudada.
Fedida (1992) escreve:
“O desenho de um rosto tem menos a ver com a aptidão de um traço para
representar o que a vista recebeu, do que com o poder das palavras de
engendrar este rosto (...) o desenho mantém uma afinidade bastante estranha
com a linguagem, pois possui o poder de fazê-la entrar em crise, no abandono
da banalidade”. (p.15)
98
O autor afirma que o desenho requer despojamento e ruptura com a lógica das
representações e pode capturar, pela sua estranheza, algo do principio da linguagem,
como a singularidade irredutível das figuras em sonho.
Nas experiências relatadas nesse tópico, toma-se a perspectiva da palavra e da
elaboração discursiva, prescindindo da escrita própria de cada adolescente, pois nos
contextos em que vivem e nas suas aprendizagens escolares, a capacidade de escrita
é bastante limitada.
Dessa forma, e também pensando em marcar uma diferença quanto às
solicitações escolares e atividades com caráter avaliativo, propôs-se às adolescentes
que falassem sobre a sua produção gráfica (o desenho) como se a figura humana
desenhada fosse um personagem, representando um “papel” dentro de uma “história
contada”, de uma história inventada por elas.
É importante ressaltar que os resultados que se apresentam mais adiante
dependeram de um exercício, onde outros papéis compunham a cena: às adolescentes
cabia o “papel de autora e narradora” da história, à psicóloga cabia o “papel de escriba”,
e assim os registros que eram escritos das histórias contadas podiam ser lidos e
revisados pelas adolescentes-autoras.
Portanto, outro ponto a esclarecer é de que as histórias foram transcritas em
consulta psicológica e, muitas vezes, não mantém a linguagem coloquial e não
correspondem literalmente à fala das pacientes, na medida em que - na maior parte do
tempo – os registros respeitaram as formas gramaticais. Entretanto, manteve-se “gírias”
e vocabulários específicos, sempre que apareceram nas narrativas.
49
49
Cabe salientar que pela riqueza desse vocabulário, colocou-se em anexo (Apêndice B) um glossário
organizado pelos próprios adolescentes e denominado por eles “dicionário de gírias”.
99
No decorrer do texto das narrativas (das histórias contadas) mantém-se aspas,
com a finalidade de demarcar passagens entre as intervenções da psicóloga e a
“contação” das adolescentes. Entretanto, como já foi destacado, manteve-se a
expressão do conteúdo e não as “falas” na sua íntegra.
As adolescentes foram escolhidas seguindo alguns critérios que visam preservar
sua privacidade e celebrar o compromisso de confidencialidade que envolve a prática
clínica. Portanto, o material analisado neste capítulo provém dos registros feitos em
consulta psicológica, os quais são retrospectivos – porque as adolescentes não estão
mais em atendimento – e, além disso, são apresentados de forma descaracterizada,
com nomes
50
e lugares fictícios, ocultando datas ou qualquer outra particularidade que
possa comprometer o anonimato das mesmas. No momento das entrevistas, as
adolescentes eram menores de 14 anos e maiores de 11 anos.
Organizou-se esse tópico da seguinte forma: inicia com a caracterização dessa
fase antecipatória dos processos adolescentes, buscando antever uma associação
entre mudanças pubertárias, desadapatação da latência e reconfiguração dos modos
de ser e do lugar no espaço familiar e social; depois se descreve a utilização do
desenho como recurso para a construção da narrativa (na medida em que é comum às
três entrevistas) e, em seguida, utiliza-se tópicos individuais, onde se descreve
brevemente o contexto familiar de cada adolescente, seguido por uma cópia dos
desenhos produzidos, depois os registros da sua narrativa sobre o desenho, e, por fim,
a análise de conteúdo.
50
Todos os nomes relativos aos personagens que aparecem nas histórias que elas criaram, bem como
lugares referidos, quando não-fictícios, foram substituídos.
100
É preciso salientar ainda que os desenhos vêm compor o relato, com o intuito de
enriquecer a análise de conteúdo das narrativas e não foram alvo, em nenhum
momento, incluindo o espaço terapêutico individual, de qualquer tipo de avaliação ou
teste com finalidade diagnóstica, nem tampouco foram utilizados como técnica de
pesquisa ou procedimento para coleta de dados.
4.1.1. Da Latência à Adolescência
O termo latência é utilizado por Freud ([1905]1981) como um período da infância
(entre os cinco e os 12 anos), onde “os impulsos sexuais em gérmem” vão sucumbindo
a uma repressão progressiva, total ou parcialmente, a partir de sua canalização à
maneira de um dique. Para o autor, tal estrutura (dique) se constitui como obra da
educação.
Essencialmente, nesse texto, Freud é enigmático e afirma que sobre as leis e
períodos desse processo evolutivo “oscilante” não se conhece nada com segurança,
pois pode ser interrompido pelos próprios avanços do desenvolvimento sexual (eclosão
da puberdade) ou detido por particularidades individuais.
Ruffino (2003) conceitua a latência como um processo situado entre a finalização
do complexo de Édipo e a emergência da puberdade, estando prioritariamente
articulado à sexualidade. O autor faz referência ao termo “incubação” para definir que a
“latência do sentido sexual” não se dá necessariamente sobre a presença ou exercício
101
da sexualidade, mas para manter em suspensão (incubado) o laço sexual que se
dirigia, na criança, ao Outro sexo
51
.
Citando Ruffino:
“Conseqüentemente, não se trata então, na latência, de nenhum apagamento
nem do sexual e nem do Outro; trata-se de que o sexual não estará vetorizado
para o Outro, isto é, (...) o que permanece em estado de latência é a
vetorização, que reenlaça o sexual ao Outro no desejo, a qual fica à espera de
uma futura operação – a da puberdade – para redespertar”.(2003, p. 82)
Sobre esse outro momento, a puberdade, Ruffino (2003) será categórico ao
afirmar que é o Real
52
que inaugura a adolescência. Esse Real que é feito de todas as
transformações orgânicas (mudanças nos níveis hormonais, crescimento) e as novas
aquisições do desenvolvimento, que se costuma chamar “características sexuais
secundárias”: desde os brotos mamários, pilosidade, oleosidade, até a maturação das
células germinativas (ovários; testículos).
São essas determinações referentes às mudanças corporais que fazem alguns
autores se referirem ao “luto do corpo infantil” e a traduzir seus efeitos como o início do
processo de constituição subjetiva que se dá na adolescência.
“A perda que o adolescente deve aceitar ao fazer o luto pelo corpo é dupla: a de
seu corpo de criança, quando caracteres sexuais secundários colocam-no ante
a evidência de seu novo status e o aparecimento da menstruação na menina e
do sêmen no menino, que lhes impõe o testemunho da determinação sexual e
51
Para Rassial (1999) esse “O” maiúsculo serve para diferenciar do “outro” como semelhante, porque
está definindo uma figura ideal que pertence ao sexo oposto. Figura essa que os pais encarnaram na
fase edípica: o Outro absoluto.
52
Lacan (1995) estabeleceu três registros para o funcionamento do aparelho psíquico: o real, o simbólico
e o imaginário.
102
do papel que terão de assumir, não só na união com o parceiro, mas também
na procriação.” (Aberastury, A. & Knobel, M., 1981, p. 14)
Segundo Ruffino (2003), as transformações da puberdade recorrem a um
processo de simbolização que constitui o adolescer e chama de “operação da
adolescência” a função que irá tratar o real (da puberdade) através do simbólico.
Dessa forma, a adolescência deve à latência e ao seu capital de saber paterno
ampliado pela pulsão de curiosidade ao saber, os recursos dos quais venha a dispor.
No sujeito sob latência, esse autor irá referir que “o mistério inquietante do sexual que o
habita reduz-se à hegemonia das pulsões de conservação do Eu”. (p. 81).
Tentando sintetizar um pouco essas aproximações teóricas, pode-se dizer que a
psicanálise aborda o processo da adolescência a partir de três noções: a noção de
“luto” (Freud,[1905]1981; Aberastury, 1981; Rassial, 1997) seja pelos pais da infância,
pela própria infância, ou pela perda do corpo infantil; a noção de “encontro com o sexo”
(Lacan,[1964]1988; Rassial, 1997; Costa, 2001) e a noção de trabalho psíquico
53
(Rassial, 1997 e 1999; Ruffino 1995 e 2003) para a constituição subjetiva.
A hipótese de Rassial (1997) é de que a “passagem adolescente” tem a ver com
a necessidade, para qualquer adolescente, de realizar - a posteriori - uma série de
operações fundadoras do desenvolvimento emocional infantil constituindo, dessa forma,
um trabalho psíquico. Por exemplo, o adolescente deve se ressituar imaginariamente
no desejo do outro, apropriando-se do olhar e da voz como objetos parciais atribuídos à
mãe.
53
Ver nota número 10, página 32.
103
Para Rassial (1997 e 1999), o adolescente se apropria do olhar e da voz que
vêm da mãe na experiência do Estádio do Espelho (Lacan, [1936]1981). A imagem da
criança no espelho, no período de seis a dezoito meses, se constitui como imagem
formadora e ao mesmo tempo alienante do “eu”, na medida em que estará ancorada
pela presença do outro. Dessa experiência, Lacan depreende o registro do imaginário
54
,
como o lugar da identificação e de todos os processos de constituição do “eu”.
O autor irá delimitar a função desses objetos a, no processo de redistribuição
pulsional da adolescência, a partir da diferença sexual, onde à posição feminina caberia
a pulsão escópica (“o olhar”), enquanto à masculina, a pulsão invocante (“a voz”). Esses
aspectos serão retomados nas análises.
Rassial (1997) defende a hipótese de que na crise adolescente, ou “passagem
adolescente”, o sujeito vivencia o intervalo entre a privação do ato sexual e a castração
simbólica. A privação do ato sexual é imposta na infância e consolidada na latência
graças à promessa do seu advir num tempo de crescimento, enquanto a castração
simbólica em relação ao ato sexual é o momento em que este ato vem se desvelar
como insuficiente e insatisfatório.
Assim, o adolescente descobre que a satisfação genital é também uma
satisfação parcial, pois não assegura um gozo total, gozo absoluto renunciado na
infância e impossível de ser reencontrado.
O autor refere-se à possibilidade do ato sexual como jogo de semelhanças com
os pais: repetição da cena primária
55
e reprodução como ingresso na cadeia geracional.
Argumenta que o comportamento paradoxal dos adolescentes deve ser visto como
54
Ver nota número 52.
55
A cena primária seria o ato sexual entre os pais presenciado ou fantasiado pela criança.
104
“ensaio” da operação subjetiva que o adolescente precisa realizar para suturar o hiato
entre repetição e reprodução. Entretanto, tal ensaio pode vir a ter como resultado o
engajamento precoce na paternidade e na maternidade.
Essa noção de “ensaio” (Rassial, 1997) é importante na medida em que
estabelece um comportamento próprio ao adolescente de buscar seu valor no laço
social através dos seus atos. Atos esses que estariam, portanto, a serviço dessa
“operação subjetiva” de realizar um laço simbólico.
4.1.2. Como se Utiliza o Recurso do Desenho para a Construção da Narrativa
Desenhar é um exercício que requer, para além das habilidades motoras,
domínio simbólico e desprendimento das representações, ao mesmo tempo.
Como um signo gráfico, o desenho vai reproduzir algumas propriedades do
objeto representado, baseado em códigos de reconhecimento convencionais (Eco,
1988).
Por esse motivo, o desenho é dominado pela imagem convencional, mesmo que
uma convenção gráfica exprima-se num sistema de relações que não reproduz de
modo algum a realidade visível.
Entretanto, sua particularidade reside na expressão única que pode obter no
momento em que é feito.
105
Para Fédida (1992), o desenho pode resgatar algo semelhante à atividade
poética, onde a metáfora que recai sobre as palavras faz “ver, sentir e tocar”.
O desenho é sempre um projeto enigmático e sua metáfora coloca-se atrás das
linhas e traços que lhe dão forma.
Se o poeta é sempre “aquele que deixa o desenho das coisas recolher-se na
escritura das palavras ao sair do sono em que a fala cotidiana da língua as mantém”
(Fédida 1992, p.16), o desenho pode ser esse enigma ou questão que singulariza e dá
lugar à fala, como insistência ou ambigüidade, libertando seus sentidos e também sua
essência.
Utilizou-se o recurso do desenho seguindo mais ou menos um percurso até a
construção da história. Esse percurso foi sistematizado, de modo especial para esse
relato de pesquisa, a partir de quatro passos:
1. O primeiro passo consiste em sugerir, durante consulta individual, que a
adolescente desenhe uma pessoa de corpo inteiro, com as características
físicas que escolher e de acordo com as suas possibilidades de desenhar.
Destaca-se que o objetivo não é avaliar a sua capacidade de desenhar ou
de realizar um desenho “bonito”, porque cada pessoa tem o seu jeito de
fazer as coisas.
2. Após a conclusão do desenho, o segundo passo é solicitar que a paciente
possa descrever o que desenhou. A paciente é convidada a dar um
significado para o resultado da sua produção e, portanto, a implicar-se
com as escolhas feitas: trata-se de uma criança, jovem ou adulto (?) –
questão que toca no problema das gerações; do sexo masculino ou
feminino (?) – questão que toca na diferença sexual.
106
3. Depois disso, o terceiro passo é solicitar ainda que a paciente possa
desenhar, numa outra folha, o “outro sexo”. Sempre levando em conta as
suas condições singulares para realizar a tarefa (o desenho).
4. O quarto passo envolve mais uma escolha. Em relação aos dois
desenhos, qual ela escolheria para construir uma história. Explica-se que
ela não terá que escrever, que ela vai inventar um personagem e contar a
história dele. Esta história vai sendo registrada, na medida em que ela vai
contando. Depois, ainda é possível ler a história registrada e ver se está
de acordo com a sua narrativa.
4.1.3. “Renata” (12 anos)
4.1.3.1. Uma breve descrição do contexto familiar:
Essa adolescente, aos doze anos, residia com os avós maternos em uma
comunidade carente. Os avós assumiram seu cuidado e guarda desde seus 3 meses
de idade. Seu avô era aposentado por trombose há 20 anos e sua avó era costureira
em casa. Ela fora criada por eles, porque seus pais tiveram muitos problemas,
enquanto moraram juntos. Sua avó lhe contou que o pai bebia e batia na sua mãe, até
que um dia eles se separaram. Quando iniciou o atendimento, freqüentava a quarta
série de uma escola local, de onde foi encaminhada por “baixo rendimento”. A avó
referia “problema na cabeça”, como o motivo dela “não aprender direito”. Nessa época,
o pai ainda tinha problemas com o uso de álcool, tinha outra família com três filhos e um
contato esporádico com ela, apesar de morar muito próximo. Sua mãe também residia
107
nas proximidades com outro companheiro, mas nunca quis assumir uma convivência
com a filha. Na casa da avó, a adolescente, a quem denominamos “Renata”, convivia
com primos e primas.
No decorrer do seu atendimento, ela demonstrou que as preocupações da sua
avó com seu rendimento escolar vinham de encontro à própria dinâmica da escola,
além de contradizerem também às suas próprias expectativas, da seguinte forma:
Renata passou a ter, na escola, um lugar de convívio com os pares diferente do seu
ambiente familiar, ao lado dos(as) primos(as). A escola era um território privilegiado
para uma diversidade de experiências, era uma espécie de laboratório para seus
ensaios adolescentes. Por isso, seus relatos sempre incluíam o ambiente escolar.
Ela contava detalhes sobre as brigas entre os alunos, sobre a atuação dos
professores, sobre os castigos e punições da Direção e sobre as brincadeiras entre os
colegas: “as ovadas” que eram uma espécie de ritual de batismo para os aniversários;
“os arreganhos” que tinham duas funções: iniciar um namoro, se fosse entre colegas de
sexo diferente ou iniciar uma briga, quando dois colegas do mesmo sexo, em geral os
meninos, “se agarravam no pau”
56
. Alguns desses elementos vão aparecer na história
que Renata vai inventar a partir do seu desenho.
4.1.3.2. O Desenho
56
Ver expressões em anexo, no “dicionário de gírias”.
108
Para descrever o resultado dos seus desenhos, Renata verbaliza o seguinte: no
primeiro desenho trata-se de “uma guria de 13 anos” e dá detalhes: “ela tá com a língua
pra fora”, diz ter pensado numa colega sua que “gosta de ir pro centro e para o cinema”.
Sobre o segundo desenho, diz: “um guri de 18 anos” e acrescenta que imaginou
“o irmão da sua amiga que gosta de andar de skate e de escutar som”.
Em relação aos dois desenhos, qual ela escolhe para construir uma história.
Explica-se que ela não terá que escrever, que ela vai inventar um personagem e contar
a história dele. Essa história vai sendo registrada, na medida em que ela vai contando.
Renata escolheu “a guria”. Pergunta-se se a personagem vai ter um nome. A
adolescente responde: “Carolina”
57
. Como será a História de Carolina?
57
Volta-se a salientar que para manter o anonimato dos sujeitos adolescentes e evitar possível
identificação, os nomes dos personagens foram igualmente substituídos. Lembra-se também que as
expressões não são apresentadas literalmente na sua forma coloquial, devido a algumas adequações
gramaticais feitas no momento do registro. O texto fica entre aspas, apenas para destacá-lo.
109
4.1.3.3. A Narrativa, ou “A História de Carolina”
“Tem o cabelo castanho. Usa muitas pulseiras e colar. Adora sair e ir pro cinema,
pro shopping e também pro centro da cidade, onde ela mora. Eu disse que ela tem 13
anos e adora fazer caretas (olha só a língua dela); ela faz isso quando tá de arreganho
com as amigas dela. Deixa eu ver, acho que ela está na sexta série. Ah! Ela tá
gostando de um guri chamado Otávio
58
, da oitava série, que tem 14 anos”.
“Ela mora com o pai e com a mãe. E tem uma vó. Ela tem cinco irmãos. Ela é a
caçula da família”.
“Ela gosta de viajar: de ir pra praia e de visitar uma tia que mora em outra
cidade. Ela tem muitos primos e primas, e gosta de sair e de conversar com eles. Ela
não brinca mais (brincar na idade dela fica feio!). Quando sai com as primas, elas
caminham, passeiam, conversam e dão risadas. Até os 11 anos, ela gostava de brincar.
Ela brincava bastante na rua, assim de correr, de esconde-esconde, pular corda. Agora,
só joga vôlei com as gurias grandes”.
Quem são as gurias grandes?
59
“As gurias de 16 anos do colégio”.
“Com treze anos, ela tem que se dedicar mais ao estudo, por isso não pode ficar
só brincando. Às vezes, convida suas amigas e faz pipoca e fica estudando em casa.
Com 13 anos, ela tem mais liberdade para sair, pra ir no cinema. Antes, não podia sair
sozinha, só com a mãe dela. Podia só ficar brincando na frente de casa. Os pais dela
58
Alteramos também o nome citado para não caracterizar sua história.
59
No decorrer dos relatos surgirão algumas intervenções feitas durante o registro e que ficarão fora do
texto narrado.
110
trabalham muito, porque o pai dela é médico e a mãe é advogada, por isso Carolina
tem uma mesada de 100 reais e ela gasta tudo em cinema, em roupa e bijuterias”.
4.1.4. “Andressa” (12 anos)
4.1.4.1. Breve descrição do contexto familiar:
Andressa convive com situação de violência doméstica. Seu pai tem problemas
com o uso abusivo de álcool e suas tentativas de recuperação sempre fracassam. Sua
mãe é obesa, com diagnóstico de depressão e história de intenso sofrimento emocional
desde sua infância, com o próprio pai (avô de Andressa) também sendo agressivo,
após ingestão de álcool.
Durante o período de atendimento, a adolescente relata vários episódios da
história de vida da sua mãe: conta que ela era ainda muito nova quando engravidou,
que tinha 17 anos e ainda namorava o seu pai e, por esse motivo, eles acabaram se
casando. Assim, quando Andressa nasceu, sua mãe tinha completado 18 anos, tinha se
casado e se tornado mãe quase ao mesmo tempo, “por isso tinha uma vida difícil para
enfrentar”. Ainda sobre sua mãe, a adolescente diz: “ela sempre soube dos problemas
do pai, mas foi deixando passar”. Depois, nasceu o segundo filho e sua mãe ainda teria
engravidado por outras duas vezes, sem planejar, e o resultado foi a experiência de
abortamento inseguro (provocado), sendo um desses presenciado por Andressa.
Ela conta que sua mãe estava “de cama”, sentindo muita dor e, de repente,
quando levantou-se para ir ao banheiro, começou a sangrar muito, deixando “marcas
de sangue por todo o chão”. Essa experiência também vai se desvelar na história criada
111
a partir do seu desenho, sob a forma de desaprovação em relação à passagem ao ato
da mãe.
Essa adolescente vive intensamente o conturbado relacionamento dos seus pais,
sempre prestes a se separarem sem, contudo, conseguirem efetivar suas intenções. O
motivo que originou seu atendimento na equipe foi o fato de ter desafiado seu pai e ter
sido agredida fisicamente por ele.
4.1.4.2. O Desenho
112
Ao descrever os seus desenhos, suas respostas / escolhas são as seguintes:
para o primeiro desenho, ela verbaliza que se trata de “uma adolescente do sexo
feminino” e, logo depois, diz: “acho que deve ter 14 anos” e em seguida desculpa-se
dizendo “sou péssima para desenhar”. Para o segundo desenho, ela diz: “é uma
criança... de cinco anos... do sexo masculino”.
Após estas definições, chega-se ao quarto passo, o qual implica a sua escolha
quanto ao desenho que vai utilizar para construir/contar uma história. Ela escolhe o
primeiro desenho e começa a contar a história de “Catarina”.
4.1.4.3. A Narrativa, ou “A História de Catarina”
“Era uma vez uma adolescente de 14 anos chamada Catarina. Ela gostava muito
de caminhar, fazer exercícios e estudar. Estava na sétima série. Acordava todos os dias
e ia para o colégio, depois almoçava, descansava um pouco e saía para caminhar com
suas amigas. Ela não tinha muitas amigas, porque ela não gostava de se meter em
muitas fofocas”.
A paciente explica que na sua idade “o que mais tem são fofoquinhas e intrigas”
entre amigas, por isso não confia em ninguém. Continua sua história:
“Catarina morava com sua mãe, seu pai, um irmão e uma irmã. Gostava muito de
se arrumar e se enfeitar e também gostava de namorar, mas nunca exagerava com o
namoro para não ficar falada”.
“Ela tinha sua rotina normal e nos fins-de-semana podia sair à noite. Gostava de
ir ao shopping e, no domingo, saía com suas amigas à tarde e dormia cedo para ir pra
113
escola, no outro dia. Ela era muito linda e muito bela e várias gurias tinham inveja, por
causa disso”.
“Ela começou um namoro sério com um guri do qual gostava muito. Certa vez,
eles estavam juntos, já fazia um ano que estavam namorando, e aconteceu o que eles
mais queriam. Eles transaram e o guri usou camisinha, mas a camisinha estourou e ela
engravidou”.
Nesse ponto, a adolescente tenta simplificar sua história e diz: “daí ela vai sair de
casa, vai ter o filho dela, vai ter a vida dela, como ela sempre quis”.
Uma intervenção é feita e a adolescente recomeça:
“A partir daí, ela enfrentou muitos problemas com sua mãe e seu pai e acabou
saindo de casa, porque seu pai não aceitou a gravidez.”
“Então, ela foi morar com o namorado, nasceu uma menina e ela era muito nova
e sem experiência”.
“Depois de um ano, quando completou 16 anos, ela foi embora, porque deixou
de gostar do guri”.
“Ele tinha mudado muito depois da barriga e ficava com outras gurias”.
“Ela descobriu que ele traía ela, saiu de casa e alugou outra casa pra morar com
sua filha”.
Nesse momento a paciente pensa um pouco e verbaliza: “acho que ela precisa
trabalhar, né?”.
“Catarina nunca desistiu de estudar. Estudava à noite e cuidava do filho de dia.
Seu namorado trabalhava e sustentava a família. Antes de deixar o namorado, ela foi
procurar um emprego e também voltou a falar com os pais, mas preferiu ficar
independente”.
114
“Seu pai foi entendendo aos poucos que o que aconteceu com ela não era pra
ser, até porque ela não gostava e não queria ser falada, mas ela não conseguiu evitar”.
“Ela não queria ser mãe, mas não tendo outra saída, porque abortar não estava
em questão pra ela, ela teve que aceitar o seu destino”.
4.1.5. “Priscila” (13 anos):
4.1.5.1. Breve descrição do contexto familiar
Priscila é adotiva. Um tipo de adoção bastante comum “nas comunidades
pobres”. Sua mãe “de sangue” era catadora de papel e morava na rua. A história
contada pela “mãe de criação” é a seguinte: a mãe de Priscila teve vários filhos e
entregou todos aos cuidados de outras pessoas – às vezes vizinhos, às vezes parentes
distantes ou pessoas desconhecidas.
Dona Joana, nome que se deu à mãe adotiva, relata que “salvou Priscila da
morte” e quando tirou-a da rua, ela era uma menina de dois aninhos “cheia de doenças,
muito maltratada e muito suja”. Levou-a para sua casa primeiro, cuidou bem dela e só
depois providenciou os papéis.
Dona Joana é religiosa, viúva há muitos anos e tem um único filho, já adulto, mas
que reside com ela. Em 1998, seu filho lhe deu um neto e esse também mora com ela.
Vive de uma pequena aposentadoria do “falecido” e de suas costuras.
Nesse período do atendimento de Priscila, Dona Joana está muito preocupada
com a possibilidade de Priscila engravidar e seus motivos são os seguintes: várias
meninas da vizinhança estão grávidas, têm entre 12 e 16 anos e são amigas da sua
115
filha. Então, a estratégia de Dona Joana é, além de levá-la na Igreja, repetir todos os
dias frases do tipo: “antes de engravidar tem que conhecer um rapaz bom”; “primeiro
tem que casar e depois vem o resto” (falando de sexo); “o rapaz tem que conhecer a
família” e “namoro tem que ser dentro de casa”.
Falando sobre as frases da sua mãe, essa adolescente vai-se comparando com
suas amigas, as quais ela foi vendo, uma a uma, irem engravidando e diz o seguinte:
“elas começaram assim com namoros escondidos”, “ficavam de amasso
60
na rua”.
Irá se ver, mais adiante, que a história narrada por Priscila demonstra algo
interessante, na medida em que seu adolescer vai na direção de concretizar os ditos
maternos, de satisfazer sua mãe adotiva e não de contestá-la.
A paciente diz não estar namorando e nega espontaneamente sentir interesse
sexual. Ela diz: “tenho nojo dessas coisas”. Entretanto “quer” engravidar e relata um
sonho (refere um sonho que se repete) e deseja saber qual seria o significado:
“Todo dia eu sonho que tem um algo acontecendo dentro de mim, dentro da
minha barriga. Sinto uma presença muito grande de uma criança e quando eu acordo,
eu tenho enjôo, tontura e a minha mãe pensa que eu tô grávida (...) já sonhei que a
minha mãe estava segurando uma criança e ela olha pra mim e diz: ‘este é o meu
netinho!’ e fica rindo pra mim. No sonho eu digo ‘ai meu Deus não pode ser’, ‘ai meu
Deus o que aconteceu! Será que vou ter que comprar mamadeira e fralda?’ (...)”.
60
Amasso para essa adolescente é: “se beijar muito, se abraçar muito” e também “deixar os guris se
passar” – essa outra terminologia, “se passar”, é utilizada por um número muito grande de meninas e, na
maior parte das vezes, tem a conotação de abuso sexual, como por exemplo na expressão “ele se
passou comigo”.
116
4.1.5.2. O Desenho
Seguindo o mesmo percurso apresentado anteriormente para a produção dos
desenhos e conseqüente construção ficcional, esta é a terceira adolescente de quem se
reproduz a história que contou durante a entrevista.
Sobre seu primeiro desenho, ela diz: “é adulto do sexo masculino e tem 19
anos”. Sobre o segundo desenho: “adolescente, do sexo feminino e parece ter 16
anos”.
Sua escolha, para contar uma história, é o segundo desenho: “a guria” – diz; “ela
vai se chamar Letícia
61
” – completa.
61
Trocou-se também o nome escolhido pela adolescente para referir-se à sua personagem.
117
4.1.5.3. A Narrativa, ou “A História de Letícia”
“Ela tinha 16 anos. Ela estudava e fazia sempre os temas. Saía com sua mãe e
morava numa casa junto com sua família. Eram três pessoas: seu irmão, seu pai e sua
mãe”.
Observa-se que a adolescente não inclui a sua personagem Letícia nessa
contagem.
“O irmão dela tinha 20 anos. Todos os dias, ela almoçava e jantava com seu
irmão. Ela gostava de conversar com suas amigas e era muito feliz: ia para os bailes e
se divertia muito”.
“Acho que ela vai trabalhar, vai ser médica dentista. Vai estudar muito e depois
vai ajudar as pessoas que têm cárie. E também vai encontrar um cara muito gentil, vai
se casar, porque ele vai ser uma pessoa boa”.
Nesse momento, ela tenta explicar seus motivos para ser esse o destino da sua
personagem e produz a seguinte frase: “é isso que a minha mãe me ensina...” e, em
seguida, dá continuidade a sua história:
“Letícia vai sair para um passeio no Circo e lá ela vai conhecer Ernesto
62
. Eles
vão olhar um no olho do outro e vão se apaixonar”.
“Ele é um cara bom, gentil, eles vão sair junto, conversar, vão se conhecer
melhor, o tempo vai passando até que Ernesto vai pedir pra se casar com ela”.
“Daí ela vai aceitar e vai levar ele na sua casa. Ele vai conhecer o pai e a mãe
dela e os dois vão decidir conversar com o padre e marcar o casamento”.
62
Trocou-se o nome criado para o novo personagem.
118
“Eles escolheram uma data para o casamento e terão uma vida feliz com um
filhinho que vai nascer depois”.
4.1.6. A Análise de Conteúdo
63
Levando em conta o foco dessa análise relativa à construção da sexualidade
feminina e de como as adolescentes estão implicadas com as questões relativas às
possibilidades de engravidar, pode-se dizer que os elementos essenciais transmitidos
nessas histórias parecem tocar nos “lugares” possíveis para um sujeito ocupar,
considerando as mudanças pubertárias e insistindo sobre as questões de gênero, ou
melhor, sobre as elaborações relativas às diferenças sexuais.
Em suma: um personagem feminino que tenta adequar-se a um lugar e
reconfigurar seus desejos, tentando ao mesmo tempo “encontrar” e também “dar conta”
de novos destinos para o investimento pulsional. “Encontrar” tem relação com a parte
inegociável da sua singularidade [fantasma], enquanto “dar conta” se traduz como uma
grande parte da construção da sua identidade que tem a ver com mandatos sociais,
familiares, culturais etc.
Para dar início à etapa de análise, consideram-se as categorias em cada história
e depois se elabora uma síntese, que possa interpretar e contemplar todos os
elementos que surgiram.
As categorias interpretadas foram: “ser adolescente”; “ser mãe”; “se fazer olhar”;
“entre a casa da infância e a saída de casa”.
63
Ver quadro-resumo no Apêndice D.
119
4.1.6.1 “ser adolescente”
a) O marco do ingresso na adolescência
A história contada por Andressa abre um leque de possibilidades da
adolescência: podia sair à noite nos fins-de-semana; podia namorar e nunca
exagerava para não ficar falada; na sua idade o que mais tem são fofoquinhas e
intrigas.
Entretanto, o marco mais importante da história faz uma condensação entre o
desejo de sair de casa (“de ter a vida como sempre quis”) e o desejo de ter uma
filha (deixar de ser filha?). Ocorre a passagem imediata entre o acaso (a
ocorrência da gravidez) e a abertura para o conflito familiar e para a saída de
casa.
b) “corpo-a-corpo”
Pode-se dizer que na adolescência entra em cena novamente um “corpo-a-
corpo”, como o ocorrido entre a mãe e o bebê.
É na proximidade ao semelhante do outro sexo, que o sujeito adolescente pode
constituir a dimensão imaginária do seu corpo e do corpo do outro,
fundamentalmente através da erogeneidade da zona oral e da superfície cutânea
(Rassial, 1999).
Na história de Carolina (personagem da adolescente Renata) aparecem ou estão
em questão as pulsões parciais através da “língua pra fora” e esse corpo-a-corpo
que se instaura seja numa briga (se pegar no pau), seja nas brincadeiras
(arreganho).
120
Além desse “arreganho” que se faz com o toque, também aparece nessa
categoria a importância do olhar na constituição do feminino, através do “desfile”
(como diz Rassial, 1999) e que para Renata deve ser feito entre amigas.
c) “crescer ou ser grande”
No compasso do tempo, o efeito de ser grande, ou de ainda não ser tão grande
quanto as gurias de 16 anos, dá a dimensão de um antes e um agora: antes
gostava de “brincar, não podia sair”, etc e agorajoga vôlei com as gurias
grandes” (é aceita no grupo de adolescentes), “sai, conversa e dá risada”.
O efeito de crescer produz outras questões, principalmente imperativos: tem que
estudar, “tem que se dedicar mais ao estudo”.
d) ideais de consumo: os pais
O ideal que transparece nas histórias contadas parece pretender dar forma a um
conteúdo latente, a saber: ter “os pais”.
Seja na forma de pais ideais prósperos, que trabalham, têm uma profissão
reconhecida (médico, advogada) e dão mesadas, seja como pais apenas
presentes, que interditam e perdoam, que estão em casa e que fazem casar.
4.1.6.2. “ser mãe” ou “ser a mãe”
a) O espelhamento: imitação da mãe
A história contada por Andressa evidencia o poder da identificação entre mãe e
filha, como tentativa de construir uma metáfora para a semelhança em relação à
121
aquisição dos atributos do corpo do genitor do mesmo sexo, a partir da
puberdade. Rassial (1999) vai falar que nesse momento a diferença dos sexos é
mais importante do que a diferença das idades, na medida em que essa
equivalência estraga o ascendente do adulto.
A puberdade perturba a imagem do corpo construída na infância e pode se
apresentar como uma catástrofe para o adolescente, na medida em que ele
adquire os atributos do corpo do genitor do mesmo sexo.
Do lado feminino, tais mudanças pubertárias provocarão uma espécie de
regressão, pois a jovem não é apenas confrontada ao desejo que o Édipo já
orientara, mas também a uma “reatualização da questão da mãe, da Mãe
primordial e arcaica, à qual teve que renunciar e que reaparece como modelo
identificatório.” (Rassial, 1999, p 19).
b) Ilusão ou ideal do eu
Nas histórias transparecem os ideais do eu: a ilusão do consumo sem limites, a
ilusão da própria família como fundamento das gerações, a ilusão do “circo” e da
liberdade (independência).
Apesar do “eu” atestar para o sujeito a realidade, esta só se instaura em sua
relação com o caráter fantasmático do objeto, construindo os suportes
imaginários para “o eu”. Portanto, a função do “eu” não é de objetividade.
Lacan ([1956]1985) afirma que se é privilégio do “eu”, o exercício e a “prova da
realidade”, sua função é fundamentalmente narcísica, articulada como uma
miragem (ideal do eu) e ancorada na ilusão.
122
O eu em sua estruturação imaginária é para o sujeito como um de seus
elementos, gerando simetria através do sintoma (das formações sintomáticas),
das sensações, da experiência vivida e dissimetria no processo de identificação
sexual, na relação do sujeito com o significante e com a diferença sexual.
4.1.6.3. “se fazer olhar”
a) A inveja
Na histórias contada por Andressa, a pulsão escópica (o olhar) tem sua
importância a partir do olhar “das outras”: o olhar da inveja. A ambivalência na
relação com outras adolescentes aparece nas frases: não ter muitas amigas e
caminhar e sair com as amigas; confiar e não poder confiar (intrigas e fofocas).
Além disso, “ser muito linda e muito bela”, “se arrumar e se enfeitar” aparece
como provocação para o olhar, que redimensiona sua imagem corporal em
conformação a um modelo socialmente definido a partir das figuras valorizadas
pela mídia.
Para a moça, a puberdade assinala o que pode ser visto pelos outros (Rassial,
1999).
b) “O olhar” como paquera, sedução ou namoro.
Quanto ao aspecto do “sair com as primas”, na história de Renata, nota-se a
importância do caminhar como “desfile”, na medida em que as “amigas”
convocam, com seu passeio, o olhar do outro sexo.
Rassial (1999) argumenta que com as identificações recolocadas em causa na
relação com o outro, alguns objetos pulsionais vêm ocupar uma posição nodal:
123
precisamente os objetos atribuídos à mãe, a Mãe primordial, nesse momento
lógico que Lacan designou como estádio do espelho, estes objetos a que são o
olhar e a voz. O autor afirma que, nesse processo de redistribuição pulsional, a
diferença sexual é duplicada, moça e rapaz não colocando na mesma posição
cada um de seus objetos.
A articulação entre as tentativas de sedução, o namoro e o ato sexual são
ensaios para utilizar, de um modo novo, estes objetos novamente investidos que
são o olhar e a voz, de ressituar os objetos infantis redescobertos do lado do
outro sexo, em particular o objeto oral, e de obedecer à hierarquia proposta que
valoriza a genitalidade.
Ou melhor, pode-se dizer que através das experiências do namoro, da sedução e
das primeiras relações sexuais, o adolescente está colocando à prova os
processos de identificação sexual.
Dessa forma, de acordo com Rassial (1999), para o adolescente, a sua relação
com o jovem de outro sexo, encontra na dimensão imaginária do corpo (corpo
próprio e corpo do outro) uma importância maior do que o ato sexual
propriamente dito: trata-se mais de “tocar no outro”, de “encontrar-se a sós”, de
inventar um espaço íntimo de um corpo a outro, do que de chegar a uma
realização sexual. Para situar as diferenças entre rapazes e moças, o autor i
afirmar que a adolescente se dedicará a oferecer seu corpo através da exibição,
do “desfile”, e o adolescente, através da esportividade e da força.
Com relação às garotas, pode-se dizer que a especularidade na relação com o
olhar do outro, passa a ser o fundamento para exibição feminina, o que –
segundo Rassial (1999) – explica a atração, muito precoce, da jovem pelos jogos
124
de maquiagem, pelo modo de vestir, pela escolha das cores, entre outras coisas.
Assim, a adolescente “vem se oferecer como objeto ao olhar de um outro, de
início não necessariamente sexuado, pois isto pode muito bem ser endereçado à
mãe”. (p. 26).
4.1.6.4. “entre a casa da infância e a saída de casa”.
Rassial (1997) vai se referir ao acesso que o adolescente tem à dimensão do
infinito, sob duas formas: o infinito temporal da seqüência das gerações, o qual
vem expulsá-lo da triangulação edípica e o infinito espacial que o expulsa de seu
lugar de eleição infantil (a casa familiar).
a) entre sair de ... e ir para...
Interpreta-se que as adolescentes constroem pares de contextos nem sempre
explícitos na sua fala, da seguinte forma: sair de casa e ir para o cinema; ou em
sair da “vila” e ir para o Shoping; ou entre sair da periferia e ir para o centro.
Além disso, uma das histórias fala em sair para fora da cidade: viajar para a praia
ou para outra cidade, na casa da tia. Outra história constrói uma saída ou fuga
sob a metáfora do “Circo”.
b) Sair para a escola ou o imperativo da escola (e do trabalhar?)
As adolescentes falam em responsabilidade com a escola: dormir cedo para ir
para a escola, não sair nos dias de semana, “nunca desistiu de estudar”.
Também retomam a questão de que é necessário trabalhar para ser
independente. Tanto o trabalho como a escola vem se colocar numa posição
ideal, mas também como um lugar para ir e vir.
125
4.2. VERSOS ESCRITOS (OFICINA DE RAP)
Nesse tópico, descreve-se a atividade em grupo e, a partir das produções
escritas de três adolescentes, como versos de Rap, desenvolve-se as narrativas e
segue-se com as análises a partir de três categorias que o próprio grupo identificou: “se
apaixonar e perder a razão”; “engravidar e não saber o que fazer”; “ser mulher e saber
se cuidar”.
4.2.1. Descrição da atividade em grupo (“oficina de Rap”)
A abordagem terapêutica dos adolescentes no contexto da saúde mental coletiva
deve priorizar o atendimento sistemático e continuado. Assim, os grupos terapêuticos,
com encontros semanais, podem se constituir como uma alternativa eficaz para o
tratamento, tanto quanto para a promoção da saúde mental e da saúde sexual
reprodutiva, considerando a dimensão que a sexualidade ocupa no percurso da
puberdade e da adolescência. A partir da puberdade, o sujeito adolescente passa a
habitar um corpo sexualmente maduro com relação à aptidão reprodutiva e é
convocado, pelo olhar de um semelhante do “outro sexo”, a se apropriar de uma
imagem do corpo transformada
64
.
64
Para Rassial (1997), trata-se da recapitulação, na adolescência, do estádio do espelho.
126
As letras de Rap analisadas mais adiante provieram de uma dessas experiências
terapêuticas de grupo. O grupo terapêutico era formado por quatro rapazes e quatro
garotas, entre 14 e 16 anos, e ocorria semanalmente no Centro de Saúde mencionado.
No período de março a maio de 2004, montou-se uma Oficina de Rap e o resultado foi
surpreendente, pois, a escrita das garotas tematizou as formas singulares do seu
envolvimento amoroso
65
, cotejando uma atividade sexual que poderia resultar em uma
gravidez não esperada, enquanto a produção dos rapazes apresentou vivências
relativas ao tráfico de drogas, uso de armas e violência na comunidade
66
. A sugestão
para essa atividade era para cada um tentar contar a sua história e transmitir a sua
experiência, através do modelo das produções de Rap que conheciam.
Jerusalinsky (1997) afirma que o sujeito adolescente precisa encontrar uma
“posição para falar”, já que a posição infantil deve ser abandonada e a posição de
adulto não lhe compete. Entre “o ato” e “o brincar”, entre o “faz-de-conta” infantil e o
“ter-que-dar-conta” adulto, a adolescência torna-se o momento crucial para a
construção de outros recursos para a elaboração psíquica.
Enquanto a criança cria um espaço de ilusão e uma distância necessária da
realidade, através do brincar, o(a) adolescente tem de se virar com uma nova condição:
ele(a) está jogado na realidade da existência do sexo e do desejo, porque a partir da
puberdade fica mais difícil ignorar esses desejos que sempre existiram
67
. A virada da
puberdade é a assunção de um desejo, que é sexual e passa a recapitular as
experiências infantis, traduzindo o enigma da atividade-passividade, uma vez que a
65
Esse envolvimento, dito amoroso, aparece caracterizado como “paixão” nas letras produzidas pelas
meninas.
66
As produções dos quatro rapazes foram inseridas no Apêndice C.
67
Para Birman (1999), a novidade da teoria psicanalítica sobre a incidência do sexual, a partir da obra de
Freud, é a sua abordagem desde a infância.
127
passividade infantil seria a conseqüência do não engajamento de um desejo que o
sujeito possa supor na cena (Corso, 2004).
Para as adolescentes desse estudo, percebe-se que esse outro recurso de
elaboração psíquica partiu de um eixo ficcional: escrever e narrar uma história a partir
de uma experiência vivida. O tempo para escrever e o espaço para contar, produziu um
efeito de implicação subjetiva, porque aconteceu dentro de um grupo, e refletiu um
“contar-se” para os outros, que busca encontrar significação para a diferença sexual e,
também, produzir laços de sustentação entre a adolescente e seu lugar na feminilidade.
Enfatiza-se a importância desses processos de “fabulação”
68
e de simbolização
entre as adolescentes, os quais, justamente, escapam e se furtam diante das tentativas
e preocupações em “informar” e estabelecer normas e cuidados para a saúde sexual
reprodutiva. Para isso, faz-se necessário escutar e deixar emergir a fala dessas jovens.
4.2.2. O que dizem os versos de Rap de três adolescentes
Na “oficina de Rap” realizada em um grupo terapêutico, entre os meses de março
e maio de 2004, as adolescentes Ane, Larissa e Vanessa
69
apresentaram as seguintes
produções escritas, reproduzidas integralmente, antes de se demonstrar os resultados
da análise de conteúdo. Após cada letra, procura-se situar três pontos de referência, os
quais, amparam suas narrativas e também seu percurso no atendimento. Primeiro, seu
68
Utilizamos esse termo para enfatizar a construção de narrativas ficcionais. Chemama (2002) define o
termo ficção como estando para além do erro ou da exatidão: seria “toda construção linguageira pela
qual, de maneira mais ou menos direta e mais ou menos manifesta, tentamos suturar a hiância sexual”
(p. 295).
69
Trata-se de nomes fictícios para que a identidade das adolescentes seja preservada.
128
contexto sociofamiliar; segundo, o motivo de consulta; e terceiro, os efeitos subjetivos
do atendimento em grupo: experiência, identificação e transferência.
Ane (16 anos completos):
Eu vou falar/ agora eu vou falar/ Eu sou mulher e vim aqui para falar que o filho
que eu fiz, eu fiz sem pensar/ Eu era tão novinha, não entendia nada/ Agora
que eu vi, eu entrei numa roubada. Mulheres da Vila
70
, estão aqui para falar:
use camisinha, vamos se ligar/ Mulheres inteligentes precisam se cuidar. / É
isso aí mulherada, vamos se unir! / Vamos mostrar para os manos que a
inteligência tá aqui! Aqui na Vila, só falamos a verdade/ O que acontece aqui é
a mais pura realidade. Preste atenção, porque eu não vou mentir/ Quem está
falando agora é as manas MCs.
O contexto familiar de Ane inclui histórias e experiências vertiginosas de
relacionamentos conturbados entre ela e sua mãe e, também, entre sua mãe e
diferentes parceiros. Desamparo e abandono, coabitações e mudanças dramáticas de
lugar, além da necessidade de elaborar o luto pela perda da avó, que, precisamente,
teria sido a figura de maior permanência na sua infância, constituem o pano de fundo
das suas cenas de vida. Além disso, sua trajetória assemelha-se a de qualquer outro(a)
jovem de periferia: a necessidade de aceitar diferentes “padrastos” e novas
configurações familiares, com meios-irmãos, irmãos emprestados, irmãos de sangue,
numa seqüência de interações entre fratrias que vai do espaço familiar ao espaço
70
Substituímos o nome da comunidade, citado na letra duas vezes, por “vila”, para garantir o anonimato.
129
coletivo – irmãos de religião, irmãos de cor e de raça, irmãos da “vila”, enfim, “os
manos” e “as manas”, a propósito da filosofia e do estilo introduzido pelo rap.
O motivo que gerou seu encaminhamento ao serviço de acolhimento para
adolescentes foi uma passagem ao ato, quando Ane agrediu fisicamente uma
professora na escola, por esta ter-se referido à cor da sua pele de forma pejorativa. A
cena é deslocada do ambiente familiar, no qual vive uma relação de hostilidade com a
mãe e o padrasto, mas também dá a ver sua “atitude” como procedente desse estilo
mencionado acima, que preconiza, por meio dos diferentes grupos de rap, o orgulho de
ser “preto”, o orgulho da“raça” e o fim da humildade (do sentimento de inferioridade).
Dessa forma, “encarar” o desrespeito “burguês” e, se necessário, “revidar”
71
pode ser
importante.
Para muitos adolescentes de periferia, a experiência do Rap vem ao encontro de
uma necessidade legítima de constituir “uma irmandade”, de fundar uma “fratria”. O Rap
parece responder a essa demanda, a esse pedido de uma identidade coletiva, ao
mesmo tempo em que convoca o ouvinte a fazer parte e, portanto, a se identificar. O
Rap produz histórias que Ane conhece muito de perto, no lugar onde mora. Mas o que
Ane extraiu do Rap foi um outro tipo de protesto, um outro tipo de manifesto, que é mais
específico da feminilidade, porque fala de uma experiência corriqueira das “mulheres da
Vila” e porque, principalmente, fala da sua experiência.
71
As palavras entre aspas nesse parágrafo foram destacadas porque aparecem em algumas letras de
rap do grupo Racionais (grupo paulista composto por Mano Brown, Ice Blue, K.L. Jay e Edy Rock),
segundo destaca M. R. Kehl (2000).
130
Durante o atendimento e no momento dessa produção escrita, Ane tinha
provocado um aborto, usando um medicamento (cytotec
72
). Entretanto, na letra de rap
que trouxe para o grupo, Ane “fala” de um filho feito sem pensar e não, de ter
engravidado “sem querer”. Essa passagem é importante porque o percurso que levou a
paciente a esse aborto provocado teve origem numa relação de espelhamento com sua
prima.
Exatamente nesse período, Ane estava morando com uma tia materna e
estudava, na escola, com uma de suas primas. O centro de sua identificação passou
pela experiência da prima mais velha, que engravidou e usou esse mesmo
medicamento. A história contada pela paciente é trágica: sua prima introduziu os
comprimidos no canal vaginal quando estava no terceiro mês de gestação. Houve um
sangramento e ela pensou que tinha dado certo, mas enganou-se: passados outros três
meses, sua prima teve parto prematuro e “o bebê que nasceu estava morto”, segundo
relatou a paciente.
Além dessa história, outras experiências vão sendo relatadas, as quais parecem
demonstrar o quanto há um saber feminino, que se transmite e compõe os traços
possíveis de filiação, fratria e pertencimento entre Ane e suas “primas”: “as Manas”.
Não tardou para que ela revelasse sua própria experiência.
No texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, Freud (1920/1981) apresenta
a noção de “sintoma compartilhado”, que fornece a base das identificações histéricas
nas instituições para moças, no século XIX e início do século XX. Ele situa três fontes
72
Cytotec é um medicamento indicado para prevenção e tratamento de úlceras gástricas e foi lançado no
Brasil em 1984. É usado ilegalmente como abortivo porque provoca fortes contrações no útero,
deslocando a placenta. Em 1998, o Ministério da Saúde restringiu a venda do produto, entretanto, há um
comércio ilegal e de fácil acesso nas comunidades de periferia.
131
para constituir o processo de identificação: primeiro, o processo mais original e primitivo
da identificação, ou seja, a identificação como “laço emocional”; segundo, como
vinculação de objeto libidinal através da introjeção do objeto no ego; e terceiro, como
percepção de uma “qualidade comum partilhada” com uma pessoa que não é objeto da
pulsão sexual. Dessa forma, o tipo de laço existente entre os membros de um grupo,
como no caso das moças em um internato, forneceria reforço narcísico para cada uma
e para o grupo, assim como referenciais para as identificações imaginárias mútuas.
Identificações e ideais vinculam o sujeito ao grupo (amigos, familiares, colegas)
inserindo-o na cena social. Esse seria o desafio para o sujeito adolescente, o de criar e
estabelecer vínculos e contatos. Tomando a perspectiva de Rassial (1997) para o
conceito de reprodução sexual, é fundamental dar visibilidade ao contexto geracional e
intergeracional, cultural e comunitário dessas adolescentes, uma vez que convocam
para uma relação de espelhamento, de identificações parciais e montagem de traços
identitários compartilhados. É a partir da feminilidade e dos contextos de transmissão
de saber (um saber feminino) que uma adolescente vai implicar-se ou não na
maternidade; vai suportar ou não uma gravidez na sua vida.
Larissa (14 anos incompletos):
Eu tava na esquina beijando meu namorado. Foi quando eu olhei e vi que era
errado. E ele disse que me amava e eu acreditei. Me chamaram de bobinha,
mais um sonho que eu errei. O pensamento era longe. E era só nisso que eu
pensava. E nada mais me importava. E a minha cabeça virava, meu coração
amolentava e o desejo aumentava.
132
Não sei o que fazer meu irmão: me dê uma dica, me dê uma sugestão! / Não
sei o que fazer. Não sei se vou morrer./ Não tenho muitos amigos e tenho medo
de sofrer./ Pra mim, naquele tempo era só amor que restava, nada mais
importava./ Não sei o que fazer, sou uma menina ingênua: meus olhos dizem
sim e minha boca diz não, como posso saber o que diz meu coração.
Para introduzir o percurso clínico de Larissa, uma história. O objetivo é ilustrar as
cenas familiares e destacar o lugar que ocupa um imperativo materno quando, a
propósito da puberdade, surgem os “comentários” que acompanham as primeiras
“regras”, ou melhor, a menarca.
Trata-se de um fragmento apresentado pela psicanalista Jane Wiltord no
Seminário de Bergès (Bergès & Balbo, 2003) sobre um povoado na Martinica, ilha de
colonização francesa na América Central, em que a mãe diz para sua filha púbere,
quando esta quer sair de casa, a seguinte frase: “eu não quero que você traga uma
criança para mim”. Jane Wiltord (apud Bergès & Balbo, 2003) salienta que essa frase
tem um duplo sentido na forma como é enunciada, devido ao dialeto local. O outro
sentido seria: “eu não quero que você fale com um homem”.
Jean Bergès (Bergès & Balbo, 2003) refere que esse enunciado denegatório da
mãe funda a hipótese de uma demanda para a filha, porque afirma a existência ou a
possibilidade de advir uma criança. Essa demanda, suposta pela filha, seria relativa a
um desejo da sua mãe de que ela procriasse, intervindo, imediatamente, na relação
entre mãe e filha, desde que essa última está iniciando o ciclo menstrual. Essa hipótese
da filha implica um saber que está suposto na linhagem e que é desconhecido. Para o
autor, a mãe passa a ocupar um outro lugar na linhagem: “ela não lhe fala como mãe,
ela lhe fala como futura avó” (Bergès & Balbo 2003, p. 79). Assim, é importante
133
destacar a diferença entre linhagem e filiação, porque enquanto uma é ascendente, a
outra é descendente.
Bergès (Bergès & Balbo, 2003) escreve:
Se a linhagem é caracterizada pelo fato de sentir o corpo imaginário de seus
ancestrais no seu próprio corpo (...), o desconhecimento desse saber nas
articulações com o imaginário do corpo, e os efeitos que persistem da teoria
sexual infantil, podem levar bem longe. (p. 86)
E, realmente, levam muitas adolescentes longe com relação às possibilidades,
ensaios e experiências que vão fazer até se apropriarem do funcionamento reprodutivo
do próprio corpo e verificarem alguma realidade sobre os mandatos e previsões feitos
na família e no entorno.
O motivo do encaminhamento e da chegada de Larissa foi um desentendimento
com sua tia que denunciou para sua mãe um namoro proibido. Larissa estava
mantendo um relacionamento amoroso com um rapaz mais velho, longe dos olhos da
mãe e dos familiares, entretanto fora surpreendida por essa tia delatante, que
imediatamente constatou a possibilidade do exercício sexual, apesar da paciente dizer-
se “ainda virgem”.
Seu contexto familiar é complexo: separação dos pais e pouco contato com seu
pai; história de quadros depressivos na linhagem materna: avô materno alcoólatra, tia
materna com tentativa de suicídio e sua mãe, que fazia uso de antidepressivos. Esses
traços familiares podem produzir identificações parciais e, considerando a passagem
134
pela adolescência conjugada ao envolvimento amoroso, podem reativar a posição
depressiva, tendo em vista que o objeto amoroso é sempre suscetível de ser perdido.
Kristeva (2002) vai salientar que o imaginário adolescente é essencialmente
amoroso e, através da atividade de escrita, pode retomar o processo de simbolização e
de elaboração fantasmática, permitindo um ajustamento das pulsões e dos signos
através dos códigos imaginários disponíveis. Para essa autora, a adolescência deve ser
entendida como uma estrutura psíquica aberta, portanto, inacabada. Refere que a
estrutura adolescente se abre ao recalcado e, após a estabilização edipiana de sua
identidade subjetiva, o adolescente precisaria repor suas identificações, suas
capacidades de palavra e de simbolização, para elaborar um discurso e uma narrativa
que possam integrar os eventos psíquicos. A escrita, na adolescência, faria essa
função.
A experiência de Larissa, que não está aparente nesse escrito que produziu,
refere-se ao medo de engravidar
. Quando começou a participar do grupo, contou – em
sigilo – que não era mais virgem e ninguém na sua família poderia saber. No decorrer
do seu atendimento, houve episódios de atraso menstrual e de desespero quanto à
possibilidade de uma gravidez, que a fizeram procurar procedimentos que lhe
garantissem um “não-engravidamento”, como a pílula do dia seguinte
73.
Essas situações “embaraçosas” ocorriam, em geral, nos fins-de-semana, quando
ela não podia procurar ajuda no grupo ou no atendimento individual. Por isso, sua
escrita aparece como um pedido incessante de ajuda, um pedido de inscrição simbólica
73
Trata-se da pílula anticoncepcional de emergência, recurso que pode ser usado após uma relação
sexual desprotegida para evitar gravidez indesejada. Deve ser usada até 72 horas após a relação.
Quanto mais cedo for usada, tanto maior a sua eficácia. Não deve ser utilizada de rotina como método
anticoncepcional. Não interrompe uma gravidez em andamento. Não protege contra DST/HIV/AIDS.
135
que possa desprender seu corpo do aprisionamento aos imperativos de “ser menina-
mãe”. Ao mesmo tempo percebe-se que, paradoxalmente, a possibilidade do
engravidamento ocorre sempre na impossibilidade de pedir ajuda, da mesma forma
como sua atuação demonstra uma antecipação relativa a estar grávida (desejo) e não
uma atitude de prevenção para não engravidar.
Vanessa (15 anos incompletos):
Minha vida é complicada. Não posso fazer nada./ Sou muito rejeitada e já fui
até saco de pancada./ Fazia tudo o que não podia e pensava que ia dar em
alegria./ Mas percebi que era só ilusão./ No começo era só curtição: na hora ia
tudo pra mente e todo mundo parecia diferente. Quando acabava parecia ser o
fim./ O fim do mundo? Não, mas sim o meu fim./
Na escola não fazia nada./ Larguei meus amigos de mão, por causa de uma
paixão, que não tinha razão./ Hoje podia estar grávida, mas Deus me iluminou e
o exame disse não.
Pode crê, foi tudo ilusão. Olho meu passado e vejo os irmão atirado no chão e
viciado nas drogas./ Mano, eu saí dessa vida torta.
Vanessa evidencia na sua escrita, o motivo de estar em tratamento. Ela estava
usando drogas. Entretanto, essa experiência demonstrou ser o menor entre os motivos.
Aos 12 anos, teve um relacionamento precoce: sua mãe permitiu que seu
namorado morasse na sua casa e, após dois anos, quando se separaram, ela estava
grávida. Esse convívio entre eles, ambos usando drogas, resultou em fortes paixões:
violência, brigas e agressões.
136
Quando engravidou, parecia ter recuperado o vínculo perdido com a separação,
mas ocorreu um aborto espontâneo, possivelmente devido ao uso de substâncias
psicoativas.
Seu contexto familiar é o seguinte: mora com avó materna, sua mãe e uma irmã
– filha de outro pai. Um dado interessante é que sua mãe tinha 15 anos quando
engravidou pela primeira vez e nunca manteve um relacionamento conjugal, nem
quando engravidou a segunda vez, ocasião do nascimento de Vanessa. Por isso, a
paciente não conheceu o pai.
Sobre essa paciente, é preciso salientar a sobreposição de duas problemáticas:
a ausência da figura masculina para a mãe e de um referencial paterno para a filha.
Assim, a adolescência de Vanessa denota a impossibilidade da elaboração do lugar do
pai.
Rassial (1997) constrói a noção de “passagem” na adolescência, que põe à
prova a estruturação psíquica. Esse processo tem a ver com a necessidade, para
qualquer adolescente, de realizar, a posteriori, uma série de operações fundadoras do
desenvolvimento emocional infantil constituindo, dessa forma, um trabalho psíquico.
Examinemos brevemente a posição freudiana (Freud, 1905/1981), a qual nos
dará indícios de que os processos anteriores, vividos na infância, devem ser
reordenados pela adolescência, dando ênfase à sexualidade e ao desligamento das
figuras parentais. O destaque é dado às fantasias incestuosas que ressurgem, agora
fortificadas pela energia pulsional, gerando um impasse que leva o jovem ao
desligamento dos pais. Todavia é essa inclinação infantil até os pais, que renovada na
puberdade, marcará o caminho para a eleição de objeto.
137
Então, estamos falando de três reedições: a reedição da fase do espelho, no
qual a constituição imaginária do eu se ancora pela presença do outro; a reedição do
Édipo, enquanto caminho para a eleição de objeto e o impasse do desligamento dos
pais com o desmoronamento da consistência parental imaginária do Outro. Assim,
novamente com Rassial (1999), veremos que o Outro e o objeto adquirem um novo
valor psíquico na adolescência, a saber: enquanto o Outro do lactente deve ser referido
à mãe e o Outro do Édipo aos pais, o Outro do adolescente está, imaginariamente,
ligado ao Outro sexo (p. 49).
No caso de Vanessa, há um pedido impossível: de que o Outro sexo venha
cumprir uma função paterna e, assim, através de uma presença real, possa produzir
uma consistência simbólica. O efeito dessa operação aparece nas tentativas
malsucedidas de engravidar, nas quais o “medo/desejo de poder engravidar” e o
“medo/desejo de não poder engravidar” se equivalem.
4.2.3. A Análise de Conteúdo
As categorias descritas a seguir emergiram dos conteúdos das letras escritas e
foram sugestões dos participantes do grupo, constituindo, portanto, suas próprias falas.
Propõe-se em cada categoria um deslizamento temporal, considerando o
sofisma dos três tempos lógicos (Lacan,1966/1978).
Sugere-se, portanto, uma articulação entre as categorias de análise encontradas
nas letras de Rap das adolescentes e os três tempos lógicos mencionados da seguinte
138
forma: “se apaixonar e perder a razão” como um “instante de ver”; “engravidar e não
saber o que fazer” como o “tempo de compreender”; e “ser mulher e saber se cuidar”
como o “momento de concluir”. Para Lacan (1966/1978), o sofisma dos três tempos
lógicos indica as condições de subjetivação da seguinte forma: sujeito impessoal para o
instante de ver; sujeito indefinido recíproco para o tempo de compreender e o sujeito da
asserção para o momento de concluir.
4.2.3.1. “se apaixonar e perder a razão” (ou o “instante do olhar”)
Paixão e excitação sexual. No momento da paixão todo pensamento racional,
todo planejamento deixa de ter importância. Estar apaixonada é como entrar numa
roubada, escolher acreditar em ilusões, em sonhos e em devaneios, ser levada pelo
desejo (sexual) e, principalmente, perceber-se ativa na intenção de tornar-se desejável
e de desejar, provocar o olhar do outro e, então, deixar de enxergar o que é certo ou
errado.
O instante do olhar, ou “instante de ver” como primeiro tempo lógico, faz emergir
um sujeito impessoal e essencialmente transitivo, segundo Lacan, da seguinte forma: é
anterior a formulação de uma hipótese e revela-se como intuição. Como se trata de
“ver/olhar” o que está em jogo é um transitivismo especular indeterminado.
Considerando os processos psíquicos, pertinentes à adolescência, de reposição
das identificações, essa especularidade vem se manifestar através de uma montagem
de traços comuns compartilhados entre as moças e que, se valendo da contingência da
fertilidade feminina, faz um jogo de correlações, o qual instaura a dúvida.
139
A: “Eu era tão novinha, não entendia nada. Agora que eu vi, eu entrei numa
roubada.”
L: “Eu tava na esquina beijando meu namorado. Foi quando eu olhei e vi que
era errado. E ele disse que me amava e eu acreditei. Me chamaram de
bobinha, mais um sonho que eu errei. O pensamento era longe. E era só nisso
que eu pensava. E nada mais me importava. E a minha cabeça virava, meu
coração amolentava e o desejo aumentava.”
V: “Fazia tudo o que não podia e pensava que ia dar em alegria./ Mas percebi
que era só ilusão. (...) Larguei meus amigos de mão, por causa de uma paixão,
que não tinha razão.”
4.2.3.2. “engravidar” e “não saber o que fazer” (ou o “tempo de compreender”)
A categoria faz emergir um impasse entre a antecipação relativa a estar grávida
e as condições de prevenção para não engravidar. Trata-se de um paradoxo que
explicita um comportamento adolescente de não-prevenção frente à possibilidade de
engravidar e uma atuação relativa a ter que fazer algo a posteriori (“só-depois”).
Para Lacan, esse tempo é essencialmente transitivo, porque introduz a forma do
outro enquanto tal, como pura reciprocidade, na medida em que um sujeito precisa de
um outro para se reconhecer. O tempo de compreender engendra sujeitos indefinidos,
salvo por sua reciprocidade, onde a ação é suspensa por uma causalidade mútua. O
sujeito em questão parte de um transitivismo que instaura um estado de cogitação.
Para as meninas que ensejam uma atividade sexual com os meninos, evidencia-
se um jogo de correlações desde os referenciais do grupo feminino, onde as
comparações a partir da experiência das outras, das parceiras vem testar um certo
número de variáveis possíveis.
140
A: “Eu sou mulher e vim aqui para falar que o filho que eu fiz, eu fiz sem pensar.
Eu era tão novinha, não entendia nada. Agora que eu vi, eu entrei numa
roubada.”
L: “Não sei o que fazer meu irmão: me dê uma dica, me dê uma sugestão! Não
sei o que fazer. Não sei se vou morrer. Não tenho muitos amigos e tenho medo
de sofrer.”
V: “Hoje podia estar grávida, mas Deus me iluminou e o exame disse não. Pode
crê foi tudo ilusão.”
4.2.3.3. “ser mulher” e “saber se cuidar” (ou o “momento de concluir”)
As adolescentes querem encontrar um lugar desde o qual possam falar. Não se
trata de qualquer lugar. Trata-se de um lugar de referência feminino, um lugar de
“mulher”, que possa, ao mesmo tempo, efetivar a passagem entre a infância e a fase
adulta; um lugar de sujeito que reconhece e se posiciona perante o passado. É como se
recuperassem a razão e a inteligência, a capacidade de pensar, a capacidade de se
cuidar, de falar a verdade e escolher seu destino, sem ilusões.
Este terceiro tempo lógico representa, em Lacan, “o momento de concluir”, onde
desponta um sujeito da asserção, caracterizada como asserção subjetiva, que assume
a forma pessoal do sujeito: o “eu”, isolando-se da relação de reciprocidade.
Para Lacan (1966/1978):
O julgamento que conclui o sofisma só pode ser efetuado pelo sujeito que
formou sua asserção sobre si, na evidência subjetiva de um tempo de atraso
que o apressa a concluir. Portanto, esse último movimento se manifesta por um
ato. Como diz Lacan: o que faz a singularidade do ato de concluir na asserção
subjetiva demonstrada pelo sofisma, é que ele antecipa sobre sua certeza, em
razão da tensão temporal da qual ele é carregado subjetivamente, e que, com a
condição dessa própria antecipação, sua certeza se verifica em uma
141
precipitação lógica que determina a descarga dessa tensão. Entre o instante de
seu início e a pressa do seu fim, só o golpe da dúvida esfolia a certeza subjetiva
do momento de concluir. (p.81).
A: “Eu sou mulher e vim aqui para falar (...) Mulheres da Vila, estão aqui para
falar: use camisinha, vamos se ligar/ Mulheres inteligentes precisam se cuidar. /
É isso aí mulherada, vamos se unir! Vamos mostrar para os manos que a
inteligência tá aqui! Aqui na Vila, só falamos a verdade/ O que acontece aqui é
a mais pura realidade.”
L: “Pra mim, naquele tempo era só amor que restava, nada mais importava.”
V: “Pode crê foi tudo ilusão. Olho meu passado e vejo os irmão atirado no chão
e viciado nas drogas./ Mano, eu saí dessa vida torta.”
5. ANÁLISE DOCUMENTAL
Dois documentos, ambos do Ministério de Saúde, foram selecionados para a
análise:
1) “Assistência em Planejamento Familiar: Manual Técnico”
2) “Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”
Antes do conteúdo de cada um deles, faz-se necessário introduzir algumas
informações encontradas no portal do MS
74
, na medida em que apresentam dados e
definem ações atualizadas (ver a seguir a criação da Norma Técnica de Atenção
74
http://portal.saude.gov.br/saude, acessado em 16/08/05 às 12:20.
54
O documento a ser analisado, Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, além de mencionar este
dado, refere pesquisas que identificaram no Brasil complicações pós-abortamento em 20% dos abortos
realizados em clínicas clandestinas e em 50% dos abortos domiciliares. (p.62)
142
Humanizada ao Abortamento) que, como veremos, são significativas para a abordagem
também de adolescentes (tópico 5.1).
Outras informações importantes constam no apanhado histórico que é feito no
segundo documento, relativo à saúde da mulher.
No tópico 5.2. faz-se a citação dos fragmentos selecionados para a análise e
segue-se com a interpretação.
As categorias que emergiram a partir da análise de conteúdo foram sintetizadas
em um quadro (Apêndice E) e podem ser descritas da seguinte forma:
Na primeira análise, as categorias foram: a justificativa para prestação da
assistência; a relação entre partos e contaminação pelo HIV e a banalização da relação
sexual.
Para a segunda análise: o protagonismo da mulher; o privilégio da informação
(desde a capacitação dos profissionais até a informação aos adolescentes); a ênfase no
Real e no discurso bio-político (desde os métodos anticonceptivos até os materiais
técnicos e educativos).
5.1. DADOS E LEVANTAMENTOS ACERCA DA SAÚDE SEXUAL
Em primeiro lugar, os dados apresentados como estimativas da Organização
Mundial da Saúde (OMS) referem que cerca de 50% das gestações é indesejada e que
uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No Brasil, as pesquisas demonstram que
o índice de abortamento é de 31%, ocorrendo aproximadamente 1,44 milhão de abortos
espontâneos e inseguros com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A situação do
abortamento se reflete no SUS e os números são reveladores: por exemplo, no ano de
143
2004, 243.988 mulheres foram internadas em hospitais da rede pública para fazer
curetagem pós-aborto.
Com base em estatísticas nacionais que revelam as complicações decorrentes
de abortos inseguros como a quarta causa de morte materna no País
75
, foi criada
Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, pelo Ministério da Saúde, em
2004. A NTAHA define que “toda mulher em processo de abortamento, inseguro ou
espontâneo, terá direito a acolhimento e tratamento com dignidade no Sistema Único
de Saúde (SUS)”
76
.
Para isso, o MS reconhece a necessidade de uma reorganização dos serviços
públicos para a efetivação deste procedimento. É necessário humanizar o acesso e o
acolhimento das mulheres e adolescentes que recorrem aos hospitais em situação de
abortamento. Assim, o MS previu a organização de seminários para discutir e abordar
questões voltadas para o atendimento clínico, aspectos jurídicos, forma de acolher e
tratar o aborto pelos profissionais de saúde e sobre a escolha do método ideal para a
realização do procedimento. Além disso, temas como a vigilância do óbito materno e
infantil, a assistência durante o parto e o planejamento familiar reprodutivo devem ser
abordados.
O Ministério da Saúde tem como uma de suas prioridades estimular e apoiar a
implementação e a qualificação da atenção em planejamento familiar no Sistema Único
de Saúde (SUS). Nesse sentido, uma das ações desenvolvidas é a distribuição aos
municípios de métodos anticoncepcionais reversíveis, como pílulas anticoncepcionais,
55
Estas informações provêm da URL “materiasespeciais.com.br/saúde/abortamento”, acessado em
16/08/05 às 13:45.
144
camisinhas, anticoncepcionais injetáveis e DIU. O objetivo é ampliar a oferta desses
métodos à população que é atendida exclusivamente pelo SUS.
O MS atende a aproximadamente 30% da demanda do público-alvo. A meta é,
até 2007, chegar a 60% de cobertura. O restante deve ser complementado por estados
e municípios.
Neste mesmo texto, fala-se em transformação da prática profissional, onde papel
dos profissionais de saúde é o de informar e orientar com relação aos métodos
anticoncepcionais, sem juízo de valor, enfocando a sexualidade de forma positiva e
sem preconceito.
Além disso, menciona-se a desigualdade de poder entre homens e mulheres e
um controle médico maior sobre o corpo feminino, reconhecendo o quanto cabe às
mulheres o planejamento da vida reprodutiva com o pouco envolvimento dos homens
em relação a um comportamento sexual mais seguro e também em relação à
paternidade responsável. Outro exemplo é a dificuldade que as mulheres têm de
negociar com seus companheiros o uso de camisinha.
Quanto aos adolescentes:
O planejamento familiar diz respeito também aos adolescentes. As ações do
Ministério da Saúde levam em conta o direito desses jovens de vivenciar a sua
sexualidade de forma positiva, saudável e segura e de dispor de serviços para
atenção a sua saúde sexual e reprodutiva. A vida sexual dos jovens tem início
cada vez mais cedo, o que justifica a necessidade do acesso a informações e
aos meios para regular a sua fecundidade.
(materiasespeciais.com.br/saude/planejamentofamiliar, acessado em 16/08/05
às 13:10)
145
5.1.1. Alguns dados históricos sobre saúde da mulher
No segundo documento que analisamos, o Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres, no capítulo 3, que trata da saúde reprodutiva, há um breve apanhado
histórico quanto aos programas e políticas para a saúde da mulher.
Na página 64 aparece:
No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde
nas primeiras décadas do século XX, limitada, porém, às demandas relativas à
gravidez e ao parto. Este modelo traduzia uma visão restrita sobre a mulher,
baseada em sua especificidade biológica e no papel social de mãe e doméstica.
(BRASIL, 2004, p. 64)
Menciona-se a falta de insumos para o planejamento familiar, além de outras
ações que disponibilizassem profissionais para o desenvolvimento de ações
preventivas e para a promoção ou educação em saúde.
A partir daqui, o documento faz menção ao Programa de Assistência Integral à
Saúde da Mulher (PAISM), que surgiu em 1984, publicado pelo MS, onde constam
prioridades, as quais não só contradizem o principio da integralidade (porque se é
integral deve estabelecer ações que possam abranger as mais diversas áreas), como
demonstraram dificultar o desenvolvimento de outras ações estratégicas e transversais,
considerando a amplitude do conceito relativo à saúde da mulher.
O documento refere estudos realizados e um balanço institucional entre os anos
de 1998 e 2002:
146
“Neste balanço são apontadas várias lacunas: a atenção ao climatério e
menopausa, infertilidade e reprodução assistida, saúde da mulher na
adolescência, doenças crônico-degenerativas, saúde ocupacional, saúde
mental, doenças infecto-contagiosas e a inclusão da perspectiva de gênero e
raça nas ações”.(p. 65)
Nesse capítulo fica definida a existência de dois problemas persistentes nas
políticas de atenção à saúde sexual e reprodutiva da mulher: problema da atenção
precária relativa à anticoncepção (insumos) e o problema da transmissão do vírus HIV
que vem atingindo cada vez mais a população adolescente. Citaremos integralmente as
duas passagens, porque aparecem dados e elementos importantes para nossa
interpretação:
“No Brasil, o acesso à anticoncepção, direito garantido constitucionalmente, não
é amplamente atendido. Existem problemas na produção, controle de
qualidade, aquisição, logística de distribuição dos insumos e manutenção da
continuidade da oferta de métodos anticoncepcionais
77
. O resultado é uma
atenção precária e excludente, ou até inexistente em algumas localidades, com
maior prejuízo para as mulheres oriundas das camadas mais pobres e das
áreas rurais”.(p. 63)
E logo a seguir, aparece o seguinte parágrafo:
“No período de 1996 a 2000 houve um acréscimo de 1,8% no percentual de
partos na faixa etária de 10 a 14 anos, passando-se de 31.911 para 32.489
(DATASUS/MS). O Programa Nacional de DST/AIDS (Dez/99 a jun/2000)
informa que na distribuição proporcional de casos de Aids, segundo sexo e
idade, a maior incidência, de 13,2%, atinge o sexo feminino na faixa etária de
20 a 24 anos de idade. Considerando-se o tempo transcorrido até o
aparecimento da doença, verifica-se que a contaminação pode ter ocorrido nos
primeiros anos da adolescência, quando se reforça a dificuldade encontrada por
mulheres em negociar o sexo seguro”.(p. 63)
77
A descrição dos métodos contraceptivos oferecidos na Rede Pública de Saúde consta em Anexo A.
147
5.2. PRIMEIRO DOCUMENTO
Na rede de atenção primária, as equipes de saúde utilizam materiais informativos
e manuais estabelecidos pelo Ministério de Saúde. Toma-se para análise alguns
trechos que pareceram mais relevantes para esse estudo.
As orientações quanto à saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes, as quais
constam no material de distribuição exclusiva às Unidades de Saúde, com o título
“Assistência em Planejamento Familiar: Manual Técnico” e que trata, no seu capítulo 9,
da “Anticoncepção na adolescência”, são citadas abaixo, conforme os trechos
selecionados:
O elevado número de partos entre as adolescentes, o início cada vez mais
precoce das relações sexuais e o aumento das DST/AIDS nessa faixa etária
justificam a prestação de uma assistência adequada às necessidades da
população na faixa etária de 10 a 19 anos.(...)
A qualidade desta atenção pressupõe minimamente: boa comunicação;
confidencialidade, privacidade, disponibilidade constante de insumos para a
dupla proteção; (...) atenção especial as faixas etárias mais precoces (10 a 14
anos) quando na região se registra um aumento de gestação nessa faixa etária;
a avaliação integral do(a) adolescente incluirá a avaliação psicossocial, além do
exame físico; os/as adolescentes são o centro de interesse na entrevista e os
pais e familiares só estarão presentes se ele ou ela permitir.
Recomenda-se trabalhar ações educativas de prevenção nas unidades de
saúde, escola, centro de lazer, centro esportivo ou cultural entre outros.
(BRASIL, Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica
de Saúde da Mulher, 2002, p.126)
Os adolescentes podem utilizar qualquer método anticoncepcional desde que
não apresentem alguma das condições clínicas que contra-indiquem seu uso,
conforme critérios de elegibilidade descritos para cada método.
(Brasil, 2002, p. 129)
148
5.2.1 A análise do primeiro documento
Os procedimentos adotados para a análise de conteúdo desse documento
incluem três passos: a leitura flutuante, a marcação de transições de significado e a
interpretação através de categorias emergentes (Bardin, 1977). No texto, após a
identificação da categoria e/ou sua interpretação, destaca-se a frase do documento que
implicou a emergência da categoria.
5.2.1.1. “Justificativa para a prestação da assistência”.
Essa categoria pode-se desdobrar em duas subcategorias: “o aumento” e a
“precocidade”. Com relação à primeira, parece evidenciar uma contradição entre a
concepção do que seria “prevenção” e a necessidade de dar visibilidade ao tema
através do “elevado número” ou do que seria o “aumento” do problema. Se o objetivo é
prevenção, os programas e ações devem ser desenvolvidos independentemente do
maior ou menor registro de casos.
O elevado número de partos entre as adolescentes, e o aumento das DST/AIDS
(...) quando na região se registra um aumento de gestação nessa faixa etária
(...)
Recomenda-se trabalhar ações educativas de prevenção nas unidades de
saúde, escola, centro de lazer, centro esportivo ou cultural entre outros (...)
(BRASIL, 2002, p. 126)
149
Com relação à segunda subcategoria, aparecem explicações que determinam o
que seria considerado precoce e quando. Entre 10 e 14 anos, as relações sexuais são
precoces.
(...) o início cada vez mais precoce das relações sexuais (...) atenção especial
às faixas etárias mais precoces (10 a 14 anos)
(BRASIL, 2002, p. 126)
5.2.1.2. “A relação entre partos e contaminação pelo HIV”.
O elevado número de partos entre as adolescentes, (...) e o aumento das
DST/AIDS nessa faixa etária (...)
(BRASIL, p. 126, 2002)
A produção atual de conhecimento sobre o “mal do século”, sobre uma doença,
até pouco tempo, dita incurável (AIDS) dá a ver o quanto o uso de preservativo
(conhecido como “Camisa de Vênus”) esteve por muito tempo associado à
anticoncepção, ou seja, visto como mais um método anticonceptivo e, portanto,
condenável aos olhos da Igreja, e servindo mais ao controle da natalidade do que ao
essencial controle das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Basta lembrar o
quanto as pessoas se viram alarmadas em descobrir a necessidade do uso desse
dispositivo também na prática do sexo oral, considerando a forma imperceptível do HIV
comparado às DSTs.
Então, por um lado, constata-se a demora para a conscientização sobre o uso de
preservativos como dispositivo plenamente eficaz para evitar a transmissão e o
150
contágio de doenças sexuais, pois a lógica era mais ou menos como a fala enunciada
por um adolescente em um grupo: “se quero evitar filhos, transo com camisinha” e “se
quero evitar doenças, não transo com doente”.
É importante ressaltar que o “condom” , como um anticoncepcional masculino,
faz a esfera da decisão sobre seu uso depender das condições masculinas. Uma
mudança nessa lógica ocorreu, em função das características insidiosas do HIV, tais
como: a dificuldade para identificar o portador ou para identificar-se como soropositivo;
o longo período de incubação, sem manifestações sintomáticas; o período de janela
imunológica; o acesso aos recursos para testagem e retestagem.
Por outro lado, surge novamente o mesmo equívoco, quando se faz uso do
argumento relativo à proteção contra as doenças e, na verdade, quer-se evitar a
gestação precoce. Assim, fala-se em sexo protegido ou em sexo seguro, para salientar
que o uso de preservativos impediu e impede a disseminação da AIDS, mas logo se
percebe o quanto esse argumento serve para se indiciar os jovens como os grandes
culpados de estarem contraindo doenças e “gestações”.
A atividade sexual que resulta em gravidez supõe que os sujeitos envolvidos não
cumpriram as determinações do tão aclamado “sexo seguro”, então, a estratégia para
prestar assistência e disponibilizar informação é alarmista. Pode-se explicitar, dessa
forma, a confusão entre o nascimento de uma criança e a possibilidade do contágio de
uma doença letal.
Um programa de prevenção destinado aos adolescentes não deveria confundir
as possibilidades de engravidar e de gerar um filho com a contaminação de um vírus.
Tal orientação, tão importante, deveria tão-somente trabalhar a escuta a partir do
enigma da procriação (das fantasias e ficções infantis que retornam na puberdade),
151
observando as questões que, de fato, intrigam os jovens (suas perguntas e dúvidas
singulares) e que passam desapercebidas ou têm seu conteúdo esvaziado a partir do
efeito nefasto de uma escuta voltada para os “riscos” de contrair ou transmitir o HIV.
5.2.1.3 “Banalização da relação sexual”.
O documento dá a entender que se houver insumos para a dupla proteção, para
que os adolescentes façam uso de qualquer método anticonceptivo, então os objetivos
serão atingidos, uma vez que o mais importante é prevenir a contaminação pelas
DST/AIDS e a gravidez.
(...) disponibilidade constante de insumos, levando-se em consideração a
necessidade de dupla proteção.
(BRASIL, 2002, p. 126)
(...)Os adolescentes podem utilizar qualquer método anticoncepcional (...)
(BRASIL, 2002, p.129)
É preciso estar atento sobre o lugar contemporâneo do saber, visto que este
saber sobre a sexualidade constituiu um lugar “higienista”. Na concepção de Rassial
(2004), esse paradigma higienista na relação sexual produz um ideal de apaziguamento
pela morte do outro, ou melhor, na relação ao outro sexo, essa pacificação que
higieniza aparece como realização da pulsão de morte e, portanto, como lugar de gozo.
O autor vai referir que os estupros, as violações, os abusos e a violência sexual
encontram-se como patologia sexual na periferia e se propagam numa banalização
acentuada pela mídia.
152
Rassial cita, como exemplo, a experiência do “tournante” (2004, p 291), na
França: uma espécie de estupro coletivo, em que um jovem seduz uma moça e a
partilha com seus parceiros. O autor refere que já é possível se estimar em 20%, o
número de meninas que têm sua primeira relação sexual desse modo. A resposta dos
jovens é a seguinte: “nós sempre usamos preservativos”. Dessa forma, evidenciam-se
duas operações contraditórias: por um lado, a presença que testemunha a realização
de um ato sexual, ou que compartilharia a impotência, e, por outro, “a negação do ato
sexual”, pois o preservativo pode proteger de tudo, até mesmo do amor (2004, p. 292).
A impotência está na impossibilidade de uma realização coletiva do falo, entretanto o
desinvestimento do caráter “sexual” do ato e a convocação de testemunhos supõem a
possibilidade dessa realização, efetivando a disjunção entre sexo, amor e intimidade.
5.3. SEGUNDO DOCUMENTO
Antes de apresentar as propostas e metas do Plano Nacional de Políticas para
as Mulheres, no capítulo que será analisado
78
, é importante situar sua elaboração, de
acordo com as especificações apresentadas pela Secretária Nilcéa Freire:
O processo de elaboração do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM) tem início com a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
(CNPM) convocada pelo Presidente da República e realizada em julho de 2004.
A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher (CNDN) coordenaram a Conferência e dela participaram
78
Capítulo três, p. 61-71, cujo título é: “Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos”
(BRASIL, 2004).
153
representantes dos poderes executivos estaduais e municipais, diversos
ministérios e secretarias especiais, além de organizações de mulheres e
feministas. (BRASIL, 2004, p. 15)
O terceiro capítulo está organizado nos seguintes tópicos: objetivos, metas,
prioridades e planos de ação. Cada tópico contem vários itens e optou-se destacar
aqueles que tocam diretamente na saúde da adolescente.
Entre os objetivos, o item IV, diz o seguinte: “ampliar, qualificar e humanizar a
atenção integral à saúde da mulher no SUS”, definindo ampliação como o acesso aos
meios e serviços de promoção, prevenção, assistência e recuperação (BRASIL, 2004,
p. 65).
As metas indicadas nas letras A e F, mencionam a saúde da mulher adolescente,
ou levam em conta a faixa etária ao referirem genericamente “mulheres em idade fértil”:
Implantar em um município de cada região do país, com equipes de
Saúde da Família, a atenção qualificada às mulheres com queixas clínico-
ginecológicas; no climatério, adolescentes, na terceira idade, com especial
atenção à raça e etnia.
Ampliar as ações de Planejamento Familiar, garantindo a oferta de
métodos anticoncepcionais reversíveis para 60% da população de mulheres em
idade fértil, usuárias do SUS, em todos os municípios com equipes da
Estratégia de Saúde da Família (ESF) ou aderidos ao Programa de
Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN). (BRASIL, 2004, p. 66)
Entre as prioridades, que são em número de seis, cita-se as de número 3.1; 3.2;
3.3 e 3.6, como aparecem no documento.
154
* Estimular a implantação de ações que atendam as necessidades específicas
das mulheres nas diferentes fases do ciclo vital.
* Estimular a implantação e implementação da assistência em planejamento
familiar, para homens e mulheres, adultos e adolescentes, na perspectiva da
atenção integral à saúde.
* Promover a atenção obstétrica, qualificada e humanizada, inclusive a
assistência ao abortamento em condições inseguras, para mulheres e
adolescentes, visando reduzir a mortalidade materna, especialmente entre as
mulheres negras.
* Revisar a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez.
(BRASIL, 2004, p. 66)
Para cada prioridade, são definidos planos de ação e determina-se o órgão
responsável, o prazo de execução e o produto originado. Para a primeira prioridade
aparecem 15 ações e destacou-se três:
Revisar os indicadores e metas utilizados pelo Ministério de Saúde nos pactos
de gestão, políticas e documentos técnicos, possibilitando a definição do perfil
de saúde dos adolescentes de ambos os sexos para favorecer a definição de
estratégias específicas de melhoria da saúde. (BRASIL, 2004, p. 67)
O órgão responsável é o MS; o prazo é 2007 e o produto é: “documento técnico do MS
com indicadores por faixa etária”.
Elaborar e/ou revisar, imprimir e distribuir material técnico e educativo sobre
atenção clínico-ginecológica, climatério, saúde da mulher negra; gênero e
saúde mental, saúde das lésbicas e das adolescentes. (BRASIL, 2004, p. 68)
A responsabilidade é do MS/SPM/SEPPIR; o prazo é 2007 e o produto é o “manual
técnico” elaborado, impresso e distribuído.
155
Fortalecer a capacitação do pessoal da atenção básica e de serviços de
referência, para implementar a atenção clínico-ginecológica; atenção integral à
saúde da mulher índia; das lésbicas e das adolescentes.( BRASIL, 2004, p. 68)
O órgão responsável é o MS; o prazo é 2006 e o produto: “profissionais da rede pública
de saúde capacitados”.
Com relação à segunda prioridade, foram especificadas seis ações e destacou-
se três:
Adquirir e distribuir métodos anticoncepcionais reversíveis, incluindo
anticoncepcionais de emergência, para os municípios que aderiram ao
Programas de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) ou que tenham
equipes de saúde da família.
Elaborar e/ou revisar, imprimir e distribuir material técnico e educativo
sobre atenção ao planejamento familiar.
Fortalecer a capacitação do pessoal da atenção básica e de serviços e
referência para implementar ações de atenção ao planejamento familiar
79
,
incluindo a anticoncepção de emergência e a prevenção da infecção pelo HIV e
outras DST, e o climatério. (BRASIL, 2004, p. 69)
As três ações têm prazo de execução até 2007, pelo MS.
Quanto à terceira prioridade, determinam-se doze ações, no entanto entre elas
não há nada mais específico quanto às adolescentes. Em sua grande maioria tratam do
PHPN e referem especialmente situações de parto, pós-parto e abortamento;
79
Obs: entendemos que o planejamento familiar inclui os adolescentes, se considerarmos o texto da
segunda prioridade na página anterior.
156
maternidades e UTIs; redução de cesáreas, mortalidade materna e neo-natal; e
expansão da rede laboratorial.
Quanto à quarta prioridade, que trata da revisão da legislação punitiva às
práticas de interrupção voluntária da gravidez ou abortamento em condições inseguras,
remete-se o leitor aos anexos B e C, para a verificação da legislação própria: artigo
124, 125, 126 e 127 do Código Penal Brasileiro e artigo 128 que prevê o “aborto
necessário” (Anexo B). Em 1º de setembro de 2005, o Diário Oficial da União publicou a
PORTARIA Nº 1.508 que dispõe sobre o “Procedimento de Justificação e Autorização
da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de
Saúde-SUS”. (Anexo C)
5.3.1. A análise do segundo documento
Como já se mencionou no início do capítulo, as categorias encontradas foram: o
protagonismo da mulher ou a invasão da figura materna; o privilégio da informação
(desde a capacitação dos profissionais até a informação aos adolescentes); a ênfase no
Real e no discurso bio-político (com a distribuição de métodos anticonceptivos e
materiais técnicos e educativos).
5.3.1.1. O protagonismo da mulher ou a invasão da figura materna
Sobre essa categoria, irá se começar com uma história. A data: 1957. O lugar:
um seminário de Lacan (1995), onde ele comenta a inseminação artificial de uma
157
mulher viúva, nos Estado Unidos, graças ao esperma congelado do seu marido,
revelando o que o autor chamou de “onipotência materna”, da seguinte forma:
Nessa ocasião, cortaram alguma coisa do pai, e da maneira mais radical:
inclusive a palavra. A questão agora é saber como, por que caminho, de que
maneira, se inscreverá no psiquismo da criança assim gerada a palavra do
ancestral, do qual a mãe será o único representante e o único veículo. Como irá
ela fazer falar o ancestral enlatado?
Essa apreensão de Lacan, de que não só o pai da realidade é excluído, mas de
alguma forma também o pai simbólico, é compartilhada por outros autores (Lebrun,
2004; Roudinesco, 2000; Melman, 2003; Chatel, 1995).
Para Roudinesco (2000) e Chatel (1995), a partir dos recursos contraceptivos
iniciou-se uma aliança entre a mulher e a medicina que passou a retirar do pai o direito
de se apropriar do processo de filiação, já que a mulher pode decidir, por si mesma,
sobre a opção de procriar. A contracepção passou a funcionar a partir de uma
significação obscura: a de impedir a procriação como conseqüência ignorada do ato
sexual, fazendo da mulher a responsável tanto pela maternidade, quanto pela
“paternidade”.
Para Lebrun (2004), uma das conseqüências mais evidentes da privatização da
família é o declínio da identidade do pai. A partir do século XIX, esse autor refere que a
família passou a se fechar sobre si mesma, se desarticulando do funcionamento social
e fundando um pacto privado.
Por essa mesma via, de acordo com o autor abriu-se espaço para “a invasão da
figura materna”. A invasão da figura materna torna-se cada vez mais evidente quando,
158
através dos avanços científicos da medicina, desloca-se o eixo da procriação para os
efeitos reguladores da contracepção, onde o filho surge como um projeto individual,
tornando as mulheres simultaneamente pai e mãe na origem da criança.
Melman (2003) afirma que “a mãe é a causa do filho”, na medida em que o
“matriarcado” regula a questão da causa no que concerne à fecundação e à satisfação.
O regime do matriarcado impõe uma ordem natural e positiva, onde toda demanda
encontra sua satisfação. Enquanto o regime do patriarcado instaura uma desordem, um
descompasso, o qual é tido como traumatizante, porque implica, para além da perda
desse sentido natural, o avanço de uma instância inapreensível, que requer uma
construção metafórica.
É preciso salientar ainda outro aspecto levantado por Chatel (1995) e que
explora as imbricadas condições da relação Mãe-filho e do regime do Matriarcado,
através da especificidade do relacionamento entre Mãe e filha, considerando a
possibilidade da filha vir a ser mãe.
A autora apresenta duas noções essenciais: a noção de “gozo da mãe” e a
noção de “devastação materna”, da seguinte forma:
Praticar a devastação é não mais esperar dar um filho à sua mãe para aplacar
sua ira de ser, um dia, privada de fecundidade; (...) é reconhecer a radical
função de disparidade devida à impossível similitude. Passar pelas etapas da
devastação terá por efeito tratar o perigo do “gozo da mãe”, no sentido de
reduzi-lo e, assim, orientar a mulher (ex-filha) em direção a um outro gozo,
“feminino” desta vez. (p. 49).
159
A autora vai alertar para as diferenças entre homens e mulheres, nesse sentido,
dizendo que, enquanto o falo se transmite de pai para filho, a maternidade não se
transmite de mãe para filha.
Para a filha tornar-se mãe, diz Chatel (1995), duas coisas são necessárias: uma
verdadeira diferenciação e uma separação sem substitutos em relação à sua mãe,
abandonando a esperança de obter dela uma autorização para parir, tal como os
homens precisam da autorização de um pai para asceder a um lugar de
reconhecimento.
5.3.1.2. O privilégio da informação
Os destaques feitos nesse documento são insistentes sobre a questão da
“informação”, na medida em que estabelecem em todos os itens a necessidade de
capacitação e de insumos, na forma de elaboração ou revisão de material educativo
disponível para os serviços de saúde e “capacitação do pessoal”, ou seja, “informação”
para os trabalhadores de saúde.
Nesse sentido, é notável o quanto, para as ações de saúde, privilegia-se a
informação, em detrimento da “transmissão”, ou ainda a “capacitação” em lugar da
“formação”, sendo que ambas são referidas desde um enfoque dito “educativo”.
Esse pressuposto educacional/educativo não parece levar em conta as
condições e os efeitos de uma transmissão. Entretanto, desde já, é importante ressaltar
que, mesmo sem considerar esse aspecto da transmissão, é ela que vai articular os
encontros possíveis entre as mulheres (ou as adolescentes, ou as lésbicas, ou as
negras, ou as índias) e os trabalhadores “capacitados” desses serviços de saúde.
160
Além disso, as especificidades do exercício sexual, para cada sujeito, não irão
esgotar-se nas definições hetero, homo ou bissexualidade, nem serão suficientes para
pretender um trabalhador livre de preconceitos e armado de informações. E ainda, se
essas especificidades devem ser pautadas muito especialmente pelas diferenças de
gênero (que privilegia somente o feminino) e pelas diferenças étnicas, então porque
não incluir também os aspectos religiosos, culturais, de classe social, de crenças e
valores praticados no interior das famílias.
Seria impensável querer esgotar as múltiplas condições e arranjos da
sexualidade humana a partir dessa negociação entre novos conceitos e velhos
preconceitos, ou pensando (novas?) “formas” para “informar”.
A informação tem seu substrato no ideal do eu
80
. É, portanto, “ilusória”. Por
exemplo, em relação ao “planejamento familiar”, aparecem somente duas
possibilidades e ambas estão, preferencialmente, sob a responsabilidade feminina:
haveria uma “atitude de concepção”, traduzida como um querer “engravidar” ou “ser
mãe” e uma atitude de “anticoncepção”, onde “a mulher” deve se preocupar em impedir
um acontecimento “indesejável”.
A informação irá se pautar sobre esses dois pilares, sem indagar nada quanto às
arestas e às veredas do desejo. Sequer interessa à informação os avatares da paixão e
do enamoramento que providenciam os “erros de cálculo”. Sua preocupação define-se
pela utilidade: se for útil evitar um engravidamento, a mulher deve usar os recursos
anticoncepcionais, e “a informação” vem ao encontro da sua disposição em aprender,
80
Esse conceito foi trabalhado na página 121. Entretanto, vale acrescentar uma diferença entre o Eu
ideal como uma imagem que atrai o sujeito para um ideal e se faz suporte para sua identificação e o Ideal
do eu como identificação a um ou outro traço que poderá comportar uma significação simbólica, mesmo
atraindo o sujeito para um ideal (dimensão ilusória).
161
através de diversos cuidados e limites, “como fazer”. Por outro lado, se for útil
engravidar e for necessário corrigir um estado de infertilidade, “a informação” irá pautar
um elenco de prescrições quanto ao funcionamento do corpo (exames, hormônios para
a fertilidade, técnicas de fecundação e de nidação, etc).
5.3.1.3. A ênfase no Real e no discurso bio-político
Apesar do fato da procriação não ser uma doença, ela é inteiramente posta nas
mãos da medicina e sempre ligada exclusivamente à função procriadora da
mulher. Hoje, a medicina é a competência que vale: não são nem os magos,
nem os sábios, nem os adivinhos, nem as famílias e nem os padres os
investidos do poder sagrado de tratar a vida que vem, ou que não vem: este
lugar está ocupado pela medicina científica.(Chatel, 1995 p. 13)
Chatel (1995) escreve que a medicina da procriação pauta-se pelas demandas
aparentemente simples das mulheres como “eu quero” ou “eu não quero” fazer um filho.
A autora afirma que há uma disjunção entre ato sexual e procriação (a partir da
contracepção médica), entre desejo sexual e o voto de filho (porque entre os dois
haveria uma articulação inconsciente), entre paternidade sexual e procriação, entre fala
e corpo, entre erotismo e parentalidade. “Nossa experiência clínica nos ensinou que
para a maioria das mulheres o significante que tomou corpo na gravidez realiza uma
conexão inconsciente com um sentido de pai”, escreve a autora (p.19). Salienta
também que muitas mulheres têm o desejo de receber uma criança como um presente,
como “dom” ou prova de amor.
162
“A maneira pela qual cada mulher se arranja com seu método contraceptivo
supõe um laço sutil entre uma vontade declarada e o desejo que esta vontade
esconde ou revela”.(Chatel, 1995 p. 24).
O que se quer enfatizar é a opção feita nesses discursos contidos nas práticas
em Saúde Pública e nesses documentos, ora técnicos ora políticos, quando se pautam
no Real e numa espécie de determinismo biológico, que além de assegurar
exclusivamente às mulheres o controle sobre o planejamento familiar, também ignora
os efeitos do inconsciente e dos processos psíquicos sobre os sujeitos femininos e
masculinos.
Essa opção constitui-se numa aposta persistente desses programas ou diretrizes
da Saúde Pública na informação, como vimos anteriormente, e na tecnologia médica,
definindo os meios operacionais de evitar ou programar um filho, ou um investimento
sexual, ou a própria sexualidade.
Por isso, considera-se relevante ampliar a discussão nesta categoria para pontos
mais profundos relativos à sexualidade, a partir da visão psicanalítica.
O campo da experiência sexual incipiente, onde as possibilidades de gravidez se
ensejam, coloca em cena três domínios conceituais que necessitam ser amparados por
uma estrutura teórica consistente. Estes domínios são: a adolescência, a atividade
sexual e a diferença entre os sexos.
Pareceria banal ter de explicitar essa atividade sexual como iniciando na
puberdade, ou a partir do amadurecimento das células germinativas e dos hormônios
sexuais, não fosse a virada produzida pela teoria psicanalítica, ao problematizar a
163
noção de sexualidade reduzida à reprodução da espécie e, portanto, identificada com a
genitalidade e com o corpo biológico.
Birman (1999) problematiza a sexualidade desde o ponto de vista da psicanálise,
inferindo que a contribuição de Freud foi justamente mostrar que a sexualidade não tem
um sentido unívoco, pelo contrário, está marcada por uma multiplicidade de significados
(polissemia) e, consequentemente, os diferentes sentidos fundam uma complexidade
para a qual a psicanálise propõe uma leitura e uma escuta. Nesse sentido, a
sexualidade vem ocupar um lugar privilegiado na constituição do sujeito.
A psicanálise, desde o final do século XIX, tornou-se uma das construções
teóricas mais importantes para dar conta do que por hora vamos definir como a
sexualidade e a feminilidade. Como sabemos, Freud descobriu um inconsciente
“sexual” que emergia nas produções sintomáticas dos seus pacientes e, principalmente,
que emergia na fala das suas pacientes histéricas, portanto do sexo feminino. Não se
trata de um panssexualismo freudiano, como muitos querem interpretar, mas de uma
complexidade que coloca o campo da sexualidade no limite da palavra e da linguagem,
da fantasia e da atribuição de sentido, da polissemia e do erotismo
81
.
Lacan ([1964]1988), afirma que a realidade do inconsciente é a realidade sexual
e, se o inconsciente se produz desde os efeitos da fala sobre o sujeito, se o
inconsciente se estrutura como uma linguagem, há uma afinidade dos enigmas da
sexualidade com o jogo do significante. (p. 144)
Quais seriam as especificidades do processo da adolescência?
81
Cf. Joel Birman (1999).
164
Em primeiro lugar, a menarca instaura, para a púbere, uma lógica da
“contingência” em relação à fertilidade que é diferente para os púberes do outro sexo.
Pode-se dizer que a lógica masculina é a seguinte: são duas possibilidades “ser
fértil e poder engravidar uma mulher” ou “ser estéril e não poder engravidar uma
mulher”. Dessa forma, após a confirmação de ser fértil, um homem poderia, em
qualquer tempo, procriar.
Para uma mulher a sua condição de fertilidade implica uma outra lógica: se é
fértil, ela pode estar ou não estar fértil, a partir de uma ordenação biológica, onde o
corpo feminino é ultrapassado nos seus desejos e reproduz uma condição de
exterioridade. O ciclo menstrual feminino vem instaurar um ordenamento real e ocorre
como um lembrete sempre reativado acerca da sua função biológica e reprodutiva.
É possível supor que, na adolescência, esse ordenamento cíclico em períodos
férteis alternados com os períodos menstruais, transforma-se em “roleta russa” e vem
produzir diferenças fundamentais para a experiência sexual em rapazes e moças.
Parte-se da suposição de que há um intervalo de tempo entre os acontecimentos
que levam uma jovem a tornar-se grávida, um momento anterior à necessidade de
tomar uma decisão ou aceitar um destino.
Pode-se supor, por exemplo, que o processo de implicação de uma adolescente
com o ato sexual se dá de duas formas: primeiro, assumindo a conseqüência desse ato
como desejo, realizando a conjunção entre desejo sexual e desejo de procriação ou
assumindo a disparidade, a disjunção e o desencontro entre desejo sexual e desejo de
procriação e, dessa forma, configurando um não-desejo relativo à procriação.
Por outro lado, no exercício sexual, se o resultado é a fecundação e a
concepção, muitas vezes, há uma outra conjunção possível: a conjunção entre desejo e
165
não-desejo, a qual vai-se traduzir como destino. Para muitas adolescentes, a gravidez
assume esse viés de destino e tem seu lugar junto às determinações biológicas do
corpo, selando o transcurso de uma gestação até o parto e o ingresso na ordem
geracional materna.
O exercício sexual incipiente, na adolescência, convoca o olhar para a sutileza
destes intervalos de tempo que constituem uma operação simbólica, um trabalho
psíquico necessário de representação das diferenças sexuais.
6. CONCLUSÃO
A título de conclusão, faz-se necessário retomar algumas noções investigadas a
partir da temática desse trabalho: a noção de engravidamento e os processos
singulares de elaboração psíquica na adolescência; o contexto intergeracional e a
forma como os trabalhadores e técnicos de saúde pública comunicam e informam
os(as) adolescentes sobre saúde sexual e reprodutiva.
Por um lado, apresentou-se a hipótese de que as possibilidades do engravidar
na adolescência articulam-se aos modos singulares de viver essa passagem,
destacando o espaço concreto de vida desses adolescentes, os bairros populares no
meio urbano. Levou-se em conta que os processos subjetivos de construção e
representação da feminilidade nesses contextos, os quais incluem as representações
da menarca e do início da atividade sexual, são determinantes para a noção de
engravidamento.
166
Há uma decalagem entre “engravidar” e “tornar-se grávida”. O termo
engravidamento foi adotado neste trabalho para enfatizar o processo de implicação
subjetiva de uma adolescente diante da “possibilidade” de tornar-se grávida. Explorou-
se a contingência dessa situação da seguinte forma: inicia com a suposição de estar
grávida (suposição que revela uma expectativa de dar conta de um corpo sexuado
feminino), persiste enquanto possibilidade ou dúvida e aguarda/espera sua confirmação
ou certeza. Ou melhor, há uma passagem de tempo entre as mudanças provocadas
pela irrupção da puberdade e o processo subjetivo de apropriação de um corpo de
mulher “terminado”, a partir das primeiras relações sexuais.
Assim, entre o corpo “contingente” (82) e em transformação de uma adolescente
e o corpo de mulher, os ensaios e experiências sexuais surgem para testar/confirmar
essas novas potências. Dessa forma, identificou-se intervalos temporais para o
processo de engravidamento na adolescência, a partir da noção psicanalítica de tempo
lógico (Lacan, 1966/ 1978), no qual o instante do ato sexual (sem a utilização de
métodos anticoncepcionais) dá início à implicação subjetiva com esse ato, através da
dúvida (estar ou não estar grávida), passando por um tempo de espera e de cogitação
(“fiz, logo estou”) até a certeza antecipada que instaura a asserção subjetiva.
A partir desses intervalos temporais, sugere-se uma articulação entre as
categorias de análise encontradas nas letras de Rap das adolescentes e os três tempos
lógicos mencionados da seguinte forma: “se apaixonar e perder a razão” como um
“instante de ver”; “engravidar e não saber o que fazer” como o “tempo de compreender”;
82
A contingência do corpo em transformação e os aspectos defendidos pela teoria psicanalítica relativos
ao abandono do corpo infantil. A metáfora do “complexo da lagosta”, usada por Dolto e Dolto-Tolitch
(1993), expressa a perda de referências físicas e o estado de fragilidade que o processo adolescente
impõe ao púbere, o qual seria análogo ao do crustáceo, quando este perde a sua carcaça para crescer,
passando a ficar sem defesas e exposto aos perigos de predadores, até que seu organismo produza uma
nova proteção, adequada para seu tamanho.
167
e “ser mulher e saber se cuidar” como o “momento de concluir”. Para Lacan
(1966/1978), o sofisma dos três tempos lógicos indica as condições de subjetivação da
seguinte forma: sujeito impessoal para o instante de ver; sujeito indefinido recíproco
para o tempo de compreender e o sujeito da asserção para o momento de concluir.
Por outro lado, o convívio entre gerações, a linhagem familiar (ascendência) e a
filiação (descendência) tomam um lugar privilegiado para se refletir sobre a transmissão
dos traços familiares que constitui a geração de um filho, tornando visível a dimensão
coletiva e cultural dessa experiência. O que implica dizer, que o processo de
engravidamento é vivido de forma singular, mas vem dar conta de um laço coletivo e de
uma herança intergeracional. Assim, buscou-se evidenciar a pouca eficácia no
investimento de programas voltados à saúde sexual, que não respeitem esses
aspectos.
Observou-se que os processos de simbolização e de construção ficcional das
adolescentes escapam e também são negados, quando as tentativas e preocupações
de “informar” e de estabelecer normas e cuidados para a saúde sexual reprodutiva são
mais importantes. Para esta investigação, tornou-se fundamental destacar que antes da
produção de materiais informativos e de recursos que sirvam para todas as
adolescentes, há que se poder continuar indagando a função e a lógica que leva uma
adolescente a antecipar-se diante da possibilidade de engravidar, tendo em vista o
contexto social e geracional, e as significações produzidas para justificar sua
experiência sexual (mandato social ou desejo?).
Por exemplo, ao se retomar os processos psíquicos investigados em cada
história, percebe-se o enlace de três aspectos: os processos identificatórios
(espelhamento, identificações parciais, traços identitários compartilhados); o imaginário
168
“amoroso” adolescente, reativando a posição depressiva (Kristeva, 2002); e a
elaboração do lugar do pai como função simbólica.
Esse enlace tem a ver com a dimensão temporal, a qual é inerente à ação do
simbólico: o “só depois”, relativo à temporalidade dos processos inconscientes (ou seja,
entre a experiência ou traço mnêmico e a sua representação), explicita o paradoxo da
condição adolescente, ou melhor, quando a precipitação toma o lugar da prevenção e a
antecipação, o lugar da verificação. A pressa em fazer algo, assim como demonstrou-se
no caso de Larissa e também no de Ane, pode-se traduzir, por ora, como esse efeito
simbólico de ter “entrado numa roubada” e ter de compensar, fazendo algo a posteriori
e produzindo um elo entre a subjetividade antecipada (ter engravidado) e a
possibilidade resguardada do vir a ser (engravidar), em um outro tempo.
Para concluir, espera-se que este trabalho possa contribuir para incrementar o
debate em torno dessa temática, sem esquecer do compromisso com as ações
concretas desenvolvidas no âmbito da saúde. Portanto, nesse sentido, procurou-se
problematizar a visão de “saúde do adolescente”, abrindo eixos de integração entre
programas e políticas (saúde do escolar, saúde mental, saúde básica, saúde sexual e
reprodutiva) e ampliando as noções de “prevenção” e de “saúde” para compor parcerias
intersetoriais com a assistência social, cultura e educação.
169
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WINNICOTT, D. El concepto de individuo sano. In: D. W. Winnicott. Buenos Aires:
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177
APÊNDICE A
TERMO DE COMPROMISSO PARA UTILIZAÇÃO DE DADOS CONTIDOS EM
PRONTUÁRIOS
Seguindo orientação da Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde e segundo as normas
estabelecidas pela Resolução CNS 196/96, bem como a Resolução Normativa 01/97,
este documento visa fundar o compromisso do Projeto de Pesquisa “As possibilidades
do engravidamento na adolescência: considerações sobre a construção da sexualidade
feminina em contextos de periferia” com a privacidade e a confidencialidade dos dados
de prontuários utilizados, considerando:
1) O estudo é retrospectivo e, portanto, parte de dados já registrados;
2) O acesso privilegiado aos dados decorre da prática clínica e preservará o
anonimato dos pacientes envolvidos;
3) Serão tomadas as seguintes precauções: os casos serão descritos de forma
descaracterizada e serão utilizados exclusivamente para publicações relativas a
esse projeto;
4) Toda divulgação científica deste estudo respeitará todos os critérios acima
mencionados.
178
APÊNDICE B
GLOSSÁRIO / DICIONÁRIO DE GÍRIAS
A fu: muito bom
Amasso: é como estar “ficando”(ficar de beijos e abraços).
Arreganho: diversão entre amigos, brincadeiras e zombarias que devem incluir o toque,
a proximidade corpo-a-corpo, ou o contato físico.
Arroz: cara medroso.
Bah!: exclamação.
Back: maconha.
Bafão: briga.
Bagulho: substitui o nome da coisa, qualquer coisa.
Baia: casa.
Balada: festas, encontros, embalos.
Banda: dar um passeio, uma volta.
Barraco: briga.
Berro: pistola, arma de fogo.
Bolo: briga ou confusão.
Boxe: brigas na escola.
Boy: ou “boysinho” para referir-se aos “meninos bom”, ou quando se trata de rapazes
de outra classe social.
Bronca: ter uma bronca significa ter um serviço para fazer, ou algo para resolver,
inclusive “roubar para pagar uma dívida”.
Brother: amigo, irmão.
179
B.V.: boca virgem.
Cabeça: modo de chamar, ou cumprimentar um amigo.
Cachorra: safada.
Cagüetar: delatar, dedurar (em português escreve-se alcagüetar)
Cano: arma de fogo.
Capaz: negação – não pode ser!
Cara: para se referir a alguém com mais intimidade (carinha pode ser alguém com
quem se está ficando).
Chinelo: “ladrão de varal”, que rouba de vizinhos (“chinelage”= roubo ou furto)
Confirmado: lugar (ou pessoa) bem conhecido(a) e popular.
Coroa: para se referir aos pais.
Doze: arma de fogo, pistola.
Duque 13: que gosta de namorar meninas; “estuprador de menor”.
Embalos: festa.
Embolar: confusão.
Ficar: “dar uns beijos”, namorar sem compromisso.
Folgar: zombar de alguém, fazer gozação.
Fubanga: “maloqueira”, vulgar.
“Fudido”= fodido: muito bom.
Galera: é o mesmo que turma e também pode significar agito, bastante gente.
Grama: maconha.
Irado: extremamente bom.
Largar: sair fora, ir embora.
Levantar: roubar.
180
Lóque: um jeito de dizer “louco”, ou definir um estado causado por uso de SPA.
Macaquinha: arma de fogo automática.
Mano: em geral um amigo.
Mané: otário.
Meu: a pessoa com quem se está falando.
Meter: roubar.
Mina: garota.
Não eras: não concordar.
Osvaldonautas: freqüentadores da avenida Osvaldo Aranha.
Parada: problema pra resolver, ou “serviço pra fazer”.
Patrão: traficante da “vila”.
Pedalar: dar uma rasteira, brigar com alguém.
Pedreiro: fuma pedra, ou seja, crack.
Pegar: namorar alguém sem compromisso; o mesmo que ficar.
Pior...: quando concorda com o que foi dito.
Pisante: sapato.
Puxar: trabalhar.
Quete: sexo oral/felação.
Ralado: quando alguém é muito bom no que faz, ter bom desempenho.
Rango: comida.
Seqüela: chamar alguém, quando não se sabe o nome.
Som: “ir no som” é ir para um lugar onde pode-se dançar.
Tirar: zombar do outro, mexer com um conhecido, folgar.
Traçar: ter um relacionamento sexual com uma garota.
181
Tri: excelente (tri bala: muito bom!).
Vaza: “cai fora!”
Vacilão: que vacilou e foi pego (preso) ou que delatou um parceiro. Velho (a): maneira
de falar com uma pessoa mais conhecida.
Verme: pessoa mesquinha.
Veneno: malícia ou tentativa de humilhar os outros.
Viajar / viagem: quando uma situação ou alguém parece não fazer muito sentido.
Visão: coisa feia; “visão do inferno”.
Vizinha: camisinha.
Xarope: elogioso, quando uma coisa é legal (outro termo seria xaropear = incomodar
ou estar xarope como triste, sentindo-se mal).
Expressões:
“a bolacha do pacote”; a bolachinha mais recheada do pacote; farelo da bolacha: se diz
em relação a uma pessoa muito arrogante, que se acha melhor que as outras.
“botar pilha” ou “ir nas pilhas”: tem relação com influenciar e ser influenciado por outros.
“chave de cadeia”: quando a pessoa não é de confiança, ou é chata.
“Dar um teco”: cheirar cocaína.
“Dedo de seta”: “dedo duro”
“Deitar o cabelo”: ir embora.
“Fala sério”: não mente!, não faz onda, não força, fala a verdade!
“Fazer as partes”: abordar uma garota com a intenção de apresentar um amigo que
está interessado em namorá-la.
“Fazer uma mão”: roubar, furtar com os parceiros; pode significar também ajudar.
182
“Garota mignon”: garota perfeita.
“Horrores de bichinhos”: referindo-se a guri (garoto) ou guria (garota) feio (a) ou
esquisito (a).
“Não tem noção”: expressão para descrever um acontecimento incrível, maravilhoso ou
muito legal.
“O corpo tá vindo”: “guri” bonito se aproximando.
“O gás da coca-cola”: quando a pessoa é muito convencida (se acha muito boa: se
sentindo..., se achando...)
“Passar o rodo”: namorar várias garotas, “ficar com as minas” e também “pegar”.
“Pagar mico”: passar por uma situação constrangedora, passar vergonha.
“Pode crê!”: sim, certamente.
“Puxa salame!”: cai fora!, vai embora! e também “nem te cola”; “pega a faixa”; “sai da
reta”; “tira os olhos”; “vai com os teus”.
“Se agarrar no pau”: em relação a qualquer tipo de briga ou agressão física entre duas
pessoas.
“Sofrer o pênalti”: tem a volta.
“Tá ligado?”: durante o diálogo entre duas ou mais pessoas, significa interrogar se a
pessoa está atenta, prestando atenção, se está esperta. Também sugere uma relação
de saber (sabe?, percebes?)
“Tá me tirando?”: “tu estás achando que eu sou otário?”
“Tá viajando na minha”: quando uma pessoa está implicando, prestando atenção ou
quando está demonstrando algum tipo de interesse.
“Te larguei”: pode significar “tu estás chato”, “tu estás enchendo o saco”, ou “vou te
deixar”, “vou embora”.
183
“Te liga bico”: te alerta!
“Tipo assim”: quando pretende dar uma explicação sobre alguma coisa.
“Tirar um bico”: espiar, observar.
“Tirar uma onda”: brincar com um parceiro ou alguém, e também zombar e humilhar.
“Tô de rango”: está com fome.
“Tô no veneno”: pronto pra se vingar ou partir pra cima de quem tentou lhe humilhar.
“Tô xarope”: sente-se bonito ou fez algo muito bem.
“tô podre”: cansado
“Todo baleado”: todo mal.
184
APÊNDICE C
OS RAPAZES E SUA REVOLUÇÃO ATRAVÉS DAS PALAVRAS (RAP)
Como apontou-se anteriormente, o grupo que realizou a oficina de Rap era
composto por quatro moças e quatro rapazes.
Optou-se em registrar a produção deixada pelos rapazes, sem, contudo,
constituir-se em material de análise.
Renato:
Escreveu “Recado para a Coroa”. Ele e seus parceiros se autodenominavam
“Predominantes do Rap”.
“Perdi minha coroa com apenas 14 anos/ tinha muita maldade e também muitos
planos./ perdi minha irmã e também vários amigos/ que a maioria se parece comigo./ a
vida na favela é a lei do cão/ atirou e não matou, já pode preparar o caixão/ Você vai
ver, seu chão vai tremer/ Pode atirar, atira pra matar/ Se for mais forte e tentar a sorte
aqui no corredor da morte.
refrão
Mãe, como vai lá fora os mano da quebrada, sempre com papo de bola e esperando as
gatinha na saída da escola/ Bom Jesus, Bom Jesus...paz é amor, a vida tem carinho, é
não dei valor.
185
Mano gordo sou eu, sujeito homem, eu tô na rua, mas eu tô com microfone./ e pra você
que pensa que malandragem é roubar/ Eu mando um alô que malandragem é trabalhar
e a pivetada estudar./ E pra você que tem problema, lá na sua quebrada/ manda um alô
lá pra gurizada Leco, Elias, Girico e Gil/ é um dois três, quatro, cinco mil/ agora a Bom
Jesus para todo o Brasil.”
Evertom:
A letra de Rap que construiu fala de “chinelage”, que na vila onde mora significa
ocupar um lugar de humilhação na comunidade, porque “chinelo” é o “ladrãozinho” que
rouba dos próprios vizinhos e, portanto, é extremamente mal visto e hostilizado pelos
moradores.
“U chinelo pra mim/ esse divia de sê o único alvo da guerra. É esse tipo de otario que
deve de ir pra baixo de sete palmos de terra. Filho da mãe continua agindo e não sei
como pode!!! Mas te liga otario, eu to crescendo, cada vez eu to mais forte. Mané ti
alerta no perigo: eu sei quem tu é. Não to de perna di pau, muito menos com olho de
vidro. Eu vo da a letra pra quem ainda não se ligou. To falando do desgraçado que um
dia meu barraco chineliou. Me chama de bonzinho, bonzinho uma ova. So não apaguei
o safado na hora, porque eu não tive prova. Deixa pra lá talvez eu esteja um pouco
errado. Mas o homem de cima não dorme, se faz aqui, aqui será pago. A chinelage, u
barato vai alem da pilantragem. Voce acha que é mentira, mas eu sei que é verdade.
Em todo canto da Safira tem algum chinelo: tem na Siqueira Campos, tem na Santo
Amaro, também tem na Vieira de Melo. Mas é por aqui que eu vivo, mesmo que seja da
forma errada. Esse é o lugar que eu moro. Aqui to eu Dr. Cleber retratando a verdade.
186
Desmascarando os chinelos das nossas comunidades. Salafrario, não vou esquecer o
que tu fez pra mim e para os outros. Mas tudo isso com certeza tu vai ganhar em dobro.
A chinelage, u barato vai alem da pilantragem. Eu queria cantar que a Safira é um lugar
lindo e muito belo, mas infelizmente no nosso meio tem sempre alguns chinelos. Eu não
canso, digo e repito, mas chinelo na Safira tem de todo tipo. Começa naqules que
fazem as trampas e depois dão no pé. Até o safado que bate na filha e na mulher. Mas
tem aqueles que dizem que são guerreiros e vivem atrasando as correrias dos
parceiros. Um baita vacilão, tremendo dedo de seta. É só aperta ele um pouquinho que
ele te caqueta. Eu falei que não queria ta falando disso, se não fosse os chinelos a
Safira seria o nosso paraíso.”
João:
“Chegando na seqüência nós vamos apavorar/ olha o bando de comédia, de bermudão
e de brinquinho, de cabelo tingido, de buné com aba reta, tentando apavorar/ a nossa
banca de ladrão vem no veneno zé povinho, ham/ o som no talo vem no carro vem
batendo bem pesado/ botei a toca ladrão, que o frio tá lá fora/ tô careca de jaqueta e
uma calça fundilhão sem armas na cintura/ Jesus Cristo tá comigo meu irmão/ não
quero virar bandido/ que proteja minha família de qualquer perigo/ não quero que no
futuro meu filho não leve esse mal exemplo/ não quero que ele leve um tiro na matina,
no relento, ham/ eu já tô no veneno periculoso apetitoso: eu como a carne e faço você
roer o osso/ bati a cabeça no Congá e que todos os santos me proteja dessas drogas e
do mal, que tire os olhos grande da nossa volta: faça o CRZ2 L levantar e não abachar/
subir no pódium uma vez/ agora nós vamos lutar/ essas crianças no futuro o que vão
187
virar: com drogas e um 3 oitão empunhados na suas mão/ eu quero que elas troquem
por um micro fone cantando rap/ gritando e pulando hip-hop em ação./ se a polícia te
pega todo drogado e armado, tu vai rodar/ e se tiver cantando rap vai concientizar.
Refrão: o nosso futuro aonde está: leia o livro da vida, é só você acreditar! (2X)
Paulo:
“Ei mano, saí dessa vida. Violência traz tristeza, uma grande ferida. Tenha consciência
e um pouco de atitude, quem pratica violência nessa vida só se ilude. O mundo violento
cada dia mais e mais. Chega de morte, o que eu quero é paz. Guerra por dinheiro,
guerra na periferia, uma mãe que chora dia após dia. Arma de fogo na mão de
adolescente tornando soldado mais um sobrevivente, que a qualquer momento ele
pode morrer. Me diz, nesta vida, quem irá sobreviver? O medo é constante na minha
comunidade. Me desculpe lhe dizer, mas esta é a minha realidade. Fome, miséria,
drogadição. São vários motivos e a mesma situação. Polícia, camburão. Cidadão sendo
abordado pelo preconceito e sendo maltratado. O mundo tá virado. Não existe mais
sossego. Pessoas que roubam porque não encontram um emprego. Fiz essa letra pura
e consciente apenas para abrir e alertar a sua mente. Quem encanta esse rap é mais
um sobrevivente.
REFRÃO: chega de violência, eu quero viver, sou adolescente, estou aqui para
aprender! Chega de violência! Eu quero mudar! Sou adolescente, estou aqui para lutar!”
188
APÊNDICE D
ANÁLISE DAS NARRATIVAS
NARRATIVAS CATEGORIAS DESTAQUES
HISTÓRIAS CONTADAS
Renata
Andressa
Priscila
1) “Ser adolescente”
“brincar na idade dela fica
feio”
“os grandes e os pequenos”
2) “Ser mãe ou ser a
mãe”
“ela não queria ser mãe,
mas teve que aceitar seu
destino...”
3) “Se fazer olhar”
“saía para caminhar com
suas amigas...” “era muito
linda e muito bela...” “usa
muitas pulseiras e colar”
4) “Entre a casa da
infância e a saída de
casa”
“sair de ... e ir para ...”
1) A reedição do “corpo-a-
corpo” (p. ex. através do
“arreganho”): representação
imaginária do corpo próprio
e do corpo do outro.
2) A mãe reaparece como
modelo de identificação:
espelhamento / imitação /
ideal do eu.
3) A adolescente oferece o
seu corpo através da
exibição, do desfile para o
olhar do outro sexo: pulsão
escópica.
4) Rassial: infinito espacial
que expulsa o adolescente
da casa familiar.
VERSOS ESCRITOS
Ane
Larissa
Vanessa
1) “Se apaixonar e
perder a razão”
“O pensamento era longe
era só nisso que eu
pensava. E nada mais me
importava. E a minha
cabeça virava e o desejo
aumentava.”
2) “Engravidar e não
saber o que fazer”
“o filho que eu fiz, eu fiz
sem pensar”
“Não sei o que fazer meu
irmão
3) “Ser mulher e saber
se cuidar”
“Eu sou mulher e vim aqui
para falar: use camisinha,
vamos se ligar”
No momento da paixão todo
pensamento racional, todo
planejamento deixa de ter
importância.
Sujeito impessoal
Paradoxo da condição
adolescente: ter que fazer
algo a posteriori, já que a
precipitação toma o lugar da
prevenção e a antecipação,
o lugar da verificação.
Sujeito indefinido recíproco
Encontrar um lugar de
referência feminino, um
lugar para falar: asserção
subjetiva ou o lugar do “eu”.
189
APÊNDICE E
ANÁLISE DOCUMENTAL
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1. Assistência em
Planejamento
Familiar: Manual
Técnico
a) Justificativa para prestação
de assistência;
“quando se registra o aumento
de gestações nessa faixa
etária...”
b) A relação entre partos e a
contaminação pelo HIV;
“o elevado número de partos e
o aumento das DST/HIV entre
adolescentes...”
c) A banalização da relação
sexual.
“disponibilidade constante de
insumos para a dupla
proteção”
Se o objetivo é a prevenção, os
programas e ações devem ser
desenvolvidos independentemente do
maior ou menor registro de casos.
O risco de gravidez é igualado ao
risco de contaminação pelo vírus do
HIV, para, então, se preconizar o
“sexo seguro”, engessando a
capacidade de escuta dos técnicos e
esvaziando o conteúdo significante
das teorias sexuais construídas pelos
jovens.
“Dupla proteção” também contra a
possibilidade do encontro: sexo sem
contato. Exemplo do “tournante” na
França como negação do ato sexual.
2. Plano Nacional de
Políticas para as
Mulheres
a) O protagonismo da mulher;
“ampliar as ações de
planejamento familiar com
oferta de métodos
anticoncepcionais reversíveis
para 60% da pop. de mulheres
em idade fértil”.
b) O privilégio da informação;
“fortalecer a capacitação do
pessoal; elaborar ou revisar
material técnico e educativo...”
c) A ênfase no Real e o
discurso bio-político.
A contracepção passou a funcionar
como responsabilidade exclusiva da
mulher, retirando do homem o direito
de se apropriar do processo de
filiação: veio impedir a procriação
como conseqüência ignorada do ato
sexual.
A capacitação em detrimento da
formação e a elaboração ou revisão
de material educativo para prestar
informação em detrimento da
transmissão.
A medicina do planejamento familiar
pauta-se pelas demandas das
mulheres como: “eu quero” ou “eu
não quero” filhos, ignorando o desejo
inconsciente.
190
ANEXO A
Descrição dos métodos contraceptivos oferecidos na Rede Pública de Saúde
Camisinha masculina - Consiste em um envoltório de látex que recobre o pênis durante
o ato sexual. Alguns são lubrificados com silicone ou lubrificantes à base de água, e
alguns são revestidos com espermicidas além do lubrificante. Os preservativos
masculino e feminino são os únicos métodos que, ao mesmo tempo, protegem contra
as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e Aids e contra a gravidez indesejada.
Não necessita de acompanhamento médico e é o mais indicado para as pessoas que
não contam com um parceiro sexual fixo.
Diafragma - Consiste em um capuz macio de borracha ou silicone, com uma borda em
forma de anel, flexível, que deve ser colocado na vagina, cobrindo o colo do útero. O
diafragma deve ser colocado em todas as relações sexuais (com antecedência de
minutos ou horas), antes de qualquer contato entre o pênis e a vagina. A mulher deverá
retirar o diafragma seis a oito horas depois da última relação sexual. Não protege contra
DST/HIV/aids.
DIU (Dispositivo Intra-Uterino) - Consiste em uma pequena peça de plástico, que mede
aproximadamente 31 mm, freqüentemente coberta com fio de cobre, que é colocada
dentro do útero. Mais indicado para mulheres que já tiverem filhos e querem adiar a
próxima gravidez por mais de dois anos. Não é indicado para mulheres com risco
aumentado para DST/HIV/aids (mulheres que têm mais de um parceiro sexual ou cujos
191
parceiros têm outros parceiros/parceiras e não usam preservativo em todas as relações
sexuais). Não protege contra DST/HIV/aids.
Pílulas anticoncepcionais - Um dos métodos mais utilizados em todo o mundo. Contêm
dois hormônios sintéticos - estrogênio e progesterona - semelhantes aos produzidos
nos ovários da mulher. A pílula deve ser tomada todos os dias, de preferência sempre
na mesma hora. Pode ser usada durante anos, sem necessidade de pausas. É contra-
indicada para as mulheres que estão amamentando. Não protege contra DST/HIV/aids.
Minipilulas - São pílulas que contêm uma dosagem pequena do hormônio progesterona.
São indicadas para as mulheres que estão amamentando e que desejam fazer uso da
pílula como método anticoncepcional. Não protege contra DST/HIV/aids.
Anticoncepcional hormonal Injetável - Existe dois tipos de injetáveis anticoncepcionais:
o injetável mensal, que contém uma combinação de dois hormônios e deve ser aplicado
a cada mês, e o injetável trimestral, que contém um só hormônio e deve ser aplicado a
cada três meses. Não protegem contra DST/HIV/aids.
Pílula Anticoncepcional de Emergência - Recurso que pode ser usado após uma
relação sexual desprotegida para evitar gravidez indesejada. Deve ser usada até 72
horas após a relação. Quanto mais cedo for usada, tanto maior a sua eficácia. Não
deve ser utilizada de rotina como método anticoncepcional. Não interrompe uma
gravidez em andamento. Não protege contra DST/HIV/aids.
192
ANEXO B
Código Penal Brasileiro
CÓDIGO PENAL
DECRETO-LEI N.º 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14
(quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido
mediante
fraude, grave ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um
terço, se,
em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante
sofre
193
lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas,
lhe
sobrevém a morte.
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da
gestante
ou, quando incapaz, de seu representante legal.
194
ANEXO C
Edição Número 170 de 02/09/2005
Ministério da Saúde Gabinete do Ministro
PORTARIA Nº 1.508, DE 1º DE SETEMBRO DE 2005
Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez
nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS.
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso das atribuições que lhe confere o inciso
II do parágrafo único do art. 87 da Constituição Federal, e:
Considerando que o Código Penal Brasileiro estabelece como requisitos para o aborto
humanitário ou sentimental, previsto no inciso II do art. 128, que ele seja praticado por
médico e com o consentimento da mulher;
Considerando que o Ministério da Saúde deve disciplinar as medidas assecuratórias da
licitude do procedimento de interrupção da gravidez nos casos previstos em lei quando
realizado no âmbito do SUS;
Considerando a necessidade de se garantir aos profissionais de saúde envolvidos no
referido procedimento segurança jurídica adequada para a realização da interrupção da
gravidez nos casos previstos em lei; e
195
Considerando que a Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos
Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes não obriga as vítimas
de estupro da apresentação do Boletim de Ocorrência para sua submissão ao
procedimento de interrupção da gravidez no âmbito do SUS, resolve:
Art. 1º O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos
casos previstos em lei é condição necessária para adoção de qualquer medida de
interrupção da gravidez no âmbito do Sistema Único de Saúde, excetuados os casos
que envolvem riscos de morte à mulher.
Art. 2º O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos
casos previstos em lei compõe-se de quatro fases que deverão ser registradas no
formato de Termos, arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a
confidencialidade desses termos.
Art. 3º A primeira fase é constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado
pela própria gestante, perante dois profissionais de saúde do serviço.
Parágrafo único. O Termo de Relato Circunstanciado deverá ser assinado pela gestante
ou, quando incapaz, também por seu representante legal, bem como por dois
profissionais de saúde do serviço, e conterá:
I - local, dia e hora aproximada do fato;
II - tipo e forma de violência;
III - descrição dos agentes da conduta, se possível; e
IV - identificação de testemunhas, se houver.
Art. 4º A segunda fase dá-se com a intervenção do médico que emitirá parecer técnico
após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo
ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver.
196
§ 1º Paralelamente, a mulher receberá atenção e avaliação especializada por parte da
equipe de saúde multiprofissional, que anotará suas avaliações em documentos
específicos.
§ 2º Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o
Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver
desconformidade com a conclusão do parecer técnico.
§ 3º A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra,
anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo.
Art. 5º A terceira fase verifica-se com a assinatura da gestante no Termo de
Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse Termo
conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art.
299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido
vítima de violência sexual.
Art. 6º A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
que obedecerá aos seguintes requisitos:
I - o esclarecimento à mulher deve ser realizado em linguagem acessível,
especialmente sobre:
a) os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde;
b) os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica;
c) a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais
responsáveis; e
d) a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais
envolvidos, exceto quanto aos documentos subscritos por ela em caso de requisição
judicial;
197
II - deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela gestante ou,
se for incapaz, também por seu representante legal; e
III - deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de
interromper a gravidez.
Art. 7º Todos os documentos que integram o Procedimento de Justificação e
Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, conforme Modelos
dos Anexos I, II, III, IV e V desta Portaria, deverão ser assinados pela gestante, ou, se
for incapaz, também por seu representante legal, elaborados em duas vias, sendo uma
fornecida para a gestante.
Art. 8º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 9º Fica revogada a Portaria nº 1145/GM, de 7 de julho de 2005, publicada no Diário
Oficial da União nº 130, de 8 de julho de 2005, Seção 1, página 31.
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