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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL
ADOLESCÊNCIA E PSICOSE:
DA EXCLUSÃO À CONSTRUÇÃO DE NOVOS LUGARES NO SOCIAL
Volmir Mielczarski dos Santos
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia
Social e Institucional. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social e Institucional.
Instituto de Psicologia.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Marta Regina de Leão D’Agord.
Porto Alegre, 2005.
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2
SUMÁRIO
Resumo............................................................................................................ 4
Abstract........................................................................................................... 5
1 INTRODUÇÃO................................................................................... 6
2 MÉTODO........................................................................................... . 14
2.1 SUJEITOS: PROFESSORAS............................................................... . 17
2.2 SUJEITOS: ALUNOS......................................................................... . 17
3 CENAS DE WILSON E ENSAIOS..................................................... 20
3.1 CENA 1 – 8 DE ABRIL – SALA DE AULA....................................... . 21
3.2 ENSAIO 1 – LUGARES POSSÍVEIS: VIABILIZANDO
COMPARTILHAMENTOS................................................................. 21
3.3 CENA 2 – 22 DE ABRIL – SALA DE AULA..................................... . 24
3.4 ENSAIO 2 – IMPASSES NA SUBJETIVAÇÃO?................................ . 26
3.5 CENA 3 – 8 DE MAIO – AULA DE INFORMÁTICA....................... . 31
3.6 ENSAIO 3 – DE UM IMPASSE A TENTATIVA DE HISTORICIZAR 32
3.7 CENA 4 – 28 DE MAIO – SALA DE AULA...................................... 36
3.8 ENSAIO 4 – RESSIGNIFICANDO COM AS PROFESSORAS............ 37
4 CENAS DE PEDRO E ENSAIOS...................................................... 42
4.1 CENA 1 – 20 DE ABRIL – PÁTIO DA ESCOLA............................... . 42
4.2 ENSAIO 1 – DA IMAGEM AO TRAÇO............................................. 42
4.3 CENA 2 – 3 DE MAIO – AULA DE CULINÁRIA............................ 46
4.4 ENSAIO 2 – UM TRAÇO COMO ORGANIZADOR DE
UMA IDENTIDADE POSSÍVEL....................................................... . 47
4.5 CENA 3 – 31 DE MAIO PÁTIO DA ESCOLA.................................. . 49
4.6 ENSAIO 3 – DECIFRANDO A EXCLUSÃO..................................... . 50
4.7 CENA 4 – 28 DE JULHO – FESTA DE ENCERRAMENTO ANTES
DAS FÉRIAS....................................................................................... 54
4.8 ENSAIO 4 – HERDAR UMA INSÍGNIA – HERDAR UM LUGAR... 54
5 CENAS DE MARIETA E ENSAIOS.................................................. 57
5.1 CENA 1 – 30 DE ABRIL – PASSEIO AO VIADUTO UBIRICI.......... 57
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3
5.2 ENSAIO 1 – DA DEPENDÊNCIA À AUTONOMIA:
UMA TRANSIÇÃO INTERMINÁVEL?.......................................... 57
5.3 CENA 2 – 3 DE MAIO – SALA DE AULA....................................... . 59
5.4 ENSAIO 2 – UMA MÃE QUE NÃO TRANSITIVA,
UMA FILHA QUE NÃO CONSEGUE ESCOLHER........................... 60
5.5 CENA 3 – 21 DE JUNHO – PÁTIO DA ESCOLA.............................. 62
5.6 ENSAIO 3 – TRANSITANDO EM OUTROS LUGARES
6 MOMENTO DE CONCLUIR............................................................ . 64
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................. 76
4
RESUMO
Este estudo pretende investigar a relação entre as experiências escolares
e a estruturação subjetiva de adolescentes com psicose.
Nossa abordagem parte do registro de atividades cotidianas de três
jovens de uma escola especial do Rio Grande do Sul que servirão de base
para a análise dos casos, adotando-se a construção de caso como modelo
metodológico classicamente aplicável a pesquisas psicanalíticas.
A permanência destes sujeitos na posição infantil, decorrente da não
efetivação das aquisições características da adolescência, é problematizada
a partir do destaque e análise de modalidades de experiências que a escola
tem condições de propiciar e que podem ser constituintes de novas
inscrições psíquicas, diferentes das infantis.
5
ABSTRACT
This study intends to investigate the relationship between the school
experiences and the subjective structuring of adolescents with psychosis.
These individuals’ permanence in the infantile position, due to the fact
that the typical acquisitions of the adolescence had not being accomplished,
is presented as a problem by emphasizing and by analyzing modalities of
experiences the school is able to provide and which are composed of new
psychic registrations different from the infantile ones.
Our approach will start with the registration of three young people’s
daily activities in a special school of Rio Grande do Sul State, which will be
the basis for a case construction as a way of presenting the discoveries of a
psychoanalytic research.
6
INTRODUÇÃO
Abordar o tema relativo aos efeitos possíveis das experiências escolares
na constituição subjetiva dos adolescentes com psicose remete o
pesquisador a uma série de questões inerentes a este campo de estudo.
Os jovens acompanhados nesta pesquisa têm histórico de psicose na sua
infância e quadro ainda persistente no momento da adolescência. Eles não
desenvolveram autonomia para realizarem muitas das atividades cotidianas
comuns a jovens de sua idade e estão excluídos da escolarização regular.
Esta dependência de um adulto constitui o prolongamento de estado
característico da infância que vem problematizar a entrada na adolescência.
As mudanças corporais pubertárias, nestes casos, não estão acompanhadas
da série de mudanças subjetivas características da adolescência. A ausência
destas aquisições pode gerar impasses que encerram o sujeito no circuito da
relação familiar.
Assim, a forma de proposição das experiências de socialização oferecidas
na escola pode ter papel fundamental na viabilização do exercício de um
lugar no social para além do circuito familiar e constituir um espaço para o
reconhecimento do sujeito em outro estatuto, diferente do infantil. O olhar
sobre a questão tenta articular acontecimentos da clínica psicanalítica que
se dedica a compreender a constituição subjetiva às experiências propostas
no campo educativo. Tal articulação é designada por Jerusalinsky (1999a),
de efeitos estruturantes da educação. Estes efeitos são considerados a
7
partir de uma função educativa no sentido mais amplo, logo o foco não é a
aquisição de conhecimento, mas todas as experiências escolares que possam
produzir nova inscrição psíquica.
Para avançar nas especificidades da inscrição psíquica na adolescência,
partimos da conceitualização psicanalítica proposta por Rassial (1997), que
expande a visão psicológica tradicional ultrapassando a tendência de
descrever o adolescer como última etapa da infância ou reconformação
imaginária do sujeito resultante de mudanças biológicas corporais. O autor
considera os fenômenos característicos da adolescência ensaios através dos
quais o sujeito visa à instalação de um novo lugar, diferente do infantil,
constituindo desta forma novas referências simbólicas, distintas daquelas
estabelecidas na infância. Ao produzir-se um momento a posteriori(só
depois) da infância, muito mais lógico do que cronológico, o adolescente
colocaria em causa as marcas que o fundaram, transformando-se a
adolescência no momento para a produção de novas inscrições psíquicas.
As manifestações adolescentes, suas contradições, encenariam a tentativa
de, mesmo que não se produzam novas formas de existência, pelo menos
dar novo sentido as apropriações. Esta “nova condição psíquica” não
depende somente dos aspectos internos do sujeito, mas da instauração de
laços sociais mais amplos. A forma da constituição de experiências
escolares na adolescência passa a ser determinante na criação de
possibilidades de apropriação, pelo sujeito, de um novo lugar, diferente
daquele inscrito na infância e abre, assim, espaço para o compartilhamento
social.
As condições para o sujeito realizar esta apropriação são consideradas a
partir do apontamento de Jerusalinsky (1997) que considera a infância como
o momento para a produção de marcas psíquicas preditivas que
determinariam a estrutura subjetiva na adolescência. Estas marcas se
estabelecem para o autor na relação com o Outro primordial, geralmente
8
encarnado pela mãe. Ao analisar a antecipação das possibilidades do
adolescer a partir da forma com que estas marcas se instituem, conclui que,
se ali a função paterna
1
opera, modifica-se este Outro, transformando-o
num operador que permite a passagem do sujeito à cultura ordenada pela
lei simbólica, e abrindo-se uma série antecipada de possibilidades. Mas, se
este Outro, ao contrário, institui estas marcas como imperativo, a entrada
na adolescência como exercício de distanciamento destas marcas de origem
estaria comprometida.
Os jovens acompanhados nesta pesquisa encontram-se justamente nesta
situação: o fato de estarem estruturados de forma psicótica vem produzindo
dificuldades para que realizem a passagem acima destacada. As
ferramentas simbólicas que o sujeito pode utilizar para fazer este caminho
dependem, como vimos, das inscrições psíquicas resultantes de processo
iniciado nas primeiras experiências infantis, mas que são modificadas em
outros momentos de sua vida.
A foraclusão, considerada por Lacan (1999[1957-58]) a operação que
incide sob a forma da inscrição originária do sujeito, dificulta o
estabelecimento da referência paterna enquanto produto de uma primeira
inscrição psíquica. Assim se configura aquilo que Calligaris (1989) descreve
como impossibilidade de referir-se a amarramento simbólico central e
organizador do psiquismo. Calligaris não considera esta operação um
processo que ocorra em um único lance, pois, em relação a presença da
psicose na infância e aos possíveis prognósticos que poderiam resultar para
seu futuro, utiliza a expressão psicose como não decidida na infância. Ao
analisar o sentido do termo foraclusão no campo jurídico, ressaltando que
quando uma alguma coisa foi foracluída significa que ela não pode mais ser
1
Lacan utilizou em 1953 pela primeira vez a expressão “nome do pai”. Apoiando-se no livro de Claude Lévi-
Strauss, As estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949, Lacan mostrou que o Édipo freudiano
poderia ser pensado como uma passagem da natureza para a cultura. Nessa passagem, o pai exerce uma
função essencialmente simbólica: ele nomeia e, através deste ato, encarna a lei.
9
mudada, retoma o aspecto temporal deste processo e aponta a necessidade
de uma série de tempos diferentes para que esta se realize.
A adolescência para o jovem com psicose, ao ser considerada um “tempo
para uma recapitulação das inscrições estabelecidas na infância” (Rassial,
1997), pode ser momento de fechamento para o sujeito, se houver a
repetição das inscrições como originalmente estabelecidas, ou de abertura,
se as experiências proporcionarem a renovação na forma desta inscrição.
Deste modo, passamos a considerar a psicose como não decidida na
adolescência, uma vez que neste momento abrem-se possibilidades para a
constituição de novas inscrições.
A utilização da expressão “adolescente com psicose” deve-se à concepção
de que a adolescência é um tempo de subjetivação, no qual inscrições
ordenadoras do funcionamento psíquico ainda estão sendo estabelecidas. O
uso do adjunto restritivo “com” exprime condição de abertura, em muito
diferente da expressão implicada na expressão “adolescente psicótico”.
A insistência desta problemática - as experiências na adolescência são
instauradoras de novas inscrições psíquicas? – começou a surgir há dez
anos, quando realizava atendimento psicanalítico individual de
adolescentes com limitações significativas no âmbito das aquisições
psíquicas, em instituição educativa para excepcionais. Tais limitações
determinavam uma cena freqüente: sujeitos com corpos de adultos tratados
pelos educadores como crianças e respondendo de forma infantilizada.
Eventualmente, surgiam manifestações destes jovens que quebravam com
esta aparente homogeneidade. Uma destas aberturas pude vislumbrar a
partir de uma situação que aconteceu durante o atendimento individual
com Getúlio, jovem então com 16 anos.
O atendimento de Getúlio começou no período posterior a um longo
afastamento de sua família, produzido por uma institucionalização fora do
estado que durou dez anos. Neste intervalo de tempo uma rotina se repetia:
10
era mandado para a instituição, ficando a maior parte do ano afastado de
seus pais, retornando para ficar, alguns dias, nos finais de ano, em sua casa.
Experiência que levava os pais a concluírem que: “o melhor é que ele ficasse
longe” (sic).
Quando tinha 16 anos, a família fez mais uma tentativa de levá-lo para
casa, situação que coincide com sua entrada na escola especial. O
atendimento clínico comigo começa logo após ingressar na escola.
Getúlio apresentava-se geralmente apático. Permanecia freqüentemente
“desconectado” dos acontecimentos ao seu redor, ficando a maior parte do
tempo sentado. Na sala de aula, não fazia nada, tinha que receber o lanche
na boca e, se alguma atividade lhe convocava algum interesse, em poucos
segundos, convulsionava.
Aos poucos, vamos construindo alguns trajetos de deslocamento no pátio
durante seu horário de atendimento, e constituindo algumas atividades de
seu interesse: ir à pracinha, abrir e fechar portas - aparentemente nada de
muito significativo.
Até que um dia acontece algo que rompe esta série de acontecimentos
com conteúdos irrelevantes: ele entra no banheiro e fecha a porta deixando-
me “trancado pelo lado de fora”, pois a porta só podia ser aberta por
dentro. Fico preocupado quando a porta se tranca, e a imagem que antecipo
é de Getúlio tendo mais uma crise convulsiva, visto que em outros
momentos sempre que havia algum fato que cortava a seqüência dos
acontecimentos, ele convulsionava.
Bato na porta e pergunto: “Quem está aí”? Não responde. Repito. Logo a
porta é aberta por ele, surge curiosamente sorridente, respondendo a minha
interpelação. (Ele não tinha aquisição da fala articulada, pronunciava
apenas algumas palavras, em circunstâncias muito restritas como “aqui”,
“não”).
11
A partir desta cena, vai articulando no atendimento uma série de
significação marcada por uma seqüência de atividades representadas pelo
abrir e fechar de portas. Transforma-se em sua atividade preferida, ficar no
portão da escola, abrindo e fechando-o, conforme a entrada e a saída dos
carros.
Na sala de aula, este aspecto é interessante ressaltar, a partir de uma
interconsulta com a terapeuta ocupacional responsável pela turma,
instaura-se a idéia dele passar a ser o responsável pela abertura da porta,
que passa a ficar fechada, sendo a chave pendurada ao seu lado. Quando
alguém batia pelo lado de fora, Gelio levanta-se prontamente, pegando a
chave com um sorriso, para abri-la.
A abertura de porta que inicia esta série de acontecimentos se
constituiu naquilo que Lacan (1988[1964]) considera um achado. Este, para
Lacan, é uma solução, não forçosamente acabada, que suscita surpresa. Tal
surpresa é decorrente de um ultrapassamento em relação àquilo que o
sujeito esperava e remete, ao valor único de tal acontecimento, pois ele se
apresenta, mas estás prestes a escapar de novo.
As portas, que durante boa parte de sua vida significaram para Getúlio o
distanciamento que o excluía da relação com sua família, naquele momento,
possibilitavam sua inscrição em relação aos outros de outra forma: haviam
instalado as condições para o exercício de um novo lugar. De uma posição
do sujeito alienada, ele passa a outra que lhe possibilita se apropriar e
constituir um novo lugar na relação com seus semelhantes. A porta, ao ser
aberta de outra forma pelo sujeito, instalou uma nova significação, que se
estendeu para uma série de realizações. Ali, percebi a importância do
registro destes achados e de seu potencial como constituinte de novas
formas de experiência com efeitos possíveis sobre a subjetividade. De uma
posição infantilizada e de dependência dos cuidados dos outros, Getúlio
passou a ter iniciativas e realizar trajetos que diziam respeito a uma nova
12
construção. A novidade remetia à posição singular produzida pela
apropriação que o sujeito realizou de um elemento de sua história.
Estas indagações continuaram nas outras práticas que venho realizando
no acompanhamento clínico de alunos com psicose em instituições
educativas.
Quando da minha entrada no Mestrado de Psicologia Social e
Institucional, propus a realização de um projeto de pesquisa em uma escola
especial que trabalha com crianças e adolescentes que apresentam quadros
de psicose e autismo. Minha vivência foi proposta como participação dentro
das atividades cotidianas dos grupos de adolescentes, das quais registrei
fragmentos de cenas em que eu participava. Entre estes fragmentos,
constam diferentes cenas que incluem acontecimentos na sala de aula, no
pátio, passeios, e dos quais são destacados diálogos com os alunos e
professores.
O principal objetivo desta dissertação é a partir do registro de
fragmentos da experiência destes jovens, refletir em que sentido o momento
da adolescência pode ser constitutivo de realizações instauradoras de novas
inscrições psíquicas para o sujeito ou se, nelas, ocorre apenas a repetição
das inscrições tal como foram constituídas na infância.
No registro destas cenas, utilizei o método de escuta equiflutuante
proposto por Freud: isto significa tentar registrar da forma mais livre
possível as cenas e os discurso dos alunos para em outro momento,
decompô-los a seus elementos (traços), tentando compreendê-los à luz das
conceitualizações psicanalíticas. O método de trabalho adotado, que se
inspira nos princípios metodológicos legados por Freud, pretende
constituir uma construção de caso (Fedida, 1991) a partir das cenas
escolares de alunos adolescentes com psicose.
A estrutura deste trabalho se desenvolverá sob a lógica concebida por
Lacan (1978[1945]) em seu artigo “El tiempo lógico y el acerto de
13
certidumbre antecipada. Um nuevo sofisma”. Neste, a modulação do tempo
é proposta em três partes: o instante do ver, o tempo para o compreender e
o momento para concluir. A introdução se transforma, assim, no instante de
ver a cena: tempo de apresentação para o leitor de um panorama a ser
contemplado. Neste está também incluído um capítulo sobre o método
utilizado, pois, antes de passar ao momento de compreender, tentaremos
esclarecer de que forma propomos nossa intervenção, descrevendo os
passos da investigação.
Na segunda parte do trabalho, configura-se um tempo para compreender:
nele se articularão fragmentos das cenas registradas de três jovens durante
minha permanência na escola, aos conceitos psicanalíticos, constituindo um
conjunto de ensaios. Na última parte, o momento de concluir, no qual
realizarei uma reflexão a partir do trabalho desenvolvido, retomarei
algumas questões que serão apresentadas durante este percurso.
2 MÉTODO
14
Para a composição deste estudo serão articulados princípios
metodológicos do estudo de caso (Stake, 1994) e da construção psicanalítica
de caso (Fedida, 1991).
O estudo de caso será usado na organização do estudo. O caso em
questão serão as experiências escolares de três alunos adolescentes com
psicose, que freqüentam uma escola municipal especial do Rio Grande do
Sul. Stake (1994), quando aborda o sentido do termo estudo, destaca que
este é tanto um processo de aprendizagem sobre o caso como sobre nosso
próprio aprendizado. Nosso trabalho se identifica com o que ele designa de
“estudo de caso coletivo”, não o estudo de um coletivo, mas o estudo
experimental estendido a vários casos aqui representados pelas experiências
dos adolescentes que serão destacadas. A escolha deste método contempla a
singularidade dos sujeitos na realização da pesquisa que é inerente a
construção da história do caso.
O conteúdo desta história vai evoluindo justamente no ato de ser escrito.
O pesquisador emerge de uma experiência social, a observação, para
produzir uma outra, a narrativa. Esta narrativa, segundo Stake, organiza-se
segundo a roupagem do próprio pesquisador, que define finalmente como
será sua forma de apresentação. A apresentação dos fragmentos das cenas
antes da composição de cada ensaio tem o intuito de poder levar o leitor a
conhecer algumas das coisas contadas como se as tivesse experimentado.
Todavia, a narrativa desta história envolve uma interpretação sobre o
caso, que será realizada a partir do método de construção psicanalítica de
caso (Fedida, 1991), elaborado a partir das idéias apresentadas por Freud
em seu artigo “Construções em análise” (1996[1937]). Fedida coloca que o
caso é uma teoria em gérmen, uma capacidade de transformação
psicológica. Deste modo, não existiria história do caso como uma série de
acontecimentos estáticos, mas sempre uma construção que é uma ficção de
idéias. Neste sentido, o relato da experiência também seria uma construção
15
particular do pesquisador, que envolve o registro de fragmentos que não
têm sentido aparente, mas o adquirem na relação com as construções
teóricas subseqüentes. Se as construções do analista a partir de fragmentos
do atendimento podem ajudá-lo a dirigir a cura de um paciente, aqui elas
poderão possibilitar a elaboração que pode viabilizar a comunicação de
uma experiência para a comunidade científica.
A construção do caso é, segundo Fedida (1991), um método de pesquisa
psicanalítica, realizado pelo analista na situação de tratamento, a partir do
registro de fragmentos e lembranças do paciente. Com estes registros em
mãos, ele passa ao exercício metapsicológico, enquanto ficção de conceitos
que começa no momento de escuta do paciente e continua na elaboração
que se efetiva em momento distinto do atendimento. Esta outra cena, em
que o analista reflete sobre sua prática, revela-se um momento de
elaboração fecundo sobre a sua clínica. Tal conduta foi inaugurada por
Freud, que encontrava neste exercício de alteridade fonte de freqüentes
reordenamentos conceituais sobre a sua própria práxis
2
.
Esta ficção de conceitos não parte de um simples relato do caso, mas
daquilo que é designado por Fedida (1991) como enigma do caso. Enigma
que vai se formulando durante a escuta do paciente e se elaborando no
endereçamento que o psicanalista faz, em outro momento, para seu
supervisor. O pesquisador psicanalítico avança em sua pesquisa a partir de
algumas hipóteses, mas tenta, todavia, manter o enigma provocado por sua
prática.
Para Fedida, estas “hipóteses” são da ordem da fantasia e não autorizam
o analista a formar uma interpretação, ou seja, uma fala emanando da
atividade de construção e comunicável ao paciente. O caso, sendo inerente a
uma atividade de construção realizada em um momento de supervisão,
2
Segundo Lacan (1985[1972-73] ), a práxis é o termo mais amplo usado para designar a ação realizada pelo
homem, qualquer que ela seja, que o põe em condições de tratar o real pelo simbólico.
16
enquanto construído, não procederia de um relato. Para o autor, a
antinomia entre relato e construção não existiria. Sendo assim, a história do
caso é sempre construída.
Balbo (1991), ao considerar interpretação e leitura duas coisas diferentes
que não convém que sejam confundidas, diverge da posição de Fedida.
Segundo Balbo, o analista só pode se autorizar a interpretar após ter feito a
leitura do texto, objeto de sua interpretação.
O texto desta pesquisa é composto da narrativa do pesquisador, que
descreve a cena a partir de um modo de olhar e escutar que estão
vinculados ao problema proposto pela investigação. No presente estudo, a
construção envolveu quatro momentos: primeiro, a constituição de um texto
composto pela narrativa que descreve a experiência do pesquisador;
segundo, o lançamento de hipóteses que foram levadas à discussão em
diferentes âmbitos: dentro da universidade, nos momentos de orientação, e
nas reuniões da escola, estabelecidas com as professoras; terceiro, a
composição de ensaios que lançam as hipóteses a uma relação com os
conceitos destacados; quarto, a elaboração de uma conclusão a partir da
retomada de questões levantadas durante o caminho percorrido.
2.1 SUJEITOS: PROFESSORAS
Mesmo sendo os alunos os principais protagonistas desta pesquisa, achei
interessante incluir as professoras, uma vez que as mesmas contribuíram
significativamente para a constituição deste trabalho. Além de aceitarem
17
que eu participasse das atividades propostas, elas se constituíram
interlocutoras importantes neste período em que eu estive na escola. Nos
encontros iniciais, quando da proposição deste trabalho, a supervisora
destacou que realizar uma pesquisa durante certo tempo e depois entregar
uma série de conclusões que muitas vezes as professoras não entendiam não
seria muito produtivo para a escola. Combinamos, então, que se realizariam
três encontros com as professoras das duas turmas em que eu iria participar
das atividades. No primeiro encontro, eu apresentei os objetivos de minha
pesquisa e foram combinados os horários e a forma de minha participação.
Eu passei a acompanhar as atividades propostas por elas durante duas
tardes, no período de quatro meses. Neste primeiro encontro, foi sugerido
por uma das professoras que eu acompanhasse os alunos que realizavam
oficinas de preparação para o trabalho, e eu destaquei que o meu interesse
encontrava-se focado naqueles sujeitos que estavam, justamente, perante o
impasse de sua inserção em um laço social mais amplo. No segundo e
terceiro encontros, constituiu-se um diálogo que se iniciava com a
apresentação de minhas hipóteses, formuladas a partir de fragmentos das
atividades que eu havia registrado. Muitas vezes, o teor das conversas não
se dirigia somente para a tentativa de compreensão da condição subjetiva
do aluno, mas também para a constituição de idéias que permitissem novas
alternativas na sua circulação escolar. As professoras relacionavam estas
hipóteses a outros acontecimentos do cotidiano escolar que, em geral,
estavam ligados a limites encontrados na sua prática como educadores.
Assim, estabeleceu-se tanto um momento de reflexão sobre as minhas
hipóteses quanto um espaço para a ressignificação da experiência
pedagógica. Os momentos de interlocução não se restringiram a estes três
encontros, pois, muitas vezes, durante o café ou no final da tarde,
conversávamos sobre os acontecimentos do dia ou sobre aqueles ocorridos
em outros momentos. Nestas conversas, a minha posição não era a de
18
propor saberes psicanalíticos a elas, mas de escutá-las naquilo que elas
pudessem contribuir para as questões que eu estava pesquisando.
2.2 ALUNOS
Os alunos que compõem os três casos escolhidos estão na faixa entre 14 e
21 anos, têm um quadro de diagnóstico de psicose desde a infância e
apresentam uma limitação na sua estruturação subjetiva que os mantém na
dependência da ajuda de um adulto no que diz respeito a realizarem muitas
das atividades cotidianas. Destes, dois são jovens do sexo masculino e um,
do feminino. Foram usados nomes fictícios para identificá-los: Wilson, 15
anos; Pedro, 18 anos; e Marieta, 15 anos.
A minha participação nas atividades escolares se realizou sem a
proposição de questões antecipadas para os alunos. Quando surgiam temas
escolhidos pelos alunos, eu não interferia e me colocava à disposição para
uma interlocução que não se restringia, necessariamente, ao conteúdo da
tarefa pedagógica. Esta diferença se revelou interessante no percurso do
trabalho, pois permitiu o aparecimento de demandas de escuta em relação a
temas que muitas vezes apareciam na atividade da sala de aula, mas só se
desdobravam em outro momento, no diálogo comigo. A composição destas
narrativas a partir de considerações psicanalíticas tem um potencial que
pode se realizar, na medida em que o sujeito encontra um interlocutor com
condições de reconhecer o desejo singular que todo discurso carrega.
Este elemento relacional toma todo o seu vigor na teoria psicanalítica
quando Lacan (1988[1964]) aponta que toda relação ao outro (semelhante)
está marcada pela relação de cada sujeito ao Outro. Ao observar que o
analista é quem dá lugar ao Outro além do outro (semelhante) por sua
neutralidade, Lacan aposta na idéia de que ao interrogar a posição que o
19
sujeito está em relação a seu Outro, o analista intervém nas possibilidades
de compartilhamento do sujeito com seus semelhantes.
A condição destes jovens é problemática, pois não se efetivou totalmente
a separação da condição de alienação ao desejo do Outro. Esta alienação se
reencena nas experiências escolares e questioná-las neste âmbito pode se
revelar como o motor fundamental para uma mudança que estabeleça
outras referências para o sujeito, propiciando a abertura para um universo
de trocas mais amplo, representado pela cultura.
Desta maneira, a socialização, para destes jovens comprometida até
então, passa a ser compreendida como capacidade de compartilhamento
afetada pela posição singular que cada um estabeleceu com seu Outro
primordial. As experiências escolares, ao contemplarem esta dimensão
subjetiva, se modificam na direção de alternativas que não se limitem a
reencenar a exclusão que vem acontecendo na vida destes jovens.
3 CENAS DE WILSON E ENSAIOS
3.1 CENA 1 – 8 DE ABRIL – SALA DE AULA
20
Neste dia, a professora propõe na sala de aula a atividade de desenhar
hambúrguer. Enquanto desenhavam, Wilson disse:
- Vou pegar o hambúrguer de Pedro dar para o cachorro comer?
Pedro (irritado):
- Pára com isto!
Assim, Wilson começa a fazer a mesma pergunta, sucessivamente, a
todos que estão sentados à mesa, quando me interroga:
- Vou dar o hambúrguer do Volmir para o cachorro comer!
Respondo que o meu hambúrguer eu não vou dar para o cachorro comer.
Sorri, mas repete a mesma frase.
Digo-lhe que parece que o cachorro dele está muito faminto.
Sorri, mas continua insistindo na mesma pergunta, até que a professora o
convida para conversar fora da sala de aula.
Retorna quieto, escreve junto ao desenho: O cachorro é mansinho.
3.2 ENSAIO 1 – LUGARES POSSÍVEIS: VIABILIZANDO
COMPARTILHAMENTOS
Na cena destacada, a insistência do aluno em repetir a mesma pergunta
me intrigou já no momento do registro escrito. No início, fiquei imaginando
se haveria intenção agressiva em jogo, já que a reação de cada colega era
freqüentemente de irritação. Pensei um pouco, num segundo momento,
21
passei a considerar esta pergunta insistente o produto de uma inquietação
que o levava a procurar um interlocutor.
Ao considerar esta inquietude, a partir da observação de Costa (1998),
como decorrente da tensão produzida pela dissimetria da relação entre o
sujeito e o Outro, passei a conceber que a insistência relacionava-se à
tentativa de constituir uma narrativa em que o assunto do cachorro que
gosta de comer hambúrguer estava em pauta.
De fato, ele pergunta para cada um na sala de aula e se satisfaz com o
efeito produzido pela “provocação”. Mas, se pensarmos esta insistência
como uma tentativa de encontrar um interlocutor disponível, chegamos ao
ponto em que a ausência deste o deixará encerrado numa repetição
solitária. A fala só passa a ser efetiva quando produz o deslocamento da
posição do sujeito, efeito do reconhecimento do desejo que seu discurso
carrega. Este reconhecimento decorre da possibilidade de endereçamento
para um interlocutor que, no caso do psicanalista, está atento e disposto a
decodificar os efeitos da posição que o sujeito se coloca em relação a seu
Outro. Ao suportar ser o semblante deste Outro, pode, a partir deste
lugar, interrogar o sujeito e, eventualmente, abrir um campo de significação
inexistente até então.
Nesta primeira cena, quando respondo a Wilson que não vou dar o meu
hambúrguer para o cachorro, não estava em questão a existência ou não de
hambúrguer, nem o quanto o aluno conhecia sobre o objeto, mas a
possibilidade de dar curso àquilo que dizia respeito à manifestação de um
saber prévio do sujeito que estava articulado a uma vivência anterior. A sua
provocação é aceita na dimensão do jogo simbólico e não em sua dimensão
imaginária de duelo mortal.
Depois de a professora levá-lo para fora, ele volta “comportado”, não fala
mais nada, mas escreve ao lado do hambúrguer: “o cachorro é mansinho”.
22
Na realidade, a sua intenção em falar sobre o cachorro persiste naquilo que
ele escreve junto ao desenho.
Neste fragmento de cena, podemos observar que diferentes
interpretações sobre um mesmo discurso produzem distintas posições
possíveis: uma em que ele desafia o saber do outro a um confronto e que,
dependendo da maneira como este convite é tomado, pode instalar um novo
saber; outra em que ele é mansinho, torna-se calado, mas fica encerrado
numa repetição e, consequentemente, sem um compartilhamento possível.
Quando em sala de aula se constitui um lugar para a expressão de teorias
próprias, concepções ou representações do aluno não se está criando
oposição para a aquisição de conhecimento, mas, justamente o momento
para a manifestação de um saber prévio que pode viabilizar o
compartilhamento de um conhecimento proposto. Assim, estes novos
lugares não dependem, necessariamente, de um espaço físico, e sim,
daquela posição que, instalada pelo pequeno detalhe na convivência
cotidiana, é produzida no encontro de um dito do sujeito com a escuta de
um outro.
Este encontro possibilita a construção de narrativas singulares
constituindo, como destaca Sousa (2001), aquilo que pode ser
compartilhado no coletivo. A noção de singularidade passa a ser, diferente
do que faz resistência ao coletivo, o que torna possível produzir um estilo,
uma forma de narrar uma história, e viabiliza a retomada de uma posição
em relação à transmissão, criando condições para o compartilhamento.
Estes jovens padecem da dificuldade de estabelecer narrativas
compartilhadas e o papel da escola, neste caso, não pode se restringir a
demandar a incorporação de um discurso único. Sem a leitura da posição
singular em que o sujeito se encontra, demandar que ele se identifique ao
discurso predominante é enviá-lo a um freqüente fracasso e à exclusão.
23
Quando Rassial (1997) critica a escola por seu unilingüismo, adverte-nos
sobre a importância da existência, no espaço escolar, de diferentes discursos
além daquele denominado por Lacan (1985[1969-70]) como o do Mestre. Tal
discurso tem valor na organização social, visto que nomeia os lugares e os
ordena, mas se revela insuficiente no que diz respeito a responder aos
enigmas propostos pelos impasses na subjetivação encontrados nestes
jovens.
O trabalho de integração de um discurso compartilhado socialmente,
função desempenhada pela escola no momento da latência, para estes
jovens ainda não se realizou. Há uma dimensão da forma de estruturação
destes sujeitos - o fato de ainda estarem alienados ao desejo do Outro
primordial - que dificulta o compartilhamento de outros discursos. O
momento da adolescência, neste sentido, pode ser um divisor de águas: ou
o sujeito consegue se apropriar minimamente de uma posição em relação a
este discurso social a partir do exercício com a diferença – o que implica
afirmar que partimos da constatação de que a sociedade não é organizada
por um único discurso - ou negamos esta realidade e demandamos aos
jovens a troca de uma forma de alienação por outra.
No caso de adolescentes com psicose, consideramos que o contato com
diferentes discursos, desde que oferecidos de forma que a sua integridade
seja respeitada, propicia um jogo de posições que, ao relativizar sua
referência a um discurso único, ao contrário de desorganizá-los, cria
situações em que uma apropriação singular pode se constituir.
Este jovem, quando provoca, produz nos semelhantes uma reação comum
e um circuito de significação no qual ele mesmo se vê capturado. Mandá-lo
ficar quieto e respeitar a atividade proposta não resolve a questão que ele
insiste em recolocar. Romper com este circuito e abrir novas vias envolve
um trabalho de questionamento sobre os elementos desta cena que nos leve
24
em direção a produzir alternativas perante o desafio colocado por Wilson.
Passaremos a outra cena na perspectiva de um avanço sobre nossa reflexão.
3.3 CENA 2 – 22 DE ABRIL – SALA DE AULA
(Neste intervalo de tempo, Wilson passou da turma 2 para a 1. A sua
postura provocativa com os colegas se intensificou, o que levou os
educadores a pensarem em sua inclusão no outro grupo, pois neste os
colegas tem mais recursos, como a aquisição da escrita. O fato de Wilson
também escrever cria, nesta turma, uma via de compartilhamento que na
outra não havia.)
Neste dia a atividade proposta pelas professoras em sala de aula foi a
leitura de histórias. Uma das professoras trouxe alguns livros da
biblioteca. Enquanto ela propunha a leitura, Wilson interrompe:
- Vou dar o hambúrguer do Volmir para o cachorro?
Interessante destacar que, apesar da passagem de tempo, ele realiza a
mesma pergunta. Eu observo:
- Que interessante, queres contar a história do cachorro?
Nada responde. Continuo:
- Quem sabe procuramos nos livros se há alguma história de cachorro?
Começamos a olhar os livros e ver quais as histórias que estão ali.
A professora, então, escolhe uma e propõe a leitura da história do pato
dourado.
Wilson pergunta, logo ao final da leitura:
- Onde está Eduardo? (Este aluno foi seu colega e não está mais na
escola.)
25
A professora comenta que Wilson sempre pergunta por alunos que não
estão mais na escola.
Ela propõe, então, escrever uma lista de seus amigos. Quando esta lista
está terminada, ao observar que são todos alunos que já saíram da escola,
interroga:
- Mas não há nenhum amigo que freqüenta ainda a escola?
Wilson:
- Há o Rafael.
A professora:
- Então, quem sabe o escreve na lista.
Assim que escreve este nome, termina a atividade.
No refeitório, Wilson ao terminar o lanche, sai da sala batendo no rosto
e dizendo:
- Eu não quero ser adulto.
3.4 ENSAIO 2 - IMPASSES NA SUBJETIVAÇÃO?
Neste dia, o que mais me chamou a atenção foi a frase que Wilson disse
ao sair do refeitório:
- Eu não quero ser adulto.
Em outro dia, ele falou na sala de aula:
- Eu não quero ter cabelo no peito.
26
Parece que, ao entrar em contato com a diferença que a percepção da
mudança de sua imagem provoca, ele vacila, pois se depara com um
impasse perante o intempestivo da questão do ser. (Rassial, 1999)
Tal impasse, pertinente ao estado juvenil, é, segundo Jerusalinsky (2004),
o momento em que o sujeito não se encontra perante uma decisão qualquer,
mas na beira de um decidir, estado de instabilidade, de turbulência pela
iminência da decisão. É a situação típica desta etapa da vida, na qual o
sujeito realiza a passagem do estado de proteção característico da infância,
ao de exposição peculiar ao universo adulto. Neste, o sujeito encontra-se
exposto às conseqüências de seus atos e de suas palavras, e o adolescente
antecipa tal responsabilidade: a vida passa a ser decidida a cada instante.
O autor avança em seu raciocínio destacando que o problema de todo
sujeito é o de como se fazer representar, ou seja, o que valem suas palavras
e seus atos no discurso social. Este impasse enfrentado pelo adolescente, na
realidade, expressa o questionamento que eventualmente todo sujeito se
depara: o que eu faço tem valor para quem? Aquilo que o sujeito faz tem ou
não conseqüências, na medida em que a cultura autentica ou não um valor
às suas manifestações, e, neste sentido, dizer o que valem significa dizer o
que simbolizam.
O enigma da entrada na vida adulta passa pela mudança da relação do
adolescente com a sua imagem. A queda da imagem infantil, que até então
garantia a segurança produzida pelo reconhecimento e pelo olhar dos
adultos, ocorre sem que ele ganhe em troca outra forma de reconhecimento.
Perante esta queda, o sujeito entra em “pane”, a partir da qual se instaura o
processo de refundação identitária. (Rassial, 2000)
O prolongamento desta pane o é resultado somente do golpe real que
a mudança da imagem provocou ou das dificuldades de reconstrução
imaginária, mas da qualidade das inscrições fundantes do psiquismo do
sujeito. A adolescência passa a ser um tempo de passagem (Rassial, 1997)
27
em que o sujeito precisa se deparar com o impacto pubertário, golpe real
caracterizado pelas transformações biológicas do corpo, que incita o sujeito
a reconfigurar não só os aspectos imaginários envolvidos nas mudanças de
sua imagem corporal, mas também, constituir nova operação simbólica, na
qual encontra-se implicada a recapitulação das inscrições psíquicas
primordiais.
Para Wilson, este golpe pubertário se impõe, visto que seu corpo já sofreu
modificações na sua forma, entretanto, ele encontra dificuldades naquilo
que diz respeito às outras ordens de acontecimentos destacadas por Rassial:
constituição de nova imagem corporal e recapitulação das inscrições
psíquicas primordiais.
Tais inscrições se constituem segundo Lacan (1978[1949]) na fase descrita
em seu artigo “El estádio del espejo como formador de la función del yo
como se nos revela em la experiencia psicoanalitica”, momento em que a
criança, entre os 6 e os 18 meses, organiza-as em torno de uma
representação primordial do eu. Neste texto, o autor analisa as
conseqüências subjetivas deste momento, no qual a criança passa da posição
de relação com a imagem fragmentada de seu corpo, ao estabelecimento de
uma imagem unificada do corpo, que é reconhecida no espelho e
autenticada pela mãe. Esta imagem, que passa a ser a representação
inaugural do eu, adquire o estatuto de identificação primordial, e é
concebida como transformação do sujeito quando este assume uma imagem. A
importância deste momento para o ser humano se revela ao constituir a
matriz simbólica na qual o eu se precipita em sua forma primeira, antes de
objetivar-se na dialética da identificação com o outro e antes da relação com
a linguagem restituir-lhe o universal de sua relação de sujeito no social. Tal
processo se realiza da insuficiência, na medida em que a pequena criança
ainda não apresenta o domínio motor completo, a uma antecipação, que a
28
relação com a imagem do eu viabiliza, produzindo justamente o domínio
organizado do corpo.
O reconhecimento de uma imagem pelo sujeito faz parte do
acontecimento inaugural que possibilita uma série de processos
identificatórios, construídos pelo jogo dialético entre as imagens do sujeito
e do outro, que pode subseqüentemente viabilizar a entrada do sujeito em
situações sociais elaboradas (Lacan, 1978[1949]).
Para Aulangnier (1996) este acontecimento se problematiza para a criança
com psicose, uma vez que considera que a construção de uma imagem
unificada do eu depende dos pais reconhecerem a equivalência entre o
corpo da criança e um corpo imaginado anteriormente.
As inscrições primordiais instaladas durante a fase do espelho podem
ser reordenadas durante o momento edipiano que para Lacan (1999[1957-
58]) em seu Seminário “As formações do inconsciente”, resultariam da
relação do sujeito com o pai, instauradora da relação do sujeito com a lei. A
função do pai, enquanto simbólico, seria a de uma metáfora. A metáfora
enquanto significante que vem no lugar de outro significante. A função do
pai no Édipo seria a de ser um significante que substituiria o primeiro
significante introduzido na simbolização, o significante materno.
A dissolução do complexo é lida, por Lacan, como o momento em que a
identificação com o pai possibilitaria um recalque do qual o sujeito levaria
os títulos no bolso e, quando chegar o momento, a adolescência, os usaria
para exercer seu lugar.
Quando começa abordar os três tempos do Édipo, Lacan retoma o
sentido deste "no lugar da", que para ele constitui o motor, a essência
representada pelo complexo.
No primeiro tempo, a criança se estabeleceria como um assujeito,
porque se experimenta e se sente profundamente assujeitada ao capricho
daquele de quem depende, mesmo que este capricho seja um capricho
29
articulado. Na busca por satisfazer o desejo da mãe, a criança se
identificaria especularmente com aquilo que é objeto de desejo da mãe.
Entretanto, o ir e vir da mãe pode instaurar a relação do sujeito com Outra
coisa, instalando uma simbolização primordial que abre para a criança a
dimensão do que a mãe pode desejar de diferente, no plano imaginário. O
pai, aqui, teria existência velada, sendo justamente o mediador que
possibilita a relação da mãe com um “para-além”.
No segundo momento, o pai apareceria não como presença efetiva, mas
naquilo que se constitui na relação da mãe com a palavra do pai. A mãe,
quando se dirige a um outro objeto de desejo para além da criança, seria
mediadora da lei paterna. A lei se instauraria entre a mãe e a criança, pois o
objeto de desejo se constituiria na dependência de um outro lugar.
Na terceira fase, o pai se apresentaria como aquele que tem. É a saída do
complexo de Édipo, uma vez que a identificação com o pai é feita neste
terceiro tempo. Esta identificação chama-se Ideal do eu. A importância da
compreensão da constituição da metáfora paterna se revela na medida em
que aquilo que se constitui na época edipiana possibilita à criança a
instituição de alguma coisa que é da ordem do significante, que ficará
guardada de reserva e cuja significação se desenvolverá mais tarde.
A função do pai no complexo de Édipo, como afirmado anteriormente, é
oferecer a criança uma nova significação, produzida pelo efeito resultante
da substituição do primeiro significante introduzido na significação, o
significante materno. Isto não acontece dessa maneira quando eclode a
neurose, porque há alguma irregularidade no título em questão. Na psicose,
podemos pensar que a foraclusão deixaria a criança na posição de assujeito?
Não seria o momento da adolescência propício para que o sujeito recebesse
pelo menos algumas insígnias que viabilizassem sua circulação nas trocas
simbólicas sociais?
30
O terceiro momento, reordenador das inscrições psíquicas, é resultante
da operação pubertária (Rassial, 2000), que depende, como vimos, da
qualidade das outras duas operações descritas. Perante o reencontro com a
fragilidade destas, o sujeito pode ficar numa posição de suspensão, sob a
forma de uma adolescência interminável.
Para Wilson, o não querer ser adulto parece ser correlativo desta posição
de suspensão, e lembrar a passagem do tempo lhe faz deparar-se com a
dificuldade que tem sido, até então, impossível de transpor. A dificuldade
delata a falha na transmissão das insígnias paternas que orientam o sujeito
e lhe possibilitam se deparar com os desafios que envolvem a passagem de
uma posição infantil ao reconhecimento em uma posição adulta dentro da
sociedade.
Para Gagnebin (1998), a tentativa de parar o tempo ocorre para permitir
que uma outra história venha à tona. Esta pode se compor a partir do
acolhimento do descontínuo que é provocado pela interrupção desse tempo
cronológico sem asperezas, da renúncia do desenvolvimento feliz de uma
sintaxe lisa e sem fraturas.
Se a história é, segundo autora, a tentativa de constituir uma narração
que pretende traduzir na sucessão de palavras e frases o encadeamento do
real, podemos considerar que a mudança percebida por Wilson na sua
imagem é um real que irrompe, mas que ainda não foi traduzido em
palavras. Ele está tentando estabelecer esta outra história, traduzi-la de
forma diferente da maneira estabelecida até então. Assim, a parada no
tempo se transforma de recusa à tentativa de instituir um intervalo para a
efetivação de uma historicização.
Lacan (1985[1955-56]) ao tentar avançar nas considerações sobre a
temporalidade da foraclusão, retoma a proposição de Freud em que o
essencialmente novo sobre a memória era a afirmação de que esta não era
simples, mas gravada de várias maneiras. Neste sentido, destaca aquilo que
31
Freud sempre levou em conta: é preciso sempre supor uma organização
anterior, mesmo que parcial, de linguagem, para que a memória e
historicização possam funcionar. Os fenômenos de memória são sempre
fenômenos de linguagem. O significante é dado primitivamente, entretanto
ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar na sua história. É este o
trabalho que ainda está para ser realizado pelo aluno.
3.5 CENA 3 – 8 DE MAIO – AULA DE INFORMÁTICA
É a primeira vez que participo de uma atividade de informática com esta
turma. Quando começa a aula, Wilson passa a chutar um colega
freqüentemente. Ao constatar sua atitude, digo-lhe que esta não é a forma
de se tratar um colega. Ele pára de chutar e me pergunta:
- Volmir, você tem um carro?
Respondo:
- Sim, eu tenho.
Wilson continua as perguntas, vou respondendo:
- Qual foi o teu primeiro carro?
- Um fusca.
- E o segundo?
- Um passat.
- E o terceiro?
- Um fusca, de novo.
Pergunto para ele se quer pesquisar, na Internet, algo sobre fuscas.
Ele coloca o nome “fusca” na página de pesquisa. Aparecem algumas
opções, mas entramos na página do “Clube do fusca”. Ele se interessa pelo
ano em que foi fabricado o primeiro fusca e o último ano de fabricação.
32
Pergunto, então, se a família dele tem carro. Não responde nada, mas
coloca na página de busca brasília, depois palio.
Neste momento, irrompe Pedro na sala de aula querendo falar comigo. A
situação fica meio complicada, pois Pedro não quer retornar à sua sala.
Explico a Wilson que vou acompanhar Pedro até sua sala e retorno logo.
Ao retornar, percebo que Wilson tinha colocado a palavra “morto” no site
de busca. Não pesquisamos nenhuma página a respeito. Logo, coloca a
palavra “manso”. Olhamos o site sobre o rio manso. Escreve a palavra
“brabo”, quando termina a aula.
3.6 ENSAIO 3 – DO IMPASSE À TENTATIVA DE HISTORICIZAR
A partir desta cena, passo a destacar alguns fragmentos que indicam a
tentativa de contorno, por parte de Wilson, ao impasse provocado pela
expressão “não quero ser adulto”.
Destaquei anteriormente que sua dificuldade na antecipação de uma
imagem adulta o deixava cativo a uma posição infantil. Como vimos, essa
imagem é resultado de um processo identificatório que inicia com a
assunção da imagem do eu, na fase do espelho, e continua através de vários
acontecimentos, durante a vida do sujeito. Por alguma razão, estes
acontecimentos que oferecem uma seqüência de lugares associados a
diferentes imagens que o sujeito passa a se identificar, ficaram
comprometidos para o sujeito. Ele não consegue se separar deste saber que
o constituiu, ficando alienado a este lugar.
Para a psicanálise, a alienação é o processo constitutivo da subjetividade
de qualquer um. Se o desejo do homem é o desejo do Outro (Lacan,
1985[1972-73]), não há como o ser humano acessar a linguagem se não
passar por um momento de alienação perante este desejo. A entrada na
33
linguagem para o ser humano não é um processo natural. É preciso que
alguém, encarnando o Outro primordial, ofereça significantes para o sujeito
aí se representar. O ordenamento inicial destes significantes é proposto
pelo Outro que significa os acontecimentos da vida do bebê. Então, o
sujeito se aliena, se identifica ao saber do Outro, para no momento seguinte
se separar, se exilar daquele saber que o constituiu.
Para o aluno, é justamente este processo de separação que se apresenta
como impasse. Parece que, na relação com o vir a saber o que é ser adulto,
Wilson responde que “não quer”, havendo uma escolha que lhe situa em
um “não quero saber sobre o que é ser adulto”. O aluno está numa posição
em que não encontra ferramentas para realizar a separação daquilo que lhe
constituiu nestes termos: você não pode ser adulto.
A ferramenta para realizar a separação e acessar outro saber diferente é
uma falta, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro
por seu discurso” (Lacan, 1985[1972-73], p. 203) Isto significa que, ao ouvir
as palavras, a criança se interroga: ele me diz isto, mas o que ele quer?
Parece justamente a pergunta que não se sustenta para o aluno, uma vez
que não querer ser adulto aparece como certeza. Desta forma, consideramos
que a dimensão de futuro e sua história ficam comprometidas.
Se partirmos da concepção de que só há sujeito a partir de uma história,
considerando a abordagem de Calligaris (1996) – na qual o exercício de
nossa subjetividade depende da nossa relação com a nossa herança
estabelecida por nossa origem e nossa história - as condições de
subjetivação só podem ficar restabelecidas na medida em que o sujeito
possa se confrontar com aquilo que diz respeito à sua origem. Então, esta
recusa em saber sobre o futuro se revela também a recusa em saber sobre
suas origens.
Freud (1996[1910]) em “Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci”
afirma que a pulsão epistemofílica - isto é o impulso de saber - nasce ligada
34
ao modo como se configurou na infância a indagação, proibida ou
permitida, sobre a cena primária e apresenta a relação com a sexualidade e
com a origem. Assim, a forma como o adulto aborda estes questionamentos
infantis tem efeito determinante na maneira como o impulso de saber vai se
configurar no futuro.
Mas, se a pergunta sobre as origens é em alguns momentos recusada, em
outros, curiosamente, ela ressurge ainda que de modo discreto. Na pesquisa
da Internet, quando fazemos a busca das páginas sobre fuscas, ele se
interessa pela data de início e de encerramento da fabricação do carro.
Antes disto, ele havia me perguntado qual foi o meu primeiro carro, o
segundo, o terceiro, e parece compor, assim, uma série que relaciona os
carros a determinado período de minha vida. Este recorte na “existência”
do fusca destaca uma seqüência temporal possível, mediante a qual ele
tenta simbolizar a passagem do tempo, aqui considerada não como
intervalo linear, mas como tentativa de ordenação lógica singular imposta à
sua história, o que em outros momentos se revelou impossível. Seu
interesse pelo primeiro ano de fabricação do fusca (nascimento) e último
ano (morte), parece constituir uma outra cena, com a qual ele consegue
esboçar uma interrogação sobre sua própria origem.
Este interesse reaparece em outro dia, quando chega ao ginásio para a
aula de educação física, Wilson vem na minha direção e me pergunta:
- Qual é o nome do teu pai?
- Henrique.
- Que idade ele tem?
- Ele já morreu.
- Quando?
- Em 1994?
- E o nome da tua mãe?
- Lúcia.
35
- Que idade ela tem?
- 68 anos.
O interessante a ressaltar nesta seqüência é que, no interesse em
demarcar uma temporalidade, surge seu contato com o tema da filiação
(que idade tem seu pai?) e, consequentemente, uma abordagem possível ao
tema das cadeias geracionais.
A pergunta inicial - Qual é o nome do teu pai e que idade ele tem –
demonstra um interesse na constituição de uma lógica possível entre as
gerações, constituindo para ele justamente a organização de saber sobre
aquilo que vem se apresentando como ausente, já que, para ser adulto, o
adolescente precisa se deparar com a transmissão enquanto perda (Rassial,
1997). Esta perda tem vários sentidos: a renúncia aos aspectos infantis,
mas, também, o fato de que, ao abandonar este lugar, ele precisa encontrar
outro lugar na relação com aquilo que lhe foi transmitido.
Aos poucos, o jovem vai constituindo uma teoria singular sobre a
passagem do tempo, na qual um saber sobre a origem vai se articulando.
Passa de posição de certeza para a de dúvida, em que uma narrativa se
constitui e suas interrogações vão se estabelecendo. Se levarmos adiante a
afirmação de Bergés e Balbo (1998) de que a criança só estabelece uma teoria
na medida em que, em algum momento, a mãe a supôs capaz de fazê-lo,
podemos considerar que o alcance de tal tentativa deste sujeito pode ser
observado no jogo de posições constituído na situação antes relatada: ao
interrogar sobre aspectos da minha origem e filiação, estabeleceu-se uma
cena na qual ele pode constituir algum movimento em que uma história vai
se tematizando, produzindo uma forma de saber articulado de outra
maneira sobre sua existência. Este espaço no seu cotidiano passa o suporte
para interrogar-se sobre a teoria que ele mesmo construiu, relativizar este
saber antecipado vindo do Outro que ainda insiste.
36
3.7 CENA 4 – DIA 28 DE MAIO – SALA DE AULA
No final do dia, converso com as professoras desta turma, e elas colocam
que está muito difícil trabalhar com Wilson, pois a todo o momento queria
chutar alguém ou falar sobre o chulé do pé. Isto as levava a ter que estar
constantemente dizendo para ele que não podia fazer este tipo de coisa.
Por outro lado, a professora Helena mostra um trabalho que lhe foi
proposto, no qual seu nome foi escrito no meio da página e uma colega,
Danilaura, ia sugerindo adjetivações positivas. Paralelamente a professora
ia fazendo perguntas a Wilson:
- É gordo?
- Mais ou menos.
- Tem chulé?
- Não.
Conversamos sobre as possibilidades criadas nesta cena, principalmente
no que diz respeito à constituição de uma série que não fosse uma repetição
des-subjetivante. A professora Helena comenta sobre a tendência de propor
seriações sem uma apropriação por parte do aluno.
3.8 ENSAIO 4 – RESSIGNIFICANDO COM AS PROFESSORAS
Esta cena traz muitos elementos interessantes para a continuidade de
nossa reflexão.
37
A primeira diz respeito a esta questão: “há uma boa forma para
transmitirmos um saber?”
A intenção pedagógica tradicional parte da idéia de uma possível
adequação antecipada entre as intenções desta intervenção e os estados do
sujeito. A idéia de uma possível adequação natural entre a intervenção
pedagógica e os estados do sujeito se estabelece, para Lajonquiere(2000), na
fé cega em ajustar as tarefas escolares a um suposto nível de
desenvolvimento de natureza psicológica, do que resulta, no campo
educativo, a redução do estofo próprio dos conteúdos culturais a serem
ensinados. O cerne da questão estaria no fato de que a introdução maciça
dos saberes psicológicos modernos na educação é recortada pela sonhada
possibilidade de virmos adequar, naturalmente, os meios aos fins
educativos. Este naturalismo psicologista (Lajonquiere, 2000) apagaria o fato
de termos que pensar nos efeitos reguladores ao aplicarmos, por exemplo,
uma sanção. Esta pergunta seria ocupada pela conveniência psicológica de
agir junto a criança em nome de alguma lei.
Assim, o fracasso na educação seria explicado pela falta de adequação
entre a intervenção dos adultos e o estado psicomaturacional da criança e
do adolescente. Dentro desta lógica, a solução seria readequar a intervenção
a este suposto nível de desenvolvimento.
Uma outra forma de conceber este fracasso na tarefa educativa está
presente na idéia de Melman (1994), que aponta o fato de que o educar se
realiza na referência à nossa própria educação, com a qual temos sempre
uma relação ambígua: na medida em que a amamos, visto que a ela
devemos tudo que somos; e a detestamos, pois é evidente que ela fracassou
conosco. Perante o insuportável deste paradoxo, imporíamos o recalque
para transmitir o saber a partir de uma posição ideal, com o que esperamos
freqüentemente, que as crianças e os adolescentes nos devolvam a
mensagem enviada no ato educativo literalmente. O resultado desta
38
operação é a produção permanente de um resto, decorrente do descompasso
entre o envio da mensagem e seu retorno. Como seguir adiante, uma vez
considerando tal paradoxo?
Para avançar, o educador precisa questionar-se a partir dos obstáculos
encontrados. Para isto se realizar, é necessário haver um tempo para que os
adultos reflitam e elaborem a angústia da qual são suporte. Neste sentido a
pedagogia, vai se transformando na medida em que abandona seu meio
tradicional. Assim, ao contrário de partir da idéia de que há uma série de
conhecimentos pré-formatados, que precisam ser transmitidos ao aluno,
parte-se da constatação de que não há saber antecipado que dê conta da
intenção educativa.
Este saber passa a ser construído com o sujeito a cada encontro, tendo-se
em vista que a falha na estrutura de um saber, ao contrário de ser objeto de
constrangimento, é aquilo que pode transformar-se num potencial para a
criação.
No início, é trazido o fato de que o jovem insiste em se relacionar com os
outros de forma agressiva. Na medida em que lhe são propostas outras
formas de manifestação, ele se envolve de outra maneira na atividade: o
chute com o pé e o chulé reaparecem, mas numa situação de diálogo. Este
diálogo se constituiu, foi construído, na própria cena, no encontro entre a
professora, a colega e o aluno. Assim, estabeleceram algumas condições
para a expressão do sujeito que estava inicialmente encerrado numa
repetição agressiva.
Lacan (1978[1948]) começa o seu artigo “La agressividad em
psicoanálisis” observando que a constituição de um diálogo parece, em si
mesmo, constituir uma renúncia à agressividade. Todavia, a insistência do
aluno em relacionar-se com seus semelhantes de forma agressiva permanece
enigmática. Ela se repetia de um modo característico: não havia um rival
39
escolhido, pois qualquer um que passava podia ser objeto de suas intenções
agressivas.
Este aspecto indiferenciado parece ser correlativo ao que Lacan designa
no artigo acima citado, como um modo de identificação narcisista na qual o
sujeito não consegue considerar o outro na sua diferença. Neste sentido, o
sujeito confunde parte do outro consigo mesmo e identifica-se com ele,
inaugurando uma relação denominada por Lacan de “drama do ciúme”
(Lacan, 1981[1958]). Este drama se instala a partir de uma construção
imaginária do eu do sujeito, realizada na fase do espelho, e portanto,
anterior à entrada no Complexo de Édipo.
Este Complexo de Intrusão, característico em crianças entre 6 meses e 2
anos de idade, revela que a estrutura do ciúme desempenha um papel na
gênese da sociabilidade e do próprio conhecimento humano. A relação com
a imagem do outro (semelhante) se elabora a partir de uma relação
especular e evolui para uma relação que comporta um terceiro objeto.
Neste momento, há uma encruzilhada na qual o sujeito pode recusar a
diferença que a presença do outro encarna na relação com o objeto e tentar
destruí-lo ou recebê-lo “sob a forma característica do desejo humano, como
objeto comunicável, pois a concorrência envolve rivalidade e acordo; mas
ao mesmo tempo ele reconhece o outro com o qual se empenha na luta ou
contrato, numa palavra ele encontra o outro e o objeto socializado.” (Lacan,
1981[1958], p.47)
A partir da repetição instalada na cena, localizamos um aspecto
dramático da existência do aluno: a tentativa de elaborar uma diferença
entre si e o outro. Esta tentativa de produção de um terceiro felizmente
encontra suporte na seqüência da cena, durante a atividade proposta na sala
de aula: o jogo com a imagem do eu e do outro permite o acordo e o
compartilhamento de um objeto do conhecimento. Este aspecto
40
proporciona um efeito na própria constituição subjetiva do sujeito, pois
opera uma diferença na forma do sujeito se representar perante o outro.
Quando a professora escreve o nome de Wilson no centro da folha e a
colega começa a dizer como o vê, atribuindo-lhe adjetivações positivas, se
instalada através do jogo, uma mediação das diferentes imagens que são
constituídas pelos diferentes olhares na cena. A escrita de Wilson organiza
aquilo que é dito, compondo uma narrativa a partir da forma como cada
uma delas o vê. Ele é alçado a um lugar de reflexão quando a professora lhe
pergunta se ele concorda com o modo como ela o vê:
- É gordo?
- Tem chulé?
De uma rivalidade narcísica, em que o ataque se dirige à imagem do
semelhante, Wilson passa, através das mediações oferecidas pela
professora, a uma troca social na qual o jogo com as imagens estabelece
aquilo que Lacan (1978[1948]) designa de função imaginária na constituição
do sujeito.
A professora realiza tal percurso com o aluno, no entanto, não consegue
reconhecer, inicialmente, o valor de tal construção. A partir da conversa
instalada desde o relato, ela ressignifica estes acontecimentos, identificando
a possibilidade de apresentação de experiências com efeitos possíveis na
constituição subjetiva do sujeito. A criação desta possibilidade foi
resultante do processo de questionamento da professora sobre sua forma de
educar.
41
4 CENAS DE PEDRO E ENSAIOS
4.1 CENA 1 – 20 DE ABRIL – PÁTIO DA ESCOLA
Estou no pátio, no horário do intervalo, Pedro chega correndo em
minha direção, com um pedaço de papel recortado de uma revista. Me
mostra e diz:
- Ele tem cavanhaque.
Pego o pedaço de papel na mão para ver quem era “ele”. Era uma foto do
escritor Umberto Eco.
Pergunto:
- Sabe quem é ele?
- Não.
42
- É Umberto Eco, um escritor. Pegaste a foto por causa do cavanhaque do
homem?
- Sim, ele tem cavanhaque. (Fazendo um sinal com a mão na frente do seu
rosto aludindo a forma do cavanhaque) Vou deixar crescer um
cavanhaque igual ao teu. (Nesta época eu também tinha um cavanhaque)
- Igual não, pode ficar parecido.
- Cavanhaque é bom?
- Depende para quem.
4.2 ENSAIO 1 – DA IMAGEM AO TRAÇO
A raiz das questões que começam a se desenvolver neste ensaio se
estabelece a partir da pergunta: Por que Pedro está investindo neste traço
da imagem do outro, o cavanhaque, e qual o lugar deste na composição de
uma identidade para ele.
Algo de relevante já se observa neste pequeno percurso. Pedro elege
uma insígnia da masculinidade e em torno dela faz uma série de relações
que principiam com o destaque do cavanhaque na foto e seu interesse em
mostrá-la para mim, passam pela manifestação de querer ter um igual ao
meu e terminam com a pergunta sobre se ter cavanhaque é bom.
O interesse pelo cavanhaque e a série de significações que ele vai
construindo revelam um momento específico do trabalho identificatório
realizado pelo aluno. Este trabalho é balizado pela relação com um traço do
outro no qual Pedro investe.
A relação de investimento no outro mediada pelo traço é articulada por
Freud (1996[1921]), em seu artigo “”Psicologia das massas e análise do eu”,
a partir da diferenciação entre os fenômenos sociais, nos quais há um
investimento do sujeito em outras pessoas, e processos que ele descreve
43
como “narcisistas”, em que este investimento não existe ou está diminuído.
Desta forma, a relação com o outro permite que o sujeito expresse certas
idéias ou sentimentos que na forma narcisista não se manifestariam.
Incluindo-a entre as primeiras formas de relação social, o autor descreve
a identificação como a mais remota expressão de laço emocional com outra
pessoa. Na teoria psicanalítica, trata-se de um conceito que tem várias
significações, conforme o contexto em que é utilizado. Quaisquer que sejam
as variantes, o termo genérico supõe a tendência própria ao ser falante de
assimilar, simbolicamente, uma parte de uma entidade dele separada.
Kaufmann (1996) ressalta que o termo identificação adquire
fundamental importância no paradigma psicanalítico, embora seu sentido
tenha sido modificado na evolução da teoria e na relação com outras
categorias conceituais. Na concepção proposta pelo autor, a identificação,
de fato, as identificações são processos resultantes da hesitação do sujeito
entre o "eu" e o "outro", ao passo que a identidade corresponderia ao fato
de, finalmente o sujeito encontrar um eu que poderia (ilusioramente) estar
livre de qualquer relação de objeto.
Freud, no artigo acima citado, parte das relações que a criança
estabelece com os pais no complexo de Édipo para pensar o papel da
identificação na constituição da identidade para o sujeito. Para o menino,
esta relação se estrutura a partir de dois laços psicológicos: o investimento
na mãe como objeto sexual e a identificação com o pai, tomando-o como
modelo. A identificação com o pai é ambivalente desde o início, pois se ele
é um modelo a ser seguido, é também alguém que passa a se interpor entre
a criança e a mãe.
Esta relação entre ambivalência e identificação percorre o texto
freudiano, e o autor se pergunta sobre qual a razão que leva o eu do sujeito,
em algumas situações, a copiar a pessoa amada, e em outras, a que não o é.
No artigo "A dissolução do complexo de Édipo"(1996[1924]), Freud dá
44
acabamento à sua teoria da identificação ao configurar a saída do complexo
de Édipo como a resolução da ambivalência edipiana. Esta seria substituída
por uma segunda identificação, na qual a criança desinvestiria das imagens
parentais para se identificar com um "x" que seria seu futuro. No lugar do
"quando eu crescer vou tomar o lugar do outro", problemática instaladora
do Édipo, surge "vou fazer meu próprio lugar”. Esta construção viabiliza
uma saída do complexo e uma resolução que é provisória, pois ela se
apodera dos traços para utilizá-los não imediatamente, mas no momento da
adolescência.
A adolescência, neste sentido é concebida como o momento de
“reativação” do investimento destes traços que serão colocados à prova
numa outra relação, diferente da constituída com os pais.
O momento em que Pedro se encontra parece se caracterizar pela
tentativa de constituição deste lugar próprio, de uma identidade que
permita que ele se faça representar dentro das trocas sociais. A relação com
o traço masculino nesta cena, todavia, fica marcada pela ambivalência, já
que, na relação com este traço, ele quer ser igual, isto é, toma o outro como
uma imagem ideal que ele deseja ocupar.
Quando respondo a ele que não vai ficar igual, e sim parecido, tento
resguardar um espaço para seu interesse pelo traço, mas não proponho a
minha imagem como um ideal.
Estas perguntas insistentes em torno de um traço que sustente uma
identidade possível, ao revelarem a fragilidade do aluno, podem levar o
analista a querer produzir um apoio identificatório. Desta forma, corre o
risco de confundir suas próprias questões com a do jovem, tentando suprir
as faltas a partir do que imagina que falta a ele, ao abordar o problema
desde sua própria condição. Quando ele me pergunta se cavanhaque é bom,
lhe respondo que depende para quem, pois considerei necessário produzir
uma abertura, através da qual ele se deparasse com uma possibilidade de
45
escolha. Escolha que ele próprio faz no início da cena, já que é ele quem
traz a foto e destaca o “cavanhaque do homem”, mas cujas dificuldades
para sustentá-la manifestam-se quando pergunta, no final da conversa, se
“cavanhaque é bom”.
As metamorfoses da relação de Pedro com os traços serão nosso guia para
a abordagem das outras cenas, levando em conta seu trabalho identitário na
relação com o traço do outro.
4.3 CENA 2 – 3 DE MAIO – AULA DE CULINÁRIA
Fomos para a aula na sala de culinária. Enquanto nos dirigíamos para
lá, Pedro notou que eu estava usando botas. Pergunta:
- É de gaúcho?
- Não é de gaúcho.
- Eu quero ter uma igual.
- Se quiseres comprar uma...
Nos sentamos à mesa para a atividade de culinária. Pedro quer conversar
sobre a bota. Digo que primeiro vamos fazer as atividades de culinária e
depois conversaremos.
Quando a massa do pão de queijo fica pronta, ficamos conversando numa
roda. Pedro retoma o assunto.
- O que é gaudério?
Respondo:
46
- É uma forma de chamar alguém de gaúcho.
Pedro:
- Eu tenho um amigo que toca violão.
- É mesmo.
- Ele toca assim, ó. (Fazendo o movimento como se estivesse tocando
violão)
A professora sugere:
- Nós podemos convidar teu amigo para vir tocar aqui na escola.
Pedro:
- Tu usas bombacha?
Respondo:
- Não uso.
- A tua calça é igual a minha. (Apontando para a dele e a para a minha)
- Não, são diferentes.
- Eu quero comprar uma bota.
- Tu podes pedir para o teu pai.
Termina a aula.
4.4 ENSAIO 2 – UM TRAÇO COMO ORGANIZADOR DE UMA
IDENTIDADE POSSÍVEL
Nesta cena, o diálogo se vetoriza na relação com a série de traços
componentes da identidade do gaúcho. Esta identidade é usada como
referência de Pedro em suas interrogações, as quais partem da percepção de
minha bota que, apesar de não ser de gaúcho, evoca uma seqüência de
características associadas a esta condição.
O uso do termo identidade mostra-se problemático na medida em que
pode resultar na idéia, inerente a este conceito, de que haveria
representação do eu que desse conta de uma totalidade. A fusão entre o
47
“mesmo” e o “outro” é, na realidade, como sugere Freud, uma fantasia de
incorporação. Ao nos guiarmos pela gênese do traço, partimos da idéia de
que a relação de Pedro com a identidade gaúcha importa uma vez que ela
pode constituir suporte imaginário para o sujeito.
Tal suporte é resultado de um processo identificatório, considerado aqui
uma prática de construção de significação para o sujeito suscetível ao jogo
da semelhança e da diferença. Este pode, ao inserir o sujeito em outras
formas de relação com o outro, produzir novas fronteiras simbólicas. A
marcação de fronteiras pode se dirigir a um fechamento, anulando a
diferença que a relação com o outro instala, ou a uma abertura através da
qual é possível romper com a procura de um ajuste completo entre a
imagem do eu do sujeito e a do outro.
A esta altura podemos perguntar: de que modo um simples traço pode
Ter efeito de organização sobre a identidade?
Freud (1996[1921]) se depara com esta situação ao observar que sua
paciente Dora apresenta uma série de determinações que estão organizadas,
em sua vida, a partir da identificação que realiza com seu pai através de um
traço: sua tosse. É com a retomada desta observação que o autor elabora o
conceito de traço único como traço isolado que é tomado de uma pessoa
significante da pessoa. Este traço pode passar a Ter um valor de assinatura,
isto quer dizer, transformar-se naquilo em que pode ser lido algo da
identidade do eu do sujeito. Assim, a identidade está articulada a um
objeto que é apagado pelo efeito mesmo de marcação do traço, através do
qual se organiza um lugar possível desde onde o eu pode se reconhecer.
Neste sentido, a identidade se organiza a partir de uma falta que a
existência mesma do traço revela.
Kaufmann (1996) observa que Lacan, em seu seminário A transferência
traduz este traço único por traço unário, ressaltando assim, além da função
unificadora estabelecida por Freud, uma função distintiva que, insere o
48
sujeito na relação com uma “pura diferença”. Lacan começa seu seminário
justamente questionando a noção de “identidade” perante a estrutura do
significante. Nesta, não há o mesmo, mas uma relação de pura diferença. O
traço unário passa a ser um significante que só pode ser reencontrado na
sucessão de significantes produzida pelo sujeito. Se, em Freud, o traço
único tem função unificadora que, produz alguma unidade possível para o
eu; em Lacan, o traço unário revela a dimensão de um sujeito do
inconsciente, que reencontra algo de seu ser como efeito da produção de
uma sucessão de significantes.
Segundo a mesma linha de raciocínio, se, para Freud, a relação de Pedro
com os traços da identidade de gaúcho produzem a possibilidade de
representação unificada para seu eu; para Lacan, a seqüência articulada por
ele permite que ele possa se contar na repetição, pois, ao dar uma volta, ele
reencontra uma “unicidade” significante. O traço unário não é
necessariamente um destes componentes da seqüência, mas efeito daquilo
que já marcou Pedro e que volta a se apresentar. A identidade de gaúcho,
como destacamos, tem valor aqui não como imagem que dê conta de uma
totalidade em que ele possa se espelhar, mas, justamente, naquilo que
oferece traços (significantes) nos quais Pedro possa tramar novas
significações.
Neste sentido, os objetos o reinvestidos na medida em que carregam
traços de uma relação anterior, na qual o sujeito conseguiu minimamente se
fazer representar. Tais vivências constituíram rastros significantes que ele
reencontra numa experiência atual. A sua percepção, no início da cena, de
que eu estava usando botas, atualiza traços de lembranças, instalando uma
retranscrição (Freud, 1996[1896]) que envolve não somente o processo de
rememoração, mas uma re-significação de suas vivências anteriores.
Pedro, na relação com este conjunto de traços “gauchescos”, constitui um
exercício identitário pelo jogo das semelhanças e diferenças. “Tu usa
49
bombacha?” e “a tua calça é igual a minha?” são as questões que ele coloca,
procurando constituir uma forma de se representar que permita a ele se
apropriar de uma posição em relação a objetos que são simbólicos, pois
viabilizaria sua inserção em alguma modalidade de troca social possível.
4.5 CENA 3 – 31 DE MAIO – PÁTIO DA ESCOLA
Durante a aula, Pedro estava muito agitado. Em certo momento,
começou a pisar no meu pé. Disse para ele que, se ele quisesse,
conversaríamos depois, mas que não precisava pisar no meu pé.
No intervalo, no pátio, chegou com um ônibus em miniatura na mão e
começou a quebrá-lo. Atirou suas chaves no chão com raiva, quando
perguntou:
- Quebrar é bom?
- Às vezes a pessoa está braba e tenta dizer isto quebrando alguma coisa.
- Vou para a escola Toiama.
- É mesmo, mas não é ainda o momento de sair.
- Já estive no Recriar, quando era pequeno.
- Ficaste quanto tempo lá?
- Saí porque bati.
Na aula de Educação Física, a conversa continua.
- Vou para o Nazareth, lá vou usar óculos grandes (Fazendo um sinal com as
mãos) e depois vou jogá-los no vaso. Jogar no vaso é bom?
Pergunto:
- Quem jogava óculos no vaso era o Rafael?
Pedro:
- O Rafael chutava. Por que ele chutava?
- Ele devia estar brabo com alguma coisa.
50
- Chutar é bom?
4.6 ENSAIO 3 – DECIFRANDO A EXCLUSÃO
Nesta seqüência, a interrogação inicial surgiu quando comecei a
considerar a razão de haver circularidade na série de significações
produzida pelo aluno. Se, na cena anterior, a relação com os elementos da
identidade de gaúcho lhe alçava a uma lugar simbólico, a um lugar de
reconhecimento que o inseria na relação com os semelhantes, nesta cena,
surgem vários elementos que remetem à temática da exclusão.
Esta tendência a exclusão surge no início do diálogo: quando eu o
interrogo sobre a razão de estar “brabo”, responde dizendo que vai para a
Escola Toiama. Tal saída está relacionada com sua tendência a bater.
Quando ele se depara com uma desorganização que lhe leva a querer
quebrar, antecipa a possibilidade de ser excluído, de ser mandado para
fora. Quando fabula a sua entrada em outra escola, também encena uma
repetição de sua exclusão, pois usa óculos grandes e joga-os no vaso, assim
como Rafael fazia – um dos comportamentos que acabou inviabilizando a
permanência deste aluno na escola.
A antecipação de exclusão relativa parece demonstrar a dificuldade do
aluno em destacar-se dos efeitos produzidos pela exclusão que as vivências
infantis produziram. Ele saiu da infância, mas não se destacou de uma
posição infantil.
Os conceitos de infantil e de infância são heterogêneos. O primeiro foi
cunhado por Freud a partir da constatação, freqüente na escuta de seus
pacientes neuróticos adultos, de uma formação psíquica inconsciente
constituída por traços organizados em uma lógica diferente da cronológica.
Esta formação, o infantil, possibilita que pessoas adultas tenham
51
experiências infantis em qualquer momento de sua vida. O fato disto ser
prazeiroso ou produzir sintomas é justamente o que Freud constatava em
seus pacientes. Desta forma, a infância é um momento cronológico que
passa à medida que o tempo transcorre e o infantil é uma formação psíquica
que carregamos intimamente e que revela a dimensão inconsciente e
atemporal do psiquismo humano.
Para Pedro, a relação com este infantil está produzindo sintomas, e lhe
enviando a uma posição de exclusão, resultante do descompasso entre
aquilo que lhe é demandado e o que ele consegue oferecer. A percepção
deste desencontro, constitui, segundo Melman (1999b) não uma exceção
mas, a entrada na vivência da adolescência na atualidade. A perda das
referências é provocada pela percepção de que a promessa realizada pelos
adultos na infância, “quando crescer vais poder fazer coisas que não podes
fazer agora”, revela-se enganadora. A resposta possível é a procura de
novas referências, ou, como descreve Rassial (1999), a visada de um novo
lugar, que leva os adolescentes, normalmente, ao gosto pela exclusão.
A condição de Pedro parece ser diferenciada da caracterizada por Rassial.
Ao contrário de um gosto pela exclusão característico da posição
adolescente, ele se encontra num padecimento resultante do retorno de uma
série de traços que, no seu conjunto, produzem uma significação que não
lhe outorga um lugar. Ao confrontar-se com o retorno desta inscrição
mnêmica, ele não consegue destacar-se dela, ou seja, repete a mesma
significação.
Balbo (1991) constitui uma gênese interessante que pode nos auxiliar no
avanço de nossas considerações. Partindo da idéia desenvolvida por Freud
no capítulo VII, da Interpretação dos Sonhos, e pela elaboração retomada por
Lacan, em seu Seminário ”Os escritos técnicos de Freud”, o autor considera
que a criança, ao ser confrontada com uma massa de solicitações, de
excitações perceptivas, vai conservar traços destas vivências iniciando um
52
processo lógico que se constituirá em oito tempos sucessivos, assim
descritos:
1.Percepção: é dado à criança perceber.
2.Inscrição: ela conserva traço do que recebe.
3.Ciframento: este traço é cifrado, para fazer sentido.
4.Outro: mas esse ciframento vem do Outro.
5.Signos: a partir de um sistema de signos que um outro lhe articula.
6.Saber: sistema que a criança pode adquirir e saber (papel da educação,
em especial)
7.Deciframento: ela pode então, eventualmente, decifrar e cifrar traços.
8.Troca: e encontrar-se em condições de oferecer uma percepção, de cifrar
para que outro transcreva após a percepção.
Os cinco primeiro tempos referem-se, para o autor, a processos primários,
pois estabelecem as inscrições primordiais que dão forma à constituição
subjetiva. Nos três seguintes, processos secundários, a criança ali se
apropria de um sistema de signos que lhe faculta a produção de um
deciframento, permitindo, por conseguinte, sua inserção no sistema de
trocas sociais mais amplas.
É justamente na passagem do processo primário para o secundário que a
condição de Pedro se vê problematizada. Ao estar aprisionado pela forma
com que suas vivências foram cifradas na infância, não consegue avançar
em direção à constituição de novas trocas sociais sem deparar-se novamente
com a exclusão.
Neste momento, o oferecimento de um lugar de escuta pode se revelar
interessante para ajudá-lo a decifrar estas vivências de outra forma. O fato
de eu interpretar que, quando alguém está brabo e bate está querendo dizer
alguma coisa, abre a possibilidade para que ele mesmo tente decifrar a
razão de seu aborrecimento. As suas razões são consideradas, isto quer
dizer, ele é reconhecido mesmo com suas dificuldades. A extensão destes
53
efeitos, embora limitada, é exemplar para pensar em que ponto Pedro se
encontra no que diz respeito à sua relação com suas inscrições primordiais.
Ele entrou em contato com um sistemas de signos mais amplo, mas se
encontra com dificuldades para sustentar uma posição em que se aproprie
de um lugar diferente do estabelecido na sua infância. Em alguns
momentos, ele consegue se apropriar da relação com uma identidade que
lhe alce ao lugar de compartilhamento, o que acontece na cena anterior,
entretanto em outros, se depara com a fragilização desta posição, o que o
remete a série de traços que o envia novamente à posição de exclusão.
4.7 CENA 4 - 28 DE JULHO – FESTA DE ENCERRAMENTO ANTES DAS
FÉRIAS
Quando chego na sala de aula, estão Pedro e Márcio. Pedro está com
uma gravata embaixo do blusão. Quando me vê, faz um sinal com a mão,
indicando a gravata e dizendo que estava bem arrumadinho.
Márcio ao ver Pedro de gravata, diz que quer a gravata para ele.
Digo-lhe que esta gravata é de Pedro. A professora, ouvindo a conversa,
traz uma outra gravata e oferece a Márcio. Ele não aceita e continua
insistindo para colocar a gravata de Pedro. Este, curiosamente, cede sua
gravata e coloca a outra, trazida pela professora.
Durante a festa, Pedro se encarrega de servir os doces e os salgados.
Segura a bandeja como um garçom, com muita habilidade e de forma
educada. Todos os professores ficam admirados com a tranqüilidade de
Pedro.
4.8 ENSAIO 4 – HERDAR UMA INSÍGNIA, HERDAR UM LUGAR
54
Devo admitir, eu também fiquei admirado com a desenvoltura de Pedro.
Já na sala de aula, me surpreendi quando Márcio pediu a gravata para
Pedro e este prontamente a emprestou. Isso denota que não era a gravata
em si, mas a significação atribuída a usar a gravata o que estava em jogo
para Pedro. O que contribuiu, efetivamente, para que Pedro conseguisse se
posicionar de forma à sua circulação na relação com os outros se tornar
possível?
Parece que a gravata constituiu, naquele momento, a insígnia da
masculinidade, o traço que ele recebe do outro, do qual se apropria e que
lhe alça a um lugar de reconhecimento entre os pares.
Se partirmos da idéia de que operação que a função paterna produz é
uma inscrição com um efeito ordenador para o psiquismo do sujeito,
podemos pensar que encenar o trabalho de garçom produz em Pedro um
efeito de ordenamento simbólico, que tem relação com a apropriação
singular que ele faz do significante gravata.
Melman (1999a) em seu artigo “A função paterna”, destaca que a função
do pai, enquanto simbólica, é permitir que o sujeito encontre alguma
pacificação na sua relação com a castração. Ele considera a castração como
processo que se impõe a partir da própria relação do sujeito com a
linguagem que, ao ter como propriedade o fato de que um significante
sempre remete a outro significante, submete o sujeito a uma passagem na
qual experimenta o sentimento de fracasso de realizar o que seria a unidade
de seu ser. No caso do sujeito que está se estruturando na psicose, a
carência de uma referência paterna o expõe bem mais às incidências brutais
da castração. Esta carência produziria uma dificuldade em pacificar sua
relação com a castração. Tal pacificação é produto de um pacto altamente
simbólico, onde o sujeito consente com a perda, e, sob esta condição, ele
55
terá os instrumentos, as insígnias, que lhe permitirão identificar-se
sexualmente e reconhecer-se como homem ou como mulher.
Neste sentido, podemos pensar que a gravata constitui uma insígnia para
Pedro, pois permite que ele se identifique a posição masculina e se
reconheça neste lugar. O fato do exercício em relação a este traço estar
contextualizado na festa é fundamental, visto que a idéia de exercer a
função de garçom foi sua e criada a partir do uso da gravata.
Pedro retoma um traço anterior de sua vivência e constrói uma nova
significação.
Quando eu conversava com a professora Maria, em outra situação, ela me
disse que a mãe de Pedro ocupava os dois lugares: de pai e de mãe. Assim,
ela considerava que, ao querer quebrar a descarga do vaso sanitário, Pedro
convocava a presença do pai, pois o atendente da limpeza tinha o mesmo
nome que este. Pedro passou a ter uma relação de amizade com este rapaz
e, muitas vezes dizia, que queria usar jaleco igual ao do pessoal da limpeza.
A partir da gravata, Pedro se imagina com um uniforme de garçom e
encontra nesta função uma forma de se fazer representar, o que lhe outorga
um lugar possível na relação com o outro e com o mundo. Ele herda uma
insígnia que produz um ordenamento possível, isto é, produz um efeito de
ancoragem possível à sua existência.
56
5 CENAS DE MARIETA E ENSAIOS
5.1 Cena 1 – DIA 30 DE ABRIL – PASSEIO AO VIADUTO UBIRICI
Marieta está sentada em um dos bancos e toda hora mexe no bolso da
calça. Parece meio incomodada. Pergunto:
- o estás acostumada a ficar com a tua carteira?
- É.
- Quando anda de ônibus, quem é que fica com ela?
- É sempre minha mãe.
- Não achas que já está em tempo de ficares com teu documento.
- É mesmo.
5.2 ENSAIO 1 – DA DEPENDÊNCIA À AUTONOMIA: UMA TRANSIÇÃO
INTERMINÁVEL
Este dia de passeio começou com uma caminhada da escola até a parada
de ônibus. Durante o percurso, os alunos desta turma andavam com uma
desenvoltura e uma autonomia que eu não observava normalmente nas
atividades na escola. De alguma forma, a postura das professoras
57
propiciava tal situação: elas não apresentavam uma atitude protetora e
supunham a possibilidade de circulação correspondida pelos alunos. A
carteira de passagem do ônibus dada às professoras pelas mães foi
repassada a cada aluno, já na saída da escola.
Dentro deste contexto de surpresas, a imagem de Marieta dentro do
ônibus chamou minha atenção. A sua inquietude e o movimento freqüente
da mão em direção ao bolso me intrigaram. Quando pergunto para ela sobre
quem fica normalmente com seu documento quando ela andava de ônibus,
ela me responde que é sempre a mãe. Assim, parece que o incomodo se
deve à dificuldade de sustentar uma posição de autonomia, isto é, tomar
lugar em relação a um saber que lhe seja próprio, prescindindo da presença
materna.
Berges e Balbo (1998) consideram que a transmissão de um saber da mãe
para a criança é elemento constitutivo de todo ser falante. Tal transmissão
se opera, entre a mãe e a criança, segundo os autores, através de um
fenômeno denominado transitivismo. Este se realiza quando a mãe ao
perceber algum incômodo de seu bebê, dirige-lhe um discurso, com o qual
atribui significação à sua manifestação. Discurso que se baseia numa
hipótese, porque a mãe supõe na criança uma demanda, mas, na realidade,
é ela que demanda que a criança se identifique ao seu discurso. Esta
atribuição de sentido possibilita a criança o acesso ao simbólico que
concerne ao corpo, não só como corpo imaginário, senão como corpo de
linguagem, de significantes e de letras. O transitivismo de parte da mãe
para o filho começa com golpe de força, através do qual a mãe impõe um
sentido à vivência da criança.
Na medida em que antecipa e condiciona a entrada no campo da palavra
e da linguagem, a forma como se estabelece o transitivismo entre a mãe e a
criança tem conseqüências nas futuras aquisições da mesma. Os efeitos
destes fenômenos não se restringem às primeiras experiências da criança.
58
As outras pessoas que tomam o lugar materno, freqüentemente os
educadores, vêm a editar uma estrutura de demanda semelhante, quando
também esperam que as crianças se identifiquem com os discursos da
cultura que lhes dirigem.
Quando as professoras entregam as carteiras para que os alunos tomem
conta, elas supõem um saber, uma possibilidade de apropriação que acaba
colocando Marieta perante o impasse entre uma forma de saber articulado
pela mãe, o qual a dependência se reedita, e uma outra forma, em que é
alçada à uma posição de autonomia. Neste sentido, destacamos o papel
fundamental das experiências escolares que, ao proporcionar uma nova
posição do sujeito em relação ao saber, abrem possibilidades para que ele
relativize o saber do Outro que o constituiu.
Quando eu me dirijo a Marieta, dizendo que já está em tempo de ficar
com seu próprio documento, eu também outorgo a ela um saber e uma
possibilidade de prescindir da presença materna. O passeio transcorreu, ela
não perdeu o documento de identidade, o que confirmaria a necessidade da
presença da mãe, mas mesmo assim fica a pergunta: a necessidade da
presença da mãe para Marieta seria decorrente da forma como se
estabeleceu o transitivismo entre ela e sua mãe? A análise das outras cenas
possibilitará avançarmos em nossa indagação.
5.3 CENA 2 – 6 DE MAIO – SALA DE AULA
Na sala de aula, foi proposta pelas professoras a realização de cartões
referentes ao dia das mães. Marieta, meio atrapalhada, não consegue
iniciar sua atividade. Começa aos poucos a rabiscar um desenho. Pergunto:
- O que estás desenhando?
- Um coração, desenha para mim?
59
- Eu posso te ajudar, fazer por você não. Quem sabe tu tentas?
Faz o desenho de um coração com a forma pouco definida. Depois
começa a selecionar figuras de uma revista. Pergunto:
- O que vais escolher para a tua mãe?
- Um batom.
Começa a aglomerar uma série de recortes, de forma desorganizada,
sobre a mesa, quando diz:
- Vou dar todos estes presentes para a minha mãe. Vou dar tudo o que ela
quer.
- Não é possível dar tudo, quem sabe escolhes alguns deles.
- Vou dar tudo sim para ela ficar feliz.
Continua a juntar papéis, alguns caem no chão. Não consegue terminar o
trabalho.
5.4 ENSAIO 2 – UMA MÃE QUE NÃO TRANSITIVA, UMA FILHA
QUE NÃO CONSEGUE ESCOLHER
No outro ensaio, começamos a esboçar a idéia de que a forma com que o
transitivismo se estabeleceu entre Marieta e sua mãe dificulta a apropriação
de um saber que lhe alce à posição de autonomia. Antes de avançar é
necessário esclarecer que a noção de autonomia utilizada aqui não se
restringe à idéia de prescindir da alteridade para a realização de algo, mas
das possibilidades de construção de uma separação que mova o sujeito para
além da posição de alienação.
A relação atual com a mãe é constituída por uma dependência que se
mantém em várias instâncias. Mas, por outro lado, a mãe tem dificuldade
em reconhecer uma demanda que seja própria da jovem. Em certo dia,
quando eu estava indo embora da escola, encontrei as duas na parada de
60
ônibus e aconteceu algo que denota tal dificuldade, pois assim que Marieta
esboçou um movimento em minha direção, a mãe a segurou pelo braço,
impedindo que ela me cumprimentasse. Enquanto fazia isto, disse-lhe para
não que não me abraçasse forte. Aconteciam, com freqüência, cenas
semelhantes nas quais ela, ao se antecipar aos movimentos da filha,
bloqueava a manifestação de uma demanda que lhe fosse própria.
Berges e Balbo (1998) destacam que se a mãe tem um interesse em
manter-se protegida de seu desejo, ela vai impedir que se expresse a
demanda de seu filho. Perante a demanda deste, se ela quiser seguir sendo
mestra a qualquer preço, vai impor a sua demanda, organizando a
experiência do filho a partir de seu saber. Esta mãe não poderá jamais
desejar a seu filho a menor possibilidade de querer outra coisa além do que
ela lhe propõe.
Calligaris (1989) descreve esta situação como sendo constituinte de uma
relação ao saber característica da estruturação psicótica. Nesta, o sujeito fica
preso à demanda imaginária do Outro. Se o neurótico se relaciona à
demanda apostando que haja “ao menos um” que saiba lidar com ela, e
constitui assim a relação a um sujeito suposto saber, que relativiza o saber
deste Outro, a estruturação pela via da psicose configura-se por uma
relação ao saber que não passa por esta referência terceira.
Marieta, neste sentido, ao manter-se dependente das demandas
maternas, ao insistir em permanecer nesta relação dual, não se refere a um
saber paterno, ficando sem um ponto de capiton (Calligaris, 1989), o qual
funcionaria como amarração que organiza a rede de significações produzida
pelo sujeito.
Se a identificação transitivista é conforme Berges e Balbo (1998), a
identificação ativa ao discurso da mãe, Marieta, ao dizer que vai dar tudo a
fim de que a mãe fique feliz, insiste em propor objetos para corresponder a
uma demanda materna. Como conseqüência, há dificuldade tanto de
61
transcender esta relação quanto de acessar um objeto outro que não esteja
confinado a esta lógica.
Como não existe “o objeto” que deixe a mãe feliz, ela começa a
aglomerar vários recortes e não consegue terminar a atividade. Ao
permanecer em uma posição na qual privilegia a manutenção do gozo
materno, fica sem uma organização centralizada de seu saber e do seu
mundo. (Calligaris, 1989) Desta forma, todos os objetos se eqüivalem, não
há uma escolha possível. Neste sentido, o transbordamento de recortes que
acontece no final da cena é alusivo a esta condição da aluna.
CENA 3 – 21 DE JUNHO – PÁTIO DA ESCOLA
Neste dia, como se realizou um passeio, havia crianças do turno da
manhã junto com os alunos da tarde, durante o recreio. Marieta chega ao
balanço, onde andava uma menina menor, começou a empurrá-la para que
saísse. Eu a interrogo:
- Por que estás fazendo isto?
- Eu quero andar!
- Quem sabe deixas ela andar um pouco e depois tu andas.
Marieta tenta embalar a menina que está no balanço. Pergunto quem é
ela, responde:
- É a Janete.
- Então vais ajudar a Janete?
Começa a tentar a embalar com alguma dificuldade. Empurra o balanço
e, quando ele volta, bate contra o seu corpo. Eu tento ajudá-la, explicando,
verbalmente, mas não adianta muito. Tomo seu lugar atrás da menina e
explico com palavras e gestos. Ela recomeça a embalar a menina com um
pouco mais de habilidade. Saio dali e vou conversar com outros alunos.
62
Passa algum tempo, me surpreendo ao vê-la embalando a menina no
balanço com muita habilidade e cuidado.
4.4 ENSAIO 3 TRANSITANDO EM OUTROS LUGARES
O meu interesse em destacar esta cena se constituiu pela percepção da
imagem que se apresentou ao final do relato: Marieta cuidando da menina
menor, e embalando-a de forma cuidadosa. Esta cena produz contraste se
comparada com a inicial, na qual ela está empurrando a mesma,
agressivamente, para fora do balanço. Entre um momento e outro há a
construção de algo que merece ser apreciado para compreendermos o que
aconteceu.
Vínhamos trabalhando as dificuldades de Marieta em se destacar de uma
relação com a mãe em que padecia da dificuldade de sustentação de um
saber que não fosse, de alguma forma, complementar ao materno. Nesta
cena, percebemos a produção de uma abertura em tal panorama.
Retomando a proposição de Berges e Balbo (1998) de que para a criança
fazer uma teoria é necessário que a mãe a suponha capaz de fazê-lo, e
revisitando o relato da cena, identifico este processo. Na medida em que
suponho que ela é capaz de cuidar da outra menina, pode embalar o
balanço sem machucá-la, Marieta consegue exercer um saber em relação ao
cuidado com o outro. Uma parte do saber eu ofereço, pois lhe explico como
embalar, mas ela consegue fazer uma apropriação a partir daí, constituindo
algo que foi inovador.
O fato de eu não impor a minha presença instaurou aquilo que Berges e
Balbo (2001) denominam função do desconhecimento. Na realidade, esta
forma de proposição de saber colocou um elemento inovador, mas não
63
contempla o movimento de deslocamento efetivado pela aluna. Ela passa,
nesta cena, de uma posição de passividade à de atividade na relação de
cuidado com o outro.
Freud (1996[1920]) em seu artigo “Para além do princípio do prazer”
descreve que a função do brincar seria a de exercer uma posição ativa em
relação a uma vivência penosa para o sujeito. Dá o exemplo de seu neto,
que, ao brincar com o vai e vem do carretel, passa do sofrimento que a
ausência da mãe lhe provocava ao prazer do domínio sobre o objeto.
Marieta não padece de ausência materna como o neto de Freud, mas,
justamente, de uma relação na qual a mãe está sempre presente. Todavia,
quando ela consegue exercer o cuidado com uma criança, mesmo que tal
exercício fique na esfera do brincar, ela metaforiza a presença da mãe e
consegue simbolizar esta presença constante mediante a antecipação virtual
de um exercício materno. Ela cria uma metáfora que oferece uma
organização possível na sua relação com o mundo.
Neste momento, ela se destaca da posição infantil e apresenta-se de
forma muito diversa das outras vezes em que participava das atividades
escolares. Em geral, ela em muitas situações se excluía do que estava
proposto ou manifestava sintomas de desorganização psicomotora que
dificultavam sua participação. Esta forma de laço com o outro costumava
levar os educadores a anteciparem juízo negativo sobre Marieta, o que não
se diferenciava muito da posição materna.
6 MOMENTO DE CONCLUIR
64
A partir do percurso realizado até aqui, passarei a revisitar algumas
proposições que foram feitas durante o desenvolvimento deste trabalho.
Este momento é conclusivo, mas não tem o objetivo de afirmar uma última
palavra, antes, propõe um vislumbre sobre o atual avanço das minhas
considerações.
Um das questões trabalhadas durante este percurso foi o quanto a
educação seria espaço propício para a proposição de experiências com
efeitos na constituição psíquica destes jovens. Esta reflexão se inspira nas
idéias esboçadas por Freud (1996[1907]) em seu artigo “A educação sexual
da criança”, no qual sustenta que as neuroses e as perversões poderiam ser
prevenidas graças a uma educação apropriada e, inaugura, uma reflexão
sobre os efeitos da forma como a educão é realizada nos estados psíquicos
do sujeito. Naquela época, ele acreditava que a educação remanejada por
princípios psicanalíticos poderia garantir crianças e adolescentes saudáveis.
Com o passar do tempo, porém, vai abandonando esta idéia de profilaxia
das neuroses, e adota a posição crítica que se expressa em seu artigo “O
mal-estar na cultura (1929)” na observação que a educação se conduz como
se enviasse, a uma expedição polar, pessoas vestidas com roupas de verão e
equipadas com mapas dos lagos italianos.
Freud acabou reconhecendo que não havia avançado muito e que não
entendia muita coisa sobre a aplicação da psicanálise à pedagogia, tendo
como consolo o fato de poder dizer que passou o legado à sua filha Anna
Freud. Esta tomou tal tarefa como a missão de sua vida e realizou um
percurso no trabalho de analista de crianças, embora com uma dificuldade
de estabelecer uma diferenciação entre o campo analítico e o campo
educativo: isto se torna evidente quando afirma que as duas atividades,
educar e analisar, no caso das crianças, se confundem.
Foi o trabalho de outra analista de crianças, Melanie Klein, que
65
combatendo veementemente a confusão resultante desta indiferenciação,
desempenhou papel fundamental, ao estabelecer a técnica do brinquedo
como forma de trabalho terapêutico para a análise da criança e formular
teorizações específicas sobre a psicanálise infantil.
Mas, é nos anos 70, nas mãos de outra psicanalista, Maud Mannoni, que
surgem algumas das contribuições mais fecundas da interpelação entre o
saber psicanalítico e a educação. Na esteira de uma crítica à virada
psicológico-cientificista da pedagogia moderna, destaca fatores que
impossibilitavam a priori o acontecimento de efeitos educativos
subjetivantes (Mannoni,1988[1973]). A autora traz à tona a reflexão sobre
os efeitos dessubjetivantes das técnicas de tratamento e educação, quando
observa a maneira como suas abordagens procedem, e afirma que, no desejo
de tratar os sintomas acabam recusando o próprio sujeito, e desta maneira,
agravando os sintomas ao ponto de convertê-los em alienação. Exemplifica
tal processo ao abordar o uso indiscriminado de testes psicológicos como
propiciador de uma situação em que ao adulto não caberia mais aprender
com a criança, e, sim, tomá-la como objeto para diversas quantificações.
Desenvolve uma análise crítica que permite constituir a idéia de que o uso
da técnica, na educação, pode produzir uma amarragem prescritiva que
aliena o sujeito das suas próprias produções.
O uso de testes psicológicos na educação só formalizou um tipo de
relação que se instaura já no fim do século XVII quando, segundo
Jerusalinsky (1996), La Salle formaliza conhecimentos que são específicos a
cada momento do desenvolvimento, formulando as pré-condições
necessárias para a criação de uma psicopatologia propriamente infantil. Ali
se institui a idéia de um sujeito construído em relação a um modelo virtual,
correspondente a cada momento do desenvolvimento. Esta formalização,
proposta por La Salle, de conhecimentos adequados a determinada faixa
etária, abre, como vimos, um campo de relação entre a educação,
66
especificamente a pedagogia, e o campo psicopatológico, já que é a partir
deste modelo que o sujeito passa a ser avaliado e se produz, então, a noção
de desvio. A primeira fundou a constituição de um standart, um modelo
que se estabeleceu como referência para discriminar o que é um desvio,
mas, quando no exercício da tarefa educativa surgiam problemas é a esta
psicopatologia que ela dirigiu seus interrogantes.
Este saber ao qual a educação dirige suas interrogações se constitui no
campo médico dentro de uma “bio-lógica”, que repercute nas psicologias
criando uma compreensão do psiquismo humano sob a égide de uma idéia
desenvolvimentista. A diferença que a psicose na adolescência pode
suscitar é compreendida, neste paradigma, como desvio em relação a norma
constituída pelo conjunto destes saberes. A singularidade do sujeito ficaria
sem um lugar, pois as manifestações do sujeito são sempre remetidas a um
standart virtual (Jerusalinsky, 1996b). A função da educação ficaria limitada
a reestabelecer as manifestações do sujeito em conformação a este modelo.
Aqueles que “insistem” em não corresponder acabam sendo excluídos,
perdendo o contato com a escolarização
Esta idéia de uma possível adequação natural entre a intervenção
educativa e os estados infantis, como já apontamos, é considerada por
Lajonquiere (2000) como predominante nas proposições educativas atuais e
constitui um naturalismo psicologista. O fracasso na educação seria
resultante, dentro deste paradigma, da inadequação entre a intenção
educativa e o estado psicomaturacional da criança e do adolescente.
Para Melman (1994), como destacamos anteriormente, deparar-se com
algum fracasso ao educar é inerente a este processo pois, entre a mensagem
passada pela intenção educativa e o recebemos sempre há descompasso, há
uma diferença, uma falha inerente a toda transmissão de saber. Tal
diferença, ao contrário de um problema, passa a ser condição para o sujeito
constituir algo que lhe seja singular.
67
Neste sentido, a tarefa educativa não estaria balizada pela repetição de
uma massa de informações, aliás, tendência que tem se demonstrado
majoritária na atualidade, mas na proposição de uma experiência na qual a
articulação singular do sujeito em relação a estes saberes seja possível.
É necessário para qualquer um entrar em contato com os saberes do
outro, mas o sujeito só se constitui quando se exila, quando consegue se
distanciar daquele saber que o constituiu, viabilizando aquilo que Sousa
(1997) descreve como exercício de um exílio fundamental que nos constitui
como sujeitos. A condição para o exercício da subjetividade seria a
possibilidade do sujeito rejeitar parte daquilo que lhe é transmitido, é
preciso se exilar do saber, constituindo uma outra relação, em que possa
surgir uma singularidade.
Uma das questões problematizadoras do trabalho surgiu a partir da
constatação freqüente de jovens que avançavam em sua idade cronológica e
não faziam as aquisições correspondentes ao momento da adolescência.
Neste sentido, o momento de passagem (Rassial, 1997), tempo para a
construção de um hiato entre a posição infantil e a adulta, não se realizava.
A operação de distanciamento em relação ao saber infantil que a
adolescência promove apresentava-se deficitária.
A escola, enquanto lugar distinto do familiar, tem um papel importante a
desempenhar, pois, na medida em que pode apresentar outra forma de
saber, poderá instaurar um novo espaço para o sujeito. Ao passar a
acompanhar os jovens que participaram desta pesquisa, este espaço passou
a ser considerado como um espaço para uma realização que envolvia um
processo de apropriação de uma posição em relação ao saber.
As condições para esta apropriação que cada sujeito deve realizar,
dependem de um saber prévio, relativo à posição que o mesmo já está em
relação ao saber do Outro que o constituiu. Neste sentido a decifração
desta posição realizada pelo psicanalista, pode ajudar a avançar perante a
68
aparente resistência em entrar numa forma de saber compartilhado que a
posição de alienação em relação ao desejo do Outro (Lacan, 1985[1972-73])
determina. Ao avançar no registro e na reflexão sobre estas narrativas - que
envolviam tanto a escrita destas cenas como a posição de escuta, isto é, de
um testemunho destas histórias - percebemos que, ao compreender um
pouco mais a dinâmica específica de cada aluno em relação ao saber,
criavam-se condições para reconhecer alguma condição de abertura.
Freud (1996[1905]), em seu artigo “As teorias sexuais infantis”, afirma
que o valor de uma teoria infantil não se deve à sua relação com a
realidade, mas àquilo que apresenta de um fragmento de uma verdade do
sujeito. Desta forma, na medida em que os discursos dos jovens foram
avançando, as suas teorias articulavam formas singulares de relação ao
saber que, ao se manifestarem em narrativas compartilhadas, produziam
um efeito de distanciamento, de possível afastamento da posição infantil de
dependência em relação ao outro.
Desta forma, chegamos à idéia de que o importante, neste momento de
concluir, não é apontar as condições genéricas a respeito de uma
experiência possível da adolescência para estes jovens, mas refletir sobre a
maneira singular como cada um estava produzindo um saber sobre sua
condição. Assim, não há adolescência de um sujeito com psicose, mas a
maneira particular como cada jovem experencia relação de destacamento
possível de uma posição infantil que insiste em se reencenar.
No percurso realizado por Wilson, partimos nossos questionamentos de
sua procura de um interlocutor disponível que viabilizasse um
compartilhamento de sua história. Este compartilhamento foi se tornando
possível na medida em que alguma decodificação daquilo que expressava
sua relação com o Outro se constituiu. Tal forma estabelece uma maneira
específica do sujeito se endereçar, de enviar uma mensagem que, caso não
chegue a algum destinatário, se perde no vazio da repetição.
69
No início de minha participação, eu não tinha muitos elementos para
supor um sentido àquilo que o aluno produzia, mas percebi que, ao
suportar um lugar possível a este endereçamento que parecia
impossibilitado, poderia se viabilizar o surgimento de um novo sentido,
fazer existir o que não havia tendo em vista a falta de um interlocutor
possível.
De toda forma, a direção deste “mapeamento da relação com o Outro foi
aos poucos revelando a forma singular de Wilson articular um saber na
relação com outro. Esta articulação, depende para qualquer ser falante das
diferentes maneiras, dos diferentes efeitos possíveis que o discurso pode
produzir, dependendo da maneira como o interlocutor o signifique. Tomar
como “provocação”, o fato dele enunciar a frase “vou dar o hambúrguer
para o cachorro” é uma interpretação que acaba remetendo-o à exclusão e à
impossibilidade de compartilhamento. De toda forma, este discurso insiste
quando Wilson retorna à sala. O cachorro passa a ser mansinho, manifesta-
se na escrita que aparece ao lado do desenho do hambúrguer, mas não
durante muito tempo.
Wilson insiste em seus comportamentos agressivos, o que acarreta sua
saída desta turma. O argumento era a possibilidade de compartilhamento
com a outra turma. De fato, os outros tinham mais aquisições, como o
acesso à escrita, todavia sua saída de um lugar para outro reencena a
impossibilidade de efetivação de um laço mais estável: os amigos da lista
são aqueles que não estão mais.
Ao tentar lidar com a dimensão de futuro, representada pela idéia de ser
adulto, o aluno se depara com um não-lugar (Rassial, 1997). Este “não-
lugar é resultante da condição adolescente, pelo fato do sujeito se
encontrar numa posição entre: nem totalmente adulto, nem totalmente
criança. Rassial formula a caracterização da adolescência a partir do
conceito de “não-totalmente”, proposto por Lacan (1985[1972-73]) em seu
70
Seminário Mais,ainda e relativo à posição feminina: não totalmente fálica.
Este “não quero ser adulto” ao ser relacionado com o “não quero ter
cabelo no peito”, resultou na seguinte hipótese: Wilson não antecipava a
possibilidade de se fazer representar de forma diferente da infantil. Desta
maneira, perante a mudança da imagem do corpo, ele não quer avançar, ele
se apega à imagem infantil. Tenta se manter na identificação com esta
imagem que o aliena, que dá alguma consistência à sua experiência
subjetiva, mas evita se deparar com o ponto em que esta imagem não dá
conta do ser (Kehl, 2001). Tal ponto leva o sujeito a confrontar-se com a
falta, falta a ser que a identificação imaginária não resolve.
Esta “escolha” impõe dificuldade, produz resistência ao registro da
passagem do tempo na constituição de uma relação com a história. Ao
considerarmos, como Gagnebin (1998) a história pessoal como uma
tentativa de constituir uma narração que traduz, na sucessão de palavras e
frases, um encadeamento do real, o avanço perante o impasse só pôde se
realizar através da viabilização da constituição de narrativas do aluno.
Se a relação com a história envia, como destaca Calligaris (1996) à
relação com as origens, a dificuldade em compor uma história passa a se
fundamentar na dificuldade em se referir à origem.
Freud (1996[1905]) considera que sempre abordamos nossa origem
através de uma ficção. Esta “outra cena”, em que a relação com a origem se
torna possível, constituiu-se, primeiramente, na seqüência de fabricações do
fusca, através da qual o aluno constituiu a demarcação de uma
temporalidade possível. Posteriormente, nas interrogações em relação à
minha origem, data de nascimento do meu pai e de minha mãe, ao
perguntar sobre minha posição em relação à minha filiação, passou da
relação de certeza - (não quero saber) – à de dúvida, na qual ensaia a
constituição de uma relação a uma genealogia possível. Nos seus diálogos,
instaura-se a possibilidade de pensamento, de distanciamento sobre sua
71
condição anterior.
No último ensaio, retomo os impasses provocados pela impossibilidade
de transmissão de saber a estes jovens. Na realidade, eles já carregam
certos efeitos de fracasso: seus pais não conseguiram transmitir um saber
que fosse operativo, quer dizer, que produzisse a antecipação de um lugar
de reconhecimento para além da família. A escola, para viabilizar seu
trabalho, tem que partir deste desafio: de alguma forma reinstalar algum
ideal que relance alguma via para o futuro.
Assim, é proposta uma decifração possível para a insistência agressiva
do aluno, partindo do Complexo de Intrusão. Este processo, caracterizado
por Lacan (1981[1958]) em seu artigo “A família”, é instaurado pela relação
com a imagem do semelhante que evolui no sentido de consideração deste
outro como diferente. O mais interessante naquele momento descrito pela
cena foi a possibilidade de deslocamento da posição inicial agressiva, em
que o outro não é considerado, ao jogo com as diferenças, que a atividade
pedagógica conseguiu instalar. A atividade, através da função imaginária,
teve efeitos simbólicos, isto é, constituiu um lugar possível para o sujeito.
Nos ensaios sobre as atividades de Pedro, tentamos realizar um caminho
pautado pela gênese do traço nas relações com a imagem do outro. Este
tema se destacou na medida em que o próprio aluno estava numa procura
de referências em relação à identidade masculina possível. Reconhecemos
no aluno um processo adolescente que Rassial (1999) destaca como
recapitulação da identificação, que, embora, possa se constituir
aparentemente registro de uma regressão, é de onde o sujeito pode tirar
conseqüências quanto ao ser. Neste sentido, ele está tentando se apropriar
destes significantes (traços), que o constituíram.
A identificação passa a ser inerente ao processo de transmissão quando
pode criar relação entre uma geração e outra a partir de traços que passam
de um a outro lugar. A escola pode ter papel ativo quanto ao oferecimento
72
de lugares outros, proporcionando aos jovens o contato com insígnias
capazes de dizer de uma relação possível do sujeito com um lugar na
cultura. O educador sensível a estas questões transmitiria, como destaca
Sousa (1997) um estilo, este como forma de simbolizar o real. A escola não
seria somente acolhedora da diversidade, mas também propositora de
diferentes maneiras de dar forma a este real que para Lacan, não pára de
não se escrever.
A procura de Pedro por um traço no outro que diga de uma identidade
possível nos ensina muito sobre estes processos. Não se trata de colocar-se,
enquanto educador, como modelo para que o aluno passe a imitar, mas de
permitir um espaço de escolha, que é sempre responsabilidade de cada um.
Isto nos leva ao questionamento constante sobre a nossa relação com este
aspecto: até que ponto, em nossas vidas cotidianas, preservamos espaços
possíveis para nossas escolhas ou nos deixamos enredar pelo marasmo do
cotidiano. As relações com a identidade quando marcadas pela insistência
do mesmo, podem levar, como adverte Lacote (2000) ao consumo do
semelhante e à exclusão do diferente.
No terceiro ensaio, é justamente a relação do aluno com a exclusão que
surge no curso de seu diálogo comigo. Perante a lembrança da experiência
vivida, em que ele batia e era excluído da escola, Pedro chega me
perguntando se bater é bom, e termina a cena perguntando se chutar é bom.
Esta circularidade da significação que no início se mostrou enigmática, teve
um desdobramento interessante na cena seguinte.
A partir da hipótese da professora que via, na freqüente necessidade de
Pedro em querer quebrar a descarga ou falar no assunto, um apelo à
presença paterna, compreendemos de outra forma estas manifestações. Ali,
então apresentava-se a tentativa de instaurar uma relação com um terceiro
que se realiza na festa do final do ano.
A sua procura por uma insígnia paterna encontra ponto de parada na
73
relação com a gravata. Esta produziu um efeito de surpresa, mas, para
quem acompanhava seu caminho na relação com os traços do outro, emerge
como conseqüência lógica: efeito da relação do sujeito com o significante
paterno.
Nos ensaios sobre as cenas registradas de Marieta, abordamos,
inicialmente, sua relação com o desejo materno para realizar uma reflexão a
partir do fenômeno do transitivismo. Destacamos que a mãe não tem uma
relação com a jovem em que ela transitive, ou seja, possa supor que a filha
tenha um saber que não dependa dela.
Na cena descrita no passeio em que a oscilação entre um lugar e outro
produziu, segundo Mannoni (1988[1973]), uma relação de Marieta com o
seu desejo, começaram a surgir as vicissitudes, as formas como ela se
posicionava em relação a esta demanda materna de colocá-la num lugar
infantilizado.
Esta posição de dependência constitui uma relação fechada que é
explicitada na cena dos recortes, quando o desejo de Marieta se dirige à
satisfação do desejo materno. Este fechamento aparente é articulado à
lógica de uma relação dual que barra a referência a uma posição terceira.
Lacan (1985[1969]) em seu artigo “Notas sobre a infância”, define o
sintoma da criança como uma resposta ao que há de mais sintomático na
estrutura familiar e, neste contexto, como representante da verdade do
casal. Este caso, apesar de ser o mais complexo, é, também, o mais aberto
às nossas intervenções. Para o autor, a articulação se reduz muito quando o
sintoma que vem a dominar se origina da subjetividade da mãe, situação
que, neste caso, é exemplar. Ao não haver a constituição de uma mediação,
aquela assegurada pela função do pai, a jovem fica na posição de “objeto”
da mãe.
Este “pacto” entre mãe e filha, faz com que o jogo sempre seja jogado a
dois. Neste jogo, a posição da filha, comprometida com o ficar em torno da
74
produção de objetos para a mãe, preserva uma teoria em que a mãe aparece
como não-castrada.
A não-castração da mãe se realiza com um custo para a filha que é a
manutenção da posição “deficientizada”, em que não se apresenta a
possibilidade de se apropriar de um lugar em relação aos objetos da
cultura. Isto se manifestava em diversas situações, nas quais ela se
apresentava geralmente desinteressava.
Nos jogos do computador, ela preferia os que envolviam a repetição de
uma relação primária ao objeto. Um deles era alimentar um cachorro com
diferentes objetos que apareciam na tela, jogo em que se realizava uma
repetição interminável.
De toda forma, nesta cena, esboçam-se alguns elementos que se explicitam
na última cena trabalhada no ensaio. No brincar de cuidar de um outro,
Marieta parece conseguir constituir a possibilidade de antecipação virtual
de um outro lugar, diante do qual a eternização de uma posição infantil
pode ser questionada. Ela transitiva, cria um exercício em que é aberta um
pequeno acesso que pode se transformar, futuramente numa grande
ferramenta para a passagem a outro lugar.
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