Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO
PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM HISTÓRIA
Marizete Gasparin
Prazer e Sorte:
o jogo do bicho em Porto Alegre
(1893-1903)
Passo Fundo, Abril de 2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Marizete Gasparin
Prazer e Sorte:
o jogo do bicho em Porto Alegre
(1893-1903)
Passo Fundo, Abril de 2007
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História, do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo,
como requisito parcial e final para a obtenção do grau
de Mestre em História, sob orientação da Profª. Drª.
Janaína Rigo Santin.
ads:
Elaborada pela Bibliotecária Maria Salete Neckel Zorzan – CRB-14/158
GG249 Gasparin, Marizete
Prazer e Sorte: o jogo do bicho em Porto Alegre (1893-1903) /
Marizete Gasparin. - 2007.
x. 96 f. : il.; 31cm
Dissertação (mestrado) – UPF / Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de s-Graduação em História, Porto Alegre,
2007.
Bibliografia: f. 93-96.
1. Rio Grande do Sul História. 3. Jogo do bicho 4.
Contravenção Dissertação. I. Santin, Janaína Rigo. II.
Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. III. Titulo.
CDD 343.91865
A composição de uma dissertação traz a
consciência da distância da família, dos amigos e dos
carinhos. O tempo de festar, curtir, abraçar e rir não
chega. A gente se acostuma a ler, escrever, pesquisar,
reler, reescrever, revisar. É um ciclo que vai longe... Sua
compreensão e seu apoio estão em cada capitulo escrito
aqui. Dedico a você que, em silêncio, esperou que esse
tempo passasse.
Agradecer é explicitar reconhecimentos às
pessoas e instituições que compartilharam saberes e
colaboraram durante a realização desta pesquisa. São
muitas: algumas citadas nesse trabalho e outras, apenas
presentes nos rascunhos e na minha memória.
O Bicheiro
Conheceis o bicheiro? Ei-lo que passa
Na louca taina de iludir a gente
Pálido, acanalhado, impertinente,
Entra aqui, surge ali, tudo devassa.
Cruza ruas inteiras, vai à praça,
Bate à porta do rico e à do indigente
Promete lucros mil e, indiferente,
Suga ao pobre o suor, causa desgraça.
Oh! Vós homens da lei e da verdade
Que a espada da justiça manejais
Em defesa da sã moralidade
Em nome dos mais puros ideais
Fazei com que o bicheiro, à sociedade,
Oculte o bicho e não abuse mais.
(Lúcio de Caruaúba, Cachoeira)
In: A Gazetinha, 25 mar. 1889.
RESUMO
O jogo do bicho, criado a pouco mais de um século, no Rio de Janeiro,
espalhou-se pelo país, ganhando popularidade. Porto Alegre, capital do Rio Grande
do Sul, presenciou sua chegada, ainda em fins do século XIX, acompanhada pela
imprensa e pela lei. O tema dessa dissertação traz uma abordagem inédita sobre a
inserção do jogo do bicho em Porto Alegre, entre os anos de 1893 e 1903,
possibilitando conhecer a contravenção na região sul. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa, elaborada através da análise de diversos documentos: os jornais
Gazetinha, O Independente e A Federação, que nesse período noticiaram,
juntamente com assuntos referentes a esportes, economia, e crimes, a prática do
jogo do bicho; e os Processos-crimes e a Documentação de Polícia, que relataram
a realização de apreensões de materiais e indivíduos envolvidos nessa prática.
Conhecer as representações construídas em torno do jogo do bicho e como essa
atividade refletiu-se na sociedade, na política e na economia porto-alegrense na
transição do século XIX para o XX, contribui para a compreensão da existência
atual de práticas contraventoras na sociedade. No momento das reformas
urbanísticas pautadas no processo de modernização da política republicana, Porto
Alegre foi alvo da presença de indústrias e investimentos financeiros, atraindo
indivíduos e com eles diversas práticas contraventoras, como por exemplo, o jogo
do bicho. A capital Rio-grandense compartilhou de práticas contraventoras
existentes em âmbito nacional, mas com peculiaridades próprias, principalmente
nas apostas, com novas modalidades e tabelas de bichos. Pobres, ricos,
representantes policiais e servidores públicos administrativos, envolveram-se com o
jogo do bicho, tornando-o mais que uma paixão, um vício, um sonho, uma
oportunidade de ascensão econômica, uma contravenção.
Palavras- chave: Jogo do bicho, Porto Alegre, Contravenção.
ABSTRACT
The game of the bug, servant the little more than one century, in Rio de Janeiro, it
dispersed for the country, winning popularity. Porto Alegre, capital of Rio Grande do
Sul, witnessed its arrival, still in the end of the century XIX, accompanied by the
press and for the law. The theme of that dissertation brings an unpublished approach
about the insert of the game of the bug in Porto Alegre, among the years of 1893 and
1903, making possible to know the misdemeanor in the south area. It is a qualitative
research, elaborated through the analysis of several documents: the newspapers
Gazetinha, O Independente and A Federação, that in those period announced,
together with subjects regarding sports, economy, and crimes, the practice of the
game of the bug; and the Process-crimes and the Documentation of Police, that told
the accomplishment of apprehensions of materials and individuals involved in that
practice. To know the representations built around the practice of the game of the
bug and as that activity it was reflected in the society, in the politics and in the
economy porto-alegrense in the transition of the century XIX for the XX, contributes
to the understanding of the practices offenders' current existence in the society. In
the moment of the ruled town plannings reforms in the process of modernization of
the republican politics, Porto Alegre was white of the presence of industries and
financial investments, attracting individuals and with them several practices
offenders, as for instance, the game of the bug. The capital Rio-grandense its shared
of practices existent offenders in national extent, but with own peculiarities, mainly in
the bets, with new modalities and tables of bugs. Poor, rich, representatives
policemen and administrative public servants wrapped up with the game of the bug,
turning its more than a passion, an addiction, a dream, an opportunity of economical
ascension, a misdemeanor.
Keywords: Game of the bug, Porto Alegre, Misdemeanor.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Detenções efetuadas pela polícia referente aos jogos de azar em Porto
Alegre, de 1895 a 1905………………......………………………...........…26
Tabela 2 – Jogo do bicho carioca.............................................................................30
Tabela 3 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade corrida......................52
Tabela 4 Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade moderna e
moderníssima .........................................................................................53
Tabela 5 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade não identificada .......54
Tabela 6 – Animais mais apostados pelos jogadores porto-alegrenses ..................56
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS:
AHPA: Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Velhinho;
AHRS: Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul;
APERGS: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul;
MCSHJC: Museu de Comunicação Social Hipólyto José da Costa;
PRR: Partido Republicano Rio-grandense;
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................11
1- OS HOMENS E OS JOGOS: contribuições à História...................................19
1.1- Abrem alas: o jogo do bicho chegou.........................................................28
1.2- A Sociedade e o Jogo do Bicho: mais de um século de parceria.............31
2- SONHAR , APOSTAR E “TALVEZ” GANHAR................................................44
2.1- Um número, vários animais: adaptações ao jogo do bicho..........................50
3- O INVENCÍVEL JOGO DO BICHO: legalizado ou proibido?.........................60
3.1- O xadrez ilusório: o jogo do bicho de mãos dadas com a polícia.................66
3.2- O contágio da imoralidade: o jogo do bicho no quadro político....................79
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................93
INTRODUÇÃO
Desde as sociedades antigas, os jogos (de azar ou não) tiveram relações
com os homens. Por passatempo, prazer ou risco, fizeram parte das atividades
dicas, participando da vida social e adaptando-se aos valores de cada época. No
Brasil, as atividades lúdicas estão presentes no universo popular desde o início de
sua história, oscilando, com diversas feições, nos diferentes tempos e espaços. Mas
ao contrário da maioria, o jogo do bicho é uma prática criada aqui há pouco mais de
um culo. Com a transição do Estado Imperial para o Estado Republicano,
ocorreram mudanças na sociedade e com elas, as atividades lúdicas ganharam um
novo parceiro: o jogo do bicho que em pouco tempo, alastrou-se pelo universo
popular brasileiro. Fazendo seu “show” no escuro, conquistou clientes de
“carteirinha” e até fidelidade. Com tanto sucesso, o Rio Grande do Sul,
especificamente Porto Alegre, não podia ficar de fora.
O presente estudo pretende elaborar a história da inserção do jogo do bicho,
em Porto Alegre, desde 1893, período de seu surgimento no Rio de Janeiro, até
1903, quando ocorre a morte de Júlio de Castilhos, presidente do Estado Rio-
grandense, no momento da expansão do jogo do bicho carioca, para a capital do
Rio Grande do Sul. A morte de Júlio de Castilhos marca o fim de uma
administração, mas não o fim do período Castilhista, uma vez que, apesar de
Borges de Medeiros ser do mesmo partido (PRR) e estar administrando o Rio
Grande do Sul desde 1898, Júlio de Castilhos era chefe de partido e agia nos
bastidores: “com a morte de lio de Castilhos em 1903, Borges irá acumular a
direção governamental e a chefia política do PRR.”
1
Contempla-se, portanto,
conhecer se Julio de Castilhos tomou alguma atitude em relação ao jogo do bicho
no período de 1893 a 1903, coibindo ou estimulando essa prática.
Nesse sentido, essa pesquisa procura identificar o comportamento do jogo do
bicho porto-alegrense nos primeiros dez anos de existência nacional, analisando as
12
representações construídas em torno do jogo do bicho e como ele reflete na
sociedade, na política e na economia de Porto Alegre na transição do século XIX
para o XX.
Após sair do jardim Zoológico, no Rio de Janeiro, o jogo do bicho se alastrou
pelo país e teve três fortes olhares: a justiça que tentava eliminá-lo através das leis;
a sociedade que era sua forte aliada, exercendo a “fezinha”; e a imprensa que
auxiliava dos dois lados ora à justiça, pedindo a ação dos responsáveis, e ora à
sociedade, divulgando os resultados da loteria ou do jogo do bicho. Torna-se
pertinente aqui, conhecer os olhares da justiça e da sociedade, relacionando as
condições de sua chegada no Rio de Janeiro, capital, e posteriormente, em Porto
Alegre, num momento de transição política, social, econômica, em que a nova
ordem republicana se instaurava e com ela, as Províncias se tornavam Estados.
Objetiva-se apresentar as relações que o jogo do bicho estabeleceu com a
sociedade porto-alegrense na primeira década de existência nacional. Sociedade
essa que seguia o padrão nacional de modernização, inserindo-se na formação de
um espaço normatizador, inspirado no modelo europeu. A preocupação das elites
2
com as camadas menos privilegiadas da população, era de inserí-las no trabalho.
Dessa forma, o trabalho ganha um novo significado, buscando auxiliar na
organização social daquele que deixara de ser escravo para ser livre e que
praticava formas alternativas de sobrevivência. Juntamente com isso, existia a
preocupação de críticos que escreviam acerca dessa atividade, bem como a lei
Constitucional, frente ao jogo.
A contravenção na região sul, especificamente o jogo do bicho em Porto
Alegre, na transição do século XIX para o XX, acompanhou as reformas
urbanísticas, pautadas no processo de modernização da política republicana. Se
por um lado havia a presença de indústrias, capitais e indivíduos auxiliando no
desenvolvimento da cidade; por outro lado, as práticas contraventoras infiltravam o
universo da ordem, oscilando entre a lei e o prazer, o vício e a sorte, a proibição e a
ação.
1
TRINDADE, lgio.; NOLL, Maria Izabel. Subsídios para a História do Parlamento Gaúcho (1890-1937).
Porto Alegre: CORAG, 2005, p. 46.
2
Entende-se por elite o conjunto de grupos sociais que dominam a sociedade mediante sua influência, seu
prestígio, suas riquezas, seu poder econômico, cultural ou político. (CHAUSSINAND-NOGARET, G. Elites. In:
BURGUIÈRE, André.(org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 283-286.
13
O estudo do jogo do bicho porto-alegrense, apresenta-se como inédito à
temática. Não se tem conhecimento de trabalho desenvolvido, segundo essa
proposta, na capital ou até mesmo em outras cidades do Rio Grande do Sul.
apenas a existência das obras: Uma Outra Cidade, de Sandra Jatahy Pesavento
3
que aborda, superficialmente, o jogo do bicho em Porto Alegre quando refere às
práticas contraventoras da cidade; O Cassino Guarani, de Sirlei Rossoni
4
que faz
um breve histórico do jogo do bicho no Brasil, juntamente com outros jogos de azar;
e Águias Burros e Borboletas de Roberto da Matta e Elena Soárez
5
que apresenta
um estudo antropológico do jogo do bicho no Rio de Janeiro mencionando
superficialmente a organização desse jogo em outros Estados brasileiros, incluindo
o Rio Grande do Sul.
Aliás, é necessário repensar o momento em que a prática do jogo do bicho
conquistou o universo popular porto-alegrense, para colaborar com a historiografia
rio-grandense, uma vez que deficiência desse objeto de pesquisa em tal recorte
espacial. A história regional interage com a história nacional, através de um estudo
sobre o jogo do bicho. A sociedade de Porto Alegre, desse período (transição do
século XIX para o XX), não era referência ao país, mas consolidava práticas
semelhantes àquelas adotadas na cidade do Rio de Janeiro (capital nacional), como
por exemplo, o jogo do bicho que iniciou no Rio de Janeiro e tamm conquistou
adeptos no Rio Grande do Sul.
Justifica-se a relevância do tema pela importância sócio-histórica,
considerando a interação entre história e modernidade, visto que uma inexiste sem a
outra. Conhecer o universo de inserção e alastramento da prática do jogo do bicho
no contexto porto-alegrense, auxilia a compreensão da atual existência de práticas
contraventoras na sociedade, bem como, a relação das mesmas com os ideais
políticos que através da lei, organizam as normas sociais.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa sobre a temática do
jogo do bicho, em Porto Alegre, realizada através de uma análise crítica. As fontes
3
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma Outra Cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p. 227-232.
4
Ver ROSSONI, Sirlei. O Cassino Guarani: historias, memórias e personagens Irai- RS (1940-1994). Passo
Fundo: UPF, 2001.
5
MATTA, Roberto da; SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do jogo do
bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
14
para sustentação da problemática citada, foram documentos oficiais do período,
referentes à Polícia, como os Processos-crimes arquivados no APERS e a
Documentação de Polícia localizada no AHRS, e, principalmente, a imprensa
discutida a seguir.
Para Nelson Werneck Sodré, a imprensa “nasceu com o capitalismo e
acompanhou todo o seu desenvolvimento”
6
. Por isso que no Brasil, teve traços
particulares, dividindo-se em pequena, média e grande imprensa, sendo industrial
ou jornalística. Vivenciou os avanços tecnológicos, tornando-se um veículo de
comunicação de massa, com a presença do rádio, televisão e meios eletrônicos,
como a internet.
Entre os vários tipos de imprensa, discute-se aqui, o caso específico dos
jornais escritos que, ora com sucesso de vendas, ora com tréguas, foi um dos
meios de comunicação em que a informação alastrou-se e continua alastrando-se
pela sociedade. Em fins do século XIX, quando os meios de comunicação de
massa, eletrônico e televisionado (de som e imagem) não participavam na história
da humanidade, os jornais, como membros da imprensa, faziam grande sucesso na
divulgação de idéias e organização da sociedade
7
. Segundo Nelson Werneck
Sodré, o número de pessoas que tinham acesso aos jornais nesse período era
reduzido, devido à alta porcentagem de analfabetos e baixo poder aquisitivo de
grande parte da população. Mesmo assim, estavam presentes na história da
sociedade, uma vez que, a informação estava além do número de leitores, pois o
jogo do bicho fazia parte da cultura popular, e aqueles que não sabiam ler recebiam
as informações das notícias publicadas. Carlo Ginzburg denomina isso de
circularidade cultural entre cultura subalterna e cultura hegemônica, sendo os
jornais lidos em voz alta, ou contados a um grande número de analfabetos
8
.
Nesse período, a confecção dos jornais era precária, sem muita tecnologia,
facilitando as fraudes de notícias de outros Estados
9
. De poucas ginas e em
6
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. X.
7
Ver COELHO, Teixeira. O que é industria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2003.
8
Ver GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Editora Àtica, 1987, p.15 – 34.
9
Acompanhando os jornais torna-se possível perceber as fraudes das informações existentes na imprensa no final
do século XIX. A Federação 28 ago. 1898.
15
tamanho grande, logo foram ganhando uma nova estrutura: aumento das sessões
de publicação ao longo da semana, aperfeiçoamento das técnicas de confecção,
com a velocidade na impressão, ampliação das informações e auxílio no telégrafo
para maior rapidez nas informações.
10
Além da tecnologia implantada na imprensa para melhorar a qualidade dessa
fonte de pesquisa, é importante salientar que o contexto exercia grande influencia
nas representações das notícias. No período em que o país saía do escravismo e
ingressava no processo de construção de uma sociedade capitalista urbano-
industrial, a imprensa auxiliava no ordenamento político-cultural de implantação de
um universo modernizante, querendo libertar-se dos resquícios rurais coloniais. A
ordem do momento era civilizar”, aproximando as idéias, o cotidiano, a economia e
as instituições brasileiras com as Européias. Inventaram um “Brasil Moderno” e
instauraram novas práticas para torná-lo possível
11
, e a imprensa auxiliava nessa
tentativa de “reconstrução de um novo Brasil”.
A esperança dos responsáveis pela remodelação do país era de que “essa
projeção externa, [aparência física da cidade modernizada] pública, citadina,
pudesse atingir e orientar os indivíduos”.
12
Os jornais eram os transmissores dessa
“cultura introjetada socialmente”, como se pode ver nos jornais selecionados para
este trabalho.
A Federação no período de 1894 a 1903 circulava de segunda a sábado,
com o objetivo de ser porta-voz oficial do Partido Republicano Rio-grandense,
nesse período, representado por Júlio de Castilhos. Fundado por Venâncio Ayres,
foi o primeiro jornal da província e um dos primeiros do país a usufruir de um
serviço telegráfico nacional e internacional, por isso, considerado um dos mais
modernos nacionalmente. Abordava assuntos referentes ao comércio, economia,
arte, literatura e esportes.
Para fazer a dialética, optou-se pela Gazetinha de 1895 a 1900, com caráter
mais popular e opositor ao Partido Republicano Rio-grandense, embora em alguns
momentos apresenta-se favorável a este partido. O jornal abordava assuntos como
10
Ver Sodré, op. cit.
11
WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de posturas e regulamentação do convívio social em Porto
Alegre no século XIX. (Dissertação). Porto Alegre: UFRGS, 1992, p.86.
12
HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A Invenção do Brasil
Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 27.
16
crimes, julgamentos, entre outros, e circulava nas quintas e domingos. Fundado por
Octaviano Manoel de Oliveira, a Gazetinha deixa de circular em 1900, após seu
fundador sofrer um atentado, devido aos artigos ásperos que escrevia em seu
jornal.
A partir de então, Octaviano Manoel de Oliveira funda O Independente, de
circulação semanal, com o lema “defensor das classes populares”, que de 1900 à
1903, participa desse trabalho
13
. Todos os jornais apresentam claramente sua
posição política.
Analisando os jornais pesquisados, pode-se dizer que o desenvolvimento da
imprensa acompanhou também a concentração demográfica urbana, principalmente
das capitais. Conforme aumentava o número de pessoas que consumiamo jornal,
aumentava também o número de anunciantes que buscavam, nesse tipo de
imprensa, a abertura de novos mercados, devido à importância da propaganda.
Assim, a imprensa saía de informativa para opinativa e as ilustrações auxiliavam as
críticas oferecidas ao leitor. Notícias relacionadas à política, economia, sociedade,
valores, crimes e diversões estavam presentes nas informações publicadas.
No final do século XIX, a imprensa jornalística brasileira poderia situar-se de
forma mais burguesa ou mais operária, dependendo das informações divulgadas e,
conseqüentemente, do público leitor. E sempre que críticas ferozes permaneciam
por determinado período, os jornais encontravam dificuldades na publicação, tendo
as vezes que desaparecer, devido às perseguições, como foi o caso da
Gazetinha
14
.
Portanto, desenvolver estudo sobre o jogo do bicho em Porto Alegre na
transição do século XIX para o XX, deixando fora uma importante fonte de
pesquisa, como a imprensa, não é possível. Mas é preciso que seja analisada “com
toda a atenção, devido a certos fatores que cercam a imprensa, tais como
dependência econômica, mistura do imparcial e do tendencioso, do certo e do
errado”
15
, por parte daqueles que publicam a propaganda, pagando por ela, quanto
13
Ver VIEIRA, Silvia Rita de Moraes. Acervos Hemeroteca: jornais, revistas e almanaques. Porto Alegre:
Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2003.
14
Idem.
15
FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil (1880-1920). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 87.
17
daqueles que pagam para conhecer as notícias. A imprensa tem lucro dobrado e
por sua vez, atende aos dois clientes, selecionando as informações.
Não dependência econômica, mas também política, aspirações e
interesses particulares, enfim, todos os elementos presentes na sociedade era
possível encontrar na imprensa. Nesse contexto de inserção do capitalismo, o
controle dos meios de difusão das idéias e das informações era grande, até mesmo
nas técnicas de produção. Tem-se, como exemplo, os jornais pesquisados aqui. A
seleção do conteúdo exposto e a liberdade de expressão conflitavam de forma
passiva, uma vez que os escritores sabiam quem procurar no momento de uma
crítica.
Nesse sentido, afirma-se que os jornais no final do século XIX não
eram imparciais. As expressões em seus artigos estavam imbutidas na orientação
dos leitores para a formação de opinião e tomada de posições. A manipulação
ocorria de acordo com a posição política do responsável, uma vez que no Brasil,
grande parte da produção jornalística sempre pertencia à propriedade privada. A
imprensa rio-grandense trabalhada aqui, não é diferente.
Para instrumentalizar a análise das fontes documentais, trabalha-se com
material bibliográfico de suporte, como artigos e livros sobre o contexto político,
econômico e social da época, auxiliando o conhecimento histórico da teoria e da
prática. Portanto, trata-se de uma pesquisa de cunho histórico, em que o objeto
(jogo do bicho) está vinculado ao contexto constituído de transformações históricas.
Frente aos novos temas, trata-se de um trabalho inédito, que faz parte de
uma cultura historiográfica, com publicações referentes ao jogo do bicho no Rio de
Janeiro, Brasília, Fortaleza
16
. Com a ampliação dos objetos de pesquisa em história
e conseqüente abertura para novos métodos e novos documentos, pode-se tomar o
jogo do bicho, como tema relevante, para a compreensão de Porto Alegre, na virada
do século: o elemento lúdico justificando a difícil construção de uma ética positivista
do trabalho. As pessoas buscavam outros meios de obter a ascensão social - os
jogos de azar e não necessariamente o trabalho e a disciplina. A característica
bipolar (entre discurso e prática) da época era visível nas resistências de
16
Ver HERSCHMANN, Micael; LERNER, Kátia. Lance de Sorte: o futebol e o jogo do bicho na Belle
Époque Carioca. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993; e EVANGELISTA, Helio de Araújo. Rio de Janeiro:
Violência, Jogo do Bicho e narcotráfico segundo uma interpretação. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
Ambas fazem referencia ao jogo do bicho no Rio de Janeiro, enquanto SOARES, Simone Simões
18
implantação do sistema republicano, centrado no lema Ordem e Progresso”. A
tentativa fracassada de construção de cidades ‘parisienses’ (principalmente nas
capitais das províncias) enfatizou a difícil desvinculação do passado colonial para o
republicano.
Os lugares, as ações e os sujeitos, oculto nas pesquisas do início do século
XX, ganharam voz na historiografia, podendo ser problematizados e confrontados
com o contexto já descrito. Faz-se isso através de um estudo sobre o
comportamento do jogo do bicho, em Porto Alegre, na primeira década de
existência nacional.
O presente trabalho está dividido em três momentos. Primeiramente,
apresenta-se a história dos jogos de azar, inserindo o surgimento do jogo do bicho
no Rio de Janeiro e sua expansão até o Rio Grande do Sul, mais especificamente,
Porto Alegre. Questiona-se o tipo de sociedade que acolheu essa prática e os locais
dos jogos. A imprensa e os processos-crimes fornecem suporte para a
compreensão da expansão do jogo do bicho em Porto Alegre num momento de
construção de uma sociedade do trabalho.
No segundo momento, apresenta-se as formas de apostas do jogo do bicho
traçando um paralelo entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, com as respectivas
tabelas dos bichos. A interpretação dos sonhos torna-se fundamental para
compreender a depositada neste jogo. Os processos-crimes e a imprensa
auxiliam no levantamento desses dados.
Num terceiro momento, trabalha-se com o olhar da justiça sobre o jogo do
bicho. Busca-se conhecer a relação entre ambos, num momento em que a lei era
uma das formas de coerção da sociedade, auxiliando o discurso ordem e progresso.
Objetiva-se apresentar a história da lei sobre o jogo do bicho e nesse contexto
conhecer as práticas executadas além dela. O código penal brasileiro caminhava
para a organização do espaço, com auxilio das leis e as respectivas autoridades
competentes. Dessa forma, este trabalho visa compreender como o jogo do bicho
conseguiu sobreviver a esse “cerco”, mantendo-se na sociedade até hoje. Tal
compreensão baseia-se em documentos de polícia, processos-crimes, leis e a
imprensa.
Ferreira. O Jogo do Bicho: a saga de um falto social brasileiro. Rio de Janeiro : Bertrand, 1993,
apresenta capítulos sobre o jogo do bicho em Fortaleza e em Brasília.
19
Dessa forma, o presente trabalho auxilia nos estudos regionais contribuindo,
para a história nacional, uma vez que Porto Alegre não esteve desconectada do
restante da nação no processo de construção de uma sociedade capitalista,
disciplinada aos moldes do positivismo.
1- OS HOMENS E OS JOGOS: Contribuições à história
O poker e a roleta, a loteria e o bicho,
o dado e a campista, são os árbitros da sorte dos cidaos.
Debaixo deste ou daquele aspecto, com esta ou aquela derivação,
todos os lances da existência correm ao acaso,
o destino de cada vida se reduz a um castelo de cartas,
o país é uma grande barraca de jogo.
Rui Barbosa.
Definir a palavra jogo não é tarefa fácil, cada autor a entende de uma forma.
Embora recebam a mesma denominação, os jogos possuem especificidades:
alguns tipos de jogos usam a imaginação; outros, a representação mental ou a
habilidade manual; aqueles que necessitam de estratégias e astúcia (como o
caso do jogo político); mas todos possuem regras implícitas ou explicitas.
Huizinga escreve sobre as práticas lúdicas e se refere ao jogo, não apenas
como uma estratégia de sobrevivência, mas como elemento da cultura popular que
fornece prazer: “Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as
representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar”.
33
O jogo é uma forma de
expressar sentimentos e emoções, encontrada pelo homem. Ele nutre todas as
atitudes dos seres humanos. Os homens, desde criança até adulto, praticam
atividades culturais necessárias à sobrevivência que são chamadas de atividades
dicas. Nessas atividades, desenvolvem a imaginação, através do jogo. Essa
‘viagemtem limites no tempo e no espaço: são regras delimitadas, sendo assim
ordem e liberdade inerentes ao jogo, que se pode denominar play. Diferencia-se um
pouco, o jogo como competição, com regras que se denomina game. Quase
sempre se utiliza a expressão play para uma ação, mas quando se refere aos jogos
de azar, utiliza-se a denominação game, pois as regras prevalecem ao prazer
principalmente, no caso do jogo do bicho, em que a fidelidade é um elemento
33
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 41.
20
imprescindível, por não ser conduzido pelo jogador e sim, pela sorte: o jogador joga
na sorte.
34
A história dos jogos tem início com a origem das sociedades, adaptando-se
aos valores e espaços de cada época. Por passatempo, diversão, ascensão social
ou vício, o homem sempre desempenhou essa atividade. Philippe Áriès
35
apresenta
a relação dos jogos com os homens, ao longo da história e mostra que, desde as
sociedades antigas ao Antigo Regime, a importância dos jogos e das festas era
grande, tanto entre a nobreza, quanto entre o povo. Essa era uma forma de estreitar
os laços coletivos. Os adultos participavam das práticas lúdicas infantis e as
crianças das práticas lúdicas adultas. Além disso, as festas e os jogos estavam
ligados ao trabalho: nos momentos de grandes colheitas, chegando ao final da
atividade, faziam festas e realizavam jogos como forma de diversão e
agradecimento ao bom resultado das safras. Aristóteles e Sócrates
36
viam no jogo a
recreação, sendo praticada como relaxamento necessário às atividades que
exigiam esforço físico, intelectual e escolar. Na França do século XVII, a prática dos
jogos de azar era uma espécie de brincadeira que ocorria naturalmente entre as
pessoas, não sendo condenada ou considerada um problema social
37
.
Dessa forma, a repugnância moral em relação à prática de determinados
jogos, torna-se um fenômeno histórico ao nível das mentalidades que tem a ver com
as transformações econômicas e sociais a partir do final do século XVIII. As
atividades lúdicas possuem valores diferentes. De acordo com o espaço e tempo
em que são praticadas adquirem novos significados. O lúdico, enquanto prática da
sociedade, passava a ser condenado quando atentava contra valores morais. Com
o advento da sociedade do trabalho, da produção e da poupança, determinadas
práticas lúdicas, principalmente os jogos de azar, passaram a ser representadas
como negativas. O contexto social constrói uma imagem de jogo, conforme os
valores e o modo de vida de cada sociedade expressado por meio da linguagem. As
diferentes culturas possuíam diferentes significados e regras aos jogos, que por sua
34
Ver idem.
35
Ver ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
36
Ver TIZUKO M. Kishimoto. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1997. Pp. 7-43.
37
Ver Ariès, op. cit
21
vez, caracterizavam o jogo.
38
Pode-se dizer que o jogo assumiu a imagem e o
sentido que cada sociedade lhe atribui.
No Brasil, os jogos de azar tiveram repercussão social ao longo do século
XIX. Sirlei Rossoni destaca que a presença dos nobres e funcionários do Estado
Português, em 1808, e a conseqüente divulgação da cultura européia, inseriram os
jogos no cenário nacional.
39
Gilberto Freyre remota um pouco mais a história dos
jogos no Brasil:
Da tradição indígena ficou no brasileiro o gosto pelos jogos e brinquedos
infantis de arremedo de animais: o próprio jogo de azar, chamado do bicho,
tão popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo
animista e totêmico de cultura ameríndia reforçada depois pela africana.
40
Seja ele de origem indígena, africana ou européia, o certo é que os jogos
tamm presenciaram o espaço brasileiro, e desde sua chegada, mantêm raízes
impossíveis de extinguir.
Porto Alegre na transição do século XIX para o XX, encontrava-se dividida
socialmente: de um lado a elite, responsável pela ordem; do outro o ‘povinho’, que
causava desordens. A imprensa construía essa dualidade social a partir da visão
de normas e valores da época e representava em sua redação.
O povo, conhecido também como as “classes perigosas”,
41
representava os
pobres urbanos e se mostravam, segundo a ótica burguesa, mais propícios no
envolvimento de práticas ilícitas, além de incapazes de adquirirem hábitos
civilizados.
42
Para os jornais, esses indivíduos pobres apresentavam periculosidade
na sociedade, uma vez que, sua imagem era reforçada com referências ao álcool, a
prostituição e outras atividades consideradas imorais. Enquanto isso, os outros
indivíduos da sociedade, mesmo praticando a imoralidade, estavam ilesos das
imagens denegridas.
38
Ver Tizuko, op. cit.
39
Ver ROSSONI, Sirlei. O Cassino Guarani: histórias, memórias e personagens Irai RS (1940-1994). Passo
Fundo: UPF, 2001. Pp. 57-59.
40
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005. p. 206
41
CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da “Belle
Epoque”. São Paulo: Brasiliense, 1986.
42
Ver MAUCH, Cláudia. Ordem pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.
22
Essa ambigüidade de tratamento da população era visível na imprensa,
principalmente na Gazetinha, que mesmo se dizendo popular, fazia referência ao
povo com a imagem de um senhor de cabelos escuros despenteados, com pele
morena e enrugada, sem fazer a barba, nariz e orelhas grandes, com poucos
dentes na boca, vestindo roupas sem muito contorno, mas aparentemente feliz.
Fonte: Gazetinha, 27 de out. 1895. (AHPA)
Os escritos na imprensa especificavam as características físicas e os hábitos
de vida deste figurino:
O Zé! Era um tipo franzino. Tez morena, bigodes pretos e retorcidos, olhos
grandes e negros, apresentava um todo simpático. Sua vida era uma
tempestade contínua. Oscilava entre as vendas das quais era o mais
acérrimo e famoso diletante e às Pontes das Pedras onde ia filosofar sobre
as contrariedades da vida. Tinha um predicado: abominava o jogo sob todas
as suas formas. Nos seus momentos alcoólicos quando sentia em si uma
veia de Demóstenes, profligava o jogo.
43
as pessoas com melhor poder aquisitivo, entre elas, as autoridades
policiais e administrativas que eram responsáveis pela organização da sociedade,
recebiam outra imagem, mesmo em casos de críticas do trabalho. Um exemplo
disso é a imagem ilustrada que representa as sombras das autoridades, sendo que
essas nunca andavam sozinhas. Sempre com o corpo bem coberto e uniformizado,
43
Gazetinha, 01 out. 1895.
23
conforme sua profissão, de pele branca e bigodes bem aparados. Na cabeça,
usavam chapéu ou um complemento da farda. De postura reta e cara fechada,
exigiam respeito.
Fonte: Gazetinha 27 out. 1895 (AHPA)
Essa sociedade apresentada nos jornais auxiliou na existência das práticas
de jogos de azar. Por volta de 1895, a imprensa rio-grandense
44
divulgava
propagandas de jogos de azar: poule, vísporas, pelegas e loterias, tanto nacionais,
quanto estrangeiras. Entretanto, o jogo do bicho ainda estava escondido, mas as
casas de jogos proliferavam mesmo que as autoridades ‘ficassem de olho’:
Sabemos que um ousado aventureiro cremos que de nome Manuel Antonio,
que vive da jogatina, se dirigiu esta tarde à casa de um amigo nosso,
solicitando-lhe proteção para abrir uma casa de jogo. O nosso amigo, sem
mais preâmbulos, pôs imediatamente no olho da rua a audaz solicitante.
45
Além desse, muitos outros indivíduos viviam da jogatina. Aos poucos, os
espaços eram organizados para tais atividades. Ser dono de uma casa de jogos de
azar, conhecida como tavolagem, era uma das formas de ocupação e ‘ganha-pão’ e
investiam nisso com auxílio da imprensa que divulgava propaganda para o novo
meio de adquirir fortuna, apresentando os locais de jogos e atenuando as
44
E neste caso trabalhamos com o jornal a Gazetinha e a Federação.
45
Federação, 08 mai. 1896.
24
dificuldades financeiras de subsistência da população, através da Loteria Brasileira
do vendedor Lapporta :
O La Porta... ora o La Porta
É mesmo o amigo do povo;
Sempre se arranja um meio novo
Que um lucro do Zé importa
Para melhorar a vida
Que é muito cara hoje em dia
Oferece a loteria
Que vence a invalida
Custa o bilhete somente
Oito mil reis! Nada mais
È de seduzir a gente
De acordo ó povo, não estais?
Basta que ao menos se pense
No tal, Cem contos de réis
É de se espalhar os pés
E jogar na Rio-Grandense
46
Enquanto o povo se ‘divertia’ com a prática, outros, como as autoridades
policiais e os jornais, ‘atacavampara prevenir males. Tanto autoridades policiais e
administrativas, quanto o povo, ilustrado pelos jornais, participavam de práticas
contraventoras. Comerciantes, operários, desocupados e pessoas que viviam de
expedientes diversos, inclusive do jogo e da prostituição, formavam a sociedade
porto-alegrense na virada do culo XIX para o XX. A cidade concentrava o maior
contingente de trabalhadores do Rio Grande do Sul e entre eles, havia um grande
número de desempregados. Os ociosos ocupavam quase toda a atenção dos
chefes de polícia por serem considerados perigosos para a ordem pública e uma
ameaça moral à sociedade e, conseqüentemente, levados à prisão, devido à
vadiagem, desordens, jogo, embriaguez - todas atividades contraventoras descritas
no Código Penal de 1890
47
. Alguns eram presos para averiguações, tornando,
dessa forma, a prisão um meio de moralização.
Mesmo com a ação das autoridades policiais, o número de jogadores
aumentava. Aqueles que, inicialmente praticavam as loterias, começaram a praticar
46
Gazetinha, 15 out. 1896.
47
Ver BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 1890.
25
o jogo do bicho quando esse chegou na sociedade. Isso quando não praticavam os
dois jogos:
Hoje, em cada canto da cidade, há, por assim dizer, um antro de tavolagem,
onde o dinheiro corre parelhas com o aviltamento do caráter; casas de
jogos proibidos, freqüentados assiduamente por pessoas de todas as
categorias e de todas as classes sociais, desde o caixeiro ao comerciante
abastado, desde o humilde operário ao industrialista, desde o marinheiro até
o oficial , desde o vagabundo até o ricaço que vive de rendimentos
48
Todas as classes sociais praticavam jogos de azar proibidos: ricos, pobres,
trabalhadores e desempregados auxiliavam a proliferação das casas de jogos.
Analisando a documentação de polícia, foi possível perceber um aumento gradativo
do número de registros policiais sobre atividades ilícitas, como jogos de azar,
principalmente do jogo do bicho, na capital do Rio Grande do Sul após o ano de
1895. Embora no ano de 1903, em que ocorreu a morte de Julio de Castilhos, não
se tem registro de indivíduos envolvidos com jogos de azar, este não tinha sido
extinto, uma vez que, nos anos seguintes de 1904 e 1905 houve um aumento dos
registros dessa prática.
Tabela 1 Detenções efetuadas pela polícia referente aos jogos de azar em Porto
Alegre de 1895 a 1905.
Ano Nome Idade Profissão Crime
1895 Aníbal Pereira Pinto __ ____ Jogatina
1895 Achylles Pereira Pinto __ ____ Jogatina
1895 Afonso Correa da Silveira __ Proprietário do
Café Pátria
Jogatina
1898 Joaquim Martins Flores __ Vendedor de
cartelas
Vendedor de cartelas do
Jogo do bicho
1898 Josino Barreto 36
Comerciante
Proprietário do jogo do bicho
1898 Manoel Rodrigues de Lima __ Banqueiro do jogo Proprietário do Jogo do
bicho
1899 Alcides Gonçalves Ferreira 19 Aprendiz de
pedreiro
Jogo
1899 Antônio Rodrigues de
Oliveira
39 Marítima Jogo na casa nº 30, à rua da
Margem
1899 Flamenais Francisco Paulo 18 Carpinteiro Jogo
1899 Germano de Oliveira 26 Pedreiro Jogo
1899 João Talentino 29 Carpinteiro Jogo na casa nº 30, à rua da
48
Gazetinha, 03 jun. 1896.
26
Margem
1899 Manoel Cardozo 23 Carroceiro Jogo na casa 30, à rua
da Margem
1899 Maurício de Mello 26 Pedreiro Jogo
1899 Otávio Fagundes 21 Caixeiro Jogo na casa 30 a rua da
Margem
1899 Ventura Afonso da Silva 35 Carregador Jogador
1899 Virgílio Bispo dos Santos 30 Negociante Proprietário da casa de jogo
1900 Albino Martins __ _____ Banqueiro
1900 Antônio Perez 22 Pedreiro Jogo
1900 Artur de Souza Borges __ _____ Protagonista do jogo
1900 Felipe Viale 24 Proprietário da
casa de jogos
Jogo
1900 Frederico Pereira da Silva __ _____ Vendedor de cartelas
1900 Galtendo Giovanni __ _____ Vendedor de cartelas
1900 Geraldo Jose Coutinho 42 Carroceiro Furto de uma poule
premiada e bicheiro
1900 Gladis Ferreira da Motta __ Sócio da casa de
jogos
Jogos de azar
1900 Jeremias de Souza Estrela 78 Carvoeiro Furto e jogo de poule
premiada
1900 João Masson M. Luiz 27 Paguista Vagabundagem e jogo
1900 Joaquim Alves __ Proprietário da
casa de jogos
Proprietário da casa de
jogos
1900 José Alves de Moura 48 Hoteleiro Jogo no 1º distrito
1900 José Garcia 50 Jornaleiro Jogo
1900 José Viale __ Proprietário de
casa de jogos
Jogos de azar
1900 Juvenal de Magalhães 25 Cobrador Jogo
1900 Luiz Maya __ Banqueiro Banqueiro do bicho
1900 Manoel Ramires 40 Jornaleiro Jogo
1900 Maximino Antônio Limonge 31 Cobrador Jogo
1900 Seven Ferreira 29 Sapateiro Jogador na casa30, à rua
da Margem
1900 Virgilio Bispo dos Santos 31 Negociante Proprietário da casa de jogo
1901 Augusto Marques
Guimarrães
60 Operário Vendedor de cartelas do
jogo do bicho
1901 Cipriano Grainha 70 Agência Vendedor de cartelas do
jogo do bicho
27
1901 José Bento da Siqueira 66 Agência Vendedor do jogo do bicho
1901 José Jorge de Egídio 17 Jogador Vendedor de cartelas do
jogo do bicho
1902 Alberto Bordone __ Comerciante Loteria falsa (jogo do bicho)
1902 João Marsicano __ Contratador de
loteria
Loteria falsa
1904 Agostinho Rosa __ ____ Jogo do bicho
1904 Antônio de Oliveira Filho __ ____ Jogo do bicho
1904 Caetano Camarata 32 Ourives Jogo do bicho
1904 Francisco Pedro Olivaes __ ____ Jogo do bicho
1904 Henrique Brucker 33 Negociante Jogo do bicho
1904 Marciano Maria Silva 13 Caseiro Jogo do bicho
1905 Antônio Francisco da Silva __ ____ Praticando o jogo do bicho
1905 Emílio Coelote 22 Comércio Praticando o jogo do bicho
1905 Eugênio de Castro 51 Comércio Praticando o jogo do bicho
1905 Floranpeho de Castro
Loureiro
__ ____ Jogo do bicho
1905 João Emílio Machado 38 Comércio Jogo do bicho
1905 João Monteiro de
Albuquerque
__ ____ Jogo do bicho
1905 João Moreira __ ____ Jogo do bicho
1905 José Caetano da Silva __ ____ Jogo do bicho
1905 Liberalino de Fraga 14 Empregado do
comércio
Jogo do bicho
1905 Luiz Daleto Primavera __ ____ Praticando o jogo do bicho
1905 Manoel Vieira da Costa __ ____ Jogo do bicho
1905 Mariani Aliso __ ____ Jogo do bicho
1905 Mariano da Fontoura
Bacelar
__ ____ Jogo do bicho
1905 Miguel de Giorgi __ ____ Jogo do bicho
Fonte: Instrumento de Pesquisa da Secretaria de Segurança Pública. Registro de Pries
1896/1904, Códice 38 AHRS; RIO GRANDE DO SUL, Cadastro de processos-crimes (1849-1912)
nº 42, 46, 48, 68, 74, 90, 106, 108, 111, 112, 116, 121, 122, 125, 126, 127, 129, 130 maço 2, 3, 4, 5,
6 e (1891-1897) nº 1841, 1843, maço 76. APERS.
Observa-se que dos 62 indivíduos que tiveram passagem pela polícia, devido
aos jogos de azar, 2 eram mulheres, ou seja, apenas 3,2% dos envolvidos, e estas
não tiveram idade registrada. entre os indivíduos do sexo masculino, 43,3% não
apresentaram a idade, e o restante variava entre 13 e 78 anos.
28
O tipo de crime também era diversificado: uns por serem jogadores, outros
vendedores de cartelas, havia até os donos de casas de jogos e aqueles que se
envolviam no furto das cartelas premiadas, ou mesmo os que divulgavam a loteria
falsa. A condição financeira dos praticantes oscilava desde desempregados que
praticavam como ganha-pão até aqueles que possuíam bom poder aquisitivo,
podendo bancar o jogo do bicho, embora a maioria era pobre.
Dessa forma, percebe-se que indivíduos de várias idades, sexo e profissões
se envolviam nas práticas de jogos de azar. Conforme surgia novos jogos, estes
eram praticados pela população. No subcapitulo seguinte, discute-se o surgimento
do jogo do bicho, no Rio de Janeiro, e sua expansão até Porto Alegre.
1.1- Abre alas, o jogo do bicho chegou
A história da inserção do jogo do bicho, em Porto Alegre, está ligada à
história nacional do final do século XIX. Pensar o Rio de Janeiro como capital do
país, requer conhecer esse espaço, no momento da criação do jogo do bicho, e o
conseqüente alastramento dessa prática, para outros estados brasileiros, como o
caso do Rio Grande do Sul.
Roberto da Matta e Elena Soarez
49
discutiram a chegada do jogo do bicho no
Brasil, lembrando que tudo começou por volta de 1872, quando João Baptista
Vianna Drummond, conhecido popularmente por ‘barão de Drummond’, comprou
um terreno no bairro Vila Isabel (Rio de Janeiro), e investiu em negócios
imobiliários, inspirando-se na arquitetura parisiense. Logo, fez a ligação desse
bairro com o centro da cidade, através da Companhia Ferro-Carril que transportava
as pessoas de bonde. Somente em 1888 criou um jardim Zoogico, num acordo
com a Câmara Municipal, devido à extensão de 300 metros quadrados de reserva
que, além de expor animais ‘raros e exóticos’, auxiliaria em pesquisas de estudiosos
brasileiros. Devido às dificuldades para mantê-lo, o barão de Drummond solicitou
auxílio à Câmara Municipal que, inicialmente, contribuía com 10 contos anuais. Mas
em 1890, esta firmou um acordo com o mesmo, fornecendo “o direito de
49
Ver Matta e Soarez op. cit.
29
estabelecer e explorar, dentro dos limites do Jardim Zoológico, jogos públicos e
lícitos”
50
, e, posteriormente, cortou o auxílio financeiro que fornecia. Foi então que o
mexicano Manoel Ismael Zevada prestou auxílio. Já que possuía um jogo de flores
51
num sobrado à Rua Ouvidor, resolveu bancar o jogo do bicho. Dividiu as 100
dezenas (01-00) em 25 grupos de 4 dezenas cada, correspondendo a um
determinado bicho. Estampava a figura de um animal no alto de um mastro, no
interior do Zoológico, sendo baixado ao final da tarde. Os visitantes do Jardim
Zoológico pagavam, na entrada, o valor de mil réis e recebiam os ingressos
enumerados com a figura do referido animal, e ao final do dia, quem tivesse a sorte
de ter, no ingresso, o animal estampado, receberia o prêmio de vinte vezes o
referido valor.
52
Assim, em fins do culo XIX (aproximadamente 1893)
53
surgiu um
novo jogo de azar que se espalhou por todo o território nacional, e passou a fazer
parte da cultura brasileira: o jogo do bicho.
Tabela 2 – Jogo do bicho carioca
54
.
AVESTRUZ 1
01-02-03-04
ÁGUIA 2
05-06-07-08
BURRO 3
09-10-11-12
BORBOLETA 4
13-14-15-16
CACHORRO 5
17-18-19-20
CABRA 6
21-22-23-24
CARNEIRO 7
25-26-27-28
CAMELO 8
29-30-31-32
COBRA 9
33-34-35-36
COELHO 10
37-38-39-40
CAVALO 11
41-42-43-44
ELEFANTE 12
45-46-47-48
GALO 13
49-50-51-52
GATO 14
53-54-55-56
JACARÉ 15
57-58-59-60
LEÃO 16
61-62-63-64
MACACO 17
65-66-67-68
PORCO 18
69-70-71-72
PAVÃO 19
73-74-75-76
PERU 20
77-78-79-80
TOURO 21
81-82-83-84
TIGRE 22
85-86-87-89
URSO 23
89-90-91-92
VEADO 24
93-94-95-96
VACA 25
97-98-99-00
50
Idem. P. 65.
51
O jogo de flores é muito semelhante ao jogo do bicho. Cada flor corresponde a um grupo que possui quatro
dezenas. Para conhecer melhor a ordem das flores ver PACHECO, Renato José Costa (org.). Antologia do Jogo
do Bicho. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1957. p. 16.
52
Ver MADUREIRA, Ari. Jogo do Bicho: como jogar, como ganhar. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001;
PADILHA, Ricardo. O jogo: uma paixão. Porto Alegre: Solivros, 1995.
53
Esse período de surgimento do jogo do bicho no Rio de Janeiro segue a obra Antologia do jogo do bicho de
Renato Jo da Costa Pacheco. Outras obras citadas nesse trabalho, como Lance de Sorte de Micael Herschmann
e Kátia Lerner, ou Águias Burros e Borboletas de Roberto da Matta e Elena Soarez, apresentam o ano de 1902
ou até 1900, como sendo o ano de origem deste jogo.
54
Lembra-se que, até hoje o jogo do bicho segue a tabela carioca citada acima.
30
Fonte: MADUREIRA, Ari. Jogo do Bicho: como jogar, como ganhar. ed. Rio de Janeiro: Pallas,
2001, p. 8.
Nem bem a novidade chegou, e com a vantagem do prêmio ser em dinheiro,
já tomou conta da população, tanto dos visitantes que se faziam presentes cada vez
mais ao velho Jardim Zoológico, quanto de comerciantes que bancavam essa
atividade, tornando-se, mais tarde, conhecidos como banqueiros do bicho.
55
Do Rio de Janeiro, o jogo do bicho espalhou-se pelo Brasil. São Paulo,
Brasília e Fortaleza
56
são alguns exemplos de locais em que os jogos de azar
tiveram popularidade. Quando se refere ao jogo do bicho, vê-se iguais proporções
deste no universo social porto-alegrense.
Os amadores dos jogos de azar, no Rio Grande do Sul, que inicialmente
participavam das rifas
57
estrangeiras (Montevidéo, Argentina e Paraguai), logo
tornaram-se fregueses das rifas nacionais. Os sorteios eram realizados no Rio de
Janeiro e transmitidos à capital do Rio Grande do Sul, por telegrama. Juntamente
com essa rifa, veio o jogo do bicho que, em pouco tempo, ameaçava diminuir o
sucesso daquela. Aqueles indivíduos que lucravam com as rifas, viam o novo jogo
como ameaça e buscavam seu fim. Já os amantes desse jogo, diziam não enxergar
o motivo que autorizava a sua morte
58
Tanto as rifas (estaduais, federais ou até
estrangeiras) quanto o jogo do bicho, atingiam a moralidade social, que faziam
parte dos jogos de azar. Extingui-lo, se fosse por total, começando pela raiz, que
neste caso, eram as rifas.
A maior parte da população porto-alegrense investiu nos jogos de azar, com
a prática das loterias, mas quando o jogo do bicho chegou, desenvolveram ambas,
isso quando não mudavam de atividade porque tinham preferência por esse jogo.
Como é o caso de um ex-freguês das rifas quando diz que “prefere torrar seu
55
Ver SOARES, Simone Simões Ferreira. O Jogo do Bicho: a saga de um fato social brasileiro. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1993, p. 257.
56
Ver Matta e Soarez. op. cit.
57
Rifa aqui se refere às loterias. Essa expressão aparecia constantemente nos jornais. Acredita-se que como o Rio
Grande do Sul fica próximo da região do Prata que tem como língua oficial o espanhol e neste, rifa significa
sorteio. Sempre que eram enviados ao Rio Grande do Sul as cartelas ou os resultados das apostas do Uruguai,
Argentina e Paraguai, denominavam rifas. Ver: SEÑAS: Dicionário para la enseñanza de la lengua española para
brasileiros/ Universidad de Alcacá de Henares; tradução: Eduardo Brandão, Cláudia Berliner. 2ªed. São Paulo:
Martins Flores, 2001, p.1121.
58
Ver Gazetinha, 27 mai. 1898.
31
dinheiro na bicharia a deixar-se explorar pelos rifeiros”.
59
Além desse, muitos outros
deveriam ter exercido essa prática, uma vez que o Estado se preocupava com a
renda que deixava de ganhar do jogo do bicho, quando fiscalizava mais esse jogo
do que as loterias, e ambos se enquadravam na mesma lei. Havia manifestação de
um sentimento de ódio com os cofres blicos. Banqueiros e rifeiros exploravam da
mesma forma. Dessa forma, percebe-se que esse apostador poderia ser opositor
político do administrador público do Estado Rio-grandense, uma vez que o queria
destinar seu dinheiro para o Estado.
Segundo os jornais da época, o abre alas ao jogo do bicho, em Porto Alegre,
ocorreu em fins de 1897. A primeira referência deste jogo encontrada na
imprensa pesquisada dizia:
Um dos inspetores municipais intimou hoje, o proprietário do Club
dos Fumantes a fazer cessar ali a venda de bilhetes do jogo dos
bichos, cientificando-o mais de que, caso continue a fazê-lo, ficará
sujeito à multa de 30$000. Igual intimação vão receber os outros
vendedores de tais bilhetes
60
.
Para tal prática, por parte de autoridades municipais, acredita-se que não era
a primeira vez que o jogo do bicho estava sendo praticado. Ao contrário, ele já tinha
ganhado proporções que preocupavam, tanto os administradores públicos, quanto
os responsáveis pela ordem, e então pediam uma ação: o cumprimento da lei.
Logo após essa notícia, outras, seguidamente, apareciam nos jornais. Em
menos de uma semana, a Gazetinha publicava o texto com o tema ‘O jogo do bicho
e a prostituição’, dizendo que ambas práticas circulavam pelos mesmos espaços,
não fiscalizados pelas autoridades.
61
Dessa forma, o malefício da atividade era
dobrado. Ela não chegou sozinha, foi unindo-se a outras práticas proibidas que
conquistavam o indivíduo por meio do vício.
Assim, o jogo do bicho surgiu em Porto Alegre. E em pouco tempo,
conquistou vários parceiros: pobres, ricos trabalhadores, desocupados, eram
alguns dos indivíduos que praticavam o jogo. Conhecer o envolvimento do jogo do
bicho com a sociedade e o contexto no qual esse se inseriu, é o que se faz no
próximo subcapitulo.
59
Idem.
60
A Federação, 02 dez. 1897.
32
1.2-A Sociedade e o Jogo do bicho: mais de um século de parceria
No Brasil, a relação do homem com as atividades lúdicas datam desde o
início de sua história. O jogo do bicho não surgiu com os primórdios da história
brasileira, mas foi criado aqui, e desde então, mantém parceria, há mais de um
século, com a sociedade.
O contexto social da época era marcado por uma série de mutações do
capitalismo: novas relações de trabalho, novos comportamentos e valores. Os
representantes dos Estados tinham como objetivo, modernizar (principalmente) as
capitais, tornando-as um espaço normatizador. A consolidação do sistema
capitalista estabeleceu características de convívio social, puramente ocidental
62
.
Para isso, foi necessário inserir a população menos privilegiada
financeiramente, no trabalho e na produção. O descontentamento por parte do
imigrante (italiano e alemão), e do ex-escravo, devido às promessas não cumpridas
da ‘nova sociedade’ do capital, fazia com que muitos buscassem formas alternativas
de sobrevivência, como: a prostituição, a mendicância, o comércio ambulante, a
jogatina e os pequenos crimes. Essas atividades exercidas como táticas de
sobrevivência no contexto de um capitalismo selvagem, eram vistas pelas elites do
poder, como formas de ‘desvio’, de ‘não trabalho’, conforme o termo contravenção
do Código Penal de 1890: “Consideram-se jogos de azar aqueles em que o ganho e
a perda dependem, exclusivamente, da sorte.
63
.
Elaboração de manuais orientando os trabalhadores para o afastamento dos
jogos e do álcool, no período de lazer, e campanhas com auxílio da Imprensa,
contribuíram para mostrar que alguns jogos (entre eles, o jogo do bicho) faziam
parte do ‘lazer pobre’ e eram proibidos.
A modernidade (representada pela ciência e pela técnica) trazia mudanças
nas noções de tempo, espaço, valores, como mostra Nicolau Sevcenko:
...nunca em nenhum período anterior, tantas pessoas foram envolvidas de
modo tão completo e tão rápido num processo dramático de transformação de
61
Ver Gazetinha, 23 mai. 1898.
62
Ver Herschmann e Lerner, op.cit.
63
BRASIL. digo Penal dos Estados Unidos do Brazil, 1890, art. 370.
33
seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até
seus reflexos instintivos.
64
Este momento de passagem do Império para a República foi um processo de
tensão social, econômica e política. Em alguns momentos, a coerção e a burocracia
do Império fazia-se presente; em outros, os setores dominantes tentavam romper
com as idéias, imagens, moralidade e valores imperiais, ‘embutindo na população o
que chamavam de modernização, progresso e trabalho.
Não existindo trabalho para todos, certas formas de ociosidade passavam a
ser, cada vez mais, vigiadas e reprimidas. Era preciso combater a ociosidade, vista
como uma ameaça à ordem. De acordo com Sidney Challoub: “procurava-se uma
justificativa ideológica para o trabalho, isto é, razões que pudessem justificar a sua
obrigatoriedade para as classes populares.”
65
No Brasil, a partir do final do século XIX, a valorização do trabalho ganhou
novo significado. Da perspectiva das elites era necessário inserir no povo, novos
hábitos, atitudes, comportamentos, costumes, em suma, uma disciplina e uma
mentalidade típica de uma sociedade do trabalho, evitando uma suposta tendência
à vadiagem
66
e imoralidade do trabalhador. Nesse sentido, o trabalho passou a ser
representado como forma de retribuição do cidadão, por tudo que este recebia da
sociedade, principalmente, ‘segurança’, ‘liberdadee ‘honra’. O trabalho, dever do
indivíduo para com o ‘bem geral’, tornaria possível o progresso e a riqueza da
nação. Ele deixou de ser visto como algo negativo, penoso, praticado pelo pobre,
‘coisa de escravo’, e passou a ganhar um novo significado, agora positivo, ‘gerador
de riqueza’. Também era preciso convencer, de forma gradual, os envolvidos com o
trabalho, da sua real necessidade.
67
64
SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio Republicano: astúcia da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida
Privada no Brasil: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das letras, 1998, p.7-8.
65
Chalhoub, op.cit., p.43.
66
A expressão vadiagem é extensa de significados. Na Europa pré-capitalista com o fim da servidão, aumentou o
número de desocupados, mendigos, criminosos e outros pobres que passaram a ser visto como ameaça a ordem
social, sendo portanto, considerados vadios e destinados à outras regiões. No Brasil, o termo vadiagem tem um
diferencial da Europa - embora seja fruto europeu - sendo todos aqueles que não se inserem nos padrões de
trabalho, com busca do lucro imediato e estão destinados à pratica de atividades ilícitas, são considerados vadios.
Ver SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira do século XVIII, ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1986. p. 51-66.
67
Ver Mauch, op. cit.
34
Margareth Rago
68
apresenta a utopia da cidade disciplinar, mostrando que o
tempo ganhou sinônimo de riqueza e o espaço tornou-se o normatizador dos
indivíduos, evitando o desvio de conduta: enquanto se trabalhava, não pensava em
malandragem. para os trabalhadores, o significado desse conceito não era o
mesmo, ou seja, a fábrica era uma prisão e ser operário, seria estar sujeito às
imposições exarcebadas do patrão. Frente a esse valor dicotômico do trabalho, não
foi possível realizar os objetivos de reorganizar a sociedade na perspectiva da elite.
Ao contrário, muitos indivíduos passavam horas e horas junto às mesas de jogo, a
esbanjar o dinheiro de melhor destino
69
.
nos primeiros anos de República, a elite dirigente da sociedade pensava
no modelo de organização social que seria implantado no país. Para eles, os
brasileiros tinham dificuldade de organizar-se coletivamente. Em todo o Brasil,
principalmente nas cidades, esse ideal de sociedade esteve presente, uma vez que,
era necessário organizar o espaço urbano, o trabalho e o convívio social para
garantir a formação de indivíduos fortes, sadios, moralizados e ordeiros,
fundamental para a expansão do mercado de trabalho, capaz de construir e manter
a ordem social no século XIX.
70
No Rio Grande do Sul, o processo de fim da escravidão teve traços
peculiares. A transformação das novas relações de trabalho não foi um processo
linear, com características definidas, postas facilmente em prática. Beatriz Weber
diz que a presença do escravo artesão, doméstico, da economia diferenciada do
centro do Brasil com a presença de charqueadas, da vinda do imigrante para a
ocupação de pequenas propriedades de terras para uso familiar, fez com que o
escravo fosse, automaticamente, se desvinculando desse sistema de trabalho e
ocupando as cidades para outras atividades.
71
Para Mario Maestri, o foi
necessário impedir a grande leva de escravos para as cidades, uma vez que a Lei
Eusébio de Queirós, de 1850, extinguia o tráfico de escravos, e como
68
Ver RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.
69
Ver Gazetinha, 31 set. 1896.
70
Ver HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs. ). A Invenção do Brasil Moderno:
medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de janeiro: Rocco, 1994.
71
Ver Weber, op.cit.
35
conseqüência, despovoava as províncias do norte, de trabalhadores, sendo
necessário substituí-los pelo trabalho livre ou importar de outras províncias. O Rio
Grande do Sul, desde 1824, recebia imigrantes europeus para trabalhar como
pequenos proprietários e vendia escravos para as províncias do norte, tornando-se
um ônus para os coronéis.
72
Dessa forma, além dos libertos nacionais, tamm
imigrantes ocupavam o mercado de trabalho urbano de Porto Alegre. E a
preocupação da elite era maior com o ex-escravo, agora livre, do que com o
imigrante que já possuía ‘disposição’ para o trabalho.
Sandra Jatahy Pesavento defende que a delimitação espaço-tempo não
ocorre por acaso. A condição discutida anteriormente refletiu no crescimento
populacional das cidades do Rio Grande do Sul de meados para o final do século
XIX. Porto Alegre, por exemplo, que tinha 52.186 habitantes em 1889, chegava em
1900 com mais ou menos 70.000 mil habitantes, totalizando assim, um aumento de
37%. Acomodar essas pessoas no espaço urbano e inseri-las nos valores definidos
pelas autoridades como necessários para a boa ordem e o progresso das cidades,
era difícil. A presença do negro ex-escravo que vinha ocupar o maior centro urbano
do sul do país, procurando nas cidades, formas de sobrevivência, juntamente com o
branco imigrante (italianos e alemães) que chegavam à capital da província, para de
serem redistribuídos na zona colonial, gerou problemas.
73
Com o aumento das cidades, ocorreu uma supervalorização dos terrenos e
as pessoas de baixa renda passaram a ocupar as vias públicas, como os becos.
Devido à falta de condição de adquirir casa própria, os menos endinheirados
pagavam aluguel em habitações precárias como os cortiços, cômodos, porões.
Mesmo a elite querendo construir uma outra cidade em que a violência, a fome, os
pobres e as práticas contraventoras não estivessem presentes, era impossível
frente à realidade urbana do período. Não havia preocupações de encontrar meios
para extinguir esses problemas, apenas objetivavam deixá-los à margem. Frente a
isso, uma outra cidade
74
era construída dentro da ‘cidade disciplinar’ e novas
características se faziam presentes. Nesse espaço urbano, o jogo também andava
72
Ver MAESTRI FILHO, Mario J. O Escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/ Caxias do Sul:
EDUCS, 1984.
73
Ver Pesavento, op.cit.
74
Ver Pesavento op.cit
36
solto, tanto em locais fechados quanto em locais abertos. Construía-se o espaço de
sociabilidade daqueles considerados desviantes, como cortiços, bordéis, botequins
e casas de jogos.
O crescimento populacional trouxe problemas urbanos e preocupações ao
poder blico, que buscou formas de regulamentar a sociedade. A alta
concentração de população gerou péssimas condições de salubridade e com ela,
epidemias se alastravam, como a peste bubônica em 1902.
75
Por outro lado, houve um remodelamento físico nas cidades, sendo criados
clubes noturnos que permitiam atividades lúdicas, como os jogos de azar. Esse
espaço público de ordem, freqüentado pelas elites, era o refúgio das
expectativas, normas e modelos da vida privada. Porto Alegre, mesmo distante de
ser uma metrópole, já contava com um espaço organizado:
...a presença de cafés e confeitarias, pontos de encontro privilegiados para os
mais variados grupos e assuntos. Os estabelecimentos mais freqüentados
eram o Guarani, o América, o Ferro-Carril, o ‘Bohemia’, o Schram e outros;
alguns deles dispunham de enormes salões de bilhar, funcionando o dia
inteiro.
76
Os espaços lúdicos destinados às camadas privilegiadas da população
foram criados tanto por iniciativas privadas, quanto públicas, como é o caso dos
clubes, teatros, casas lotéricas e jardins zoológicos. Enquanto isso, os setores
desprivilegiados dedicavam-se a festas religiosas, carnavais e jogos de azar, de
forma clandestina, passando logo a ocupar tamm o espaço das camadas
privilegiadas, como o caso da casas lotéricas.
Em contrapartida ao local de ordem, privado, havia o local de desordem,
público, que chamou a atenção dos órgãos dirigentes da sociedade, os quais, em
pouco tempo, passaram a reprimir, atacar ou tolerar atividades como a jogatina.
“Sempre que a elite dirigente se via ameaçada pelos outros estratos da população,
burlava as ‘regras do Jogo’, uma atitude, aliás, bastante comum ainda hoje.”
77
75
Ver FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS,
1988. p.152-153.
76
BILHÃO, Isabel. A cidade como Palco das Manifestações Operárias (Porto Alegre 1906). In: Histórica.
Porto Alegre: APGH-PUCRS, nº 6, 2002, p.123.
77
Herschmann e Perreira, op.cit. p. 27.
37
Logo que o jogo do bicho chegou em Porto Alegre, foi instaurado em vários
espaços. Desde as luxuosas salas da alta camada social
78
, aas casas em locais
mais pobres ou na rua. Exemplo disso, é a “casa 30 à rua da margem
79
. Esse
local está descrito no registro de prisões de vários indivíduos que praticavam o jogo
do bicho, entre eles, Manoel Cardoso em 1899. A rua da Margem
80
era só um, entre
os muitos estabelecimentos em que o jogo se alastrava, ou seja, na rua Dr. Flores
tamm era praticado a venda deste jogo: “O tenente-coronel João Leite, delegado
judiciário do 1º distrito, tendo denuncia que na casa de residência do italiano João
Giovazzini à rua Dr. Flores nº 31, vendiam as cartelas da vergonhosa exploração do
jogo do bicho...”
81
Pergunta-se: porque existir espaços exclusivos para a elite, que ela era
responsável pela administração da cidade?
Essa organização do espaço, separando o público do privado, deixava
muitos indivíduos limitados pela condição econômica, de freqüentar determinados
ambientes. Existia uma ‘válvula de escape’ para a elite usufruir daquilo que gostava,
mas que era proibido.
Aqueles que não tinham espaços improvisaram. Como se nas rias
categorias sociais que passaram a envolver-se nessa atividade. Homens e
mulheres das mais diversas profissões e, até mesmo as crianças, saíram do play
para chegar ao game, quando estas criaram os jogos em miniatura, perdendo a
noção dos limites do jogo do bicho e praticavam na praça Marechal Deodoro, como
mostra o jornal a Gazetinha:
Assistimos ontem a um espetáculo gaiato, porém que nos deixou tristes ao
ver que a maldita jogatina arraigou-se tanto em Porto Alegre que até as
crianças estabeleceram um jogo de bichos em miniatura. Não falta nada
banqueiro, vendedores e compradores. O caso é que o banqueiro, um
menino ave, tinha gasto o produto de sua especulação e não tinha dinheiro
78
Ver Gazetinha, 06 abr. 1899.
79
Instrumento de Pesquisa da Secretaria de Segurança Pública. Registros de Prisões 1896/1904. dice 38.
AHRS.
80
A Rua da Margem é denominada atualmente como “Rua João Alfredo. Inicia na Av. Loureiro da Silva e
termina na confluência da Av. Aureliano de Figueiredo Pinto com a Rua Lopo Gonçalves. Era uma rua
socialmente pobre e marcada, pela implantação de suas casas do lado, por serem construídas bem à margem
do riacho, praticamente sem quintal, mas populosa e festeira.” Ver Franco, op. cit., p. 225-226.
81
A Federação, 21 ago. 1899.
38
para pagar os vencedores. O resultado foi uma gritaria medonha na praça
Marechal Deodoro e alguns sopapos.
82
Essa prática, às vezes, saía do lazer, propriamente dito, passando a ter
caráter estreitamente econômico, resultando em violência física quando os
envolvidos na prática presenciavam a infidelidade, mesmo sendo crianças. Estas
jogavam como adultos, com os mesmos valores, certamente porque aprendiam com
eles e estavam em constante convivência com o jogo do bicho. Se em outros
tempos as crianças praticavam jogos como divertimento, aqui este foi além do
momento de prazer, gerando agressões entre os envolvidos. Isso, quando os
menores não freqüentavam as próprias casas de jogos.
83
Analisando os registros de prisões efetuadas pela Delegacia de Polícia de
Porto Alegre, e os processos-crimes de 1893-1903, conforme a tabela das páginas
25 a 27, torna-se possível confirmar que a clientela do jogo do bicho possuía as
mesmas características profissionais daqueles que praticavam outros jogos de
azar
84
, sendo os envolvidos nesta prática, das mais diversas profissões, atividades
e idades.
A imprensa publicava na seção policial, outros indivíduos implicados no jogo
do bicho, que não foram apresentados nos documentos policiais:
Foram hoje chamados à presença do delegado do Distrito, Tenente-
coronel João leite, os indivíduos Antônio Cândido de Freitas, morador à rua
General Auto, 31; Estevam Ferreira morador à rua da Concórdia 32;
ambos implicados no jogo do bicho.
85
E assim, muitos indivíduos estavam envolvidos com o jogo do bicho em Porto
Alegre. O Relatório de Polícia, em julho de 1899, dizia:
...Os banqueiros e seus agentes fervilham e surgem em toda a parte. Estes
então, multiplicam-se e invadem todas as repartições públicas, o lar, as
oficinas, na fatal propaganda do vício denominado profundamente as suas
cartelas do bicho em troca de uma extorsão consciente e perversa. Segundo o
que tem chegado ao meu conhecimento, moços empregados no comércio,
artistas, operários até tem abandonado espantosamente as suas profissões
humanas para a vadiagem de vendedores de bichos, por causa de outros de
quem obtém rendosas porcentagens. Senhoras, aliás, respeitáveis, casadas,
solteiras e viúvas em grande número sobrevivendo das porcentagens de
banqueiros do bicho desnaturados, despuram, deploravelmente das suas
nobres preocupações, classes ricas e de casa tão religiosamente acatado no
82
Gazetinha, 31 mai. 1896.
83
Ver Gazetinha, 20 mar. 1899.
84
Ver Gazetinha, 03 set. 1896.
85
A Federação, 14 set. 1889.
39
seu sexo para darem-se de corpo e avulsa ao imoral comercio de passadoras
de cartelas de tão desastrado vício, sabendo mesmo que são publicamente
apanhadas sob o prosaico adjetivo de bicheiras.
86
Na opinião dos críticos, o jogo era visto como uma forma de vadiagem,
até mesmo para aqueles indivíduos que faziam dele, uma forma de ocupação e
ganha-pão. O discurso da exploração estava presente na expressão ‘rendosas
porcentagens’ que uns ganhavam com essa prática, enquanto outros apenas
sobreviviam, num momento em que não havia trabalho para todos. Nos jornais
não eram mencionados que os indivíduos precisavam desenvolver atividades
ilícitas para a sobrevivência. Para muitas mulheres que praticavam o jogo do
bicho, nem mesmo o adjetivo de bicheiras fazia desistí-las, uma vez que, essa
poderia ser a única forma de manter seu sustento.
no final do culo XIX, quando o jogo do bicho estava chegando ao Rio
Grande do Sul, havia interesse de pessoas de classes mais abastadas, em lucrar
grande quantidade com o jogo. Se não através de apostas, mas da manutenção de
casas e também do não pagamento do prêmio, quando o cliente fosse o ganhador:
Com este vos faço apresentar os cidadãos Felipe Lapporta, Manoel
Rodrigues de Lima e José Maria Mauro, todos incursos no artigo 369 do
Código Criminal, por terem estabelecido em lugar freqüentado e público, o
jogo de azar denominado dos bichos. Diversas vezes tenho aplicado a multa
de que trata o art. 08 da lei 405 de 18 de janeiro de 1857 e intimando-os a
não continuar com tão escandaloso jogo, verdadeira extorsão feita ao
incauto povo, pois que muitas vezes, jogando a quantia de quarenta e cindo
mil réis como jogou o cidadão Umpierre e tem sido vencedor o tigre,
devendo portanto receber novecentos mil réis, não somente os cidadãos
Lapporta e Mauro negaram-se a pagar o prêmio, como também a restituição
das importâncias dos bilhetes comprados por Umpierre.
87
Enquanto uns praticavam o jogo apenas por sobrevivência, ganhando
‘migalhas’, outros pensavam em adquirir fortuna, nem que para isso fosse preciso
negar o pagamento do prêmio ao vencedor. Multas e apreensões eram algumas
das práticas existentes na tentativa de extinguir o jogo da sociedade, mas não
resolviam, pois a paixão era maior.
Em Porto Alegre, o jogo se alastrou de tal forma, que os jornais registravam
sobre o vício: “todo mundo joga no bicho e em cada taberna existe uma banca;
numerosos agentes percorrem as ruas, batendo as portas e seduzindo até as
mulheres para que joguem. O vintém da criança, a esmola do mendigo, a economia
86
Delegacia de Polícia, códice 9, 28 jul. 1899. AHRS
87
A Federação, 10 dez 1897.
40
da costureira.”
88
O bicheiro arrecadava tudo, sem alma. Mas muitas vezes, com o
bicheiro sério circulavam os bicheiros falsos, vendendo bichos que jamais saíram. O
jogo estava criando fortes raízes “não são os homens que se entregam ao
pernicioso jogo, também as mulheres e, o que ainda é pior, a nossa juventude se
acha verdadeiramente enfeitiçada pelo imoral jogo, fazendo dela a sua ocupação
predileta.”
89
Isso questionava o real trabalho da justiça e tamm apresentava um
esboço dos futuros cidadãos porto-alegrenses. Os responsáveis pela repressão
tentavam evitar ou diminuir as possíveis desgraças resultantes da prática do jogo do
bicho.
Essa condição social era fruto das modificações econômicas e políticas, que
por sua vez, aumentavam as desigualdades. Os indivíduos, considerados excluídos,
buscavam formas de sobrevivência não compatíveis aos ideais das autoridades,
que reagiam com discursos moralizantes.
O discurso da moralidade aparecia, constantemente, nos jornais. A
população de Porto Alegre estava envolvida nos jogos e críticos anônimos
escreviam à imprensa. A Gazetinha publicava notícias relacionando o jogo do bicho
à ruína da cidade. Porto Alegre era considerada a ‘leal’ e ‘valorosa' cidade que
estava se transformando em um foco de perdição. Em todos os cantos (cafés,
praças) ouvia-se o barulho do jogo. Causava indignação aos críticos, o fato de Porto
Alegre ser a capital do Estado centro da segurança pública e autoridade e ter
mais locais de jogos que outras cidades menores. Os críticos parabenizavam “pela
maneira correta por que se conduzem às autoridades de Santa Maria que
inspirados no sagrado dever de sua missão, buscam varrer do seu seio o inimigo da
paz, do lar e da família o jogo”.
90
E não era apenas Santa Maria, mas também a
cidade de Rio Grande que, conforme a imprensa, em 1898 tinha extinguido as
bancas de jogos.
91
Por outro lado, Pelotas também possuía um grande banqueiro,
mas a polícia de estava de olho: “o sub-chefe de polícia major Euclydes Moura
enviou ao promotor, com um minucioso relatório, os autos de investigação feita a
88
Gazetinha, 30 ago. 1898.
89
Gazetinha, 27 ago. 1898.
90
Gazetinha, 21 mar. 1899.
91
Ver Gazetinha, 09 ago. 1898.
41
propósito da busca que deu no escritório comercial de Rosauro Zambrano, onde
apreendeu objetos e listas de jogo do bicho.”
92
Porto Alegre por ser capital, deveria,
na opinião dos críticos, servir de exemplo, extinguindo essa prática da sociedade.
Assim como as demais capitais brasileiras, Porto Alegre vivenciou a
existência de práticas contraventoras no final do culo XIX. Embriagados,
desordeiros, vadios eram algumas das características presentes na população da
época.
O jogo era considerado pela imprensa, um dos mais ‘venenosos cancros
sociais’. Causava desgraças a um grande número de indivíduos, e estes o levavam
para dentro de suas famílias. Quando se jogava, deixava de estar com a família, ou
se jogava com ela, e gastava o pouco dinheiro que tinha, ao invés de dar outro
destino a esse financeiro. O jogador viciava-se fácil e tornava-se propagandista do
jogo, podendo expandir esse ‘mal’ para outros elementos da sociedade. De jogador,
podia tornar-se ladrão e conseqüentemente assassino, por perder a vontade de
prosperar economicamente através do trabalho, uma vez que o jogo apresentava
um lucro fácil. Em outros casos, a família que gozava de bem-estar provindo da
riqueza, perdia-a no jogo e mendigava à sociedade. Isso quando não destinava
outras profissões às filhas, como a prostituição, para recuperar a sorte perdida.
93
.
Dessa forma, para a imprensa a jogatina era considerada o caminho mestre de
todos os problemas sociais, que poderia ter várias ramificações, dependendo da
condição vivida pelo jogador.
A preocupação com os danos que o jogo poderia causar na sociedade e
tamm nas famílias, era apresentado em discursos: o mais que estremeceis de
amor por vossos filhos -cuidai-os, institui em vossos lares caixas de economia,
estimulai-os a juntar e a ter aversão aos jogos, se quereis que eles mais tarde
sejam cidadãos úteis à Pátria e o prazer de vossos corações”.
94
As famílias eram
comovidas para a boa formação educacional de seus filhos, evitando que o jogo se
alastrasse por novas gerações, e justificando, o futuro da nação, como resultado da
moralidade. Possuir espírito de poupança auxiliava na prosperidade econômica de
um indivíduo, e aquele que sabia administrar os gastos pessoais com o financeiro
92
A Federação, 10 ago. 1900.
93
Ver Gazetinha, 03 set. 1896.
94
Gazetinha, 30 ago. 1898.
42
que possuía, auxiliava na redução dos problemas sociais, uma vez que, a maior
parte desses problemas, resultavam do baixo poder aquisitivo das pessoas.
Salienta-se que essa preocupação ficava quase no âmbito moral, que
as autoridades tentavam solucionar os problemas que muitas vezes fomentava a
esperança no jogo, mas não conseguiam. Não possuir interesse em tentar mudar
de vida arriscando, numa sociedade em que o próprio governo mantinha a atividade
do jogo, certamente era pedir demais.
O que havia de tão interessante que apaixonava as pessoas, viciando-as ao
jogo? Será por prazer da vitória? Pela ânsia do resultado após as apostas? O hábito
de repetir a prática? Curiosidade em conhecer o jogo? Busca de ascensão
financeira? Desejo de fazer o que é proibido? Crença na chance de ser bem
sucedido?
Herschmann e Lerner
95
dizem que, a contradição entre o discurso liberal e o
democrático presente na sociedade e a prática autoritária do Estado despertava nos
indivíduos, principalmente pobres, o interesse pelo jogo, que oferecia prazer e
segurança, uma vez que, os jogadores disputam com igualdade de chance e
possibilidades.
Analisando a presença do jogo do bicho no Brasil, é possível questionar a
afirmação de Gilberto Freyre, citada no início deste capítulo. Não se nega que essa
prática faz parte da cultura brasileira, mas que além do elemento cultural tamm o
fator econômico esteve presente no interesse das pessoas pelo jogo do bicho, uma
vez que este jogo nasceu da oferta de prêmios em dinheiro (vinte mil réis) tanto no
Jardim Zoológico, quanto em outros espaços pelo qual se espalhou. Acreditar que
por amor aos bichos este jogo alastrou-se em vários Estados, chegando ao Rio
Grande do Sul, em menos de uma década de sua origem e mantendo fiel existência
por mais de cem anos, não é possível. Conquistar tantos vendedores, jogadores e
até bicheiros, sem interesse econômico, certamente é ilusão. Qualquer amante de
bichos teria antes instalado um zoológico, do que casas de jogos. E não se
encontram tantos Jardins Zoológicos em Porto Alegre, em fins do século XIX,
quanto, casas de jogos. O indivíduo poderia até não conhecer os bichos, mas sabia
o momento certo de apostá-lo.
95
Ver Herschmann e Lerner, op. cit.
43
O jogo oferecia mais do que um refúgio financeiro. Quando ocorria à vitória,
amenizava as dificuldades da vida que, na esperança de ganhar a aposta, fugiam
da monotonia diária. Enquanto uns preferiam o álcool e a prostituição, outros
praticavam jogos. Isso, quando não praticavam ambos.
A fuga da luta cotidiana e a esperança de receber do jogo a sorte de melhoria
da vida, fomentava os jogadores otimistas que, num momento de insucesso,
acreditavam que a sorte estava por vir e, possivelmente, ganhariam no dia seguinte.
os pessimistas aumentavam as desilusões com as perdas e somavam outros
vícios maléficos (álcool) com o objetivo de esquecer o que perderam.
Porto Alegre, assim como o Rio de Janeiro, presenciou essa prática que,
segundo a imprensa
96
, muitas vezes, consumia o último tostão das famílias. Mesmo
querendo construir a capital, uma cidade disciplinar, ela não fugia de práticas
contraventoras, que cada vez mais se alastravam pela sociedade. Em locais fixos
ou ambulantes, o jogo passeava entre o discurso da ordem e o sonho de fortuna,
mesclados ao prazer por parte da população.
É difícil afirmar se o jogo do bicho, em Porto Alegre, ganhou primeiro crédito
da população pobre que depositava uns trocados na ‘fezinha’, atraída pela tentativa
de obter riqueza rápida e fácil, e depois foi se popularizando chegando a ser
conhecido pela elite que fazia grandes apostas; ou se iniciou pela classe mais
abastada, ganhando aos poucos a credibilidade dos pobres. Mas o certo é que em
Porto Alegre os locais de jogos, entre eles o jogo do bicho, não estavam nos
subúrbios e sim, bem ao centro, local de grande movimento e de fácil acesso tanto
aos funcionários de altos cargos públicos quanto aos pobres que vagavam pelas
ruas. Pode-se dizer que o local de disseminação do bicho foi fundamental para
firmar ‘raízes’ e presenciar os diferentes grupos sociais, espalhando-se por outros
espaços – os bairros.
O jogo do bicho foi se constituindo enquanto prática social, num momento de
consolidação e fragilidade republicana nacional. No mesmo tempo em que se
tentava instaurar uma nova ordem, lançando mão da coerção imperial, tentava-se
impor os valores europeus, promovidos pela elite dirigente do país. Essa fragilidade
na implantação do sistema era justificada através da intervenção do Estado na vida
publica e privada. As elites produziam discursos à imprensa na tentativa de formar a
96
Ver A Gazetinha 30 ago 1898.
44
consciência dos indivíduos urbanos, evitando que estes se entregassem ao lado
obscuro da cidade. Por outro lado, não havia uma preocupação com a condição de
vida dessas pessoas, mas somente com o seu envolvimento na prática de
atividades ilícitas, como o jogo do bicho, uma vez que isso não estava presente na
formação do cidadão, prescrita pela Constituição e prejudicava a formação de uma
sociedade disciplinada.
97
Dessa forma, percebe-se que o homem ao longo da história, participou de
atividades lúdicas. Indivíduos de todas as idades, sexo e até profissões, praticavam
os jogos de azar, entre eles, o jogo do bicho que driblou a imprensa e as
autoridades, espalhando-se pela sociedade e ampliando as modalidades de
apostas, fornecendo aos jogadores três prazeres a um custo: o sonho, a aposta e
talvez a vitória.
97
Ver Weber, op.cit.
2-- SONHAR, APOSTAR, E “TALVEZ” GANHAR
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária,
exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço,
dotada de um fim em si mesma,
acompanhada de um sentimento de tensão e de alegria
e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana.
Johan Huizinga
O jogo do bicho foi, cada vez mais, conquistando a simpatia do povo.
Jogadores, vendedores e banqueiros se entregavam a essa prática com o mesmo
objetivo, adquirir lucro. O sonho do enriquecimento era colocado em prática, através
das apostas e em caso de sorte, poderia aumentar os ganhos do jogador. Essa
trama sustentava a existência da prática do jogo do bicho e conquistava seus
adeptos. Portanto, sonhar, apostar e esperar o resultado era uma prática certeira na
vida de um jogador. Conhecer esse universo de interpretação dos sonhos e
modalidades de jogos, em Porto Alegre, no final do século XIX e início do XX,
traçando um paralelo com esses mesmos elementos, no Rio de Janeiro, é o que se
discute nesse capítulo.
Conforme o jogo do bicho ganhava dimensão, novas formas de apostas eram
possíveis. Alguns apostavam nas representações pelos quais cruzavam durante o
dia, ou simplesmente seguiam palpites fornecidos pelos vendedores ou publicados
nos jornais. Outros perseguiam o bicho até acertá-lo, ou então apostavam no bicho
esquecido, tentando equilibrar os resultados do sorteio em probabilidades
matemáticas. E havia até aqueles que seguiam os sonhos com interpretações
definidas.
A interpretação dos sonhos associada à simbologia de animais variava de
região para região. inúmeros autores que fornecem indicações de bichos, a
certos sonhos. Ari Madureira, Micael Herschmann e Kátia Lerner, Roberto da Matta,
Simone Simões Ferreira Soares
163
, e tantos outros citados nesse trabalho
apresentam alguns significados semelhantes e outros bem distintos. A seguir,
163
Ver Madureira, op. cit.; Herschmann, e Lerner, op.cit.; Da Matta e Soarez. op. cit.; Soares, op. cit.
45
explicita-se comentários sobre alguns sonhos: sonhar com criança, filho, gêmeos,
gravidez, parteira, jogava-se no coelho, pois este é o animal de rápida reprodução;
sonhar com adultério, divórcio, comadre, veneno, jogava-se na cobra, devido à
destruição através do veneno de sua boca (expressões); sonhar com telhado,
mãos, inimigo, cadeia, gaiola, bandido, jogava-se no gato que possui estas
habilidades; apostavam no leão quando sonhavam com rei, ou sol; no galo, quando
sonhavam com milho ou música. Para outros significados que existiam, não
encontra-se explicação: sonhar com papagaio jogava-se no macaco ou no cachorro;
sonhar com polícia jogava-se no jacaré ou no urso; sonhar com hotel jogava-se no
galo ou na vaca. E assim, muitos palpites eram fornecidos ao jogador.
Roberto da Matta e Elena Soárez dizem que:
...o sonho surge como fonte privilegiada de palpite. Nos sonhos visitamos
lugares desconhecidos; estabelecemos relações insuspeitadas; travestimos
pessoas, lugares e objetos; compomos música; falamos idiomas que não
sabemos; conversamos com mortos, voamos e vivemos debaixo d’água;
matamos e morremos.
164
Pode-se dizer então que existiam duas formas de processar o sonho como
palpite. Na primeira, o jogador recebe a mensagem direta da fonte, ou seja, aposta
no bicho sonhado ou identificado no sonho. Na segunda, o jogador traduz a fonte
para um bicho ou um algarismo e executa a aposta. Ex. Sonhar com gato caindo do
telhado. Gato não cai do telhado e, portanto, é um gato burro. Então, jogava-se no
burro
165
.
Sonhos eram transformados em bichos, e esses em números, (associados às
dezenas, centenas ou milhares da loteria). Se tivesse sorte no palpite, rendia algum
dinheiro, melhorando a vida do indivíduo. Essa trama infinita sustentava o vício. Por
um ou outro motivo, as pessoas acreditavam no jogo do bicho.
O elemento mágico dos sonhos unia-se à emoção. O sonho absorvia os
jogadores à prática dos jogos, devido ao prazer que gerava no indivíduo a espera
do resultado da competição. Sendo vitória ou derrota, a sensação de excitação
movia as pessoas que procuravam, no dia-a-dia, sinais para realizar suas apostas.
E depois aguardavam o sorteio para consumir esse sentimento.
164
Da Matta, op.cit., p. 115.
165
Soares, op.cit, p. 98.
46
Para os jogadores, as apostas estavam relacionadas ao que Herschmann
denominou de atribuições gico religiosas.
166
Acreditava-se que a fé, ligada à
sorte traria bons resultados. Até orações foram criadas para aumentar as chances
dos jogadores na ‘fezinha’. A religião ‘auxiliava’ os apostadores e vendedores do
jogo do bicho. Se não oferecia sorte, pelo menos participava da do jogador.
Nesta, não havia um pedido específico voltado à religião, mas unicamente ao jogo.
A preocupação do jogador em acertar o grupo, obter lucro, ficar longe do azar, dos
bicheiros falsos e da polícia, era lembrada constantemente, tanto pelos jogadores,
como pela imprensa que divulgava essa oração:
Bicho nosso, que estás na loteria sorteado seja teu grupo; venha a nós o teu
lucro, seja feita a nossa vontade, assim na sorte como no reconhecimento.
Dinheiro para a poule de cada dia nos dae hoje; livrai nos do azar, assim
como nós nos livramos dos bicheiros ladrões; não nos deixei cair nas mãos da
polícia e livrai nos dos banqueiros que fogem.
167
Uma semelhança com a oração do Pai Nosso, embora o texto estava
diretamente ligado à vida dos bicheiros, vendedores e apostadores. Essa oração
poderia não auxiliar em nada, mas alimentava a dos indivíduos envolvidos nessa
prática uma vez que se identificavam com a oração, por encontrar característica do
seu dia-a-dia. Depois do sonho, era a vez da oração para proteger a trama ilegal
que participavam.
E não eram apenas os porto-alegrenses que realizavam orações para
obterem sucesso no jogo do bicho. Roberto da Matta apresentou outra oração
encontrada.
Meu menino jogador, um baralho, sete cartas vós jogastes, todas sete vós
ganhastes, que me mostre o animal que tem que dar hoje. Já, já, já! Eu fiz
em nome de Deus Todo-Poderoso, meu Santo Jesus Cristo e minha mãe
Maria Santíssima e do divino Espírito Santo. Eu requeiro a alma de F. para
que ele venha à minha presença me mostrar o animal e me dizer a centena
da loteria de amanhã da primeira sorte...
168
O elemento religioso acompanhava aqueles que depositavam no jogo do
bicho. Nesta oração, todos os pedidos estavam voltados para a sorte. O auxílio para
os santos indicarem o palpite certo era solicitado. Até mesmo os mortos
participavam do jogo, eram transformados em espíritos protetores que tinham
166
Ver Herschmann e Lerner, op.cit., p. 73.
167
Gazetinha, 21 jun. 1898.
168
Da Matta e Soarez, op. cit., p. 119.
47
determinada ligação com os vivos e poderiam aparecer em sonho, insinuando
palpites infalíveis. Os jogadores cultuavam a alma dos mortos, no jogo, com a
esperança de mudar de posição social.
Quando os jogadores não tinham palpite para o jogo, os vendedores de
cartelas ofereciam algumas sugestões, capazes de conquistar os fregueses que os
esperavam ansiosos. O jornal O Independente publicou o discurso de um vendedor
(com a denominação de gralha) na execução de seu trabalho:
A freguesia que já espera essa visita matinal, esde corrida, moderna ou
moderníssima em punho, estudando a lição.
Entra o gralha e começa as cenas de palpitação.
-Bom dia!
-Bom dia.
-Então que temos pra hoje?
-Não sei. Eu hoje estou sem palpite...Sonhei com o gato do vizinho que
havia passado nas engolideiras a pombinha da Sinhá, mas o gato e a
pomba não saem hoje, saíram ontem.
O gralha que não tem tempo a perder diz:
-Eu vou dar o meu palite, d. Sinforosa. Essa noite eu sonhei com um buraco
muito fundo, mesmo muito fundo e escuro; ora em buraco, mora o tatu, logo
buraco é tatu.
-Homem é verdade, então sai mesmo o tatu. Dê-me 200 reis no tatu, pela
moderníssima, mais 200 pela corrida e 200 pela moderna.
O gralha passa o talão recolhe o cobre e ala o vôo em demanda de outra
casa, onde vai palpitando até terminar os 25 bichos das 3 listas. Ele deu 24
palpites e saiu exatamente o que ele o palpitou. Isso em nada altera o
jogo do dia seguinte e a palpitação do gralha na corrida, moderna ou
moderníssima.
169
As pessoas poderiam não ter palpite, mas aguardavam o vendedor do jogo
do bicho e depositavam uma certa quantia no animal palpitado. Além de acreditar
no jogo do bicho, confiavam no vendedor, aceitando suas sugestões, sem perceber
que jamais este daria o mesmo palpite a várias pessoas, porque o excesso de
apostas num bicho, poderia trazer prejuízo ao vendedor, caso o bicho fosse
sorteado, uma vez que o prêmio não era dividido entre os apostadores.
Palpite era o que todo jogador gostava. Roberto da Matta e Elena Soárez
fizeram um estudo antropológico sobre o jogo do bicho e relataram que em outros
tempos, isso também acontecia. Numa das entrevistas realizadas com um jogador,
este sugeriu o número da matrícula, no mestrado da pesquisadora, como palpite
para o jogo.
“Depois que ela esclareceu sua presença, o jogador perguntou o número
de sua matrícula no curso de mestrado do Museu Nacional, pois, segundo
ele, tal mero certamente configurava um bom palpite. Diante da
169
O Independente, 14 jun.1903.
48
impossibilidade de lembrar o número, Elena Soárez foi indagada sobre
outros algarismos que faziam parte de sua identidade, como a placa do
seu carro, que era 5721 – milhar na cabra.
170
Simone Soares dizia: “Um carro de marca diferente, ao passar diante de um
jogador, terá sua placa imediatamente anotada”.
171
Qualquer número que tivesse
ligação com um indivíduo ou que cruzavam durante o dia, era relacionado a um
bicho e servia de palpite para o jogo: idade das pessoas, placas de carro, mero
de ruas, ano do nascimento. Tudo isso sugeria algum tipo de sorte para o indivíduo
viciado no jogo do bicho.
Enquanto uns aguardavam a sorte através da fé e dos palpites, outros davam
um jeito para conquistá-la. “O Affasta (...) tem estado de uma sorte! No dia do urso
tinha também no cachorro. Ganhou nos dois”
172
Certamente isso não foi sorte, pois
acompanhando a publicação no jornal, o urso foi o resultado fornecido pelo
telegrama, e o cachorro foi o animal sorteado. Para acertar o palpite certo e o
errado, o Affasta deveria ter feito várias apostas, diferente de outros indivíduos que
apostavam em apenas um bicho. O que muitos pensavam ser sorte poderia ter sido
apenas excesso de palpite.
Muitos jogadores viciados nessa prática, mesmo sem dinheiro, não
conseguiam conter as apostas. Espertos, buscavam outra forma de realizar a
‘fezinha’: a malandragem. O Affasta, jogador de carteirinha’, fez isso no pagamento
com vales, e deixou grande prejuízo ao bicheiro que, por sua vez, não pôde mais
ser vendedor de cartelas.
O Affasta tem se aperfeiçoado na arte... de enganar. Assim é que o homem
durante a semana toda, comprou diariamente cinqüenta bilhetinhos
repartidamente no gato e no porco e em pagamento passou vales que
resgataria oportunamente. O banqueiro do bicheiro opôs embargos à
ligeireza, mandando fechar a igrejinha dos bichos. Resigna-se ao prejuízo
que lhe deu o Affasta – Jamais, nunca!
173
A crença na ascensão social movia a paixão pelas apostas. Os apostadores
inventavam de tudo para se aproximar da sorte. Mas sabe-se que esse jogo
dependia exclusivamente da sorte, não sendo fiel nenhum dos meios de apostas
170
Da Matta e Soarez, op.cit,. p. 117.
171
Soares, op. cit., p. 169
172
Federação, 29 ago. 1898.
173
Federação, 25 mai. 1898.
49
citadas anteriormente. O mero de acertos ou perdas, não influenciava os futuros
resultados e a era o pilar que sustentava a esperança do apostador em vencer,
que para isso, realizava até orações. O destino não era possível prever. Azar ou
sorte era apenas o resultado do risco que o indivíduo tinha sobre sua aposta.
Os jogadores acreditavam influenciar o destino do jogo. Orações à Senhora
Fortuna facilitavam a obtenção de ganhos a todos: bicheiros, vendedores e
apostadores. Comprava-se a esperança num bilhete de apostas. A superstição
fomentava o jogador.
O destino era previsto quando a ‘máfia’ dos banqueiros auxiliava nos
sorteios e neste caso, nem a famosa ‘fezinha’, com orações à ‘Senhora Fortuna’,
poderia ajudar no resultado. Isso ocorria constantemente, principalmente, no final
do século XIX, quando o jogo do bicho chegou em Porto Alegre e os resultados
vinham do Rio de Janeiro sem muita tecnologia. Alguns sabiam o resultado do jogo
do bicho antes de chegar na capital do Rio Grande do Sul, outros, informavam aos
porto-alegrenses, resultados diferentes do sorteado.
174
Até mesmo porque essa
prática era ilícita, portanto não havia a quem recorrer quando ocorressem fraudes.
Uma espécie de confiança mágica ocorria tanto com os apostadores, quanto
com os banqueiros, que investiam como se fosse a lei de mercado em que os
bichos eram cotados. A modernidade do capitalismo se juntava ao selvagem e
mostrava que o jogo do bicho também se adequava ao sistema: Se um banqueiro
pode falar seriamente em investimento, se um político elabora um projeto de lei
inspirado no liberalismo, o jogo do bicho apresenta uma versão popular, barata, e
realista dessas coisas.“
175
O jogo do bicho além de ter formado um universo social de grupos de
interesse econômico, também se inseriu como cultura, formada a partir de um
sistema. Para Geertz “em vez de a cultura funcionar simplesmente para
suplementar, desenvolver e ampliar capacidades organizadamente fundada, lógica
e genericamente, anteriores a ela, ela própria parece ser o ingrediente dessas
capacidades”.
176
Ou seja, o jogo do bicho não era uma prática que resultava da
174
Ver A Federação, 22 ago. 1898.
175
Matta e Soarez, op. cit. p. 34.
176
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 80.
50
ignorância da população, mas estava inserido num sistema político e econômico
que facilitava a sua permanência na sociedade.
Os jogadores se esforçavam por traduzir as representações dos animais.
Havia a humanização da natureza na tentativa de mudar o curso da vida dos
indivíduos, através da depositada nos bichos e no bicheiro. Mesmo com um
sistema de categorias sociais hierarquizadas, configurado a partir do jogo do bicho,
havia esperança dessa prática ser uma alavanca para a mobilidade social. Nesse
sentido, o jogo do bicho adquiriu um conjunto de significados: a probabilidade, o
jogo da sobrevivência, o prazer da aposta, o credo divino, e a mudança de destino.
Tudo isso, levou o indivíduo a conspirações e desejos, mantidas mesmo na
racionalidade de um jogo.
Dessa forma, o jogo do bicho foi se definindo em Porto Alegre. Sonhar,
apostar e talvez ganhar, era o que fomentava o indivíduo na prática desse jogo. E o
sonho quase sempre era duplo: primeiro sonhavam com algo que pudesse ser
relacionado com algum animal; depois ficavam sonhando num possível resultado do
prêmio que poderia mudar a vida do indivíduo. Esse sentimento ajudava o tempo
passar para aqueles que encontravam no jogo do bicho, mais do que uma chance
de ascender-se financeiramente, um momento de prazer. Assim, a sociedade porto-
alegrense se identificou com o jogo e mesmo o resultado vindo do Rio de Janeiro,
esses criaram logo a tabela e as modalidades próprias para seus bichos, conforme
se apresenta no sub-capítulo a seguir.
2.1-Um número, vários animais: adaptações ao jogo do bicho
O jogo do bicho criado aqui no Brasil teve diferenças de uma região para
outra. A tabela apresentada no primeiro capítulo desse trabalho, não era a mesma
das apostas no Rio Grande do Sul.
Analisando o relatório, as cartelas e demais materiais presentes nos
processos-crimes de Josino Barreto, Manoel Rodrigues de Lima, Joaquim Martins
51
Flores e Agostinho Rosa
177
foi possível elaborar a tabela do jogo do bicho, no Rio
Grande do Sul, com a linguagem da época, especificando os animais que
pertenciam a cada grupo. o se sabe quem criou essa tabela e nem como foi
constituída a lista dos bichos, mas o certo é que não resultou de um Jardim
Zoológico, como no caso do Rio de Janeiro, uma vez que, o boi, o porco, o
cachorro, o gato e o rato, dificilmente seriam atração em um Zoológico. Mas pode-
se dizer, que a tabela carioca serviu de exemplo para os rio-grandenses, que
adaptaram os animais às peculiaridades locais e aos significados simbólicos que
muitos deles possuem, ou até, ao envolvimento com textos bíblicos ou históricos.
Tabela 3 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade corrida.
TIGRE 1
01-02-03-04
PERU 2
05-06-07-08
CACHORRO 3
09-10-11-12
ABESTRUZ 4
13-14-15-16
CERVO 5
17-18-19-20
BOI 6
21-22-23-24
VEADO 7
25-26-27-28
CAVALLO 8
29-30-31-32
GATTO 9
33-34-35-36
OVELHA 10
37-38-39-40
RATTO 11
41-42-43-44
CAMELO 12
45-46-47-48
PORCO 13
49-50-51-52
BURRO 14
53-54-55-56
COELHO 15
57-58-59-60
MACACO 16
61-62-63-64
TATU 17
65-66-67-68
LEÃO 18
69-70-71-72
POMBA 19
73-74-75-76
ELEPHANTE 20
77-78-79-80
GIRAFA 21
81-82-83-84
URSO 22
85-86-87-89
CABRITO 23
89-90-91-92
GALLO 24
93-94-95-96
ÁGUIA 25
97-98-99-00
Fonte: Processos-crimes, maço 2, nº 42 e 46, 17 ago. 1898 e 16 de ago.1898; maço 3, nº 48, 27 mai.
1898; e maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.
Comparando a tabela acima que representa o jogo do bicho rio-grandense,
com aquela apresentada no primeiro capítulo desse trabalho, representando o jogo
do bicho do Rio de Janeiro, percebe-se que a ordem das dezenas era a mesma,
apenas mudava o grupo e alguns animais, como é o caso do cervo, boi, ovelha,
rato, tatu, pomba, girafa e cabrito da tabela do Rio Grande do Sul que não estavam
presentes na tabela carioca, enquanto outros, como: borboleta, cabra, carneiro,
cobra, jacaré, pavão touro e vaca apareciam na tabela carioca, mas ficavam de fora
na tabela do Rio Grande do Sul. Alguns desses animais eram da mesma família e
mudavam apenas o sexo, de uma região para outra: a ovelha, o cabrito e o boi da
177
Processo-crime, nº 48, Maço 03, 27 mai. 1898. APERS.
52
tabela do Rio Grande do Sul são, respectivamente, da mesma família do carneiro,
da cabra e da vaca ou do touro, presentes na tabela do Rio de Janeiro. Dessa
forma, se um indivíduo sonhava com um dos animais que não existia na tabela rio-
grandense, deveria apostar no animal correspondente que se encontrava nessa
tabela. Outra diferença era que os bichos da tabela porto-alegrense não estavam
em ordem alfabética, como na tabela carioca.
A tabela acima que representa a aposta no grupo, era uma das muitas que
existiam. O jogo do bicho, em Porto Alegre, oferecia outras modalidades de
apostas, como a Moderna e a Moderníssima que estavam no panfleto Palpite Para
Todos, anexado no processo-crime de Agostinho Rosa.
Tabela 4 Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade moderna e
moderníssima.
Moderna Modernissima
TIGRE 01 26 51 76 TIGRE 01 27 53 79
PERU 02 27 52 77 PERU 02 28 54 80
CACHORRO 03 28 53 78 CACHORRO 03 29 55 81
ABESTRUZ 04 29 54 79 ABESTRUZ 04 30 56 82
CERVO 05 30 55 80 CERVO 05 31 57 83
BOI 06 31 56 81 BOI 06 32 58 84
VEADO 07 32 57 82 VEADO 07 33 59 85
CAVALLO 08 33 58 83 CAVALLO 08 34 60 86
GATTO 09 34 59 84 GATTO 09 35 61 87
OVELHA 10 35 60 85 OVELHA 10 36 62 88
RATO 11 36 61 86 RATO 11 37 63 89
CAMELLO 12 37 62 87 CAMELLO 12 38 64 90
PORCO 13 38 63 88 PORCO 13 39 65 91
BURRO 14 39 64 89 BURRO 14 40 66 92
COELHO 15 40 65 90 COELHO 15 41 67 93
MACACO 16 41 66 91 MACACO 16 42 68 94
TATU 17 42 67 92 TATU 17 43 69 95
LEÃO 18 43 68 93 LEÃO 18 44 70 96
POMBA 19 44 69 94 POMBA 19 45 71 97
ELEFANTE 20 45 70 95 ELEFANTE 20 46 72 98
GIRAFA 21 46 71 96 GIRAFA 21 47 73 99
URSO 22 47 72 97 URSO 22 48 74 00
CABRITO 23 48 73 98 CABRITO 23 49 75 76
GALLO 24 49 74 99 GALLO 24 50 51 77
ÁGUIA 25 50 75 00 ÁGUIA 25 26 52 78
Fonte: Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.
Os porto-alegrenses tinham diversas formas de apostas para tentar a sorte.
Nas modalidades moderna e moderníssima havia algumas regras de aposta citadas
no panfleto de propaganda: “qualquer bicho 30$000 por 1$000 com exceção do
53
porco que é 25$000 por 1$000”
178
. Dessa forma, a cada 1$000 de aposta o
ganhador receberia 30$000, com exceção do porco que valia menos, apenas
25$000.
Além dessas, existia outra modalidade de aposta que o constava título no
panfleto de propaganda. Nessa modalidade de jogo, existia 33 grupos e cada grupo
era composto por apenas 3 dezenas e representava um animal, existindo assim um
número maior de animais. Ao final da tabela era citado: final 00 50$000 por
1$000”
179
sendo que a cada 1$000 apostado, o ganhador receberia 50$000, mas
não encontra-se o animal correspondente à dezena 00.
Tabela 5 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade não identificada
01 34 67
AVESTRUZ
12 45 78
CERVO
23 56 89
OVELHA
02 35 68
AGUIA
13 46 79
CAMELO
24 57 90
PERU
03 36 69
BURRO
14 47 80
ELEFANTE
25 58 91
PAVÃO
04 37 70
BOI
15 48 81
GATO
26 59 92
POMBA
05 38 71
BORBOLETA
16 49 82
GIRAFA
27 60 93
PORCO
06 39 72
COBRA
17 50 83
GALO
28 61 94
PAPAGAIO
07 40 73
CACHORRO
18 51 84
JACARÉ
29 62 95
URSO
08 41 74
CAVALO
19 52 85
LEÃO
30 63 96
TIGRE
09 42 75
CORVO
20 53 86
LOBO
31 64 97
TATU
10 43 76
CABRITO
21 54 87
LONTRA
32 65 98
VEADO
11 44 77
COELHO
22 55 88
MACACO
33 66 99
ZEBRA
Fonte:Processo-crime maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.
Essa deveria ser uma modalidade de aposta pouco procurada pelos
jogadores, um vez que, a imprensa não divulgava essa modalidade de aposta, e o
jogador tinha 25% a menos de chance de ganhar, devido ao animal que possuía
somente 3 dezenas, enquanto que nas outras modalidades de apostas, o animal
era representado por 4 dezenas.
A imprensa indicava três modalidades de apostas: moderna, moderníssima e
corrida, conforme se visualiza na referência a seguir, em que os vendedores do jogo
do bicho foram denominados aves de arribação, pois apareciam à população para
vender o bicho e nem sempre voltavam para efetuar o pagamento, no caso do
apostador acertar o animal.
E o mais ou menos essas as aves de arribação que dia a dia nos aparece
nesse grande viveiro de raridades a perguntar-nos:- qualquer: a moderna,
178
Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.
179
Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.
54
moderníssima, ou a corrida? E se algum ingênuo deixa-se encantar nos
melidiosos gorjeios dessas aves, o negócio é certo –nem é corrida!
180
Dessas três modalidades de apostas, pode-se dizer que a corrida tamm
era a conhecida como aposta no grupo, uma vez que o resultado sempre era
informado pelo número do grupo com seu respectivo animal.
As apostas eram variadas. Os jogadores poderiam apostar em um animal
que representava o grupo, com algumas dezenas ou apostar em uma dezena que
correspondia a um animal. Assim, o mero deixava de ser quantidade (apenas
número) e passava a ser um símbolo (animal). Os indivíduos também poderiam
escolher a modalidade de aposta, fornecendo aos animais os mais variados
números. Após o sorteio do prêmio da loteria federal, no Rio de Janeiro, os
resultados eram repassados aos Estados. O Estado do Rio Grande do Sul adaptava
os resultados às modalidades de apostas prescritas nas tabelas e nas terminações
das dezenas apostadas para saber o ganhador.
Portanto, se o número sorteado fosse 4109, o ganhador seria o indivíduo que
apostou no grupo 9, saindo então o gato, ou na terminação 09, representado pelo
cachorro. Assim também, todos os meros sorteados com terminações em 09
teriam o respectivo resultado. Os jornais sempre faziam referência ao grupo e não
nas dezenas.
As diferentes modalidades de apostas apresentavam diferentes valores em
prêmios: enquanto a aposta no grupo fornecia o prêmio de até vinte vezes o referido
valor apostado, a aposta na moderna e moderníssima ampliava o prêmio para 30
vezes, com exceção no grupo do porco em que o prêmio era de 25 vezes o valor
apostado.
Outras modalidades de apostas, no jogo do bicho, surgiram conforme o jogo
conquistava apostadores. Hoje um indivíduo tem 21 modalidades diferentes para
escolher na hora de jogar e cada uma paga um valor diferente, de acordo com a
quantia apostada.
181
Na capital carioca do início do século XX, o jogo do bicho possuía
característica diferenciada de Porto Alegre: a tabela dos bichos não era a mesma e
o mero de modalidades de apostas fornecidas ao jogador era bem maior.
180
O Independente, 14 jun. 1903.
181
Ver Soares, op. cit. p. 177-191.
55
Herschmann e Lerner dizem que no Rio de Janeiro podia se apostar no antigo,
salteado, Rio, buraco, moderno, lotto, talismã da sorte, etc, todos com premiação
distinta”.
182
Observa-se que um mesmo mero pertencia a um referido grupo e este
representava vários animais, de acordo com as tabelas de cada região ou com as
modalidades de apostas. O indivíduo poderia jogar no grupo, na moderna,
moderníssima ou outra modalidade o nomeada nos documentos. Além dos
interesses pelas modalidades, os jogadores também escolhiam os animais que
representavam sorte. Analisando a documentação pesquisada, pode-se conhecer
os animais mais apostados pelos jogadores de Porto Alegre.
Tabela 6 – Animais mais apostados pelos jogadores em Porto Alegre.
Dias de
jogado-
res
Bicho mais
jogado
(vezes)
Bichos menos
jogados
(vezes)
Bichos não
jogados
Apostas em
terminações
Valor total
das
apostas
10/12/1897 30 Burro (4) Águia (1)
Peru (1)
Porco (1)
Cabrito (1)
Elefante (1)
Camelo (1)
Cachorro (1)
Tigre
Leão
Veado
Ovelha
Coelho
Girafa
____ 67$050
05/04/1898 04 Galo (1)
Ovelha (1)
Cavalo (1)
Elefante (1)
Gato (1)
___ Todos os
bichos que
não
constam na
lista dos
mais
jogados
____ 12$500
08/05/1898 01 Coelho (1)
Águia (1)
___ Todos os
bichos que
não
constam na
lista dos
mais
jogados
____ 1$000
10/05/98 08 Gato (4) Cavalo (1)
Burro (1)
Aguia (1)
Porco (1)
Veado (1)
Galo (1)
Coelho (1)
Peru
Cachorro
Avestruz
Cervo
Boi
Camelo
Macaco
Leão
Urso
Term. 35 19$000
182
Herschmann e Lermer, op.cit., p. 69.
56
Girafa
Pomba
Elefante
11/05/1898 08 Cabrito (4) Gato (1)
Porco (1)
Rato (1)
Tigre (1)
Macaco (1)
Elefante (1)
Tatu(1)
Peru
Cachorro
Avestruz
Cervo
Boi
Veado
Ovelha
Camelo
Coelho
Leão
Pomba
Girafa
Urso
Galo
Águia
Term. 23
Term. 23
Term. 89
22$000
12/05/1898 09 Tatu (2)
Cabrito (2)
Veado (2)
Galo (2)
Camelo (1)
Cachorro (1)
Burro (1)
Elefante(1)
Gato (1)
Todos os
bichos que
não
constam
nos mais
ou menos
jogados.
Term. 48 29$500
14/05/1898 12 Tatu (5) Burro (1)
Veado (1)
Coelho (1)
Tigre
Peru
Avestruz
Cachorro
Cervo
Boi
Ovelha
Camelo
Porco
Macaco
Leão
Pomba
Girafa
Urso
Galo
Águia
Term. 23, 32 44$000
16/05/1898 06 Gato (3)
Ovelha (3)
Rato (1)
Burro(1)
Cabrito (1)
Veado (1)
Coelho (1)
Cervo(1)
Galo (1)
Camelo(1)
Tigre (1)
Cachorro(1)
Elefante (1)
Peru
Avestruz
Boi
Porco
Macaco
Tatu
Pomba
Girafa
Urso
Águia
Term. 23, 32 17$500
17/05/1898 05 Cavalo (2) Urso (1)
Tatu (1)
Coelho (1)
Cachorro (1)
Todos
aqueles
bichos que
não
constam na
lista dos
mais ou
menos
____ 9$500
57
jogados.
19/05/1898 08 Gato (2) Galo (1)
Cavalo(1)
Elefante (1)
Burro (1)
Coelho(1)
Veado (1)
Rato (1)
Cabrito (1)
Todos os
bichos que
não
constam na
lista dos
mais ou
menos
jogados.
Term. 82 21$500
21/05/1898 04 Coelho (1)
Macaco (1)
Ovelha (1)
Cachorro (1)
Leão (1)
___ Todos que
não
constam na
lista dos
mais
jogados
____ 4$000
Fonte: Processos crimes nº42, 46 e 48, maço nº 02 e 03, 17 ago. 1898,
16 ago. 1898 e 27 mai. 1898, respectivamente. APERS.
Entre os documentos pesquisados, observa-se que a maioria dos jogadores
apostavam no grupo, poucos eram aqueles que apostavam nas terminações, e
quando faziam isso, coincidentemente apostavam também no veado e no cabrito.
Nos onze dias que foram realizadas as apostas, os bichos mais procurados pelos
apostadores foram o gato com 18 apostas e o tatu com 13 no grupo, e o boi com 4
apostas nas terminações. A girafa não foi apostada nenhuma vez no grupo, apenas
nas terminações e o peru apenas 1 vez no grupo. Simone Simões analisou a
preferência dos jogadores por determinados animais, acompanhando as apostas,
em uma casa de jogo de Fortaleza, durante 40 dias e constatou que “apenas em
dois dias, 29 de janeiro e 14 de fevereiro, houveram apostas em todos os 25 bichos.
Nos outros dias, encontram-se bichos não jogados”.
183
Muitos jogadores não tinham
preferência fixa por determinado animal. Eles analisavam os sonhos e os animais
sorteados em um curto espaço de tempo.
Dos animais apostados, o tigre recebeu o valor mais baixo, apenas 2$000 em
quatro apostas, tendo uma média de $500 por aposta. no elefante, eram
depositados altos valores, ou seja, 39$000 em 9 apostas, ficando com média de
4$500 por aposta. Essa variação de investimento gerava também variação de
prêmio, no caso do jogador acertar a aposta.
Além do jogo do bicho fornecer algumas modalidades de apostas,
diferenciava-se da loteria federal, por pagar aos ganhadores de acordo com a
183
Soares, op.cit., p. 190.
58
quantia apostada, enquanto a loteria fazia rateio do prêmio, entre os ganhadores.
Essas talvez eram algumas das motivações que fomentavam os jogadores para
deixar de lado a loteria e apostar no jogo do bicho.
Os animais apostados e apresentados na tabela anterior não foram
publicados na imprensa, apenas estão presentes nos processos-crimes arquivados
na documentação de polícia, mas mesmo assim, visualiza-se um grande auxílio,
prestado pela imprensa, aos jogadores: ora divulgando o resultado do jogo ou
alguns ganhadores e ora criticando a prática e mostrando o lado negativo. O certo
era que em ambos lembrava o leitor da existência da prática, como mostra na
divulgação de que “a grande sorte tornou rico, de um dia para o outro, o empregado
do palácio”
184
. Talvez o valor adquirido não chegava a uma grande fortuna, mas
pode-se concluir que os responsáveis pela administração também depositavam
no jogo do bicho e com isso ganhavam um dinheiro, além de possuírem créditos
com a ‘Senhora Fortuna’, que fazia o pagamento aos empregados do palácio
através da sorte nos jogos. Se para a imprensa divulgar o ganhador era sinônimo
de que esse jogo o seria confiável, para a população, poderia ser uma forma de
estimular a prática e para os bicheiros, essa poderia ser uma excelente
propaganda. Nos versos publicados pela Gazetinha, na seção Palestra, entre dois
velhos”, foi possível visualizar isso:
Precisando de dinheiro
Do bicho lembrei-me logo
E risonho, prazenteiro
Na bicharia me afogo
Fui na pomba um patação
Neste dia saiu boi
Fui porco, fui burro, fui cão
E a cobra tamm se foi
Mas homem, não és criança,
Não compres mais o tal bicho,
Mas que quer? Tenho esperança
De ganhar... É um capricho
Capricho perder dinheiro?
Loucura quadra melhor,
Enquanto ganha o bicheiro
Tu vais de mal a pior.
Mas onde compras o tal,
Não é segredo de certo?
Quem te vende o animal?
184
Gazetinha, 21 mai. 1896.
59
Diz-me o nome desse esperto.
É um homem pequenino
Que se encontra num cartório
Na ladeira, ele é franzino
E faz papel de casório...
-Vende bicho o advogado?
-Não compadre, advoguerio,
O negócio está parado
E ele quer ganhar dinheiro
185
A oposição de pensamento sobre o jogo do bicho, citada em versos,
favorecia tanto como estímulo aos jogadores que buscavam auxilio financeiro,
embora nem sempre ganhavam; quanto aos críticos que, além de discursar
moralmente à sociedade, apresentando o prejuízo que este jogo trazia, divulgavam
mais um vendedor para auxiliar o trabalho da polícia. E poderia até fornecer palpite
de jogo, uma vez que informava o animal que saiu no dia em que ele apostou em
outros.
Dessa forma, percebe-se que os jornais tiveram grande participação na
permanência e no alastramento do jogo do bicho pela sociedade. A divulgação de
sonhos, de palpites, modalidades de apostas, de resultados do bicho ou números
da loteria, e a críticas sobre a existência dessa prática, contribuiu para o seu
sucesso. Os versos atraíam o público leitor e os porto-alegrenses, em pouco tempo,
adquiriram um novo hábito: jogar no bicho. A elaboração de uma tabela própria com
animais diferentes da tabela do Rio de Janeiro, comprovou a paixão pelo jogo,
embora neste trabalho não foi possível identificar seu autor e nem explicar a
seleção de bichos presente nela.
Por ser uma ‘válvula de escape’ fácil, acessível e confiável (passatempo) a
essa sociedade com a rotina diária de trabalho, ou sem ele – vagando pelas ruas-, e
até por se tratar de uma possibilidade de ascensão social, em diversas modalidades
de apostas, com altos ou baixos valores e riscos - caso a sorte chegasse -, a
jogatina conquistou o público que depositava nela a ‘fezinha’.
A ordem da virada do século XIX para o XX, fundada na ética do trabalho, no
esforço pessoal, no abandono do lazer pelo emprego, na busca de um futuro
incerto, foi invadida por uma alternativa de ver a vida como destino. O jogo do bicho
chegou criando códigos que se decifrados, poderia mudar a vida do indivíduo. Mais
185
Gazetinha, 17 ago. 1898.
60
do que uma prática cultural, o jogo do bicho estava inserido num sistema. Neste, o
sonho de ascensão econômica fornecia um novo sentido à vida do indivíduo: os
acontecimentos desagradáveis eram traduzidos em palpites e esses, emmeros e
animais que poderiam trazer prazer e sorte e perdurar até que as autoridades
administrativas e policiais não fizessem interferência, como se apresenta no
próximo capítulo.
3- O INVENCÍVEL JOGO DO BICHO – Legalizado ou proibido?
Não vemos, efetivamente, que necessidade haveria de se proibir
o que ninguém deseja realizar. Aquilo que se acha severamente
proibido, tem que ser objeto de um desejo.
Freud
Desde as primeiras sociedades referencia-se a presença dos jogos de azar.
Rui Barbosa mostra que os jogos de azar estavam presentes na sociedade desde a
antiguidade: “Alexandre, o Grande, jogou. Fox jogava. Tamm jogava Napoleão III.
Barão do Cotegipe gostava de jogar
209
. Outros tantos jogaram por prazer, vício ou
até competição. Nesta ocasião, os jogos serviam para estreitar laços coletivos,
principalmente nos momentos de festas, pois o trabalho não ocupava tanto tempo e
nem visava lucro, apenas a sobrevivência.
No período medieval, os jogos tamm estavam presentes em festas de
escola e da juventude: brigas de galo, jogo de bola a dinheiro, juntamente com
músicas, danças e representações dramáticas, recheavam as festas, misturando as
idades. Somente a Igreja condenava os jogos (sem exceção), privilegiando as
atividades domésticas e intelectuais. Mas mesmo proibidos, eram jogados: “os
estudantes, assim como os outros meninos, não tinham o menor problema em
freqüentar as tavernas e os bordéis, em jogar dados e dançar”
210
Naquele período,
as escolas eram conduzidas pelo clero: as proibições não representavam eficácia.
Os centros de moralização conviviam com os delitos de jogos a dinheiro. A
preocupação em educar os jovens era maior do que apenas evitar o jogo. Muitas
atividades de lazer eram proibidas: jogos de azar, de salão e esportivos, comédias e
danças. Acreditava-se que não existiam divertimentos inocentes. Como era difícil
controlar os leigos, a Igreja tentava controlar os clérigos, embora em alguns
209
BARBOSA, Ruy. Ruínas de um Governo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1931, p. 171.
210
Ver Áries, op.cit. p 111.
61
momentos desenvolvia jogos paroquiais, como passatempo, ou com apostas de
uma fruta ou uma jarra de vinho
211
.
Por volta do século XVII, na Europa, os jogos foram classificados como bons
ou maus: uma preocupação antes conhecida de preservar sua moralidade e
tamm de educá-la, proibindo-lhes os jogos então classificados como maus, e
recomendando-lhes os jogos então reconhecidos como bons”
212
. Moralistas uniram-
se ao clero para condenar aqueles jogos considerados maus. Isso, sem considerar
que o universo do jogo de azar era contraditório enquanto uns (pobres) tinham
tudo a ganhar e jogavam pouco, outros (ricos) tinham tudo a perder e jogavam
fortunas. Philippe Ariès apresenta a contradição do jogo: “o jogo produz bons efeitos
quando o jogador se comporta como um homem hábil e de boa vontade: é através
dele que um homem pode ter acesso a toda parte onde se joga e os príncipes,
muitas vezes, se entediariam se não pudessem jogar
213
Durante longo tempo, as atividades lúdicas andaram distante da lei. Mas, nos
tempos modernos, com a invenção da sociedade do trabalho como sinônimo de
progresso e boa moral
214
, os jogos foram proibidos, tanto na Europa, quanto no
Brasil (que absorvia seus valores).
A falta de moral dos jogadores difundia, na sociedade, o sentimento de que o
jogo era uma paixão perigosa, um vício grave, sendo necessário proibi-lo. Mas
alguns jogos, como cartas e xadrez, não estavam sujeitos à condenação, porque
segundo Huizinga “não dependiam exclusivamente da sorte, mas sim, da habilidade
dos jogadores”.
215
, Distinguiram então, os jogos permitidos dos proibidos: enquanto
os primeiros eram liberados, estes últimos, juntamente com embriaguez e
211
Ver Idem.
212
Ibidem, p. 104.
213
Ibidem, p.106.
214
Por ‘moral’ entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos
grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições
educativas, as Igrejas, etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explicitamente formulados
numa doutrina coerente e num ensinamento explicito. Mas acontece também delas serem
transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo
complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo
assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar ‘código moral’ esse
conjunto prescritivo. FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol. II: O uso dos prazeres.
Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.26.
215
Huizinga, op. cit., p. 42.
62
prostituição, tornaram-se contravenção. Essa distinção também foi alçada às
crianças e aos adultos, aos fidalgos e aos vilões. Normas de convivência foram
criadas para coibir os comportamentos indesejáveis.
No Brasil, o governo de Floriano Peixoto (1891-1894) foi um período
extremamente conturbado, ele, para se preservar de possíveis ataques tolerava os
jogos: enquanto se jogava não se conspirava”
216
. Dessa forma, o jogo auxiliava a
administração, era um apaziguador social.
Logo, quando o jogo fez ‘movimentar a cidade’, foi necessário a intervenção
da polícia, proibindo as loterias e, com elas, outros jogos de azar, vistos como
atividades degradantes e desestabilizadoras. Até mesmo o jogo do bicho, após seu
surgimento, conquistou a artimanha dos jogadores, espalhando-se pela cidade,
enquadrou-se como contravenção. E antes mesmo que a polícia o extinguisse, foi
incorporado à Loteria Federal.
Embora a legislação brasileira nunca tenha sido favorável aos jogos de azar,
somente em 1890, passou a enquadrá-los, juntamente com outras práticas que não
atingiam a moral prescrita pelos representantes do Estado, como contravenção
217
.
Para Montoro, “as leis do direito estão ligadas ao conceito de norma do
comportamento humano
218
. E este comportamento resulta do meio em que o ser
humano se insere. Dessa forma, entende-se que realidade social, econômica, e
política tornam-se um fator básico na elaboração das leis.
Em fins do século XIX, quando a imprensa passou a divulgar a expansão do
jogo do bicho, no Rio Grande do Sul, legisladores e juristas passaram a combater,
intensamente, a jogatina, com o objetivo de extinguir as casas que exploravam
essas práticas. A polícia começou a intervir mais sistematicamente, objetivando
reprimir, principalmente, os jogos populares nas grandes cidades. A própria
abrangência do conceito jurídico de jogo de azar garantia o enquadramento de uma
216
Ver Herchmann e Lerner, op.cit.., p.62.
217
Ver Código Penal de 1890 op.cit.
218
MONTORO, André franco. Introdução à Ciência do Direito. 26ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005. p. 350.
63
série de atividades lúdicas como contravenção, ou seja, um ilícito penal passível de
punição (multa e prisão simples)
219
.
Como não havia lei específica para o jogo do bicho, este se enquadrava na
lei das loterias, que eram as responsáveis por abrir caminho para aquele jogo. O
artigo 71 § 18 da Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul dizia: “Ficam
abolidas as loterias, não sendo lícito ao Estado transformar o vício em fonte de
renda.”
220
Dessa forma, o jogo do bicho o poderia existir, assim como outros
jogos que dependiam das loterias.
Somente a Lei das Contravenções Penais de 1941, cap VII (Das
contravenções Relativas a Polícia de Costumes), art 58, extinguiu legalmente o jogo
do bicho:
Art. 58: Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar
qualquer ato à sua realização e exploração.
Pena – prisão simples, de 4 meses a 1 ano, e multa.
Parágrafo único: Incorre na pena de multa aquele que participava da loteria,
visando à obtenção de prêmio, para si ou para terceiros
221
.
Para o Direito não contrato de jogo ou de aposta, uma vez que estes, ou
são tolerados por ser divertimento, e assim a lei não os proibi e nem os autoriza, ou
são contravenções punidos pela lei das Contravenções Penais, por ser contrário
aos bons costumes e nocivo à vida social.
Apenas as loterias nacionais e estaduais e as apostas sobre corridas de
cavalos
222
não se enquadraram como contravenção após 1941 e continuaram
sendo permitidas e regularizadas por lei.
Se por um lado a lei proibia as loterias para não sustentar ocio, por outro o
Estado continuava a manter a atividade. A imprensa porto-alegrense produziu
219
A diferença entre crime e contravenção segundo Magalhães Noronha é meramente quantitativa, não havendo
distinção ontológica, de natureza, enfim. Ver NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo:
Saraiva, 1999. Dessa forma, a diferença está na sanção que por ser um ilícito menos grave, tem pena mais
branda: para o crime aplicam a reclusão e a detenção; para a contravenção, aplicam prisão simples.
220
Gazetinha, 09 jun. 1899.
221
BRASIL, Decretos-lei do Brasil, 1941. In: Atos do Governo Provisório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1941.
222
As loterias seguiam o Decreto-lei 2980 de 24 de janeiro de 1941, Art 2º,§ A loteria federal terá
livre circulação em todo o território do país, enquanto que as loterias estaduais ficarão adstritas aos
limites do Estado respectivo; As apostas sobre corridas de cavalos seguiam o Decreto-lei 3688 de
03 de out. de 1941, Art. 50, § 3º, letra b que considerava jogos de azar as apostas sobre corrida de
cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas, sendo assim permitidos nos
hipódromos. BRASIL, Decretos-lei do Brasil, 1941. In: Atos do Governo Provisório. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1941.
64
discursos moralizantes frente a esse contexto político e social: o jogo é um cancro
social que precisa ser extirpado, visto que rouba trabalhadores ao trabalho, cidadão
honesto ao cumprimento do dever e deste modo transforma-os em desonestos”.
223
O discurso moralizador de que o jogo era maléfico para a sociedade, sendo
necessário extingui-lo e para isso o auxílio da polícia que perseguia juridicamente,
entrava em contradição com o fato do próprio Estado explorar o negócio da
jogatina, com a manutenção das loterias. Se por um lado a prática das loterias
sustentava as instituições de caridade, por outro, auxiliava o exercício de outros
jogos, como o jogo do bicho. Uma vez que as casas para esse exercício ficavam
livres para funcionar e os seus donos tendo lucro em outros jogos não negavam as
apostas. O jogo do bicho era apenas uma conseqüência das loterias.
Essa contradição entre a Constituição Estadual e a prática do Estado rendeu
críticas: “Se existe uma lei que permite o jogo de loterias do Estado, outra que
proibi. Logo, entre duas leis contraditórias, escolha-se a melhor, a que proíbe”.
224
‘Faça o que eu digo, mas não o que eu faço’ era o verdadeiro lema para a ação das
autoridades sobre a jogatina, uma vez que as loterias eram praticadas, mesmo
caracterizando-se como jogo de azar, um vício condenável. Se o jogo do bicho
tornou-se “filho” da loteria e não fosse extirpado o mal pela “raiz”, certamente
continuaria existindo.
Segundo Waldyr de Abreu, “nenhuma Assembléia Legislativa Estadual
poderá regulamentar o jogo do bicho ou qualquer outro jogo de azar”,
225
pois a
legislação penal brasileira é de competência exclusiva da União e os jogos de azar
constituem-se um delito previsto na Lei das Contravenções Penais. Assim,
enquanto a União não legalizará o jogo do bicho este continuará existindo na
clandestinidade.
Lembra-se que a lei brasileira é muito falha e isso dificulta a extinção dos
jogos de azar. Acompanhando a defesa do réu Afonso Correa da Silveira, em 1895,
proprietário do Café Pátria (onde praticavam jogos de azar), visualiza-se a má
elaboração da lei brasileira, quando o réu diz:
223
Gazetinha, 24 jul. 1899.
224
Gazetinha, 24 jul. 1899.
225
ABREU, Waldyr de. O Submundo da Prostituição, Vadiagem e Jogo do Bicho: aspectos sociais, jurídicos e
psicológicos. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A. 1957, p. 114.
65
Tavolagem é simplesmente a casa em que se joga, que pode ser particular e
lícita; ordinariamente porém, se entrega este termo para significar a casa
pública em que se joga jogos proibidos, significação em que a tomou o nosso
código o determinando, por isso como fez o artigo 484 do Código Penal
Italiano [de 30 de junho de 1889] que o jogo seja un luogo publico o aperto al
publican . Mas onde a prova que a casa 20 da rua da ladeira era
frequentada pelo público quer pagasse ou não entrada? (...) O Código Italiano
em seu art. 487 expressamente exige que o jogo seja a fim de lucros,
mandando confiscar o dinheiro exposto juntamente com todos os demais
objetos mencionados na segunda parte do nosso artigo 369; o Código Penal
do Brazil, porém o aponta esse elemento, que no entanto tem de
subentendê-lo.
226
A defesa do réu criticava a lei brasileira, sendo cópia mal feita da italiana,
uma vez que não estava claro o que era um jogo ilícito. Essa astúcia de
interpretação, ligada ao fato de terem sido apreendidos mesas de jogos e uns
poucos jogadores que diziam serem companheiros limitados do réu nesse passa-
tempo que antes da sorte dependia do ‘capricho’ dos jogadores, fragilizava a lei que
por sua vez, não tinha argumentos para condená-lo, sendo o réu absolvido.
Além desse, outros casos como o de Felipe Viale
227
, vencia a lei. Este, de
apenas 24 anos, em 1900, foi surpreendido com a visita dos agentes municipais em
seu estabelecimento, situado à rua Riachuelo 343, e posterior apreensão de
materiais de jogos e dos indivíduos que se encontravam. Na defesa alegava que
por o ter profissão fixa cinco anos, resolveu viver do lucro da casa de jogos
que abrira cinco meses. Todas as testemunhas encontradas no local, quando
interrogadas, defendiam-se dizendo que estavam à procura de amigos, ou cobrança
de terceiros que deviam em seu estabelecimento; era a primeira vez que jogava;
estavam na casa, mas desconheciam o jogo, etc. E assim, driblavam a lei e eram
absolvidos.
Em agosto de 1898, a Gazetinha abriu a seção ‘Sport do Bicho’ que teve
pouca duração, apenas de 09 a 13 daquele mês, na qual divulgava o bicho
sorteado, seguido de informações do art. 367 do código penal em que dizia:
fazer loterias e rifas de qualquer espécie não autorizada por lei [e nesse
caso se inseria o jogo do bicho] sofre pena de perda de bens e valores além
de multa de 200$ a 500$, isso para os agentes de loterias, os distribuidores
e vendedores, e os que promovem a extração.
228
226
Processo-crime, nº 1843, maço 76, 06 jun. 1895.
227
Ver processo-crime, nº 68, maço 04, 02 mar. 1900.
228
Ver Gazetinha, 08, 09, 10, 11 e 13 ago. 1898.
66
Talvez a existência da lei forneceu pouca durabilidade dessa seção explícita
no jornal. Em outros momentos, o mero sorteado na loteria era divulgado como
parâmetro do bicho.
A má elaboração da lei brasileira, juntamente com a participação de diversas
classes sociais, como apresentou-se no primeiro capítulo desse trabalho, auxiliaram
a continuidade da existência de práticas contraventoras na sociedade e dificultaram
o trabalho de extinção, por parte das autoridades administrativas e policiais.
Pela análise feita nos jornais e nos processos crimes de Porto Alegre, a
extinção do jogo do bicho não era somente em favor da moralidade pública, mas
tamm, em favor do Estado que tinha a renda das loterias reduzida pela
concorrência. Se o Estado via como ameaçador o jogo do bicho e queria extingui-lo,
era preciso eliminar as loterias. Sem a extinção das loterias o jogo do bicho não
seria eliminado, pois muitas pessoas tinham mais confiança no jogo do bicho, do
que no jogo oficial do governo, mesmo que o primeiro dependesse do segundo. A
extinção do jogo do bicho não auxiliava na extinção dos jogos de azar, pois ele era
um jogo que dependia das loterias, enquanto que a extinção destas auxiliaria na
eliminação de todos os jogos que dependiam deste
229
.
Certamente era o desejo descrito por Freud
230
, na epígrafe deste capítulo,
que movia a ânsia da prática do jogo do bicho. Portanto, se esse jogo era visto
como maléfico na sociedade, era necessário punir quem o praticasse, para isso
nada melhor do que as leis. Como as leis andavam um pouco distantes do jogo do
bicho, foi necessário enquadrá-lo de acordo com as características do crime.
Pergunta-se. Quem era o verdadeiro responsável para auxiliar na boa conduta da
sociedade, uma vez que a moral já prescrevia o jogo do bicho como uma
contravenção, e a lei era falha? A seguir, apresenta-se como se comportaram a
polícia e os administradores frente à lei e o jogo do bicho.
3.1 O xadrez ilusório – jogo do bicho de mãos dadas com a polícia
229
Ver Gazetinha, 24 jul 1899.
230
Ver FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1999.
67
Sempre que algo é visto como maléfico, na sociedade, torna-se proibido e
conseqüentemente, alguém é colocado como responsável para fiscalizar. Com o
jogo do bicho não foi muito diferente. Assim que chegou, uniu-se a outras atividades
imorais praticadas pela população e logo esteve na mira das autoridades policiais,
ou para proibir ou para praticar.
O jogo do bicho era uma prática que estava se iniciando em Porto Alegre e
portanto, dificilmente os locais de jogos eram únicos para essa atividade. O jogador
circulava no mesmo espaço da prostituta, do bado e de indivíduos que
praticavam outros crimes. Dessa forma, estava sujeito ao envolvimento com tais
atividades. A imprensa dizia:
Os vícios andam sempre juntos. Os melhores fregueses d’aquela pouca
vergonha, chamada jogo do bicho, são as mulheres perdidas da rua do
Ponto e becos adjacentes. (...) Era uma gritaria de galo, rato, burro, cavalo
misturado com um sobe senhor convite que a prostituta faz no transporte
para receber dele o preço da vergonha a mais aviltante e entregá-lo as
servidoras.
231
Viver nesse meio onde várias atividades ilícitas estavam presentes, não era
bem visto por parte das autoridades administrativas. O jogador ao buscar prazer,
poderia perdê-lo em dobro: tanto na sorte, quanto na vontade de exercer atividades
profissionais. E isso caracterizava a época com um desmoronamento social, devido
a permanência das práticas contraventoras.
Algumas vezes, quando a atividade do jogo do bicho se mostrava danosa, as
autoridades policiais e administrativas uniam-se aos discursos morais numa
tentativa de eliminá-la da sociedade. Como responsáveis pela boa administração,
disciplina e autoridade, tentavam aproximar o jogo à lei, para regrar os indivíduos.
Assim, a repressão era efetivada com apreensão de bicheiros e jogadores, como foi
o caso do Sr. José Alves Garcia que foi multado em 60$000 pelo subtendente do
distrito, por ser encontrado vendendo o jogo do bicho.
232
Além desse muitos outros,
divulgados na imprensa ou presentes nos processos-crimes, foram apreendidos
pelas autoridades policiais. Estas realizavam seu trabalho ora com fiscalizações e
ora com tolerância, mas sempre acompanhados pelo juiz que multava os envolvidos
no jogo do bicho:
231
Gazetinha, 23 mai. 1898.
232
Gazetinha, 23 mar. 1899.
68
O Dr. Marinho Loureiro Chaves, juiz distrital, multou em 500$ cada um, os
banqueiros do jogo dos bichos. Francisco Barboza Fusquine e Manoel
Rodrigues de Lima”.
233
“Foi preso o bicheiro Carlos Palma Dias em cujo
poder foi encontrada uma carteira contendo as notas do jogo de hoje.
234
Herschmann e Lerner mostram que isso não ocorria somente em Porto
Alegre. No Rio de Janeiro, a formação de uma cidade ‘idealera mais conturbada.
Tentar eliminar as práticas contraventoras somente seria possível com o auxílio da
polícia que fazia severa repressão às prostitutas, mendigos ou quaisquer grupos de
marginais que vagassem pela cidade. E quando isso acontecia, a população reagia:
“Se o jogo era proibido nas ruas, ele ia a domicilio, nos botecos, onde fosse preciso
para que se realizasse. Se havia repressão por parte da polícia, os estudantes iam
às ruas, protestando.”
235
Sandra Pesavento afirma que “em sucessivas batidas a polícia empenhou-se
em desmantelar, no final do século, as casas que abrigavam o jogo do bicho em
Porto Alegre e do encarceramento daqueles que se dedicavam a esse negócio”.
236
Mas sempre sem muito sucesso, pois, a cada ano, os jornais anunciavam que a
polícia começara a atuar na perseguição à jogatina. Dessa forma, vê-se que o
trabalho era realizado, mas não solucionava o problema. Com o aumento da
população porto-alegrense, na transição do século, aumentou também os crimes e,
conseqüentemente, o trabalho da polícia, embora os resultados pouco apareciam.
Sempre que eram realizadas apreensões, a imprensa porto-alegrense
aplaudia o trabalho da polícia, divulgando na seção policial os indivíduos envolvidos
no jogo do bicho e publicando, com satisfação, textos que falavam da preocupação
moral das autoridades, para com a sociedade:
O movimento ativo que ora se opera, por parte das autoridades, na
repressão do malfadado jogo do bicho, não enfraquecendo, não
diminuindo sua energia, antes argumentando-a tanto quanto se tornar
necessário, não poderá deixar de ser coroado dos mais benéficos efeitos
para o povo.
237
233
A Federação, 01 jul. 1898.
234
A Federação, 31 ago. 1898.
235
Herschmann e Lerner, op. cit., p. 94
236
Pesavento, op. cit., p.228.
237
A Federação, 08 ago. 1899.
69
A imprensa, ao mesmo tempo que, parabenizava o trabalho da polícia,
salientava a importância de continuar com a repressão do jogo do bicho, mas que
para isso, era preciso a autoridade andar dentro da lei. Uma vez que seria difícil
combater uma prática contraventora exercida pelas autoridades:
A nossa ativíssima polícia que todos os crimes descobre, pelo modo que
descobriu o roubo da casa do Sr Felix Kessler, que descobriu os autores
ou mandatários da agressão de que fomos vítimas – continua na sua faina
criminosa, prendendo contra a lei escrita, cidadãos imputados como
vendedores do jogo do bicho. (...) É preciso que a autoridade se mostre
fiel executora e cumpridora da lei, para que tenha direito a punir o cidadão
que se tornar infrator dessa mesma lei. Mas quando a autoridade é a
primeira a infringir a lei, não tem direito de exigir que o cidadão seja fiel
cumpridor dela.
238
O sucesso do trabalho das autoridades, tanto administrativas quanto
policiais, dependeria de como estas se apresentavam à sociedade, enquanto
cidadãos. Nada adiantava exigir do povo o cumprimento da lei, se nem as
autoridades faziam isso. Às vezes, havia um certo exagero no elogio ao trabalho
das autoridades, dizendo que conseguiram, pelo menos aparentemente, extinguir
as práticas de jogos, diminuindo os problemas sociais:
Devido às enérgicas providências e censurada vigilância das autoridades, o
jogo do bicho acha-se quase extinto, cessando, pelo menos às claras, as
exibições e ajuntamentos que a condenável jogatina diariamente determinava
nos lugares mais freqüentados d’esta capital
239
.
Analisando a imprensa e os documentos policiais
240
, observa-se que as
notícias eram temporárias: às vezes concentravam em incêndios, outras em
violência sexual, depois em vagabundagem e de repente, era a vez do jogo do
bicho aparecer numa seqüência. Isso leva a impressão de que, após a fiscalização
da polícia por vários dias consecutivos, a sociedade ficava longo tempo sem
praticá-lo, ou então, a polícia, por determinados momentos, priorizava outras
práticas contraventoras, deixando de lado a jogatina, isso se ela não abafava o jogo
do bicho com o registro de outros crimes. À proporção que afrouxa no mercado a
cotação da rifa aumenta a sanha da polícia na perseguição do bicho”.
241
Vê-se que
238
O Independente, 20 abr. 1902.
239
A Federação, 01 set. 1898.
240
Ver Gazetinha, Federação e os Processos-crimes entre os anos de 1898 à 1900, localizada no AHPA e
APERS.
241
Gazetinha, 27 mai. 1898.
70
quando eram baixas as apostas na loteria, a polícia fiscalizava seu concorrente: o
jogo do bicho.
Muitas vezes a prática não conhecia a lei, devido a falta de registros policiais.
Os documentos analisados reduzem os números de apreensões e multas frente
àquelas apresentadas nos jornais.
Em setembro de 1899, ocorreu grande apreensão de indivíduos envolvidos
no jogo do bicho. A relação abaixo, recebida da polícia e publicada na imprensa,
mostra o trabalho desta e a seleção dos crimes, uma vez que, em nenhum outro
mês, teve semelhante ou superior número de apreensões:
Relação, recebida da polícia, dos indivíduos chamados à presença do
delegado do distrito tenente-coronel João Leite, uns como banqueiro,
outros como vendedores de cartelas do jogo do bicho durante o mês de
Setembro: Pedro Olivaes, Angelino Laporta, Jorge Valle, Prudêncio Mareant,
Antônio da Costa Castanho, Elias Lippe, Francisco Gianonne, Antero
Salgado, Salvador Oliva, Lauro dos Santos, Cesário Gairosa, Francisco
Pedro de Vasconcelos, Augusto Palma Dias, Afonso Salatino, Salvador
Maironi, José Antônio de Souza Guimarães, Salvador Sirangelo, Guilherme
de Andrade Araújo, Serafim Agostinho de Vasconcelos, Leopoldino Ribeiro
Alves, Aníbal Pereira Pinto, Antônio ndido de Freitas, Estevão Pereira,
Jorge Dias, Boaventura Maia, Alcides José da Costa, Manoel Vieira da
Costa, Miguel Francisco, Joaquim Antônio Mourão Ennes, Henrique Adolph
Schusty, José Bento da Siqueira, Miguel Juliano, Vicente Brasileiro Cidade,
Octacílio Amarante, Laffayete Corrêa da Câmara, Justino Aniceto de Araújo,
Manoel Gonçalves Moreira, Miguel Esparano, José Luiz Soares, João Lelis
Cordeiro, Emigdio Ribeiro de Oliveira, Francisco José da Costa Júnior.
242
Esta foi a maior apreensão de indivíduos envolvidos com o jogo do bicho
realizada no período pesquisado. Os indivíduos nomeados nessa lista não constam
na tabela apresentada nas páginas 25 a 27 desse trabalho, porque não se
encontram na documentação de polícia. Dentre os listados, dois reincidiram na
contravenção: Aníbal Pereira Pinto que havia praticado a jogatina em 1895; e
Manoel Vieira da Costa que em 1905 voltou a praticar o jogo do bicho. Quanto mais
proibido, mais prazeroso parecia ser o jogo do bicho, cuja prática ao invés de
diminuir, aumentava cada vez mais
243
.
E não era somente em Porto Alegre que as apreensões ocorriam. A
Federação relatou a condenação de um banqueiro que, por muito tempo, vinha
exercendo a prática em Pelotas. Estava no olho das autoridades que por fim,
242
A Federação, 02 out. 1899.
243
Acompanhando as notícias dos jornais Gazetinha, Federação e O Independente entre o período pesquisado,
visualiza-se um gradativo aumento nos registros de apreensão de pessoas envolvidas com o jogo do bicho, bem
como, de casas de tavolagem e de críticas destinadas à essa prática.
71
reagiram: o juiz da comarca condenou o sr. Rosauro Zambrano, como banqueiro
do jogo do bicho
244
. Este era um dos (banqueiros) responsáveis pela família de
banqueiros do Rio Grande do Sul e vinha, há muito tempo mantendo essa atividade.
A imprensa, a polícia e demais autoridades estavam de olho. Era necessário
encontrar o momento certo. Após rias tentativas fracassadas - que encorajavam
mais ainda os banqueiros e bicheiros a prosseguirem na atividade desmoralizadora,
zombando das autoridades – a polícia conseguiu dar “um susto’ naqueles que
viviam do jogo do bicho.
Elogios à administração pública, à Justiça e à polícia, pela atuação da lei
sobre as práticas danosas do jogo do bicho, eram constantes, principalmente no
ano de 1900: a sentença está, pois, condenando o bicho e dando a vitória às
dignas e ativas autoridades policiais desta cidade, cujos esforços e cujos generosos
intuitos hão de, um dia, merecer as bênçãos e os aplausos da sociedade bem
intencionada da nossa terra”
245
.
Se o jogo trazia tantos problemas, era necessário extingui-lo. Mas como fazer
isto? Buscava-se uma resposta a essa questão, que todos sabiam da dificuldade
de extinguir totalmente os delitos sociais e esse, era mais um. Fechar os olhos
para o problema era “exercer ação digna de acrimoniosa censura”
246
. A imprensa
constantemente publicava sobre o jogo do bicho em Porto Alegre e assim como
parabenizava as autoridades pelo efetivo trabalho, tamm criticava quando o
havia apreensões ou as práticas se proliferavam:
...infelizmente a polícia de Porto Alegre não se livra facilmente de uma
censura em tais condições. Nesta capital, a jogatina desenvolve-se as
escancarias. aqui infinidades de casas de jogo, antros de perdição de
muita gente. Todos nós sabemos, o blico em sua maioria sabe d’isto, e é
admirável portanto, que a própria polícia não o saiba!
247
A crítica não era em relação à má aplicação financeira por parte da
população, mas à polícia que deixava de agir quando deveria evitar a manutenção
das casas de jogos, por estas serem imorais e prejudicar a imagem da cidade.
Havia até quem se oferecia para divulgar os locais desse crime: “Quisesse a polícia
244
A Federação, 3 dez. 1900.
245
Idem.
246
Ibidem.
247
Ibidem.
72
acabar com a jogatina, desprezando conseqüências mais ou menos importantes
que isto originasse, quisesse, e nós sem o mínimo de temor, com segurança
indicar-lhe-íamos o caminho a seguir”.
248
Observa-se que a polícia não fiscalizava
porque não queria e porque não havia pressão por parte das autoridades
administrativas, ou seja, talvez as autoridades administrativas não estavam tão
preocupadas com os jogos de azar. Pergunta-se então: se as autoridades não
agiam, poderiam elas participar dessa prática? Resposta para isso, não se encontra
nesse trabalho. Mas que é questionador ver tantos elementos negativos em uma
prática e mesmo assim não ser extinta, é.
Analisando a imprensa, percebe-se que em alguns momentos a polícia até
amedrontava os jogadores com diligências, mas logo interrompia a fiscalização e
então, estes voltavam com mais força, abrindo um maior número de casas de jogos.
De acordo com a imprensa, a polícia tamm estava envolvida com essa
prática: fugindo ou punindo. Mas existiam aqueles que duvidavam de seu trabalho e
tinham razão. Os policiais também praticavam o jogo: “Foi detido e apresentado à
chefatura de polícia, por ter sido preso em flagrante, o cabo Felix Botica, por estar
vendendo cartelas do jogo dos bichos”.
249
Para Roberto da Matta e Elena Soárez o jogo do bicho ganhou a legitimidade
social, impedindo o término da atividade, ou seja, aos policiais se tornaram presa
fácil dos banqueiros:
Com a perseguição ao jogo, o grande paradoxo foi a sua incondicional
aprovação popular, o que lhe dava legitimidade social, contra uma elitista
e mal intencionada proibição legal, que fazia com que o governo passasse
a ser visto como um inimigo comum e tornava a polícia presa fácil dos
banqueiros do jogo que a aliciavam.
250
Os jornais publicavam que cada vez mais a população estava envolvida
nessa prática, dificultando o trabalho da justiça e fazendo-o existir para sempre. “O
bicho campeia impunemente no seio das grandes cidades, afrontando
atrevidamente a moral e a justiça porque está sagrado pelo público que o quer e
248
Ibidem.
249
A Federação, 16 mai. 1898.
250
Da Matta e Soárez, op.cit., p. 84
73
não o abandonará”
251
Essa previsão da existência do jogo do bicho se concretizou
na sociedade.
Dessa forma, percebe-se que quase todos sabiam os locais dessas práticas,
mas aqueles que mais deveriam saber, ou não sabiam ou faziam de conta que não:
“onde dia e noite se joga desbragadamente são conhecidas por Deus e todo mundo
e só o não são pela polícia que é quem tinha por dever saber-lhes o paradeiro”
252
. O
trabalho da polícia não era tão fácil assim. Não bastava saber onde os jogadores
estavam, era preciso ter provas de que os indivíduos apreendidos estavam
envolvidos com o jogo do bicho. Para Waldyr de Abreu “a lei processual penal exige
da polícia judiciária a observância de formalidades, tidas como necessárias à
apuração da verdade”.
253
Apreender algum vendedor que trabalhava para
determinado bicheiro, sem nenhum material em posse, não era prova suficiente
para sua condenação, uma vez que este poderia mentir em Juízo, restando então, a
palavra de um ou dois detetives, principalmente se o acusado não estava em local
de jogo, vendendo nas vias públicas.
Acompanhando os processos crimes, observa-se que a apreensão ocorria
quase sempre, com a presença de cartelas em posse dos vendedores,
proprietários, ou jogadores. Todos os acusados tinham como sentença, o
pagamento de multa ao Estado, e a devolução do dinheiro das apostas da cartela,
às autoridades do processo, conforme mostra os trechos do processo-crime de
Joaquim Martins Flores:
Disse o mesmo inspetor [Arthur Corrêa] ter apreendido um caderno de
contas e talões da rifa denominada jogo do bicho (...) Flores como vê-se do
aludido auto que também assina confessa ser com efeito o dono do caderno
apreendido e ocupa-se em vender cartelas do jogo de que se trata. (...)
Julgo provado o alegado na denúncia para condenar como condeno o
denunciado, Joaquim Martins Flores, nos termos do art. 367 do Código
Penal da República, a entrar para os cofres do Estado com a multa de
Trezentos e cinqüenta mil reis (350$000) e mais com a quantia de 142$300,
valor da apreensão realizada. Paga o réu às custas.
254
Neste caso, a defesa não tinha quase argumentos, uma vez que o vendedor
foi pego em posse do material e do dinheiro. Nem sempre o trabalho da polícia de
251
Gazetinha,12 dez. 1898.
252
Idem.
253
Abreu, op. cit., p. 122.
254
Processo-crime, maço 2, nº42, 1898. APERS
74
fazer cumprir a lei, ocorria dessa forma. O processo-crime de Manoel Rodrigues de
Lima apresenta a esperteza do vendedor quando percebeu a presença das
autoridades:
O agente municipal Arnaldo Palma Dias apreendeu na casa de Manoel
Rodrigues de Lima,à rua do comercio, nesta capital, em mão de um
indivíduo proposto do mesmo Lima um pequeno caderno e talões da cartela
do denominado jogo do bicho. Nesta ocasião, Lima tinha também em uma
das mãos uma tabela com as gravuras e nomes dos bichos. Ao perceber-se
que Palma Dias era um agente policial, a quem momentos antes confessara
que era banqueiro, vendedor de cartelas desse jogo subtraiu a referida
tabela das vistas dos referidos agentes, indo esconder-se no compartimento
da sua loja de fundos, onde o mesmo agente o era lícito entrar. (...)
Manoel Rodrigues de Lima que tem sido tenaz em zombar da ignorância da
autoridade pública, incorre-se nas penas do art. 367 do Código Penal.
255
Assim vê-se que o esperto bicheiro quis se livrar da polícia, mas não
conseguiu, embora essa teve trabalho para apreendê-lo. Não eram apenas os
vendedores, mas principalmente os banqueiros, que deveriam ser apreendidos,
uma vez que, estes controlavam o jogo em toda a cidade. Tem-se outros casos de
indivíduos envolvidos com o jogo do bicho, que pensavam no lucro e esqueciam
da lei. Como é o fato de um banqueiro que quis ser esperto” vendendo cartelas do
jogo do bicho desde as primeiras horas do dia, até às quatros horas da tarde
(mesmo depois de ser conhecido o mero do primeiro prêmio da loteria federal) e
se deu mal. Muitos jogadores aproveitaram a chegada do telegrama do Rio de
Janeiro (14 horas) para apostar na sorte grande. O porco que era o animal
vencedor, teve tantas apostas como até então nunca tivera. O banqueiro, vendo-se
em apuros, chamou a polícia para socorrê-lo. Se por um lado foi salvo de alguns
sopapos, por outro, acredita-se que houve uma grande multa a ser paga
256
. Dessa
forma:
...a polícia se quisesse ou pudesse ser enérgica e ativa como lhe cumpri,
terminaria de vez com a maldita jogatina dos bichos. Hoje em dia não é difícil
descobrir, uma por uma, todas as casas onde se vendem cautellas de tal jogo,
e muito mais fácil ainda é encontrar-se os vendedores. Apresentam-se às
claras, indicam-se da mesma forma os “banqueiros”, esses fazem alarde de
seu negócio, e até já ouvimos um deles blasonar de vender bichos a
autoridades policiais... Não descremos que o bicheiro falasse a verdade, e
para isso influi muito em nosso espírito o fato do freguês de autoridades ainda
não haver sido multado.
257
255
Processo-crime, maço 2, nº46, 1898. APERS
256
Ver Gazetinha, 22 jun. 1898.
257
Idem.
75
A imprensa fazia pressão para a extinção desse jogo, em nome do povo:
“Dizem todos brasileiros que a polícia, por capricho, de prender os bicheiros,
para então, matar o bicho”
258
A polícia, em alguns momentos, corria atrás dos
bicheiros, como em 1899 quando bateu em algumas casas de jogos, mas por
coincidência, nestas não se jogavam mais: “Já dias a autoridade visita duas
casas de tavolagem na mesma rua e... não encontrou ninguém jogando.”
259
Para a imprensa, a lei e o jogo tinham grandes afinidades: ambas eram
pouco fiscalizadas e auxiliavam no alastramento de práticas contraventoras nas
grandes cidades, como Porto Alegre, uma vez que era o centro da lei e da
autoridade rio-grandense, e se os bicheiros - donos de casas de jogos - não se
preocupavam com a ação da polícia, certamente ela estava envolvida no caso, ou
pelo menos, facilitava o desempenho dessa prática e a aquisição da fortuna por
parte dos banqueiros:
falar-se em autoridade e na Lei a esses ‘senhores banqueirosé o mesmo do
que falar-se na mais insignificante cousa. Eles têm a resposta sempre pronta:
a minha casa está garantida. Pela maneira franca e desassombrada por que
falam, eles dão a entender que tem o consentimento da polícia. Entretanto, é
ela, a polícia que está tolerando esses abusos.
260
Como a polícia era quem fazia a ação, era ela também quem recebia as
críticas. Muitos cidadãos o entendiam a prática das autoridades policiais e
questionavam a lei que incumbiu a polícia para realizar tal procedimento:
“a polícia rasga o texto do código do Estado, prende os cidadãos como
implicados no jogo do bicho, mete-os no calabouço da chefatura por 24 e
mais horas, transfere-os para a casa de correção, tira-lhes o dinheiro que
com eles encontra, sob pretexto de ser produto do jogo do bicho e solta-os
quando muito bem aprove a autoridade (...) quem é o mais criminoso, o
cidadão que vende o jogo do bicho autorizado por um acórdão do primeiro
Tribunal Judiciário do Brasil ou a autoridade policial que desrespeita desse
acórdão e legisla para si e descrissionariamente considera crime o fato ou
ato, que o mesmo Tribunal disse não ser crime?
261
Pergunta-se então: porque quase sempre os pobres bicheiros eram presos e
dificilmente os senhores banqueiros? Algumas pessoas estavam sendo
privilegiadas nesse vício. Talvez o sossego fornecido aos banqueiros era devido a
258
Gazetinha, 02 set 1898
259
Gazetinha 17 jul. 1899.
260
Gazetinha, 20 mar. 1899.
261
O Independente, 30 mar. 1902.
76
sua importância: encontrar um bom banqueiro não era tão fácil como um bom
bicheiro. Numa sociedade que pregava o trabalho como progresso da nação, mas
muitos permaneciam desempregados, não era difícil encontrar indivíduos que
quisessem sobreviver dessa atividade.
Parecia estranho na sede (capital) da autoridade e da lei, estar presente esse
fato. Até mesmo porque os jornais traziam colunas sobre o jogo do bicho: locais do
crime, os delinqüentes e até pediam providências. Mais estranho ainda, era ver a
aceitação dessa prática, por parte das autoridades. Nos locais dessa atividade
sabe-se que, as mais diversas camadas sociais, bem como crianças, participavam
do jogo. Aqueles considerados “vadios”, “inimigos do trabalho” acostumados a viver
com o suor alheio, eram amigos do jogo do bicho e o sentiam remorso em
crescer em pouco tempo, à custa de suas vítimas.
Quando a fiscalização apertava, o jogo do bicho não desaparecia e por meio
de “códigos”, como por exemplo, as cautelas de jogo (querendo dizer cartelas),
circulavam na sociedade, participando de versos, entre os mais velhos. Como
mostra o jornal A Gazetinha:
-Vem pra cá, compadre vem cá,
Onde vai com tanta pressa?..
-Não posso passar por lá
Adeus, que não caio nessa.
-Mas escuta eh! Meu casmurra,
Dá-me três mil reis de cão,
-Nem cão, nem gato, nem burro
Eu não sou de ferro, não...
-Ao menos, espera um pouco
Vamos juntos palestrar
-Deixa esses ares de louco,
Esta cara de espantar.
-Sim eu vou mas reparando,
Pra não sofrer o desgosto
-De ver meu cobre voando
E ficar ainda no posto
-O bicho agora não vendes
Não cai mais nesta esparela?
-Digo que não, mas compreendes
Que vendereis com cautela
262
Ao analisar o trabalho da imprensa em abrir colunas para o caso dos bichos,
pedindo providências e apresentando os lugares do crime com os respectivos
delinquentes, torna-se curioso à indiferença dada pelas autoridades administrativas
77
referente ao mesmo caso. Isso porque não registros na imprensa do
posicionamento das autoridades administrativas porto-alegrenses sobre o jogo do
bicho na transição do século XIX para o XX.
Em 1898 havia grande discussão na imprensa sobre o processo do jogo do
bicho, dizendo:
... os acusados por envolvimento nesse jogo tem sido feitos em audiência
com a forma dos processos de julgamento definitivo, de que reza o art. 47
do já citado regulamento quando sua forma deve ser a de sumário com
julgamento pelo tribunal do júri; e por isso são nulos todos os processos de
venda do bicho – pela incompetência do juiz e forma processual
263
.
No olhar da imprensa, o juiz não tinha competência para julgar processos
desse grau. para o judiciário, “todos os crimes que se enquadravam no art.12 §7
do código criminal em que a pena não excede a multa de 100$ ou prisão de seis
meses, com ou sem multa, devem ser processados e julgados pelos juízes de
paz”
264
. Dessa forma, os crimes que se enquadravam na categoria citada
escapavam da atribuição das autoridades, sendo julgados pelo júri. Por não haver
lei específica para o jogo do bicho e as autoridades exercerem múltiplas
interpretações das leis em que se enquadrava essa prática, o jogo do bicho foi
permanecendo na ilegalidade.
Pelo visto, para a Gazetinha, a polícia fiscalizava muito mal, ou seja, não
perseguia os donos das casas de jogos continuamente. De vez em quando,
mostrava trabalho, mas a maior parte do tempo, suspendia as investigações.
Mesmo havendo outros crimes importantes, era necessário perseguir a jogatina, até
mesmo extingui-la, o que não estava acontecendo. Dessa forma, aumentavam os
antros de perdição de muita gente que iniciava no jogo e depois seguia por outras
atividades maléficas. Para auxiliar no trabalho da polícia ou para criticar seu
trabalho, a Gazetinha informava ter conhecimento dos locais de jogos e até se
disponibilizava em auxiliar a polícia, caso essa quisesse.
Notícias sobre o jogo do bicho em outros Estados brasileiros eram
freqüentes, principalmente quando havia a ação da polícia. Nas entrelinhas, a
imprensa de Porto Alegre queria despertar a polícia local para um efetivo trabalho
262
Gazetinha, 27 ago. 1898.
263
Gazetinha, 28 jun. 1898.
264
Idem.
78
na repressão ao jogo. Um exemplo é o texto ‘O Bicho em São Paulo’
265
quando
após apresentar o fato naquela cidade, chama a atenção da polícia de Porto Alegre,
não com o intuito de que esta abra mão de meios que não estejam em sua alçada,
mas que persiga os indivíduos desocupados que andam a bater às portas das
casas de famílias, oferecendo e insistindo para fazer o cruel jogo. E tamm
àqueles que fazem escândalos à espera do telegrama do Rio de Janeiro,
comunicando o resultado do primeiro prêmio da loteria dificultando o trânsito em
frente às casas de jogos, devido o grande número de indivíduos que aguardavam
os resultados. E salientava: nesta capital ainda devotos do bicho e lugares
sabido do povinho, cuja existência está visível no telegrama do Correio do Povo,
dando o número do bilhete premiado na loteria federal
266
Por outro lado, essa
notícia mostrava a necessidade de um saneamento moral na capital do Rio Grande
do Sul. Essa era uma forma de pedir a participação das autoridades contra a
imoralidade. Pelo visto, a polícia não fazia nem mesmo o que estava ao seu alcance
e por isso, havia tantas pessoas que pareciam ‘desocupadas’ denominadas pela
Gazetinha de “povinho” e que conheciam os locais das casas de jogos
perambulando nas ruas, atrás de compradores de cartelas do jogo do bicho.
Enquadrado como contravenção, o jogo do bicho circulou entre o não
cumprimento da lei, por parte da ação policial e a repressão policial, com prisão de
bicheiros e outros contraventores. Assim como os furtos, o jogo do bicho é uma
prática que nunca estivera perto da tolerância, por parte da lei e nem longe dos
olhos do povo que buscam as apostas. Já os policiais, delegados e detetives
encontravam dificuldades em realizar a efetiva repressão: ou por não querer fazê-la,
ou por não ter apoio superior para tal tarefa. A lei raramente funcionava na prática,
pois quando a polícia agia, as vítimas eram, na maioria, os vendedores de cartelas
ou apostadores e, mínimas vezes, os bicheiros
267
. Em ambos os casos, faziam-se
cumprir uma insignificante pena que não afastava outros viciados, uma vez que
casas de jogos e outros vendedores ou apostadores continuariam existindo.
Exemplo disso, é a existência do jogo do bicho até hoje na sociedade.
265
Ver A Federação, 21 ago. 1901.
266
A Federação, 21 ago. 1901.
267
Ver Processos-crimes referente ao jogo do bicho de 1895 a 1902. APERGS.
79
Associadas ou não à contravenção, era sempre a autoridade civil que sofria
as críticas pelo não cumprimento da lei
268
. Isso talvez não era “de graça”. Eram eles
os responsáveis pela prisão e quase sempre só efetuavam isso, mediante denuncia.
Analisando os relatórios de polícia e a imprensa percebe-se que havia um mero
maior de vendedores e apostadores flagrados, do que de banqueiros. A justiça e a
polícia abandonam os banqueiros, caindo porém sobre os vendedores de cartelas
do bicho, apreendendo-lhes os talões, conduzindo-os aos postos donde sofrerão
prisões correcionais e multas pesadas, em dobro na reincidência”
269
. Isso sem falar
se a prisão era mesmo do esperto vendedor de cartelas, ou se outros indivíduos
eram autuados no lugar destes, por estarem nos ambientes de jogos.
Visualiza-se que o fato se esgotava, a partir do registro policial, no momento
da autuação, seguindo apenas a sentença, sem a busca de novos parceiros dessa
atividade. Certamente, essa frágil forma de explicitar a lei abria caminho para novos
contraventores.
Ninguém podia determinar o descumprimento da lei, pois ninguém era dono
dela, e neste caso, tornava-se prevaricador
270
aquele que isso fizesse. Também não
podia fornecer vantagens a terceiros para o descumprimento da lei, sendo isso
considerado propina, crime grave. A polícia tinha como função auxiliar na correção
da sociedade, frente às práticas contraventoras, prendendo os infratores. Para que
isso ocorresse, era necessário que Juiz, chefe de Polícia e demais responsáveis
pela extinção de atividades contraventoras, agissem em conjunto.
Percebe-se que a polícia realizava flagrantes desses antros de perdição, mas
não o suficiente para eliminar essa prática, uma vez que não possuía recursos
pessoais e materiais para tal tarefa. Prender todos os envolvidos com o jogo do
bicho, num momento em que outras atividades danosas também requeriam
atenção, seria muito difícil. Espaços físicos para abrigar os indivíduos apreendidos
nesse e em outros procedimentos judiciais, não existiam. Talvez por isso, essa
atividade era considerada contraventora com pena de prisão simples e multa.
268
Ver as publicações nos jornais Gazetinha, A Federação e O Independente entre os anos de 1897 a 1903, que
periodicamente atacavam os responsáveis pelo controle de práticas contraventoras.
269
Gazetinha, 28 jun. 1898.
270
Entende-se por prevaricação o crime realizado por funcionário público, que deixa de praticar indebitamente ou
pratica contra a disposição legal expressa para satisfazer interesse ou sentimento nacional. Ver Abreu, op.cit.
80
Outros crimes maiores preocupavam mais os responsáveis pela ordem na
sociedade.
De acordo com o discurso da Gazetinha, tolerar a prática do jogo do bicho
era procedimento vergonhoso à nação, contrário à moral, às leis de contravenção,
ao lema da administração pública e o trazia vantagem a nenhum segmento.
Extingui-la, mesmo com providências policiais, era impossível. Enquanto isso, o
jogo do bicho ganhava espaço na capital porto-alegrense.
A lei penal era competência exclusiva da União. Portanto, nenhuma
Assembléia Legislativa Estadual ou Câmara Municipal poderia regulamentar
qualquer espécie de jogos de azar.
Para a lei, a exploração do jogo do bicho era mera contravenção penal. Com
baixas penalidades, a ilicitude do negócio era mais vantajosa para os envolvidos
com a prática, do que sua legalização. Na clandestinidade, o jogo permaneceu
longe dos tributos. Com alta lucratividade, nem os que trabalhavam com essa
prática, nem aqueles que depositavam a “fezinha” no jogo do bicho queriam se ver
longe dele. Portanto, o jogo do bicho burlava a lei e crescia na sociedade, chegando
até nos representantes políticos, conforme se apresenta a seguir.
3.2- O Contágio da Imoralidade: o jogo do bicho no quadro político
Entre os anos de 1893 a 1903, a cidade de Porto Alegre foi impulsionada
pelo crescimento do mercado consumidor, uma vez que sua população aumentara,
assim como nas maiores cidades do país. Sua configuração passou de capital de
um Estado de economia agrária para a fase inicial de uma economia industrial,
sendo um atrativo para as migrações oriundas das áreas coloniais do Estado.
Agentes sociais (médicos, engenheiros, e educadores) auxiliavam a produção de
bens e saberes que justificavam a intervenção do Estado na vida pública e na vida
privada. A medicina formava novos valores na sociedade com seus discursos
higienistas e sanitaristas. O jornal A Federação
271
enfocou fortemente o estado
sanitário, principalmente na capital do Rio Grande do Sul, em que eram exercidas
visitas nas casas, para prevenir a peste bubônica.
271
Ver A Federação, jan. a jun. 1902.
81
Beatriz Weber fez um estudo sobre a relação da sociedade
272
com a
sociedade desenvolvida e apresentou Porto Alegre no discurso positivista: “as
condições para o estabelecimento de fábricas, de qualquer natureza, na cidade,
ficava sujeita a exame para conhecer as condições higiênicas mesmo no interior do
terreno”.
273
Acreditava-se que o progresso tão almejado seria resultado da
combinação da saúde física com a moral. Portanto, os indivíduos das prisões não
tinham boa conduta devido ao espaço de superlotação e falta de higienização que
viviam, e os indivíduos que queriam vender sua força de trabalho deveriam
apresentar um comportamento higienizado, moralizado e ordeiro. Segundo
Margareth Rago
274
, o meio era o principal responsável pela saúde do corpo social e,
ao mesmo tempo, de cada indivíduo. Para tanto, era necessário criar condições que
favoreciam a circulação dos fluídos, como o ar e a água, evitando o surgimento de
doenças, formando personalidades sadias.
Em seu trabalho, Beatriz Weber explica como eram as habitações de Porto
Alegre e a presença da sociedade civil, auxiliando a sociedade política, na
fiscalização e na limpeza da cidade, principalmente nos momentos de epidemias.
Afinal, uma boa imagem era fundamental. E nada melhor do que organizar a cidade
com normas para o estabelecimento de residências no centro da cidade – cortiços à
distância. Nem sempre todo esse trabalho tinha sucesso. A rua Coronel Fernando
Machado, que parecia socialmente modesta, no final do século XIX, possuía uma
área de prostituição.
275
Por mais que houvesse fiscalização e informação para a
organização dos espaços, algumas vias instalavam atividades ilícitas.
Juntamente com o discurso sanitarista, a elite queria conscientizar as
pessoas para que não se entregassem à prostituição e jogos – elementos nocivos à
sociedade disciplinada, que ameaçavam o tipo de cidadania presente na
Constituição. Por outro lado, esses elementos exerciam grande força de atração
sobre a população urbana.
272
Sociedade sã é uma sociedade “sem doenças, sem crimes, sem revoltas”. Weber, op. cit., p.88.
273
Idem, p. 106.
274
Ver Rago, op.cit., p. 163-167.
275
Ver Weber, op. cit, p. 86-108.
82
Ao mesmo tempo que os administradores buscavam tentativas de educar o
homem ao trabalho, disciplina e família, também passaram a organizar os espaços,
tolerando atividades lúdicas, como jogos de azar, principalmente aqueles dirigidos à
classe dominante, como os clubes noturnos. E não era o Rio de Janeiro que
possuía esses espaços organizados para o lazer da elite, pois no Rio Grande do Sul
isso tamm existia. Exemplo disso era Porto Alegre, já em fins do século XIX, com
vários espaços para a elite frequentar: na Rua da Olaria
276
, situava-se o Club Sport
com corridas de cavalos, rinhas de galos e outros divertimentos; na rua Sete de
Setembro funcionava o Club Júlio de Castilhos: uma casa de dois andares, que
tinha, no primeiro andar, salas para sessões, jogos diversos, leituras e palestras, e
no segundo, restaurante, além do pátio, no térreo, em que eram praticado jogos de
bola e tiro ao alvo, “tudo quanto se pode desejar de comodidade, bom gosto e
conforto em uma casa desse gênero, de modo a tornar-se um centro atraente,
seleto e digno em tudo, da nossa culta sociedade”
277
. Também existia o Café Pátria
localizado na rua dos Andradas, “onde se reuniam, habitualmente, diversas pessoas
para jogar
278
E assim, outras casas de lazer noturno, com práticas contraventoras
estavam espalhadas em Porto Alegre, a fim de atender o lazer da elite.
As autoridades administrativas tentavam diversas formas de orientação à
população sobre o perigo das atividades contraventoras, como o jogo do bicho: uma
delas era os discursos moralizantes presente na imprensa; a outra forma era a
organização dos espaços de lazer, separando o publico do privado; e por fim
contavam com o auxílio policial.
Considerados os jogos de azar como algo perigoso, juntamente com outras
práticas contraventoras, a imprensa atacava a população mais pobre, com
discursos moralizantes, para que estes valorizassem a família, o trabalho e a
disciplina, ao invés dos jogos. Enquanto isso, outros jogavam: “tolerância junto às
camadas dominantes. A elas era permitido que jogassem, mesmo os jogos que
poderiam ser classificados como de azar, como no caso, aqueles que ocorriam nos
276
Ver O Independente, 10 set. 1903.
277
A Federação, 26 jun. 1901.
278
Processos-Crimes, nº 1843, maço 76, 06 jun. 1895. APERGS.
83
cassinos e prados.”
279
Essa ‘tolerância’ dos jogos de azar para com as camadas
dominantes dificultava a correção de grande parte da população frente às práticas
contraventoras.
Dessa forma, percebe-se que a lei existia e as autoridades, às vezes, se
esforçavam na fiscalização do jogo do bicho. Mas os interesses políticos estavam
além da ‘limpeza social’, até porque, certamente, alguém ganhava com isso.
Analisando a imprensa da época, torna-se possível identificar uma relação amigável
entre os responsáveis pelas concessionárias (Marsicano e Laportta) e os
administradores blicos. Exemplo disso é o processo-crime de Alberto Bordone.
Um comerciante que baseado no resultado errado da loteria nos jornais, tentou
receber o prêmio do concessionário João Marsicano. Esse, inicialmente, se negou a
pagar o prêmio. Logo, Alberto Bordone procurou a justiça requerendo o prêmio,
divulgou na imprensa o caso ocorrido, e distribuiu o seguinte panfleto pela cidade:
Atenção
Como explicar-se este caso?
Tenho em meu poder um bilhete da loteria do Estado extraída no dia 19 de
novembro. Este bilhete tem o número 23251 e que, segundo as noticias
publicadas pelos jornais Federação, Correio do Povo, Jornal do Comércio,
Petit Journal e Gazeta do Comércio (noticias cujos apontamentos
certamente foram dados ou pelo Sr. Marsicano ou por algum de seus
empregados) coube o prêmio de 200$000. No entanto o Sr. Marsicano nega
a pagar o aludido prêmio, socorrendo-se da lista que mandou imprimir e
onde não consta o número por ele mesmo escrito na nota que mandou às
diversas redações.
Si essas notas continham um erro, se esse erro foi repetido cinco vezes e
publicado por cinco jornais por que motivo e em tempo, o Sr. Marsicano, não
pediu retificação das noticias?
Não o fez, e só agora porque quero cobrar o prêmio que me coube e sua
senhoria não o quer pagar, foi que descobriu que os jornais publicaram o
número errado?
Na vitrine da minha casa à rua Marechal Floriano estão em exposição o
bilhete em questão e os cinco jornais que deram a noticia.
É esta a verdade Sr. Marsicano e contra ela não valem vossos subterfúgios.
Porto alegre 11 de Dezembro de 1902
ALBERTO BORNONE
280
Após a circulação deste, pela cidade, a polícia encaminhou o processo,
restando ao Sr. Marsicano, pagar o referido prêmio. Alberto Bordone, ainda o
satisfeito com o incômodo, lançou novo panfleto à sociedade:
Ao Público
Graças aos cinco jornais que me deram razão e que são os seguintes:
Federação, Correio do Povo, Jornal do Comercio, Petit Journal e Gazeta do
279
Herschmann e Lerner, op. cit. p.65.
280
Processo-crime, maço4, nº 90, 1902. APERGS.
84
Comércio dos dias 19 e 20 de novembro próximo findo, o S. João Marsicano
me pagou o premio de 200$000 reis que coube como possuidor bilhete do
número 23251.
Tive porém que espalhar 3000 boletins, pagar consultas a advogados e
perder cerca de 12 dias de trabalho, ficando assim prejudicado em 500$00
reis, mais ou menos.
Como se vê a loteria do Marsicano não nada a ganhar e sim tudo a
perder.
ALBERTO BORDONE
Mas deste panfleto teve uma surpresa nada agradável. Foi condenado, de
acordo com o art. 319 §2º do Código Penal da República, por ofender a reputação e
o crédito do Sr. Marsicano, espalhando os bilhetes para mais de quinze pessoas.
281
Observa-se que dificilmente os donos de concessionárias eram autuados
pela polícia. A concessionária do Sr. João Marsicano era quem recebia o resultado
da loteria federal do Rio de Janeiro e repassava à imprensa de Porto Alegre. Se
estas divulgaram o resultado errado, obviamente João Marsicano deveria ser
condenado. Mas isso ocorreu com intenso trabalho do apostador de exposição
da casa de apostas, ficando o mesmo no final, sem muito lucro. Com tanta
dificuldade para a solução do caso, leva-nos a pensar que João Marsicano tinha
aprovação de autoridades administrativas e ou policiais. Não havia muita segurança
nas apostas e divulgação dos resultados, o interesse mesmo se concentrava no
lucro que o Estado adquiria. Analisando este caso, não pode-se dizer que as
autoridades não fiscalizavam, uma vez que, notícias como a ação do juiz distrital na
multa de banqueiros, aparecia em alguns momentos na imprensa, não com o
objetivo de dizer que essa prática existia na sociedade, mas que os responsáveis
pela moralidade estavam agindo – cumprindo seu papel.
282
Tamm alertava a
sociedade sobre a falta de confiabilidade do jogo do bicho.
...o cidadão Umpierre, negociante, teve lá seu palpite e deu-lhe para jogar no
tigre. Foi às casas de Jo Maria Mauro, barbearia situada á rua dos
Andradas, e Felippe Lapporta, estabelecido à rua do Comercio, e jogou no
referido bicho, 20$000, na primeira agencia e 25$000 na segunda. Ganhou o
Tigre, e aqui começa a ladroeira. Os dois citados vendedores de bilhetes
negaram-se a pagar os respectivos prêmios. O sr Umpierre [...] foi queixar-se
à polícia administrativa [...]. O sr. Francisco Louzada [chefe de polícia] deu
nova busca nas aludidas agências, onde apreendeu talões, etc... que remeteu
com os bilhetes depositados...”
283
281
Idem.
282
A Federação, 01 jul. 1898.
283
A Federação, 10 dez. 1897.
85
Ao mesmo tempo que favorecia os jogadores, apresentando mais um local
em que o jogo era exercido, enfraquecia a credibilidade, demonstrando que nem
sempre o sonho da vitória, tornava-se real. Precisava ter sorte dupla: acertar o
bicho no jogo e receber o prêmio. Certamente, a um viciado, pouco servia a
segunda referência, uma vez que o sonho da sorte parecia ser mais real do que o
engano e tamm porque poucos eram os casos em que o jogador tivesse tão alto
prejuízo.
Quando o resultado saía errado, sim, a Federação atacava
disfarçadamente. Pouco depois do citado acima, outro fato revelou que a prática do
jogo do bicho não era tão segura:
O jornal do bicho neutro pediu desculpas aos povos do referido bicho ter
virado cachorro, de urso que era. Confessou tudo, Tim-tim por Tim-tim. O
culpado foi o Martim Gravata, o correspondente do Rio. Está regulando. Se
alguém duvidar levante o dedo para o ar. O órgão do bicho atribuía o fato a
um equívoco do correspondente, ou a qualquer outra circunstancia. Nós
também. Declara que providenciou mediamente para que o caso não se
reproduza. Franqueza no caso.
284
O jornal mostrava o perigo no erro cometido, alertando aos fregueses que o
jogo não era tão confiável. Satirizava o jogo do bicho quando informava que
‘francamente’ haviam se equivocado no resultado, e com isso evitavam conquistar
mais fregueses que viam, nessa atividade, a preocupação em ser um jogo incerto
que poderia lesar os jogadores.
Embora os lesados não tinham nenhum órgão para recorrer quando ocorriam
possíveis erros - que a prática era proibida no país - ela existia com grande
fidelidade, ou seja, mesmo com os bicheiros ladrões, como o caso citado acima,
existia um grande esclarecimento e fiscalização por parte dos amantes do jogo do
bicho. Não queriam sujar a imagem deste jogo, já que estava ‘dando os primeiros
passos’ em Porto Alegre, com grande sucesso.
Enquanto o jogo do bicho estava recheado de ladroagem, os defensores das
loterias aproveitavam para lucrar. Publicavam nos jornais que a loteria é uma
prática legal e honesta, além de auxiliar estabelecimentos com a ação beneficente
de prestação de serviços à sociedade e dessa forma, honrando com os sentimentos
filantrópicos do Rio Grande
285
.
284
A Federação, 22 ago. 1898.
285
Ver A Federação, 29 ago. 1898.
86
outras pessoas defendiam o jogo do bicho: ou ganhavam muito com ele,
ou queriam se defender dos impostos municipais, atribuindo a este jogo (que não
possui imposto), a vingança. Na verdade, aqueles que apostavam e não ganhavam,
estavam gastando tanto quanto pagar impostos, que não destinado aos cofres
públicos e sim, a particulares. O imposto do governo era o lucro dos banqueiros.
Que a cousa vai rendendo enquanto a raia miúda está pagando a mula
roubada”.
286
Para a imprensa, qualquer prática de jogos de azar, até mesmo as loterias do
governo, causavam desgraças, tanto ao indivíduo, quanto à sua família, que
passavam horas e horas nessa atividade, esbanjando o dinheiro que poderia ter
outro destino e o tempo em que poderia ganhar dinheiro. Havia a tentativa de inserir
essa mentalidade na população, uma vez que com a inserção do capitalismo, o
tempo tornou-se sinônimo de dinheiro, e quanto mais se produzia, mais se ganhava.
Mas a sociedade não tinha esse mesmo ideal, até porque não havia trabalho para
todos. Para muitos indivíduos, a melhor forma de ganhar dinheiro, era o jogo. E
para outros o pouco que se ganhava investia no jogo com a esperança de ascensão
social, uma vez que, essa prática fazia parte da cultura popular e mesmo os pobres
jogavam.
Os administradores públicos utilizavam um discurso pautado na preocupação
com as pessoas menos favorecidas, economicamente, para extinguir o jogo:
“muitas vezes o pobre deixa de comprar mais um pão reclamado por seus filhos e
guarda o exíguo dinheiro para esse jogo infame”
287
Esta era uma forma de
encontrar elementos que justificassem a condenação da prática. Real preocupação
com os pobres não havia, pelo menos no que diz respeito em querer auxiliá-los com
uma melhor condição financeira, pois nada faziam para isso. A preocupação estava
centralizada no interesse de extinguir o jogo do bicho e evitar que as pessoas de
baixa renda estragassem a imagem social do país com a ociosidade, os crimes, e
as práticas ilícitas de trabalho.
O fato era que em Porto Alegre os bicheiros andavam livremente, sem se
importar com as autoridades: O bicheiro atual perdeu o ar orgulhoso de outrora; o
286
Idem.
287
Gazetinha, 06 abr. 1899.
87
seu campo favorito, onde ele perlustra livremente, sem que a importuna autoridade
lhe vá pedir contas dos seus atos”
288
.
Agir completamente para a extinção do jogo do bicho era difícil. O próprio
Estado rio-grandense fornecia a esse jogo um duplo sentido: para a lei era proibido,
e praticá-lo poderia levar à prisão; mas para o Estado era legal, eis que organizava
loterias estaduais, além de aceitar a federal e as estrangeiras (Paraguai, Argentina
e Montevidéo). Se o Estado visava lucro com a exploração dos jogos, então porque
não ter mais uma renda, legalizando o jogo do bicho? Herschmann e Lerner
discutem o ataque do Estado carioca ao jogo do bicho.
...ao combater o bicho acabava por defender também os rendimentos de
sua concessionária que lhe pagava tributos sobre as vendas de poules,
por outro, havia uma rede de corrupção que aos poucos se difundia e que
favorecia desde os bicheiros, até os policiais e membros do governo
289
Em Porto Alegre, essa era a relação entre jogo do bicho, polícia e governo.
Acompanhando a imprensa, percebe fortes ataques lançados ao Estado, devido a
existência de práticas contraventoras. Por outro lado, em nenhum momento, o jogo
do bicho chegou nos discursos de Parlamentares ou de Vereadores para pedir
licença e entrar na sociedade ou mesmo para ser demitido. E isso é curioso! Com o
alvoroço da Imprensa, a Assembléia e a mara optaram pelo silêncio. Questiona-
se: o bicho se escondeu dos representantes políticos da sociedade ocupando
apenas os cantos da cidade, ou estes se escondiam do bicho no momento de criar a
lei?
A presença de políticos envolvidos no jogo do bicho inexiste explicitamente.
Mas ‘escavando’ um pouco, visualiza-se foscamente, autoridades porto-alegrenses
que fraudavam resultados da loteria para proveito próprio. Foi o caso de
funcionários da Estação Telegráfica de Cachoeira, como o Senhor Raul Abbott,
chefe da Estação Senhor Sommer, e outros que antes de descobrirem a fraude
foram removidos para a Estação de Vitória (ES) e de Goiás (conhecida como
Cucuhy” do pessoal telegráfico
290
). Difícil explicar a expressão grifada, mas
entende-se pela análise da notícia, ser uma espécie de esconderijo daqueles que
praticavam fraudes nos telegramas. Com apuração de sindicância descobriram os
288
Gazetinha, 06 abr. 1899.
289
Herschmann e Lerner, op. cit. p. 67.
290
Ver A Federação, 18 mai. 1898.
88
falsários e, por sua vez, já estavam no tal castigo ‘feroz’: apenas um refúgio em
outra cidade. Algo tão simples para tamanha prática: além de jogar, falsificar
bilhetes.
291
E não eram estes que jogavam. No meio do caso citado acima, também
estava o denominado nosso velho’ que era feitor de linha, mas ocupava o cargo de
chefe de gabinete (com o nome de Rodolfo). Esse aparece em diversos momentos
no ‘flash’ da imprensa: “o nosso velho mandou servir chope e depois,
encarreirando-se a palestra para a bicharia, sem alusão aos percevejos, verificou-se
que eles estavam nos seguintes palpites: o Affasta, no porco; o nosso velho, no
gato; e o trocista , no ganso”.
292
Assim, a conhecida tropa engrossadora
293
(autoridades) jogava as
escancarias, sem medo nenhum. A imprensa listava-os com seus apelidos:
O Affasta tem suas predileções pelo gato, pelo porco e pelo ganso. Mas o
Caipora porque varia muito no palpite, que ora está num, ora noutro daqueles
bichinhos. Assim é que seu Câmara pisca-pisca ontem esteve no gato, hoje
esno porco e amanhã, com certeza, ficará no ganso. O favorito do Moysés
é o lobo por ser este animal de mais instinto. O Pedruca atira-se
desesperadamente na cobra... sem receio do veneno do réptil. O Papa-ranho
é todo jumento. O Maribondo arrisca na hiena porque na repartição é
conhecido pelo homem fera. O Parroá tem suas simpatias pelo boi, pro modo,
diz ele, do apelido do mano. Não joga porém porque é banqueiro e ... um
unha de fome dizemos nós.
294
Estes, por volta de duas horas da tarde, abandonavam o serviço e se
agrupavam na porta da agência, discutindo palpites, até a chegada do bicheiro.
Estavam todos protegidos, juntamente com o banqueiro que era irmão de um dos
apostadores. Autoridade (judiciária) julgar autoridade (administrativa) seria meio
difícil, ainda mais contando com a ‘sorte’. Por isso não tinham medo do ‘veneno da
cobra’. Ironicamente, respondiam à imprensa quando questionavam sobre a real
execução da ‘fezinha’: “vão tentar fortuna no rato porque este bichinho é da família
dos roedores.”
295
É, bons roedores certamente eram, se não na sorte, mas na
291
Idem.
292
A Federação, 25 abr. 1898.
293
Os jornais A Federação, Gazetinha e O Independente constantemente apresentavam metáforas, referindo-se às
autoridades judiciárias e administrativas. Certamente, o medo de sofrer pressão fazia com que a imprensa
utilizasse essa linguagem.
294
A Federação, 20 mai. 1898
295
Idem.
89
administração, que deixavam o trabalho na repartição para entrar na
contravenção. Os ‘doutores da lei’ auxiliavam na criação de um ‘país de bichos.
Por meio desses códigos (apelidos), não foi possível identificar a exata
relação dos jogadores com as autoridades políticas e judiciárias, mas sabe-se, pela
exposição da imprensa, que todos tinham ligação com o governo, uma vez que,
desde o apostador ao dono da banca estavam ‘protegidos’ para a realização de
práticas contraventoras, como o jogo do bicho. Também a expressão ‘repartição’
pode ser referida aos espaços públicos, já que muitas pessoas o denominam
‘repartições públicas’, e não usam a mesma expressão para o contrário, ‘repartições
particulares’.
Observando os jornais, questiona-se porque a sociedade de Porto Alegre
(que era capital), seguida de Pelotas, desenvolvia tal atividade, sem a extinção por
parte da polícia e outras autoridades, enquanto em outras cidades, como o caso de
Rio Grande, essa prática já tinha sido extinta há tempo, pelo menos visivelmente,
que as bancas estavam às escondidas.
296
Pensar que os ‘modernos’ exerciam essa
prática, parecia impossível para os críticos da imprensa, que então justificavam a
partir do ‘compadresco’, em que todos tinham algo em comum - polícia, autoridades
e bicheiros:
O jogo, condenado hoje pela geração moderna e considerado como um abuso
inqualificável e como a maior afronta à sociedade, entrou, a contra-gosto
nosso, para a galeria do compadresco. (...) Porque razão a autoridade não se
sente cheia de valor e de ânimo para a repressão desse abuso sem nome?
Alguma coisa há de superior...e não estará mui longe o dia em que os
arrojados roleteiros estabeleçam, bem junto a um dos postos policiais, uma
banca de roleta
297
Para a imprensa, os jogos eram praticados não apenas pelas classes mais
populares. Se estas realizavam pequenas apostas diárias e acompanhavam o
resultado no jornal, outras misturavam os jogos com política partidária, fazendo das
eleições, um novo jogo. O vício andava até pelo Congresso, como se pode ver no
texto ‘Novo Jogo...Presidencial’ publicado pela Gazetinha que apresentava a
semelhança dos jogos de azar com os candidatos à presidência da República:
O banqueiro organizou o jogo e propõe-se a pagar aos apostadores
triunfantes o dividendo que lhe couber, deduzidos 20% do movimento total
para si. O pagamento será feito no dia em que forem oficialmente
proclamados os futuros presidente e vice-presidente pelo congresso Nacional.
296
Ver Gazetinha, 09 ago. 1898, e A Federação 03 dez 1900.
297
Gazetinha, 09 ago. 1898.
90
As poules custam 10$ e os demais jogos são francos. Se não houver pleito
entre os partidos, serão considerados vencedores os dois candidatos do
governo e neste caso o pagamento será feito no dia seguinte ao da eleição. O
jogo já começou, organizando o banqueiro a seguinte lista de competidores
para ambos os cargos:
Murtinho
Julio de Castilhos
Quintino Bocayuva
Prudente de Morais
Luiz Vianna
Rodrigues Alves
Silviano Brandão
Paes de Carvalho
Severino Vieira
Além destes nomes, o banqueiro oferece-se para vender em
quaisquer outros, de palpite do jogador. São por ora favoritos para a
presidência: Murtinho e Quintino Bocayuva e para vice presidência: Severino
Vieira e Silviano Brandão. O banqueiro aconselha como bons azares: Julio de
Castilhos, Prudente de Morais e Rodrigues Alves para a presidência, e Paes
de Carvalho para vice. A venda de poules ficará encerrada no dia 29 de junho
do corrente ano. É escusado dizer que o jogo tem tido, extraordinária
animação, calando-se já em mais de dez contos de réis o total das apostas.
298
Este fato citado é uma mostra da influência dos jogos na sociedade, inclusive
em momentos eleitorais. Cada vez mais o jogo ganhava espaço na sociedade. A
contaminação dessa prática já se espalhava até pelo Congresso, que possuía
novos personagens para a realização das apostas. Enquanto uns eram sinônimo de
sorte, outros estavam mais próximos do azar, por não apresentarem sucesso
eleitoral com possibilidade de vitória. Para a imprensa, a população estava viciada
no jogo, não importando quem fosse o personagem e as apostas rendiam altos
lucros.
A Gazetinha atacava outros meios de informação, principalmente ligados ao
governo, que quase não apresentavam artigos doutrinários mostrando ao povo o
erro dessa prática. Assim, cabia à imprensa divulgar e criticar a atividade do jogo do
bicho.
299
Talvez isso auxiliava para o alastramento da atividade: lei constitucional
burlada, polícia impotente e imprensa omitida auxiliavam a desmoralização da
capital do Rio Grande do Sul.
Outra critica presente na imprensa estava relacionada à administração do
país. Apresentava-se a possibilidade de regulamentação do jogo através da criação
de impostos, já que isso era comum no Brasil: nesta terra de tudo se impostos,
porque não se há de criar um para aquele que atualmente tomou proporções
298
A Federação, 04 abr. 1901.
299
Gazetinha, 09 ago. 1898.
91
espantosas tornando-se uma fonte de renda para certas pessoas que se empregam
nesse negócio ou como banqueiro ou como agenciadores.
300
E dessa forma, talvez
fosse possível extinguir o jogo com um decreto do governo, uma vez que mesmo
proibido, era praticado clandestinamente.
A Federação defendia nas entrelinhas o governo: queria extinguir o jogo do
bicho para favorecer as loterias. Não admitia que outros indivíduos estivessem
enriquecendo com aquilo que poderia pertencer ao Estado, mesmo sabendo que o
bicho era da família das loterias. Pensar na manutenção das loterias e na
perseguição ao bicho, por parte do governo, era muito estranho, sendo que o
primeiro tinha lei que o proibia e o segundo nada possuía de específico.
Não havia menção, por parte dos banqueiros, sobre a legalização do jogo do
bicho ou possível cobrança de impostos. que no Brasil a lei era fraca, melhor
obter altos lucros na clandestinidade do que legalizar e reduzir o ‘lucro’. para os
jogadores pouco importava se os banqueiros roubavam do governo, o que eles
queriam mesmo, era realizar a ‘fezinha no bicho’.
O jogo do bicho era uma contravenção. Portanto, insistir em sua sustentação
era ferir a lei e atentar contra os interesses que a autoridade tem, por dever,
defender. Os jornais alertavam os bicheiros do risco que estavam correndo em
manter essa prática, para que, caso a polícia fosse agir, não deveriam levar por
surpresa ou reclamar do ocorrido. Isso tudo porque, os banqueiros e vendedores do
jogo do bicho desmoralizavam a sociedade, zombavam da lei e iludiam as
autoridades, faltando com os compromissos. Era preciso fomentar as advertências
sobre o jogo, e nada melhor do que um pronunciamento nos tribunais judiciários,
lembrando a situação em que se encontravam os viciosos.
Nesse contexto, a sociedade não caminhava de acordo com os ideais das
elites, até porque estas cometiam grande falha entre o discurso e a prática.
Frente ao universo político de construção de um Estado burguês ainda em
fins do século XIX, no Rio Grande do Sul, outras práticas infiltravam-se pela
sociedade, e entre elas, estava o jogo do bicho. Se por um lado as autoridades
políticas se preocupavam na formação de Porto Alegre, como capital, por outro,
havia grandes ‘brechas’ administrativas e judiciárias que possibilitavam a inserção
de práticas contraventoras na sociedade: fragilidade da lei, falta de fiscalização,
300
A Federação, 21 dez. 1901.
92
envolvimento de autoridades, pena leve e dualidade de discurso, os quais
auxiliaram na manutenção do jogo do bicho, não só na transição do século XIX para
o XX, como também até hoje.
Dessa forma, percebe-se que a expansão do jogo do bicho em Porto Alegre
não ocorreu, exclusivamente, como tentativa de sobrevivência dos pobres na
transição do século XIX para o XX. Outros elementos, como a ausência de uma
política governamental para a extinção dos jogos e a própria sociedade desafiando
a lei, auxiliaram na abertura de campo para o jogo. Legalizado ou proibido, o certo é
que essa prática conquistou a população e ninguém mais o conseguiu extinguir. Lei,
autoridades políticas e administrativas se uniram, mas não venceram o jogo do
bicho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Marcada pela instabilidade política, econômica e social, a transição do
século XIX para XX no Brasil, foi um período de tentativa de instalação do lema
‘Ordem e Progresso’ orientado pelo positivismo de Augusto Comte. As
transformações realizadas para a construção de uma república civilizada, foram
perceptíveis nos centros urbanos que estabeleciam os padrões de convívio social.
O Rio Grande do Sul, nesse período, compartilhou das mesmas práticas
contraventoras nacionais. Inclusive o jogo do bicho, que surgiu no Rio de Janeiro,
em pouco tempo ‘fixou raízes’ em Porto Alegre, tornando-se até pauta de muitos
discursos. Logo no início da sua chegada recebeu fortes olhares da sociedade,
das autoridades administrativas e jurídicas, e da imprensa que agiam na presença
da lei.
O modelo de sociedade da época facilitou a inserção, permanência e
difusão do jogo do bicho por todas as classes e gêneros. Ricos e pobres,
homens, mulheres, e até crianças, se envolveram com essa prática. Para muitos
desempregados, era uma forma de ascensão social ou pelo menos de
sobrevivência. Outros de melhor poder aquisitivo, praticavam como forma de
prazer ou enriquecimento fácil. Mas ambos, auxiliaram na criação de uma tabela
própria pare este jogo.
A imprensa foi um forte aliado do jogo do bicho. Responsável pela sua
popularização, divulgava os sorteios das loterias, o resultado do bicho e oferecia
palpites, em versos, sobre a possibilidade de ser o animal sorteado. Em outros
momentos, noticiava o jogo do bicho como uma atividade danosa, que duraria
anos da história brasileira. Ou por não ser extinguido logo na sua chegada,
enquanto ainda era frágil e não havia conquistado território firme’, ou porque
92
sabia quem eram os jogadores e banqueiros, e sua relação com a lei: “O jogo do
bicho essa roleta imoral proibida por lei, alastrou-se de tal modo que a policia não
poderá mais extingui-lo
393
. Certamente isso ocorreu. Está-se aí convivendo a
mais de um século com este jogo. Embora os problemas que preocupavam as
elites no final do século XIX ainda estejam presentes, sabe-se que, mesmo o jogo
do bicho sendo considerado, pela imprensa, um ‘caruncho social’, o foi ele o
único responsável por tal condição. A contravenção existente hoje, resulta da
ação de indivíduos que quando conheciam a lei procuravam transgredi-la.
Esse foi o universo do jogo do bicho em Porto Alegre, durante os primeiros
dez anos de existência em âmbito nacional. Tornou-se um ‘polvo que com os
tentáculos mantém a presa até o fim’, largando-o somente quando não tem mais
volta. A peculiaridade das apostas baixas com riscos e ganhos menores que a
loteria, lançou nele um concorrente que conquistou imensa expansão. Enquanto
uns eram fiéis ao jogo, seja na sorte ou como fonte de trabalho, outros o
condenavam. O sonho da sorte e o prazer da aposta, tornaram possível a
existência desse jogo, tanto por ambulantes, quanto em locais fixos. Em versos,
palpites e até orações, o jogo do bicho conseguiu driblar as autoridades que não
realizaram sua extinção. O jogo se tornou mais que uma paixão, um vício, um
sonho, uma oportunidade de ascensão econômica, uma contravenção, e se
enraizou na cultura popular prevalecendo até hoje.
393
A Gazetinha, 30 ago. 1898.
93
REFERÊNCIAS:
1- BIBLIOGRAFIA:
ABREU, Waldyr de. O submundo da Prostituição, Vadiagem e Jogo do Bicho:
aspectos sociais, jurídicos e psicológicos. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos
S.A. 1957.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1981.
BARBOSA, Rui. A crise moral. In: Ruínas de um Governo. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1931.
BILHÃO, Isabel. A Cidade Como Palco das Manifestações Operárias (Porto
Alegre – 1906). In: Histórica. Porto Alegre: APGH-PUCRS, nº 6, 2002.
BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, 1890.
BRASIL. Decreto-lei do Brasil, 1932. In: Atos do Governo Provisório. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1932.
CHALLOUB, Sidney. Trabalho Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CHAUSSINAND-NOGARET, G. Elites. In:BURGUIÉRE, André (org.). Dicionário
das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: imago, 1993.
COELHO, Teixeira. O que é Industria Cultural. São Paulo: Brasiliense, 2003.
EVANGELISTA, Hélio de Araújo. Rio de Janeiro: violência, jogo do bicho e
narcotráfico segundo uma interpretação. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880-1920).
Petrópolis: Vozes, 1978.
94
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol. II: O uso dos prazeres.
Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1988.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 5 ed. São Paulo: Global, 2005.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1999.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LCT, 1989.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela inquisão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HERSCHMANN, Micael; LERNER, Kátia. Lance de Sorte: o futebol e o jogo do
bicho na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A Invenção
do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1999.
MADUREIRA, Ari. Jogo do Bicho: como jogar, como ganhar. ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2001.
MAESTRI FILHO, Mario J. O Escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/ Caxias
do Sul: EDUCS, 1984.
MATTA, Roberto da; SOAREZ, Elena. Águias, Burros e Borboletas: um estudo
antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MAUCH, Claudia. Ordem pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em
Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.
MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 26ªed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais. 2005.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999.
PACHECO, Renato José Costa (org.) Antologia do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro:
Organização Simões, 1957.
95
PADILHA, Ricardo. O Jogo: uma paixão. Porto Alegre: Solivros, 1995.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma Outra Cidade: o mundo dos excluídos no final
do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil, 1890-
1930). 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
ROSSONI, Sirlei. O Cassino Guarani: histórias, memórias e personagens Irai
RS (1940-1994). Passo Fundo: UPF, 2001.
SEÑAS: dicionário para la enseñanza de la lengua española para brasilenos/
Universidad de Alcalá de Henares; tradução: Eduardo Brandão, Claudia Berliner.
2ªed. São Paulo: Martins Flores, 2001.
SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil: da belle époque à era do
rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
SOARES, Simone Simões Ferreira. O jogo do Bicho: a saga de um fato social
brasileiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. ed. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século
XVIII, 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
TIZUKO M. Kishimoto. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo:
Cortez, 1997.
TRINDADE,lgio; NOLL, Maria Isabel. Subsídios para a história do Parlamento
Gaúcho (1890-1937). Porto Alegre: CORAG, 2005.
VIEIRA, Maria do Pilar de; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Yara
Maria Aun. A Pesquisa em História. São Paulo: Editora Ática, 1995.
VIEIRA, Silvia Rita de Moraes. Acervos Hemeroteca: jornais, revistas e
almanaques. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura,
2003.
WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de posturas e regulamentação do convívio
social em Porto Alegre no século XIX. (Dissertação). Porto Alegre: UFRGS, 1992.
96
2- JORNAIS:
Federação. Porto Alegre, 1895, 1896, 1897, 1898, 1899, 1900, 1901, 1902, 1903.
AHPA.
Gazetinha. Porto Alegre, 1895, 1896, 1897, 1898. AHPA.
Gazetinha. Porto Alegre, 1899. MCSHJC.
O Independente. Porto Alegre, 1900, 1901, 1902, 1903. AHPA.
3- DOCUMENTOS:
Instrumento de Pesquisa da Secretaria de Segurança blica. Registro de
Prisões 1896/1904, Códice 38. AHRS.
Processos-Crimes, maço 76, nº 1843, 10 maio 1895. APERGS
Processos-Crimes, maço 76, nº 1841, 1895. APERGS
Processos-Crimes, maço 3, nº 48, 27 maio 1898. APERGS.
Processos-Crimes, maço 2, nº 46, 16 agosto 1898. APERGS.
Processos-Crimes, maço 2, nº42, 17 agosto 1898. APERGS
Processos-Crimes, maço 4, nº 74, 22 de janeiro de 1900. APERGS
Processos-Crimes, maço 4, nº 68, 02 março 1900. APERGS.
Processos-Crimes, maço 4, nº 90, 1902. APERGS
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo