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Sandra Maria Braum
CERZINDO LEITURAS: POEMA E FOTOGRAFIA
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação
em Letras mestrado, Área de Concentração em Leitura e
Cognição, Universidade de santa Cruz do Sul - UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Orientadora: Prof. Dr. Sandra Djambolakdjian Torossian.
Co-orientador: Prof. Dr. Norberto Perkoski
Santa Cruz do Sul, junho de 2007
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Ficha Catalográfica
B825
c
Braum, Sandra Maria
Cerzindo leituras : poema e fotografia / Sandra Maria Braum; orientadora, Sandra
Djambolakdjian Torossian. - 2007.
138 p. : il.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007.
Bibliografia.
1.Poesia. 2. Imagens fotográficas. 3. Interpretação de imagens. 4. Leitura. I. Torossian,
Sandra Djambolakdjian. II. Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-graduação
em Letras. III. Título.
CDD: 808.1
Bibliotecária : Muriel Thürmer CRB 10/1558
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BANCA EXAMINADORA
Professora Dra.: Sandra Djambolakdjian Torossian (Orientadora)
Professor Dr.: Norberto Perkoski (Co-orientador)
Professora Dra.: Eunice Terezinha Piazza Gai (UNISC)
Professora Dra.: Simone Moschen Rickes (UFRGS)
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que contribuíram para a realização desta dissertação.
Agradeço aos meus pais, familiares e amigos por todo o incentivo e suporte no processo do
mestrado, sem eles não teria chegado ao fim. Aos meus orientadores Dra. Sandra Torrosian e
Dr. Norberto Perkoski que me guiaram e me deram a mão em muitos momentos. Aos demais
professores do mestrado por tudo que me ensinaram e descortinaram do mundo das Letras,
Leitura e Cognição. Agradeço a todos os meus colegas de curso pelo apoio e camaradagem e
principalmente àqueles que além de colegas se tornaram grandes amigos e foram
fundamentais para manter minha sanidade psíquica e a minha de que seria possível
atravessar esse caminho. Sem vocês Karen, Alda, Silvana, Marileda, Vera, Marília e Fabiana,
que me apresentou a obra de Antunes e Xavier, essa dissertação não teria sido feita, muito
obrigada.
Agradeço ao professor Alexandre Borges do curso de Comunicação Social da UNISC
por me introduzir no processo de revelação de filmes, funcionamento das câmeras
fotográficas e do olhar do fotógrafo. Gostaria de agradecer a outros professores de outras
instituições que me deram dicas e inclusive me enviaram materiais como os professores Dr.
Sébastien Joachim (UFPE), o Dr. Omar Khouri (UNESP) e a professora doutoranda Mariana
Cortez (USP). E ainda à nossa secretária Lucilene Bender de Sousa e Luiza Wioppiold
Vitalis, aos funcionários da biblioteca, da informática da UNISC e a todos aqueles que de
alguma forma fizeram parte deste processo.
se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais
ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função. No
momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das
soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio
para a literatura é o do saber tecer em conjunto os diversos saberes e
os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do
mundo.
Italo Calvino
RESUMO
A partir de obras que apresentam poemas conjuntamente a fotografias surgiu o
questionamento de como os leitores podem interpretar essa aproximação. Foram escolhidas
duas obras como corpus, o livro de Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) intitulado O
amor é vermelho e o de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) Et eu tu. A metodologia
empregada foi a de revisão bibliográfica sobre a temática de leitura de poesia e leitura de
imagens fotográficas, primando-se pela transdisciplinaridade, tendo em vista que esse tipo de
leitura de linguagens diversas perpassa vários saberes. Os itens principais de investigação
foram se a comunhão das linguagens é capaz de produzir um novo espaço de leitura, se a
ordem de criação das obras influencia nos processos de interpretação e se as imagens
fotográficas ampliam ou restringem a palavra e vice-versa. Constatamos que a união das
linguagens pode propiciar leituras diversas. Quanto à ordem de criação, no corpus escolhido,
concluímos que ela pode influenciar nas possibilidades de leitura. No que se refere ao terceiro
item de investigação, verificamos que as imagens fotográficas e as palavras possuem um
potencial de ampliação e de restrição uma em relação à outra, e também podem ser
interpretadas conjuntamente fazendo sentido apenas dessa forma; contudo, deve-se levar em
conta cada caso específico, não há a construção de uma regra.
Palavras chaves: poema; poesia; fotografia; leitura; interface
ABSTRACT
Starting from works that present poems jointly to pictures it has arisen the concerning about
the way the readers they can interpret that approach. Two works were chosen as corpus,
Suzana Vargas and Antonio Lacerda’s book (2005) entitled O amor é vermelho and Arnaldo
Antunes and Marcia Xavier’s book (2003) Et eu tu. The methodology used was the one of
bibliographical revision on the theme of poetry reading and reading of photographic images,
focusing on the transdisciplinarity, having in mind that this type of reading of several
languages passes by several knowledge. The main items of investigation were if the
communion of the languages is capable to produce a new reading space, if the order of
creation of the works influences in the interpretation processes and if the photographic images
enlarge or restrict the word and vice-versa. We have verified that the union of the languages
can propitiate several readings. As for the creation order, in the chosen corpus, we concluded
that it can influence in the reading possibilities. Concerning to the third investigation item, we
verified that the photographic images and the words possess a potential of enlargement and of
restriction one in relation to the other, and they can also be interpreted jointly, making sense
only in that way; however, it should be taken into account each specific case, there is not the
construction of a rule.
Key words: poem; poetry; photography; reading; interface
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
1 POESIA COM PALAVRAS: algumas leituras possíveis.................................................16
1.1 A importância do desejo na leitura ................................................................................17
1.2 Leitura como autonarrativa.............................................................................................24
1.3 Leitura poética pelos olhos de um lingüista....................................................................31
1.4 A construção da imagem poética.....................................................................................51
2 IMAGENS FOTOGRÁFICAS: possibilidades de leitura................................................60
2.1 Fotografia enquanto arte..................................................................................................61
2.2 Habitando a fotografia......................................................................................................72
2.3 Relações entre fotografia e texto: dependência ou independência...............................80
2.4 A leitura como ponto de observação...............................................................................92
3 CERZINDO DISPOSITIVOS DE EXPRESSÃO...........................................................107
3.1 Escavando palavras e imagens.......................................................................................107
3.2 Interfaces entre poema e fotografia...............................................................................110
3.3 Costurando incertezas....................................................................................................120
3.4 Considerações sobre poemas e fotografias...................................................................125
REFERÊNCIAS....................................................................................................................131
INTRODUÇÃO
Os questionamentos que deram origem a presente dissertação surgiram durante o
curso de mestrado em Letras principalmente em duas disciplinas: Leitura e Texto Poético,
ministrada pelo professor Doutor Norberto Perkoski e Leitura e Subjetividade, ministrada
pela professora Doutora Sandra Djambolakdjian Torossian. Em Leitura e Texto Poético fui
apresentada às particularidades da poesia, da sua linguagem, às possibilidades de
interpretação, da formação da imagem poética e principalmente, para mim, aos sentimentos,
afetos, devaneios e deslocamentos na imaginação que ela é capaz de produzir, através de sua
leitura. Em Leitura e Subjetividade surgiram temas como o desejo, a sensibilidade e a
subjetividade no ato de ler. A temática do posicionamento dos sujeitos perante as obras, o fato
de o processo de leitura ser uma escritura e assim demandar uma participação do leitor foram
assuntos apresentados durante o trimestre e possibilitaram questionamentos sobre temas
nunca antes pensados.
Ao pesquisar a história da poesia para a apresentação de um trabalho na disciplina de
Leitura e Texto Poético, resolvemos
1
traçar um paralelo com as artes visuais, pelas quais
sempre tive certa curiosidade. Através desse trabalho foi possível perceber que tanto as artes
literárias como as artes em geral, música, pintura, escultura, fotografia e instalações artísticas
dentre outras, dialogam entre si. Se elas dialogam quando produzidas separadamente como
seria essa suposta conversação quando dividem um mesmo espaço? Nesse momento surgiu a
questão de como lemos textos e imagens.
Por acaso, nesse mesmo primeiro semestre de 2005 no qual cursei essas disciplinas, a
Edunisc acabava de lançar a obra de Suzana Vargas e Antonio Lacerda: O amor é vermelho,
que apresenta poemas e fotografias. Ao folhear a obra meu olhar foi direto para as fotografias,
posteriormente fui ler os poemas e por fim me questionei o que essas duas linguagens
1
Trabalho realizado por mim e minha colega Karen Santorum a quem agradeço por suas contribuições.
estariam fazendo lado a lado? Por que os autores resolveram reunir suas artes? E,
principalmente, como seria o processo de leitura dessas linguagens tão diversas, tão
abrangentes e supostamente específicas. Dessa forma surgiu o início do processo de pesquisa
e elaboração de Cerzindo leituras: poema e fotografia.
A era pós-moderna na arte é a era das misturas, do mix, da oposição à pureza, e a
mixagem está tanto na música, como na literatura e na arte pictórica. Saber fazer ou se
expressar de uma forma única não é mais o suficiente. Misturamos rap com rock, atores com
cartoons, pinturas com poesia, poesia com música, música com moda, moda com literatura e
tudo mais que a imaginação for capaz de compor. As instalações artísticas são um bom
exemplo, algumas têm imagens, sons, odores, texturas, corpos em decomposição, espaços de
experimentação, onde tudo se apresenta ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Isso nos faz
pensar se não estaríamos com a nossa sensibilidade diminuída, desligada ou engessada visto
que necessitaríamos de choques múltiplos para que ela seja estimulada e para que consigamos
perceber alguma coisa. Contudo, uma outra possibilidade também pode existir, através dos
múltiplos estímulos, das misturas, das composições de linguagens, que inicialmente poderiam
parecer caóticas: podemos silenciar e procurar no meio desse suposto caos o que nos afeta,
sensibiliza e emociona. As formas como algumas artes se apresentam podem estar se
modificando, assim como nossa maneira de fruí-las e lê-las.
Diderot, de acordo com Hugo Friedrich (1991), consegue imaginar desordem e caos
como esteticamente representáveis e ver na perplexidade um lícito efeito artístico. O caos é
definido (Aurélio, 2004) nas mitologias e cosmogonias pré-filosóficas como vazio obscuro e
ilimitado que precede e propicia a geração do mundo e é ainda definido como desordem e
confusão. O caos de imagens, a mixagem da imagem poética provinda das palavras com as
imagens fotográficas, pode gerar confusão, mas pode gerar um efeito de fusão, uma
superposição e, dessa maneira, a partir desse caos, criar ou propiciar novas formas de
sensibilização, de leitura e de fruição, o que justifica um aprofundamento nos estudos desta
temática. Novalis (apud Friedrich, p. 29, 1991) escreve: “Eu quase me atreveria a dizer que o
caos deve transparecer em toda poesia” e Friedrich (1991), interpretando as palavras de
Novalis, diz que a poesia deve quebrar a lógica da linguagem cotidiana: “Sua ‘operação’
consiste em deduzir do conhecido o desconhecido, como faz o ‘analista no sentido
matemático’” (p. 29, grifos do autor). Se a poesia sozinha deveria quebrar a lógica
cotidiana, a sua junção com a arte fotográfica pressuporia uma dupla quebra da lógica, se é
que podemos dizer dessa forma.
Na interpretação de João Frayze-Pereira (2001), Jean Starobinski em sua obra L´oil
vivant teria observado que:
de todos os sentidos é a visão o que mais facilmente se deixa guiar pela impaciência.
Ver tudo de uma vez é o que visa ingenuamente o ato de ver [...] Nesse sentido,
quando o visível cerca-se de sombras, os olhos ficam mais ávidos de nitidez (p.
138).
O uso da junção de poema com a imagem fotográfica inicialmente poderia ser lido
dessa forma ingênua que salienta a citação acima, querendo ver/ler
2
tudo ao mesmo tempo.
Contudo, no nosso entender, esta mistura de linguagens é uma mistura que gera inquietação,
interrogação, que engendra algo não esperado, não linear, falsos contornos que podem fazer
emergir falsas sombras. Falsas sombras porque não gera um espaço escuro, mas sim um
espaço novo, diverso, complementar, curioso e instigante, é uma sombra que clareia. E é
nessas sombras que queremos mergulhar nessa dissertação, queremos discutir as
possibilidades de leitura que essa mixagem da linguagem do poema com linguagem
fotográfica é capaz de produzir.
Apesar de as misturas serem um fenômeno, a princípio, da pós-modernidade, a poesia
e a pintura são discutidas e comparadas muito tempo. Mario Praz (1982, p. 3) traz um
comentário de Plutarco atribuído a Simonides de Cós que teria dito ser a pintura uma poesia
muda e a poesia uma pintura falante. Algumas imagens visuais podem expressar o que as
palavras não conseguem dizer e a recíproca é verdadeira. Jacques Prévert (1985) escreveu um
poema intitulado “Para pintar o retrato de um pássaro”
3
onde podemos dizer que as palavras
poéticas pintam um pássaro que jamais poderá ser retratado:
Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
2
Usamos a expressão ver/ler em que ver está mais ligado ao conceito da visão e ler está mais conectado à
interpretação do que vemos.
3
Tradução nossa de: “Pour faire le portrait d´un oiseau”
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois de dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer...
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.
( p. 15 e 17)
Em contraponto, Carlos Drummond de Andrade (apud Antelo, 2004) apresenta em um
texto de 1949, um comentário sobre as possibilidades da fotografia e a sua capacidade de
captar o que nem sempre as palavras conseguem:
Os nossos próprios mundos individuais, o mundo interior que se defende por trás das
aparências catalogadas do mundo de todos os dias o fotógrafo consegue, muitas
vezes, captá-lo em sua pureza singular, quando nem o psicólogo nem o pedagogo
nem o ficcionista dele retiram mais que um esboço confuso (p. 18).
Tendo em vista que o poema, às vezes, comunica mais que as imagens visuais e certas
imagens visuais expressam mais que as palavras, nos questionamos sobre que processos
poderiam ocorrer no cruzamento entre poema, imagem poética e imagem fotográfica. Seriam
esses processos sinérgicos com uma ação de leitura simultânea e coordenada ou seriam
processos separados, sem intersecção e, dessa forma, paralelos?
Essa pergunta sobre o que ocorreria na leitura do poema e imagem fotográfica é a
nossa questão norteadora. Propomo-nos durante esse estudo a pesquisar se ocorre uma união
ou mistura ou junção ou intersecção ou separação, se os processos de leitura são paralelos ou
simultâneos, portanto utilizaremos inicialmente essas expressões até o momento em que
encontrarmos um conceito que melhor se encaixe com a pesquisa bibliográfica que faremos.
Como dito anteriormente palavras e imagens caminham juntas muito tempo,
embora nos primórdios da expressão humana são as imagens que encontramos em primeiro
lugar nas cavernas e escavações arqueológicas, são as precursoras da escrita. A escrita por sua
vez é uma geradora de imagens: “As imagens engendram as palavras que engendram as
imagens em um movimento sem fim” (JOLY, 1996, p. 121). Ambas as linguagens, tanto a
escrita como a linguagem visual, abrem espaço uma para a outra num processo sucessivo.
Como corpus para essa dissertação escolhemos duas obras: O amor é vermelho, de
Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005), e Et eu tu, de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier
(2003). O corpus não será utilizado para análise literária, seu uso será como exemplificação
das possibilidades de interação da palavra poética e da imagem fotográfica que é a nossa
questão norteadora. Essas obras além de misturarem palavra poética e imagem fotográfica,
possuem outras peculiaridades e formas de construção específicas de cada uma. Uma das
peculiaridades encontradas em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) é que essa obra não
apresenta títulos e nem paginação, ao usarmos exemplos dela, optamos como forma de
referência o uso do primeiro verso para a localização do leitor.
Na obra O amor é vermelho, além dos dois autores, Susana Vargas e Antonio Lacerda,
podemos considerar Daniela Kfuri uma co-autora, sendo que é ela que casa as fotografias
com os poemas, como esclarece Suzana Vargas em entrevista a Marcio Vassallo (2005):
Sempre tive vontade de publicar um livro com imagens. Mas primeiro reuni poemas
já publicados e acrescentei outros inéditos. Depois pensei em ilustrar com desenhos,
aquarelas. Mais adiante tive a idéia de publicar com fotos quando conheci o trabalho
de Antonio Lacerda, que é um fotógrafo jornalista com olhar poético. A começar
pelo enquadramento, o foco no detalhe surpreendente. Ele tinha algumas fotos
geniais sobre reportagens que haviam sido até capa de alguns jornais. Outras fotos
foram feitas especialmente para o livro. A uma certa altura tive medo de que as
fotografias ficassem óbvias demais, mas Daniela Kfuri, coordenadora editorial do
projeto, fez casamentos belíssimos e me apaixonei pelo projeto.
Além dessa diferença de três autores comparada com dois existe em Et tu eu, de
Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003), uma outra fica clara nesse mesmo trecho de
entrevista acima: a questão da ordem de criação das linguagens. Suzana Vargas esclarece que
primeiro reuniu os poemas para posteriormente ilustrá-los e que para a questão da ilustração
optou pelas fotografias, algumas já existentes, outras não.
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) a ordem de construção das linguagens
foi oposta, temos primeiro as fotografias e posteriormente a palavra poética. Os autores
comentam sua obra em uma entrevista à editora Cosac & Naify (2003). Arnaldo Antunes
responde à questão de como surgiu a obra com as seguintes palavras:
Nós nos conhecemos em Cuba, na Bienal de Havana, mas só iniciamos esse trabalho
muito tempo depois. Partiu de Marcia o convite para fazermos algo juntos. Depois
disso, começamos a trocar e-mails. Ela me mandava alguns trabalhos e a partir deles
eu fazia os poemas. A primeira imagem que ela me mandou foi a das mãos, que está
no livro. E eu respondi com quatro opções de textos, oferecendo várias alternativas.
Então ela comentava, eu reelaborava, ela mandava outra imagem, e íamos
conversando...
Marcia Xavier por sua vez diz que:
Eu queria explorar a relação entre palavra e imagem. Estava com isso na cabeça
desde a série Binóculo, essa mesma palavra me interessava. Quando mandava as
imagens para o Arnaldo, não falava nada sobre elas, como tinham sido feitas ou o
que eram. na vigésima imagem começamos a pensar no livro. O trabalho
demorou bastante, pois eu queria usar o maior número de imagens, e tudo isso sem
muita pressa. Acho que ficamos um ano e meio trocando e-mails, sem pensar no
livro.
Pensamos inicialmente que a forma de criação não fosse influenciar nas possibilidades
de leitura de poemas e imagens fotográficas, contudo como veremos no decorrer desta
dissertação essa hipótese pode não se sustentar. Outra hipótese que formulamos é que na
junção de poema e fotografia haveria a construção de um novo espaço de leitura, de
construção na imaginação e na sensibilização e esse espaço se daria além da palavra e da
imagem visual, pois seria o lugar onde essas duas linguagens se encontrariam. Outro ponto
que surgiu para ser investigado, ainda, é se a palavra poética restringiria ou ampliaria a leitura
da imagem visual e se o mesmo ocorreria para a imagem fotográfica, se ela seria uma
ampliadora ou redutora da palavra poética. Como estamos lidando com duas linguagens
diferentes, com possibilidades diversas de leituras, consideramos que a melhor forma de
apresentação para esta dissertação seria dividi-la inicialmente pelo que cada linguagem tem de
específico. Contudo o nosso foco é a interação das linguagens e o nosso corpus apresenta as
linguagens juntas e manteremos a forma original como são expostas, pelo menos em sua
grande maioria e quando não a mantivermos observaremos isso ao leitor.
Dividimos a dissertação em três capítulos. No primeiro capítulo focaremos as
possibilidades de leitura da palavra poética e dos seus imbricamentos com outros conceitos
pertinentes como o desejo, a Lingüística, a formação da imagem poética e a possibilidade de
transformação do texto poético como autonarrativa. No segundo capítulo nos ateremos às
possibilidades de leitura da imagem fotográfica e iniciaremos a discussão da relação da
fotografia com o texto escrito. No terceiro, discutiremos de forma mais acentuada a
problemática da comunicação entre essas duas linguagens, se elas formam uma união ou um
paralelismo. O terceiro capítulo como um todo é a nossa conclusão e nossas considerações
finais. Optamos apresentar dessa maneira devido à complexidade e abrangência do tema,
iremos ao longo das secções dessa parte discutir e exemplificar as relações das imagens
fotográficas dentro das obras escolhidas como nosso corpus.
Como esse mestrado tem uma proposta de transdisciplinaridade decidimos mantê-la e
buscaremos respostas e embasamentos para as nossas hipóteses, dúvidas e questionamentos
em diversos universos teóricos, tais como a Psicologia, a Lingüística, a Filosofia, as Ciências
da Comunicação e a Literatura. O nosso olhar de pesquisadora está comprometido com as
diversas disciplinas, contudo queremos ir além delas, ou como comenta Basarab Nicolescu
(2001) o prefixo trans de transdisciplinaridade diz respeito ao que está entre as disciplinas,
além e através delas (p. 31). Em razão desse viés não iremos nos deter minuciosamente sobre
cada conceito de cada universo teórico, mas nos apropriaremos de alguns para podermos
cumprir a nossa opção de ponto de observação transdisciplinar.
1 POESIA COM PALAVRAS: algumas leituras possíveis
Ao comentarmos sobre a leitura estamos trabalhando com a noção de leitura geral,
leitura de palavras e de imagens, leitura de sujeitos e objetos, enfim leitura de mundo e das
coisas que estão ao nosso redor ou como diria Alberto Manguel (1997): “O mundo, que é um
livro, é devorado por um leitor, que é uma letra no texto do mundo; assim cria-se uma
metáfora circular para a infinitude da leitura” (p. 201). A leitura de mundo e dos objetos que
nele se encontram é realizada com as especificidades de cada linguagem, pois um filme
fotográfico não é um papel em branco e um livro não é um objeto à parte dos demais. Esses,
os livros com apenas palavras, são lidos e interpretados como tudo mais que nos circunda, não
são objetos diferenciados. Um fotógrafo também é um autor, mas seu instrumento de trabalho
é diverso do escritor. Da mesma forma que os autores, sejam escritores ou fotógrafos, os
leitores de imagens e os de palavras também possuem suas especificidades. Como aponta
Manguel (1997), o papa Gregório, o Grande, teria percebido que a leitura de imagens pode ser
usada na aprendizagem de ensinamentos para os “iletrados”:
Uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em profundidade, por meio de
imagens, uma história venerável. Pois o que a escrita torna presente para o leitor, as
imagens tornam presente para o analfabeto, para aqueles que percebem
visualmente, porque nas imagens os ignorantes vêem a história que têm de seguir, e
aqueles que não sabem as letras descobrem que podem, de certo modo, ler. Portanto,
especialmente para a gente comum, as imagens são equivalentes à leitura (p. 117).
As imagens têm se complexificado e assim como na Lingüística pesquisas sobre
níveis de leitura de texto, poderíamos dizer que níveis de leitura de imagens. Não basta
olharmos as letras para compreendê-las, da mesma forma não basta simplesmente olharmos
para uma fotografia. A compreensão das letras que formam palavras e frases assim como a
percepção de imagens fotográficas é um processo que requer tempo, aprendizagem e
desvelamento dos seus segredos.
Nesse capítulo nos ateremos às possibilidades de leitura dos textos poéticos formados
por palavras e no capítulo posterior discorreremos sobre as possibilidades de leitura de
imagens fotográficas. Gostaríamos de salientar que as obras escolhidas para exemplificação
não nos permitem uma total separação de texto e imagem uma vez que foram construídas
apresentando conjuntamente as duas linguagens e as mantivemos como se apresentam nas
obras, salvo exceções, mas que serão apontados quando se fizerem presentes.
1.1 A importância do desejo na leitura
Joel Birman (1996) discorre sobre o desejo e transgressão na leitura ao apontar o
surgimento da leitura romanesca. O autor afirma que esse tipo de leitura abre uma nova
relação do sujeito com o texto, pois o leitor é capaz de se descobrir através dele:
a leitura é mais uma forma de aprimoramento da sensibilidade do que de educação,
justamente porque o que está em causa não é apenas o entendimento mas
principalmente a subjetividade do leitor. Enfim, após a leitura de um texto que
ressoa, o leitor não é mais o mesmo, já que algo de fundamental a respeito do seu ser
e do seu desejo foi revelado e provocado pela leitura (p. 55).
Para alguns leitores o ressoar do texto é importante porque é capaz de sensibilizá-lo e
transformá-lo enquanto sujeito, mas este mesmo ressoar pode fazer com que outros sujeitos
desistam da leitura. O ato de não conseguir ler alguns textos poderia ser uma maneira de negar
uma possível transformação e, quem sabe, de negar esse aprimoramento da sensibilidade que
o autor acima propõe. Alguns textos poderiam ressoar demais no leitor e ele poderia não
desejar essa situação de ressonância, poderia não desejar naquele momento lidar com aquele
assunto, afeto ou pensamento. Ainda de acordo com Birman a leitura de um texto promoveria
a atualização de nossos fantasmas, “é possível antever aqui também a dimensão transgressiva
da leitura, pois o que existe de mais secreto no sujeito se atualiza pela fantasmatização
provocada pela leitura” (BIRMAN, 1996, p. 55-56). O texto lido pode funcionar como um
pré-texto para a formação de um novo texto, no caso, um novo texto criado pelo leitor. Esse
processo pode se dar através de associação de idéias, um simples conceito do autor pode
deflagrar uma história completa para o leitor. O leitor na tentativa de dar sentido, por
exemplo, a um conceito, utiliza de sua experiência, de seu conhecimento, e de seu desejo seja
ele consciente ou não e dessa forma escritor e leitor interagem. Podemos depreender que o ato
de ler é um ato de escrever, não no significado primeiro deste verbo onde palavras são escritas
num papel, mas sim na forma imaginativa, mental do leitor, onde este através da sua escrita
mental busca dar sentido para o texto lido.
Comentando sobre o desejo na leitura afirma Ruth Brandão (1996) que sem desejo o
leitor não lê, não porque nem sequer abriria o livro: “O gozo da leitura cria-se na relação
material, corporal e erótica do olho a olho do leitor e seu texto. Texto necessariamente
sedutor, pois se seu fascínio não fascina, o olho que e a mão que o abre fecham-se e
fecham-no” (p. 35). Sugerimos que em alguns casos, apesar do fascínio e do desejo, o leitor se
assusta, se desacomoda de tal forma com o que encontra que fecha o livro subitamente apesar
do desejo e apesar de sua curiosidade com o que ali estaria escrito, mas que seus fantasmas
não lhe permitem ir adiante. Pensamos ser a poesia uma das formas mais propícias para esse
acontecimento, pois o poema pode em poucas palavras nos conduzir de um mundo a outro, de
uma emoção a outra. Às vezes, vamos do nosso mundo cotidiano e seguro para uma imagem
da infância que nos desconcerta, emociona e nos faz pensar, como no exemplo de Antunes e
Xavier (2003)
4
:
a bola de gude e o dado
a televisão e o sol
a circunferência, o quadrado
a trave e a bola de futebol
4
Este poema encontra-se grafado ao redor de uma imagem fotográfica de Marcia Xavier (2003) co-autora do
livro de Arnaldo Antunes, não há um início ou fim para o poema, portanto a ordem de leitura fica ao encargo do
leitor.
Outras vezes nem precisamos ir ao mundo da infância ou retirar nosso pensar do dia-a-
dia, pois o poema vem para desconcertar e questionar o próprio cotidiano e a própria rotina:
se a vida não faz sentido
por que é que morrer
haveria de fazer?
(Antunes, 2003, s/p.)
5
Em outras ainda, a poesia vem para revolver nosso âmago e tocar na própria noção de
poesia e no desejo e fascínio que pode desacomodar e fazer o livro ser fechado, como em Paul
Celan (1999) com “Todesfuge (“Fuga da morte”) do qual transcrevemos uma parte:
Leite-breu d’aurora nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos à tardinha
bebemos e bebemos
Na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete
teus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com as serpentes
Ele grita toquem mais doce a morte a morte é uma mestra d’Alemanha
Ele grita toquem mais escuro os violinos depois subam aos ares como fumaça
e terão uma cova grande nas nuvens onde não se deita ruim
6
.
(CELAN, p. 29, 1999)
Em Shoshana Felman (2000) encontramos uma tradução de Theodor Adorno (1973, p.
362) que teria dito: “Depois de Auschwitz não é mais possível escrever poemas” ( p. 46). Paul
Celan, sobrevivente de campos de concentração, demonstra que sim, é possível. De acordo
com Seabra (2005), Celan teria comentado, ao receber o prêmio Büchner, em 1962:
Algo sobreviveu no meio das ruínas. Algo acessível e próximo: a linguagem.
Contudo, a própria linguagem teve que se erguer por entre as suas próprias ruínas,
salvar os espaços em que se quedou mudo o horror, por entre as mil trevas que
mortificam o discurso. Nesta língua, o alemão, procurei escrever poesia. Apenas
para falar, orientar-me, indagar, imaginar a realidade. Deste modo a poesia encontra-
se sempre no caminho para a língua originária (s./p.).
5
Esse poema também se encontra grafado sobre imagens de Marcia Xavier, transcrevi-o caso o leitor não
consiga lê-lo sobre as imagens.
6
“Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts/ wir trinken sie mittags und morgens wir trinken dich
abends /wir trinken und trinken/ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete / dein aschenes Haar
Sulamith er spielt mit Schlangen/Er ruft spielt süber den Tod der Tod ist Meister aus/ [deutschland/er ruft
streicht dunker die Geigen dann steigt ihr als Rauch/ [in die Luft/dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt
man nicht eng” (Tradução: Claudia Cavalcanti).
Pode ser um tipo de poesia que nos o desejo de fechar o livro, de não lê-la, afinal
“subir aos ares como fumaça onde não se deita ruim” é desconcertante e mórbido. Quem teria
o desejo de mexer nesses fantasmas? De usar sua imaginação para criar imagens de milhões
de pessoas sendo queimadas em fornos e transformadas em fumaça? São fantasmas da
humanidade toda, mas nem toda a humanidade quer se aproximar deles. Às vezes, apesar do
desejo, nem sempre estamos prontos para lidar com o que está escrito, para lidar com a
literatura seja em forma de poesia ou prosa. Assim como com as palavras o mesmo se dá com
as imagens, algumas somos capazes de ver, olhar, admirar; outras fechamos os olhos ou o
livro ou saímos da exposição, do cinema, da instalação, etc. Talvez exista alguma instância
além do desejo e do fascínio ou que esteja imbricado neles, que nos faça suportar um livro
fechado.
O uso que fazemos dos livros é uma questão que fica a nosso encargo enquanto
leitores. Italo Calvino, de posse deste conhecimento sobre o desejo do leitor, propõe pelo
menos nove tipos de leitores em seu romance Se um viajante numa noite de inverno (1999).
Um deles comenta:
Se um livro me interessa de verdade, não consigo avançar além de umas poucas
linhas sem que minha mente, tendo captado uma idéia que o texto propõe, um
sentimento, uma dúvida, uma imagem, saia pela tangente e salte de pensamento em
pensamento, de imagem em imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que
sinto a necessidade de percorrer até o fim, afastando-me do livro até perdê-lo de
vista (p. 25).
Um outro acentua: “minha atenção [...] não pode afastar-se das linhas escritas nem por
um instante” (CALVINO, 1999, p. 258). É um leitor temeroso de perder qualquer indício que
possa haver no texto, inclusive e relê várias vezes o mesmo texto como forma de
confirmação de uma descoberta. Um terceiro tipo de leitor, que também possui essa
característica de ler e reler, no entanto, busca outra coisa, tem outro desejo nas suas releituras
dos textos: “a cada releitura me parece estar num livro novo. [...] O livro é um suporte
acessório ou, mesmo, um pretexto” (CALVINO, 1999, p. 258).
Outro exemplo de leitor seria aquele capaz de construir uma intertextualidade e criar o
seu único livro: “cada novo livro que leio passa a fazer parte daquele livro abrangente e
unitário que é a soma de minhas leituras” (CALVINO, 1999, p. 259). A intertextualidade
pode ser definida, segundo Alba Olmi (2003) ao interpretar Gérard Genette como:
Uma relação de co-presença entre dois ou mais textos[...] como a presença efetiva de
um texto noutro. Em sua forma mais explícita e mais literal trata-se da citação[...]
De forma menos explícita e menos canônica, do plágio, ou seja, um empréstimo
ainda literal, mas não declarado. De forma ainda menos explícita e menos literal,
trata-se da alusão, ou seja, de um enunciado[...] que pressupõe a percepção de uma
relação com outro enunciado ao qual remete necessariamente uma ou outra de suas
inflexões. (p. 268)
No caso desse leitor além de notar a co-presença entre dois textos ele é capaz de notar
a co-presença entre todos os textos que lê, formando assim um grande e único livro. Essa
idéia é apresentada em Calvino (1990) nas Seis propostas para o próximo milênio. Sua idéia é
que a vida em si poderia ser um grande livro, enciclopédia ou biblioteca onde tudo pode se
mover e demover num grande processo. Similar ao quarto tipo de leitor temos um outro em
que seu único livro está situado num passado distante e é sempre anterior a todos os outros,
tudo remete e se referencia a ele: “Em minhas leituras não faço nada além de buscar esse livro
lido em minha infância, mas o que me recordo é demasiado pouco para reencontrá-lo”
(CALVINO, 1999, p. 259).
Encontramos ainda um leitor que deseja ler apenas o paratexto, sendo isso o suficiente
para ele. “Paratexto”, de acordo com Olmi (2003), pode ser definido como os arredores do
texto, o título, subtítulo, prefácio, epígrafe, premissas, notas de rodapé, notas finais, entre
outros acessórios. Esse sexto leitor diz: “o momento mais importante para mim é aquele que
precede a leitura. Às vezes, é o título que basta para acender em mim o desejo de um livro que
talvez não exista” (CALVINO, 1999, p. 259). A promessa de uma leitura satisfaz este tipo de
leitor. Num outro tipo de leitor o que conta para ele é o final da história, mas não um final
qualquer: “se meu olhar escava entre as palavras é para tentar discernir o que se esboça à
distância, nos espaços que se estendem para além da palavra ‘fim’” (CALVINO, 1999, p.
259).
ainda o leitor que prefere ler as obras do princípio ao fim, lendo apenas o que está
escrito e que não gosta de misturar um livro com outro. Esse leitor salienta: “gosto de separar
cada um por aquilo que possui de diferente e de novo; mas o que mais gosto mesmo é de ler
um livro do princípio ao fim” (CALVINO, 1999, p. 259). Uma forma diferente de leitura é
apresentada sob a forma do personagem Irnerio, ainda dentro desta mesma obra. Quando ele
pega livros na casa de uma amiga, o personagem denominado Leitor diz que pensava que
Irnerio não lesse, ao que responde: “não é para ler. É para fazer. Eu faço coisas com os livros.
Alguns objetos” (CALVINO, 1999, p.153). Inclusive este personagem Irnerio poderia não ser
considerado um leitor propriamente dito, tendo em vista que ele não os livros da forma
mais corriqueira ou esperada, ele não as palavras dos livros, ele os enquanto objetos e
cria obras de arte com os mesmos. Para nós ele é um leitor, é o leitor que exemplifica a leitura
de mundo. Tudo pode ser lido, compreendido e interpretado desde uma palavra, livro, objeto
ou imagem. E esse leitor/personagem tem uma relação de afeto com os livros, mesmo sem lê-
los livros que ressoam e outros não, podemos assim pontuar a influência do desejo, pois
elege uns e repudia outros: “há livros com que simpatizo e outros que não consigo suportar, e
estes sempre me caem nas mãos” (CALVINO, 1999, p. 153).
mais tipos de leitores descritos nas obras de Calvino, além da possibilidade de
combinação entre eles e ainda de mudança de desejo de acordo com a obra em mãos.
Podemos ser de um tipo num determinado momento e ser outro em tempo diverso. As obras
despertam atenções diferentes, despertam desejos diversos que por sua vez modificam nossas
formas de lê-las e de interpretá-las. Birman (1996) salienta que:
O texto que é oferecido ao leitor é permeado pela polissemia, pelas múltiplas
interpretações que lhe atravessam. Face a esta rede intrincada de sentidos o leitor
forja novos sentidos, desarticulando para tal os sistemas de forças que se cristalizam
no real do mundo e da cena social. [...] Para isso, o investimento e a força que
comandam o leitor é o desejo (p. 67).
Daniel Pennac (1993) utiliza os direitos do leitor em vez de falar do desejo e os ordena
em dez: o direito de não ler; o direito de pular páginas; o direito de não terminar um livro; o
direito de reler; o direito de ler qualquer coisa; o direito ao bovarismo (satisfação imediata e
exclusiva das sensações); o direito de ler em qualquer lugar; o direito de ler uma frase aqui
outra ali; o direito de ler em voz alta e o direito de calar. Para esse autor as razões que nos
levam a ler são tão estranhas quanto as que nos levam a viver. Concordamos com Pennac, o
leitor pode ler da forma e do jeito que quiser e se quiser, contudo preferimos a noção de
desejo em vez de direito, pois entendemos que nem tudo é uma questão de direito, mas sim
uma forma de expressão do desejo.
Em Garcia-Roza (1998) encontramos uma definição para o desejo: “o que caracteriza
o desejo é a presença de uma ausência. O desejo é a nostalgia do objeto perdido” (p. 145).
Ainda sobre o desejo de acordo com Le Poulichet (1996):
a presença do desejo não poderia ser confundida com o presente: a presença do
desejo mistura as três “ekstases” do tempo, que são presente, passado e futuro. E a
presença do desejo seria finalmente revelada pelo tempo identificante, a
identificação mútua dos vestígios que afeta bruscamente o corpo (p. 19).
O desejo é uma idéia, e é uma idéia que busca realização, mas que sempre é adiada,
nunca se em tempo algum nem presente, nem passado e nem futuro. Barthes (1976) ao lhe
perguntarem se ainda haveria sobre o que escrever, ele respondeu que escrevia com o seu
desejo e o desejo é algo que nunca termina, nunca se deixa de desejar. Pensamos que o
mesmo pode ser entendido sobre a leitura. Podemos estar sempre lendo, colocando nosso
desejo em movimento, contudo nunca será da mesma forma. Após a leitura de uma obra,
estamos transformados e os nossos desejos também, assim numa leitura seguinte ou mesmo
na releitura de um livro o nosso desejo se modificou e isso faz com que encontremos
passagens que anteriormente não nos chamaram ou não nos chamariam a atenção e nos
surpreendemos. Já seremos outro tipo de leitor, talvez com outros direitos na leitura como nos
pontuou Pennac, teremos construído outras formas de interpretação, outras sensibilidades,
outros olhares enfim outros desejos que irão movimentar outras leituras.
1.2 Leitura como autonarrativa
De acordo com Jorge Larrosa (2003), o sentido de quem somos dependeria das
histórias que contamos e que nos contam:
em particular, aquelas construções narrativas nas quais cada um de nós é, às vezes,
o autor, o narrador e o personagem principal, ou seja, as autonarrações ou histórias
pessoais. Por outro lado, essas histórias são construídas em relação às histórias que
escutamos e lemos e que de alguma maneira nos concernem (p. 607-608).
7
Ainda segundo Larrosa (2003), uma questão importante sobre esse contar, sobre o
se autonarrar e mesmo sobre o se permitir ler alguns textos e se conscientizar se os mesmos
nos concernem ou não, a experiência que gera autoconhecimento. A experiência pressupõe
um ser para quem algo acontece:
Não somente porque a experiência é um acontecimento para nós, mas também
porque requer de nós uma abertura, uma capacidade de sermos afetados; e porque
7
Tradução nossa de: “en particular, de aquellas construcciones narrativas en las que cada uno de nosotros es, a la
vez, el autor y el carácter principal, es decir, de las autonarraciones o historias personales. Por otra parte, esas
historias están construidas en relación a las historias que escuchamos y que leemos y que, de alguna manera, nos
conciernen”.
nos solicita, às vezes, uma resposta. Por isso, porque a experiência da vida é nossa
experiência, o viver a vida supõe estar abertos ao que nos acontece. E se nada nos
acontece, a vida não é vida (p. 613-614).
8
Para nos permitirmos ler alguns textos e estarmos abertos aos mesmos, o desejo é
necessário à leitura para que a mesma nos fascine e o livro permaneça aberto. Contudo neste
desejo seria importante que houvesse, além do prazer, a possibilidade de aceitar ou pelo
menos de nos propor a que leitura nos surpreenda, nos desmanche, nos desloque e esfacele,
seria um prazer às avessas. No ato de ler não deveríamos buscar apenas uma confirmação dos
nossos valores, mas também a negação dos mesmos, a negação da noção de mundo que
temos, poder ler a alteridade, a diversidade, como no caso da poesia de Celan. Calvino (1999),
no romance citado escreve: “Espero que meus leitores leiam em meus livros algo que eu não
saiba, mas posso esperar isso daqueles que esperam ler algo que não saibam.” (p. 189). A
leitura pode e deveria ser um ato surpreendente, no sentido de ser nova, de ser algo não
esperado e nem intencionado, ela poderia ser inusitada e nos causar sobressaltos e rupturas em
nossas certezas.
Esses sobressaltos e rupturas na leitura, contudo necessitam fazer ou ter algum sentido.
Como comenta Bruner (1997), para o leitor a necessidade de a narrativa ser possível, ser
verossímil, caso contrário não fará sentido e se tornará indecifrável. Mas temos que ter
cuidado na interpretação das palavras, pois “ser possível” não quer dizer existir na concretude,
caso contrário todos os textos e outras artes onde a fantasia e a ficção penetram não seriam
possíveis de serem interpretados, aliás, as artes em geral não teriam sentido, pois muitas
existem exatamente para nos iludir e ludibriar. Roman Jakobson (1999) utiliza-se de
expressões tais como “quadratura do círculo” e “leite de pato”, a princípio, não existentes e
nem possíveis e diz que:
a não-existência, o caráter fictício dessas entidades, não tem relação alguma com a
questão de seu valor semântico. A possibilidade mesma de pôr sua existência em
dúvida é a melhor advertência contra uma confusão de irrealidade ontológica com
ausência de sentido (p. 95).
O que seria da poesia sem essa invenção de expressões, sem “homens ocos” ou
“floresta de alheamento”? Através delas a poesia revela, ou de acordo com Octavio Paz
(1982): “O poema nos revela o que somos e nos convida a ser o que somos”. (p.50). Ainda
8
Tradução nossa de: “No sólo porque la experiencia es un acontecimiento para nosotros, sino también porque
requiere de nosotros una apertura, una capacidad de ser afectados; y porque nos solicita, a veces, una respuesta.
Por eso, porque la experiencia de la vida es nuestra experiencia, el vivir la vida supone estar abiertos a lo que nos
pasa. Y si nada nos posa, la vida no es vida”.
nessa obra Paz define poesia e poema de formas diferentes, a poesia encontra-se em muitos
lugares e não necessita do poema: “paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia
sem poema” (p.16). No nosso caso, as fotografias podem ser poéticas.
O poema por sua vez é definido como: “organismo verbal que contém, suscita ou
emite poesia. [...] O poema é linguagem erguida” (Paz, 1982, p.17-43). Essa linguagem
erguida precisa ser sentida para poder ser entendida, para ser compreendida. Em Kanaan
(2002, p. 81) encontramos um comentário de Clarice Lispector em que ela analisa a aceitação
de suas obras, pois havia universitários que gostavam de umas e pessoas mais adultas que
diziam não compreender nada do que ela escrevia. Para Clarice isso seria devido a que o
entendimento não é uma questão de inteligência, mas sim uma questão de sentir e de entrar
em contato. Feitosa (2004) comenta que Clarice costumava definir sua literatura como: “uma
espécie de ‘linguagem sonâmbula’, uma escrita livre da obrigação de ‘fazer sentido’, mas que
não deixava de ser expressão ou comunicação de experiência” (p. 43, grifos do autor). Dessa
forma podemos aproximar Larrosa de Lispector. Para ambos a experiência é importante para
que a compreensão e entendimento existam, a experiência de viver, de entrar em contato com
as emoções e afetos da vida.
Pensamos que para Lispector “fazer sentido”, ou não ter obrigação de “fazer sentido”,
está relacionado a sentido único, sentido racional e sentido lógico, pois algum sentido é
necessário para que a escrita ou a leitura se torne decifrável. A psicanálise traz uma
contribuição de ruptura da tirania do sentido, como sentido único e irrestrito. Para Brazil
(1996), Freud faz da psicanálise uma prática teórica e da interpretação um ato criativo. Esse
conceito de interpretação não se restringe à prática psicanalítica, mas a toda e qualquer
interpretação, toda e qualquer busca de sentido:
E é procurando, pelas interpretações de sentido, uma origem além da palavra,
associando psicanálise e literatura, enriquecendo a disponibilidade interpretativa da
subjetividade com mesmo valor de ruptura com as análises de tipo realista e
nominalista que a crítica literária faz, revelando o sentido oculto pela desconstrução
dos significados, provocando ressonâncias, multiplicações do sentido, refrações do
significado, como acontece em qualquer obra literária, que podemos descobrir a
possibilidade de se instaurarem novas significações na subjetividade. (p. 39)
No momento em que o leitor se aberto a novos significados, quando o leitor é
esfacelado de suas certezas, é desconstruído, o desejo por um novo conhecimento pode ser
instaurado. Birman (1996) chama a atenção para a transgressão no ato da leitura. Segundo o
autor, assim como para criar um texto o escritor devaneia pelo seu imaginário, fantasias e
fantasmas o leitor também devaneia pelas mesmas instâncias, inclusive desta forma é que
começa a dar sentido ao que é lido. Ainda temos a transgressão onde o leitor através do texto
dá ao mesmo um sentido diferente rompendo com as codificações instituídas. O imaginário do
escritor diverge do imaginário do leitor. Para Birman (1996): “a leitura é o outro da escritura,
[...] A produção do sentido implica a apropriação do texto pelo leitor, que imprime a sua
singularidade na experiência da leitura” (p. 54, grifo do autor). Esse pensamento corrobora
mais uma vez com a questão de um texto funcionar como um pré-texto onde o leitor através
de sua interpretação constrói o seu texto próprio, sua própria narrativa.
Marcushi (1998) chama a atenção para a produção de sentido com o transcorrer do
tempo. Ele alguns exemplos de anúncios de jornais antigos e de jornais atuais e demonstra
como o transcorrer do tempo pode modificar a nossa compreensão. Em um dos seus exemplos
de jornal antigo aparece uma nota para a venda de uma propriedade com as descrições da
mesma, constando acomodações para escravos, cacimbas para água e o espaço é medido em
palmos. Na atualidade um anúncio desses seria tido de mau gosto e as medidas não fariam
sentido algum. Da mesma forma um anúncio atual de uma massagista loira, sensual,
carinhosa, de um metro e sessenta, bilíngüe e executiva provavelmente seria uma afronta aos
costumes de 1900. Marchuschi (1998) afirma:
Produzir textos é produzir propostas de significação com efeitos de sentido que não
são permanentes ou estáveis, pois o sentido se efetiva no ato do processamento pelo
leitor/ouvinte, que pode estar situado em tempos históricos defasados ou em
contextos sócio-culturais diversos. Assim, produz texto quem escreve/fala, mas
também que lê/ouve. (p. 4 - 5)
Esse mesmo autor em outro trabalho analisa algumas possíveis significações para o
verbo “quebrar” e exemplifica: “quebrar um copo” (destruir); “quebrar um juramento”
(romper); “quebrar um recorde” (ultrapassar); “quebrar um banco” (falir); “quebrar a cara”
(dar-se mal) e “quebrar a cabeça” (tentar resolver algo) entre outros possíveis. Destaca ainda,
que a língua é: “forma de ação sócio-cognitiva que permite construir o mundo e as
experiências na convivência social. [...] Aquilo que damos a entender com nossos usos
lingüísticos não está previsto de uma vez por todas no sistema da língua e sim nas formas de
vida” (MARCUSCHI, 2003, s./p.). Ou seja, a língua está sempre em construção e dessa forma
os sentidos e interpretações que damos para as palavras e expressões. Se existe a possibilidade
de construção é porque algo novo sempre é forjado, portanto a criação, que necessita da
criatividade, é solicitada.
Podemos depreender que a interpretação é um ato criativo que se inicia particular e
múltiplo, constrói para desconstruir logo em seguida, está sempre aberta para o novo, para
possibilidades e potencialidades. Num segundo momento onde a interpretação passa para um
coletivo e nesse se instaura como a norma, todo o processo inicia-se novamente, passa para o
particular, cria-se o novo e instaura-se no coletivo formando um círculo que sempre se inicia
novamente. Acreditamos que esse processo não aconteça apenas com a língua, mas sim com o
mundo que nos cerca, pois não interpretamos apenas as palavras, como uma forma típica da
linguagem, mas interpretamos o que encontramos ao nosso redor, tanto que temos diversas
linguagens: musical, matemática, informática, etc. Para Marcuschi (2003) em termos gerais
podemos dizer que: “a linguagem é a faculdade humana geneticamente instalada de
simbolizar; ao passo que, com a língua, entendo uma das formas típicas de realização da
linguagem” (s./p.). A arte também é linguagem e dessa forma nosso contato com ela, seja
literária ou não, é um processo de aprendizagem, criação, construção e desconstrução, tanto
no singular como no coletivo. De acordo com Persicano (2002):
A arte é o protótipo de expressão criativa humana. Tem um apoiado na
irracionalidade e salta para a razão a partir da realidade do outro [...] consiste em
criar um mundo próprio, mas que faça sentido ao outro e que suscite no outro a
convicção de realidade nova e diferente [...] não é solipsista, se endereça à alteridade
(p.181).
A arte propicia um contato com a alteridade, com o diverso, com o subjetivo, o
individual, o coletivo, o singular, o cultural, o leitor e o autor. Nesse processo de contato com
a alteridade, nos tempos contemporâneos, pode ser que tanto o artista como espectador/leitor
estejam mergulhados no que Lasch (1979) denominou de Cultura do Narcisismo. Birman
(2003) afirma que a característica da cultura do narcisismo é a impossibilidade de admirar o
outro em sua diferença. Os sujeitos não reconhecem mais a diferença e a singularidade, não se
afetam nem se sensibilizam com a mesma, o que poderia esclarecer a sensação de
estranhamento e até de refutação que podemos ter perante algumas obras de arte, tanto
literárias quanto visuais.
Birman (2003) salienta que: “O outro lhe serve apenas como instrumento para o
incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir
para essa função abjeta” (p.25). Nessa busca de auto-imagem esquecemos de ver o outro
como forma de alteridade, como potencialidade de construção de novas formas de ser, de
sentir, de afetar, de amar, desejar, sofrer, fruir, etc. Através disso a nossa faculdade de sentir,
de ser sensibilizado, ou seja, de incrementar novos conhecimentos estaria diminuída e ligada
a um valor, a um valor de uso, sujeitos usando sujeitos. Leitores e autores estariam se
distanciando, a criatividade de gerar um mundo próprio, mas que faça sentido ao outro e ainda
suscite o novo, como dito acima por Persicano, pode ser que se estanque na primeira etapa
onde temos apenas criação do novo e que pode não ser compartilhado com o social. Formula-
se assim uma linguagem que não estaria sendo comungada e compartilhada com o coletivo, o
social não se apossa dela o que deveria ocorrer para poder ser posteriormente desconstruída e
então criar-se outra vez algo novo e dar continuidade no círculo das interpretações.
Como dito anteriormente, estamos tomando a leitura como forma de sensibilização e
subjetivação. Para entender e compreender é necessário sentir, ou seja, sensibilizar-se. No
Dicionário Eletrônico de Filosofia da Arte (2005), sensibilidade é definida como:
A comum definição de sensibilidade (do latim sensibilitas) enquanto “faculdade de
sentir” revela desde logo, a abrangência e riqueza semântica daquele termo.
Enquanto “faculdade de sentir”, a sensibilidade pode ser considerada como a
capacidade de receber e perceber impressões do próprio corpo e do mundo que lhe é
exterior. A sensibilidade está, assim, simultaneamente associada, quer à capacidade
de ter sensações, percepcionar e conhecer, quer à possibilidade de “se ser afectado”,
ou seja, à capacidade de “se ter vida afectiva” ( desejar, amar, sofrer, fruir, comover-
se, emocionar-se...) Deste modo, o termo “sensibilidade” tanto nos pode remeter
para os conceitos de “aparelho sensitivo e perceptivo”, “intuição sensível” ou de
“excitabilidade” pelos quais nos são dados a conhecer os objectos sensíveis
como para os conceitos de “sentimento”, “delicadeza de sentir”, “gosto”, ou mesmo,
“capacidade de fruição do Belo” e “fantasia criativa” que nos permite aceder à
experiência estética e à criação artística (p. 1, grifos do autor).
No ato da leitura precisamos estar abertos, com as faculdades de sentir sem restrições,
tanto para perceber e conhecer como para ter afetos ou sentimentos. Se não usamos nossa
sensibilidade na leitura corremos o risco, como disse Larrosa (2003), de não experienciarmos
nada, de não nos sensibilizarmos e dessa forma nada nos passa, apenas a vida, mas sem ser
vivida. O mesmo pode acontecer com a leitura, se não a transformamos em autonarrativa ela
pode correr o risco de se transformar em um meio de busca de informação enciclopédica,
estaríamos usando a leitura de um modo narcísico, apenas como um banco de dados, como
um amontoado de conhecimentos sem significação e sem sentido pessoal.
Em Bachelard (2001), toda a nossa vida é leitura e deveríamos considerar a leitura das
palavras como uma realidade psíquica particular, em especial a leitura da poesia: “Sem a
ajuda dos poetas, que poderia fazer um filósofo já entrado em anos, que se obstina em falar da
imaginação? [...] Os poetas sempre imaginarão mais rápido que aqueles que os observam
imaginar” (p. 25).
A poesia pede silêncio, distanciamento do mundo e aproximação com o nosso íntimo.
Ela clama pelo sensível, por nossa imaginação, e por um conhecimento prévio de emoções e
afetos. Diríamos ser necessário um pouco de conhecimento ou contato prévio com a alma e
com as dores e alegrias da mesma. “A língua dos poetas deve ser aprendida, precisamente
como a linguagem das almas” (Bachelard, 2001, p. 15).
Octavio Paz (1982) questiona quando a separação entre o mundo e o homem chegar ao
fim se haverá ou restarão as palavras e se elas se farão necessárias. Para ele o fim da
separação entre homem e mundo seria o fim da linguagem, seria a reconciliação do homem
consigo mesmo e com o que o cerca, mas enquanto isso não ocorre, as palavras da poesia são
o meio de ligação e de contato:
a fusão - ou melhor, a reunião - da palavra e da coisa, do nome e do nomeado, exige
prévia reconciliação do homem consigo mesmo e com o mundo. Enquanto não se
opera essa mudança, o poema continuará sendo um dos poucos recursos do homem
para ir além de si mesmo, ao encontro do que é profundo e original (p. 44- 45).
Na tese de doutorado sobre Walter Benjamin, Márcio Seligmann-Silva (1999) aborda
a questão de ler o livro do mundo. Este autor comenta que a fusão, ou melhor, a suspensão da
distância entre as palavras e as coisas seria a constituição da poesia pura, seria a poesia do
mundo “tradução total do mundo em poesia” (p.105). Enquanto essa poesia pura não surge
podemos pensar que toda a forma de arte, seja ela música, dança, pintura, fotografia e tantas
outras, vem com esta tentativa de fusão, de reencontro e reconciliação do indivíduo e sua
história, das narrativas com as autonarrativas, da palavra e das coisas. Calvino, em Seis
propostas para o novo milênio (1990), questiona-se sobre isso:
quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de
experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma
enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de
estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as
maneiras possíveis (p. 138).
Nesse inventário pessoal de objetos, leituras, emoções, sensações e imaginações,
muitas pequenas histórias estão ali contidas, muitas pequenas autonarrativas. Cada vez que
entramos em contato com algo diverso, mas que nos concerne (pressuposto necessário de
acordo com Larrosa) nos remodelamos, nos reescrevemos e nos autonarramos novamente
num processo infinito. Resta-nos pensar se a nossa forma de leitura e transformação da
mesma em autonarrativa não estaria apenas embebida na Cultura do Narcisismo, se ainda
somos capazes de relativizar, de nos colocar no lugar do outro e construirmos através da
alteridade novas maneiras de ver/ler o que nos cerca.
1.3 Leitura poética pelos olhos de um lingüista
Roman Jakobson, teórico, estudioso da lingüística e amante da poesia, traz alguns
conceitos importantes para a nossa pesquisa na busca da compreensão da leitura poética
conjunta à fotográfica. A Lingüística nos vários instrumentos de estudos dos quais
elencamos apenas alguns como os sons, a palavra pela palavra e o próprio processo lingüístico
da comunicação verbal com seus fatores constitutivos e funções. Jakobson não é um estudioso
radical, ele sempre tenta deixar claro que a Lingüística e a Literatura deveriam caminhar
juntas, não em paralelo, mas sim em ziguezague com momentos de troca e conversação de
idéias. Esse autor também chama a atenção para os afetos e para a sensibilidade como
instrumentos de suporte e cooperação no estudo das línguas. Ele salienta: “Somente quem
ama a poesia (e a ama com entendimento) e sobretudo sente empatia por ela é capaz de
estudá-la, caso contrário será o trabalho mais tedioso do mundo”
9
(Jakobson, 1992, p.107).
Apesar de estudioso da poesia e de revelar a importância do estudo lingüístico da mesma para
a sua compreensão, deciframento e diríamos fruição, sabe dos limites desta ciência: “sobra
dizer que nenhuma investigação acerca do ser humano criará um novo ser humano. Nenhuma
investigação acerca da poesia criará um novo Yeats”
10
(Jakobson, 1992, p. 106).
Jakobson (1999) ainda nos diz que existem três maneiras de interpretar um signo
verbal: “ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua (intralingual), em outra
língua (interlingual), ou em outro sistema de símbolos não-verbais” (p. 64). Essa tradução
entre sistemas, verbal e não-verbal ele denomina de tradução inter-semiótica ou
transmutação. Jakobson chama a atenção para as várias dificuldades da tradução:
9
Tradução nossa de: “Sólo si uno ama la poesia (y la ama con entendimiento) y, sobre todo, sólo si uno siente
empatía, puede llevarse a cabo este trabajo. Si no, es el trabajo más aburrido del mundo.”
10
Tradução nossa de: “sobra decir que ninguna investigación acerca del hombre creará un nuevo ser humano.
Ninguna investigación acerca de la poesía creará a un nuevo Yeats.”
Em qualquer comparação de línguas surge a questão da possibilidade de tradução
de uma para a outra e vice-versa; a prática generalizada da comunicação
interlingual, em particular as atividades de tradução, devem ser objeto de atenção
constante da ciência lingüística (p. 66).
Se ao traduzir um signo lingüístico por outro pode ocorrer e realmente ocorre, em
alguns casos, uma perda de sentido, tanto que classificamos as traduções em boas ou más, em
traduções ou traições, como pensar as traduções inter-semióticas? alguma forma de
classificação de boa ou má, de uma tradução ou traição? códigos estabelecidos para a
transmutação entre esses dois sistemas verbal e não verbal? Vamos adentrar um pouco mais
no sistema verbal para podermos traçar alguns paralelos ou transversalidade no decorrer do
nosso estudo.
Nas traduções interlinguais pode ocorrer que em algumas línguas palavras que em
outras não existe similar, pode-se então traduzi-las por uma explicação, como por exemplo, a
palavra “saudade” do português para o inglês, todavia na poesia essa contenda é muito mais
complexa, pois o uso da explicação está fora de cogitação. O tradutor precisa fazer uso de
alguma palavra que expresse algo semelhante ao sentimento, objeto ou situação em particular
sem perder de vista a sonoridade e as outras conotações que a palavra escolhida possa ter. Ele
precisa procurar a melhor tradução entre o eixo de seleção e o eixo de combinação que fazem
parte da função poética de que falaremos logo mais adiante.
Essa preocupação com a tradução dos signos lingüísticos na poesia nos remete ao
nosso outro foco que é a imagem fotográfica. Nesse caso, que preocupações ou cuidados
devem ser elencados? Assim como nas palavras que existem em uma língua, será que
imagens visuais que pertençam a uma determinada cultura? Em afirmativo, podemos
traduzir essa imagem visual por um conjunto de imagens? Transformá-la em uma explicação
através de uma seqüência de imagens? Estamos mais inclinados a tomar o mundo das imagens
como universal, contudo o valor e o sentido dado para as mesmas é que mudam de cultura
para cultura, de sujeito para sujeito, levando em conta as ressonâncias e associações que elas
produzem.
Em alguns casos legendas ou textos explicativos ao lado das imagens podem facilitar,
em outros podem restringir a leitura dessa imagem, uma vez que direcionam o olhar. Nas
obras escolhidas para esta dissertação temos dois tipos de construção, temos duas situações
diferentes como apresentamos na introdução. No livro de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier a
palavra surge após a visualização da imagem fotográfica, a palavra pode funcionar como uma
legenda, pois é a fotografia que início ao processo do poeta, mesmo que após dado este
passo os dois autores debatam sobre o assunto e a melhor forma de editoração e apresentação.
No caso de Suzana Vargas e Antonio Lacerda, temos as imagens fotográficas
escolhidas posteriormente à escritura dos poemas, nesse caso podemos entender a fotografia
como uma legenda ou imagem explicativa para a palavra poética. Surge assim um
questionamento, se a palavra pode ser uma legenda para a fotografia e/ou se a fotografia pode
ser uma legenda para a palavra e ainda se essa legenda tem função explicativa ou se ela pode
ter uma função criativa. Como nosso foco é a poesia, tanto de palavras como de imagens, a
tradução, pelo menos no que tange à palavra, deve ser feita observando-se o eixo
combinação/seleção onde uma palavra selecionada pode ter um sentido ou pelo menos
endereçar para uma determinada compreensão, contudo ao ser combinada com outras ela
toma outra direção que pode amenizá-la ou marcá-la ainda mais. Como seria esse processo de
combinação/seleção se considerarmos a legenda (palavra/imagem) como tradução? Uma
linguagem pode ser traduzida em outra? Tentaremos responder a essas questões ao longo
desse trabalho. Seguiremos com o pressuposto de que traduzir é interpretar, seja uma
interpretação intralingual, interlingual ou inter-semiótica. Ficaremos com a idéia de Jakobson
(1999)
11
:
Em sua função cognitiva, a linguagem depende muito pouco do sistema gramatical,
porque a definição de nossa experiência está numa relação complementar com as
operações metalingüísticas - o nível cognitivo da linguagem não admite mas
exige a interpretação por meio de outros códigos, a recodificação, isto é, a tradução
(p. 70).
Salientamos que entendemos linguagem como todos os meios de expressão do ser
humano, dando ênfase para as artes. Para Etienne Souriau (1965) em sua obra La
correspondencia de las artes o que ocorreria ao parearmos as diversas artes é também
tradução. Para essa autora as artes diversas são como diversas línguas: “entre as quais a
imitação exige uma tradução, um novo pensar em um material expressivo totalmente distinto,
uma invenção de efeitos artísticos, antes paralelos que literalmente análogos (p.21)”
12
.
11
Optamos por Jakobson porque queremos enfocar apenas a tradução como interpretação possível, sem levarmos
em conta o que salienta Jacques Derrida (2002) de que sempre resta algo que não pode ser traduzido e é esse
resto, esse intocável que deslumbra o tradutor: “O sempre intacto, o intangível, o intocável, é o que fascina e
orienta o trabalho do tradutor (p. 51).
12
Tradução nossa de: “entre las cuales la imitación exige la traducción, un nuevo pensar en un material
expresivo totalmente distinto, una invención de efectos artísticos, antes paralelos que literalmente análogos”.
Quando, por exemplo, Arnaldo Antunes utiliza as fotografias de Marcia Xavier para escrever
seus poemas, poderíamos dizer que ele as interpreta e traduz em outro código, no caso, traduz
do visual para a linguagem da palavra escrita.
Jakobson chama atenção de que no sonho, na magia e principalmente na poesia as
categorias gramaticais têm um conteúdo semântico elevado o que complexificaria a tradução.
Na poesia ainda temos o ritmo, a rima e outras elaborações sonoras, por exemplo, que a
tornariam intraduzível. Esse pensamento sobre tradução sonora é dividido com Ezra Pound
(1976) que comenta sobre a melopéia
13
: “É praticamente impossível transferi-la ou traduzi-la
de uma língua para outra, a não ser talvez por algum divino acidente, e meio verso de cada
vez” (p. 38). Para Jakobson (1999) na poesia é possível a transposição criativa, seja ela
transposição intralingual, interlingual ou inter-semiótica como é o nosso caso, pois estamos
pesquisando a palavra poética e a fotografia.
No corpus aqui escolhido poderíamos depreender que o uso de dois meios diversos, de
duas linguagens, palavra e imagem fotográfica, não seja uma forma de tradução, nem
transposição e nem legenda, mas sim complementaridade. Seriam duas vozes que se
comunicam e que expressam uma mesma mensagem por meios diversos, por códigos
diferentes ou, ainda, ao comungarem dão vazão a uma terceira expressão, possibilitando uma
polissemia mais abrangente ainda do que cada qual possui em separado. É difícil asseverar
uma resposta nesse campo ainda mais ao fazer uso de duas artes tão complexas como a poesia
e a fotografia. Ambas possuem o potencial de dizer, comunicar ou expressar algo que não
pode ser dito ou expresso de outra maneira. A poesia sempre é única assim como a fotografia.
Ao escolhermos as palavras para nos comunicar devemos estar atentos à gramática,
como diz Jakobson (1999): “Enunciados totalmente destituídos de gramática são de fato,
contra-sensos” (p. 96), portanto temos uma liberdade relativa na escolha das palavras. Por
exemplo: “João morreu de calças curtas”, podemos perguntar se seria verdade. Mas ao
construir como: “Calças curtas de morreu João”, perde-se o sentido e a possibilidade do teste
de veracidade. Podemos pensar que esse raciocínio de teste de veracidade pode ser possível
para a comunhão entre palavras e imagens. Se uma regra de gramática para a formação de
frases e assim para a formação de sentido e de compreensão das mesmas, deve haver uma
13
Melopéia definida por Pound (1976) como quando: “as palavras estão carregadas acima e além de seu
significado comum, de alguma qualidade musical que dirige o propósito ou tendência desse significado” (p. 37).
regra que dite a formação de sentido para a junção de palavras e imagens, mas que regras
seriam essas?
Jakobson (1999, p.100-116) nos ajuda a desvendar a compreensão da palavra. Esse
autor utiliza algumas noções básicas de Peirce para o entendimento do que é um signo.
Primeiramente temos os signos divididos em três variedades: o ícone, o índice e o símbolo. O
ícone operaria pela semelhança de fato entre significante e significado, por exemplo, entre um
animal e o animal representado, o retrato e o retratado. O índice operaria por contigüidade
vivida, a fumaça é índice de fogo. O símbolo operaria por uma contigüidade apreendida,
convencionada, não dependendo de similitude ou contigüidade de fato, e esse é o caso das
palavras. Mas essa classificação é arbitrária, pois todo o signo sempre carrega um pouco das
três classificações, não podendo ser apenas de um tipo, pois isso o tornaria indecifrável.
Ícones e índices não afirmam nada, os símbolos por sua vez formam proposições que teriam
significado mesmo que seja um significado geral e que de acordo com Jakobson (1999):
Um símbolo autêntico é um símbolo que tem uma significação geral [...] Um
símbolo, por exemplo uma palavra, é uma “regra geral” que preenche sua função
significante através de diferentes casos particulares aos quais se aplica [...] Por mais
variadas que sejam tais encarnações da palavra, esta permanece, em todas as
ocorrências, “uma só e mesma palavra”(p. 116, grifos do autor).
Essa significação geral do símbolo permite que o mesmo esteja aberto ao novo, a um
novo uso e uma nova significação tanto que o ícone pertenceria ao passado, o índice ao
presente e o símbolo ao futuro, porque de acordo com a interpretação de Jakobson: “uma lei
geral nunca pode se realizar plenamente. É uma potencialidade; e seu modo de ser é esse in
futuro (p.117, grifo do autor). Se a palavra é símbolo e é potencialidade, sua compreensão
depende do pensamento do intérprete. Assim nos deparamos com algo múltiplo, nos
deparamos com desejo, contexto, cultura, sensibilidade, conhecimento prévio abrangente,
tanto de língua como de linguagens, história de vida, conhecimento de narrativas, entre
outros. Podemos dizer que a palavra enquanto símbolo é passível de denotação e conotação,
termos que usaremos e definiremos mais detalhadamente no capítulo sobre a imagem
fotográfica. Mas uma definição comparativa prévia pode ser útil no momento. Temos, como
foi citado anteriormente, que o melhor exemplar, “o mais autêntico símbolo é o que tem um
significado geral” (Jakobson, 1999), o significado geral é o caráter denotado, é uma
significação e compreensão geral da palavra. O conotado é tudo o que pode vir além disso,
nesse caso, pode ser comparada com a questão de potencialidade, de ser in futuro. O sentido
conotado estaria sempre aberto e acrescentando novos sentidos e interpretações possíveis aos
já existentes.
Tendo a palavra como símbolo e assim relacionada ao futuro podemos fazer algumas
suposições em relação à poesia. Podemos depreender que a poesia é o gênero lingüístico que
melhor se utilizaria do signo simbólico, porque melhor se utilizaria da significação geral
(denotação) do símbolo/palavra deixando-a aberta a várias potencialidades e possibilidades
interpretativas (conotação). Indo em direção ao nosso corpus no poema “Olé” de Suzana
Vargas (2005) temos os seguintes versos:
Dentro de mim
morrem seis touros de uma só vez
O sangue coagulado sobre a areia
A mão paralisada sobre o corpo
Já quase não te vejo
porque a distância é muita
imagens púrpuras não deixam
Mas a tarde é de sol
e o toureiro sorri
(p.92)
Dentre outras possibilidades de leitura e de sentido para esse texto usaremos uma
possível, mas não a única. Mesclaremos o verbo na primeira pessoa do plural com a primeira
do singular para facilitar a exemplificação e diferenciar o discurso cultural do discurso
pessoal. O título da poesia, “Olé”, me prepara para um tema, me conduz para alguma
associação ligada à Espanha e imagino um estádio lotado movido por uma paixão.
Dentro de mim / morrem seis touros de uma vez, gramaticalmente está correta a
frase e é possível ser posta frente a um questionamento de veracidade, o que descarta a
possibilidade de ser um contra-senso e, como dito anteriormente (Jakobson, 1999), essa
veracidade não tem relação com o possível de ser encontrado na natureza. O fictício não tem
relação com o valor semântico e não destitui o sentido, portanto dentro de mim cabem seis
touros e os mesmos podem ser mortos, portanto é uma afirmativa inteligível. Se
concordarmos que a palavra é símbolo, é potencialidade e depende do intérprete, poderíamos
supor que para mim, enquanto leitora brasileira, de uma cidade do interior do Rio Grande do
Sul, que teve um contato prévio com um animal touro e assistiu a filmes com touradas,
depreendo que algo se esvaiu, deixou de existir e não foi algo pequeno e insignificante, pois
normalmente um touro é algo potente, forte, nos causa medo e uma certa cautela. No poema,
encontramos a morte de seis touros, penso que seja uma forma de asseverar que algo grande e
importante se foi, esvaiu, acabou.
Na cultura espanhola, além de medo, o touro causa paixão, afinal as touradas levam
milhares de pessoas a um estádio, a morte de um touro deve estar relacionada a outros
valores, sentimentos e imagens. Enquanto leitora posso supor isso e até usar dessa suposição
em minha compreensão desses versos, mas permanecerá como uma hipótese que não sou
espanhola, nunca vi uma tourada e não tenho idéia de por que a morte de um animal em
minha frente seria apaixonante e, quem diga, sensual. A ressonância desses versos para
mim ou para um leitor espanhol com certeza será diferente. Suas memórias e associações
serão diversas das minhas.
O sangue coagulado sobre a areia/ A mão paralisada sobre o corpo: configura-se a
morte, o sangue se esvaiu e se encontra coagulado na areia, mas não são touros, pois a
mão está paralisada sobre um corpo. Transfiro a morte para um corpo humano, pois na minha
imaginação, experiência e associação corpos humanos esvaídos têm essa ligação com a
mão sobre o corpo, e quem possui mão são seres humanos, não animais.
Já quase não te vejo / porque a distância é muita: podemos supor que aqui se encontra
esse elemento de paixão, a paixão da tourada é transposta para a paixão por alguém. Talvez
esse alguém tenha ido embora, tenha morrido no sentido de deixar de ser presente, de ser
visto, de ser lembrado e de ser amado. É um elemento distante, direcionando-se para o
passado.
Imagens púrpuras não deixam: é o entardecer, é o fim de um dia, é o fim da paixão, é
o fim do sofrimento. Essa associação da cor púrpura com o fim do dia também colabora para
entender a distância que os separa. O ciclo está terminando, as emoções estão se abrandando,
morrendo e dessa forma os supostos amantes se distanciam, se separam.
Mas a tarde é de sol/ e o toureiro sorri: apesar de tudo, apesar da morte, da dor, do
sangue e do sofrimento, um novo começo virá, talvez uma nova paixão, por isso é permitido
sorrir.
A imagem fotográfica ao lado, isolada, poderia ser um pôr ou nascer de sol. Alguém
olha o sol através de uma grade ou algo semelhante, essa pessoa pode estar trancada em
algum lugar. Podemos pensar essa grade metaforicamente como alguém olhando o mundo
através de um filtro, podemos imaginar onde essa foto foi feita, no que a pessoa que a fez
estaria pensando e sentindo. Dessa fotografia podem surgir mil histórias, diversas associações,
por exemplo a de uma princesa que por amar um bastardo foi presa, acabou fugindo e
passando por diversas aventuras, dentre as quais matou dragões gigantes que espumavam ira e
os ofereceu para aplacar a fúria de um titã que a perseguia; poderia surgir a história de um
menino que se tornou eunuco pelo amor à música e viveu isolado por sua condição; posso
associar com angústia de conseguir ver o mundo de um ângulo, pois haveria apenas uma
janela no recinto em questão; posso imaginar tantas outras histórias... Contudo a imagem
fotografada não mostra nada disso, mas podemos a partir dela criar muitas possibilidades.
Existem imagens mais propícias, mais abertas em seu potencial de criação do que outras,
imagens com conteúdo mais óbvio e outras com conteúdo mais obtuso. Podemos, também,
dizer que existem imagens com conteúdos mais propícios à denotação ou mais propícios à
conotação. Utilizo aqui expressões de Barthes (1990) que serão desenvolvidas no capítulo 2.
Ao lermos o poema e depois partirmos para a leitura da imagem fotográfica, a leitura
desta não é tão livre, o sol transforma-se num pôr de sol. Apesar de a fotografia ser preta e
branca quase podemos ver a cor púrpura nela. O sol potente e poderoso (tal qual uma paixão)
irá descansar, irá morrer, irá sangrar para ressurgir no dia seguinte, ressurgir novo e talvez
mais claro e definido. A morte do sol é transitória, é passageira e é purificadora. Ele levará
consigo os seis touros que dão o tamanho e importância dessa paixão avassaladora, ele levará
o cadáver do amante, pois o amante apresenta-se morto, que não é mais amado. O sol os
levará para longe, para serem purificados e purgados. O toureiro sorri porque intui que algo
renascerá, que um ciclo chegou ao fim e que a morte é apenas um lado de um todo, é como o
sol que se põe todos os dias dando lugar à noite para renascer no dia seguinte.
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) encontramos um outro exemplo de
poema e imagem fotográfica com a temática da tourada.
contra
a car
ne do pano
o car
mim
de dentro
do touro
(da cor da lona
que aberta
aguarda a chuva)
na areia ouro
da arena ao ar
livre avança
até a lança
que o liberta
(s/p)
Esse poema está escrito sobre uma página em carmim com letras brancas, a página ao
lado também em carmim, mas sem palavras. Essa página pode ser aberta e assim descortina
uma outra imagem que lá se encontra:
As palavras do poema encontram-se na parte mais à direita da primeira página, como
se ela estivesse acuada num canto. O alinhamento se à direita, o que poderia ser
interpretado como um limite, até ali (canto direito da página) as palavras (touro) têm
permissão ou espaço de trânsito, o touro está acuado, tem o limite da página (da arena) pra se
movimentar. As palavras que compõem o poema poderiam ser o próprio touro “contra a carne
do pano”: contra a página do livro, “o carmim de dentro do touro” investe, bate contra a
página, a página é o pano, é a lona do toureiro. E esse processo de avançar contra a carne de
pano, dar-se-ia até o encontro derradeiro com “a lança que o libertará”, ou seja, que o matará,
libertando-o dessa “areia ouro da arena ao ar livre”. Tanto o touro se libertará da vida, como o
carmim de dentro do touro se libertará para uma existência fora dele.
Poderíamos dizer que um tom de espera e de angústia no poema, apesar de o
“carmim de dentro do touro” avançar contra a carne do pano, todo o resto do poema fica num
futuro, a lança que o libertará e a ainda o verso “(da cor da lona que aberta aguarda a chuva)”,
o parênteses também assevera a noção de espera, como se a chuva não estivesse caindo, mas
ela é aguardada. Quem aguarda está na espera, fica na expectativa de algo ou alguém, neste
caso poderia ser a chuva ou a morte.
Essa imagem da “areia ouro da arena ao ar livre” dá-nos a noção de espaço quase que
sagrado, não é uma areia qualquer, mas uma areia que guarda ou aguarda algo nobre. Contudo
o que é representado, se é que podemos chamar de representação tendo em vista que o
espetáculo vai até o fim, vai às vias de fato, a morte não é representada, ela é atuada, no
sentido de ser posta em ação. O fim da tourada exige a morte do touro, exige o seu sacrifício,
é uma regra desse espetáculo.
Como dito acima, esse poema tem uma página para ser aberta, descoberta, onde
poderia estar o desfecho do poema, o fim da espera, da angústia, contudo isso não ocorre, pois
temos a imagem de um touro ainda vivo, ainda lutando e avançando contra a carne do pano. O
carmim de seu interior ainda não foi exposto, o que se encontra exposto é o carmim do pano
do toureiro. A fotografia poderia dar um sentido mais específico para “o carmim de dentro do
touro (da cor da lona que aberta aguarda a chuva)”, e dá, pois o tom de carmim é visualizável,
assim como o tom de ouro da areia, ambos ganham concretude e definição. As palavras
tomam forma, cor e ação. Após a visualização da imagem fotográfica não temos qualquer
touro, qualquer carmim, qualquer tourada, qualquer arena, qualquer dia, qualquer chuva. É
aquela arena, aquele tom de carmim, aquele touro, aquele dia de chuva. Poderíamos supor
então que a fotografia delimita o poema, pois o restringiria àquela imagem com aquelas
figuras e aqueles tons. Pelo menos quando lemos nesta ordem de poema e posteriormente a
fotografia, e essa poesia pede essa ordem caso contrário teríamos primeiro a fotografia e
depois abriríamos uma página que conteria as palavras poéticas, o que ocorre em outros põem
as desta obra. Contudo apesar de dar forma ao touro, a uma platéia e a uma arena a fotografia
não delimita ou dá um desfecho à mesma, pois o tom de espera também se encontra nela.
Analisando as palavras Jakobson (1999) comenta que todo o ato de comunicação
verbal, todo o processo lingüístico possui alguns fatores constitutivos:
O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser eficaz, a
mensagem requer um CONTEXTO a que se refere [...]; um CÓDIGO total ou
parcialmente comum ao remetente e ao destinatário [...]; e, finalmente um
CONTATO, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o
destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação
(p. 123).
Jakobson (1999) transforma isso em um esquema da seguinte maneira:
CONTEXTO
REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO
CONTACTO
CÓDIGO
Este mesmo autor afirma que cada elemento do jogo comunicativo, explicitado no
esquema, carrega consigo uma função. Dependendo do tipo de comunicação que se
estabelece, uma delas é a predominante, mas todas as outras continuam exercendo seu papel.
Vera Teixeira de Aguiar (2004, p. 59) esquematiza as relações entre os elementos da
comunicação e as funções da linguagem, enunciados como idéia no próprio texto de
Jakobson:
CONTEXTO
FUNÇÃO REFERENCIAL
REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO
FUNÇÃO EMOTIVA FUNÇÃO POÉTICA FUNÇÃO CONATIVA
CONTATO
FUNÇÃO FÁTICA
CÓDIGO
FUNÇÃO METALINGÜÍSTICA
Cada fator determina um tipo de função da linguagem, a que nos interessa nesse caso é
a função poética. Na função poética a ênfase dada fica a cargo da mensagem. Jakobson (1999)
chama a atenção para não confundirmos função poética com poesia:
A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão-somente a função
dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais ela
funciona como constituinte acessório, subsidiário. Como promover o caráter
palpável dos signos, tal função aprofunda a dicotomia fundamental de signos e
objetos. Daí que, ao tratar da função poética, a Lingüística não possa limitar-se ao
campo da poesia (p. 128).
Uma das características da poesia, para Jakobson, é que uma sílaba é igualada a todas
as outras sílabas da mesma seqüência, as sílabas se transformam em unidades de medida.
Contudo ele também adverte que os textos métricos utilizam-se da função poética sem com
isso transformarem-se em poesia: “o verso de fato ultrapassa os limites da poesia; todavia, ele
sempre implica função poética” (p. 131). As frases que rimam, os versos, as repetições de
figuras sonoras não definem um texto como poesia, mas, seus estudos competem à Poética
dentro da Lingüística. A poesia tem uma ligação muito forte com o som, inclusive com a
oralidade, pois a princípio: “A poesia [...] é feita para ser falada, recitada. Mesmo que
estejamos lendo um poema silenciosamente” (GOLDSTEIN, 2005, p. 7). Edgar Allan Poe
(1985) ao comentar sobre a construção de seu poema “O corvo” salienta que após ter decidido
que o mesmo teria um refrão de uma única palavra esta deveria ter força e para tanto:
devia ser sonora e suscetível de ênfase prolongada; e tais considerações
inevitavelmente me levaram ao o prolongado como a mais sonora vogal, em
conexão com o r, como a consoante mais aproveitável. [...] assim determinado o
som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e,
ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia predeterminada
como o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente impossível que
escapasse a palavra “nevermore” ( p. 106).
Iuri Lotman (1978) ao comentar sobre a repetição fonológica diz que um fonema pode
possuir uma significação autônoma e ainda que pode se tornar uma “palavra vazia” a qual ele
define como: “Uma unidade cuja inteligibilidade constitui uma presunção, mas de que é ainda
necessário estabelecer a significação. [...] A presença de tais “palavras vazias” constitui uma
particularidade imprescindível do texto artístico” (p.192) Os fonemas salientados na citação
de Poe podem ser exemplos dessas “palavras vazias” que dão o tom para o poema “O corvo”
que sem dúvida como o próprio Poe salienta elas são imprescindíveis para formação do
sentido e compreensão desse poema.
Como Jakobson (1999) percebeu nos estudos de Worth de 1956, o ser humano tem
uma tendência à classificação das palavras e a fazer uma associação das mesmas, por
exemplo, juntamos tudo que seja luminoso, pontiagudo, duro, alto, ligeiro, rápido e assim por
diante numa série, em outra reúne o obscuro, o quente, o mole, baixo, pesado, lento, grave,
largo. O som é tão importante no poema que estaria ligado ao seu significado, ao seu sentido.
Para Jakobson (1999): “O simbolismo sonoro constitui uma relação inegavelmente
objetiva, fundada numa conexão fenomenal entre diferentes modos sensoriais, em particular
entre a experiência visual e auditiva” (p. 153). Sobre isso Bosi (2000) vai dizer que existe
uma tendência ao isomorfismo, a relacionarmos fonemas tensos e surdos com quinas e
arestas, assim como fonemas frouxos e sonoros com experiências de objetos arredondados,
contudo, frisa ser apenas uma tendência: “os sons não aparecem sós, mas estão sempre
integrados em signos de um discurso cujos mecanismos de associação, para cada sujeito ou
grupo, não se podem estabelecer a priori” (p. 54). As palavras, o som e o tom das mesmas
não são isolados no poema. Bosi (2000) comenta que além do som do fonema existe: “o
processo da sonorização do tema, que enlaça o jogo de ecos e contrastes, o ritmo, o metro, o
andamento da frase e a entonação” (p. 66, grifo do autor). Esse comentário corrobora com o
que disse Poe (1985) acima, de que além da palavra e do som é necessário uma combinação
com o tema e o tom da poesia.
Nos dois exemplos acima, no poema de Suzana Vargas “Olé” e no poema sem título
de Arnaldo Antunes, a palavra “areia”. No de Vargas essa areia é manchada pelo sangue
coagulado dos touros mortos, no de Antunes essa areia é ouro da arena ao ar livre onde o
desfecho da tourada ainda é esperado, dar-se-á num futuro próximo. Os temas e o próprio
andamento do poema são diversos. Podemos dizer que o som de uma palavra aponta para uma
possível direção de sentido, mas as condições em que essa palavra se encontra também são
decisivas, como aponta Jakobson (1999):
um fonema que apareça uma única vez, mas numa palavra-chave, em posição
pertinente, contra um fundo contrastante, pode adquirir relevo significativo.
Conforme costumam dizer os pintores: Um quilo de verde não é mais que meio
quilo (p. 155).
Esse mesmo autor faz uso de uma metáfora dos pintores, assim como verde é verde
pelo menos enquanto sozinho, uma palavra é apenas uma palavra, o som de uma palavra é
apenas o som de uma palavra, mas na combinação tudo muda de sentido como nos exemplos
de areia com sangue coagulado e areia ouro. As palavras podem fazer figura-fundo para si
próprias como podem ser figura-fundo quando em comunhão com imagens, o que vai
depender muito das palavras como da imagem a que estão acopladas. Temos assim que além
do som, das condições em que as palavras se encontram entre elas mesmas, a forma em que
estão distribuídas e onde estão distribuídas são extremamente importantes.
Na função poética de Jakobson temos que ela: “projeta o princípio de equivalência do
eixo de seleção sobre o eixo da combinação” (1999, p. 130). Esse autor usa um exemplo de
Mallarmé quando este faz uso da palavra jour (dia) que é composta de vogais graves e a
rodeia com palavras de vogais agudas modificando o sentido de associação que esta palavra
sozinha teria. Outra possibilidade de seleção e combinação é usar a palavra dia associada com
calor pesado e noite com frescor e arejado, portanto mesmo que o som de uma palavra como
dia aponte um sentido a sua combinação dentro de um poema pode modificar a direção.
Como observa Bosi (2000):
O que desnorteia os que buscam uma relação constante e congruente entre o tal som
e tal sentido é a maleabilidade infinita com que o homem trabalha a matéria
fonética. E até do silêncio, que parece puro e vazio, ausência de som, o espírito
arranca um mar de significados (p. 75).
Podemos notar a importância do som na poesia e a importância da combinação e da
seleção dos sons e das palavras como um instrumento que prepara e conduz o leitor a um
sentido, a uma direção. Contudo, os mecanismos de associação de cada leitor ou grupo não
podem ser estabelecidos a priori. As palavras no poema não deveriam utilizar signos
arbitrários, o que de acordo com Paul Valéry (1999), cabe à prosa, essa sim utiliza a
linguagem ordinária e arbitrária:
O andar, como a prosa, visa um objeto preciso. É um ato dirigido para alguma coisa
à qual é nossa finalidade juntarmo-nos. [...] Não existem deslocamentos através do
andar que não sejam adaptações especiais, mas abolidas e como que absorvidas
todas às vezes pela realização do ato, pelo objetivo atingido. A dança é totalmente
diferente. É, sem dúvida, um sistema de atos; mas que tem seu fim em si mesmos.
Não vão a parte alguma. Se buscam um objeto, é apenas um objeto ideal, um estado,
um arrebatamento, um fantasma de flor, um extremo de vida, um sorriso que se
forma finalmente no rosto de quem o solicita ao espaço vazio (p. 204).
Em linhas gerais podemos dizer que a poesia é por si mesma enquanto a prosa não, a
prosa é explicativa, procura uma direção e um fim específico, algo necessariamente precisa
ser comunicado, por isso a prosa é arbitrária, a poesia não. A prosa comunica a poesia
arrebata, a prosa é explanativa, a poesia é sensitiva, a prosa é linha reta, a poesia é curva, a
prosa tem um fim à poesia não vai a lugar algum. Enquanto a prosa morre ao ser substituída
pelo seu sentido, ao ser compreendida, Valéry (1999) comenta que: O poema, ao contrário,
não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser
indefinidamente o que acabou de ser (p. 205). A poesia sendo ela pode e deve atentar para
muito além do significado da palavra, este é apenas uma das funções dela. A palavra também
é som, é forma, é ritmo, pode-se “quebrar” as palavras em suas letras, pode-se criar novos
significados, pode-se misturá-la com outros materiais, com imagens, por exemplo, pode-se
criar imagens com o uso das letras, enfim são muitas as possibilidades para este instrumento
da linguagem. Seligmann-Silva (1999) discorrendo sobre o papel da linguagem e da leitura do
mundo fala-nos do papel da poesia e considera Paul Valéry como um dos defensores das
diferenças entre poesia e prosa.
A tarefa que ele (Valéry) atribui ao poeta é justamente a de reunificar a relação
son/sens que a linguagem prosaica nega. [...] o poeta deve acreditar mais na “força
própria da palavra” em detrimento do seu “valor de troca”. [...] o texto do poeta deve
estar voltado para recriação da linguagem (p. 103).
Em Jakobson (1999) também encontramos um comentário sobre Valéry citando que o
mesmo tinha a concepção da poesia como a hesitação entre o som e o sentido (p.144).
Jakobson enquanto lingüista se debruça sobre a poesia esmiuçando a fonética, mas
enfatizando que a poesia não é construção de rima nem de apenas sons que se combinam ou
não. Para Jakobson tanto lingüistas surdos à função poética como literatos surdos à lingüística
são estudiosos anacrônicos. Uns devem e podem colaborar com os outros no entendimento do
universo poético onde temos asmots-musique (Valéry) e a “linguagem erguida” (Paz) entre
tantas outras tentativas de definição da linguagem poética.
Se os sons das palavras direcionam, ou pelo menos, às vezes m essa pretensão, se a
poesia é linguagem erguida, é palavras-música, o que ocorreria na sua junção, comunhão,
intersecção com as imagens visuais da fotografia? Em um exemplo de Antunes e Xavier
(2003), podemos visualizar e compreender a importância da palavra, do fonema, da
construção e da desconstrução, além das junções de sílabas como forma de direcionar o
sentido do poema. As imagens fotográficas que o antecedem também colaboram para a
direção de sentido. Temos as seguintes imagens que antecedem o poema:
Essas imagens parecem ser duplicadas, são muito semelhantes, contudo não são iguais,
diferenças de ângulos, de luz e de foco podem ser percebidas. Na junção das páginas um
encontro de degraus, pelo menos em nossa leitura, sua formação é basicamente de linhas retas
onde se delineia uma linha de união ou intersecção. As escadas levam para direções opostas,
não há continuidade, quem está descendo, ao cruzar a linha de divisão das páginas e for para a
outra escada vai ter que subir. Ao virarmos a página encontramos o poema abaixo com uma
imagem ao seu lado:
o meio se
(xo) para o que se
(xo) une qual se
(xo) reia tece
(xo) o que se
(xo) ciona qual ce
(xo) ntauro se
(xo) mi-se
(xo) ndo inteiro na se
(xo) ara do se
(xo) pulcro de cada se
(xo) gundo que se
(xo) meia
Na primeira linha temos “o meio se” o que modifica a leitura da primeira imagem, as
supostas escadas que se encontram numa união ou intersecção da página podem agora ser
lidas como escadas que possuem um “meio”. Esse meio é definido como o meio que “separa
o que se une”, e a sílaba “xo” que é repetida da segunda linha até o fim do poema também se
une a algumas sílabas com sentido e em outros não formam palavra que tenha qualquer
significado na língua portuguesa.
A repetição da sílaba “xo” mesmo que entre parênteses está ali exercendo alguma
função, alguma interferência. Para nós esta sílaba completa a precedente “se” e dessa forma a
palavra “sexo” se completa e podemos dizer que esta repetição em cada linha predispõe a uma
leitura do poema com um sentido sexual, com uma conotação do ato de união no coito. A
sílaba “se” pode se unir tanto com a sílaba “xo” como com a que segue o “se” e forma a
palavra “separa”. As duas formas de existência e de combinação para essa sílaba são
possíveis.
O centauro (metade homem, metade cavalo) e a sereia (metade mulher, metade peixe)
são íntegros, mas possuem uma linha divisória, um meio que os separa e os une
paradoxalmente: “o meio se/ (xo) para o que se/ (xo) une qual se/ (xo) reia tece”. Além de
centauro e sereia serem seres divididos em duas naturezas, o centauro meio homem meio
cavalo também tem em sua historia o excesso sexual, ele é o violador das mulheres noivas e
raptador de mulheres alheias (Brandão, 1991). As sereias são quase o oposto, pois o seu lado
animal tanto de peixe como em alguns casos de aves é condenado a ser frígido, elas seduzem
e atraem para devorar os homens, para enlouquecê-los, é uma sedução mortal (Brandão,
1991), em que o ato sexual não se consuma. Centauro e sereia podem formar um conjunto
enquanto elementos formados por duas metades de naturezas diversas, uma metade animal e
outra metade humana. Quanto ao desejo pelo ato sexual, sereias e centauros formam
conjuntos diferentes, sem união e sem interseção de forma clara, pois os centauros possuem
uma natureza violenta e violadora e as sereias uma natureza frígida e devoradora.
Na relação dos corpos humanos podemos dizer que uma linha divisória, mas que
pode ser apagada, suprimida no ato sexual, quando não fica mais claro onde começa um corpo
e onde termina o outro. Sem a sílaba “xo” não faríamos necessariamente a mesma
interpretação do poema. Poderíamos lê-lo sem o sentido sexual ou pelo menos
leríamos/veríamos de forma menos direcionada e esse direcionamento passa para as imagens,
tanto para a imagem anterior como para a imagem posterior. Na posterior temos igualmente a
fotografia de escadas, contudo também não são iguais, mas muito parecidas e o seu
acoplamento, a sua união é quase perfeita. Usando da imaginação podemos supor que a
imagem da união das escadas forma a letra “x”. A letra “x” não deixa de ser duas retas que se
encontram em um ponto no meio do caminho.
Existe uma outra possibilidade que surge da união das sílabas “se (xo)” e da leitura de
o meio que separa o que se une. Em biologia os cromossomos XX representam à mulher e XY
o homem, da união de um gameta de um sexo com o gameta de outro temos a formação de
um novo indivíduo. Contudo para que isso ocorra, é necessário a separação do gameta X do
outro X (no caso da mulher) e do gameta X do Y no caso do homem. Os gametas tanto
masculinos como femininos se separam para se unirem posteriormente. No caso de uma
formação de um indivíduo XO temos uma anomalia provinda de uma não separação dos
gametas, o que deveria ter-se dividido e separado não o fez e assim a posterior união não foi
bem sucedida. O meio que deveria ter separado o que iria se unir não se fez existente. De uma
forma ou de outra, sendo formando a palavra “sexo” constituída de uma forma direta, seja XO
lido como “x” e “zero” em vez da vogal “o” a direção a que nos remete através da associação
com gametas é a direção da união sexual.
Podemos dizer assim que o estudo da Lingüística, dentre os quais nesse estudo
destacamos o simbolismo sonoro, pode ser determinante, em alguns casos mais do que em
outros, mas de qualquer forma ele é importante para a formação de sentido e interpretação dos
leitores. Um fonema, como dito anteriormente por Jakobson, pode ser repetido ou não, o
importante a ser verificado é se ele constitui figura ou fundo dentro de um poema, se ele é
importante no tom e na compreensão do mesmo. Um fonema pode fazer muita diferença, um
mesmo fonema repetido diversas vezes, como no exemplo de “o meio se” de Arnaldo Antunes
poderá fazer mais diferença ainda pois pode funcionar como a “palavra vazia” de Lotman
onde os fonemas enchem-se de significações que ultrapassam o léxico e a gramática. Cremos
então que um fonema repetido várias vezes e associado com uma imagem fotográfica é de
valor crucial, esta suposta junção ou intersecção não passa despercebida pelo leitor. Pensamos
que o meio separa o que se une pode ser remetido ao meio que separa a Lingüística da
Literatura, separa para unir, uma ciência ressalta a outra, os conhecimentos de uma
comunicam-se com os da outra, pois como disse anteriormente Jakobson: separadas são
anacrônicas. Fonema ressalta o poema, poema ressalta fonema, fonema ressalta a imagem
fotográfica, imagem fotográfica ressalta o poema e o poema ressalta a imagem fotográfica.
Estamos salientando imagem fotográfica, pois como veremos adiante temos no poema a
formação da imagem poética, que é diversa da imagem fotográfica.
1.4 A construção da imagem poética
O estudo da construção da imagem poética pode ser importante como instrumento de
verificação de conexão ou interseção entre a imagem poética e a imagem fotográfica. Na
poesia, de acordo com Perkoski (2005), utilizando-se do teórico Bachelard, a imagem poética
é variacional, alcança uma transubjetividade que ultrapassa o racional e a reflexão: “Tanto no
poeta como no leitor, ela surge fenomenologicamente na consciência ‘como um produto
direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade’” (p. 120). A
construção da imagem poética é única para cada leitor, de cada imagem surgem novas e assim
novas significações, emoções e sentidos. O processo cognitivo pode ser o mesmo para todos
os leitores, mas as relações das imagens dificilmente serão não-singulares, contudo, alguns
autores pensam que exista certa lógica nessas relações (Jung, Bachelard, Durand, Burgos,
entre outros). Estamos usando uma definição abrangente para o termo de cognição que foi
elaborada por Marcuschi (1999) onde encontramos: “A cognição diz respeito ao
conhecimento, suas formas de produção e processamento [...] Reporta-se à natureza e aos
tipos de operações mentais que realizamos no ato de conhecer ou de dar a conhecer” (p.3). No
caso de Marcuschi um interesse nos meios de produção e transmissão do conhecimento
pelo olhar da Lingüística. No nosso caso estamos investigando como se a produção e
transmissão de conhecimento através de leituras que apresentam linguagens diversas no
mesmo espaço e especificamente na leitura de poema/poesia e fotografia/poesia pelo olhar da
Literatura, contundo não esquecendo a necessidade de diálogo entre Lingüística e Literatura.
Na Literatura temos estudiosos da construção da imagem poética, entre esses
encontramos Ana Maria Mello (2002), que discorre sobre a leitura do texto poético e como
esse lida com o imaginário de um leitor específico, esse tipo de texto se prestaria a diversas
leituras possíveis, ou seja, a diversas relações de imagens, mas não indeterminadas, ela
afirma:
Analisando o processo dinâmico que comanda a linguagem poética, tanto no nível
fônico, quanto sintático, Burgos reconhece a presença de linhas tecendo o discurso.
Essas linhas, chamadas esquemas (schèmes), não são vagas, incontroladas e
incontroláveis, inevitável produto da explosão de imagens; ao contrário, recuperam a
energia das imagens, ditando suas constelações, impondo a passagem de uma
imagem a outra, de uma constelação a outra, multiplicando as trocas em todos os
níveis e, acima de tudo, dando às diferentes operações, rumos imperativos, que são
sentidos possíveis (p. 97).
Essa construção de linhas ou esquemas é anterior a Burgos. Gilbert Durand lança mão
desse termo em seu livro As estruturas antropológicas do imaginário que de acordo com
Maria Turchi (2003) o esquema/schème faz referência à força afetiva. Para essa autora:
“Durand conecta o pólo subjetivo, da natureza humana, e o pólo objetivo, das manifestações
culturais que se relacionam através dos esquemas, dos arquétipos e dos símbolos” (p. 27).
Danielle Pitta (2005) escreve um resumo, ou melhor, uma Iniciação à teoria do
imaginário de Gilbert Durand, onde temos a definição de alguns termos como schème,
arquétipo, símbolo e mito, que podem ser importantes para a nossa tentativa de entendimento
da leitura de imagens poéticas. De acordo com essa autora, o primeiro termo, schème seria
anterior à imagem e corresponderia a uma tendência geral dos gestos, levando em conta as
emoções e afeições: “Ele faz a junção entre os gestos inconscientes e as representações”
(p.18). Os schèmes possuem três verbos ou ações básicas: dividir, unir e confundir. O
arquétipo é a representação dos schèmes, imagem primeira de caráter coletivo e inato: “Ele
constitui o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais” (p.18) é de caráter
universal. O símbolo
14
é todo signo concreto que evoca algo ausente ou impossível de ser
percebido: “É uma representação que faz ‘aparecer’ um sentido concreto” (p.18, grifo do
autor). O símbolo é a tradução de um arquétipo. E por último temos o mito: “sistema
dinâmico de símbolos” (p. 18), arquétipos e schèmes que irá formar um relato histórico e
fornecer modelos de comportamento tanto individuais como coletivos.
Os schèmes, ou a valorização dada por eles, de acordo com Pitta e seu entendimento
de Durand, depende e varia de cultura para cultura. Um povo poderia valorizar os schèmes
dos opostos alto/baixo, bem/mal e dessa forma construir uma tendência a valores relacionados
a isso, como por exemplo: as divisões que dariam origem a uma cultura capitalista. Assim
como outra cultura poderia partir de outro schème e valorar a comunhão (socialista). Tendo
isso em mente Durand cria o que ele denominou de regime diurno, que corresponde às
14
Esta definição de símbolo é diversa da usada por Jakobson, vista anteriormente onde símbolo é signo com
significação geral e, portanto, aberta. Aqui o símbolo é mais fechado, pois está relacionado a um arquétipo e
assim configura-se uma direção, um sentido a esse símbolo, mesmo que ainda possa ser dito como polivalente.
imagens provindas de uma dominante postural e de seus schèmes tendo como verbos
principais distinguir/dividir e dessa forma uma valorização dos opostos. Durand (2002)
comenta: “Semanticamente falando, pode-se dizer que não luz sem trevas enquanto o
inverso não é verdadeiro: a noite tem uma existência simbólica autônoma. O Regime Diurno
da imagem defini-se, portanto, de uma maneira geral, como o regime da antítese” ( p. 67). No
regime noturno, temos como verbos principais o ligar e confundir, dominante da nutrição e
copulação e uma valorização dos complementos e da harmonização. “A poética noturna tolera
as ‘obscuras claridades’. Ela transborda de riquezas, sendo portanto indulgente” ( DURAND,
2002, p. 268, grifo do autor). Mas por que isso seria importante para a compreensão do
poema? No poema, entre outras variáveis, é necessária a compreensão da imagem poética
para que através dessa imagem possamos captar o sentido poético. Se em culturas diferentes
temos a construção de schèmes diferentes pode-se pensar que a interpretação ou formação de
sentido de uma poesia será diversa de cultura para cultura, contudo o schème é anterior ao
arquétipo, como diria Turchi (2003):
Os arquétipos, ao se realizarem, ligam-se a imagens diferenciadas pelas culturas,
dando origem à manifestação dos símbolos propriamente ditos que podem
apresentar vários sentidos. Em outras palavras, se o arquétipo mantém sua
universalidade constante e sua adequação ao esquema, o símbolo apresenta-se
polivalente. Esclarecedor é o exemplo que Durand (1989, p.43) utiliza para
especificar o processo: o esquema ascencional e o arquétipo do céu permanecem
imutáveis, porém, o símbolo que os demarca transforma-se de escada em flecha
voadora, em avião supersônico ou em campeão de salto (p. 28).
O símbolo como dito acima pode ser polivalente, mas essa forma de leitura através da
classificação de schèmes e arquétipos pode ser limitante ou, como diria Joachim (1996),
esclerosante, termo que esse autor utiliza e credita a Burgos. Joachim adverte: “O perigo
dessas classificações é de instalar por cima do texto macroestruturas esmagadoras da função
simbólica” (p. 139). Para Burgos é o texto que importa, no texto encontrar-se-iam pistas,
senhas que induziriam a uma construção de imagem, as palavras do texto poético não teriam
total liberdade, seriam pulverizadas com toques de lógica. “Esta lógica, interna à própria
produção das palavras, se chama sintaxe (JOACHIM, 1996, p. 133, grifo do autor). Os
estudos de Burgos se direcionam à sintaxe do imaginário e para ele dominar essa sintaxe seria
como ter uma bússola para direção da compreensão do poema. Temos assim de um lado um
estudioso das imagens vinculado a questões antropológicas dos símbolos (Durand) e de outro
(Burgos) que vê na linguagem poética pistas, senhas, linhas de força que tecem o discurso.
Vimos que a construção dos schèmes podem ser diversos de cultura para cultura,
todavia não temos a pretensão, neste momento, de fazer qualquer tipo de estudo comparativo
cultural, mas salientar a cultura e sua importância na formação das imagens e do sentido no
poema, assim como demonstrar que existem diversas formas de entendimento da imagem
poética.
Mello (2002) afirma que o símbolo é a união de duas metades que se defrontam, uma
pertence ao universo do simbolizado, e a outra ao universo da expressão, ou da manifestação,
ou da emanação, ou da representação: “a imagem poética, que não basta a si mesma, mas
‘apela necessariamente para o sentido que é a ela conjugado e, menos do que exprimir ou
manifestar, deseja revelar essa face secreta’.” (p. 95, grifo do autor). Essa autora, ao comentar
Bachelard, diz que, para ele, a imagem poética não se submete a um impulso nem é do
passado, mas pela explosão da imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se mais
que profundidade esses ecos vão repercutir. Para Burgos, como visto acima, essa explosão de
imagens tem uma lógica a ser seguida.
A poesia para Mello (2002) é: “o gênero literário que, através da linguagem, questiona
o sentido do “ser-aí”, jogado no mundo, à mercê dos mistérios que envolvem a vida e a
morte” (p. 54). Ainda para essa autora o poeta é um instrumento utilizado para a Natureza se
expressar. O poeta seria capaz de liberar sua imaginação e assim ver o mundo de forma
diversa que seria expressa em imagens. São essas imagens que o poeta traduz e assim permite
que os leitores acessem-nas. Poderíamos reescrever o dito por Mello, a poesia é o gênero
literário que através da corporificação de imagens questiona o “ser-aí”, o ser humano jogado
no mundo. Talvez esse seja um dos motivos porque pintura e poema sempre estiveram tão
próximos. Uma libera e corporifica a imaginação através do pincel e tela, a outra através do
lápis e papel.
Nós preferimos falar em imaginação e criatividade em detrimento de Natureza, pois
essa nos transmite a impressão de um espaço, de um âmbito separado do poeta e pensamos
que não seja. O poeta é dono e possuidor da imaginação e não a imaginação que possui o
poeta. Além de a imaginação pertencer ao ser humano ela é inerente ao mesmo, esta dentro
dele, não a consideramos exterior. No entendimento de Mello “O mundo, a humanidade, a
Natureza falam por intermédio do poeta, emitindo imagens” (2002, p. 55). Concordamos com
Mello na parte em que o poeta emite imagens, imagens poéticas, contudo pensamos que o
mundo, a humanidade e a Natureza pertençam ao poeta, fazem parte constituinte dele, em vez
de falarem através dele.
Para Bachelard (2003, p.2) a comunicabilidade de uma imagem singular seria um fato
de grande significação ontológica. A poesia seria um canal de comunicação de alma para
alma. Sempre em nível do humano, não provindo de outro âmbito. A alma do poeta conversa
diretamente com nossa alma. A exuberância e a profundidade de um poema são sempre
fenômenos do par ressonância-repercussão. Esse autor salienta que: “As ressonâncias
dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um
aprofundamento da nossa própria existência” (p.7). Primeiro somos atingidos pela
repercussão e depois pela ressonância, a imagem “poética atinge as profundezas antes de
emocionar a superfície” (p.7). Contudo ficamos a nos questionar que profundezas poderiam
ser essas e se poderíamos chamá-las de inconsciente.
Freud (1907), em Delírios e sonhos em Gradiva de W. Jensen, comenta que “os poetas
são valiosíssimos aliados, e seu testemunho deve ser altamente estimado, pois eles conhecem
muitas coisas entre o céu e a terra, com que nossa filosofia ainda nem sequer suspeita. Na
Psicologia, os poetas se encontram muito acima de nós, homens comuns, pois bebem em
fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência”
15
(FREUD, 1996, p. 1286, v. 2).
Bachelard comentou que o poeta é capaz de criar um canal de comunicação de alma para
alma. Freud, por sua vez, afirma que o poeta bebe em fonte desconhecida como citado acima.
Podemos pensar que a fonte desconhecida de Freud possa ser similar ao conceito de alma de
Bachelard, pois ela é uma fonte desconhecida, de uma forma ampla é um conceito unificador
das características essenciais da vida onde temos pensamentos, sensações, afetos, entre outros.
O conceito de alma é amplo, muito do que não entendemos e não conseguimos definir
colocamos dentro dele. Poderíamos de alguma forma equiparar ou somar a esse conceito as
questões do inconsciente, da fantasia e da criatividade.
Em Pinheiro (2001) uma aproximação entre Bergson e Jung, aproximação
provinda dos conceitos de consciente/inconsciente e percepção/memória. Para Bergson
(1990): “minha percepção presente não seria mais que um elo: este elo então comunica sua
15
Tradução nossa de: “Y los poetas son valiosísimos aliados, cuyo testimonio debe estimarse en alto grado, pues
suelen conocer muchas cosas existentes entre el cielo y la tierra y que ni siquiera sospecha nuestra filosofia. En
la Psicología, sobre todo, se hallan muy encima de nosotros los hombres vulgares, pues beben en fuentes que no
hemos logrado aún hacer accesibles a la ciencia.”
atualidade ao restante da cadeia” (p.119-120). Nessa cadeia estão todas as nossas experiências
e percepções passadas, logo, o que seríamos capazes de perceber no instante imediato é
influenciado pelo nosso passado remoto, mesmo que não nos apercebamos disso. Para
Pinheiro (2001), Bergson diferencia consciente e inconsciente e faz uma analogia com uma
casa, por exemplo, o que podemos perceber ou ver é como o consciente (sala e cozinha) e o
que não percebemos ou não vemos, mas sabemos que existe (como quarto e banheiro) é o
inconsciente.
Em Carl Gustav Jung (1990) encontramos uma exemplificação similar a essa de
Bergson, Jung comenta:
Quando alguma coisa escapa da nossa consciência esta coisa não deixou de existir,
do mesmo modo que um automóvel que desaparece na esquina não se desfez no ar.
Apenas o perdemos de vista. Assim como podemos, mais tarde, ver novamente o
carro, assim reencontramos pensamentos temporariamente perdidos. Parte do
inconsciente consiste, portanto, de uma profusão de pensamentos, imagens e
impressões provisoriamente ocultos e que, apesar de terem sido perdidos, continuam
a influenciar nossas mentes conscientes (p. 32-33).
Tanto para Bergson como pra Jung o consciente está para a percepção assim como o
inconsciente para a memória, e são instâncias ou vias que se comunicam e se retroalimentam
em ambos os sentidos. Como apresentou Jung o que escapa à consciência não quer dizer que
esteja perdido, o pensamento, idéia, imagem, impressão, pode voltar, assim como o
automóvel que sumiu e que reaparece. Além disso, como vimos anteriormente, nossas
memórias modificam nossa percepção e a percepção imediata também modifica nossas
memórias, são os elos da corrente de Bergson. O que para nós aproximaria Bergson também
de Freud, para este o passado se atualiza no ato da narrativa, se o que o sujeito está narrando
condiz com o fato em si, com o exato acontecido, não é importante, mas sim como o sujeito
percebe naquele instante em que narra. O sujeito desloca algo do inconsciente para o
consciente, traz algo da memória/passado para a percepção/presente.
Para Seligmann-Silva (1999), Walter Benjamin é outro autor que aproxima passado e
presente, também não os apresenta como estanques e separados, mas sim um influenciando o
outro, dialéticos através da imagem:
Não é que o passado lance luz sobre o presente ou que o presente lance a sua luz
sobre o passado, mas, antes, imagem é aquilo onde o ocorrido encontra-se com o
agora como um raio formando uma constelação. Em outras palavras: Imagem é a
dialética em suspensão. Pois enquanto a relação do presente com o passado é
puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética: não de natureza
temporal, mas imagética. Apenas imagens dialéticas são imagens autenticamente
históricas, isto é, não arcaicas (p. 228, grifo do autor).
Essa teoria de Benjamin pode contradizer algumas idéias apresentadas, como a idéia
das imagens arquetípicas e assim diverge de alguns pressupostos de Durand e talvez não
divirja tanto das idéias de Burgos, o qual acaba discordando do seu antecessor por essa
questão da interpretação de imagens de uma forma estanque e que poderia criar uma
macroestrutura sobre o texto. Para Seligmann-Silva (1999), Benjamin distingue as imagens
históricas das arcaicas quando diz que as primeiras possuem uma grande carga de tensão ou
vivacidade. Será que podemos pensar que essas imagens históricas se tornam tensas e vivas
quando entram em nossa imaginação? Precisamos animar as imagens para criar tensão e
vivacidade? Cremos que sim, que a imagem nos anima e nós animamos a imagem, nesse
sentido temos uma dialética. A poesia ressoa em mim eu ressôo na poesia. Na leitura eu
animo o texto e o texto me anima. Nesse sentido de entrar no texto e animá-lo nos é
indiferente se esse texto é dado por palavras ou por imagens fotográficas. Não diferenciamos
imagem poética e fotografia, pois ambas precisam repercutir no leitor, o leitor precisa desejá-
las, animá-las, precisa fazer uso de suas memórias e percepções e de forma multidirecional.
Como vimos em Bergson, Freud e Benjamin memória e percepção interagem o tempo todo,
retroalimentando-se.
Encontramos em Jung (1990) que os conteúdos do consciente podem ir para o
inconsciente e que novos conteúdos que nunca foram conscientes “emergem” (p. 37, grifo do
autor) do inconsciente. Essa idéia do inconsciente de que, além de conter coisas do passado,
ele estaria repleto de germes de idéias e pensamentos, possibilitou a Jung uma nova atitude
perante a psicologia, perante a arte e as ciências. Ele salienta:
Muitos artistas, filósofos e mesmo cientistas devem suas melhores idéias a
inspirações nascidas de súbito do inconsciente. A capacidade de alcançar um veio
particularmente rico deste material e transformá-lo de maneira eficaz em filosofia,
em literatura, em música ou em descobertas científicas é que comumente chamamos
genialidade (p. 38).
Podemos depreender que o poeta, entre outros, seria o ser capaz de mergulhar no
inconsciente e buscar nessa instância, ainda desconhecida, a riqueza das imagens que irá
traduzir em forma de poema. O poeta mergulha nesse espaço ou, como denominou Freud,
nessa “fonte” de idéias, pensamentos, imagens, fantasias, e os traduz através da palavra da
melhor forma possível, tendo o cuidado que a arte da construção de poemas exige como o
conhecimento das características próprias do texto poético, tais como o ritmo, a questão das
palavras vazias (o direcionamento que alguns fonemas podem trazer) a própria forma do
poema, o eixo da seleção e combinação, entre outras. O poeta não é apenas um tradutor das
imagens do inconsciente, ele é o artista que as transforma em realidade e possibilita a
comunicação delas para os seus leitores.
Em Sueli Costa e Antonio Cruz (2005) o poeta é o ser que mergulha no imaginário e:
A imaginação é o vetor da criação poética, ela embriaga qualquer criação artística de
qualquer época ou “período” literário. A grande missão do poeta consiste em atrair
essa força poética que se acha contida no imaginário e convertê-la em descarga de
imagens. A experiência poética é criação do homem pela imagem e pela linguagem;
é o abrir das fontes do ser (s./p.).
Podemos perceber que entre inconsciente e imaginário há um pareamento, dependendo
dos autores temos ênfase em um conceito ou em outro, contudo tanto para o inconsciente
como para o imaginário exige-se posteriormente o trabalho do consciente que se dá através da
linguagem. No imaginário, em uma de suas definições que é ser o espaço de acúmulo das
imagens, podemos construir uma analogia com a grande biblioteca de Jorge Luis Borges,
apenas que em vez de textos, teríamos uma biblioteca universal de imagens. O imaginário
seria o reservatório de todas as imagens possíveis e assim como os livros se cruzam, se
misturam e se complementam na intertextualidade, as imagens podem possuir estas mesmas
propriedades que aqui denominaremos de interimagicidade.
Na intertextualidade temos que quanto mais lermos e alimentarmos nossa biblioteca de
textos mais seremos capazes de compreendê-la e inclusive de perceber esses textos dentro de
textos e com a interimagicidade ocorreria o mesmo. Para Costa e Cruz (2005):
O poema apresenta-se como possibilidade aberta de significação, que ele se
anima ao contato, à participação de um leitor que, durante a leitura, dará margem à
imaginação, movimentando as imagens poéticas e alimentando-as com suas
experiências (s./p.).
Essa citação ajuda-nos a pensar que para a compreensão das imagens poéticas a
experiência é um dos fatores que colaboram na sua compreensão o que corrobora com o
pensamento de Larrosa, citado neste capítulo, no qual para viver é preciso experienciar e com
Birman em que ler é um aprimoramento da sensibilidade e para aprimorar a sensibilidade é
necessário experiência.
Em Seligmann-Silva (1999), encontramos uma citação de Benjamin onde esse
exemplifica que o mundo e as coisas que encontramos no mundo podem ser vistas como um
grande livro, como uma grande escritura:
Eu ia de manhã cedo, de automóvel, através de Marselha em direção à estação e,
assim que no caminho me deparavam lugares conhecidos, depois novos,
desconhecidos, ou outros que eu conseguia lembrar-me inexatamente, a cidade
tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eu lançava ainda rapidamente alguns
olhares, antes que ele me desaparecesse dos olhos no baú do depósito por quem sabe
quanto tempo (p.119- 120).
Podemos pensar que se as cidades, como Marselha na citação acima, podem se
transformar em um livro, pode ser percebida como uma escritura, e para Benjamin
wahrnehmung ist lesen”, traduzido por Seligmann-Silva (1999, p. 117) como “ler é
perceber”, tudo que percebemos pode ser lido, independente de palavra, imagem visual ou
mesmo sensações ou afetos. Como cada livro, o mundo será lido de forma diferente por
leitores diferentes. Cada leitor anima e deseja neste livro-mundo coisas diversas, assim como
temos múltiplos tipos de leitores de livros e com seus diferentes direitos, teremos o mesmo
para o leitor do livro-mundo. Os intertextos e as “interimagens” criadas serão variadas, temos
possibilidades diversas de leitura do livro-mundo, o mesmo se sucede na leitura de livros
como o nosso corpus onde temos poema/palavra e poesia/imagem fotográfica.
Apresentamos neste capítulo dois poemas e duas fotografias que trazem uma leitura
para touro, em Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) temos o touro associado, pela
palavra, ao amor que é o título do livro e que posteriormente foi associado a uma fotografia de
uma janela. Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) a fotografia de uma tourada é
associada ulteriormente, pela palavra, à espera e à morte. São dois exemplos de como a leitura
de algo que se encontra no mundo podem criar percepções, associações, mergulhos no
imaginário, no consciente e inconsciente, no passado e no presente e assim formar imagens
tanto poéticas como visuais (fotografia) diversas e isso ocorre tanto com os criadores das
obras como para os leitores delas.
2 IMAGENS FOTOGRÁFICAS: possibilidades de leitura
Roland Barthes (1984) ao pesquisar a origem em latim do termo ‘fotografia’ encontra:
“imagem revelada”, “tirada”, “subida”, “espremida por ação da luz” (p.121). Poeticamente
poderíamos defini-la como um instantâneo de um passado. Ela guarda no papel algo que
aconteceu e nunca mais se repetirá, mas nem por isso a fotografia pode ser tida como
verdadeira, como cópia fiel de uma realidade, mesmo que em alguns momentos tenhamos a
tendência de lê-la dessa forma, principalmente a fotografia jornalística Não entraremos nos
méritos das classificações dos tipos de fotografia, o que nos interessa nesse estudo são as
possibilidades da leitura da fotografia como imagem. Especificamente a fotografia
apresentada conjuntamente com poemas e por essa razão, por se encontrarem em livros de
poesias a denominamos fotografia/poesia. Como o nosso corpus apresenta a imagem
fotográfica inserida com a palavra poética, manteremos essa forma de apresentação, contudo
neste capítulo daremos mais ênfase à fotografia como poesia do que ao poema.
A foto normalmente transforma o sujeito em objeto. Transformar o sujeito em coisa,
ser fotografado, para Barthes (1984) seria estar um campo cerrado de forças:
Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, ai se deformam. Diante da objetiva,
sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me
julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que se serve para exibir sua
arte. Em outras palavras, ato curioso: não paro de me imitar, e é por isso que, cada
vez que me faço (que me deixo fotografar), sou infalivelmente tocado por uma
sensação de inautenticidade, às vezes de impostura (como certos pesadelos podem
proporcionar) (p. 27, grifos do autor).
Ao olharmos a foto de alguém, o nosso imaginário cria múltiplas imagens e
definições, tentamos colocar aquele ser olhado em algum tipo de definição, seja histórica,
social, afetiva, estética, praticamente inventamos uma história para essa pessoa. O mesmo
processo se quando alguém, que talvez não nos conheça, nos retratado e temos certa
consciência disso, por isso o falseamento, a pose, a procura do melhor lado, pentear os
cabelos, arrumar as roupas, etc. Queremos transmitir, pelo menos normalmente, o nosso
melhor lado, o lado mais simpático, mais bonito, mesmo sabendo que possa ser um lado
falseado.
2.1 Fotografia enquanto arte
Nos primórdios da fotografia, segundo Walter Benjamin (1992), ela era tida como um
acontecimento misterioso e era necessário cautela, sendo que inclusive não se olhava
diretamente para as fotos ou retratos. Pensava-se que os retratados podiam ver os seus
observadores, além do que era uma blasfêmia querer fixar os seres transitórios. Nesse autor,
encontramos uma citação de um jornal no qual se escreve uma crítica à invenção da
fotografia:
Querer fixar imagens efêmeras [...] é uma coisa não impossível, como foi
provado por uma investigação alemã bem fundamentada, mas também o próprio
desejo de o querer fazer é uma blasfêmia. O homem é criado à imagem de Deus e
esta não pode ser fixada por nenhuma máquina humana (p. 116).
Consoante Benjamin, o homem podia ser retratado através da pintura, pois o pintor era
inspirado divinamente, anjos dos céus se ocupavam de sua alma para produzir tal retrato. Por
estranho que pareça ainda se debate se a fotografia e outros meios que utilizam de novas
tecnologias podem ser considerados arte, talvez por reminiscências desse pensamento de que
o homem necessita de inspiração espiritual e que as máquinas feririam esse principio.
O que os artistas pintores faziam era utilizar-se de fotografias como modelos para as
pinturas e dessa forma não eram criticados. Através desse uso da fotografia muitos pintores se
interessaram por essa arte e acabaram transformando-se em grandes fotógrafos. Isso chegou
ao ponto de algumas de suas pinturas serem completamente esquecidas, mas as fotografias os
fizeram famosos e célebres.
Outro fato importante salientado por Benjamin (1992) que ocorre com a aparição da
fotografia é que nela permanece o interesse pelo fotografado, por aquele olhar, por aquele
instante (às vezes, realmente único), aquele local, aquelas cores, luz e sombra etc. “Tendo-se
contemplado longamente uma tal fotografia reconhece-se quanto os contrastes se tocam: a
mais exacta técnica pode conferir ao resultado um valor mágico que uma imagem pintada
nunca poderá possuir” (BENJAMIN, 1992, p. 118). Se na fotografia permanece o interesse
pelo retratado, na pintura não podemos dizer o mesmo, o nome dos pintores, em sua maioria,
ultrapassa a existência dos seus retratados. Com o tempo não semais importância à pessoa
que num quadro é figurada. “Após duas ou três gerações tal interesse (nos retratados)
emudecia: as imagens, enquanto duram, testemunham apenas a arte de quem as pintou” (p.
118).
Em 1840, de acordo com Benjamin (1992), a maioria dos retratistas pintores se
tornaram fotógrafos profissionais e elevaram a arte da fotografia. Contudo, logo após essa
geração, surgiram os comerciantes fotógrafos e os retoques feitos por pintores de gosto
duvidoso, fizeram com que a arte na fotografia decaísse. Aos retoques, devem-se somar as
criações de ambientes artificiais e fora de contexto, onde as pessoas eram fotografadas, por
exemplo, perante colunas e palmeiras sobre tapetes e as crianças sobrecarregadas de
berloques, o que demonstra resquícios da arte da pintura, pois na mesma esses recursos eram
usados e aceitos. Na contemporaneidade não podemos dizer que esses recursos de criações de
ambientes não seja executado, com a tecnologia atual e a facilidade dos programas de
computação, num arrastar de mouse deslocamos os retratados para qualquer ambiente. Temos
também a facilidade de fazer retoques nos retratados, assim como se fazia antigamente,
apenas que não usamos tintas e pincéis, mas programas que trocam as cores, disfarçam
possíveis “defeitos”, mexem na luminosidade e brilho entre tantas outras possíveis correções e
modificações.
Nas fotografias com todas as tecnologias que podem ser utilizadas e mesmo sem o seu
uso direto pode-se inquirir qual seria a sua mensagem, o que ela retrata, o que ela transmite?
De acordo com Barthes (1990) esse questionamento é válido para todas as artes que tendem a
reproduzir a realidade. Ele escreve:
cada uma dessas mensagens desenvolve, de maneira imediata e evidente, além do
próprio conteúdo analógico (cena, objeto, paisagem), uma mensagem suplementar,
que é o que se chama o estilo da reprodução; trata-se de um sentido segundo, cujo
significante é um certo “tratamento” da imagem sob a ação de seu criador e cujo
significado – estético ou ideológico – remete a uma certa “cultura” da sociedade que
recebe a imagem. Em suma, todas essas “artes” imitativas comportam duas
mensagens: uma mensagem denotada que é o próprio analogon e uma mensagem
conotada que é a maneira pela qual a sociedade oferece à leitura, dentro de uma
certa medida, o que ela pensa (p. 13, grifos do autor).
Para Barthes (1990, p. 14-15) a possibilidade de mensagem denotada e conotada traz
um paradoxo para a fotografia. A mensagem denotada não teria códigos, seria uma mensagem
contínua. Por outro lado, a mensagem conotada é codificada, mas surge de uma sem códigos e
apesar disso possui um plano de expressão e um plano de conteúdo, um significante e um
significado e assim obriga a um processo de decifração. Porém essa conotação é construída
através de alguns procedimentos, tais como: trucagem, pose, objetos, fotogenia, estetismo e
sintaxe. Discorreremos brevemente acerca de cada procedimento. Sucintamente podemos
dizer que a trucagem é uma intervenção qualquer na foto, qualquer procedimento que
modifique o que possivelmente pudesse ser “tirado” ou “revelado” da realidade. O exemplo
anterior de inserção de pessoas em ambientes estranhos a elas, através do deslocamento de um
mouse, pode ser definido como trucagem. Contudo a trucagem que pode parecer um
procedimento inocente nem sempre o é, pois como salienta Barthes (1990), ela utiliza a
credibilidade inerente à fotografia. Uma foto que teria um significado denotado, que seria uma
analogia da realidade, ao ser trucada, ou seja, ao sofrer uma intervenção, ela pode passar a ter
uma leitura conotada, e como tal, transmitir valores e ideologias culturais. Barthes (1990)
esclarece que “o código de conotação não é nem artificial nem natural: é histórico” (p. 16) e
acrescenta, ainda, que é cultural também (p. 21).
O procedimento da pose pode ser definido como a maneira como são colocados os
corpos. As poses possuem significados, associações, ou seja, conotações, Barthes utiliza-se de
um exemplo de uma fotografia do Presidente Kennedy de perfil, olhos direcionados ao alto e
as mãos postas e comenta: “É a própria pose do modelo que sugere a leitura dos significados
de conotação: juventude, espiritualidade, pureza; a fotografia, evidentemente, só é significante
porque nela existe um conteúdo de atitudes estereotipadas que constituem elementos
cristalizados de significação” (p.17). O procedimento de conotação denominado objetos quer
dizer a pose dos objetos e os próprios objetos escolhidos para serem fotografados. Da mesma
forma que o olhar voltado ao céu pode conotar espiritualidade, a presença de objetos como
livros, lápis e papéis pode conotar intelectualidade. A fotogenia são os procedimentos de
retoques ou disfarces de possíveis defeitos. O estetismo é quando a fotografia se faz pintura,
“isto é, composição ou substância visual deliberadamente tratada ‘na palheta’, é para
significar-se ela própria como ‘arte’[...], ou para impor um significado habitualmente mais
sutil e mais complexo do que aqueles permitidos por outros procedimentos de conotação”
(BARTHES, 1990, p. 18, grifos do autor). E na sintaxe por sua vez, quando encontramos uma
seqüência de fotografias, o significante de conotação não se encontra nas fotografias
isoladamente, mas no encadeamento, na seqüência delas. Além desses procedimentos ainda
encontramos em Barthes a palavra, que muitos vezes acompanha a imagem fotográfica e é
um método de conotação da mesma.
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003), temos um exemplo de fotografia onde
mais de um procedimento foi utilizado e esta foto em questão não é acompanhada de palavras,
ela está livre da conotação destas e livre da conotação da pose. A trucagem pode ser
percebida, a foto de uma ponte é repetida quatro vezes dando-nos a impressão de um
cruzamento.
Na questão dos objetos encontramos barcos, plataformas, carros e ao fim da ponte
algo similar uma ilha, e a repetição da ponte formando um cruzamento lembra o formato de
um avião, os objetos nos levam a conotar transporte, caminho, passagem de um espaço a
outro, deslocamento. O estetismo sem dúvida está presente, esta imagem não está sendo
exposta da forma natural ou esperada para uma fotografia, ela está sobre uma esfera, uma
espécie globo, o que nos remete ao planeta Terra. Esse globo da fotografia está imerso em um
espaço escuro, gravitando nele, temos a sensação de três dimensões, o globo está rodeado de
um escuro profundo. O globo com água e colorido de azul mais a ponte de tons mais claros
com branco também conotam o planeta Terra. Temos uma Terra com meios de deslocamento,
de passagem, de transporte e essas conotações podem levar a outras, como a Terra ser um
meio de passagem para nós, mas, também ser um meio de encontro, pois cruzamentos,
havendo cruzamentos é necessário a tomada de decisão por uma direção, podemos questionar
que caminho tomar, que opção fazer e mais tantas outras possibilidades. Quanto à sintaxe
podemos dizer que ela está presente na repetição das fotos, não na seqüência, até por que não
uma sucessão, mas de uma forma ou de outra essa imagem fotográfica tem seu sentido
formado no encadeamento das imagens, no cruzamento das fotografias.
Barthes (1984) observa que uma fotografia pode ser alvo de três práticas, ou três
emoções ou três intenções: fazer, olhar e suportar. O fazer, na terminologia barthesiana, cabe
ao Operator: o fotógrafo; ao Spectator cabe o olhar e ao Spectrum cabe o ser fotografado e
suportar ser “tirada”, “revelada” parte de sua alma ou espírito. Para nós, neste estudo, o
importante é o Spectator: “somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos
álbuns, nos arquivos, coleções de fotos” (Barthes, 1984, p.20).
Barthes parte de suas próprias impressões perante a fotografia para fazer
questionamentos das mesmas:
eu constatava que algumas provocavam em mim pequenos júbilos [...]; e que outras,
ao contrário, me eram de tal modo indiferentes, que a força de vê-las se
multiplicarem, como erva daninha, eu sentia em relação a elas uma espécie de
aversão, de irritação mesmo: há momentos em que detesto a Foto (1984, p. 31-32).
Esta constatação poderia ser comparada com a de Calvino que comenta a diversidade
de tipos leitores para uma ou várias obras. O próprio Barthes (1984) verifica que gosta de
algumas fotos de um determinado fotógrafo, mas não de todas. Podemos supor que apesar de
gostarmos de um livro ou poema de um determinado autor, isso não quer dizer que gostamos
ou gostaremos de todas as suas obras. Assim como os livros, alguns gostamos e os lemos
diversas vezes, outros não nos dizem nada e os mantemos fechados por longo tempo ou para
sempre, algumas fotos ampliamos e fazemos quadros, outras, colocamos em álbuns, outras
simplesmente rasgamos totalmente, outras rasgamos uma parte e ficamos com o restante. As
possibilidades de destino e uso dos livros são muito similares com as probabilidades de
destino e uso das fotos, salvando as particularidades de cada um.
A fotografia tanto de pessoas, lugares, paisagens, flores, vasos, frutas, alimentos,
enfim uma gama de possibilidades pode ser considerada um artefato que conta uma história,
assim como um livro. A fotografia, para ser vista dessa forma, funcionaria similarmente como
as palavras de um livro, como um pré-texto através do qual o Spectator cria sua própria
história e sentido para aquela imagem e isso acontece devido aos procedimentos de conotação
como exemplificamos na fotografia do globo com a ponte encontrada na obra “Et eu tu”
(2003). Os procedimentos de trucagem, pose, objetos entre outros são as ferramentas, as
personagens, os ambientes, o tempo e o espaço que nos auxiliam na narração e na criação
desse texto oriundos dessas imagens.
Como dito no início deste trabalho estamos mergulhados numa era pós-moderna onde
imperam as imagens, o que faz com que prestemos atenção em umas e não em outras, que
para algumas criamos uma narrativa e para outras viramos os olhos? Para Barthes (1984)
quando estamos perdidos no meio desse mundo de imagens algo de particular acontece para
que uma determinada imagem nos chame a atenção: “Nesse deserto lúgubre, me surge, de
repente, tal foto; ela me anima e eu a animo. Portanto, é assim que devo nomear a atração que
a faz existir: uma animação” (p.37). Podemos entender essa animação como pôr em atividade,
em movimento, nesse caso, em movimento dentro de mim, dentro de minhas idéias e
pensamentos. Aqui um outro paradoxo pode ocorrer, pois quando fecho os olhos eu abro a
imagem:
A subjetividade absoluta só é atingida em um estado, um esforço de silêncio (fechar
os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A foto me toca se a retiro de seu
blábláblá costumeiro: “Técnica”, “Realidade”, “Reportagem”, “Arte”, etc.: nada
dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva
(BARTHES, 1984, p. 84, grifos do autor).
Podemos aproximar essa última frase de Barthes com outras questões importantes para
nós. Esse “deixar que o detalhe remonte sozinho à consciência afetiva” pode ser interpretado
como deixar que o que existe de conotado na fotografia se amplie, ganhe forme e história.
Através do conotado, do além do analogon, é que surge o fluxo de idéias, de associações, de
imaginações. Em outro texto, ainda, Barthes (1988) comenta sobre o momento em que
levantamos os olhos do livro no processo de leitura. São nesses momentos que o texto se
mostra mais apaixonante, pois é onde ele nos capturou. Através dele escrevemos outro texto
dentro de nossas mentes, dessa forma o texto escrito se porta como um pré-texto do nosso
texto imaginário, da nossa autonarrativa. Se a leitura realmente for apaixonante, abaixaremos
novamente a cabeça para nos alimentarmos dela e depois levantamos e isso ocorre num
processo continuo. O pré-texto (texto escrito) alimentando o nosso texto imaginário que
alimenta o texto escrito que alimenta o texto imaginário, sucessivamente. O mesmo
funcionamento vale para a fotografia, quantas vezes não olhamos uma foto e vamos muito
mais além dela, tanto que precisamos voltar a ela para verificar se o que “vimos” estava nela
mesmo ou não. Quantas vezes não nos surpreendemos ao constatar que o que pensamos ter
visto não estava na fotografia. Pode ser que não estivesse de forma concreta, pelo menos não
estava no denotado, não no analogon, podendo estar apenas no conotado.
Podemos somar também a esse raciocínio que o conotado na fotografia se
apresentará como conotado se ressoar e repercutir algo em nós, caso contrário a fotografia
terá uma leitura curta, sem fechar os olhos ou levantar a cabeça. Não surgem dela novas
imagens, novas associações ou novas histórias. É necessário tanto para a fotografia como para
o texto que eles produzam algum eco em nós. Tendo em vista o proposto por Larrosa da
leitura como autonarrativa, as narrativas devem nos concernir de alguma forma para que
possamos dar-lhes sentidos. Essa concernência pode surgir do que não está escrito ou
fotografado. Antonio Francisco Andrade (2004) em seu artigo Como olho de ver debate a
imaginação na leitura da poesia, com ênfase na poesia de Manoel de Barros. Ele utiliza da
escrita de Manoel:
o poeta diz: “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver
o mundo.” Assim, o ver na poesia manoelina se afasta da visão empirista da
realidade, que se vincula à crença perceptiva do olhar. Em poesia é preciso ver com
a imaginação, o que para o poeta é uma forma de trans-ver (s/ p).
Esse “trans-ver” aplica-se à fotografia também. Para Barthes (1984) o Spectator teria
dois pontos de interesse numa fotografia, o studium e o punctum. O primeiro seria um
investimento geral, um gosto por algum tipo de retratação, está ligada ao Operator e as
intenções do mesmo, estaria mais ligado à cultura. O punctum vem fragmentar o studium:
punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte [...] O punctum
de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.
(BARTHES, 1984, p. 46, grifos do autor). Ou como diria Andrade (2004) o punctum é o
“detalhe que punge o sujeito, capaz de atrair o olhar do espectador numa armadilha que o leva
a um instante de inquietação” (s/p). Essa inquietação leva o Spectator à imaginação. A
fotografia poderia ser um disparador, através do punctum, de um cinema interno, subjetivo.
Aliás, o cinema, que é um contar de histórias, começa com pequenos desenhos um após o
outro colocados em movimento, inicialmente de forma muda e/ou com aparição de pequenos
textos, posteriormente o cinema se apresenta com falas. Não entraremos nas questões relativas
ao cinema, mas algumas frases de um grande cineasta nos ajudam para aproximar cinema e
fotografia, denotado e conotado, studium e punctum. Tarkovski (1998) discorrendo sobre o
cinema questiona-se sobre o tempo:
De que modo o tempo se faz sentir numa tomada? Ele se torna perceptível quando
sentimos algo de significativo e verdadeiro, que vai além dos acontecimentos
mostrados na tela; quando percebemos, com toda clareza, que aquilo que vemos no
quadro não se esgota em sua configuração visual, mas é um indício de alguma coisa
que se estende para além do quadro, para o infinito: um indício de vida (p. 139).
Esse indício de vida, essa alguma coisa que se estende para além do quadro, podemos
entender como a presença do conotado naquela tomada, algo do punctum, de pungente ali se
encontra. Ou como diria Miriam Chnaiderman (1989), ao comentar um filme de Tarkovski,
para ela o diretor irrompe no coração de espectador um encantamento, um incômodo ou pelo
menos uma estranheza perante a civilização, ou seja, uma ruptura no seu processo de
alienação: “o curso de nosso mundo não é o da natureza pois nele o homem debate-se na
busca de uma harmonia que desconhece. [...] O cinema de Tarkovski desvela o nascimento da
linguagem, é pura busca da expressividade em estado bruto.” (p. 63-65) . Alguns cineastas,
como Tarkovski, conseguem aproximar poesia, literatura e fotografia. Não temos condições
de durante a apresentação de um filme de levantar os olhos e construirmos as nossas histórias,
mas podemos fazer isso ao final da exibição, como nos filmes Tarkovski. Assim discordamos
de Barthes na sua afirmação de gostar mais da “Foto contra o cinema” (Barthes, 1984, p.11)
ou diríamos que gostamos mais da “Foto contra alguns cinemas”, contra os cinemas que não
possuem ou demonstram um punctum, o que não é caso nos filmes desse diretor acima citado.
Se optarmos pelo dito anterior, que o studium é um gosto por um tipo de retratação,
que relações ele teria com a formação/educação de um olhar estético? E que relação pode ter
com a leitura de obras que somam fotografia com poesia? Para Barthes (1984), o studium é
uma espécie de educação:
Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em
harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las, discuti-
las em mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato feito
entre os criadores e os consumidores. O studium é uma espécie de educação (saber e
polidez) que me permite encontrar o Operator, viver os intentos que fundam e
animam suas práticas, mas vivê-las de certo modo ao contrário, segundo meu querer
de Spectator (p.48).
Para Benjamin (1992) o advento da fotografia imprime um novo olhar, diríamos uma
nova estética sobre o mundo, pessoas e coisas. Não é mais os retratos de família e pessoas
célebres que detém a atenção, pois houve com a fotografia a instituição das imagens de
pessoas anônimas. Como dito antes, não importa mais a que família pertence o retratado, mas
sim o retrato em si, o retrato de qualquer um e qualquer coisa. Podemos depreender que essa
mudança de olhar, de gosto de olhar é uma mudança de studium, é uma educação do studium,
uma nova educação estética.
Na obra de Vargas e Lacerda (2005) temos alguns exemplos dessa passagem do
direcionamento do olhar para esses personagens anônimos dado pela literatura, agora vistos
na fotografia. Exemplos das páginas 44-45 e 58-59.
Para Jacques Rancière (2005), houve uma assunção do qualquer um que faz a
fotografia entrar no mundo da arte, contudo para ele essa revolução foi primeiramente pictural
e literária e posteriormente fotográfica e cinematográfica. Para esse autor, além de
compreendermos que a ciência histórica tem uma pré-história na literatura: “A própria
literatura se constitui como uma determinada sintomatologia da sociedade e contrapõe essa
sintomatologia aos gritos e ficções da cena pública” (p. 49). O papel que coube a fotografia
foi a revolução na estética, a transformação do anônimo e banal em belo, numa tentativa de
trazer veracidade a essa arte. Para nós, no momento, não interessa a ordem, se a revolução
estética dá-se primeiramente no literário ou no fotográfico, mas sim o que ela pode trazer
consigo.
Para Félix Guattari (1992) nos atos criativos, como no exemplo do olhar sobre o
anônimo, estabelece-se uma nova forma de subjetivação:
Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista
plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe [...] De uma maneira
geral, dever-se-á admitir que cada indivíduo, cada grupo social veicula seu próprio
sistema de modelização da subjetividade, quer dizer, uma certa cartografia feita de
demarcações cognitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas, a partir da
qual ele se posiciona em relação aos seus afetos, suas angústias e tenta gerir suas
inibições e suas pulsões (p.17-22).
Podemos pensar a partir desta citação de Guattari que cada revolução estética
possibilita uma nova forma de subjetivação e isso não quer dizer que se exclua a anterior, mas
sim se soma a ela. No nosso corpus não temos a pretensão de dizer que temos uma revolução
estética, até porque a palavra e a imagem visual se encontram juntas algum tempo, mas
talvez a forma de leitura possa ser ampliada, ou pelo menos mais debatida, inclusive no setor
educacional. Para Regina Zilberman (1982), “o âmbito reservado à literatura se assolado
pela crise de ensino, somada agora a uma crise particular a leitura, que extravasa o espaço
da escola, na medida em que se depara com a concorrência dos meios de comunicação de
massa” (p.11). Meios esses que são assolados pelas imagens visuais. Conforme Fernando
Souza (2006), não porque lutar contra esses meios de comunicação de massa e nem contra
o “império das imagens”, mas sim tentar entendê-los e levar esse conhecimento para dentro
das escolas, facilitando a aproximação do aluno à literatura através de um novo modo de
leitura. As formas e contextos de disseminações de discursos e de imagens são de
fundamental importância, como salientou anteriormente Guattari, pois eles são modelos de
formas de subjetividade. Para Guattari (1992) alguns dos componentes da produção da
subjetividade seriam:
1. componentes semiológicos significantes que se manifestam através da família, da
educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2. elementos fabricados
pela indústria da mídia, do cinema, etc. 3. dimensões semiológicas a-significantes,
funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e
veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas
propriamente lingüísticas (p. 14).
Quanto mais diversidade de olhares sobre o mundo mais possibilidades de
constituição de subjetividades serão possíveis. Ao ampliarmos nosso olhar do mundo das
classes privilegiadas para o mundo do comum, ordinário e anônimo possibilitamos uma outra
forma de subjetividade. O anônimo e ordinário sempre existiram, mas através da arte,
primeiramente literária e posteriormente imagética, transformou-se em possibilidade de
modelo para o subjetivo. Com esse processo outorgamos um poder para a arte, para o olhar
dos artistas sobre o mundo que nos rodeia. A valorização de uma proposta de leitura, de
interpretação e de tradução do mundo pelos olhos da arte modifica a nossa leitura de mundo.
2.2 Habitando a fotografia
Normalmente nas leituras entre linguagens diferentes temos a tendência de supor que a
palavra ou a imagem sejam traduções ou adaptações uma da outra, e corriqueiramente
pensamos muito mais na imagem visual como adaptação. Falamos em adaptação de um livro
para o cinema, ou de uma obra literária para uma novela ou minissérie. Ao falarmos em
poesia encontramos que o poeta é um tradutor de imagens e podemos utilizar essa mesma
afirmativa para a fotografia, dentro das possibilidades de cada um dos códigos. O fotógrafo,
ao escolher o ângulo, a luz, o tipo de filme, a forma de revelação, o tempo de abertura do
diafragma e tantas outras variáveis, não deixa de ser um tradutor de uma imagem. Em vez de
procurar as melhores palavras, ele procura dentro das possibilidades de sua arte a melhor
forma de se expressar.
Fotógrafos e poetas através de suas traduções podem ser agentes de revoluções
estéticas, criadores de novos olhares e assim de novas maneiras de subjetivação. Todavia
também podem ser agentes de estagnação ou de produção de uma subjetividade empobrecida
e alienante. Podem simplesmente ser agentes de reprodução de um discurso social e inclusive
reforçarem a banalização da dor, da violência, da impunidade e do sofrimento, entre tantas
outras possíveis. Como escreve Barthes: “a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza,
perturba ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa (p. 62, grifo do autor). Abaixo
exemplificamos com Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) o que consideramos uma
fotografia pensativa
16
:
16
Nesse primeiro momento separamos a imagem fotográfica do poema que se encontra ao lado.
Essa foto pode nos levar para diversos pensamentos, lugares e sensações, de acordo
com o desejo e imaginação de cada um. Novamente a imagem funciona como um pré-texto,
através de um pequeno ponto, de um detalhe da fotografia podemos criar um texto completo.
Manguel ( 2001) faz o seguinte comentário sobre a criação de textos a partir de uma imagem:
Quando lemos imagens [...] atribuímos a elas caráter temporal de narrativa.
Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por
meio da arte de narrar histórias [...], conferimos à imagem imutável um vida infinita
e inesgotável (p. 27).
Para criarmos uma narrativa para as fotografias é necessário que elas nos toquem.
Barthes (1984), ao comentar as fotos que o tocam, salienta serem aquelas que ele tem vontade
de habitar e não aquelas que ele tem vontade de visitar:
Esse desejo de habitação, se o observo em mim mesmo, não é nem onírico [...], nem
empírico [...]; ele é fantasmático, prende-se a uma espécie de vidência que parece
levar-me adiante para um tempo utópico, ou me reportar para trás, para não sei onde
de mim mesmo (p. 63-65).
É isso que a foto acima traz para mim, enquanto leitora, me dá vontade de habitá-la, de
colocar meus pés na areia, na água, sentir o sol, escutar as crianças brincando, as ondas
batendo, sentir o vento com maresia na pele, sentir o cheiro do mar. Ela me traz a sensação de
liberdade e frescor, de tranqüilidade, de nada a fazer, apenas sentir. Mas ao ler a foto mais
detalhadamente algo me punge, a bola vermelha (punctum) contra o céu azul chama
totalmente minha atenção, esqueço o mar, o vento e a sensação de liberdade. A foto fez
silêncio e, como dito anteriormente em citação de Barthes (1984, p.84), “o detalhe remonta
sozinho à consciência afetiva”, eu animo a foto, a foto me anima. O meu olhar inicial de
tranqüilidade e de nada a fazer e apenas sentir o espaço modifica-se, quero tocar aquela bola,
quero participar daquele jogo, quero saber quem está jogando, quais as regras, por que as
outras pessoas não estão olhando aquela bola brilhante contra o céu. Visito as memórias dos
meus jogos de infância, das vezes que fui deixada de lado por ser pequena, por não entender
ou observar a regra dos maiores ou simplesmente por ser ruim de jogo, mas querer jogar
mesmo assim. Remete-me, me transporta para quando eu mesma não permiti que outros
participassem dos meus jogos, das vezes em que somos obrigados a escolher parceiros e
ficamos divididos entre os amigos e os melhores jogadores, das vezes em que eu fui a última
escolhida e da sensação que isso me trouxe. Lembro-me de minha mãe avisando para não
jogar perto das roseiras e de não tê-la ouvido e assim furei a minha bola mais brilhante, entre
tantas outras histórias, sentimentos, afetos e textos possíveis que surgem dessa circunferência
vermelha, deste pequeno punctum. Barthes (1984) comenta que é: “como se a imagem
lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (p. 89). Esse além do que é possível ver
é o reverso da fotografia, ou o outro lado do texto fotográfico dado pela imagem. Como
observa Eduardo Canizal (2004):
Talvez uma das funções do texto fotográfico seja a de nos fazer ver esse outro lado
invisível das coisas e, mesmo, dos signos. Creio que o enfeitiçamento a que nos
submete uma imagem decorre, precisamente, da faculdade que ela tem de conduzir a
nossa mirada na direção do reverso dos entes do mundo ou das significações que
outras representações icônicas ocultam (p. 15).
Pensamos que as imagens são tão instigantes porque elas, assim como alguns textos,
pedem que nós leitores formulemos sentidos e construção de uma história. A imagem
fotográfica pede participação, é intrínseco a ela essa solicitação, tanto que vamos de frente a
reverso, de studium a punctum, mexemos e remexemos no que ali se encontra e assim vamos
muito além do que ali está. Se a palavra é polissêmica, a imagem sozinha é “ultra-
polissêmica”. As palavras têm início, fim e uma lógica de construção para serem
compreendidas e terem sentido, como vimos em Jakobson (1999, p.96), caso contrário são
contra-sensos, nas imagens nem sempre, como nos exemplos abaixo encontrados em Arnaldo
Antunes e Marcia Xavier
17
:
Exemplo 1:
Exemplo 2:
17
Nestes exemplos separamos poema da fotografia divergindo da forma de apresentação original da obra.
Quantas vezes vemos fotos ou mesmo quadros onde não temos certeza de qual a
melhor forma ou posição de olhar, se na horizontal ou vertical, de cima para baixo ou de
baixo para cima. Talvez possa ser vista de todos esses ângulos, não sempre uma lógica
predeterminada, uma regra que feche as formas de leituras. Como salienta Canizal (2004) na
especificidade da fotografia:
o texto fotográfico desvenda, em geral, sentidos ocultos de outros textos imagéticos
[...] e que o punctum, concebido por Roland Barthes em seu ensaio Le Troisième
Sens (1970: 14-17) como um sentido obtuso não codificado, termina sendo, no
trabalho de leitura de uma imagem, uma forma significante à manifestação da
intertextualidade, o que significa, a meu ver, que o punctum instaura um ato de fala,
[...] como lugar em que a manifestação dos significados transcende o sistema da
língua e permite que se congreguem vozes vindas das múltiplas significações de
uma palavra ou de uma imagem no âmbito das vidas que essa palavra ou imagem
vai acumulando, com o tempo, no transcorrer da dinâmica social. Sendo assim, o
sentido obtuso não está codificado se o interpretamos a partir de um código
exclusivo. Visto, porém, a partir da pluralidade de códigos que se imbricam no texto
fotográfico, o sentido obtuso é, ao que me parece, um traço sobredificado (p. 15-16).
Para exemplificar o punctum como sentido obtuso pedimos aos nossos leitores que
leiam novamente a fotografia número 2. A minha preferência de leitura é sempre passar os
olhos nas imagens primeiro e depois ler as palavras que as acompanham. Na fotografia
número dois, imaginei estar olhando para uma flor, uma rosa em específico, uma fotografia
feita bem de perto como se quisesse desvelar os segredos íntimos das suas pétalas, ir aos
entremeios de suas camadas, adentrar na ‘raiz’ delas, talvez isso seja um resquício da minha
curiosidade e olhar de bióloga estudante de Botância. Olhar esse que foi educado para
pesquisar os detalhes dos seres vivos e compará-los, até porque a Biologia é uma ciência que
se nutre muito da classificação e comparação, qualquer detalhe é importante, uma pétala a
mais ou a menos, uma inserção de pétalas de forma diferente pode ser o indício de uma
espécie nova. Essa fotografia me transportou para minha vivência das saídas a campo pela
faculdade, do recolhimento de amostras de vegetais e todo o entusiasmo entre os colegas
querendo mostrar quem descobriu mais detalhes e foi capaz de chegar ao nome e sobrenome
da espécie em questão. O que me pungiu nesta foto foram os espaços escuros entre as
supostas pétalas. Na citação acima de Canizal, o punctum é um sentido obtuso não codificado,
em Barthes (1990) ele apresenta algumas razões de sua escolha para o termo do sentido
obtuso. Este autor nos diz que:
Esta expressão vem-me facilmente ao espírito e, ao verificar sua etimologia,
encontro uma teoria do sentido suplementar; obtusus quer dizer: que é vedado, de
forma arredondada; ora, os traços que mencionei (a maquilagem, a palidez, a peruca
etc não serão como que um véu que tolda um sentido demasiadamente claro,
demasiadamente violento? (p. 47)
No nosso exemplo escolhido o sentido obtuso pode ser o foco, ou melhor, a falta de
foco, em vez da maquilagem ou da palidez de que nos fala Barthes. Se a fotografia em
questão estivesse focada o “véu que tolda um sentido demasiadamente claro”, talvez fosse
perdido e minha leitura não seria a mesma, meu punctum não seria o mesmo. Ao passar da
leitura inicial que era focada nas imagens fotográficas para o texto como um todo, poema e
fotografia, meu olhar, meu punctum e meu sentido obtuso são completamente outros. Abaixo
apresentamos o poema juntamente com as imagens fotográficas que o acompanham e
salientamos que as fotografias se encontram em preto e branco
18
:
repara no lilás
da teta
e no verde escuro
da parte interna
da boceta
18
Optamos por não ilustrar o que pensamos ser uma seqüência de poema e poesia fotográfica devido à extensão
do mesmo. O que não invalida a leitura inicial apenas das fotografias, pois esse é um direito nosso enquanto
leitores, como salientamos no capítulo 1 (Pennac e Calvino). Exemplificamos apenas com algumas partes para o
leitor ter uma noção geral.
Exemplo 2:
o bojo das nádegas
de azul redondo,
vê?
a carne tenra,
a boca densa,
a bolsa preta
O texto ao lado da fotografia escolhida, a suposta rosa e suas pétalas, dilui a minha
interpretação, o meu pungir não foi o mesmo que o autor do poema captou, o sentido obtuso
visto por ele significou a fotografia de forma diferente. O que para ele está velado não foi o
mesmo que para mim, portanto podemos concordar com Canizal de que o sentido obtuso não
está codificado ele é sobrecodificado. De acordo com Barthes: “o sentido obtuso parece
desdobrar suas asas fora da cultura, do saber, da informação; analiticamente, tem algo de
irrisório; porque leva ao infinito da linguagem, poderá parecer limitado à observação da razão
analítica” (p. 47-48). O sentido obtuso não se prende à razão, a alguma lógica restrita, ele abre
as imagens paras diversas leituras e direções na busca de sua interpretação. Contudo na
relação do sentido obtuso da fotografia com as possibilidades de comunicação das palavras os
sentidos possíveis, os sentidos velados, tomam uma direção, se acoplam a um vetor, ao vetor
da palavra. No exemplo acima, as palavras do poema seqüestraram a minha leitura da
imagem fotográfica, elas tomaram outra direção. Mas nem sempre é assim, essa é apenas uma
das possibilidades, pois a palavra também pode ser, em vez de seqüestradora, libertadora de
sentidos obtusos da imagem. O nosso próximo subtítulo versará mais detalhadamente sobre a
convivência da palavra e da imagem visual.
2.3 Relações entre fotografia e texto: dependência ou independência
Barthes (1990) ao discorrer sobre a relação entre texto e imagem diz que a mesma
sofre uma reversão histórica com o surgimento da fotografia: “a imagem não mais ilustra a
palavra; é a palavra que, estruturalmente, é parasita da imagem” (p. 20). Em dissertação de
mestrado Beatriz Lefèvre (2003), ao fazer uso de um exemplo de uma fotografia de uma
paisagem desértica onde está retratada uma mulher com uma mera fotográfica e uma
inscrição manual dizendo de quem se trata e intitulando a obra, sugere que sem a inscrição
verbal a imagem desértica com a mulher solitária, sugeriria diversos caminhos de reflexão:
solidão, devastação, imensidão...
A partir do momento em que o leitor, através do texto, nomeia a fotógrafa essa
imagem poderia conduzir a imaginação para o fotógrafo que fez a fotografia: “A frase escrita
(neste caso: Linda photographing the Petrified Forest, Arizona 6/10/83) tende a interromper o
caminho de reflexões inspirada na visualidade e a dirigir a imaginação para o momento em
que a imagem foi feita.” (p. 152) O fotógrafo intitula sua obra de Floresta petrificada pelo
modo como ele caracteriza o que vê, e desta forma a nossa imaginação voltaria para o estágio
primeiro onde teríamos solidão, devastação, aridez, imensidão...
Para Lefèvre (2003), nesse exemplo, as mensagens tanto verbais como fotográficas,
complementam-se e reforçam-se: “Ambas (mensagens) nos levam ao fotógrafo, ao ato
fotográfico e à paisagem fotografada. Cada expressão ao seu modo reforça algo da outra” (p.
152). No nosso caso, investigamos se o poema ao ser acoplado à fotografia pode reforçar e
complementar o seu sentido como no caso do Amor é vermelho, de Suzana Vargas e Antonio
Lacerda (2005), onde temos o poema construído em primeiro lugar, ou como na obra de
Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, Et eu tu (2003), se a palavra poética reforça e
complementa o sentido da fotografia, já que esta é anterior à palavra.
Na fotografia que utilizamos para exemplificar a questão do punctum (a praia com a
bola vermelha) podemos chegar à mesma conclusão de Lefèvre, que as linguagens diferentes
reforçam-se, pois o texto ao lado dessa fotografia fala sobre entrar dentro do que se de
acordo com o desejo e pelo punctum que escolhemos é isso que acontece, vamos entrando
cada vez mais dentro do que vemos. O texto diz:
vejo
de longe
longe
vejo
o que desejo desde
dentro
e entro
entro
dentro
do que vejo
(Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, 2003, s/p.)
Em outro exemplo, dessa mesma obra, temos uma situação diferente. Na imagem
temos uma parte de uma perna, que a princípio não me inspira a imaginação para ir a parte
alguma, nada me pungiu, me feriu ou inquietou, assim como não percebi sentido obtuso e
velado. A foto não me animou e nem eu animei a foto.
Ao passarmos para página ao lado temos o seguinte texto:
O texto procura acompanhar a forma da perna ao lado e suas palavras nos remetem
inicialmente ao Operator e ao ato fotográfico A perna ao lado começa a ser animada, pode
ainda não me pungir profundamente enquanto leitora, mas começo a encontrar outros
sentidos, outras possibilidades de leitura. Barthes (1990), ao comentar sobre a palavra e a
imagem visual declara que antes de qualquer coisa a palavra é exploradora da imagem no pior
sentido que essa palavra pode ter: “o texto é uma mensagem parasita, destinada a conotar a
imagem, isto é ‘insuflar-lhe’ um ou vários significados segundos” (p. 20, grifo do autor).
Neste caso (fotografia de uma parte de uma perna) é isso que o texto faz, ele conota a
fotografia, mas pensamos que não no sentido parasitário, mas no sentido de “insuflar”
significados. Através da palavra é que eu pude animar a fotografia. O poema me possibilitou
pensar na técnica fotográfica, “(lente) / que a lambe/ lenta/ (longa)/ mente”, penso na câmera
e no olhar do fotógrafo e no tempo de exposição. Mais adiante encontramos “(película/ de
celulose)” que me remete ao filme fotográfico e as escolhas do mesmo, damos vida ao
processo da fotografia. Personifico os aparatados técnicos necessários ao ato fotográfico
através da palavra poética, não através da imagem, contudo pela ordem em que foi feita essa
obra (primeiro fotografia e posteriormente poema), foi a imagem que permitiu essa
personificação do ato fotográfico.
Barthes (1990) escreve sobre a disposição e sobre a apresentação das palavras junto às
imagens: “quanto mais próxima está a palavra da imagem, menos parece conotá-la [...] a
conotação da linguagem ‘purifica-se’ através da denotação da fotografia” (p. 20, grifo do
autor). As palavras quanto mais perto da imagem, mais suscetíveis de serem devoradas por
ela, a linguagem e a mensagem da imagem visual seriam premiadas, é o que pensa Barthes,
mas ele também diz que: “por vezes, o texto produz (inventa) um significado inteiramente
novo, que é, de certo modo, projetado retroativamente na imagem” (p. 21).
Para exemplificar essa questão de a palavra inventar um significado, ele utiliza-se de
um caso jornalístico onde havia a foto de duas pessoas descendo de um avião que teriam
quase sofrido um acidente e a manchete diz “Estiveram muito perto da morte, suas
fisionomias o demonstram” (Barthes, 1990, p.21), mas as duas pessoas não tinham a mínima
noção do que havia ocorrido, souberam posteriormente, portanto os seus semblantes não
podiam estar demonstrando nenhum tipo de pavor, medo ou alívio. Na obra de Suzana Vargas
e Antonio Lacerda (2005) na página 16 há uma fotografia de um casal de idosos:
Esses dois personagens podem ser um casal, mas podem ser dois amigos, dois irmãos,
o senhor pode ter acabado de contar a maior mentira e estar enganando e usurpando a
senhora, a senhora pode estar aceitando o braço dele ao seu redor para demonstrar uma atitude
de receptividade, mas querer sair correndo dali, assim por diante. Na página ao lado da
imagem temos o poema “Legado”:
LEGADO
Aos amantes é dado o dom
de cozinhar futuros
e de tombar passados
Deu-lhes a vida que os alimenta
o sonho e nada mais
Aos outros deu esperanças,
objetivos,
o silêncio luminoso das estátuas
Aos amantes
o gesto, o movimento,
a cor às vezes possível de encontrar
(p.17)
Após a leitura do poema conotamos a imagem, impomos e projetamos um sentido. A
dupla transforma-se em um casal que teve anos de convivências e uma história de amor e de
troca de sentimentos. Pelo menos esse é um sentido que pode ser dado pelas palavras, elas
funcionariam como pequenas parasitas, preferencialmente diríamos como pequenas
usurpadoras, pois elas se apossam de um sentido, fechando as demais possibilidades. E o
sentido dado pelas palavras pode ser fraudulento, como bem disse Barthes, as palavras
inventam um sentido que não se encontra, mas é possível deduzi-lo. A fotografia é
polissêmica e dessa forma ela permite essa usurpação.
Além dessas possibilidades de relação de texto e imagem existem outras como, por
exemplo, a que encontramos em Luís Camargo (1999), onde este autor comenta sobre a
questão da ilustração, não especificamente da fotografia, mas que podemos utilizar se
entendermos que a princípio toda a imagem que acompanha um texto é uma ilustração:
A relação entre ilustração e texto pode ser denominada coerência intersemiótica,
denominação essa que toma de empréstimo e amplia o conceito de coerência
textual. Pode-se entender a coerência intersemiótica como a relação de coerência,
quer dizer, de convergência ou não-contradição entre os significados denotativos e
conotativos da ilustração e do texto. Como essa convergência ocorre nos casos
ideais, pode-se falar em três graus de coerência: a convergência, o desvio e a
contradição. Avaliar, portanto, a coerência entre uma determinada ilustração e um
determinado texto significa avaliar em que medida a ilustração converge para os
significados do texto, deles se desvia ou os contradiz. [...] Se entendemos que a
ilustração é uma imagem que acompanha um texto e não seu substituto; e se
entendemos que a relação entre ilustração e texto não é de paráfrase ou tradução,
mas de coerência, então, abre-se para o ilustrador um amplo leque de possibilidades
de convergência com o texto, convergência essa que não limita a exploração da
linguagem visual, mas, ao contrário, pode incentivá-la (s./p., grifos do autor).
Não entraremos nos detalhes do que esse autor denominou de convergência, desvio ou
contradição, pois no nosso corpus, que lida com duas linguagens polissêmicas, é difícil
afirmar que uma imagem fotográfica converge, contradiz ou desvia do texto poético e vice-
versa, o que nos interessa é a coerência intersemiótica ou a relação de texto e imagem
fotográfica. Podemos abandonar a questão da tradução ou legenda entre texto e imagem e
passar a denominá-la uma questão de coerência. Pensamos que a denominada “poesia visual”
é um bom exemplo de coerência intersemiótica.
Sobre a terminologia “poesia visual”, Omar Khouri (2001) diz ser esse um termo
consagrado, mas é incompleto e insuficiente, quando não errado. Ele propõe o termo de
Poesia Intersemiótica Multi/Intermídia da Era Pós-Verso. Esse autor explica que a poesia
visual não é uma questão da imagem como um apêndice ou complemento da poesia, os
aspectos visuais juntamente com a palavra é que formam a estrutura da poesia:
A Poesia Visual uma poesia na era pós-verso quase nunca abdica das palavras,
mas, acredito, pode haver poesia sem palavras e afirmo: assim como a Poesia
Concreta mostrou, ao contrário do que muitos pensavam e ainda pensam, que é
possível fazer poesia sem verso, é possível fazer poesia sem palavras (muitos
tentaram; poucos tiveram sucesso). Porém, a fatura estará aspirando à condição da
palavra, ou esta comparecerá, nem que seja no título, que passa a integrar de
maneira estrutural a peça (como ensinou Duchamp) (p. 24, grifos do autor).
Na obra de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) não temos títulos, nem páginas,
nem sumário, o que dificulta a nossa citação da obra, mas por outro lado isso colabora para a
leitura integrada de imagem fotográfica e palavra. Em Antunes e Xavier (2003) encontramos
essa poema/palavra – fotografia/poesia:
Nesse exemplo apresentado temos essa questão de palavra e imagem que se estruturam
conjuntamente, temos a fusão dos códigos, temos a poesia com tendência intersemiótica que
de acordo com Khouri (2001): “sem deixar de lado o verbal, valoriza a visualidade como
elemento estrutural do poema” e pretende “uma verdadeira fusão de códigos” (p. 26).
Comentamos na introdução que as obras escolhidas possuem no mínino dois autores
como em Et eu tu (Arnaldo Antunes e Marcia Xavier) e praticamente três em o Amor é
vermelho (Suzana Vargas e Antonio Lacerda), pois Daniela Kfuri é quem fez o casamento
entre as imagens e os poemas. Na entrevista de Suzana Vargas a Marcio Vassallo, também
citada na introdução, podemos perceber que havia um desejo de publicar um livro com
imagens, mas não exatamente utilizá-las como poesia, fundi-las na poesia. As imagens
fotográficas ficam mais como ilustração, como acompanhamento do texto poético, não como
elemento estrutural propriamente dito. O que não quer dizer que não auxiliam, ampliam ou até
possam restringir os sentidos do poema, mas o que fica patente é que houve uma ordem de
primazia da palavra. Não uma fusão de dois códigos, mas sim dois códigos que estão lado
a lado. Para Lefèvre (2003) essa relação do texto com a imagem estaria classificada como
distanciamento, ou seja: “o texto dialoga com a imagem” (p.153), um fala com outro, portanto
são duas instâncias diferentes.
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) o processo é diverso. Na entrevista
apresentada na introdução o relato de que apesar de as fotografias terem sido feitas
anteriormente ao poema houve trocas de informação, de adaptação, de idéias de como
apresentar as imagens conjuntamente aos poemas. Além do conteúdo, a forma como as
palavras de Arnaldo Antunes ocupam e são distribuídas no espaço do papel também
demonstra uma tentativa da parceria, de fusão dos códigos. Ele quebra as palavras, às vezes
em momentos inusitados, e essa partilha da palavra acompanha a forma retratada na imagem
fotográfica, como no exemplo da fotografia da perna apresentada ao lado do poema a língua /
(lente)/ que a lambe. Em outros poemas, como o apresentado no capítulo um contra/ a car/ ne
do pano, as palavras do poema ficam coagidas num espaçamento à direita onde em nossa
interpretação é uma menção ao touro que está restrito à arena como é apresentado na
fotografia, ou seja, é uma forma de comunicação, de construção de pontes entre as duas
linguagens. Ou como dito acima por Khouri, esse diálogo pode chegar ao ponto de fusão de
dois códigos que resultam em uma intersemiose. Um sem o outro, poema sem imagem
fotográfica, não constroem sentido, pelo menos é assim que vemos/lemos grande parte dessa
obra.
No caso de Suzana Vargas isso não fica explícito. Os poemas podem ser lidos
sozinhos, independentes, sem a necessidade de imagem visual. Os poemas dessa autora não se
fundem com a imagem fotográfica, a imagem fotográfica acompanha o poema, ela até pode
funcionar como um instrumento de formulação, de proposta de sentidos não dados pela
palavra poética. O mesmo pode ser dito para as fotos de Antonio Lacerda, elas são possíveis
sozinhas, não necessitam da palavra, portanto não são dois códigos que se fundem, não
uma intersemiose.
Não é uso de uma técnica que garante uma nova linguagem ou forma de expressão,
mas como ela é usada, como os códigos são combinados, como é feita essa construção, isso
pode garantir a intersemiose que por sua vez pode vir a formar uma nova estética ou nova
forma de subjetivação, como vimos anteriormente.
A construção ou a fusão dos códigos é de extrema importância, mas como se fará a
leitura dessa fusão também é importante. Como dissemos talvez seja necessário uma educação
da leitura de acordo com as novas propostas estéticas que surgem. Aqui estamos pesquisando
apenas fotografia e poema, mas algum tempo vivenciamos várias formas de
apresentação da palavra, seja poética ou não, acoplada a outras linguagens e a outros recursos
como o áudio, por exemplo.
Ao escutarmos uma música criamos as nossas imagens para ela, damos um sentido à
letra, sentido esse construído com a imaginação e formulação de imagens mentais,
construímos uma narrativa imagética para a letra ouvida, quase como uma adaptação para um
cinema interno. Ao assistirmos um videoclipe podemos escutar a mesma letra, contudo a
imagem visual que nos é mostrada pode não ser a nossa imaginada. O sentido muda através da
imagem, a história, a narrativa, não é mais a mesma, não somos nós os diretores e
adaptadores. Não é a nossa experiência que é usada nessa construção.
O recurso de vídeo, a proposição de imagens para uma música seria uma maneira de
direcionar o leitor/vedor/ouvinte, para o que o autor da letra talvez imaginasse, ou para o que
o grupo que a interpreta imagina, ou ainda para o que o diretor do videoclipe imagina, são
muitos os intermediários nesse caso. De forma similar, o mesmo pode ocorrer no cinema ou
teatro, afinal temos autor de uma obra, em alguns casos adicionado do tradutor dela, temos o
adaptador do livro para cinema ou teatro, os artistas e suas próprias adaptações do texto
recebido e a interpretação dada por eles. Essa suposta possibilidade de direcionar uma leitura
pela construção de imagens, como no videoclipe, seria uma maneira de diminuir as
conotações possíveis? Seria uma forma de preservar o que o autor ou no nosso caso o que os
autores gostariam de dizer? Ou como dissemos anteriormente: a leitura ou a visão ou mesmo
o escutar é sempre subversivo?
Em Octavio Paz (1984) encontramos uma citação que pode nos ajudar a compreender
em parte essas questões:
O mundo não é um conjunto de coisas mas de signos: o que denominamos coisas
são palavras. Uma montanha é uma palavra, um rio é outra, uma paisagem é uma
frase. [...] O mundo é uma metáfora de uma metáfora. Cada poema é uma leitura da
realidade; essa leitura é uma tradução; essa tradução é uma escrita: um voltar a cifrar
a realidade decifrada. [...] Escrever um poema é decifrar o mundo, para cifrá-lo
novamente. O jogo da analogia é infinito: o leitor repete o gesto do poeta; a leitura é
uma tradução que transforma o poema do poeta em poema do leitor. A poética da
analogia consiste em conceber a criação literária como uma tradução; essa tradução
é múltipla e nos põe diante deste paradoxo: a pluralidade de autores (p. 98-99).
Preferimos o termo de coerência intersemiótica, transformando um pouco esse
entendimento de tradução que nos parece muito amplo por todas as questões que a
tradução/traição traz consigo. Contudo a coerência também não nos parece uma definição
apropriada, digamos que essa nomenclatura diminui um pouco a abrangência das
possibilidades do que se pode entender por tradução.
Tanto coerência como a tradução possuem inerentes a elas, imbricado em seu conceito
algo de certo ou errado, de condizente ou não, de coerente como se existisse uma flecha, um
vetor de direção única entre significado e significante. Inclusive essa questão de o mundo ser
cifrado necessitando de uma tradução também é questionável e instigante, pois
posicionamentos diversos perante essa questão. Como vimos na citação acima de Paz, para ele
o mundo é cifrado e constituído de signos e o poeta é um decifrador/ “cifrador” do mesmo. O
leitor percorre o mesmo caminho e decifra a suposta “cifragem” do poeta. Para Paz (1984) a
autoria não pertence nem ao poeta nem ao leitor, mas à linguagem: “o poeta e o leitor são
apenas dois momentos existenciais da linguagem” (p. 99). Para nós a questão não é se o
mundo está cifrado ou se é constituído de signos e necessita ser decodificado, mas sim que
nossos olhares é que cifram o mundo, ou a leitura dele ou de qualquer coisa. O mundo é, as
coisas e objetos são, nós é que talvez tenhamos a necessidade de propor diversos
entendimentos e significados para as coisas do mundo. Criamos uma rede de interpretações,
uma imagem leva a outra, um signo remete a um significante que remete a um significado, e
assim por diante.
Em Chnaiderman (1989) encontramos o seguinte comentário:
É preciso destruir o conceito de “signo” e toda a sua lógica, pois a significação
“signo” foi sempre compreendida e determinada, no seu sentido, como signo-de,
significante remetendo para significado, significante diferente do significado. [...] É
preciso eliminar a diferença textual entre imagem e coisa, o significante vazio e o
significado pleno, o imitante e o imitado (p. 19, grifos do autor).
Por que necessariamente uma coisa quer dizer outra? O mundo enquanto um grande
livro a ser lido necessita ser traduzido? Interpretar é inerente a traduzir? Provavelmente essas
perguntas não tenham uma resposta e sim múltiplas, talvez seja uma questão de
posicionamento que se toma perante o mundo e as coisas do mundo. Podemos lê-lo como
sujeitos que se posicionam à parte dele, fora dele, dentro dele, enfim depende de nosso ponto
de observação.
2.4 A leitura como ponto de observação
Encontramos em Fernando Pessoa (s./d.) um fragmento de “O guardador de rebanhos”
que vem em nosso auxílio para exemplificar as posições ou ângulos de vista para a leitura de
mundo:
X
“Olá Guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”
“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois,
E a ti o que te diz?”
“Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.”
“Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.” (p.147)
Estaria o guardador de rebanhos observando o mundo de um lugar privilegiado? Se a
resposta for afirmativa e as coisas são o que são, não haveria um mundo cifrado, não haveria a
necessidade de uma linguagem metafórica. O vento, em si, não diz nada por si mesmo, nem
que ele passa e passará, tampouco que ele tenha memórias e saudades. O poeta, no caso
acima, Fernando Pessoa, ao fazer uso da linguagem metafórica, entre outros recursos da
poesia, poderia estar transportando consigo o leitor para levá-lo ao seu ponto de observação.
Essa seria uma hipótese para a importância da metáfora viva
19
, da metáfora inusitada, pois ela
seria capaz de proporcionar um novo ponto de observação, um novo olhar sobre o mesmo,
sobre o cotidiano, sobre o que olhamos e muitas vezes não vemos (no sentido de olharmos e
não enxergarmos, como por exemplo a questão estética do particular, do anônimo. O
anonimato sempre esteve presente, a forma de o vermos/lermos/escutarmos é que foi se
19
Entendemos metáfora de acordo com Paul Ricoeur (2000), para o qual a metáfora não é uma palavra, mas sim
um enunciado metafórico (p.155). Metáforas vivas são as metáforas autênticas: “são a um tempo
acontecimento e sentido” (p.155).
transformando). Com esse novo olhar teríamos uma nova estética e a possibilidade de um
novo modo de singularização através deste transporte do poeta.
Em Maria Aparecida Fontes (2002) encontramos a seguinte citação sobre o uso da
metáfora e a construção de uma imagem poética que possibilita uma associação emotiva:
A forma específica da imagem em poesia está, por isso, no modo pelo qual se pode
determinar uma "complicação semântica", ou seja, "o destaque da objetividade e o
nascimento de traços oscilantes (de significado) às custas do traço fundamental";
isto é, para que a metáfora resulte viva, se transforme em imagem e em poesia, é
necessário que se produza parcialmente a eliminação do traço fundamental do
significado. O uso metafórico da palavra destrói o conteúdo lógico do significado e
cria uma associação emotiva orientada para uma determinada imagem (p. 1).
Essa imagem provinda da metáfora, enquanto inusitada é viva e poética, mas em sua
repetição transforma-se em metáfora morta e perde seu potencial poético. Por exemplo,
quando uso a metáfora “aquele médico é um açougueiro” crio a associação de imagem entre
medicina e açougue, médico e pedaços de carne a venda, médico que ganha dinheiro cortando
carne: médico retalhador, médico açougueiro. É uma metáfora, mas não é uma metáfora
poética, não muitos significados possíveis para ela, não a uma explosão de imagens,
além do que, é usada coloquialmente, sendo assim uma metáfora morta, não leva o leitor
para nenhum novo ponto de observação, de estética, de sentido ou de singularização. A
metáfora poética e a imagem poética devem ser abertas e possibilitar novas associações, não
se reduzindo a apenas uma explicação ou uma interpretação. Como diz Octavio Paz (1982):
“Há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa; existe uma em poesia” (p.134).
existe uma porque a imagem poética é única. Paz usa como exemplo as seguintes sentenças
de desnuda que está brilla la estrella” ela estrella brilla porque está desnuda”. Para ele a
segunda sentença degrada o sentido porque: “de afirmação converteu-se em explicação
rasteira. A corrente poética sofreu uma baixa de tensão. A imagem faz com que as palavras
percam sua mobilidade e intermutabilidade” (p. 135). A formação de uma imagem poética
provém das palavras, mas é além delas. Como diz Paz (1982) “A imagem diz o indizível: as
plumas leves são pedras pesadas. que retornar à linguagem para ver como a imagem pode
dizer o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer” (p. 129).
Assim como a poesia, a metáfora também surge de uma necessidade de expressar algo
além do significado literal das palavras. John Searle (2002), que faz um estudo dos atos da
fala, comenta que o falante ao fazer uso de uma metáfora quer significar algo diferente do que
diz:
O que a emissão metafórica significa é realmente diferente do significado das
palavras e sentenças, mas não porque tenham mudado os significados dos
elementos lexicais, e sim porque o falante quer significar com elas, outra coisa; o
significado do falante não coincide com o significado das sentenças ou palavras (p.
137).
Para Borges (2000), a importância da metáfora é que ela seja sentida pelo leitor ou
ouvinte como realmente uma metáfora, ou seja, comunicar através do encadeamento de duas
coisas diversas uma terceira além do significado literal. Mas metáforas semelhantes produzem
reações e sensações diferentes, por uma única razão: “o efeito em nossa imaginação é bem
diverso” (p. 32). Borges elenca diversas metáforas para batalha: “encontro de homens”,
“encontro de espadas”, “dança de espadas”, “embate de armaduras”, “embate de escudos”,
“assembléia de cólera” e “teia de homens”. Para ele a mais sutil é “a teia de homens”. Sua
explicação é que:
A palavra “teia” é realmente formidável aqui, pois na idéia de uma teia assimilamos
o modelo de uma batalha medieval: temos as espadas, os escudos, o entrelace das
armas. Depois há o toque de pesadelo de uma teia feita de seres vivos. “Uma teia de
homens”: uma teia de homens morrendo e matando uns aos outros (p. 47, grifos do
autor).
A metáfora é uma forma de dizer algo além do sentido literal, e ela pode criar
imagens, como nos exemplos de Borges. No caso da metáfora poética, na criação de suas
imagens, quanto mais abertas forem a novos significados e a novas associações, mais rica,
mais viva e dessa forma mais poética será. A poesia pode ser metafórica, mas nem toda a
metáfora será poética. Para Borges (2000), o que diferencia uma metáfora de outra é o uso de
modelos ou a quebra deles:
embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas
podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples. Mas isso não precisa nos
preocupar, que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as
variações são diferentes. [...] metáforas por exemplo, ‘teia de homens’ - que
não podem ser reconduzidas a modelos definidos (p. 49).
Poder-se-ia depreender disso que quanto mais as metáforas alçarem-se além dos
modelos definidos e criarem uma amplitude de associações maior será sua propensão à
direção poética desde que levem ao novo e ao inusitado e direcionem os leitores ou ouvintes
ao âmago dos afetos, das sensações e das emoções.
Em Mello (2002), nos seus estudos da imagem poética juntamente aos trabalhos de
Jean Burgos, encontramos uma tentativa de diferenciar a imagem poética com da metáfora:
Comparando a imagem à metáfora, Burgos acentua a instantaneidade da primeira em
contraste com o caráter de fabricação da segunda. A imagem se define, desde o
início, por um dinamismo que a impede de fechar-se em parte alguma, de se deixar
confinar em um sentido que a reduziria ao estado de signo e a mumuficaria em
seguida. [...] a imagem não se deixa substituir por outra, vizinha ou similar
(diferentemente da metáfora) e menos ainda traduzir por um significado conceitual;
pelo mesmo motivo, ela não se submete a uma catalogação, sob pena de se
transformar em signo (p. 94-95).
Concordamos com a parte em que a imagem, no caso imagem poética, é dinâmica e
impede de se fechar, de se confinar em um sentido, mas a metáfora, se poética, possui essa
mesma propriedade, como o exemplo de “teia de homens”. Nessa metáfora as imagens que
surgem não têm apenas um sentido e dificilmente será possível substituí-la por outra, tendo
em vista a abertura de possibilidades de significados e associações. Podemos dizer que o
poema e por usa vez a imagem poética que deste surge, utiliza-se de metáforas, mas de
metáforas que tenham comunicação com as imagens simbólicas, imagens de difícil
substituição, o que não ocorre com as metáforas que chamarei de “não-poéticas”. Ainda em
Mello (2002):
uma imagem é simbólica na medida em que constitui a melhor formulação possível
de uma realidade ausente ou difícil de expressar, da qual é inseparável. Nesse
sentido, na imagem não é relevante o princípio da analogia, como no signo, mas o
princípio de identidade com a realidade ausente (p. 96).
Podemos dizer que imagem poética não é uma questão de como, parecido com,
similar a, mas sim de negar essa similitude, pois a imagem poética não pode ser parecida a
nada, ela deve ser única e singular, como dito anteriormente por Octavio Paz. Contudo, Paz
(1984) também diz ao escrever sobre a unidade da poesia européia que: “sem atentar contra
sua pluralidade, devemos concebê-la como um sistema analógico: cada obra é uma realidade
única e, simultaneamente, é uma tradução das outras. Uma tradução: uma metáfora” (p. 92-
93). Esse sistema analógico não deve ser visto como um sistema fechado, como analogia
restritiva, como condutor a uma certeza, mas sim como uma analogia que faz luz à sombra,
uma analogia que soma algum sentido, que conduz e impulsiona à reflexão e à ação. Nas
palavras de Turchi (2003): “a analogia não promove a unidade do mundo, mas sua
pluralidade, mostrando o homem não como identidade, mas como dispersão perpétua” (p. 63).
Estamos sempre lendo o mesmo livro, mas sempre de maneira diversa, as obras dessa forma
podem ser concebidas como traduções e como metáfora. Como visto em Paz acima, contudo
não é tradução que busca similitude, mas sim a tradução que busca dispersão. Aqui se
encaixa a tradução como traição, não no sentido pejorativo, mas traição no sentido de dizer
algo além, de ser sutilmente infiel a um suposto texto primário acrescentando algo nele.
Podemos pensar no nosso corpus como sendo este espaço de tradução sutilmente infiel, um
espaço onde a palavra acrescenta algo à fotografia (Arnaldo Antunes e Marcia Xavier) e a
fotografia acrescenta algo à palavra poética (Suzana Vargas e Antonio Lacerda).
Escrever e fotografar são artes e como nos salienta Isabela Velloso (1999):
Toda arte quer-se transcendente, porque é esta característica que a distingue do real
homogeneizante. na arte a materialização de um fazer humano desvinculado das
possibilidades materiais da existência.um princípio criativo que visa à revelação
e estase efetiva mediante a ruptura com o real, entendido aqui como o real de até
então. Neste sentido, criar significa romper; a arte seria, então, uma ruptura vitoriosa
cujo produto é material de uma contemplação coletiva e, ao reconhecê-la como
reveladora, o sujeito pactua dessa transcendência, tendo assim, um retorno
individual ao desvelar a revelação (p. 86).
A fotografia e a literatura enquanto artes transcendentes proporcionam um novo olhar,
uma forma de tradução infiel da realidade, uma revelação, são capazes de funcionar como
fissuradores da realidade demonstrando através de suas rachaduras novas possibilidades. Em
Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) as palavras do poema não são apenas palavras ao
lado de uma imagem visual, o poema rompe, ele rasga a fotografia, ele não é uma simples
tradução no sentido restrito desta palavra, o poema é algo mais, ele cria, ele transcende, ele
“revela” novamente a fotografia. Em Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) nem sempre
isso ocorre, em alguns exemplos a fotografia rasga os sentidos do poema, em outras a
fotografia apenas traduz sem trazer algo novo, sem rompê-las. Abaixo exemplos encontrados
em Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) de fotografias que entendemos que não rompem
o sentido do poema:
“Ritmos/Rimas”
Você é minha música de agora
a ponte entre o que foi e o que será
nunca a memória
ou a prisão de palavras sempre ditas
há uma hora.
Do futuro? Ninguém sabe. Inauguro
um estado de sussurros
a conversa entre uma flauta
e esse piano
na frase mais banal
E sem sentido
(p.40-41)
“Trópico”
Nessa mesma linha divisória do oceano
viver tricotou tecido interminável
Não arredou um centímetro seu pé
apesar do médico cancelado,
uma cabeça a doer
livro marcado
Te esperei
como te espero:
navalha e flor
(p.62-63)
Garcez, Morais e Lopes (1999), ao analisarem a imagem na obra de Murilo Mendes,
percebem que o ponto de vista, a forma de olhar, de ver, o ponto de observação funciona
como forma de trazer o inédito, como forma de fissura. Para elas:
Segundo os formalistas, os procedimentos artísticos singularizariam os objetos,
provocando não um reconhecimento, mas sim uma visão. Na obra de Murilo
Mendes, tal perspectiva se liga à construção de imagens singulares que conseguiriam
“extrair o eterno do transitório”
20
, desbanalizando a vida, o cotidiano (p. 99, grifo
das autoras).
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier o que poderia ser uma simples foto fora de foco
se transforma em poesia como no exemplo da “flor” “de” “foco”, ilustrada anteriormente. É o
nosso cotidiano de fotógrafos amadores sem muita experiência ou técnica, modificado em
arte. a construção de uma visão singularizada, ocorre uma desbanalização de uma falta de
foco, de uma foto supostamente mal feita. Podemos depreender como proposto pelo
“guardador de rebanhos” que o vento seja vento, que passa e que passará novamente.
Contudo ele também pode ser algo mais, pode ser o que o interlocutor do guardador de
rebanhos pensa que seja: ele pode ser memória e saudade. Uma fotografia mal focada pode
ser simplesmente uma fotografia mal tirada como pode ser uma fotografia poética, ou melhor
uma poesia intersemiótica, as linguagens estão fundidas, fazem sentido quando juntas. A
20
Expressão de Araújo, L.C., 1972, p.45.
fotografia através da palavra, desmembra-se em sentidos, em emoções, sensações, em toques
suaves, em memórias e porque não dizer em saudades.
A importância da metáfora viva no poema é proporcional à importância do punctum na
fotografia. Os dois: metáfora viva e punctum são capazes de conduzir o leitor para além do
que está escrito/visto. Eles é que seriam responsáveis por uma nova rachadura ou fissura, ou
ponto de observação ou imaginação do leitor/vedor. Inclusive para a metáfora ser viva ela
necessita da interação do leitor. Para Ricoeur (2000):
é necessário tomar o ponto de vista do ouvinte ou do leitor e tratar a novidade de
uma significação emergente como obra instantânea do leitor. Caso não tomemos este
caminho, não nos desembaraçaremos realmente da teoria da substituição; [...] prefiro
dizer que o essencial da atribuição metafórica consiste na construção da rede de
interações que faz de tal contexto um contexto atual e único. A metáfora é, então,
um acontecimento semântico que se produz no ponto de intersecção entre vários
campos semânticos. Esta construção é meio pelo qual todas as palavras tomadas
conjuntamente recebem sentido. Então, e somente então, a torção metafórica é
simultaneamente um acontecimento e uma significação, um acontecimento
significante, uma significação emergente criada pela linguagem (p.154-155).
O punctum normalmente é inerente à fotografia, é um vocábulo da imagem, mas ele
pode ser dado pela palavra como em “flor” “de” “foco”. A palavra se transforma em punctum
da fotografia. Em outros momentos a metáfora, que é inerente à palavra, pode ser dada pela
fotografia como no exemplo de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) abaixo:
A cidade é metáfora de uma folha e/ou a folha é uma metáfora da cidade, ambas com
seus caminhos, entroncamentos e fluxos. Em Luciete Bastos (2003), ao analisar a obra
Ensaios fotográficos, de Manoel de Barros, observa que ele, no seu ofício de poeta das
palavras poderia ser o poeta de imagens que fotografa metáforas:
Sabemos que várias maneiras de expressão, cada uma com seus elementos
específicos, seus padrões de funcionamento. A fotografia registra através de formas
e totalidade, fixa os contornos de um momento, um lugar, uma situação vivificada.
A metáfora, por sua vez, possibilita imagens. Fotografar metáforas é um novo ofício
de Manoel que não se satisfaz apenas com a possibilidade de manejar palavras, ele
quer captar espaços entre a sonoridade e o silêncio, que ganha novo significado em
sua poética. [...] A palavra é perigosa, Manoel bem o sabe, mas ainda assim busca o
seu (des) limite. Ele é o fotógrafo das metáforas e das imagens insólitas (s.p.).
Andrade (2004) ao analisar a poesia de Manoel de Barros observa que:
Seu olhar procura sempre o pequeno, o sem importância, e dessa forma transgride o
lugar-comum da poesia grandiloqüente. O verso que nasce da iluminura parece
representar o olhar de um fotógrafo que enquadra a paisagem e a realidade como
um desenho composto por linhas. Por isso, a imagem poética é a transgressão da
imagem perfeita [...]. Da mesma forma, a arte fotográfica também é menos uma
forma de reprodução mimética do visível do que uma forma de transgredir as
fronteiras do visual, e de encontrar na realidade o que os nossos olhos não percebem
(s./p.).
Assim como Manoel de Barros é um fotógrafo das metáforas de imagens insólitas
através do uso da palavra, Marcia Xavier também o é, fazendo uso da câmera fotográfica,
cada um com seus instrumentos de trabalho diversos. Podemos dizer que Arnaldo Antunes
também é um fotógrafo de metáforas. Ele utiliza-se de imagens de Marcia Xavier e constrói a
partir delas a sua metáfora poética. Ao construir uma obra de poemas com imagens
fotográficas temos assim metáforas sobre metáforas, metáforas de palavras sobre metáforas de
imagem (Arnaldo Antunes e Marcia Xavier) e metáforas de imagem sobre metáforas de
palavras (Suzana Vargas e Antonio Lacerda). Ambas as metáforas podem funcionar como
meio de chamar a atenção dos leitores/vedores para a realidade que nossos olhos não
percebem, funcionam como gatilho para a nossa imaginação.
Calvino (1990) salienta que existem dois tipos de processos imaginativos: “o que parte
da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à
expressão verbal” (p. 99). Esse mesmo autor se questiona sobre qual é o papel da imaginação,
se a imaginação é um instrumento do saber ou se é um instrumento de identificação com a
alma do mundo. Para ele as duas propostas são possíveis, enquanto escreve um conto ele
observa que unifica a lógica espontânea das imagens com um desígnio concretizado segundo
uma intenção racional. Entretanto salienta que também busca na imaginação “um meio de
atingir um conhecimento extra-individual, extra-objetivo” (p.106). A definição mais
abrangente que ele encontra é: “a da imaginação como repertório do potencial, do hipotético,
de tudo quanto não é, nem foi e talvez nem seja, mas que poderia ter sido” (p.106).
Podemos aproximar esse pensamento de Calvino ao “Guardador de rebanhos” de
Fernando Pessoa: o vento pode ser memória e saudade, assim como touro do poema “Olé” de
Suzana Vargas pode ser um grande amor que foi esquecido, a foto de fora de foco de Xavier
pode ser uma “flor” “de” “foco”. A imaginação, se a vermos como potencialidade, como
forma de sensibilização e construção de outras e novas formas de ver o mundo, ela é
conhecimento, pois propicia a transgressão da vida cotidiana, do olhar rotineiro,
proporcionando novas formas de experimentação. Como vimos no capítulo um, nas citações
escolhidas de Larrosa (2003), a experiência, a experimentação é conhecimento, propicia e
enriquece as formas e pontos de observação do mundo.
Ao nos colocarmos sempre em um único ponto de observação, acabamos
empobrecendo os sentidos possíveis que o mundo-livro pode nos proporcionar. Acabamos nos
esvaziando e caindo numa monotonia, numa falta de sentido, num empobrecimento afetivo,
na mesmice e no tédio. Esse empobrecimento e esvaziamento dados por apenas um ponto de
observação pode se tornar uma normatização chegando ao ponto de acharmos que apenas
poucas possibilidades de subjetivação e de formas de ser, de se espelhar e de pertencer,
trazendo assim consigo uma massificação e homogeneização, diminuindo as possibilidades de
singularização ou as possibilidades de “processos de singularização”. Félix Guattari e Suely
Rolnik (1996) usam o termo de “processos de singularização” como sendo:
uma maneira de recusar todos esses processos de encodificação preestabelecidos,
todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-los para construir, de
certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de
produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma
singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com
uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de
dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os
nossos (p. 17).
Concordamos com esses autores e enfatizamos a imaginação como forma de rachadura
do engessamento que nos encontramos propiciado por essa falta de perspectiva e monotonia
de um ponto de observação que é construído por essa manipulação e homogeneização das
formas de subjetivação dados por uma cultura de massificação. Cultura essa que se baseia na
tentativa de extorsão da incerteza, da ambigüidade, das diferenças e da polissemia,
contribuindo dessa forma para a edificação de uma tirania de sentido e significação de mundo.
A imaginação e os meios que a propiciam e a incentivam podem ser um corte nessa
mesmice do olhar. A imaginação traz consigo uma quebra para o sentido único, traz a
possibilidade de múltiplos pontos de contemplação, de escolha, de eleição para os desejos e
opções para o mundo em que queremos viver.
A poesia pede silêncio e no nosso corpus temos poema/palavra e poesia/fotografia, em
que ambas podem e devem ser lidas em silêncio, com tempo de degustação, com tempo de
sensibilização e com tempo de imaginação e procura de sentido para ambas, com tempo de
“pensar por imagens”, como diria Calvino (1990, p.108).
Em nossa pesquisa podemos dizer que encontramos entre muitas formas de “pensar”
ou ler o livro-mundo como as apresentadas nos exemplos dos tipos de leitores de Calvino
duas das quais nos chamaram mais a atenção. Uma forma de nós lermos/escrevermos o
mundo pode ser essa de metáforas sobre metáforas, do “olhar que escava as palavras”
(CALVIVO, 1999, p. 259) e as imagens, do olhar que observa o detalhe, que examina as
notas de rodapé do mundo ou como diria Benjamin, as “margens do mundo”. Esse olhar
divisa, percorre o dentro e o fora, a forma e o conteúdo, procura percorrer o passado e o
futuro. Ele é o interlocutor do guardador de rebanhos de Fernando Pessoa, é aquele para quem
o vento conta as memórias e as saudades.
O outro leitor é o guardador de rebanhos em si, aquele que vê/lê o simples e direto
do mundo, não se perde em detalhes ou imaginação, “não pode afastar-se das linhas escritas”,
ele lê/vê e escuta o imprescindível, o vento para ele apenas diz que passa e continuará
passando. Este leitor não se perde nos detalhes, os detalhes, as notas de rodapé do mundo não
o interessam, ele procura a essência. Como comenta Swami Vivekananda (s.d.) são quatro os
caminhos para a auto-realização e um deles ele denomina o caminho negativo, o caminho do
neti, neti- “isto não, isto não” (p.33), ou seja é caminho onde as coisas do mundo são
questionadas em sua essência. É o trajeto onde o leitor procura o sentido, não na
possibilidade, na potencialidade, mas sim no contrário, em tudo o que não pode ser, daí a
expressão neti, neti. Esse leitor se desfaz do não necessário assim como Pablo Picasso ao
fazer seus estudos do desenho de um touro, se desfez de muitas linhas de seu projeto inicial,
mas sem apagá-lo por completo. Em suas poucas linhas um touro, o fundamental do touro
ali se encontra, assim como o fundamental do poético do vento o guardador de rebanhos
mantém, pois o vento apesar de dizer pouco lhe diz alguma coisa. A imaginação do guardador
de rebanhos ainda existe, pois se não existisse o vento não lhe diria nada, nem mesmo que
passa e que continuará passando. Esse mesmo ângulo de visão podemos dizer que
encontramos em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) como no exemplo da “flor” “ de”
foco” ou na “bola de gude e o dado”, o essencial da poesia ali se encontra, tanto nas palavras
poéticas como em fotografias poéticas. São palavras e imagens limpas, claras e essenciais e
mesmo assim contém disparadores para imaginação e sensibilização.
Por paradoxal que pareça esse dois tipos essenciais de leitores, tanto o que lê e procura
metáforas de metáforas quanto o que apenas o imprescindível, podem chegar ao mesmo
ponto. Como nos mostra Pessoa (s.d.) em outro fragmento de o “Guardador de rebanhos”:
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver.
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma seqüestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores (p.152-153)
Ambos os tipos de leitores se posicionam em lugares diversos, a distâncias diferentes,
seus pontos de observação não são os mesmos, mas o objeto que vislumbram, a poesia, é a
mesma, por isso apesar de serem diferentes, observarem com olhar diverso, algo os une: o
objeto de observação. Como saber se o que se e ouve é ilusão, como diz Pessoa, “se ver e
ouvir são ver e ouvir”. Afinal alguém ouviu, viu ou leu melhor? Podemos dizer que o
guardador de rebanhos lê/ouve melhor o vento que o seu interlocutor? O leitor que perscruta
o óbvio e obtuso, o studium e o punctum , o conotado e o denotado vê algo além ou a mais do
que o leitor que faz o contrário disso?
Podemos “ver sem estar a pensar”, podemos pensar sem ver (Pessoa), assim como
podemos pensar vendo, “pensar por imagens” (Calvino) ou ainda podemos pensar com a
imagem, a “fotografia é subversiva quando pensativa” (Barthes) e também podemos ver
atravessando as imagens, como exemplificam Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003)
abaixo:
Como essa poesia intersemiótica demonstra podemos ver/ler através de uma lente de
aumento ou sem ela, podemos ter uma perspectiva com ponto focal no micro e/ou no macro,
podemos ler o livro-mundo observando as notas de rodapé ou não. O que é interessante é
exatamente podermos ter possibilidades, termos diversidades ao enfocarmos a leitura. Como
salientam Guattari e Rolnik (1996):
devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências
sociais e psicológicas, ou no campo de trabalho social todos aqueles, enfim, cuja
profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa
encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa
reprodução de modelos que não nos permite criar saídas para os processos de
singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses
processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr
para funcionar. Isso quer dizer que não objetividade científica alguma nesse
campo, nem uma suposta neutralidade na relação (p. 29).
Resta-nos questionar ao trabalharmos com os processos de leitura e cognição por qual
posicionamento vamos optar, se vamos reproduzir modelos que reduzem e minimizam os
processos de singularização ou se vamos optar pela polissemia e maximização dos mesmos.
Vamos optar pela criatividade, pela incerteza , pela semântica aberta e pela múltipla leitura ou
pela tirania de sentido, pela certeza, pela monotonia, pelo tédio e pela massificação de olhar,
de ser e de interpretar.
Não podemos esquecer que Edgar Morin (2002), ao escrever sua obra Os sete saberes,
elenca sete buracos negros entre os quais se encontra a incerteza. Incerteza essa que deve ser
aprendida e ensinada: “A aquisição da incerteza é uma das maiores conquistas da consciência,
porque a aventura humana, desde seu começo, sempre foi desconhecida” (p.97). Esse mesmo
autor salienta a importância dos professores como estimuladores de reformas, são eles que
disseminam os processos do saber junto com seus educandos. Contudo, como salientado por
Guattari e Rolnik (1996), todos que se interessam pelo discurso do outro, sejam educadores,
psicólogos, sociólogos ou cidadãos são responsáveis por sua escolha de posicionamento
perante o mundo e o outro, a neutralidade é uma falácia, portanto saber ou não saber lidar com
o princípio da incerteza é relevante. Para nos direcionarmos ao conhecimento faz-se
necessário “uma navegação que se efetiva num oceano de incerteza salpicado de arquipélagos
de certeza” (Morin, 2002, p. 61).
Ainda para esse mesmo autor o conhecimento não se restringe às ciências, o
conhecimento da condição humana passa pelo romance e pela poesia entre outras instâncias.
Ele questiona qual seria a superioridade ou inferioridade de um romance sobre as ciências
sociais, sendo que: “O romance fala da condição humana, daquilo que as ciências sociais não
conseguem enxergar; fala de nossas vidas, paixões, emoções, sofrimentos, alegrias, das
relações com o outro e com a História’ (p.89). Quanto à poesia, que é o nosso corpus, ele diz
que ela é: “uma iniciação à qualidade poética da vida, [...] A prosa nos ajuda a sobreviver,
mas a poesia é a própria vida” (p.89). Como salientamos em Fernando Pessoa no seu
“Guardador de rebanhos” a vida, a poesia ou o vento podem dizer diversas coisas, o vento é
uma certeza, parafraseando Morin o vento é o arquipélago de certeza, o que ele diz ou conta é
um oceano de incertezas.
Em Octavio Paz (1982) o poema é a linguagem erguida, o poema revela o que somos e
nos convida a ser o que somos. A poesia e nós mesmos somos múltiplos, errantes,
polissêmicos, indefinidos e indefiníveis, vamos para trás, para frente, para o lado e depois o
outro lado, somos verso e reverso, construção e desconstrução. O poema e a fotografia
poética são verso e reverso de nós mesmos, um dia elas comunicam algo, em outro dia, outra
coisa diferente. Em certos momentos é um studium ou punctum que nos engolfam, podem ser
conotados ou denotados em outros momentos, um óbvio ou um obtuso, depois tudo isso pode
se reverter. Tanto poema como fotografia são vivas se olharmos por esse prisma, pois apesar
de serem sempre as mesmas não são; elas se transformam. O nosso olhar sobre elas tem essa
capacidade de metamorfoseá-las. Contudo para que essa metamorfose ocorra é necessário que
algo ocorra em nós, que algo mude na nossa forma e ponto de observação. Volvemos para
Larrosa na nossa citação do capítulo 1: “ o viver a vida supõe estar aberto ao que nos passa. E
se nada nos passa, a vida não é vida”. Se a vida não é vivida, não é experimentada, não nos
afetamos e nem nos sensibilizamos, não se constrói formas e possibilidades de modificarmos
o nosso olhar, de transformarmos o que vimos e observamos, acabamos condenados ao
marasmo, à apatia e à indiferença, ao não viver e ao não-ler o livro-mundo em toda a sua
multiplicidade.
3 CERZINDO DISPOSITIVOS DE EXPRESSÃO
Iniciamos nossa última parte relembrando ao leitor que não teremos subtítulos
conclusivos, mas que iremos pareando a leitura de poema com fotografia durante todo esse
capítulo final. Partimos nesta dissertação do pressuposto de que ler é experienciar e que a
experiência está ligada ao sentir. Além disso, sustentamos que a leitura não se resume apenas
a livros, textos e imagens, mas sim ao mundo como um todo. Como nos livros, no mundo
encontramos as notas de rodapé, que podem ser lidas ou deixadas de lado. Tanto os livros
podem ser lidos com todas as suas notas, referências e gráficos como o mundo, dependendo
do tipo de leitor, do seu desejo e do que suporta interpretar. Às vezes, principalmente em
grandes cidades, passamos por informações, pessoas e imagens e escolhemos não lê-las, não
darmos atenção ao que vemos porque não suportaríamos, naquele momento, aquela
experiência, aquele sentimento e muito menos ter que trazê-lo para uma autonarrativa. É
como se as situações com que nos deparamos formassem links, canais de comunicação com os
nossos textos e histórias pessoais. A hipertextualidade, então, não ocorre apenas nos textos ou
na internet, mas também na vida.
3.1 Escavando palavras e imagens
Apresentamos no capítulo um o poema de Arnaldo Antunes contra/ a car / ne do pano
e subseqüentemente a fotografia de Marcia Xavier que para ser visualizada necessita que
abramos a página como uma espécie de link ou de hipertexto. Para Olmi (2003), Genette
diferencia o hipertexto do hipotexto, sendo o primeiro derivado do segundo. Essa autora
salienta que a hipertextualidade é “qualquer relação que ligue um texto B (hipertexto) a um
texto anterior A (hipotexto), sobre o qual se insere de forma diferente à do comentário” (p.
269). outros exemplos de formação de links na obra de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier,
às vezes a fotografia pode ser o hipotexto; em outras, a palavra funciona como tal. Às vezes,
são as páginas da fotografia que têm escondidas em suas dobraduras o poema, outras vezes,
como no exemplo da contra/car/ne do pano, é o poema que esconde a fotografia. Com isso
estamos depreendendo que além do texto dentro de texto, ou leituras dentro de leituras, as
imagens funcionam como um texto para as palavras e vive-versa, pois como diz Barthes
(2004): “toda imagem é, de certo modo, uma narrativa” (p.39). Questionamos-nos, também,
se a apresentação de um poema como link, nesse caso, uma fotografia que funcionaria como
um hipertexto produziria uma leitura diferente de outros modos de apresentação.
Nossa resposta direciona-se para uma afirmativa. O leitor não vê/lê tudo ao mesmo
tempo, uma parada na leitura, uma tomada de fôlego, o texto não é dado todo de uma vez,
o imaginário está livre, o touro do poema é o touro da nossa imaginação. Ao abrirmos o link,
o hipertexto, a página ao lado, o touro toma forma, peso e medida, como a arena, a chuva, a
lança e inclusive, além de nós, uma platéia que assiste a essa mesma tourada.
Apresentamos abaixo novamente o poema/palavra e a fotografia/poesia em questão, apenas
como forma de facilitar a leitura:
Poderíamos pensar ou sentir uma certa frustração, pois o touro não é o mesmo que
imaginamos, nem a lança, nem a areia ouro brilham tanto como a nossa. Se por um lado
temos a sensação de perder alguma coisa por não encontrarmos exatamente o que
imaginamos, por outro, se abre um leque de novas possibilidades que não havíamos levado
em conta. Na minha imaginação não havia uma platéia tão grande, se é que havia platéia, não
havia três toureadores, nem havia o punctum em vermelho entre os espectadores. O cheiro da
areia molhada também não existia, nem o som da expectativa de um desfecho dado pela
platéia e nem o bramido das ventas do touro era audível. Algo da imaginação pode se perder
com este link, contudo algo se pode ganhar. Podemos incluir ao que imaginamos o que se
encontra na fotografia, somando possibilidades. A idéia da inclusão do imaginado produzido
pela leitura do poema ao visualizado na fotografia e vice-versa possibilitaria à imaginação e à
sensibilidade se deslocarem entre as duas linguagens do poema e da poesia fotográfica.
Após a leitura do todo, o poema (hipotexto) e fotografia (hipertexto) é como se o olhar
e o pensamento fossem de um lado para o outro procurando concatenar as informações
coletadas e sentidas nas duas linguagens, como se tivéssemos que acertar e regular o foco de
visão ou o ângulo de leitura. A tendência a regular esse foco é proveniente da polissemia
dessas linguagens, o poema faz a imaginação ir a muitos lugares bem como a fotografia. O
leitor através da procura de foco cria um ponto de perspectiva, um ponto de observação, um
olhar se estabiliza e uma leitura desse coletivo pode ser feita. Contudo, algum punctum da
foto, ou alguma palavra do poema pode desestabilizar esse dispositivo e o processo da criação
de um novo foco começa. Isso pode se dar sucessivamente, enquanto o leitor tiver desejo de
assim o fazer e enquanto ele permanecer com o livro aberto, mesmo que seja em sua
imaginação. Como salientou Calvino (1999), a leitura permanece enquanto o leitor escavar
entre as palavras e procurar o que se esboça à distância e se estende além da palavra fim. No
nosso caso, além de escavar entre palavras, o leitor escava entre as imagens, objetos e pessoas
que compõem a fotografia.
3.2 Interfaces entre poema e fotografia
Nossa questão inicial era se poema e poesia fotográfica são leituras sinérgicas que se
cruzam ou se são leituras paralelas sem intersecção. Pensamos que possa ser uma coisa e
outra, dependendo dos leitores, contudo ao se apresentarem conjuntamente elas possibilitam a
formação de interfaces entre elas. Encontramos no dicionário Aurélio (2004), entre outras
definições, que interface é um “dispositivo físico ou lógico que faz a adaptação entre dois
sistemas; conjunto de elementos comuns entre duas ou mais áreas de conhecimento; meio que
promove a comunicação ou a interação entre dois ou mais grupos”. Nosso corpus apresenta
tanto imagens fotográficas quanto poemas, apresentando desta forma uma adaptação,
comunicação, conjunção ou interação entre dois sistemas ou duas linguagens. As palavras
compostas de letras (pelo menos em nossa língua) são um sistema de comunicação com seus
códigos específicos. A fotografia, por sua vez, é, também, um sistema de comunicação com
suas especificidades. A interação de ambas, a interface entre elas é corrente no nosso dia-a-dia
em jornais, revistas, panfletos, livros, outdoors e está cada vez mais em expansão. Novos
meios são criados, a palavra participa da imagem e imagem interage com a palavra.
Santaella e Nöth (2001) discorrem sobre o uso da palavra chamando a atenção para a
imagem visual e a escrita, estando elas de um lado da balança devido a toda uma revolução
nos meios de comunicação e computação, e a fala estando do outro lado, que se não fosse pela
televisão e cinema, para a fala restaria a comunicação face a face. Acerca desse assunto os
autores fazem o seguinte comentário:
Disso se pode concluir que o código hegemônico deste século não está nem na
imagem, nem na palavra oral ou escrita, mas nas suas interfaces, sobreposições e
intercursos, ou seja, naquilo que sempre foi do domínio da poesia. [...] De fato é na
poesia que os interstícios da palavra e da imagem visual e sonora sempre foram
levados a níveis de engenhosidade surpreendentes (p. 69).
Como dito acima, a interface da imagem e da palavra é do domínio da poesia isso por
diversas razões como vimos nos capítulos antecedentes, contudo queremos frisar a
importância da imagem poética (imagem mental) e o uso da palavra e letra para formação de
imagens no papel. Esse recurso foi iniciado por Malarmé que acabou impulsionando o
movimento concretista e seus desdobramentos desde a poesia visual, poema processo, poesia
experimental, gestual, até o que denominamos de Poesia Intersemiótica Multi/Intermídia da
Era Pós-Verso
21
. Na era do pós-verso é possível fazer poesia sem palavras, mas como salienta
Khouri (2001) essa poesia é de poucos: poucos poetas conseguem fazê-la e poucos leitores
conseguem assimilá-la. Alargamos a questão da poesia sem palavras, além dos poetas, os
fotógrafos podem fazer poesia, criando-se mais uma interface, pois não temos um limite
definido que indique onde começa o poema e onde começa a fotografia, onde começa o poeta
e onde começa o fotógrafo. O poeta pode fotografar e o fotógrafo pode fazer poesia.
Pierre Lévy (1993) apresenta uma definição de interface que se acopla ao nosso
pensamento e ao nosso corpus:
interface é uma superfície de contato, de tradução, de articulação entre dois espaços,
duas espécies, duas ordens de realidade diferentes: de um código para outro, do
analógico para o digital, do mecânico para o humano...Tudo aquilo que é tradução,
transformação, passagem, é da ordem da interface. [...] Os mais diversos
agenciamentos compósitos podem interfacear, ou seja, articular, transportar, difratar,
interpretar, desviar, transpor, traduzir, trair, amortecer, amplificar, filtrar, conservar,
conduzir, transmitir ou parasitar. [...] O que se passa através da interface? Outras
interfaces. As interfaces são embutidas, dobradas, amarrotadas, deformadas umas
nas outras, umas pelas outras, desviadas de suas finalidades iniciais (p. 181-182).
Se como dito por Lévy, a interface ocorre entre duas realidades, de código para
código, ela ocorre da palavra para a imagem, assim como ocorre entre poeta e fotógrafo e
poema e fotografia. Pensamos que a interface palavra e imagem fotográfica é ampla, não
uma barreira ou demarcação bem definida do que possa ser apenas palavra e apenas imagem
21
Definição vista no segundo capítulo, formulada por Khouri em 2001.
visiva e no nosso caso, no tocante ao poético, ainda mais difícil de defini-la, pois tanto
palavras como imagens fotográficas podem ser poéticas. Na fotografia a poesia é feita de
ângulos, filmes, luz, objeto, pose, trucagem, estetismo entre outras e no poema ela é
construída de palavras, ritmos, sons, figuras de linguagens, metro, estrofes, etc. Na
antiguidade temos a pintura como poesia muda e a poesia como uma pintura falante.
Atualmente não é apenas a pintura que pode ser considerada poesia, mas vários instrumentos
e técnicas que produzem imagens. Podemos supor inclusive que não seja apenas uma
interface entre imagem visual e palavra, mas possam ser várias interfaces dependendo do
olhar do leitor/vedor, como dito por Lévy (1993), cada interface possui em suas dobraduras
outras interfaces.
A forma de olhar ou o ponto de observação é que poderia ser responsável pelos poucos
e raros leitores da Poesia Intersemiótica Multi/Intermídia. Se precisamos nos alfabetizar,
aprender a ler, aprender a ter intimidade com as letras, provavelmente o mesmo ocorra com as
imagens visuais. Contudo, temos nas escolas facilitadores/professores para as letras, palavras,
frases e orações, talvez em relação às imagens visuais seja necessário criarmos mais espaço
para essa linguagem. Aumentando o debate sobre as interfaces entre as linguagens podemos
diminuir a distância entre o que é do domínio da palavra e o que é do domínio das outras
artes. Com essa prática se poderia aumentar e qualificar os poucos e raros leitores desse
campo, tornando esse tipo de poesia intersemiótica próxima e de mais fácil compreensão.
Como vimos em Morin (2002) a incerteza faz parte do saber, esse mesmo autor
discorre sobre a ruptura das disciplinas, da sua superação e transformação que produziriam
novos esquemas cognitivos e novas formas de pensar. No nosso caso pensamos que a
constituição de interfaces entre palavra e imagem, entre poesia e fotografia pode ser entendida
como uma maneira de ruptura entre formas de expressão que talvez sejam vistas isoladas.
Para Morin (2002) as ciências progridem: “ao quebrar o isolamento das disciplinas pela
circulação de conceitos ou esquemas cognitivos, pelas sobreposições e interferências, pela
complexificação de disciplinas em campos policompetentes” (p.45). A poesia é um campo
policompetente por si mesma, como vimos ela clama tanto pelo estudo da Lingüística como
da Literatura, e acrescentamos, a partir do nosso corpus, que ela também clama pelo estudo
das imagens e da imaginação.
Para Pound (1998) a poesia está intimamente ligada ao som, à música, ele comenta:
“A poesia se atrofia quando se afasta muito da música. três espécies de melopéia, a saber,
poesia feita para ser cantada; para ser salmodiada ou entoada; para ser falada” (p. 61). Esse
autor complementa: “Quanto mais velho a gente fica, mas a gente acredita na primeira” (p.
61). Contudo através das interfaces da palavra e da imagem visual, impulsionada pela poesia
intersemiótica, a imagem está tão introjetada na palavra poética que segundo Santaella e Nöth
(2001): “a mera menção do tema palavra e imagem parece conduzir o pensamento
inexoravelmente para a poesia” (p. 71). Antigamente pelo son/sens e atualmente além do
son/sens e da imagem poética temos o acréscimo de uma imagem concreta, visiva, via poesia
intersemiótica multi/intermídia. Temos na origem da palavra poesia, poíesis, a ação de fazer
algo, de produzir e esse produzir pode ser produzir existência. A poesia não nomeia, a poesia
é. A poesia é linguagem, e como nos salienta Perrone-Moisés (2004), para Barthes
transformar o mundo é transformar a linguagem, combater suas escleroses e resistir a seus
acomodamentos. Ao alterarmos as possibilidades da linguagem proporcionamos uma forma
de modificar o pensamento criando novos pontos de observação e perspectiva. A cada novo
ponto de observação o mundo se transforma, sugerindo a importância do nosso
enriquecimento educativo, não para criarmos certezas, mas sim questionamentos que por sua
vez nos possibilitariam a ruptura com o dado, com o isolamento das disciplinas e com a
reprodução de modelos que não possibilitam novos modos de singularização.
Para Barthes (2004) a linguagem também é uma legislação, a língua é seu código e a
ambas é inerente o poder:
Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda a língua é
uma classificação, e toda a classificação é opressiva. [...] Jakobson mostrou que um
idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga
a dizer. [...] Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de
alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com
demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada. (p.12-13)
Vimos que a linguagem é considerada uma faculdade de simbolizar e a língua a sua
forma de realização (Marcushi, 2003). Cada língua possui os seus códigos, as suas
classificações que muito mais nos obrigam a dizer do que permitem expressar, como salientou
Barthes. Na apresentação de duas linguagens, imagem fotográfica e palavra escrita, cada uma
com seus códigos específicos, poderia ser uma tentativa de as linguagens se completarem. Se
a linguagem das palavras não permite dizer tudo o que se gostaria de expressar, a linguagem
fotográfica, talvez, permita a complementação disso e vice-versa.
Em nosso corpus, cada obra apresentou uma ordem de construção diferente para cada
linguagem. Em Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) temos os poemas primeiro, que
posteriormente foram conectados às fotografias, em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003)
o processo foi contrário. Arnaldo Antunes recebia as fotografias de Marcia Xavier e depois
produzia seus poemas e debatiam o encadeamento entre os mesmos. Podemos supor que
dessa forma, em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) o que a fotografia não conseguia
dizer as palavras vinham em sua complementação. Em Suzana Vargas e Antonio Lacerda
(2005) a fotografia veio rematar, auxiliar a palavra. Essa forma de apresentação de poema e
fotografia conectados, em interface, poderia ser uma forma de as linguagens se auxiliarem
para saírem ou pelo menos diminuírem a questão da alienação, da opressão e da sujeição que
comentou Barthes.
A interface como vista por Lévy (1993) possui uma gama variada de verbos e ações,
como: amplificar, filtrar, desviar, trair, etc. que ocorre entre dois espaços, espécies, ordens,
etc. Em Johnson (2001) encontramos uma síntese, a interface é um mediador entre duas partes
tornando uma sensível à outra (p. 17) e para nós é a linguagem escrita sensibilizando a
fotografia e a imagem fotográfica impressionando, afetando a palavra poética. A interface
entre poema e fotografia é exemplificada em nosso corpus, principalmente em Arnaldo
Antunes e Marcia Xavier (2003), pela forma de exposição mais diversificada, links para a
fotografia, links para o poema, páginas com transparências que permitem uma leitura diversa
de cada lado, poesias e fotografias que ocupam mais de uma página e necessitam ser
desdobradas, poemas escritos ao redor das imagens, poemas escritos sobre as imagens e a
própria disposição gráfica das palavras que procuram canais de comunicação entre foto e
poema. Ainda nessa obra as cores na impressão das palavras também colaboram na
construção de interfaces, às vezes brancas, às vezes pretas e ainda cinza-claro, quase
evanescente, como as fotografias que a acompanham. Nota-se dessa maneira, de forma mais
efetiva, tentativas de construção de comunicação entre as duas linguagens.
Pensamos que, além das interfaces entre as duas linguagens diversas e polissêmicas, as
obras ao serem produzidas por dois autores, fotógrafo (a) e escritor (a), constroem mais um
dispositivo para a abertura de curiosidade e desejo para os leitores. Por que dois autores? O
que eles querem dizer? Será a mesma coisa? Serão coisas diversas? O que esta fotografia tem
de relação com este poema? Pergunta importante na obra de Suzana Vargas e Antonio
Lacerda, pois como comentamos Daniela Kfuri é que faz o casamento entre fotografias e
poemas, apesar de não constar como autora da obra podemos tê-la como a autora de uma
primeira interface. Kfuri é quem conecta as duas linguagens e o leitor pode, e talvez deva,
questionar por que ela escolheu colocar a fotografia de uma janela ao lado de uma poesia que
fala em seis touros mortos? Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, por exemplo, o leitor pode
questionar o que sexo tem de relação com escadas? São perguntas, curiosidades e desejos
diversos que podem surgir desse tipo de interface e desse tipo de leitura. Como observa
Calvino (1999):
Ler significa despojar-se de toda a intenção e de todo preconceito para estar pronto a
captar uma voz que se faz ouvir quando menos se espera, uma voz que vem não se
sabe de onde, de algum lugar além do livro, além do autor, além das convenções da
escrita: do não dito, daquilo que o mundo ainda não disse sobre si e ainda não tem as
palavras para dizer (p.243).
Talvez não tenhamos as palavras para dizer, todavia podemos estar procurando através
de interfaces o que a palavra não diz e o que a imagem também não consegue comunicar
sozinha. Italo Calvino (1990) comenta sobre o hiper-romance que seriam romances dentro de
romances e que o hiper-romance é como uma máquina de multiplicar as narrações:
“multiplicidade potencial do narrável” (p. 135). Podemos sugerir que em vez de hiper-
romance, no nosso corpus podemos falar em hiper-poesias onde temos poesias dentro de
poesias independentemente de a linguagem ser escrita ou visiva. Em Arnaldo Antunes e
Marcia Xavier (2003) temos as seguintes poesias
22
:
22
Poesias no plural, porque estamos tomando poema e fotografia como poesia.
coisa em si/ não existe/ tudo tende/ pende/ depende/ o mar que molha/ a ilha molha/ o
continente/ o ar que se/ respira traz/ o que recende
23
coisa em si/ não existe/ tudo é rente/ tangente/ inerente/ pedra/ assemelha/ semente/ sol
nascente:/sol poente/ coisa em si/ não existe
23
Colocamos as palavras do poema novamente, em caso de haver algum problema de visualização, tendo em
vista que as páginas da obra original foram reduzidas.
mesmo que/ aparente/coisa em si/ coisa só/ parida do seu/ próprio pó/ sem sombra/
sobre/ a parede/ sem mar/ gem/ ou afluente/ não existe/ coisa assim
isenta/sem ambiente/ não coração/ sem mente/ paraíso/ sem serpente/ coisa em si/
inexiste/ só existe/ o que se/ sente
Podemos ler página por página, fotografia seguida de poema, podemos ler apenas as
imagens, apenas o poema, podemos voltar e ler novamente em seqüência, são várias as formas
e possibilidades. O poema e a fotografia contêm essa riqueza de não necessitarem de uma
ordem fixa de leitura e ainda contêm a possibilidade de tempo de fruição que fica a encargo
de cada leitor, diferente de narrativas de cinema ou televisão onde o tempo de fruição é de
milésimos de segundo. Tempo esse que não é suficiente para a procura de um punctum ou
studium, de um óbvio ou obtuso, nem de conotado ou denotado, as imagens passam e logo são
substituídas por outras. Como vimos, a poesia é muito diferente da prosa, a poesia é dança,
é arrebatamento, é um fantasma em flor e o tempo de arrebatamento não pode ser medido nem
cronometrado. Um poema ou uma poesia fotográfica podem fazer silêncio no leitor em
segundos, todavia, às vezes, pode levar horas, dias, meses ou anos. Podemos dizer o mesmo
para a interface entre esses dois dispositivos, ela pode surgir instantânea ou delongadamente
ou talvez ela nunca se faça presente.
A interface entre poesia-verbal/ poesia-fotografia enriquece ambas. O olhar do poema
(poesia-verbal) ao se encaminhar para a poesia-fotografia descortina e explode a mesma em
outros significados. A palavra, usando a metáfora de o poema ser uma dança, demarca o ritmo
e o tom. De acordo com Jakobson (1999) e Bosi (2000) o som do poema e a importância da
combinação e seleção das palavras preparam e conduzem o leitor. O olhar do leitor, o seu
anseio para a imagem tem um ponto de perspectiva, possui alguma concretude, alguma
densidade e algum volume. Além disso, a criação da imagem poética, através da palavra, cria,
também, uma expectativa na leitura da fotografia. No exemplo de Arnaldo Antunes e Marcia
Xavier contra/ a car/ ne do pano vimos que no poema um tom de suspense, de espera, de
algo por acontecer e, na imagem fotográfica, na imagem link que se abre, esse tom existe, está
o touro em seu momento derradeiro por acontecer. Apesar desse tom dado pela palavra
direcionando a leitura da imagem, encontramos na fotografia várias outras coisas a serem
descobertas e perscrutadas. O ritmo dado pela palavra pode se modificar na poesia-fotografia,
pode se transformar em outro, adicionar instrumentos, adicionar vozes e/ou retirá-las, existe
uma possibilidade de uma “multiplicidade potencial do narrável”. Como salientamos em
Barthes, o leitor/vedor direciona seu olhar para o que ele considera punctum e studium, o que
pode variar de leitor/vedor para leitor/vedor.
Olmi (2003), ao pesquisar e escrever sobre a intertextualidade e interdiscursividade em
Janet Frame nos traz idéias de alguns autores que colaboram com nosso ponto de vista para a
leitura. Segundo Riffaterre (1979) citado por Olmi (2003): “A intertextualidade é um modo de
percepção do texto, é o mecanismo próprio da leitura literária”
24
(p.265). Como frisamos
para nós lê-se texto assim como se lêem imagens com suas devidas diferenças de códigos,
então, se no texto intertextos, nas imagens podemos depreender o mesmo. A questão é se
nós leitores estamos devidamente cientes da intertextualidade em imagens, se nossa percepção
é educada para esse olhar, para perscrutar as imagens e descobrir os seus segredos, as suas
minúcias, as histórias que ali estão retratadas.
Devemos salientar ainda a possibilidade de encontramos reproduções de modelos de
subjetivação nas imagens evidenciando, assim, a importância da leitura das mesmas. Para
Olmi (2003), em seu entendimento de Roland Barthes, comenta que:
todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis,
sob formas mais ou menos reconhecíveis: os textos da cultura anterior e os da
cultura circundante; todo texto é um tecido novo de citações revolvidas. Passam no
texto, redistribuídos nele, pedaços de códigos, fórmulas, modelos rítmicos,
fragmentos das línguas sociais, porque sempre linguagem antes e ao redor do
texto (p.271).
24
Tradução nossa de: “L’intertexttualité est un mode de perception du texte, c’est le mecanisme prope de la
lectura littéraire”.
Podemos observar com essa citação que a leitura não é um processo simples e nem
ingênuo e que o pensamento, a curiosidade, o desejo e o olhar pela intertextualidade poderiam
nos fazer melhores leitores e sujeitos mais conscientes, pois como vimos em Guattari e Rolnik
(1996) o processo de singularização passa pelo processo de construção de novas formas de
subjetividade que por sua vez dependem de modos de sensibilização. Pensamos que uma
forma de sensibilização possa ser a percepção da intertextualidade dos textos somada à
intertextualidade das imagens. A possibilidade dessa percepção permitiria a existência de
novas formas de sentir e como escreve Arnaldo Antunes (2003) no poema ilustrado acima
coisa em si/ não existe: “só existe o que se sente” (s./p.).
3.3 Costurando incertezas
Nos comentários de Barthes (2004), além do texto, toda a imagem é de certo modo
uma narrativa e a semiologia desse autor não é uma chave ou uma disciplina para um
desvelamento, mas sim um coringa do saber:
a semiologia não é uma chave, ela não permite apreender diretamente o real,
impondo-lhe um transparente geral que o tornaria inteligível; o real, ela busca antes
soerguê-lo, em certos pontos e em certos momentos, ela diz que esses efeitos de
solevamento do real são possíveis sem chave: aliás é precisamente quando a
semiologia quer ser chave que ela não desvenda coisa alguma. [...] Seus objetos de
predileção são os textos do Imaginário: as narrativas, as imagens, os retratos, as
expressões, os idioletos, as paixões, as estruturas que jogam ao mesmo tempo com
uma aparência de verossimilhança e com uma incerteza de verdade (p.39-41).
Se os objetos da semiologia são os textos do imaginário e o poeta é o ser que mergulha
nele nada mais propício que adentramos nesse “coringa do saber” ao estudarmos a poesia. A
poesia é um texto aberto à possibilidade de significações e as imagens fotográficas também.
Acreditamos que tanto a poesia como as imagens visuais, por possuírem essa característica de
abertura à significação, lidam com o principio da incerteza desenvolvido por Morin. E como
visto acima na citação de Barthes (2004) podemos pareá-lo a Morin, Barthes utiliza da
incerteza de verdade para comentar sobre as possibilidades de compreensão e entendimento
na leitura. Tanto imagem fotográfica como poesia possuem fios de significação, fios de
conotação e denotação, fios de óbvios e fios de obtusos.
Como comenta Annita Malufe (2004), ao analisar a poesia de Ana Cristina Cesar:
o texto literário é sempre, enfaticamente construção, e construção de realidade. Ou
seja, ele não é representação de uma realidade outra seja ela do exterior, do
mundo, das coisas, ou mesmo do interior daquele que o escreveu – mas constitui em
si uma realidade. Não modelo e cópia, não representação de um ideal, mas
apresentação de um real inédito, um universo próprio e autônomo do texto (p.31).
Essa idéia de o texto não ser a representação de alguma coisa, de alguma realidade
interior nos é muito grata, pois pensamos da mesma forma, o que proporciona uma liberdade
muito maior ao leitor. O texto é, as coisas que o texto apresenta são e as imagens fotográficas
aqui exemplificadas também são por si mesmas. Não como formular, por mais agradável
que pareça a idéia, um manual de símbolos para a leitura da poesia, pois cada poesia é única,
assim como cada imagem que dela possa surgir e ainda, no nosso caso, encontramos
fotografias que por sua vez também geram associações e significações. Pessanha (1992), ao
formular o prefácio para Horus Brazil em sua obra Dois ensaios entre psicanálise e literatura
salienta a atenção para o olhar raso que, às vezes, recai sobre a psicanálise, e muitas vezes
sobre a poesia também:
Esse uso inadequado e superficial da psicanálise é o mesmo que propicia a feitura de
manuais de interpretação de imagens – geralmente imagens oníricas -, no
desconhecimento de que a imagem é intrinsecamente polissêmica, semanticamente
aberta, possibilitando e até exigindo múltiplas leituras (p. 8).
Como salientamos no primeiro capítulo cada leitor utiliza do seu imaginário para fazer
suas leituras e transgride assim o texto e os códigos supostamente dados, como esses que se
encontram nos dicionários de símbolos, por exemplo. O sonho de um sujeito pertence apenas
a ele e significa apenas a ele, por mais parecido que ele possa ser de um outro sonho de um
outro sujeito. Podemos pensar como os estudiosos de Jean Burgos aqui citados (Joachim,
Mello, Pitta e Turchi) que direções, sentidos de significação dados, mas mesmo esses
podem ser transgredidos. Um delírio ou uma alucinação são definidos assim porque fogem da
“realidade”, o sujeito delirante está significando algo que para quem o observa não existe,
mas apenas para quem o observa, para ele é concreto. Se quisermos fugir ou transgredir essas
direções ou sentidos de significação supostamente existentes estaríamos delirando? Não cabe
à escrita, à fala e à imaginação exatamente criar uma realidade nova, não existente? Barthes
(1988) nos pontua que a leitura dispersa, dissemina, ela não canaliza um sentido ou uma
saída. Este autor comenta:
à lógica da razão (que faz com que esta história seja legível) entremeia-se uma
lógica do símbolo. Essa lógica não é dedutiva, mas associativa: associa ao texto
material (a cada uma das frases) outras idéias, outras imagens, outras significações.
‘O texto, apenas o texto’, dizem-nos, mas, apenas o texto, isso não existe:
imediatamente nesta novela, neste romance, neste poema que estou lendo, um
suplemento de sentido de que nem a gramática nem o dicionário podem dar conta (p.
41-42, grifos do autor).
Em Malufe (2004) encontramos uma idéia muito similiar à de Barthes (1988). Essa
autora pontua que para Ana Cristina Cesar ler é “puxar o significante” (p.37), é fazer
associações diversas, novas e inusitadas, “ler é meio puxar fios, e não decifrar” (p.37). Se
usássemos ou pensássemos que ler é decifrar estaríamos aceitando que na leitura haveria
códigos para serem desvelados e esses códigos teriam uma tradução fechada, simplificada e
reduzida tipo dicionário. Para a poesia o uso apenas semântico da palavra não é o suficiente
para a sua compreensão, se usarmos os exemplos de Jakobson “leite de pato” podemos
procurar os diversos significados e sinônimos para “leite” e para “pato”, mas se não fizermos
algum tipo de associação não conseguimos entender essa expressão. Da mesma forma como
não entenderíamos Novalis, para usarmos um exemplo mais poético: “a pequena flor azul é
vermelha”
25
. Salientamos que para a poesia a questão não é tanto da compreensão dos
significados dados pelas palavras, mas sim sentir, silenciar ou revelar como diria Ana Cristina
Cesar de acordo com Malufe (2004):
Para ela, a linguagem poética não pretendia “dizer algo”, fazer literatura não é
comunicar, não consiste em passar uma informação, transmitir palavras de ordem,
[...] não do modo que nossa fala ou que o jornal comunicam. [...] a poesia revela mas
não comunica (p. 37-38).
A poesia revela, ou de acordo com Paz citado (1982): “O poema nos revela o que
somos e nos convida a ser o que somos” (p.50). Se o poema revela o que somos ele não é uma
representação de algo, pois não podemos representar a nós mesmos, nós somos, não
representamos algo ou alguém. Esse pensamento poderia nos levar para as problemáticas
existenciais, contudo vamos nos restringir ao nosso tema da poesia, afinal o que vem a ser ela:
um meio de expressão do humano, meio de expressão do sensível, potência de sensibilidade, é
uma linguagem do inconsciente, é expressão de ritmo do mundo, é a voz da alma?
Acreditamos que ela pode ser isso tudo e muito mais, pensamos que ela possui múltiplas
possibilidades de interpretação.
Pensando a poesia como linguagem do inconsciente, de acordo com Benmasour
(2005), é possível fazer um paralelo entre Bachelard e Freud:
25
Tradução nossa de: “elle est rouge la petite fleur bleue”.
o inconsciente é um processo de formação e deformação de imagens e, ao mesmo
tempo, o lugar psíquico que é reserva desse processo. [...] É nessa qualidade que o
estudo da poesia permite a exploração do inconsciente, a poesia como inconsciente,
que seria ao mesmo tempo criador e reservatório de imagens (p.464).
Como salientamos no capítulo um, para Bergson (1990) o consciente está para a
percepção assim como o inconsciente para a memória e que ambas, memória e percepção, se
comunicam e retroalimentam o que aproxima Bergson de Freud, pois para Freud através da
livre associação as narrativas contadas buscam seu material tanto na memória inconsciente
quanto na percepção consciente. Tomando-se a leitura como uma autonarrativa, onde sempre
a referenciamos à nossa experiência para significá-la, no ato da leitura estamos na interface do
consciente e inconsciente. Na busca de sentido e significação nosso pensamento ou cognição
desloca-se, movimenta-se entre consciente e inconsciente, ou seja, entre percepção e
memória. Ao nos depararmos com algo novo, por exemplo, a poesia de Arnaldo Antunes e
Marcia Xavier (2003) asa do pé:
asa do pé/ gaso azul/ ado e lumi/ noso mas par/ ado como/ o céu/ re/ feito no/ ar/ rar/
efeito/ do papel
A associação do com Pégaso, pelo menos para mim, não havia ocorrido
anteriormente, menos ainda a possibilidade de o ser uma asa. O é associado com asa e
retratado com uma sublime leveza, o voa, voa como o cavalo Pégaso e talvez voe como a
poesia voe na nossa imaginação. De acordo com Brandão (1997) Pégaso é o símbolo da
inspiração poética (p. 248). Lendo apenas a fotografia podemos, entre outros olhares, ver um
pé um pouco fora de foco, mas com certa beleza, é um pé leve, é um pé flutuante, é um pé que
vagueia, tateia suavemente o ar, uma superfície ou apenas um meio qualquer indefinido, é um
pé que sonda com cautela, com delicadeza o meio que investiga.
Lendo o poema, entre outras possibilidades, podemos inferir que o autor usando de sua
percepção (Bergson) e consciente (Freud) somada à sua memória (Bergson) e ao inconsciente
(Freud), interfaces por si só, elos de uma mesma corrente, cria novas imagens, novas
conotações para o pé, expande e cria um novo reservatório de possibilidades. Do seu
reservatório particular ele transpõe essa associação para o reservatório dos leitores, formando
e deformando o imaginário desses, enriquecendo-os com associações inusitadas. Nessa
transposição, não é apenas uma questão de formar, deformar e criar imagens, mas sim do que
a imaginação é capaz de trazer consigo, o que é inerente a ela, como por exemplo, a
percepção, as sensações, os sentimentos, a criatividade e a potencialidade de vida. Para viver
precisamos estar abertos ao que nos circunda e constitui, e a imaginação é uma instância
muito importante, ela traz o novo, o inédito, o surpreendente e inusitado consigo. A poesia
tem como matéria prima a imaginação, como vimos em diversos autores que a estudam desde
Bachelard, Paz, Burgos, entre outros. Além disso, a linguagem poética é única e especial, pois
além de beber no Imaginário, ela é direta e particular, pois só ela diz o que ela quer dizer, não
pode ser substituída por discursos indiretos nem explicações.
Frisamos ainda que, inicialmente, é possível utilizarmos a diferenciação dada por Paz
(1982) para poesia e poema onde a poesia não são apenas palavras, letras, expressão verbal,
isso se referiria mais ao poema, contudo como vimos na definição de poesia intersemiótica
está muito difícil falar ou separar o que é poema e o que é poesia. As imagens visuais, figuras,
fotografias, programas de computadores, desenhos e inclusive o áudio estão imbricados no
fazer poético. Mallarmé utilizava as letras para fazer imagens e quebrar as linhas retas, o
mesmo encontramos em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003), como no exemplo acima,
asa do, onde a distribuição das letras do poema seguem o desenho doao lado, imitando
seu formato, um deslocamento para a esquerda sugerindo o calcanhar, talvez como forma
de assinalar e possibilitar de maneira mais concreta a interface entre essa duas linguagens.
Observamos, contudo, que ao mesmo tempo em que temos duas linguagens, não as
temos. Podemos considerar as palavras uma linguagem, a fotografia uma outra linguagem,
diferenciação essa dada pela utilização de códigos diversos. No entanto, apesar das
especificidades de cada uma delas, são duas linguagens similares quando as pareamos ao que
gostariam de expressar, pois ambas, no nosso corpus, tem o poético como foco central.
Ambas direcionam-se para a expressão das sensações, dos afetos, do particular e único, do
sensível, do íntimo, da imaginação e nos revelam e nos convidam a ser o que somos.
3.4 Considerações sobre poemas e fotografias
A questão principal deste trabalho era se os usos de imagens fotográficas junto aos
poemas e de poemas junto às imagens fotográficas poderiam ampliar ou reduzir a
compreensão de umas e de outras. Pensamos que essa é uma questão bastante ampla e de
difícil resposta. Com o investigado até o momento, dentro da possibilidade de uma
dissertação, pensamos que podemos dizer que a fotografia interage com a poesia, mas a
maneira de interação vai depender de caso a caso, de cada fotografia e de cada poema com
suas peculiaridades e singularidades. No nosso corpus, nas duas obras notamos que o uso da
imagem e da palavra foram diferentes, como dissemos a intersemiose nos parece ser utilizada
de maneira mais contundente em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) e menos
concretamente em Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005).
Pensamos que o fato de o poema estar pronto no caso de Suzana Vargas e Antonio
Lacerda( 2005), diminuiu a possibilidade de a palavra se conectar, fazer uma interface mais
abrangente com as imagens. Como vimos em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) as
palavras estão sobre as imagens, ao redor delas, escondidas em forma de link e ainda a
possibilidade de as palavras do poema trazerem algo da imagem fotográfica para o papel,
como a construção do poema seguindo os contornos da figura retratada. Consideramos que na
obra de Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005) a intersemiose não se faça presente, as
imagens visuais possuem uma função mais ilustrativa, no sentido de imagens que
acompanham o texto, enriquecem-no, mas não necessariamente se fundem a ele, ambas as
linguagens apesar de se apresentarem juntas possuem existência e sentido isoladamente.
Em Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) a intersemiose está muito mais presente
como no exemplo apresentado de a “flor” “de” “foco”
26
, entre outros, que separadas as
linguagens não significam, como apresentamos no capítulo dois.
As palavras sem a imagem visual não formariam um poema, com a imagem ela se
transforma em poesia intersemiótica. O leitor é convidado pela palavra poética a perscrutar a
imagem fotográfica e a foto também nos inquire, afinal que rosto, que pescoço é esse, o que a
mulher, se for uma mulher, estaria pensando, estaria sentindo.
Comentamos anteriormente que a palavra no poema pode marcar um ritmo, um
espaço, um tom e desta forma direcionar o olhar que vai perscrutar a fotografia. Utilizando
dos exemplos ilustrados de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, ao fazermos o caminho da
poesia-fotografia para a poesia-verbal pensamos que a poesia-fotografia não necessariamente
demarca algum tom, ritmo ou espaço da dança poética. Contudo como observa Strelczenia
(2005): “Quem olha uma fotografia se obrigado a valorizar o salto entre o momento em
que o objeto posou e o presente em que se contempla a imagem” (p.1) Ou seja, algum
direcionamento de olhar e de imaginação existe, mas de forma mais sutil e subjetiva, pois a
26
Repetimos novamente as imagens para comodidade do leitor.
fotografia por si só é uma interface entre presente e passado, ela é um registro de uma fatia de
tempo, olhar/ler uma fotografia não é a mesma coisa que mirar uma outra imagem visiva
qualquer. Devemos somar a isso que no ato de leitura da fotografia existe uma diferença entre
uma imagem pública e uma imagem privada. De acordo com Strelczenia (2005):
A fotografia pública oferece a quem a olha uma informação que é alheia à
experiência; apresenta uma cena separada de seu contexto; em geral sem vínculo
com o significado original do acontecimento. O instante prevalece sobre a
continuidade. Em troca, as fotografias privadas, especialmente as que integram o
álbum familiar, são apreciadas e lidas em um contexto que é a continuação daquele
de onde a câmara as tirou. Apesar do corte, da violência que o ato fotográfico
implica, essas imagens permanecem unidas ao significado do que foram separadas.
A continuidade prevalece sobre o instante (p.2).
Apesar dessas diferenças, dessa valorização do tempo, e da fotografia pública e
privada, podemos depreender que se as imagens são equivalentes a leitura das palavras
(MANGUEL,1997, p.117), citado no capítulo um, e que se transformamos a leitura em
autonarrativa como observamos em Larrosa (2003), também citado no capítulo um,
procuramos dar a essa experiência alheia ( fotografia pública que é o caso do nosso corpus)
um significado pessoal que nos concerne. Apesar de pública, onde prevalece o instante sobre
a continuidade, tendo em vista que o que é retratado é alheio a nós, podemos fazer o uso
dessas imagens para marcar a nossa continuidade. Assim como um livro se transforma cada
vez que o relemos, com as imagens o mesmo também ocorre, o que era óbvio pode passar a
ser obtuso, o que era studium pode passar a ser punctum. O ponto de referência em vez do
objeto retratado somos nós perante o objeto. A continuidade não é dada pelo objeto, mas por
nós, cada vez que o olhamos podemos perceber que não somos os mesmos. O público se
transforma em nosso privado e assim o instantâneo pode ser um contínuo.
Salientamos também nesse trabalho que a leitura é aprimoramento de sensibilidade e
ela está ligada à capacidade de conhecer, de ter sensações, ter experiências e sentir emoções.
Dentre as emoções Virgínia Kastrup (1999) salienta a definição de Bergson, para o qual a
emoção seria a qualidade de contato imediato com algo exterior, contato este que não é
representacional, mas sim imediato e criador, esse tipo de emoção criadora persistiria em nós
colocando-nos um problema e demandando uma solução. Ao demandar uma resposta
podemos dizer que a emoção é inerente ao pensamento ou nas palavras de Kastrup (1999): “A
emoção força a pensar, obriga a sair de si, dos compromissos da vida prática e a vagar nela”
(p. 103). Podemos perceber uma similitude ou pareamento desse conceito de emoção com o
punctum da fotografia que mortifica e fere, ele captura o leitor, ou seja, o punctum tange esse
conceito de emoção que como tal nos leva a pensar, portanto é inerente à cognição, palavra e
imagem vista desse ângulo nos proporcionam conhecimento.
A poesia de Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) coisa em si/ não existe vem
como uma forma de demonstrar esse olhar da emoção inerente ao pensamento. Uma asa de
borboleta não existe sem o seu par e sem o resto do seu corpo, não coração / sem mente/
paraíso/ sem serpente. As emoções sem o pensar podem correr o risco de serem apenas
sensações, podemos ter a sensação de frio, de calor, de medo, a sensação de estarmos
apaixonados ou vivos, mas as sensações vem e vão, elas passam, como o frio passa, como o
calor passa. A sensação precisa nos mover, nos deslocar, nos transgredir, nos inquietar, nos
fazer pensar para que se transforme em emoção e então ter existência e cumprir o que nos
dizem os poetas acima existe/ o que se/ sente. Na linguagem da fotografia, a narrativa de
imagens, se completa quando todas as partes do corpo borboleta/homem/mulher se
apresentam conjuntamente, formando uma única imagem. A emoção leva-nos a pensar, a
questionar e a conhecer e isso tudo num movimento circundante e complementar: o mar que
molha/ a ilha molha/ o continente [...] não existe/ coisa assim/ isenta/ sem ambiente/ não
coração/ sem mente(s./ p.). O emocionar não existe sem o pensar, o sentir não existe sem o
corpo, ler o poético não existe sem a imaginação, o presente não existe sem o passado, a
palavra não existe sem seu som, a forma não existe sem o conteúdo, o homem não existe sem
a poesia, tudo é rente tangente inerente. E isso vale para o nosso corpus, alguns poemas até
podem ter existência sem as fotografias e vice-versa, como as partes do corpo
borboleta/homem/mulher de Antunes e Xavier, contudo não é a mesma existência que elas
(poema e fotografia) possuem estando em interface e intersemiose.
Utilizamos no capítulo dois um poema de Fernando Pessoa (s./d.) “O guardador de
rebanhos” no qual para o “guardador de rebanhos” o vento diz que passa e que passará e
para o seu “interlocutor”, o vento diz muitas outras coisas, fala de memórias e saudades e até
de coisas que ainda não foram. O poema e/ou a poesia-fotografia podem ser como o vento do
“guardador de rebanhos”, o poema vem dizer o que precisa ser dito por ele e a fotografia faz o
mesmo, contudo o que comunicam, expressam e exploram é muita coisa por si só, como
vimos nos capítulos referentes a cada uma dessas linguagens, pois ambas são polissêmicas.
Ao serem apresentadas de uma forma conjunta, lado a lado, poema sobre fotografia, poema ao
redor da fotografia, fotografia posterior e/ou antecedentemente ao poema, fotografia em forma
de link ou hipotexto do hipertexto poema, poema em forma de link ou hipotexto do hipertexto
da imagem fotográfica, seja qual for a forma de apresentação que enfocarmos o poema e/ou a
poesia-fotografia vão dizer ou comunicar algo a mais do que isolados. Nessas formas de
apresentação elas seriam como o “interlocutor” do “guardador de rebanhos” onde o vento diz
muitas outras coisas além de que ele passa e passará. As possibilidades de leituras diversas
propiciada pelas diferentes formas de apresentação e pela própria intersemiose multiplicam os
pontos de observação do leitor e podem multiplicar os sentidos e as emoções do que é
apresentado.
leitores que têm seu olhar mais direcionado para as palavras e outros podem
preferir as imagens; no nosso corpus temos apresentação de ambos, palavras e imagens, e de
formas variadas o que oferece ao leitor uma possibilidade de enriquecer ou pelo menos
questionar as suas preferências e leituras. Como comenta Maria Helena Martins (2001) as
interações entre linguagem verbal e visual iluminam uma a outra:
A linguagem verbal e a visual travam diálogos intensos e imemoráveis entre si e
provocam outros tantos entre seus autores e leitores. Mas, principalmente em nosso
tempo, essa interação adquire importância fundamental, pelas possibilidades cada
vez maiores de diferentes linguagens iluminarem-se mutuamente, ampliando seus
meios expressivos e suas leituras (p. 95).
As interações ou interfaces entre as linguagens estão ao nosso redor e como salientou
Martins (2001) cada vez mais em expansão, resta-nos saber se os leitores e suas formas de ler
estão acompanhando esse ritmo de avanço e de interface. Ainda muito a ser indagado e
investigado sobre os diálogos e comunicações entre as linguagens. Podemos estar numa era
dita de excesso de imagens e informações, mas pode ser que nós não as estejamos sabendo
ler. Talvez estejamos em um ponto de observação, com um tipo de olhar, de leitura, que
não permite um foco claro sobre os textos, podemos estar querendo ler um texto usando os
códigos errados para aquela língua. É como se quiséssemos ler poema e fotografia
isoladamente e pensamos que não é para isso que essas linguagens se cruzaram, elas estão no
mesmo suporte por alguma razão, estão querendo comunicar, expressar alguma coisa que
sozinhas não seriam capazes.
Talvez estejamos ainda dando os primeiros passos nas interações de linguagens, e às
vezes, como nos exemplos de Suzana Vargas e Antonio Lacerda (2005), as imagens ainda não
tenham um papel bem definido, não construam interfaces e nem poesias intersemióticas. Em
Arnaldo Antunes e Marcia Xavier (2003) a comunicação e interação das diferentes linguagens
se apresentam de maneira mais ampla e concreta. Como Khouri (2001) comentou a poesia
intersemiótica é para poucos e talvez ao estudarmos mais amplamente as possibilidades das
interfaces e as compreendermos melhor, possamos nos transformar em multiplicadores para
educação da leitura/olhar e transformarmos esse tipo de poesia na poesia de muitos e de todos.
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