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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
-
UFMG
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
-
FAFICH
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: CIÊNCIA E CULTURA NA HISTÓRIA
O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NA FÍSICA DE
HE
INRICH HERTZ: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
Marco Antônio A. Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé
Belo Horizonte
2007
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Marco Antônio Alves de Carvalho
O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NA FÍ
SICA DE
HEINRICH HERTZ: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em História Área de Concentração: Ciência e Cultura –, ao
programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais
UFMG.
Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé
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AGRADECIMENTOS
Ao professor e orientador Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé pela atenção, desde os tempos do Curso
de Especialização, às minhas questões relativas à História da Ciência e pela dedicação e
acompanhamento do projeto aqui desenvolvido.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade F
ederal de Minas Gerais.
A todos os professores da turma de 2004 do Curso de Especialização em História da Ciência, da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Ao Prof. Dr. Antônio Júlio de Menezes Neto, à Profa. Dra. Maria da Conceição Ferreira Reis
Fonseca e ao Prof. Dr. Orlando Gomes de Aguiar Júnior, da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, pelo apoio e incentivo na minha volta à vida acadêmica.
Aos meus familiares, particularmente à minha mãe, Maria do Carmo Alves de Carvalho e à minha
sogra, Luiza Santos Diniz de Deus, pelo eterno apoio. De forma muito especial, a meu filho Lucas e
à minha esposa Rogéria, pelo incentivo incondicional e pela paciência ilimitada.
RESUMO:
Heinrich Hertz é reconhecido como um dos importantes cientistas do século XIX, tendo passado
à história da física muito mais como o “descobridor” das ondas eletromagnéticas do que por seu
trabalho de reconstrução axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell ou pela sua proposta de
uma nova representação da mecânica na obra The Principles of Mechanics, publicada
postumamente em 1894.
Hertz é também reconhecido por suas idéias nos domínios da filosofia da ciência expostas nas
introduções de
Eletri
c Waves e The Principles of Mechanics. A filosofia da ciência de Hertz
chamou a atenção de alguns filósofos e cientistas do final do século XIX e do século XX, dentre os
quais destaco Max Planck, Ludwig Boltzmann e Ludwig Wittgenstein.
O presente trabalho tem como objeto de estudo a análise do conceito de representação na obra
The Principles of Mechanics do físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894) e suas interfaces com a
ciência e a filosofia da ciência do final do século XIX e início do século XX, tomando
como
referência a reconstrução axiomática da mecânica elaborada por Hertz na referida obra. Mais
especificamente, tal análise concentra-se na tentativa de estabelecer a relevância da proposta
filosófico
-metodológica de Hertz tornada pública às vésperas do período mais crítico do processo
de transição entre a ciência moderna e a ciência contemporânea.
Palavras
-
chave:
Hertz, representações, história da ciência, filosofia da ciência.
ABSTRACT:
Heinrich Hertz is recognized as one of the
most
imp
ortant scientists of the nineteenth
century,
having passed to the history of physics much more as the man who “discovered” the
electromagnetic waves of that for its work of axiomatic reconstruction of the electromagnetic theory
of Maxwell or for its proposal of a new representation of the mechanics in the workmanship
The
Principles of Mechanics
, published after his death
in 1894.
Hertz is also recognized for its ideas in the domain of philosophy of science displayed in the
introductions of Eletric Waves an
d
The Principles of Mechanics
.
The philosophy of science of
Hertz called the attention some philosophers and scientists of the end of the nineteenth century and
the beginning of the twentieth century, amongst which I detach Ludwig Boltzmann,
Ludwig
Wittge
nstein
and Erwin Schrödinger
.
The present work has as study object the analysis of the concept of representation in the
workmanship
The Principles of Mechanics
of the German physicist Heinrich Hert
z (1857
-
1894) and
its relationship with the science and the philosophy of science of the end of the nineteenth
century
and the beginning of the twentieth century, taking as reference the axiomatic reconstruction of the
mechani
cs elaborated by Hertz in the related workmanship. More specifically, such analysis is
co
ncentrated in the attempt to establish the relevance of the philosophical proposal of Hertz, wich
become
s public at the eves of the most critical
period
of the process of transition between modern
science and contemporary science.
Key
words:
Hertz, represe
ntation, history of science, philosophy of science.
SUMÁRIO
1. Apresentação
..........................................................................
2. Capítulo I: Ciência e filosofia no século XIX
I.1. Introdução ..................................................................
I.2. Alguns aspectos sobre a polêmica do éter .................
I.3. Ernst Mach e o conhecimento físico no século XIX ..
3. Capítulo II: A mecânica de Hertz
II.1. Introdução .................................
................................
II.2. A primeira representação da mecânica......................
II.3. A segunda representação da mecânica .....................
II.4. A mecânica de Hertz ................................................
4. Capítulo III
: A filosofia da ciência de Heinrich Hertz
III.1. Introdução ................................................................
III.2. A filosofia da ciência de Hertz ................................
III.3. Comentários sobre algumas das repercussões da
filosofia da ciência de Hertz ...................................
III.3.1. Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann .......
..
III.3.2. Heinrich Hertz e Ludwig Wittgenstein ......
III.3.3. Erwin Schrödinger e os modelos te
óricos
..
5. Comentários finais
.................................................................
6. Bibliografia de referência
......................................................
01
12
16
25
37
39
42
46
55
59
85
85
88
92
96
99
1
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a análise do conceito de representação na
obra
The Principles of Mechanics do físico alemão Heinrich
Hertz
(1857-1894) e suas interfaces
com a ciência e a filosofia da
ciência
do final do século XIX e início do culo XX, tomando como
referência a reconstrução axiomática da mecânica elaborada por Hertz na referida obra. Mais
especificamente, tal análise concentra-se na tentativa de estabelecer a relevância da proposta
fi
losófico
-metodológica de Hertz tornada pública às vésperas do período mais crítico do processo
de transição entre a ciência moderna e a ciência contemporânea. Transição entre uma época cujo
marco inicial é associado à duradoura adesão ao ‘ideal baconiano da boa ciência’ e outra, marcada
pela desconfiança das garantias oferecidas por este mesmo ideal após os abalos nos alicerces da
física newtoniana (FREITAS, 2005, p. 42); entre a concepção filosófica de Galileu de que
‘o mundo
objetivo coincide com o universo de tudo aquilo que é’ (ROSSI, 1992, p. 16) e os modelos (
bild
)
teóricos de Schrödinger que obrigam à
‘renúncia
a uma descrição do que a natureza realmente é’
(D’AGOSTINO, 2004, p. 384); enfim, entre a ascensão e a ‘oposição à idéia de racionalidade
cien
tífica moderna erigida a partir do século XVII por cientistas como Galileu e Newton e filósofos
como Descartes, Bacon e Kant’
(CONDÉ, 2004, p. 2).
A concepção tradicional de ciência empírica foi inaugurada por Francis Bacon (1561
1626) no século XVII e a metodologia para a obtenção de leis científicas por ela sistematizada
pode, grosso modo, ser resumida da seguinte maneira: observações, acúmulo de dados, constatação
de traços de ordem geral, formulação de hipóteses gerais, confirmação das hipóteses através de
verificações experimentais e, finalmente, em caso de sucesso nos procedimentos de verificação,
estabelecimento de uma lei científica (MAGEE, 1977, P. 21). Enganos devem ser evitados
mantendo
-se a mente a salvo das armadilhas da percepção e imune às influências de sentimentos
subjetivos e de fatores sócio
-
culturais (FREITAS, 2004, p. 1).
O ponto de partida dos empiristas é a observação, a qual deve ser neutra, indubitável,
localizada no tempo e no espaço. A observação gera um enunciado particular. A quantidade e a
variedade de observações permitem a passagem de enunciados particulares para enunciados
universais. A passagem de enunciados particulares para enunciados universais levada a termo de
acordo com os critérios estabelecidos é denominada indução e pressupõe uma regularidade da
natureza: admite que o futuro se assemelhará ao passado em todos os aspectos em que as leis
operam (MAGEE, 1977, p. 22).
No entanto, não maneira pela qual este pressuposto possa ser garantido e estabelecido
com base em argumentos lógicos, uma vez que ‘do fato de futuros passados se terem assemelhado
2
a passados passados não deflui que todos os futuros venham assemelhar-se aos passados futuros’
(MAGEE, 1977, pp. 22-23). Tal dificuldade impossibilita a demonstração das leis científicas, o que
força os empiristas a não mais considerá-las verdadeiras, mas prováveis, probabilidade que cresce
com o número de verificações destas leis. De qualquer forma, os princípios baconianos e,
especialmente, o método indutivo passaram a ser considerados critério de demarcação entre ciência
e não-ciência e ‘nada menos que Newton e, posteriormente, Darwin disseram-se tributários dessa
concepção’
(FREITAS, 2005, p. 42).
1
Por outro lado,
Galileu declara que a verdade se nos apresenta de forma evidente no grande livro
da natureza, mas pode descobri-la aquele que está familiarizado com os
símbolos da escrita em que esta verdade se encontra cifrada. Estes símbolos são,
segundo ele, símbolos geométricos: linhas e ângulos, triângulos, circunferências e
outras figuras. Não é possível chegar a conhecer nenhum fenômeno da natureza se
não se sa
be construí
-
lo geometricamente.
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122
).
Rossi (1992, p. 17), citando Horkheimer e Adorno, afirma que ‘a matematização galileana
da natureza reifica-se num processo automático’ e que ‘ao longo do caminho para a nova ciência,
os homens renunciam ao significado.’ O ideal de conhecimento de Galileu encontra legitimação
lógica na filosofia de Descartes (1596 1650) na qual o conceito de espaço ocupa um lugar central
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122)
.
A tendência de matematização da filosofia natural se consolida com Isaac Newton (1643
1727). De acordo com Burtt (1983, p. 23), ‘Newton foi o homem que tomou termos vagos como
força e massa e
deu
-lhes significados precisos como contínuos quantitativos, de tal modo que,
através de seu uso, os fenômenos principais da física tornaram-se redutíveis ao tratamento
matemático.’
A concepção newtoniana de uma natureza mecânica segundo a qual os fenôme
nos
naturais são redutíveis a massas em movimento sob a ação de forças
possibilitou ao cientista levar
a cabo, de forma extraordinária, a referida matematização. Mas Burtt atribui a Newton uma outra
responsabilidade:
Quanto à ciência pré-newtoniana, ela constitui um movimento único com a
filosofia pré-newtoniana, tanto na Inglaterra quanto na Europa continental; a
ciência era simplesmente a filosofia natural e as figuras influentes desse período
eram também os grandes cientistas. É ao próprio Newton que s
e deve, basicamente,
a distinção que chegou a produzir-se entre as duas; no essencial, a filosofia passou
a deixa
r a ciência de lado... (
1983, p. 22).
1
O problema da indução foi exaustivamente discutido na filosofia. Um dos mais destacados pensadores que abordaram
este problema foi Karl Popper, o qual rejeita a indução e critica o método indutivo com o objetivo de propor um novo
conceito de ciência empírica através de um critério de demarcação logicamente fundamentado. Segundo o autor, o
critério adotado pelos empiristas ao aceitarem como científicos apenas os enunciados redutíveis a enunciados
elementares da experiência o que ‘é idêntico à exigência de uma lógica indutiva’ é insuficiente, que a indução
não se apóia em bases lógicas, além de tornar metafísicas as leis naturais. Sobre o assunto, ver POPPER, K.
A lógica da
pesquisa científica
.
São Paulo: Edusp/Cultrix, 1975.
3
No entanto, a afirmação de Burtt deve ser considerada com cautela. De acordo com Cassirer,
havia, no
Pr
incipia
, uma preocupação, de caráter filosófico, com a normatização metodológica:
Newton agrega à sua obra mestra um capítulo especial no qual intenta reduzir a
regras seguras o modo de formação de conceitos em física e determinar a função e
os limites desta operação. Tampouco ele se limita a refletir sobre o objeto,
estendendo, também, suas reflexões ao método das ciências da natureza: ao lado
dos princípios matemáticos da teoria da natureza aparecem, como complemento
necessário e parte integrante do sistema total, as Regulae philosophandi. A
filosofia não só se enlaça com todas as aspirações, mas também as resume e
sintetiza. Trata de defendê-las sistematicamente e de justificá-las criticamente.
Desta tendência nasceu a Crítica da razão pura de Kant (vol. IV, 1986, pp. 102-
103
).
No século XVIII e até meados do século XIX, os princípios newtonianos sintetizavam o
‘ideal da boa ciência’
ou mesmo, a demarcação entre ciência e não
-
ciência. Procurava
-
se estender a
aplicação do modelo de Newton para a mecânica aos demais domínios da física e acreditava-se que
o mecanicismo seria a única possibilidade de compreensão da natureza (CASSIRER, pp. 106 e
109).
Ao longo da história, modos diferentes de ver o mundo e de conceber o conhecimento
entrelaçam
-se e, de forma subjacente ou determinante, acabam por balizar as propostas
metodológicas para a ciência. Segundo Burtt (1983. pp. 10-
18),
‘o conhecimento não era um
problema para a filosofia dominante na Idade Média’, o ser humano ocupava uma posição
destacada e determinante diante de uma natureza passiva e subserviente, inteligível para aquele que
procurasse compreendê-la. Mas, aos poucos, ‘o trono de Deus’ foi sendo deslocado,
2
o universo foi
se transformando em uma imensa máquina perene que opera por si só, e frente a esta natureza,
agora determinante e permanente (BURTT, 1992, p. 11), o ser humano se torna um espectador
irrelevante de seus feitos, quase um intruso em seus domínios’ (
Ibidem
, p. 17). Mais tarde, ao final
da primeira metade do século XIX, a teoria da evolução de Darwin, de certa forma, põe um fim à
distinção entre homem e natureza.
O possível pessimismo existencial provocado pelo ‘descentramento do homem’
3
ocorrido a
partir do século XVII foi substituído pela esperança na racionalização do mundo que atinge seu
ápice no iluminismo do século XVIII (CONDÉ, 2004, p.17.). Até o século XIX, a física clássica,
por exemplo,
Está convencida de que a razão e a experiência são capazes de penetrar na essência
das coisas
e de
que
estas
se vão descobrindo, paulatinamente, diante de nós. Jamais
se põe seriamente em dúvida, aqui, o valor
ontológico
das teorias físicas, por muito
que estas
se diferenciem por seu conteúdo
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122).
2
KUHN, T. S.
The Copernican revolut
ion.
Cambridge: Harvard University Press, 1957, p. 114.
3
CONDÉ, 2004,
p.17.
4
Rossi (1992, p. 17) declara, citando novamente Horkheimer e Adorno, que ‘o Iluminismo
ignorou a exigência clássica de pensar o pensamento’. Se assim foi, pode-se dizer que a postura
dos pensadores do século XIX em relação ao problema se mostrou bastante diferente. Nos estudos
históricos sobre os aspectos culturais do referido século, frequentemente nos deparamos com
alusões à singular riqueza e diversidade características da atividade intelectual naquele período,
especialmente no que se refere ao conhecimento científico. Para alguns autores, tais expressões de
admiração
, são justificáveis se considerarmos que grande parte das principais idéias colocadas em
circulação à época viriam caracterizar a ciência contemporânea, dando uma nova perspectiva
para a própria concepção de racionalidade científica”
.
4
Nas ciências naturais, é o século das idéias de Darwin, Helmholtz, Mach, Boltzmann e de
um sem número de cientistas e pensadores. Na física, o
“antigo
´realismo´ é desalojado por um
´fenomenismo´ que não discute somente a possibilidade de solução, mas também o sentido, a r
azão
de ser de determinados problemas de que o pensamento físico vinha se ocupando”
(CASSIRER
,
vol. IV, 1986, p. 105).
Para Freitas,
5
diante do sucesso inconteste da física newtoniana por mais de dois séculos, a
‘epistemologia se perguntava como Newton alcançara a verdade’. Em face das limitações da física
newtoniana, expostas no final do século XIX, a pergunta passa a ser a seguinte: “se não um
método científico que conduz à verdade, então que privilégio se é que existe algum o
conhecimento científ
ico pode ter sobre outras formas de conhecimento?”
6
Creio que uma parcela da comunidade científica do século XIX concordaria, pelo menos em
parte, com a questão colocada por Freitas e debruçou-se sobre o problema. Apesar de convencidos
da posição privilegiada da ciência em relação às demais formas de conhecimento, alguns dos
cientistas da época tomaram para si a responsabilidade da reflexão crítica demandada pelos
tremores nos pilares da física clássica. Assim é que se pode observar nos trabalhos de Helmh
oltz,
Hertz, Boltzmann, Mach e muitos outros
7
uma preocupação com a análise epistemológica ou com a
normatização metodológica.
Ao longo do século XIX, os diferentes pontos de vista sob os quais se efetivaram tais
reflexões críticas resultaram em acalorados debates em torno de alguns temas fundamentais para o
4
CONDÉ, M. L. L., “Wittgenstein e a Gramática da Ciência”. In.
Unimontes Científica
. Vol. 6. N° 1, jan/jun, 2004.
5
FREITAS, R. S. “A que vem uma abordagem pragmática da ciência? In: A ciência e seus impasses. Fiocruz: Rio de
Janeiro, 1999, p. 53.
6
Ibidem
.
7
De acordo com Cassirer, nem mesmo os realistas conseguiram escapar à análise epistemológica (1986, vol. IV, p.
103).
5
desenvolvimento da física: ações a distância
versus
ações mediatizadas, conceito de causa e efeito
versus
conceito de função
,
8
hipóteses
versus
descrição matemática dos fenômenos, etc.
Mas, se não se pode deixar de atribuir a devida importância a cada uma destas disputas
específicas, não se deve, tampouco, ignorar sua condição de tópicos da pauta de uma
questio
disputata
9
muito mais ampla e que pode ser, grosso modo, resumida da seguinte forma: qual
‘deveria ser o conceito e a missão da ciência natural’
(MARTINS
, 1998, p. 113), que concepção
metodológica deveria ser adotada pelos cientistas do século XIX diante de uma natureza que se lhes
apresentava cada vez mais diversa, multifacetada?
O cerne da dis
puta por uma resposta hegemônica à referida questão é sintetizada da seguinte
maneira pelo cientista Georg Helm (1851
1923):
A disputa
10
... não gira, propriamente, em torno do atomismo ou da plenitude
contínua do espaço, dos sinais de desigualdade na termodinâmica ou da
fundamentação energética da mecânica; tudo isso não passa de detalhes. O que
aqui se ventila, em última instância, são os princípios que presidem o nosso
conhecimento da natureza
(
apud
CASSIRER
, 1986, p. 121).
Certamente que esta não foi uma preocupação exclusiva do século XIX: Galileu e Newton,
por exemplo, basearam suas investigações dos fenômenos naturais em concepções firmemente
estabelecidas do que poderia e deveria ser o conhecimento científico (CASSIRER, 1986, pp. 102-
103).
Porém,
os problemas que a natureza, as transformações culturais e as novas possibilidades
disponibilizadas pela própria ciência vinham impondo à comunidade científica no século XIX
levaram os cientistas a questionar, com uma intensidade inédita, o conceito e a possibilidade de seu
objeto de estudos (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 106). De acordo com Cassirer, se perguntássemos
“a Mach e a Planck, a Boltzmann e a Ostwald, a Poincaré ou a Duhem o que é uma teoria física e
o que ela pode prover, obteríamos respostas di
ferentes, senão opostas”
(1986, pp. 105
-
106).
Mas, a que vêm as breves considerações sobre as relações entre ciência, metodologia e
concepção do conhecimento feitas até aqui? Apesar de não compartilhar do ponto de vista de que a
história da ciência se re
sume à história do método científico,
11
dedico parte deste trabalho ao estudo
da ferrenha disputa metodológica ocorrida no século XIX, a qual influencia e motiva a obra de
Hertz. Para isso, adoto, sem levantar questionamentos – o que extrapolaria os limites deste trabalho
duas das premissas identificadas por Rossi (1992, p. 121) nos trabalhos de cunho filosófico-
8
MACH, 1960, p. 325
.
9
Tomo o termo emprestado de Koyré
(1982, p. 56).
10
Helm refere-se à repercussão da conferência proferida por Ostwald (1853 1932) em um congresso de médicos e
cientistas alemães realizada na cidade de Lubeck, em 1895. Para Helm, esta conferência foi o marco inicial da oposição
radical ent
re mecanicistas e energetistas.
11
Rossi (1992, pp. 121
-
123) afirma que diversos historiadores da ciência do século XX adotaram tal perspectiva.
6
historiográfico de pensadores como Cassirer:
12
“1. existe uma entidade unitária denominada
‘ciência moderna’; 2. existe um método (formulável com relativa clareza) que seria o método da
ciência moderna.”
À primeira vista, a segunda premissa parece contradizer a proposta de estudo de uma disputa
metodológica na física do século XIX. No entanto, esta premissa pode ser flexibilizada pela
perspectiva do
próprio Rossi:
Alternativas, escolhas entre teorias, entre modos diferentes de ver o mundo e de
entender a ciência estão sempre em ação em toda a história da ciência. Nela estão
presentes cânones explicativos variáveis, métodos diversos, tradições de pesq
uisa
diferentes e contrastantes, imagens diversas e às vezes opostas da ciência.
Baconismo, galileísmo, cartesianismo, newtonismo, leibnizianismo, como o termo
aristotelismo, são certamente etiquetas que recobrem tendências e problemas
diversos: são entidades não facilmente isoláveis, variáveis no tempo, mas são sem
dúvida também
programas
ou
tradições
filosóficas e científicas em competição
entre si. Em torno desses programas (ou, se preferirmos, metafísicas), que
implicam modos diferentes de conceber a ciência e de
praticá
-
la
, são construídas e
consolidadas, no início da Idade Moderna, as novas ciências da natureza (1992, pp.
122
-
123).
Uma outra questão pode ainda ser levantada: “Privilegiar os métodos e a epistemologia não
significa acreditar que a ciência... é apenas (ou predominantemente) o resultado da aplicação de
uma metodologia?”
(ROSSI, 1992, p. 124).
Para Thomas Kuhn ‘a ciência é a propriedade comum de um grupo
’.
13
Uma tal perspectiva,
segundo Stengers,
14
preserva ‘a autonomia de uma comunidade científica em relação ao seu
ambiente político e social’, garante à ciência uma espécie de
extraterritorialidade
’,
15
além de
desconsiderar
‘a idéia de que a cultura é uma totalidade, ou pelo menos que as ligações entre as
diferentes artes e disciplin
as são
extremamente importantes’
.
16
Segundo Latour, a ciência retira sua autoridade de jogos de poder, nos quais leva vantagem
por contar com ‘uma linguagem particularmente eficaz para aliciar os demais: a linguagem dos
resultados experimentais, dos gráficos e das tabelas
’,
produzidos nos confiabilíssimos e
inquestionáveis laboratórios.
17
Stengers
18
propõe a utilização do registro político para descrever as ciências.
12
É importante ressaltar que Rossi identifica tais premissas na sua crítica ao ‘mito historiográfico’ da continu
idade
entre a escola de Aristóteles e a ciência moderna (1992, p. 121).
13
STENGERS, I.
A Invenção das Ciências Modernas
.
São Paulo: Editora 34, 2002, p.13
14
Ibidem.
15
Ibidem
, p. 16.
16
BURKE, P.
Variedades de História Cultural.
Rio de Janeiro: Civilização B
rasileira, 2000, p.34.
17
FREITAS, R. S. “A que vem uma abordagem pragmática da ciência? In: A ciência e seus impasses. Fiocruz: Rio de
Janeiro, 1999, p. 64.
18
STENGERS, I.
A Invenção das Ciências Modernas
.
São Paulo: Editora 34, 2002, p.29.
7
Condé percebe uma espécie de crise da razão na cultura contemporânea, ao considerar que
“o mundo
contemporâneo comporta não apenas múltiplas interpretações do real, mas também uma
espécie de suspeita do lugar a partir do qual essas interpretações são construídas, isto é, da
própria idéia de razão”.
19
Para a abordagem desse problema, o autor oferece como alternativa a
intrincada
“teia”
constituída a partir da noção wittgensteiniana de
gramática
, em que a
compreensão da racionalidade passa pela consideração de aspectos biológicos, culturais,
pragmáticos, etc.
Tomando como exemplo Galileu Galilei, Koyré (1982, pp. 259-270) propõe que as
convicções científicas do cientista são plenamente coerentes com sua atitude estética e tanto esta
quanto aquelas guardam relação com o ambiente familiar, social e histórico em que Galileu
conviveu.
20
Mas, seja na elaboração de uma teoria científica ou na reflexão crítica sobre esta mesma
teoria, acredito, com Poincaré, que “cada um carrega consigo sua concepção de mundo da qual
não se pode desfazer assim tão facilmente” (1984, p. 116). Creio, ainda, que tal concepção é
conf
ormada por nossas interações (de caráter biológico e cultural) com o mundo, as quais se dão
por meio de uma trama (ou
teia
, como prefere Condé) cujos fios multiderecionados representam os
contatos com os aspectos filosóficos, científicos, éticos, estéticos, ideológicos, etc. e das relações
que estabelecemos entre estes aspectos.
Diante da impossibilidade de mapear a emaranhada teia na qual se encontra a mecânica de
Hertz, limito-me à tentativa de esboçar a direção de alguns de seus fios que foram se constituindo e
trançando ao longo do século XIX. Essa estratégia pode ser útil para a compreensão do valor do
trabalho de cunho filosófico-metodológico de Heinrich Hertz em meio à conturbada cena em que se
desenvolviam os debates científicos do final daquele século. Para tanto, dividirei este trabalho em
três capítulos.
No primeiro capítulo, objetivando situar o contexto em que se desenvolveu e repercutiu
o
trabalho de Hertz, faço um breve relato dos ambientes científico e filosófico do século XIX,
detendo
-me de forma mais demorada nas tensões resultantes de alguns dos principais debates
ocorridos nestes ambientes. Nesse capítulo, focalizo, primeiramente, o problema do éter
‘el
verdadero hijo doliente de la teoría mecánica’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 111)
,
tomando
como base as perspectivas de Maxwell e Helmholtz, dois proeminentes representantes de posições
antagônicas nesta polêmica. A escolha destes dois cientistas não se deu apenas por critério de
19
CONDÉ, M. L.
L.,
As Teias da Razão: Wittgenstein e a Crise da Racionalidade Moderna. Belo Horizonte:
Argvmentvm, 2005.
20
Esta referência a Koyré deve ser tomada com reservas, uma vez que o próprio autor desconsidera tais fatores em seus
trabalhos sobre a história do pe
nsamento.
8
notabilidade, mas também pela estreita relação de seus trabalhos com o de Heinrich Hertz. As
pesquisas experimentais realizadas por Hertz na comparação entre as teorias eletromagnéticas de
Maxwell e Helmholtz resultaram na contribuição científica pela qual ele é mais conhecido: o
estabelecimento das ondas eletromagnéticas. Por fim, o compromisso de Hertz com o programa do
éter
fortalecido pelos resultados experimentais obtidos no estudo do eletromagnetismo e sua
intenção de engendrar um modelo abrangente para ações mediatizadas por um éter hipotético
caracteri
zam de forma marcante os conteúdos filosófico e científico de The Principles of
Mechanics
.
Em seguida, introduzo alguns aspectos do pensamento de Ernst Mach relacionados a
questões relevantes para a compreensão da obra de Hertz, uma vez que não são raras as alusões
mútuas às obras de um e de outro. Além do mais,
a
escolha do pensamento de Mach como
referência privilegiada é justificada pela opinião de autores, como Janik e Toulmin, para os quais
Mach foi ‘um cientista que, como poucos, exerceu tão grande influência sobre sua cultura’ (1973,
p. 133) e de Cassirer para quem ‘com ele [Mach] a física parece entrar em uma nova fase de sua
trajetória epistemológica, fase que chegou a ser considerada, com freqüência, não como um
progresso importante, mas também
como
sua forma definitiva’ (vol. IV, 1986, p. 117). Os
pensamentos de Hertz e Mach convergem em determinados aspectos e divergem completamente em
outros. O mesmo ocorre quando se considera as concepções científicas e epistemológicas de
Boltzmann
um opositor das idéias de Mach ao qual me refiro de maneira muito breve nesse
primeiro capítulo em relação às de Hertz. E esta talvez seja a chave para a confirmação de Hertz
como uma figura de transição em uma época de transição.
Para melhor situar historicamente e culturalmente o caráter biológico do pensamento de
Mach, julguei útil discorrer, de forma resumida, sobre a teoria da evolução de Darwin e algumas
formas de apropriação desta teoria, embora alguns autores, como, por exemplo, D’Agostino (2004)
consid
erem que a origem da concepção psicofísica do conhecimento adotada por Mach encontre
suas raízes na epistemologia de Helmholtz – fundamentada em investigações de cunho fisiológico
e o próprio Mach se declare tributário das idéias de Fechner e Avenarius (JANIK E TOULMIN,
1973, pp. 134-135). No entanto, as impressões deixadas pelo evolucionismo na concepção
epistemológica de Mach (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 115) são inegáveis.
21
Também com o
propósito de estabelecer um pano de fundo para a cena cultural do século XIX, são mencionados
21
Certamente que Mach não foi o único pensador a incorporar os preceitos evolucionistas à teoria do conhecimento. Em
um determinado momento de sua trajetória científica, Boltzmann tomado aqui como exemplo em razão das
interseções entre sua concepção de ciência e a de Hertz adota uma ‘epistemologia de tipo evolucionária (influenciado
por Darwin)’ e, passa a endossar a perspectiva de que nossa maneira de pensar é modificada ao longo da história
(A
BRANTES, 1992, P.
371).
9
alguns aspectos relativos às transformações que vinham ocorrendo no mundo de língua inglesa e
aos sistemas idealistas da filosofia alemã.
Para complementar o estabelecimento do contexto a partir do qual será elaborada a análise
da obra de Hertz enfocada neste trabalho, esse primeiro capítulo é encerrado com rápidas
considerações a respeito da atenção de intelectuais e cientistas do final do século XIX ao estudo das
representações
síntese da concepção hertziana de teoria científica e cerne da proposta filosófico-
metodológica apresentada em The Principles of Mechanics destacando a origem kantiana do
termo
representação
e suas implicações nas questões referentes à linguagem e quaisquer outros
meios de expressão.
O segundo capítulo é dedicado a considerações sobre a mecânica de Heinrich Hertz. Nele
enfatizo a análise crítica de Hertz das representações tradicionais da mecânica (newtoniana e
energetista), em que o autor expõe seu ponto de vista sobre os elementos problemáticos pre
sentes
nos princípios fundamentais das referidas representações. Em seguida, apresento a proposta de
Hertz para uma nova representação da mecânica, abrindo mão de discorrer minuciosamente sobre
seu conteúdo físico, para contemplar os pontos em que a proposta hertziana enceta tentativas de
solucionar os problemas apontados nas duas primeiras representações. Para que as críticas e as
proposições de Hertz possam ser mais bem compreendidas, inicia-se esse segundo capítulo com a
apresentação de alguns aspectos d
a concepção de Hertz sobre o conhecimento físico
22
e a exposição
dos critérios adotados pelo cientista para a análise das representações científicas das imagens dos
fenômenos naturais
.
Nas críticas à representação newtoniana da mecânica fica claro que o conceito de força
constitui
-se no principal incômodo para Hertz
23
. Segundo o cientista, a diferença entre as
concepções de força utilizadas na primeira e na segunda leis de Newton constitui-se em uma
obscuridade lógica inconcebível. Além do que, Hertz não é partidário das ações a distância
pressupostas no modelo newtoniano
24
. Também os princípios matemáticos utilizados na descrição
dos fenômenos mecânicos, como o de d’Alembert, são alvo da apreciação desfavorável do cientista.
Em certas passagens de The Principles of Mechanics Hertz demonstra certa admiração pela
representação energetista da mecânica. No entanto, suas críticas à aplicação dos princípios de
mínimo, tão proeminentes nesta imagem da mecânica, são implacáveis. A insatisfação do cientista
com a definição do conceito de energia é menos severa, mas relevante. Portanto, a apresentação do
22
A concepção de Hertz a
respeito do conhecimento físico será analisada de forma mais detida no Capítulo III.
23
MACH, 1960, p. 321; POINCARÉ, 1984, p. 131.
24
ABRANTES, 1992, p.
373
.
10
ponto de vista de Hertz sobre a representação energetista da mecânica feita nesse segundo capítulo
gira em torno, principalmente, destes dois aspectos.
Por fim, apresento a mecânica de Hertz e suas repercussões. Quanto ao conteúdo físico da
reconstrução axiomática proposta pelo cientista, os principais aspectos ressaltados são: a escolha
das concepções fundamentais das quais parte a representação hertziana como forma de evitar as
concepções
‘problemáticas’
de força e energia; a sua ‘lei fundamental’ que, de certa forma, além de
representar uma novidade, é a referência mais conhecida e permanente da mecânica de Hertz
através do princípio de menor curvatura (MOREIRA, 1995, p. 40); as alternativas proporcionadas
pela lei fundamental aos enunciados do princípio da conservação da energia, do princípio de
Hamilton e à caracterização da força como causa do movimento; a coerência entre a forma em que
os princípios da mecânica são desenvolvidos e a proposta metodológica de Hertz; e a inclusão da
hipótese de massas ocultas, talvez o aspecto mais ousado e distinto do conteúdo científico de
The
Principles of Mechanics. De maneira geral, as considerações a respeito do conteúdo físico
da
mecânica hertziana servirão como suporte à análise da filosofia da ciência de Heinrich Hertz.
É dessa análise da filosofia da ciência de Hertz que se ocupa o terceiro capítulo.
Inicialmente, procuro identificar os elementos kantianos
25
na concepção do conhecimento adotada
por Hertz. As implicações da filiação kantiana do cientista são analisadas a partir da comparação
com a concepção biológica do conhecimento de Ernst Mach
26
. A relevância e as repercussões na
física da filosofia hertziana da ciência expostas na introdução à The Principles of Mechanics e de
sua concepção das teorias científicas como
representações
(
bild
) são, então, examinadas à luz das
análises de autores como Cassirer (1986) e D’Agostino (2004): da Bild conception “isomórfica” de
Hertz,
passando pela defesa intransigente de Boltzmann da inclusão de hipóteses que ‘vão muito
além dos fatos’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 380) concepções que se contrapõem ao empirismo
antimetafísico de inspiração machiana que vai se tornando dogmático no início do século XX
chega
-se aos modelos inevitavelmente “não isomórficos” de Schrödinger (D’AGOSTINO, 2004, p.
385) propostos em meio aos debates epistemológicos ocorridos posteriormente aos trabalhos de
Planck e Einstein, considerados os marcos fundadores da ch
amada Física Moderna.
25
Janik e Toulmin (1973) caracterizam a concepção do conhecimento de Hertz como neokantiana. D’
Agostino
(2004, p. 380), considera que certas posições de Hertz em relação, por exemplo, às concepções de tempo espaço
refletem sua adesão a um ‘kantianismo ortodoxo.’
26
A ênfase aos aspectos kantianos do pensamento de Hertz não implicam em considerar que a concepção do
conhecimento do cientista ou seu ponto de vista sobre o significado das teorias científicas sejam exclusivamente
derivados das idéias de Kant. No entanto, as dificuldades em se estabelecer com clareza uma identificação entre a
postura de Hertz diante do conhecimento científico e uma corrente qualquer de pensamento com características
razoavelmente bem definidas como mostram os trabalhos de Abrantes (1992) e Moreira (1995) tornam a atenção à
sua filiação à tradição kantiana um ponto de
partida seguro para a análise pretendida.
11
Finalmente, detenho-me na análise da influência do conceito hertziano de
representação
na
obra
Tractatus Logico-
Philosophicus
, na qual seu autor, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein,
desenvolve uma ‘teoria modelo da linguagem’ com o objetivo de demonstrar a possibilidade de
uma linguagem representacional (JANIK e TOULMIN, 1973, p. 181). As investigações das
relações entre The Principles of Mechanics e
o
Tractatus Logico-
Philosophicus
abrangem os
prováveis atrativos identificados por Wittgenstein na obra de Hertz, dentre eles, a possibilidade
oferecida pela metodologia proposta pelo físico alemão de ‘expor a natureza e os limites da
linguagem em termos de sua estrutura’ (
Ibidem
), sem que fosse necessário recorrer a uma
metalinguage
m, e a concepção hertziana de modelos dinâmicos.
Como disse anteriormente,
limito
-
me
, neste trabalho, à tentativa de esboçar a direção de
alguns dos
fios
da
teia
na qual se insere a mecânica de Heinrich Hertz. Para tanto, optei por rastrear,
preferencialm
ente, alguns dos fios de cunho filosófico-
científico
que foram se constituindo e
trançando ao longo do século XIX e outros que alcançaram o século XX. O critério utilizado para
delimitação da extensão bibliográfica fundamentou-se na intenção de evitar conc
lusões
determinadas por relações estabelecidas de forma especulativa entre as concepções de Hertz e as
daqueles que o precederam e sucederam. Tal estratégia, embora conservadora, foi adotada com a
firme intenção de apresentar uma imagem, com a nitidez possível, do conceito de representação na
física de Heinrich Hertz.
12
CAPÍTULO I
CIÊNCIA E FILOSOFIA NO SÉCULO XIX
I.1. INTRODUÇÃO
Caracterizado por alguns autores como
um momento extraordinário na cultura ocidental
1
e
‘´época de ouro` da
ciência
,
2
o século XIX foi um período de efervescência intelectual em que
idéias firmemente estabelecidas foram discutidas e criticadas, ao mesmo tempo em que se
constituíram novas idéias a partir de novas fundamentações.
Este é, também, sob a inspiração da filosofia alemã - especialmente o sistema de Hegel -, o
‘século da história’
,
3
o século em que se procura, através da história, explicar o presente e projetar o
futuro. Na oposição à disseminação generalizada deste
‘historicismo’
,
4
encontravam
-
se,
prin
cipalmente, alguns revisores de Kant, como, por exemplo, Arthur Schopenhauer (1788
1860).
5
Filosofia e ciência têm seu divórcio decretado
6
e, nesse processo, a ciência abre mão da
parte do patrimônio conjuntamente construído relativo a idéias de inspiração transcendental e
metafísica.
Em 1859, Charles Darwin (1809 1882) publica sua teoria da evolução através da obra
intitulada
A Origem das Espécies. Em apenas uma década após a publicação do livro, a
intelectualidade convenceu-se da existência do evolucionismo (GOULD, 1999, p. 1), apesar de seu
conteúdo revolucionário. Segundo o próprio Darwin, ela
“revolucionaria
o estudo dos instintos, da
hereditariedade e da mente e transformaria toda a metafísica” (apud
DESMOND
e
MOORE
,
1995, p. 256
-
257).
Surgem as lógicas não-clássicas e as ciências humanas. Na matemática, destacam-se o
surgimento das geometrias não-euclidianas, a criação por Hamilton das álgebras não-comutativas e
por Grassmann da álgebra linear, além do estabelecimento da independência da matemática em
relação ao mundo físico “real” sob a influência da obra de Cantor.
Na física deve-se ressaltar o surgimento e o desenvolvimento da Termodinâmica, a
enunciação do Princípio da Conservação de Energia, o estudo da relação entre fenômenos elétricos
e m
agnéticos
- e a conseqüente proposição de rias teorias eletromagnéticas -, o fortalecimento da
1
CONDÉ, M. L. L., “Wittgenstein e a Gramática da Ciência”. In.
Unimontes Científica
. Vol. 6. N° 1, jan/jun, 2004.
2
ÉVORA, F. R. R. (Ed.),
Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea.
Campinas, 1992.
3
KOYR
É, A., Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1982.
4
CASSIRER, E.,
El Problema del Conocimiento, IV
. México: Fondo de Cultura Econômica, 4ª reimpressão, 1986.
5
De acordo com Janik e Toulmin (1996, pp. 150 e 211), Schopenhauer opunha-se à transformação da filosofia crítica
‘nos grandiosos sistemas idealistas do início do século’
[XIX].
6
ÉVORA, F. R. R. (Ed.),
Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea.
Campinas, 1992.
13
teoria ondulatória da luz, a intensificação das polêmicas relativas ao éter,
7
os debates entre
energetistas e mecanicistas, o surgimento da mecânica estatístic
a.
Em busca de uma teoria fundamental que desse conta de todos os fenômenos naturais, os
assim chamados energetistas, com base nos sucessos obtidos nos estudos da termodinâmica,
defendiam que estes fenômenos poderiam ser entendidos exclusivamente em termos de trocas de
energia, fazendo-se total abstração da estrutura da matéria. Por outro lado, os mecanicistas
preconizavam o entendimento da natureza em termos de matéria em movimento “e muitos deles
não teriam hesitado em especificar que esse movimento seri
a o dos átomos”
.
8
Apesar de ainda hegemônico,
9
o modelo newtoniano é alvo de críticas em relação a alguns
de seus aspectos,
10
principalmente, por conter em sua formulação a incômoda idéia de ão a
distância. Além do mais, os limites da mecânica de Newton começam a ser expostos mediante o
estudo de determinados fenômenos, especialmente os eletromagnéticos,
11
sem, no entanto, abalar a
confiança dos pesquisadores numa teoria que havia resistido aos mais duros testes durante mais de
dois séculos.
Um caso exemplar da confiança no caminho pavimentado pelo modelo newtoniano nos é
fornecido pelo físico J. von Jolly (1809 1884), orientador vocacional de Max Planck (1858
1947)
. Em 1874, Jolly desencorajou seu orientando a seguir a carreira de físico, alegando que
“tudo
teria sido pesquisado neste domínio e haveria, portanto, apenas alguns vazios a preencher”
(
apud
MARTINS
, 1992, p. 299).
Durante as últimas décadas do século XIX crescem em importância os debates sobre a
filosofia da linguagem, ao mesmo tempo em que “o status e a validade do conhecimento científico
vinham sendo discutidos por um grande número de cientistas e filósofos da ciência de língua
alemã”
(JANIK e TOULMIN, 1996, p. 132). Em meio a tais discussões, o termo
representação
colocado em circulação por Kant e Schopenhauer – exercia um papel importante (JANIK, e
TOULMIN
, 1996, p. 132).
7
ÉVORA, F. R. R., 1992, p. xiv
.
8
BEN DOV, 1996, p. 73. É importante ressaltar que o conceito de átomo não encontra, durante o século XIX, nem uma
definição e nem uma aplicação precisas. Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver VIDEIRA, 1993, pp. 13-
20.
9
ÉVORA, F. R. R. (Ed.)
,
Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea.
Campinas, 1992.
MARTINS, R.C., “Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica: Sugestões para o Estudo de
Condicionantes
Recentes”. In. ÉVORA, F. R. R. (Ed). Século XIX: O Nascimento da Ciência Contempor
ânea.
Campinas: Unicamp,
1992.
10
Mach (1960) critica as concepções de espaço e tempo absolutos de Newton; Hertz (1952) critica a duplicidade de
significação do conceito de inércia na mecânica newtoniana.
11
Martins (1992, p. 288) chama a atenção para o agravamento, durante o século XIX, das contradições entre o modelo
newtoniano e as observações experimentais envolvendo radiações de corpos aquecidos. No início do século XX, Max
Planck obtém uma representação matemática para tais fenômenos, partindo de suposições estranhas à Física Clássica e
que são consideradas o marco fundador da Mecânica Quântica.
14
De acordo com Janik e Toulmin, “entre 1800 e 1920, o problema do alcance essencial e
limites da
razão
foi duas vezes transformado: primeiro, no problema da definição do alcance e dos
limites das representações e, subseqüentemente, naquele de fazer o mesmo com a linguagem”
(1996, p. 121).
No período decorrido entre 22 de fevereiro de 1857 e de janeiro de 1894 desse século
particularmente
extraordinário
, viveu Heinrich Rudolf Hertz, físico alemão cuja obra não é
marcada pelas principais questões intelectuais de seu tempo, como, também, encontra repercussão
no pensamento de cientistas e filósofos que o sucederam.
Hertz passou boa parte de sua vida em Hamburgo, sua cidade natal, onde cumpriu sua
formação escolar básica. Quando jovem, Hertz demonstrava habilidade em trabalhos manuais,
tendo construído instrumento óticos e mecânicos e aparelhos elétricos de medida. A consciência de
tal habilidade talvez tenha sido a principal motivação para sua decisão de tornar-se engenheiro. No
entanto, após reavaliar sua opção inicial, Hertz muda-se para Berlim, em 1878, e inicia sua carreira
acadêmica como estudante no laboratório chefiado por Hermann von Helmholtz (1821 1894)
,
uma das lideranças científicas da Alemanha à época.
Em 1880, Hertz é nomeado demonstrador no laboratório de física da Universidade de
Berlim
; em 1883, transfere-se para Kiel e, cerca de dois anos depois, torna-se Professor Ordinário
de Física da Escola cnica de Karlsruhe, onde o cientista realizou a série de experimentos que o
notabilizou como o “descobridor” das ondas eletromagnéticas.
A importância dos resultados obtidos por Hertz em suas pesquisas experimentais nos
domínios do eletromagnetismo reside não apenas no estabelecimento de um modelo científico para
o estudo unificado dos fenômenos eletromagnéticos e luminosos, mas, também, nas implicações
epistemológicas decorrentes desses experimentos
.
12
Para além das questões científicas e epistemológicas, a relevância do trabalho experimental
de Hertz em Karlsruhe se mostra na aplicação de seus resultados ao desenvolvimento de novas
tecnologias, tais como o telégrafo sem fio e o rádio.
Entre abril de 1889 asua morte, Hertz ocupou a cadeira de física na Universidade de
Bonn, onde, a partir de 1891, teve como assistente o físico Philipp Lenard (1862 – 1947),
13
12
Como será visto mais adiante, a interpretação dos resultados experimentais obtidos por Hertz servirão como um
importante reforço à hipótese do
éter
, na qual se
apoiavam alguns dos partidários do mecanicismo.
13
Sobre a controversa vida de Philipp Lenard, ver MULLIGAN, 1999.
15
ganhador do prêmio Nobel de 1905 por seu trabalho experimental sobre raios catódicos, iniciado
com o apoio do próprio Hertz
.
14
A contribuição de Hertz para a física experimental não se restringiu ao estudo das ondas
eletromagnéticas
, estendeu-se aos fenômenos relacionados ao efeito fotoelétrico e aos raios
catódicos.
Suas grandes contribuições teóricas estão contidas em
Electric
Waves,
15
cuja primeir
a
edição data de 1893, e em The Principles of Mechanics,
16
publicado postumamente em 1894. Na
primeira obra, motivado pelo sucesso de sua pesquisa experimental no eletromagnetismo, Hertz
apresenta uma reconstrução axiomática da teoria eletromagnética do físico escocês James Clerck
Maxwell
(1831 – 1879); na segunda, Hertz propõe o que ele mesmo denomina uma
terceira
representação da mecânica, como alternativa à representação newtoniana tradicional e à
representação energetista.
Tanto na elaboração de
Ele
c
tri
c Waves, quanto na de The Principles of Mechanics, o
consagrado físico experimental Heinrich Hertz, começa como um
profundo
17
filósofo da ciência e
prossegue como um habilidoso físico teórico. Nas palavras de Abrantes,
Nas introduções a estas duas obras, Hertz desenvolve um conjunto de concepções a
respeito da teoria física: seu objetivo, sua estrutura, a participação da experiência e
do pensamento em sua elaboração, critérios metodológicos para a sua avaliação,
etc. (1992, p.
353).
Embora a repercussão e o reconhecimento da obra do físico Heinrich Hertz superem em
muito à do Hertz
filósofo
,
18
não se pode dizer que suas reflexões de caráter epistemológico tenham
passado despercebidas. Na relação de pensadores que, de alguma forma, tomaram a filosofia d
a
ciência de Hertz como uma referência importante, encontramos nomes como os dos cientistas Max
Planck, Ludwig Boltzmann (1844 1906) e Henri Poincaré (1854 1912) e, também, de filósofos
como Ludwig Wittgenstein
(1889
1951)
e Ernst Cassirer
(1874
19
45)
.
Se voltamos nossa atenção para as principais polêmicas que se desenvolveram durante todo
o século XIX em torno de questões metodológicas envolvendo as ciências da natureza, verificamos
que os problemas filosóficos colocados por Hertz não são exclusivos, nem pioneiros. Se nossa
atenção se volta para o intelectual Heinrich Hertz, concluímos que sua preocupação de elaborar uma
14
De acordo com Mulligan (1999, p. 354), as pesquisas com raios catódicos eram uma tradição de longa data na
universidade de Bonn. O próprio Hertz publicou, em 1892, um artigo sobre o assunto. No discurso proferido na
cerimônia de entrega do Nobel, Lenard agradece o apoio oferecido por Hertz.
15
Publicado em inglês pela Dover Publications, Inc., New York, 1962.
16
Publicado em inglês pela Dover P
ublications, Inc., New York, 1956.
17
BRAITHWAITE
apud
ABRANTES, 1992, pp. 351
-
352.
18
Se utilizarmos os prêmios concedidos a Hertz como medida do reconhecimento de seu trabalho por seus pares,
observaremos que as datas em que estes prêmios lhe foram conferidos são anteriores às datas de publicação das
referidas obras: Medalha Matteucci da Sociedade Científica Italiana (1888), Prêmio La Caze da Academia de Ciências
de Paris (1889), Prêmio Baumgartner da Academia Imperial de Viena (1889), Medalha Rumford da Sociedade Real
(1890) e o Prêmio Bressa da Academia Real de Turim (1891).
16
proposta metodológica fundamentada na filosofia não é surpreendente. Afinal, trata-se de um
erudito que se dedicou à física. Seus interesses abrangiam as artes em geral, a arquitetura, a
economia, estudos lingüísticos e, de modo especial, a filosofia.
Discreto, modesto, escrupuloso, dono de um inabalável senso de honestidade intelectual.
Nestes termos alguns de seus contemporâneos, como Helmholtz e Ernst Mach (1838 1916), se
referiram a Hertz. Mas, apesar de seu perfil discreto, não se pode dizer que Hertz tenha vivido sua
breve vida de forma pouco intensa. Em menos de dez anos, desde sua indicação para demonstrador
no labor
atório
da Universidade de Berlim, torna-se titular da cadeira de física na Universidade de
Bonn, já notabilizado pelo estabelecimento das ondas eletromagnéticas. Entre o encontro e o
casamento com Elisabeth Doll
,
19
passaram
-
se menos de quatro meses.
Os
últimos a
nos
de Hertz, no entanto, foram de intensa dor. Um tumor maligno o fustigou
20
até a morte, aos 37 anos, em 1º de janeiro de 1894.
I.2.
ALGUNS ASPECTOS SOBRE A POLÊMICA DO
ÉTER
Se perguntarmos a um sico atual como o Sol consegue atrair a Terra, a uma
eno
rme distância, ele provavelmente responderá: ´Por causa do campo
gravitacional`
- e essa poderá lhe parecer uma resposta não-problemática e final
embora seja uma resposta puramente nominal. Mas se perguntarmos como o Sol
consegue criar um campo em um local onde ele não está, talvez ele fique confuso
(MARTINS, 1998, p. 117).
A citação acima foi retirada do texto
Descarte
s e a impossibilidade de ações a distância -
publicado em 1998 -, em que seu autor, Roberto de Andrade Martins, afirma que a multicentená
ria
polêmica acerca da transmissão de forças e suas implicações desaparece, sem que tenha sido
propriamente re
solvida.
No entanto, o ambiente científico do século XIX apresentava-se como um solo fértil para
que tal polêmica se mostrasse avivada. Em função dela, nem mesmo o ainda vigoroso modelo
newtoniano
que, diante da impossibilidade de uma explicação mecânica da gravitação se
conformava com as inexplicadas ações a distância escapou às críticas de muitos dos pensadores
daquela época.
19
Elisabeth e Heinrich Hertz tiveram duas filhas: Johanna e Mathilde. A partir de 1923, Elisabeth Hertz e suas duas
filhas passaram a conviver com enormes dificuldades financeiras. Em razão da ascendência judia de Hertz (seu avô era
judeu, convertido ao Luteranismo), tais dificuldades tornaram-se críticas com a ascensão do nazismo na Alemanha. No
entanto, durante todo este período, as três puderam contar com o apoio de cientistas como M
ax von Laue (1879
1960),
Erwin Schrödinger (1887
1961) e J. J. Thomson (1856
1940), e com a ajuda de empresas de rádio de diversos países
e da Associação de Engenheiros Elétricos (PIPPARD, 2002, pp. 241
-
242).
20
Em 26 de fevereiro de 1891, Hertz anota
em seu diário:
“Uma época infeliz, fadiga, desgosto”
(
apud
COHEN, 1956).
17
As alternativas à aceitação das interações a distância como uma inexplicável propriedade da
matéria, envolveram, em diferentes épocas, a elaboração de teorias complexas em torno de um
indefinido meio de transmissão dessas interações, composto por uma substância sutil:
o
éter
.
A idéia de que todo espaço aparentemente vazio estaria preenchido por uma substância
imperceptível originou-se muito antes dos
Principia
de Newton, e, portanto, do açodamento da
polêmica acerca das ações a distância (MARTINS, 1993, p. 7) e, durante um longo período,
filósofos e cientistas empenharam-se muito mais em estabelecê-la com clareza do que em rejeitá-
la.
A preocupação com o problema do éter demanda esforços do próprio Isaac Newton e de muitos de
seus contemporâneos, atravessa o século XIX
e adentra o século XX
.
21
Aristóteles afirmava que o universo sempre atuaria no sentido de evitar o vácuo. Um tal
horror vacui poderia ser facilmente demonstrado pela simples observação da impossibilidade da
água contida em uma garrafa aberta escorrer através de seu gargalo estreito, a não ser que nela seja
feito um outro furo que permita a entrada do ar que ocupará o espaço deixado pela água que
escorreu (KUHN, 1957, p. 88). A concepção aristotélica de um universo plenamente preenchido e
pronto a atuar para evitar o vazio, servia para justificar o mecanismo dos movimentos dos corpos
supralunares e teve, ainda, implicações no estudo de lançamentos de projéteis nas proximidades da
superfície terrestre.
Segundo Thomas Kuhn, Aristóteles fundou uma física “em que conceitos astronômicos e
não astronômicos foram produzidos de um único e coerente tecido conceitual” (1957, p.78).
Estendendo, então, sua crença num onipresente éter ao mundo sublunar, Aristóteles afirmava que a
suposição da inexistência de algo que resistisse ao movimento de queda de um corpo, implicaria na
aceitação de um absurdo: o tempo de queda seria nulo
.
22
No entanto, no século XVII, Torricelli (1608 1647) e Pascal (1623 1662) colocam em
séria dúvida a concepção de horror vacui, ao produzirem espaços desprovidos de matéria sensível
(MARTINS
, 1993, p. 9). Apesar disso, René Descartes defendia que a ausência de matéria sensível
em um determinado espaço, não implicaria, necessariamente, na inexistência, neste mesmo espaço,
de uma s
ubstância sutil,
o éter (MARTINS
, 1993, p. 9).
O éter de Descartes era a matéria prima fundamental na construção de sua concepção de
universo. Para ele, tanto a origem quanto o movimento dos corpos celestes poderiam ser explicados
21
Em 1920, durante o encontro da Sociedade de Cientistas e Médicos Alemães, o físico Philipp Lenard, ganhador do
prêmio Nobel de 1905, objetou veementemente à declaração de Albert Einstein de que o éter havia se tornado
supérfluo para a comp
reensão e o progresso da física’
(MULLIGAN, 1999, p. 361).
22
Lembremo-nos de que o conceito de inércia e a relação entre força e massa ainda não haviam sido estabelecidos
naquele momento.
18
a partir da hipótese de que ‘o universo seria recoberto por um mosaico de turbilhões que
manteriam a ´matéria sutil`em rotação
(FERRACIOLI e BATISTA
, 2004, p. 81).
Huygens
(1629
1695)
explicava a gravitação também por meio de turbilhões, substituindo,
no entanto, o movimento da matéria sutil, pelo de minúsculas partículas (FERRACIOLI e
BATISTA
, 2004, p. 81)
.
Newton
, por sua vez,
rejeita a teoria dos
turbilhões
proposta por Descartes,
depois de concluir que a teoria cartesiana não se adequava às leis de Kepler. Entretanto, as diversas
tentati
vas engendradas pelo físico britânico para obter um modelo mecânico explicativo para as
interações gravitacionais, parecem mostrar que as ações a distância constituíram-se, mesmo que
temporariamente, em um desconforto intelectual para o cientista.
Lançand
o mão de hipóteses que envolviam correntes de éter, fluxos de éter, éter com
densidade variável, Newton esboçou diversos modelos explicativos para a gravidade e as
propriedades da luz.
23
Em uma carta a Robert Boyle (1627 1691), datada de 28 de fevereiro d
e
1679, Newton escreve:
Vou apresentar mais uma conjectura, que veio à minha mente enquanto estava
escrevendo esta carta: é sobre a causa da gravidade. Para isso, suporei que o éter
consiste em partes que diferem uma da outra em sutileza, por graus indefin
idos:
que nos poros dos corpos menos do éter grosseiro, em proporção ao mais fino,
do que nos espaços abertos; e conseqüentemente que no grande corpo da Terra
muito menos do éter mais grosseiro, em proporção ao mais fino, do que nas regiões
do ar
; e
que o éter
mais grosseiro no ar afeta as regiões superiores da Terra, e o éter
mais fino na Terra as regiões mais baixas do ar, de tal modo que do topo da Terra
até seu centro, o éter é ins
ensivelmente cada vez mais fino
(
apud
MARTINS
, 1998,
p.83).
Após apresentar sua hipótese para a “estrutura” do éter, Newton prossegue com sua teoria sobre a
gravidade, identificando-a com o modelo físico aplicado aos fenômenos hidrostáticos. No entanto,
em seu
Principia
, Newton se abstém de uma explicação mecânica para a atuação das forças
gravitacionais, o que lhe rendeu severas críticas de alguns de seus contemporâneos.
Quase 200 anos depois da carta de Newton a Boyle, o cientista James Clerck Maxwell
partidário da hipótese do éter e conhecedor das ressalvas do próprio Newton à idéia de transmissão
de forças sem intermediação
24
justificava da seguinte forma a posição adotada pelo autor dos
Principia
:
O progresso da Ciência no tempo de Newton consistia em livrar-nos da
maquinaria celestial com a qual gerações de astrônomos entulharam os céus e deste
modo ´varrer as teias de aranha para fora dos céus`.
Embora os planetas estivessem livres de suas esferas de cristal, eles ainda
nadavam nos vórtices de Descartes. Imãs eram rodeados por eflúvios e corpos
23
Para u
ma abordagem mais detalhada do assunto, ver MARTINS, 1998, pp. 79
-
126.
24
Maxwell, que como será visto mais adiante, era partidário do modelo newtoniano, embora rejeitasse a idéia de ação à
distância, responsabilizava o físico e matemático inglês Roger Cotes (1682 1716), autor do prefácio do
Principia
, e
‘não o descobridor da gravitação universal’
pela disseminação da
‘doutrina’
da ação a distância (2004, p. 278).
19
eletrificados
rodeados por atmosferas cujas propriedades não se pareciam em nada
com aquelas do
s eflúvios e atmosferas normais (MAXWELL, 2004, p. 277)
.
A obra de Newton ‘varreu as teias de aranha’ que preenchiam os espaços ao redor de
corpos celestes, í
mãs e objetos
eletrizados, substituindo
-
as por forças cuja forma de transmissão não
podia ou não precisava ser explicada. Àqueles que consideravam ser esta uma lacuna inaceitável no
modelo newtoniano, a aparentemente inquestionável e ilimitada eficiência da mecânica de
Newton
era a melhor resposta. Assim, para muitos cientistas, prevaleceu a concepção até certo ponto,
inaceitável para o próprio Newton
de uma
gravidade inata, inerente e essencial à matéria
.
25
Então, gradativamente foram sendo estabelecidas expressões matemáticas análogas à da lei
da gravitação de Newton para a descrição quantitativa de interações magnéticas e elétricas, sem que
os
eflúvios
ou
atmosferas
que rodeavam as partículas que apresentavam tais propriedades fossem
sequer considerados
:
26
De
fato, Cavendish, Coulomb e Poisson, fundadores das ciências exatas da
eletricidade e do magnetismo, não deram nenhuma atenção àquelas noções antigas
de “eflúvios magnéticos” e “atmosferas elétricas”, que tinham sido propostas no
século anterior. Ao invés disso, voltaram decididamente suas atenções para a
determinação da lei de força pela qual os corpos eletrificados e magnetizados
atraem
-se ou repelem-se uns aos outros. Dessa maneira, as verdadeiras leis destas
ações foram descobertas, e isso foi feito por homens que nunca duvidaram que a
ação se a distância, sem a intervenção de qualquer meio, e que teriam
considerado a descoberta de tal meio mais como um fato complicador do que uma
explicação dos fenômenos es
tabelecidos da atração (MAXWELL
, 2004, p. 27
8).
Apesar de perceber-se, na citação acima, um certo tom de admiração pelo estabelecimento
de
leis
matemáticas para o estudo quantitativo dos referidos fenômenos, Maxwell acreditava que o
próximo passo a ser dado, consistiria na obtenção de uma explicação para a maneira pela qual as
interações elétricas e magnéticas se transmitiam.
Em 1820, o cientista dinamarquês Hans Christian Oersted (1777 1851) comprova
experimentalmente que um fio condutor percorrido por corrente elétrica é capaz de perturbar u
m
ímã colocado em suas proximidades. A experiência de Oersted estabelecia, de forma inequívoca,
uma conexão entre a eletricidade e o magnetismo e, ao mesmo tempo, colocava em evidência
fenômenos para os quais o modelo newtoniano não se mostrava adequado
.
27
Sobre as interpretações do que foi observado por Oersted, Maxwell comenta:
25
Em uma carta a Bentley, citada por Maxwell (2004, p. 277), Newton afirma de forma contunden
te
: “Que a gravidade
deva ser inata, inerente e essencial à matéria de tal modo que um corpo possa agir sobre o outro a distância, através
do vácuo, sem a intermediação de qualquer coisa por meio da qual as suas ações e forças possam ser transmitidas, é
pa
ra mim um absurdo tão grande que acredito que nenhum homem que tenha competência em questões filosóficas
possa aceitar”.
26
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver BEN DOV, 1996, p. 99 e TORT, CUNHA e ASSIS, 2004, p.
279.
27
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver BEN DOV, 1996, p. 99 e TORT, CUNHA e ASSIS, 2004, p.
279.
20
A dedução mais óbvia deste fato novo é que a ação da corrente sobre o imã não
ocorre por meio de uma força do tipo “puxa-empurra”, mas sim por meio de uma
força rotatória e, conseqüentemente, muitas mentes começaram a imaginar vórtices
e correntes de éter
circulando em torno da corrente
(2004, p. 279)
Após a experiência de Oersted, André Marie Ampère (1775 1883) observa que, assim
como uma corrente elétrica é capaz de atuar sobre um ímã, um ímã também pode exercer influência
sobre uma corrente elétrica. Posteriormente, Ampère verifica que dois fios condutores colocados a
uma determinada distância um do outro interagem quando percorridos por correntes elétricas.
Tendo estabelecido que tal interação era de caráter magnético, Ampère tenta elaborar uma
representação matemática para os resultados experimentais obtidos, que estivesse em conformidade
com o modelo newtoniano. No entanto, a ‘fórmula de Ampè
re
era extremamente complexa
28
e
aplicava
-
se somente a casos particulares
.
29
A esperança dos que não se conformavam com a idéia de ações a distância no vácuo foi
reacendida pelo experimentador inglês Michael Faraday
(1791
1867) e suas linhas de força
.
Faraday identificou a configuração apresentada por limalhas de ferro salpicadas entre os pólos de
dois í
mãs
30
à representação das interações magnéticas nas vizinhanças destes ímãs. Configurações
similares foram observadas no estudo de interações elétricas. Alterando-se as variáveis envolvida
s
nas observações experimentais, verificava
-se que a configuração comportava-se de maneira análoga
a uma corda tracionada (MAXWELL
, 2004, p. 280).
Maxwell vê no trabalho de Faraday um caminho promissor para a explicação do mecanismo
de transmissão de forç
as:
... podemos considerar a concepção de Faraday de um estado de tensão de um
campo eletromagnético como um método de explicar a ação a distância por meio
de uma transmissão contínua de força, mesmo que não saibamos como este estado
de tensão se produz
(2
004, p. 280).
Animado por esta nova possibilidade, Maxwell elabora um complexo modelo, baseado na
mecânica newtoniana (BEN DOV
, 1996, p. 101), para um éter por meio do qual seriam transmitidas
as interações eletromagnéticas. Calculando a velocidade de ondas transversais propagando-se em
seu meio hipotético, Maxwell encontrou um valor muito próximo daquele medido para a velocidade
da luz à sua época.
31
Este resultado levou-o à conclusão de que havia um éter único responsável
pela transmissão das interações
eletromagnéticas e no qual a luz se propagava.
32
28
MAXWELL 2004, p. 279.
29
BEN DOV, 1996, p. 100.
30
As limalhas tendem a se organizar em linhas que parecem emergir de um dos pólos em direção ao outro. Daí o nome
linhas
d
e força.
31
“A velocidade da luz no ar, como determinada pelo Sr. Fizeau, é 70.843 léguas por segundo (25 léguas por grau) o
que dá v = 314.858.000.000 milímetros [por segundo] = 195.647 milhas por segundo. A velocidade das ondas
transversais em nosso meio hipotético, calculada a partir dos experimentos eletromagnéticos dos Srs. Kolhrausch e
21
Na
passagem abaixo, Maxwell não esconde seu entusiasmo com os resultados obtidos a
partir de seu modelo:
As vastas regiões interplanetárias e interestelares não serão mais consideradas
como regiões desoladas
, as quais o Criador não achou apropriado preencher com os
símbolos da múltipla ordem de seu Reino. Deveremos encontrá-las preenchidas
com este meio maravilhoso, tão pleno, que nenhum poder humano poderá removê-
lo da menor porção do espaço, ou produzir a mais leve falha em sua infinita
continuidade. Ele se estende ininterrupto de estrela a estrela, e quando uma
molécula de hidrogênio vibra em uma estrela da constelação do Cão, o meio recebe
os impulsos destas vibrações, e depois de transportá-los em seu imenso regaço por
três anos, entrega
-
os no devido tempo, de maneira regular, ao espectroscópi
o do Sr.
Huggins, em Tulse Hill
(2004, p. 281).
À época em que este texto de Maxwell foi publicado, a maioria dos cientistas de língua
alemã, de acordo com Hermann von Helmholtz, lidavam com os fenômenos eletromagnéticos a
partir da hipótese de W. Weber (1804 1891), que pressupunha ‘forças diretas a distância agindo
em linha reta’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio), transmitindo-se com velocidade infinita através do
es
paço. A descrição matemática das forças entre duas partículas eletrizadas era feita de forma
análoga à lei da gravitação de Newton. Weber, porém, afirmava que a intensidade da força elétrica
entre duas partículas eletrizadas em movimento dependia não das cargas de cada uma destas
partículas e da distância entre elas, mas também, da velocidade e da variação da velocidade com
que estas partículas se moviam.
Mas, ainda de acordo com Helmholtz,
lado a lado com a teoria de Weber, existiam inúmeras outras, as quais tinham em
comum o seguinte: todas elas consideravam que a intensidade da força expressa
pela lei de Coulomb seria modificada pela influência de alguma componente da
velocidade das qua
ntidades elétricas em movimento
(1956, prefácio).
Para Helmholtz, estas diversas formas de abordar os fenômenos eletromagnéticos estavam
apoiadas em hipóteses de difícil conciliação e em teorias duvidosas, o que acabava por transformar
os domínios do eletromagnetismo em um emaranhado instransponível (HELMHOLTZ, 1956,
prefácio). O próprio Helmholtz havia concebido uma teoria neste domínio pressupondo que as
interações elétricas e magnéticas eram devidas a
ações a
distância.
Sob o ponto de vista de Helmholtz, a situação do eletromagnetismo na Inglaterra era a
seguinte:
... as idéias introduzidas por Faraday quanto à natureza da eletricidade estavam se
alastrando. Estas idéias, na forma em que eram expressas, em uma linguagem
Weber, concorda tão exatamente com a velocidade da luz calculada a partir dos experimentos ópticos do Sr. Fizeau, que
dificilmente podemos evitar a dedução de que a luz consiste de ondas transversas do mesmo meio que é responsável
pelos fenômenos elétricos e magnéticos
” (MAXWELL
apud
ASSIS, 1992, pp. 55
-
56)
32
Ibidem.
22
abstrata de difícil compreensão, pouco progrediram até encontrar em Clerck
M
axwell um intérprete
adequado.
Faraday e Maxwell tendiam a adotar o ponto de vista de que simplesmente não
havia ação a distância; esta hipótese, que contrariava as concepções até então
aceitas, foi colocada sob forma matemática e desenvolvida por Maxwell (
1956,
prefácio).
Helmholtz, então, decide testar as várias teorias eletromagnéticas em circulação por meio de
experimentos adequados
(1956, prefácio). O primeiro teste proposto pelo cientista visava verificar
a adequação das diversas teorias ao comportamento da corrente elétrica em circuitos abertos e
fechados
.
33
Na explicação dos fenômenos envolvidos no problema proposto por Helmholtz, os qu
e
admitiam a concepção de ação a
distância, como Weber, sugeriam que a eletricidade seria dotada de
‘um certo grau de inércia’ (HELMHO
LTZ
, 1956, prefácio). Por outro lado, aqueles que, como
Faraday e Maxwell, rejeitavam a idéia de ação a distância, propunham a explicação de tais
fenômenos a partir da polarização dielétrica de um meio interveniente hipotético.
As pesquisas que decidiram a questão foram realizadas por Heinrich Hertz, um dos
pesquisadores do laboratório comandado Helmholtz em Berlim. Inicialmente, Hertz verificou que o
efeito da hipotética inércia da eletricidade seria extremamente pequeno (Helmholtz, 1956, prefácio).
Em seguida, realizou experiências
34
cujos resultados apontavam as teorias de Faraday e Maxwell
como
altamente prováveis
.
35
Hertz identificou ‘oscilações elétricas’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio) propagando-
se
entre as extremidades de condutores abertos. No decorrer de sua pesquisa, ele tornou-se capaz de
controlar as características das oscilações produzidas para, em seguida, medir seu comprimento de
onda e sua velocidade de propagação no ar. A velocidade e as propriedades das ondas de Hertz
coincidiam com as da l
uz
.
36
Mas, as implicações do notável trabalho experimental de Hertz transpunham os domínios do
eletromagnetismo e da ótica que ele próprio acabara expandir:
37
Sua identificação com a teoria de
Maxwell representava um importante reforço à hipótese do éter.
33
Para uma abordagem mais detalhada do problema proposto por Helmholtz, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio e
PO
INCARÉ, 1984, pp. 165
-
176.
34
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio e HERTZ, 1962.
35
Segundo Poincaré, “ao cabo de vinte anos, as idéias de Maxwell tiveram a confirmação da experiência. Hertz
conseguiu produzir sistemas de oscilações elétricas que reproduzem todas as propriedades da luz e só diferem dela pelo
comprimento de onda, como o violeta difere do vermelho. Ele fez, de uma certa maneira, a síntese da luz. Como todo
mundo sabe, foi daí que surgiu o telégrafo sem fi
o”.
“Poderíamos dizer que Hertz não demonstrou, diretamente, a idéia fundamental de Maxwell: a ação da corrente de
deslocamento sobre o galvanômetro. Isso é verdade, num certo sentido, e o que demonstrou diretamente foi que a
indução eletromagnética não se propaga instantaneamente, como se acreditava, mas com a velocidade da luz” (1984, p.
174).
36
As oscilações produzidas por Hertz podiam ser polarizadas, refletidas, refratadas, etc. (HELMHOLTZ, 1956,
prefácio; MULLIGAN, 1999, p. 346).
37
Ver nota 33 acima e
MULLIGAN (1999, p. 346).
23
Mesmo Helmholtz, tradicionalmente comprometido com a idéia de ação à distância,
declarava não ter mais dúvidas de que ‘as ondas de luz consistem de vibrações elétricas no
onipresente
[“all
-
pervading”]
éter, o qual apresenta as propriedades de um meio isolante e
magnético’
(HELMHOLTZ
, 1956, prefácio). E o velho mestre de Hertz vai mais além:
Do ponto de vista da ciência teórica, talvez seja mais importante ser capaz de
entender como aparentes ações a distância realmente consistem na propagação de
uma ação de uma camada de um meio interveniente para a próxima. A gravitação
permanece como um enigma insolúvel; enquanto uma explicação satisfatória não
for
fornecida, permanecemos compelidos a tratá-la puramente como uma ação a
distância
(1956, prefácio).
Hertz,
por sua vez, adota definitivamente a concepção de que as interações elétricas e
eletromagnéticas transmitem-se de forma contígua e mediatizada, e, em sua última obra,
The
Principles of Mechanics, esboça uma tentativa de estender tal concepção às interaçõe
s
gravitacionais.
Porém, a adequação dos resultados experimentais obtidos por Hertz à teoria de Maxwell não
era suficiente para esgotar a polêmica em torno do éter. Afinal, segundo Cassirer (vol. IV, 1986, p.
121), o problema do éter dividia com outros problemas a composição da pauta de um debate mais
amplo, de caráter metodológico que poderia ser resumido pela seguinte questão: qual ‘deveria ser a
concepção e a missão da ciência natural’
naquele momento?
O próprio Hertz discordava de algumas das idéias introduzidas na teoria de Maxwell as
quais, aparentemente, davam suporte a ela. Em
Ele
ctric Waves, Hertz propõe uma reconstrução
axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell, objetivando eliminar as inconsistências
identificadas na referida teoria além de reduzir ao máximo as concepções arbitrárias nela
introduzidas
.
38
Após a efetivação da reconstrução axiomática, Hertz reduz as equações formuladas a
partir da teoria de Maxwell e, de certa forma, a própria teoria,
39
a apenas quatro equações
fundamentais
.
40
Hertz concordava que a teoria de Maxwell apresentava-se como a mais adequada para a
previsão da propagação das ondas eletromagnéticas (ABRANTES, 1992, p. 355), mas discordava
da estrutura da teoria do seu colega escocês. Tal discordância torna-se compreensível, quando se
leva em conta os estilos de pensamento e as respectivas opções metodológicas predominantes nas
38
Para uma abordagem um pouco mais detalhada do assunto, ver ABRANTES, 1992, pp. 354
-
356.
39
Hertz declarava que, “para a questão ‘
O que é a teoria de Maxwell
?` eu não conheço resposta mais curta ou definitiva
do que a seguinte: a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo
sistema de equações e, portanto, inclua os mesmos fenômenos possíveis, eu consideraria como sendo uma forma ou
caso especial da teoria de Maxwell; toda teoria que conduza a diferentes equações e, portanto, a diferente fenômenos
possíveis, é uma teoria diferente” (
apud
COHEN, 1956, ensaio introdutório).
40
De acordo com Mulligan (1999, p. 347), Hertz “expressou as equações de Maxwell para o campo magnético na forma
simétric
a em que ainda hoje as utilizamos”.
24
comunidades científicas em que Hertz e Maxwell se formaram: enquanto os físicos continentais,
especialmente os alemães, procuravam relacionar os dados empíricos por meio de equações
diferenciais, evitando lançar mão de hipóteses, os britânicos preferiam elaborar modelos físicos que
propiciassem a “visualização” do formalismo matemático presente nas teorias (ABRANTES, 1992,
p. 355; MULLIGAN
, 1999, p
. 347).
O austríaco Ernst Mach afirmava em uma das edições de sua obra The Science of
Mechanics
, que a reconstrução axiomática da teoria de Maxwell, levada a cabo por Hertz,
oferece
um bom exemplo da descrição de fenômenos por simples equações diferencia
is
(1960, p. 598).
Mach defende ainda que
Todos os fluidos e meios hipotéticos são eliminados da teoria da eletricidade como
elementos inteiramente supérfluos, quando percebemos que as condições elétricas
são todas dadas pelos valores da função potencial V e das constantes dielétricas
(1960, p. 597).
Em contrapartida, o britânico William Thomson declarava: “Não fico satisfeito enquanto
não consigo elaborar um modelo mecânico do objeto estudado; se consigo, compreendo; de outro
modo, não consigo compreen
der”
(
apud
CASSIRER
, vol. IV, 1986, p. 142).
Na concepção de ciência de Mach, e de muitos outros cientistas continentais
41
em atividade
no final do século XIX, alguns problemas, como o das ações gravitacionais à distância, são
facilmente dissolvidos ou per
dem o sentido. Para Mach, “a gravitação não perturba mais ninguém:
ela se tornou um incompreensível comum”
(
apud
MARTINS
, 1998, p. 113).
No entanto, assim como a confirmação experimental, por Hertz, da teoria de Maxwell, tal
argumento não era suficientemente convincente para levar a termo a polêmica em torno do éter. Em
uma publicação de 1902, Poincaré afirma: Pouco nos importa que o éter exista realmente: é um
problema para os metafísicos. O importante para nós é que tudo se passa como se ele existisse,
e
essa é uma hipótese cômoda para a explicação dos fenômenos” (1984, p. 157). No final do século
XX, Martins - autor das palavras com as quais esta sessão foi iniciada -, embora reconheça o
descrédito para com a concepção ‘de um éter’ por parte dos cientistas contemporâneos, defende-
a,
por, dentre outros motivos, considerá-
la
útil à compreensão dos fenômenos físicos
e
‘ao progresso
futuro da ciência’
(1993, p.7).
I.3. ERNST MACH E O CONHECIMENTO FÍSICO N
O S
ÉCULO XIX
Durante boa parte do século XIX, os cientistas estavam convencidos de que a missão da
física consistia em reduzir os fenômenos naturais aos princípios fundamentais da mecânica
41
Dentre outros, pode
-
se citar Otswald, Helm, e Kirchhoff.
25
newtoniana
42
(CASSIRER, vol. IV, 1986, pp. 106 e 108). A mecânica seria, então, a base sobre a
qual se apoiariam todos
os demais ramos da física (
Ibidem
, p. 113).
O modelo de Newton
43
era utilizado no estudo dos fenômenos luminosos, na teoria cinética
dos gases, na teoria atômica, etc.
44
Alguns cientistas adotavam incondicionalmente o modelo
newtoniano. Outros
,
como Hertz
e Maxwell
,
45
por exemplo, o adotavam de forma crítica.
Alguns desses
mecanicistas
poderiam ser considerados herdeiros do realismo científico
dos
séculos XVII e XVIII, por confiarem no
valor ontológico das teorias físicas
(CASSIRER
, vol. IV,
1986, p. 105
). Outros, não acreditavam que as teorias físicas revelassem a essência das coisas.
Havia aqueles que defendiam o uso de hipóteses como a do éter seja como instrumento
heurístico, seja como instrumento explicativo ou como forma de visualizar o formali
smo
matemático de uma teoria, mas que, frequentemente, esbarravam com enormes dificuldades em
conciliar tais hipóteses com os resultados experimentais (MARTINS, 1998, p. 113). Outros, não se
preocupavam ou até mesmo eram veementemente contra a inclusão de hipóteses no corpo das
teorias científicas.
Havia, por outro lado, cientistas que, a partir dos problemas surgidos no estudo de
fenômenos nos domínios da termodinâmica, da ótica e da eletricidade, defendiam que os fenômenos
naturais poderiam ser entendidos exclusivamente em termos de trocas de energia, fazendo-se total
abstração da estrutura da matéria.
E havia, também, a partir da segunda metade do século XIX, a ‘figura dominante’ de Ernst
Mach,
‘um cientista que, como poucos, exerceu tão grande influência sobre sua cultura’ (JANIK e
TOULMIN
, 1973, p. 133). Para Mach, todo o conhecimento se reduz a sensações e a tarefa da
ciência consiste em descrever, da maneira mais simples ou mais econômica os dados dos sentidos
.
“O ponto de vista de Mach é o de um fenomenista radical; o mundo é a soma total do que se
apresenta aos sentidos” (JANIK & TOULMIN, 1973, p. 134). As teorias científicas são descrições
dos dados do sentido e permitem aos cientistas antecipar eventos futuros, tendo as funções
matemáticas utilizadas nas teorias o papel de organizar e simplificar o que os sentidos percebem.
42
Cassirer (vol. IV, 1986, p. 105) afirma não ter dúvidas de que, até meados do século XIX, este era ‘o ideal de
conhecimento ao qual a física se achava obrigada a perseguir’. Segundo Martins (1992, p. 299), na década de setenta
do século XIX, o modelo newtoniano ainda era vigoroso e hegemônico.
43
Ou modificações deste modelo (HELMHOLTZ, 1956, prefácio).
44
EINSTEIN, A., “Autobiographical Notes”. In: Albert Einstein Philosopher-
Scientist
. Cambridge: Cambridge
University Press, 1982.
45
Hertz e Maxwell que, de acordo com Albert Einstein, por seus estudos nos domínios do eletromagnetismo,
são
vistos, retrospectivamente, como aqueles que demoliram a mecânica clássic
a
[newtoniana]’, eram mecanicistas
(EINSTEIN, A., “Autobiographical Notes”.
In:
Albert Einstein Philosopher-
Scientist
. Cambridge: Cambridge
University Press, 1982, p. 21).
26
Teorias são descrições e não, julgamentos das sensações; sendo assim, é mais adequado referir-se a
teorias como mais ou menos úteis do que c
omo falsas ou verdadeiras (JANIK E TO
ULMIN
, 1973).
Em 1871, Mach esboçava seu
“ponto de vista epistemológico”
para as ciências naturais:
O conceito de causa é substituído pelo conceito de função; a determinação da
dependência dos fenômenos uns dos outros, a exposição econômica dos fatos reai
s,
são definidos como o objeto, e os conceitos físicos, exclusivamente, como meios
para um fim
(Mach, 1960, p. 325).
Para Mach,
“não há causa nem efeito na natureza; a natureza
não tem senão uma existência
própria; a natureza simplesmente é”
(1960, p. 58
0). Segundo o cientista,
O ofício da física é a reconstrução de fatos no pensamento, ou a expressão
quantitativa abstrata de fatos. As regras que criamos para estas reconstruções são as
leis da natureza. Na certeza de que tais regras são possíveis apóia-
se
a lei da
causalidade. A lei da causalidade simplesmente afirma que os fenômenos da
natureza o
dependentes
uns dos outros... As leis da natureza são equações entre
elementos mensuráv
eis a ß d ... dos fen
ômenos
(1960, p. 604).
Mas as críticas de Mach à abordagem causal das relações entre os fenômenos naturais, têm
também como alvo a idéia de que a mecânica seria a ciência fundamental sobre a qual deveriam se
apoiar todos os demai
s ramos da física
.
46
Afinal, para cientistas influentes, com Helmholtz e Wundt,
por exemplo, a posição privilegiada da ciência da mecânica se devia ao caráter mecânico do
princípio da causalidade
47
(CASSIRER
, vol. IV, 1986, p. 114).
Mach, no entanto, afirmava, a partir do seu estudo histórico do desenvolvimento da
mecânica, que pensadores como Arquimedes, Da Vinci, Stevin e Galileu, elaboraram suas idéias
sobre a mecânica, impressionados, mesmo que inconscientemente, pela constatação experimental da
impossib
ilidade de um moto perpétuo e não por abstrações envolvendo causa e efeito.
48
Para Mach,
a impossibilidade do
perpetuum mobile
é o
fato
fundamental’
que se apresenta aos nossos sentidos,
ao nosso conhecimento instintivo da natureza.
Uma vez estabelecido o fato fundamental, ele deve ser ‘trabalhado dedutivamente e
logicamente através dos métodos da física-
matemátic
a’
(MACH, 1960, p. 88), o que permite que
outros fatos que não são diretamente acessíveis aos nossos sentidos aflorem e sejam incluídos no
domín
io em questão. A análise histórica da mecânica efetuada por Mach aliada ao processo acima
descrito, levou-no à convicção de que o fato de que ‘o trabalho não pode ser obtido do nada’
46
Segundo Cassirer, a singularidade da proposta de Mach reside na ênfase dada pelo cientista na diferenciação entre o
postulado da compreensão causal da natureza e seu conhecimento mecânico
(vol. IV, 1986, p. 114).
47
De acordo com Cassirer, Helmholtz e Wundt acreditavam que a compreensão causal da natureza e seu conhecimento
mecânico se equivaliam, e, pretendiam, por esta razão, “derivar os axiomas da mecânica como simples corolários do
princípio geral da causalidade”
(vol. IV, 1986, p. 114).
48
Segundo Mach, Galileu identificou a grandeza
Trabalho
como o fator decisivo na determinação de situações de
equilíbrio estático (1960, p. 65); ainda de acordo com o autor, Da Vinci desenvolveu com clareza a idéia da
impossibilidade de um movimento perpétuo (1960, p. 101).
27
(CASSIRER
, vol. IV, 1986, p. 114), formalizado no princípio da conservação do trabalho, deveria
ser o ponto de partida para o estudo dos fenômenos naturais.
Sob este ponto de vista, a mecânica perderia sua posição privilegiada e passaria a ser apenas
um dos ramos da física:
Fenômenos puramente mecânicos não existem. A produção de acelerações mútuas
em massas é,
apenas
aparentemente, um fenômeno puramente mecânico. Mas, a
estes resultados dinâmicos estão sempre associados fenômenos térmicos, elétricos e
químicos, sendo os primeiros sempre proporcionalmente modificados quando est
es
últimos são estabelecidos (MACH
, 1960, p. 596).
Na concepção de Mach, a mecânica não deve ser considerada ‘o fundamento explicativo
definitivo dos demais ramos da física
(1960, p. 471), mas, ao mesmo tempo, apresenta
-
se como um
‘admirável protótipo de tal explicação’ (
Ibidem)
, devido à superioridade de seu desenvolvimento
formal. Naquele momento, de acordo com Mach, a abordagem energetista, fundamentada no
princípio da conservação do trabalho, mostrava
-
se mais vantajosa:
A mecânica... não é um fim em si mesmo; ela também tem problemas a resolver,
relativos às necessidades da vida prática e que afetam o desenvolvimento de outras
ciências. Atualmente, tais problemas são, em sua maioria, resolvidos de forma mais
vantajosa por outros métodos que não o de
Newton
métodos cuja equivalência
com este
último já foi demonstrada (MACH
, 1960, p. 357).
Mas, em The Science of Mechanics, Mach preocupou-se, também, com a elaboração de uma
análise crítica rigorosa das concepções newtonianas de tempo, espaço e movimento absolutos
49
.
Para Mach, a idéia de um tempo absoluto cuja
existência
independe da observação de mudanças,
de movimento –
é completamente destituída de sentido, não passando de uma concepção metafísica.
‘Tempo é uma abstração à qual chegamos por meio das mudanças das coisas’ (MACH, 1960, p.
273).
Em sua crítica às concepções de espaço e tempo absolutos de Newton,
50
Mach afirma que
todos os princípios da mecânica foram derivados de ‘conhecimento experimental referente a
posições e movimentos relativos dos corpos’ (1960, p. 280) e que espaço e movimento absolutos
não podiam ser reproduzidos experimentalmente.
51
No final do século XIX, segundo Mach, era
crescente o mero de investigadores que rejeitavam a idéia de movimento absoluto em favor da
concepção de que todo movimento é relativo. Mas a concepção adotada pelos
relativistas
trazia
consigo uma séria questão para um princípio físico fundamental: se espaço e movimento absolutos
são inconcebíveis, de que forma devemos entender o princípio da inércia?
49
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver MACH, 1960, pp. 271
-
298.
50
Outros cientistas propuseram as estrelas fixas e também o éter como sistema de referência em relação aos quais o
movimento absoluto seria estabelecido. Newton não estava certo de que as estrelas fixas estivessem realmente em
repouso (MACH, 1960, p.280) e
o éter sempre foi uma hipótese controversa.
51
Para Mach (1960, p. 280), espaço e tempo absolutos não passavam de construções mentais, ‘coisas do pensamento’
,
sobre as quais ninguém está abalizado a dizer qualquer coisa.
28
Mach
apresenta
‘dois caminhos’
para lidar com o problema:
(1) o caminho histórico e crítico, o qual reconsidera os fatos sobre os quais a lei da
inércia se apóia e que define os seus limites de validade para, finalmente,
considerar uma nova formulação;
(2) a suposição de que a velha forma da lei da inércia nos ensina o suficiente sobre
os movimentos e a derivação do sistema de coordenadas correto a partir destes
movimentos
(1960, p. 293).
Independentemente da problematização dos conceitos de tempo, espaço e movimento, o que
importava para Mach era o estabelecimento da utilidade e dos limites de utilização do princípio da
inércia na descrição matemática dos movimentos, além, é claro, de verificar sua adequação aos
fenômenos.
Certamente que a proposta de Mach
não se aplica somente à mecânica. Para a natureza física
como um todo, ‘uma vez descobertas as relações numéricas exatas entre as diferentes classes de
fenômenos naturais, teremos conseguido tudo que a ciência pode esperar e exigir...’ (CASSIRER
,
vol. IV,
1986, p. 123). Este é o limite da ciência, dentro do qual não cabem hipóteses.
Para aqueles que adotaram o limite assim proposto, não seria missão da ciência
penetrar
por meio de hipóteses nas profundidades da ordem universal...’ (MAYER
apud
CASSIRER, vo
l.
IV, 1986, p. 123). De maneira radical, Otswald decreta: “não farás uso de imagens nem de
analogias” (
apud
CASSIRER
, vol. IV, 1986, p. 122).
Mesmo hipóteses eficientes, como a do átomo, tornaram-se alvos de severos ataques. A
despeito de sua bem sucedida utilização na teoria cinética dos gases,
52
a idéia de átomo apresentava
aspectos que não se enquadravam nos mandamentos metodológicos da corrente de pensamento que
vinha se fortalecendo na comunidade científica:
(1)
A aceitação do átomo como entidade física esbarrava na impossibilidade de uma
confirmação empírica convincente de sua existência;
(2)
Como
entidade hipotética, o átomo ou qualquer outro tipo de hipótese deveria ser
evitado;
53
(3)
A identificação do atomismo com a mecânica clássica então, alvo de severas críticas
dificultava a adoção de hipóteses atômicas (Videira, 1997, p. 71).
Entretanto, o atomismo encontrava no físico austríaco Ludwig E. Boltzmann um persistente
defensor. Boltzmann acreditava que a elaboração de teorias científicas não deveria prescindir de
hipóteses (VIDEIRA, 1997, p. 56) e, desde seus primeiros escritos, o fundador da mecânica
estatística deixava claro que a hipótese atômica lhe era especialmente cara (JANIK e TOULMIN
,
52
De acordo com esta teoria, a pressão exercida pelo gás sobre as paredes do recipiente que o contém é resultado dos
choques dos átomos que compõem o gás contra as paredes do recipiente.
53
Videira (1997, p. 61) cita as tentativas feitas, a partir de 1870, de abordar o estudo dos gases, em que a hipótese do
átomo era aplicada com sucesso,
‘sem o recurso ao conceito de átomo’
.
29
1996, p. 143). De acordo com Videira (1997, p. 71), Boltz
mann não considerava o átomo como uma
entidade física à qual se deveria atribuir valor ontológico. Ele admitia vários modos de
representação para a física e acreditava que a coexistência destes diferentes modos de representação
poderia ser frutífera para a ciência (VIDEIRA, 1997, pp. 59-60). Não admitia, porém, que
partidários do energetismo ou da fenomenologia físico-matemática rejeitassem, por meio de
argumentos, a seu ver, dogmáticos, sua visão atomística de mundo.
Por outro lado, o emblemático Ernst Mach considerava inadmissível a convivência de
diferentes esquemas conceituais(JANIK e TOULMIN, 1996, p. 137) para a descrição de um
mesmo fenômeno. Para Mach, a função do conhecimento está relacionada à adaptação do homem
ao seu meio ambiente. Através da descrição do mundo sensível somos capazes de interagir com a
natureza e sobreviver. Somos, em grande medida, conhecedores passivos. ‘Esquemas conceituais
são instrumentos econômicos que nos permitem lidar com problemas práticos’ (JANIK e
TOULMIN
, 1996, p. 137). De acordo com a perspectiva machiana, o conhecimento eficiente de
nosso meio ambiente nos poderá ser fornecido pelas idéias e conceitos que, após competirem
com idéias e conceitos rivais pela conquista de adeptos, sobreviveram, mostrando assim, e
starem
mais bem adaptadas aos fatos e às outras idéias e conceitos sobreviventes (JANIK e TOULMIN
,
1996, p. 138).
Sob o ponto de vista epistemológico de Mach a coexistência de teorias rivais era
inadmissível e o fenomenismo radical que lhe era característico tornava inaceitável ‘a existência de
átomos e de outros dogmas similares’ (MACH
apud
MENGER, 1960, p. xiv)
54
. Para Mach,
“algo
que está além do alcance do conhecimento, algo que não pode se exibir aos sentidos, é destituído
de significado para as ciênci
as naturais”
(1960, p. 337).
Em contrapartida, Max Planck, um admirador do método de análise estatística proposto por
Boltzmann, criticou a concepção machiana de conhecimento, identificando nela características
antropomórficas
.
55
Especificamente sobre a re
sistência de Mach e seus seguidores em aceitar a idéia
de átomo, Planck declarou:
Não me surpreenderia se, algum dia, um dos membros da escola de Mach
anunciasse a grande descoberta de que a teoria da probabilidade ou a realidade do
átomo são, de fato, con
se
qüências da economia científica (
apud
Janik e Toulmin,
1996, p. 138).
54
Esta declaração, de acordo com Menger, foi retirada de artigos deixados por Mach e citada por Ludwig Mach, filho
do cientista. O texto completo da citação é o seguinte: “Eu não considero os princípios newtonianos como completos e
perfeitos; mesmo assim, em minha idade avançada, posso aceitar a teoria da relatividade tão dificilmente quanto posso
aceitar a existência de átomos e de outros dogmas similares” (
apud
MENGER, 1
960, p.
xiv).
55
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver Janik e Toulmin, 1996, pp. 136
-
138.
30
Mas, o pensamento de Mach pode ser melhor compreendido se consideramos outros
aspectos proeminentes da cena cultural européia de sua época. Nas primeiras décadas do século
XIX, a Inglaterra vivia o otimismo de um capitalismo industrial bem sucedido,
56
enquanto assistia
ao enfraquecimento e à reforma da Igreja e à democratização dos paços imperiais.
57
Sob a tensão da
relação entre ciência e religião alimentada pelas recentes pesquisas de geólogos e naturalistas,
discutia
-se as intenções de Deus para conosco e nosso mundo: seria Deus um interventor
intermitente a operar milagres sempre que julgasse necessário ou um legislador cuja infinita
sabedoria permitiu-Lhe, através de um único decreto, baixado no momento da criação, o
estabelecimento de todas as leis da natureza?
Nesse contexto, Charles Darwin elabora, e publica em 1859, sua teoria da evolução através
da obra intitulada A Origem das Espécies. A teoria de Darwin influenciou obras literárias, a
antropologia, a ciência, a teoria do conhecimento e, é claro, a nossa cosmovisão. O impacto do
evolucionismo e, indiretamente, o papel assumido naquele momento pela própria ciência é assim
descrito por Sigmund Freud:
No decurso do tempo, a humanidade teve de agüentar, das mãos da ciência, duas
grandes ofensas ao seu ingênuo amor próprio. A primeira foi quando percebeu que
a Terra não era o centro do universo, mas apenas um pontinho num sistema de
magnitude dificilmente compreensível... A segunda quando a pesquisa biológica
roubou
-lhe o privilégio de ter sido criada especialmente, e relegou o homem a
descendente do mundo animal (
apud
GOULD, 1999, pp. 6
-
7).
Para Gould, a concepção de Darwin sobre a seleção natural era bastante simples e tinha
como
base os seguintes aspectos:
(1) Os organismos variam, e essas transformações são herdadas (pelo menos em
parte) por seus descendentes.
(2) Os organismos produzem mais dependentes do que aqueles que podem
sobreviver.
(3) Na média, a descendência que varia com mais intensidade em direções
favorecidas pelo meio ambiente sobreviverá e se propagará. Variações favoráveis,
portanto, crescerão na popula
ção através da seleção natural. (1999, p. 1)
Ainda de acordo com Gould (1999, p. 2), Darwin defendia que as variações orgânicas são
casuais e não são pré-
dirigidas
‘para a forma mais favorável’. Além do mais, a evolução não seria
condicionada por causas finais e nem resultaria,
inevitavelmente
, em organismos superiores.
Segundo o próprio Darwin, “é absurdo falar que um animal seja superior a outro. Nós
consideramos que os mais superiores são aqueles em que as faculdades mentais são mais
desenvolvidas. Uma abelha, sem dúvida, usaria os instintos com critério” (
apud
DESMOND e
MOORE
, 1995, p. 251).
56
GOULD, S. J., 1999, p.33.
57
DESMOND, A.; MOORE, J., 1995, p. 230.
31
No entanto, dificilmente dissociamos os significados dos termos
evolução
e
progresso
. Por
esse motivo, em alguns de seus trabalhos o próprio Darwin preferiu adotar o termo
descendência
com modificação (GOULD, 1999, p. 25). Segundo Gould (1999, p. 27), a utilização da palavr
a
evolução, no sentido de progresso, como sinônimo do termo descendência com modificação, foi
popularizada pelo cientista vitoriano Herbert Spencer
(1820
1903)
.
Assim sendo, o sentido segundo o qual se apropriou do termo evolução e do próprio
evolucioni
smo a partir da teoria de Darwin, foi condicionado por aspectos culturais característicos
da época em que viveram seus comentadores. Além de Spencer, este também teria sido o caso de
Haeckel
(1834
1919) um cientista que discutiu diretamente com Darwin alguns dos aspectos da
teoria da evolução (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 200) cuja filosofia da natureza é considerada
por Cassirer como
antropomórfica, antropocêntrica e teleológica
(1986
, p. 200).
À época de Darwin, a intelectualidade londrina assistia a importantes transformações
culturais concomitantes ao sucesso do capitalismo industrial que se instalara na Inglaterra
58
. O
círculo de amizades de Darwin era formado, em sua maioria, por intelectuais entusiasmados com as
transformações que vinham ocorrendo e que partilhavam ideais de inspiração malthusiana
(DESMOND e MOORE, 1997, pp. 235-236): racionalização dos valores da classe média,
corroboração da competição, apoio ao livre comércio e à expansão das fábricas e justificação da
remoção dos empecilhos
religiosos.
Na grandiosa obra The Science of Mechanics: A Critical and Historical Account of Its
Development
, cuja primeira edição em alemão data de 1883
,
59
percebe
-
se em seu autor, Ernst Mach,
um intelectual em sintonia com algumas das tendências científicas de seu tempo: atitude
francamente antimetafísica, adesão ao fenomenalismo, consideração ‘do pensamento cotidiano e da
ciência em geral como fenômenos biológicos e orgânicos’ (MACH, 1960, p. 593), etc. Pode-
se,
também, dizer, que Mach comungava com alguns dos ideais defendidos pelos intelectuais
reformistas ingleses e, de maneira geral, parecia se identificar com o momento histórico pelo qual
passava o mundo britânico. De acordo com Menger:
Ele [Mach] era um defensor da educação em massa e do progresso, além de um
destemido advogado do que ele considerava a verdade. Na atmosfera próspera, mas
nacionalista e militarista da Europa Central do final da era vitoriana-
eduardiana,
Mach aparentava sentir uma forte afinidade com o mundo de língua inglesa (1960,
p.
xx).
58
Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver DESMOND e MOORE, 1997, pp. 230
-
258
.
59
“Nove edições
em alemão desse livro forma publicadas, s
ete delas enquanto Mach ainda vivia (1838
-
1916), em 1883,
1888, 1897, 1901, 1904, 1908 e 1912. A e a edições em alemão apareceram em 1921 e 1933. As traduções para o
inglês foram publicadas pela Open Court Publishing Company em 1893, 1902, 1915, 1919, 1942 e 1960(MACH,
1960, p.
v).
32
Um dos objetivos principais do estudo crítico e histórico de Mach sobre o desenvolvimento
da mecânica é mostrar que este se deu sob forte influência teológica. Assim sendo, não se pôde
evitar a inclusão, em seus domínios, de idéias
‘supérfluas’
, el
ementos metafísicos e explicações que
se fundam em argumentos que ultrapassam os limites do observável. De acordo com Mach, homens
com Pascal, Otto Von Guericke, Leibniz, Newton, Euler e outros, foram capazes de feitos
brilhantes, mesmo que constrangidos pelo ambiente religioso de sua época. Não foi apenas contra o
poder político da religião que estes e outros investigadores tiveram que lutar, mas, também, contra
suas próprias idéias preconcebidas e, “especialmente, contra a noção de que filosofia e ciência
deveriam se fundar na teologia”
(MACH
, 1960, p. 542).
Para Mach, toda a ciência tem sua origem nas necessidades da vida (1960, p. 604),
“todo
conhecimento é dirigido para a adaptação do animal ao seu meio ambiente”
(JANIK e TOULMIN
,
1996, p. 137). Durante uma investigação científica, a atenção do investigador deve estar voltada
para
‘a adaptação das idéias aos fatos, a adaptação das idéias umas às outras...’ (MACH, 1960, p.
593). Não é possível considerar simultaneamente toda a ciência e, por isso, deve-se subdividi-la de
acordo com as
vocações
e
capacidades
individuais dos investigadores:
A divisão do trabalho, a restrição de investigadores individuais a domínios
limitados, a consideração da investigação de tais domínios como o trabalho de uma
vida,
são as condições fundamentais para um desenvolvimento frutífero da ciência.
Somente por meio de tal especialização e restrição do trabalho pode-se aperfeiçoar
os instrumentos econômicos do pensamento necessários para o domínio sobre um
determina
do ramo [do
conhecimento] (MACH
, 1960, p. 609).
Mach declarava entender o problema da ciência com base na concepção de psicofísica
(
psychophisics
) de Gustav Theodor Fechner, o qual considerava o psíquico e o físico como
dois
aspectos de uma mesma realidade, e nas idéias de Avenarius de fusão da física e da psicologia
(JANIK e TOULMIN, 1996, pp. 134-135). Em The Science of Mechanics Mach refere-se a Darwin
apenas duas vezes,
60
mais para destacar o método de investigação darwiniano do que
propriamente
a teoria que notabilizou o cientista britânico.
61
Mesmo assim, dificilmente se pode negar a
influência da teoria da evolução na concepção epistemológica de Mach.
60
MACH, 1960, p. 547 e pp. 554
-
555.
61
Na referência mais longa a Darwin, Mach utiliza a teoria da seleção natural como argumento contra aqueles que
defendiam a idéia de que a perfeita adaptação das estruturas orgânicas seria uma comprovação da existência de uma
sabedoria suprema regulando a natureza: “Não deveríamos nos
esquecer...
que a investigação, e não meramente a
admiração, é o ofício da ciência. Sabemos como Darwin pensou em resolver estes problemas através da teoria da
seleção natural. Se a solução de Darwin é completa, pode-se com justiça duvidar; o próprio Darwin colocou para si tal
questão...
Mas não pode haver dúvida de que esta teoria é a primeira tentativa séria de substituição da mera admiração
das adaptações da natureza orgânica pela investigação séria sobre o modo pelo qual elas se originaram” (MACH, 1960,
pp. 547
-
548).
33
Cassirer caracteriza Mach como um “partidário da moderna teoria da evolução” (vol. IV,
1986, p. 115), segundo a qual o cientista não deve se preocupar com a verdade em si’ ou com
‘o
caráter e as causas finais dos acontecimentos naturais’.
62
Mas, desde o início do século XIX, uma nova leitura de mundo estava sendo disponibilizada
por e para determinados pensadores: “o presente continha a chave genealógica do passado. Este
era o caminho mais curto para a verdade histórica” (DESMOND e MOORE, 1995, p. 234).
Segundo Koyré, a regra: o passado explica o presente’ se estende à cosmologia, à geologia, à
biologia (1982, p.
372)
.
63
Num trecho retirado de uma carta do pesquisador britânico John Herschel
(1792
1871)
a
Lyell
(1797
1875)
, percebe
-
se os reflexos dessa nova leitura de mundo:
As palavras são para o antropólogo o mesmo que os seixos lisos representam para o
geólo
go
– são relíquias maltratadas de eras passadas, muitas vezes contendo dentro
de si registros indeléveis, capazes de uma interpretação inteligível –, e quando
vemos a quantidade de mudanças que dois mil anos foram capazes de fazer nas
linguagens da Grécia e Itália, ou de milhares na Alemanha, França e Espanha,
naturalmente começamos a perguntar quanto tempo deve ter decorrido para que os
chineses, hebreus, índios delaware e malgaves tenham atingido um ponto em
comum com os alemã
es, italianos e todos os dema
is
(
apud
DESMOND e MOORE
,
1995, p. 233).
Enquanto alguns procuravam por ‘remanescentes fósseis do discurso’ (DESMOND e
MOORE
, 1995, p. 234), Darwin
desenterrava preguiças fósseis
(
Ibidem
) e Mach, em seus estudos
históricos e críticos sobre o desenvolvimento da ciência, deparava-se com ‘indicações fósseis’
(MACH
, 1960, p. 35) da origem e evolução do conhecimento científico
.
64
Na busca pela origem do conhecimento científico e pelas leis que presidem a evolução de
sua ciência
(MACH
apud
CASSIRER, p. 115), o cientista deve se deixar guiar pela
mão
encaminhadora da história’ (
Ibidem
). Ao percorrer o caminho indicado pela história, o cientista
perceberá que as necessidades surgidas da interação dos seres humanos com seu meio ambiente,
representadas de acordo com o que nosso equipamento biológico,
65
e não a reflexão e a abstração,
respondem pela origem e a evolução da ciência. O processo cognitivo é ‘puramente instintivo’ e
62
Para Mach, a fase mais frutífera do período em que Galileu permaneceu em Pádua foi exatamente aquela em que ele
desistiu do ‘por quê’ para se preocupar apenas em investigar estritamente ‘como’ os diversos tipos de movimentos
podem ser observados (1960, p. 155).
63
Acredito que o trecho da carta de Herschel citado acima e a abordagem histórica de Mach sobre o desenvolvimento
da ciência são fortemente influenciadas por este historicismo.
64
Sobre as conclusões de Stevin referentes ao estudo do equilíbrio estático no plano inclinado, Mach declara:
“A
dedução de Stevinus é uma das raras indicações fósseis que possuímos na história primitiva da mecânica, e lança uma
luz maravilhosa no processo de formação da ciência em geral, sobre sua origem no conhecimento instintivo” (1960, p.
35).
65
Ver, por exemplo, MACH, 1960, p.95.
34
‘existe em absoluta independência de nossa participação’, sem que nada de arbitrário
ac
rescentemos a ele (MACH, 1960, pp. 34
-
35).
Para Haeckel, o resultado da abordagem histórica utilizada por Darwin na busca por uma
explicação para o surgimento de novas espécies, deve ser considerado ‘uma verdadeira façanha
emancipadora
por ter levado à ‘eliminação e superação de qualquer modalidade de concepção
teleológica
(
apud
CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122). Ao afirmar que a natureza ‘não tem senão
uma existência própria; a natureza simplesmente é’, Mach (1960. p. 580) parece concordar com
Haeckel e
, estende sua concepção aos fenômenos físicos e à própria teoria do conhecimento.
Koyré c
aracteriza o século XIX como o ‘século da história(1982, p. 372), o século em que
a história, sob a influência da filosofia alemã
especialmente do sistema de Hege
l
,
torna
-
se a via
universal de explicação’. Para muitos, a marcha do
espírito
em busca da liberdade
66
e o progresso
do conhecimento rumo a uma identidade universal
67
ideal se dão por uma mesma estrada iluminada
pela história.
Para Mach, a adaptação dos seres humanos ao seu meio ambiente é inevitável e conduz,
progressivamente, a uma situação ideal. O progresso é garantido pela tendência natural à economia
de pensamento
68
apresentada pela mente humana. A ciência se apresenta como uma forma
privilegiada e exemplar de intercâmbio com a natureza, mas, paulatinamente, todo equipamento
humano de sobrevivência alcançará uma configuração universal ideal:
... a linguagem escrita está sendo gradualmente metamorfoseada em um conjunto
ideal de símbolos universais... Números, sinais algébricos, símbolos químicos,
notas musicais, fonemas alfabéticos, devem ser considerados partes constituídas
da futura simbologia universal... Na escrita chinesa encontramos um exemplo real
de uma verdadeira linguagem ideográfica, pronunciada diversamente nas diferentes
províncias, mas carregando, em todas elas, o mesmo significado... [pela sua
simplicidade] o uso da escrita chinesa deve se tornar universal (MACH, 1960, p.
578).
Em sua abrangente obra, é provável que a atenção de Mach em relação ao problema da
linguagem tenha se restringido aos aspectos destacados na passagem acima. Menger (1960, p. xvi)
aponta a negligência de Mach para com a crítica da linguagem como uma das principais lacunas em
seus estudos. No entanto, a
intensa re
flexão crítica acerca da metodologia, possibilidade e limites da
66
REIS, J. C. “História da História: Civilização Ocidental e Sentido Histórico”. In:
História
& Teoria: Historicismo,
Modernidade, Temporalidade e Verdade.
2ª ed. Rio de Ja
neiro: FGV, 2005.
67
Ibidem.
68
Segundo Mach, a natureza é composta de sensações e seus elementos. Ao reproduzirmos os
‘fatos’
da natureza no
pensamento
‘o cômodo gabinete econômico da ciência’ consideramos apenas os seus aspectos que mais nos
interessam por motivos práticos, por meio de abstrações. Nas ciências, por exemplo, as mais desenvolvidas
economic
amente são aquelas capazes de reduzir os fatos tratados em seus domínios a uns poucos elementos de mesma
natureza e expressá-los através de símbolos e relações matemáticas. A matemática, por sua vez, ‘pode ser definida
como a economia do cálculo’. Assim, por exemplo, aos estudarmos a queda dos corpos não precisamos e nem somos
capazes de memorizar todos os casos possíveis, bastando, para isto, recorrer à expressão matemática h = g.t²/2. Para
uma abordagem detalhada do princípio da economia de pensamento, ve
r MACH, 1960, pp. 577
-
595.
35
ciência não era um privilégio desta forma específica de representação do mundo. De acordo com
Janik e Toulmin, não eram poucos os intelectuais e artistas europeus que, no final do século XIX,
ocupavam
-se da seguinte questão: “como poderia alguma coisa servir como meio para expressar
ou simbolizar uma outra coisa qualquer?”
(1996, p. 30).
Para os intelectuais de língua alemã, a crítica da linguagem
69
que poderia levar à solução
ou dissolução de alguns aspectos do problema colocado pela questão acima deveria ser feita com
base nas três tradições que lhe
s
eram familiares:
(1) o neoempirismo de Ernst Mach, com sua ênfase nas ‘impressões dos sentidos’ e
nas ciências naturais;
(2) a análise kantiana da ‘representação’ e da ‘schemata’ como determinantes das
formas da experiência e dos juízos, e sua continuidade pelo anti-filósofo Art
hur
Schopenhauer;
(3) a abordagem anti-intelectualista dos temas relacionados à moral e à estética
conduzida por outro anti-
filóso
fo, Søren Kierkegaard... (JANIK e TOULMIN
,
1996, p. 119).
Apesar do estudo dos problemas referentes especificamente à crítica da linguagem
ultrapassar o escopo estabelecido para este trabalho –
embora um e outro, como será visto, guardem
uma
relação importante deve-se ressaltar dois aspectos comuns aos pensadores que
protagonizavam a cena intelectual do mundo germânico:
70
cientistas e filósofos que se dedicavam
aos debates sobre o papel das teorias científicas, intelectuais e artistas que se ocupavam das
questões referentes à linguagem e quaisquer outros meios de expressão, recorriam, em sua maioria,
às duas primeiras tradições filosóficas anteriormente citadas e consideravam seus respectivos
objetos de estudo com
o
representações
(JANIK e TOULMIN
, 1996, p. 31).
Na concepção de Mach de que o mundo se nos apresenta por meio de nossas sensações e de
que o conhecimento do mundo se resume à descrição das relações dos dados fornecidos por nossos
sentidos, o poeta Hugo Hofmannsthal
(1874
1929)
enc
ontra a significação e a relevância de sua
poesia. Também sob inspiração machiana, o jornalista Fritz Mauthner
(1849
1923) adotou uma
postura francamente pragmática diante das difíceis questões relacionadas à crítica da linguagem.
Para Mauthner, tais questões se dissolvem quando consideramos a linguagem como mais um
‘equipamento biológico humano’ (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 127) que favorece nossa
adaptação ao meio ambiente
.
71
69
A palavra
linguagem
é aqui utilizada no sentido mais geral: música, literatura, arquitetura, pintura, linguagem
ordinária, etc. (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 119).
70
Para uma abordagem mais detalhada do mundo intelectual de língu
a alemã à época, ver JANIK e TOULMIN, 1996.
71
Como foi dito no corpo do texto, Menger (1960, p. xvi) aponta a negligência de Mach para com a crítica da
linguagem como uma das principais lacunas na abrangente obra do cientista. A postura de Mauthner diante
do problema
talvez ajude a esclarecer os motivos de tal negligência.
36
Por outro lado, o comentarista e revisor das idéias de Kant, Arthur Schopenhauer
, apresenta
-
se como um fervoroso defensor da segunda tradição.
72
Dentre os cientistas que aderiram à proposta
filosófica de Kant e/ou às reconsiderações de sua proposta, pode
-
se destacar Helmholtz e Hertz.
O termo
representação
havia sido colocado em circulação por Kant e pelo kantiano
Schopenhauer e, na primeira década do século XX, a ‘idéia de considerar a linguagem, os
simbolismos e quaisquer meios de expressão como ‘representações’
73
(darstellugen) ou imagens
[pictures]
(
bilder
)
havia se tornado lugar co
mum no debate cultural
74
(JANIK e TOULMIN
, 1996,
p. 31). No meio científico o termo foi disseminado por Heinrich Hertz que o utilizou para
especificar o caráter kantiano de suas
imagens
(
bilder
) dos fenômenos naturais (JANIK e
TOULMIN
, 1996, p. 139) e adotado por Ludwig Boltzmann. Mais tarde, Erwin Schödinger
consagrou a
B
ild conception
como uma tradiç
ão na física teórica (D’AGOSTINO
, 2004, p. 372).
De acordo com Janik e Toulmin, ‘as implicações do programa crítico’ proposto por Kant,
vieram, gradualmente, a dominar a filosofia e as ciências naturais alemãs nos cem anos posteriores
à publicação da Crítica da Razão Pura, sendo a própria preocupação com a natureza e os limites da
linguagem
e, provavelmente, com a natureza e os limites da ciência uma das conseqüências do
programa crítico kantiano (1996, pp. 120 e 122). No entanto, nem todos aqueles que se ocuparam de
tal problema no final do século XIX concordariam com esta afirmação: o influente Ernst Mach, por
exemplo, era francamente anti-
kantiano
75
e seu neo-empirismo é claramente inspirado na filosofia
do britânico Hume.
72
No ambiente intelectual do mundo de língua alemã, a filiação de Schopenhauer à tradição kantiana é compreensível.
A anglofilia de Schopenhauer (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 124) tornava-
o
um opositor da primeira tradição,
influenciada pelas idéias de Locke e Hume.
73
Existem duas palavras para designar o termo
representações
em alemão:
Darstellugen
, utilizada no sentido kantiano
do termo e
Vorstellugen,
quando se pretende utiliza-lo de acordo com o sentido que lhe é conferido pela tradição
filosófica inglesa. Por isso, Janik e Toulmin destacam entre parênteses o termo correspondente em alemão.
74
Nesta passagem, Janik e Toulmin referem-se especificamente ao ‘debate cultural vienense’ no fim do século XIX e
início do século XX, o que, a meu ver, não invalida sua extensão ao restante do mundo de língua alemã, principalmente
em razão da consideração da
Viena de fim de século
como um centro irradiador de cultura.
75
Na sua crítica à mecânica de Hertz, Mach declara: “de meu ponto de vista (que não deve ser confundido com as
concepções kantiana ou atomística da maioria dos físicos)...”
(1960, p. 318).
37
CAPÍTULO II
A MECÂNICA DE HERTZ
II.1. INTRODUÇÃO
Heinrich Hertz dedicou os três últimos anos de sua vida à obra
The Principles of Mechanics
,
publicada postumamente em 18
94,
1
na qual apresenta a proposta de um novo modo de
representação da Mecânica. Na opinião de Abrantes (1992, p. 354), os motivos que levaram Hertz a
se lançar em tal empreitada estariam enraizados na prática, comum entre os cientistas alemães da
época, de comparar os diferentes formalismos utilizados na representação de um mesmo conjunto
de fenômenos relativos a um determinado domínio da física.
2
Mach, por sua vez, acreditava que o
novo sistema proposto por Hertz para a mecânica teria por objetivo a representação das forças
gravitacionais
‘e quaisquer outras forças’ como resultado de movimentos em um meio, assim
como já havia sido feito, com sucesso, no caso das forças elétricas e magnéticas (1960, p. 323).
Pode
-se, também, argumentar que os sinais de inadequação da mecânica newtoniana ao
estudo de determinados fenômenos, tenham levado Hertz a uma tentativa de “salvar” aquele que
para muitos ainda se apresentava como um modelo privilegiado, fundamental para os demais ramos
da física.
Na introdução de T
he Principles of Mechanics
, Hertz esclarece:
...eu não me dediquei a esta tarefa porque a mecânica vem mostrando sinais de
inadequação em suas aplicações, nem porque ela, de alguma forma, conflita com a
experiência, mas, somente, como forma de me livrar do sentimento opressivo de
que seus elementos não estariam livres de coisas obscuras e ininteligíveis (1956, p.
33).
Mas, como foi dito, não se pode deixar de lembrar que o século XIX assiste a uma severa
disputa pelo estabelecimento de uma metodologia hegemônica para o desenvolvimento da física.
Disputa esta que vai se acirrando à medida que o fim do século se aproxima. Por isso, apesar das
interpretações e declarações que apontam motivos pontuais para a iniciativa levada a cabo por
Hertz, chama-nos a atenção, na própria introdução de The Principles of Mechanics, a exposição
feita pelo autor de sua concepção a respeito do conhecimento físico, suas posições metodológicas,
simultaneamente à aplicação das diretrizes contidas nesta concepção, à
representação
por ele
proposta.
1
Primeira edição alemã:
Die Principien der Mechanik in neuem Zusammenhange dargestellt
.
Leipzig, 1894
.
Edição utilizada como fonte bibliográfica para este trabalho: The Principles of Mechanics presented in a new form.
Dove Publications, Inc, 1956.
2
Como visto anteriormente à elaboração de The Principles of Mechanics Hertz havia obtido sucesso na recon
strução
axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell.
38
Para Hertz, a principal função do conhecimento é tornar-nos aptos a antecipar eventos
futuros’
, tendo como base o conhecimento de eventos observados casualmente ou através de
experimentos (1956, p. 1). No processo de inferência do futuro a partir do passado, nós formamos
para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos’, de tal forma que as relações entre as
imagens formadas devem concordar com as relações entre os objetos externos (
Ibidem)
. Hertz
ressalta que as imagens a que ele se refere são nossas concepções das coisas e que a conformidade
destas imagens com a natureza se esgota na sua adequação ao que delas é requisitado no processo
anteriormente descrito. Não meios de se saber se estas imagens estão em conformidade com
as
coisas em nenhum outro aspecto que não seja este.
No entanto, estas imagens não estão livres de ambigüidades, ‘várias imagens de um mesmo
objeto são possíveis e estas imagens podem diferir em vários aspectos’
(HERTZ, 1956, p. 2):
Devemos considerar inadmissíveis todas as imagens que implicitamente
contradizem as leis do nosso pensamento. Assim, postulamos em primeiro lugar
que todas as imagens devem ser logicamente permissíveis... Consideramos
incorretas quaisquer imagens permissíveis, se suas relações essenciais contradizem
as relações das coisas externas, isto é, se elas não satisfazem nosso primeiro
requisito fundamental. Portanto, nós postulamos, em segundo lugar, que nossas
imagens devem ser corretas. Mas duas imagens permissíveis e corretas do mes
mo
objeto externo podem ainda diferir no que concerne à adequação. De duas imagens
do mesmo objeto a mais adequada é aquela que melhor representa as relações
essenciais do objeto, - aquela que denominaremos a mais distinta. De duas imagens
igualmente distintas, a mais apropriada é aquela que contém, em acréscimo às
características essenciais, o menor número de relações vazias ou supérfluas, - a
mais simples das duas. Relações vazias não podem ser totalmente evitadas: elas
fazem parte das imagens por que elas são simplesmente imagens, - imagens
produzidas pela nossa mente e necessariamente afetadas pelas características de seu
modo de representação (portrayal
) (HERTZ, 1956, p. 2).
Em outras palavras, Hertz postula três critérios para o estabelecimento das imagens dos
fenômenos naturais: as imagens não podem contrariar as leis do nosso pensamento
(
permissibilidade
); as conseqüências das imagens devem ser compatíveis com a experiência
(
correção
); e a melhor imagem é a mais simples (
adequação
) (ABRANTES, 1992,
p. 359).
Na concepção de Hertz, uma representação científica das imagens deve ser capaz de
fornecer com clareza quais características devem ser atribuídas às imagens, para que estas se
enquadrem nos critérios apontados acima (1956, p. 2).
Segundo o cientista, a decisão quanto à
permissibilidade
e à
correção
das imagens pode ser
obtida sem contradições. No entanto, no que se refere à exigência de
adequação
‘notações,
definições, abreviações e, em resumo, tudo que podemos arbitrariamente adicionar ou reti
rar
[da
imagem]
(HERTZ, 1956, p. 3)
a decisão é, frequentemente, controversa:
... não podemos decidir sem ambigüidade se uma imagem é adequada ou não;
quanto a isso, podem surgir diferentes opiniões. Uma imagem pode se mostrar mais
39
apropriada para certo propósito, outra para um propósito diferente; somente
testando gradualmente muitas imagens, podemos, finalmente, obter com sucesso a
mais adequada (HERTZ, 1956, p.3).
À época de Hertz duas representações da mecânica estavam disponíveis: uma derivada da
mecânica newtoniana, que tinha o conceito de força como um de seus elementos fundamentais e a
outra, baseada no Princípio da Conservação da Energia, que partia dos mesmos fundamentos da
primeira, com exceção do conceito de força que fora substituído pelo d
e energia.
II. 2. A PRIMEIRA
REPRESENTAÇÃO
DA MECÂNICA
Para Hertz
‘a representação usual da mecânica’
– aquela apresentada aos estudantes através
dos livros-
textos
‘fornece
-nos uma primeira imagem’ (1956, p. 4). Os conceitos básicos sobre os
quais se
apóia esta representação são
espaço, tempo, força e massa
. As relações entre espaço e força
são tratadas na estática. As relações entre espaço e tempo são o tema da cinemática. O princípio da
inércia estabelece a relação entre espaço, tempo e massa. E, finalmente, os quatro conceitos
fundamentais desta representação são relacionados pelas Leis de Newton.
3
Nesta primeira imagem, a força é concebida como a causa do movimento, precedendo-o e
existindo independentemente dele. Apesar de a adoção prolongada e generalizada desta
representação da mecânica conferir-lhe um caráter modelar, Hertz tinha dúvidas quanto à sua
permissibilidade lógica. Para o cientista, um exame mais acurado da aplicação dos princípios
fundamentais desta primeira imagem ao estudo dos fenômenos naturais revelava suas contradições
internas. Mesmo em casos simples de movimento como o de uma pedra girando presa a uma
corda
4
verifica-se que, se, por um lado, a segunda lei de Newton mostra-se eficiente, por outro,
para que se cumpra a exigênc
ia da terceira lei, o efeito da inércia da pedra deve ser levado em conta
duas vezes: “primeiramente como massa, posteriormente como força [centrífuga] (HERTZ, 1956,
p. 6), força esta, que surge como conseqüência do movimento.
Mas, se nos fundamentos desta primeira imagem a força é concebida como causa do
movimento, cabe, segundo Hertz, a seguinte questão:
3
Hertz cita ainda o princípio de d’Alembert, o qual estende os resultados da estática para os casos de movimento, como
um princípio fundamental desta primeira imagem.
4
“Fazemos girar uma corda pres
a a um barbante e, ao fazê
-
lo, sabemos que estamos exercendo uma força sobre a pedra.
Esta força desvia constantemente a pedra de sua trajetória retilínea. Se variamos a força, a massa da pedra e o
comprimento da corda, verificamos que o movimento real da pedra está sempre de acordo com a segunda lei [de
Newton]. Mas, a terceira lei exige uma força oposta à força exercida pela mão sobre a pedra. Em relação a esta força
oposta, a explicação usual é que a pedra reage sobre a mão em conseqüência da força centrífuga, e que esta força
centrífuga é, de fato, exatamente igual e oposta àquela que exercemos. Seria este modo de expressão permissível? O que
chamamos de força centrífuga não seria senão a inércia da pedra?” (HERTZ, 1956, pp. 5
-
6).
40
Podemos, sem confundir nossas idéias, subitamente começar a falar de forças que
surgem através do movimento, que são conseqüências do movimento? Podemo
s
nos comportar como se tivéssemos estabelecido em nossas leis alguma coisa
sobre forças deste novo tipo, como se, ao denominá-las forças pudéssemos investi-
las com as propriedades das forças? A resposta a tal questão deve ser claramente
negativa. A única explicação possível é que a força centrífuga não é, de forma
alguma, uma força. Seu nome, assim como o nome vis viva, é aceito como uma
tradição histórica; sua manutenção é conveniente, embora devêssemos nos
desculpar por mantê
-
la ao invés de nos esforç
armos para justificá
-
la. (1956, p. 6).
Para Hertz, a diferença entre as concepções de força utilizadas na terceira lei e na primeira e
segunda leis de Newton constitui-se em uma obscuridade lógica inconcebível. Mas, de acordo com
ele, os cientistas, embora incomodados pelo desconforto intelectual causado por esta e outras
obscuridades presentes nas definições e concepções básicas das representações científicas, relevam-
nas, preferindo concentrar
-
se nos
‘exemplos que falam por si mesmos’
(1956, p. 7).
As
críticas de Hertz à mecânica tradicional referem-se apenas aos seus aspectos formais.
Quanto ao seu conteúdo, admite Hertz, não se pode ignorar os ‘numerosos triunfos que a mecânica
obteve em suas aplicações’
(1956, p. 8). Mas as dificuldades lógicas relat
ivas à forma desta imagem
da mecânica não devem ser deixadas de lado em favor da permissibilidade conferida ao seu
conteúdo por tais triunfos:
5
“ela ainda falha em distinguir completamente e com exatidão entre os
elementos internos da imagem que surgem das necessidades do pensamento, da experiência e da
escolha arbitrária”
(HERTZ, 1956, p. 8).
Quanto ao critério de correção, Hertz afirma que, de acordo com as observações
experimentais até aquele momento, a primeira representação da mecânica seria inquestio
nável. Mas,
para ele, de forma alguma isso representaria uma garantia de que a eficiência desta primeira
imagem se confirmaria quando de sua aplicação a experiências futuras: “aquilo que deriva da
experiência pode novamente ser anulado pela experiência”
(H
ERTZ, 1956, p. 9).
As ressalvas apresentadas por Hertz ao submeter a mecânica tradicional ao teste de correção,
referem
-se, possivelmente, às observações experimentais nos domínios do eletromagnetismo nos
quais as pesquisas do cientista são reconhecidas como fundamentais – e às suas implicações
teóricas. Ao analisar a primeira imagem da mecânica quanto ao critério de adequação, o cientista
parece demonstrar mais claramente sua posição.
Segundo Hertz, quando se leva em consideração apenas os problemas que deram origem a
este sistema da mecânica problemas mecânicos práticos e ações gravitacionais – a primeira
imagem da mecânica deve, com justiça, ser considerada adequada. No entanto, a sua preocupação
não se restringe aos fenômenos originais:
5
De acordo com o próprio Hertz, essa não é uma preocupação exclusivamente sua. Em nota, o cientista cita trabalhos
de Mach, de Thomson e Tait e de E. Budde sobre o assunto (ver HERTZ, 1956, p. 8).
41
Devemos nos lembrar que o estamos aqui representando as necessidades da vida
diária ou o ponto de vista de tempos passados; estamos considerando toda a
extensão do conhecimento físico e, acima de tudo, falando de adequação no sentido
especial definido no início des
ta introdução (HERTZ, 1956, p. 10).
Sob esta perspectiva, pensando na física como um todo e, provavelmente, na mecânica como
um ciência basilar para a física, Hertz questiona a distinção desta primeira imagem da mecânica: os
movimentos admitidos pelas suas leis fundamentais – ‘tratados na mecânica como exercícios
matemáticos’
não ocorrem na natureza; suas leis fundamentais não são suficientes para o estudo
incondicional de casos envolvendo movimentos naturais, forças e conexões rígidas (1956, p. 10).
A opção de Hertz pelo mecanicismo vai se tornando mais clara à medida que o cientista
insiste em apontar a incompatibilidade entre a mecânica tradicional e a interpretação dos fenômenos
recentemente observado nos domínios do eletromagnetismo como uma falha a ser corrigida. Hertz
cita, como exemplo, a controversa hipótese de Weber: os módulos das forças de atração e repulsão
dependeriam somente da distância entre os corpos, como previsto pela mecânica tradicional, ou
também das velocidades e acelerações relat
ivas? (1956, pp. 10
-
11).
Por fim, ainda em relação à distinção da imagem, Hertz levanta dúvidas quanto à
correspondência das representações matemáticas determinadas pelo princípio de d’Alembert com os
fenômenos físicos em geral
6
e quanto à forma pela qual devem-se ser estabelecidas as restrições
para as equações de condição (1956, p. 11).
A última etapa da análise feita por Hertz da mecânica tradicional diz respeito à simplicidade
desta imagem, um requisito importante na avaliação de sua adequação. Para isto, ele volta
novamente sua atenção para a idéia de força:
Não se pode negar que, em muitos casos, as forças que são utilizadas no tratamento
de problemas em física são simplesmente sócios adormecidos que cuidam dos
negócios quando fatos reais têm que ser
representados (1956, p. 12).
De acordo com o cientista, este pode não ser o caso em situações simples em que a força
parece poder ser diretamente percebida pelos sentidos. Mas, em situações em que as forças não
podem ser percebidas como no estudo dos movimentos das estrelas nossa experiência passada,
assim como a antecipação de observações futuras relacionam apenas as posições dos corpos em
estudo. Neste caso, “é apenas na dedução de futuras experiências a partir do passado que as
forças gravitacionais entram como auxílios transitórios nos cálculos e, em seguida, são
desconsideradas”
(
Ibidem
).
6
Segundo Hertz, “é matematicamente possível formular qualquer equação finita ou diferencial entre coordenadas e
estabelecer critérios para que ela seja satisfeita; mas nem sempre é possível especificar uma conexão física natural
correspondente a tal equação; frequentemente sentimos, na verdade, às vezes estamos convencidos, de que uma tal
conexão é excluída pela natureza das coisas”
(1956, p.11).
42
Hertz estende sua crítica às complicações e à aparência inverossímil decorrentes da
aplicação do conceito de força à representação atomística dos fenômenos nat
urais.
O cientista conclui sua análise destacando os principais problemas detectados nesta primeira
imagem da mecânica: obscuridade lógica formal e inadequação de seu conteúdo aos movimentos
naturais.
7
Mas, o ponto de vista do autor sobre a posição da mecânica em relação ao todo do
conhecimento físico, leva
-
o a recomendar prudência na interpretação de suas críticas:
Mesmo se estas objeções forem admitidas como bem fundamentadas, elas o
devem nos levar a imaginar que a representação usual da mecânica está, por isso,
destinada a perder ou mesmo na eminência de perder seu valor e sua posição
privilegiada; mas elas justificam suficientemente a procura por outras
representações menos expostas à censura quanto a estes aspectos, e mais
aproximadamente conformada às coisas que devem ser representadas (HERTZ,
1956, p. 14).
II. 3. A SEGUNDA
REPRESENTAÇÃO
DA MECÂNICA
A segunda imagem da mecânica
8
é derivada da ‘descoberta’ (HERTZ, 1956, p. 14) do
princípio da conservação da energia. Esta segunda imagem, que vinha ganhando a preferência dos
físicos ao final do século XIX (
Ibidem
), trata os fenômenos da física em geral em termos de
transformações de energia, e fornece uma segunda representação da mecânica quando aplicada aos
‘processos elementares de movimento’
(
Ibid
em
).
Nesta segunda imagem, a idéia de
força
cede lugar à idéia de
energia
e seus conceitos
básicos são
espaço
, tempo, massa, além, é claro, do conceito de
energia
. Nela, espaço e tempo têm
caráter matemático; massa e energia ‘são introduzidas como entidades físicas que estão presentes
numa dada quantidade e não podem ser destruídas nem sofrer acréscimo’
(HERTZ, 1956, p. 15).
A energia associada às massas em estudo é dividida em duas partes: energia cinética, que
depende de suas velocidades absolutas, e energia potencial, que depende de suas posições relativas.
Assim, estabelece
-
se a relação entre espaço, massa e energia.
9
A idéia de força não faz parte dos fundamentos desta segunda representação, sendo nela
introduzida, quando necessário, não como uma entidade empírica, mas como um elemento
7
De acordo com Hertz, a mecânica tradicional não se aplica a todos os movimentos observados, e, ao mesmo tempo,
prevê relações que estão ausentes na natureza (1956. p. 13
-
14).
8
Para Hertz, h
á uma
‘segunda imagem dos processos mecânicos’
, mais recente que a primeira, que se baseia na redução
dos fenômenos naturais a ações à distância entre os átomos da matéria. No entanto, o autor considera que esta segunda
imagem é condicionada pela primeira
e
vice
-
versa
. Assim, para Hertz, a imagem que realmente apresenta novidade em
relação à tradicional, e que, portanto, deve ser considerada com a segunda, é aquela que se baseia no princípio da
conservação da energia (HERTZ, 1956, p. 14).
9
Na versão de Poincaré (1984, p. 104), o princípio da conservação da energia mecânica pode ser definido da seguinte
forma: f (T + U) = constante, onde T é a energia cinética e U é a energia potencial de um sistema isolado de pontos
materiais.
43
matemático convenientemente definido e deduzido a partir das leis fundamentais (HERTZ, 1956, p.
16). Dessa forma evita-se, nesta segunda imagem, a inclusão das obscuridades relativas à idéia de
força, assim como concebi
da na representação tradicional da mecânica.
A relação entre espaço, massa, energia e tempo, é estabelecida pelo princípio de Hamilton
10
ou
‘qualquer um dos princípios integrais da mecânica ordinária que envolva a idéia de energia’
(HERTZ, 1956, p. 16).
Mas, de acordo com Hertz, isto não seria motivo suficiente para a preferência da segunda
imagem em detrimento da primeira. A decisão de adotar uma ou outra somente pode ser tomada,
segundo o autor, após submeter também a segunda imagem aos critérios metodológicos por ele
propostos.
Para Hertz, a segunda imagem mostra-se claramente superior à primeira quanto ao critério
de adequação: ela estabelece importantes limitações para os movimentos representados, ao mesmo
tempo em que prevê ‘toda uma série de relações, especialmente de relações tuas entre todos os
tipos de forças possíveis’
11
(1956, p.17), todas elas presentes na natureza, ao contrário do que é
oferecido pela primeira imagem.
De acordo com a concepção de Hertz, esta segunda imagem é mais simples do que a
primeira, o que a tornaria menos vulnerável quanto à adequação e mais vantajosa para utilização:
Se nos perguntarmos sobre os verdadeiros motivos que levam os físicos da
atualidade a se expressar em termos de energia, nossa resposta será: por que, d
essa
forma, evita-se falar sobre coisas das quais se sabe muito pouco, as quais o
afetam, de modo algum, os enunciados essenciais em questão (HERTZ, 1956, p.
17).
Coisas como átomos e moléculas,
12
que, embora devam ser investigadas’, em nada
contribuem
para o estabelecimento dos formalismos teóricos (HERTZ, 1956, p. 18).
Esta segunda imagem da mecânica baseia-se, em todos os seus aspectos, na
‘experiência
tangível’
:
Aqui repousa a vantagem da concepção de energia e de nossa segunda imagem da
mecânica:
nas hipóteses dos problemas entram apenas características que são
diretamente acessíveis à experiência, aos parâmetros ou às coordenadas arbitrárias
dos corpos considerados; a análise prossegue com o auxílio dessas características
numa forma finita e completa; e o resultado final pode novamente ser diretamente
traduzido em experiências tangíveis (HERTZ, 1956, p. 18).
10
“De todas as trajetórias possíveis para o deslocamento de um sistema dinâmico entre dois pontos, num intervalo de
tempo específico (consistente com quaisquer vínculos), a trajetória seguida é aquela que minimiza a integral no tempo
da diferença entre as energias cinética e potencial” (Marion e Thorton, 1995, p. 234). De outro modo: f
(T – U)dt = 0,
entre t
1
e t
2.
11
Estas limitações são determinadas pela utilização do princípio de Hamilton. De acordo com Poincaré, esta segunda
imagem nos explica
‘mais coisas do que os princípios funda
mentais da teoria clássica e exclui certos movimentos que a
natureza não realiza e que seriam compatíveis com a teoria clássica’
(1984, p. 103).
12
Como ocorria, por exemplo, de forma bem sucedida no estudo do comportamento dos gases.
44
Hertz, no entanto, levanta dúvidas quanto à correção desta imagem. As críticas decorrentes
da aplicação deste critério de análise à segunda imagem devem-se, segundo o autor, à incapacidade
do princípio de Hamilton – estabelecido, como foi dito, como um de seus fundamentos em
descrever toda a diversidade de conexões
13
rígidas que podem surgir entre os corpos da natureza.
Hertz reconhece a maior generalidade de aplicação do princípio de Hamilton, em relação às
equações de Newton, no estudo dos movimentos observados na natureza.
14
Porém, as limitações
impostas pelo referido princípio às conexões fixas em sistemas materiais ele admite conexõe
s
que sejam expressas por equações finitas entre as coordenadas e não permite a ocorrência de
conexões que somente podem ser representadas por equações diferenciais (HERTZ, 1956, p. 19)
conduzem a resultados fisicamente falsos, embora matematicamente pos
síveis (
Ibidem
).
Além do mais, o princípio de Hamilton é um princípio de ação mínima, e, como tal,
pressupõe que um corpo sobre o qual não atuam forças, movendo-se sobre uma superfície,
percorrerá, entre duas posições dadas, uma trajetória tal que o tempo
de movimento entre estas duas
posições seja o nimo possível. Sob o ponto de vista de Hertz, tal pressuposto a impressão de
que um corpo movendo
-
se de acordo com o princípio de Hamilton...
... teria, decididamente, a aparência de uma coisa viva, dirigindo sua trajetória
conscientemente para um dado objetivo, enquanto uma esfera seguindo a lei da
natureza daria a impressão de uma massa inanimada girando firmemente em
direção a este mesmo objetivo
15
(1956, p. 20).
Entretanto, em nome da maior eficiência desta segunda imagem da mecânica (em relação à
primeira), Hertz dispõe-se a admitir que os vínculos excluídos pelo princípio de Hamilton não
ocorram
‘realmente’
, mas apenas aproximadamente, na natureza,
16
e que quando aplicamos uma lei
fundamental de um sistema mecânico “a relações aproximadamente corretas, esta nos conduz a
resultados aproximadamente corretos, não a resultados inteiramente falsos” (1956, p. 21). Dessa
forma, a dúvida quanto à correção do sistema é transferida para a sua adequação.
13
“Há uma conexão entre uma série de pontos materiais quando, a partir do conhecimento de alguns dos componentes
dos deslocamentos daqueles pontos, somos capazes de enunciar algo sobre os componentes remanescentes” (HERTZ,
1956, p. 78).
14
A obtenção de expressões matemáticas para as forças de vínculo presentes em determinados casos de movimento por
meio de “procedimentos newtonianos”, pode ser extremamente difícil ou, até mesmo, impossível (MARION e
THORTON, 1995, p. 232).
15
Esta é também a opinião de Poincaré, para que o princípio da ação mínima deveria ser enunciado de forma menos
‘chocante’
em que, ‘como diriam os filósofos, as causas finais não parecessem tomar os lugar das causas eficientes’
(1984, p. 106).
16
Um caso de rolamento sem deslizamento, por exemplo, seria, na verdade, um caso de rolamento com um pouco de
deslizamento (HERTZ, 1956, p. 20).
45
Mas, na concepção de Hertz, a imagem mais adequada é aquela que se mostra mais simples,
e, nesta segunda imagem, a simplicidade é extremamente comprometida pela complexidade
excessiva do princípio de Hamilton:
Ele não apenas faz com que o movimento presente dependa de conseqüências que
somente se exibirão no futuro por isso atribuindo intenções à natureza inanimada
mas, o que é muito pior, atribuindo à natureza intenções que são desprovidas de
sentido, uma vez que a integral, cujo mínimo é requerido pelo princípio de
Hamilton, não tem um significado físico simples; e para a natureza, fazer de uma
expressão matemática um mínimo ou induzir sua variação para zero é um objetivo
ininteligível (1956, p. 23).
Hertz estava ciente de que a maioria dos adeptos da abordagem dos problemas físicos
propiciada pela representação energetista da mecânica replicariam, alegando que a sua dúvida, e
não os artifícios matemáticos envolvidos na aplicação do princípio de Hamilton, é que seria
desprovida de sentido. A preocupação de Hertz, diriam, tem caráter metafísico e, como tal, não tem
significado para a física.
Mas, para Hertz, “não se remove um dúvida que impressiona nossas mentes ao chamá-la de
metafísica”
(1956, p. 23). Para ele, o aspecto mais problemático desta segunda imagem da
mecânica refere-se à sua permissibilidade lógica e envolve, inicialmente, a definição do conceito de
energia. Segundo o cientista,
Atualmente, muitos físicos renomados tendem frequentemente a atribuir à energia
as propriedades de uma substância, ao assumir que cada porção mínima de energia
está associada, a qualquer instante, com um dado lugar no espaço, e que, durante
todas as mudanças de posição e todas as transformações de energia em novas
formas, ela mantém sua identidade (1956, p. 21).
17
Mas,
a separação da energia mecânica em dois tipos dissimilares cinética e potencial
compromete a coerência da analogia entre este conceito e o de substância. Além do mais, costuma-
se atribuir valor negativo à energia potencial, o que, de forma alguma, poderia ser associado às
propriedades de uma substância (HERTZ, 1956, p. 22).
Por fim, Hertz afirma que, levando-se ao limite a definição de quantidade de energia
potencial contida em um dado corpo, conclui-se que a quantidade das muitas formas de energia
p
otencial contida em quantidades finitas de matéria é infinitamente grande”
18
(
Ibidem
).
17
A idéia de energia como uma substância indestrutível não era unânime entre os cientistas. Georg Helm, por exemplo,
defendia que o conceito de energia não expressava nada mais do que relações entre os fenômenos. Apesar da defesa de
Helm do caráter puramente relacional do conceito de energia ter se tornado pública somente após a morte de Hertz, a
polêmica sobre este tema vinha ocorrendo a mais tempo. Sobre o assunto, ver (CASSIRER, vol. IV. 1986, pp. 120-
125).
18
“... a quantidade de energia potencial contida em um dado corpo depende da presença de massas distantes que, talvez,
nunca tenham exercido nenhuma influência sobre o sistema. Se o universo e, por conseguinte, o número de tais massas
distantes, for infinito, então, a quantidade das muitas formas de energia potencial contida mesmo em quantidades finitas
de matéria, será infinitamente grande” (HERTZ, 1956, p. 22).
46
Hertz considera que esta segunda imagem da mecânica carece de desenvolvimentos que a
tornem logicamente satisfatória.
19
Levando em conta o estado formal em que ela se encontra, o
cientista opta por abandoná
-
la em favor da terceira imagem da mecânica.
II. 4. A MECÂNICA DE HERTZ
A terceira imagem da mecânica é aquela que Ernst Mach chama de ‘a mecânica de Hertz’
(1960, p. 317), cuja forma e conteúdo são inteiramente desenvolvidos na obra The Principles of
Mechanics
. Segundo o próprio autor, esta terceira imagem difere das duas primeiras neste
importante aspecto: ‘ela parte de apenas três concepções fundamentais independentes, ou seja,
tempo, espaço e massa’ (HERTZ, 1956, p. 24) e seu objetivo é ‘representar as relações naturais
entre estas três concepções, e apenas estas três’
(HERTZ, 1956, p. 25).
Dessa forma, acredita Hertz, os problemas até aqui encontrados quando da utilização das
idéias de força e energia como concepções fundamentais nas duas primeiras imagens, podem ser
evitados. Porém, para evitar que esta terceira imagem, apoiada apenas nas referidas concepções
fundamentais, torne
-
se restritiva, Hertz lança mão de uma hipótese:
Se tentarmos entender os movimentos dos corpos à nossa volta, e remetê-los a
regras simples e claras, prestando atenção somente no que pode ser diretamente
observado, nossa tentativa, geralmente, falhará. Nós logo percebemos que a
totalidade das coisas visíveis e tangíveis não forma um universo de acordo com a
lei, no qual os mesmos resultados sempre são obtidos a partir das mesmas
condições. Nós nos convencemos de que a diversidade do universo real deve ser
maior do que a diversidade do universo que nos é diretamente revelado pelos
nossos sentidos. Se desejamos obter uma imagem do universo que seja bem
modelada, completa e conforme a lei, temos que pressupor, por trás das coisas que
vemos, outras coisas invisíveis: devemos imaginar aliados ocultos além dos limites
de nossos sentidos. Tais influências subjacentes foram identificadas nas duas
primeiras representações; nós as imaginamos como tipos especiais e peculiares de
entidades e, então, criamos as idéias de força e energia. Mas um outro caminho se
mostra aberto. Podemos admitir que exista algo oculto atuando e, mesmo assim,
negar que este algo pertença a uma categoria especial. Estamos livres para assumir
que este algo escondido não é nada mais do que movimento e massa novamente
20
movimento e massa que diferem dos casos visíveis apenas por não poderem ser
percebidos pelos nossos meios usuais de percepção. Este modo de concepção é
simplesmente nossa hipótese (1956, p. 25).
Na passagem acima, Hertz parece contradizer não suas próprias críticas quanto à
obscuridade da idéia de força contida na primeira imagem da mecânica, ao introduzir na sua
19
Os comentários de Hertz sobre a representação energetista da mecânica são bastante gerais. Nesses comentários, o
autor não cita especificamente problemas dos quais tratará em The Principles of Mechanics, como o da inadequação da
definição da energia mecânica total nos casos em que as ações mútuas entre partículas eletrizadas dependem não só das
distâncias entre elas, mas também da velocidade e aceleração dessas partículas (hipótese de Weber).
20
Segundo Hertz, idéias similares a esta vinham sendo utilizadas no estudo de fenômenos relacionados com calor e
na explicação das forças envolvidas nas interações eletromagnéticas. Na Alemanha, os termos massa oculta (
concealed
mass
)
e ‘movimento oculto’
(
concealed motion
) foram disseminados por von Helmholtz (HERTZ, 1956, p. 26).
47
imagem, mesmo que na forma de hipótese, entidades e movimentos ocultos, como também os
elogios feitos por ele em relação à simplicidade e aos aspectos vantajosos da segunda imagem.
Mas, como será visto mais adiante, a referida hipótese cumpre um papel crucial no
estabelecimento da forma, do conteúdo e, talvez o mais importante, do papel da mecânica de Hertz
em relação ao conhecimento físico. A opção por representar a mecânica exclusivamente por meio
das
relações entre os três elementos fundamentais apresentados inicialmente – tempo, massa e
espaço
com o auxílio de uma hipótese que pressupõe a repetição dessas mesmas relações de forma
supra
-sensível, tem como objetivo a obtenção de uma explicação dinâmica das interações
envolvidas nos fenômenos naturais, evitando caracterizá
-
las como interações a distância.
21
As idéias fundamentais da mecânica de Hertz são, primeiramente, relacionadas em pares. A
cinemática trata das relações entre
espaço
e
tempo
.
22
Relações existentes exclusivamente entre
massa
e
espaço
podem ser observadas na natureza e seu estudo exibe propriedades importantes para
o desenvolvimento da imagem de Hertz:
Da origem dos tempos em diante e através dos tempos e, por isso,
independentemente do tempo, certas posições e certas mudanças de posições são
prescritas e associadas como possíveis para estas massas, e todas as outras são
consideradas impossíveis. Respeitando estas conexões, podemos também afirmar
de maneira geral que elas se aplicam apenas às posições relativas das massas entre
si; além do mais, podemos afirmar que elas satisfazem certas condições de
continuidade, as quais encontram sua expressão matemática no fato de que as
próprias conexões podem sempre ser representadas por equações lin
eares
homogêneas entre a derivada primeira das magnitudes pelas quais as posições das
massas são representadas (HERTZ, 1956, p. 27).
As relações entre as três idéias fundamentais tomadas simultaneamente, são sintetizadas pela
lei fundamental desta tercei
ra imagem:
§309
Todo sistema livre persiste no seu estado de repouso ou de movimento
uniforme na trajetória mais retilínea.
Systema omne liberum perseverare in statu suo quiescendi vel movendi uniformiter
in directissimam
. (HERTZ, 1956, p. 144).
De acordo com Hertz, no enunciado da lei fundamental de sua imagem da mecânica estão
condensados a lei da inércia e o princípio da mínima restrição de Gauss (1956, p. 28).
A partir do que foi até aqui estabelecido, pode-se derivar todo o resto da mecânica por
meio de puro raciocínio dedutivo’ (HERTZ, 1956, p. 28). Assim, alguns problemas, como os
apontados na concepção da idéia de força contida na primeira imagem da mecânica, são, segundo
Hertz, evitados:
21
Maxwell já havia obtido sucesso na abord
agem dinâmica dos fenômenos eletromagnéticos (MARTINS, 2005, pp. 13
-
15).
22
Para uma abordagem mais detalhada, ver HERTZ, 1956, pp. 121
-
135.
48
(1) Quando necessária ao desenvolvimento desta terceira imagem da mecânica, a idéia de força
aparece como um auxílio matemático cujas propriedades são pré-
determinadas;
(2) caracterizada como resultado da interdependência dos movimentos de dois corpos pertencentes a
um mesmo sistema,
23
conforme determinado pela lei fundamental, a força deve ser considerada
causa e, ao mesmo tempo, conseqüência do movimento, apresentando-se, dessa forma, como uma
‘conseqüência necessária do pensamento’
(HERTZ, 1956, p. 28).
De maneira geral, as principais vantagens ou
‘méritos’
do sistema proposto por Hertz, na
forma matemática em que é apresentado, seriam, de acordo com o próprio autor, os seguintes: em
primeiro lugar, a forma matemática utilizada para representar o seu sistema
24
confere-
lhe
abrangência, simplicidade, brevidade e maior conformidade com as observações experimentais; em
segundo lugar, a lei fundamental, ao condensar a primeira lei de Newton e o princípio de Gauss,
“simplesmente expressa um fato conhecido sem qualquer pretensão de estabelecê-
lo”
25
(1956, p.
32); Hertz c
onsidera como a terceira vantagem do modo de apresentação de seu sistema mecânico, a
descaracterização do princípio de Hamilton como uma ramificação da mecânica, para considerá-
lo
como mais um método geométrico aplicado a ela (1956, pp. 29
-
33).
O esmero de Hertz na preparação dos aspectos lógicos formais de sua imagem da mecânica
é coerente com os critérios metodológicos por ele propostos. Na concepção do autor,
“apenas
imagens logicamente claras são testáveis quanto à correção e apenas imagens corretas sã
o
passíveis de comparação quanto à adequação. Por pressão das circunstâncias este processo é
muitas vezes revertido”
(1956, p. 10).
A pureza lógica da representação da mecânica de Hertz é garantida pela maneira segundo a
qual ela é desenvolvida. O autor a
dota na elaboração de
The Principles of Mechanics
a
‘velha forma
sintética’
(1956, p. 35), o que significa
‘especificar previamente e claramente, mesmo que de forma
monótona, o valor lógico atribuído a cada enunciado importante’ (
Ibidem
). Mas, de tal esfor
ço
resulta uma representação conclusiva, pura e livre de contradições (1956, p. 33).
O autor divide sua obra em dois livros. No livro I, são descritas, minuciosamente, uma série
de idéias fundamentais e suas relações, obtidas, não da experiência, mas das ‘leis da nossa intuição
23
“O movimento do primeiro corpo determina uma força e esta força, então, determina o movimento do segundo corpo”
(H
ERTZ, 1956, p. 28).
24
Hertz inicia o desenvolvimento de sua representação da mecânica a partir do estudo de sistemas materiais ao invés de
partir do estudo, teoricamente mais simples, de pontos materiais, por considerar estes últimos uma abstração (1956,
p
.31).
25
De acordo com Hertz, o modo de expressão matemática escolhido por ele permitiu-lhe a enunciação da lei
fundamental, sintetizando nela a primeira lei de Newton e o princípio de Gauss, estabelecendo, porém, uma limitação
que não é estabelecida quando se considera estes dois últimos tomados separadamente: os vínculos entre sistemas
materiais são permanentes e indestrutíveis. Além do mais, o princípio de Gauss sugere que a natureza atuaria como um
“calculista perspicaz”, mantendo o menor valor possível da quantidade que denominamos
restrição
(
‘constraint’
)
(1956, pp. 31
-
32).
49
e pensamento, combinadas com uma série de enunciados arbitrários’ (1956, p. 135). Neste
primeiro livro, Hertz apresenta uma primeira definição de tempo, espaço e massa, a descrição de
conexões, trajetórias mínimas, trajetórias geodésicas, trajetórias “mais retilíneas” (
‘straightest
paths’
) e uma série de enunciados aos quais deve ser remetido o conteúdo do livro II.
O livro II trata da mecânica propriamente dita. Nele o autor enuncia a lei fundamental de sua
mecânica, estabelecendo sua validade e limites, além de, obviamente, aplicá-la ao estudo dos
movimentos. Alguns enunciados, como o do princípio da conservação da energia e do princípio de
Hamilton, por exemplo, são revisados à luz da lei fundamental.
26
No penúltimo e mais longo
capítulo do livro II, Hertz apresenta um estudo de sistemas cíclicos que incluem sua hipótese de
massas ocultas. Segundo Hertz, “neste segundo livro nosso objetivo não consiste em determinar as
relações necessárias entre as criações de nossas próprias mentes, mas, especialmente, considerar
as conexões experimentais entre os objetos de nossa observação externa”
(1956, pp. 270
- 271).
De acordo com Hertz, sua intenção não era apresentar uma imagem que pudesse ser
considerada única e nem a melhor imagem. Sua tentativa objetivava fornecer um exemplo de
representação inteligível que evitasse “o uso de reservas e ambigüidades convenientes para as
quais somos atraídos pela riqueza de combinações da linguagem ordinária” (1956, p. 35), o que,
de acordo com sua própr
ia avaliação, teria sido cumprido com sucesso.
Hertz, então, submete a sua própria imagem da mecânica à crítica segundo os critérios por
ele estabelecidos: permissibilidade lógica, correção e adequação.
Quanto à correção, Hertz não tem dúvidas de que o seu sistema está em conformidade com
um grande número de movimentos naturais, e não hesita em afirmar que ele incluiria todos os
movimentos observados experimentalmente. Por outro lado, sua proposta extrapola o que é
assegurado pela experiência ao supor que as conexões entre sistemas materiais são limitadas por
condições de continuidade, podendo, portanto, ser representadas exclusivamente por equações
diferenciais lineares. Hertz apóia-se na máxima Natura non facit saltus, a qual, se não pode ser
respaldada
pela experiência, deve ser assumida como uma hipótese temporariamente aceita (1956,
pp. 36
-
37).
Também além da experiência sensível está a explicação dinâmica da força. Por isso, Hertz
mostra
-se cauteloso em relação ao assunto, mesmo ressaltando que teorias como a dos vórtices
26
§358. “A integral horária da energia na transferência de um sistema holonômico, de uma dada posição inicial para
uma posição final suficientemente próxima, é menor para o movimento natural do que para qualquer outro movimento
possível pelo qual o sistema possa passar da posição inicial dada para a posição final em um mesmo tempo” (HERTZ,
1956, p. 158).
§359. “Se a limitação a posições suficientemente próximas é removida, então, a integral horária da energia não mais
será necessariamente um mínimo, mas sua variação, todavia, desaparece na transferência para qualquer outro dos
movimentos considerados” (
Ibidem
).
§360. “A proposição precedente corresponde ao princípio de Hamilton” (
Ibide
m
).
50
atômicos no éter de Lord Kelvin tenham se mostrado em conformidade com os fenômenos
naturais
27
(1956, pp. 37
-
38).
No intuito de estabelecer a abrangência de sua mecânica, Hertz esclarece que o limite de
aplicação de seu sistema e de
sua lei fundamental restringe
-
se à natureza inanimada, não sendo estes
capazes de dar conta nem mesmo do mais simples processo interno da vida:
“Por enquanto, ela nos permite abordar todo o domínio da mecânica, ela nos
mostra quais são os limites deste domínio. Ao nos fornecer apenas fatos
conhecidos, sem atribuir a eles qualquer aparência de necessidade, ela nos torna
capazes de reconhecer que tudo poderia ser completamente diferente”
28
(1956, p.
38).
Hertz considera que, das duas primeiras imagens analisadas, a segunda apresenta
superioridade quanto ao critério de adequação. Na opinião do autor, esta segunda imagem e a sua
própria se equiparam no que concerne à distinção e à simplicidade.
29
Porém, a terceira imagem
inclui os casos de certas conexões rígidas que não estão presentes na segunda. Na terceira imagem,
assim como na segunda, o principal aspecto relativo à simplicidade reside na possibilidade de
‘confinar nossas considerações a características do sistema material que o acessíveis à
observação’
(HERTZ, 1956, p. 39). Mas a imagem de Hertz é formalmente mais simples e suas
concepções estão mais aproximadamente adaptadas à natureza (
Ibidem
).
Pode
-se alegar, no entanto, que a simplicidade se vai quando as massas ocultas entram em
cena. Contra este tipo de argumento, Hertz rebate: “Mas mesmo nestes casos, a razão da
complicação é perfeitamente óbvia. A perda de simplicidade não se deve à natureza, mas ao nosso
conhecimento imperfeito da natureza” (1956, p. 39).
Na comparação entre sua própria imagem e a primeira, Hertz avalia que as duas encontram-
se em pé de igualdade no que diz respeito à permissibilidade lógica e à adequação. Porém, o critério
de correção define a terceira como a melhor imagem, “na medida em que um conhecimento mais
refinado nos most
ra que a suposição de forças a distância invariáveis fornece apenas uma primeira
aproximação da verdade; um caso que se manifestara na esfera das forças elétricas e
magnéticas”
(1956, p. 41).
27
Moreira (1995, p. 35) interpreta da seguinte forma a proposta de Hertz:
[Hertz]
supõe a existência de vínculos
(conexões geométricas) que ligam os objetos e seus elementos hipotéticos, as massas ocultas. Sua dinâmica se reduz,
num certo sentido, à cinemática. A lei básica será construída na forma de um sistema variacional local”.
28
Abrantes (1992) e Moreira (1995) defendem que esta limitação imposta por Hertz à sua representação tem como
objetivo livrá-la de pressupostos metafísicos de caráter teológico ou teleológico, coerentemente, portanto, com as
críticas dirigidas pelo cientista ao princípio de Hamilton. Veremos mais adiante, que na perspectiva de Janik e Toulmin
(1973), o estabelecimento de uma representação cujos limites estão contidos nela própria é uma conseqüência da
filiação neokantiana de Hertz.
29
De acordo com Hertz, isto se torna claro quando todo o conteúdo de
The Principles of Mechanics
é examinado (1956,
p. 39).
51
E, segundo o autor, os fenômenos eletromagnéticos não apenas
seriam capazes de consolidar
a sua imagem como a mais apropriada, mas também de definir novos pressupostos sobre os quais se
apoiariam a mecânica:
O balanço das evidências será inteiramente favorável à terceira imagem quando
uma segunda aproximação da verdade puder ser obtida pela associação das
supostas ações a distância a movimentos em um meio que tudo permeia (
“all
-
pervading”
) cujas partes estão sujeitas a conexões rígidas; um caso que também
parece próximo de ser concretizado na mesma esfera [do eletromagnetismo]. Este é
o campo no qual será travada a batalha decisiva entre os pressupostos fundamentais
da mecânica (1956, p. 41).
Mas, Hertz considera que a sua representação da mecânica e a mecânica tradicional foram
desenvolvidas sob diferentes circunstâncias: enquanto uma representa um ‘esforço para abarcar
objetivamente o todo do conhecimento físico, sem considerar a posição acidental do homem na
natureza, apresentando este conhecimento de uma maneira simples’, a outra se mostra mais
adequada quando se leva em conta suas aplicações práticas ou as necessidades da humanidade. Sob
a perspectiva de Hertz:
Nossa representação da mecânica tem para com a representação usual a mesma
relação que a gramática sistemática da linguagem tem para com uma gramática
ut
ilizada com o propósito de capacitar estudantes a aprender, o mais rapidamente
possível, aquilo de que eles necessitarão na vida diária (1956, p.40).
Ao se deparar com dificuldades na compreensão de certos trechos do livro II de
The
Principles of Mechani
cs
, seu editor, Philipp Lenard, recorreu ao velho mentor de Hertz, Hermann
von Helmholtz, obtendo a seguinte resposta:
Eu só posso dizer que estou apenas começando a compreender qual é o objetivo [de
Hertz], e isso somente desde que eu recebi os últimos originais poucos dias
atrás.
Até então, eu não tinha a menor noção do que ele estava querendo dizer
30
(
apud
MULLIGAN, 1999, p. 357).
No prefácio à obra, Helmholtz lamenta a ausência de exemplos que ilustrem a aplicação e,
portanto, a necessidade, da hipótese de massas e movimentos ocultos. Moreira (1995, p. 36)
concorda com Helmholtz e ainda aponta ‘dificuldades operacionais na manipulação matemática’
dos princípios da mecânica de Hertz. Ademais, continua Moreira, a nova forma proposta por Hertz
para representar a mecânica, além de não conseguir resolver as dificuldades por ele indicadas nos
outros sistemas, introduz novas dificuldades.
Enfim, é no mínimo duvidoso que Hertz tenha alcançado em sua imagem da mecânica as tão
almejadas clareza e simplicidade,
o que, de certa forma, tenha minimizado a sua repercussão.
31
30
A frase está destacada em itálico no texto original.
31
Para Moreira, além da proposta de Hertz apresentar-se como uma alternativa complicada para a abordagem da
mecânica, sua repercussão foi prejudicada por ela se basear na mecânica clássica, num momento em que os
questionamentos teóricos e experimentais demandavam um sistema
mais radical (1995, pp. 36
-
37).
52
De qualquer forma, a mecânica de Hertz não passou despercebida. Mach, por exemplo,
dedica uma secção do capítulo III de seu livro The Development of Mechanics (em edições revistas,
publicadas após 1894) – no qual são comentados alguns aspectos das realizações de Galileu,
Huygens e Newton
exclusivamente para a discussão da mecânica de Hertz.
Mach não concorda com os ataques dirigidos por Hertz à falta de clareza da idéia de força
no sistema
‘ga
lileano
-
newtoniano’
da mecânica. Segundo Mach, o conceito de força que Hertz
tinha em mente ao efetuar tal crítica se deve, possivelmente, a interpretações logicamente
deficientes herdadas dos tempos em que o cientista ainda era um estudante (1960, p. 319). Sobre a
afirmação de Hertz de que, em muitos casos, a força não se apresenta aos sentidos, Mach replica:
“Em todo caso, ‘forças’ estão decididamente em vantagem nesta contenda, se comparadas a
‘massas ocultas’ e movimentos ocultos’
(
Ibidem
).
Mas, aparentemente, Mach considera indiferente a eliminação da força na descrição dos
movimentos
o que ele identifica como o objetivo principal de The Principles of Mechanics em
favor das conexões rígidas propostas por Hertz:
Faz parte da idéia geral do sistema da mecânica galileano-newtoniano conceber
todas as conexões substituídas por forças que determinam os movimentos exigidos
pelas conexões; reciprocamente, tudo que aparece como força pode ser concebido
como conseqüência de uma conexão. Se a primeira idéia aparece frequentemente
nos antigos sistemas como sendo historicamente mais simples e imediata, no caso
de Hertz, a segunda é a mais proeminente. Se considerarmos que em ambos os
casos, sejam pressupostas forças ou conexões, a dependência real dos movimentos
das massas em relação umas às outras é dada, para toda configuração instantânea
do sistema, por equações diferenciais lineares entre as coordenadas das massas,
então, a existência dessas equações deve ser considerada o fato fundamental o
fato estabeleci
do pela experiência (MACH, 190, p. 321).
Como o sistema proposto por Hertz se desenvolve plenamente a partir de tais equações,
qualquer preocupação adicional com as idéias de força e conexões, torna-se, segundo Mach,
absolutamente desnecessária (1960, p.
321).
Além do mais, Mach considera que a utilização da hipótese de massas e movimentos ocultos
implicaria lançar mão de de fantásticas e até, frequentemente, questionáveis ficções, às quais as
acelerações ‘dadas’ seriam, sem dúvida, preferíveis”
32
(1960,
pp. 323
-
324).
Quanto às críticas de Hertz aos princípios de mínimo, Mach afirma que, ao introduzir os
conceitos de tempo, velocidade, etc., todo sistema da mecânica contém referências ao futuro. Além
do mais, as condições de mínimo são determinadas matematicamente de acordo com observações
experimentais, não sendo capazes de revelar o significado físico dos fenômenos em questão.
32
“Por exemplo, se uma massa m está se movendo uniformemente em um círculo de raio r, com velocidade v, à qual
estamos acostumados a atribuir uma aceleração centrípeta
mv²/r
procedente do centro do círculo, nós deveríamos, a
o
invés disto, ter que conceber a massa rigidamente conectada a uma distância
2r
com uma outra de mesmo tamanho
movendo
-
se com velocidade contrária” (MACH, 1960, p. 324).
53
Mach, no entanto, demonstra admiração pela eliminação quase total de elementos supérfluos
do conteúdo da mecânica, resultante da forma pela qual Hertz o apresenta, chegando mesmo a
afirmar que a mecânica de Hertz seria o sistema que mais se aproximaria do ideal cartesiano (1960,
p. 323). Segundo Mach, “como um programa ideal, a mecânica de Hertz é mais simples e bela,
mas, para propósitos práticos, nosso presente sistema da mecânica é preferível, como o próprio
Hertz, com sua honestidade característica, admite”
(1960, p. 324).
Para alguns autores, como Moreira (1995, p. 37), a mecânica de Hertz é complicada e
incapaz de resolver satisfatoriamente os problemas apresentados pelas demais representações; para
outros, como Mach, o sistema de Hertz é formalmente impecável, mas inadequado para a
abordagem de problemas práticos. Sejam quais forem os motivos, o certo é que referências à
me
cânica de Hertz raramente aparecem em livros- texto e, quando aparecem, resumem-se ao seu
princípio da menor curvatura
33
(MOREIRA, 1995, p. 40).
Mas, se o conteúdo
dos
Princípios da Mecânica apresentados numa nova forma não atraiu
adeptos, o mesmo não pod
e ser dito do seu
leitmotiv
: a unificação do estudo dos fenômenos naturais
através da mecânica. D’Agostino caracteriza The Principles of Mechanics como um
‘programa
inacabado’
que visava unificar a mecânica e o eletromagnetismo por meio dos elementos ocult
os
hipotéticos de Hertz (2004, p. 379). Na perspectiva de Planck,
“a tentativa mais elegante, e talvez a
final, de expressar todos os fenômenos da natureza em termos de movimento está contida na
mecânica de H. Hertz”
(
apud
MOREIRA, 1995, p. 37).
Mesmo aqueles que não partilhavam da crença de que a natureza deveria se
‘dobrar’
à
mecânica ou à dinâmica, em algum momento, citaram Hertz como referência:
A maioria dos teóricos tem uma constante predileção pelas explicações tomadas à
Mecânica ou à Dinâmica. Alguns ficariam bem satisfeitos se pudessem explicar
tudo pelos movimentos de moléculas que se atraem mutuamente segundo certas
leis. Outros são mais exigentes; gostariam de suprimir as atrações à distância. As
moléculas seguiriam trajetórias retilíneas das quais poderiam ser desviadas por
choques. Outros ainda, como Hertz, suprimem também as forças, mas supõe suas
moléculas submetidas a conexões geométricas análogas, por exemplo, àquelas de
nossos sistemas articulados. Desse modo, pretendem reduzir a Dinâmica a uma
espécie de cinemática. Em suma, todos querem dobrar a natureza de uma certa
forma, fora da qual suas mentes não se sentiriam à vontade. (POINCARÉ, 1984, p.
131).
Não se quer defender aqui que o ideal de unificação da física através da mecânica
estivesse
personificado exclusivamente em Hertz. Aliás, o trecho acima afirma exatamente o contrário. No
entanto, segundo Moreira (1995, p. 39), o programa de unificação da física ‘raramente encontrou
um defensor mais insistente’
, do que houvera encontrado
em Hertz.
33
Ver, por exemplo, MARION e THORTON, 1995, p. 234.
54
Se assim é, não se pode descartar a hipótese de que o ponto de vista do próprio Poincaré
um estudioso da mecânica de Hertz
34
sobre o objetivo da ciência, tenha sido reforçado pela
postura unificadora de Hertz, mesmo discordando do aspecto fundamental para o cientista alemão.
Segundo o matemático francês, o objetivo da ciência “não é o mecanismo, o verdadeiro, o único
fim, é a unidade”
(1984, p. 136).
Moreira especula com base nas referências feitas por Einstein em suas
Notas
Autobiográfic
as
ao trabalho de Hertz e nas semelhanças entre os critérios adotados por ambos na
elaboração das teorias científicas sobre uma possível influência da perspectiva de Hertz em
relação à mecânica na obra de Einstein:
As críticas de Mach e Hertz, e possivelmente também as de Poincaré, terão
influenciado Einstein na sua crítica à mecânica clássica e em sua busca por uma
teoria mais abrangente que englobasse o campo gravitacional. Certamente a
geometrização daí advinda tem paralelos importantes com as concepções de Hertz
de eliminação da força e de redução da dinâmica a uma cinemática (o que, em
alguma forma, ocorrerá com o campo gravitacional na teoria da relatividade geral)
(MOREIRA, 1995, p. 39).
Referindo
-se ainda à possível repercussão da mecânica de Hertz na produção científica de
Einstein, mas incluindo, também, a influência hertziana nos trabalhos de outros cientistas
importantes, Moreira continua:
As massas ocultas de Hertz, que ressuscitam, em certo sentido, na tentativa de
introduzir variáveis ocultas para uma descrição realista local da mecânica quântica,
encetada por de Broglie, D. Bohm, Vigier e outros, e que contava com a simpatia
de Schrödinger, não oferecia atrativos para Einstein. Mas o programa global da
descrição unificada de toda a física, perspectiva significativa em Einstein, embora
não seja, de nenhum modo, uma postura unicamente de Hertz, raramente encontrou
um defensor mais insistente (
Ibidem
).
Se a repercussão da representação da mecânica exposta em The Principles of Mechanics é
páli
da e somente pode ser rastreada de forma indireta, senão especulativa, o mesmo não ocorre com
a influência da filosofia da ciência de Heinrich Hertz, exibida na introdução a esta obra.
34
Ver, por exemplo, POINCARÉ, H. Les idées de Hertz sur la mécanique. Revue Génerale dês Sciences, t. 8, p. 734-
743, 1897.
55
CAPÍTULO III
A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE HEINRICH HERTZ
III. 1.
INTRODUÇÃO
Em geral, estabelece-se a análise da teoria eletromagnética de Maxwell exposta na
introdução à
Electric
Waves
,
como
marco inicial das preocupações de Hertz com aspectos de
caráter filosófico-metodológico das teorias científicas (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128;
ABRANTES, 1992, p. 353; D’AGOSTINO, 2004, p. 377). Na introdução a esta obra, Hertz
investiga os diferentes ‘modos de representação’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 377), “imagens” ou
“modelos” dos fenômenos eletromagnéticos (ABRANTES, 1992, p. 354), problematiza a
possibilidade de proposição de diferentes representações para um mesmo grupo de fenômenos
‘e
dada a necessidade de se optar por uma das representações, estabelece critérios de seleção e tenta
justificá
-
los’
(
Ibidem
).
Como foi dito no Capítulo I deste trabalho, a reconstrução axiomática da teoria
eletromagnética de Maxwell elaborada por Hertz em
Eletric
Waves
visava, dentre outras coisas, a
eliminação das inconsistências identificadas na referida teoria. Segundo Hertz, tais inconsistência
s
surgiam como conseqüência dos diferentes “modos de representação” utilizados por Maxwell em
sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism.
1
Além do mais, a teoria de Maxwell, que
pressupunha ações eletromagnéticas mediatizadas, podia ser obtida da teoria de Helmholtz,
2
a qual
considerava que as ações eletrodinâmicas se davam a distância. Sobre estes diferentes modos de
representação de um mesmo domínio da física, Hertz naquela que é, provavelmente, a passagem
mais conhecida de seu trabalho de cunho f
ilosófico
afirma:
Embora diferentes em forma [os diferentes modos de representação] têm
substancialmente a mesma significação interna. Esta significação comum dos
diferentes modos de representação (e outros podem certamente ser encontrados)
parece
-me constituir a parte permanente do trabalho de Maxwell. Isto, e não as
concepções e métodos peculiares de Maxwell, eu definiria como “a teoria de
Maxwell”. À questão, “O que é a teoria de Maxwell?” Eu não conheço uma
resposta mais direta ou mais definitiva do que a seguinte: – a teoria de Maxwell é o
sistema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo sistema de
equações, e, portanto, abranja os mesmos fenômenos, eu consideraria uma forma
ou
um
caso especial da teoria de Maxwell... Assim, neste sentido, e apenas neste
sentido, podem as duas dissertações teóricas tratadas no presente livro ser
consideradas como representações da teoria de Maxwell. Em nenhum sentido elas
podem ter a pretensão de serem consideradas traduções precisas das idéias de
Max
well. Ao contrário, é duvidoso que Maxwell, enquanto vivo, as reconheceria
como representantes de seus próprios pontos de vista em qualquer aspecto (
apud
D’AGOSTINO, 2004, pp. 377
-
378).
1
Primeira edição: Clarendon Press, Oxford, 1873.
2
Levando-se ao limite determinados parâmetros da teoria de Helmholtz, chega-se à teoria de Maxwell (ABRANTES,
1992,
p. 354
; D’AGOSTINO, 2004, p. 377).
56
A princípio, a citação acima parece sugerir uma identificação imediata entre a concepção de
teoria científica de Hertz e o ponto de vista dos fenomenistas: ‘a teoria de Maxwell é o sistema de
equações de Maxwell’! Mas, se esta última afirmação representasse a síntese da concepção
hertziana de uma teoria científica, poder-se-ia, então, dizer que, em última análise, as
representações de Helmholtz e Maxwell dos fenômenos eletromagnéticos se equivalem. No entanto,
embora estes dois modos de representação possuam uma mesma significação interna fornecida pela
possibilidade de identidade dos respectivos formalismos matemáticos, eles diferem num aspecto: a
significação física. E este não parece ter sido um aspecto secundário para Hertz. Afinal, ele deu
preferência ao ponto de vista de Faraday-Maxwell de ação contínua (mais especificamente o ponto
de vista de que os fenômenos magnéticos, como a eletrização, são efeitos de processos ocorrendo
no meio etéreo)’
3
(ABRANTES, 1992, pp. 364
-
365).
Hertz, então, concebe duas componentes distintas na estrutura de uma teoria científica: uma
co
nstituída pelo imperecível formalismo matemático, que lhe fornece significação interna, e outra,
estabelecida pelo modo de representação adotado, responsável pela definição da significação física
desta teoria. Porém, para um mesmo conjunto de fenômenos (por exemplo, os fenômenos
eletromagnéticos envolvidos na pesquisa experimental de Hertz) diferentes modos de representação
são possíveis. Percebem-se aqui os primeiros traços distintivos do pensamento de Hertz. Segundo
D’Agostino:
... ao separar a estrutura matemática de uma teoria dos seus modos de
representação ele [Hertz] desafiou profundamente a concepção de uma teoria física
como uma unidade indivisível dos dois uma concepção aceita por Maxwell e
outros físicos
-
matemáticos do século XIX.
De fato, para Hertz, os vários modos de representação de uma teoria física
cumprem o papel de interpretar seus símbolos matemáticos e, assim, constituem
seu conteúdo empírico; eles correlacionam seus símbolos matemáticos aos
respectivos observáveis. Esta correlação, no entanto, não é de um para um; nela
uma certa margem de liberdade, uma vez que diferentes modos de representação
são possíveis
(2004, p. 379)
.
Para Hertz, portanto, a teoria é sub-
determinada
4
pela experiência, o que indica um
afastamento entre as suas concepções e a dos fenomenologistas, para os quais ‘todo conceito
empregado em uma teoria física deve, em última instância, encontrar sua realização concreta na
intuição empírica’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 131). Mas, diante da necessidade de se escolhe
r
um dentre os diferentes modos de representação dos fenômenos, Hertz procura, em Electric Waves
,
3
Vários fatores podem ter levado Hertz a optar pela representação maxwelliana do eletromagnetismo. Dentre eles
destaco as possíveis vantagens heurísticas supostamente oferecidas por um modelo que pressupunha ações media
tizadas
para o programa de unificação da física por meio da mecânica, pretendido por Hertz.
4
O problema da subdeterminação das teorias científicas será tratado mais adiante.
57
estabelecer critérios metodológicos que balizem tal escolha e esboça uma definição de suas
concepções de ciência e
‘da tarefa filosofia da ciência’
:
1. A tese de que nossas “idéias físicas e matemáticas” constituem “modos de
representação” dos fenômenos (que subdeterminam tais modos de representação);
2. Importância do critério lógico (consistência) na aceitabilidade da teoria
científica; 3. A exigência metodol
ógica de parcimônia no emprego de hi
póteses nas
teorias científicas
(ABRANTES, 1992, p. 356).
Em
The Principles of Mechanics Hertz define sua posição em relação à função, validade e
limites de uma teoria científica, ao mesmo tempo em que formaliza um conjunto de critérios
metodológicos
5
coerentes com sua concepção epistemológica. Tais critérios além de serem
aplicados na análise crítica das representações tradicionais da mecânica servem também como
diretrizes na elaboração da representação do próprio Hertz. Tanto na concepção hertziana de teoria
científica e nos critérios metodológicos dela derivados, quanto no desenvolvimento de sua
representação da mecânica, percebe
-
se a adesão de Hertz ao pensamento de Immanuel Kant (1724
1804) (ABRANTES, 1992
;
JANIK
e TOULMIN, 1996; D’AGOSTINO, 2004). Certamente que a
distinção do pensamento de Hertz não se restringe à sua filiação kantiana.
6
Mas, sua opção pelo
sistema filosófico de Kant foi, possivelmente, influenciada ou reforçada por seu primeiro mestre,
Hermann v
on Helmholtz.
Helmholtz formou-se em medicina pelo Instituto Real Friedrich-Wilhem. Trabalhou como
cirurgião e, posteriormente, também como professor de fisiologia até se tornar professor de física
em Berlim, onde Hertz estudou sob seus auspícios. A transição de Helmholtz da medicina para a
física deu-se como conseqüência de suas investigações das relações entre os processos biológicos e
fenômenos físicos e químicos, iniciadas ainda nos tempos de estudante sob o incentivo de seu
professor Johannes Peter
ller
7
(1801 1858) (SOUZA FILHO, 1995, pp. 53-55). Os interesses
de Helmholtz abrangiam, também, a epistemologia e sua concepção de teoria física guarda
influências marcantes de seus estudos nos domínios da fisiologia e do pensamento de Kant.
Segundo D’A
gostino,
‘Helmholtz foi um dos primeiros cientistas a criticar o caráter
objetivo das teorias científicas negando que os conceitos teóricos descrevem objetos físicos reais’
,
crítica esta partilhada, posteriormente, por Hertz e Boltzmann (2004, p. 372). Esta postura de
5
Sobre os critérios metodológicos propostos por Hertz, ver Capítulo II deste tra
balho.
6
Em escritos do final do século XIX, Mach (1960, p. 318) considera que a maioria dos físicos adota conceitos
kantianos.
7
Os títulos de alguns dos artigos de Helmholtz publicados nos vinte e nove anos decorridos entre sua graduação em
medicina (1842) e seu ingresso, como professor de física, na Universidade de Berlim (1871) dão uma medida do
conteúdo físico de suas pesquisas: “Sobre a Conservação da Força” (1847), “Sobre a duração e o sentido de Correntes
Elétricas induzidas pela variação de uma Corrente Indutora” (1851), “Sobre as Integrais das Equações Hidrodinâmicas
que representam o Movimento de Vórtice” (1858), “Sobre a Aplicação da Lei de Conservação da Força à Natureza
Orgânica” (1868), “Sobre as Oscilações Elétricas” (1868), etc. Sobre o assu
nto, ver SOUZA FILHO, 1995, pp. 53
-
55.
58
Helmholtz relaciona-se diretamente com a sua opção de adotar as formas a priori de Kant como
ferramenta de análise dos problemas que vinham se apresentando nos domínios da física na segunda
metade do século XIX. A decisão do cientista em adotar um sistema filosófico que fundamentasse
uma análise crítica do desenvolvimento dos formalismos científicos advém de seu ponto de vista
sobre o papel e o valor da filosofia na investigação dos processos cognitivos:
8
O que é verdade em nossa intuição e
em
nosso pensamento? Em que sentido nossas
representações correspondem à realidade? Filosofia e ciências naturais encaram
este problema de dois lados opostos; é uma tarefa comum a ambas (
apud
D’AGOSTINO, 2004, p. 373).
As pesquisas de Helmholtz no campo da fisiologia foram, também, determinantes na sua
concepção de conhecimento. Por meio delas, as interações entre sujeito e objeto puderam ser
expressas e quantificadas através do estabelecimento de relações entre as funções orgânicas e
fenômenos físicos e químicos. Mas, segundo Helmholtz, os processos mentais decorrentes de tais
interações se dariam em conformidade com a doutrina kantiana:
9
A excitação do nervo ótico produz apenas sensações de luz, não importando se a
luz objetiva i.e. vibrações do éter nele impinge, ou [se ele é estimulado por]
uma corrente elétrica que passa através do olho, ou [por] pressão no globo ocular,
ou [pela
] tração do nervo durante rápidas mudanças da direção da visão
.
Na medida em que a qualidade de nossas sensações fornece-
nos
um relato do que é
peculiar à influência externa pela qual estas sensações são excitadas, elas devem
ser consideradas como um mbolo [do que é percebido], mas não como uma
imagem
. Pois, de uma imagem exige-se algum tipo de similaridade com o obj
eto
do qu
al ela é uma imagem...
(
apud
D’AGOSTINO, 2004, p. 373).
Em contrapartida, as impressões deixadas em Helmholtz por suas pesquisas em fisiologia
levaram
-no a encetar uma proposta de modificação da concepção kantiana de formas de intuição
a
priori
.
10
Além disso, segundo Helmholtz, as investigações de Kant sobre os processos de cognição
limitaram
-se à análise lingüística, enquanto ele próprio seguiu o único caminho capaz de levar ao
entendimento dos processos cognitivos: a investigação fisiológica.
De acordo com D’Agostino, as reflexões de Helmholtz tornaram possíveis duas vertentes do
pensamento científico: “através de sua atenção à percepção e à psicologia, ele pavimentou o
caminho para a fenomenologia de Mach; por outro lado, através de sua atenção às formas de
8
É provável que o ponto de vista de Helmholtz sobre a importância da filosofia nos processos cognitivos tenha sido
fortemente influenciado, desde cedo, pelo seu ambiente familiar e convívio social. Helmholtz presenciou inúmeros
debates filosóficos entre seu pai, professor de Filosofia e Literatura Clássica, e os amigos da família (SOUZA FILHO,
1995, p. 55).
9
Helmholtz afirmava que os estudos de Johannes Müller sobre a fisiologia dos sentidos confirmam a doutrina de K
ant
(D’AGOSTINO, 2004, p. 375
).
10
Helmholtz propõe uma forma
geral
de intuição
a priori
a qual seria completamente destituída de conteúdo empírico e
que não abarcaria, por exemplo, a geometria euclidiana e as não-euclidianas (consideradas demasiadamente de
pendentes de conteúdo empírico); as geometrias seriam, segundo o cientista, formas
restritas
(
narrower
) de intuição
a
priori
.
Sobre o assunto, ver D’AGOSTINO, 2004, pp. 375
-
376.
59
intuição
a priori de Kant, ele pavimentou o caminho para a “Bild conception” de Hertz”
(D’AGOSTINO, 2004, p. 385).
No final do século XIX, partidários destas duas vertentes
11
encontravam-se em luta franca e
aberta.
Nos primeiros anos do século XX, o empirismo antimetafísico de inspiração machiana
tornara
-se dogmático na comunidade científica e tinha nas idéias de alguns de seus membros que se
identificavam com o pensamento de Hertz e Boltzmann o seu contraponto. Na filosofia, a influência
de Mach esten
deu
-se até o Círculo de Viena, cujos participantes dispensaram especial atenção ao
pensamento de Ludwig Wittgenstein, o qual, em sua obra Tractatus Logico-
Philosophicus
, recebeu
influência direta das idéias de Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann. No decorrer do século XX,
Erwin Schrödinger defendeu a disseminação da
Bild conception
e a radicalizou
.
A época de Helmholtz, Hertz e Boltzmann assistiu à consolidação da física teórica como um
ramo institucionalizado da física (VIDEIRA, 1995, pp. 12-13). De acordo com diversos autores, a
perspectiva de Hertz sobre a relação entre teoria e hipótese associada à sua consciência das
implicações filosóficas desta relação, apontaram novos rumos para o desenvolvimento dessa
especialidade da física no século XX (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128; VIDEIRA, 1995, p. 13;
D’AGOSTINO, 2004, p. 385)
:
‘com ele se abre, efetivamente, uma nova fase na metodologia da
física’
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128).
III. 2. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE HEINRICH HERTZ
12
No prefácio de
The Princi
ples of Mechanics
, Hertz exp
õe, de forma muito geral, o seu ponto
de vista sobre qual seria o principal impasse enfrentado pela física naquele momento:
Todos os físicos concordam que o problema da física consiste em remeter (
trace
back)
os fenômenos da natureza às leis simples da mecânica. Mas não o mesmo
acordo sobre o que são estas leis simples. Para a maioria dos físicos, elas são
simplesmente as leis do movimento de Newton. Mas, na realidade, estas leis obtêm
sua significação interna e seu significado físico através do pressuposto tácito de
que as forças a que elas se referem são de natureza simples e possuem propriedades
simples. Mas, a este respeito, não temos certeza do que é simples e permissível e
do que não o é: é aqui que não mais encontramos qualquer acordo geral. Assim,
11
Ao utilizar a expressão partidários destas duas vertentes não estou com isto querendo afirmar que existiam dois
grupos antagônicos de pensadores facilmente identificáveis que aderiram incondicionalmente a uma ou outra corrente
de pensamento. A questão é complexa e nem mesmo a posição de Hertz em meio às polêmicas em torno do prob
lema
do conhecimento na virada do século XIX para o século XX era interpretada de forma única.
12
A análise dos aspectos filosóficos da concepção de ciência de Hertz apresentada nesta secção baseia-
se,
exclusivamente, no que é exposto pelo cientista em
The
Principles of Mechanics, principalmente na introdução à
referida obra, em detrimento das reflexões apresentados em Electric Waves. Sigo aqui, a orientação adotada por autores
como Janik e Toulmin (1973), Poincaré (1984), Cassirer (1986), Abrantes (1992), Moreira (1995) e D’Agostino (2004),
os quais consideram a relevância de Electric Waves como marco inicial das preocupações filosóficas de Hertz, mas
vêem
The Principles of Mechanics
como a obra em que o pensamento de Hertz se consolida.
60
surgem diferenças reais de opinião sobre se esse ou aquele pressuposto estão ou
não de acordo com o sistema usual da mecânica. É no tratamento de novos
problemas que reconhecemos a existência de tais questões em aberto como um
obstáculo real ao progresso. Então, é prematuro, por exemplo, basear as equações
do movimento do éter nas leis da mecânica até que tenhamos obtido um acordo
perfeito sobre o que se
entende por este nome (
1956, prefácio).
Para Hertz, portanto, não dúvidas de que a mecânica ocupa uma posição privilegiada em
relação ao todo da física. Não se pode afirmar, no entanto, a mesma unanimidade em relação à
representação da mecânica a ser utilizada no estudo dos fenômenos físicos. Para a maior parte da
comunidade
científica, o modelo newtoniano seria o mais adequado. Mas, frente aos
‘novos
problemas’
que vinham se apresentando aos físicos o modelo newtoniano dava sinais de
inadequação. Mesmo assim, algumas suposições vagas decorrentes desses ‘novos problemas’ e
o
exemplo do éter não é escolhido por acaso na citação acima vinham sendo submetidas às leis da
mecânica. A partir de sua perspectiva sobre a situação da física naquele momento, Hertz, então,
apresenta o objetivo de
The Principles of Mechanics
:
O problema que me empenho em resolver na presente investigação é o seguinte:
Preencher as lacunas existentes e fornecer uma apresentação completa e definitiva
das leis da mecânica que seja consistente com o presente estado de nosso
conhecimento, que não seja rest
ritiva demais
,
nem por demais extensiva em relaç
ão
ao escopo deste conhecimento
(1956
,
prefácio).
Ao empreender tal tarefa, Hertz deixa claro que não pretende fundar uma nova mecânica:
não há essencialmente nada de novo em relação ao que pode ser encontrado nos muitos livros sobre
o assunto (1956, prefácio). No entanto, o cientista demonstra ter plena consciência do caráter e do
alcance de sua proposta:
O que eu espero que seja novidade, e somente a isto eu atribuo valor, é o arranjo e
a concatenação do
todo
o aspecto lógico ou filosófico do assunto. Assim, na
medida em que isto representa ou não um avanço nesta direção, reside o sucess
o ou
o fracasso do meu trabalho
(HERTZ, 1956, prefácio).
Em
The Principles of Mechanics, Hertz afirma que o principal objetivo do conhecimento
sistemático da natureza é “a antecipação de eventos futuros para que possamos organizar o nosso
presente de acordo com tal antecipação” (1956, p. 1). Com base em nosso conhecimento de
eventos já ocorridos, adotamos o seguinte proc
esso para que esse objetivo seja alcançado:
Nós formamos para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos; e a
forma que s damos a eles é tal que as conseqüências necessárias das imagens no
pensamento são sempre as imagens das conseqüências necessárias na natureza das
coisas observadas. Para que esta condição seja satisfeita, de haver uma
conformidade entre a natureza e o pensamento. A experiência nos ensina que tal
requisito pode ser satisfeito, e, portanto, que tal conformidade de fato existe.
Quando somos bem sucedidos na dedução de imagens da natureza desejada, a
partir de nossa experiência previamente acumulada, nós podemos, então, em um
curto período de tempo, por meio delas, ou por meio de modelos, chegar às
61
conseqüências que no mundo externo só surgiriam em um espaço de tempo muito
longo ou como resultado de nos
sa própria interferência (HERTZ
, 1956, p. 1).
Hertz ressalta que as imagens a que ele se refere são nossas concepções das coisas e que a
conformidade destas imagens com a natureza se esgota na sua adequação ao que delas é requisitado
no processo anteriormente descrito. Não meios de se saber se estas imagens estão em
conformidade com as coisas em nenhum outro aspecto que não seja este. No entanto, ainda de
acordo com Hertz, várias imagens de um mesmo objeto são possíveis (1956, p.
2).
Para a definição
da
melhor
dentre as várias imagens possíveis, Hertz estabelece três exigências:
13
as imagens não
podem contrariar as leis do nosso pensamento, ou seja, não devem ser autocontraditór
ias
(
permissibilidade
); as conseqüências das imagens devem ser compatíveis com a experiência
(
correção
);
a
‘melhor’
imagem é a mais simples (
adequação
),
aquela que melhor representa as
relações essenciais do objeto’ (HERTZ, 1956, p. 2), a que contém o menor mero de relações
supérfluas ou vazias. Mas, “relações vazias não podem ser totalmente evitadas. Elas fazem parte
das imagens por que elas são simplesmente imagens. Imagens produzidas por nossas mentes e,
necessariamente afetadas pelas características do seu modo de representação (
portrayal
)”
(
HERTZ,
1956
, p.
2).
Na concepção do conhecimento adotada por Hertz e apresentada nas páginas iniciais da
introdução à The Principles of Mechanics, percebe-se a filiação do cientista à tradição kantiana:
14
fo
rmamos dos objetos
imagens
cuja conformidade com os objetos é garantida pela assumpção de
um
isomorfismo
15
entre pensamento e natureza; as imagens formadas, de modo algum, representam
as
‘coisas em si mesmas’
(KANT, 2005, p. 82);
‘relações vazias não podem
ser evitadas’
, já que
... a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser
respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí
tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e continuará a
13
Os critérios postu
lados por Hertz foram estudados no Capítulo II deste trabalho.
14
A adesão de Hertz à filosofia de Kant é reconhecida por autores como Cohen (1956), Abrantes (1992), Janik e
Toulmin (1996) e D’Agostino (2004).
15
“Seja de que modo e com que meio um conhecimento possa referir-se a objetos, o modo como ele se refere
imediatamente aos mesmos e ao qual todo pensamento como meio tende, é a
intuição
. Esta, contudo, ocorre na
medida em que o objeto nos for dado; a nós homens pelo menos, isto é por sua vez possível pelo fato do objeto afetar a
mente de certa maneira. A capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados
por objetos denomina-
se
sensibilidade
. Portanto, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos forne
ce
intuições
; pelo entendimento, ao invés, os objetos são
pensados
e dele se originam
conceitos
. Todo pensamento,
contudo, quer diretamente (
directe
), quer por rodeios (
indirecte
), através de certas características, finalmente tem de
referir
-
se a intuições
, por conseguinte em nós à sensibilidade, pois de outro modo nenhum objeto pode ser
-
nos dado.”
“O efeito de um objeto sobre a capacidade de representação, na medida em que somos afetados pelo mesmo, é
sensação. Aquela intuição que se refere ao objeto mediante sensação denomina-
se
empírica
. O objeto indeterminado de
uma intuição empírica denomina
-
se
fenômeno
.”
“Aquilo que no fenômeno corresponde à sensação denomino sua
matéria
, aquilo porém que faz com que o múltiplo do
fenômeno possa ser ordenado em certas relações denomino a
forma
do fenômeno. que aquilo unicamente no qual as
sensações podem se ordenar e ser postas em certa forma não pode, por sua vez, ser sensação, então, a matéria de todo
fenômeno nos é dada somente a posteriori, tendo porém a sua forma que estar à disposição a priori na mente e poder
ser por isso considerada separadamente de toda a sensação” (KANT, 2005, pp. 71
-
72).
62
exist
ir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a
especulação
(KANT, 2005, p. 63).
Ou, conforme a interpretação de Janik e Toulmin da concepção de Kant citada acima, ‘a metafísica
é, portanto, a mais “humana” das atividades humanas’ (1996, p. 147). Hertz opta pela inclusão de
‘especulações’
ou hipóteses em sua representação da mecânica, respaldado, possivelmente, por
esta
abertura propiciada pelo pensamento kantiano, ao mesmo tempo em que, por meio dos critérios
metodológicos propostos, estabelece limites lógicos para tais hipóteses, o que constituiria um novo
ponto de aproximação entre Hertz e Kant:
... não se pode [então] contentar com a mera disposição natural para a metafísica,
isto é, com a própria faculdade pura da razão, da qual sempre resulta alguma
metafísica (seja qual for), mas com tal disposição tem que ser possível alcançar
uma certeza quanto ao saber ou não-saber dos objetos, isto é, ou decidir sobre os
objetos de suas perguntas ou sobre a capacidade ou incapacidade da ra
zão de julgar
algo a respeito deles, portanto ou ampliar com confiança a nossa razão pura ou
impor
-
lhe
limites determinados e seguros
(KANT, 2005, p. 64).
Mas, não é preciso ir muito longe para identificar a filiação kantiana de Hertz. Na nota
introdutó
ria ao Livro I de
The Principles of Mechanics
, Hertz declara:
O assunto do primeiro livro é completamente independente da experiência. Todas
as asserções feitas são julgamentos a priori no sentido de Kant. Elas se baseiam
nas leis da intuição interna e nas formas lógicas seguidas por quem faz as
asserções; com sua experiência externa elas não têm outras conexões além
daquelas que possam ter estas intuições e formas
16
(1956, p. 45).
Associando, então, sua concepção do processo de conhecimento aos critérios
lógicos
exigidos para a depuração das imagens resultantes de tal processo, Hertz constrói, sobre uma
plataforma kantiana, sua idéia de representação científica destas imagens.
17
A ênfase no caráter
kantiano da idéia de representação em Hertz se justifica pelas múltiplas possibilidades de
interpretação dos termos
imagem
e
representação
, conceitos fundamentais na sua concepção de
teoria científica. Existem duas palavras para designar o termo representação em alemão:
Vorstellung
, associada à percepção sensorial e relacionada à tradição empiricista, significando uma
16
Hertz inicia o Capítulo I do Livro I apresentado as três concepções fundamentais de sua representação da mecânica:
“O tempo do primeiro livro é o tempo de nossa intuição interna. É, portanto, uma quantidade tal que as variações das
outras quantidades envolvidas devem ser consideradas dependentes de sua variação; enquanto ele próprio é sempre uma
variável independente.”
“O
espaço do primeiro livro é o espaço tal como o concebemos. É, portanto, o espaço da geometria de Euclides, com
todas as propriedades que esta geometria lhe atribui. Não nos importamos se estas propriedades são consideradas como
sendo dadas pelas leis de nossa intuição interna, ou como conseqüências do pensamento que se seguem,
necessariamente, de definições arbitrárias”.
“A massa do primeiro livro será introduzida por uma definição” (HERTZ, 1956, p. 45).
17
Segundo Hertz (1956, p. 2), os critérios por ele estabelecidos servem como diretrizes para a crítica e a elaboração das
representações científicas das imagens e não das imagens em si. Mais uma vez, a referência ao pensamento de Kant é
inevitável:
“A diferença entre uma representação obscura e uma clara é meramente lógica, e não se refere ao
conteúdo. Sem dúvida, o conceito de
direito
utilizado pelo bom senso contém exatamente o mesmo que a mais sutil
especulação pode desenvolver a seu respeito, com a diferença apenas que no uso comum e prático não se está
c
onsciente destas múltiplas representações neste pensamento”
(KANT, 2005, p. 84).
63
reprodução mental involuntária dos dados do sentido; e
Darstellung,
cujo significado é associado a
representações “externas”, públicas, construídas conscientemente, como, por exemplo, as
representaçõe
s artísticas ou os modelos matemáticos científicos
18
(JANIK e TOULMIN, 1996, pp.
31, 132
-133, 140). De acordo com Janik e Toulmin (1996, p. 139), na edição original em alemão de
The Principles of Mechanics, Hertz utiliza a palavra
Bild
, cujo significado é vago, para designar o
termo
imagem
,
19
o que possibilitou interpretações
incorretas
deste conceito fundamental da
concepção hertziana. Na interpretação de Mach, por exemplo,
“Hertz utiliza o termo
Bild
(image ou
picture) no sentido do antigo uso de
idéia
pela tradição filosófica inglesa, e aplica-o a sistemas de
idéias ou conceitos relacionados a quaisquer domínios” (MACH, 1960, p. 318; JANIK e
TOULMIN, 1996, p. 139). Desta forma, Mach aproxima Hertz da tradição filosófica inglesa e,
consequentemente, o afasta de Kant. No entanto, afirmam Janik e Toulmin, “é significativo que, ao
descrever sua concepção de
Bilder
como “representações”, Hertz consistentemente escolheu
empregar a palavra Darstellungen ao invés de Vorstellungen”
(1996, p. 139).
Mach, por sua vez, identificava-se com a tradição filosófica empirista inglesa.
20
Para ele
,
toda ciência tem sua origem nas necessidades da vida (
MACH,
1960, p.
609):
Ele [Mach] acreditava que todo o conhecimento é dirigido para a adaptação do
animal ao seu meio ambiente. Todos os conceitos, teorias, afirmações e similares
eram, para ele, funções dos nossos instintos para a sobrevivência biológica.
Esquemas conceituais são instrumentos econômicos que nos possibilitam lidar com
problemas práticos (JANIK e TOULMIN, 1996, P.
137).
Nossas mentes são impressionadas por inumeráveis fatos e tudo o que observamos é
impresso de forma não compreendida e não analisada em nosso pensamento. Em função disso, no
processo de compreensão de um fato, não partimos de conseqüências que nos parecem absurdas,
que nunca observamos.
A esse processo Mach denomina ‘conhecimento instintivo’
, o qual, por suas
características, não é místico, não possui elementos a priori, nem é subjetivo, sendo, portan
to,
extremamente confiável (MACH, 1960, p. 94). O conhecimento instintivo é decorrente de nossa
relação com a natureza e é por ela determinado, independe de nós. Mais do que isso, “todas as
coisas no mundo estão relacionadas umas às outras e dependem umas das outras... e, nós mesmos e
nossos pensamentos somos também parte da natureza” (
MACH
, 1960, p. 273). Portanto,
adquirimos
naturalmente
a capacidade de estabelecer objetivamente os “fatos individuais” da
natureza.
18
Janik e Toulmin (1996, p. 133) utilizam ‘as representações gráficas utilizadas atualmente em sica’ como exemplo
de
Darstellung
.
19
Picture ou image na tradução para o inglê
s.
20
O empirismo de Mach é frequentemente identificado com o pensamento filosófico do escocês David Hume. Sobre o
assunto, ver JANIK e TOULMIN, 1996.
64
Uma vez estabelecidos os fatos mais importantes, deve-se elaborá-los dedutivamente e
logic
amen
te através de métodos da física-matemática, de modo a acrescentar às propriedades
observadas, outras que não se manifestam diretamente (
MACH, 1960, p. 88
). Em seguida, a atenção
é voltada para o desenvolvimento formal da ciência, organizando-se os fatos em um
sistema
, o
que nos permite tê-los sempre ao alcance e reproduzi-los mentalmente com o menor esforço
intelectual (MACH
, 1960, p.
516). Assim se desenvolve a ciência.
Ao estabelecer a necessidade de análise lógica e de elaboração de sistemas formais, a
metodologia identificada por Mach no estudo do desenvolvimento da mecânica parece extrapolar a
naturalidade
da relação entre pensamento e mundo. Entretanto, coerentemente com seu “modelo de
racionalidade”, Mach esclarece: “Nesta investigação, eu julg
uei
útil e restritivo considerar o
pensamento cotidiano e a ciência em geral como um fenômeno biológico e orgânico, no qual o
pensamento lógico assume a posição de um caso limite ideal”
(1960, p.
593).
Um dos principais objetivos de Mach em seu estudo crítico e histórico realizado em
The
Science of
Mechanics
era identificar os componentes não-científicos na ciência e os preconceitos
dos cientistas
21
decorrentes de aspectos histórico-culturais para, em seguida, eliminá-
los,
permitindo, assim, que novos caminhos fossem descobertos. Mas, de acordo com a concepção de
Mach, o conhecimento independe de nós, ele é o resultado de nossa relação com a natureza, com
nosso meio ambiente. Sendo assim, os condicionantes históricos, apesar de infrutíferos, não
impediram o avanço da ciência: “a visão teológica não forneceu os conteúdos dos princípios [da
mecânica], mas simplesmente determinaram sua forma
(MACH, 1960, p.
555).
Os objetivos da investigação histórica de Mach aliados à sua concepção biológica ou
psicofísica
22
do conhecimento visavam uma nova ciência a-
histórica:
Nós e nossos pensamentos
somos parte da natureza”, natureza esta que não tem senão uma existência própria; a natureza
simplesmente é”
(MACH, 1960, p.
580). Se a ciência é o resultado de nossa relação c
om a natureza,
então, em última análise,
a ciência simplesmente é
.
Para Mach, portanto, o conhecimento é possibilitado e determinado pela conformação de
nosso pensamento à ininterrupta impressão em nossas mentes dos
‘fatos’
observados na natureza.
Em opos
ição ao ponto de vista de Mach, Hertz, assim como Kant, adota a perspectiva de que nossas
experiências sensíveis se nos apresentam com uma estrutura epistêmica’ (JANIK e TOULMIN,
1996, p. 121), cuja compreensão é possibilitada por um isomorfismo inato entre pensamento e
natureza. Os dados empíricos contêm em si representações estruturadas ou
Vorstellungen
(
Ibidem
),
21
Este assunto foi abordado no Capítulo I deste trabalho.
22
Ibidem.
65
as quais, após um processo ativo de depuração lógica, são apresentadas na forma de
Darstellungen
ou
representações
no sentido de Hertz.
Não obstante as diferenças entre as concepções do conhecimento de Mach e de Hertz até
aqui apontadas, pode-se argumentar que estas exibem pelo menos um ponto em comum: de uma
forma ou de outra, as representações científicas dos fenômenos têm sua origem nos dado
s empíricos
e com eles devem concordar. Além do mais, tanto Mach quanto Hertz admitem que
‘várias imagens
dos mesmos objetos são possíveis’ (HERTZ, 1956, p. 2), apesar de divergirem sobre os motivos de
tal possibilidade. Mach enceta uma abordagem histórica na análise do problema da diversidade dos
princípios físicos referentes a um mesmo domínio de fenômenos (os princípios da mecânica, por
exemplo, objeto de sua análise histórica em The Science of
Mechanics
),
chegando à conclusão de
que os condicionantes históricos afetaram tão somente a forma sob a qual estes princípios foram
apresentados, mas não seus conteúdos, determinados exclusivamente pela conformidade empírica.
A análise crítica dos aspectos formais de um princípio físico deve se basear no princípio
da
economia de pensamento: o princípio físico mais adequado à economia de pensamento tem
prioridade sobre os demais.
Hertz, por sua vez, opta por uma abordagem lógico-filosófica do problema e estabelece sua
análise a partir dos critérios
de
permissibilid
ade
,
correção
e
adequação
por ele definidos. De
acordo com a concepção do cientista, a
imagem
mais adequada para a constituição de uma
representação científica é aquela que contém o ‘menor número de relações supérfluas ou vazias’
.
Em
The Science of Me
chanics
, Mach afirma:
“o critério de adequação de Hertz coincide com nosso
critério de economia”
(1960, p. 318). Mas, os pontos de vista de Mach e Hertz sobre a natureza dos
conceitos de
economia
e
adequação
divergem. Para Mach, a economia de pensamento não deve ser
considerada como um princípio conscientemente elaborado, mas sim como uma característica
adquirida e desenvolvida
‘instintivamente’
e
‘involuntariamente’
pelo equipamento biológico
humano que favorece nossa adaptação ao meio ambiente.
23
As ciênci
as
‘cujos fatos são redutíveis a
alguns poucos elementos enumeráveis de mesma natureza’ e que podem ser reproduzidos,
relacionados e antecipados por expressões matemáticas, são as mais
economicamente
desenvolvidas
(MACH, 1960, pp. 582
-
583).
O critério de adequação de Hertz, ao contrário, é fruto de uma atividade intelectual
deliberada e, antes de prescrever
economia
ou simplicidade, estabelece que, dentre as imagens
23
Como exemplo: “Muito da autoridade das idéias de causa e efeito é devida ao fato de que elas são desenvolvidas
instintivamente
e involuntariamente, e à nossa certeza de não termos contribuído em nada para sua formação. Podemos
dizer, sem dúvida, que nosso senso de causalidade não é adquirido pelo indivíduo, mas se aperfeiçoou com o
desenvolvimento da raça. Causa e efeito, portanto, são coisas do pensamento, tendo uma função econômica” (MACH,
1960, p. 581).
66
possíveis, a mais adequada é aquela que descreve
(pictures)
mais das relações essenciais do
objeto...”
(HERTZ, 1956, p. 2).
24
Despir as imagens dos “trajes vistosos”
25
que lhes foram
concedidos historicamente para que a pureza e a eficiência de suas formas matemáticas sejam
expostas, como pretendia Mach, ou reduzir ao máximo as inevitáveis concepções arbitrárias nelas
introduzidas como conseqüência da maneira pela qual nossas mentes as representam, como
propunha Hertz, são procedimentos que, por si só, não garantem a seleção
da
imagem mais
adequada.
Tampouco a concepção do conhecimento como
o
‘resultado de um esforço de nossa parte
para adaptar nossas idéias ao nosso ambiente sensorial’
(MACH, 1960, p. 318) ou da existência de
uma disposição apriorística para conhecer são critérios suficientes para o estabelecimento de um
acordo sobre
a
melho
r representação científica. Sim, há de haver conformidade entre as imagens e a
natureza (
permissibilidade
) e entre as conseqüências das imagens e a experiência (
correção
). Mas
Hertz não parece depositar nesses critérios a mesma confiança depositada por Mach no
‘conhecimento instintivo’
:
“aquilo que é derivado da experiência pode novamente ser anulado pela
experiência”
(HERTZ, 1956, p. 9). Em uma passagem pouco destacada na introdução de
The
Principles of Mechanics, Hertz atribui um caráter contingente às imagens ou representações
científicas e a entender que a análise de uma teoria não se esgota na crítica histórica ou lógico-
filosófica:
... não podemos decidir sem ambigüidade se uma imagem é adequada ou não;
quanto a isso, surgem diferenças de opinião. Uma imagem pode ser mais
apropriada para um determinado propósito, outra para outro propósito; somente
testando gradualmente muitas imagens é que podemos, finalmente, ter sucesso na
obtenção da mais apropriada
(1956, p. 3).
Ao fazer a afirmação acima, Hertz possivelmente tinha em mente suas pesquisas nos
domínios do eletromagnetismo: embora as teorias de Maxwell e Helmholtz pudessem ser
consideradas igualmente
adequadas
, o veredicto da comparação entre elas somente foi possível
após um programa de testes experimentais, seguido da reconstrução axiomática da teoria eleita.
Antes de tal procedimento, nem a representação de Maxwell, nem a de Helmholtz poderiam ser
descartadas, ainda que partissem de pressupostos conceituais diferentes. Dessa forma, mesmo a
incl
usão de hipóteses na elaboração de uma representação científica – procedimento a que os
fenomenistas se opunham com veemência deveria, dentro dos limites estabelecidos, ser admitida.
A proposta metodológica de Hertz encerra, portanto, uma nova concepção do significado e da
função de uma teoria científica e, de certo modo, assemelha-se ao que, em termos mais atuais,
24
O significado deste preceito é esclarecido por Hertz no desenvolvimento de sua críti
ca às representações da mecânica.
Sobre o assunto, ver Capítulo II deste trabalho e HERTZ, 1956, pp. 4
-
40.
25
A expressão é utilizada por Hertz em
Electric Waves
(1960, p. 28).
67
denomina
-
se
programa de pesquisa.
26
Ou, como bem define Cassirer, “os conceitos fundamentais
da física teórica são, para Hertz, pré-
figurações
para possíveis experiências, enquanto que para
Mach, são pós-figurações e reproduções de experiências reais” (1986, p. 132). Numa tal
perspectiva, uma abordagem atomista da teoria cinética dos gases ou uma proposta de representação
da mecânica que unificasse a física através de um modelo mecânico para ações mediatizadas têm a
chance de mostrar sua fecundidade.
De acordo com Cassirer,
Os conceitos fundamentais da física são em Mach o produto e a reprodução passiva
que a ação das coisas deixa nos órgãos de nossos sentidos. Hertz, por outro lado,
apresenta
-os como a expressão de um processo espiritual extraordinariamente
complicado, de um processo em que a atividade teórica se desenvolve livremente
para coincidir, em seu objetivo e ao seu término, com a experiência e por ela ser
confirmada ou retificada
(vol. IV, 1986, pp. 131
-
132).
As
‘pré
-
figurações’
de Hertz são “esquemas conscientemente construídos para conhecer”
(JANIK e TOULMIN, 1996, p. 140). Tais
‘esquemas’
ou modelos são sub-determinados pela
experiê
ncia, uma vez que várias imagens de um mesmo objeto são possíveis, apesar do pressuposto
isomorfismo entre pensamento e natureza. A admissão da sub-determinação das imagens pelos
dados empíricos permite a introdução de ‘um novo elemento de liberdade na escolha dos conceitos
teóricos’
representado pela possibilidade de inclusão de ‘conceitos que não correspondem a
percepções’
, como, por exemplo, as massas ocultas hipotéticas presentes na representação hertziana
da mecânica (D’AGOSTINO, 2004, p. 379). Os limites dessa liberdade teórica, assim como os da
representação científica como um todo, são determinados pelos critérios estabelecidos por Hertz.
No
entanto, a posição do cientista é frequentemente associada àquela defendida pelos
fenomenistas. Videira (1997, pp. 61-62) identifica Hertz, juntamente com Kirchhoff (1824 1887)
,
entre os adeptos da ‘fenomenologia de fundamento físico-
matemático’
27
e Mach (1960, p. 598) cita
o resultado da reconstrução axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell como uma bem
sucedida tentativa de representar os fenômenos exclusivamente por meio de sistemas de equações
diferenciais. Expressões isoladas do pensamento de Hertz, como sua emblemática afirmação de que
‘a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell’, tornam compreensíveis tais
interpretaç
ões de sua concepção de teoria científica. Porém, diferentemente do que defendiam os
fenomenistas, Hertz considerava que o sistema de equações de Maxwell ‘a parte permanente do
trabalho de Maxwell’ não representava apenas o que foi determinado pela experiência, mas
também, aquilo que poderia ser empiricamente testado. Além do mais, as equações de Maxwell
26
Ver, por exemplo, LAKATOS, I. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, Ed. Univ. de
São Paulo, 1979.
27
Videira (1997, p. 61) atribui a autoria dessa denominação a Boltzmann.
68
foram desenvolvidas a partir da pressuposição impossível de ser diretamente confirmada pela
experiência (D’AGOSTINO, 2004, p. 380) –, posteriormente abraçada por Hertz, da existência de
um éter “que preenchia todo o espaço e que transmitia os efeitos eletromagnéticos” (MARTINS,
2005, p. 13),
28
Mas, os traços distintivos entre os pensamentos de Hertz e Mach não são assim
tão
facilmente delineáveis. Um fenomenista convicto tenderia a considerar a preocupação de Hertz para
com o papel de hipóteses em uma teoria científica como um hábito anacrônico, atribuindo valor
unicamente aos sistemas de equações por ele obtidos:
De fato, a física vem se acostumando, gradualmente, a buscar a descrição dos fatos
por meio de equações diferenciais como seu verdadeiro objetivo... Por isso, a
aplicabilidade geral das formulações matemáticas de Hertz é admitida, sem que
sejamos obrigados a considerar quaisquer outras interpretações das forças ou
conexões
(MACH, 1960, p. 321).
Afinal, Mach havia mostrado em The Science of Mechanics que mesmo a “inquestionável”
mecânica newtoniana podia prescindir de elementos inobserváveis tais como força, tempo absoluto
e espaço absoluto, considerados por Newton e por muitos daqueles que o sucederam como seus
conceitos fundamentais. O programa energetista pregava a eliminação de elementos intangíveis e
hipóteses arbitrárias das teorias científicas (JANIK, 2002, p. 10). O próprio Mach minimizou as
implicações decorrentes da inclusão de massas e movimentos ocultos na representação da mecânica
de Hertz
29
embora alerte sobre o risco de sermos conduzidos a especulações fantasiosas pelo uso
de tais elementos ocultos (MACH, 1960, pp. 323-
324)
–, considerando a representação hertziana
como um grande
‘passo adiante’
e louvando aquela que seria, segundo ele, a principal meta em
The
Principles of Mechanics
:
“dar expressão apenas ao que realmente pode ser observado” (MA
CH,
1960, p. 320).
Janik afirma que, uma ‘leitura superficial’ da introdução de The Principles of Mechanics
pode sugerir que Hertz estaria reafirmando o ponto de vista de Mach com um enfoque ligeiramente
diferente (2002, p. 8). Para o autor, a preocupação com a precisão empírica e a coerência lógica das
representações, além da ênfase em apresentá-las na forma de sistemas de equações ou sistemas
axiomáticos são, evidentemente, pontos de contato entre os pensamentos de Mach e Hertz (JANIK,
2002, pp. 8-9). No entanto, na proposta filosófico-metodológica apresentada em The Principles of
28
Como exemplo: a energia eletrostática associada a um condutor eletrizado estaria, segundo Maxwell, distribuída sob
forma de tensão no éter em torno deste condutor e seria dada pela equação We =
(1/2)
eE²dV
. Esta equação é ainda
utilizada com a mesma finalidade sem que, no entanto, seja considerada a existência de um éter (MARTINS, 2005, p.
14).
29
Mach afirmava que as
‘circunstâncias p
sicológicas’
que levaram Hertz à inclusão de massas e movimento ocultos em
sua representação da mecânica eram facilmente compreensíveis: seu sucesso na representação das interações
eletromagnéticas através de forças mediatizadas o teria levado à tentativa de obter o mesmo resultado para as forças
gravitacionais (MACH, 1960, p. 323).
69
Mechanics
, os aspectos comuns dos pensamentos de Mach e Hertz divergem e até se opõem quando
se enseja uma análise acurada de seus papéis na elaboração ou reconstrução de uma te
oria
científica.
A crítica empreendida por Mach visava à purificação da
‘retórica’
utilizada na apresentação
das teorias científicas através de um filtro histórico –
como no caso da
‘retórica teológica’
utilizada
por Newton
para que os fenômenos observ
áveis pudessem ser representados
“em termos das mais
simples relações (funções) matemáticas entre as observações” (JANIK, 2002, p. 5). Hertz, assim
como Mach, também defendia que o objetivo de uma teoria física seria a representação mais
simples dos fenômenos observados. Quanto a isso, no entanto, Hertz se colocou duas questões que
Mach havia ignorado: O que é simplicidade?
30
Simples, para quem? (
Ibidem
, p. 6). Em pelo menos
três passagens da introdução de The Principles of Mechanics, Hertz se refere a estas questões.
Primeiramente ele alega que, mesmo no estudo de um caso simples, como o de um corpo em
repouso sobre uma superfície, a análise do equilíbrio das forças envolvidas, a partir da aplicação
rigorosa dos princípios de Newton, soaria para um leigo (“unprejudice persons”) como ‘imagens de
uma imaginação perturbada’ (HERTZ, 1956, p. 13).
31
Em seguida, Hertz afirma que não se pode
exigir simplicidade da natureza, mas, se não se consegue representar ‘as relações reais entre as
coisas’
de forma tal que estas relações possam ser compreendidas por uma ‘mente despreparada’
,
deve
-se concluir que as imagens por nós elaboradas ‘não estão suficientemente adaptadas às
coisas’
(
Ibidem
, pp. 23-24). Na terceira e, talvez, a mais importante dessas passagens, Hertz admite
que a representação usual da mecânica, a despeito de seus aspectos obscuros, é a mais apropriada
para fins práticos e didáticos assim
como
‘uma gramática desenvolvida com o propósito de
possibilitar a rápida familiarização de aprendizes com o que lhes é requerido na vida diária’
,
enquanto a sua própria, desenvolvida para cumprir um papel análogo ao de uma
‘gramática
sistemática’
, não se adequaria aos mesmos fins (HERTZ, 1956, p. 40). De acordo com Janik,
Quanto mais consideramos essa analogia, mais complexa ela se torna; rapidamente
percebemos que estudantes no processo de domínio de sua língua pátria
demandarão uma gramática bem diferente daquela requerida por estrangeiros que
30
Ver citação inicial da secção III.2 deste trabalho.
31
“Vemos uma barra de aço em repouso sobre uma mesa e, consequentemente, imaginamos que nenhuma causa de
movimento
nenhuma força está presente. A física, que se baseia na mecânica aqui considerada [a representação
newtoniana] e necessariamente determinada por esta base, ensina-nos de outra forma. Através de forças gravitacionais,
cada átomo do aço é atraído por qualquer outro átomo do universo. Mas cada átomo do aço é magnético e está, então,
conectado por novas forças com cada um dos átomos magnéticos do universo. Novamente, corpos no universo contêm
eletricidade em movimento, e esta última exerce forças ainda mais complic
adas que atraem cada um dos átomos do aço.
Como as partes do próprio aço contêm eletricidade, temos que considerar novos tipos de forças; e, acrescidos a elas,
novamente vários tipos de forças moleculares. Algumas dessas forças não são pequenas: se apenas uma parte delas
fosse efetiva, esta parte seria suficiente para despedaçar a barra de aço. Mas, de fato, todas estas forças estão de tal
modo ajustadas entre elas, que o efeito de todo o arranjo é zero; assim, apesar da existência de milhares de causas de
movimento, nenhum movimento é observado e a barra de aço permanece em repouso. Agora, se colocarmos estas
concepções diante de um leigo [unprejudiced persons], quem acreditará em nós?” (HERTZ, 1956, p. 13).
70
se esforçam para aprender essa mesma língua, enquanto diferentes grupos de
estrangeiros considerarão diferentes apresentações de gramática mais ou menos
úteis de acordo com os modos de expressão característicos de sua própria língua,
etc. Para esses diferentes propósitos necessitamos de diferentes “imagens”
[pictures] ou modelos das regras de gramática. O mesmo vale para a física: uma
representação adequada para um teórico dificilmente se mostra adequada, por
exemplo, para engenheiros
32
ou químicos trabalhando com o mesmo assunto, para
não citar os estudantes
de cursos introdutórios
(2002, p. 7)
.
‘”Uma imagem pode ser mais apropriada para um determinado propósito, outra para outro
propósito...”
(HERTZ, 1956, p. 3). De acordo com Janik, Hertz estaria admitindo e enfatizando a
necessidade da pluralidade de representações para o desenvolvimento da ciência, o que o
distinguiria de Mach (2002, p. 7). Certamente que os dois cientistas concordam que diferentes
modos de representação de uma mesma teoria científica devem comungar da mesma estrutura
matemática
– parte da representação capaz de lhe conferir conformação empírica – e que tal
estrutura deve ser expressa na forma mais simples possível. No entanto, enquanto Mach vê a
pluralidade das representações como um entrave ao desenvolvimento científico, o qual pode e deve
ser minimizado por meio da eliminação gradual dos elementos retóricos incluídos nas teorias, Hertz
atribui à retórica subjacente aos modelos físicos construídos na elaboração de uma representação
um importante papel na comunicação entre os cientistas (JANIK, 2002, p. 8).
Eis
aqui, segundo Janik, uma distinção fundamental entre os pensamentos dos dois
cientistas:
Embora dificilmente se possa dizer que Mach fosse contrário à idéia de que
modelos são constructos, sua concentração no apuro empírico e na simplicidade
arquitetural
o levou a negligenciar a significação do elemento teleológico na
elaboração de modelos. Embora Hertz fosse tão sensível quanto Mach às demandas
da precisão empírica e da coerência lógica, ele se mostrava inflexível ao insistir
que a característica crucial dos modelos da realidade física é que, ao construí-
los,
‘nossa exigência de simplicidade não se aplica à natureza, mas aos modelos que
dela formamos’
(2002, p. 8).
Na perspectiva de Janik, o apego de Mach ao princípio da economia o levou à concepção de
que os modelos científicos devem, em última análise, reduzir-se a modelos matemáticos
‘simplicidade arquitetural’ cuja fecundidade é limitada: sua origem e aplicações devem sempre
remeter
-se à experiência sensível. Em Hertz, além da correção empírica e da coerência lógica, os
modelos científicos devem, também, apresentar um caráter pragmático (JANIK, 2002, p.6): eles
32
Apesar de extrapolarem os limites deste trabalho, considero importante citar pesquisas relativas ao ensino de física
que corroboram essa afirmação de Janik. Como exemplo, cito as entrevistas realizadas por Stoklmayer e Treagust com
alunos dos ensinos médio e técnico, professores do ensino médio e especialistas que trabalham com eletricidade em
aplicações práticas ou em pesquisas científicas (engenheiros, físicos, etc.) sobre o comportamento e a natureza da
corrente elétrica. Os resultados indicam que os diferentes grupos investigados adotam diferentes modos de
representação para os problemas em questão. Sobre o assunto, ver STOCKLMAYER, S. M. e TREAGUST, D. F.,
Images of eletricity: how do novices and experts model electric current? In: International Journal of Science Education,
v. 18, n. 2, pp. 163
-
17
8, 1996.
71
têm que se mostrar eficientes para comunicar a idéia que representam e adequados aos problemas
surgidos na prática científica (
Ibidem
, p. 8). O primeiro desses dois últimos aspectos da concepção
hertziana de modelo físico, parece confirmar o ponto de vista de Helmholtz
33
o qual interpretava a
postura de Hertz como um alinhamento com a tendência dos físicos britânicos de utilização de
modelos
físicos como forma de “visualizar” o formalismo matemático nas teorias científicas. O
segundo deles, mais uma vez, aponta, inevitavelmente, para a preocupação de Hertz com o
problema das interações eletromagnéticas mediatizadas e suas possíveis implicações para o estudo
de outros tipos de interações (por exemplo, as interações gravitacionais à distância).
34
Mas, o que dizer, então, sobre as críticas de Hertz aos conceitos de eletricidade e polarização
constantes na retórica da teoria eletromagnética de Maxwell (ABRANTES, 1992, p. 355) ou à idéia
de força, conceito fundamental da mecânica newtoniana? Mais do que isso, o que dizer da
insistência de Hertz em tentar eliminar tais conceitos por meio de reconstruções axiomáticas das
teorias que os continham? Segundo Janik, Hertz atribuía valor à retórica científica sem perder de
vista os possíveis problemas de interpretação que poderiam ser provocados pela inclusão de
elementos obscuros ou auto-contraditórios nos modelos físicos (2002, pp. 6-7). Ainda de acordo
com
este autor, Hertz propõe enfrentar o problema da mesma maneira em que ele foi criado:
“criando modelos alternativos que renunciem às características não essenciais que incluímos
nestes modelos e que se tornaram embaraçosas para nós”
(JANIK, 2002, p. 9). A
ssim...
... o modo pelo qual Hertz lida com os problemas metafísicos que surgem no curso
do desenvolvimento de uma teoria científica exige, literalmente, uma representação
(matemática) de nossas teorias, de maneira a sermos capazes de distinguir,
rigorosam
ente, aqueles elementos no modelo (
Bild
) que derivam da necessidade
lógica e aqueles que se referem à evidência empírica, daqueles que nele inserimos
arbitrariamente com vistas à efetividade retórica. Na verdade, a ênfase de Hertz em
purgar nossos modelos de inconsistências assemelha-se muito à análise lógica (i.e.,
a componente matemática
na elaboração de modelos)
(JANIK, 2002, p. 9).
De fato, a interpretação de Janik exposta na citação acima encontra confirmação nas
palavras do próprio Hertz:
Como forma de dar expressão ao meu desejo de provar a pureza lógica do sistema
[hertziano da mecânica] em todos os seus detalhes, eu moldei a representação na
velha forma sintética. Por isso, a forma utilizada tem o mérito de nos compelir a
33
“Hertz parece ter depositado confiança na introdução de sistemas cíclicos providos de movimentos ocultos.”
“Físicos ingleses por exemplo, Lord Kelvin em sua teoria dos vórtices atômicos e Maxwell, em sua teoria de células
com elementos rotacio
nais, em que ele baseia sua tentativa de uma explicação mecânica dos processos eletromagnéticos
obtiveram maior satisfação de tais explicações do que da simples representação dos fatos e leis físicas na forma mais
geral, dada por sistemas de equações diferenciais. Quanto a mim, devo admitir ter aderido a esse último modo de
representação, tendo me sentido seguro ao fazê-lo; apesar disso, não levanto nenhuma objeção contra um método
adotado por três físicos tão eminentes” (HELMHOLTZ, 1956, prefácio).
34
Numa análise superficial, poder-
se
-ia dizer que a filiação de Mach à tradição filosófica inglesa o conduziu à
fenomenologia que caracterizava a física germânica; o kantiano Hertz, por sua vez, demonstrou certa afinidade com o
estilo de pensamento dos físicos
britânicos.
72
especificar, de antemão, definitivamente, mesmo que monotonamente, o valor
lógico que se pretende dar a todo enunciado importante. Isto torna impossível a
utilização das reservas e ambigüidades convenientes para as quais somos atraídos
pela riqueza de combinações do discurso ordinário
(1956, p. 35).
Por menos evidente que possa parecer, a abordagem lógico-matemática proposta e
empreendida por Hertz para a análise das teorias científicas afasta-o, mais uma vez, de Mach. Para
Mach, a identificação dos elementos supérfluos e/ou metafísicos em uma representação científica
deveria ser feita de “fora para dentropor meio de uma crítica histórica (JANIK e TOULMIN,
1996, p. 141). Na proposta filosófico-metodológica de Hertz, ao contrário, a coerência entre os
conceitos e princípios fundamentais de uma representação, assim como os limites de sua aplicação,
são estabelecidos internamente a partir de modelos matemáticos. Os modelos matemáticos ou
sistemas de equações não são para Hertz um fim como defendia Mach mas um meio para se
obter
representações científicas conceitualmente claras (JANIK, 2002, pp. 9
-
10).
Como foi dito, no desenvolvimento do conteúdo físico de The principles of Mechanics
Hertz
substitui o conceito de força por um modelo que pressupõe vínculos geométricos entre as
massas dos sistemas estudados:
§109. uma conexão entre uma série de pontos materiais quando, a partir do
conhecimento de alguns dos componentes dos deslocamentos daqueles pontos,
somos capazes de enunciar algo sobre os componentes remanescentes (HERTZ,
1956, p. 78).
§110. Quando existem conexões entre os pontos de um sistema, alguns dos
deslocamentos concebíveis do sistema são desconsiderados, especialmente aqueles
deslocamentos do sistema cuja ocorrência pudesse contrariar o enunciado anterior.
Recipro
camente, toda afirmação de que alguns dos deslocamentos concebíveis do
sistema estão excluídos de consideração, implica numa conexão entre os pontos do
sistema. As conexões entre os pontos de um sistema são completamente dadas
quando para todo deslocamento concebível do sistema é sabido se ele está ou não
excluído de nossa consideração
(
Ibidem
).
Os conceitos fundamentais da representação da mecânica de Hertz
tempo
,
espaço
e
massa
são definidos, no Livro I, com base ‘nas leis de nossa intuição interna’ e, no Livro II, como
‘símbolos de objetos de nossa experiência externa’. A definição de
massa
no Livro II é estabelecida
do seguinte modo:
§300.
Regra 3. A massa dos corpos que podemos tocar é determinada por
pesagem. A unidade de massa é a massa de algum corpo estabelecida por
convenção arbitrária
.
A massa de um corpo tangível, como determinado por esta regra, possui as
propriedades atribuídas à massa idealmente definida 4).
35
Ou seja, ela pode ser
concebida como dividida em um número qualquer de parte
s iguais, sendo cada uma
delas indestrutível e imutável e capaz de ser empregada como uma marca de
referência, sem ambigüidade, de um ponto no espaço em um certo instante para
35
Ver HERTZ, 1956, p. 46.
73
outro ponto no espaço em qualquer outro instante (§ 3).
36
A regra é, além disso,
determinada e única quando se considera corpos tangíveis, apesar das incertezas
que o podemos eliminar de nossa experiência real passada ou futura (HERTZ,
1956, p
p
. 140
-
141
).
Definidas a bases de seu modelo matemático e de suas concepções fundamentais, Hertz
sente
-
se livre para incluir em sua representação uma hipótese cujos limites devem ser coerentes com
as definições, regras e relações estabelecidas criteriosamente:
§301.
Acréscimo à Regra 3. Admitimos o pressuposto que, em adição aos corpos
que podemos tocar, existem outros corpos os quais não podem ser tocados,
movidos, nem colocados em uma balança, e para os quais a Regra 3 não é
aplicável. A
s
massa
s
de tais corpos apenas podem
ser determinadas por hipótese.
Em tal hipótese, temos a liberdade de atribuir a estas massas apenas aquelas
propriedades que são consistentes com as propriedades da massa idealmente
definida
(HERTZ, 1956, p. 141).
Na representação hertziana da mecânica o pressuposto isomorfismo entre pensamento e
natureza garante, portanto, a
permissibilidade
das imagens. A
correção
da representação i.e., a
conformidade com ‘experiências possíveis e, em particular, futuras’ (HERTZ, 1956, p. 139) é
garantida pela Lei Fundamental,
37
a qual estabelece as relações entre os conceitos fundamen
tais
espaço
, tempo
e
massa
. Satisfeitos estes dois critérios, a representação de Hertz da mecânica é
desenvolvida matematicamente ‘por meio de puro raciocínio dedutivo’ (HERTZ, 1956, p. 4), a
partir de um modelo que subentende a existência de conexões geométricas entre as massas. Este
modelo de conexões geométricas fornece à representação pelo menos um aspecto de sua
adequação
: o aspecto retórico. Ou, como define Janik, o modelo mecânico de Hertz torna sua
representação
‘comunicativamente
adequada ou efet
iva’
(JANIK, 2002, p. 8), principalmente por
não conter em sua construção conceitos obscuros ou contraditórios, tais como força ou energia.
Mas a
adequação
do modelo de Hertz também se mostra em um outro sentido. Ele é
adequado para o estudo de um problema que, pelo menos para Hertz e parte da comunidade
científica, era premente naquele momento: o problema das ações mediatizadas, que voltou a chamar
a atenção a partir das pesquisas nos domínios do eletromagnetismo. Sobre esta questão, Hertz
sem
citar Maxwell, mas referindo-se provavelmente ao cientista britânico declara: ... é prematuro
tentar basear as equações do movimento do éter nas leis da mecânica até que tenhamos obtido um
acordo sobre o que se entende por este nome” (1956, p. 1). A representação de Hertz, no entanto,
oferece uma alternativa para um modelo de éter embora isso não seja admitido claramente pelo
cientista em The Principles of Mechanics que guarda as características e os princípios físicos e
geométricos do modelo estabelecido par
a as massas tangíveis. Desta forma,
“não temos que temer a
36
Ibidem
, pp. 45
-
46.
37
Ver Capítulo II deste trabalho ou HERTZ, 1956, p. 144.
74
objeção de que, ao construir uma ciência dependente da experiência, tenhamos extrapolado o
mundo da experiência” (HERTZ, 1956, p. 30). Em termos kantianos, “toda a mecânica é
representada dentro dos limites (Grenzen) do empírico, mas não dentro das fronteiras (Schranken)
do empiricamente dado”
(JANIK, 2002, p. 11).
Mas, o critério de
adequação
de uma representação requer, também, simplicidade e, de
acordo com o próprio Hertz, sua representação da mecânica é análoga a uma
‘gramática
sistemática’
, não sendo, portanto, simples ou adequada para os não iniciados, nem apropriada para
aplicações práticas. Quais, então, os méritos da mecânica de Hertz, medidos a partir de seus
próprios critérios? Primeiramente, ela evidencia ‘nossa capacidade de obter a clarificação
conceitual das teorias físicas com base em apresentações alternativas de nossas teorias’ (JANIK,
2002, p. 9). Em segundo lugar – e, talvez, este seja o maior mérito da proposta hertziana ela la
nça
as bases para um programa de pesquisa: ‘... a situação muda a favor da terceira imagem [a
representação de Hertz] assim que um conhecimento mais refinado nos mostrar que a suposição de
que as forças invariáveis à distância fornecem apenas uma primeira aproximação da verdade’
(HERTZ, 1956, p. 41). Uma segunda aproximação da verdade, segundo Hertz, implicaria em
associar as supostas ações à distância ao movimento de minúsculas partículas no éter, como vinha
sendo feito no estudo dos fenômenos eletromagnéticos. A representação da mecânica elaborada por
Hertz oferece
adequação
e
simplicidade
para a abordagem deste problema. Mais do que isso, Hertz
estava consciente do valor heurístico de sua representação:
§596. 3. O problema que um sistema com massas ocultas oferece para a
consideração da mecânica é o seguinte: – Predeterminar os movimentos das massas
visíveis do sistema, ou as mudanças de suas coordenadas visíveis, não obstante
nossa ignorância sobre
as posições das massas ocultas
(HERTZ, 1956, p. 224).
Talvez fosse mais apropriado afirmar que Hertz estava confiante no valor heurístico das
massas e movimentos ocultos hipotéticos incluídos em sua representação, embora não tenha sido
capaz
ou não tenha tido tempo
de demonstrar, em
The Principles of Mecha
nics
, as aplicações de
sua hipótese.
38
Sobre isso, Helmholtz comenta:
Infelizmente ele [Hertz] não deu exemplos que ilustrassem a suposta maneira pela
qual tal mecanismo hipotético deveria atuar; a explicação nesses termos, mesmo
dos casos mais simples de forças físicas, demandaria, claramente, muita intuição
científica e capacidade imaginativa. Neste sentido, Hertz parece ter depositado
bastante confiança na introdução de sistemas cíclicos com movimentos invisíveis
(1956, prefácio).
38
Hertz dedica parte do Capítulo V de The Principles of Mechanics (§601 a §658, pp. 225-249) à formalização
matemática de um caso especial de sistemas cíclicos conservativos contendo massas ocultas. Sobre os sistemas não-
conservativos o autor tece apenas alguns comentários, deixando o problema em aberto (pp. 250
-
252).
75
D’Agostino (2007, p. 220) enfatiza a influência de Helmholtz e, assim como os demais
comentadores, dos trabalhos experimental e teórico de Hertz nos domínios do eletromagnetismo
como fatores decisivos na definição da concepção de teoria científica do cientista alemão. Para est
e
autor, a filosofia da ciência de Hertz exposta e aplicada em The Principles of Mechanics representa
uma retomada do paralelismo da legalidade proposto por Helmholtz: as asserções decorrentes das
representações científicas devem ser confirmadas pelas observações experimentais e vice-
versa.
39
No entanto, Hertz está ciente de que o referido paralelismo não garante univocidade entre
representação e observação e tende a optar, a partir das suas pesquisas que resultaram no
estabelecimento das ondas eletromagnéticas, pela teoria que apresenta maior capacidade heurística
– no caso em questão, a teoria de Maxwell –, mesmo que a teoria escolhida se apoiasse em
elementos não-observáveis. Aliás, Hertz considerava que o emprego de elementos hipotéticos não
era privilégio da relativamente jovem ciência do eletromagnetismo. Também a mecânica vinha,
tempos, fazendo uso de ‘entidades ocultas’ (“entità nascoste”) ao incluir, por exemplo, em sua
representação tradicional (o modelo newtoniano), o conceito de força:
O peso de uma pedra e a força exercida pelo braço aparentam ser tão reais e
prontamente e diretamente perceptíveis quanto os movimentos por elas produzidos.
Mas o mesmo não pode ser dito quando nos voltamos para os movimentos das
estrelas. Aqui as forças nunca foram objetos da percepção direta; todas as nossas
experiências prévias referem-se apenas às posições aparentes das e
strelas
(HERTZ,
1956, p. 12).
Sob o ponto de vista de Hertz, a extensão, por hipótese, do conceito de força estabelecido a
partir de nossa experiência sensível ao estudo de situações em que as forças não podem ser
diretamente percebidas, não é metodologicamente problemática:
Mas mesmo que as forças tenham sido apenas introduzidas por nós na natureza,
não devemos, por isso, considerar sua intro
duç
ão como inadequada. Estamos
convencidos, desde o princípio, de que relações supérfluas não podem ser
totalme
nte evitadas em nossas imagens
(HERTZ, 1956, p. 12).
Para o cientista, o que se afigurava como problemático era o próprio conceito de força e s
uas
aplicações. Dsua opção por uma representação da mecânica baseada em vínculos geométricos
entre as massas dos sistemas naturais estudados – imagens das conseqüências necessárias das
mudanças de posição dessas massas – em detrimento do conceito de força. As massas e os
movimentos ocultos
‘invisíveis’
hipoteticamente conformados pelas características das conexões
39
D’Agostino utiliza o seguinte exemplo: “Se na teoria de uma nossa representação associamos corrente elétrica e
campo magnético, também à nossa observação experimental da corrente deve-se seguir a medida de um campo
magnético” (2007, p. 217
-
218).
76
rígidas, exercem uma função complementar na obtenção de uma representação ‘bem modelada,
completa e em conformidade com a lei’
40
(HERTZ, 1956,
p. 25).
Das reflexões de Hertz sobre a relação entre teoria e experiência durante seus trabalhos
experimental e teórico nos domínios do eletromagnetismo
que acabaram por aguçar sua percepção
crítica do papel de determinados conceitos (força, energia) nas representações tradicionais da
mecânica
até a proposta de cunho filosófico-metodológico apresentada pelo cientista em
The
Principles of Mechanics, surge uma nova concepção de teoria científica, assim sintetizada por
D’Agostino:
Daqui a exigência de uma nova codificação da relação entre ente teórico e
observável, em que, além da grandeza observável, é necessário postular “massas
ocultas” que não são entidades observáveis e que, entram, assim, diretamente na
“ciência empírica de Hertz”. Os termos teóricos não são mais vinculados com uma
relação de termo a termo à entidade observável, e a teoria adquire, de imediato,
uma certa liberdade com respeito à observação, que se traduz em sua maior
potência (2007, p. 218
).
A interpretação de D’Agostino se aproxima bastante da de Cassirer, o qual considera que a
representação da mecânica de Hertz, além de ‘muito audaciosa’, transcende os problemas
intrínsecos tratados em The Principles of Mechanics e acaba por conceder um novo sentido ao
problema da função de uma teoria científica (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 133). Cassirer toma
como ponto de partida para compreensão do pensamento hertziano as Investigações sobre a
propagação da força elétrica’ (Electric Waves), ressaltando, porém, as implicações desta obra para
a
polêmica
posta em relevância desde, pelo menos, a época de Newton
41
sobre a natureza da luz.
Alguns contemporâneos de Hertz acreditavam que os resultados de sua pesquisa com as ondas
eletromagnéticas haviam levado a termo tal polêmica.
42
No entanto, segundo Cassirer, poder-
se
-
ia
argumentar que a identificação dos fenômenos luminosos com a propagação de ondas
eletromagnéticas não revelava absolutamente nada sobre a “natureza” da luz: não se fazia mais do
que substituir um enigma pelo outro, que a natureza dos fenômenos eletromagnéticos não é nem
um pouco mais clara do que a dos fenômenos óticos” (vol. IV, 1986, p. 129). Segundo este autor,
Hertz estava consciente disto e, ao optar pela teoria de Maxwell, ele não estaria preocupado com a
“verdade” ou “falsidade” ontológica dos modelos construídos pelo físico britânico, mas sim, com a
40
controvérsias quanto ao que Hertz tinha em mente quando atribui à sua hipótese de entidades ocultas o papel de
complementar a ‘conformidade com a lei’ de sua representação. Abrantes (1992, pp. 365-366) identifica a posição de
Hertz expressa nessa passagem com o
realismo,
‘embora em nenhum momento
[Hertz]
afirme que as entidades
post
uladas “existem realmente” no mundo’. Por outro lado, D’Agostino (2007, p. 220) sugere que Hertz, ao fazer tal
afirmação, estaria se referindo ao paralelismo da legalidade de Helmholtz e não estabelecendo um caráter ontológico
para tais entidades (ao citar o trecho em questão, este autor coloca entre parênteses, ao lado da palavra
legge
(lei), o
termo
regolare
, ou seja, regular, regulamentar, ajustar).
41
Sobre o assunto, ver, por exemplo, VALADARES, E. C.,
Newton
A órbita da Terra em um copo d’água. Odyss
eus
Editora: São Paulo, 2003.
42
Sobre o assunto, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio ou o Capítulo I deste trabalho.
77
fecundidade da referida teoria como um todo (
Ibidem
). Também para Cassirer, este é o caráter
distintivo do pensamento de Hertz em relação a alguns de seus mais destacados co
ntemporâneos.
Para Mach, como foi dito repetidas vezes, o valor de uma teoria deveria ser medido pela
sua capacidade de adaptação aos fatos, ou seja, ao que nos é acessível pelos sentidos. As teses ou
proposições gerais em uma teoria científica têm a função estrita de dar expressão a conjuntos de
fatos individuais. Conceitos e princípios gerais são recursos mnemotécnicos que
‘permitem agrupar
sob um mesmo signo de linguagem coisas distintas e diversas, que se propõe a reproduzi-las com
maior facilidade’
(CASSIRER, vol. IV, 1986, pp. 130
-
131). Hertz, no entanto,
Estava absolutamente seguro de que nem todo
componente
de uma teoria é
suscetível de semelhante realização ou tenha necessitado dela, e crê que esta
somente pode ser exigida e obtida em relação ao
conjunto
, ou seja, em relação a
um
sistema
de proposições teóricas. Com ele se atribui à
atividade
do pensamento
uma significação completamente distinta e se lhe concede uma margem muito mais
livre do que ocorria com a teoria sensualista de Mach, em que uma determinada
“idéia”
podia
creditar seus títulos de legitimidade e validez à condição de que
víssemos nela a cóp
ia de determinadas “impressões”
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p.
131).
De acordo com os preceitos da fenomenologia, a fecundidade de uma teoria física residiria
na sua capacidade de reprodução dos fatos de forma simples e econômica, evitando-
se
interpretações ontológicas ou mesmo hipóteses sobre uma natureza
que
‘não tem senão uma
existência própria
(MACH, 1960, p.
580).
Mas, segundo Cassirer,
se assim deve ser, a teoria física
na forma concebida pelos fenomenologistas vinha cumprindo muito mal a sua missão:
Com efeito, já em suas proposições iniciais nós a vemos não alijar-se daqueles
fatos, como também projetar sua perspectiva sobre algo que “jamais nem em parte
alguma poderia ocorrer”. A lei da inércia trata de descrever o movimento de um
corpo sobre o qual não atua nenhuma força exterior, e a hipótese de que semelhante
caso nunca tenha se dado na natureza é, por si só, absurda
(vol. IV, 1
986, p. 134).
43
43
Obviamente que Mach não concordaria com a interpretação de Cassirer. Para o cientista, princípios gerais derivados
de situações “ideais” – como a lei da inércia – são o resultado de ‘experimentos mentais’ conformados por experiências
físicas. Em The Science of Mechanics, Mach cita, como exemplo, os trabalhos de Stevin sobre equilíbrio estático: “Se é
um fato, para o nosso instinto mecânico, que uma corrente pesada sem fim [fechada] não apresentará rotação [quando
apoiada em um plano inclinado], então, os casos individuais simples de equilíbrio sobre um plano inclinado, os quais
Stevin estudou e que são prontamente controlados quantitativamente, podem ser considerados como uma grande
quantidade de experiências particulares. Por isso, não é essencial que os experimentos tenham sido realmente
executados, se o resultado está acima de qualquer dúvida. De fato, Stevin experimenta mentalmente. O resultado de
Stevin poderia, na realidade, ser deduzido dos correspondentes experimentos físicos, com o atrito reduzido ao mínimo.
De maneira análoga, as considerações de Arquimedes com respeito à alavanca devem ser consideradas devem ser
concebidos como similares ao modo de proceder de Galileu. Se os diversos experimentos mentais tivessem sido
executados fisicamente, a dependência linear entre o momento estático e a distância do peso em relação ao eixo poderia
ser deduzida com perfeito rigor. Teríamos ainda muitos casos exemplares, entre os mais importantes pesquisadores nos
domínios da mecânica, desta tentativa de adaptação de concepções quantitativas particulares a impressões instintivas
gerais” (MACH, 1960, p. 38). Cassirer, no entanto, considera
‘extraordinariam
ente duvidosa’ a legitimidade de se
experimentar com o pensamento, se a fenomenologia machiana é tomada ao pé da letra (CASSIRER, vol. IV, 1986, pp.
134
-
135).
78
Além do mais, a física do século XIX caracteriza-se por ser uma “física de princípios”
princípio de Carnot, princípio da conservação da energia, princípio de mínima ação, etc. os quais
pressupõem uma generalidade temporal e espacial que não pode ser obtida da experiência, mas
serve como
‘pauta’
para elas (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 137).
Ao contrário dos fenomenistas, Hertz percebe que as imagens que formamos da natureza são
inevitavelmente afetadas pelas características do modo pelo qual nossas mentes formam as
representações (HERTZ, 1956, p. 2) e propõe que tiremos proveito disso. Segundo Cassirer, a
concepção do conhecimento de Mach subentende que ‘a necessidade de se pensar em conceitos
gerais e em leis’ representa mais uma debilidade do ‘espírito humano’ do que propriamente uma
virtude sua (vol. IV, 1986, p. 134). Hertz, por outro lado, defende que, na construção de
representações científicas, não devemos abrir mão de uma teoria sobre a natureza (CASSIRER, vol.
IV, 1986, p. 135),
de uma visão de mundo físico: Newton concebeu um mundo mecânico em que os
objetos interagiam por meio de forças à distância; Maxwell preencheu as “distâncias” entre os
objetos da natureza com um éter que transmitia tais interações; Hertz modelou um éter ge
ométrico
oculto de nossas percepções à imagem e semelhança das imagens das conseqüências necessárias na
natureza das coisas observadas’. É claro que, tanto as diversas teorias sobre a natureza quanto as
representações construídas a partir delas devem, além de obedecer ao isomorfismo pressuposto por Hertz,
conduzir em suas conseqüências a resultados consonantes com a experiência (CASSIRER, vol. IV, 1986,
p. 135). Hertz, então, realiza um deslocamento de prioridade em relação à doutrina fenomenológica:
na filosofia da ciência hertziana as representações não estão obrigadas, em sua origem, a uma
fidelidade empírica estreita e passiva, mas devem oferecer, em troca da maior liberdade em sua
concepção, maior adequação e fecundidade empírica.
O pensamento de Hertz explicita ‘a espontaneidade inerente à criação de toda teoria’
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 135), as quais corresponderiam ‘à atividade de uma verdadeira
imaginação científica’ (ABRANTES, 1992, p. 358). Se assim for, a filosofia da ciência de Hertz
esta
ria, em oposição à concepção biológica ou psicofísica de Mach, realocando o papel do intelecto
humano na atividade científica e conteria, também nesse aspecto, características herdadas da
filosofia de Kant, pelo menos na interpretação que Burtt faz desta ú
ltima:
“uma tentativa pertinaz
de devolver ao homem e a seus elevados anseios espirituais um lugar de importância no esquema
cósmico”
(1983, p. 18). No entanto, segundo Cassirer (vol. IV, 1986, pp. 127-128), não se pode
deixar de considerar as propostas epistemológicas que apontavam para um rompimento com o
‘estreito esquema sensualista’ da fenomenologia machiana, como uma resposta a algumas novas (e
outras não tão novas) demandas empíricas da física no final do século XIX e início do século XX,
como, por exemplo, aquelas que se relacionam à teoria cinética dos gases de Boltzmann, as
79
investigações sobre o movimento browniano, a prova do caráter atômico da eletricidade por
Helmholtz, a descoberta do fenômeno da interferência por Laues e, obviamente, no caso de Hertz,
as pesquisas experimentais dos fenômenos eletromagnéticos.
Os comentadores da obra de Hertz até aqui citados destacam, de forma conclusiva e, às
vezes, amesmo ufana, os aspectos originais e distintivos do pensamento hertziano em relação ao
con
texto científico de sua época. Entretanto, as referências elogiosas de Hertz aos trabalhos de
Mach e Kirchhoff em The Principles of Mechanic
s,
associadas a algumas de suas próprias idéias,
levaram alguns estudiosos, como foi dito, a identificar a postura do cientista em relação à teoria
científica com uma filiação a diferentes correntes de pensamento. De acordo com Abrantes (1992,
p. 358), Van Fraassen
44
e Elkana
45
identificam a concepção de Hertz de que nada podemos afirmar
sobre as coisas da natureza além do que nos é dado pelo pressuposto isomorfismo entre pensamento
e natureza, com ‘um ceticismo de corte claramente empirista ou fenomenista, em contraposição ao
realismo (que, no século XIX, tinha os atomistas como principais representantes)’; a premissa
de
que
‘a antecipação de eventos
fut
u
ros’
(HERTZ, 1956, p.1) constitui
-se no principal problema a ser
resolvido pelo conhecimento científico, alinharia Hertz aos instrumentalistas; para Mary Hesse
46
,
“Hertz (...) retorna à visão positivista do início do século XIX... [ao defender que]... o significado
essencial de uma teoria científica esgota-se em seu conteúdo testável” (HESSE, 1970, pp. 214-
215
apud
ABRANTES, 1992, p. 358). O próprio Abrantes sugere que Hertz
‘aproxima
-se bastante do
realismo’
(1992, pp. 3
65
-366) ao propor que a inclusão de massas ocultas em movimento na sua
representação da mecânica tinha por objetivo a obtenção ‘de uma imagem de universo’ que fosse
‘bem acabada, completa e conforme a lei... ’
(HERTZ, 1956, p. 25).
47
Certamente que Hertz abordava as questões da ciência a partir de sua visão de mundo físico,
e que, durante o processo de elaboração dessa visão, esteve exposto aos ‘programas ou tradições
filosóficas e científicas’ (ROSSI, 1992, p. 123) acima citados. Entretanto, os aspectos fu
ndamentais
de sua filosofia da ciência exibem-se com maior clareza e coerência quando sua análise se fixa no
instrumental kantiano de que Hertz lançou mão. Assim, no sentido de evitar qualquer tipo de
interpretação ontológica, Hertz utiliza-se das idéias d
e
imagem
e
representação
. Os
conceitos
científicos básicos são considerados como um sistema de ‘possíveis seqüências de eventos
observados
(JANIK e TOULMIN, 1996, p. 143). Os critérios estabelecidos por Hertz para a
análise das teorias científicas vão ao encontro de uma das ambições de Kant, ao permitirem que o
44
VAN FRAASSEN, B. C.,
The Scientific Image
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45
ELKANA, Y., Boltzmann’s Scientific Research Program and its Alternatives.
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between Science and Philosophy
. New Jersey: Humanities, 1974.
46
HESSE, M.,
Forces and Fields
. Westport: Greenwood, 1970.
47
Uma outra interpretação desta afirmação de Hertz, em contraposição à interpretação de Abrantes é apresentada na
nota 40, deste Capítulo.
80
alcance de uma representação teórica seja estabelecido de dentro da própria teoria, com base na
concepção de que as questões metafísicas referem-
se ao que não se pode conhecer (
“unknowable”
),
por estarem assentadas nas fronteiras da razão ou além delas (
Ibidem,
pp.
145
-
146).
As
especulações
a priori de Hertz ‘funcionam como axiomas fundamentais de um sistema de axiomas’
(COHEN, 1956: Ensaio Introdutório).
Abrantes reconhece que o neokantismo de Hertz o faz, efetivamente, acreditar num
isomorfismo entre a seqüência de nossos pensamentos e a seqüência de eventos do mundo’
(1992,
p. 358). Ressalva, porém
pensando, possivelmente no aparato conceitual elaborado por Mach para
sustentar sua teoria do con
hecimento
–, que
Hertz
não avança qualquer explicação para esta
conformidade’
(ABRANTES, 1992, p. 357). É possível, no entanto, que Hertz tenha se apoiado na
autoridade de Helmholtz, para quem a doutrina kantiana havia encontrado confirmação nas
pesquisas
sobre a fisiologia dos sentidos:
Investigações sobre a fisiologia dos sentidos, as quais foram particularmente
completadas e criticamente testadas por Johannes Müller e, em seguida,
sintetizadas por ele na lei das energias específicas dos nervos sensoriais
,
trouxeram a total confirmação [da doutrina de Kant] a um grau
inesperado”
(HELMHOLTZ
apud
D’AGOSTINO, 2004, p. 375).
Por outro lado,
as especulações
a priori
de Hertz são o ponto de partida para a construção de
modelos matemáticos ou de uma ‘teoria de modelos’ cujos limites de aplicabilidade lhe são
inerentes:
Os modelos de Hertz, cuja própria estrutura prescreve sua esfera de aplicação,
marcam um grande avanço sobre o aparato conceitual básico utilizado por Mach
ou seja, símbolos que são “cópias” ou “nomes” de experiências sensíveis reais
porque seu fundamento não é psicológico ou descritivo, mas lógico-
matemático.
Assim, partindo do princípio da economia de pensamento do próprio Mach, essas
estruturas preenchem a função de capacitar o cientista a “antecipar a experiência”
de maneira muito mais eficiente do que haviam feito as descrições de Mach. De
fato, pode-se argumentar que uma crítica histórica como a realizada por Mach seja
uma “gramática” propedêutica para a representação sistemática das leis da
mecânica, assim como Hertz a concebeu. Ela estabelece historicamente que
diferentes sistemas da mecânica explicaram os mesmos fenômenos e, além disso,
que nenhum sistema em particular tem qualquer prioridade, exceto aquele derivado
da economia de sua apresentação. Todavia, o sistema que permite ao cientista
antecipar experiências permanece sendo, de longe, o mais eficiente, especialmente
quando ele, simultaneamente, evita tantas ciladas filosóficas quanto o faz o sistema
de Hertz
(JANIK e TOULMIN, 1996,
p. 142).
Mas, alerta Cassirer, a utilização dos termos
símbolo
,
imagem
ou
representação
, na forma
em que Hertz os concebe, traz à tona uma antiga dificuldade: “como estas ‘imagens aparentes’
podem nos aproximar da verdade, como é possível que, com base nelas, não podemos agrupar
as experiências presentes, mas também formular perdições exatas sobre coisas futuras”?
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 141). É o problema da indução que, nesse caso, pode ser evitado
81
se aceitarmos, com Hertz, que a pressuposição de um isomorfismo entre pensamento e natureza nos
é permitida pela experiência previamente acumulada, a qual ‘nos ensina que este requisito pode ser
satisfeito e que, por conseguinte, uma tal conformidade existe de fato’ (1956, p.1). Porém, tal
argument
o apresenta um caráter circular: o isomorfismo deriva da experiência ao mesmo tempo em
que é utilizado como ‘premissa necessária para a validade de toda conclusão indutiva’
(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 141). No entanto, o problema pode ser minimizado
48
quando se
considera que das
‘pré
-
figurações’
(ordenação das imagens) de Hertz se deve exigir que
correspondam a ‘possíveis seqüências de eventos observados’. As estruturas dos símbolos, em
Hertz, não firmam um compromisso com a “
realidade
”, não têm a pretensão de reproduzir as
estruturas dos objetos (
Ibidem
). A proposição de modelos possibilita a elaboração da formulação
matemática das teorias, as quais devem cumprir uma função heurística:
... o papel primário de muitos símbolos ocorrendo em teorias é o de facilitar a
formulação da teoria com grande generalidade, possibilitando transformações
lógicas e matemáticas de maneira relativamente simples, ou de servir como
recursos heurísticos para a aplicação estendida da teoria (NAGEL
apud
ABRANTES, 1992, p.352).
Sob o ponto de vista de Abrantes, a proposta filosófico-metodológica de Hertz resulta numa
concepção de estrutura da teoria científica muito próxima das concepções contemporâneas, segundo
as quais os cálculos são interpretados através de regras de correspondência (1992, pp. 362-363). De
acordo com esta perspectiva, uma teoria apresenta duas componentes distintas: uma delas
correspondente ao formalismo matemático,
‘desprovido de qualquer sentido empírico’
; a correlação
entre as fórmulas matemáticas e os fenômenos observáveis é estabelecida por meio de regras de
correspondência
49
(OSTERMAN, F e PRADO, S. D., 2005, p. 194).
48
D’Agostino classifica a Bild conception de Helmholtz e Hertz como francamente anti-indutivista. Sobre o assunto,
ver (D’AGOSTINO, 2004, p. 372).
49
Como este não é um tema central neste trabalho, recorremos, à guisa de esclarecimento, ao trabalho de Michel Paty:
“A questão da interpretação das teorias, de seus formalismos e de seus enunciados obteve variadas respostas, tanto da
parte dos filósofos das ciências, no que diz respeito ao problema geralmente considerado, como dos cientistas
confrontados à interpretação de uma teoria específica, como, por exemplo, em física, a mecânica quântica. Notaremos,
todavia, que o problema da interpretação se coloca em diferentes níveis, e em diferentes
momentos
da imbricação dos
elementos da estrutura teórica.
É o que gostaríamos de precisar agora.
“Quando Schlick caracteriza, em seu livro AlJgemeine Erkenntnislehre, os elementos da estrutura de uma teoria
(representação si
mbólica
de uma ciência da natureza) como sendo os axiomas, as proposições derivadas e as definições,
aliás impossíveis de se distinguir umas das
outras, ele inaugura uma concepção que justapõe o formalismo e o conteúdo,
a sintaxe e a semântica, tanto para os elementos que entram na constituição do formalismo como para as proposições
que dele se inferem.
Segundo essa concepção, a significação não faz parte da representação
simbólica considerada em si
mesma, e deve ser acrescentada à formulação de um enunciado: ‘os enunciados não interpretados são apenas regras
gramaticais’
.
É
nesse sentido que a teoria é uma estrutura formal
interpretada.
“Nessa linha, o positivismo lógico e a filosofia analítica adotaram a tese da interpretação parcial, segundo a qual a
teo
ria consiste em um formalismo abstrato (F) e em um conjunto de regras de correspondência
ou
definições de
coordenação (R), que unem os termos presentes no primeiro aos fenômenos e dados de experiência. A questão que se
coloca é saber se esse conjunto por si constitui uma teoria sica ou se é preciso
acrescentar
-lhe outros elementos de
interpretação de natureza diferente (por exemplo, para fazer dele uma teoria explicativa ou preditiva). Para
a
82
De fato, no intuito de atribuir ‘conteúdo semântico’ (ABRANTES, 1992, p. 363)
50
ao
formalismo matemático de sua representação, Hertz, no Capítulo I do Livro II de The Principles of
Mechanics
, insere três regras em que estabelece as características do
espaço
, do
tempo
e da
massa
que medimos (1956, § 298, § 299 e § 300, pp. 140 e 141) – em contraste com o
espaço
, o
tempo
e a
massa
que intuímos, apresentados no Livro I explicando, em seguida, a função exercida por essas
grandezas, agora redefinidas:
§ 302. Observação 1. As três regras precedentes não são novas definições das
quantidades tempo, espaço e massa, as quais foram completamente defini
das
previamente. Elas apresentam as leis de transformação por meio das quais
traduzimos a experiência externa,
i.e.
sensações concretas e percepções, para a
linguagem simbólica das imagens que delas formamos (
vide
Introdução), e pelas
quais, reciprocamente, as conseqüências necessárias destas imagens são novamente
remetidas aos domínios de possíveis percepções sensíveis. Portanto, somente
através dessas três regras os símbolos espaço, tempo e massa podem tornar-
se
partes de nossas imagens dos objetos externos. Mais uma vez, apenas por essas três
regras elas estão sujeitas
a
outras demandas além daquelas que o requeridas por
nosso pensamento
(HERTZ, 1956, p. 141).
Assim como Abrantes, Cassirer identifica alguns caminhos apontados por Hertz e também
alguns
dos pensadores que percorreram estes caminhos ou os tomaram como ponto de partida. Um
deles, segundo Cassirer, teria sido Jules-Henri Poincaré, cuja obra representa ‘a continuação e o
desenvolvimento desta marcha do pensamento’ (vol. IV, 1986, p. 135). De acordo com Poincaré, a
ciência não atinge as coisas, mas as relações entre as coisas e estas relações são expressas por
equações cuja
‘verdade’
fornece a medida da “realidade” das relações por elas representadas (1985,
p. 127). Os objetos da ciência são i
magens ou denominações dos
‘objetos reais’
e
as verdadeiras relações entre esses objetos reais são a única realidade que podemos
atingir, e a única condição para isso é que as relações entre esses objetos sejam as
mesmas que existem entre as imagens que somos obrigados a pôr em seu lugar. Se
conhecemos essas relações, pouco importa que julguemos ser conveniente
s
ubstituir uma imagem pela outra
(
Ibidem
, pp. 127
-
128).
Para Poincaré, não por que abrir mão de hipóteses numa teoria científica, desde que se
esteja consciente de seu valor. Elas nada nos dizem sobre a natureza dos objetos, são
‘metáforas’
que
‘podem ser úteis para satisfazer a mente e não serão nocivas desde que não passem de
hipótese
s indiferentes’
51
(1985, p. 129). Segundo o matemático francê
s,
os axiomas geométricos
,
por exemplo, não são nem juízos sintéticos a priori, nem fatos experimentais. São convenções
.”
interpretação
segundo a metalinguagem que estabelece as regr
as de
coordenação (por exemplo, associando a variável X
a uma coordenada no
espaço físico e à possibilidade de determiná
-
la pela observação), seria
preciso, ou não, acrescentar
elementos de interpretação mais gerais (de tipo metateórico ou até ontológicos ou metafísicos). Como no caso da
mecânica quântica, a complementaridade ou, ao contrário, o realismo ou
determinismo.
Sobre o assunto, ver PATY,
M., “Endo-
referência de um ciência formalizada da natureza”. In:
Estudo Avançados
, 6 (14), 1992.
50
Ver também
nota 49 acima.
51
Sobre o assunto, ver VIDEIRA, A. A. P., “Poincaré e as hipóteses indiferentes’. In.
Revista da Sociedade Brasileira
de História da Ciência
, n. 17, Jan
-
Jun, 1997.
83
Nesse sentido, a geometria euclidiana não é mais verdadeira do qualquer outra geometria: ela é
apenas a mais cômoda. (
POINCARÉ
, 1985,
p. 54). Da mesma forma, os princípios da mecânica são
convenções não inteiramente arbitrárias que se mostraram mais cômodas (
Ibidem
, p. 110). É
possível que haja uma infinidade de explicações mecânicas dos fenômenos naturais, mas a escolha
deve recair sob
re a mais simples (
Ibidem
, p. 136).
Cassirer (vol. IV, 1986, pp. 137-141) destaca o caráter simbólico atribuído por Pierre
Duhem ao conhecimento físico para alinhá-lo com Hertz
52
e Poincaré. Para Duhem, a
fenomenologia de Mach não se sustenta quando aplicada na explicação do processo de transição do
‘fato bruto ao ‘fato científico’, uma vez que o estabelecimento e a interpretação de um fato
científico são possíveis a partir de pressupostos teóricos correlacionados, de um sistema de
símbolos e princípios predeterminados, de sua remissão ‘a um mundo ideal, abstrato, simbólico,
criado pelas teorias’ que a comunidade científica considera momentaneamente asseguradas:
“uma
lei física é uma relação simbólica cuja aplicação à realidade concreta exige o conhecimento e a
aceitação da validade de todo um conjunto de teorias” (DUHEM
apud
CASSIRER, vol. IV, 1986,
p. 139). A verdade ou falsidade de uma teoria não pode ser medida pelo ‘mundo dos fatos’ assim
como concebido por Mach. ‘Uma teoria somente pode ser medida por outra teoria’. Ao se deparar
com uma teoria problemática, o físico, dizia Duhem, não atua como um relojoeiro que, diante de um
relógio defeituoso, desmonta-o, separando suas peças para, depois de examiná-las, substituir ou
reparar aquela que impede o mecanismo de funcionar devidamente. A atuação do físico, nesse caso,
assemelha
-se à de um médico que mantém vivo um paciente enfermo, enquanto procura pelo órgão
causador da enfermidade. ‘A física é um sistema que deve ser enfocado como uma unidade, como
um
todo’
e não como
‘uma máquina que se possa desmontar’
(
Ibidem
CASSIRER, p. 140).
Na elaboração de modelos físicos do universo perceptível, no entanto, os físicos, ainda
atrelados à tradição cartesiana, operavam como um relojoeiro, construindo mecanismos c
onstituídos
de massas em movimento ‘segundo leis matemáticas imutáveis’ (Ben Dov, 1996, p. 41). Aqueles
que, por um motivo ou por outro, empreenderam modelos de um “universo imperceptível”, o
fizeram sob a mesma tradição. Assim se deu com os primeiros modelos de éter postulados por
Maxwell
53
, com a hipótese de massas ocultas em movimento de Hertz e nas tentativas iniciais de se
estabelecer uma imagem da estrutura dos átomos. No início do século XX, a mecânica quântica de
52
Em nota, Abrantes (1992, pp. 351-352) recomenda cautela ao se atribuir alguma influência direta do pensamento de
Hertz sobre a filosofia da ciência de Duhem, que os primeiros trabalhos filosóficos do pensador francês foram
produzidos entre 1892 e 1894.
53
“A complicada estrutura que Maxwell atribuía ao éter, na primeira versão de sua teoria, dava ao seu sistema uma
fisionomia estranha e repulsiva; ela nos dava a impressão de estarmos diante de uma fábrica, com suas engrenagens e
bielas que transmitem o movimento e reduzem o esforço, com seus reguladores e suas correias de transm
issão”
(POINCARÉ
apud
CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 142).
84
Planck e a teoria da relatividade de Einstein marcam o início do fim da relojoaria universal e da
tendência de modelar um microcosmo “isomórfico” ao macrocosmo. Sob o ponto de vista da física
moderna, mesmo o macrocosmo não é tão facilmente reconhecível pelos nossos sentidos: as noções
de tempo e espaço não podem mais ser ‘baseadas nas leis de nossa intuição interna’, como
postulava Hertz ou definidas simplesmente como ‘abstrações às quais chegamos por meio das
mudanças das coisas’, como estabelecia Mach. As medidas de tempo e espaço na nova física não
dependem apenas ‘das mudanças das coisas’, mas, também, das velocidades relativas das
coisas’
.
Nessa nova representação da natureza, a imagem geométrica do espaço, longe de ser intuitiva, é
não
-
euclidiana.
‘Estas teorias impuseram novos sacrifíc
ios no tocante à clareza plástica da imagem
da natureza’ (CASSIRER vol. IV, 1986, p. 142). Com elas o conhecimento físico se obrigado a
renunciar à busca de um modelo mecânico simples e unificador, mas não abre mão da unidade
(
POINCARÉ
, 1985, p. 136), de seu caráter orgânico: “o último passo dado nessa direção é a
trajetória seguida pela teoria geral da relatividade e pela teoria dos quanta” (CASSIRER vol. IV,
1986, p. 142). Tampouco abre mão de teorias sobre a natureza a perspectiva atomística, por
ex
emplo
e, aos poucos, liberta-se da “obrigação” de manter um compromisso irrevogável entre as
representações científicas e a nossa percepção ou intuição direta.
Segundo Cassirer, o estudo das reflexões de caráter epistemológico de cientistas como
Hertz,
Boltzmann e Poincaré
54
e sua gradual apropriação por membros da comunidade científica
Einstein e Schrödinger, por exemplo
55
‘revelam de um modo muito claro que a trajetória do
pensamento físico que levou aos últimos acontecimentos revolucionários [da física atômica]
se
desenvolveram, em geral, com uma continuidade muito maior do que se pode pensar’
:
Dificilmente a física teria se permitido chegar a conclusões tão opostas aos hábitos
da intuição direta, se não estivesse preparada par isto e não houvesse si
do
estimulada a seguir este caminho pela mudança operada em seu conceito de
conhecimento, mudança que, como vimos, se inicia no próprio terreno do
sistema clássico. Neste sentido, podemos afirmar que o trabalho concreto de
investigação e as reflexões da teoria do conhecimento por ele estimuladas se
completaram mutuamente e importantes e fecundas sugestões se intercambiaram
(CASSIRER vol. IV, 1986, p. 145).
54
Cassirer não se refere especificamente a estes pensadores, mas utiliza, ao longo de sua obra, os pontos de vista dos
mesmos sobre o conhecimento científico para preparar suas conclusões a respeito d
o desenvolvimento do conhecimento
físico.
55
De acordo com D’Agostino, ‘Einstein lerá o Prinzipien [The Principles of Mechanics] com grande interesse’ (2007,
p. 221) e Schrödinger será o responsável pelo estabelecimento da Bild conception como uma tradição na física teórica
(2004, p. 372).
85
III. 3. COMENTÁRIOS SOBRE ALGUMAS DAS REPERCUSSÕES DA FILOSOFIA DA
CIÊNCIA DE HERTZ
III. 3. 1.
Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann
Mesmo que não simultaneamente, as carreiras de Heinrich Hertz e do físico austríaco
Ludwig Boltzmann (1844 1906) apresentaram alguns pontos em comum antes que suas
concepções de teoria científica pudessem ser analisadas comparativamente. Quando Hertz era ainda
um adolescente, Boltzmann freqüentou, como visitante, o laboratório comandado por Helmholtz,
com quem trocou correspondências e por quem foi incentivado a investigar a aplicação de modelos
mecânicos à teoria do calor. Além disso, Boltzmann dedicou especial atenção à teoria
eletromagnética de Maxwell e tornou
-se um de seus principais divulgadores na Europa, por meio de
sua obra didática Vorlesungen Äuber Maxwells Theorie der Elekritzitätt und des Lichtes
(VIDEIRA
, 2006, pp. 269
-271).
Como físico Boltzmann é lembrado, por exemplo, pela teoria cinética dos gases e a
mecânica estatística. Diante dos acalorados debates que vinham ocorrendo no final do século XIX
(e que se estenderam pelo século XX) sobre
qual
deveria
ser o conceito e a missão’ da física,
Boltzmann notabilizou-se pela insistente defesa do atomismo e do pluralismo teórico. No entanto,
segundo Videira, o cientista austríaco nunca pretendeu elaborar uma teoria do conhecimento físico,
preferindo apenas defender seus pontos de vista sobre o assunto quando necessário (2006, p. 273).
Para Boltzmann, a hegemonia de determinada teoria em um domínio da física não deveria implicar
na exclusão das demais teorias relativas a este mesmo domínio. Ele acreditava que, assim como a
capacidade preditiva das construções teóricas não se constituía em condição suficiente para
garantir
-lhes permanência e hegemonia, também a exposição dos limites de uma ‘teoria que deu
bons
resultados’
não seria motivo para excluí-la da ciênc
ia
56
(VIDEIRA, 2006, p. 273). Além do
mais, sob o ponto de vista de Boltzmann, t
eorias
são
representações
da natureza e como tais não
podem ter seu valor de verdade aferido pelo seu potencial de revelar a essência das coisas:
“uma
teoria é “verdadeira” se, por meio de suas implicações (previsões, por exemplo), ela conduz a
resultados que correspondem à experiência”
(
Ibidem
).
56
Ao invés de ser excluída, a teoria continuaria incorporada à ciência, desde que seus limites de aplicação fossem
definidos. Seria o caso, por exemplo (um exemplo que Boltzmann certamente não poderia utilizar), quando são
confrontadas as teorias de Newton e Einstein: “Na escala que vai desde um pouco acima da molecular até a escala do
sistema solar, para velocidades do valor zero até os valores típicos dos movimentos planetários (< c/10.000), e para
potenciais gravitacionais até os calores que ligam os planetas ao Sol, as teorias de Newton se aplicam com precisão
quase perfeita” (CHAVES, A. S., sica: curso básico para estudantes de ciências físicas e engenharias. Rio de
Janeiro: Reichmann & Afonsso, 2001.).
86
Boltzmann admitia ‘vários modos de expressão em física’ ou vários modos de representação
dos fenômenos físicos e defendia que o atomismo poderia ser um deles (VIDEIRA, 1997, p. 59).
Para o cientista, além do valor científico, o átomo possuía valor
‘epistemológico’
57
e heurístico.
Boltzmann acreditava que a hipótese atômica poderia ser deduzida dos princípios físicos e equações
matemática
s que compunham a estrutura de uma teoria:
De
acordo com os fenomenólogos matemáticos, como, por exemplo, Kirchhoff, os
sistemas de equações
diferenciais
poderiam ser elaborados (concebidos),
formulados e re
solvidos sem que fosse necess
ária qualquer referê
ncia ao
atomis
mo.
Para Boltzmann, os fenomenólogos estavam errados. Toda e qualquer equação
diferencial, tal
como
a
estabelecida
por Fourier para a propagação do calor, se
fundamentava na hipótese da existência de pequeníssimas partículas de matéria e
do c
omportamento
das mesmas. Tendo feito algumas hipóteses sobre o tamanho
dessas partículas, toma-se o limite em que os intervalos de tempo e de
comprimento tendem a zero. O mesmo acontece com as soluções dessa equação: o
único procedimento rigoroso existente para resolvê-
la
lança mão da idéia de que o
número dessas partí
culas
é limitado, sendo somente a partir dessa aproximação que
se deixa aumentar o seu número até
o in
finito (VIDEIRA, 2007, p. 274).
O átomo, portanto, tem, para Boltzmann a função de fornecer conteúdo semântico ao
cálculo. A validação empírica do conceito de átomo, assim deduzida, seria o próximo passo. Na
concepção de Boltzmann, qualquer teoria alijada de tal processo, isto é, que se visse obrigada a
abrir mão de elementos fictícios ou hipotéticos, se tornaria uma teoria vazia. As restrições impostas
por Mach e pelos fenomenologistas às construções teóricas são impossíveis de serem aplicadas
rigorosamente: nem todo elemento de uma teoria corresponde a um fenômeno ou a um conjunto de
fenômen
os.
Segundo Videira (2006, pp. 274-275), ‘o caráter restritivo do critério proposto por Mach
não passou despercebido a Heinrich Hertz’ e este seria o principal ponto de convergência dos
pensamentos de Hertz e Boltzmann. Para Hertz, a utilização nas teorias de elementos que
correspondessem, única e exclusivamente, a percepções dos sentidos, mesmo que possível, não
evitaria os problemas referentes à permissibilidade lógica e à eficiência (
adequação
) das
representações. Para a abordagem desses problemas, Hertz propõe que na análise ou elaboração de
uma representação, deve-se considerar a coexistência, nesta representação, de dois níveis distintos:
um, representado por sua estrutura matemática, corresponderia
ao
‘nível lógico ou sintático’, outro,
representado
pelos seus possíveis modos de representação, corresponderia ao ‘nível empírico ou
semântico’
(D’AGOSTINO, 2004, p. 379; VIDEIRA, 2006, p. 275). A explicitação de um nível
semântico numa representação confere-lhe um grau de liberdade muito maior do que o co
ncebido
por Mach.
57
Em nota, Videira (1997, p. 57) ressalta que usa o termo
epistemologia
no sentido de análise dos fundamentos de toda
e qualquer teoria científica e não como teoria do conhecimento.
87
Similaridades entre as concepções dos dois cientistas podem também ser encontradas nos
critérios adotados para a comparação de diferentes teorias:
Boltzmann substitui o conceito de “adequação" ao conceito de verdade enquanto
critério para julgar o valor, ou o alcance, das teorias. A noção de verdade, em
sentido estrito, não poderia ser o critério último, pois ela pressupõe que as teorias
científicas determinam a realidade em si. A adequação significa simplesmente que
uma teoria A é mais adequada que uma outra teoria B, caso ela torne inteligíveis
certos fenômenos que escapam à segunda teoria. O critério de adequação permite,
assim, afirmar que qualquer teoria científica é uma representação ou imagem
(VIDEIRA, 2007, p. 275)
.
De acordo com Janik e Toulmin, a contribuição científica
de
Ludwig Boltzmann teve no
pensamento de Hertz uma importante referência
58
e encontrou nos elementos kantianos nele
presentes o ponto de partida para algumas de suas próprias idéias científicas. Ainda segundo ess
es
autores,
Boltzmann aproxima
-se de Kant através da concepção de Hertz de que a mecânica definiria
“uma possível seqüência de eventos observados” (JANIK e TOULMIN, 1996, pp.
143
-144). A
partir dessa concepção, Boltzmann passou a analisar os sistemas físicos através do estudo das
relações de suas variáveis independentes num espaço multidimensional
59
, base da mecânica
estatística, fundamental na abordagem da termodinâmica e da física quântica.
Boltzmann, no entanto, adota preceitos darwinistas na constituição de sua concepção do
conhecimento e, ao fazê-lo, afasta-se não da concepção de Hertz, como também da de Mach.
Boltzmann admite a existência de
‘leis do pensamento’
, as quais seriam responsáveis pela formação
das imagens e representações mentais. No entanto, na sua concepção, tais leis não possuem um
caráter
a priori, no sentido de Kant, representando apenas uma habilidade humana instintiva para
interagir com o meio ambiente. Uma vez que a espécie humana sofre modificações ao longo do
tempo, seu cérebro também se modificará, o que implica em mudanças nas características das
imagens mentais formadas. Como
as variações orgânicas são casuais e não são pré
-
dirigidas
para a
forma mais favorável’, nada garante que a ciência assim como a espécie humana ou a pr
ópria
organização social esteja “evoluindo” para uma configuração ideal (VIDEIRA, 2007, pp. 275-
276). Ao atribuir à mente humana a capacidade de elaborar imagens e representações, e ao negar o
caráter teleológico do evolucionismo, Boltzmann se contrapõe a Mach. Da mesma forma, ao adotar
58
Janik e Toulmin afirmam que Boltzmann declarava-se um seguidor do trabalho de Hertz (1996, p. 145); Videira
afirma que Boltzmann era um apreciador das teses epistemológicas de Hertz, embora o incluísse entre os
‘fenomenistas
de fundamento físico
-
matemático’
, perante os quais Boltzmann mantinha uma postura crítica (1997, p. 67).
59
“Ele [Boltzmann] o fez considerando que cada propriedade independente de um sistema físico definia uma
coordenada individual num sistema multidimensional de coordenadas geométricas. Todas as possíveis posições de um
determinado corpo do sistema físico, por exemplo, eram ordenados ao longo de três eixos de referência; todos os
valores das temperaturas, por exemplo, ao longo de outro eixo; todos os valores de, por exemplo, pressão, ao longo de
um quinto eixo e assim por diante. A totalidade dos pontos teóricos no sistema multidimensional de coordenadas
resultante fornecia uma representação da ‘combinação dos estados possíveis’ do sistema físico em questão; e qualquer
estado existente poderia ser definido pela especificação de um determinado ponto nesse ‘espaço multidim
ensional’
,
cujas coordenadas correspondiam aos valores existentes de todas as variáveis” (JANIK E TOULMIN, 1996, p.
143).
88
uma
‘epistemologia de tipo evolucionária’, endossando a perspectiva de que as leis do pensamento
são
modificadas ao longo da história, Boltzmann contraria a admissão, por Hertz, do caráter
imutável dos julgamentos a priori. Além do mais, o ponto de vista de Boltzmann de que, em
qualquer caso, as teorias devem ser julgadas quanto à adequação empírica contrapõe-
se
à
perspectiva de Hertz de que tais
julgamentos
a priori
não são passíveis de confirmação ou refutação
po
r experiê
ncias futuras
60
(ABRANTES
, 1992
, P.
371).
No entanto, Boltzmann aproxima-se novamente de Hertz quando defende que na elaboração
de representações da natureza não é possível ater-se à mera descrição fenomênica, sem fazer uso de
hipóteses ou preconceber uma
teoria sobre a natureza (VIDEIRA, 1997, p. 71). Boltzmann encarava
o atomismo ‘como sendo uma visão de mundo’ (
Ibidem
). Mais do que isso, ele concebia a
postulação do átomo como uma
‘exigência lógica’
:
O átomo deveria possuir alguma característica, que não podia ser apenas física,
que seu conteúdo físico era determinado pelos modelos e teorias onde era utilizado,
o que o tornaria plástico”, isto é, capaz de receber conteúdos diferentes. Essa
capacidade, aos olhos de Boltzmann, fazia com que o átomo se transformasse em
um conceito muito importante, o que lhe dava uma função epistemológica
significativa. Boltzmann aceitaria a tese de Cassirer, segundo a qual o átomo não
seria um conceito factual empiricamente determinado; na verdade, ele seria uma
exigênci
a lógica
(VIDEIRA, 1997, pp. 70
-
71).
Na perspectiva de Boltzmann, antes de ser dogmaticamente descartado, o atomismo deveria
merecer a chance de mostrar sua capacidade heurística, ‘sua fecundidade preditiva’. Afinal, a
proposta atomista de Boltzmann não incluía o estabelecimento do átomo como uma entidade que
desvelasse a essência da natureza indisponível aos nossos sentidos. Segundo Videira, a atomística
procuraria
‘compreender a natureza sem fazer compromissos ontológicos definitivos sobre ela’
(1997,
p. 72). Aqui, mais uma vez, vemos, trilhando o mesmo caminho, Boltzmann vislumbrando
imagens
atômicas da natureza, e Hertz, que as entrevê sob a forma de massas ocultas em
movimento.
III. 3.
2. Heinrich Hertz e Ludwig Wittgenstein
Existe algum método para fazer pela
linguagem
-
em
-
geral
o que Hertz e Boltzmann
haviam feito pela linguagem da física teórica? Existe alguma maneira de mapear de
dentro (from within), exaustivamente, o alcance e os limites do “dizível” (
sayable
),
60
“§ 295. Como foi estabelecido na nota introdutória 1), nenhum apelo à experiência é feito nas investigações
deste livro [Livro I]. Consequentemente, se na seqüência encontrarmo-nos novamente com os resultados aqui obtidos,
devemos estar cientes de que eles não são obtidos da experiência, mas das leis de nossa intuição e pensamento,
combinadas com uma série de enunciados arbitrári
os.”
“É verdade que a formação das idéias e o desenvolvimento de suas relações puderam ser obtidas tendo em vista
experiências possíveis; não é menos verdade que somente a experiência pode decidir sobre o valor ou a inutilidade de
nossas investigações. Mas a correção ou incorreção destas investigações não podem ser confirmadas ou refutadas por
quaisquer possíveis experiências futuras” (HERTZ, 1956, p. 135).
89
de tal forma que se possa ver,
si
multaneamente
, como a linguagem descritiva em
geral é utilizada para fornecer uma bildliche Darstellung no sentido hertziano de
representação na forma de modelo matemático de tudo o que se refere aos fatos,
e
também
o caráter transcendente” de todas as questões éticas o que as torna
cômodas apenas para a “comunicação indireta” ao mesmo tempo em que ela
apresenta a si mesma como o subproduto da análise? (TOULMIN
apud
JANIK e
TOULMIN, 1996, p. 166).
A questão levantada na citação acima sintetiza, segundo seu autor, o enfoque sob o qual a
intelectualidade vienense do final do século XIX passou a considerar o problema central e mais
premente’
do qual vinha se ocupando desde os anos oitenta daquele século. Dentre aqueles que se
dedicaram a um estudo sistematizado dessa ‘preocupação presente na atmosfera de Viena’
(CONDÉ, 1998, p. 31) destaca-se o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889 1951), que, em sua obra
Tractatus Logico-
Philosophicus
61
investiga a lógica da linguagem e mostra ‘os limites entre aquilo
que
pode ser dito e aquilo que não pode ser dito’ (
Ibidem
). Apesar de não ser uma tarefa simples
identificar as influências deste autor Abrantes (1992, p. 351) comenta que ‘Wittgenstein o é
nada pródigo em referências’ pode-se afirmar, com base nas poucas referências a outras obras
mencionadas no
Tractatus
, que
The Principles of Mechanics
foi uma delas.
62
O problema de Hertz em The Principles of Mechanics consistia em realizar uma crítica da
estrutura matemática da mecânica
ao invés de uma análise psic
ológica e histórica como a de Mach
e explicar como a teoria de Newton era capaz ‘de formar um sistema matemático de axiomas e
deduções
e, ao mesmo tempo,
‘descrever o mundo
existente
(actual
) da natureza em contraste com
todos os mundos logicamente conc
ebíveis
(JANIK e TOULMIN, 1996, p.
180).
O problema de
Wittgenstein no Tractatus Logico-
Philosophicus
era mostrar a possibilidade de uma linguagem
representacional
em contraste com o ceticismo de Mauthner, por exemplo e desenvolver uma
teoria modelo
da linguagem
(
Ibidem
, pp. 179
-
181).
Wittgenstein era engenheiro, familiarizado com a física de Hertz
63
e Boltzmann, e sabia que
os princípios teóricos da ciência funcionavam na prática, na construção de máquinas e
equipamentos. Considerava, ainda, que a estrutura matemática da
lin
guagem mecânica’ era a
garantia de sua univocidade e depuração de ambigüidades (JANIK e TOULMIN, 1996, p.
179).
No
entanto, para que pudesse desenvolver uma ‘teoria modelo da linguagem’ que permitisse
generalizar o problema de Hertz, seria necessário o estabelecimento de uma matemática da
linguagem
(
Ibidem
, pp.
179
- 181). Para isto, Wittgenstein recorreu ao simbolismo lógico de
Russel e Frege, assimilando, particularmente, a concepção de ‘cálculo proposicional’ de Russel
61
A primeira publicação desta obra data de 1921. Neste trabalho utiliza
-
se a edição brasileira de
1993.
62
“§ 4.04 ...(Comparar com a “Mecânica” de Hertz, sobre modelos dinâmicos)” e “§ 6.361 Na terminologia de Hertz,
poder
-
se
-
ia dizer: apenas conexões que se conformam a leis
são
pensáveis
” (WITTGENSTEIN, 1993, pp. 173 e 271).
63
Janik e Toulmin descreve
m Wittgenstein como um
‘entusiasmado hertziano’
(1996, p. 179).
90
para
a obtenção da lógica da linguagem de que necessitava. No
Tractatus
, a lógica é a essência da
linguagem (CONDÉ
, 1998, p. 52
).
Para Wittgenstein, uma
‘ordem
a priori no mundo, como também na linguagem’ e a
existência de ‘algo em comum’ entre linguagem e mundo nos possibilita pensar e falar sobre o
mundo’
:
64
este ‘algo em comum’ é a lógica (CONDÉ, 1998, p. 52). Falamos do mundo por meio de
proposições. As proposições têm a função de relacionar os nomes ou símbolos das coisas, os quais,
por si só, não têm sentido (JANIK E TOULMIN, 1996, pp. 185-
186).
‘A proposição é uma
figuração da realidade tal qual a pensamos’
(WITTGENSTEIN
apud
CONDÉ, p. 52). Proposições
são, portanto,
representações
do mundo, elas não descrevem os objetos denotados por nomes ou
símbol
os, mas as relações entre os objetos.
§ 4.04 Deve ser possível distinguir na proposição tanto quanto seja possível
distinguir na situação que ela representa. Ambas devem possuir a mesma
multiplicidade lógica (matemática). (Comparar com a “Mecânica” de Hertz, sobre
os
modelos dinâmicos.)
(WITTGENSTEIN, 1993, pp. 171 e 173).
Procedendo, então, à comparação sugerida por Wittgenstein, destaca-se o seguinte trecho de
The Principles of Mechanics
:
§ 428. Observação 2. A relação de um modelo dinâmico com um sistema do qual
ele é considerado o modelo, é precisamente a mesma relação das imagens que
nossas mentes formam das coisas com as coisas em si. Pois, se consideramos a
condição do modelo como a representação da condição do sistema, então, as
conseqüências desta representação, que de acordo com as leis desta representação
devem aparecer, são também a representação das conseqüências que devem
proceder do objeto original de acordo com as leis deste objeto original. A
conformidade entre mente e natureza deve, portanto, ser semelhante à
conformidade entre dois sistemas que são modelos um do outro, e nós podemos até
mesmo contar com esta conformidade assumindo que a mente é capaz de produzir
modelos dinâmicos reais das coisas e de trabalhar com eles (HERTZ, 1956, p.
17
7).
Se as considerações acima procuram mostrar a influência do pensamento de Hertz no
Tractatus Logico-
Philosophicus
, pode-se identificar nas ‘funções de valores de verdade
’,
65
elaboradas por Wittgenstein nesta mesma obra, a influência da concepção de Boltzmann de
‘espaço
de possibilidades teóricas’:
66
‘a soma dos estados de coisas subsistentes (isto é, estado de coisas
formados pela combinação de objetos Fatos) e dos estados de coisas possíveis (isto é, daqueles
que não subsistem, mas podem vir a existir devido à possibilidade de combinação dos objetos)
constitui o
espaço lógico (CONDÉ, 1998, p. 53).
64
Janik e Toulmin interpretam da seguinte forma esta concepção de Wittgenstein: “... existe umisomorfismo”
suficiente entre linguagem e realidade para permitir e validar todo nosso uso descritivo da linguagem” (1996, p.
185).
65
Sobre a teoria da função de valores de verdade, ver CONDÉ, 1998, p. 57
-
60.
66
Sobre o espaço de possibilidades teóricas, ver JANIK e TOULMIN, 1996, p. 144 e nota 59 do presente capítulo deste
trabalho.
91
Segundo Condé, o objetivo do
Tractatus
seria traçar, no interior da linguagem, os limites do
conhecimento (1998, pp. 42-43): a investigação dos limites do conhecimento corresponderia à
investigação sobre a lógica da linguagem (
Ibidem,
p. 48). Para Wittgenstein, a forma pela qual
Hertz efetivou sua crítica da mecânica, partindo da análise dos seus conceitos tal como estes eram
utilizados, permitia que esta crítica fosse realizada de dentro da própria teoria, definindo
internamente a natureza e os limites da mecânica, sem a necessidade de recorrer a uma teoria sobre
a mecânica, como foi feito por Mach. O modelo (
Bild
) [de Hertz] simplesmente exibia as
limitaçõ
es de suas próprias aplicações (JANIK e TOULMIN, 1996, pp. 141-142). A partir de uma
generalização da metodologia de Hertz,
‘poder
-
se
-ia expor a natureza e os limites da linguagem em
termos de sua estrutura’ (
Ibidem
, p. 182), evitando-se as circularidades decorrentes da elaboração
de uma teoria sobre a linguagem.
Se no
Tractatus
Wittgenstein procura entender o que é a linguagem na tentativa de propor a
elaboração de uma linguagem ideal, em sua outra obra emblemática, Investigações Filosóficas, o
autor busca compreender como ‘se usam as palavras com as quais designamos as coisas’
(MARGUTTI PINTO, 1998, p. 14). O entendimento do
como
é possível através da noção de
gramática
, na qual a significação das palavras é dada pelo seu
uso
em um dado contexto, no qual
estão envolvidos aspectos lingüísticos e pragmáticos. Ao conjunto de palavras e ações aspectos
lingüísticos e pragmáticos
Wittgenstein dá o nome de
jogos de linguagem
67
(CONDÉ, 2004).
A gramática representa o conjunto de possibilidades de significação e está ligada às práticas
sociais, as quais, por sua vez, determinam nossa visão de mundo. Os critérios de nosso
conhecimento e julgamento estão, desse modo, assentados na gramática e nos jogos de linguagem,
sendo, portanto, diversos e dinâmicos. Mas não s
ão, segundo Wittgenstein, impermeáveis:
Imagine que você chegue como pesquisador em um país desconhecido com um
língua inteiramente desconhecida. Em que circunstâncias você diria que as pessoas
ali dão ordens, compreendem
-
nas, seguem
-
nas, se revoltam contr
a elas, e assim por
diante? O modo de atuar compartilhado pelos homens é o sistema de referência por
meio do qual interpretamos uma linguagem estrangeira (
apud
CONDÉ, 2004).
Este
‘modo de atuar compartilhado’ a que Wittgenstein denomina semelhanças de família
não tem a pretensão de ser um fundamento comum, mas se justifica nas nossas interações de caráter
biológico e cultural com o mundo, sem conceder, nesta justificativa, privilégios a qualquer desses
aspectos.
67
Para uma abordagem mais detalhada das idéias de Wittgenstein em Investigações Filosóficas, ver CONDÉ, 1998;
CONDÉ, 2004; CONDÉ, 2005.
92
Embora o Tractatus Logico-
Philosophicus
e as Investigações Filosóficas sejam obras
concebidas sob diferentes perspectivas,
68
Janik e Toulmin atribuem esta mudança de perspectiva à
‘lealdade’
de Wittgenstein ao pensamento de Hertz (1996, p. 225). Para estes autores, a seguinte
passagem de The Principles of Mechanics foi a principal inspiração para a mudança de enfoque de
Wittgenstein em relação ao problema da linguagem:
Por que é que as pessoas nunca se perguntam sobre a natureza do ouro ou sobre a
natureza da velocidade? É a natureza do ouro mais bem conhecida do que a da
eletricidade
, ou conhece-se melhor a natureza da velocidade do que a da força?
Podemos, por meio de nossas concepções, por meio de nossas palavras, representar
completamente a natureza de alguma coisa? Certamente não. Aos termos
“velocidade” e ouro associamos um grande número de relações com outros termos;
e entre todas estas relações não encontramos qualquer contradição que nos
incomode. Estamos, portanto, satisfeitos e não levantamos novas questões. Mas
,
em torno dos termos “força” e “eletricidade” acumulamos mais relações do que o
possível para reconciliá-las entre si. Temos um sentimento obscuro sobre isso e
desejamos esclarecer as coisas. Nosso desejo confuso encontra expressão na
confusa questão sobre a natureza da força e da eletricidade. Mas a resposta que
queremos não é realmente uma resposta para esta questão. Não é descobrindo mais
e novas relações e conexões que isto pode ser respondido; e sim removendo as
contradições existentes entre aquelas conhecidas e, talvez, reduzindo seu
número. Quando estas dolorosas contradições tiverem sido eliminadas, as questões
referentes à natureza da força não terão sido respondidas; mas nossas mentes,
livres
de tormentos, cessarão
de levantar questões ilegítimas
(HERTZ, 1956, pp. 7
-
8).
Tal perspectiva, no entanto, deve ser considerada com cautela, uma vez que nas
Investigações Filosóficas, Wittgenstein passa a defender que a linguagem adquire seu (s)
significado (s) nos seus “usos” (CONDÉ, 1998, p. 137), ‘a linguagem não é mais uma
re
presentação do mundo, mas uma forma de interagir com o mundo’ (CONDÉ, 2004, p.82). Na
segunda filosofia de Wittgenstein, o paradigma da representação’ ou seja, a perspectiva
semântica para a abordagem do problema da linguagem é abandonada em favor de
uma
‘concepção predominantemente pragmática’
(
Ibidem
, pp. 72 e 82).
III. 3. 3. Erwin Schrödinger e os modelos teóricos
69
A distância temporal que separa a exposição da idéia de representação em Hertz da
introdução de novidades na
Bild conception
por Schrö
dinger (1887
1961)
cerca de sessenta anos
não permite que se estabeleça uma relação direta entre os pensamentos destes dois cientistas. No
entanto, pode-se argumentar, como o faz D’Agostino (2004, p. 386) que a concepção de
Bild
de
Schrödinger esteja, de alguma forma, conectada a um ou mais fios da
teia
de idéias decorrentes das
68
De acordo com Condé (1998, p. 87), entre o Tractatus Logico-
Philosophicus
e as Investigações Filosóficas
Wittgenstein
‘abandona uma posição predominantemente semântica para introduzir uma posição predominantemente
pragmática’
.
69
Esta subsecção se baseia em um artigo de Salvo D’Agostino (2004, pp. 372
-
389).
93
discussões estimuladas pela concepção de representação de Hertz, que se estendeu em direção ao
século XX. À época de Schrödinger, os objetos e os problemas da teoria física nã
o mais se reportam
primariamente a conceitos familiares como os de forças e energia. Discute-se, agora, a mecânica
ondulatória, a teoria de campo, a indistinguibilidade da partícula, o princípio da incerteza de
Heisenberg, o princípio da complementaridade de Bohr, etc. No entanto, algumas questões relativas
aos constructos teóricos assemelham-se àquelas que instigaram Hertz a refletir sobre a metodologia
da ciência: assim como Hertz problematizou a consistência lógica do conceito de força, Schrödinger
probl
ematiza o conceito de partícula elementar; as discussões sobre a necessidade de
correspondência unívoca entre conceitos teóricos e observações empíricas, e da licitude da
manutenção de lacunas causais nas teorias continuavam em pauta.
As preocupações de Schrödinger referem-se a aspectos polêmicos e complexos da complexa
mecânica quântica.
70
Sumariamente, poder-
se
-ia dizer que as principais preocupações do cientista
em relação ao assunto diziam respeito a aspectos, a seu ver, problemáticos, das interpretações, da
mecânica quântica a partir do princípio da incerteza de Heisenberg,
71
do princípio da
complementaridade Bohr
72
e da abordagem estatística da microfísica, e as implicações destas
interpretações para o conceito de partícula elementar, bem como para a com
pletude de uma teoria.
Segundo Schrödinger, tanto a abordagem estatística da mecânica quântica – na qual a
partícula perdia sua distinguibilidade e individualidade
73
– quanto o princípio da incerteza de
Heisenberg
o qual interditava a possibilidade de se
conhecer completamente todas as propriedades
da partícula pressupunham uma ‘ontologia da partícula’ mas, ao mesmo tempo, a
70
Sobre o assunto, ver, por exemplo, PESSOA Jr, O., “O problema da medição em mecânica quântica: um exame
atualizado”.
In:
Cadernos de História e Filosofia da Ciência
(série 3)
2(2)
: 177
-
217, jul
-
dez 1992.
71
Uma explicação simplificada do princípio da incerteza de Heisenberg nos é dada por Hewit: “Sabemos, por exemplo,
que se introduzimos um termômetro frio em uma xícara contendo café quente, a temperatura do café é alterada à
medida que este perde calor para o termômetro. O dispositivo de medida altera a quantidade a ser medida....A
contribuição quântica nesta alteração é, no entanto, completamente minimizada por incertezas clássicas e é
negligenciável. Incertezas quânticas são significativas apenas no mundo atômico e subatômico....Se desejamos observar
um elétron e determinar sua localização utilizando luz.... [isso] produz uma incerteza considerável tanto sobre sua
posição [x] quanto sobre seu movimento [p].” Temos, então: p. x
=
h, onde p é a incerteza do momento do elétron,
x é a incerteza de sua posição e h
=
h
/2p (
h representa a constante de Panck). Assim, quanto maior a precisão com que
se determina a posição de um elétron, maior a incerteza em relação ao seu momento e vice-
versa.
Sobre o assunto, ver
HEWIT, P. G.,
Conceptual Physics
, 8th ed., Addison Wesley, 1998, pp. 569
-
571.
72
Para ilustrar o princípio da complementaridade de Bohr, recorremos, mais uma vez, às palavras de Hewit: “O mundo
da física quântica parece confuso. Ondas de luz que interferem e difratam entregam suas energias em pacotes quânticos
[como se fossem partículas]. Elétrons que se movem através do espaço em linha reta e que colidem como se fossem
partículas, distribuem-se espacialmente em padrões de interferência como se fossem ondas. Nesta confusão, uma
ordem subjacente. Os comportamentos da luz e dos elétrons são igualmente confusos! Luz e elétrons exibem
características de onda e partícula.”
“O físico dinarmaquês Niels Bohr, um dos fundadores da física quântica, formulou uma expressão para a generalidade
inerente a este dualismo. Ele denominou sua expressão dessa generalidade de complementaridade. Na forma como Bohr
a expressou, os fenômenos quânticos exibem propriedades complementares (mutuamente exclusivas) – apresentando-
se
como ondas ou partículas dependendo do tipo de experimento realizado.” Sobre o assunto, ver HEWIT, P. G.,
Conceptual Physics
, 8th ed., Addison Wesley, 1998, pp. 572
-
574.
73
Ibidem
nota 70, p. 187.
94
descaracterizavam (D’AGOSTINO, 2004, pp. 383-384). Para o cientista, este e outros problemas
conceituais
como aqueles referentes à ‘famosa teoria das linhas espectrais de Bohr’
74
seriam
decorrentes da transferência das limitações ou incompletudes das medições experimentais para o
nível teórico. A chave para a solução deste e de outros problemas poderia ser encontrada na
utilização
do
‘inevitável’
75
conceito de onda e na adoção do princípio de continuidade:
O princípio de continuidade exclui ações à distância instantâneas, embora ele não
prescreva um limite relativístico preciso para a velocidade de uma ação causal; ele
demanda, apenas, que uma conexão causal tenha um significado não-ambíguo para
distâncias espaço-temporais infinitesimais (causalidade local). Assim, a
possibilidade de definir tais distâncias é um pré-requisito para uma definição não-
ambígua de causalidade, de forma que o princípio de continuidade seja uma
condição necessária (mas não suficiente) para uma conexão causal entre dois
eventos
(D’AGOSTINO, 2004, p. 383).
O princípio de continuidade sustenta nossa estrutura mental permitindo que estabeleçamos
conexões causais entre os fenômenos e elaboremos teorias precisas, lógicas e completas: ‘a partir
de uma descrição incompleta de uma representação (picture) com lacunas no espaço e no tempo
não se pode traçar conclusões claras e sem ambigüidade; ela conduz a pensamentos nebulosos,
arbitrários, obscuros...’ (SCHRÖDINGER
apud
D’AGOSTINO, 2004, p. 383). A incompletude
no nível empírico não impede a completude no nível teórico:
Quando um objeto familiar entra novamente em nosso campo de percepção, é
usualmente reconhecido como uma continuação de aparecimentos prévios, como
sendo a mesma coisa. A permanência relativa de peças individuais de matéria é a
característica mais importante tanto da vida diária quanto da experiência científica.
Se algo familiar, digamos uma moringa de barro, desaparece de nossa sala, teremos
quase a certeza de que alguém a carregou. Se após um certo tempo ela reaparece,
poderemos ficar em dúvida se é a mesma moringa ou não - objetos frágeis em tais
circunstâncias frequentemente não são. Podemos não ser capazes de decidir a
questão, mas devemos não ter dúvida de que a questionável similaridade tem um
significado indisputável - a de que uma resposta não ambígua à nossa pergunta.
Tão certa é a nossa crença na continuidade das partes não observadas das
seqüências!
76
O nível teórico tem exigências próprias,
i.e.
não é dependente das eventuais incompletude e
lacunas causais do nível empírico, e tais exigências podem ser atendidas através da utilização de um
modelo conceitual ou
Bild
e, assim, a
‘ling
uagem do nível teórico representa um papel meramente
74
Bohr afirmava na referida teoria que “o átomo sofre uma transição
repentina
de um estado ao outro....mas nenhuma
informação sobre o átomo durante esta transição pode ser fornecida”
(SCHRÖDINGER
apud
D’AGOSTINO, 2004,
p. 384).
75
Para Schrödinger, o conceito de onda era
inevitável
na investigação da difração tanto de elétrons quanto de fótons,
mostrando
-se adequado ao princípio da superposição em experimentos sobre difração com fendas duplas, o que não
ocorria quando se tentava explicar o mesmo fenômeno com o conc
eito de partícula (D’AGOSTINO, 2004, p. 383).
76
SCHRÖDINGER
apud
KRAUSE, D. e BECKER, J., “
Hume, Schrödinger e a individuação de objetos físicos”. In:
Revista Eletrônica
de
Informação e Cognição, v.5, n.2, p.59
-
71, 2006. ISSN:1807
-
8281.
95
interpretativo’
(D’AGOSTINO, 2004, p. 383). Os modelos assim concebidos não têm a pretensão
de fornecer a descrição dos fatos nem de estabelecer uma correspondência unívoca com eles:
Devemos fornecer uma descrição completa, contínua no espaço e no tempo, sem
deixar lacunas, conforme o ideal clássico a descrição de
algo
. Mas não exigimos
que este “algo” seja
o fato obser
vado ou os fatos observáveis...
As lacunas, eliminadas da representação ondulatória [wave picture], referem-se às
conexões entre a representação ondulatória e os fatos observáveis. Estes últimos
não guardam uma correspond
ência unívoca com a primeira...
... não exigimos que este “algo” [o modelo ou
Bild
] seja o fato observado ou
observável;
e, menos ainda, afirmamos que, assim, descrevemos o que a natureza
(matéria, radiação, etc.) realmente seja. De fato, usamos esta imagem (a assim
chamada representação ondulatória) inteiramente conscientes de que ela não é
nenhuma coisa nem outra.
(SCHRÖD
INGER
apud
D’AGOSTINO,
2004,
p. 384).
Para que servem então os modelos físicos? Os modelos ou imagens dos fenômenos são
ferramentas do pensamento para a elaboração de teorias completas cuja fecundidade para um
programa de pesquisa depende de sua clareza e adequação. Um modelo conceitual ou
Bild
não tem
a capacidade de descrever a realidade da natureza por que
percebemos que a natureza se comporta de maneira inteiramente diferente
do que observamos nos corpos visíveis e palpáveis à nossa volta....Um
modelo
completamente satisfatório deste tipo é não praticamente
inacessível, mas mesmo impensável. Ou, para ser mais preciso, podemos,
naturalmente, pensá-lo, mas qualquer que seja a forma em que o pensemos,
ela está errada; talvez não tão sem sentido como um “círculo triangular”,
mas como algo assemelhado a um “leão alado”
(SCHRÖDINGER
apud
D’AGOSTINO,
2004, p. 384)
.
Schrödinger, portanto, concebe uma distinção parcial entre teoria e observação, segundo a
qual as representações teóricas guardam uma certa independência em relação às observações
empíricas, e defende a continuidade descritiva no nível teórico, mesmo que esta continuidade não
possa ser observada experimentalmente. Para D’Agostino, ‘sua concepção de
Bild
representa,
então, uma continuação da concepção de
Bild
de Hertz, também discutida por Boltzmann (2004, p.
386). Na concepção dos dois cientistas, os constructos teóricos ou representações cumprem um
papel interpretativo dos fenômenos observados, mas vão além disso, estabelecendo uma visão de
mun
do físico sob a qual se pode não descrever os fenômenos sem revelar sua essência –, mas
também aprender sobre a natureza, refletir sobre possíveis experiências e comparar teorias sobre um
mesmo domínio de fenômenos. No entanto, a liberdade teórica apregoada por Hertz e simbolizada
pela introdução das massas ocultas em movimento em sua representação da mecânica, é
intencionalmente limitada pela transposição “isomórfica” das imagens do mundo macrofísico para o
mundo microfísico, enquanto Schrödinger asseverava a impossibilidade de uma transposição deste
tipo, devido ao caráter dicotômico da relação entre a linguagem puramente teórica e a linguagem da
observação.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
...podemos encontrar leis históricas específicas governando o desenvolvimento das
idéias, isto é, fenômenos históricos característicos concernentes à história do
conhecimento, que se tornam evidentes para qualquer um que examine este
desenvolvimento. Por exemplo, muitas teorias atravessam dois períodos: um período
clássico, durante o qual tudo está em evidente acordo, seguido por um período
durante o qual as exceções começam a aparecer (FLECK, 1979, p. 9).
Com o objetivo de confirmar a relevância da proposta filosófico-metodológica exposta em
The Principles of Mechanics, procurei ambientar o pensamento de Hertz na cena científica e
intelectual do final do século XIX, um período em que, sob um ponto de vista retrospectivo, o
processo de transição entre a física clássica e a física moderna vai se tornando mais tido. A
ambientaç
ão histórica ajuda-nos a identificar os problemas mais proeminentes de que vinha se
ocupando a comunidade científica daquela época, bem como as perspectivas disponíveis para a
abordagem destes mesmos problemas.
A insinuação de que a física newtoniana encontrara seus limites de aplicação e a
possibilidade de abordagem dos fenômenos naturais por outros métodos que não os de Newton,
enredaram a questio disputata central sobre o conhecimento físico à época: que concepção
metodológica deveria ser adotada pelos cientistas diante de uma natureza que se lhes apresentava
cada vez mais diversa? Para os principais personagens desta disputa, a argumentação em favor de
um método científico implicava na defesa de uma teoria do conhecimento. Helmholtz encetou uma
concepçã
o kantiana do conhecimento confirmada, a seu ver, por investigações fisiológicas e optou
pela representação dos ‘fatos e leis físicas’ exclusivamente por sistemas de equações diferenciais.
Mach engendrou uma depuração do aparato conceitual da física por meio de um filtro histórico,
fundamentada em sua concepção biológica ou psicofísica do conhecimento, para justificar a adoção
de uma metodologia cujo objetivo se resume à reprodução da dependência mútua entre os
fenômenos por meio de sistemas de equações. He
rtz, por sua vez, apoiou
-
se no pensamento de Kant
na proposição de sua concepção da física como uma
representação
da natureza. De qualquer forma,
a crença em um método científico que conduzisse à verdade não mais encontrava repercussão: as
funções que relacionam os fatos machianos ou as imagens hertzianas têm em vista evitar qualquer
tipo de interpretação ontológica.
O traço distintivo no pensamento de Hertz, no entanto, destaca-se da sua desconfiança na
possibilidade de se fazer ciência confiando-se apenas naquilo que nos é dado pelos sentidos. Ou,
melhor dizendo, Hertz percebe a inevitabilidade da introdução, consciente ou inconsciente, de
elementos ou generalizações hipotéticos nas construções teóricas. Mais do que isso, esta percepção
pode ser confirmada pela aplicação de sua proposta filosófico-metodológica na construção de
97
representações alternativas, as quais propiciam uma análise comparativa das representações
tradicionais de um mesmo domínio da física. Tal análise não visa à eliminação total dos ele
mentos
hipotéticos ou das relações supérfluas incluídas em uma representação científica, mas a supressão
de elementos obscuros e relações inconsistentes que possam vir a prejudicar a coerência lógica das
imagens dos fenômenos.
Além do mais, Hertz havia aprendido em suas pesquisas experimentais que o papel de uma
teoria científica não se limita à conformidade “passiva” com os dados empíricos. Ela deve fomentar
e guiar novos experimentos, estabelecer um programa de pesquisas, apresentar valor heurístico. A
partir da comparação experimental das teorias eletromagnéticas de Helmholtz e Maxwell, Hertz
estabeleceu uma convergência entre os fenômenos eletromagnéticos e luminosos, e determinou
‘a
propagação no tempo das supostas ações a distância’
.
A pressuposição de um isomorfismo entre pensamento e natureza não garante uma relação
unívoca entre as imagens e os fenômenos e, portanto, não é capaz, por si só, de evitar a
multiplicidade de representações científicas referentes a um mesmo grupo de fenômenos. As
caract
erísticas da nossa maneira de representar não permitem que formemos imagens livres de
relações supérfluas ou vazias, pois nossa razão kantiana ‘progride irresistivelmente até perguntas
que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência’
.
Mas, para Hertz, estes
aspectos de nosso modo de representar não são necessariamente problemáticos. Eles são partes
integrantes do processo de atividade teórica e devem ser submetidos a uma análise lógica que
propicie a escolha da imagem mais adequada: aquela por meio da qual ou de
modelos
dela
derivados
possamos ‘chegar às conseqüências que no mundo externo surgiriam em um espaço
de tempo muito longo ou como resultado de nossa própria interferência’. Eis aqui a concepção
hertziana da missão das teorias ou representações científicas. Se nos lembrarmos que a segunda
metade do culo XIX assiste à institucionalização da física teórica, podemos sugerir que Hertz
estaria estabelecendo uma concepção para o desenvolvimento desse ramo da física.
Os modelos matemáticos presentes nas representações hertzianas cumprem uma dupla
função: é por meio deles que se perfaz a análise lógica das representações distinção entre os seus
elementos que derivam da necessidade lógica e aqueles arbitrariamente incluídos ao
mesmo
tempo em que se apresentam como sua parte empiricamente testável. Dessa forma, uma teoria física
não deve ser vista como a unidade indivisível de sua estrutura matemática e seu modo de
representação. Diferentes modos de representação podem comportar a mesma estrutura matemática,
desde que obedeçam às
‘leis do nosso pensamento’
.
Os modelos matemáticos ou sistemas de equações não são para Hertz um fim, mas um meio
para se obter teorias científicas fecundas e conceitualmente claras e pressupõem pré-
conc
epções de
98
mundo físico que devem ser traduzidas pelos modos de representação dessas teorias. Hertz elaborou
seu modelo a partir de uma imagem de natureza em que todos os fenômenos poderiam ser
representados pelos movimentos relativos de massas entre as quais existe um vínculo geométrico.
Uma natureza unificada por uma nova representação da mecânica capaz de ‘preencher as lacunas
existentes’
nas representações tradicionais e de ‘fornecer uma apresentação completa e definitiva
das leis da mecânica’ que fosse consistente com o estado do conhecimento físico à sua época, mas,
principalmente, que pudesse antecipar eventos futuros. Para tanto, Hertz, contrariando o estilo de
pensamento da comunidade científica em que se formou, mas coerentemente com sua concepção
de
conhecimento,
inclui em sua representação a hipótese de massas ocultas em movimento.
Parece claro que as preocupações de Hertz para com a filosofia da ciência tiveram origem
nas suas investigações sobre os fenômenos eletromagnéticos e miravam a reconciliação entre estes
fenômenos e a física clássica. Nesse processo, Hertz lançou mão de algumas das ferramentas que
estavam dispon
íveis
a mecânica clássica, as reconstruções axiomáticas, o pensamento de Kant,
etc.
ampliando, no entanto, as possibilidades de utilização dessas ferramentas. A lição exposição
dos limites da física newtoniana havia deixado, ao menos para Hertz, uma lição: ao elaborar uma
representação que não atribui aos fatos ‘qualquer aparência de necessidade, ela nos torna capazes
de reconhecer que tudo poderia ser diferente’
.
99
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