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Quando as palavras batem contra os muros
Em grandes voos cegos de aves presas
E agudamente o horror de ter as asas
Soa como um relógio no vazio.
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Embora os sinais da presença do criador dos heterônimos não sejam muito
evidentes nos primeiros livros de Sophia
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, a entrevista dá prova suficiente do
quanto a sombra desse autor rondava a poesia andreseniana. A considerarem-se as
declarações da autora, pode-se ler no poema transcrito uma comparação entre
Pessoa e certas sibilas, sendo ele também “totalmente sem amor e ceg[o]”,
acusado de alimentar o vazio. A descrição é de figuras fechadas num ambiente,
recusando-se a ver a “veemência do visível”
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e a ela entregar-se, preferindo o
vazio ao fogo (o elemento primordial, segundo Heráclito). A capacidade poética
de Pessoa é, contudo, reconhecida, pois fala-se em “forças” e em “grandes voos”,
mas é como se essa capacidade não se cumprisse, pois as forças estão “amarradas
a si mesmas”, e os vôos são “cegos”.
A crítica parece dirigir-se mais a certa atitude expressa na obra de Pessoa do
que propriamente à qualidade de seus versos. Sabemos que a obra andreseniana se
organiza segundo um “projecto moral” próprio e, sobretudo, que pretende
reencontrar a unidade primordial. A poesia de Pessoa, ao contrário, pode ser lida
como o réquiem que acompanha a perda dessa unidade. Daí a “guerra” com
Fernando Pessoa. Sophia seria quem alimenta o fogo, Pessoa, o vazio.
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E o embate com Pessoa permeará sempre a reflexão andreseniana sobre o
criador dos heterônimos. Mesmo num discurso proferido nos anos de 1970, após a
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ANDRESEN, S. M. B. Coral. Edição definitiva. Edição de Luis Manuel Gaspar. Lisboa:
Caminho, 2003, p. 36. Col. Obra poética.
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Maria de Lourdes Belchior aponta nos dois versos finais do poema “Praia” — “E uma
antiquíssima nostalgia de ser mastro / Baloiça nos pinheiros” —, de Coral, uma ressonância do
poema sobre d. Dinis da Mensagem, onde se diz: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som
presente desse mar futuro, /É a voz da terra ansiando pelo mar.” É uma das primeiras marcas da
presença intertextual de Fernando Pessoa na obra de Sophia. BELCHIOR, M. L. “Itinerário
poético de Sophia”, Colóquio-Letras, n. 89, jan. 1986.
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ANDRESEN, S. M. B. Navegações. Edição revista. Edição de Maria Andresen de Sousa
Tavares e Luis Manuel Gaspar. Lisboa: Caminho, 2004, p. 15. Col. Obra poética.
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Num ensaio em que analisa os poemas-homenagem a Fernando Pessoa, Fernando J. B.
Martinho comenta o choque entre a poética dos dois autores. Ao referir-se ao poema “Cíclades”,
afirma: “Na poética empenhada de Sophia, Pessoa é interpelado acusatoriamente como um ser
dividido, em contradição consigo próprio e ‘à margem dos outros e da vida’, entregue a um drama
imaginário, a uma ficção, às ‘fúrias do não-vivido’, que não só o privam de viver a sua própria
vida, como também o distanciam irremediavelmente dos outros homens e o fecham na ordem, na
disciplina estéreis da desumana paixão da escrita. ‘Ilha’, ‘desterro’ definem o exílio em que o
poeta, na destruidora vocação da negação, se quis. [...]” (MARTINHO, F. J. B. “Sophia lê Pessoa”,
Persona, n. 7, Lisboa, 1982.)
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