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Marília Forgearini Nunes
A LEITURA DE NARRATIVAS INFANTIS VERBO-VISUAIS: INTERAÇÃO DO
LEITOR COM A PALAVRA E A VISUALIDADE POR MEIO DA MEDIAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras – Mestrado, Área de Concentração em Leitura e
Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Flávia Brocchetto Ramos
Santa Cruz do Sul, abril de 2007.
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Nunes, Marília Forgearini
A leitura de narrativas infantis verbo-visuais: interação do
leitor com a palavra e a visualidade por meio da mediação. Marília
Forgearini Nunes. Santa Cruz do Sul, [s.n.], 2007.
281 f.
Orientador: Flávia Brochetto Ramos
Dissertação (mestrado) Universidade de Santa Cruz do
Sul, Departamento de Letras.
1. Leitura. 2. Literatura. 3. Cognição. 4. Mediação. I.
Ramos, Flávia Brocchetto. II. Universidade de Santa Cruz do Sul.
Departamento de Letras. III. Título.
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COMISSÃO EXAMINADORA
Profª. Drª. Flávia Brocchetto Ramos – Orientadora
Profª. Drª. Eunice Piazza Gai
Profª. Drª. Analice Dutra Pillar
DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado às pessoas da minha família que mediaram o meu caminho
para construir esse trabalho.
- Meu pai, Neuro, que mesmo em silêncio esteve sempre por perto, dando o apoio necessário
com o seu olhar calado de afeto, preocupação e apoio incondicional.
- Minha mãe, Rosa, nem tão silenciosa, mas sempre aberta a me escutar, a me apoiar sendo a
primeira e mais importante platéia da defesa desse trabalho que agora é realidade.
- Minha irmã, Mônica, sempre presente com seu olhar orgulhoso diante das minhas
conquistas.
- Meu irmão, Mauro, um incentivador e divulgador das minhas realizações.
- Minha cunhada, Sílvia, um exemplo de calma e serenidade que nos momentos de angústia
tentei imitar.
- Minha tia, Neida, apoio intelectual e emocional durante a realização desse trabalho, um
exemplo de que o conhecimento e a docência não têm idade.
AGRADECIMENTOS:
À Prof. Drª. Flávia Brocchetto Ramos, minha orientadora que acreditou em mim e confiou na
minha capacidade de fazer um bom trabalho. Mais do que minha orientadora a Flávia é um
exemplo de profissional ao qual um dia almejo aproximar-me de ser.
Ao Programa de Mestrado em Letras da UNISC e seus docentes que com excelência abriram
as portas e braços me acolhendo para que eu pudesse realizar esse curso.
À Escola Estadual de Ensino Fundamental Bairro Carvalho que permitiu a realização desse
estudo junto a sua turma de 4ª série.
À Profª. Andréa Carvalho Ribeiro pela colaboração e aos seus alunos que constituíram o
grupo de pesquisa e que acabaram por se tornarem meus mediadores.
Aos meus colegas do Mestrado, pela parceria nas alegrias, nas angústias e nas realizações
durante o tempo do curso.
À minha colega, amiga e companheira Fabiana Inês Beber, a tua amizade é um orgulho para
mim.
Às minhas “chefes”, colegas e, principalmente, amigas Patrícia dos Santos Moysés, Paula
Cristina Langbecker e Maristela Bartmann pela confiança, paciência e auxílio demonstrados
durante o tempo de realização do curso.
Às minhas eternas amigas do tempo de escola, companheiras que acompanharam a minha
caminhada.
À minha família, tios, tias, primos e primas, a nossa união e o orgulho que sentimos uns pelos
outros foi importante para chegar ao fim desse trabalho.
Texto de Fabiana Tasca Perin e ilustração de Joana Puglia, no livro Os bolsos do mundo, EDUNISC, 2003, p.
28.
RESUMO
No contexto escolar, a leitura do código visual é deixada em segundo plano em relação à
leitura do código verbal, sinalizando que a instrumentalização de leitores mirins, de modo que
eles sejam capazes de interagir com esse dois códigos simultaneamente na leitura de
narrativas infantis verbo-visuais, se faz necessária. Dessa forma, esse estudo se propõe a
investigar e analisar a possibilidade de que uma leitura mediada por um leitor adulto, possa
influenciar positivamente os leitores mirins a se tornarem mais competentes na leitura da
palavra e da imagem, que constituem textos narrativos infantis. Para isso realizaram-se nove
encontros de leitura mediada organizados a partir da teoria da experiência de aprendizagem
mediada proposta por Reuven Feuerstein. Nesses nove encontros os sujeitos tiveram a
oportunidade de ler cinco narrativas infantis verbo-visuais recebendo a mediação necessária
para desenvolverem a sua competência leitora tanto da palavra quanto da visualidade.
Participaram do grupo de leitura mediada 10 sujeitos alunos de série do Ensino
Fundamental de uma escola pertencente à rede pública estadual localizada na cidade de
Cachoeira do Sul (RS). A análise dos encontros de leitura mediada trouxe contribuições
importantes ao papel do mediador em relação a atitudes positivas e negativas. Além disso,
demonstrou tanto o desenvolvimento dos sujeitos mediados no que diz respeito ao modo com
que passaram a interagir com o texto verbal e com o texto visual em decorrência do processo
de leitura mediada vivenciada durante os encontros propostos nesse estudo, quanto aspectos,
nos quais, o processo de mediação deveria ter continuidade para que esses sujeitos
alcançassem uma maior competência.
PALAVRAS-CHAVE: LEITURA – MEDIAÇÃO – COMPETÊNCIA LEITORA
ABSTRACT
In the school environment, reading of visual code is usually not considered as important as the
verbal code in a text configuration and comprehension. It is something necessary to help
children in a way they can become able to interact with these two codes simultaneously when
reading narratives in picture books. Since that, this study aims to investigate and analyze the
chance that an adult mediating the reading process can produce a positive effect on young
readers in a way they become more efficient on reading the words and images of picture
books. In order to explore that, nine meetings of mediated reading were set out based on the
theory of mediated learning experience proposed by Reuven Feuerstein. During this nine
meetings, children had the opportunity of reading five picture books undergoing the necessary
mediation to develop their reading proficiency on the verbal and the visual elements that
compose the text. Ten 4
th
grade students from a public and state school in Cachoeira do Sul
(RS) took part of the mediated reading group. The analyses of the meetings brought some
important contributions to the mediator role in relation to his/her positive and negative
attitudes. Besides that, it has demonstrated the development of the mediated subjects
concerning their way of interacting with the verbal and visual text in a picture book as a result
of the mediated reading experienced by them during the meetings set out in this study, and
has also pointed out the necessity of carrying on the mediated process in order to improve
even more the children proficiency in some other abilities in the reading process.
KEY-WORDS: READING – MEDIATION – READING PROFICIENCY
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………...... 11
1 O PROCESSO DE LEITURA…………………………………………………………. 15
1.1. CONFIGURANDO O CENÁRIO ………………………………………………….. 16
1.2 LEITOR: protagonista no ato da leitura…………………………………………….... 20
1.2.1 Breve histórico do leitor: do leitor em geral ao leitor mirim..................................... 20
1.2.2 Leitor mirim: um novo público leitor origina uma nova literatura............................ 24
1.2.3 Leitor mirim: uma definição baseada em Vigotski, Piaget e
Wallon................................................................................................................................. 27
1.2.3.1 Leitor mirim: um ser cognitivo, sob a ótica do sócio-interacionismo de
Vigotski............................................................................................................................... 27
1.2.3.2 Leitor mirim: um leitor em construção, sob a ótica da teoria piagetiana................ 32
1.2.3.3 Leitor mirim: um ser cognitivo e afetivo, sob a ótica da psicogênese
walloniana........................................................................................................................... 36
1.3 TEXTO: palco da leitura............................................................................................... 38
1.3.1 Texto palavra.............................................................................................................. 40
1.3.2 Texto imagem............................................................................................................. 41
1.3.3 Texto: interação da palavra com a imagem................................................................ 42
2 NARRATIVAS VERBO VISUAIS: possibilidades semânticas..................................... 44
2.1 Interação da palavra e da visualidade na construção da
narrativa............................................................................................................................... 46
2.1.1 O Beijo: a estrutura narrativa na interação da palavra com a imagem....................... 48
2.1.1.1 A palavra: possibilidades semânticas...................................................................... 52
2.1.1.2 A visualidade: possibilidades semânticas............................................................... 53
2.1.2 Ah, cambaxirra se eu pudesse...: a estrutura narrativa na interação da palavra com
a visualidade........................................................................................................................ 55
2.1.2.1 A palavra: possibilidades semânticas...................................................................... 59
2.1.2.2 A visualidade: possibilidades semânticas............................................................... 60
2.1.3 Indo não sei aonde buscar não sei o que: a estrutura narrativa na interação da
palavra com a visualidade................................................................................................... 63
2.1.3.1 A palavra: possibilidades semânticas...................................................................... 66
2.1.3.2 A visualidade: possibilidades semânticas............................................................... 67
2.1.4 Raposa: a estrutura narrativa na interação da palavra com a visualidade.................. 72
2.1.4.1 A palavra: possibilidades semânticas...................................................................... 76
2.1.4.2 A visualidade: possibilidades semânticas............................................................... 79
2.1.5 Menino chuva na rua do sol: a estrutura narrativa na interação da palavra com a
visualidade........................................................................................................................... 87
2.1.5.1 A palavra: possibilidades semânticas...................................................................... 89
2.1.5.2 A visualidade: possibilidades semânticas............................................................... 91
3 MEDIAÇÃO E COMPETÊNCIA LEITORA................................................................. 98
3.1 Mediação....................................................................................................................... 99
3.1.1 Mediação: experiência de aprendizagem................................................................... 100
3.1.2 Mediação do texto...................................................................................................... 108
3.2 Mediação no processo de leitura: desenvolvimento da competência leitora................ 111
4 PROCESSO MEDIADO DE LEITURA: da teoria à prática........................................... 115
4.1 População e amostra: metodologia de seleção.............................................................. 117
4.2 Encontro de leitura mediada: procedimentos................................................................ 119
4.3 Análise dos dados.......................................................................................................... 121
4.4 Encontro de leitura mediada: acertos e falhas na mediação.......................................... 123
4.4.1 O beijo: leitura mediada do código verbal................................................................. 123
4.4.1.1 Caracterização do protagonista e dos demais personagens..................................... 124
4.4.1.2 Caracterização do narrador..................................................................................... 130
4.4.1.3 Definição do enredo................................................................................................ 131
4.4.1.4 Definição do tempo transcorrido na história........................................................... 132
4.4.1.5 Definição do espaço narrativo................................................................................. 136
4.4.2 O beijo: leitura mediada do código verbal associado ao visual................................. 137
4.4.2.1 Caracterização do personagem principal e demais personagens............................. 139
4.4.2.2 Caracterização do espaço narrativo......................................................................... 142
4.4.2.3 Caracterização do tempo narrativo.......................................................................... 145
4.4.2.4 Algumas considerações: uma avaliação do caminho traçado................................. 146
4.4.3 Ah, cambaxirra se eu pudesse...: leitura mediada do código verbal.......................... 147
4.4.3.1 Caracterização do protagonista e demais personagens........................................... 149
4.4.3.2 Definição do espaço narrativo................................................................................. 152
4.4.4 Ah, cambaxirra se eu pudesse...: leitura mediada da palavra associada à
visualidade........................................................................................................................... 156
4.4.4.1 Capa: convite para conhecer os personagens e o espaço narrativo......................... 158
4.4.4.2 Algumas considerações: um caminho cada vez mais demarcado........................... 172
4.4.5 Indo não sei aonde buscar não sei o quê: leitura mediada da palavra....................... 173
4.4.5.1 Caracterização do personagem protagonista e dos demais personagens................ 174
4.4.5.2 Tentativa de delimitar o impreciso espaço narrativo.............................................. 177
4.4.5.3 Encaixando as peças do enredo em busca de definição.......................................... 179
4.4.6 Indo não sei aonde buscar não sei o quê: leitura mediada da palavra associada à
visualidade........................................................................................................................... 182
4.4.6.1 Leitura da palavra e da imagem na construção da narrativa................................... 183
4.4.6.2 Algumas considerações: ampliando e modificando o caminho.............................. 193
4.4.7 Raposa: leitura mediada da palavra........................................................................... 194
4.4.7.1 Caracterização do enredo........................................................................................ 195
4.4.7.2 Caracterização dos personagens e de suas relações................................................ 198
4.4.7.3 Definição do tempo e do espaço narrativos............................................................ 202
4.4.8 Raposa: leitura mediada da palavra associada à visualidade..................................... 203
4.4.8.1 Leitura da visualidade em interação com a palavra................................................ 204
4.4.8.2 Leitura da palavra em interação com a visualidade................................................ 212
4.4.8.3 Algumas considerações: um caminho que começa a ser percorrido de maneira
independente....................................................................................................................... 217
4.4.9 Menino chuva na rua do sol: leitura mediada da palavra em interação com o
visualidade........................................................................................................................... 217
4.4.9.1 Leitura mediada de uma narrativa verbo-visual: desvendando a palavra e a
visualidade........................................................................................................................... 220
4.4.9.2 Algumas considerações: um caminho construído, mas não finalizado................... 227
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 229
REFERÊNCIAS.................................................................................................................. 238
ANEXOS (não disponíveis digitalmente)
INTRODUÇÃO
É possível modificar o modo com que uma criança lê, influenciando-a a perceber os
elementos e os códigos envolvidos na construção desse texto e, principalmente, a utilizá-los
na compreensão do que está sendo lido?
Essa foi a principal indagação que norteou essa pesquisa. Além de buscar resposta
para esse questionamento, este estudo também busca contribuir para a ampliação do que se
entende como o processo de aprendizagem da leitura, ao apresentá-lo sob a perspectiva da
mediação proposta por Reuven Feuerstein em sua teoria da experiência de aprendizagem
mediada (EAM).
A competência em leitura não é algo que se adquire apenas a partir da aprendizagem
da decodificação. Decodificar é o primeiro passo para ler, o leitor competente decodifica o
texto, mas para que possa compreendê-lo de modo crítico. A vivência do processo de leitura,
transformada em experiência de aprendizagem mediada, na perspectiva desse estudo, entende
que um leitor mirim não se torna competente apenas porque é capaz de decodificar, mas,
porque é capaz de interagir com o texto, com os códigos que constroem esse texto,
vivenciando o ato da leitura de maneira plena, decodificando, compreendendo, interferindo e
interagindo com o texto no ato da leitura. A vivência desse processo de leitura mediado foi
proposta a dez alunos de série do Ensino Fundamental de uma escola da rede pública
estadual na cidade de Cachoeira do Sul (RS). Em nove encontros, essas crianças
experienciaram a leitura mediada de cinco narrativas verbo-visuais, sendo auxiliadas a
decodificar e, principalmente, a desenvolver a sua compreensão, construindo sentidos a partir
dos elementos verbais e visuais que constituem esses textos.
A leitura de uma narrativa infantil verbo-visual, texto que envolve tanto linguagem
verbal quanto visual, necessita de um leitor capaz de decodificar essas duas linguagens para
que a leitura se dê de maneira plena. A percepção, decodificação e compreensão dessas
linguagens é algo que precisa ser ensinado ao leitor mirim, cuja experiência de leitura ainda
está em processo de desenvolvimento. Não se pode exigir que um sujeito realize uma
atividade de leitura frente a um texto, envolvendo dois tipos de linguagens, e que ele seja
plenamente capaz de interagir com esse texto, explorando-o e compreendendo se isso não foi
vivenciado por ele. A prática desse tipo de leitura precisa ser mediada, por um leitor, cujo
olhar, frente ao texto, está mais maduro, mais aberto a desvendar os mistérios que lhe são
oferecidos, tanto pelo verbal quanto pelo visual.
O ato de ensinar a ler, isto é, de proporcionar ao leitor mirim a prática da leitura a
partir dessa proposta de aprendizagem mediada, não significa apenas colocar esse aprendiz
frente ao texto para que o decodifique e tente sozinho compreendê-lo. A experiência de leitura
mediada busca proporcionar à criança leitora uma oportunidade de viver o ato da leitura tendo
como apoio o olhar do leitor adulto que tenta auxiliá-la a perceber o texto de maneira
diferente, explorá-lo, decodificá-lo e compreendê-lo a partir desse novo olhar. A interação, a
troca e a cumplicidade são fundamentais para que essa experiência de leitura seja vivenciada
tanto pela criança quanto pelo adulto.
Dessa forma, espera-se que leitor maduro e leitor em formação caminhem juntos pelas
trilhas do texto, desvendem os mistérios verbais e imagéticos que constroem esse objeto de
leitura. A princípio, essa caminhada se totalmente guiada pelo leitor adulto que instigará a
criança a desvendar os mistérios do texto, aos poucos os passos ficarão lado a lado, até que o
adulto torne-se apenas guardião para, por fim, deixar a criança seguir seu próprio caminho de
leitura ao longo do texto. A independência no ato de ler, decodificar e, principalmente,
estabelecer sentidos é o objetivo da experiência de leitura mediada que se apresenta nesse
estudo.
A associação da leitura à idéia de mediação, aplicada ao texto narrativo infantil verbo-
visual, determina o fio condutor dessa experiência mediada que será proposta a essas dez
crianças. A prática experimental do processo de leitura mediada de cinco narrativas verbo-
visuais, a partir da minha atuação como mediadora frente a esses dez alunos, será o caminho
para tentar responder a indagação inicial.
12
Para tecer esse fio é preciso, inicialmente, compreender o processo de leitura, pois é a
partir dele que a experiência mediada acontecerá. Sendo assim, o primeiro capítulo se ocupa
da discussão de três aspectos fundamentais no processo de leitura: o ato de ler, isto é, a ação
que será vivenciada pelo leitor de maneira mediada, o leitor, protagonista nessa ação e, por
fim, o texto, local onde a ação será encenada.
Compreendidos os elementos da ação central, passa-se ao processo de leitura em si, a
decodificação, compreensão e construção de sentidos a partir de um texto específico. A leitura
das narrativas verbo-visuais, escolhidas para esse estudo, procurando apresentar algumas das
suas possibilidades semânticas, é apresentada no segundo capítulo. As possibilidades de
sentido decorrentes da leitura do verbal e do visual, de maneira isolada e em interação, que
são expostas nessa segunda parte. Elas representam a visão leitora do mediador, que auxiliará
o aprendiz a traçar o seu caminho rumo à competência leitora.
O modo como o mediador atuará no processo de leitura mediada com o objetivo de
auxiliar o leitor mirim a desenvolver a sua competência leitora é o que aborda a terceira parte
deste estudo. O que é mediar, segundo a experiência de aprendizagem mediada proposta por
Reuven Feuerstein, a mediação do texto que também se torna mediador no momento da
interação com o leitor, e a relação entre aprendizagem de leitura e processo de mediação no
desenvolvimento da capacidade leitora são os aspectos apresentados no terceiro capítulo.
A aplicação da teoria é o que resume a quarta etapa deste estudo. Todos os aspectos
teóricos passam a ser considerados a partir da descrição dos encontros de leitura mediada
vivenciados pelas dez crianças e por mim, como mediadora, a partir da leitura de cinco
narrativas verbo-visuais selecionadas para o estudo. Acertos e erros da minha fala são
analisados nos diálogos com as crianças originados a partir da leitura dessas narrativas,
considerando suas mensagens verbais e imagéticas. Um caminho rumo à competência leitora
aos poucos vai sendo desenhado e ficando cada vez mais demarcado, demonstrando o
desenvolvimento das crianças em virtude da mediação. Assim como um outro caminho ainda
a ser explorado e, ampliado, vai sendo deixado para que a aprendizagem tenha continuidade.
Por fim, as considerações finais a respeito desse caminho que não chega a um ponto
final, mas deixa aberta uma estrada a ser percorrida, pois este estudo não é conclusivo em
relação ao processo de leitura mediada. O significado desta pesquisa está em demonstrar a
13
função da figura do mediador, por meio da ação mediada proposta por Reuven Feuerstein,
associando-a ao processo de leitura, de desenvolvimento da capacidade leitora. Por isso, a
proposta desta última parte é analisar os dois elementos centrais para que este estudo aplicado
pudesse existir: leitor e mediador. A análise das ações desses dois elementos frente à teoria é
do que se ocupa o encerramento desse estudo, buscando estabelecer pontos de contato entre a
prática e a teoria de modo a ampliar o conhecimento em relação ao leitor e o mediador no
processo de leitura mediada de narrativas verbo-visuais.
14
CAPÍTULO 1
O PROCESSO DE LEITURA
Ilustração de Graça Lima, no livro Chorar é preciso, Paulus, 2001, p. 5.
CAPÍTULO 1
O PROCESSO DE LEITURA
1.1 Configurando o cenário
A leitura é uma ação que faz parte do dia-a-dia de todos os que passam pelo seu
processo de aprendizagem e que, automaticamente, é usada toda vez que nos deparamos com
o código alfabético ou com qualquer outro elemento que provoque analise e tentativa de
decodificação para compreendê-lo. Por isso, ler é decodificar e é compreender, o que nas
palavras de Alliende & Condemarín (2005), ao definirem leitura, significa dizer que ler é “o
processo de compreender o significado da linguagem escrita” (p. V). Dessa forma, entende-se
a leitura como um processo duplo, essas duas ações, que no princípio, acontecem
separadamente, à medida que o leitor vai se desenvolvendo, passam a ocorrer
simultaneamente.
No entanto, apesar dos atos de decodificar e de compreender serem inseparáveis, é
possível dizer que o primeiro faz parte do estágio inicial da leitura. A familiarização com o
código escrito é o passo inicial a ser dado para a formação do sujeito leitor. O reconhecimento
do código parece ser a chave que abre as portas para o mundo letrado.
O sujeito se torna realmente habitante desse mundo, quando é capaz de reconhecer
o código alfabético e de utilizá-lo como ferramenta para compreensão daquilo que decodifica.
Esse segundo estágio de ingresso no mundo letrado, ocorre, portanto, a partir do momento
em que o sujeito, agora leitor, passa a interagir com o mundo no qual ingressou e, passa a ser
habitante desse mundo. Essa interação que resulta em compreensão, segundo Alliende e
Condemarín (2005, p. 111), pode ser entendida como a capacidade de interferir nos objetos de
leitura, estabelecendo relações entre o que se trouxe de conhecimento na bagagem e o que se
encontra de informação por meio da leitura.
Dessa forma, percebe-se que a leitura não pode ser definida sem que se fale no leitor
ou na presença de um objeto de leitura. É na interação desses dois elementos que a leitura se
descortina. Kleiman (2004, p. 65) explica a leitura como uma atividade em que se estabelece
“uma interação a distância entre leitor e autor via texto”. Kleiman insere a figura do autor,
pois o texto surge, porque alguém o produziu. Há, portanto, um novo personagem nessa
interação que a leitura estabelece.
Assim, constrói-se outra definição possível para leitura, que passa a ser a relação
estabelecida entre um leitor e um autor, por meio de um texto, que deve ser decodificado para
que seu significado seja compreendido. E por ser uma interação entre três elementos distintos,
autor-texto-leitor, passa a ser peculiar, principalmente, porque o principal agente, o leitor, é
uma figura única e fundamental para que o código que constrói o texto seja desvendado,
ganhe vida e se torne um texto a partir do sentido que cada leitor lhe conferirá.
Não leitores nem leituras iguais. Cada leitor traz consigo a sua bagagem de leituras
prévias, de conhecimentos adquiridos, de modos de ver e de compreender o mundo. Nesse
sentido, cada leitura é individual e a construção de sentido decorrente dela, é única e faz parte
apenas da interação entre um determinado leitor e o autor por meio do texto. Barthes (1988, p.
40) chega a dizer que o ato de ler torna-se um ato de escrever, pois o leitor ao ler acaba por
“escrever” um novo texto a partir da sua leitura, da sua interação com o texto lido. A leitura,
segundo Barthes, passa a ser um jogo: “não é apenas mostrar que podemos interpretar” o
texto, “é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a conhecer que não verdade
objetiva ou subjetiva na leitura, mas apenas verdade lúdica” (1988, p.42). O ato de ler passa a
ser um jogo entre leitor e texto, no qual o prêmio final, a compreensão ou a construção de
sentido, só é definido pelos participantes do jogo depois de jogarem.
A leitura pode ser explicada também, como uma experiência em que texto e leitor
questionam-se mutuamente, buscam em si aquilo que ainda não foi dito, mas que pode ser a
partir da interação decorrente da própria leitura. Segundo Larrosa (2004, p. 101), a leitura
pode ser definida como “um deixar dizer algo pelo texto, algo que alguém não sabe nem
espera, algo que compromete o leitor e o coloca em questão, algo que afeta a totalidade de sua
17
vida na medida em que o chama para ir mais além de si mesmo, para tornar-se outro”. Ler,
portanto, afeta o leitor e o texto, modifica-os, transforma-os em outros.
E essa modificação acontece na relação entre texto e leitor, numa interação solitária e
que às vezes é interrompida, por uma força que leva o leitor a erguer a cabeça (Barthes, 1988,
p. 40), a deixar os olhos buscarem o nada para deixar-se devanear a respeito do que lia e
depois retornar, talvez modificado. Essa relação solitária que também define a leitura é
explicada por Larrosa (2003, p. 597), ao dizer que a experiência da leitura pode ser uma
experiência não apenas solitária, mas também uma experiência de solidão.
A fluência em leitura torna o ato de ler um ato solitário, pois o leitor comunica-se
silenciosamente com o texto e consigo mesmo; no início há um distanciamento que acaba por
se transformar em proximidade à medida que a leitura acontece. A solidão decorrente da
leitura torna-se “específica, uma solidão que é comunicação: afastar-se para ler é estabelecer
uma separação que une, uma distância que aproxima” (LARROSA, 2003, p. 599)
1
.
Nessa solidão não basta apenas decifrar a linguagem escrita, pois a leitura não pode
ser vista somente como a decifração e compreensão da linguagem escrita. É o que diz Martins
(2006), ao trazer para a definição de leitura uma visão voltada não apenas ao código escrito,
mas, principalmente, para a decodificação e compreensão de todos os códigos que existem no
mundo. Ler, sob essa ótica, é uma ação relacionada com todas as sensações que se pode ter,
de toque, de aconchego, de irritação, de desagrado que sentimos desde que nascemos, pois são
esses, “os primeiros passos para aprender a ler” (MARTINS, 2006, p. 11).
O ato da leitura, portanto, não é apenas racional por envolver a decodificação e a
compreensão de uma linguagem, é também sensorial e emocional. Isso, porque de acordo com
Martins (2006), para que a leitura seja compreendida e seja algo permanente na vida do leitor,
ela deve “preencher uma lacuna em nossa vida, precisa vir ao encontro de uma necessidade,
de um desejo de expansão sensorial, emocional ou racional, de uma vontade de conhecer
mais” (p. 82).
1
Tradução do livre do seguinte trecho: “(...) es uma soledad específica, una soledad que es comunicación:
retirarse a leer es estabelecer una separación que une, una distancia que aproxima.” (p. 599)
18
Em resumo, a leitura envolve as ações de decodificar e de compreender. No entanto, a
realização dessas ações ocorrerá a partir de uma interação entre dois elementos, leitor e
texto, e quem sabe até de um terceiro, o autor. E se é importante que se estabeleça uma
relação entre os elementos envolvidos no processo é necessário que exista um pouco de
sentimento, de emoção e também de racionalidade, pois, “o homem como em geral vive,
num processo permanente de interação entre sensações, emoções e pensamentos”
(MARTINS, 2006, p. 81). E assim, a partir dessa relação estabelecida, a definição de leitura
passa a abranger, também, as ações de interagir, escrever e, até mesmo, a questão do
isolamento que envolve a concretização da leitura.
Sendo assim, definir a leitura significa buscar aspectos que demonstrem o que é
necessário para que ela se realize e não buscar uma definição única, fechada e suprema.
Segundo Abreu (2001, definir leitura é estar ciente de que o que hoje se entende por leitura
não é o que se entendia no passado:
Até alguns anos atrás não se imaginava que as formas de ler pudessem ter se
alterado desde que o homem inventou maneiras de registrar conteúdos por escrito e
formas de decifrá-los. Imaginava-se que a leitura sempre se fizera como supomos
que ela hoje se faz, em silêncio e solitariamente, de modo a favorecer a
concentração e o recolhimento. Supunha-se que, em todas as épocas, ler implicava
pensar sobre textos e interpretá-los, exigindo habilidades superiores à capacidade
para decifrar os sinais gráficos da escrita. Acreditava-se que o contato com os livros
foi sempre valorizado por favorecer o espírito crítico, tornando o leitor uma pessoa
melhor por meio do contato com experiências e idéias registradas por escrito
(http://www.unicamp.br/iel/memoria/ensaios/index.htm).
A leitura modificou-se. E, portanto, defini-la é também, entender quem é o leitor, o
que é texto e, como eles se relacionam no ato de ler, ou seja, é entender o caminho traçado
pela leitura enquanto uma habilidade cognitiva na construção da história da leitura. Ao
direcionar o foco para a figura do leitor, encontra-se uma outra definição para o termo que
busca entendê-lo por meio da sua história.
O ato da leitura, portanto, define-se na ação, na interação, na evolução permanente que
ocorre para que a leitura aconteça. Não se busca uma definição canônica, mas uma definição
vivenciada, observada no agir do leitor em associação com o texto, definida, portanto, a partir
de seus elementos e da interação entre eles.
19
1.2 LEITOR: protagonista no ato da leitura
Para se falar sobre o leitor e entender que tipo de leitor essa pesquisa enfoca, é preciso
que primeiro se conheça um pouco sobre a história dessa figura. Traçar um histórico do leitor,
no contexto desse trabalho, significa entender como ele evoluiu até chegar aos dias atuais para
assim poder compreender e interferir no seu modo de ler.
1.2.1 Breve histórico do leitor: do leitor em geral ao leitor mirim
Mesmo breve, este histórico constrói ao mesmo tempo a trajetória das práticas de
leitura e dos objetos de leitura, pois é por meio do ato de ler e do objeto de leitura, que a
figura do leitor se constrói, se configura e configura a sua própria história. Deixando de lado a
questão do surgimento da escrita e, conseqüentemente, dos símbolos para serem decifrados no
ato da leitura, parte-se direto para a questão das práticas de leitura a partir da Idade Média.
O leitor da Idade dia é caracterizado não pela quantidade de textos lidos, mas pela
intensidade da sua leitura. Segundo Chartier (1996, p.85), até então, o leitor, “é confrontado
com um número pequeno de livros (a Bíblia, as obras de piedade, o almanaque), que
perpetuam os mesmos textos ou as mesmas formas, que fornecem às gerações sucessivas
referências idênticas”. Somente na segunda metade do século XV, a tipografia passou a servir
como meio de publicação, intensificando a produção de objetos de leitura.
As práticas de leitura na sua maioria eram orais. Havia poucos leitores alfabetizados,
capazes de decodificar os livros, e eram esses que liam em grupos as poucas obras
disponíveis. De acordo com Darnton, a leitura era feita “repetidas vezes, em geral em voz alta
e em grupo, de forma que uma estreita variedade de literatura tornou-se profundamente
impressa em sua consciência” (1992, p.212). Não havia, portanto, a leitura em quantidade no
que diz respeito à diversidade de objetos de leitura, apenas em relação ao número de vezes
que um texto era lido de modo que o leitor, por ouvir muitas vezes um material, acabava
memorizando-o por completo ou alguns trechos dele.
Além da questão relacionada à quantidade de objetos de leitura disponíveis, a
caracterização do leitor da Idade Média passa também pelo fato de que havia poucos leitores.
O número de pessoas capazes de decodificar osmbolos da escrita e, conseqüentemente, ler,
20
era bastante reduzido. Isso conduz a uma divisão da população em dois grupos: “a dos leitores
alfabetizados e a dos analfabetos iletrados” (CHARTIER,1996, p. 82). A diferença entre esses
dois grupos estava, principalmente, na capacidade de decodificar a escrita e não na capacidade
de leitura, pois os dois grupos eram capazes de ler, o primeiro decodificando a escrita dos
próprios livros, o segundo ouvindo a leitura oral amplamente difundida, principalmente pela
igreja como meio de doutrinação. Dessa forma, dois tipos de leitores são desenhados a partir
da prática da leitura oral; havia os que liam, decodificando diretamente do livro, e havia os
que liam, ouvindo a leitura de outros.
A Idade Média, portanto, é a época na qual a maioria dos leitores é capaz de ler
somente pelos olhos de poucos. É a época da leitura em grupo e oralizada. É a época do leitor
de poucos livros, mas de uma leitura intensa no sentido de realmente absorver o que era lido.
O leitor da Idade Média é o leitor ouvinte e doutrinado.
Há, no entanto, nesse período, o início de uma transição entre a leitura oral e a leitura
silenciosa. Chartier (1996, p. 82) aponta nessa transição três momentos principais dentro da
Idade Média: o primeiro momento, entre os séculos IX e XI, está relacionado ainda à leitura e
à cópia oralizadas, executadas principalmente por membros da igreja a leitura da doutrina
religiosa; o segundo momento, inicia-se a partir do século XIII, quando a leitura silenciosa
passa a ser difundida no mundo universitário; e, o terceiro momento é observado a partir do
século XIV, quando a leitura silenciosa atinge a sociedade leiga, não-religiosa.
Percebe-se, portanto, que as práticas de leitura vão aos poucos sendo transformadas e
ampliadas dentro da sociedade e, assim, surgem novos hábitos. O leitor avança para um novo
tipo de relação com o livro e para um novo tipo de comportamento relacionado com o ato de
ler.
“Progressivamente, instaurou-se assim uma nova relação com o livro, mais fácil e
ágil. Favorecidas por certas transformações do manuscrito (por exemplo, a
separação das palavras), essa leitura livre das severas obrigações da decifração oral,
suscita outras, que multiplicam, muito antes da invenção de Gutenberg, as relações
analíticas entre os textos e suas glosas, notas e índices. A uma leitura oral, sempre
representada pelos pintores e iluminadores como um esforço intenso que mobiliza o
corpo inteiro, sucede em meios cada vez mais amplos, uma outra arte do ler, a do
livro folheado e percorrido na absoluta intimidade de uma relação individual.”
(DARNTON, 1996, p. 82).
21
A figura do leitor durante a Idade Média é delineada, portanto, a partir das práticas de
leitura, que chegam à época do Renascimento modificadas, que, nesse período, o acesso ao
objeto de leitura começa ser mais facilitado. Dessa forma, a figura do leitor é demarcada a
partir dos seus objetos de leitura.
O leitor Renascentista é atraído por diferentes formas de apresentação do livro as quais
buscavam conquistá-lo, de acordo com seus desejos e práticas de leitura bem como, com
preços adequados ao seu poder aquisitivo. A publicação é tão intensa que atinge não apenas a
classe popular, mas também aos leitores de maneira geral no interior da sociedade. Vender
mais e com bons preços torna-se a meta dos “livreiro-editores audaciosos” que “inventam um
mercado popular do impresso” (CHARTIER, 1999, p. 120), popular no sentido de atingir a
todas as camadas sociais.
A presença de uma maior diversidade de objetos de leitura disponíveis aos leitores
provoca mudanças na maneira com que o leitor relaciona-se com esse objeto. A mudança de
comportamento, da leitura oral para a leitura silenciosa, que começa a ocorrer ao final da
Idade Média, continua a traçar o seu caminho durante o Renascimento. Essa transição de uma
prática para outra, provoca uma grande modificação na relação entre livro e leitor. O leitor
passa a ter mais autonomia podendo efetuar as suas próprias leituras de maneira
individualizada.
A leitura silenciosa, possivelmente solitária, não somente nos meios letrados, mas
também entre os mais humildes” (CHARTIER, 1999, p.125), modifica profundamente a
relação leitor-texto. A leitura silenciosa anula “a distância entre o mundo do texto e o mundo
do leitor” (CHARTIER, 1999 p.125), porque o leitor, sozinho com o texto, interage da
maneira que quer, buscando o sentido que melhor encaixa com as suas experiências.
E esse comportamento passa a se estender não apenas entre classes, mas entre gêneros,
homens e mulheres e, faixas etárias, crianças, jovens, adultos e idosos. Segundo Lyons
(1999), o aumento do público leitor a partir do século XIX ocorre em decorrência da difusão
da educação primária e, também, de mudanças sociais tais como a redução da jornada de
trabalho que possibilitava aos operários e trabalhadores em geral mais tempo para leitura. A
leitura passa a ser algo mais comum no dia-a-dia de homens, mulheres e, até mesmo, crianças.
22
O leitor infantil, que aqui nos interessa, passa a ser considerado como público leitor
apenas a partir do século XIX. Esse público surge, principalmente, como resultado da
expansão da educação primária. No entanto, apesar de provocar “importantes repercussões
para a leitura e o movimento editorial” (LYONS, 1999, p. 176), o público mirim, nesse
período, ainda não está plenamente consolidado em virtude da infra-estrutura rudimentar que
ainda se apresenta na educação primária, decorrente de algumas reformas e leis na Europa,
principalmente, França, Inglaterra e País de Gales.
Percebe-se, dessa forma, que a escola está por trás da formação desse novo público
leitor. É o ambiente escolar, mesmo improvisado ou rudimentar, que forma os leitores mirins.
No entanto, observa-se certa contradição nesse dado histórico. Apesar de a escola formar
leitores, o que possibilitou o surgimento de um mercado e uma demanda de livros escolares,
nesse mesmo ambiente, o acesso a esses livros ainda ocorria de acordo com os hábitos de
leitura da Idade Média. A descrição do aprendizado da leitura e da escrita segundo Lyons
(1999) ajuda a compreender esse dado:
Os principiantes começavam a ler e escrever em uma bandeja com areia antes de
passar às lousas. Para evitar gasto com livros, as crianças aprendiam a ler com
cartões. (...) Como aprendiam a reconhecer as palavras, uma a uma, nos cartões, o
aprendizado da leitura acontecia sem que jamais tivessem tocado em um livro. Nas
aulas de leitura insistia-se na memorização mecânica de alguns poucos textos os
mesmos que os inspetores mais tarde usariam para avaliar a capacidade de ler das
crianças. A leitura, portanto, exigia paciência severa e repetição sem fim de
exercícios. (p. 179)
Como pode ser percebido por essa descrição, apesar da escola propagar a leitura e
necessitar de livros, o mercado editorial ainda não necessitava ser variado. Além disso, havia
a questão de que em inúmeros casos, de acordo com Lyons (1999, p. 180), o uso da Bíblia
como livro texto era bastante comum. Mesmo assim, o mercado editorial tentava suprir a
demanda de “bibliografia pedagógica” (LYONS, 1999, p. 180) que era crescente.
Mesmo a passos lentos, o mercado editorial infantil começa ser vislumbrado
representado principalmente por obras editadas a partir de textos de autores de séculos
anteriores como, por exemplo, La Fontaine. Esse despontar é em parte conseqüência: “do
processo que Philippe Ariés denominou “a invenção da infância” a definição de infância e
adolescência como etapas distintas da vida, com problemas e necessidades específicas”
(LYONS, 1999, p. 181).
23
Essas necessidades do público leitor infantil, no entanto, no início estão relacionadas à
imposição de um código convencional moralizante. Aos poucos outras formas literárias, como
os contos de fadas e as fábulas moralizantes começam a surgir a partir da reformulação de
textos provenientes de séculos passados, sofrendo por um “processo constante de
transformação por parte de autores e editores” (LYONS, 1999, p.181) que buscavam adaptar
os textos ao público leitor da época.
A partir do histórico traçado até aqui, percebe-se que, na Idade Média, ponto inicial do
histórico delineado, a figura do leitor era imprecisa, muito mais voltada para o leitor adulto. A
partir do Renascimento é que o leitor passa a ser analisado também por seu gênero ou faixa
etária. Dessa forma, o leitor infantil desponta e começa a fazer parte do mundo da leitura,
exigindo, portanto, um mercado editorial específico que atendesse aos interesses da infância.
Esses interesses, no entanto, como também pode ser percebido, nem sempre são propriamente
do leitor mirim que acaba recebendo, por meio dos objetos de leitura destinados a ele,
ensinamentos e mensagens moralizantes provenientes do mundo adulto.
O leitor mirim, desse modo, vivencia na experiência da leitura uma experiência de
aprendizagem direta de algum preceito moral e, raramente vive uma experiência de fantasia,
de imaginação que flui livremente. Para salvar esse contexto de leitura moralizante, surgem os
contos de fadas que, segundo Machado (2002), caracterizam-se por introduzir o leitor no
mundo da fantasia e o leva a compactuar com a fantasia trazida pelo texto.
O público pede o seu material de leitura, e, desse modo, o leitor mirim precisa de uma
literatura voltada para ele. O desenvolvimento do público leitor infantil, portanto, tem como
conseqüência o surgimento de uma literatura infantil.
1.2.2 Leitor mirim: um novo público leitor origina uma nova literatura
A literatura infantil, com obras voltadas para a criança é algo recente. Segundo
Zilberman (1987), o gênero exclusivamente infantil surgiu no século XVIII em um contexto
de mudança social no qual a ascensão da família burguesa e da infância como estágio de
desenvolvimento a ser considerado na organização da sociedade.
24
As ascensões respectivas de uma instituição como a escola, de práticas políticas,
como a obrigatoriedade do ensino e a filantropia, e de novos campos
epistemológicos, como a pedagogia e a psicologia, não apenas estão inter-
relacionadas, como são uma conseqüência do novo posto que a família, e
respectivamente a criança adquire na sociedade. É no interior desta moldura que
eclode a literatura infantil (ZILBERMAN, 1987, p. 4).
Todas essas mudanças, principalmente no que diz respeito ao ingresso da instituição
escolar no contexto social com sua obrigatoriedade, forçaram o mercado editorial a publicar
uma literatura voltada para a formação desses novos leitores. Tais textos deveriam respeitar os
interesses do público, mas, principalmente, os interesses de formação impostos pela
sociedade. Dessa forma, uma das primeiras funções da literatura voltada para a criança foi a
instrumentalização pedagógica.
Além disso, o desenvolvimento de uma literatura destinada ao público mirim auxiliou
na divisão entre infância e fase adulta, através da consolidação do conceito de infância que
muito mais do que biológico é também uma construção social e cultural (GOUVÊA, 2004, p.
13-14). Observa-se, então, que leitor e objeto de leitura desenvolveram-se juntos, buscaram,
um no outro, elementos que os aproximassem e, assim possibilitassem a ambos conhecerem-
se melhor.
No Brasil, esse papel coube a Monteiro Lobato, com a publicação de A menina do
nariz arrebitado, em 1920. A obra de Lobato introduz uma nova idéia a respeito da
representação da infância e também da leitura na infância, bem como das leituras destinadas a
essa fase, deixa de lado o ensinamento e sugere o ludismo e o prazer, idéias essas que são
expressas em uma propaganda de A menina do nariz arrebitado, que destaca que o livro está:
“ fora dos moldes habituais e feito com o exclusivo intuito de interessar a criança na literatura.
O livro que não interessa a criança é um mal: cria o desapego, quando não o horror à leitura”
(apud GOUVÊA, 2004, p.33).
A literatura infantil, portanto, abandona o caráter de texto pedagogizante e passa à
busca, segundo Gouvêa (2004), do desenvolvimento do gosto pela leitura, do prazer
decorrente do ato de ler e, conseqüentemente, do estabelecimento de relações entre infância,
leitura e ludicidade. Por essa razão, o leitor infantil passa a encontrar textos produzidos e
pensados para que ele desenvolva o gosto pela leitura e sinta que essa leitura é uma
brincadeira.
25
Sendo assim, a literatura infantil começa a ser pensada a partir do seu público leitor e
não somente a partir do seu uso pedagógico. A justificativa para esse dado pode ser
encontrada em Coelho (1991) que afirma que não como negar que desde a sua origem a
literatura infantil está relacionada “á diversão ou ao aprendizado das crianças” [grifo da
autora] (p. 26), e, portanto, é preciso que isso seja considerado na sua produção.
Autores e editores precisaram voltar o seu olhar para a criança leitora de suas obras e
entender como ela se desenvolve e, conseqüentemente, como vê o mundo em cada etapa desse
desenvolvimento. O aspecto pedagógico não foi deixado de lado por completo. Ele foi
ignorado no ensino rígido, nas mensagens moralizantes cifradas, mas buscou-se apoio nele no
que diz respeito à psicologia do desenvolvimento cognitivo das crianças. Nesse sentido
Coelho afirma que o:
[...] caminho para a redescoberta da Literatura Infantil, em nosso século, foi aberto
pela Psicologia Experimental, que, revelando a Inteligência como elemento
estruturador do universo que cada indivíduo constrói dentro de si, chama a atenção
para os diferentes estágios de seu desenvolvimento (da infância à adolescência) e
sua importância fundamental para a evolução e formação da personalidade do
futuro adulto. Revelou, ainda, que cada estágio corresponde a uma certa fase de
idade. A sucessão das fases evolutivas da Inteligência (ou estruturas mentais) é
constante e igual para todos. As “idades” correspondentes a cada uma delas podem
mudar, dependendo da criança ou do meio em que ela vive. A partir desse
conhecimento do ser humano, a noção de “criança” muda e nesse sentido torna-se
decisivo para a Literatura Infantil/Juvenil adequar-se ou conseguir “falar”, com
autenticidade, aos seus possíveis destinatários (1991, p. 26)
[grifos da autora].
O conhecimento a respeito do desenvolvimento cognitivo, portanto, auxilia a entender
as preferências das crianças, o que lhes atrai atenção e o que é ignorado e, conseqüentemente,
o modo como conquistar o público leitor. A partir disso é possível então, para entender a
figura do leitor mirim, trazer alguns nomes como Piaget, Vigotski, Wallon, entre outros
estudiosos do desenvolvimento infantil que podem auxiliar, por meio de seus estudos sobre a
cognição infantil, na compreensão da criança como ser humano em constante evolução e,
principalmente como leitor mirim.
O caminho traçado até aqui conduziu a uma definição do infantil na literatura e,
conseqüentemente, a uma caracterização de leitor mirim. Ao chegar a esse ponto, é necessário
que se reduza ainda mais o foco e se caracterize o público alvo dessa pesquisa com suas
26
especificidades. Para caracterizar esses sujeitos busca-se apoio em teóricos que estudaram a
criança e o seu desenvolvimento cognitivo.
1.2.3 Leitor mirim: uma definição baseada em Vigostki, Piaget e Wallon
Retomando o que diz Coelho (1991) ao afirmar que a Literatura Infantil, no século
XX, foi redescoberta a partir dos conhecimentos da Psicologia Cognitiva, pretende-se
caracterizar o leitor mirim, foco da pesquisa aqui apresentada, agora sob a perspectiva do
desenvolvimento cognitivo. Essa definição será feita com base nos estudos de Vigotski,
Piaget e Wallon.
1.2.3.1 Leitor mirim: um ser cognitivo, sob a ótica do sócio-interacionismo de Vigotski
O processo de leitura, como foi dito anteriormente, abrange ações de decodificação
e compreensão. Trata-se de um processo complexo, mas do qual, quase todos somos capazes
de ser agentes.
E essa capacidade humana é atribuída em decorrência, segundo Vigotski (2004), da
plasticidade de nosso sistema nervoso, que facilmente se adapta, se molda, aprende e
modifica-se, aplicando no seu dia-a-dia todas as transformações ocorridas. O ser humano é,
portanto, um ser que se modifica, altera suas estruturas mentais sem ter necessidade de
começar do zero, ele agrega novos comportamentos aos que antes existiam. Com relação à
leitura, a modificabilidade pode ser percebida no processo de aprendizagem do código verbal.
No início as letras das palavras escritas parecem ser apenas símbolos estranhos,
indecifráveis, misteriosos e sem sentido. À medida que esses símbolos passam a ter sentido, a
ter uma função clara na comunicação de mensagens, eles passam a fazer parte do dia-a-dia e
modificam a interação do sujeito com o meio. No entanto, essa capacidade de modificar-se e
conservar essas mudanças, sempre acrescentando outras tantas às que o ser humano possui,
só ocorre quando há interesse por parte do próprio homem. Não é o meio que influencia por si
a adaptação do sujeito, a busca por adaptação ao meio e a necessidade de aprender vem do
sujeito tem papel relevante no surgimento do interesse.
27
Essa descoberta da leitura ou o descobrir-se leitor é algo inerente a cada ser humano, é
uma experiência individual. São os olhos do leitor que buscam as letras, que se surpreendem
primeiro diante dos símbolos indecifráveis, mas que pouco a pouco ganham significado e
passam a fazer sentido no mundo da leitura que se descortina. Assim descreve Manguel
(1997) ao relatar a sua experiência ao descobrir-se leitor:
Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora
esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito;
talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a
marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas
semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de
repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se
metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade
sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a
mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um
diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em
realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler. (p. 18)
A interação, a percepção e o interesse do sujeito pelo meio onde vive e por tudo que o
constitui movem a capacidade plástica ou, melhor dizendo, a capacidade de aprendizagem do
ser humano. É na experiência do viver que o sujeito aprende, modifica-se, molda-se, pois
segundo Vigotski (2004, p. 63), “o único educador capaz de formar novas reações no
organismo é a sua própria experiência”. Dessa forma, o leitor se constitui como tal a partir
do momento que, na sua interação com o mundo, o seu interesse volta-se para a leitura desse
mundo.
Portanto, à luz dos princípios de Vigotski, a concepção de leitor como sujeito
cognitivo caracteriza-o como um ser humano capaz de modificar-se, de aprender por meio da
interação com o mundo que o cerca, interação essa despertada pelo seu próprio interesse. O
leitor é, assim, visto como senhor da sua transformação em sujeito leitor. No entanto, isso não
lhe torna um ser isolado e descontextualizado do meio onde vive, pois é na interação com esse
meio que a sua modificação se dá.
E em se tratando de um sujeito leitor mirim, é preciso que se diga que a criança é
movida pelo interesse que é “a forma principal da manifestação do instinto na fase infantil”
(VIGOTSKI, 2004, p. 111), e, além disso, pelos estímulos oferecidos pelo meio. O leitor
mirim, portanto, se constitui com base no seu interesse decorrente da sua interação com o
meio. E para se constituir como tal, deve primeiro sentir-se interessado ou atraído pelos
28
estímulos de leitura existentes em seu meio social, pois é o interesse por esses estímulos que o
promovem a sujeito leitor.
Nessa interação entre sujeito leitor e contexto social, entra em cena a relação entre
desenvolvimento e aprendizagem, aspectos fundamentais da plasticidade característica do ser
humano. Essa relação deve ser fundamentalmente abordada, porque o sujeito leitor, que se
tenta caracterizar aqui, é uma criança, isto é, um sujeito que se encontra na plenitude de seu
desenvolvimento e, conseqüentemente, vivencia inúmeros momentos de aprendizagem.
Diante dos diversos estudos a respeito do desenvolvimento cognitivo infantil, Vigotski
(1998) aponta um caminho que caracteriza essa evolução como algo vinculado à interação
social, como algo que se inicia antes do ingresso no ambiente escolar. A aprendizagem que se
na escola tem um foco diferente daquela que se anteriormente, pois esse tipo de
aprendizado “está voltado para a assimilação de fundamentos do conhecimento científico”
(VIGOTSKI, 1998, p.110), enquanto que o aprendizado pré-escolar volta-se à assimilação do
convívio com o meio social. Dessa forma, como afirma Vigotski, mesmo que com focos de
atenção diferenciados, no ambiente pré-escolar e depois, no ambiente escolar, “aprendizado e
desenvolvimento estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança”, e “a
aprendizagem orienta e estimula processos internos de desenvolvimento” (apud FREITAS,
1994, p. 95).
A partir dessa noção de que desenvolvimento e aprendizado interagem constantemente
na vida da criança, Vigotski aponta que esses dois processos inter-relacionam a questão da
faixa etária e do meio, pois a criança está em constante evolução, o que ocorre como
conseqüência da sua faixa etária e também da sua relação com o meio:
A criança não é um ser acabado mas um organismo em desenvolvimento, e
conseqüentemente o seu comportamento se forma não sobre a influência
excepcional da interferência sistemática no meio mas ainda em função de certos
ciclos ou períodos do desenvolvimento do próprio organismo infantil, que
determinam, por sua vez, a relação do homem com o meio. A criança se desenvolve
de maneira irregular, constante, através da acumulação de pequenas mudanças por
impulsos, aos saltos, de forma ondulatória, de sorte que os períodos de ascenção
[sic] do crescimento infantil são seguidos de períodos de estagnação e inibição.
(VIGOTSKI, 2004, p. 289).
29
Diante desse constante desenvolvimento, mesmo que permeado por momentos de
pouco ou de nenhum progresso aparente, Vigotski aponta dois níveis que se inter-relacionam,
isto é, um não representa superioridade ou inferioridade no desenvolvimento infantil. Tais
níveis apenas demonstram de que maneira a criança se desenvolve e aprende em interação
com o meio onde vive. O primeiro nível recebe a denominação de nível de desenvolvimento
real e representa, segundo Vigotski (1998), aquilo que as crianças conseguem fazer de modo
independente sem o auxílio de ninguém, seja essa pessoa outra criança ou um adulto. No
entanto, esse nível, apesar de demonstrar a independência da criança, não é o mais importante,
pois ele apenas mostra até que ponto a criança chegou no seu desenvolvimento e no seu
processo de aprendizagem.
A partir dessa noção, constrói-se o conceito do segundo nível, apontado por Vigotski
(1998) nos seus estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, que é a zona de desenvolvimento
proximal, isto é, o nível que determina o que a criança é capaz de fazer, mas com a ajuda de
outra pessoa até que se sinta independente. Esse nível de desenvolvimento demonstra,
portanto, o que a criança ainda será capaz de realizar, é uma previsão acerca do
desenvolvimento infantil e deve receber maior atenção porque “aquilo que a criança consegue
fazer com ajuda dos outros poderia ser, de alguma maneira, muito mais indicativo de seu
desenvolvimento mental do que aquilo que consegue fazer sozinha” (VIGOTSKI, 1998, p,
111). Ao estabelecer uma relação entre esses níveis e o desenvolvimento presente ou futuro da
criança pode-se dizer, portanto, que “o nível de desenvolvimento real caracteriza o
desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal
caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente” (VIGOTSKI, 1998, p. 113).
A teoria cognitiva de Vigotski (1998, 2004), em relação ao processo de leitura, pode
estar associada ao amadurecimento do sujeito que esses dois níveis propostos pelo autor
demonstram até que ponto o leitor está independente na sua interação com o texto, zona de
desenvolvimento real, e que aspectos da leitura ainda não são aplicados pelo sujeito de
maneira autônoma, zona de desenvolvimento proximal, mas somente por meio da mediação de
um outro sujeito que o guia pelo texto. Esses dois níveis, portanto, em uma situação de
avaliação do processo de leitura auxiliam na determinação do estágio de independência ou
autonomia leitora do sujeito na sua interação com o texto.
30
Nesta pesquisa, é fundamental que o sujeito quanto à zona de desenvolvimento real
esteja vivenciando plenamente a decodificação no processo de leitura, além, é claro, da
compreensão do texto escrito. Porém, não se tem como expectativa prévia que seja um leitor
independente no processo de leitura da imagem associada à palavra, cujo processo de leitura
busca-se investigar. Em outras palavras, sob o ponto de vista vigotskiano, o leitor mirim,
sujeito dessa pesquisa, caracteriza-se por ser um leitor independente na questão de
decodificação e compreensão do texto escrito, mas ainda em processo de desenvolvimento a
caminho da autonomia na decodificação e compreensão do texto composto por palavra e
imagem em associação.
A proposta de pesquisa dessa dissertação, portanto, tem sua atenção voltada a um tipo
de leitor que, no que diz respeito a sua zona de desenvolvimento real, possua um
comportamento leitor proficiente. Desse modo espera-se que esse leitor tenha um
comportamento independente e que, segundo Kato (1999), não necessite mais se valer
constantemente dos processos de análise e síntese durante a leitura, e utilize apenas as
inferências contextuais e/ou a sua memória para identificar segmentos, palavras isoladas ou
blocos de palavras que fazem parte do seu glossário mental, e, assim, seja capaz de
decodificar e compreender o que lê.
Porém, isso não significa dizer que os sujeitos leitores dessa pesquisa estejam prontos,
completos no que diz respeito ao processo da leitura. Afinal, o texto com o qual se dará o
processo de leitura não envolve apenas a palavra escrita, portanto, não é apenas o
desenvolvimento pleno da decodificação da linguagem verbal o que se espera que esse leitor
tenha domínio. Dessa forma, o aspecto mais relevante a ser caracterizado nos leitores mirins
não é a habilidade plenamente desenvolvida, mas aquelas que ainda estão por se
desenvolverem no processo de aprendizagem, decorrentes da interação com o texto que
associa palavra e imagem.
Por isso, a teoria cognitiva de Vigotski (1998, 2004) pode auxiliar na compreensão da
criança como leitora, no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades as quais o sujeito
ainda não é capaz de executar de modo autônomo. E para que esse desenvolvimento aconteça
e passe da zona de desenvolvimento proximal à zona de desenvolvimento real, entra em ação o
processo de mediação por meio do qual a criança interage com o objeto de aprendizagem com
31
o auxílio de um outro sujeito mais experiente até que ela seja capaz de interagir de modo
independente.
A leitura consciente da palavra associada à imagem presente nas narrativas verbo-
visuais utilizadas nessa pesquisa está focada na zona de desenvolvimento proximal dos
sujeitos investigados. O desenvolvimento dessa consciência, por meio de um processo de
aprendizagem mediada, até atingir a autonomia, é o foco da pesquisa. Tudo o que o sujeito for
previamente capaz de perceber na interação da palavra com a imagem é considerado, para que
a construção de uma consciência plena de que a ação entre esses dois elementos deve ser
considerada no processo de leitura e na compreensão do que se lê.
Sendo assim, o leitor mirim nessa pesquisa, e sob a ótica de Vigotski (1998, 2004), é
um sujeito cognitivo, capaz de perceber, memorizar, racionar e construir conhecimento, tudo
isso em interação com a sociedade em que vive. Além disso, é um sujeito leitor que possui
habilidades de leitura que se encontram na zona de desenvolvimento real, mas está
constantemente em fase de desenvolvimento, zona de desenvolvimento proximal, da
consciência de outras habilidades que influenciam a percepção do texto constituído de palavra
associada à imagem. E para que, habilidades que ainda pertencem à zona proximal alcancem
o desenvolvimento real, entra em ação o processo de mediação da aprendizagem, o qual
segundo Méier, “é uma forma especializada de interação” (2002,
www.marcosmeier.pro.br/pdf/neuropsicologia.pdf) que tem como objetivo principal tornar o
sujeito aprendiz independente no seu processo de aprendizagem. A independência, em termos
de leitura, significa tornar o aprendiz autônomo e capaz de interagir com o texto,
considerando na leitura a compreensão de todos os elementos que constituem esse texto
palavra e imagem – como elementos plenos de significado isoladamente e em interação.
1.2.3.2 Leitor mirim: um leitor em construção sob a ótica da teoria piagetiana
Ler é interagir, ou seja, é na relação entre texto e leitor que se revela o processo de
leitura. Portanto, é na ação que se constrói a leitura, não se trata de algo preconcebido. A
maneira com que o leitor se relacionará com o texto, no ato da leitura, por mais previsível que
seja sempre ultrapassa a expectativa e pode surpreender.
32
A leitura, entendida dessa forma, passa a ser uma ação que ocorre no ato em si, o é
algo inerente ao texto ou ao leitor, ela se efetiva na relação entre os dois. Da mesma forma, a
figura do leitor, em cada texto lido, vivencia uma nova maneira de ler que é incorporada ao
comportamento leitor desse sujeito. A partir disso pode-se afirmar que, quanto mais se lê,
mais se aprende a ler. O leitor é, portanto, um sujeito em constante construção.
Essas concepções da figura do leitor encontram apoio nos estudos de Piaget. Afinal,
para Piaget (1990) “(...) o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado
nem nas estruturas internas do sujeito” (p. 1), pois “o conhecimento é fato e não processo”
(PIAGET, 1973, p. 7). Sob essa perspectiva, a leitura não é um conhecimento inato ao ser
humano, é um conhecimento construído, que evolui devido à maneira com que o sujeito o
meio que o cerca. Além disso, é preciso que se ressalte que essa evolução é contínua, pois ela
é resultado de uma interação entre sujeito e objeto de conhecimento, numa dependência
mútua entre ambos, o que se caracteriza como uma “dupla construção progressiva” (PIAGET,
1973, p. 8).
A aprendizagem da leitura é, portanto, decorrente da maneira como o sujeito lê. A
leitura se constrói na ação do leitor, na maneira como ele interage com o objeto de leitura. E
esse modo de interagir com o texto pode ser relacionado ao estágio de desenvolvimento no
qual esse leitor se encontra.
Enquanto Vigotski entende o desenvolvimento humano a partir da definição de duas
zonas, a de desenvolvimento real e a de desenvolvimento proximal, Piaget observa o
desenvolvimento das crianças e define estágios que podem ser utilizados como base para que
se entenda não o que é conhecimento, mas como ele se realiza, já que:
[...] todo conhecimento é sempre vir a ser e consiste em passar de um conhecimento
menor para um estado mais completo e mais eficaz, é claro que se trata de conhecer
esse vir a ser e de analizá-lo [sic] da maneira mais exata possível. Entretanto, esse
vir a ser não decorre do acaso, mas constitui um desenvolvimento e como não
existe, em nenhum domínio cognitivo, começo absoluto até o desenvolvimento,
este mesmo deve ser examinado desde os estágios denominados de formação [...].
(PIAGET, 1973, p. 13)
O desenvolvimento é, portanto, um processo do qual decorrem sucessivas mudanças
que podem ser identificadas por meio de estágios determinados a partir da idade aproximada
33
dos sujeitos. Os quatro estágios apontados por Piaget são: sensório-motor, pré-operatório,
operatório concreto e operatório formal. A ordem desses estágios é invariável e inevitável,
porém a idade em que eles são identificados pode variar de sujeito para sujeito, ocorrendo
inclusive desdobramentos em tantos subgrupos quanto forem necessários (LIMA e LIMA), na
tentativa de compreender o desenvolvimento da criança na sua individualidade.
Essa variabilidade em relação à idade dos sujeitos se deve ao fato de que a interação
com o meio também interfere no modo com que o sujeito se desenvolve. O entendimento a
respeito do desenvolvimento infantil, segundo Piaget, não considera apenas a questão da
maturação biológica, mas também a interferência do meio na maneira com que o sujeito age.
Os estudos apontam que:
Somente as influências do meio adquirem importância, cada vez maior a partir do
nascimento, tanto, aliás, do ponto de vista orgânico, quanto do mental. A psicologia
da criança não poderia, portanto, recorrer, apenas, a fatores de maturação biológica,
visto que os fatores que hão de ser considerados dependem assim do exercício ou
da experiência adquirida como da vida social em geral (PIAGET apud LIMA &
LIMA, 1981, p. 27).
No que diz respeito à formação do sujeito leitor, essa questão é verdadeira, pois o
modo com que o sujeito percebe a leitura, presente no mundo que o cerca, influencia
sobremaneira a sua ação como leitor. A aprendizagem da leitura não é um processo empírico
ou inato, “ela ocorre em contextos culturais e sociais determinados” (TEBEROSKY &
COLOMER, 2003, p. 17). Em outras palavras, a aprendizagem da leitura é uma decorrência
também do meio em que ela se dá. O desenvolvimento da criança associado à maneira com
que ela e convive com o processo de leitura são elementos importantes para o ingresso no
mundo letrado.
O leitor, portanto, sob a ótica da teoria psicogenética de Piaget, é um ser em
construção, construção que decorre de todas as experiências vivenciadas pelo sujeito, que o
modificam e, conseqüentemente, provocam o seu desenvolvimento cognitivo. Dessa forma,
mesmo os sujeitos considerados independentes no processo de leitura, não são leitores
prontos, pois afinal isso é algo que não existe se considerarmos que a leitura é um processo
em constante desenvolvimento.
34
Com relação aos estágios de desenvolvimento apontados por Piaget sensório-
motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal —, os sujeitos dessa pesquisa,
com idade entre 9 e 12 anos incompletos, encontram-se entre os períodos operatório concreto
e operatório formal. Esses sujeitos, portanto, estariam com a sua capacidade de construir
conceitos, com base no mundo em que vivem e nas suas experiências anteriores, adquirida.
Também o capazes de utilizar a habilidade de leitura, isto é, de fazer uso da linguagem
não em uma interação direta com um interlocutor, mas em uma “interação à distância, com
um interlocutor não imediatamente acessível” (KLEIMAN, 2004, p. 7).
O sujeito leitor focalizado nessa pesquisa esem fase de formação, mas interage e
compreende um texto, estabelecendo relações entre ele e o seu conhecimento prévio na
formação de conceitos. Desse leitor que, cognitivamente, oscila entre operações concretas e
operações formais, espera-se que seja capaz de decodificar palavras, mas também capaz de ir
além do que está escrito, capaz de inferir o que está oculto ou de enxergar o que não foi posto,
mas que pode ser depreendido. O sujeito em questão não está limitado apenas ao que vê, ou
melhor, ao que está escrito, mas consegue ir além das linhas do texto, evocando o seu
conhecimento prévio para a construção de um novo texto a partir do que está lendo.
Essa capacidade do leitor mirim se deve ao fato, segundo Piaget (1975), do seu
pensamento ter ultrapassado o nível sensório-motor, no qual o ponto máximo é alcançar o
objetivo. Em termos de leitura isso significa decodificar os símbolos e compreendê-los
naquela situação específica, não havendo interesse em buscar outros modos de compreensão:
o que está posto no texto é o que deve ser compreendido. Dessa forma, é possível dizer então
que o nível de representação de um leitor que não tivesse ultrapassado o estágio sensório-
motor estaria reduzido ao nível do que está posto no texto, não conseguindo chegar às
entrelinhas, enquanto, o do leitor que oscila entre os estágios operatório concreto e operatório
formal é capaz de valer-se do que está escrito e ir além, construindo a sua compreensão com
base nas representações do texto e nas suas próprias representações cognitivas.
Nesse sentido, o leitor em questão é uma criança que alcançou a capacidade de
representação, isto é, a capacidade de construir conceitos não apenas com base na realidade
presente, mas também nas vivências passadas. Em outras palavras, é um leitor capaz de
evocar as suas experiências e conhecimentos construídos para auxiliarem na elaboração de
35
novos conhecimentos. Essa noção da formação da capacidade de representação ou de
construção de conceitos é explicada da seguinte forma por Piaget (1975, p. 308):
A chegada ao equilíbrio conceitual ou representativo se no momento em que o
sujeito torna-se capaz de acomodar e assimilar fatos em relação ao objeto mesmo
não estando presente. O sujeito torna-se capaz de estabelecer relações, buscar
representações a partir de elementos que não estão presentes, mas que foram
assimilados.
É essa capacidade de representação que ao leitor a habilidade de ler, isto é, de ser
agente no processo de leitura interagindo com o texto, não apenas buscando verdades no
texto, mas também, principalmente, construindo verdades, através da compreensão do que foi
lido. A capacidade de representação cognitiva colocada por Piaget (1975), torna-se um
elemento chave na configuração do sujeito leitor no contexto dessa pesquisa. Afinal, é ela que
torna esse leitor capaz de ultrapassar o nível da decodificação e alcançar o nível da
compreensão do que lê, característica fundamental na escolha dos sujeitos dessa pesquisa.
1.2.3.3 Leitor mirim: um ser cognitivo e afetivo, sob a ótica da psicogênese walloniana
O leitor, a partir das teorias de Vigotski e Piaget, é um ser cognitivo. Wallon
acrescenta que um ser não é apenas cognição, mas é também afeto. A criança, portanto, seria
um leitor que no ato da leitura coloca em ação não apenas as suas características cognitivas,
mas também volta o seu olhar emotivo para o objeto de leitura.
As teorias de Vigotski e Piaget trazem para a caracterização do leitor a capacidade de
estar em constante modificação, isto é, a capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento
cognitivo que se através da relação estabelecida com o meio, ou a partir das vivências
decorrentes dessa relação. Wallon também concorda com esse aspecto e acrescenta que o
desenvolvimento da criança se em estágios, “como uma construção progressiva em que se
sucedem fases com predominância alternadamente afetiva e cognitiva” (GALVÃO, 1995, p.
43).
Cada uma dessas fases, que podem ser percebidas no desenvolvimento da criança,
possui suas características próprias determinadas pela maneira com que o sujeito se vale do
mundo que o cerca. Alternando cognição e afetividade, o sujeito interage com o meio,
36
modificando-se. O leitor mirim em questão nessa pesquisa, sujeito entre 9 e 12 anos
incompletos, encontra-se, segundo a teoria psicogenética walloniana, no estágio categoria.
Esse estágio inicia por volta dos seis anos e traz à inteligência grandes modificações, tendo
em vista que os processos cognitivos são ativados, que a atenção do sujeito está totalmente
voltada ao conhecimento, à descoberta e conquista do mundo exterior e tudo que ele oferece,
a curiosidade, portanto, está aguçada (GALVÃO, 1995).
O processo de leitura pode ser visto nesse estágio como um caminho a ser tomado para
suprir as curiosidades, para desbravar o mundo de conhecimento que o sujeito tem a sua
disposição. Além disso, por ser uma maneira de interação, entre leitor e autor por meio do
texto, a leitura torna-se um ato de socialização e, portanto, um meio de reconhecer-se como
individuo com suas características próprias no meio social. A leitura proporciona ao leitor
conhecimento do mundo e de si no sentido da diferenciação entre o eu e o outro, pois,
segundo Galvão, a distinção entre o eu e o outro se adquire progressivamente, num
processo que se faz nas e pelas interações sociais” (GALVÃO, 1995, p. 50).
O sujeito necessita do meio que o circunda, pois é no meio social que a criança se
desenvolve, e é nele que ela deve ser observada. Essa é uma idéia, bastante recorrente na
teoria walloniana, por acreditar que o desenvolvimento infantil se a partir de fatores
naturais associados a fatores sociais e de que apesar dos fatores biológicos serem mais
determinantes no início, aos poucos eles vão sendo suplantados pelos fatores sociais, pois são
“a cultura e a linguagem que fornecem ao pensamento os instrumentos para sua evolução”
(GALVÃO, 1995, p. 41). Dessa forma, a leitura pode ser encarada como um dos modos de
interação social ou, de fornecimento de material cultural e lingüístico ao pensamento e que
também auxilia na tomada de consciência de si mesmo, a partir do momento que o objeto de
leitura serve como meio de reconhecimento ou não das suas próprias idéias ou características.
O estudo da criança exigiria o do meio ou dos meios onde ela se desenvolve. De
outro modo é impossível determinar exactamente [sic] aquilo que lhes é devido e o
que pertence ao seu desenvolvimento espontâneo. É possível, aliás, que não se trate
de coisas distintas que se justaporiam, mas de realizações onde cada um dos dois
fatores actualiza [sic] o que está em potência no outro (WALLON, 1975, p. 193-
194).
Outro ponto importante da teoria walloniana que auxilia na delimitação do sujeito
leitor nessa pesquisa é o de que, como foi dito, o desenvolvimento da criança é uma
37
construção progressiva, e acrescenta-se aqui, também “descontínuo, marcado por rupturas,
retrocessos e reviravoltas” (GALVÃO, 1995 p. 41). Essa definição do desenvolvimento
relaciona-se ao processo de leitura e ao comportamento leitor no sentido de que o modo com
que cada pessoa lê, isto é, compreende o texto é peculiar. Além disso, a relação do leitor com
o texto também se a partir de rupturas, retrocessos e reviravoltas, que o leitor busca
encontrar no texto abrigo para suas idéias, e quando não encontra precisa moldar-se para
conseguir concluir a sua leitura e realmente interagir com o texto.
Em resumo, o leitor-mirim, sob a ótica da psicogênese de Wallon, traz consigo a sua
capacidade cognitiva emoldurada pelas suas habilidades afetivas. Ele associa cognição e
afetividade para interagir com o outro e com o meio. A leitura sob essa perspectiva torna-se
um meio do sujeito interagir com a sua cultura por meio da sua linguagem, ativando a sua
capacidade cognitiva de aprender e de construir novos conhecimentos sobre o mundo e sobre
si mesmo e, dessa forma, reconhecendo-se como ser afetivo e cognitivo que é. Cognição e
afetividade apesar de serem pólos, aparentemente, opostos são os elementos que constroem o
leitor-mirim e auxiliam-no no ato da leitura que se torna um processo de construção de
conhecimento geral e também de auto-conhecimento.
1.3 TEXTO: palco da leitura
Passivo, mas, ao mesmo tempo, elemento fundamental no ato da leitura. Assim pode-
se pensar o texto, que, apesar da sua pretensa passividade, ganha vida ao encontrar-se com os
olhos do leitor.
Mas o que é um texto? É palavra escrita? É palavra lida/ouvida? É palavra ou é
imagem? No contexto dessa investigação, o texto toma ares próprios e precisa ser definido a
partir da sua constituição e, principalmente, da sua relação com o leitor, pois afinal é nessa
relação que ele passa verdadeiramente a existir.
A existência do texto como sentido implica a figura de um leitor que é atraído por
algum motivo racional ou subjetivo a voltar o seu olhar para esse objeto. E se o olhar do leitor
é atraído, entra em cena também o processo de leitura. Texto, leitura e leitor caminham juntos
ou co-existem. E se, como Paulo Freire disse, “a leitura do mundo precede a da palavra”
(2005, p. 11), o texto não é apenas palavra escrita que se apresenta ao leitor para ser lida. O
38
texto é tudo que está no mundo, é tudo que atrai o olhar do sujeito e lhe provoca o
pensamento, a dúvida, a vontade de compreender. Texto é som, é estímulo visual, é cheiro, é
lembrança guardada na memória, é imagem que se forma na mente, é imagem pintada ou
desenhada, é cor, é movimento e é também palavra decodificada.
Texto, portanto, não é apenas palavra escrita ou livro. Segundo Chartier (2002), a
partir da obra de D. F. Mackenzie, para uma definição de texto “é preciso desfazer o vínculo
estabelecido pela tradição letrada ocidental entre o texto e o livro” (p. 243).
A noção de texto está vinculada à linguagem escrita, no entanto é importante que se
considere que no princípio a linguagem escrita não tinha a configuração alfabética que hoje
tem. No ocidente, até alcançar a forma alfabética, a comunicação acontecia de maneira oral ou
por meio de grafismos ou desenhos rupestres que transmitiam alguma história ou mito dos
povos antigos que desenhavam nas paredes de algumas cavernas, algo feito desde 35 mil a.C.
(PAULUK, 2004).
Tudo que auxilia o ser humano a se comunicar com outros seres ou com o próprio
mundo, trocando informações, construindo conhecimento e compreendendo o próprio mundo
é texto e é passível de ser lido. No entanto, na afirmação de Pauluk (2004), a representação
alfabética por estar mais próxima da oralidade e, além disso, auxiliar na conservação e
permanência do pensamento passou a ter importância maior em relação aos grafismos que,
assim como o discurso oral, sofriam influência da mediação humana que poderia acrescentar
ou omitir informações ao tentar transmitir uma mensagem. Talvez, por isso, a associação
entre texto e linguagem escrita seja tão forte.
A narrativa verbo-visual, texto utilizado nesse estudo, não pode ser considerada
somente sob a perspectiva do código alfabético, pois trata-se de um texto que se constrói na
interação entre duas linguagens distintas na sua maneira de apresentação, mas semelhantes
por serem passíveis de leitura, de decodificação, de compreensão e de construção de sentido.
Trata-se de um texto que se vale dos elementos alfabéticos e visuais para a sua construção e,
portanto, exige do leitor atenção voltada para ambos para que possa existir plenamente.
No entanto, não é apenas a presença da escrita ou da visualidade ou a interação de
ambas que faz com que a narrativa verbo-visual possa ser chamada de texto. De acordo com
39
Chartier (2002), o que autoriza tanto o que é verbal, quando o que é visual ou a sua interação
ser chamado de texto é o fato de ser construído “a partir de signos, cuja significação é fixada
por convenção [...]”, pois “a linguagem verbal, escrita ou oral, não é a única a obedecer a um
funcionamento semântico. Por isso, a extensão da categoria de texto” (p. 244).
Tanto palavra, quanto imagem possuem a sua organização, as suas regras e,
conseqüentemente, o seu modo de ler, isto é, de interagir com o leitor. A interação de ambas
constrói o todo de sentido do texto que passa a existir ao entrar em contato com o olhar de um
leitor.
1.3.1 Texto palavra
A palavra é a origem de tudo, foi pela palavra que tudo se fez no mundo como se lê no
livro do Gênesis, da Bíblia Sagrada: “No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava
informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus
disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita. [...]”(1975, p. 49). Não como negar a importância
da palavra na sociedade ocidental, pois é por meio dela, escrita ou falada, que se nomeiam as
coisas do mundo e se torna possível a existência da comunicação.
Na construção do texto, a palavra é a linguagem verbal, a linguagem escrita que segue
as regras do funcionamento alfabético. Necessita, portanto, de um leitor plenamente capaz de
decodificar os sinais do alfabeto que, de modo ordenado, constituem graficamente os
símbolos que representam as diferentes idéias, conceitos e objetos existentes no mundo.
Segundo Aguiar (2004), a palavra é arbitrária, nada tem a ver com o que representa, é
uma convenção social conhecida por um grupo como modo sonoro ou gráfico de representar
algo e assim auxiliar na comunicação. Ela é, portanto, um modo criado pelas sociedades para
dar conta da representação do pensamento e da sua conseqüente transmissão.
Na construção do texto, a palavra afasta-se um pouco da sua arbitrariedade, pois é
pensada por alguém. O autor escolhe as palavras, procura uni-las de maneira que o texto seja
construído e que um sentido possa ser percebido. A palavra é arbitrária como elemento de
significado isolado em relação ao que representa, mas a palavra como linguagem verbal que
constitui um texto é plena de sentido, representa algo que não existe por acaso.
40
Dessa forma, o leitor da palavra precisa ser capaz não apenas de decodificá-la, mas
principalmente, de entendê-la, de construir a partir dela algum sentido. O texto palavra exige
um leitor que a decodifique e que a compreenda, isto é, um leitor capaz de decifrar o código
escrito, mas também capaz de construir sentidos e aplicá-los na construção de outros tantos.
Essa função do leitor é reforçada pelo fato de o texto em questão aqui ser literário. O
sentido construído a partir da união dos signos, não será explícito, exige do leitor um esforço
para interagir com o objeto de leitura, buscando assim preencher as lacunas construídas pelo
modo com que as linguagens são aplicadas e organizadas na construção do texto literáriol.
O texto palavra constituído pela linguagem verbal não é racional, não é
exclusivamente social. Ele traz essas características, mas é principalmente um texto que
necessita do olhar do leitor, pois os seus sentidos dependem do sujeito que os constrói. A
palavra no texto literário deixa a sua racionalidade e arbitrariedade um pouco de lado e
assume um caráter subjetivo e pessoal no momento em que interage com o leitor, pois
segundo Aguiar (2004), a literatura sugere situações que são válidas para todos os seres
humanos por meio da palavra arbitrária que para cada um sugere uma imagem diferente.
O texto literário, portanto, por meio da sua linguagem verbal, do modo com que se
apresenta ao leitor, conduz à construção de imagens mentais únicas em cada interação com
cada sujeito. A palavra passa a ser também imagem, sempre pronta para ganhar uma nova
configuração a cada nova leitura, pois a literatura, como arte que é, “é aberta, não se fecha em
uma única interpretação, está sempre pronta para uma nova leitura” (AGUIAR, 2004, p. 38).
Dessa forma, ler o texto palavra é também ler imagens, mesmo que mentais, invisíveis ao
olhar de quem não está lendo, mas plenamente visualizáveis ao olhar do leitor.
1.3.2 Texto imagem
Possivelmente, todo leitor capaz de ler o texto palavra é, também, capaz de ler o texto
imagem. O olhar que decodifica o código alfabético dando sentido às letras, percebendo
sílabas, palavras ou frases, também a imagem, o desenho, a ilustração e pode perceber
detalhes e construir sentidos, formando a partir da imagem concreta, também uma imagem
mental, pois segundo Dondis (1997), “visualizar é ser capaz de formar imagens mentais” (p.
41
14). Assim, o texto imagem apesar de apresentar uma configuração obviamente diferente do
texto palavra, é passível de leitura e de construção de significados.
Ler o texto palavra é decodificar os sinais alfabéticos, é perceber o que está implícito e
explícito nas palavras e no modo com que elas se organizam. Ler o texto imagem é deparar-se
com cores, formas, texturas que atraem ou que repelem, e que, tanto quanto a palavra,
permitem ao leitor formar novos sentidos por meio da leitura.
O texto imagem, valendo-se de todo e qualquer estímulo visual, está presente em
nossas vidas desde que nos deparamos com o mundo. Intuitivamente o olhar percorre as
imagens apresentadas pelo mundo e esse mundo. A leitura desse texto é, portanto, natural,
mas precisa se tornar consciente para que esse códigoo se torne apenas enfeite associado à
palavra.
A leitura do texto palavra exige o aprendizado dos sinais alfabéticos, da organização
lingüística na linguagem escrita. A leitura da ilustração exige, segundo Panozzo (2001), a
educação do olhar como parte importante do processo educativo, para que as imagens se
tornem elementos relevantes na construção do conhecimento de modo consciente,
independente e crítico.
O texto focalizado nessa pesquisa é a narrativa verbo-visual. Nessa modalidade
narrativa, a ilustração não exerce apenas a função de enfeitar, ela agrega sentido à palavra,
tem função por si mesma. E, por ser assim, possui um discurso próprio, um significado
inscrito e aberto aos olhos do leitor atento (PANOZZO, 2001). E esse discurso precisa ser
percebido pelo leitor para que o código visual seja decifrado, seja lido e assim se torne
verdadeiramente um texto.
1.3.3 Texto: interação da palavra com a imagem
Duas linguagens distintas, mas com um único fim, construir um texto, uma unidade de
sentido, não um sentido único. Assim é o texto literário que apresenta a palavra associada à
imagem. A sua amplitude de significado atinge tanto o verbal quanto o visual, ambos
precisam ser lidos para que, essa unidade de sentido que eles constroem, exista plenamente a
partir da visão do leitor.
42
Em uma narrativa verbo-visual ou em qualquer outro tipo de texto que associe palavra
à imagem não como ignorar a presença de uma linguagem ou de outra. Visualidade e
palavra se articulam, interagem, dialogam de tal maneira que, segundo Azevedo (1997), é
impossível negar a influência de uma sobre a outra.
O texto não pode ser visto apenas como palavra, nem apenas como imagem. Passa a
ser um texto palavra-imagem, associando a linguagem verbal com sua organização própria à
linguagem visual com sua gramática visual. Por trás de ambos está a construção de imagens.
O primeiro proporciona ao leitor a visão de imagens mentais que surgem a partir do abstrato
código escrito, o segundo vale-se das cores, linhas, texturas e formas figurativas para atrair o
olhar do leitor e convidá-lo a construir outras tantas imagens possíveis. Ambos, portanto,
exercitam a capacidade imaginativa do sujeito a partir do seu contato com o texto que se
apresenta.
Não se mede, portanto, a importância de um ou de outro: “o texto escrito e a ilustração
apresentam contribuições específicas para a leitura integral da história” (FARIA, 2005, p.41).
Tudo é texto, tudo deve ser lido, compreendido e utilizado na construção dos possíveis
significados. E é essa construção de sentidos, a partir da leitura da palavra e da imagem de
maneira isolada e em interação na estrutura narrativa que se propõe no capítulo seguinte.
43
CAPÍTULO 2
NARRATIVAS VERBO-VISUAIS: possibilidades semânticas
Ilustração de André Neves, no livro Seca, Paulinas, 2000, p. 4-5.
CAPÍTULO 2
NARRATIVAS VERBO-VISUAIS: possibilidades semânticas
Uma narrativa conta uma história e, apenas por isso, atrai atenção de qualquer
sujeito. O meio utilizado para contar essa história pode ser um atrativo a mais e significar um
convite para que ela se torne, também, um pouco da autoria de quem escuta ou lê. Segundo
Barthes (1973), uma “narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita,
pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias”
(p. 19). A estrutura narrativa aqui analisada não se sustenta apenas por meio de uma única
linguagem, mas a partir de duas, que apesar de diferentes na sua forma, se apresentam de
maneira interativa na construção da estrutura textual. Por isso, o leitor desse tipo de texto,
depara-se com a necessidade de decodificar e compreender não apenas a linguagem verbal,
mas também a visual, para que a sua interação com o texto, no processo de leitura, seja plena.
Dessa forma, analisar as possibilidades semânticas em uma narrativa verbo-visual
significa examinar o texto narrativo a partir das duas linguagens que o constrói. É perceber, de
que maneira, o verbal e o visual separadamente e, também em interação, se apresentam e
interferem no estabelecimento da narrativa que, segundo Genette (1979), pode ser explicada
de três modos distintos: primeiro como “o discurso oral ou escrito que assume a relação de
um acontecimento ou de uma série de acontecimentos” (p. 23), segundo, como “a sucessão de
acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objecto (sic) desse discurso, e as suas
diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição, etc.” (p. 24), e por fim, como o
ato de narrar em si.
2.1 Interação da palavra e da visualidade na construção da narrativa
De acordo com Genette (1979), na realidade narrativa “o discurso narrativo é o único
que se oferece directamente (sic) à análise textual, que é por sua vez o único instrumento de
estudo de que dispomos no campo da narrativa literária, e, especialmente, da narrativa de
ficção” (p. 25). Esse discurso nas narrativas verbo-visuais está presente tanto na palavra
quanto na imagem e, portanto, ambos os códigos devem ser estudados como meio de análise
do texto narrativo.
Segundo Faria (2005, p. 40), “a relação entre a imagem e o texto [...] pode ser de
repetição e/ou de complementaridade, de acordo com os objetivos do livro e a própria
concepção do artista sobre a ilustração do livro infantil”. A partir dessa relação entre verbal e
visual é preciso considerar que a ilustração que acompanha a palavra, presente em narrativas
verbo-visuais, não está colocada junto ao verbal por acaso, ela possui uma determinada
função. Sendo assim, Camargo (1995) aponta e explica oito funções distintas (p. 33-37):
- pontuação, destaca algum elemento do texto verbal, indicando o seu início ou fim. Essa
indicação é dada pelo que se chama vinheta ou pela capitular;
- descrição, como o nome diz, esse tipo é usado para descrever lugares, personagens,
objetos. Ela é bastante usada em livros didáticos ou informativos;
- narração, está associada ao contar um fato, uma ação;
- simbólica, representa uma idéia, é muito usada através das metáforas presentes no texto;
- expressiva, revela emoções ou valores apresentados nas palavras do texto;
- estética, atrai a atenção do leitor pela maneira com que foi feita. Interessa, segundo Camargo
(1995) a linguagem utilizada (pintura, colagem, montagem, etc.), para representar as idéias,
personagens ou ações;
- lúdica, porque pela maneira com que foi feita torna-se um brinquedo ou um jogo, por
exemplo, os livros de pano ou com recortes vazados;
46
- metalingüística, porque representa a própria linguagem, seja a fala de um personagem ou
algum elemento que poderia ser mostrado pela escrita, por exemplo, uma seta indicando uma
direção que poderia ser representada por palavras.
A identificação da função exercida pela ilustração que acompanha a palavra auxilia na
análise que se faz dessa ilustração no que diz respeito à interação das linguagens e,
conseqüentemente, no processo de construção de sentido executado pelo leitor no ato da
leitura. Palavra e ilustração devem ser consideradas na construção da narrativa que se
apresenta no livro, pois cada uma possui a sua narração e contribui de alguma maneira para
que o sentido seja construído (FARIA, 2005). E se cada uma possui a sua narração, possui
também a sua leitura:
Na leitura da escrita, o olho percorre a linha impressa da esquerda da [sic] direita e
de cima para baixo, linha a linha, e a leitura se efetua pela trajetória do olhar. Mas,
numa imagem, a trajetória do olhar não é linear: o olhar percorre a ilustração em
diversas direções, orientadas pelas características da imagem
(FARIA, 2005, p.
40)
.
No entanto, para que tanto a leitura da palavra quanto da visualidade seja feita, é
necessário que o leitor esteja consciente de que ambas são objetos de leitura, ao mesmo tempo
isoladas e de modo interativo. Se o leitor não tiver consciência disso, é preciso que ele seja
auxiliado mesmo sendo a leitura considerada “uma atividade em parte individual e solitária”
(FARIA, 2005, p. 116). Além de ser solidária, pois o ato de ler torna-se solidário por implicar
uma “troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade em que
ambos estão localizados” (COSSON, 2006, p. 27). Por isso, uma leitura mediada é um
caminho a ser seguido para influenciar positivamente o leitor ainda não maduro nesse
processo de leitura que envolve dois elementos distintos, como “um concerto de muitas
vozes” (COSSON, 2006, p. 27), construindo o texto de modo interativo, solidário e, ao
mesmo tempo, individual.
Mesmo tendo por base a idéia de que nenhum leitor e, portanto, nenhuma leitura é
igual à outra, existem possibilidades de construção de sentido que são trazidas pelo texto de
modo implícito, isto é, estão à disposição do leitor para serem reveladas. Dessa forma, o que
se segue é uma análise das possibilidades semânticas disponíveis nas narrativas verbo-visuais
47
utilizadas nesse estudo
2
. Trata-se de cinco obras que contemporaneamente circulam no
mercado editorial e que possuem como característica principal a interação entre o verbal e o
visual na sua concepção textual sendo elas: O beijo (2003), escrita e ilustrada por Valerie
D’Heur, Ah, cambaxirra se eu pudesse... (2003) adaptada por Ana Maria Machado e ilustrada
por Graça Lima, Indo não sei aonde buscar não sei o quê (2000) escrita e ilustrada por
Ângela Lago, Raposa (2005), escrita por Margaret Wild e ilustrada por Ron Brooks e,
Menino chuva na rua do sol (2003) escrita e ilustrada por André Neves.
2.1.1 O Beijo: a estrutura narrativa na interação da palavra e da visualidade
A narrativa O beijo é escrita e ilustrada por Valerie D’Heur. Publicada originalmente
na Bélgica no ano de 2000, aqui no Brasil é uma publicação da editora Brinque-book, do ano
de 2003. Essa narrativa apresenta na sua construção a palavra e a imagem de modo interativo
o que se constitui em importante elemento no processo de compreensão da leitura.
A imagem e a palavra apresentam-se ao longo de todo o livro, sempre interligadas.
Sob o ponto de vista quantitativo, a imagem destaca-se, desde a capa que evidencia a figura
dos personagens que desencadeiam a ação. A cada dupla de páginas, o leitor se depara com
ilustrações que dominam a cena, mostrando o local onde a ação está ocorrendo e os
personagens que dela fazem parte. À palavra, escrita em letras médias e caixa alta, destina-se
a parte superior da página, deixando livre a ilustração aos olhos do leitor. Portanto, palavra e
imagem associam-se na construção da narrativa, mas não sobrepostas uma à outra, isto é, uma
não impede a visão completa da outra. O diálogo entre as linguagens se na construção de
sentido decorrente da leitura, e não na maneira com que elas se mostram na configuração das
páginas.
A obra de Valerie D’Heur, comonero narrativo, é um conto que narra a história de
um filho que ao ver a mãe sair de casa fica triste por ela ter esquecido de dar-lhe um beijo. A
procura do filho, por alguém que lhe um beijo que substitua o da mãe, é a carência que
percorre a narrativa, até o momento em que o filho conclui que muito melhor do que ganhar
um beijo é dar um beijo e, por encerrada a sua procura, dando um beijo em alguém para
suprir a sua necessidade de afeto.
2
Os critérios de escolha dessas obras, no contexto desse estudo, serão apresentados posteriormente, no Capítulo
4 na descrição do processo metodológico da pesquisa.
48
Nesse conto é possível identificar os dez fatores estruturantes de uma narrativa,
apontados por Coelho (1991): narrador, foco narrativo, enredo, efabulação, gênero narrativo,
personagens, espaço, tempo, linguagem e leitor ou ouvinte. Cada um desses fatores pode ser
percebido na construção do texto tanto na palavra quanto na visualidade, às vezes mais
facilmente percebido em um elemento do que em outro, mas sempre presente em um deles.
O narrador, definido por Reis e Lopes (1990, p. 249) como “entidade fictícia a quem,
no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso”, no conto de D’Heur, revela sua
voz na palavra e apresenta-se ao leitor na imagem. Trata-se de um narrador autodiegético
(GENETTE, 1979), isto é, um narrador que não apenas está presente na narrativa como
personagem, mas também relata as suas próprias vivências, que é o personagem principal
dos fatos narrados. Isso é percebido na palavra pela utilização da primeira pessoa na
organização do discurso: “Eu preciso encontrar alguém para me dar um beijo” (D’HEUR,
2003, p.11).
Na visualidade, a ilustração do bebê pássaro apresenta ao leitor a figura do narrador.
Nesse caso, a função descritiva, apontada por Camargo (1995), é bastante evidenciada. A
tristeza do narrador autodiegético, ao ver a mãe partir sem lhe dar um beijo (D’HEUR, 2003,
p. 6-7), está expressa no olhar do bebê pássaro, na sua postura encolhida e no bico
entreaberto, perguntando: “Mamãe, e o meu beijo?” (D’HEUR, 2003, p. 6)
3
.
Páginas 6 e 7, de O beijo
O foco narrativo ou ponto de vista de onde os fatos são narrados é interno. Trata-se,
segundo Genette (1979, p. 172), de um discurso imediato: que o essencial [...] não é o ser
interior, mas surgir logo à primeira (“desde as primeiras linhas”) emancipado de qualquer
patrocínio narrativo, a ocupar logo ao primeiro lance a frente da “cena””. A voz do narrador é
3
As citações textuais da obra analisada serão referenciadas apenas pela página relativa à edição usada nesse
estudo.
49
ouvida, mas aos poucos ela é substituída pela voz da personagem que gradativamente domina
a narrativa e a focalização passa a ser interna, no sentido de que a visão que se tem é a do
personagem, é a sua maneira de ver e sentir os fatos que se apresentam. Isso porque, o
narrador fala de dentro da ação narrativa que, além disso, se desenvolve a partir da sua figura
como protagonista. A palavra, a partir do próprio personagem, apresenta os fatos e os
sentimentos decorrentes do esquecimento da mãe, demonstra também a maneira com que o
personagem lidou com esse sentimento de tristeza, tentando superá-lo. A imagem representa
fisicamente, na figura do bebê pássaro, toda essa ação e evolução, atraindo o olhar do leitor
para esse ponto de vista que domina a cena.
A palavra em interação com a imagem, por meio do narrador e dos personagens,
organiza e apresenta os fatos ao leitor. Portanto, em relação ao enredo, palavra e imagem
associadas apresentam o desenrolar das ações, desde o fato inicial, quando a mãe sai de casa
deixando o filho e esquecendo de dar-lhe o beijo, passando pela tentativa do filhote resolver o
seu problema a vontade de ganhar um beijo—, até chegar ao desfecho quando o pequeno
pássaro acaba por perceber que o seu problema pode ser resolvido de outra maneira, ao invés
de procurar alguém que lhe um beijo, ele mesmo pode dar um beijo em alguém. Dessa
forma, a efabulação, ou a maneira com que os fatos se organizam se por meio de relações
de causa e efeito, apresentando-se de modo sucessivo e cronológico (SARAIVA, 2001),
partindo de um problema a falta do beijo —, passando por tentativas de solucionar esse
problema a busca por alguém que um beijo no lugar da mãe —, e, por fim, chegando a
uma solução — “é tão gostoso dar um beijo quanto ganhar um beijo”(p. 27).
Os personagens da narrativa são conhecidos pelo leitor mais pela imagem do que pela
palavra. O narrador-personagem, ao descrever a sua busca por alguém que lhe um beijo,
apresenta alguns personagens encontrados: o rinoceronte, a avestruz e a girafa. Há, no
entanto, outros personagens, além da mãe, do filho e desses animais citados na palavra, que só
são conhecidos pelo leitor ao ler as imagens. Um deles inclusive completa o sentido da
palavra, fazendo com que o leitor entenda o real perigo que o bebê-pássaro corre ao pensar em
pedir um beijo para ele. Trata-se de um tigre-dente-de-sabre que apenas observa o bebê
pássaro enquanto este conjectura: “Será que posso pedir um beijo a ele? Será que me atrevo a
perguntar?” (p. 18). O personagem dialoga consigo mesmo e com o leitor ou ouvinte a
respeito do que será melhor fazer, pedir o beijo ao tigre ou não. É apenas a imagem,
destacando as unhas e grandes dentes do animal, que dá a resposta.
50
Páginas18 e 19, de O beijo
Sob o ponto de vista da imagem os aspectos temporal e espacial ficam implícitos. O
tempo transcorrido é, provavelmente, de um dia e o espaço é um local onde existem animais.
A partir da ilustração descobre-se que, provavelmente, o local onde se passa a história é o
habitat de animais selvagens, tais como girafa, avestruz ou tigre-dente-de-sabre, talvez um
local na África onde esses animais são mais comumente encontrados. Com relação ao tempo
transcorrido do início ao fim da ação narrativa, o leitor observador pode perceber que a
coloração do horizonte, que domina a cena, modifica-se de um amarelo alaranjado nas
páginas 2 a 5, para um azul esmaecido entre nuvens brancas a partir das páginas 6 e 7 e que
em seguida torna-se mais azul até chegar às páginas 26 e 27. Isso demonstra que a história se
passa ao longo de um dia, partindo do amanhecer, quando o sol é brilhante e suas cores
dominam a coloração do horizonte, até chegar ao entardecer quando um azul mais escuro
começa a prevalecer no céu.
A palavra, sob uma ótica discursiva, caracteriza o tempo nessa narrativa como
ulterior, isto é, narra utilizando o tempo pretérito, buscando a aproximação entre o tempo da
narração e o tempo da história. (GENETTE, 1979). Além disso, a presença do tempo presente
nas primeiras falas do personagem evidencia contemporaneidade (GENETTE, 1979),
aproximando ainda mais o tempo da narração do tempo da história, dando um tom de
simultaneidade a ambos e, assim, também aproximando os fatos do leitor.
Toda vez que mamãe sai, é a mesma história.
Ela me diz o que é para fazer durante o dia e depois me um beijo. Ela quer o
meu bem, a mamãe (p. 5).
A estrutura narrativa do conto O Beijo não se apresenta apenas por meio da palavra. A
linguagem verbal, portanto, não é a única responsável pela construção dessa estrutura. Essa
51
narrativa se a partir da interação entre palavra e imagem, do diálogo entre linguagem
verbal e linguagem visual, cada uma simultaneamente, ou, a seu tempo revelando os
elementos estruturantes da narrativa para assim construir o conto.
Para compreender esse conto, não basta ao leitor apenas decodificar a palavra, é
fundamental que ele se permita ver a imagem relacionando-a à palavra. Isso porque, “o texto
escrito e a ilustração apresentam contribuições específicas para a leitura integral da história, e,
portanto, têm funções diferentes no conjunto texto/imagem” (FARIA, 2005, p. 41). Juntas, as
linguagens verbal e visual contam a mesma história, mas cada uma apresenta determinados
elementos, o que faz com que a visão dissociada delas ao leitor uma visão diferente do
todo da narrativa.
2.1.1.1 A palavra: possibilidades semânticas
A palavra traz ao leitor a voz de um personagem que busca o afeto de alguém por
meio de um beijo. Tudo isso porque sua mãe, ao sair, esqueceu de lhe dar um beijo.
A presença da figura da mãe na configuração do problema, a procura por alguém que
lhe um beijo, diz ao leitor que esse personagem é, provavelmente, uma criança, um filho
dependente de um beijo, de um carinho materno. É também um ser temeroso de seus atos:
“Será que posso pedir um beijo a ele? Será que me atrevo a perguntar?” (p. 18), que precisa
ainda da aprovação para saber o que é certo e o que é errado.
A solução para o problema, a procura pelo beijo, encontrada pelo personagem
modifica um pouco essa visão, pois ele deixa de ser carente ao descobrir que as suas
necessidades podem ser supridas não apenas recebendo algo, mas oferecendo esse algo. No
caso, o afeto através de um beijo, tão bom quanto receber é oferecê-lo.
A visão de que esse personagem é alguém próximo da faixa etária infantil, no entanto,
não se dissipa. Assim como não fica claro, a partir da palavra de modo isolado, se o
personagem é um ser humano, uma criança, um animal ou um filhote. A palavra dá ao leitor o
tom do discurso do protagonista, um tom infantil, frágil, temeroso e triste no início, mas, ao
final, feliz com o sentimento de retribuição descoberto.
52
A palavra não deixa claro, também, em que local se passa a ação. A presença de
animais na fala da personagem revela ao leitor que o local talvez seja um lugar onde existam
animais, talvez sugerindo um zoólogico. No entanto, as possibilidades de leitura estão abertas
à imaginação do leitor.
2.1.1.2 A visualidade: possibilidades semânticas
A imagem associa-se à palavra, complementa, reforça e agrega sentidos a ela. É por
meio das imagens que o leitor conhece o narrador que também é o protagonista, e lhe
configura como um pequeno pássaro. A voz do narrador-personagem, na palavra, é a de um
ser indefinido, provavelmente um ser humano. No entanto, ao representar visualmente esse
personagem como um pequeno pássaro, entra em jogo por meio da ilustração, a questão da
fantasia, do “maravilhoso”, como formas de representação da experiência humana (COELHO,
1991, p. 50).
O leitor depara-se com esse filhote vivenciando uma situação humana, narrada por
meio da linguagem verbal, característica fundamental do homem. Isso talvez pareça absurdo
para um leitor que não saiba lidar com a fantasia, com as possibilidades do mundo
maravilhoso, onde tudo é praticamente possível. No entanto, a estratégia de colocar um
personagem não humano, vivendo uma experiência humana é bastante comum na literatura,
principalmente, na infantil. É uma maneira de aproximar o mundo fantasioso do mundo real,
de ajudar o leitor a entender “os eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu
amadurecimento emocional” (COELHO, 1991, p. 50).
Além disso, a ilustração não restringe as possibilidades de leitura, pelo contrário,
amplia os sentidos. Não se trata de um ser humano específico, de um tipo de criança, branca,
negra ou índia, bonita ou feia, rica ou pobre. O narrador-personagem é um filhote que fala e
sente como uma criança, uma criança qualquer, não há uma visão pré-definida.
Não é apenas com relação ao narrador-personagem que a visualidade tem destaque na
construção da narrativa. Somente a ilustração apresenta um personagem que acompanha o
pequeno pássaro, praticamente, do início ao fim de sua jornada. O animal, que se parece com
um cervo, segue o pássaro em todas as suas ações como se fosse um guardião distante, um
observador que não interfere, mas que sofre, acalma-se, alegra-se e observa tudo. O seu olhar,
53
representado na visualidade, em determinadas páginas, denuncia a sua co-participação como
um observador de tudo que se passa. Trata-se de um personagem expectador que se assemelha
a figura do leitor que a tudo observa sem poder interferir diretamente.
Por exemplo, nas páginas 6 e 7, quando a mãe voa distante e o filhote questiona-a
sobre o beijo, o cervo, volta seu olhar para a mãe voando longe, como se a partir daquele
momento sua atenção tivesse sido voltada para a ação que se inicia. Nas páginas que seguem a
sua presença nem sempre é tão explicita, até que no momento que o pequeno pássaro pensa
em pedir um beijo para um temível tigre-dente-de-sabre (‘D’HEUR, 2003, p. 18-19), esse
personagem observador reaparece demonstrando estar apavorado diante da situação de perigo
que o pequeno filhote está se colocando. A sua expressão de alívio diante da atitude de não
pedir um beijo ao tigre, tomada pelo pássaro, é percebida por um esboço de sorriso enquanto
corre acompanhando o filhote que voa (D’HEUR, p. 20-21). A mesma expressão de alegria
encontra-se nas páginas 24 e 25, quando o filhote retorna e decide dar um beijo ao invés de
receber um beijo.
Páginas 6 e 7, de O beijo Páginas 18 e 19, de O beijo
Páginas 20 e 21, de O beijo Páginas 24 e 25, de O beijo
O espaço onde se passam as ações, como já foi dito, só fica claro para o leitor devido à
presença da ilustração. E um aspecto importante a ser destacado é o de que alguns elementos
da visualidade se revelam aos poucos para o leitor atento. O local onde o filhote e sua mãe
54
moram, se apresenta página a página aos olhos do leitor. De um monte marrom que se
percebe das páginas 2 a 9, ele se revela em um enorme rinoceronte, tomado como a casa dos
personagens por ser ponto de partida e de retorno do pequeno filhote em busca de seu beijo e,
de retorno, em busca de seu beijo.
A partir desses aspectos destacados, percebe-se que a ilustração, na narrativa O beijo,
não pode ser considerada apenas um complemento da palavra. A sua função não é apenas
preencher espaços deixados pelo verbal. Ela agrega sentidos à linguagem verbal, ou melhor, à
narrativa como um todo. Dentre as funções apontadas por Camargo (1995), a imagem aqui
analisada, segundo o que foi apontado, descreve, narra, representa idéias e expressa
sentimentos. Enfim, a ilustração não está no texto somente para enfeitar, mas sim como
elemento construtor de sentido e, portanto, elemento fundamental a ser considerado no
processo de leitura.
2.1.2 Ah, cambaxirra se eu pudesse... : a estrutura narrativa na interação da palavra com
a visualidade
A narrativa Ah, cambaxirra se eu pudesse... é um conto popular, adaptado por Ana
Maria Machado e ilustrado por Graça Lima. A edição estudada foi publicada pela editora
FTD, no ano de 2003, e faz parte da coleção Conta de Novo. uma edição anterior dessa
obra, publicada no ano de 1991 pela Editora Salamandra, porém ilustrada por Gerson
Conforto. Optou-se, no entanto, pela análise da obra publicada em 2003 devido à maior
interação entre palavra e ilustração que se dá na construção do texto.
O conto narra, por meio da acumulação de fatos ou personagens que se repetem como
um refrão, a história de um pássaro, a cambaxirra, que estava fazendo seu ninho na árvore de
galho mais bonito da floresta quando, de repente, um lenhador aparece para cortá-la. A
cambaxirra implora que ele não corte a árvore, mas ele diz estar obedecendo às ordens de
alguém e nada pode fazer, pois tem medo dessa pessoa. O pássaro não desiste de salvar a sua
árvore e, conseqüentemente, seu ninho e vai em busca dessa pessoa, que no início é o capataz,
para pedir que ele impeça o lenhador de cortar a árvore. No entanto, o capataz também es
obedecendo às ordens de outro, o barão, que obedece ao visconde, que por sua vez obedece ao
conde. A ave-protagonista, mesmo tendo que percorrer todas essas pessoas e seus demais
55
superiores como o marquês, o duque até chegar ao imperador o mais poderoso de todos, não
desiste de salvar a sua árvore.
A narrativa se constrói, então, a partir desse caminho percorrido pela cambaxirra em
busca da pessoa mais poderosa que poderá enfim salvar a árvore de galho mais bonito da
floresta onde ela está construindo seu ninho. Para isso, ela sempre faz o seu pedindo,
agregando uma nova pessoa e sempre ouve a mesma resposta “Ah, cambaxirra se eu
pudesse... mas o é comigo. Estou cumprindo ordens.” —, até encontrar o imperador. É
ele quem, por fim, coloca um ponto final na peregrinação da cambaxirra e salva a árvore, não
pelo seu poder, que seria maior do que o dos outros humanos presentes no conflito, mas pelo
temor frente a ameaça feita pela cambaxirra: pedir ajuda a todo mundo junto. No final, a
pequena ave é a mais poderosa, não pelo seu tamanho, quantidade de dinheiro, ou posição
social, mas pela sua persistência.
A estrutura narrativa é baseada na retomada constante de personagens por meio da
repetição de seus postos hierárquicos no pedido da cambaxirra:
Capataz, por favor, não ordem ao lenhador para derrubar a árvore de galho
mais bonito onde estou fazendo meu ninho. (p. 11)
4
Barão, por favor, não ordem ao capataz para dar ordem ao lenhador para
derrubar a árvore de galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho. (p. 13)
Visconde, por favor, não ordem ao barão para dar ordem ao capataz para dar
ordem ao lenhador para derrubar a árvore de galho mais bonito onde estou fazendo
meu ninho. (p. 15)
Conde, por favor, não ordem ao visconde para dar ordem ao barão para dar
ordem ao capataz para dar ordem ao lenhador para derrubar a árvore de galho mais
bonito onde estou fazendo meu ninho. (p. 17)
— Marquês, por favor, não dê ordem ao conde para dar ordem ao visconde para dar
ordem ao barão para dar ordem ao capataz para dar ordem ao lenhador para
derrubar a árvore de galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho. (p. 19)
4
As citações textuais da obra analisada serão referenciadas apenas pela página relativa à edição usada nesse
estudo.
56
Duque, por favor, não ordens ao marquês para dar ordem ao conde para dar
ordem ao visconde para dar ordem ao barão para dar ordem ao capataz para dar
ordem ao lenhador para derrubar a árvore de galho mais bonito onde estou fazendo
meu ninho. (p. 21)
Imperador, por favor, não ordem ao duque para dar ordem ao marquês para
dar ordem ao conde para dar ordem ao visconde para dar ordem ao barão para dar
ordem ao capataz para dar ordem ao lenhador para derrubar a árvore de galho mais
bonito onde estou fazendo meu ninho. (p. 23)
A cambaxirra é o fio condutor que costura os fatos e personagens da história. O fato
central é o pedido da cambaxirra para salvar a sua árvore, e é por meio dela que todos ficam
sabendo do seu desejo.
Os elementos estruturantes apontados por Coelho (1991, p. 65), também podem ser
identificados nessa história. Em se tratando de um conto popular, provavelmente de origem
oral, o narrador não é apenas um personagem, é um contador de histórias.
De acordo com a definição de Genette, (1979, p. 244), o narrador de Ah, cambaxirra
se eu pudesse... é um narrador heterodiegético, isto é, está fora da narrativa, não é, portanto,
um personagem, não faz parte da ação, mas sabe de todos os fatos. O leitor percebe a presença
desse narrador apenas na palavra, isto é, na voz discursiva que permeia a narração.
O ponto de vista da narração dos fatos é exterior, o narrador assume posição de apenas
contá-los sem expor a sua opinião ou juízo com relação a nenhum dado. Para isso, organiza a
história a partir de uma estrutura linear, isto é, “segue a seqüência normal dos fatos: princípio,
meio e fim” (COELHO, 1991, p. 67). A tranqüilidade inicial da cambaxirra que constrói seu
ninho no galho da árvore é interrompida pela chegada do lenhador que veio para cortá-la. A
partir desse fato, a cambaxirra sai em busca da ordem da pessoa que poderá impedir o
lenhador de cortar a sua árvore. Até chegar ao imperador que, por meio das ameaças da
cambaxirra, resolve o problema do pássaro.
Toda organização dos fatos, partindo de um momento de tranqüilidade, passando pelo
conflito, por uma tentativa de solução até chegar à resolução com final feliz, desenrola-se a
partir de duas perspectivas: a verbal e a visual. A narrativa, desse conto popular, não se
57
apenas no nível da linguagem verbal, mas também a partir da linguagem visual, pois ambas
trazem sentidos para a construção e compreensão do texto.
O projeto gráfico da narrativa apresenta palavra e imagem dispostas ao longo do livro
do mesmo modo por todas as páginas. A imagem está na página esquerda, enquanto a palavra
é lida sempre na direita. Essa distribuição invariável, do código verbal e do visual, deixa claro
que a imagem é a primeira via de acesso do leitor ao texto, tendo em vista que a leitura, na
cultura ocidental, ocorre da esquerda para a direita.
É por meio da imagem que o leitor primeiro conhece a cambaxirra, personagem
central dos fatos narrados, assim como todos os demais personagens envolvidos na ação. A
palavra surge na página ao lado como a voz discursiva do narrador, acrescentando
informações, dando voz aos personagens no enredo.
Na estrutura narrativa, a imagem também tem a função de apresentar os diferentes
locais onde se dá a ação. Os lugares por onde a cambaxirra passa, desde a floresta, onde está a
árvore de galho mais bonito, até os locais onde moram cada uma das pessoas que podem
salvar a árvore, estão representados na imagem. A floresta, local central da trama, se mostra
aos olhos do leitor nas ginas 2 e 3, com grandes árvores, de diferentes espécies, e com
vários pássaros que voam ao redor delas.
Páginas 2 e 3 de, Ah, cambaxirra se eu pudesse..
Na página 6, o leitor, então, encontra-se com a cambaxirra construindo seu ninho no
galho da árvore que agora se sabe possui galhos finos com pequenas folhas na cor arroxeada.
A gina seguinte, que traz a palavra, informa ao leitor que essa árvore não é uma árvore
qualquer, trata-se da “árvore de galho mais bonito da floresta”.
58
Página 6, de Ah, cambaxirra se eu pudesse...
A passagem do tempo, elemento estruturante na narrativa, no entanto, não fica clara
nem na palavra, nem na imagem. Fica implícito na narrativa, que o tempo transcorrido não foi
curto, pois afinal a cambaxirra dirigiu-se a diversas pessoas, percorrendo vários lugares até
conseguir salvar a sua árvore.
O diálogo estabelecido entre palavra e imagem na construção do conto que narra a
história da cambaxirra é percebido também na configuração da característica principal que
estrutura a narrativa: a acumulação de episódios que são costurados como uma colcha. O fio
condutor dessa agregação de fatos é a cambaxirra com seu desejo de salvar a sua árvore. Na
palavra, comofoi dito, isso é percebido por meio do pedido da protagonista a cada uma das
pessoas. Na ilustração, esse agrupamento de fatos que se costuram formando a narrativa está
representado por um barbante amarelo, como se fosse um fio condutor. Esse barbante surge
na capa, escrevendo o título, e reaparece na página 4, destacando a imagem da cambaxirra, ao
circulá-la e, a partir da página 7, está sempre presente em formato espiral, na parte superior da
página, enrolando, no novelo da narrativa, os personagens e suas ações.
2.1.2.1 A palavra: possibilidades semânticas
No conto Ah, cambaxirra se eu pudesse..., o discurso verbal traz a voz do narrador
contador de histórias. O aspecto tradicional de um conto popular pode ser percebido na
abertura: “Era uma vez uma cambaxirra...”(p. 7).
O discurso verbal oscila entre a voz do narrador, que situa o leitor com relação aos
fatos e personagens que constituem a narrativa, e a voz dos personagens. Trata-se de um
discurso que apesar de ser apresentado na linguagem escrita, carrega consigo o aspecto oral
59
do ato de contar histórias. Um bom mediador de leitura pode com sucesso fazer uso dessa
diferenciação de vozes, claramente delimitada na narrativa, para tornar a leitura ainda mais
prazerosa.
A voz do narrador traz para o leitor/ouvinte as descrições do espaço, dos personagens
e de algumas de suas ações, além de organizar os fatos, isto é, a seqüência na qual as ações
vão acontecendo. É essa voz que introduz as falas dos personagens e situa o leitor/ouvinte na
alternância de turnos das vozes de cada personagem durante os diálogos com a cambaxirra.
2.1.2.2 A visualidade: possibilidades semânticas
A imagem no conto analisado é a porta de entrada do leitor para a narrativa. Isso
porque ela se apresenta sempre na página à esquerda e, por isso, ajuda a elucidar alguns
elementos narrativos. Desde a capa ela se sobrepõe à palavra, apresentando os personagens
centrais, a cambaxirra e o imperador e, antecipando o local onde se dará a narrativa. Os
personagens destacam-se no modo com que a ilustração se apresenta em relação ao segundo
plano onde se vê a floresta. Além de estarem localizados em primeiro plano, há uma diferença
no acabamento dos desenhos:
[...]as ilustrações do segundo plano distinguem-se do primeiro por seu aspecto
inacabado traços de contorno visíveis, ultrapassando os limites das figuras,
pintura sem uniformidade e apenas em algumas partes da imagem. Essa
característica do segundo plano é recorrente nas ilustrações do miolo do livro e
parece ser uma estratégia para destacar os personagens, que estão em primeiro
plano (RAMOS, PANOZZO e ZANOLA, mimeo).
É pela imagem que o leitor adentra e conhece a floresta onde vive a cambaxirra. Esse
local se revela aos olhos do leitor nas páginas 2 e 3, com suas grandes árvores, evidenciando a
singularidade e rompendo padrões estéticos. As cores e formas das árvores talvez
surpreendam o leitor que tenha o seu padrão estético ainda engessado em figuras
estereotipadas.
Na página 4, o leitor encontra com a protagonista, o ssaro cambaxirra. Ela se
apresenta destacada pelo fio de barbante amarelo que representa o desenrolar das ações da
narrativa. O desenrolar desse fio se dará a partir das ações da cambaxirra, por isso ela está no
60
centro do círculo que se forma pelo enrolar do fio, é ela quem se apresenta ao leitor, com suas
asas abertas em sinal de estar pronta para tudo que está prestes a acontecer.
Página 4, de Ah, cambaxirra se eu pudesse...
E é dessa maneira ágil que a cambaxirra inicia a sua ação na narrativa. Ela surge
construindo o seu ninho no galho da árvore que se tornará o centro das ações que acontecerão.
E essa agilidade, e também persistência, se repetem nas imagens que se seguem, nas quais a
cambaxirra sempre surge com as asas em movimento e com o bico entreaberto encarando seus
oponentes, e defendendo o seu ponto de vista. Mesmo sendo menor que seus oponentes, ela
demonstra a sua coragem e força, pois consegue atrair a atenção deles que confessam
inclusive suas fraquezas.
Além de apresentar a cambaxirra, a ilustração também revela ao leitor os demais
personagens: o lenhador, o capataz, o barão, o visconde, o conde, o marquês, e o imperador.
Algumas dessas figuras, talvez, sejam desconhecidas do leitor mirim, portanto, a ilustração é
o caminho para apresentá-las. E isso a imagem faz, caracterizando-as, segundo o seu poder.
As figuras de cada um dos personagens aparecem em primeiro plano e a sua relação
com o dinheiro e o poder, que tão claramente ficam expostas na palavra quando cada uma
afirma: “Estou cumprindo ordens.” ou “é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita
lenha. E morro de medo dele.”, na imagem, estão explícitas no modo de vestir. Do pobre
lenhador, com suas calças e botas e uma camiseta cavada, chega-se ao capataz já vestido com
calças e botas mais finas, além de uma camisa com mangas bufantes e um cordão que amarra
o decote, de onde surge uma gola alta, para, em seguida, deparar-se com o barão com sua
camisa cheia de babados e um cinto com uma grande fivela, ou com o visconde que surge
trajando uma longa capa, ou com o conde, enfeitado com jóias que o ornamentam, ou ainda
61
com o marquês em cujo pescoço nota-se uma linda gola cheia de babados, e, depois com o
duque, usando um grande medalhão, provavelmente de ouro, além do chapéu, até chegar ao
imperador, cuja roupa tem babados na camisa, uma casaca vermelha fechada por um grande
cinto, calças curtas bufantes e meias coloridas, além de uma bota preta e, como ornamentos
finais, um lindo manto amarelo ouro sobre as costas e uma grande coroa na cabeça.
Páginas 8, 10, 12 e 14, de Ah, cambaxirra se eu pudesse...
Páginas 16, 18, 20 e 22, de Ah, cambaxirra se eu pudesse...
Essa mesma caracterização de poder é percebida em segundo plano, de uma maneira
menos detalhada, mas possível de extrair sentido. O local onde cada um desses personagens
mora, para onde a cambaxirra ruma em busca de seu objetivo, é delineado atrás de suas
imagens. O leitor atento percebe o traçado da casa do capataz e dos castelos do barão, do
visconde e do marquês.
A mudança de um local para outro decorrente do percurso da cambaxirra também é
percebida pela mudança da cor que domina o fundo da imagem. A cor amarela predomina na
página da palavra, mas nas páginas que apresentam imagens cada uma possui uma cor ou
tonalidade distinta.
62
De acordo com as funções da ilustração apontadas por Camargo (1995), a imagem, na
construção da narrativa Ah, cambaxirra se eu pudesse..., caracteriza-se pelas funções de
descrever, agregando sentido à palavra no que diz respeito aos personagens que são apenas
citados por meio de seu título de nobreza ou atividade exercida; e, também, representar e
expressar a coragem e a tenacidade da cambaxirra, encarando e enfrentando seus oponentes
frente a frente. Além disso, mesmo que pelo estranhamento, as imagens de Graça Lima
exercem também a função estética, subvertendo a visão estereotipada e, principalmente,
abrindo horizontes para a imaginação do leitor mirim ou de qualquer leitor, cujo olhar for
atraído para admirar essas imagens que tanto sentido carregam na construção do texto.
2.1.3 Indo não sei aonde buscar não sei o quê: a estrutura narrativa na interação da
palavra e da visualidade
A narrativa, Indo não sei aonde buscar não sei o quê, escrita e ilustrada por Ângela
Lago, publicada pela editora RHJ, no ano 2000, é a terceira narrativa selecionada para esse
estudo. Trata-se de uma história que apresenta em sua estrutura a figura de um herói que sai
em busca de um objeto mágico, isto é, um objeto que traz a possibilidade de acesso a uma
determinada recompensa decorrente da sua posse (RAMOS, PANOZZO E ZANOLLA,
mimeo).
Segundo a morfologia proppiana (PROPP, 1984), a presença desse tipo de herói
auxilia na caracterização desse conto como maravilhoso. Uma seqüência de fatos bem
marcados um herói, que é submetido a um desafio, parte na tentativa de solucionar esse
desafio, para obter, ao final, a recompensa caracteriza essa narrativa como construída a
partir de uma estrutura tradicional segundo as funções apontadas por Propp (1984). E, isso, é
uma característica importante a ser considerada na análise porque a associação desse:
[...] conto ao esquema narrativo tradicional [...] é um elemento que oferece
legibilidade ao texto. Ou seja, ao encaixar-se em uma estrutura conhecida dos
leitores, a compreensão da narrativa torna-se mais fácil, contribuindo para a
aceitação do conto. Quanto mais elementos conhecidos do receptor são
apresentados no texto, mais legível ele se torna e, conseqüentemente, maiores
possibilidades terá de ser aceito (RAMOS, PANOZZO E ZANOLLA, mimeo).
A apresentação do personagem, futuro herói da história, é o ponto de partida
habitualmente identificado em um conto maravilhoso (PROPP, 1984). “Seinão”, bastante
63
tímido e considerado por todos como “um menino muito zonzo” (LAGO, 2000, p. 5)
5
, é o
personagem, futuro herói, apresentado ao leitor. Esse menino bobo é desafiado por uma
arrogante princesa a cumprir uma tarefa praticamente impossível. O desafio da princesa, se
vencido, tem como recompensa a sua mão em casamento: “Caso com Seinão, se ele for a não
sei aonde e buscar não sei o quê” (p. 6).
Seinão, apelidado desse jeito por ser essa a única resposta que sabia dar ao ser
questionado, apaixona-se pela princesa e decide tentar cumprir o desafio, mesmo diante da
troça de toda a corte que ri do pobre menino que acredita poder conseguir cumprir tal tarefa.
Ele, então, parte em busca de um lugar que não se sabe onde fica para buscar não se sabe o
quê. O caminho é sem destino e mesmo quando pede ajuda recebe como resposta risadas e
mais zombarias. Mas ele não desiste, e acaba por chegar ao inferno. Por lá encontra o Capeta,
que lhe oferece um serviço. E esse encontro começa a mudar o destino do menino zonzo.
Seinão propõe ao Capeta fazer o serviço, mas receber como pagamento a encomenda
da princesa foi a condição imposta por Seinão para ajudar o diabo. O tempo passa até que o
Capeta, cansado de não fazer nada, dispensa os serviços do menino e manda-o embora
entregando-lhe o embrulho com um importante aviso: “É não sei o quê. Mas você não pode
abrir, pois se abrir deixa de ser” (p. 20).
O zonzo do Seinão, que depois da estadia no inferno tinha deixado de ser tolo volta ao
reino e entrega a encomenda. Sem ter o que fazer, diante do desafio cumprido, a princesa não
vê outra alternativa e casa com Seinão, e o embrulho segue embrulhado.
Um narrador, distante da ação mas bastante próximo dos detalhes dos fatos, apresenta
ao leitor essa história. Uma história construída a partir de um personagem principal,
caracterizado por Propp (1984, p.39), como umherói-vitima”. Não se trata de um herói que
busca ajudar alguém, mas sim de um personagem que precisa ajudar a si mesmo para ao final
cumprir a difícil tarefa imposta pela princesa e, assim não alcançar, novamente, a calmaria
inicial mas também modificar o seu modo de ser, de zonzo a esperto.
O conhecimento a respeito dos personagens se na interação da palavra com a
visualidade. Na palavra, Seinão é um menino muito zonzo, na visualidade, sua imagem
5
As citações textuais da obra analisada serão referenciadas apenas pela página relativa à edição usada nesse
estudo.
64
apresenta-se tímida e retraída. A princesa, na linguagem verbal, é muito sabida, e toda essa
sua sabedoria lhe concede poder de dar ordens aos outros e de zombar deles o quanto quiser e
é o que a imagem mostra ao leitor. O rei e a corte ridicularizam Seinão por acreditar ser
possível vencer o desafio da princesa, é o que narra a palavra, e são as risadas deles que a
imagem revela. O Capeta enrola o pobre Seinão, segundo o narrador, e a imagem mostra um
Capeta sorridente diante do menino zonzo que aceita a proposta do diabo.
O espaço é outro elemento estruturante da narrativa que se apresenta na interação entre
linguagem verbal e linguagem visual. E é por meio da sua representação nessas duas
linguagens que o leitor também percebe a passagem do tempo. A indefinição e a incerteza são
as marcas da representação do espaço nessa narrativa. De uma corte que vive em um reino
localizado em lugar indeterminado, Seinão parte em um busca de outro lugar que não se sabe
onde fica. Depois de muito andar, percorrendo caminhos íngremes que levam a um lugar
indefinido, o menino chega ao inferno. Isso, no entanto, não traz nenhuma definição, pois,
afinal, quem sabe onde fica o inferno? Depois de passar um tempo, acaba por retornar ao
seu reino.
A indeterminação exata do local para onde Seinão deve ir, está, portanto, implícita na
delimitação do espaço na construção da narrativa. Seinão viaja, mas não sabe para onde,
caminha sem destino e acaba por chegar a um lugar que ninguém sabe ao certo onde fica: o
inferno. O tempo transcorrido torna-se também indeterminado já que, se não se sabe onde fica
o inferno, também não se sabe quanto tempo se leva para chegar, Sabe-se apenas que o
menino fica por algum tempo por lá, realizando as tarefas do Capeta, enquanto este descansa.
E que esse tempo deve ter sido longo, visto que o diabo chega a cansar-se de descansar e
decide mandar Seinão embora.
Toda essa indefinição está explícita tanto na palavra quanto na visualidade, que em
momento algum deixam transparecer elementos que modifiquem essa visão. O espaço, na
palavra, está referido apenas quando se menciona a corte e seus componentes, rei e princesa
que o caracteriza como um reino, local onde Seinão é bastante conhecido, mas não
definição clara de onde fica esse reino. Na visualidade, o espaço está representado no
caminho percorrido pelo menino até chegar ao inferno, uma trilha, entre montanhas
pontiagudas, que apontam para o céu, e dirige-se a um lugar indefinido e que se apresenta ao
leitor desde a capa do livro (RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2005).
65
A interação da palavra com a visualidade é, portanto, utilizada como ferramenta
importante na construção da narrativa e, conseqüentemente, na construção de sentido
decorrente da leitura. Não há como ignorá-la durante a leitura, pois é no diálogo entre elas que
a estrutura narrativa se constrói e, por sua vez, o texto como um todo de sentido também.
2.1.3.1 A palavra: possibilidades semânticas
A palavra traz a voz do narrador que conta a história e, por meio dele, traz também a
voz dos demais personagens. O narrador, nessa narrativa, é quem, inicialmente, revela ao
leitor as características de cada personagem, o modo de ser de Seinão, e da princesa. E isso se
confirma nas ações de cada um, também contadas pelo narrador.
O narrador, apesar de distante da ação, conhece os detalhes de tudo que se passa, não
apenas externamente, mas também no interior de cada personagem. Ele tem consciência, por
exemplo, de que o Capeta ao receber Seinão no inferno lhe faz uma proposta com o intuito de
enrolá-lo, como declara: “Claro! Se você não sabe, “não sei onde” é aqui. Pelo menos para
você enrolou um capeta que estava precisando de ajudante” (p. 14). Esse conhecimento
também se percebe em relação à mudança de comportamento de Seinão, a voz narrativa deixa
transparecer essa mudança quando após a entrega do embrulho para Seinão descreve a reação
do personagem dizendo: “desconfiou Seinão, que tinha aprendido alguma coisa com a
temporada no inferno” (p. 21).
Essa mudança de comportamento de Seinão também é percebida na palavra por meio
da voz do personagem que, no início, praticamente inexiste e, ao final, passa a fazer-se
presente. uma inversão, ao longo da narrativa, na maneira como Seinão e a princesa se
manifestam. De uma princesa que propõe diante de toda a corte, “Caso com Seinão, se ele for
a não sei aonde buscar não sei o quê” (p. 6) e de um menino muito zonzo que sabe
responder, “Sei não...” (p. 5), o leitor começa a perceber uma alternância depois da passagem
de Seinão pelo inferno. na primeira fala do menino, se percebe a mudança. Um verso
rimado é cantado por Seinão para a princesa, anunciando a sua volta e o cumprimento do
desafio e, pedindo a sua recompensa:Ó princesa me responde / quando eu caso com você./
Eu fui a não sei onde./ busquei não sei o quê” (p. 25). E da princesa, antes o sabida e
expansiva, “ouve-se” apenas a resposta: “Impossível...” (p. 25).
66
A confiança do protagonista, que substitui a timidez e a incerteza anteriores, está
expressa ainda, na sua resposta à incredulidade da princesa, “Veremos!” (p. 25). Afinal,
Seinão tinha certeza do dever cumprido e, portanto, da garantia de que receberia a sua
recompensa, o casamento com a sua amada.
A linguagem verbal, portanto, é responsável por representar a mudança de atitude dos
personagens por meio do diálogo e da maneira com que eles se expressam ao longo da
narrativa. De uma resposta incerta, sei não, o personagem passa a não ter medo de ser
ridicularizado, perguntando o caminho para não sei aonde até mesmo para o diabo. Para
depois despedir-se do capeta tendo consciência de que um embrulho do diaboo poderia ter
nada importante, mas que poderia lhe dar a mão da princesa em casamento. Tal confiança é
demonstrada no verso cantado ao retornar e apresentar o seu desafio vencido. E tudo isso por
meio do verbal.
2.1.3.2 A visualidade: possibilidades semânticas
A visualidade na história de Seinão agrega novos sentidos à trama. A sua presença não
se no sentido de preencher lacunas, mas de dialogar com o texto trazendo novas
possibilidades, para reforçar sentidos trazidos ou, ainda, o cogitados pela palavra. Nessa
obra, “palavra e ilustração se unem no processo de produção de sentido”, comprovando o que
dizem Ramos, Panozzo e Zanolla (2005, p. 125).
A incerteza, que permeia todo o enredo, está presente na visualidade que constitui não
apenas as ilustrações, mas a concepção do livro em si (RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA,
2005). A economia de informações se apresenta desde a capa, com seu fundo vermelho escuro
emoldurando o título e a primeira ilustração, que mostra um caminho com destino incerto. A
presença do vermelho “aproxima os elementos do espaço, do protagonista e do título”
(RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2005, p. 117) inter-relacionando as linguagens verbal e
visual na construção do texto. A indeterminação continua nas primeiras páginas, nas quais
pouca ou nenhuma informação, a respeito do que se passará na narrativa, onde ela acontecerá,
ou quem dela fará parte, é apresentada.
A timidez de Seinão é ainda reforçada pela posição de suas mãos, uma segurando a
outra junto ao peito, além do olhar baixo, com a boca quase imperceptível. A mesma imagem
67
surge na página seguinte, porém, o rosto e o olhar que antes estavam voltados para a direita,
para a palavra apresentada na página, agora se mostram de modo diferente, o rosto está
voltado para a esquerda e o olhar voltado para a direita, observando timidamente a princesa,
cuja imagem domina a página 7. Como se pode comparar, a postura tímida permanece a
mesma, mas o olhar é atraído para outro lugar. Nota-se, portanto, que o menino zonzo começa
a perceber o mundo que o cerca, iniciando o seu processo de modificação.
Páginas 5, 6 e 7, de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
A imagem da princesa assume uma configuração completamente oposta, reforçando
todos os sentidos apontados no parágrafo anterior. Uma princesa, que se apresenta com o
braço estendido em posição de quem uma ordem e usando um longo vestido branco, com
saia ampla, domina a página 7. A sua imagem ao contrário da de Seinão, destaca-se no fundo
vermelho. Assim como, seu sorriso e gesto expansivo lhe conferem uma personalidade
completamente oposta a do protagonista.
A timidez e a insegurança de Seinão destacam-se quando sua imagem é colocada lado-
a-lado à imagem da princesa. A oposição entre o protagonista e a antagonista fica evidente
pelo modo com que a ilustração os apresenta nas primeiras páginas:
[...] ele tímido (vs) ela expansiva, ele com mãos fechadas (vs) ela apontando
caminho, ele calado (vs) ela falando/rindo/gritando, ele com pernas à mostra (vs)
ela com um longo vestido que lhe cobre até os pés. A própria cor das vestes de
ambos estabelece uma oposição: ele traja vermelho, enquanto ela está de branco.
(RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2005, p.123)
A linguagem visual evidencia também a oposição entre Seinão e o Capeta, pois este
também exerce um papel de antagonista ao tentar enrolar o pobre menino zonzo. O Capeta
surge na página 15, abrindo a porta da sua casa para Seinão. O sorriso do diabo fica evidente
pela cor branca dos dentes em meio a cor vermelha do rosto e de suas vestes, nas quais
predomina a mesma cor.
68
Página 15, de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
A representação visual dos personagens segue nas páginas seguintes, e o contraste de
comportamentos fica evidente:
[...] Capeta descansa (vs) Seinão trabalha, Capeta toca viola (vs) Seinão trabalha no
computador, Capeta está com pernas para o alto (vs) Seinão com pernas para baixo,
Capeta canta (vs) Seinão pensa. (RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2005, p. 124)
Páginas 16, 17 [em cima], 18 e 19 [embaixo], de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
Essas imagens, além de mostrarem a oposição de comportamento entre Seinão e o
Capeta, mais uma vez caracterizam a diferença entre o bobo e o esperto, assim como acontece
69
com a princesa, e, também, antecipam informações. A tarefa de organizar os arquivos e
pastas de pecados e pecadores, dada pelo Capeta à Seinão, não é executada com tanta
facilidade pelo menino zonzo e isso é antecipado na imagem da página 17. O menino é
representado com sua mão esquerda colocada sobre a boca, como se estivesse em dúvida,
enquanto a outra mão está na testa reforçando a atitude de incerteza. Além disso, a ilustração
realiza um jogo de imagem, representando as mãos de Seinão em duas ações diferentes,
digitando no computador, e em atitude de dúvida. Isso ao leitor a idéia de que ele estava
realizando a tarefa, porém o com tanta segurança como o Capeta esperava que fosse. Na
página 19, confirma-se essa incerteza diante da representação do menino que preenche a
página. Somente na página 23, a palavra confirma a embrulhada com os tais arquivos feita
pelo protagonista.
Essa oposição apresentada até aqui, no entanto, modifica-se: o que antes, era o bobo
agora, passa a ser o esperto e vice-versa. Seinão deixa para trás o Capeta sem que esse
descubra a sua embrulhada, e, além disso, consegue cumprir o seu desafio. O desespero do
Capeta diante do computador e da confusão feita pelo protagonista, representado na página
22, contrasta com a imagem da página ao lado, que mostra a porta entreaberta com o caminho
de volta, onde já não se vê mais Seinão.
Páginas 22 e 23, de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
A princesa antes expansiva, com sua imagem prevalecendo em relação a de Seinão,
agora surge apenas em um terço da página, em uma atitude bem menos confiante, observando
Seinão que chega com o embrulho e com um sorriso de vitória. O leitor encontra primeiro
com o protagonista que, retornando do inferno, apresenta-se na página 24 à esquerda, para
depois se deparar com expressão de dúvida e, ao mesmo tempo surpresa, da princesa na
página direita.
70
Páginas 24 e 25, de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
O que antes era atitude de Seinão, a mão sobre a boca ou sobre a testa em sinal de
dúvida e timidez, agora é o comportamento que prevalece em todo os que zombaram do
menino zonzo. A princesa, o rei e a corte mostram-se incertos da possibilidade da tarefa ter
sido, realmente, cumprida e, também, envergonhados por causa da suas atitudes anteriores,
que agora são refutadas pela esperteza demonstrada por Seinão. A princesa e seu pai agora
não sorriem, na imagem, como antes. O pai está com as mãos unidas junto ao peito e, a
princesa com sua mão direita sobre a testa e a esquerda sobre a boca. A timidez e a incerteza
são características deles, enquanto, o esperto do Seinão segura o embrulho e aguarda o beijo
de sua noiva.
Páginas 27, de Indo não sei aonde buscar não sei o quê
O beijo é recebido na última imagem, página 28, que mostra um Seinão com sorriso
aberto, segurando o seu embrulho, com a coroa na cabeça e à frente da princesa, que, apoiada
em seu braço, lhe dá um beijo carinhoso.
71
Página 28, de Indo não sei onde buscar não sei o quê
Por fim, é preciso ressaltar que a incerteza, característica central nessa narrativa, é
percebida não só nos sentidos construídos a partir das imagens que representam personagens e
suas ações, mas também na maneira pela qual elas são construídas, como se fossem pinturas
expressionistas nas quais “predominam manchas e borrões, sem linhas de contorno definidas”
(RAMOS, PANOZZO e ZANOLLA, 2005, p. 121).
A imagem, na construção da narrativa Indo não sei aonde buscar não sei o quê, agrega
sentidos e preenche lacunas, dialogando com a palavra na construção do texto como um todo
de significação. De acordo com as funções apontadas por Camargo (1995), a visualidade
desse conto não es expressa apenas como enfeite nem exerce um papel secundário. A
linguagem visual descreve personagens, representa comportamentos e sentimentos não apenas
figurativamente, mas também na sua maneira de configurar-se, dando preferência a manchas e
borrões ao invés de traços definidos, ressaltando a indefinição que permeia toda a narrativa,
bem como, a função estética da ilustração.
2.1.4 Raposa: a estrutura narrativa na interação da palavra com a imagem
Raposa, uma narrativa originalmente publicada na Austrália, no ano de 2000, é a
quarta narrativa utilizada nesse estudo. Ganhadora de inúmeros prêmios graças às ilustrações
e ao projeto gráfico, essa narrativa foi publicada no Brasil, pela Editora Brinque-book, no ano
de 2005. Escrita por Margaret Wild, escritora sul-africana e, ilustrada por Ron Brooks
ilustrador australiano, essa história captura o leitor tanto pela palavra quanto pela ilustração.
Um drama arquetípico sobre amizade, lealdade, risco e traição. Essa é a base da
história construída a partir da relação entre três personagens: o, Gralha e Raposa. Cão e
Gralha tornam-se grandes amigos depois de Cão salvá-la. Cão é cego de um olho e Gralha
72
tem uma de suas asas queimadas, portanto, ele não enxerga completamente, ela não pode mais
voar. A dificuldade os une, pela bondade e generosidade de Cão, que convence Gralha de que
ela pode ser o olho que lhe falta e ele as suas asas. Nada poderia abalar essa amizade até a
chegada de Raposa, que surge com seu olhar ardiloso. A generosidade de Cão não permite
que ele leia no olhar da antagonista a falta de amor. E ele acolhe-a em sua casa apesar dos
avisos de Gralha.
A convivência entre Raposa e Gralha torna-se incomoda para o pássaro, e ela cerca o
pássaro com a idéia da traição. Raposa tenta convencer Gralha de que com ela poderá
realmente voar, porque uma raposa corre mais que rápido do que um cão. Três são as
tentativas de Raposa até convencer Gralha de que Cão não lhe oferece o melhor. Gralha ainda
argumenta, no início, recusando a proposta da Raposa de abandonar Cão, dizendo: “Nunca
deixarei Cão. Sou o olho que lhe falta, e ele é as minhas asas” (WILD, 2005, p. 21)
6
.
No entanto, a insistência de Raposa acaba por vencer a lealdade de Gralha com Cão.
Gralha sobe nas costas de Raposa e deixa-se levar pela velocidade que lhe traz de volta a
sensação de voar, sem pensar em seu amigo Cão e no que aquela sua atitude significaria. O
objetivo maldoso de Raposa foi alcançado.
Raposa corre com Gralha em suas costas até chegar ao deserto e parar de repente. Ela
“sacode Gralha de suas costas, como se tirasse uma pulga, e sai andando” (p. 28). Gralha fica
abandonada em meio ao deserto, longe de Cão.
Esse é o enredo da obra que mostra, entre outros aspectos, como a raposa conseguiu
destruir uma amizade, separar dois grandes amigos. No entanto, isso talvez não seja a verdade
final, pois mesmo e abandonada em meio ao deserto, sem poder voar e sentindo o ar
quente, o pensamento de Gralha se volta para Cão e, imaginar a tristeza dele ao acordar e não
encontrá-la, lhe forças para “cambaleando, lentamente”, começar “seu longo caminho de
volta” (p. 34).
A estrutura narrativa assemelha-se a do conto tradicional iniciando pela apresentação
de seus personagens que vivem um momento de tranqüilidade até que surge um fato ou
6
As citações textuais da obra analisada serão referenciadas apenas pela página relativa à edição usada nesse
estudo.
73
alguém que interrompe a calmaria (PROPP, 1984). No entanto, o final em aberto, a densidade
dos fatos e o modo com que eles são narrados faz com que essa história não possa ser
considerada apenas como um conto tradicional.
O narrador, “heterodiegético” (GENETTE, 1979, p. 244), encontra-se na posição de
quem observa a ação de fora, em um lugar privilegiado, o que lhe possibilita contar e
descrever os fatos tanto sob o ponto de vista objetivo quanto subjetivo de alguns personagens.
Não é a sua voz, no entanto, que introduz o leitor aos personagens principais e as suas
primeiras ações, bem como ao local onde os acontecimentos se sucederão. É na imagem que o
leitor se depara, primeiramente, com esses elementos.
A voz narrativa surge na página 8, auxiliando o leitor a entender melhor o que está se
passando:
Pela floresta chamuscada, por cima de cinzas quentes, corre o, com uma ave
presa em sua grande boca. Ele a leva para sua caverna, acima do rio, e lá tenta tratar
da asa queimada de Gralha, mas ela não quer sua ajuda.
Dando voz aos personagens e acrescentando informações subjetivas de acordo com as
reações e sentimentos de cada um, o narrador conta ao leitor o que se passa. Ele traz para o
leitor a visão por trás das cenas, é o ponto de vista privilegiado do que está acontecendo e,
principalmente, do que se passa no pensamento de Gralha. Por exemplo, na página 17, quando
Cão oferece a Raposa a sua casa e também comida, o narrador declara: “Cão sorri, mas gralha
se encolhe toda. Ela percebe Raposa de olho em sua asa queimada”(p. 17).
O desenrolar das ações se por meio da palavra e da imagem. O discurso narrativo
dialoga com as ilustrações na construção do enredo. Os personagens surgem em ação, Cão
carrega Gralha para sua caverna para tentar ajudá-la e isso início à amizade entre os dois.
A interação dos dois, a construção de uma amizade na qual um ajuda o outro começa a ser
abalada com a chegada da raposa.
A configuração desses personagens acontece por meio da palavra e da imagem. A
interação das duas linguagens traduz a personalidade de cada um, o modo de ser e de agir.
Cão e Gralha são os personagens principais, enquanto Raposa, de acordo com a sua função na
narrativa, define-se como a personagem antagonista, pois surge puxando a ação para um
74
sentido contrário ao da tranqüilidade até então evidenciada. O uso de nomes genéricos, Cão,
Gralha e Raposa, aproxima os personagens de um contexto narrativo pertencente às fábulas.
Além disso, a utilização de animais vivenciando experiências humanas realiza o jogo entre o
mundo da ficção e o mundo real. Trata-se de uma estratégia para aproximar dois mundos que
parecem distantes, mas que por fim trazem elementos que dialogam e, assim, auxiliam na
compreensão um do outro.
O espaço, como elemento estruturante da narrativa, representa a dicotomia ficção e
realidade e, também, segundo Greimas (1973) uma inversão de signos que o elemento real
serve de base para a realização do elemento fictício. O espaço habitado por esses personagens
parecer ser real, pois a floresta é o habitat natural de animais. No entanto, a floresta é o local
onde se a ficção e, também, é o lugar onde Cão e Gralha vivem a sua amizade. Não é, no
entanto, o lugar da raposa que de repente surge. A calmaria é vivida na floresta, o drama tem
lugar no deserto para onde Raposa leva Gralha e abandona-a perdida no calor e sem seu
amigo Cão. Ficção e realidade se opõem, assim como bem e mal, amizade e traição na
estruturação dessa narrativa.
A passagem do tempo não se apresenta de modo determinado, mas ao longo do texto
verbal existem expressões e a descrição de algumas ações, deixam explícito o tempo
transcorrido. É possível notá-la ao longo da narrativa com expressões tais como: “Dias, talvez
semanas depois [...]” (p. 10), “todos os dias, no verão e no inverno” (p. 14). A amizade entre
Cão e Gralha também pode ser considerada como indício da passagem do tempo, ambos, com
o tempo transcorrido, acostumam-se um ao outro, estabelecem uma relação de cumplicidade,
assim, como as mudanças naturais decorrentes do fim de uma estação de chuva e, a chegada
da raposa demonstram o transcurso temporal. O tempo, portanto, nessa narrativa precisa ser
depreendido a partir das suas relações internas (GENETTE, 1979), isto é, a partir da descrição
de suas ações, dos elos estabelecidos entre personagens e das marcas lingüísticas deixadas ao
longo do texto.
A estrutura narrativa que aqui se descreve não se por meio de apenas uma
linguagem ou código. Palavra e visualidade interagem, dialogam na construção dessa
estrutura, no estabelecimento do enredo, na configuração dos personagens, do tempo e do
espaço. Faz-se necessário, portanto, que ambos os códigos sejam lidos para que a construção
de sentido seja plena.
75
2.1.4.1 A palavra: possibilidades semânticas
Num relacionamento baseado na interação, os elementos envolvidos não se sobrepõem
uns aos outros, eles dialogam e procuram potencializar as funções ou sentidos uns dos outros.
É assim que o código verbal se faz presente na narrativa Raposa.
Sob o ponto de vista do editor da versão australiana, Raposa apresenta uma linguagem
verbal falsamente simples. O mesmo acontece na versão em língua portuguesa, em primeiro
lugar pela escolha das palavras expressões, por exemplo, cinzas quentes, presa em sua boca,
aroma de flores, cheiro de raiva, sussurrou, aspereza e delicadeza se misturam, o que à
história riqueza e força aos sentidos que são construídos. Em segundo lugar, pelo ritmo
conferido às frases que faz com que as palavras deslizem ou choquem-se umas contra as
outras, ou deixem pairar o silêncio, permitindo ao leitor aproveitar a grande alegria sentida ou
espantar-se, ou voltar mais ainda sua atenção para os fatos narrados (apud ANDERSON)
7
.
Em se tratando da obra traduzida para língua portuguesa a escolha cuidadosa dos termos pode
ser percebida já no início da narrativa: “Pela floresta chamuscada, por cima de cinzas quentes,
corre Cão, com uma ave presa em sua grande boca. Ele a leva para sua caverna, acima do rio,
e lá tenta tratar da asa queimada de Gralha” (p. 8).
A presença do vocábulo “presa” pressupõe violência, agressão do cão em relação à ave
e, essa idéia se fortalece ainda mais com a expressão que segue descrevendo a boca de Cão:
“grande boca” (p. 8). No entanto, a expectativa é subvertida na oração seguinte que apresenta
a real intenção de Cão.
A caracterização dos personagens, na linguagem verbal, também pode ser estabelecida
a partir da ausência de artigo definido ao se referir a cada um deles, Cão, Gralha e Raposa.
Essa indefinição talvez represente a possibilidade de aproximação do leitor com os conflitos
vivenciados por cada um deles ao longo da história. Amizade, traição, bondade, maldade são
7
Tradução livre do seguinte trecho: The text is deceptively simple[…]. First of all, the particular choice of
words […]. Somentimes an unusual justaposition of words gives the stoy richness and power. […]Second, the
rhythm of the sentences makes the words flow, or bump into each other, or hang in silence, so that we are
carried along in exultation, or shocked, or made to pay attention. In: ANDERSON, Janet. Teacher’s notes by
Janet Anderson. Disponível em: <www.allenandunwin.com/Teaching/fox.tns.pdf>.Acesso em: 07 jan. 2006.
76
experiências e sentimentos universalmente vividos pela humanidade e não exclusivos de um
grupo.
A introdução ao leitor expectativas de que Cão seja um predador, um animal que
utiliza o seu tamanho e força na captura de aves indefesas como Gralha. A idéia oposta,
porém, é a que prevalece. E esse antagonismo é algo que faz parte dos significados recebidos
pela figura do cão que abarca tanto sentidos positivos quanto negativos (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 1999, p. 176-182). A subversão de comportamentos ocorre também com
Gralha que diante da bondade e da amizade de Cão não deveria ter se deixado levar pela
raposa. O jeito de ser de Raposa, no entanto, não foge do que se espera comumente desse
animal, capaz de inventar e de destruir, astuto e desenvolto, “cúmplice de fraudes em
inumeráveis mitos” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1999, p. 769).
Os termos escolhidos para descrever Raposa deixam transparecer a definição apontada
por Chevalier e Gheerbrant (1999)
Raposa, com seus olhos ferinos e pêlo grosso avermelhado. Ela se esgueira
entre as árvores como uma língua de fogo [...]. (p. 15)
E, à noite, seu cheiro parece penetrar na caverna um cheiro de raiva,
inveja e solidão. (p. 18)
Uma figura ferina, com pêlo avermelhado, que surge como uma língua de fogo e que
deixa pela noite um cheiro de raiva, inveja e solidão, essa é a definição de Raposa. E seu
modo de agir em nada modifica essa caracterização. A presença da cor vermelha e do fogo
reforçam a idéia da maldade, da referência ao lado diabólico da raposa que surge para destruir
a amizade entre Cão e Gralha.
A alegria, a maldade, a bondade e a tristeza não são definidas apenas na ilustração. O
segundo aspecto que confere à linguagem verbal a caracterização de falsa simplicidade
também é responsável por essa representação. O ritmo das falas dos personagens e do
discurso narrativo permite ao leitor perceber cada um desses sentimentos.
A bondade de Cão, sempre bondoso, tentando ajudar e receber bem, fica explícita nas
suas falas:
— Sou cego de um olho, mas a vida ainda é boa (p. 8).
77
— Suba nas minhas costas — ele diz.
— Olhe dentro da água e me diga o que você vê (p. 10).
— Bem-vinda! Podemos lhe oferecer casa e comida (p. 16).
Do mesmo modo, percebe-se a alegria de Gralha ao voar. A repetição do pedido para
que Cão voe, isto é, corra, pois assim ambos poderão se ajudar e serem amigos, confere
alegria exultante à fala do pássaro: “Voa, Cão, voa! Eu serei o olho que lhe falta, e você será
minhas asas” (p. 13).
A lealdade de Gralha também fica explícita na sua resposta para a proposta da raposa
de deixar o amigo Cão e ir com ela realmente voar de verdade. Por duas vezes Gralha
responde: “Nunca deixarei Cão. Sou o olho que lhe falta, e ele é as minhas asas” (p. 21 e p.
22).
No entanto, a leal convicção de Gralha é abalada pelas propostas da raposa. E isso
quem revela ao leitor é a voz do narrador ao dizer:
Mas naquela tarde, quando Cão corre pela mata com Gralha nas costas, ela
pensa:
“Isso nada tem a ver com voar. Nada!” (p. 22).
Gralha se rende aos apelos de Raposa e parte com ela, para experimentar o que é voar
verdadeiramente e de novo. Ao ouvir o sussurro da raposa ela apenas responde: “Estou
pronta” (p. 22).
A maldade da raposa e sua habilidade de enganar são percebidas por Gralha desde o
princípio. E o leitor também toma consciência disso desde o surgimento de Raposa segundo a
descrição dada pelo narrador na página 15. E esse perfil é reforçado a cada proposta que ela
faz para Gralha abandonar Cão: “Eu corro mais depressa do que Cão. Mais depressa do que o
vento. Deixe Cão e venha comigo” (p. 21). O sussurro de Raposa penetra nos ouvidos de
Gralha, que, mesmo recusando no início, acaba por render-se à proposta tentadora e trai seu
amigo Cão. A vontade de satisfazer um desejo prevalece para Gralha, que ignora o
companheirismo e a cumplicidade que tem com seu amigo.
78
No entanto, a maldade de Raposa, prevista por Gralha, que mesmo consciente deixa-se
seduzir, é totalmente revelada em sua fala final: “Agora você e Cão saberão o que é
solidão” (p. 29). O arrependimento de Gralha e a tentativa de consertar o seu erro são
contados pelo narrador que declara:
[...] então, Gralha pensa em Cão acordando, descobrindo que ela se foi p. 32).
E lentamente, cambaleando, ela começa seu longo caminho de volta (p. 34).
A linguagem verbal, portanto, na configuração desse conto adquire um status de
extrema importância. Segundo o editor da versão australiana “cada palavra por si só, e o modo
com que elas são aplicadas, carrega um importante significado na construção do livro”
(ANDERSON, s.d)
8
. Mesmo se tratando da tradução, esse aspecto ainda é percebido. O
discurso direto dos personagens tenciona a ação e aproxima o conflito do leitor, dá à história a
dramaticidade necessária aos fatos que se desenrolam ao longo da narrativa.
2.1.4.2 A visualidade: possibilidades semânticas
Segundo a crítica Linnet Hunter, as ilustrações de Raposa, associadas à palavra,
causam um contínuo impacto no leitor. As paisagens construídas a partir dos símbolos
arquetípicos da floresta, da água, da caverna e do deserto emolduram as ações. Os tons
terrosos e avermelhados das paisagens associados, às vezes, à escuridão da penumbra
dominam as cenas (apud ANDERSON)
9
.
A maneira com que a visualidade da capa foi concebida é um convite ao olho do
leitor. A presença da raposa, título da obra, com seus olhos brilhantes, que olham diretamente
para o leitor, atraem a atenção e a curiosidade de qualquer pessoa que se deparar com a sua
figura na capa. A raposa está em destaque e a primeira idéia que se pode ter é a de que será
ela a protagonista da história. nessa antecipação, no entanto, a concepção de que se a
raposa está na capa ela também será a heroína da história.
8
Tradução livre do trecho: [...] every word, and the placing of every word, carries great meaning in this book
[...].In: ANDERSON, Janet. Teacher’s notes by Janet Anderson. Disponível em:
<www.allenandunwin.com/Teaching/fox.tns.pdf>.Acesso em: 07 jan. 2006.
9
A partir do trecho: [...] it is the illustrations that make a lasting impact. Brooks has extended the story through
the landscape without losing the strong focus on the actions of the three who enact their tale within it. He has
used the archetypal symbols of forest, water, cave and desert in a distinctly Australian way. In: ANDERSON,
Janet. Teacher’s notes by Janet Anderson. Disponível em:
<www.allenandunwin.com/Teaching/fox.tns.pdf>.Acesso em: 07 jan. 2006.
79
No entanto, a subversão, característica bastante destacada na construção desse conto,
inicia na capa, pois a raposa não é a heroína da história. Ela é o título e a imagem
representada na capa, porém na história a sua função é de antagonista, é a de causar
desequilíbrio no enredo.
Desde a capa, portanto, o leitor desse contose depara com Raposa, personagem que
surge na história para desestruturar a ação e, também, para provocar o leitor a pensar a
respeito da narrativa. Assim como Gralha é seduzida por Raposa, o leitor também é atraído
por ela para a leitura. Gralha abandona Cão pelo desejo e curiosidade de sentir novamente o
que é voar. O leitor deixa-se levar por Raposa e se diante do rompimento de conceitos
morais e, essa subversão o faz pensar.
O modo com que a capa está constituída, mostrando a raposa de corpo inteiro com a
floresta ao fundo, representa a dominação do sedutor animal em relação ao leitor. Assim
como Gralha é envolvida por Raposa, o leitor ao abrir o livro também pode se sentir cercado
pelo ardiloso animal.
Capa, de Raposa
E, também, ao abrir o livro, o leitor se diante da floresta representada em tons terrosos,
predominando o vermelho, assim como na raposa da capa. É a visualidade, portanto, que
introduz o leitor no espaço narrativo.
80
Contracapa e página 1, de Raposa
A entrada dos personagens Cão e Gralha acontece na página 3. Eles surgem em
destaque no centro da página, emoldurados por um fundo que tem as mesmas tonalidades da
floresta, porém, a presença de tons mais claros destaca os personagens. O cachorro mostra-se
em atitude de movimento, como se estivesse correndo, e segurando um pássaro preto em sua
boca. A cabeça do pássaro está voltada para o cão e o bico entreaberto talvez indique que algo
está sendo dito. O leitor conhece os personagens, mas ainda não sabe o que se passa com eles.
A maneira com que o cão segura o pássaro em sua boca, sugere que ele talvez tenha caçado
esse animal para a sua alimentação.
Página 3, de Raposa
Nas páginas seguintes, o mesmo cão, segurando o pássaro em sua boca, surge
correndo na floresta em direção a uma caverna. A imagem da caverna está parcialmente
coberta pelo título do livro e pelos nomes do autor e do ilustrador que se apresentam em
destaque em um quadro retangular, delimitado por linhas traçadas a mão livre, assim como as
letras que compõem esses nomes. O nome da editora está representado ao pé da página.
81
Páginas 4 e 5, de Raposa
As informações catalográficas são exibidas nagina 6, acompanhadas da imagem da
raposa que se esgueira entre troncos de árvores. Na página 7, o cão segue o seu caminho,
segurando o pássaro, e a palavra apresenta as dedicatórias e agradecimentos da autora e do
ilustrador. Mesmo a ação sendo, de certa forma, interrompida pela linguagem verbal utilizada
nas informações catalográficas, nas dedicatórias e agradecimentos, a visualidade mantém a
ação viva por meio da imagem da raposa que se apresenta como se estivesse seguindo o cão e
o pássaro. O destaque a essas imagens, para que não se tornem simples enfeites nessas
páginas, mas para que realmente representem a continuação da ação narrativa, se na
delimitação de cores que acabam por estabelecer um limite entre o fundo que envolve o
código verbal das informações e o que envolve as imagens dos personagens. Ao redor do cão
e da gralha percebe-se inclusive uma linha que os cerca, não totalmente, pois o caminho à
frente está aberto para que eles entrem em ação agora definitivamente.
Páginas 6 e 7, de Raposa
A ilustração é vista pelo leitor na página 9 complementando a palavra da página 8. A
linguagem visual apresenta ao leitor o espaço narrativo e os personagens envolvidos na trama,
mas é a palavra a porta de entrada para a ação propriamente dita.
82
O modo de apresentação do verbal também deve ser analisado sob o ponto de vista da
visualidade que constitui o livro em si. Nessa obra, a maneira com que a palavra se apresenta,
não apenas pelo tipo de fonte, mas também pelo seu tamanho e disposição, carrega sentidos
que interferem na leitura. Como se pode observar na página 8, a disposição da palavra na
página não segue o padrão ocidental, apresentando-se da esquerda para a direita para a leitura.
Ela surge, inicialmente, na vertical exigindo que o leitor modifique a posição do livro ou
efetue a leitura de baixo para cima, do da página em direção a parte superior, reiterando a
subversão dos modelos e influenciando o modo de ler. A narrativa segue, na mesma página,
agora seguindo o modelo de apresentação ocidental da linguagem verbal, da esquerda para
direita.
Além da disposição da palavra ao longo das páginas, percebe-se também a variação de
tamanho da fonte como recurso de intensificação do sentido transmitido ou, ainda, da
importância do que está sendo dito. Nota-se que na primeira parte, apresentada verticalmente
na página, o tamanho da fonte se apresenta de forma decrescente. A impressão que se tenta
causar é a de que, inicialmente, o leitor é atraído, mas precisa ainda de apoio para realmente
ingressar na trama. Então, depois de expostos os primeiros fatos, o leitor está envolvido e
não mais necessidade de atrativos para a leitura da palavra; a partir desse ponto a fonte
assume um tamanho padrão.
Outro sentido que pode ser depreendido a partir dessa variação do tamanho da fonte
que se observa ao longo de todo o livro, é o de ênfase a algumas idéias importantes para a
construção do enredo. Por exemplo, falas dos personagens, nas quais aparecem palavras
escritas em fontes maiores com o objetivo de reforçar a alegria, a maldade, o ressentimento.
Como se pode perceber na exclamação de Gralha, página 13, quando “voa” pela primeira vez
com Cão, e que está toda escrita em letras maiores do que o restante da fala, demonstrando a
sua extrema felicidade por estar “voando” novamente. Ou ainda, na bondade de Cão, ao
receber Raposa, “Bem-vinda!”, como se vê na página 18. E, também, na terceira vez que
Raposa propõe a Gralha abandonar Cão perguntando se ela lembra o que é voar de verdade,
reforçando a pergunta ao dizer: “Voar de verdade?” (p. 22). Além do ressentimento de Gralha
ao pensar que a corrida de Cão nada tem a ver com voar e dizer para si mesma: “Nada!” (p.
22).
83
Em todos esses exemplos, como se pode comprovar nas imagens abaixo, o tamanho
das fontes é usado como elemento de significação.
Páginas 8 e 13, de Raposa
Páginas 16 e 22, de Raposa
A maneira com que os personagens são apresentados também é um elemento de
sentido que deve ser considerado na análise dessa narrativa. Raposa é a primeira a aparecer.
Como foi dito é ela quem atrai a atenção do leitor, seduz e envolve-o. Esse modo de agir,
envolvendo e seduzindo os que estão ao seu redor, é percebido na maneira pela qual ela é
representada na ilustração. Seu corpo longilíneo, coberto de pelos vermelhos e com uma longa
cauda estendendo ainda mais o seu corpo, surge sempre dominando o espaço e bloqueando a
passagem dos demais personagens. Como se pode notar na página 15, quando Raposa surge
em frente a Cão e Gralha, que correm felizes, ela se posiciona, na página à direita,
interrompendo o caminho dos dois amigos.
84
Página 15, de Raposa
O mesmo corpo longílineo é representando, tanto na página 17, como na página 23,
envolvendo Gralha. Raposa posiciona-se cercando a ave, o seu caminho e os seus
pensamentos. A antagonista não deixa espaço para que Gralha se mova ou tome consciência
do que ela está pretendendo, como também, não deixa espaço para que Gralha retorne para
junto de Cão, como se vê na página 28, agora ocupando a página à esquerda.
Página 28, de Raposa
Os olhos da raposa também o representados de modo a revelar muito de sua
personalidade e de suas intenções. Desde a capa, quando surgem brilhantes e fixos no leitor
que encara a embalagem do livro, até o destaque que recebem na página 18. Como se
estivessem espiando por uma passagem retangular, os olhos de Raposa são destacados,
novamente encarando o leitor que se coloca no lugar da personagem Gralha. O leitor e a ave
tornam-se o alvo do olhar da raposa. Mesmo que, talvez, evidencie maldade, o olhar é
atraente, assim como capta a atenção de Gralha ao perceber o interesse da raposa nela, atrai
também o leitor cada vez mais para o interior da narrativa.
85
Página 18, de Raposa
Por fim, outro ponto fundamental na análise semântica da visualidade nessa narrativa
é a presença da cor vermelha. A floresta representada na contracapa e na página 1 é dessa cor.
Também são vermelhos o deserto quente, onde Gralha é abandonada e sente que poderia
morrer, e o pêlo que reveste a raposa por inteiro. A intensidade e o vigor dessa cor que cobre
o corpo de Raposa e, surge em um espaço onde o sofrimento e a solidão dominam, do mesmo
modo que dão tensão à narrativa, podem representar, ao final, a força de Gralha para
arrepender-se de sua traição e tentar voltar para seu amigo Cão.
As duas últimas páginas, associadas à contracapa não apresentam mais a linguagem
verbal, apenas a visual. A página 35, totalmente em branco, livre de qualquer código, não
pode ser desconsiderada na análise da narrativa. Ela representa o final em aberto, a incerteza
se Gralha conseguiu ou não reencontrar seu amigo Cão. Essa página também representa a
construção de sentido decorrente da leitura e que para cada leitor será distinta.
No entanto, o leitor que, ao final, ainda estiver buscando respostas diante das ações
desses personagens, nessa história que parece despretensiosa, pode virar ainda mais uma
página e, deparar-se novamente com uma floresta semelhante à encontrada no início. A
diferença entre a floresta do início a do final está na sua cor, a primeira é totalmente dominada
pelo tom avermelhado, enquanto a última traz uma coloração mais próxima do modelo de
floresta que se tem no inconsciente coletivo, com árvores de copas verdes, troncos marrons,
céu azul, grama verde e pedras completando a paisagem. Essa diferença é também um
elemento semântico nessa narrativa. A última imagem da floresta representa, talvez, o fim da
presença de Raposa com sua maldade, inveja e solidão que tudo dominava, deixando no ar e
nos lugares a sua coloração vermelha como símbolo de todos os aspectos negativos.
86
Página 35, e contracapa de Raposa
2.1.5 Menino chuva na rua do sol: a estrutura narrativa na interação da palavra com a
visualidade
O livro Menino chuva na rua do sol, escrito e ilustrado por André Neves, publicado
pela Editora Paulinas, no ano de 2003, apresenta uma narrativa que fala de modo poético
sobre a relação de um menino com a chuva, suas brincadeiras, dúvidas e tristezas resultantes
dessa relação. As ilustrações produzidas pelo próprio autor dialogam com esse tom poético
que permeia a narrativa.
A narrativa conta a história de um menino que ao ver a aproximação da chuva,o se
segura e sai de casa para sentir a chuva, para brincar com ela, para alegrar-se e até mesmo
entristecer-se com o seu poder. Nesse relato, das aventuras e desventuras com a chuva, o
poético é a característica fundamental, que pode ser percebida na sonoridade e no ritmo da
palavra, bem como na visualidade que a circunda. Palavra e imagem interagem tornando real
o que era apenas devaneio (BACHELARD, 1988) e, conferindo-lhe a forma poética.
A voz que inicia a narrativa não é a voz do narrador, é a do menino feliz ao perceber
que a chuva se aproxima: “Olha a chuva!... É aí que me acabo, me solto, me molho, me largo”
(p. 4)
10
. No entanto, não é a voz dele que predominará no restante da narrativa. É o narrador,
conhecedor de tudo que o menino faz na sua aventura na chuva, que narra e descreve as ações
e reações do protagonista.
10
As citações textuais provenientes da obra analisada serão referenciadas apenas pela página relativa à edição
usada nesse estudo.
87
O menino é, portanto, o personagem central da ação narrativa. É dele a visão poética
transmitida pelo narrador a respeito da chuva. Além da voz do menino e do narrador,
também a voz da mãe que, buscando uma analogia com a estrutura narrativa tradicional
pode-se dizer é a antagonista. Isso, no entanto, não se configura de todo, porque ela apenas
surge tentando impedir que o menino saia para brincar na chuva, mas não consegue cumprir o
seu intento. Apesar do grito espantado da mãe, o menino ignora-a, deixa-se levar pela magia
da chuva que o atrai, como se pode perceber no que está posto na palavra das páginas 12 e 13:
A mãe com extremo espanto grita:
— Sai do meio da rua que essa chuva te arrebenta... Volta pra casa, menino...
Que se arrebenta que nada! Menino leva guarda-chuva. E guarda-chuva na mão de
menino vira barco deslizando na correnteza da cheia que enche seu coração.
O narrador surge, nesse trecho, como em outros, em defesa do menino e da sua relação
com a chuva. Para isso, descreve a ação infantil de maneira poética, transformando o guarda-
chuva não em elemento de proteção contra a chuva, mas em barco que desliza na correnteza,
tornando a brincadeira na chuva mais alegre, transbordando o coração do menino, assim como
a chuva espalha-se pelas ruas.
Ainda na estrutura narrativa, observa-se que o espaço é a rua, o lugar onde a chuva cai,
no qual o menino brinca, se alegra e se entristece, torna-se, também, um pouco chuva. Porém,
essa rua não tem como nome rua da chuva, ao contrário, ela é a rua do sol. O sol que aquece,
que traz alegria e também tristezas, atrai as pessoas para rua e nome à rua onde mora o
menino chuva. Chuva e sol, dois fenômenos que dificilmente existem simultaneamente, mas
que nessa história, de certa forma, coabitam o mesmo espaço. O sol é apenas uma idéia, um
nome, isto é, não se configura como a chuva que está presente tanto na palavra quanto na
imagem na definição do espaço narrativo-poético.
Sol e chuva coexistem nessa narrativa. A rua é a Rua do Sol, o menino é o Menino
Chuva. Apesar de serem símbolos de situações naturais opostas, ambos significam fonte de
vida (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1999) e estão intimamente relacionados, pois após a
chuva sempre o que se espera é, novamente, a volta da luz que suplanta a escuridão. Por isso o
Menino Chuva mora na Rua do Sol, é a sua casa, a sua segurança, a sua certeza de
existência e é para lá que ele retorna ao final de sua aventura com a chuva.
88
A rua, pavimentada, com suas casas na beira da calçada é o lugar onde o menino vive
a sua aventura na chuva por um tempo não determinado pela rigidez dos ponteiros do relógio.
O tempo nessa história não se define, é o tempo da brincadeira, é o tempo da memória que
salta de um ponto a outro, às vezes, parecendo incoerente. É o tempo do devaneio, que na
verdade não se sente passar, apenas passa. Não se sabe quanto tempo o menino fica fora de
casa, brincando na chuva, sabe-se apenas que muitas coisas ele vê, muitas vivências ele tem e
que, ao final, a chegada do sol não o entristece. Mais do que um tempo passado, é um tempo
vivido, em que algo se aprendeu ou alguma lembrança ficou para sempre viva na memória
como um tempo permanentemente vivo e presente, sempre que for recordado.
Narrativa e poesia mesclam-se na construção dessa história, a partir da palavra com
sua sonoridade e ritmo, narrando e descrevendo de modo poético a interação do menino com a
chuva e, das ilustrações que apresentam ao leitor o menino chuva e revelam possibilidades de
sentidos para as imagens poéticas que se constroem ao longo do texto.
Um misto de poesia, memória e narrativa é o que estrutura essa obra de André Neves.
Identificam-se elementos não da narrativa, como também da poesia que são aplicados
nesse relato de memórias. A poeticidade ao relato um toque de magia às recordações do
autor que confessa, na capa do livro, ter construído essa história a partir das suas lembranças
de infância que foram unidas ao seu dom para escrever e ilustrar. A memória torna-se ficção,
a ficção torna-se memória, tudo por meio do diálogo entre palavra e imagem.
2.1.5.1 A palavra: possibilidades semânticas
A caracterização semântica do código verbal em Menino chuva na rua do sol traz
como pontos chaves a poeticidade calcada nas imagens resultantes das metáforas e também da
sonoridade decorrente das rimas e outras figuras de efeito sonoro. No entanto, essas
características precisam ser consideradas em uma estrutura que não é apenas poética, mas é
também narrativa. A presença de um personagem, de um local, de ações que se desenrolam,
mesmo que envolvendo apenas um personagem, de um narrador que relata os fatos e às vezes
voz ao personagem, configuram o texto não só a partir das características poéticas, mas
também das características narrativas.
89
O ritmo diferenciado é percebido desde a primeira aparição do código verbal. A fala
do menino traz aliterações e assonâncias. A aliteração é encontrada a partir da repetição do
som bilabial /m/ e /b/ e, a assonância está presente na repetição do som vocálico /o/:
“Olha a chuva!...
É aí que me acabo, me solto,
me molho e me largo.” (p. 4)
A onomatopéia é outro recurso rítmico utilizado pelo código verbal e que pode ser
notado. O som da chuva é algo característico, possui um ritmo e, na página 8, ele está
representado por meio do verbal. O uso dos vocábulos plinc e plaft, alternadamente
apresentados, representa o som dos pingos da chuva ou dos pés do menino ao pisar sobre as
poças formadas pela chuva.
Além da questão rítmica, a sonoridade também fica explícita por meio das rimas
presentes em alguns trechos. Um exemplo pode ser percebido na página 10, as palavras:
alagado, banhado, lavado, molhado, ensopado, que, além de representarem uma gradação da
idéia de o quanto o menino gosta de se molhar, repetem o som /-ado/ caracterizando uma
rima. O mesmo se percebe na continuação, em que o ditado popular “água mole em pedra
dura, tanto bate até que fura” é modificado: “Porque menino é como chuva mole em pedra
dura, tanto pinga até que fura” (p. 10) e a rima entre as palavras dura e fura surge.
De uma simples comparação como se na página 6: “Mas não é nuvem branca como
neve, nem como espuma ou algodão” até uma metáfora mais elaborada: “Encanto é alegria
que cai do céu...”( p. 9), a linguagem verbal se constitui, deixando ao longo do texto pistas de
sua poeticidade. Assim, o texto se constrói com base em aspectos poéticos associados a
elementos da estrutura narrativa.
No que diz respeito à estrutura narrativa, a alternância de vozes é um dos elementos a
serem destacados. A voz do personagem é a que primeiro surge, para em seguida dar lugar à
voz do narrador que apresenta ao leitor o Menino Chuva. A partir desse momento, o narrador
assume o seu papel, descrevendo tudo que se passa com o menino e, às vezes, dando voz
própria ao menino e a seus pensamentos e experiências com a chuva. A visão
“heterodiegética” (GENETTE, 1979, p. 247) do narrador é a que se apresenta; uma visão
90
externa sob a ótica do personagem, mas interna a partir do próprio narrador, deixando
transparecer ao leitor todo o seu ponto de vista em relação ao menino, tornando-se ele,
também, por meio de seu discurso, um pouco Menino Chuva.
Narrador e personagem em certos momentos são vozes distintas, mas que acabam se
mesclando no desenrolar poético-narrativo do código verbal. A separação mais clara dessas
dois elementos se a partir do código visual em que apenas a figura do menino está
representada, enquanto a voz do narrador se faz presente somente no código verbal.
2.1.5.2 A visualidade: possibilidades semânticas
A presença da imagem do personagem principal é o fio condutor que une a estrutura
narrativa aos aspectos poéticos que constroem esse texto. É o Menino Chuva o elemento que
se faz presente tanto na palavra, com voz própria ou pela visão do narrador —, quanto nas
imagens que ilustram essa obra.
A sua representação visual não é estereotipada, seus pés e braços finos parecem
disformes em comparação com o restante do corpo. Seu sorriso largo mostra pequenos dentes
separados que causam estranhamento, assim como seus olhos separados por um grande nariz
lhe dão uma feição diferente do que comumente o conceito de beleza aceitaria em virtude da
desproporcionalidade no modo com que as partes do rosto estão representadas. No entanto,
seu sorriso largo, aliado a seus olhos alegres revelam um ar convidativo, simpático. E é esse
rosto estranho que ao leitor a noção dos sentimentos do menino, a mudança no seu olhar
auxilia o leitor a compreendê-lo e a perceber a sua relação com a chuva.
O encontro com o protagonista se na capa. É que está o menino segurando um
grande guarda-chuva onde se lêem o nome do autor e ilustrador e o título do livro que,
também é o nome do personagem. Por trás dele sea rua, — não uma rua qualquer como já
se pode perceber desde o título, mas sim a Rua do Sol, que se apresenta mais quando o
livro é aberto, como se fosse um convite para nela caminhar. O céu representado é escuro, não
é céu de dia ensolarado, é céu de dia chuvoso o que justifica a presença do guarda-chuva que
o menino usa. A chuva chega de repente, aparece como mágica aos olhos do leitor que a
percebe por meio de pingos reluzentes na capa. Os pingos que reluzem ao movimentar o livro
surgem surpreendendo esse leitor, como uma chuva que chega sem avisar.
91
Capa e Contracapa de Menino Chuva na Rua do Sol
Além da imagem do menino e da sua rua, a contracapa traz a imagem do autor-
ilustrador da obra. A fotografia de André Neves, associada ao seu depoimento, se apresentam
em um quadro com bordas arredondadas e fundo amarelo que se destaca sobre o fundo azul
escuro do céu. O depoimento do autor-ilustrador aproxima-o do menino da capa, ambos
gostam da chuva e, por isso, a história contada é um pouco de cada um, do autor e do
personagem.
A entrada do leitor no livro se pela imagem, uma imagem formada por círculos
brancos, sem contorno definido e com uma textura semelhante a algodão. Esses círculos
flutuam em fundo amarelo-ouro. Ao virar a página, o leitor se depara, novamente, com a Rua
do Sol que pode ser reconhecida, a partir da capa, pelas suas casas, árvores e pavimentação.
Na página seguinte, círculos semelhantes aos da página anterior se aproximam, a diferença é
que agora eles são acinzentados, parecem mais pesados e com uma textura não tão macia
quanto antes, é a chuva que se aproxima.
Essa chuva atrai o olhar do menino na página 4, que da janela de sua casa e com um
grande sorriso nos lábios, volta seu olhar para as nuvens que se aproximam trazendo a chuva.
As nuvens cinzas, que eram avistadas pelo menino e se mostravam apenas parcialmente na
página 5, nas páginas 6 e 7 dominam o céu, emolduram a casa do menino e algumas
árvores existentes na rua. O diálogo da imagem com a palavra nessa página é percebido pelos
adjetivos que caracterizam as nuvens: escura, cinza, tenebrosa (NEVES, 2003, p. 6). Além
disso, a casa, que, segundo a palavra, precisa se fechar toda, ficar lacrada, cadeada, trancada
por causa da chegada da chuva, se apresenta na imagem envolta em correntes, cordas e cheia
de cadeados, dialogando com a palavra.
92
Páginas 6 e 7, de Menino chuva na rua do sol
A presença da chuva, elemento importante na construção desse texto, não se faz
apenas por meio das nuvens acinzentadas. Diferentes formas de representá-la são usadas pelo
ilustrador. A coloração azul escura para representar o céu não é a única utilizada, variadas
formas e cores são aplicadas na representação da chuva, personagem importante nessa
narrativa. Os pingos que reluzem na capa e anunciam a chuva, nas páginas 8 e 9 são
encontrados pelo leitor, representados com pequenos riscos brancos que se distribuem como
se estivessem caindo das nuvens, como uma fina chuva, apenas em seu começo.
Páginas 8 e 9, de Menino chuva na rua do sol
A chuva mais intensa, capaz de deixar o menino ensopado está nas páginas 10 e 11,
agora não mais em pingos finos, mas em traços brancos, que se destacam no fundo azul
escuro, e caem direto na pavimentação da rua, onde se encontra o menino de braços abertos,
sorriso largo e olhos voltados para o céu. Nas páginas seguintes, a textura esbranquiçada
mesclada a um fundo vermelho também representa uma chuva intensa a qual o menino se
entrega.
93
Páginas 10 e 11, de Menino chuva na rua do sol
O fim da chuva e o retorno do sol estão representados nas páginas 18 e 19 com um
fundo azul celeste no qual pairam algumas poucas nuvens brancas junto ao menino que de
braços e pernas abertas pula para o céu e se transforma em nuvem.
Páginas 18 e 19, de Menino chuva na rua do sol
A visão do menino, do narrador e do próprio leitor passa a ser sob o ponto de vista da
nuvem: do alto se a Rua do Sol. O menino está estendido, deitado de bruços sobre uma
nuvem e, curiosamente, desvenda os segredos enquanto a nuvem cresce para chover
novamente.
94
Páginas 20 e 21, de Menino chuva na rua do sol
A chuva retorna à cena, chovendo menino agora. O menino de braços estendidos para
o céu, como se estivesse caindo como pingo, surge no chão da sua rua, o céu verde que se
abre ao fundo traz linhas retas brancas que representam a chuva de onde o menino veio. Esse
retorno da chuva representa a idéia de que sol e chuva são estados cíclicos, um sempre, ou
quase sempre, surge após o outro.
Páginas 22 e 23, de Menino chuva na rua do sol
É importante destacar também que, ao longo de toda a narrativa, palavra e imagem
dialogam, e a palavra também se torna imagem, ao ser apresentada não apenas em linhas
horizontais retas, mas em linhas curvas, aleatoriamente dispostas. A fala inicial do menino
página 4 —, e a fala de sua mãe gina 12 se apresentam em linhas curvas, a segunda
com a clara intenção de representar a sua saída direto da boca da mãe, que grita ao filho para
sair da chuva. É da grande boca da mãe que sai o grito dela, avisando ao menino para não ir
para a chuva. Os pensamentos do menino, também, surgem em linhas onduladas
aleatoriamente colocadas na página.
95
Páginas 4, 8, 12 e 14, de Menino chuva na rua do sol
As imagens que ilustram essa narrativa interagem com a palavra, segundo as funções
apontadas por Camargo (1995) sob diferentes perspectivas. O código visual enriquece a
palavra exercendo as funções de descrever ou representar o personagem que é o fio condutor
nesse texto, além de explorar a função simbólica, dialogando com as imagens poéticas que
existem ao longo do texto verbal, como, por exemplo, na página 15: o guarda-chuva que na
imagem realmente se torna um barco, no qual o menino navega pela tristeza da enxurrada, que
carrega tudo das casas por onde passa, ou então, na página 19, o menino que flutua como se
fosse água da chuva evaporando, voltando para junto das nuvens para se tornar chuva
novamente.
Páginas 15 e 19, de Menino chuva na rua dosol
Outra função é a expressiva, bastante explorada para representar a relação do menino
com a chuva, seus sentimentos e sensações. No entanto, a função estética é a que merece
destaque pelo modo com que o personagem e os espaços narrativos são representados,
utilizando diferentes técnicas de desenho e fugindo do convencional na representação de
96
elementos comumente estereotipados como a figura do próprio personagem, das nuvens, da
chuva, do céu ou das árvores. Além disso, as variadas perspectivas dão ao leitor diferentes
visões do objeto de leitura.
Até aqui, as possibilidades semânticas, isto é, os sentidos possíveis, tanto da palavra
quanto da visualidade foram apontados. No próximo capítulo, interessa, no entanto, explicitar
a visão teórica a respeito da mediação da aprendizagem e do texto que, junto a essas
possibilidades semânticas, auxiliarão no desenvolvimento dos encontros de leitura mediada
proposta prática desse estudo para desenvolver a competência leitora de leitores em formação.
97
CAPÍTULO 3
MEDIAÇÃO E COMPETÊNCIA LEITORA
Ilustrações de Elisabeth Teixeira, no livro O menino que aprendeu a ver, Quinteto Editorial, 1998, p. 10, 32 e 33.
CAPÍTULO 3
MEDIAÇÃO E COMPETÊNCIA LEITORA
3.1 Mediação
A idéia de mediação no contexto dessa pesquisa surge a partir do conceito de leitura
segundo o qual o ato de ler é, basicamente, uma interação de dois elementos, um texto e um
leitor (KLEIMAN, 2004, p. 65). E para que essa interação aconteça, em muitos casos, a
mediação torna-se o elo entre esses dois elementos.
A mediação é, portanto, no processo de leitura, o caminho que auxilia o leitor ainda
pouco maduro a apropriar-se do texto de modo mais competente. E essa ação pode ocorrer
tanto no nível do texto, quanto diretamente na relação entre texto e leitor. O texto por si
pode executar o seu papel de mediador, convidando o leitor a fazer parte dele, para
(re)construí-lo durante a leitura, preenchendo as lacunas que propositalmente existem para
acolhê-lo na rede que se constrói no ato da leitura, na interação texto-leitor. No entanto, em se
tratando de leitores mirins, sujeitos dessa pesquisa —, a leitura/compreensão do texto,
muitas vezes, não é suficiente para que eles, sozinhos, sejam capazes de interagir por
completo com os objetos de leitura. Por isso, em alguns casos, a interação entre texto e leitor
também necessita da figura de um mediador, uma pessoa que busque aproximar os dois
elementos para auxiliá-los a melhor interagirem.
Dessa forma, a mediação pode ser considerada a partir de dois pontos de vista.
Primeiro, sob a ótica da experiência de aprendizagem a partir da teoria de Reuven Feuerstein,
que acredita na modificabilidade cognitiva do sujeito, e que, nessa pesquisa, é aplicada como
meio de auxiliar o leitor a tornar-se independente, de modo que passe a perceber o texto como
um todo de sentido a ser considerado no ato da leitura. E, em segundo lugar, tendo por base as
teorias de Wolfgang Iser e Arnold Hauser, que nos falam a respeito da representação de leitor
implícito, presente no modo como o texto é construído para interagir com o leitor real.
A função da mediação é a de auxiliar no desenvolvimento do processo de leitura e da
competência leitora do sujeito. Nesse capítulo, após delimitar os caminhos da mediação, tanto
como experiência de aprendizagem, como meio de concepção e recepção do texto, o segundo
tópico a ser abordado é a questão da mediação no processo de leitura como meio para auxiliar
no desenvolvimento da competência leitora, isto é, na capacidade de o sujeito decodificar,
compreender e construir sentidos de modo competente, a partir da sua interação com
elementos que constituem o texto, tanto verbais quanto imagéticos.
3.1.1 Mediação: experiência de aprendizagem
O desenvolvimento da capacidade comunicativa na criança propicia a interação dela
com o mundo que a cerca. A capacidade comunicativa auxilia esse sujeito em
desenvolvimento a interagir com estímulos que se apresentam e, principalmente, com as
pessoas ao seu redor. Essa etapa, segundo Vigotski, é o momento de maior significado no
curso do desenvolvimento intelectual, que origem às formas puramente humanas de
inteligência prática e abstrata [grifo do autor] (1998, p.33).
No entanto, sob a perspectiva teórica, o simples interagir da criança com o meio, com
os estímulos disponíveis e com as pessoas, não é suficiente para que o sujeito desenvolva
todas as suas capacidades cognitivas e seja agente no processo de aprendizagem. Isso porque
a interação do sujeito com os estímulos de modo incidental não “é suficiente para assegurar a
ocorrência de uma aprendizagem efetiva” (MENTIS, 2002, p. 18), para isso faz-se necessário
“uma forma especializada de interação”, conforme MÉIER (2002,
http://www.marcosmeier.pro.br/pdf/neuropsicologia.pdf). A mediação, sob a perspectiva de
Reuven Feuerstein, é essa forma especializada, que tem como objetivo principal tornar o
sujeito aprendiz independente no seu processo de aprendizagem.
Reuven Feuerstein, romeno, radicado em Israel e ex-aluno de Piaget, é um dos maiores
estudiosos a respeito de aprendizagem mediada. Dentre as suas principais idéias, estão a
modificabilidade cognitiva e a importância da mediação consciente e planejada como meio de
100
interação entre sujeitos, visando a aprendizagem e a própria modificabilidade do sujeito
mediado.
No contexto de estudos cognitivos, essas idéias não estão isoladas ou diferem dos
estudos de Vigotski ou de Piaget. Ao contrário, sendo Feuerstein, discípulo do segundo, é
lógico que suas idéias comungam dos princípios do mestre, assim como também o fazem
junto às concepções do primeiro. Feuerstein agrega novos conceitos ao que Piaget e Vigotski
construíram, o contrariando, mas dialogando e trazendo outras noções aos estudos
cognitivos.
Segundo Gomes (2002), “Piaget é o grande nome considerado por Feuerstein”, que
foi o responsável por definir a inteligência como “um fator dinâmico, interativo, flexível às
mudanças”. Essa idéia de inteligência interativa e flexível a mudanças dialoga com o
princípio de Feuerstein de que o ser humano é modificável, é capaz de alterar suas estruturas
cognitivas não sendo, portanto, um ser “impermeável a alterações significativas” (p. 65).
O diálogo com Vigotski se numa via de ampliação das concepções desse acerca do
desenvolvimento cognitivo humano. A necessidade e a importância da interação social no
desenvolvimento dos sujeitos se faz presente tanto no Sócio-interacionismo, de Vigotski,
quanto na Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural, proposta por Feuerstein. No
entanto, para Feuerstein não basta apenas que o sujeito seja exposto a situações interativas de
aprendizagem, é fundamental, também, que exista nessa situação a figura de um mediador
consciente de sua função no ato de aprender frente ao qual o aprendiz se encontra.
Na teoria de Vygotsky
11
, o marco inicial na aprendizagem da criança é definido
como uma situação sociocultural que cria uma possibilidade para a criança
apropriar-se de certas ferramentas simbólicas e de atividades disponíveis em uma
dada sociedade. Assim, a situação sociocultural torna-se um elemento integrante do
agenciamento superindividual da aprendizagem. [...]
Feuerstein, por sua vez, sugeriu que, além da situação de aprendizagem direta, em
que a criança verdadeiramente se constitui como sujeito agente da aprendizagem,
também uma situação de aprendizagem mediada. Tal situação pressupõe a
existência de um mediador humano ativo que, juntamente com a criança constitui
um agenciamento cooperativo do aprender (KOZULIN apud GOMES, 2002, p.
18).
11
O nome Lev Semenovich Vigotski encontra-se escrito de diferentes formas nos diversos textos de sua própria
autoria o que citam seus estudos. Nesse texto, optou-se por utilizar a escrita sem ípsilons apresentada nas
referências das obras citadas no capítulo 1. Nesse trecho, apresenta-se a escrita com essa grafia, respeitando a
fonte citada que utilizou essa grafia para se referir ao estudioso.
101
O modo com que a interação se estabelece é o foco de atenção da Teoria da
Experiência da Aprendizagem Mediada apresentada por Feuerstein. O interesse dessa
proposta está centrado na maneira com que a aprendizagem se estabelece a partir da presença
de um outro indivíduo. De acordo com Mentis (2002), para Feuerstein, a aprendizagem ocorre
a partir de duas abordagens distintas uma direta e outra mediada. A segunda modalidade, “é
vital para assegurar uma aprendizagem efetiva” (p.18), além de ser intencional, interpõe a
figura do mediador na interação entre o sujeito e o objeto de conhecimento.
Estabelecer uma aprendizagem eficaz, portanto, é o que objetiva Feuerstein a partir de
seus constructos teóricos. A diferença em relação a Piaget e a Vigotski está no modo com que
o sujeito se relaciona com o mundo, ou seja, com os objetos de conhecimento. Se para Piaget
a interação do sujeito com os estímulos se de modo direto ou incidental e, para Vigotski a
interação ocorre a partir da vivência em um contexto social, Feuerstein reforça, nesses dois
modos semelhantes de interação, a figura do mediador “que se interpõe entre o organismo que
aprende e o mundo dos estímulos, interpretando e dando significado aos estímulos”
(MENTIS, 2002, p. 18).
A figura do mediador torna-se, a partir da visão de Feuerstein, fundamental para a
compreensão e a existência de uma verdadeira Experiência de Aprendizagem Mediada
(EAM)
12
. Além do mediador, agente principal nessa experiência de aprendizagem, Feuerstein
aponta, (apud MÉIER, 2002), doze características para definir um ato de aprendizagem que se
por meio de mediação, deixando claro, que se as quatro primeiras forem identificadas, a
interação já pode ser considerada um ato de aprendizagem mediada. Essas quatro
características são intencionalidade e reciprocidade, transcendência, mediação do significado
e mediação da consciência da modificabilidade.
Intencionalidade e reciprocidade são duas características básicas na interação entre o
mediador e o mediado. A primeira consiste no objetivo principal do mediador que é o de
realmente ensinar ou de auxiliar o sujeito mediado a alcançar a sua aprendizagem. A segunda
pode ser considerada uma conseqüência da primeira, por isso se apresentam juntas. A
intenção demonstrada pelo mediador resulta em reciprocidade por parte do mediado que
demonstra receptividade e envolvimento no processo de aprendizagem (MENTIS, 2002).
12
A sigla EAM será utilizada a partir desse ponto do texto para referir-se à Experiência de Aprendizagem
Mediada.
102
Essas duas características, portanto, dizem respeito à maneira com que mediador e mediado se
relacionarão, pois, para que a interação ocorra é fundamental que ambos estejam em harmonia
visando o mesmo objetivo a ser alcançado, e, principalmente, que ambos estejam abertos a
participarem dos processos de ensino e de aprendizagem.
A questão da transcendência é uma característica que ressalta no processo ensino-
aprendizagem, a função de cruzar a linha do tempo do “aqui-e-agora” [grifo meu]. Isso
significa dizer que aquilo que é ensinado, bem como o que é aprendido, não deve ser aplicado
apenas no momento em que esses processos estão acontecendo, mas excede esse tempo, indo
além de um único momento para ser utilizado em todos os tempos. De acordo com Méier
(2002, http://www.marcosmeier.pro.br/pdf/neuropsicologia.pdf), o transcender da EAM “é a
orientação do mediador em ensinar olhando para o futuro, para outros contextos”.
A terceira característica apontada por Feuerstein, a mediação do significado, diz
respeito à transmissão do valor daquilo que é ensinado. Trata-se, portanto, da união do
aspecto cognitivo ao afetivo-emocional, pois o mediador compartilha com o mediado a sua
maneira de ver o mundo, de entender o que está ensinando, transmitindo não apenas
conhecimento, mas também valores. Apesar de ser um meio de mostrar ao sujeito mediado a
visão de mundo do mediador, essa propriedade da EAM precisa ser encarada como um
caminho para a independência do aprendiz, que, no diálogo, também traz a sua visão de
mundo contrapondo-a com a do mediador: “quando o sujeito mediador transmite significados
ao mediado, não a sua visão de mundo, mas também prepara o outro para que ele
igualmente possa ter a sua própria visão de mundo, a sua própria interpretação” (GOMES,
2002, p. 91).
A quarta e última propriedade, na teoria de Feuerstein, para considerar uma
experiência não apenas de aprendizagem, mas de aprendizagem mediada, é a da mediação da
consciência da modificabilidade. Essa propriedade é uma idéia central nos estudos desse
estudioso. A modificabilidade é uma característica presente em todos os sujeitos, segundo o
que Feuerstein nos aponta (GOMES, 2002; MÉIER, 2002; MENTIS, 2002), e pode ser
entendida como a capacidade, que todos tem, ou deveriam ter se tivessem sido bem
mediados —, de aprender, de se modificar, de adquirir conhecimento e utilizá-lo em suas
vidas. Nessa quarta característica, Feuerstein propõe a substituição do conceito de Inteligência
pelo de Modificabilidade. Segundo a explicação de Méier (2002,
103
http://www.marcosmeier.pro.br/pdf/neuropsicologia.pdf), “o novo conceito o traz implícita
a idéia de limite, mas de movimento, de transformação e, portanto, de desenvolvimento”.
Assim, a Teoria da Aprendizagem Mediada, desenvolvida por Reuven Feuerstein, é
definida por Gomes (2002) como uma teoria de aprendizagem que associa a maturação
biológica das estruturas cognitivas ao modo com que essas estruturas são estimuladas para
alcançarem o seu desenvolvimento. O foco da teoria, portanto, está na interação que se
estabelece entre o mediador e o mediado e que tem como conseqüência o desenvolvimento
cognitivo do segundo. E essa interação mediada é uma transmissão que “busca transformar o
estado do funcionamento cognitivo do indivíduo receptor, incitando-o a uma exploração
diferenciada” (GOMES, 2002, p. 77). Portanto, ela mobiliza, por meio do mediador, o sujeito
mediado para o processo de aprendizagem e auxilia-o no seu desenvolvimento cognitivo.
Por isso, a EAM deve ser considerada como “causa central e fator proximal para o
desenvolvimento da estrutura cognitiva dos indivíduos” (GOMES, 2002 p. 109). A evolução
cognitiva, segundo Feuerstein, é interpretada como decorrência de duas formas de interação
da criança com o seu meio: uma interação que se dá a partir da percepção, da assimilação e do
processamento direto da informação e, outra que acontece a partir da mediação realizada por
pessoas significativas (BEYER, 1996). A interação mediada é o centro da atenção dos estudos
de Feuerstein (apud BEYER) que a define da seguinte maneira:
Por meio do conceito de experiência de aprendizagem mediada (EAM) nós nos
referimos à forma como os estímulos emitidos pelo meio são transformados por um
agente ‘mediador’, usualmente um pai, um irmão, ou outra pessoa do círculo
próximo da criança. Este agente mediador, motivado por suas intenções, cultura e
envolvimento emocional, seleciona e organiza o mundo dos estímulos para a
criança. O mediador seleciona os estímulos que são mais apropriados e então os
filtra e organiza; ele determina o surgimento ou desaparecimento de certos
estímulos e ignora outros. Através desse processo de mediação, a estrutura
cognitiva da criança é afetada (1996, p. 75).
Isso significa dizer que a estrutura cognitiva do indivíduo se desenvolve na interação,
e o modo com que essa interação acontece auxilia ou prejudica esse desenvolvimento,
ativando todas as funções de modo equilibrado ou acionando apenas algumas. Sob essa
perspectiva, Gomes (2002) acrescenta que:
[...] no modelo de Feuerstein, as funções cognitivas não se encontram nem
totalmente “dentro” do indivíduo nem totalmente no ambiente, e sim na relação
104
entre os indivíduos, que o desenvolvimento das funções cognitivas está
alicerçado nas relações interpessoais (p. 110).
Dessa forma, compreende-se porque a interação mediada proposta por Feuerstein na
EAM tem influência na modificação estrutural da cognição dos indivíduos mediados. A
interação proporcionada pela EAM de modo intencional aciona determinadas funções
cognitivas de acordo com o previamente planejado, incitando o sujeito a alterar seus padrões
de percepção, comparação, pensamento lógico e hipotético, planejamento, enfim, todo e
qualquer comportamento que envolva alguma função cognitiva. O sujeito passa a apreender o
mundo de um modo diferente, pois as suas operações mentais são alteradas ou impulsionadas,
como conseqüência da modificação ou ativação de determinadas funções cognitivas, que
inexistiam no sujeito ou eram pouco usadas pela falta de estímulo.
A modificação ou ativação das funções mentais e, conseqüentemente, das operações
mentais se a partir do processamento da informação, isto é, do modo como o mediador
auxilia o mediado a perceber o mundo e os seus estímulos, isto é, “a processar adequadamente
aqueles aspectos significativos para o seu crescimento intelectual” (BEYER, 1996, p. 75). O
processamento da informação pode ser entendido a partir de três fases (GOMES, 2002):
entrada ou absorção de informações, elaboração ou organização das informações e saída ou
comunicação das informações previamente absorvidas e organizadas.
Antes de explicitar as funções cognitivas correspondestes a cada uma das fases ou
níveis mentais pelos quais a informação é processada, é preciso que se explique o porquê de
Feuerstein, apesar de estar mais relacionado ao paradigma construtivista ou organicista, ter
utilizado o termo processamento da informação [grifo meu] para o modo com que o sujeito
lida com os estímulos e aciona as suas funções mentais a partir da interação mediada.
Segundo Gomes (2002), Feuerstein recorreu ao conceito de fases e de processamento da
informação apenas como meio para organizar o modo com que as funções cognitivas
funcionam no processo cognitivo.
A comprovação de que o uso do termo processamento da informação é apenas
organizacional está no fato de que a teoria de aprendizagem e funcionamento cognitivo de
Feuerstein, a EAM, tem como idéias centrais a intencionalidade, característica importante da
mediação, e, conseqüentemente, a subjetividade, elementos que inexistem em uma teoria de
processamento da informação. Segundo Pozo (1998), o processamento da informação, como
105
meio de pesquisa do funcionamento cognitivo, é uma concepção mecanicista incapaz de tratar
o funcionamento da mente humana como algo que tenha intenções e que faça uso de uma
subjetividade. Esse modo de entender o funcionamento da mente humana está associado à
maneira com que um computador processa a informação. Sendo assim, sob a ótica do
processamento da informação, em termos computacionias, a mente humana apenas atua diante
das informações como um programa de computador, considerando todo e qualquer conteúdo
qualitativo, consciente, subjetivo ou intencional irrelevantes, o que não ocorre a partir da
perspectiva cognitiva de Feuerstein.
Nas três fases de organização do processamento da informação, apontadas por
Feuerstein para organizar as funções cognitivas, podem ser observadas algumas funções
mentais, que auxiliam na percepção ou absorção da informação, no tratamento que essa
informação recebe e no modo com que ela é comunicada no diálogo mediado. Para a
realização desse estudo, serão selecionadas algumas ações específicas a cada uma das fases,
segundo o que aponta Gomes (2002) e Mentis (2002), de modo que os sujeitos sejam
estimulados, cognitivamente, para lidarem com as informações às quais estavam sendo
expostos no ato da leitura, linguagem verbal e linguagem visual.
A fase de entrada é o momento em que o sujeito mediado inicia a coleta das
informações, isto é, capta por meio dos sentidos (visão, olfato, tato, audição ou paladar) os
estímulos que estão disponíveis (MENTIS, 2002) ou são apresentados a ele. Para que esses
estímulos sejam realmente captados e não prejudiquem posteriormente a fase de elaboração é
necessário que o sujeito ative as seguintes ações mentais: percepção clara e precisa dos
objetos, manutenção de um comportamento exploratório sistemático, uso de conceitos de
modo espontâneo, orientação espacial e temporal, percepção da permanência dos objetos,
coleta precisa e exata de dados, além da capacidade de considerar duas ou mais fontes de
informação de modo simultâneo. Ao ativar essas ações, o sujeito estará captando com mais
sucesso as informações provenientes dos estímulos que lhe são oferecidos. A falha ou a falta
de uma dessas ações não significa fracasso total, mas representa uma deficiência no modo
com que o sujeito está lidando com o estímulo, ou seja, no modo com que o sujeito está
aprendendo e organizando o seu pensamento.
A segunda etapa de processamento da informação é a aquela na qual o sujeito elabora
ou processa as informações. Segundo Gomes (2002, p. 112), este é o momento em que “as
106
informações são relacionadas, significadas e agrupadas”. Nessa etapa, o sujeito mediado
necessita ativar a sua percepção e definir um foco para sua atenção, precisa ser capaz de
diferenciar dados relevantes de dados irrelevantes, mantendo um comportamento de
comparação espontâneo e ampliando o seu campo mental para perceber a realidade de modo
global. Além disso, é fundamental que o sujeito utilize o raciocínio lógico, desenvolva a sua
capacidade metacognitiva, o seu pensamento hipotético, e também uma conduta somativa,
estabelecendo, sempre que possível, relações virtuais. Essa, portanto, é a etapa do pensamento
em que o sujeito utiliza as informações coletadas para a construção de conhecimento, por
meio de seu raciocínio lógico e da organização das informações coletadas.
Na terceira fase, a de saída, o sujeito expõe as informações coletadas e o modo com
que as organizou, isto é, o sujeito exterioriza “toda a construção mental realizada nas funções
de entrada e elaboração” (GOMES, 2002, p. 112). É a oportunidade na qual o mediador, pode
perceber de que modo o sujeito está interagindo com os estímulos apresentados. Para isso, se
faz necessário que o sujeito mediado seja capaz de comunicar-se sem bloqueios, de forma
clara, estabelecendo uma argumentação, sem desconsiderar, é claro, a existência de outros
pontos de vista também possíveis.
A explicitação de cada uma dessas fases, como foi dito, se de modo separado,
mas não significa que na interação do sujeito com os estímulos, proporcionada pelo mediador,
ocorra de modo estanque. A separação é apenas um modo de organizar as funções mentais
que, segundo Feuerstein (GOMES, 2002; MENTIS, 2002), devem ser desenvolvidas ou
ativadas para que o sujeito tire o melhor proveito dos estímulos que lhe são oferecidos. Além
disso, as fases e suas ações mentais podem ter duas funções distintas no processo de
mediação, a primeira, a de auxiliar na percepção da maneira com que o mediador está
instigando os sujeitos a processarem a informação obtida a partir do estímulo, e a segunda
função é a de ampliar ou impulsionar no sujeito esse modo de processar a informação e,
assim, alcançar a construção do conhecimento ou, em outras palavras, de acordo com esse
estudo, desenvolver a competência leitora.
A mediação da aprendizagem que se tentou explicitar até aqui é abordada por
Feuerstein em seus estudos, e, segundo Beyer (1996), entrecruza as idéias de Piaget e de
Vigotski, reforçando a importância de proporcionar à criança, ou ao sujeito aprendiz ,
momentos de interação mediada como meio de auxiliar esse sujeito a melhor interagir com o
107
mundo e ativar a sua própria cognição estabelecendo, assim, um comportamento
metacognitivo. Dessa forma mediar a aprendizagem, significa auxiliar o sujeito a desenvolver
as suas capacidades cognitivas e assim aprender a aprender, aprender a aproveitar melhor a
exposição direta aos estímulos que se apresentam constantemente. O objetivo dos estudos de
Feuerstein não está centrado na mediação, mas no desenvolvimento da capacidade cognitiva
dos sujeitos mediados (BEYER, 1996), de modo que eles se tornem independentes em sua
aprendizagem. O aprender de modo mediado proposto por Feuerstein é um meio de auxiliar o
sujeito para que ele alcance essa independência, isso porque:
[...] quanto mais e quanto mais cedo um organismos é sujeito a MLE [EAM, em
inglês], tão maior será sua capacidade de aproveitar e ser afetado eficientemente
pela exposição direta às fontes de estimulo; quanto menos MLE é oferecida ao
organismo em desenvolvimento, tanto quantitativa como qualitativamente, tanto
menor será sua capacidade de se tornar afetado e modificado pela exposição direta
aos estímulos. MLE, portanto, pode ser considerada como o ingrediente que
determina diferencialmente o desenvolvimento cognitivo (BEYER, 1996, p. 90-1).
Por isso, proporcionar uma experiência de aprendizagem mediada é um diferencial no
desenvolvimento cognitivo do sujeito que afeta o seu modo de lidar com os estímulos. No
processo de leitura, ação central nesse estudo, a EAM será o caminho utilizado para auxiliar
os sujeitos a melhor interagirem com o texto construído por palavra e ilustração, fazendo a
leitura dos duas linguagens para alcançar a compreensão do que está sendo lido.
3.1.2 Mediação do texto
Auxiliar o sujeito a perceber o mundo de maneira diferente, construindo novas idéias e
sentidos a partir do que e dos elementos com os quais interage é papel do mediador.
Segundo o Dicionário de Filosofia (MORA, 1978), ter função mediadora, de acordo com a
lógica clássica e, especialmente, a aristotélica —, significa tornar possível uma conclusão,
um raciocínio. Como experiência de aprendizagem, a mediação envolve a interação de dois
sujeitos, o mediador e o mediado, que se comunicam por meio das mais diversas linguagens
oral, escrita, visual, gestual, etc com o intuito de alcançar o desenvolvimento cognitivo
do sujeito mediado a partir da construção de um raciocínio ou de uma conclusão a respeito de
determinado assunto. Na mediação do texto, cuja discussão é proposta, a proximidade entre os
elementos participantes não é tão estreita, nem tão direta, já que o encontro entre autor e leitor
se dá pela via do texto, uma interação, portanto, indireta.
108
O texto literário, utilizado nesse estudo, se caracteriza como criação artística e, por
isso, segundo Hauser (1977), na sua recepção é preciso que se considerem as diferentes
possibilidades de significação que podem se originar de acordo com o modo com que um
leitor perceberá os elementos que constituem esse texto, sejam eles verbais ou imagéticos.
Cada leitor é único e fará uma leitura, também, única do texto, por mais que a narrativa
mantenha, estruturalmente, um modo de ser construída, a sua recepção sofrerá variações de
acordo com as emoções e as intenções de cada leitor ao interagir com esse objeto de leitura,
resultando, assim, numa variação de sentidos de acordo com cada receptor (HAUSER, 1977).
A mediação do texto envolve, sob a ótica da ação, o processo da leitura, decodificar e
compreender, e sob o ponto de vista dos elementos participantes: o autor, que constrói e
configura o texto; o leitor que, recebe e compreende esse mesmo texto. Trata-se, portanto, de
uma “interação à distância, com um interlocutor não imediatamente acessível, e que
construiu seu texto sem a intervenção imediata, direta do leitor” (KLEIMAN, 2004, p. 7).
Fica claro que, se na mediação da aprendizagem a comunicação entre mediador e mediado é
bastante próxima, na mediação textual, por meio da qual o texto é um mediador que atua em
relação ao leitor, a distância física é facilmente notada. O leitor, sujeito mediado, está distante
de seu mediador, o texto, que precisa ser decodificado para que a interação de fato aconteça,
exigindo, assim, uma habilidade sine qua non por parte do leitor para que essa relação se
estabeleça: a capacidade de decodificar o código usado na construção do texto.
O ato de mediar objetiva que a comunicação aconteça, que as partes envolvidas
estabeleçam um diálogo e, desse modo, interajam. Segundo Hauser (1977, p. 560),
“comunicar-se e fazer-se compreender é tão somente o primeiro passo do complexo ato sócio-
artístico, a garantia de sua realização é constituída pela ação recíproca entre obra e receptor”.
Portanto, a comunicação, isto é, a troca de mensagens, de idéias, a interação entre texto e
leitor é o primeiro ato para que a leitura aconteça.
No entanto, somente essa comunicação não é suficiente para que a relação entre texto
e leitor se estabeleça, já que existem elementos implícitos e vazios esperando que o leitor atue
no preenchimento dessas lacunas do texto com a sua própria visão e conhecimento de mundo.
E são essas situações, vivenciadas pelo leitor no ato de ler, que tornam a leitura uma ação
única para cada sujeito ao interagir com o texto, uma relação que necessita de reciprocidade e
de cooperação de ambos os lados tanto do texto a partir de seu produtor, como do receptor.
109
Um texto antes de ser lido é algo fechado, que não suscita dúvidas nem certezas, não
constrói nem destrói nada, não tem vida. Ao ser lido, um texto passa a existir, torna-se
variável, existe, suscita dúvidas e também certezas, constrói e destrói conhecimento, ganha
vida a partir da visão do leitor. O texto literário existe a partir de seu leitor, pois precisa
dele para se tornar completo, caso contrário, não alcançará sua realidade estética, isto é, não
terá sentido a ser construído ou transmitido, será apenas “uma série de signos hieróglifos”
(HAUSER, 1977, p. 550)
13
.
O texto é imprevisível para o leitor e o leitor é desconhecido para o texto, mesmo
quando imaginado pelo escritor. Porém, essa obscuridade não impede que se estabeleça a
interação de ambos no ato da leitura, pois, de acordo com Iser (1979), é “a imprevisibilidade,
dominante em toda interação”, a “condição constitutiva e diferencial do processo de interação
dos respectivos parceiros” (p. 84). A imprevisibilidade, ao invés de ser uma característica de
interrupção ou impedimento da interação, é condição para que a interação se dê, a
imprevisibilidade origina o questionamento que, por sua vez, origina o diálogo entre texto e
leitor. O leitor mirim ainda não sabe lidar com essa imprevisibilidade, por isso se faz
necessária a presença de um leitor mais maduro capaz de auxiliar a criança a lidar com a
incerteza e interagir com o texto.
A mediação do texto em relação ao leitor estabelece, assim como na mediação da
aprendizagem, uma interação na qual os dois elementos precisam se adaptar para que a
relação aconteça. Texto e leitor precisam agir de modo recíproco, avançando e retrocedendo
para que a compreensão seja alcançada. O leitor, às vezes, precisa seguir o caminho traçado
pelo autor e, outras vezes, o texto precisa ceder espaço para o leitor traçar sua própria rota. O
texto literário, como obra artística, dá essa liberdade para a interação entre texto e leitor.
Ler um texto literário é, portanto, estabelecer uma interação que busca o equilíbrio a
partir da compreensão do que é lido. E esse equilíbrio acontece de modo diferente a cada
leitura, a cada leitor. Trata-se de uma relação que se cria, exatamente, porque o desequilíbrio,
a imprevisibilidade, a obscuridade existem e captam o leitor para reverter essa situação. De
acordo com Iser (1979, p. 88), a presença de vazios entre texto e leitor possibilita a este
interagir com o esquema posto no texto, uma vez que os vazios abrem espaços para atuação
do leitor, acolhendo suas incertezas, ou seja, as diferentes maneiras de ver o mundo.
13
Tradução do seguinte trecho: una serie de signos jeroglíficos. (HAUSER, 1977, p. 550)
110
Assim como em uma situação de aprendizagem, a mediação busca suscitar dúvidas no
sujeito mediado, na leitura de uma obra literária surgem uma multiplicidade de representações
que provocam o leitor a interpretá-las, compreendê-las e, até mesmo, reconstruí-las de acordo
com a sua própria maneira de entendê-las. E essa complexidade oferecida do texto não é
vencida ou simplificada a partir da interação, é apenas deflagradora de um diálogo entre texto
e leitor, isto é, de um “processo de comunicação, no fim do qual aparece um sentido
constituído pelo leitor, dificilmente referenciável, que, no entanto, contesta o significado de
estruturas de sentido anteriores e possibilita a alteração de experiências passadas” (ISER,
1979, p. 89). Portanto, mediação no ato da leitura implica atuação de um leitor maduro que
auxilia a criança a compreender o texto e, principalmente, a sua maneira de mediar o leitor,
provocando-o a compreendê-lo.
3.2 Mediação no processo de leitura: desenvolvimento da competência leitora
Ser um leitor competente não significa apenas decodificar os símbolos alfabéticos ou
compreender o que está escrito, mas é decodificar visando compreender, é, principalmente,
interagir com o que se lê, estabelecendo uma relação de troca, crescimento, de construção de
conhecimento de mundo e, também, de auto-conhecimento. Tornar-se um leitor autônomo, no
entanto, não é tarefa fácil, é algo que se conquista, é competência construída dia-a-dia, passo-
a-passo. Primeiro, com a ajuda de um leitor mais maduro, o leitor caminha cambaleante,
descobrindo a leitura do mundo que o cerca e que necessita ser lido para ser compreendido,
depois descobre o código alfabético que abre as portas para um outro mundo de possibilidades
e, assim, a leitura do mundo (FREIRE, 2005) ou o mundo da leitura se descortina frente aos
olhos do leitor. Aos poucos, ele se torna independente na leitura do texto e, ao mesmo tempo,
capaz de vivenciar a experiência da leitura solitária, do vazio interior, do silêncio que se faz
para que as palavras sejam lidas e compreendidas naquele momento único de encontro com o
texto (LARROSA, 2003).
Para que o leitor alcance esse estágio de experiência solitária da leitura de permitir-se
ouvir as palavras que lê, é fundamental que ele seja apresentado à leitura por alguém que
lhe mostre essa possibilidade. A presença da leitura na vida de uma criança não se por
outro meio, senão pelo modelo de leitor que ela no adulto que está próximo. Dessa forma,
111
é grande a influência dos adultos leitores no que diz respeito ao comportamento leitor de uma
criança. E essa influência se reflete não apenas na importância ou na freqüência com que se
lê, ela se dá também no modo como a criança lê.
Segundo Teberosky e Colomer (2003), a aprendizagem da leitura não se divide em
“pré-leitor e pós-leitor” (p.16). O que deve haver nessa aprendizagem é um processo contínuo
de desenvolvimento, no qual o aprendiz seja colocado em contato com diversas possibilidades
em que a leitura é o foco. Para isso, se faz necessária a presença de um leitor adulto, engajado
no processo de auxiliar a criança a ingressar na leitura e também tornar-se um leitor
independente, capaz não apenas de decodificar ou compreender o que lê, mas, principalmente,
vivenciar a experiência da leitura como prática de vida, de busca de conhecimento sobre o
mundo e sobre si mesmo.
A leitura de narrativas infantis verbo-visuais é uma dessas possibilidades que o leitor
adulto pode proporcionar aos aprendizes. Esse leitor exercerá o papel de mediador o que
significa auxiliar a criança, que ainda o tem muita experiência, a construir o seu caminho
como leitora, a tornar-se independente e crítica em relação ao que lê. Para tanto, esse adulto
deve ter como habilidade principal, segundo Saraiva (2001), a capacidade de apreender o
texto confirmando, transformando ou negando-o, ou seja, exercendo plenamente a sua
habilidade crítica no ato da leitura.
A mediação do texto é um meio para auxiliar o leitor a atingir a sua competência, a
tornar-se um sujeito capaz de interagir plenamente com o texto. O modo com que o objeto de
leitura se apresenta aos olhos do leitor predispõe a essa interação. No entanto, a habilidade
para participar dessa interação precisa ser aprendida. O leitor mirim não nasce preparado para
interagir com o texto literário de imediato, após aprender os mistérios do código alfabético,
ele precisa que alguém o ajude a descobrir a predisposição do texto para interagir, para
dialogar. O leitor precisa descobrir na estrutura do texto os vazios (ISER, 1979), como
convite a atualização do texto, aceitando ou modificando-o, de acordo com a sua leitura.
A ajuda ao leitor mirim vem por meio da experiência de aprendizagem mediada, na
qual um mediador, leitor experiente, auxilia o sujeito aprendiz a descobrir os mistérios do
texto e, assim, a alcançar a competência leitora. A interação texto-leitor mediada por um leitor
112
experiente é uma experiência acima de tudo de transmissão cultural, na qual, segundo
Tomasello (2003, p. 7), o sujeito tem a oportunidade de interagir com seus semelhantes e
percebê-los “como seres iguais a ele [grifo do autor], como vidas mentais e intencionais
iguais às dele”.
A competência leitora se atinge, portanto, na interação de texto e leitor, primeiro, a
partir do auxílio de um leitor mais experiente e, depois, ao poucos, de modo independente,
colocando em prática as experiências vivenciadas. Segundo Alliende e Condemarín (2005), a
aprendizagem da leitura se a partir de diversos fatores, sicos e fisiológicos, sociais
emocionais e culturais, perceptivos, cognitivos e lingüísticos. Todos esses fatores devem ser
considerados para que o convívio com a leitura se em um nível que considere as
características das crianças e corrobore para que a competência em leitura seja alcançada. Não
se trata, portanto, de uma interação qualquer, mas de uma interação que busque auxiliar no
desenvolvimento do sujeito leitor.
Uma leitura mediada, segundo os critérios colocados por Feuerstein, portanto, não
envolveria apenas o ensino da decodificação dos símbolos gráficos, palavras ou ilustrações;
envolve, principalmente, a interação dos dois sujeitos um mediador e um aprendiz em
uma relação que objetiva não a dependência, mas a total autonomia (apud GOMES, 2002).
Além disso, envolve a participação comprometida de dois sujeitos para alcançar esse objetivo,
de modo que o seu resultado, a habilidade de leitura, seja realmente aplicada e utilizada como
conhecimento efetivo, porém em contínuo desenvolvimento. Mediar o processo de leitura
significa auxiliar o sujeito a construir a sua autoconfiança e descobrir que é possível construir
novos sentidos a cada texto lido e tornar isso um hábito, uma mania em seu sentido mais
positivo e prazeroso que possa ser alcançado. Mediar o processo de leitura significa ensinar a
ter nos olhos o brilho da descoberta de um novo sentido revelado a partir de cada leitura de
um texto que parecia apenas conter uma bela história ilustrada por alguns desenhos.
O próximo capítulo tenta mostrar de que forma o processo de mediação, a partir da
Teoria da Experiência de Aprendizagem Mediada de Reuven Feuerstein, pode ocorrer no
processo de leitura de cinco narrativas infantis verbo-visuais. A análise do papel do mediador
em interação com dez crianças e o comportamento dessas crianças em encontros de leitura
113
mediada, tanto da palavra quanto da visualidade, são o foco de atenção da próxima parte desse
estudo.
114
CAPÍTULO 4
PROCESSO MEDIADO DE LEITURA: da teoria à prática
Detalhe de uma ilustração de Luiz Maia, no livro Sabendo ler o mundo, Paulus, 2006, p. 12.
CAPÍTULO 4
PROCESSO MEDIADO DE LEITURA: da teoria à prática
Sistematizar a aplicação dos princípios teóricos a respeito do processo de leitura
mediada de narrativas verbo-visuais é um dos propósitos desse capítulo. A teoria agora é
reapresentada, iluminando a interpretação de dados coletados no processo de interação
mediada. O texto, que aqui se apresenta, une teoria e prática, que não poderiam estar
dissociadas, pois uma enriquece a outra, dando sustentação a essa pesquisa. Dessa forma, o
que se inicia, a partir desse ponto, é um diálogo entre teoria e prática, no qual o olhar da
pesquisadora é o mediador que auxiliará para que essa interação seja estabelecida.
A análise dos dados coletados em uma pesquisa comportamental e longitudinal é o que
se apresenta desse ponto em diante. Trata-se de um estudo comportamental, pois o centro da
atenção é o comportamento do sujeito mediador durante o processo de mediação, o modo com
que ele interage com os sujeitos, buscando auxiliá-los a melhor perceber a interação da
visualidade com a palavra na construção narrativa e, também, a utilizar essa interação na
compreensão decorrente do processo de leitura. O aspecto semi-longitudinal deve-se ao fato
dessa pesquisa ter ocorrido em nove encontros, nos quais a cada dois estudava-se uma das
cinco narrativas por meio da mediação do processo de leitura. Apenas a última narrativa foi
trabalhada em apenas um encontro, pois se tratava de uma narrativa com estrutura diversa das
anteriores e, além disso, para tentar perceber que tipo de mudanças comportamentais em
relação à leitura da palavra em interação com a imagem, os sujeitos obtiveram ao longo dos
oito encontros anteriores.
A organização da coleta de dados em nove encontros deve-se ao fato da teoria de
Feuerstein, que sustenta essa pesquisa, aproximar-se fortemente do modelo organicista
proposto pela psicologia cognitiva. Esse modelo supõe o desenvolvimento cognitivo a partir
de “um organismo que se organiza através da constituição de uma estrutura interna, a qual
sofre processos constantes de reestruturação” (GOMES, 2002, p. 40). Isso significa dizer que
qualquer modificação cognitiva, que se tenha em mente necessita de tempo e constância dos
estímulos para que o sujeito reorganize-se internamente, isso justifica o princípio da
investigação longitudinal. Por isso, então, a necessidade de não se realizar apenas um
encontro de leitura mediada, a partir de apenas uma única narrativa. O maior número de
encontros nove e a maior diversidade de narrativas cinco –, com propostas estruturais
distintas, conforme apresentado na análise semântica, auxiliam o sujeito na sua reorganização
cognitiva frente ao processo de leitura do texto estabelecido a partir da palavra e da imagem.
4.1 População e amostra: metodologia de seleção
O encontro de leitura mediada é a ação que desencadeia essa pesquisa. Para o
estabelecimento dessa ação envolveram-se os sujeitos mediados e a própria pesquisadora
como mediadora. Os 10 sujeitos mediados, que constituíram o grupo de investigação do
processo de leitura por meio de mediação, foram escolhidos com base nos seguintes critérios:
primeiro estarem cursando a série do Ensino Fundamental em uma determinada escola
pertencente à rede pública estadual de ensino e localizada na cidade de Cachoeira do Sul
(RS); além disso, diante de uma turma de 24 alunos, estabeleceu-se como critério para a
escolha dos 10 sujeitos a competência em leitura determinada a partir da capacidade de
compreensão do texto verbal. A idade dos sujeitos, inicialmente, o foi um critério
determinante, pois a população alvo da pesquisa era constituída por alunos de uma escola da
rede pública estadual de ensino, localizada em um bairro de baixa renda da cidade e com um
índice significativo de repetência, o que tem como conseqüência a constituição de uma turma
de série, com características bastante heterogêneas e pouco convencionais em termos de
idade.
A seleção dos sujeitos em relação ao critério capacidade de compreensão do texto
verbal foi realizada por meio de um pré-teste de leitura individual, no qual os leitores leram
uma narrativa verbal não muito longa, com 520 palavras, que foi digitada e impressa em duas
folhas de ofício brancas. A partir dessa leitura, as crianças fizeram um breve relato a respeito
117
da história lida
14
. Os relatos foram gravados e analisados posteriormente com base em alguns
critérios de avaliação da leitura silenciosa, da postura durante o ato da leitura e da
compreensão em leitura apontados por Alliende e Condemarín (2005) tais como, o modo com
que o sujeito se comporta ao ler, se relaxado ou tenso, seguindo as linhas do texto com o
auxílio do dedo ou apenas com o olhar e, no relato da história, se ordena os fatos de maneira
lógica, identifica personagens principais e secundários, assim como o local onde os fatos
acontecem, o tempo, a idéia central dentre outros elementos constitutivos da narrativa e que
lhe conferem lógica. O objetivo principal dessa pré-seleção dos sujeitos, além de não fazer
aleatoriamente a escolha dos 10 sujeitos na turma, foi o de avaliar a compreensão leitora
deles, fator fundamental para que o estudo pudesse ser desenvolvido.
De acordo com a disponibilidade da pesquisadora, a realização dos pré-testes
transcorreu durante três dias do mês de abril, dias 18, 19 e 25, no turno da tarde quando os
sujeitos assistiam aula. O pré-teste de leitura ocorreu de maneira individual em uma sala
disponibilizada pela Escola. Durante a leitura e, também, ao longo do relato da história fiz
15
anotações que depois associadas à escuta da gravação ajudaram no preenchimento do quadro
de avaliação
16
. A análise das gravações, das anotações e o preenchimento desse quadro
originaram um impasse no estudo, pois tendo em vista que se buscava 10 sujeitos leitores
independentes e competentes em leitura, o resultado obtido foi de apenas um único sujeito
com bom desenvolvimento leitor podendo ser considerado independente, dentre os 24 alunos
da turma de 4ª série. Dessa forma, tive que reduzir as expectativas de competência em relação
ao comportamento independente e à compreensão em leitura e, procurar dentre os sujeitos não
os plenamente competentes, mas os que mais se aproximassem dessa característica.
O grupo de sujeitos escolhidos para fazer parte do processo de leitura mediado
formou-se então de modo heterogêneo, sendo uns mais competentes em alguns aspectos e em
outros nem tanto e vice-versa o que é bastante positivo se considerarmos, sob a ótica do
sócio-interacionismo de Vigotski, a importância da interação social como meio de
desenvolvimento dos sujeitos. Além disso, foi necessário incluir alguns sujeitos e outros não,
14
A narrativa escolhida foi Como se fosse dinheiro, de Ruth Rocha, e encontra-se anexada ao final do trabalho
(ANEXO 1).
15
Passo a utilizar a primeira pessoa do singular em alguns momentos quando se tratar do relato da pesquisa e de
ações executadas por mim ao longo do estudo. Além disso, o uso da primeira pessoa do singular se faz
necessário, pois as minhas ações serão, posteriormente, o foco da análise central nesse estudo.
16
Em anexo (ANEXO 2) encontra-se a tabela organizada a partir da taxonomia de Barret com todos os critérios
que auxiliaram na seleção dos sujeitos para o grupo de leitura mediada.
118
devido à questão etária, já que alguns deles tinham uma idade muito elevada, 13 ou 14 anos, o
que talvez prejudicasse o trabalho devido à temática e a estrutura das narrativas que seriam
usadas no processo de leitura que, provavelmente, não seriam muito atrativas para leitores
dessa faixa etária. Os 10 sujeitos selecionados receberam, de seus pais, autorização para
participarem da pesquisa por meio de um termo de consentimento produzido por mim e
aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Santa Cruz do Sul CEP-
UNISC
17
. Formado o grupo, iniciaram-se os encontros de leitura mediada que ocorreram entre
os meses de maio e agosto de 2006, no início, nas primeiras duas narrativas com um encontro
semanal para cada momento da coleta e, depois, nas três últimas narrativas com dois
encontros na mesma semana. A duração de quatro meses se deve ao fato de nem sempre ser
possível realizar os encontros devido à realização de atividades de sala de aula ou da própria
Escola nas quais os sujeitos estavam envolvidos. Sendo assim, foi necessário que, em
determinados momentos, a pesquisa não ocorresse para não atrapalhar o andamento das
atividades escolares que deveriam ser privilegiadas.
4.2 Encontro de leitura mediada: procedimentos
Os encontros de leitura mediada foram organizados a partir de três etapas distintas. A
primeira etapa, realizada pela própria pesquisadora, foi constituída da escolha e análise
semântica das cinco narrativas selecionadas para essa investigação. Como critérios gerais para
a seleção das narrativas utilizou-se a necessidade de serem publicadas no Brasil, de serem
voltadas para o público infantil e, principalmente, terem, como elemento constituinte, a
interação da palavra com a imagem, na qual uma linguagem potencializa a outra agregando
sentidos ao texto como um todo. Como critérios mais específicos as cincos narrativas foram
escolhidas considerando os sujeitos leitores da pesquisa, isto é, o seu nível de competência
leitora bem como os seu prováveis interesses de acordo com a sua realidade sócio-cultural.
A segunda etapa foi realizada baseando-se na Experiência de Aprendizagem Mediada
proposta por Reuven Feuerstein. Para cada uma das narrativas foi elaborado um roteiro de
mediação
18
, buscando explorar a interação da visualidade com a palavra na leitura e na
construção de sentido, bem como investigar o comportamento leitor dos sujeitos. A teoria de
17
O termo de consentimento assinado pelos pais dos sujeitos participantes da pesquisa apresentando junto ao
projeto de pesquisa e aprovado pelo CEP-UNISC encontra-se no ANEXO 3
18
Os roteiros de mediação de cada narrativa encontram-se a partir do ANEXO 5 até o ANEXO 9.
119
Feuerstein trouxe para esses roteiros os aspectos
19
que deveriam ser observados e instigados
nos sujeitos mediados por meio da mediação. As fases de processamento da informação,
juntamente com as ações mentais propostas na Experiência de Aprendizagem Mediada
EAM organizaram os questionamentos que constituem o roteiro, de modo que eles não
fossem apenas simples perguntas a respeito da narrativa, mas que instigassem os sujeitos a
ampliarem o uso de ações mentais ou desenvolverem essas ões como meio de melhor
interagir com o texto-palavra e o texto-imagem que constituem as narrativas lidas.
Os roteiros, por meio das perguntas, foram apenas uma maneira de nortear a mediação,
não representam um esquema fechado e inalterável. Até mesmo porque o encontro de leitura
mediada se por meio do diálogo, o que faz com que nada seja preconcebido ou previsível,
tudo aconteça no momento e, deve ser orientado e aproveitado pelo mediador da melhor
maneira possível, para que o objetivo do processo de mediação seja atingido. Dessa forma,
muito do que será apresentado como falas minhas, a partir do meu papel de mediadora, que
tinha o roteiro em mãos como guia, talvez não represente, fielmente, os roteiros que se
encontram anexados nesse trabalho. Os dados, aqui apresentados, são palavra viva que se
constitui no ato de comunicação, no qual estão envolvidas várias pessoas e, portanto, pouco
previsíveis, o são um relato fiel da aplicação dos roteiros previamente preparados, que
esses tiveram apenas o papel de nortear a discussão e não torná-la algo imutável.
O terceiro momento da leitura mediada proposta nesse estudo se na ação, na qual a
interação do mediador com os mediados acontece. Por envolver o processo de leitura, pode
ser descrito também como o momento em que os sujeitos leitores entram em contato com o
texto e passam a interagir com ele por meio da mediação do leitor adulto, no caso eu
mesma exercendo o meu papel de leitora madura —, capaz de apontar alguns caminhos
semânticos dentro do texto e instigar os sujeitos a percorrê-los e, também, a construir os seus
próprios percursos.
Os encontros de leitura mediada, para as primeiras quatro obras, se dividiram em duas
etapas distintas, pelo modo com que o texto era apresentado e também por acontecerem em
dias diferentes. Esses momentos podem ser assim descritos:
19
A tabela de ações mentais correspondente a cada fase de processamento da informação encontra-se anexada
ao final, ANEXO 4. Para compreender melhor os roteiros é preciso antes conhecer as ações que constam dessa
tabela, pois nos roteiros essas ações estão indicadas apenas por números.
120
- no primeiro encontro, as dez crianças participantes do grupo de leitura mediada realizaram a
leitura apenas da palavra de cada uma das narrativas. Inicialmente, as crianças não tinham
contato com o livro, no qual essas narrativas se apresentam. A história, na sua forma verbal,
foi digitada, utilizando um tipo e tamanho de letra que se aproximasse àquele usado no livro
e, impressa; o suporte foi sempre uma folha de papel ofício branco
20
. Desse modo, o sujeito
tinha contato, somente com o código verbal para que a leitura fosse feita. Esse era um
momento para conhecer a estrutura narrativa, delimitar os seus componentes e, também, de
instigar o sujeito a perceber se o código verbal deixava algumas lacunas ao longo da
construção textual que talvez, depois, fossem preenchidas pela leitura do código visual;
- no segundo encontro, as crianças fizeram uma releitura da narrativa, com a palavra
associada à ilustração, no próprio livro. Nessa etapa o sujeito deparava-se com um elemento
já conhecido, a palavra e um elemento totalmente novo, a ilustração. Os questionamentos, que
eram feitos aos sujeitos, pretendiam instigá-los a perceber que tanto o verbal quanto o visual
são passíveis de leitura e que, portanto, trazem informações que devem ser consideradas pelo
leitor para a plena compreensão. Esse segundo encontro é o foco principal da análise em cada
uma das narrativas, pois é nele que estão os dados que demonstram a importância da presença
de um mediador atento à interação dos códigos verbal e visual na construção do texto para
auxiliar o leitor, ainda pouco hábil, a também perceber essa interação e efetuar a leitura de
ambos os códigos.
Esses dois momentos distintos foram alterados na abordagem da última narrativa,
Menino chuva na rua do sol, de André Neves. Com essa narrativa os sujeitos tiveram apenas
um encontro, lendo-a diretamente no livro. Isso ocorreu, como será explicitado
posteriormente, como meio de perceber de que modo os sujeitos estavam interagindo com o
texto constituído pelos dois códigos depois do processo de mediação vivenciado nas outras
quatro narrativas.
4.3 Análise dos dados
Os dados são apresentados a partir da proposta de leitura realizada com cada narrativa
nos distintos encontros acima descritos. Na escuta das gravações dos encontros analisei a
20
As narrativas, fiéis ao modo com que foram apresentadas aos sujeitos, encontram-se anexadas ao final desse
trabalho a partir do ANEXO 10 até o ANEXO 14.
121
minha própria fala como mediadora, destacando momentos em que influenciei positivamente
os sujeitos a voltarem o seu olhar, ativando as ações mentais propostas por Feuerstein
(GOMES, 2002), para a estrutura narrativa e a interação da palavra com a imagem como
elementos semânticos e, também, o contrário momentos em que houve falha na mediação
desses aspectos. Trata-se, portanto, de uma análise de dados que emergem a partir da minha
escuta atenta àquilo que eu mesma disse no processo de mediação, do modo como conduzi o
diálogo mediado. As respostas das crianças também aparecerão em determinados momentos
como meio de ressaltar os meus acertos e as minhas falhas como mediadora do processo de
leitura das narrativas verbo-visuais.
Dessa forma, a pesquisa aqui descrita situa-se no âmbito das ciências humanas,
preocupando-se, portanto, em descrever e explicar (FREITAS, 2002) os fatos decorrentes da
interação estabelecida em um processo de leitura mediada. Em termos de análise dos dados,
por ser uma pesquisa qualitativa, não preocupação com números ou com estatísticas, mas
com interpretações da interação estabelecida entre pesquisador e pesquisados (BAUER e
GASKEL, 2002, p.23). Dessa forma, segundo Silva, Barbosa e Kramer (2005, p. 48), as ações
fundamentais, envolvidas nessa análise são ver e ouvir.
Os dados são construídos não apenas a partir da análise, eles começam a surgir desde o
momento em que a interação se estabelece entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados. No
caso da pesquisa aqui apresentada, é no processo de leitura mediada que os dados começam a
ser percebidos. Por isso, “ver e ouvir são cruciais para que se possa compreender gestos,
discursos e ações” (SILVA, BARBOSA e KRAMER, 2005, p. 48), enfim, para que se possa
perceber tudo que se passa nessa interação estabelecida no ato da investigação do processo de
leitura.
No entanto, é fundamental que essas observações provenientes do ver e do ouvir
estejam alicerçadas na teoria. A pesquisa não se resume à mera observação. É no ato de
descrever aquilo que foi visto e ouvido que ela se sustenta. E esse ato de descrever necessita
de sustentação teórica para que não se torne empírico em demasia, pois, é a teoria que
“sensibiliza o olhar e o ouvir e orienta o escrever” (SILVA, BARBOSA e KRAMER, 2005, p.
48).
122
A análise dos dados nessa pesquisa, portanto, ocorre na construção, ou seja, no
desenvolvimento da investigação, porque, nesse ato efetiva-se um diálogo e “os sentidos são
criados na interlocução e dependem da situação experienciada” (FREITAS, 2002,
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742002000200002). E por
se tratar de um ato comunicativo não há como prever as reações dos sujeitos. Não é, portanto,
uma análise baseada na simples transcrição das falas dos sujeitos. Os dados são construídos a
partir da observação atenta do pesquisador que deve buscar sustentação no referencial teórico
para aquilo que vê e ouve, além de, “compreender de maneira delicada e tensa que, por trás do
dado, sempre um rosto, um corpo, um sujeito”. (SILVA, BARBOSA e KRAMER, 2005,
p.43).
Dessa forma, essa análise não se limita apenas a transcrever falas, mas a interpretar e
explicá-las teoricamente, porém, de modo sensível. Para essa análise sensível, o pesquisador,
não pode tomar uma posição etnocêntrica, deve sim tentar colocar-se no lugar do outro para
entender e enxergar o mundo com esse mesmo olhar (SILVA, BARBOSA e KRAMER,
2005). E essa tentativa de colocar-se no lugar do outro significa nessa análise também
perceber-se de forma crítica, que, o foco central da análise sou eu mesma como mediadora
de leitura, como leitora madura que tenta auxiliar um grupo de leitores ainda em fase de
formação da sua competência leitora a melhor interagir com os códigos que constroem o
texto. O outro a ser analisado, portanto, é a mediadora o que torna a minha ação como
pesquisadora não apenas crítica, mas principalmente autocrítica.
4.4 Encontro de leitura mediada: acertos e falhas na mediação
4.4.1 O beijo: leitura mediada da palavra
O beijo foi a primeira narrativa escolhida dentre as cinco selecionadas. Essa escolha se
deveu ao fato dessa narrativa ser bastante curta e, principalmente, pela facilidade com que um
leitor pouco experiente poderia vivenciar, por meio da mediação, a leitura do verbal e do
visual, tendo em vista que eles se apresentam de modo bastante interativo e complementar.
O primeiro encontro, ocorrido no início do mês de maio de 2006, na sala da biblioteca
da Escola, teve início com um breve esclarecimento a respeito de que tipo de trabalho seria
123
feito. Expliquei
21
aos alunos que nos encontraríamos na sala da biblioteca da Escola para
juntos lermos uma história e conversarmos a respeito dela e, que essa mesma história seria
lida em dois encontros diferentes. No primeiro momento, não informei o porquê dessa
releitura para que os sujeitos não fossem levados a talvez modificar o seu comportamento
durante a mediação da palavra prevendo que, no livro, em virtude da presença da imagem,
mais informações ou outros detalhes seriam trazidos.
Após uma leitura individual e silenciosa, realizei uma leitura oral para que além de ler
a história, os alunos também a ouvissem. Em seguida, iniciou-se a discussão. Nessa conversa
cinco aspectos estruturais da narrativa foram ressaltados a partir do roteiro de mediação e da
conversa que se estabeleceu com o grupo de mediados: a caracterização do protagonista e dos
demais personagens, a caracterização do narrador, do enredo, da questão temporal e do espaço
narrativo. Permeando essas questões é possível perceber a mediação de algumas funções
mentais no sentido de ativá-las ou desenvolvê-las, sendo esse o objetivo central do processo
de leitura mediada que começou a ser estabelecido.
4.4.1.1 Caracterização do protagonista e dos demais personagens
A conversa mediada sobre a caracterização do protagonista e dos demais personagens
proporcionou aos sujeitos mais do que conhecer os personagens, propiciou o desenvolvimento
ou a ativação de algumas ações mentais importantes para a formação da competência leitora,
tais como: o uso do comportamento exploratório sistemático, o estabelecimento de relações
virtuais e, principalmente, a comunicação sem bloqueios. Iniciei a conversa questionando-os
a respeito de quem era a história que havia sido lida. Por se tratar de uma narrativa que tem
como narrador o próprio personagem principal, — uma voz que está presente do início ao fim
da história —, a determinação de quem conta a história ou a sua caracterização foi o ponto de
partida para a mediação da comunicação.
A capacidade de comunicar-se sem bloqueios e de modo claro está presente, segundo
Feuerstein (GOMES, 2002; MENTIS, 2002) na fase de saída, isto é, de exposição da
informação que foi percebida e analisada nas fases de entrada e elaboração. O questionamento
a respeito da configuração do personagem foi um meio de começar a perceber de que modo os
21
Ao longo das análises dos encontros de leitura mediada, os componentes do grupo de leitura mediada serão
denominados como sujeitos, alunos, crianças ou participantes.
124
sujeitos mediados haviam recebido o texto e, principalmente, a sua maneira de se expressar,
de falar e também de aceitar diferentes opiniões.
Um dos sujeitos, S3
22
respondeu que a voz narrativa, que também era do personagem
principal, era de uma menina que não havia recebido o beijo da mãe. O meu procedimento
seguinte, como mediadora, foi o de questionar os demais se eles teriam outras idéias. No
entanto, ao fazer esse questionamento acabei iniciando a minha fala repetindo a resposta do
S3 como transcrevo abaixo:
Med.
23
: O S3 disse que é sobre uma menininha. Todo mundo concorda que é sobre uma
menininha? Ou alguém teve outra idéia?
Ao final da minha fala, aguardei que os sujeitos se manifestassem, o que não
aconteceu. Ao analisar esse momento de falta de pronunciamento, no início da mediação,
interpreto-o a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, penso que talvez o meu modo
de iniciar a mediação, repetindo a fala do S3, foi considerado pelos demais como meio de
confirmação de que aquela seria a resposta correta, como se não houvesse outras
possibilidades e eu estivesse apenas instigando-os a confirmar aquela idéia. Além disso, o
silêncio do grupo também pode ter ocorrido em decorrência da timidez, em virtude de ser esse
o primeiro encontro comigo e isso ter lhes tolhido a fala, ou seja, a comunicação sem
bloqueios.
Ao perceber essa dificuldade que se apresentou, busquei mediá-los tendo em vista que
a capacidade de comunicar-se sem bloqueios e de modo claro é um dos principais meios que o
mediador possui para perceber se os sujeitos mediados estão interagindo com as informações
apresentadas e, principalmente, como essa interação está ocorrendo. Por isso, instiguei
novamente o grupo a responder o questionamento a respeito do personagem, não repetindo a
mesma pergunta, porém buscando dar-lhes confiança de que a resposta do S3 não era a única
correta e possível, mas que cada um poderia expor a sua opinião. O rumo tomado foi o de
questioná-los a respeito de porque eles imaginaram que o personagem seria uma menina e não
um menino.
22
Os sujeitos serão identificados sempre que possível por números de 1 a 10, que a gravação da voz nem
sempre deixa claro quem está falando. A numeração dos sujeitos foi feita de maneira aleatória, apesar de os S1 e
S10 caracterizarem-se como os sujeitos mais e menos desenvolvidos em termos de compreensão leitora.
23
Utilizarei a abreviatura Med. para me referir às minhas próprias falas como mediadora.
125
Apesar de ter obtido uma resposta de um outro sujeito
24
, a timidez em expor-se ainda
existia. As crianças riam e se olhavam semcoragem” de falar. Tentando, novamente, buscar
a opinião delas, questionei: Como era essa menininha, S8, será?, dirigindo-me a uma menina
do grupo em específico. A menina não se pronunciou, mas consegui obter mais algumas
informações mesmo que provenientes do sujeito que havia se manifestado anteriormente
ou, então, de todos os componentes do grupo de modo coletivo, como transcrevo abaixo:
Med.: Como era esse menininha, S8, será?
S3: Bem pequenininha.
Med.: Loirinha ou moreninha?
Todos: Loirinha.
A descrição desse momento apesar de o conter informações relevantes para a
caracterização do personagem deve ser considerada nessa análise, porque se trata de um
momento da fala mediada, cujo objetivo é deixar os sujeitos mais à vontade para se
expressarem. Foi por meio do processo de mediação, do diálogo, que os sujeitos acabaram por
se sentirem confortáveis para exporem suas idéias e interagirem comigo e com os demais
sujeitos.
Mais uma vez, buscando uma estratégia de mediação da capacidade comunicativa dos
sujeitos, desviei do tema central que era o personagem principal e parti para a denominação
dos demais personagens presentes na história. Questionei-os, então, quais eram os outros
personagens presentes na narrativa. Para responderem a esse questionamento percebi que eles
consultaram o texto impresso que tinham em mãos. Tinham consciência de que se tratava de
uma informação textual e que, portanto, a resposta estaria na fonte. Isso exigia um
comportamento exploratório sistemático das informações que estavam de modo a
diferenciar o que era relevante para centralizar no foco da questão e, assim, responder à
pergunta.
Não percebi dificuldade em nenhum componente do grupo para identificar e citar os
demais personagens, pois esse deve ser um tipo de pergunta habitual no ambiente escolar e
que, muitas vezes, acaba reduzindo o processo de leitura à simples localização de informações
no texto e não à compreensão dele. Eles comportaram-se de modo exploratório, rastreando o
24
Em virtude do grupo de mediação ser constituído por 10 sujeitos e essa análise ser proveniente de uma
gravação nem sempre é possível identificar qual sujeito se manifestou, por isso, refiro-me apenas como sujeito
ou S? em certos momentos.
126
texto em busca dos nomes dos outros animais que eram personagens na narrativa, além disso,
também conseguiram organizar-se diante de toda informação que consta no texto, focalizando
apenas os nomes dos personagens e descartando informações irrelevantes nesse
questionamento. Desse modo é possível notar um bom desempenho dos sujeitos no que diz
respeito à recepção das informações e ao modo com que lidam com elas, pois afinal todos
são leitores da palavra, têm habilidade para interagir com o texto escrito sendo capazes de
decodificá-lo. O meu papel como mediadora nesse momento foi o de auxiliá-los a aplicar
essas suas habilidades, no processo de compreensão daquilo que lêem.
Essa mesma tomada de consciência, a qual a mediação tenta instigar, pôde ser
percebida quando o S1, um sujeito bastante desenvolvido em termos de competência leitora,
pronunciou-se afirmando que, além da avestruz, faziam parte da história também as amigas
dela. Questionei-o então: Como é que tu sabes que ela tem amigas? E obtenho a seguinte
resposta do S1: Porque diz no texto que ela estava conversando com as amigas. Essa pergunta
instigou o sujeito a argumentar, indicando o porquê de sua resposta, buscando uma fonte que
a sustentasse, no caso, o próprio texto. A resposta desse sujeito demonstra que ele possui
um bom desenvolvimento da capacidade de perceber detalhes, de explorar sistematicamente o
objeto de informação (o texto), de definir um foco de atenção, de diferenciar o que é relevante
e assim comunicar-se de modo claro.
Após esse breve desvio do tema personagem principal, retomei o questionamento
partindo da idéia estabelecida de que esse personagem seria uma menininha: Como
imaginam essa menininha? Se tivessem que fazer um desenho ou contar para alguém [...]. A
primeira resposta foi coletiva, falaram ao mesmo tempo, que ela seria loira uma idéia
estabelecida anteriormente com olhos azuis, pequena e usando um vestidinho, dividiram-se
quanto à cor, alguns diziam rosa e outros, vermelho. As suposições deles partiram, talvez, de
modelos estereotipados, da menina loira, de olhos azuis, usando lindo vestidinho e não
bermuda ou calça com camiseta, que, muitas vezes, é apresentada como modelo em diferentes
ilustrações.
Depois de ouvir essas respostas, provoquei-os, novamente, perguntando: E o que
mais? Noto então, ao ouvir a resposta de um sujeito que antes não havia se manifestado
sozinho, S8, que a comunicação está começando a se tornar mais efetiva. Os sujeitos estão
127
ficando mais à vontade e, isso confirma a minha segunda hipótese, apontada anteriormente, de
que os alunos estavam tímidos e precisavam superar esse comportamento.
Assim como anteriormente houve a mediação da tomada de consciência a respeito da
questão da fonte de informação que sustenta uma resposta, nesse momento tentei fazer com
que eles se dessem conta de que toda a caracterização do personagem feita até então era algo
imaginário, sem elemento palpável no texto: tratavam-se, portanto, de relações virtuais
estabelecidas pelos sujeitos com base em suas próprias idéias e concepções de mundo. Além
disso, procurei também fazer com que eles, agora mais confortáveis para expressar seus
pensamentos, buscassem no texto verbal informações a respeito do personagem.
Med.: Tem alguma coisa que a história diga sobre o personagem?
S1: A bochecha pequena.
Essa informação a respeito do personagem estava no texto, no entanto, não havia sido
percebida até esse momento. O sujeito que respondeu novamente foi o que anteriormente
havia demonstrado estar usando o texto como fonte de informação, como base de consulta
para sustentar suas respostas. Isso comprova, mais uma vez, o que havia sido percebido
durante o pré-teste de que esse era o sujeito com capacidade leitora mais evoluída e teria,
portanto, um papel importante no processo de mediação, em virtude de que, a partir do
conceito de Vigotski (1998) de zona de desenvolvimento real e zona de desenvolvimento
proximal, esse sujeito seria um mediador dos demais em alguns aspectos nos quais atingiu
o seu desenvolvimento real como, por exemplo, a capacidade de localizar informações no
texto e, principalmente, utilizá-lo como fonte de pesquisa.
A última tentativa de caracterizar fisicamente o personagem principal tentou desviar
os sujeitos de sua idéia inicial apontada pelo S3 a respeito da menina. Perguntei então: A
gente tem certeza que ela é uma menininha mesmo? Não podia ser um bichinho? A resposta
imediata foram risadas da maioria dos sujeitos. Questionei-os novamente: A gente tem certeza
que ela é um ser humano? A mesma pergunta foi repetida algumas vezes, o que se pode
perceber, pela reação dos sujeitos, que serviu para que eles organizassem o pensamento,
passassem a tentar encaixar essa idéia nas suas concepções prévias que, talvez, tenham ficado
muito arraigadas. Assim, as seguintes respostas foram expressas:
128
S?: Sim, porque ela fala, e animais não falam.
S?’: Não pode ser um animal pequeno, porque ele não pediria beijo ao rinoceronte. Seria
burrice.
Esse mesmo sujeito, S?’, explicou-se melhor em seguida, dizendo:
S?’:Oh... sôra... mas se era um animal pequeno porque tinha a bochecha pequena, ela não ia
pedir um beijo para o rinoceronte... era burrice. E também por falar...
O sujeito tentou explicar e defender o seu ponto de vista, usando informações do texto
e também suas próprias concepções e até mesmo preconceitos, do tipo o menor ser deve evitar
o maior para não colocar em risco a sua vida e sobreviver. Questionei, nessa explicação, a
idéia final, na qual o sujeito tentava explicar que o personagem não poderia ser um animal,
porque a capacidade de falar não seria uma característica própria dos animais apenas de seres
humanos. Para auxiliar os sujeitos a romperem com preconceitos, perguntei: Mas nas
histórias eles não podem falar?, referindo-me aos animais. Não recebi respostas contrárias a
essa idéia. Todos concordaram que era possível. Interrompi a caracterização do personagem
nesse momento, deixando no ar a questão apenas com as respostas virtuais elaboradas pelos
alunos.
A caracterização psicológica do personagem surgiu quase ao final da discussão
mediada, pois exigia uma intimidade com o texto que foi alcançada durante a conversa sobre
outros aspectos da estrutura narrativa descritos nos tópicos a seguir. Questionei os sujeitos a
respeito de como o personagem, no caso a menininha caracterizada por eles, estaria se
sentindo: feliz, animada, triste. A primeira resposta que obtive foi a de que ela estaria triste,
mas foi algo dito sem, convicção, quase automaticamente. A segunda resposta, do S3, vem
argumentada, como se pode perceber: feliz e animada, porque conseguiu resolver os
problemas dela.
Não aceitei essa resposta como única possível e instiguei os sujeitos com a seguinte
pergunta, para que eles percebessem a transformação que na narrativa em relação ao
protagonista: Mas desde o início ela está feliz e animada? O S2 respondeu apenas que não,
questionei-o, então, a respeito de como ela estaria no início e ele respondeu-me: Ela tava
triste porque não ganhou o beijo. E no final ficou feliz. A caracterização psicológica que era
129
foco nesse ponto da discussão tinha no texto verbal poucas informações, algo que a imagem
deixaria mais explícito e, portanto, no segundo encontro, suscitaria mais discussões.
Em termos de processo de experiência de aprendizagem mediada, a caracterização do
protagonista e dos demais personagens auxiliou os sujeitos, até esse momento, a sentirem-se à
vontade para exporem suas idéias, além de ajudá-los a exercitar a sua capacidade de
estabelecer relações virtuais ou construir imagens mentais acerca do personagem principal.
Além disso, a enumeração dos demais personagens, bem como a busca da única característica
do personagem central foram exercícios de percepção clara e precisa dos detalhes e de
definição de um foco em meio às informações presentes no texto. Os sujeitos demonstraram
estar com essas capacidades desenvolvidas, alguns mais, como o caso do S1 que, a partir de
suas observações precisas, atuou também como mediador dos colegas, auxiliando-os a
conhecerem detalhes que talvez eles não tivessem prestado atenção na sua leitura solitária. No
que diz respeito à estrutura narrativa e ao processo de leitura em si, os alunos tiveram a
oportunidade de interagir com o texto, preenchendo lacunas a partir das suas imagens mentais,
alicerçando-se nas palavras para buscar informações dadas e sustentar algumas de suas
concepções.
4.4.1.2 Caracterização do narrador
A definição da figura ou da voz do narrador nessa narrativa mesclou-se à questão de
definir o personagem central, tendo em vista que se trata de um narrador que também é
personagem central. No entanto, ao longo do diálogo mediado, enquanto tentava mediar os
sujeitos na caracterização desse personagem, fiz uma pergunta a respeito da voz que conta a
história: Então é a história de uma menininha que queria um beijo. Quem é que está
contando essa história pra gente? .
A resposta imediata de alguns sujeitos foi o nome da própria autora. Na tentativa de
fazer com que eles entendessem a diferença entre autor e narrador, comentei e questionei
dizendo o seguinte: Ela escreve essa história, mas essa voz que a gente ouve contando a
história [...]. A partir da idéia que eles haviam estabelecido de imagem do personagem, eles
completaram a minha fala dizendo: É da menininha.
130
A mudança no modo com que reelaborei o questionamento anterior, me referindo à
voz que conta à história, fez com que os alunos estabelecessem a diferença entre quem
escreve e a voz que narra a história de dentro da narrativa, não havendo confusão entre quem
a história. Pela resposta dos alunos, ao completarem a minha fala, é possível perceber que
eles conseguiram entender o conceito de narrador mesmo que esse termo não tenha sido
mencionado. Dessa forma, a mediação para caracterizar/reconhecer a figura do narrador na
estrutura da narrativa não ativou ou desenvolveu uma ou mais ações mentais específicas, mas
sim, auxiliou os sujeitos a compreenderem a idéia de narrador, no que se refere ao modo
como ele se apresenta na estrutura textual.
4.4.1.3 Definição do enredo
A concatenação dos fatos ocorridos ao longo da narrativa foi utilizada na mediação da
palavra, inicialmente, como meio de auxiliar os sujeitos a perceberem a passagem tempo, bem
como a organização espacial, isto é, os diferentes locais onde se passam os fatos. No entanto,
após a definição desses elementos, surge na discussão mediada a questão do conflito ou
dificuldade vivenciada pelo personagem e, assim, a compreensão de um aspecto específico do
enredo é trazida para a discussão mediada.
A respeito do conflito narrativo o diálogo aconteceu assim:
Med.: E qual é o problema desse personagem, o que é que o coitadinho não consegue
resolver?
S1: O beijo
Med.: Qual é o problema com o beijo? Ela adora beijo?
S?: Aham...
Med.: Ela gosta de beijo, mas aí o que aconteceu?
S1: Ela achou melhor dar um beijo do que ganhar um beijo.
Med.: Por que ela resolveu sair de casa?
S1: Para procurar alguém para dar um beijo nela.
Med.: E ela consegue resolver esse problema?
S?: Não
Med.: Como é que ela resolve?
S3: Consegue, porque ela resolve que é melhor dar um beijo do que ganhar um beijo.
A definição do problema ou conflito começa de maneira bastante geral, segundo S1.
Procurei retomar a questão com o objetivo de restringir, especificar melhor esse conflito. S1,
131
então, alcança esse nível de especificação com sua resposta seguinte que também é repetida
pelo S3. Nesse diálogo, também é possível notar, por meio das perguntas feitas, a tentativa
frustrada, de trazer para a discussão a fala de outros sujeitos que não apenas o S1 ou o S3.
Dois sujeitos, que não consegui definir quais ao escutar a gravação, até chegam a se
manifestar concordando que o personagem gosta de beijo e negando que ele tenha conseguido
resolver o problema, no entanto nenhum outro participante apresentou-se na discussão,
trazendo a dúvida quanto à compreensão ou não do assunto que estava sendo tratado.
A conversa sobre o conflito narrativo foi bastante breve, além de não ter atingido
muitos sujeitos para que participassem. Os motivos que se podem pressupor para isso são,
primeiro falha na mediação, pois talvez eu não tenha demonstrado intencionalidade suficiente
para trazer os demais sujeitos para a discussão. O segundo motivo para o silêncio de muitos
sujeitos talvez tenha sido a total falta de compreensão a respeito do que estava sendo tratado,
o que é pouco provável, tendo em vista que esses questionamentos surgiram praticamente ao
final da discussão, depois que muitos aspectos da estrutura narrativa e da construção da
história haviam sido abordados. E, por fim, em terceiro lugar, o silêncio do sujeitos ao não
responderem os questionamentos pode ser decorrência apenas de cansaço depois de toda a
conversa que já havia sido desenvolvida ao longo de todo o encontro.
Dessa forma, a definição do conflito na narrativa como elemento do enredo não
proporcionou aos sujeitos grandes avanços em termos de ações mentais desenvolvidas ou
ativadas. Essa discussão ficou limitada a dois sujeitos que demonstraram apenas a sua
independência e competência em termos de leitura.
4.4.1.4 Definição do tempo transcorrido na história
A partir dos elementos da estrutura narrativa, passei então a conversar com o grupo
sobre o tempo transcorrido do início ao fim da história. As perguntas que fiz foram: Quanto
tempo passa do início até o fim da história? O que vocês acham, de acordo com o que vocês
leram? Quanto tempo? Essa seqüência de perguntas serviu para que os sujeitos começassem a
se situar a respeito de qual informação devia ser focalizada. Foi um meio de mediar a
percepção dos sujeitos, de focalizar essa percepção na maneira com que o tempo transcorre,
ou seja, no período de tempo que constitui essa narrativa.
132
Várias são as ações mentais que essa pergunta provocaria o sujeito a utilizar com o
objetivo de respondê-la tais como, a percepção clara e precisa dos detalhes e das
transformações, o comportamento exploratório sistemático, a precisão e exatidão na coleta
dos dados e a aplicação de duas ou mais fontes de informação de uma vez, isso apenas
no que diz respeito ao modo com que os sujeitos recebem a informação na fase de entrada,
sem falar nas ações de elaboração e de saída dessa informação que foi recebida. No entanto,
essa ativação depende do nível de desenvolvimento do sujeito e, de acordo com as primeiras
respostas, percebe-se que não foram ativadas, e, portanto, necessitavam ser desenvolvidas.
As primeiras respostas obtidas foram:
S?: Uns 20 minutos.
S?’: Uma meia hora.
S?’’: Uma hora e...
Nota-se nessas respostas uma confusão entre tempo da narrativa e tempo de leitura. Os
sujeitos não diferenciaram claramente que o tempo que se passa ao longo da história ocorrida
é um, e o tempo que se gasta durante a leitura dessa narrativa é outro. Dessa forma, houve
necessidade de mediar a orientação temporal desses sujeitos para que percebessem a diferença
e, então, centrassem o seu foco de percepção no tempo da história, na seqüência de fatos que
se desenrolam e auxiliam o leitor a perceber a passagem do tempo, do início ao fim do
enredo.
Na tentativa de organizar os fatos e assim deduzir a passagem do tempo, indaguei:
Como é que começa a história? O que acontece no início? Um sujeito, no entanto, havia
ficado pensando sobre a questão anterior e ao final da minha pergunta, responde: Um dia
inteiro. Para não desperdiçar esse raciocínio questiono: Um dia inteiro, será que de manhã
até à noite? Os demais sujeitos espantaram-se, pois ainda não estavam acompanhando o
mesmo nível de pensamento do colega que respondeu lendo uma frase do texto: Ela me diz o
que é para fazer durante o dia. Trata-se do S1, que desde situações anteriores, analisadas,
estava consciente do uso do texto como fonte de consulta para confirmar hipóteses.
Apenas o S1 tomou consciência da passagem do tempo da narrativa. Por isso a
mediação seguiu, retomando a seqüência de ações, tentando fazer com que os demais
componentes do grupo organizassem o seu pensamento e percebessem a mudança temporal a
133
partir dos fatos, de acordo com a ordem em que acontecem. Dei continuidade ao diálogo,
concordando com o S1 e propondo um novo questionamento sobre uma informação que deixa
no texto uma lacuna a ser preenchida pelo próprio leitor: Onde é que foi essa mãe? A resposta
quase unânime foi a de que ela havia saído para trabalhar, sinalizando que compreendem o
texto a partir de suas vivências individuais.
Após esse breve desvio da questão temporal, como meio de dar tempo aos sujeitos
para processarem a informação apresentada pelo S1, questionei: E aí? Quando é que
termina? Cinco minutos depois termina a história? Recebi como resposta em coro, da
maioria dos alunos, um não. E, novamente, coloquei em pauta outra pergunta: Quanto tempo
passa, um montão de tempo ou bem pouquinho?, dessa vez para que eles justificassem a
resposta negativa.
As respostas a esse último questionamento se dividiram: um sujeito respondeu que
bem pouquinho, outro, achou que mais ou menos e outros ainda mantinham a idéia dos cinco
minutos ainda confusos com as noções de tempo de leitura e tempo da história. O impasse se
instaurou e, para tentar resolvê-lo, procurei voltar a atenção dos alunos para o encadeamento
dos fatos, como já havia tentado anteriormente. E o diálogo se desenvolveu assim:
Med.: Primeira coisa que acontece...a mãe sai pra trabalhar e...
S?: Esquece de dar o beijo.
Med.: o que o personagem faz... que a gente não sabe se é a menininha ou o que é? O que
ele faz ou ela faz?
S?: Fica com saudade do beijo da mãe.
Med.: E aí o que ela faz para tentar resolver isso?
S?: Ela dá um beijo no rinoceronte.
Med.: Dá o beijo no rinoceronte direto?
O último sujeito a responder acabou avançando no desenrolar dos fatos não
respeitando a seqüência, por isso questionei a todos se o beijo no rinoceronte acontecia assim,
direto, isto é, logo no início da história. Recebi como resposta um unânime não que, ao invés
de ser seguido de uma retomada da questão temporal por meio da ordenação dos fatos, foi
interrompido pelos sujeitos que trouxeram para o diálogo um novo assunto, o espaço
narrativo. No entanto, comentarei essas observações no tópico seguinte, dedicado a esse
aspecto da estrutura narrativa.
134
Deixei que os alunos falassem sobre a questão espacial mas retomei a ordenação dos
fatos para que o tempo transcorrido ao longo da narrativa não ficasse nebuloso ou apenas
compreendido pelo S1. Perguntei-lhes, então, a partir do fato do protagonista ter saído de casa
em busca do beijo, quem foi o primeiro personagem que ela encontrou. Essa estratégia de
listar os personagens auxiliou os sujeitos a perceberem o desenrolar dos fatos, que o
encontro com diferentes personagens que poderiam dar um beijo, é a ação que se apresenta ao
longo de toda a narrativa até o desfecho.
Os sujeitos, então, passaram a citar não apenas o primeiro personagem, mas todos na
sua seqüência de aparição. Aproveitei para questioná-los também a respeito da possibilidade
de haver outros personagens além daqueles cujo nome estava presente no texto verbal, na
tentativa de perceber se eles notaram que um alguém, cujo nome não é citado, a quem o
personagem tem dúvidas se deve ou não lhe pedir um beijo. Os sujeitos não perceberam a
presença desse alguém nem mesmo por meio da fala do personagem principal quando diz,
“Será que posso pedir um beijo a ele? Será que me atrevo a perguntar?”.
Por fim, perguntei aos alunos, porque o protagonista resolveu voltar para casa. A
resposta que obtive foi a de que a intenção dele era a de dar um beijo no rinoceronte e não a
de que ele se lembrou que a mãe poderia estar em casa. Insisti nessa idéia e questionei:
por isso? Ela não se pergunta nada? O que ela chega à conclusão que poderá ter acontecido
enquanto ela não estava em casa? Direcionei esses questionamentos a um sujeito que até
então não havia se manifestado individualmente, apenas no conjunto com os colegas, e o S9
me respondeu que a mãe já estava em casa.
A partir dessa conclusão, fiz a pergunta final a respeito da temporalidade da narrativa:
Então se a mãe está em casa será que passou muito tempo ou pouco tempo? E aqui, ao
analisar os dados, e perceber que o sujeito que me deu a resposta final foi o S1, me questiono
se os demais compreenderam a diferença entre tempo de leitura e tempo da história, que
não se manifestaram. Talvez eu, como mediadora, deveria ter direcionado a pergunta a um
outro sujeito, assim como fiz no tópico anterior a respeito da conjectura feita pela personagem
sobre a volta da mãe, para notar se a compreensão a respeito da questão temporal havia sido
atingida por outros sujeitos e não apenas, como havia sido demonstrado anteriormente,
apenas pelo S1.
135
Essas são dúvidas e conclusões que me surgem no momento da análise dos dados, pois
no instante em que estava no diálogo mediado não percebi essa falha e apenas dei
continuidade à conversa passando para o próximo tópico que seria a espacialidade. Dessa
forma, a mediação do tempo, apesar de ter sido bastante desenvolvida, talvez não tenha
atingido a todos os sujeitos. Isso é uma dúvida que se justifica diante da pouca manifestação
dos sujeitos ao responderem o último questionamento que seria a resposta final para o
raciocínio a respeito da passagem do tempo na narrativa, o qual havia sido desenvolvido até
aquele momento.
A discussão mediada sobre o tempo auxiliou os sujeitos a orientarem-se,
temporalmente, na estrutura narrativa, a perceberem os detalhes e as transformações presentes
na construção do enredo, a demonstrarem um comportamento exploratório, além de outras
funções. No entanto, apesar de se perceber que essas funções foram ativadas em muitos
momentos da discussão, o objetivo central que era a compreensão do tempo transcorrido não
foi plenamente atingido.
4.4.1.5 Definição do espaço narrativo
O espaço onde acontecem os fatos narrados foi trazido para a conversa enquanto ainda
discutíamos a organização dos fatos para compreendermos a questão temporal. Um sujeito
comentou que a menina, configuração da personagem principal segundo os alunos, poderia
morar em um zoológico. Mesmo estando em meio à mediação para compreender a passagem
do tempo, questionei-os: Será que ela mora num zoológico?
Obtive algumas respostas com diferentes opiniões, o que demonstrou a superação de
uma dificuldade inicial: a comunicação sem bloqueios. O primeiro sujeito a responder
afirmou que a menina não morava em um zoológico. Em meio a alguns comentários, ouvi
alguém dizer que ela poderia morar na selva; em seguida, outro sujeito afirmou: O colégio
dela é perto de um zoológico. Essa última resposta demonstra que o sujeito extrapola as
relações virtuais possíveis de serem estabelecidas, pois ignora o fato de que a mãe deixou o
personagem em casa e, em momento algum, o espaço colégio foi mencionado na narrativa ou
a palavra está presente na construção do texto. Para que a idéia equivocada não se fixasse
questionei esse sujeito, deixando a dúvida ao invés da certeza: Mas a mãe não saiu e não
136
deixou ela em casa? Ficou em aberto uma noção duvidosa e não uma afirmação, e, assim,
retomei a discussão a respeito do tempo que era o foco do diálogo naquele momento.
Ao final do diálogo sobre a passagem do tempo, perguntei: E agora onde é que se
passa essa história, onde é que acontece tudo isso? O S1, sempre atento, retomou as duas
idéias que haviam sido apresentadas e respondeu, um zoológico ou na selva enquanto outro
sujeito (S2) afirma, na África. As respostas desses dois sujeitos demonstram claramente o uso
do raciocínio lógico e do conhecimento extra textual, pois ambos buscam lugares nos quais
seja possível existirem os animais como os que aparecem na narrativa.
Os espaços apontados pelos sujeitos representam idéias gerais, por isso dei
continuidade à mediação tentando restringir essa noção de espaço à casa que é mencionada na
palavra. Então, questionei-os Na África, onde é que eles moram...? . O S2 sugeriu que fosse
embaixo de umas palhas, pressuponho que ele imagine uma cabana ou uma choupana. A
concepção dos demais participantes que se manifestaram ficou na noção geral de espaço que é
o zoológico. Não insisti na questão, pois o espaço na palavra se resume exclusivamente ao
vocábulo casa, não detalhes quanto a esse aspecto, pois é a imagem que trará mais
informações quando for lida no encontro seguinte.
4.4.2 O beijo: leitura mediada da palavra associada à visualidade
A retomada da história foi o ponto de partida do segundo encontro de mediação, no
qual os alunos leram a narrativa novamente, mas agora com suporte, o livro, contendo a
palavra em interação com a imagem. A idéia de que a história era sobre uma menininha, cuja
mãe saiu e esqueceu de lhe dar um beijo foi trazida novamente pelo S5. Além disso, antes de
apresentar aos alunos o livro com a narrativa questionei-os a respeito da sua preferência entre
ouvir histórias ou ler histórias e entre livros com figuras e livros sem figuras. Alguns
responderam que não tinham uma preferência definida, outros que gostavam de ler livros com
figuras. Para esses perguntei o porquê e S5 respondeu que os livros com figuras podiam ser
olhados, talvez fazendo a diferença entre ler e olhar, ou entre o estímulo visual, provocado por
cores e imagens ser diferente do estímulo produzido apenas por letras e palavras, sendo o
primeiro mais fácil e mais convidativo ao olhar. S1 também disse preferir livros com figuras e
justificou sua resposta: eles eram mais fáceis de entender, usando como argumento algumas
das lacunas que foram percebidas, quando a narrativa foi lida no encontro anterior.
137
Após essa breve discussão, entreguei os livros explicando que eles deveriam ler em
duplas, pois havia cinco exemplares para os dez participantes. A visão do personagem na capa
do livro logo provocou uma exclamação em um dos sujeitos que disse: Ah, era um animal! O
interesse dos sujeitos em ler e olhar o livro era notável, principalmente, porque praticamente
não prestaram atenção ao que eu dizia ou esqueceram a minha presença junto com eles na
sala. Todos os sujeitos estavam interessados em investigar o livro, demonstrando que observar
uma ilustração ou um conjunto formado por signos verbais e imagéticos, como é a narrativa
verbo-visual, não é algo difícil, já que atrai atenção da criança. O mais complicado, ou melhor
dizendo, o que necessita de maior mediação do professor ou do adulto mediador é auxiliar
essa criança a entender que esse conjunto palavra e imagem é passível de leitura, possui
um sentido que deve ser compreendido por meio do ato de ler tanto a palavra quanto a
imagem.
Os sujeitos leram novamente a narrativa, alternando turnos na dupla, rindo ao se
depararem com algumas imagens e sempre muito atentos ao livro que tinham em mãos. Após
essa leitura realizada de modo particular, iniciei a conversa mediada com todo o grupo. O
ponto de partida na mediação da leitura foi retomar as lacunas deixadas ao longo da palavra e
que foram preenchidas pela presença da imagem. Nessa narrativa, a imagem surge com a
função de complementar a palavra em muitos aspectos da estrutura narrativa como se pôde
perceber no primeiro encontro somente com o código verbal quando a caracterização do
protagonista, assim como a delimitação do espaço narrativo foram estabelecidas por meio de
relações virtuais ou do pensamento hipotético e lógico.
Ao longo dessa conversa, alguns aspectos da estrutura narrativa nortearam e
organizaram o modo com que essa análise se apresenta. Dentre os aspectos estruturais estão o
protagonista e os demais personagens e a delimitação do tempo e do espaço que acabam
também por definir também as etapas do enredo narrativo. O narrador, elemento analisado
na palavra a partir do encontro anterior —, na análise desse segundo encontro não foi
abordado como se percebe na descrição abaixo, na qual também se justifica essa ausência.
138
4.4.2.1 Caracterização do protagonista e demais personagens
Para a caracterização do protagonista, muitas foram as suposições construídas no
encontro anterior tendo em vista que fisicamente as informações praticamente inexistiam. Por
isso, iniciei questionando os sujeitos: Qual era a única característica que a palavra nos dava
com certeza? Os alunos demoraram a recordar a informação a respeito da “bochecha
pequena”, talvez estivessem distraídos pela novidade do livro e das imagens.
Depois que essa informação foi trazida instiguei-os a começar a ler a imagem,
dizendo: Então essa era a única coisa que a gente sabia, que ele tinha bochecha pequena.
Agora o que mais que a gente sabe? Esse primeiro questionamento impulsionou a aplicação
ou o desenvolvimento de muitas ações mentais, dentre elas a percepção clara e precisa dos
detalhes e transformações, o comportamento exploratório sistemático, o uso espontâneo de
conceitos no momento da comunicação clara e sem bloqueios, a percepção e definição de um
foco e a diferenciação de dados relevantes de irrelevantes. Não significa que essas ações
foram necessariamente impulsionadas ou desenvolvidas apenas por meio desse
questionamento, o que acontece, a partir dessa pergunta, é uma deflagração do processo, da
ativação ou do desenvolvimento dessas ões para que o sujeito seja capaz de caracterizar o
personagem principal agora com base na imagem.
A primeira resposta trouxe a informação que mais salta aos olhos que é a da
configuração do personagem: uma ave. Na tentativa de incentivar uma observação mais
atenta, busquei instigá-los a perceber detalhes, como a cor ou o tamanho do bico. A mediação
poderia ter seguido nessa caracterização, mas diante do interesse dos alunos pelas imagens e
para que eles as explorassem mais, desviei a conversa sobre o protagonista, para abordar os
demais personagens. Para que os sujeitos ampliassem o seu campo mental, associando mais
de uma informação ao mesmo tempo, perguntei: No encontro passado, nós descobrimos que
tinha esse personagem [o protagonista], qual era outro personagem que tinha também? Os
sujeitos então respondem: o rinoceronte, a girafa, o avestruz e a mãe do pássaro. Instiguei-os
novamente: E era [...].?, a resposta obtida é afirmativa. Auxiliando-os a ler a imagem,
questionei: E agora são os mesmos que tinha? .
Ao fazer esse último questionamento, observei que um sujeito, S10, está bastante
atento a uma página em específico onde se encontra um personagem que não havia sido
139
mencionado anteriormente, questionei-o: Esse [apontando para o personagem representado
na página que ele observava] tinha na aula passada quando a gente falou deles? Os demais
sujeitos logo voltaram o seu olhar para essa mesma página e respondem que não. Alguns
ainda não sabiam do que estávamos falando, pedi ao S10 que erguesse o seu livro e mostrasse
sobre qual página conversávamos.
Eu disse que achava que o animal da ilustração era um leopardo, mas um sujeito me
corrigiu afirmando que era um tigre-dente-de-sabre. Perguntei: Tinha esse [mostrando o
personagem] no nosso encontro passado? Todos responderam que não e comentei: Ninguém
se deu conta que lá pelas tantas ele resolveu dar um beijo em alguém que podia ser perigoso?
Para que eles desenvolvessem um comportamento metacognitivo e, mais uma vez,
percebessem a importância da imagem como veículo de informação, questionei: Está escrito
o nome dele? Onde é que a gente descobriu o nome dele? Um sujeito respondeu: No livro.
Auxiliando-o a usar o vocabulário correto para expressar a sua resposta, indaguei-o: no
livro, mas onde ele está no livro? ; e recebi a seguinte resposta: No que está desenhado, diz o
S5. Concordei e aproveitei para mediar a auto-estima ou o sentimento de confiança do S10
que pouco ou quase nunca se manifestava, mas trouxe para a nossa conversa a imagem com
um personagem que não estava denominado na palavra.
Continuando a observação da imagem, interroguei novamente os sujeitos: E é só isso
que aparece nas figuras do livro. A maioria me respondeu que não. Apontei para o cervo,
que acompanha o bebê pássaro em praticamente todas as páginas: Esse bicho, ele aparece o
tempo todo? Alguns me responderam que não, enquanto outros ainda estavam atentos à
pagina que mostrava o tigre-dente-de-sabre. Outro sujeito, S4, passou a rastrear as imagens
em busca de outros animais que só estivessem representados na imagem, descobriu uma zebra
e um elefante. Os demais sujeitos, percebendo esse comportamento do colega, também
começaram a fazer o mesmo rastreamento. O olhar do S4 acompanhado de sua fala foi
mediador para atrair o olhar dos colegas para o mesmo objetivo, para estabelecer o mesmo
comportamento de observar atentamente a imagem ou de explorar, sistematicamente, as
ilustrações, em busca de uma informação específica.
O cervo foi o ponto final do rastreamento feito pelos alunos, pois foi ele quem mais
estave representado apenas na ilustração. Sondei-os então: E esse aparece o tempo inteiro?
140
Ele aparece o tempo inteiro? Olhem desde o início do livro para ver se ele aparece em todas
as páginas? Apesar de os alunos terem percebido a presença desse animal, os
questionamentos forçaram-nos a observá-lo mais atentamente, agora estabelecendo um
comportamento de observação sistemática, focado em apenas um personagem, buscando a sua
presença em todas as páginas.
No entanto, os olhares dos alunos no momento em que os questionei estavam em
lugares diferentes, assim como a sua atenção. Alguns não sabiam sobre qual personagem eu
estava falando, pois estavam fazendo a sua própria leitura, percorrendo as imagens que
atraíam o seu olhar. Mesmo demonstrando desatenção ao que eu falava, os sujeitos
manifestaram algo bem mais importante nesse momento, a independência na leitura. Para
trazer a atenção de todos ao mesmo ponto, pedi a um dos sujeitos, S4, que apontasse para o
personagem do qual falávamos, de modo que todos o observassem página a página.
Percebendo que após essa análise os sujeitos estavam mostrando-se dispersos, pois
apenas alguns fizeram essa procura pelo personagem, retomei o tópico da caracterização do
protagonista que havia sido ignorado anteriormente. Nessa retomada, propus aos sujeitos que
tentassem analisar página a página o personagem, observando se havia alguma diferença no
modo com que ele era representado. Pedi que eles olhassem apenas, sem comentar nada, seria
um momento para olhar atentamente para o personagem: Olhem bem. Primeiro olhem bem,
depois a gente fala. Após um instante, reforcei o pedido anterior, porém agora indicando algo
específico a ser examinado: Olhem pra carinha dele, pro jeito dele, o que vai acontecendo
com ele?
Logo um sujeito respondeu que ele vai mudando, perguntei então de que modo
acontecia essa mudança. A resposta intuitiva do S5 foi dizer que ele ia ficando mais bonito,
algo totalmente sem sentido e desconectado das imagens, provavelmente apenas uma
percepção pessoal. Instiguei-os novamente, dessa vez dando pistas claras, talvez até explícitas
demais, ao dizer: Ele não vai ficando mais triste porque ele não está conseguindo o beijo?
Um dos sujeitos apontou então a dupla de páginas 16 e 17 que mostram o personagem com as
asas sobre a cabeça e com um olhar triste. Questionei-os se antes, quando havíamos lido
somente a palavra, sabíamos que ele se sentia triste, desanimado diante da dificuldade de
obter um beijo. Quase todos os sujeitos afirmaram que não. Para completar esse momento de
observação ainda comentei: Vocês estão vendo quantas coisas as figuras é que nos contam?,
141
mediando assim, a importância da leitura da imagem, da necessidade de observá-la
atentamente, pois ela contém muitas informações relevantes para a compreensão da história
lida.
Quase no final do encontro, retomei a caracterização do cervo, personagem presente
apenas na imagem, que havia sido identificado pelos alunos, mas que não foi observado
atentamente. Ele acompanha o personagem principal praticamente ao longo de toda a
narrativa e demonstra estar atento aos fatos que são apresentados e, tudo isso, é percebido
apenas por meio da ilustração. Propus: Olha só, vamos olhar esse personagem que está com
ele o tempo inteiro. Aqui ele aparece por inteiro? [indicando a página 5]. Responderam que
sim, insisti dizendo: Inteirinho? O S8 respondeu que faltava a cabeça. Comentei que
realmente faltava a cabeça, mas tentei instigá-los a observar esse personagem de modo mais
atento ao perguntar: Mas vocês estão vendo que ele está sempre por perto, não é? O
comportamento demonstrado pelos sujeitos foi o de começar a observar que o personagem se
apresentava página a página, em termos físicos — e até psicológicos representados em seu
rosto por meio da boca ou dos olhos.
4.4.2.2 Caracterização do espaço narrativo
Nesse segundo encontro, no qual a narrativa foi lida no livro, onde tanto a palavra
quanto a imagem são apresentadas de modo interativo, narrador e enredo não se revelaram de
modo específico na conversa mediada. Isso talvez seja conseqüência do fato de o narrador ser
também o protagonista e, no que diz respeito ao enredo, ao fato de ter sido discutido
anteriormente, no primeiro encontro, quando a narrativa verbal foi lida e discutida sob vários
aspectos sendo, portanto, conhecido dos sujeitos e não trazendo praticamente nenhuma
novidade a partir da leitura da imagem. A ilustração apenas auxilia a compreender a
representação do espaço narrativo e da passagem do tempo, assim como aconteceu no
encontro anterior. Assim, o segundo tópico de análise abordado na discussão mediada, foi a
questão espacial.
À pergunta inicial: Essa história acontece em um lugar ou ela vai mudando de
lugar?, eles responderam que ia mudando de lugar e eu formulei uma segunda indagação a
essa resposta: Por que ela vai mudando de lugar? Dessa vez não recebi de volta nenhuma
resposta específica, apenas uma manifestação do S2 que percebeu a mudança de cenário,
142
pontuando que em um momento o personagem está sobre um monte marrom e em outro
está no chão.
Na tentativa de mediar a consciência a respeito do deslocamento que se no
desenrolar dos fatos, fiz o seguinte questionamento: E esses animais será que eles estão todos
um ao lado do outro? e automaticamente os alunos negaram. Provoquei-os, então, a observar
os cenários apresentados gina a página, mediando dessa forma, também, o comportamento
exploratório, a necessidade de perceber as transformações e de comparar uma cena
representada a cada página com a outra.
No entanto, os sujeitos observaram atentamente as páginas e negavam às indagações
que eu fazia. Havia falta de argumentação, de justificativas para essa negação, como pode ser
notado:
Med.: Olhem para as figuras que têm atrás dos animais, são todas iguais?
Med.: A paisagem é igual?
S?: Não.
Med.: É igual como se ele estivesse parado no mesmo lugar?
S?: Não.
A falta de argumentos e de idéias que completassem a resposta pode ser justificada
porque a atenção dos alunos estava totalmente voltada para a observação das ilustrações.
Tentei retomar a conversa a respeito do espaço narrativo e, na ânsia de chegar a alguma
conclusão com os alunos, acabei antecipando respostas: Bom, mas então não se passa no
mesmo lugar [o desenrolar dos fatos]. Por que ele está voando? Ele não está voando atrás
dos bichinhos pra ver se ele consegue um beijo? O S4 me respondeu que sim e eu dei
continuidade ao diálogo, agora restringindo à espacialidade: E onde é que eles moram? Vocês
conseguiram descobrir onde é que eles moram?
As respostas que surgiram não estavam baseadas na leitura da imagem, mas no
pensamento lógico, pois, como no encontro anterior, os sujeitos disseram que os personagens
moravam em uma árvore, na selva ou em uma floresta. Questionei-os, novamente, na tentativa
de que eles entendessem que o que eu estava perguntando era sobre a casa do protagonista:
Mas em que lugar... bom é numa floresta, na selva, é algum lugar assim que tem que ter
143
animal. Agora onde é mesmo que eles moram? O S7, então respondeu: Em cima do
rinoceronte.
Para auxiliar os sujeitos a focalizarem a sua observação nesse aspecto apontado pelo
S7, perguntei e comentei, a partir da análise das páginas, e recebi como respostas algumas
idéias baseadas na lógica e outras baseadas na observação da ilustração, como se pode
perceber no diálogo:
Med.: Vocês viram que eles moram em cima do rinoceronte? Olhem na primeira página... se
a gente consegue descobrir que isso aí é um rinoceronte?
[Enquanto eles observam, continuo questionando.]
Med.: Parece um rinoceronte isso aqui? Com o que parece isso?
S?: Com um ninho.
S?: Com um chão.
S?: Com um morro.
Med.: Onde é que a gente descobre que eles moram num rinoceronte?
O primeiro sujeito demonstrou, por meio de sua resposta, estar usando apenas a lógica
e não a leitura das imagens, ao contrário dos dois seguintes o primeiro utiliza um termo mais
geral, enquanto o segundo, tenta especificar mais a idéia. No último questionamento
transcrito, estou tentando ativar nos sujeitos o comportamento de comparação para que eles
observem as ilustrações e percebam em que momento o rinoceronte se revela como local onde
mãe e filho vivem.
Para esse último questionamento, um sujeito tentou convencer a todos de que na
verdade os personagens moram ao lado do rinoceronte. Talvez estivesse observando as
páginas 12 e 13 que mostram o bebê pássaro de costas para o rinoceronte e pousado no chão e
não tenha percebido que, a então, apenas aparecia uma parte do rinoceronte que
provavelmente estava deitado, assim como aparece nas páginas finais. Na tentativa de auxiliá-
lo a perceber essa diferença, instiguei novamente o comportamento exploratório e a percepção
clara e precisa dos detalhes: Onde é que ele não está em cima do rinoceronte? A continuidade
na mediação da percepção da orientação espacial seguiu até aqui apenas com o objetivo de
que os sujeitos se detivessem por mais tempo observando/lendo as imagens e tomassem
consciência de outros detalhes.
144
A observação/leitura das imagens em busca da compreensão do espaço onde essa
narrativa se desenvolve proporcionou aos sujeitos um olhar mais atento à ilustração, pois nela
é que estavam as informações necessárias para compreender a questão discutida. Assim, como
no encontro passado, a leitura atenta do texto verbal trazia informações plausíveis para a
compreensão de determinados elementos, agora, no encontro com a imagem, a observação
atenta também era fundamental para que as respostas não fossem apenas baseadas na lógica
ou em relações virtuais estabelecidas pelo próprio sujeito. Com esses comportamentos,
observação clara e precisa dos detalhes, definição de um foco de análise ou comportamento
espontâneo de comparação, mais desenvolvidos ou ativados, os sujeitos deveriam
demonstrar mais intimidade com as imagens e, conseqüentemente, independência no processo
de leitura das mesmas, no que diz respeito à orientação temporal da narrativa.
4.4.2.3 Caracterização do tempo narrativo
No encontro anterior, a questão temporal foi bastante discutida com os sujeitos, pois
havia a confusão entre tempo de leitura e tempo da história. Além disso, a compreensão do
tempo da história não apresentava no texto nada muito concreto para que o leitor pudesse usar
como justificativa, com exceção da expressão “durante o dia” que foi encontrada por apenas
um sujeito, enquanto os demais pouco se manifestaram, deixando a dúvida se haviam ou não
compreendido e percebido o tempo decorrido ao longo do enredo. Agora, diante da ilustração,
a passagem do tempo fica mais explícita, mas ainda necessita de uma leitura atenta para que
seja percebida.
Iniciei o diálogo sobre o tempo, recordando com os sujeitos a conclusão que havia
sido construída na conversa mediada do encontro anterior: Essa história, vocês lembram que
a gente chegou à conclusão que tinha durado um dia inteiro porque a mãe tinha saído para
trabalhar e foi até o fim do dia quase ele procurando pelo beijo. A gente consegue notar que
começou de manhã cedo essa história e terminou mais de noite? Procurei, dessa forma,
instigá-los a observar a imagem. No entanto, a primeira resposta foi, quase coletiva e
automática, da maioria dos sujeitos dizendo que eles conseguiam perceber a passagem do
tempo por meio das imagens. Além disso, outro sujeito respondeu que sim, porque a mãe
nunca chegava, demonstrando estar usando apenas um fato do enredo e não a leitura da
imagem.
145
Foi necessário, então, auxiliá-los a definir um foco de observação para iniciar a
percepção da passagem do tempo nas ilustrações, incentivei-os, dizendo: Mas olhem para o
céu, de modo que eles voltassem o olhar para a representação do céu e assim buscassem
argumentos para as suas respostas e, conseqüentemente, tomassem consciência dessa
representação do tempo. Logo que fiz a pergunta, um sujeito demonstrou concordar com a
idéia que eu estava apresentando, mas mesmo assim não estabeleceu nenhum tipo de
justificativa ou trouxe nenhum dado novo. Instiguei-os, novamente, sentindo que os olhares
estavam começando a percorrer as páginas em busca de informações, mas ainda sem saber
claramente o que observar no céu, como organizar essa observação: Começa de qual cor?
Vamos olhar desde lá? [propondo olhar desde o início do livro].
A análise da gravação demonstra que os sujeitos precisaram olhar página a página as
imagens para perceber a passagem do tempo pela coloração do céu. Essa percepção, no
entanto, precisou ser bastante mediada pelo meu discurso que ia a cada página descrevendo e
pedindo a participação dos sujeitos para que também descrevessem a coloração que se
apresentava. Ao final, quando chegamos nas páginas 26 e 27 quando a mãe está voltando, o
S1 declarou: Durou um dia, oh sôra, a mãe dele tá chegando agora.; demonstrando, mais
uma vez a sua total compreensão da passagem do tempo, confirmada por meio da ilustração.
4.4.2.4 Algumas considerações: uma avaliação do caminho traçado
A fala final desse sujeito traz novamente a dúvida se houve compreensão do aspecto
temporal na leitura da narrativa, pois, mais uma vez, ele apresentou-se comunicando as suas
conclusões de modo independente, enquanto os demais apenas respondiam quando
questionados e, muitas vezes, de modo automático, sem argumentação ou acréscimo de novas
idéias. Todos os sujeitos tinham a oportunidade de se expressar, no entanto, alguns sempre
têm mais necessidade de colocar para o grupo as suas idéias, enquanto outros preferem
colocar-se em uma posição de apenas falar quando instigados ou questionados. Não como
perceber se houve um progresso equivalente para todos, até mesmo porque isso seria
praticamente impossível, pois o processo de leitura envolvido nessa experiência de
aprendizagem mediada é algo caracteristicamente solitário e, portanto, diferente para cada
sujeito. Mesmo se tratando de uma leitura mediada, não significa uma experiência equivalente
para todos os sujeitos envolvidos, pois cada um viveu a sua própria experiência
desenvolvendo-se de acordo com o seu nível de compreensão, com o seu modo de lidar com a
146
palavra, primeiro, e, depois, com a imagem, sendo apenas auxiliado por meio do diálogo
por mim e também pelo grupo a aprender a tirar o melhor proveito de ambos os códigos
para alcançar uma melhor compreensão.
Esses encontros analisados foram os primeiros e, mesmo assim, se percebe, em
muitas manifestações que os sujeitos demonstraram progressos e modificaram o seu modo de
lidar com um texto composto por dois códigos, cuja leitura se faz necessária para que se possa
compreendê-lo ainda mais. Do estabelecimento de relações virtuais fundamental no início do
processo de mediação da leitura da palavra para que os sujeitos passassem a se sentir mais à
vontade para falar, à tomada de consciência da palavra e da imagem, como fonte de
informação para compreender o texto, os sujeitos traçaram um longo caminho. A mediação,
os meus questionamentos e comentários, ajudaram a desbravar esse caminho, às vezes,
permitindo que os sujeitos escolhessem qual direção tomar, outras vezes retendo-os para que
não se perdessem e, em outras ainda, restringindo-os por pressa de chegar à algumas
conclusões. Trata-se de uma experiência nem sempre perfeita e adequada, mas uma
experiência viva de diálogo com o objetivo de auxiliar o leitor, ainda em formação, a ler de
modo mais consciente e independente, tirando o melhor proveito dos códigos que constroem o
texto. Trata-se de um caminho no qual se avança e se retrocede com o objetivo de torná-lo
demarcado como a independência da capacidade leitora dos sujeitos.
4.4.3 Ah, cambaxirra se eu pudesse...: leitura mediada da palavra
A segunda narrativa trabalhada com os sujeitos foi uma história da tradição oral,
adaptada pela escritora Ana Maria Machado e pela ilustradora Graça Lima, chamada Ah,
cambaxirra se eu pudesse... Essa escolha se deveu ao fato de essa narrativa possuir uma
estrutura do conto cumulativo, a qual é bastante simples.
O primeiro encontro com a narrativa, assim como na anterior, deu-se apenas com a
palavra. Isso fez com que o diálogo estabelecido se desenrolasse em torno de elementos da
estrutura narrativa, seguindo parâmetros da narrativa anterior, porém não abordando dessa
vez, a figura do narrador, nem a questão do enredo de modo específico, apenas, entremeada a
outros aspectos da estrutura tais como os personagens, principal e secundários e o espaço
narrativo. A questão temporal também não foi contemplada na estruturação do roteiro de
mediação elaborado para essa narrativa, pois não se apresentava como um elemento essencial
147
para a compreensão da história. O modo peculiar de explorar cada narrativa com os alunos
deve-se à natureza inerente de cada texto no qual alguns elementos da estrutura narrativa se
destacam mais do que outros na construção do enredo. O diálogo mediado, originado a partir
da leitura dessa narrativa, também, teve como objetivo desenvolver ou impulsionar nos
sujeitos determinados comportamentos ou ações mentais necessários no processo de leitura e
de compreensão.
O primeiro contato com o texto provocou surpresa nas crianças que se impressionaram
com a extensão, porque a narrativa distribuída em onze páginas, ao ser digitada e impressa
ocupou três páginas. Todos iniciaram a leitura ao mesmo tempo, pois, ao entregar as folhas,
coloquei-as viradas para que nenhum aluno começasse a lê-las antes dos outros. Esse
procedimento foi uma estratégia para aguçar ainda mais a curiosidade dos alunos que estavam
ansiosos para conhecer a nova história.
Nesse primeiro momento de leitura silenciosa, pude observar dois comportamentos
bastante distintos e que comprovaram a avaliação realizada durante o pré-teste para a escolha
dos sujeitos. O S1, como foi comprovado na análise anterior e também foi demonstrado a
partir do pré-teste, possui uma intimidade muito grande com o código verbal, sendo um leitor
bastante independente e ágil na decodificação e compreensão do mesmo. A sua reação logo
no início da leitura, mais uma vez comprovou todas essas suas habilidades, pois ao se deparar
com a repetição presente em toda a história, desde que a cambaxirra sai em busca da solução
de seu problema, o sujeito logo se surpreendeu e dirigiu-se a mim questionando se toda a
história seria daquela maneira. Esse comportamento foi exclusivo do S1 que acabou
mediando os demais colegas para essa mesma percepção, algo que até aquele momento
nenhum deles havia notado, talvez porque ainda estivessem lendo o início da narrativa.
A diferença de tempo de leitura entre os sujeitos é o segundo comportamento que me
chamou atenção. Dessa vez, trata-se do sujeito pertencente ao grupo e que a partir do pré-teste
demonstrou ter mais dificuldades de compreensão do código verbal. Esse sujeito, S10, levou
mais tempo para ler as três páginas do que os demais, chamando a atenção dos colegas, que
tiveram que conter a sua ansiedade e esperá-lo concluir a sua leitura. A pouca intimidade e
independência desse leitor com o código verbal fez com que ele, muitas vezes, pouco se
manifestasse, mas também o impulsionou a um comportamento de muita atenção ao texto,
148
tanto verbal quanto visual, para conseguir encontrar informações, como será descrito em
alguns momentos da análise que se inicia.
4.4.3.1 Caracterização do protagonista e demais personagens
Novamente, a caracterização do protagonista deu início à conversa mediada.
Questionei, então, os alunos: O que é uma cambaxirra? As respostas demonstraram de
imediato dois comportamentos bastante trabalhados na narrativa anterior, primeiro a
desinibição, isto é, a capacidade de comunicar-se sem bloqueios, e, segundo, a tomada de
consciência de que o texto é fonte de informação para a busca de respostas na maioria dos
casos.
O primeiro sujeito respondeu que uma cambaxirra talvez fosse um pássaro. Ao indagá-
lo sobre o porquê dessa resposta, o S1 respondeu, usando as informações do texto: Porque ela
voou até a casa do conde? Outro sujeito acrescentou que ela havia feito um ninho, idéia que
foi complementada, novamente, pelo S1: na árvore de galho mais bonito.
Na narrativa anterior, o código verbal não nos trazia tantas características a respeito do
personagem principal, por isso um sujeito fez um comentário que demonstrou um
comportamento bastante importante no sentido da formação da criticidade como leitor. Após
ouvir os colegas apresentarem tantas características, disse que com certeza a cambaxirra não
seria uma pessoa, pois uma pessoa não moraria numa árvore.
Além de ser um pássaro, os sujeitos ainda buscaram no texto outras características
para a cambaxirra. Dessa vez, apontaram que ela era toda saltitante e alegre. Aproveitei e
questionei-os a respeito de qual característica poderia ser dada à cambaxirra, considerando
que ela voou até vários lugares, falando com várias pessoas para que não derrubassem a sua
árvore. Um sujeito disse que seria furiosa, fazendo a relação com o comportamento da
personagem ao encontrar com o imperador, porém outro sujeito disse que seria corajosa.
Os sujeitos então haviam dito que a cambaxirra era saltitante, alegre, corajosa e podia
também ficar furiosa. Ao repetir todas essas características, um sujeito disse, referindo-se à
última característica: Isso eu também posso sôra. Nessa fala, é possível identificar uma das
possibilidades oferecidas pelo texto narrativo, como foi posto no programa A narrativa na
149
literatura para crianças e jovens (TVESCOLA, 2005), quando o Professor Miguel
Rettenmair disse que a narrativa tem por natureza a capacidade de oferecer ao leitor
oportunidades de encontro com a sua própria identidade, de enxergar sob novas perspectivas
as coisas da vida. A identificação do sujeito com a capacidade de ficar furiosa, também
demonstrada pela cambaxirra, mostra o texto atuando como meio do sujeito leitor reconhecer-
se na figura do personagem.
O diálogo trouxe então o relacionamento da cambaxirra com os demais personagens e,
conseqüentemente, a comparação, de modo que os sujeitos percebessem a relação hierárquica
existente entre eles.
Med.: A cambaxirra passou por vários lugares. Por que ela tinha que ficar repetindo [o
mesmo pedido]?
S?: Porque nenhum daqueles era o dono.
Med.: Qual era a única pessoa que podia resolver o problema?
S?: O imperador.
Med.: Será que ele resolveu no final da história?
S?: Resolveu.
Essa questão a respeito do poder foi interrompida nesse momento e retomada quase no
final do encontro, quando sondei os sujeitos a respeito do porquê de um personagem ter que
dar ordem ao outro. Um sujeito conseguiu de modo bastante claro e eficiente expor a sua
resposta dizendo: Por causa que um tem mais dinheiro do que o outro, tem mais terra e eu
complementei, tem mais poder.
A conversa a respeito da hierarquia ressurgiu, em determinado momento do diálogo
mediado, comparando o imperador com os demais personagens e, também, com a cambaxirra
em termos de poder.
Med.; E qual é o personagem que acha que é o mais poderoso de todos?
S?: O imperador [praticamente todos os sujeitos respondem juntos].
Med.: O imperador. Ele se acha o tal, não se acha?
S?: Se acha!
Med.: Ele é tão poderoso assim?
S?: Não, porque ele tem medo, sôra.
Med.: Ele tem medo de quem?
S?: De todos nós.
S1: Dos amigos da cambaxirra
Med.: E de quem é que o lenhador tem medo?
150
S?: Do capataz.
Med.: E o capataz tem medo de quem? Vamos olhar lá? Do visconde?
S?: Do barão.
Med.: O capataz tem medo do barão. E o barão tem medo de quem?
S?: Do visconde.
Med.: O visconde tem medo de quem?
S?: Do conde. [respondeu titubeando]
Med.: O conde tem medo de quem?
S?: Do marquês.
Med.: E o marquês tem medo de quem?
S?: Do duque.
Med.: E o duque tem medo de quem?
S?: Do imperador.
Med.: Então o lenhador tem medo de quantas pessoas?
S?: Ih..., um monte.
Med.: Quantas pessoas ele disse que tinha medo? De quem é que o lenhador disse que tinha
medo?
S5: Do capataz.
Med.: Só do capataz. E o capataz tinha medo só de quem?
S?: Do barão.
Med.: Eles tem medo de quantas pessoas?
S?: Uma.
Med.: Uma só e o imperador que se acha o mais poderoso tem medo de quantas?
S?: De todas. [responde rindo]
Med.: Ele era o mais poderoso?
S?: Não! [muitos respondem juntos]
S?: Era um medroso.
Med.: Quem no final da história foi mais poderoso e mais corajoso?
S?: A cambaxirra. [muitos respondem juntos]
[...]
S1: Sóra é que nem aqui, o prefeito Marlon tem medo do...
Med.: Tem medo de quem, será que o Marlon tem?
S?: Do Lula sôra.
Med.: Não, quem é que está antes do Lula aqui no nosso Estado?
S6: O Rigotto.
Med.: E o Rigotto tem medo de quem?
S?: Do Lula.
Med.: E o Lula, de quem será que ele tem medo?
S10: De nós.
Med.: De todos nós, não é, eu acho.
S3: Do George Bush
Med.: Ah, do George Bush...
S3: Já que ele mora na América e o Brasil fica na América.
Esse diálogo não mostra apenas uma discussão a respeito da questão hierárquica que
permeia a história. Mostra, principalmente, uma das funções principais da leitura e, que é
também uma das propriedades fundamentais da experiência de aprendizagem mediada, a
transcendência. Os alunos compreenderam que os personagens organizavam-se segundo
151
regras de poder social e, principalmente, financeiro que faziam com que eles tivessem medo
uns dos outros e, por isso, obedecessem às ordens superiores. O imperador, ao contrário,
apesar de ser o mais poderoso ele foi capaz de salvar a árvore da cambaxirra com o seu
não — e, portanto, não deveria sentir medo de ninguém, ao final, porém foi o menos corajoso.
O povo representa o poder nessa história, segundo concluíram os alunos que perceberam a
semelhança dessa hierarquia na vida real, com os governantes municipais, estaduais, federais
e, até mesmo, mundiais. Os alunos ultrapassaram os limites do texto e da ficção e chegarAM à
realidade. A leitura transcendeu ao texto e, os sujeitos reconheceram a sociedade real a partir
da ficcional.
Esse primeiro tópico, apesar de estar diluído ao longo de todo o diálogo mediado a
partir do texto verbal da história da cambaxirra, demonstra uma grande evolução dos sujeitos
no seu processo de leitura. Comportamentos que antes precisavam ser incentivados, agora
se mostraram quase que espontaneamente, como por exemplo, o uso consciente do texto como
fonte de informação. Além disso, os participantes mostraram-se bastante à vontade para
exporem as idéias e opiniões. Muitas foram as ocasiões em que vários falaram ao mesmo
tempo, na ânsia de contar aos outros as suas percepções e interpretações, demonstrando um
desenvolvimento notável da capacidade comunicativa dos leitores graças à mediação e ao
ambiente favorável à discussão.
4.4.3.2 Definição do espaço narrativo
O espaço narrativo é um elemento bastante importante na estruturação dessa narrativa,
pois muitos são os locais por onde a cambaxirra passa, buscando resolver o seu problema. O
vôo do pássaro a diversos lugares, abordando todas as pessoas indicadas até conseguir que a
sua árvore não seja derrubada é a principal ação nessa história. Além disso, a questão
hierárquica entre os personagens com os quais a cambaxirra se relaciona também fica
explícita nos espaços onde os encontros se dão, pois os distintos locais onde os personagens
estão ou moram, definem também o seu papel de poder na sociedade e, conseqüentemente, a
sua posição social.
Para iniciar a discussão a respeito desses aspectos de análise do espaço, comecei por
uma pergunta bastante simples, buscando uma idéia geral: E onde é que acontece essa
história? No mesmo lugar sempre? A orientação espacial seria, portanto, a primeira ação
152
mental necessária para construir uma resposta para os meus questionamentos. Todos os
sujeitos demonstraram essa capacidade ao responderem que a história não acontecia no
mesmo lugar.
A primeira pergunta não exigiu dos sujeitos uma resposta elaborada, isto é, com
argumentos claros. Por isso, e também, para que eu conseguisse perceber que aquela resposta
negativa inicial não era apenas algo automático e sem fundamentação no texto, busquei
questioná-los a respeito da seqüência de lugares por onde a cambaxirra passou, do início ao
fim da narrativa. Os primeiros dois locais, a árvore e a casa do capataz, foram facilmente
apontados pelos sujeitos. No entanto, a partir do encontro com o barão, os alunos começaram
a titubear nas suas respostas. Tive, então, que provocá-los a usar a sua ação mental que leva a
um comportamento exploratório sistemático do texto, porque a “lenga-lenga” da cambaxirra,
repetida a cada encontro com um novo personagem, acabava confundindo os alunos que, na
verdade, também, estavam apenas rastreando o texto e não fazendo uma leitura atenta em
busca das informações. Na tentativa de auxiliá-los, inicialmente pedi que olhassem no texto,
pois havia alguns que estavam apenas usando a sua memória e dizendo, aleatoriamente, o
nome dos personagens sem respeitar a ordem de aparição. Não obtendo sucesso com essa
estratégia, mudei o rumo da mediação, retornando ao ponto inicial da discussão geral a
respeito da definição da idéia de espaço na narrativa.
Interroguei os sujeitos: Todos moram no mesmo lugar? A resposta coletiva foi que não
e, na seqüência, questionei: Será que esses lugares aonde ela foi eram perto ou eram
distantes? Novamente, recebi uma resposta coletiva dizendo que os lugares eram distantes.
Apenas um sujeito se pronunciou discordando, não da resposta, mas do fato de o grupo estar
afirmando que os locais seriam distantes, pois, segundo ele, isso era algo que não podia ser
visto, exigindo, portanto, a presença da imagem como fonte de informação para confirmar o
dado. Provoquei-os: Mas não diz nada na história?, fazendo uma referência a alguma
informação presente no texto verbal, que os pudesse auxiliar.
Para resolver essa dúvida, a partir do uso do raciocínio lógico ou de uma informação
social preconcebida, coloquei em pauta: Será que um lenhador e um capataz iam morar bem
pertinho de um imperador? A resposta unânime foi de que isso não seria possível, o mais
provável seria que morassem distantes. A busca pela solução dessa dúvida exigiu também, por
parte dos sujeitos, além do raciocínio lógico, a ativação de relações virtuais, isto é, a
153
capacidade de imaginar, de estabelecer relações entre elementos presentes e elementos
ausentes para a construção de uma idéia.
Aproveitando que a partir desse último questionamento houve uma restrição da noção
de espaço ao se falar do local específico onde os personagens moravam, direcionei a
mediação para a denominação do local onde cada um morava para, assim, chegar também a
diferenciação social e econômica entre eles. Perguntei: O lenhador nós não sabemos, mas o
capataz morava onde? Como é que diz que era o lugar onde ela foi falar com o capataz?
Tentei especificar, ao máximo, qual a informação que eles deveriam buscar. No entanto, a
resposta obtida foi que era em um palácio. Com voz de espanto, questionei: O capataz
morava num palácio? e a resposta, mais uma vez, não apresentou a informação que estava no
texto, pois o sujeito disse que era em um castelo.
Diante dessas respostas que demonstravam falta de foco para procurar informações,
busquei pensar o porquê desse tipo de comportamento e imaginei que talvez fosse um
problema de compreensão de vocabulário e, por isso, perguntei: O que é um capataz? Um
sujeito, S4, logo se manifestou dizendo não saber, os demais permaneceram em silêncio,
provavelmente desconhecendo também o significado do vocábulo “capataz”, que nenhum
se pronunciou para explicar o que seria. Os sujeitos estavam respondendo apenas usando a
lógica da história ou lendo os nomes de locais que, no seu rastreamento do texto, eram
encontrados, pois não sabiam o que era “capataz” para ter consciência de que esse não
poderia, pela lógica de sua posição social em relação aos outros personagens, morar em um
palácio ou castelo.
Expliquei o que é um capataz, utilizando os demais personagens para entenderem esse
conceito com base na organização social. Ao dizer que um capataz é um empregado um
pouco mais elevado em termos de poder do que o lenhador, o S4, que havia declarado a sua
dúvida anteriormente, logo se manifestou e completou a idéia dizendo: que cuida da fazenda.
Retomei do ponto onde havíamos parado: Então... o capataz mora onde? O problema
agora não foi mais a compreensão do que seria um capataz, mas a habilidade de localizar a
informação no texto. Incentivei-os, dizendo: Procurem lá, ‘então a cambaxirra voou até a...’,
lendo um trecho que auxiliaria a encontrar o dado. A dificuldade, agora, definitivamente,
154
estava na leitura do texto, pois os alunos apenas rastreavam-no aleatoriamente, novamente
dizendo castelo ou palácio.
Para auxiliá-los a ler com mais atenção e, principalmente, definir um foco de atenção,
descartando informações irrelevantes, nesse momento, voltei um pouco atrás em algo que
havia sido discutido: Onde é que foi o primeiro lugar que ela [a cambaxirra] foi depois do
lenhador? O S4 respondeu no capataz. Perguntei, então, E onde é que ele morava? O foco de
atenção estava definido, era o encontro da cambaxirra com o capataz. Enquanto eu
questionava os sujeitos e esses se afobavam na busca da informação, S10 permaneceu em
silêncio, apenas lendo, até que respondeu que o capataz morava em uma casa. A dificuldade
do S10 frente ao código verbal não o impediu de localizar o que era procurado, ao contrário,
essa dificuldade o fez ter um comportamento mais atento, mais focalizado em realmente achar
no texto o dado a respeito do capataz.
Definido o local onde o capataz morava direcionei a discussão para compreender
porque o capataz mora em uma casa, e outros moram em castelos ou palácios. Para isso
questionei: Os outros [personagens] também moram em casa? Os sujeitos responderam
unanimemente que era castelo o local onde os demais personagens moravam. Provoquei-os:
Moram todos em castelo, será? Obtive como resposta, dessa vez, palácio como local. Insisti e
tentei ajudá-los a definir um foco: Moram todos em palácio? Qual mora em palácio?
Consultando o texto conseguiram responder que o duque e o imperador moravam em um
palácio. A partir disso, questionei-os a respeito do porquê dessa diferença de uns morarem em
castelo e outros em palácio, discutindo a questão hierárquica. No entanto, os alunos não
conseguiram apontar nenhum argumento para justificar essa diferença.
O último aspecto importante de ser comentado nessa análise com relação ao espaço
narrativo diz respeito ao modo com que esse espaço é apresentado ao longo da narrativa, isto
é, o porquê de obedecer a uma seqüência relacionada com os personagens, por exemplo,
iniciar no lenhador e terminar no imperador. Para isso, propus aos alunos a seguinte pergunta:
[...] será que a cambaxirra podia ter ido primeiro pedir para o visconde para ele não
derrubar a árvore? Os sujeitos demonstraram dificuldade em encontrar argumentos válidos
para responder a esse questionamento. Essa dificuldade revelada pelos alunos fez com que eu
abandonasse a discussão a respeito da questão espacial, relacionada à hierarquia de poder
155
entre os personagens, e me centrasse nessa segunda questão especificamente, como está
descrito no tópico anterior.
4.4.4 Ah, cambaxirra se eu pudesse...: leitura mediada da palavra associada à visualidade
Devido a algumas atividades que aconteceram na turma de rie, no dia em que
ocorriam os encontros de leitura mediada com o grupo, o primeiro encontro ficou bastante
afastado do segundo. Por isso, ao questionar os alunos a respeito da história que havia sido
lida no encontro passado, alguns tiveram certa dificuldade de lembrar de imediato. Além
disso, esse encontro teve outra particularidade que deve ser ressaltada, a de que ele acabou
ocorrendo em duas etapas, em dias diferentes, porque no primeiro encontro, que supostamente
deveria ser o único, a discussão mediada foi interrompida, em virtude do horário da merenda.
Ao sermos interrompidos, dei preferência por retomar o encontro em outro dia, até mesmo
porque os alunos estavam também bastante agitados, devido a uma outra razão que precisa ser
considerada no contexto da experiência: a sala onde os encontros aconteciam estava ocupada
nesse dia, pois se tratava de um sábado, dia letivo para recuperar o período de greve dos
professores. Assim, acabei ocupando o laboratório de informática e realizando o encontro em
um espaço dessa sala, onde os alunos fizeram um círculo e sentaram no chão, juntamente
comigo.
No início idéia do círculo e de sentar no chão pareceu interessante, pois poderia ser um
meio de deixar os sujeitos mais à vontade e dar uma conotação diferente à sala de aula, na
qual os alunos estão dispostos em filas, sentados um atrás do outro. No entanto, os alunos
acabaram se dispersando e formando pequenos grupos de discussão, o que até certo ponto
representa algo positivo, no sentido de demonstrar independência por parte deles, mas que,
por outro lado prejudicava a troca de idéias, objetivo principal em uma experiência de
aprendizagem como se pretendia ter naquele momento.
Nesse primeiro encontro, combinei com os alunos o seguinte: Vocês vão olhar com
muita atenção o livro, podem comentar com o colega que está de dupla com vocês. Mas
olhem e leiam de novo a história. Não fiquem alternando páginas. Está certo? O combinado,
apesar de fugir à idéia de exploração do livro, foi cumprido pela maioria, como pude
observar. Eles realizaram uma nova leitura da história, página a página, alternando turnos na
dupla que compartilhava o livro, rindo diante das imagens que iam surgindo. Enquanto liam,
156
faziam comentários entre si e até mesmo comigo. Esse primeiro momento foi de descoberta
do livro assim como na narrativa anterior. A diferença que se percebe, entretanto, é que os
alunos se mostraram bem mais à vontade e, também, principalmente, atentos ao que liam
tanto na palavra quanto na imagem. A discussão nesse encontro seguiu até o momento em que
os alunos tiveram que ir para a merenda.
Tudo o que foi conversado nesse primeiro encontro foi retomado no segundo que
aconteceu três dias depois por isso, a análise apresentada aqui discute momentos vividos nos
dois encontros. Desta vez, iniciei o encontro retomando não apenas o que havia sido discutido
anteriormente, mas também o modo com que os alunos haviam se comportado, pois a postura
do grupo havia tornado o encontro bastante conturbado. Por isso, iniciei o encontro com a
seguinte fala:
Med.: Olha só, nós vamos falar sobre o que s estávamos falando no sábado, que nós
vamos combinar uma coisa. Aquele dia, a gente foi interrompido para merendar e além disso,
vocês lembram que estava uma baderna? Vocês estão lembrando isso?
S8: Todo mundo falava junto [...].
Med.: Todo mundo falava junto. Dois conversavam lá, mais dois conversavam aqui, era
aquela baderna. Não tem conversa assim, não tem como, não é? Então, hoje, nós estamos aqui
nessa sala [biblioteca], para podermos sentar ao redor dessa mesa, para todo mundo se
enxergar, para não ficar dois conversando aqui, dois ali, dois acolá.
Med.: O livro vocês conhecem, e a gente vai conversar sobre ele de novo. Algumas coisas
a gente vai tentar lembrar que a gente já tinha conversado, certo?!
Nos dois encontros, a conversa mediada, que estabeleci com os sujeitos, buscou atrair
o olhar deles para uma observação atenta das imagens na tentativa de perceber que tipo de
informação elas transmitiam. Na obra anterior, as imagens possuíam uma clara função de
preencher lacunas deixadas pela palavra; nessa narrativa, pelo contrário, as ilustrações
agregam novas informações, enriquecendo a palavra. Nessa narrativa, a interação entre o
verbal e o visual na representação dos fatos narrados se dá, segundo a classificação de Joanne
Golden (apud NIKOLAJEVA & SCOTT, 2006), a partir da seguinte descrição: o texto verbal
apresenta a narrativa principal e o texto imagético mostra ao leitor os detalhes a respeito dos
fatos narrados
25
. Além disso, sob essa perspectiva é possível acrescentar que nessa narrativa,
em específico, a história tanto na palavra quanto na imagem é a mesma, porém a perspectiva
apresentada na palavra é a da escritora e a perspectiva apresentada na imagem é a da
25
Tradução livre do trecho: “[...] the text carries primary narrative, illustration is selective[...]” (NIKOLAJEVA
& SCOTT, 2006, p.7).
157
ilustradora. Portanto, o leitor entra em contato com duas perspectivas diferentes da mesma
trama.
A leitura mediada a partir da narrativa lida no livro centrou-se na observação atenta
das imagens, buscando, assim como na leitura do código verbal, encontrar e decifrar as
mensagens transmitidas por ela, desenvolvendo ou ativando nos sujeitos algumas ações
mentais no intuito de auxiliá-los a desempenhar de forma competente a leitura das imagens. A
análise que emergiu desses dois encontros está centrada principalmente nos personagens, não
apenas no que diz respeito à sua caracterização física e psicológica, mas também, sobre a
relação estabelecida entre eles. Ao falar da relação entre os personagens emergem também
aspectos relativos ao enredo. O tempo não foi abordado nesse diálogo por ser um aspecto que
não se sobressai na construção dessa narrativa, no entanto, a questão espacial foi discutida.
Tanto a discussão sobre os personagens e suas relações, quanto sobre o espaço tiveram como
ponto de partida a análise da capa do livro.
Ao contrário da outra narrativa, na qual a discussão mediada partiu da definição das
imagens no interior do livro, nessa narrativa, a leitura e análise da capa em comparação com
as imagens no interior do livro foi o caminho traçado na mediação estabelecida para definir
personagens e suas relações bem como o espaço narrativo. O olhar partiu das “pistas
oferecidas pela capa” que, assim como uma embalagem, atraem a atenção do sujeito leitor,
trazendo informações que talvez sejam apenas hipóteses não confirmáveis no texto (RAMOS
e PANOZZO, 2005), ou um convite para ingressar no mundo narrativo que se constrói a partir
daquela imagem.
4.4.4.1 Capa: convite para conhecer os personagens e o espaço narrativo
Na narrativa anterior, em determinado momento da mediação, o S3 descobriu ao
investigar o livro, que a capa do livro formava uma única e grande figura quando o livro se
encontrava aberto. Isso atraiu a atenção dos demais sujeitos que observaram a grande imagem
que mostrava o bebê pássaro com sua mãe em primeiro plano e as girafas se beijando ao
fundo. Essa imagem não foi explorada na mediação anterior. No entanto, nessa narrativa,
iniciei a discussão a partir de uma observação, feita por um dos sujeitos, das imagens
apresentadas na capa. A discussão desenvolveu-se comparando as informações presentes na
capa com as idéias desenvolvidas nas imagens no interior do livro.
158
A análise da capa estava presente no roteiro previamente elaborado, e, por isso,
aproveitei o comportamento da S8 para explorá-la mais detalhadamente no diálogo. S8 me
mostrou a capa do livro aberta, tentando confirmar o mesmo modo de apresentação do
primeiro livro. Aproveitando isso, questionei: Essa capa é igual a do outro livro?
Ao abrirem o livro, como fizeram anteriormente, a hipótese não foi confirmada.
Mesmo assim, aproveitamos e identificamos os elementos da capa, o nome da autora, da
ilustradora, da coleção. Ao falarem sobre a autora e a ilustradora, os alunos também se
dirigiram para as páginas finais, onde existem fotos e informações das mesmas. Até esse
momento, a imagem dos personagens ainda não havia atraído a atenção dos sujeitos. Pedi que
eles retornassem à capa e perguntei: Agora, olhando na capa de novo. Onde é que a gente
encontra a cambaxirra e o imperador pela primeira vez?
A resposta estava posta no meu comentário, indicando assim uma falha na minha
fala. O mediador precisa ter cuidado para não conduzir os sujeitos mediados por meio da sua
fala. S5, então, apenas confirmou que a capa era o local onde a cambaxirra e o imperador
apareciam pela primeira vez. A mediação o foi interrompida aí, instiguei uma observação
mais atenta da imagem dizendo: Olhem para os dois, como é que vocês acham que eles estão
se relacionando? Trata-se de uma pergunta que explora o estabelecimento de relações
virtuais, pois mesmo que eles tenham conhecimento da narrativa, essa imagem não está
presente no livro, apenas na capa, sendo, portanto, nova diante do olhar leitor dos sujeitos. O
S2, logo, respondeu que eles estavam se dando bem. Complementei a idéia e perguntei
novamente, instigando outros sujeitos a participarem: Bem, parece que eles estão felizes um
com o outro. Estão tranqüilos? Os sujeitos apenas fizeram gestos concordando, não houve
nenhum tipo de manifestação que acrescentasse uma nova idéia ao tipo de relação
estabelecida entre os personagens.
Deixei aberta a discussão sobre o tipo de relacionamento entre a cambaxirra e o
imperador representado na imagem da capa, que percebi que talvez eles precisassem de
mais tempo e de uma observação mais atenta não dessa imagem, mas de outros elementos
no interior do livro para construir argumentos sobre o tema. Atraí o olhar dos alunos para o
segundo plano dessa imagem:
Med.: E o que mais tem lá no fundo da capa?
159
S6: Tem umas árvores.
S?: Tem uma grama.
Med.: Qual será a árvore que ela está fazendo o ninho dela?
Nenhum sujeito reconheceu alguma daquelas árvores representadas em segundo plano,
na ilustração da capa como sendo a árvore onde a cambaxirra estava fazendo o seu ninho. Um
sujeito procurou resolver a questão mostrando a página 6, e outro, a página 8. Diante de duas
páginas diferentes, instaurei a dúvida: É a mesma árvore? Como é que a gente sabe que é a
mesma árvore? Todos responderam que se tratava da mesma árvore. O S6 disse que era a
mesma árvore, porque tem os mesmos galhos, usando um argumento bastante claro, ao
contrário de outro sujeito, S8, que apenas disse: porque é o mesmo jeito, não estabelecendo
nenhuma característica definida. Essa discussão trouxe a comparação como ferramenta
fundamental para o estabelecimento das respostas e da argumentação.
Aproveitando a fala do S6 sobre a semelhança dos galhos que comprovava ser a
mesma árvore nas duas páginas apontadas, disse: Ah, tem o mesmo galho, e o que mais que
tem igual? Não foi a resposta desse questionamento que obtive, mas a fala de um outro
sujeito, S7, que apontou na contracapa uma árvore que poderia ser a da cambaxirra. Essa
informação deveria ter sido mais explorada para que o sujeito argumentasse o porquê dele ter
reconhecido em uma das árvores da capa a mesma da cambaxirra. No entanto, nesse encontro,
os sujeitos estavam bastante agitados diante de muitas situações novas. Além de estarem
descobrindo um novo texto — pois a narrativa se apresentava aos olhos deles com imagens —
eles estavam em uma sala diferente daquela onde normalmente os encontros estavam
acontecendo e dispostos também de outro modo que não o habitual, sentados no chão, por
motivos que foram apresentados anteriormente. Esses elementos novos provocaram um
comportamento de ansiedade nos sujeitos: falavam ao mesmo tempo e abordavam diferentes
assuntos simultaneamente de acordo com o seu próprio olhar frente ao texto; eu acabei me
deixando dominar pela ansiedade e nervosismo, diante de tantas falas simultâneas e,
esquecendo de explorar alguns aspectos relevantes nessas mesmas falas.
Depois ainda de ouvir alguns sujeitos, que comentavam sobre a questão de ser ou não
a mesma árvore a da página 6 e da página 8 e que diziam que seria porque na página 6 ela
aparece fazendo o ninho, senti necessidade de interromper a fala dos alunos e reorganizá-los
no círculo que eles inicialmente haviam formado quando sentaram. A mudança de disposição
160
se deu, porque, no início do encontro, os sujeitos se organizaram em pequenos grupos para
comentar o que estavam lendo e, quando a discussão teve início, esses grupos permaneceram
e agora discutiam, separadamente do grande grupo, que já deveria ter sido reconstituído.
Após essa breve interrupção, reiniciei a conversa retomando algo que havia sido
concluído anteriormente e também tentando avançar na discussão: Nós chegamos à conclusão
que a cambaxirra e o imperador estão aqui na capa e que eles parecem estar se dando bem.
na história vai acontecer a mesma coisa? Um sujeito logo respondeu que não, mas foi
contrariado pelo S1 que afirmou: Mas depois acontece. Essa discussão trouxe novamente o
comportamento comparativo, pois os alunos acabaram comparando a imagem da capa com as
imagens internas para estabelecer o porquê da diferença de relacionamento entre os
personagens, empregando a operação mental que era esperada anteriormente, quando essa
questão foi abordada e interrompida.
Med.: Nós chegamos a conclusão já que a cambaxirra e o imperador estão aqui na capa e que
eles parecem estar se dando bem. Lá na história vai acontecer da mesma maneira?
S?: Não
S1: Mas depois acontece.
Med.: Não, a idéia da capa então não é confirmada lá dentro. Depois acontece?
S1: Depois acontece.
Med.: Por que acontece?
S?: Por causa que aqui eles tão junto.
Med.: Ah, porque aqui eles estão juntos.
S?: Na capa eles tão junto, lá eles já tão brigando.
Med.: Então na capa a gente já tem uma idéia que provavelmente tudo ia terminar bem, [...]
A partir da comparação feita pelos sujeitos entre a imagem da capa e a imagem da
página 22, fica claro que o comportamento comparativo está sendo usado de modo
espontâneo. E, dessa forma, os sujeitos estão buscando argumentos para sustentar as suas
idéias a respeito da imagem da capa em relação às imagens no interior do livro: estão lendo as
duas ilustrações para construir um sentido coerente para a sua leitura.
Da comparação partimos para uma leitura mais atenta das imagens no interior do livro.
A partir da ilustração da página 22, conversamos:
Med.: Lá dentro, como é que a gente sabe que ele está furioso?
S6: Porque ele chegou em cima dela.
Med.: A gente sabe na palavra ou a gente sabe na imagem?
161
S6: Na palavra. A gente lê e sabe que ele tá xingando.
Med.: E na imagem, como é que a gente sabe que ele está furioso?
S?: Por causa que ele tá em cima dela.
Med.: E na imagem, como é que a gente sabe que ele está furioso?
S?: Por causa que ele tá em cima dela.
Med.: O que é que tem no imperador que a gente sabe que ele está furioso?
S6: Tá com o rosto brabo.
S2: Tá saindo da boca o Vossa Majestade.
Med.: Vossa Majestade, que é assim que ela tem que falar com ele. Quem é que está maior?
S?: É ele
Med.: É ele olha o tamanhão! E o que ele está fazendo para ela, como é que está as mãos
dele?
S6: Boto na cara.
Nesse trecho transcrito, percebi que os alunos tiveram que ativar a sua percepção clara
dos detalhes, focalizando a sua atenção na imagem do imperador e no modo com que ele
estava se comportando diante da cambaxirra. Além disso, de acordo com o meu segundo
questionamento, esse foi um momento também de desenvolvimento da consciência da leitura
da imagem, de considerar a imagem como fonte de informação na construção do sentido do
texto. No entanto, essa tomada de consciência o foi algo imediato, pois, na primeira
resposta, o S6 afirmou que o leitor sabia que o imperador estava furioso por causa da palavra,
que era lida e trazia a informação de que ele estava xingando o pássaro. Nesse momento, ao
invés de simplesmente corrigi-lo, questionei, trazendo o olhar desse sujeito e dos demais para
a leitura da imagem, de que modo era possível saber isso a partir do elemento visual. Mesmo
sem perceber, todos os sujeitos que responderam leram essa imagem, demonstraram frente ao
código visual um comportamento de leitura, decodificando os sinais que lá estavam explícitos
e construindo sentidos a partir das informações implícitas que eles traziam.
Esse momento da mediação pode exemplificar de modo prático a fórmula utilizada por
Feuerstein para expressar de maneira esquemático a experiência de aprendizagem mediada.
Nessa fórmula, S – H – O – R, S são todos os estímulos externos, H é o mediador humano que
se coloca entre o estímulo e o organismo ou sujeito aprendiz, representado por O, auxiliando-
o a perceber de modo diferente aquele estímulo, o elemento final da fórmula, R, representa a
resposta dada por esse sujeito (GIUGNO, 2002).Em termos de leitura, os estímulos (S) são
todos os objetos de leitura que são oferecidos a qualquer ser humano. No entanto para uma
criança, ainda em fase de desenvolvimento da sua capacidade de leitura, se faz necessário que
exista entre ela e o estímulo um adulto mediador, não para corrigi-la, mas para auxiliá-la a
162
perceber esses objetos de modo diferente e crítico e, assim, responder a eles de maneira
competente e com maior independência a cada nova experiência.
Um ser humano – o agente mediador - ao interpor-se, com intencionalidade, entre o
organismo e as fontes de estímulos oferecidos pelo entorno social, busca fazer com
que estes estímulos sejam percebidos de forma diferenciada do que se estivesse
diretamente exposto a eles. Entretanto, com o decorrer do tempo, esta interposição
do ser humano em relação aos estímulos tende a se reduzir, uma vez que a EAM
afeta a estrutura interna do indivíduo, possibilitando-lhe que aprenda a aprender,
desenvolvendo sua autonomia para o estabelecimento da seleção e organização de
tais estímulos e, em decorrência, beneficiar-se deles para o seu desenvolvimento
cognitivo. Assim sendo, a aprendizagem mediada permite que os indivíduos
desenvolvam habilidades de pensamento eficientes que lhes possibilitarão tornar-se
aprendizes independentes e autônomos (GIUGNO, 2002, p.66-67).
No ir e vir do diálogo, após essa análise atenta da imagem da página 22, surgiu,
novamente, a questão espacial, no momento em que o nosso olhar retornou à ilustração da
capa. O mesmo processo comparativo que havia sido iniciado na leitura da imagem da
cambaxirra e do imperador, tanto na capa quanto no interior do livro, agora se voltou para a
questão espacial.
Med.: E o lugar onde acontece essa história. Onde é que a gente conhece esse lugar?
[Alguns sujeitos apontam algumas páginas no interior do livro.]
Med.: Só lá dentro do livro a gente conhece?
S?: Sim
S6: Não! Na capa sôra.
Med.: E o que é que tem [na capa].
S6: Tem um monte de árvore, tem passarinho, tem...
Med.: E o que vocês acharam dessas árvores?
S?: Uma floresta.
S?: Isso aqui é um jardim.
Med.: E essas árvores, o que vocês acharam dessas árvores?
S6: E aqui é a floresta [mostra as páginas 2 e 3].
Med.: E essa floresta, vocês acharam essas árvores bonitas ou feias?
S?: Feias [respondem quase em coro].
Med.: E porque vocês acharam feias?
S1: Porque não soube desenhar sôra.
S6: Porque umas são torta, outras são redonda.
S?: Essa aqui parece uma prancha.
S?: Parece um picolé.
S?: Não tem galho.
Além da percepção do contexto espacial, onde ocorre a narrativa, esse diálogo traz
também a questão estética da imagem observada. O modo com que as árvores estão
163
representadas, desde a capa, traz um modelo diferente de representação figurativa, que foge
do estereótipo das árvores frondosas com copa verde e troncos marrons. Isso causou nos
sujeitos um estranhamento que fez com que eles considerassem essas árvores feias ou mal
desenhadas. Na tentativa de começar a mudar essa concepção, para que os sujeitos
considerassem essas imagens também como válidas, mesmo não seguindo os modelos, aos
quais o olhar deles estava acostumado —, fiz o seguinte comentário para que eles pensassem
a respeito: Mas será que elas não mostram para a gente que cada um pode desenhar o que
quiser? A gente não entendeu que era uma árvore? Esse mesmo estranhamento diante das
imagens foi causado também, quando os sujeitos analisaram os demais personagens com os
quais a cambaxirra interage no desenrolar dos fatos, como será apresentado posteriormente.
Antes que o encontro fosse interrompido ainda conversei com os sujeitos sobre a
imagem da cambaxirra apresentada na página 4, questionando-os a respeito do porquê de ela
estar sendo apresentada sozinha.
Med.: [...] Por que será que tem essa cambaxirra aqui desse jeito?
S1: Porque ela tá braba.
Med.: Por que será que ela aparece aqui, sozinha?
S?: Porque ela tá assustada que tão cortando?
Med.: Mas será que é porque ela está assustada, vamos observar bem. Tem essa corda em
volta dela, a gente... [fui interrompida].
S?: Ela tá assustada.
Med.: Por que será que a ilustradora do livro resolveu colocar aqui logo de cara a
cambaxirra?
S2: Por causa que ela é a principal.
Med.: Sem ela teria história?
S?: Não.
Novamente é possível evidenciar a leitura da imagem e a compreensão dos sentidos
implícitos. O comportamento inicial dos sujeitos foi analisar o personagem sob a ótica
psicológica talvez pelo modo com que ele se apresenta com as asas abertas afirmando
que isso mostrava a cambaxirra brava ou assustada, porque estavam ameaçando cortar, a
árvore, que a idéia ficou inacabada. Insisti um pouco, tentando obter deles uma resposta do
porquê dela se apresentar sozinha ali naquela página, mas não consegui ultrapassar essas
primeiras idéias. Foi necessário, então, reformular o questionamento, indicando mais
claramente a idéia de organização textual a partir do código visual. Dessa forma, a definição
de protagonista logo veio na resposta seguinte. A necessidade de ir e vir, de insistir em um
164
mesmo aspecto e reformular questionamentos, às vezes, buscando uma linguagem mais
explícita sobre o aspecto que se está analisando, é algo que o mediador precisa estar
consciente ao longo de todo encontro mediado. O olhar do mediado deve ser levado em conta,
mas ele não pode seguir completamente sozinho — ao menos no início do processo —, já que
ainda está em fase de amadurecimento de alguns aspectos importantes no processo de leitura.
No início do segundo encontro, todos esses aspectos discutidos com os sujeitos sobre a
cambaxirra e sua relação com o imperador, e que surgiram a partir da análise da capa, foram
retomados. A questão espacial também voltou a ser discutida, mas trazendo agora aspectos
relativos ao enredo, principalmente, no que diz respeito ao desfecho, à resolução do conflito
que na palavra se apresenta de um modo e na imagem de outro.
Interroguei os sujeitos a respeito dos locais onde os fatos aconteciam, recuperando os
diversos lugares por onde a cambaxirra passa para tentar salvar a sua árvore até chegar ao
final da história e, assim, perceber se os alunos haviam feito a leitura do final apresentado
pelo código visual. A primeira parte do questionamento, sobre os locais onde a cambaxirra
esteve, não suscitou nenhuma dificuldade, pois isso havia sido bastante discutido na leitura da
palavra. No entanto, quando perguntei para onde a cambaxirra foi depois de falar com o
imperador, um sujeito respondeu que ela havia voltado para casa. Ao repetir, espantada, a fala
desse sujeito, Voltou para casa?!, todos os sujeitos mudaram de opinião e disseram que a
cambaxirra não havia voltado para casa. Perguntei então: O que aconteceu no final da
história? A resposta veio com todos falando ao mesmo tempo e dizendo sem muita certeza
que a cambaxirra havia voltado para casa para fazer seu ninho.
Até esse momento, os sujeitos não haviam considerado em sua leitura as duas páginas
finais (páginas 28 e 29). Na tentativa de que eles percebessem o final representado pela
imagem disse: A árvore fica em no final da história? Olhem aí! Como é que termina? O
comportamento imediato de todos os sujeitos foi responder que sim, que a árvore não havia
sido derrubada no final, mas essa resposta veio sem nenhuma comprovação. Com relação ao
final da história um sujeito demonstrou com sua resposta ter lido a imagem, somente a
imagem que vem acompanhada da palavra na dupla de páginas 26 e 27: Eles tavam dando
ordem um para cada um. A fala desse sujeito demonstra que a leitura foi feita somente até
essa dupla de páginas, e que a última página, em que a palavra aparece, é considerada o fim
da história.
165
Para que os sujeitos voltassem o seu olhar para as páginas 28 e 29 e fizessem a leitura
desse final apresentado apenas pela linguagem visual, disse: E a árvore fica em pé? E o que
acontece com eles? O primeiro sujeito a responder, Ficam feliz depois ra, demonstrou,
talvez, ter lido as imagens, mas as sua resposta ainda não é precisa o suficiente, talvez esteja
apenas usando uma lógica de final de história, em que todos vivem felizes para sempre. O
segundo sujeito, S8, trouxe uma informação um pouco mais exata, Eles ficam tudo junto, a
leitura da imagem está sendo feita apesar do termo comemoração, que é o que está
representado na imagem, não ter sido usado, mas a idéia de união, que também é expressa na
ilustração, é utilizada. Com o objetivo de alcançar essa especificação questionei: Ficam
todos juntos fazendo o quê?
Os olhares dos sujeitos estavam diante das páginas finais, no entanto, isso não
significa que todos olhavam para o mesmo ponto. Isso fica claro no posicionamento de S5,
que não respondeu a pergunta que eu havia feito, mas demonstrou ter feito uma leitura da
imagem: E a árvore tava em . Sem desperdiçar essa informação retomei o questionamento
anterior reformulando-o: A árvore está em pé, e o que aconteceu embaixo da árvore? Um
sujeito logo respondeu, uma festa. Para que todos focalizassem a sua atenção nessa imagem
falei: Como é que a gente sabe que é uma festa? O fato de eles estarem brindando foi a
justificativa usada por um sujeito. Outra criança, S8, no entanto, trazendo a questão da
diferença de pontos de vista, acrescentou o seguinte comentário: E a cambaxirra tá na coroa
do imperador.
Esse comentário sobre o aspecto hierárquico em relação à festa representada nas
últimas páginas trouxe novos sentidos, diferentes daqueles construídos na leitura do código
verbal.
Med.: [...] e a cambaxirra está onde, com quem?
S?: Com o imperador.
Med.: Por que é que os dois estão juntos?
S?: Porque eles são amigos.
S?: Porque ele não derrubou a árvore.
Med.: Quem é que está nas pontas da mesa?
S?: O lenhador.
S1: O lenhador, o capataz ...
Med.: Nas pontas?
S?: O lenhador.
Med.: O lenhador de um lado, e do outro?
166
S?: O imperador.
Med.: O imperador com quem?
S?: Com a cambaxirra.
Med.: Por que será que são esses que estão nas pontas da mesa?
S5: Porque um pediu e outro obedeceu.
Med.: A idéia da S5 pode ser.
S1: Porque a história começa nesse e acaba nesse.
Med.: Pode ser também, essa idéia do S1, pode ser. Quem senta na ponta da mesa é qualquer
pessoa?
S?: Não.
Med.: Tem que ser alguém que tenha o quê?
S?: É o que mais manda.
S?: E o que menos manda.
Med.: Será que é o que mais manda e o que menos manda?
S?: Não sôra porque esse aqui [apontando o lenhador] não manda em nada.
Med.: Mas não era ele que ia derrubar a árvore?!
S?: Era!.
Med.: Será que ele também não tem um pouco de poder?
S?: Tem.
S1: Ah, mas qualquer um podia derrubar.
Med.: Qualquer um podia...
Muitos aspectos podem ser evidenciados nesse trecho transcrito. Em primeiro lugar, a
leitura da imagem como meio de construir novos sentidos que não foram nem implicitamente
colocados pela palavra. Foi somente pela leitura do código visual que os sujeitos puderam
saber que, ao final, todos ficaram amigos e, que, comprovadamente, a árvore não havia sido
derrubada, servindo inclusive de cenário para a cena final. Além disso, a questão da
transcendência, de ultrapassar o sentido do texto e de buscar em conhecimentos sociais
elementos que auxiliem a compreender de uma outra forma o que está posto no texto verbal
ou visual. A representação dos personagens ao redor da mesa, brindando felizes, representa
uma festa e, o modo com que eles estão dispostos nessa mesa traz implícita a questão
hierárquica. Nessa discussão, percebe-se também o quanto os sujeitos estão à vontade para
exporem as suas idéias. uma diversidade de opiniões, que surgem, tentando construir um
sentido para o modo com que os personagens estão representados opiniões que inclusive
colocam em dúvida as idéias dos colegas. Apesar de todos esses pontos positivos que podem
ser destacados nesse trecho, é preciso também que eu aponte a minha falha como mediadora
por não ter dado continuidade a essa discussão e explorado outros aspectos que talvez
auxiliassem numa maior transcendência na construção de sentidos a partir da leitura. A
preocupação em abordar os diferentes elementos, presentes na imagem e importantes na
167
compreensão do texto, acabou prejudicando que a discussão, muitas vezes, fluísse com mais
calma e de maneira mais bem explorada.
O último enfoque relevante e que deve ser analisado nesse encontro foi a respeito da
observação atenta de cada um dos personagens, o que ajudou a complementar a idéia de
hierarquia. O modo de representação de cada personagem traz claramente a distinção em
termos financeiros e de poder que entre eles. Além disso, essa representação possibilitou
uma experiência estética diferente, que os sujeitos se depararam com figuras, que lhes
pareceram estranhas, muito distantes da representação humana com a qual eles estão
habituados. Esse estranhamento foi o caminho que tomei para iniciar a discussão e atrair a
percepção clara e precisa dos sujeitos ao focoo lenhador, o capataz, o barão, o visconde, o
conde, o marquês e o duque.
Med.: [...] agora vamos olhar para cada uma das pessoas. Eu me lembro que no sábado
[primeiro encontro que foi interrompido], vocês olhavam para cada um e achavam muito
engraçado, por quê?
S8: Muito feio!
S?: Os desenhos sôra.
Med.: Eles parecem pessoas de verdade?
S6: O rosto desse aqui é roxo [mostrando o conde].
S?: Quem é que disse que essa pessoa é boa em desenho?
S8: O outro é amarelo queimado.
Med.: Vamos olhar desde o primeiro? [...]
O aspecto feio dos personagens, os desenhos mal feitos representam as primeiras
opiniões dos sujeitos frente às imagens que eles encontraram no livro. Dessa visão geral, eles
passam a uma observação mais atenta, indicando as cores usadas para colorir o rosto de
alguns desses personagens e que fogem do padrão usado para representar a figura humana.
Nessas falas é possível perceber que não são as minhas perguntas que os estão auxiliando,
eles estão demonstrando um olhar mais independente, capaz de focalizar em elementos e
construir sentidos a partir do que vêem. Apenas para sistematizar essa leitura da representação
de cada um dos personagens é que fiz a proposta de observar cada um deles, desde o primeiro.
Dessa forma, para analisar a representação de cada um dos personagens, procurei
auxiliar os sujeitos a estabelecerem um comportamento de exploração sistemática, para que
um foco fosse delimitado de acordo com a figura analisada e o contexto ao qual ela pertencia.
Questionei a respeito do lenhador: Como é que a gente sabe que o primeiro é o lenhador?,
168
procurando dissociar a leitura da imagem da leitura da palavra. S1 respondeu que a presença
do machado seria indicativo de que essa figura seria o lenhador. Insisti na mesma idéia
reformulando a pergunta para que todos acabassem por centralizar o mesmo foco de atenção:
O que ele tem para a gente saber que ele é o lenhador? Outra criança, S8, respondeu
acrescentando uma nova justificativa, agora relacionada à ação que seria praticada pelo
lenhador: Porque ele tá com um machado, porque ele vai cortar a árvore.
O comportamento comparativo foi acionado a partir da análise do segundo
personagem, com o objetivo de ressaltar as diferenças no modo de vestir entre cada um dos
personagens e estabelecer uma razão para isso. Propus o novo questionamento instaurando
a comparação entre o lenhador e o capataz: [...] agora vamos olhar o capataz. Ele é diferente
do lenhador? A primeira resposta foi positiva, porém automática, sem argumentação, que
veio a partir dos meus questionamentos seguintes: Vamos comparar as roupas dos dois?
Como é que o lenhador está vestido? A primeira criança a responder começou descrevendo as
roupas, de calça; enquanto que a outra procurou caracterizar o modo de vestir, vestido
muito ruim. Para que as duas idéias fossem unidas, a específica e a geral, propus uma
observação mais detalhada: O que ele está vestindo? Olhem aí! Nesse momento entraram em
ação alguns dos sujeitos femininos do grupo de mediação respondendo: com uma calça,
uma camiseta cavada e uma bota, usando em sua resposta um vocabulário bastante descritivo
a respeito das peças de roupa usadas pelo lenhador. Discutimos ainda se isso era um modo de
estar bem ou mal vestido, para, em seguida, comparar com a maneira de vestir do capataz.
Quando começamos a descrever o modo de vestir do capataz, os sujeitos foram
despertados por uma das crianças a observar a maneira com que o personagem estava
representado fisicamente. O S5 surpreendeu-se com o tamanho da cabeça e das mãos do
lenhador, dizendo: Um cabeção e olha as mãozinha, sôra. Parece mãozinha de bebê. Esse
comentário fez com que os demais sujeitos, ao análisar do personagem seguinte, também
voltassem os seus olhares para aspectos referentes à proporção entre as partes do corpo. O
olhar de S5 foi, portanto, mediador do olhar das outras crianças, auxiliando-as a perceber
detalhes físicos de modo mais atento. Dessa forma, a leitura da imagem dos personagens
passou a ser feita sob dois aspectos, o físico e o modo de vestir, sendo que o segundo foi
usado para estabelecer a diferença social entre os personagens, ao longo do diálogo, como se
pode perceber na transcrição:
169
Med.: [...] olhem a roupa do capataz e olhem a roupa do barão, o que tem de diferente?
S?: Cada um tá vestido melhor que o outro.
S?: Olha as bota, fininha!
Med.: E olha a blusa do barão como é que é. Como é que é a camisa do barão?
S?: Toda com detalhes sôra.
Med.: Toda cheia de babados.
S?: Sôra olha o cinto dele.
S3: Parece que ele tá sem cabeça.
É possível notar nesse trecho do diálogo, os diferentes olhares dos sujeitos e o quanto
eles estão à vontade para exporem as suas observações. Cada um está fazendo a sua leitura da
imagem e trazendo para os colegas aspectos que lhe chamaram atenção. Esse comportamento
de observação fez com que os sujeitos fossem despertados para observar detalhes ou
elementos que antes lhes passavam despercebidos. Isso aguçou a curiosidade dos sujeitos que
passaram a não aguardar mais a mediação para seguir adiante no processo de análise dos
personagens, pois os sujeitos acabavam virando as páginas, independentemente da minha
sugestão ou pedido.
Sem dúvida alguma, isso demonstra um nível bastante elevado de independência, mas
que, no entanto, precisa ainda ser considerada com cuidado pelo mediador, para que essa
análise da imagem não fique apenas no nível da observação de elementos que chamam
atenção do leitor e que ao final não resultam na construção de nenhum sentido. Em outras
palavras, observar detalhes não significa ler a imagem. A voz do mediador deve sempre dar
vez à voz do mediado, porém é fundamental auxiliar o sujeito para que as suas opiniões e
observações sirvam para construir sentidos, ou contribuir na compreensão do objeto de
leitura.
A tentativa de usar essa observação de detalhes como meio de construção de sentido,
no entanto, era interrompida pela curiosidade dos sujeitos em logo ver um novo personagem.
Isso fica bastante explícito nesse trecho transcrito:
S?: Olha só o corpo maior que os braço!
Med.: O que é que o visconde tem grandona?
S?: A barriga.
Med.: [...] será que ele trabalha?
S?: Não!
S?: Ele só come.
Med.: O que é que ele tem atrás dele que os outros não tinham?
170
S?: Uma capa.
S8: Aqui ele tá virado só em nariz esse daqui. [Já observando o conde na página seguinte].
Apesar de tentar construir algum sentido a partir das observações feitas pelos sujeitos,
a curiosidade lhes deu pressa em logo seguir adiante para ver o personagem seguinte. Acabei
ficando em uma encruzilhada na mediação, pois se interrompesse esse comportamento deles,
talvez acabasse tolhendo o olhar e, principalmente, a voz dos sujeitos que demonstravam estar
muito à vontade; porém não os interrompendo, o que aconteceu foi que a construção de
sentido a partir da leitura da imagem acabou sendo deixada de lado em muitos momentos.
Para tentar recuperar a questão da construção de sentido a partir das observações das
crianças usei a questão do aparecimento de jóias, comentado quando o duque foi analisado e
assim, tentei estabelecer uma comparação que auxiliasse os sujeitos a perceberem a diferença
hierárquica a partir do modo de se vestir de cada um.
Med.: Vocês viram que as jóias começaram a aparecer? Por que será?
S?: Porque cada um se veste melhor do que o outro.
S?: Porque cada um tem mais poder.
Med.: Por que é que cada um se veste melhor do que o outro?
S?: Por que cada um tem mais poder que o outro.
Med.: E quem é o mais enfeitado de todos?
S?: O imperador.
Med.: E quem é que fez com que todos eles obedecessem?
S1: Foi o imperador.
S3: Não, foi todo mundo, por causa que ... [deixou a sua idéia em aberto.]
Med.: Quem é que anula todas as ordens?
S?: O imperador.
Med.: Foi ao imperador que eles obedeceram?
S10: Não, a cambaxirra.
Med.: E não é ela, na verdade, a mais simplesinha de todos?
S?: É, e bem pequenininha também.
As dúvidas que vieram junto com a análise dos trechos anteriores de que as
observações feitas pelas crianças pudessem ter ficado apenas no nível da apreciação e não
tivessem alcançado o nível da interpretação foram, de certa forma, dissipadas a partir dessa
conversa. Os sujeitos demonstraram ser capazes de utilizar os detalhes observados para
construir sentidos, sendo importante destacar, inclusive a presença da voz de S10 que até
então apenas ouvia os colegas e observava atentamente as imagens que por fim, foi o
responsável por indicar a cambaxirra como responsável por desfazer a ordem de todos os
171
poderosos, sendo ela, portanto, a mais poderosa. A fala de S10 demonstra que cada sujeito
interage com o texto e com o mundo a seu modo, no seu próprio tempo e que o silêncio nem
sempre significa alienação, mas também pode representar uma atenção redobrada no que está
ocorrendo e sendo dito ao seu redor.
Esse trecho transcrito acima não representa o final da mediação. Outros aspectos
foram discutidos, mas nenhum que traga elementos tão relevantes quantos os que foram
ressaltados até aqui. A discussão a partir da narrativa Ah, cambaxirra se eu pudesse... foi
bastante rica, demonstrando, apesar de ser apenas a segunda a ser trabalhada —, um
grande desenvolvimento de determinados comportamentos de leitura nos sujeitos envolvidos.
4.4.4.2 Algumas considerações: um caminho cada vez mais demarcado
Não se pode exigir que um leitor mirim se torne um leitor independente sem que ele
seja exposto a situações de leitura que lhe possibilitem exercitar essa independência. Isso fica
bastante claro no caminho delineado até aqui.
De uma “falta de coragem” para se expor, que se percebia no primeiro encontro
ainda com a narrativa anterior —, chega-se aos dois encontros com essa narrativa, sendo
possível apontar diversos momentos em que se ouve a diversidade de idéias e opiniões dos
mesmos sujeitos, demonstrando uma desinibição, que antes precisou ser vencida. Além disso,
o uso do texto de modo consciente, como fonte de informação e argumentação para sustentar
os sentidos construídos, foi aplicado de modo bastante espontâneo no primeiro encontro,
assim como o comportamento comparativo e a análise focalizada e detalhada das imagens
foram práticas recorrentes na leitura mediada dessa narrativa.
A interação com o texto, guiada por mim como mediadora e, também, pelos demais
sujeitos agindo da mesma forma, auxiliou na delimitação de um caminho cada vez mais
demarcado e que conduzirá os sujeitos mediados a alcançarem a sua independência e
criticidade como sujeitos leitores. É, portanto, no processo de leitura do texto que o sujeito se
constrói como leitor, pois, segundo as idéias de Piaget, Vigotski tão caras na construção
desse trabalho —, é a partir da interação dos sujeitos que a aprendizagem significativa ocorre,
ou seja, “os estudantes com seus pares somente aprendem à medida que intencionalmente
agem sobre os objetos que têm por meta conhecer” (SILVA, 2004 , p. 33). E unindo essa idéia
172
às concepções de Feuerstein, essa aprendizagem se torna mais significativa ainda se for
mediada por alguém capaz de filtrar o estímulos, modular a intensidade deles, auxiliar os
sujeitos a planejarem e responderem com eficiência e sem impulsividade, de modo a
interpretar o texto e o próprio mundo (TZURIEL apud GOMES, 2002), para, assim,
alcançarem a sua independência como aprendizes.
4.4.5 Indo não sei aonde buscar não sei o quê: leitura mediada da palavra
O trabalho com a terceira narrativa aconteceu quase um mês depois da leitura mediada
da narrativa anterior. Essa distância entre um encontro e outro ocorreu devido à realização de
atividades na Escola, que envolviam a turma nos dias disponíveis para a retomada da coleta
de dados. Apesar dessa distância, o se percebeu nenhuma dificuldade dos sujeitos no
processo de leitura mediada, ao contrário, os sujeitos demonstraram estar cada vez mais à
vontade.
Para o trabalho com essa narrativa propus uma conversa diferente: antes de entregar a
narrativa verbal para os sujeitos lerem, iniciei um diálogo usando a idéia presente no título da
história. Os sujeitos não estavam conscientes de qual era o título da narrativa, usei apenas a
idéia contida nele para instigá-los a exporem algumas opiniões e irem se acostumando à idéia
de imprecisão presente na construção desse enredo. Sendo assim, questionei: Antes de ler, eu
vou perguntar uma coisa para vocês. Vocês imaginaram se mandassem vocês irem a um
lugar chamado Não Sei Aonde?
A primeira resposta foi negativa e foi expressa pelo grupo apenas com gestos de
maneira coletiva. Instiguei um pouco mais para receber manifestações orais e individuais
perguntando: O que vocês iam fazer? Um sujeito disse que não iria nesse lugar. Provoquei
dizendo: Mesmo que dissessem que se vocês fossem a Não Sei Aonde vocês iam ganhar um
prêmio muito maravilhoso? Outra criança, S8, então disse: Como é que a gente ia saber onde
que era, trazendo na sua fala a idéia de imprecisão que o nome desse lugar apresenta.
Tentei continuar um pouco mais a discussão, mas tive que interrompê-la. Os sujeitos
começaram a se dispersar do assunto e a expor idéias desconexas. Assim, achei melhor
entregar o texto e iniciar a leitura para que o tempo não fosse perdido com falas que não
levariam ao foco da história, até mesmo porque não estavam embasadas em nenhuma fonte
173
concreta de informação. A análise desse primeiro momento do encontro me leva a seguinte
reflexão: existem momentos em que se torna fundamental permitir aos sujeitos mediados, que
estabeleçam relações virtuais e exponham suas opiniões, mas isso deve ter um limite para que
essa exposição não acabe atingindo um grau de subjetivismo exacerbado e se afaste do foco
da mediação. Esse é mais um dos papéis do mediador e que se pode perceber nesse relato.
Ao entregar o texto impresso na folha branca, os sujeitos comentaram uns com os
outros a respeito do tamanho. O S1 disse: Hoje é pouco. Enquanto um outro sujeito
concordou e o S5 acrescentou: Assim é bom, que a letra é grande. A extensão do texto, isto é,
a quantidade de páginas, é algo que sempre chama a atenção dos sujeitos. Isso talvez seja
decorrência da falta de costume de receber para lerem, no dia-a-dia, textos longos que
ocupem mais de uma página.
A discussão mediada nesse primeiro encontro, com a narrativa de Ângela Lago,
abordou três aspectos da estrutura narrativa: personagens, espaço e, principalmente, enredo. O
terceiro aspecto foi o mais enfocado, pois, diante da imprecisão, já trazida pelo título, o
enredo acaba acolhendo o leitor que busca encontrar alguma determinação. Todos esses
aspectos foram abordados como meio de desenvolver ou ativar ações mentais necessárias ao
desenvolvimento da capacidade leitora, tais como a percepção clara e precisa de detalhes e
transformações, o uso espontâneo de conceitos, o comportamento exploratório, a comparação,
a percepção e definição de um foco, a orientação espacial e temporal, a capacidade
comunicativa, dentre outras.
4.4.5.1 Caracterização do personagem protagonista e dos demais personagens
Após a leitura, iniciei perguntando: Quem são os personagens dessa história? Dois
sujeitos responderam: o primeiro, dizendo que a Princesa e o Seinão seriam os personagens e
o segundo acrescentou o Diabo. Uma outra criança ainda disse que o inferno seria um
personagem, confundindo personagem e espaço, mas ela logo foi corrigida por outra que disse
que o inferno era o local, onde acontecia a história. Nesse início de conversa, se percebe a
presença da comunicação sem bloqueios ação mental importante para que a mediação
realmente exista.
174
Seguindo a definição do personagem, procurei auxiliá-los a focalizar a sua atenção no
protagonista. Os sujeitoso tiveram dificuldade em localizar as informações no texto verbal
e também conseguiram com facilidade se expressar para explicar os termos que caracterizam
esse personagem, como pode se ver no trecho abaixo:
Med.: O que a gente sabe do Seinão, como é que ele é?
S3: Confuso... sôra...zonzo.
Med.: O que quer dizer zonzo?
S?: Louco.
Med.: Louco?
S?: Burro.
Med.: Burro, talvez.
S?: Distraído.
S?: Zonzo que nem uma mosca.
Med.: Zonzo que nem uma mosca tonta, é!? Qual era única resposta que ele dizia?
S?: Sei não.
Nesse trecho é possível identificar, também, um importante comportamento do
mediador. Ao invés de eu simplesmente considerar as falas dos sujeitos como certas e erradas,
elogiando ou repreendendo-os, eu as coloco em dúvida, dando a todos a oportunidade de se
expressarem e assim tentarem “solucionar” a minha incerteza. Dessa forma, é possível notar
que os sujeitos acabam se sentindo mais à vontade para expor as suas idéias e, assim,
desenvolvem cada vez mais a sua capacidade comunicativa e, conseqüentemente, ampliam as
possibilidades de sentido decorrentes da leitura.
A caracterização da Princesa foi o passo seguinte no diálogo: E a princesa como é que
ela é? Uma criança respondeu que ela era esperta, outra acrescentou dizendo que ela era
sabida e uma terceira ainda disse: adorava fazer piada. Todas essas informações, coletadas no
texto, demonstraram, claramente, um comportamento exploratório competente na busca
desses dados. O meu segundo questionamento sobre a Princesa, no entanto, já buscava uma
informação que não estava totalmente explícita no texto verbal: E o que ela fez para fazer
piada com o Seinão? Isso não causou dificuldade, pois um sujeito logo respondeu: Mandou
ele ir não sei aonde buscar não sei o quê.
A partir dessa ação da Princesa que ajudou os sujeitos a compreenderem o que
significava dizer que ela gostava de fazer piada, a conversa voltou-se para um aspecto do
175
enredo, estabelecendo relação entre os acontecimentos, ações, reações e interações entre os
personagens:
Med.: O que ia acontecer se ele conseguisse cumprir [fui interrompida]?
S?: Ele foi a não sei aonde.
S?: Ela casava.
Med.: Ela casava com quem?
S?: Com Seinão.
Med.: Com o Seinão. Então tinha um prêmio muito bom, não é?! Imagina, se ele fosse a não
sei aonde e buscasse não sei o que ele casava com a Princesa. Por que a Princesa fez isso? Ela
fez isso acreditando que ela ia casar com ele?
S?: Não.
S?: Que ele não ia consegui.
Med.: Que ele não ia conseguir não é, ou então que ele provavelmente não aceitaria fazer
isso. Por que era uma coisa possível de ser feita?
S?: Não.
S?: Não sôra é impossível... não sabe aonde vai.
A questão da imprecisão no pedido da Princesa para que Seinão não conseguisse
completar a sua tarefa foi compreendida pelos alunos. Esse aspecto foi retomado
posteriormente, quando instiguei os sujeitos a comparar o comportamento dos dois
personagens e tentar notar a mudança de atitude que se do início até o final da história,
aplicando assim o comportamento comparativo, além da percepção das transformações por
que passaram os dois personagens ao longo da história. Dessa forma, no diálogo abaixo, para
expor as suas opiniões, os sujeitos tiveram que utilizar ao mesmo tempo duas fontes de
informações, o comportamento de Seinão e da Princesa, do início ao fim da narrativa, para
então, conseguir compará-los e estabelecer a identificação da mudança ocorrida. A ampliação
do campo mental assim como a conduta somativa foram duas ações também essenciais para
que todos esses elementos, implícitos, no enredo fossem absorvidos e compreendidos.
Med.: Agora me digam uma coisa, quem é o mais poderoso, tem mais esperteza, o Seinão ou
a Princesa?
[Os sujeitos se dividiram em suas respostas.]
S?: A Princesa, tá escrito aqui... [diz com convicção e lê o texto como argumento].
Med.: Do início ao fim a Princesa é a mais esperta?
S?: Não!
S?: É o Seinão, por causa que ele fugiu antes do diabo descobrir, sôra.
Med.: Só isso? No início da história, a Princesa é esperta?
S1: É, só que no final ele foi mais esperto que ela, sôra.
Med.: Vou perguntar de novo, no início da história o que é que a Princesa propõe para o
Seinão?
176
S1: Que ele fosse a não sei aonde buscar não sei o quê.
Med.: Foi esperto isso da parte dela? Ela não propôs para ele uma coisa que era impossível
dele cumprir?
S?: Propôs.
Med.: Então isso não é esperto? Então ela não foi esperta no início?
S?: Foi.
Med.: Ela continua esperta até o fim?
S1: Não.
Med.: Por que é que não?
S1: Por causa que ele foi buscá e ela teve que casar com ele.
Med.: Ele conseguiu ir a não sei aonde e buscar não sei o quê?
S5: Conseguiu!
Med.: Conseguiu e aí ela continuou esperta?
S?: Não, sôra. Ele é que ficou esperto.
S?: Fez tudo pelo casamento dele.
Med.: Quem foi o mais esperto no final?
S5: O Seinão.
S1, nesse diálogo, mais uma vez, tem destaque, expondo conclusões de maneira
antecipada em relação aos demais sujeitos. Nesse movimento do diálogo, outros sujeitos
também se expõem e acabam alcançando também o mesmo nível de compreensão, não tão
rapidamente como S1, mas do mesmo modo que ele, o que é bastante relevante para o
processo de leitura mediada. Para que todos tenham oportunidade de se manifestar, o avançar
e o recuar devem caracterizar esse diálogo e representar outro comportamento fundamental
para o mediador. Esse movimento de ir e vir no diálogo me auxilia a reformular o meu
pensamento, buscando novas questões que auxiliem os sujeitos a repensarem as suas idéias
iniciais, além de evitar assim como anteriormente a repreensão diante de uma resposta
errada, ou melhor, de uma resposta diferente daquela esperada por mim.
4.4.5.2 Tentativa de delimitar o impreciso espaço narrativo
Seinão foi desafiado pela Princesa a ir a Não sei aonde,. A denominação dos locais,
onde essa história acontece, é algo totalmente impreciso e, até mesmo, quando se tenta
identificar alguma precisão, o lugar apontado é também indefinido, de localização incerta. Por
isso, o inferno, onde Seinão acaba chegando, surgiu na discussão, auxiliando os sujeitos a
ultrapassarem o nível do texto ou do mundo ficcional e chegarem ao mundo real para
buscarem elementos, que os auxiliassem a compreender a indefinição espacial tão forte nessa
narrativa. Sendo assim, o estabelecimento de relações virtuais e, principalmente, o uso do
177
raciocínio lógico e do pensamento hipotético foram ações mentais importantes nos trechos do
diálogo mediado para buscar uma definição do espaço narrativo.
A determinação do local onde a narrativa inicia, isto é, o local de onde Seinão parte
para tentar cumprir o seu desafio, foi algo difícil para os sujeitos compreenderem. Não há, no
texto verbal, uma menção concreta de um espaço onde a história inicia. O leitor, mais atento,
encontra apenas termos como Princesa, corte, palácio ou sábios, que, implicitamente, ajudam
a delimitar um espaço de reino, encantado talvez, como o lugar onde a história inicia e
termina. Esses elementos, no entanto, não foram descobertos pelos sujeitos por falha na
mediação.
A falta de um nome para esse lugar, apresentado de modo explícito, fez com que os
sujeitos não identificassem o espaço onde a história inicia. Ao serem questionados a respeito
de onde começava a história, a primeira resposta veio baseada no texto verbal a partir do
elemento que inicia a trama, mas não apresentando uma localização e sim que a narrativa
iniciava na descrição do personagem protagonista. S1, responsável por essa resposta, usou o
texto como fonte de informação, apenas identificando a descrição do personagem que esno
começo da história. Na tentativa de ser mais direta, reformulei a pergunta: Começa no Seinão,
mas que lugar é esse? Outro sujeito, S3, então disse que era o inferno, buscando a resposta no
único elemento espacial que se apresentava de modo evidente, apesar de não estar
obedecendo a seqüência de fatos do enredo narrativo e, conseqüentemente, a seqüência
espacial também.
Acabei me dispersando do foco da discussão e, por fim, ao invés de mediar a
compreensão dos sujeitos a respeito do espaço inicial da narrativa, acabei concluindo o
pensamento e apresentando pronta a resposta que deveria ter sido construída por eles a partir
do diálogo mediado. Passei para a delimitação dos demais espaços onde a narrativa acontece:
Bom, começa lá onde ele mora, e aí, só fica ali a história?
Sem dificuldades, uma criança aponta o inferno como o próximo local onde os fatos
passam a acontecer. Ao serem questionados se o inferno seria distante de onde Seinão estava,
um sujeito usa o texto verbal e responde: Na última trilha diz aqui. E essa expressão última
trilha, provocou uma discussão que podia ter sido melhor explorada para que a leitura
transcendesse o nível do texto e alcançasse o nível real. S5 afirmou: Mas não existe última
178
trilha, sôra. Ao ouvir essa fala tentei provocar os demais sujeitos a pensarem sob essa ótica:
Ah, existe última trilha na vida da gente? A gente vai encontrar alguma vez a última trilha? A
resposta veio da mesma criança que havia trazido essa discussão e, ela disse: em rua sem
saída. Não fui adiante nesse assunto, nem tentei incitar os sujeitos a exporem mais as suas
opiniões sobre essa questão que poderia ter sido bastante enriquecedora no que diz respeito à
transcendência a partir da leitura feita.
Dessa forma, perdi uma oportunidade de auxiliar os sujeitos a estabelecerem relações
virtuais a partir do texto verbal e chegarem a elementos reais. Isso também aconteceu quando
em determinado momento questionei: Alguém aqui sabe onde fica o inferno? A primeira
resposta de muitos foi afirmativa, mas sem argumentação, apenas com gestos. Perguntei
novamente, agora em tom provocativo: Alguém tem o endereço? S5 respondeu: Embaixo da
terra. Sem menosprezar essa resposta falei novamente: Talvez, mas a gente tem certeza?
Todos responderam, então, de modo negativo, que não se podia ter certeza. Assim como
anteriormente, não explorei corretamente essas idéias que brotaram da conversa. Essas
interrupções, que deixam ao longo da discussão tantas idéias perdidas, sem conclusão ou uma
compreensão mais desenvolvida, são falhas na mediação que talvez tenham acontecido por
pressa. Uma pressa injustificável que mediar exige tranqüilidade, para que o sujeito
mediado possa refletir e repensar para alcançar a compreensão.
A indefinição da questão espacial afetou profundamente a conversa mediada. Os
sujeitos pouco avançaram na compreensão desse aspecto. Além de se tratar de um elemento
caracteristicamente impreciso na construção da narrativa, houve também falha na mediação,
pois talvez eu não tenha percebido, no momento, que esse elemento era bastante rico para ser
explorado na conversa mediada e, somente agora nessa análise, tenha me dado conta disso.
4.4.5.3 Encaixando as peças do enredo em busca de definição
A imprecisão, que caracteriza essa narrativa, encontra um pouco de precisão no modo
com que os fatos vão ocorrendo e se encaixando. Essa falta de certezas, a respeito do lugar
onde Seinão deveria ir e do objeto que ele deveria trazer, provocaram dúvidas em um sujeito,
que em determinado momento comentou: Mas essa história mal contada. Questionei essa
criança a respeito do porquê de ela ter essa opinião, buscando argumentação por parte dela. A
179
justificativa foi a de que a história não conta tudo. Provoquei-a, para que argumentasse de
modo mais consistente, porém ela não soube como fazê-lo.
Essa dúvida surgiu quando propus aos sujeitos a definição de qual seria o problema
que o personagem protagonista teria para resolver na seqüência dos fatos. Ficou claro para a
maioria dos sujeitos que o desafio proposto pela Princesa a Seinão era o problema a ser
resolvido. No entanto, algumas idéias implícitasnecessárias à compreensão da história e
também fundamentais para diminuir a incertezanão foram tão facilmente percebidas pelos
sujeitos e exigiram um diálogo mais demorado.
Uma dessas questões foi sobre o embrulho recebido por Seinão como pagamento dado
pelo Capeta. A possibilidade de não saber o que havia dentro e, portanto, se tornar não sei o
quê, precisou ser bastante discutida não no contexto da história, mas também buscando
exemplos reais para que os sujeitos alcançassem a compreensão, pois somente o
estabelecimento de relações virtuais não foi suficiente.
Med.: Ele conseguiu trazer alguma coisa que não se sabia o que era?
S3: Conseguiu, sôra, um embrulho, ele não sabia o que tinha dentro.
Med.: O que o diabo disse para ele quando entregou o embrulho?
[...]
Med.; O que o diabo disse para ele: está aqui o embrulho. Era para ele abrir o embrulho?
S?: Não.
Med.: Por que ele não podia abrir?
S?: Vai ver é qualquer bobagem. [lendo o texto verbal]
Med.: Ele disse, vai ver é qualquer bobagem, mas o que é que o diabo disse para ele. Não
abre porque...[silêncio]. Por que se ele abrisse o que ia acontecer?
S?: Vai ver é qualquer bobagem [relê o mesmo trecho].
Med.: Antes disso [no texto] o que é que o diabo diz quando entrega para ele?
S5: É não sei o quê, mas você não pode abrir, pois se abrir deixa de ser [lendo do trecho].
Percebe-se, no diálogo, que os sujeitos não conseguiam distinguir no texto verbal as
informações que eram relevantes para alcançar a compreensão a respeito do porquê de o
conteúdo da caixa realmente ser não sei o quê. A fala do Capeta para o protagonista, lida pelo
S5, era fundamental para alcançar essa compreensão. No entanto, percebi que apesar de essa
idéia ter sido encontrada, os sujeitos ainda tinham um olhar de dúvida diante da possibilidade
de algo ser tão incerto como era o conteúdo do embrulho recebido por Seinão. O contexto
ficcional não estava sendo suficiente para que os sujeitos estabelecessem as relações virtuais
180
para compreender o modo com que a imprecisão estava representada. Por isso busquei
auxiliá-los usando um exemplo mais concreto, baseado no mundo real com objetos concretos.
Med.: [...] tinha uma caixa aqui em cima [indicando a mesa ao redor da qual estávamos
sentados], e vocês me perguntam: O que é isso, professora? Não sei. Enquanto está fechado
alguém sabe o que tem dentro?
S?: Não.
S?: Só quem compra.
Med.: Só quem comprou foi que viu colocar lá dentro, ou então quem...
S?: Quem boto.
S?: Quem abri.
Med.: Quem abrir, não é?! Então, por que ele não podia abrir?
S?: Porque era da Princesa.
Med.: Porque era só a Princesa que podia abrir, e, além disso, se ele abrisse ele ia saber o que
era. Se ele soubesse o que era que tinha dentro do pacote, ele podia entregar para Princesa
dizendo: está aqui, eu trouxe não sei o quê?
S?: Não.
S?: Não, sora, aí ele tava mentindo pra ela.
[...]
S?: Podia abri e menti que não sabia.
Med.: O que era mais importante, ele casar com a Princesa ou ele saber o que tinha dentro da
caixa?
S?: Ele casá.
Do contexto real voltamos ao ficcional e ainda trouxemos para discussão a mentira
que poderia ter sido usada por Seinão para conquistar o casamento com a Princesa. Assim
pode ser resumido o diálogo acima. Poderia ter aproveitado o surgimento da possibilidade de
mentir e propor uma discussão sobre o valor da mentira, mas essa não era a intenção no
momento. O objetivo era auxiliar os sujeitos a se situarem na idéia contida na narrativa de que
o embrulho recebido por Seinão e entregue por ele à Princesa realmente era não sei o quê.
A discussão a respeito de fatos do enredo narrativo ainda trouxe outros aspectos dos
quais não emerge nenhum dado relevante a ser comentado, que em termos de ões
mentais, cujo desenvolvimento ou ativação é o objetivo principal na mediação da leitura, elas
se repetem. A localização de informações no texto, mantendo um comportamento
exploratório, percebendo e definindo um foco de atenção, foi algo bastante recorrente na
conversa que tentou reconstruir o enredo narrativo. Além disso, a conduta somativa, que
auxilia os sujeitos a ir acumulando informações para compreender o todo da história, também
foi fundamental.
181
4.4.6 Indo não sei aonde buscar não sei o quê: leitura mediada da palavra associada à
visualidade
O primeiro encontro com a história, por meio da leitura do código verbal, em todas as
narrativas, sempre foi precedido de curiosidade e empolgação por parte dos sujeitos. No
entanto, apesar da novidade decorrente da história, no segundo encontro, com a palavra e a
imagem em interação, percebi que os sujeitos já estavam apresentando um comportamento um
pouco negativo, devido à rotina na qual o encontro acontecia: a leitura individual da palavra e
depois da imagem, seguida da discussão. Por isso, tentei modificar essa rotina, propondo uma
leitura coletiva, associada à discussão, simultaneamente. Essa nova modalidade de conduzir o
encontro mediado trouxe para a mediação aspectos positivos e negativos como se poderá
constatar na análise a seguir.
Iniciei o encontro propondo uma retomada da história lida anteriormente, de modo que
os sujeitos a recontassem para auxiliar uma das crianças, que havia faltado ao encontro
anterior a se familiarizar com alguns elementos da história, tais como, os personagens e os
fatos principais. Nenhum sujeito demonstrou dificuldade para recontar a história. Propus,
então, a nova modalidade para o encontro, sem momento para exploração e leitura individual
do livro: [...] então vamos ler o livro? que hoje a gente vai fazer assim, vai olhar o livro
juntos, está bom?
O objetivo principal dessa modificação foi a quebra da rotina, mas também se tornou
um modo espontâneo de perceber de que maneira as crianças estavam interagindo com os dois
códigos, depois de terem lido duas narrativas e vivenciado o processo de mediação. Essa
mudança apesar de não permitir uma interação mais individualizada dos sujeitos com o livro,
explorando-o livremente, ajudou a notar, também, até que ponto os sujeitos estavam
sentindo necessidade de serem independentes na exploração e leitura do livro. Embora sendo
um paradoxo no processo de investigação, o momento tornou-se necessário para identificar
aspectos da competência leitora, nos quais os sujeitos avançaram e/ou ainda precisam
evoluir.
A diferença não ficou apenas na maneira com que o encontro aconteceu. A discussão
sofreu modificações em relação às anteriores, no que diz respeito aos aspectos abordados.
Alguns elementos da estrutura narrativa, que até o encontro anterior no qual foi lido o
182
código verbal dessa narrativa eram ressaltados nos diálogos, nesse encontro não se
apresentaram em destaque. Essa mudança se deve ao fato de que, anteriormente, os alunos,
individualmente, liam e exploravam o livro e, posteriormente, a discussão guiava-os a
perceber de que modo algumas informações, tais como personagem, tempo, espaço e enredo,
se mostravam tanto no código verbal quanto no visual. Era, portanto, um diálogo que não
analisava o livro página por página sequencialmente, mas que explorava alguns aspectos até o
seu esgotamento. A exploração, página a página, provocou uma análise detalhada dos códigos
em relação à construção da narrativa como um todo e, o, exclusivamente, dos elementos
estruturais da narrativa. Dessa forma, o diálogo mediado, nesse encontro, traz como aspecto
central a interação da palavra com a imagem na construção/apresentação da narrativa em si,
incluindo, é claro, seus elementos constituintes.
As informações apresentadas tanto na palavra quanto na imagem foram discutidas com
os alunos enquanto fazíamos uma releitura da história e analisávamos o livro. As ações
mentais de percepção clara e precisa de detalhes e transformações, comportamento
exploratório, orientação espacial e temporal, precisão na coleta de dados, percepção e
definição de foco, diferenciação de dados relevantes de irrelevantes, comparação espontânea,
comunicação sem bloqueios, dentre outras, foram ativadas e/ou desenvolvidas ao longo desse
diálogo sobre o modo com que a narrativa se apresenta tanto no verbal quanto no visual e nas
interações que essas linguagens estabelecem entre si.
4.4.6.1 Leitura da palavra e da imagem na construção da narrativa
A discussão iniciou pela capa, ponto de partida da observação do livro: Vamos olhar a
capa, primeiro? O que é que tem na capa? Tanto a palavra quanto a ilustração estão
presentes na constituição da capa, no entanto, foi a primeira, que chamou a atenção dos
sujeitos, que logo leram o título da história e o nome da autora.
A ilustração chamou atenção de um sujeito, quando eu questionava a todos a
respeito de quem era Ângela Lago e se ela seria apenas a escritora do livro. O sujeito, que
teve o seu olhar atraído pela imagem disse: Olha o Seinão aqui oh. Esse comentário não
atraiu o olhar dos demais sujeitos para o mesmo ponto de observação, foi algo individual de
um único sujeito, pois os demais estavam mais interessados em iniciar a investigação do livro.
Tive, então, que fazê-los retroceder à capa para observá-la mais atentamente, mediando,
183
assim, a percepção mais focalizada e atenta, bem como a exploração sistemática, para que a
proposta de trabalho feita no início não acabasse, sendo desvirtuada pelo ímpeto de
curiosidade dos alunos que, talvez, os fizesse explorar o livro sem se ater a nenhuma
informação específica.
Instiguei, assim, os sujeitos a voltarem o seu olhar para a ilustração presente na capa:
E o que é que está mostrando aquela figura ali [indicando a figura da capa]. Uma criança
respondeu dizendo que era o Seinão indo embora. Repeti a resposta do aluno e acrescentei
uma nova pergunta, aproveitando a atenção deles, voltada agora para a imagem: O Seinão
indo embora. Como é que a gente olha e diz que é não sei aonde esse lugar? Um sujeito
comentou: Um monte de montanha. Tentei insistir para que as crianças observassem a
ilustração, tentassem descrevê-la e relacioná-la com o título do livro, com a idéia de
imprecisão, mas elas estavam curiosas e mais interessadas em explorar o livro.
Apesar de a minha fala ficar sem resposta, isto é, do diálogo não se concretizar, isso
não pode ser considerado como algo negativo. O silêncio das crianças, agora, não se deve a
uma dificuldade de comunicação, mas é algo que demonstra a necessidade que elas estão
sentindo de explorar o livro, de ver de que modo a narrativa se apresenta a partir das
ilustrações, do jogo entre palavra e imagem que se a cada página. E mais do que essa
vontade de investigar, esse comportamento demonstra também independência na atividade de
leitura.
Decidi, então, que o melhor seria ir adiante e permitir que as crianças avançassem
páginas, mas sem perder o comportamento exploratório: Vamos virar a página [abrir o livro].
Encontramos alguma coisa? Apesar de obter resposta de um sujeito que disse não haver nada,
somente a cor vermelha preenchendo a página, a mediação do comportamento de observação
atenta foi difícil, pois as crianças estavam curiosas, queriam encontrar informações mais
pontuais, isto é, queriam encontrar o início da narrativa, a palavra e, principalmente, a
imagem.
A comprovação de que a curiosidade dos alunos era o motivo da falta de respostas
veio no momento em que nos deparamos com a imagem do personagem, compartilhando a
página com a palavra página 5. A partir de então, foi possível estabelecer um diálogo com
os sujeitos, analisando os códigos e as informações apresentadas nessa página. A busca de
184
informações, tanto na imagem quanto na palavra, é o comportamento demonstrado pelos
sujeitos para caracterizar o personagem protagonista que está sendo apresentado:
Med.: Quem é que apareceu aí agora?
S?: O Seinão.
Med.: Olha como é que ele é. Que características que a gente olha para ele e vê?
S?: Ele é feioso.
Med.: Além de ser feioso, ele parece uma pessoa feliz?
S?: Não, parece uma pessoa triste.
Med.: Por que será que ele é uma pessoa triste?
S7: O nariz vai lá na boca, sôra.
Med.: Ah, é um narigão comprido. E ele tem boca definida?
S?: Bem pequena.
Med.: Ah! Bem pequenininha. E ele parece uma pessoa assim que fala com todo mundo ou
parece uma pessoa tímida?
S?: Sei não.
S?: Tímida.
Med.: Tímida não é, que não fala muito. E qual era a característica mesmo dele que tem
nessa página [indicando a palavra]?
S1: Que ele era um menino zonzo.
S?: Era um menino que dizia sempre a mesma resposta.
Na primeira parte do diálogo transcrito acima, procurei mediar o comportamento
exploratório, focalizando a atenção nas características do personagem protagonista presentes
na ilustração. Além disso, tentei também auxiliar os alunos a perceberem, no modo com que
Seinão está representado, algumas características psicológicas também, mas que, no entanto,
ficaram em aberto, pois o olhar dos sujeitos estava mais atento para o aspecto físico do
protagonista. No último questionamento, provoquei os sujeitos a buscarem informações na
palavra, para complementar as idéias construídas a partir da imagem. O S1 se apresentou,
trazendo características retiradas do código verbal, seguido de outro sujeito que adicionou
uma nova idéia.
Nas páginas seguintes, 6 e 7, os sujeitos encontraram novamente o Seinão e, se
surpreenderam, com a imagem da Princesa, que domina a segunda página. A análise da figura
dessa personagem ocorreu a partir da comparação com o protagonista, evidenciando assim, na
mediação, o impulsionamento da atitude de comparação e de focalização em detalhes,
apontando dados relevantes para estabelecer a diferença entre os personagens por meio da
imagem.
Med.: E agora, quem é que apareceu aqui ?[indicando as páginas 6 e 7]
S?: A Princesa, sôra.
185
S?: Ele e a Princesa.
Med.: A Princesa. Qual a diferença dele para a Princesa? Olhem para os dois.
S?: Que ela tá feliz e ele não.
Med.: Ela está feliz e ele não. E, além disso, quem é que toma mais espaço, quem é que é
mais poderoso?
S?: Ele.
S?: A Princesa.
Med.: Qual é a imagem que nos mostra quem é o mais poderoso?
S1: A Princesa.
Med.: Qual é o gesto da Princesa?
S?: Ela tá mandando ele ir para não sei aonde.
Med.: Aham! Ela está mandando. Como é que a gente sabe que ela está mandando?
S?: Por causa do dedo dela.
Med.: O dedo dela assim, não é?! E ainda a mão na cintura e o que é que ela está... dando
risada da cara dele, não está?
S?: Ele tá triste.
S?: Ele tá com a mesma cara da primeira página.
Na primeira leitura da imagem de Seinão, os alunos se detiveram nos aspectos físicos
e pouco declararam sobre a questão psicológica, como fizeram agora para estabelecer a
diferença entre a Princesa e ele. Esse comportamento, talvez, seja reflexo da mediação
anterior, que instigou as crianças a descreverem o protagonista em termos psicológicos,
apesar de isso não ter ocorrido naquele momento e ter acontecido apenas agora. Sob a ótica da
leitura como experiência única, o estabelecimento da diferença a partir da questão da
felicidade de um e da tristeza de outro foi algo que se destacou para esse leitor em específico,
foi a leitura feita por ele a partir da imagem dos personagens.
Outros dois aspectos do trecho transcrito, também, precisam ser comentados. O
primeiro diz respeito a minha fala como mediadora no último comentário. Ao ouvir a
gravação do encontro, nesse trecho, percebo uma falha na minha intervenção. Tudo o que está
posto nesse meu comentário, O dedo dela assim não é?! E ainda a mão na cintura e o que é
que ela está... dando risada da cara dele, não está?, deveria ter sido concluído pelos sujeitos
por meio de mediação e, não, apresentado desse modo, apenas buscando a confirmação deles.
O mediador precisa tomar cuidado para não apresentar aos seus aprendizes questionamentos,
cuja resposta busque uma afirmação ou negação de algo. As perguntas mediadoras precisam
instigar o sujeito a fazer a sua leitura, construir raciocínios, a buscar argumentos próprios e
não somente afirmar ou negar a leitura/pensamento do mediador.
186
O segundo aspecto a ser analisado diz respeito à última fala de um dos sujeitos: Ele tá
com a mesma cara da primeira página. Nessa fala, é possível notar um comportamento que
vem sendo mediado ao longo dos últimos encontros, o comportamento comparativo e que
aqui acontece de modo espontâneo. Não fiz nenhum comentário ou questionamento que
instigasse o sujeito a fazer essa comparação entre a imagem inicial do personagem
protagonista, página 5, e a que se apresenta na página 6. Essa foi uma leitura individual,
demonstrando o desenvolvimento da capacidade leitora por meio da mediação de um
comportamento.
A análise, acompanhada de discussão, prosseguiu observando o livro e, nas páginas
seguintes, percebi que o olhar dos sujeitos estava ficando mais aguçado com relação às
imagens e, principalmente, a sua coloração. Para aproveitar a reação das crianças diante da
mudança de cor percebida por eles nas imagens dasginas 8 e 9, provoquei-os a estabelecer
relações virtuais ou a tentar interpretar o uso das cores.
S5: Ô sôra, por que é tudo amarelo?
Med.: Ah, olha só, a S5 está dizendo, olha, por que será que é tudo amarelo? Tem definição
aonde ele está indo? A gente sabe onde é que ele está indo?
S8: É no inferno.
Med.: Será que ele está indo para o inferno e, por isso, está ficando tudo amarelo?
S8: Aqui é amarelo fraco.
S1: Está ficando quente.
Chegar a uma conclusão ou a uma idéia final não era o objetivo dessa discussão, que
surgiu a partir do comentário da S5. Resolvi utilizar o comentário como meio de instigar as
crianças a estabelecerem relações virtuais, imaginarem, criarem idéias que pudessem explicar
a coloração a partir do contexto da narrativa. Nesse momento, não se percebe que os sujeitos
tenham alcançado um bom nível de argumentação, foi apenas uma oportunidade de
impulsionar o comportamento de parar e pensar, que a cor dominante nas cenas pode
significar algo e pode auxiliar na construção de sentido da narrativa.
Posteriormente, no diálogo, a questão da cor surgiu na tentativa de definir o espaço e
caracterizar os personagens. Esses momentos, novamente, impeliram os sujeitos a exercitarem
a sua capacidade de estabelecer relações virtuais e/ou interpretativas:
S8: Aqui aparece o inferno. [indicando a página 13]
187
Med.: Por que é que aparece o inferno?
S8: Por causa que tá tudo vermelho.
Med.: Por causa da cor vermelha. Está bem, pode ser.
Med.: A roupa do Seinão, por que será que é vermelha?
S?: Por que ele tá no inferno.
Med.: Mas desde o início ele está usando vermelho?
S?: Tá.
Med.: Ele está usando vermelho e a Princesa está usando que cor?
S?: Branco e amarelo.
S?: Ele tá chegando no inferno.
Med.: Por que será isso não é?
A pergunta ficou no ar, deixei as crianças pensando. O objetivo desse comportamento
foi o de deixá-los à vontade para, de maneira independente, iniciarem a sua caminhada como
leitores que constroem sentidos a partir da sua visão. Não uma única leitura, não uma
única interpretação, o que existem são diferentes interpretações, decorrentes dos diversos
leitores que interagem com o texto, tanto verbal quanto visual.
O comportamento comparativo foi retomado ao visualizarmos a imagem de outro
personagem, o Capeta, página 15. Provoquei os sujeitos a compararem esse personagem com
outro, por meio do seguinte questionamento: Olha a cara do diabo, parece com a de quem?
Não foi de imediato que os alunos conseguiram perceber a semelhança entre o Capeta e a
Princesa, o primeiro comportamento deles foi o de analisar a imagem do personagem e
relacionar o modo com que ele estava sendo apresentado à ação, na qual ele estava envolvido
na narrativa. Somente depois disso, é que instiguei as crianças, novamente, a buscarem um
outro personagem que estivesse representado, agindo de maneira semelhante e, assim,
compará-los. Apenas o S1, respondeu de modo espontâneo. Para que outros também
percebessem a semelhança e comparassem os personagens, sugeri a observação das
ilustrações do Capeta e da Princesa, apontada pelo S1 como parecida com o diabo.
Med.: Olha a cara do diabo, parece com a de quem?
S?: Ele tá rindo.
Med.: Rindo por quê?
S1: Por causa que o bobo do Seinão foi... caiu na trilha dele.
Med.: Caiu na trilha dele. E parece... esse sorriso parece o de quem?
S1: O da Princesa.
Med.: O da Princesa. Não parece o da Princesa, ali quando ela estava passando a perna no
Seinão lá no início? Olhem lá no início para ver se não é parecido com o da Princesa?
S8: Aham... bem parecido, sôra.
188
A leitura dos fatos, que envolveram o Capeta e Seinão, aconteceu principalmente a
partir das imagens, mas em determinados momentos da mediação os sujeitos buscaram apoio
na palavra para responderem aos questionamentos. A mediação da leitura das imagens, que
predominam na narração do que aconteceu com Seinão no tempo em que esteve no inferno,
provocou nos sujeitos também o estabelecimento de relações virtuais, de construção de
sentidos a partir das ilustrações e com base no enredo.
Med.: E aí, olha lá, o que é que o diabo está fazendo?
S8: Tá tocando violão.
Med.: Por que é que ele está tocando violão?
S?: Tá descansando, sôra.
Med.: Está descansando de quê?
[...]
S?: Tá triste [diz observando a imagem de Seinão].
Med.: E o Seinão está lá. Será que ele está triste?
S?: Tá mexendo no computador.
Med.: Ah, ele no computador que ele trabalhava organizando os arquivos. E enquanto ele
trabalhava o que é que o diabo fazia?
S8: Tocava violão e descansava.
Med.: [...] descansava, mas será que o Seinão está triste ali. Olhem ali, aquela mão dele, não
parece que ele está meio confuso? Olhem bem, voltem lá.
S?: É sim sôra, aquela mão assim [faz um barulho representando o movimento da mão que
vai e volta].
Med.: Com o que ele está confuso, será?
S8: Tá pensando.
Med.: O que é que diz na palavra?
Além de demonstrar de que modo tentei auxiliar os sujeitos a interpretar as ilustrações,
construir sentidos a partir dela, esse trecho apresenta também a importância do mediador ter
consciência de que o seu olhar sobre o texto não é o mesmo olhar do sujeito mediado. No
início do diálogo, tentava ajudar os sujeitos a construir a idéia a respeito de porque o Capeta
tocava violão e descansava, no entanto, o olhar de um dos sujeitos foi buscar a imagem do
Seinão na página ao lado. A mudança no foco de atenção, não prejudicou que a conclusão de
que o diabo descansava e tocava violão enquanto Seinão trabalhava fosse alcançada,
demonstrou apenas o caminho de leitura feito pelo sujeito que precisava ler as duas imagens
para estabelecer a interação do que elas mostravam. Permiti que o sujeito fizesse o seu
caminho, mas sem esquecer de auxiliá-lo a chegar a algum destino: Ah, ele no computador
que ele trabalhava organizando os arquivos. E enquanto ele trabalhava o que é que o diabo
fazia? O mediador precisa ficar atento às falas dos sujeitos, não desprezá-las, pois elas
mostram o caminho de leitura que eles estão fazendo e, também, saber como aproveitá-las
189
para que esse caminho leve o leitor mirim a algum ponto que o auxilie a construir sentidos a
partir de sua leitura.
Em relação à leitura da imagem, os sujeitos não demonstraram nenhuma dificuldade
para estabelecerem sentidos a partir do que viam foi uma mediação bastante tranqüila. Como
se pode perceber no trecho transcrito, a leitura desse código não é algo que precisa ser
aprendido pelos sujeitos é, apenas, algo que necessita ser proposto aos leitores mirins.
Med.: Olhem ele [Seinão], será que a imagem dele nessa página aqui é de alguém que está
sabendo fazer as coisas?
S?: Huh, huh [negando].
S?: Não, sôra ele tá pensando assim [copiando o gesto de Seinão].
S?: Tá escrevendo.
[...]
Med.: Pensando e escrevendo. E a cara dele é de uma pessoa tranqüila?
S?: Cansado.
Med.: E agora? Olha lá!
S8: Ali ele tá dormindo.
Med.: Dormindo, e ele [Seinão]?
S1: Pensando lá, escrevendo.
Med.: Pensando como alguém que está tranqüilo ou pensando como alguém que não está
sabendo o que fazer?
S3: Como alguém que não está sabendo o que fazer.
Em determinado momento do diálogo mediado, no qual auxiliei os sujeitos a
construírem suas interpretações, eles foram buscar apoio na palavra para responder alguns
questionamentos. Esse comportamento evidencia a interação da palavra com a ilustração que,
espontaneamente, foi utilizada pelos sujeitos na sua leitura.
Med.: Do que é que o diabo está rindo?
S5: Esse tipo de trabalho não acaba nunca.
Med.: Que tipo de trabalho que não acaba nunca que o Seinão está fazendo?
S?: Organizando pecados e pecadores.
Med.: Organizando pecados e pecadores. E aí, qual foi a sorte?
S?: A sorte foi uma bela tarde o diabo acordou com saudade das novidades da sua seção e
resolveu dispensar o menino, com um embrulho.
A leitura da palavra associada à imagem, de modo a construir um sentido, foi algo
utilizado pelos sujeitos apenas por meio dos meus questionamentos, que utilizavam
expressões presentes no código verbal, as quais eles logo associavam ao que haviam lido
190
nesse código. Não precisei dizer a eles, leiam a palavra, apenas provoquei-os a ler, auxiliei-os
a buscar no código verbal a informação necessária para complementar a idéia presente na
imagem. Essa noção de que a palavra complementa, enriquece a imagem e vice-versa era
usada pelos sujeitos ao longo do diálogo de modo intuitivo, espontâneo, mas achei necessário,
em um momento, mostrar-lhes isso de modo que eles percebessem e começassem a ter um
comportamento metacognitivo, isto é, atento aos processos de leitura executados por eles para
alcançarem a compreensão do que estavam lendo.
Med.: [...] O diabo descobriu a embrulhada que o Seinão tinha feito?
S?: Aham, sôra. Ele fez assim oh, sôra [repetindo gesto da imagem].
Med.: A gente sabe isso... vocês souberam que o diabo tinha descoberto isso na semana
passada quando leram a história ou quando olharam aqui?
S1: Semana passada.
Med.: Oh, vamos ver o que é que diz ali na palavra?
S (todos): E resolveu... bem, antes que o diabo descobrisse que ele também tinha aprontado
uma embrulhada com os tais arquivos... pernas para que te quero! [fizeram uma leitura em
coro].
Med.: Diz ali, o diabo descobriu?
S5: Não.
Med.: Onde é que diz que o diabo descobriu, nas palavras ou nas figuras?
S?: Nas figuras.
S?: Antes que o diabo descobrisse.
Med.: Antes que o diabo descobrisse, não diz o diabo descobriu...
S?: Ele bateu pernas pra que te quero.
Med.: Ele, pernas para que te quero, onde é que diz que o diabo descobriu, nas palavras ou
nas figuras?
S1: Aqui, sôra [apontando a imagem do Capeta].
Med.: Na figura. E como é que a gente sabe que o diabo descobriu, aqui [indicando a figura]?
S5: Porque ele tava mexendo no computador ...
Med.: Ele foi mexer no computador e a cara dele é de bons amigos ou é de péssimos amigos?
S8: Péssimos.
O trecho transcrito demonstra de que modo mediei os sujeitos para que percebessem
que, mesmo instintivamente, estavam lendo a imagem e construindo sentidos a partir do que
viam na ilustração. A minha intenção era auxiliá-los a perceber que a imagem, tanto quanto a
palavra, traz significados que devem ser descobertos e usados no processo de leitura.
A comparação decorrente da percepção clara e precisa dos detalhes foi trazida
novamente pela minha mediação, quando começamos a ler o final da história. A volta de
Seinão ao reino, com o embrulho para Princesa, provoca uma inversão de características nos
dois personagens. No diálogo mediado, que surgiu a partir dessa inversão, tentei auxiliar os
191
sujeitos a perceberem essa diferença, comparando e observando atentamente as ilustrações
que apresentavam esses dois personagens.
Apesar de ter tentando induzir o comportamento comparativo e a percepção das
mudanças no personagem protagonista dizendo aos sujeitos: E olha o Seinão, mudou a
cara do Seinão? A primeira resposta obtida não deixa claro se o meu objetivo foi atingido ou
não, pois a criança apenas declarou que havia mudado, não trouxe nenhum argumento ou
idéia complementar a sua resposta. Provoquei-os a comparar as ilustrações do personagem no
início e no final, onde estávamos olhando naquele momento: Olhem para o Seinão na
primeira página e olhem para o Seinão aqui. Olha qual é a diferença? Um sujeito declarou:
Agora ele tá feliz. A idéia de felicidade era uma interpretação mais concreta do que a anterior,
assim como o sorriso no rosto, que foi apontado por outro sujeito como algo que Seinão não
tinha no início e agora tem.
Até aqui, a comparação e a observação detalhada estavam acontecendo apenas com
base em um personagem, tentei fazer com que o olhar dos sujeitos se voltasse para a Princesa
e percebesse que ela também havia mudado: E quem é que está sem boca? A resposta não
veio imediatamente, mas vários sujeitos acabaram por responder que ela [a Princesa] e que,
além disso, agora ela estava triste e envergonhada e, Seinão não tinha mais essas
características.
A consolidação de raciocínios que, anteriormente, haviam sido construídos pelos
sujeitos — a questão da alternância de características entre os personagens no início e no final
da história aconteceu a partir da leitura de algumas imagens. Não houve necessidade de
buscar apoio na palavra, apenas a comparação entre as ilustrações dos personagens foi
suficiente para que os sujeitos reforçassem idéias elaboradas no primeiro encontro. Uma
leitura mais atenta do código verbal, nesse caso talvez fosse necessária se os sujeitos não
tivessem lido separadamente a palavra, como aconteceu nesse estudo.
A leitura mediada do livro proposta, nesse encontro, motivou, além de uma mudança
de rotina, a oportunidade de os sujeitos explorarem o livro mais atentamente, exercitando
também esse comportamento. Por isso, os sujeitos acabaram se deparando com algo que nos
outros dois livros não havia sido notado: a ficha catalográfica. Trata-se de um elemento que
faz parte do livro e não da estrutura narrativa, mas que um leitor também precisa conhecer e
192
saber o que significa. Aproveitando essa descoberta, feita na última página, expliquei
brevemente aos sujeitos o significado de cada um dos elementos que compõem a ficha.
Depois dessa explicação, as crianças pediram para ler a história alternando turnos a cada
ponto final para que todos participassem, até então apenas eu lia a história no encontro com o
código verbal. Ao final desse encontro, as crianças quiseram ouvir as suas próprias vozes
lendo a história. Procurei não corrigir nem interromper a leitura, apenas auxiliei a coordenar o
momento de alternância.
4.4.6.2 Algumas considerações: ampliando e modificando o caminho
A mudança de rotina, proposta no segundo encontro, com essa terceira narrativa,
trouxe ao estudo uma nova visão do comportamento dos sujeitos. A exploração guiada do
livro apesar de propor uma idéia contrária à independência que se defende como
comportamento de um leitor competente ofereceu ao estudo a possibilidade de observar de
que modo a mediação executada até esse momento havia auxiliado os sujeitos a
construírem a sua individualidade como leitores. Delineou-se, portanto, um paradoxo no qual
a falta de independência auxiliou na percepção do grau de autonomia do sujeito leitor.
O caminho da mediação foi modificado e ampliado, mudei o meu comportamento
mediador e, assim, pude também observar a atitude dos sujeitos mediados e notar algumas
mudanças. A transformação nas reações dos indivíduos foi o foco nessa terceira etapa do
estudo, principalmente, na leitura dos dois códigos associados.
De uma atitude mediadora que, inicialmente, precisava ser enfática nas perguntas e
segurar firme na mão do leitor mirim para conduzi-lo pelos caminhos da narrativa verbal e
imagética, passei a ser, aos poucos, conduzida por eles. Uma alternância de papéis, a fala do
mediador não é mais o único caminho para ler o texto, o olhar do leitor começa a tornar-se
independente construindo e ampliando os caminhos no interior do texto os quais precisam ser
seguidos também pelo mediador para conseguir acompanhar os mediados. O foco do
mediador não é mais o único ou o principal, o leitor mediado começa a escolher a direção que
quer tomar e, assim, novas trilhas surgem.
193
4.4.7 Raposa: leitura mediada da palavra
No sétimo encontro de leitura mediada, iniciamos a leitura da quarta narrativa,
Raposa. Assim como anteriormente, os sujeitos tiveram contato apenas com o código verbal.
A discussão mediada serviu para que as crianças delimitassem alguns elementos da narrativa,
tais como, personagens e suas relações, enredo, tempo e espaço. A leitura da linguagem
verbal, portanto, proporcionou aos sujeitos um encontro com o contexto narrativo dessa
história.
Com relação às ações mentais propostas por Feuerstein, sempre desenvolvidas ou
impulsionadas ao longo do diálogo, pode-se dizer que, nesse encontro, os sujeitos
demonstraram estar com algumas delas desenvolvidas, não havendo necessidade de que as
mediasse, isto é, precisasse desenvolvê-las ou impulsioná-las de maneira tão intensa. Esse
desenvolvimento mental fez com que o diálogo fluísse naturalmente. Percebo, ao analisá-lo,
que a minha posição como mediadora foi a de propor questionamentos os quais foram
respondidos pelos sujeitos sem dificuldade, fluindo, sem muitas idas e vindas para que os
sujeitos pudessem construir a sua compreensão. A discussão sobre os personagens e suas
relações na construção do enredo narrativo, bem como a delimitação do tempo e do espaço
desencadeou várias ações praticadas pelos sujeitos, sendo algumas bem evidenciadas: a
percepção de detalhes e transformações de modo preciso e claro, a compreensão de conceitos,
a aplicação de duas ou mais fontes de informação para a comparação de elementos, o uso do
raciocínio lógico e, principalmente, a comunicação sem bloqueios, de forma clara, precisa e
argumentativa.
Antes da leitura da narrativa, a partir do código verbal, iniciei a conversa,
questionando-os sobre o que é que eles sabiam sobre uma raposa. Alguns responderam que
ela é um animal carnívoro. Procurando direcionar para o aspecto literário, isto é, a raposa
como personagem de uma história, perguntei: Nas histórias, a raposa normalmente é
boazinha ou é ? As opiniões ficaram divididas e, nesse momento, não tentei desfazer essa
situação para evitar conduzir os sujeitos a conclusões antes de lerem a narrativa. Propus
apenas que alguém, que soubesse, nos contasse uma história sobre raposa.
A história contada foi sobre uma raposa e uma lebre e, segundo o relato do sujeito,
nessa história a raposa convidava uma lebre para ir a sua caverna, dizendo que haveria uma
194
festa, mas o que ela queria mesmo era pegar e comer a lebre. Não questionei a existência ou
não dessa fábula, pois não era esse o objetivo. No entanto, percebo que os sujeitos, mesmo
anteriormente, tendo apresentado opiniões divergentes com relação à maldade ou bondade da
raposa, possuiam no seu conhecimento prévio a noção de que a raposa é um personagem
que procura sempre se valer da sua astúcia para capturar algum outro animal. A fala dos
sujeitos não explicitou a maldade da raposa, mas a idéia estava presente.
Continuei o diálogo, porém, questionando os sujeitos a respeito da hierarquia de
personagens na estrutura narrativa, isto é, da possibilidade do personagem mau ser o
principal. No início, os sujeitos confirmaram essa idéia. Analisando a minha fala, acredito
que, talvez, tenha sido um erro no modo com que propus a pergunta ou, desconhecimento dos
sujeitos a respeito da noção de que, normalmente, o personagem principal é sempre o que tem
como característica a bondade, por exemplo. Além de terem confirmado a possibilidade de o
personagem mau ser o principal da história, os sujeitos trouxeram, como argumentação, a
idéia presente na narrativa anterior, na qual houve uma modificação no modo de agir dos
personagens Seinão e Princesa.
Na tentativa de que todo esse diálogo não se tornasse uma grande dúvida ou divisão de
opiniões, propus um último questionamento a respeito de qual personagem tinha melhor sorte
no final da história. Prontamente, os sujeitos responderam que seria o personagem bondoso. A
partir dessa idéia perguntei: Então, qual é o principal [o bondoso ou o maldoso]?, e obtive
como resposta que seria o bonzinho. A idéia de que diferença na hierarquia dos
personagens, de acordo com o modo com que eles agem na história foi, então, deixada de lado
para que a leitura fosse iniciada.
Até aqui toda a discussão ocorreu a partir do conhecimento prévio dos alunos,
provocando-os a usarem conceitos e idéias de modo espontâneo, bem como estabelecerem
relações virtuais para argumentarem. A leitura da história, a partir da linguagem verbal, deu
início a uma discussão baseada no texto e nas informações contidas nele.
4.4.7.1 Caracterização do enredo
Após a leitura da história, o primeiro questionamento que fiz às crianças foi: Essa é
uma história triste ou alegre? Não houve dúvida na fala dos sujeitos que, em coro,
195
responderam ser uma história triste. Como mediadora, não podia me contentar apenas com
uma resposta sem argumentação, por isso questionei-os a respeito do porquê dessa história ser
triste.
O silêncio não foi a resposta que obtive, mas um comportamento diferente por parte
dos sujeitos. Alguns se apresentaram para responder, no entanto, percebo ao ouvir a gravação
que a resposta foi construída coletivamente, como se eles estivessem elaborando a sua
argumentação, mas evitando o silêncio para mostrar que eram capazes de responder ou que
sabiam a resposta. Apesar de apenas um dos sujeitos ter sido identificado por mim, isso não
significa que apenas dois sujeitos se pronunciaram, fica claro na gravação que essa resposta
foi comunicada e construída por pelo menos cinco sujeitos. Na transcrição, o diálogo ficou
assim:
Med.: Por que é que ela [a história] é triste?
S?: Porque...
S?: Por causa que ela...
S?: Queimou as asa dela.
S8: Uma é cega de um olho.
Depois dessa resposta, seguiu-se uma nova pergunta, mas que não foi colocada por
mim. Um dos sujeitos questionou: O que é que é uma gralha? Esse foi um comportamento
novo nos encontros, até então os sujeitos tinham dúvida, mas dificilmente procuravam
resolvê-las questionando a mim ou ao grupo. Era sempre necessário que eu descobrisse essas
dúvidas, o que acabava acontecendo durante o diálogo, quando eu percebia que uma resposta
estava mais complicada de ser alcançada, porque um ou mais sujeitos não haviam entendido
algo. Tentei, então, explicar o que é uma gralha e a discussão a respeito do enredo continuou.
A conversa a respeito da tristeza como característica da história havia ficado apenas no
nível das características dos personagens a asa queimada de um e a cegueira do olho de
outro. Os sujeitos não haviam apontado o problema da traição, da maldade ou da solidão que
são bastante fortes nessa narrativa. Por isso, questionei-os a respeito de outros motivos que
pudessem tornar essa história triste. O fato de o final da história acontecer no deserto foi
apontado como um outro motivo para a tristeza da história.
196
Ao falarmos sobre o desfecho da história um outro questionamento surgiu de um dos
sujeitos que disse: Essa história não tem fim, sôra? Não respondi, mas fiz outra pergunta:
Não tem fim, tu achas? Outro sujeito respondeu que achava que não tinha fim. Perguntei
então: Como é que é o final? S1, muito atento ao texto verbal, comentou: faltando uma
frase. O que estava faltando na opinião deles foi o que questionei, tentando atrair a atenção de
todos para a conversa, mas não obtive sucesso.
Após a caracterização dos personagens, interroguei os sujeitos a respeito de como
havia iniciado o problema nessa narrativa: [...] o problema dessa história começa então com a
chegada de quem? Os sujeitos se dividiram em suas respostas, alguns apontaram a raposa e
outros a gralha, apenas o S1 disse com certeza que seria a raposa. Na tentativa de resolver
esse impasse perguntei: O problema dessa história começa quando?, desviando a atenção do
personagem e auxiliando os sujeitos a focalizarem no momento em que a narrativa começa a
tomar um rumo problematizante, saindo da normalidade. A partir desse questionamento, uma
criança disse que seria a chegada da raposa o início do conflito.
A sondagem que fiz em seguida foi sobre o que havia acontecido com a chegada da
raposa, o que ela havia começado a destruir a partir desse momento. Os sujeitos então
disseram que seria a amizade dos outros dois personagens, porque ela era invejosa e tinha
ciúmes. Nesse momento, uma das crianças demonstra que está pensando sobre a narrativa
lida, pois coloca em dúvida os fatos apresentados ao dizer: Mas se a gralha que falou pro
cachorro que a raposa não amava ninguém e tinha medo da raposa, por que é que ela foi
com a raposa? Não respondi, mas apresentei outros questionamentos de modo que a resposta
viesse dos outros sujeitos para que eles buscassem argumentar e solucionar a dúvida do seu
colega:
Med.: Pois é, não é. Por que será que ela se deixou levar? Qual foi o argumento, a idéia da
raposa que fez com que ela... [não conclui o questionamento, fui interrompida pela fala do
sujeito].
S?: Porque ela falou que ela ia... parece voando.
S?: Voa.
S?: E o cão tava certo.
S?: Ia voá mais rápido.
S?: Porque ela não amava ninguém, sôra. No final não amou mesmo.
197
Mesmo que algumas idéias pareçam desconexas, é possível perceber nesse diálogo
uma chuva de idéias que buscam argumentar e solucionar as minhas dúvidas e as do colega.
Alguns falam sobre a gralha, outros trazem informações sobre a raposa, mas todos tentam
explicar porque a gralha acabou sendo convencida pela raposa a trair Cão. O crescimento
comunicativo e o desenvolvimento da compreensão desses sujeitos é algo notável.
4.4.7.2 Caracterização dos personagens e de suas relações
O diálogo sobre os personagens iniciou pela definição de quem seriam eles: Cão,
Gralha e Raposa. Como mediadora deveria ter proposto aos sujeitos que eles escolhessem por
qual deles começaríamos a conversar primeiro, buscando caracterizá-lo. No entanto, acabei
conduzindo todos os sujeitos pelo meu próprio ponto de vista e disse: A raposa, o cão e a
gralha. Está bem, vamos pegar um de cada vez. O que é que a gente sabe da gralha? Esse era
o meu ponto de partida para iniciar a análise, o dos sujeitos, provavelmente, seria outro e isso
foi ignorado por mim durante a mediação.
A gralha foi, então, o ponto de partida. Dois sujeitos responderam ao meu
questionamento a respeito do que eles sabiam sobre ela: o primeiro dizendo que ela não tinha
uma asa e, o outro, modificando essa idéia ao declarar que a gralha havia perdido uma asa. A
diferença entre as idéias expostas pelos sujeitos não está apenas no verbo, ter ou perder, mas
na precisão com que a informação foi apresentada. O primeiro sujeito retirou do texto apenas
uma parte da informação, enquanto o segundo preocupou-se em ser mais preciso,
apresentando uma idéia mais próxima do que está posto na narrativa.
Não deixei que essa diferença fosse ignorada e questionei: Ela não tem uma asa ou ela
perdeu a asa? S8 declarou que a gralha havia perdido a asa nas cinzas quentes que a
queimaram. A caracterização física ou, a apresentação do aspecto físico mais importante da
gralha, havia sido feita. Instiguei os sujeitos a apresentarem algumas características
psicológicas a fim de que trouxessem para a discussão o modo com que a gralha interagiu
com os demais personagens ao longo da narrativa.
Um sujeito, de modo espontâneo, trouxe a questão da traição da gralha em relação ao
cão. Questionei-os por qual motivo a gralha era amiga do cão. A partir da ótica da gralha, um
198
sujeito respondeu: Porque ela dizia que ela era o olho do cão. S1 complementou,
apresentando o ponto de vista do cão dizendo: E o cão era a asa dela.
Essa fala trouxe para o diálogo a caracterização de outro personagem, o cão. A
particularidade física mais marcante desse personagem, a cegueira de um olho, foi a primeira
apontada pelos sujeitos. No entanto, o mais importante nesse momento da conversa não foi
apenas a apresentação desse aspecto físico do personagem. O momento que deve ser
ressaltado nesse diálogo é aquele no qual um dos sujeitos trouxe uma dúvida e que foi
mediada por mim e, também, por um outro sujeito como se pode perceber na transcrição
abaixo:
Med.: O Cão, o que é que a gente sabe dele?
S?: Que ele é cego de um olho.
Med.: Que ele é cego de um olho.
S?: Que é um cachorro.
Med.: Que é um cachorro.
S6: Sôra, nunca vi cão na mata.
S?: Que ele corre.
Med.: Pode ser um cão da mata, um cachorro do mato.
S?: Que ele corre bastante.
S?: O pai dele pode ser cachorro e a mãe pode ser lobo.
Nessa conversa a respeito do cão, nota-se o quanto os sujeitos estão à vontade,
expondo a sua opinião, mesmo que ela acrescente apenas uma informação óbvia ou repetida.
Diferente do comportamento demonstrado anteriormente, os sujeitos não se contentam com as
falas de seus colegas, eles querem também colocar a sua opinião. E, principalmente, não
aceitam apenas a minha explicação, como é o caso do S6 que complementa a minha
explicação, apresentando um novo argumento para tentar convencer seu colega de que é
possível haver um cachorro na mata.
A caracterização psicológica de Cão foi o aspecto que surgiu na continuação da nossa
conversa. As idéias que surgiram para delimitar o perfil desse personagem foram as de que ele
era um animal bondoso e que havia salvado a gralha. Houve um comentário bastante
espontâneo: A gralha é uma mal agradecida; o que mais uma vez representa a mudança de
comportamento dos sujeitos em relação à primeira narrativa, demonstrando um maior
desenvolvimento da compreensão do texto ao apresentarem idéias próprias e espontâneas.
199
A raposa foi a última personagem a ser definida por nós. Mais do que descrevê-la
fisicamente, a nossa conversa trouxe o modo com que ela se relacionou com os outros dois
personagens no desenrolar dos fatos. Ao serem questionados a respeito do que sabiam sobre a
raposa, um primeiro sujeito declarou que ela era má, outro disse que ela queria matar e um
terceiro apresentou a idéia de que ela queria comer, provavelmente, um dos outros dois
personagens. A partir dessa pressuposição questionei esse último sujeito: Será que ela queria
comer a gralha? Obtive como resposta um não de apenas uma das crianças. Por isso resolvi
insistir nessa idéia, reformulando a pergunta: Se que era esse o objetivo dela, comer a
gralha?
Duas idéias surgiram a partir desse questionamento, um dos alunos disse que achava
que realmente o objetivo da raposa era comer a gralha, enquanto que outro argumentou: Não,
porque ela levou ela no deserto para correr. Deixou e saiu. A compreensão do real
objetivo da personagem estava sendo construída aos poucos pelos alunos, de uma idéia
totalmente afastada dos fatos da história, os sujeitos estavam aos poucos se aproximando de
uma interpretação mais condizente com o que foi narrado.
Parti da idéia de que a raposa havia levado a gralha para o deserto e abandonado, para
assim tentar retirar dos sujeitos uma outra interpretação e fiz a seguinte pergunta: Mas será
que era esse o principal objetivo dela, deixar a Gralha abandonada no deserto? S1, então,
respondeu que o objetivo real da raposa seria tirar a gralha do cachorro. E outro sujeito ainda
acrescentou que a raposa queria trai o cachorro.
O meu questionamento seguinte abordou a questão da inveja: Qual era a maior inveja
será que ela tinha da gralha e do cão? Apesar de ser um questionamento pertinente no
contexto da conversa e, principalmente, com relação à narrativa, a inveja não surgiu a partir
das falas dos sujeitos. O comportamento correto como mediadora seria ter auxiliado os alunos
a perceberem esse sentimento nas intenções da raposa. Mesmo assim os alunos responderam à
pergunta dizendo que a raposa tinha inveja era da amizade que havia entre os dois. Essa
resposta demonstra que apesar de o sentimento de inveja ter surgido na conversa por meio da
minha fala, os alunos haviam compreendido a existência dele na relação entre os
personagens.
200
A compreensão de que a raposa não tinha amigos e também não amava ninguém e, por
isso, tinha inveja da amizade entre os outros dois personagens, não foi difícil de ser alcançada.
Os sujeitos apenas se confundiram quando os questionei se o cão acreditava na raposa, isto é,
confiava que ela não seria má. A primeira resposta foi de que o cão não confiava na raposa.
Procurei mediá-los, então, no sentido de recuperarem no texto informações que provassem a
confiança demonstrada pelo cão em relação à raposa.
Perguntei: Mas ele [o cão] não mandou a raposa entrar para dentro da casa dele? S3
ao ouvir essa indagação, imediatamente, respondeu a pergunta anterior: Confia na raposa sim
e, o S6 ainda complementou: Confia, porque ele é uma pessoa muito boa, sôra. Essa rapidez
com que os sujeitos estão compreendendo alguns fatos da trama, além de demonstrar que a
minha mediação, isto é, a minha fala está deixando de ser tão necessária como era
anteriormente, comprova também o desenvolvimento desses alunos em relação ao seu
domínio da leitura e, principalmente, da compreensão daquilo que lêem.
O desenvolvimento e a facilidade demonstrada pelos alunos na mediação da leitura
dessa narrativa pode ser conseqüência de dois fatos. O primeiro, seria o de que essa é a
terceira narrativa lida por eles por meio de mediação e, isso estaria auxiliando os sujeitos a se
desenvolverem. O segundo fato seria o de que nessa narrativa os personagens são animais,
mas os sentimentos envolvidos são humanos, estão presentes no dia-a-dia de qualquer pessoa.
Arrisco-me a confiar mais na primeira hipótese, porque, mesmo se tratando de sentimentos
humanos, deve se considerar que os sujeitos envolvidos nessa mediação são crianças de no
máximo 12 anos e, principalmente, o sentimento de traição, bastante forte nessa narrativa, não
é algo que talvez tenha sido vivenciado por elas, enquanto o mesmo não se pode afirmar
seguramente em relação à amizade e à inveja
Ainda sobre os personagens, questionei os sujeitos a respeito da importância deles,
dando como exemplo, a representação de um deles na capa. O diálogo mostra o quanto os
sujeitos estão à vontade, expondo opiniões, sendo capazes com naturalidade de estabelecerem
relações, usarem informações pertinentes para argumentar que conseguiram focalizar onde
seria necessário, para exporem suas idéias:
Med.: Qual desses personagens para vocês é o mais importante, por exemplo, que poderia
estar até na capa do livro?
201
S?: O Cão. [muitos sujeitos falaram ao mesmo tempo essa resposta]
Med.: Por quê?
S1: Por causa que ele salvou a Gralha.
S?: Porque ele é o principal, sôra.
S?: O melhor.
S?: Aceitô a raposa na casa dele.
Med.: Salvou a gralha, aceitou a raposa na casa dele, fez a gralha sentir que...
S?: Tava voando.
Med.: Então esse tinha que estar na capa? Está bem.
4.4.7.3 Definição do tempo e do espaço narrativos
O aspecto espaço-temporal foi algo pouco discutido na leitura mediada dessa
narrativa. No entanto, é importante trazer alguns trechos do diálogo que abordou essas
questões, porque eles ajudam a ressaltar o desenvolvimento da capacidade leitora dos sujeitos.
Trabalhei a questão temporal a partir da amizade entre Cão e Gralha: será que a
amizade da gralha e do cão é uma amizade curta ou uma amizade de muito tempo? O que é
que vocês acham, de acordo com a história? As primeiras respostas disseram que a amizade
entre os personagens existia pouco tempo. Essas respostas não trouxeram nenhuma
argumentação, foram apenas intuitivas. Instiguei-os então a usar o texto como fonte de
argumentação, focalizando, na temporalidade em busca de informações que auxiliassem a
determinar de modo mais preciso o tempo nessa narrativa. Perguntei, então, como o texto
apresentava o tempo, ou em que momentos o cão corria com a gralha. Um sujeito respondeu
usando a expressão temporal presente no texto: no inverno e no verão. Retomando a questão
da quantidade de tempo apresentada inicialmente questionei: No inverno e no verão, isso é
pouco ou muito tempo? A resposta veio de modo bastante espontâneo: Bah! É tempo, sôra.
Não segui abordando nenhum outro aspecto temporal e desviei a discussão para o
espaço narrativo:
Med.: [...] então essa história se passa numa quantidade de tempo boa. E aonde, em que lugar
que acontece, será que é no mesmo lugar?
S?: No deserto.
S?: Na mata.
Med.: Na mata...
S?: E na caverna.
Med.: E na caverna, não é?!
S?: A caverna não fica na mata, sôra?
202
Mais do que demonstrar que os sujeitos foram capazes de identificar todos os espaços,
onde os fatos narrativos acontecem, esse trecho apresenta dois aspectos importantes. O
primeiro aspecto a ser ressaltado é o de que eles estão mais atentos ao que estão lendo e,
principalmente, à conversa que está acontecendo. O questionamento final feito pelo sujeito no
diálogo, transcrito acima, demonstra esses aspectos, pois esse sujeito não está se contentando
com uma informação errada e, por isso, coloca a sua dúvida. Além disso, esse diálogo
também é representativo da facilidade com que as crianças estão identificando elementos no
texto e comunicando-os sem receio.
4.4.8 Raposa: leitura mediada da palavra associada à visualidade
O segundo encontro, para a leitura da narrativa Raposa, agora no livro, aconteceu com
uma diferença de quase quinze dias em relação ao primeiro, devido a algumas atividades
realizadas com a turma nos dias em que era possível acontecer os encontros de leitura
mediada. Por isso, iniciamos o encontro recordando os personagens e fatos principais da
história lida anteriormente. Os sujeitos não tiveram dificuldade em recordar e recontar os
principais fatos da narrativa.
A exploração do livro foi feita assim como na narrativa anterior de modo
conjunto. Inicialmente, auxiliei os sujeitos a voltarem o seu olhar mais para a imagem e,
posteriormente, buscamos analisar alguns aspectos do modo com que o verbal está disposto
nas páginas e, também, encontrar nesse elemento o complemento para interpretar algumas
ilustrações. O modo com que os sujeitos interagiram, comigo e entre si, é um dos pontos altos
desse encontro que demonstra, acima de tudo, o seu desenvolvimento comunicativo desde o
primeiro encontro de leitura mediada, realizado nesse estudo. Além disso, é possível notar que
os sujeitos estão mais atentos à leitura e, principalmente, à interpretação das imagens.
Por estarem mais comunicativos, expondo mais suas idéias, ao analisar esse encontro,
percebi que a minha voz, como mediadora, aos poucos deixa de existir com tanta intensidade
como se fazia necessário anteriormente. Os questionamentos não precisam mais ser repetidos
nem reformulados com tanta freqüência, pois de maneira quase imediata surgem respostas
vindas de mais de um sujeito, o que possibilita uma maior espontaneidade ao diálogo.
Característica essa, também percebida no uso das ações mentais que pouco tiveram que ser
203
mediadas e, que, por terem sido usadas de modo tão espontâneo, ficam difíceis até mesmo de
serem apontadas ao longo do diálogo.
Dessa forma, as categorias de análise para esse encontro diferem, novamente, das
categorias usadas nos encontros anteriores. As duas categorias que emergem para a
organização e apresentação dessa análise são: leitura da imagem em interação com a palavra e
leitura da palavra em interação com a imagem, sendo que esse segundo aspecto surge apenas
no final do encontro como meio de auxiliar os alunos a perceberem algumas particularidades
do modo com que a linguagem verbal é apresentada na constituição dessa narrativa e,
também, para tentar retomar com os sujeitos alguns elementos da imagem que ficaram
obscuros no primeiro contato apenas com a ilustração. A categoria de análise principal nesse
encontro foi, sem dúvida, a leitura da imagem em interação com a palavra, auxiliando o leitor
a reler a narrativa, agora sob a ótica imagética, aplicando toda a estrutura narrativa
estabelecida a partir da leitura e discussão realizadas no encontro anterior.
4.4.8.1 Leitura da visualidade em interação com a palavra
A capa do livro dessa narrativa subverte a idéia de que o personagem principal ou o
personagem bondoso é o que é escolhido para nela estar representado. Nessa narrativa, a
raposa, personagem antagonista, surge na capa, atraindo o leitor para a leitura. No encontro
com o verbal provoquei os sujeitos a dizerem qual dos personagens estaria representado na
capa, segundo a opinião deles. Nenhum sujeito afirmou que poderia ser a raposa Os sujeitos
se dividiram entre o cão e a gralha, predominando o primeiro personagem, na opinião das
crianças.
Nesse encontro, antes de entregar aos sujeitos os livros para a exploração, retomei o
questionamento: Ah, vocês lembram que eu perguntei para vocês quem é que deveria estar na
capa do livro? As respostas, novamente, se dividiram. Talvez, um sujeito tenha percebido os
livros que estavam sobre uma mesa atrás de onde o grupo estava reunido e, por isso,
respondeu, com bastante certeza, que o personagem representado na capa era a raposa. Outro
disse que seria a gralha e, S6 disse, repetindo a idéia do encontro passado, que seria a gralha
ou o cachorro. Aproveitando essa divisão de opiniões tentei instaurar a dúvida para que os
sujeitos buscassem argumentos para defender a sua idéia. Questionei primeiro o sujeito que
204
disse ser a raposa: Por que tu achas que é a raposa? Ele não respondeu, ao invés disso, outro
sujeito respondeu com mais firmeza que era a raposa o personagem apresentado na capa.
Tentei provocar a dúvida, novamente: Mas é a a que geralmente aparece? Insisti
na dúvida, auxiliando os sujeitos a fazer relação com um fato do dia-a-dia: Mas quem é que
geralmente aparece na capa do livro? Qual é o personagem que aparece na capa do cd da
novela? O bonzinho ou o maldoso? A esse questionamento um sujeito respondeu que seria o
personagem bondoso. Devolvi-lhes uma nova pergunta: Então, quem é que poderia estar na
capa? A idéia do encontro anterior foi retomada pelos sujeitos que dividiram suas opiniões,
mais uma vez, entre a gralha e o cachorro.
Mediando a seleção de informações relevantes, ainda questionei, mais uma vez: Os
dois [a gralha o cachorro] ou um? Um sujeito respondeu que apenas o cachorro, perguntei
a ele o porquê dessa sua escolha. S3 disse que a gralha havia sido má. Ainda fiz mais uma
pergunta, agora para finalizar: Qual é o título da história? A resposta veio acompanhada da
entrega dos livros e da vibração dos sujeitos, que afirmaram ser a raposa o personagem
representado na capa.
A leitura da imagem da capa foi o passo seguinte. No diálogo que se desenvolveu a
partir da capa, é possível notar a facilidade demonstrada pelos sujeitos para interpretar a
imagem, para expor suas idéias a respeito do que estão vendo, é claro, que com base na
narrativa verbal lida anteriormente.
Med.: O que é que chama mais atenção da gente, já, direto?
S?: O olho.
Med.: O que é que tem esse olho?
S?: Que ela é má.
S?: O olho brilhando.
S?: De “marvada”, sôra.
Med.: O olho...
S8: A cara de safada.
O meu questionamento inicial buscou mediar a focalização dos sujeitos em um ponto
específico de análise. Em seguida, tentei auxiliá-los a aplicar o conceito correto, isto é, a
caracterizar o olho da raposa de acordo com a sua representação. Apenas um dos sujeitos
participantes desse diálogo se deteve apenas na característica concreta, o brilho dos olhos,
205
enquanto os outros ultrapassaram o nível da apreciação e interpretaram a imagem, fazendo
relações com o modo de ser da raposa e suas ações no desenrolar da história.
A espontaneidade na interpretação das imagens teve continuidade quando abrimos o
livro e nos deparamos com a floresta vermelha. Não foi necessário nem que eu fizesse
qualquer questionamento, um sujeito declarou: O inferno. Essa foi a sua leitura diante da
floresta toda representada em vermelho que se abria diante dos olhos deles. Para dar
continuidade ao diálogo e denominar aquele local não apenas a partir da leitura do primeiro
sujeito, indaguei a todos o que nós estávamos encontrando ali na contracapa interna e na
primeira página. A resposta foi: A floresta.
Tive que interromper o diálogo para mediar a impulsividade de alguns sujeitos que
insistiam em seguir adiante na exploração do livro, virando páginas e não acompanhando o
grupo. Ao retomar o questionamento anterior, outro sujeito surgiu com uma nova
possibilidade, ali estaria o deserto. Respeitando um comportamento mediador comentado
anteriormente, ao invés de negar a resposta da criança propus a dúvida para que todos, em
conjunto, chegassem a uma conclusão: É um deserto? É o deserto seco ou é a floresta? As
opiniões se dividiram e, considerando que não havia necessidade de buscar o consenso,
que, posteriormente os sujeitos perceberiam que se tratava da floresta, o diálogo continuou da
seguinte maneira:
Med.: Por que será que vocês acham que essa floresta está vermelha?
S3: Por causa que tá pegando fogo.
Med.: Está pegando fogo? Parece que está pegando fogo?
S?: Pior! [expressão muito usada pelos alunos da Escola para expressar surpresa diante da
confirmação de algo]
Med.: Parece que está pegando fogo? É a cor de quem o vermelho?
S?: Da raposa.
S8: Do fogo.
Med.: De quem na história?
S?: Da raposa.
S?: Oh, sôra, é fogo aqui.
Med.: É fogo? Pode ser que seja. Fogo do quê?
S1: Que queimou a asa da gralha.
S3 fez a leitura a partir da cor vermelha que domina a imagem analisada. Aproveitei
para ajudar os alunos a estabelecerem outro tipo de relação a partir da cor, relacionando-a à
raposa. Não houve dificuldade para estabelecer essa relação, isso demonstra que nem sempre
206
a dificuldade dos sujeitos está na interpretação, mas sim em considerar algumas possibilidades
interpretativas que o texto pode oferecer. A mediação ajuda o sujeito a perceber que esse
comportamento interpretativo frente ao texto é possível, não é algo absurdo.
O encontro com imagens de Cão e Gralha em dois momentos distintos, páginas 3 e 4,
apresenta dois comportamentos diferentes dos sujeitos. Um comportamento que se deixa levar
pela imagem, interpretando-a livremente de acordo com o que é visto, e outro que busca apoio
no que está posto na palavra, mesmo que de maneira indireta. Na página 3, ao questionar os
sujeitos dizendo: [...] o que é que parece que ele [o cão] vai fazer com essa gralha?, um
sujeito respondeu que ele iria comê-la. Essa é uma resposta baseada apenas na leitura da
imagem, sem qualquer vínculo com a palavra. No entanto, ao se depararem com Cão,
novamente carregando Gralha em sua boca e correndo pela floresta, na página 4, a construção
de sentido buscou apoio na narrativa verbal lida no encontro anterior:
Med.: [...] O que é que apareceu aqui?
S5: O cão e a gralha.
Med.: O cão e a gralha. Onde é que eles estão indo?
S3: Pra... pra... pra casa dele.
S8: Ele tá tirando ela da floresta.
As respostas dos sujeitos não foram baseadas em relações virtuais elaboradas a partir
da imagem. Todas as informações trazem elementos que foram conhecidos por eles ao lerem a
narrativa verbal. O fato de os sujeitos estarem lendo a imagem com base no verbal é
importante e natural, porque demonstra que eles percebem a relação que entre os dois
códigos na construção da narrativa. No entanto, teria sido interessante se, para essa narrativa,
o verbal não tivesse sido apresentado antes do imagético, mas simultaneamente, para que se
pudesse perceber que tipo de relações os sujeitos poderiam construir a partir do que viam/liam
na ilustração, assim como ocorreu na primeira imagem quando o sujeito “esqueceu” do verbal
e se deixou levar pela visualidade para construir um sentido para ela.
A atenção dispensada às ilustrações é um comportamento que está se tornando comum
no processo de leitura dos sujeitos. Espontaneamente, um sujeito, percebeu a presença de uma
folha pautada na constituição do fundo que emoldura a imagem do cão carregando a gralha na
página 7. A criança chamou a minha atenção e a de seus colegas dizendo: Sôra, é folha de
caderno, sôra? O seu comentário vem como questionamento, pois ele busca confirmar o
207
que está vendo, ainda não tem certeza se é possível a presença desse elemento na constituição
da imagem.
Esse comportamento de propor questionamentos esteve presente não apenas nesse
momento do diálogo. Em uma outra situação, um sujeito colocou em dúvida a sua
compreensão da narrativa e, a sua dúvida foi solucionada não por mim, mas por uma outra
criança que buscou argumentação no verbal para convencer seu colega, como se pode ver no
diálogo abaixo:
S7: Ô sôra, mais eu ainda não entendi, sôra.
Med.: Diga, o que é que tu não entendeste?
S7: Se ele era cego, como é que ele ia vê ela?
Med.: Mas ele não era cego... [sou interrompida]
S?: Mas ele tinha um olho.
Med.: Ah, olha ali o que é que ele diz: Sou cego...
S6: De um olho.
O meu papel como mediadora está, aos poucos, se tornando desnecessário. Os sujeitos
estão demonstrando independência, não apenas na sua leitura, mas também na mediação dos
próprios colegas. No entanto, em determinados momentos ainda preciso agir, instigando os
sujeitos a desvendarem alguns enigmas que a imagem lhes apresenta, como, por exemplo, na
leitura da ilustração da página 11.
A perspectiva da imagem, apresentada nessa página, causa estranhamento se o leitor
não conseguir desvendá-la, é claro que isso, talvez, passe despercebido do leitor que não se
ater a essa ilustração. Por isso, mediei os sujeitos no sentido de provocá-los a analisar e a
compreender essa ilustração, focalizando os detalhes que a constituem. Esse foi um dos
momentos em que o meu papel como mediadora mais se ressaltou durante o diálogo,
ajudando a desvendar o enigma representado pela imagem do cão com a gralha em suas costas
em frente ao rio.
Med.: Mas olha, não está engraçada essa figura aí?
S8: Tá virada.
Med.: Será que está virada?
S1: Ele tá com ela nas costa.
Med.: Será que se a gente virar, enxerga direito o que está acontecendo?
S?: Aham.
Med.: Por que é que aqui... por que é que de um lado é azul e do outro é marrom?
208
S8: Porque aqui é o céu.
Med.: É o céu?
S?: Aqui tá escuro e aqui tá dia.
Med.: Que parte da história é essa aqui?
S?: É a parte que...
S10: Que ele corre com a gralha.
Med.: Ah, que ele corre com ela. E ele corre para onde com ela? Para que lugar que ele corre
com ela?
S?: Pela floresta.
Med.: Pela floresta, mas ele leva ela num lugar. Vamos ver se vocês...[interrompida]
S?: No rio.
Med.: Ah, para o rio. Então, o que é que está acontecendo aqui nessa figura?
S?: A água.
S?: Tá escuro. Aqui tá escuro.
Med.: De um lado, vocês estão vendo que é marrom de o outro tem um fundo azul. Por quê?
Qual é a diferença?
S3: Porque aqui é o rio.
S5: Uma água... aqui é a terra.
S1: Tá debaixo das árvore.
[...]
Med.: Mas, por que está de ponta cabeça?
S3: Porque é água, sôra.
S?: Porque aqui tá ele.
S8: A água e dá pra vê aqui de ponta cabeça.
S3: É, sôra, dá pra enxergar eles ao contrário.
Med.: Será que eles estão na frente assim, se enxergando?
S?: Tão.
Med.: É isso? Por isso é que está de ponta cabeça?
S8: Por isso que as árvore tão de ponta cabeça.
S1: Sôra, olha o olho do cachorro cego.
Med.: Oh, vocês viram ali o olho do cachorro?
S6: Pior!
S8: É branco.
Procurei auxiliar os alunos a perceberem, pouco a pouco, a imagem e seus detalhes.
Atraindo a atenção deles para a figura, permiti que eles fossem expondo aquilo que estavam
vendo. Depois, busquei relacionar com o momento da história que ali estava representado, de
maneira que os sujeitos percebessem o porquê da perspectiva se apresentar daquele modo.
Gradativamente, os sujeitos alcançaram a idéia do reflexo, expressando à sua maneira as suas
idéias e observando, cada vez mais atentamente, os detalhes presentes na imagem.
O encontro com a raposa nas ilustrações trouxe outros momentos nos quais os sujeitos
exercitaram a sua capacidade de construir sentidos a partir da imagem. A atenção aos detalhes
está bastante aguçada, no entanto, nem sempre os sujeitos são capazes de construírem sentidos
209
para o que percebem na imagem. Na primeira cena ilustrada, quando a raposa surge,
encontrando gralha e raposa, página 15, um sujeito percebeu um detalhe importante na
configuração da raposa, a posição arredondada do corpo da personagem. S8, ao ver a figura
da personagem, reconheceu e movimentou sua mão acompanhando o formato no qual o corpo
da raposa se apresentava. Talvez, tenha sido algo instintivo, mas aproveitei para chamar
atenção de todos e, assim, auxiliá-los a construir um sentido a partir da leitura dessa imagem.
Med.: [...] Por que será que a raposa aparece assim?
S1: Porque ela está se alevantando e tá pulando.
S7: Porque ela tá correndo.
Med.: Será que ela está correndo, mas o cão também não está correndo?
S?: Ela tá deitada, sôra.
S8: Ela tá assim porque eles vão passar por aqui.
Med.: Ah, porque eles vão passar aí ela está querendo interromper o caminho deles ou não?
S1: Tá, sôra.
S8: Tá.
Med.: Ela não está se atravessando no caminho...
S7: Ela está se atravessando no caminho.
Diferentes leituras surgiram por meio do meu questionamento. No entanto, a mesma
criança, S8, que havia percebido a informação na imagem, traz a possibilidade de sentido
mais provável, demonstrando que a sua percepção inicial precisava apenas ser mediada para
alcançar um sentido. As diferentes possibilidades de significado apontadas pelos outros
sujeitos foram aceitas no diálogo, pois era um meio de deixá-los à vontade. A mediação do
comportamento comparativo foi necessária apenas para que a idéia de que a raposa estava
correndo fosse corrigida ao comparar a imagem dela com a do cão na página anterior.
Nem sempre a mediação obteve um resultado imediato como nesse caso. Em alguns
momentos foi necessário dar tempo aos sujeitos para que assimilassem melhor as idéias,
relacionando as informações imagéticas às verbais. A leitura da imagem dos olhos da raposa
que estão destacados na página18, trouxe sentidos pouco, ou quase nada, relacionados com a
palavra que junto era apresentada. Os sujeitos afirmaram que os olhos da raposa estavam em
destaque porque ela estava espiando pelo buraco da caverna ou para a rua. Não insisti na
busca do sentido mais apropriado, porque nesse momento estávamos nos atendo apenas à
imagem e essas idéias eram bastante plausíveis nesse sentido. Deixei para depois a construção
de um sentido mais congruente à palavra, quando voltássemos nossa atenção também ao
verbal.
210
A mesma situação ocorreu quando, ao final, nos deparamos com a página em branco.
Nesse caso, não posterguei o diálogo, porque o que estava posto por meio da linguagem
verbal auxiliaria na construção de sentido, mas sim para dar tempo aos sujeitos de refletirem
sobre o sentido que poderia ter aquela página sem nada, colocada ao final da história.
A construção de sentido, a partir da leitura, do modo com que a raposa se apresenta
surgiu novamente no final da história, páginas 28 e 29. Ao encontrar com a imagem da raposa
na página 28, S8 disse que ela estava toda atravessada. Essa foi a percepção que deu início ao
diálogo no qual tentei mediar o comportamento comparativo para que os sujeitos percebessem
o sentido que havia por trás daquele corpo atravessado e localizado na página oposta em
relação à primeira aparição da raposa na narrativa imagética.
Med.: Ela está toda atravessada, mas de que lado da página que ela está? Do mesmo que ela
aparecia antes?
S8: Não, do outro lado. Aquela hora ela tava aqui, agora ela tá aqui.
Med.: Por quê?
[...]
Med.: Por que é que a gralha está aqui e a raposa está aqui?
S8: Porque ela está bem no cantinho da parede.
S?; [...] ela tá indo embora.
Med.: Ela está indo embora. E a gralha pode voltar?
S?: Não [muitos respondem juntos].
S1: Por causa da asa.
Med.: Mas é por causa da asa ou tem alguém tentando impedir? Quem está tentando
impedir?
S?: A raposa.
S3: Aham, tá ficando aqui pra trancá o caminho.
A percepção, de que a raposa estava localizada na página oposta em relação a sua
primeira aparição, foi aos poucos ganhando sentido, sendo interpretada pelos sujeitos. De uma
visão geral do sujeito que disse que a raposa estava localizada ali, porque estava indo embora,
até a última idéia do S3, afirmando que ela estava ali, porque queria impedir o retorno da
gralha, a mediação auxiliou os alunos a dar sentido à imagem de acordo com a história
narrada. Posso apontar uma falha na mediação a partir do meu último questionamento o qual
pelo modo com que foi colocado, talvez, tenha guiado S3 a chegar a essa resposta. S1 disse
que a gralha não conseguiria voltar porque tinha uma asa queimada, ao invés de falar em
alguém tentando impedi-la, o meu questionamento deveria ter sido mais geral, apenas
perguntando aos sujeitos por que outra razão, de acordo com aquela imagem, a gralha teria
211
dificuldade de voltar. Desse modo, a discussão, provavelmente, teria se estendido um pouco
mais e outros sujeitos teriam participado da construção desse sentido.
Ao final da exploração das ilustrações retomei alguns aspectos dessas imagens
relacionando-os ao verbal. Além de, analisar a palavra, também, sob a perspectiva do modo
com que está disposta na página e do tipo de letra usado em determinados momentos, o que
tornou o verbal um pouco imagético e lhe conferiu um sentido além do que está posto na
palavra.
4.4.8.2 Leitura da palavra em interação com a visualidade
Reiniciei a exploração do livro, agora buscando relacionar os aspectos verbal e
imagético, a partir da ilustração que apresenta ao leitor o cão e a gralha, página 3. Questionei
os sujeitos: [...] o que é que a gente sabe do cão e da gralha olhando para essa figura aqui?
Todas as informações colocadas pelos sujeitos eram provenientes do verbal. Provoquei-os,
perguntando: Mas essas informações todas, de que tem fogo, de que ele está fugindo, de que
ele está salvando, estão escritas aqui? Uma das crianças respondeu que não, enquanto que o
S1 tentou argumentar: [...] pra ver pela figura, sôra. Ao questioná-los tentava auxiliá-los a
perceber que imagem e palavra dialogam, se complementam. Nessa conversa ainda surgiu
uma resposta de outra criança que disse que ao olhar a figura do cão, carregando a gralha em
sua boca era possível pensar todas aquelas informações apontadas anteriormente. Esse sujeito
começou a perceber a diferença entre estabelecer relações virtuais a partir da imagem e fazer
uma leitura individual ou, ler a imagem a partir do que está posto no verbal e vice-versa.
Na configuração dessa narrativa, uma novidade que foi explorada no diálogo
mediado. O modo com que a linguagem verbal, que conta a história, está disposta ao longo
das páginas é diferente do que antes se viu nas outras narrativas. Não se trata apenas de ser
apresentada junto à imagem como na primeira narrativa. A diferença está na subversão de não
apresentar o verbal apenas da esquerda para direita para ser lido, mas também nas laterais das
páginas, sendo necessário fazer a leitura de baixo para cima e, também, com uma diferença no
tamanho da fonte usada para escrever alguns trechos do texto. A facilidade demonstrada pelos
sujeitos na descrição das imagens, na construção de sentido a partir delas não ficou tão
evidente quando provoquei os sujeitos a perceberem esse aspecto relativo ao modo de
apresentação do verbal. Tratava-se de um elemento novo, até então não discutido ou
212
observado em outra narrativa —, por isso foi um momento em que a minha fala, como
mediadora tornou-se bastante atuante para auxiliar as crianças a lidarem com essa nova
informação.
Iniciei a mediação instigando os sujeitos a perceberem a característica diferente no
modo de apresentação do o verbal: [...] o que está escrito nessa história, está bem do jeito que
a gente encontra nos livros ou tem alguma coisa de diferente? A resposta dos sujeitos foi
imediata:
S8: Não! Aqui tá de lado, oh sôra e, a aqui tá de pé.
S1: Aqui tá tudo virado, oh sôra.
A partir dessas duas falas, propus aos sujeitos que investigassem, olhando, página por
página, como a palavra se apresentava. O comportamento exploratório sistemático foi
executado pelos sujeitos que identificaram com facilidade outras páginas, nas quais a palavra
era apresentada de maneira diferente. Intensificando a análise, questionei os sujeitos: [...] e as
palavras, estão todas do mesmo tamanho? A primeira resposta é de que as palavras não estão
do mesmo tamanho, mas somente um sujeito responde, por isso, repito o questionamento: As
letras são do mesmo tamanho? Espontaneamente, um sujeito uma expressão que aparece
escrita com uma fonte maior do que a usada em grande parte do livro: Voa cão. Aproveitei e
questionei o porquê dessa diferença, trazendo a atenção dos sujeitos para esse detalhe,
percebido pelo seu colega.
A primeira idéia que surgiu foi a de que as letras maiores representavam que aquela
expressão, Voa cão, voa, estava sendo gritada pela gralha. Aceitei a idéia, porém mediei o
comportamento comparativo, buscando a página 12, na qual a palavra voando está escrita em
uma fonte maior. Para que os sujeitos percebessem que, talvez, as palavras destacadas no
texto não representassem apenas gritos ou algum sentimento de um dos personagens, mas
também um destaque para determinada ação, no caso voar. Usei os elementos narrativos
narrador e personagem para auxiliar na comparação:
Med.: Ah, ela está gritando. Mas e ali [página 12], tem alguém gritando?
S?: Parece estar voando [sujeito lê parte da palavra apresentada nessa página].
Med.: [...] é um personagem que está falando ou é o narrador?
S?: O narrador [muitos respondem juntos].
213
Med.: Então, por que será que está escrito de letra diferente? Vamos ver se a gente encontra
outro que tenha narrador falando com letra assim de tamanho diferente?
S8: Aqui tem!
Med.: É o narrador?
S?: É o cão.
Med.: Ah, é o cão.
S8: Aqui tem, sôra.
Med.: Voar de verdade, mas quem é que está falando voar de verdade?
S8: É a raposa.
A exploração sistemática, em busca de outros momentos em que algo estivesse escrito
com fonte de tamanho maior em relação ao texto, foi o comportamento que mediei nos
sujeitos para dar início ao processo de construção de sentido para esse elemento na
constituição do texto. Mesmo identificando que, naquele caso, e, somente lá, não se tratava de
uma fala de personagem, mas sim do narrador, os sujeitos não conseguiram espontaneamente
apontar algum significado para a diferença na apresentação do verbal. Assim como,
anteriormente, os sujeitos tinham dificuldade diante de uma imagem para lhe atribuir algum
sentido, agora, diante dessa nova configuração da palavra, à qual eles não estavam habituados,
tive que auxiliá-los com meu discurso mediador.
Para que as crianças compreendessem o porquê da palavra voando estar em destaque
na fala do narrador perguntei: O que é que aproxima a gralha do cão e a gralha da raposa?
S3 manifestou-se com a seguinte resposta: Que a raposa corre mais e que o cão salvou ela,
apontando dois aspectos importantes na relação entre os personagens de acordo com o que eu
havia questionado. Com o objetivo de auxiliar os sujeitos a perceberem mais claramente a
presença do ato de voar nas duas relações, entre o e gralha e entre gralha e raposa,
apresentei uma nova pergunta a partir da fala do S3:
Med.:Só o salvamento ou tem outra coisa que interessa a gralha em ser amiga do cão?
S5: A gralha é o olho do cão e o cão é a asa da raposa?
Med.: Está, então o que é que o cão ajuda a gralha?
S1: A voar.
Med.: A voar de novo. E a raposa ajuda a gralha em quê?
S?: A se separa.
Med.: Ajuda?! Ela quer se separar?
S?: Não!
Med.: O que é que atrai a gralha para sair com a raposa?
S?: Que ela é mais rápida.
S3: Que ela corre mais rápido.
Med.: Então, o que é que aproxima a gralha do cão? A possibilidade de quê?
214
S?: De voa.
Med.; E o que é que aproxima a gralha da raposa?
S1: A possibilidade de voar mais rápido.
Med.: Então, por que se que o narrador fala e aqui está escrito com essa letra tão grande
“voando”?
A mediação ajudou os sujeitos a estabelecerem a relação entre os personagens e a ação
de voar que serviu tanto para construir uma amizade quanto para destruí-la. No entanto, após
o meu último questionamento, os sujeitos fizeram diversos comentários, mas nenhum deles
demonstrou que eles tivessem conseguido estabelecer a relação entre a importância do ato de
voar nessa narrativa e o fato da palavra voando estar em destaque em um determinado
momento no texto. Penso que, se outra narrativa fosse lida, e essa característica também
estivesse presente, os sujeitos, talvez, tivessem maior facilidade em perceber esse aspecto e,
principalmente, mais facilidade em compreendê-lo não apenas como um enfeite no texto, mas
como um elemento de sentido.
A relação entre palavra e imagem também foi utilizada para retomar a imagem dos
olhos da raposa, na página 18. Ao se depararem com essa figura, anteriormente, os sujeitos
apontaram idéias que o traduziam o sentido dessa imagem em relação à palavra. Por isso,
retomei a análise dessa ilustração, associando-a ao código verbal. Procurei ler a palavra que se
apresenta junto à imagem e analisá-la para interpretar os dois códigos de modo conjunto.
Med.: [...] vamos voltar naquela página dos olhos da raposa. Vocês me disseram antes que
era porque a raposa estava espiando.
S1: Olhando para a gralha.
Med.: Vamos ler o que está escrito para ver se nos ajuda?
[leio a palavra e ouço algumas vozes me acompanhando]
Med.: Essas palavras são boas: raiva, inveja e solidão?
S?: Não, são tudo ruim.
Med.: São palavras ruins. Olhem para a página do lado.
S?: Tá escuro.
Med.: Por que será que essa página é toda escura?
S?: Porque é de noite.
Med.: Porque é de noite. Só por isso?
S1: Porque eles estão dormindo.
Med.: É uma boa opção, diz ali que é de noite.
S?: Porque é dentro da caverna, sôra.
Med.: Porque é dentro da caverna...
S?: Porque é muito fundo.
Med.; Pode ser, aham. E esse olhar da raposa está dirigido para quem?
S?: Pra gralha.
Med.: Para a gralha. E quando a gente está lendo livro ele está voltado para quem?
215
S3: Pra gente.
S?: Tá olhando pra gente.
O diálogo não se manteve apenas na análise do olhar da raposa. A partir da palavra, da
qual selecionei os três substantivos, raiva, inveja e solidão, questionei, para mediar o olhar das
crianças em direção a página ao lado, e, assim, tentaram estabelecer relação entre os dois
códigos. Não obtive sucesso, pois a escuridão foi interpretada pelas crianças a partir do
raciocínio lógico de ser noite e, portanto, escuro ou, então, de que a imagem estaria
representando o escuro da caverna. No entanto, o objetivo inicial de construir um sentido para
a imagem destacada dos olhos da raposa foi alcançado. Da idéia que a raposa estava espiando
para dentro da caverna, os sujeitos conseguiram mudar e perceber que aquele olhar estava
voltado para a gralha ou, então, até mesmo para o leitor.
As dificuldades de construção de sentido apresentadas pelos sujeitos ficam fáceis de
serem localizadas ao longo do diálogo. Elas estão presentes em momentos nos quais a minha
fala ressurge, propondo questionamentos e, às vezes, reformulando as mesmas perguntas para
que as crianças compreendam os mistérios da imagem e do verbal que constroem a narrativa.
A existência dessas situações durante o diálogo não pode ser considerada como retrocesso ou
sinal de pouco desenvolvimento dos sujeitos. Essas ocasiões são momentos nos quais os
sujeitos se depararam com elementos, imagéticos ou verbais, com os quais ainda estão
aprendendo a lidar e, por alguma razão, tenham sido mais difíceis de serem decifrados e
compreendidos.
A página em branco, página 35, ressurgiu na conversa quase no final. No primeiro
momento, em que as crianças a encontraram, pouca, ou quase nenhuma interpretação surgiu.
Por isso, retomei a discussão a respeito dessa página e pude perceber que o tempo dado aos
sujeitos para sedimentarem informações foi bastante positivo para alguns que se
manifestaram, agora não apenas alegando que a página em branco seria apenas o fim da
história. Um sujeito afirmou que aquela página estava em branco, porque a gralha havia
morrido, enquanto outro disse que devia ter mais, querendo dizer que a história não acabava
ali. No entanto, a explicação mais interessante veio de S8 que disse que aquela página seria
como os três pontinhos ao final do texto ou o símbolo de que algo havia sido suprimido de um
texto, que o sujeito explicou, dizendo o seguinte: É, sôra, uma coisinha assim oh, indicando
com gestos os parênteses com os três pontinhos, símbolo que havia sido explicado pela
216
professora da turma, quando, em sala de aula, trabalhou um texto do qual havia sido omitida
uma parte.
4.4.8.3 Algumas considerações: um caminho que começa a ser percorrido de maneira
independente
A análise dos encontros, nos quais se estabeleceu o diálogo mediado a partir da leitura
dessa quarta narrativa, demonstra o desenvolvimento dos sujeitos que, pouco a pouco, estão
alcançando a sua independência como leitores. Um contraponto entre dependência e
independência pode ser percebido, pois em determinados momentos a autonomia dos sujeitos
se destaca, demonstrando avanço em direção à competência de leitura, ao passo que em
outros, a necessidade de apoio do mediador se faz necessária para que só, posteriormente, esse
avanço, talvez, seja percebido.
O modo com que os sujeitos estão comunicando as suas idéias e reagindo,
principalmente diante da linguagem imagético, são pontos a serem destacados como
representativos da independência e avanço na capacidade leitora. A minha fala, como
mediadora, antes fundamental para que os sujeitos apontassem idéias, opiniões e
apresentassem argumentos, agora se faz pouco importante em muitos momentos do encontro.
A voz do mediador é substituída pela do mediado que passa, inclusive, a ser, também, um
pouco mediador de seus colegas.
4.4.9 Menino chuva na rua do sol: leitura mediada do código verbal em interação com
o visual
O nono e último encontro de leitura mediada desse estudo aconteceu a partir da
narrativa poética Menino chuva na rua do sol. Além de ser uma narrativa com estrutura
diferente, por conter muitos aspectos poéticos, como foi visto na análise semântica, o
trabalho com essa última história sofreu modificações na rotina do encontro.
Na leitura da narrativa anterior, percebi que os sujeitos estavam mais independentes
em determinados aspectos e que, em virtude da interação existente entre palavra e imagem, o
processo de mediação e, principalmente, de leitura da narrativa teria sido mais proveitoso se
ela tivesse sido lida sem apresentar primeiro o código verbal. A separação, primeiro a leitura
217
do verbal, para depois ler o imagético no livro, associado ao verbal, de certa forma prejudicou
a leitura da narrativa, isto é, do modo com que ela foi construída para que o leitor com ela
interagisse. Por isso, nesse último encontro, optei por não apresentar a palavra em um
encontro e, o imagético, a partir do livro, no segundo encontro. A leitura dessa última
narrativa aconteceu em apenas um encontro, no qual os leitores leram o livro, descobrindo
palavra e imagem, ao mesmo tempo. Essa modificação, além de não separar o verbal do
imagético e interferir na leitura das duas linguagens, tornou-se uma oportunidade de perceber
de que modo os sujeitos, que constituíram o grupo de leitura mediada desse estudo, estavam
interagindo com um livro contendo uma narrativa verbo-visual.
Desse encontro emergiram categorias de análise referentes à estrutura narrativo-
poética e, principalmente, relativos ao modo com que os sujeitos interagiram com o texto
durante a sua exploração independente e mediada. Ao caracterizar a narrativa e o personagem,
estabelecer relação entre a palavra e a imagem em determinados momentos e perceber
elementos característicos na disposição e apresentação da palavra, busquei mediar,
desenvolvendo ou impulsionando algumas ações como, por exemplo, a exploração
sistemática, a percepção de detalhes, a definição de um foco de análise, o comportamento
metacognitivo dentre outras. Para a análise desse encontro, a categoria principal é o próprio
processo de interação mediado que foi desenvolvido a partir da exploração e leitura do livro
Menino chuva, na rua do sol. As questões de estrutura narrativa, leitura da palavra e da
imagem surgem na descrição desse processo de leitura mediada.
Dei aos sujeitos tempo para explorarem o livro. Antes que eles iniciassem a leitura,
procurei mediar o comportamento metacognitivo com a intenção de auxiliá-los a perceber que
essa leitura deveria envolver não apenas o verbal, mas também o visual, assim como vinha
sendo feito desde a primeira narrativa. A diferença era que, agora, os sujeitos iriam conhecer e
ler simultaneamente as duais linguagens no texto narrativo.
Med.: [...] O que é que a gente tem que prestar atenção agora para ler esse livro?
S?: Nos desenhos.
Med.; Só nos desenhos?
S3: Não, na história.
Med.; Na história, o que é que constrói essa história?
S?: Uma autora.
Med.; Só palavras?
S?: Um texto.
218
Med.: Esse texto tem só palavras?
S?: Desenhos.
Med.: Tem desenhos também. Então, tem que prestar atenção nas duas coisas? Sim ou não?
S?: Sim.
Med.: Pelo que a gente viu até agora, a gente tem que prestar atenção nas duas coisas?
S?: Aham.
Os sujeitos estavam curiosos para ler e ver o livro. Eu acabei forçando-os a estabelecer
esse diálogo comigo. Percebo agora que ele não era necessário. Essa falha considero
conseqüência de uma dificuldade com a qual o mediador deve tomar cuidado. O mediador
deve ter consciência de que no início do processo a sua presença no processo de é
fundamental, é preciso estar constantemente auxiliando o sujeito mediado no seu processo de
captação, elaboração e transmissão das informações. No entanto, aos poucos, o mediado
começa a ser capaz de executar sozinho essas três etapas, não necessita mais com tanta
intensidade da ajuda de alguém. Esse é o momento em que o mediador assume o papel apenas
de observador, pronto a ajudar, mas não a impor a sua ajuda.
No momento em que os sujeitos iniciaram a sua leitura e exploração do livro, encontro
na minha fala, novamente, sinais dessa dificuldade de permitir ao sujeito mediado exercitar a
sua independência. A exploração/leitura do livro era um momento em que cada um ou cada
dupla deveria decidir de que modo agiria diante do livro, do verbal e do imagético. Apesar
disso, a minha ansiedade me fez continuar mediando, tentando indicar-lhes caminhos pelos
quais eles podiam seguir na exploração do livro: Leiam o livro, podem olhar, podem ler,
podem começar lendo, podem começar olhando página por página, vocês é que vão escolher
hoje. Lendo em silêncio como a gente faz no início sempre. No início dessa fala, tentei
permitir liberdade e independência aos sujeitos, mas, ao final, toda essa tentativa é destituída,
pois impus um comportamento.
Durante a leitura, pude observar comportamentos interessantes por parte dos sujeitos.
A primeira atitude diz respeito a algo que não foi mediado nesse estudo, porque não era o
objetivo, mas que foi algo percebido durante os pré-testes para seleção dos sujeitos. As
crianças, leram o verbal de maneira individual, em sua maioria, sussurrando ou apenas
movendo os lábios sem emitir som. Mesmo que na minha fala eu tivesse imposto um
comportamento, ele não foi seguido pelos sujeitos: houve os que leram de modo individual,
219
provavelmente, por dificuldade e os que leram em duplas, ou trios, porque preferiram alternar
turnos e compartilhar a leitura.
Outra atitude importante de ser comentada foi a alternância de turnos que ocorreu, nas
duplas ou trios que exploraram conjuntamente o livro. Nessa leitura alternada, os sujeitos
perceberam a sonoridade presente na linguagem verbal. Uma dupla de meninas diante da
palavra passou na página 14, leu em conjunto nesse momento, explorando a sonoridade que
está representada no próprio código verbal: passouuuuuuuuuuu..., divertindo-se ao sentirem
esse som.
4.4.9.1 Leitura mediada de uma narrativa verbo-visual: desvendando a palavra e a
visualidade
Após a leitura e exploração do livro, iniciei o diálogo mediando o comportamento
comparativo dos sujeitos. Estávamos lendo a última narrativa que constitui esse estudo e,
além disso, essa narrativa possui uma estrutura diferente em relação às outras que foram lidas
anteriormente. Por isso, perguntei: Essa história é parecida com as outras que a gente leu? A
resposta imediata foi que não era parecida. O meu questionamento seguinte buscou mediar a
construção de argumentos que sustentassem essa resposta negativa: O que é que tem de
diferente? Um dos sujeitos, então, caracterizou a história: Parece uma poesia.
De uma resposta negativa, sem nenhuma argumentação, havíamos chegado a uma
caracterização mais definida. Tentei auxiliar esse sujeito que se pronunciou e os outros
também a explicarem melhor o porquê do texto que estava sendo lido se parecer com uma
poesia: por que é que ela parece com uma poesia? O que é que ela tem de poesia? A resposta
foi que tinha frases curtas. Não me satisfiz com apenas essa definição e instiguei as crianças a
trazerem outros elementos da constituição do texto e que o tornassem uma poesia ou lhe
conferissem poéticidade.
Med.: Tem frases curtas, o que mais? Parece uma poesia porque tem frases curtas, quem
concorda e quem discorda?
[um sujeito disse algo que não entendi e por isso pedi que repetisse]
Med.: Tem o quê?
S?: Palavras que combinam.
Med.: Palavras que combinam, de que jeito?
S?: Uma combinando com a outra.
220
S?: Rima.
Med.: Rima? Tem rima? Quem é que descobre uma rima dentro [no texto]. Vamos lá,
procurando...
O segundo elemento que torna esse texto poético surgiu na fala das crianças de
maneira pouco precisa. A expressão palavras que combinam pode ter um significado muito
amplo, por isso auxiliei as crianças a buscar um termo mais explícito. Dessa forma, surgiu a
palavra rima pela voz de um dos sujeitos.
A mediação seguiu o rumo de provocar os sujeitos a rastrearem o texto em busca de
rimas. Esse era o foco de atenção deles nesse momento. No entanto, assim como para chegar
ao termo rima, partiu-se primeiro de uma idéia bastante geral até alcançar a especificidade, na
procura por rimas os sujeitos primeiro se depararam com questões gerais de sonoridade, para
somente depois chegarem ao encontro de um exemplo de rima.
S1: Plinc plaft.
Med.: Plinc plaft parece que rima? Ué, pode ser.
S?: Não, não rima, sôra.
Med.: Não rima, mas tem som. Parece um som?
S?: Aham.
Med.: Parece som do quê?
S?: O mesmo som da chuva, sei lá.
Med.: O som dos pingos da chuva?
S?: É.
Med.: Ué, pode ser. Pode ser o quê, também?
A presença da sonoridade no texto foi trazida pelo S1, mesmo que a partir de uma
resposta equivocada, em relação ao pedido que eu havia feito a eles para que procurassem por
rimas no texto. Apesar desse equivoco, o apontamento feito por esse sujeito trouxe o aspecto
sonoro, de modo geral, para a discussão, auxiliando, talvez, para uma melhor compreensão do
que é uma rima, de como identificá-la no texto. Além disso, o estabelecimento de relação
virtual, a partir desse elemento, que se apresenta por meio da palavra, e, também, deve ser
considerado pelo leitor na construção de sentido, foi uma ação que foi ativada pelo sujeito que
tentou atribuir um significado para o elemento sonoro apontado pelo S1 no início desse trecho
transcrito do diálogo.
221
Na continuação da conversa, não surgiu a resposta ao meu último questionamento.
Nenhum sujeito apontou outro sentido para os sons plinc plaft. O que perceberam foi a
presença de uma rima comportamento de focalização mediado anteriormente. S1
encontrou uma rima e leu para nós o seguinte trecho: Porque menino é como chuva mole em
pedra dura, tanto pinga até que fura; apontando em seguida as duas palavras que rimam: fura
e dura.
Para retomar a idéia, sobre qual sentido poderiam ter os sons plinc e plaft, chamei,
novamente, a atenção das crianças sondando-as: Aquele plinc e plaft que o S1 nos chamou
atenção, são os pingos da chuva que podem ser ou podem ser outra coisa? A intenção era
mediar os sujeitos para estabelecerem novas relações virtuais para o aspecto sonoro e,
também, relacioná-lo à imagem, como tentei fazer ao propor o seguinte questionamento:
Olhem na figura, o que é que pode ser esse plinc plaft? os pingos da chuva ou tem outra
coisa que pode fazer esse barulho também?
Essa deveria ter sido a minha última fala até que os sujeitos se pronunciassem,
buscando associar a palavra, ao som transmitido por ela e a imagem do menino na chuva. No
entanto, os sujeitos não se pronunciaram e, eu, ao invés de, reformular o questionamento e
provocá-los a responder e perceber a interação da palavra com a imagem, questionei,
aguardando apenas uma confirmação: Os pés dele não podem ser? Ao invés de auxiliar os
sujeitos a construírem um sentido, a perceberem a possível interação palavra-imagem,
apresentei a idéia pronta, aguardando apenas a sua confirmação ou negação.
A relação entre palavra e imagem, no processo de significação do texto, apareceu
novamente, logo após essa discussão sobre a sonoridade. Enquanto os sujeitos exploravam o
livro, no primeiro momento do encontro, ouvi um deles comentar algo sobre a imagem da
página 7. Naquele momento, não pude estabelecer com os sujeitos nenhum diálogo a respeito
desse comentário, pois eles estavam explorando e lendo o livro individualmente. Tentei
retomar esse questionamento, porém o sujeito não recordava mais o que havia dito. Mesmo
assim, insisti para que as crianças percebessem a interação do o verbal com o visual nas
páginas 6 e 7.
Med.: A casa está chaveada, muito bem chaveada?
S?: Tá.
222
S?: Bah, tá demais.
Med.: E lá no que está escrito, como é que a gente sabe que ela está muito chaveada?
S8: Pelo desenho.
Med.: Pelo desenho, a gente vê que ela está muito, mas e no que está escrito?
S?: Também.
Med.: Que palavras que nos dizem que ela está muito bem chaveada? O que é que diz no que
está escrito ali do lado?
S3: Quando isso acontece, ficam portas e janela fechadas, lacradas, cadeadas, trancadas. [leu
a palavra]
Med.: Ah, elas estão só fechadas [as portas]?
S8: Não, tão trancadas.
Med.: O que mais?
S?: Chaveadas.
S?: Lacradas.
Med.: E?
S?: Cadeadas.
A caracterização do personagem protagonista da história foi outro ponto a ser
destacado no diálogo mediado. Mediei os alunos para que apontassem o que eles poderiam
dizer a respeito desse menino: E como é que é esse menino? O que é que a gente sabe dele?
Dois sujeitos responderam, o primeiro dizendo que o menino adorava chuva e o segundo
acrescentando a informação de que o menino adorava tomar banho de chuva. Essas idéias são
provenientes da compreensão das crianças a partir do que foi lido, mas não eram retiradas
diretamente do texto, eram construções dessas duas crianças. Para buscar a participação de
outros sujeitos e instigá-los a investigarem de maneira mais atenta o verbal perguntei: No que
está escrito, o que é que a gente sabe sobre ele? A resposta que recebi não trouxe uma idéia
direta do texto, mas, novamente, algo construído pelo sujeito que disse: Que ele é um menino
muito feliz.
Esse início de diálogo demonstra a liberdade dos sujeitos em relação ao texto. Eles
não necessitam mais de tanto apoio do texto verbal para expressar suas idéias, ao contrário,
eles estão cada vez mais capazes de apresentar suas próprias idéias, construídas com base na
compreensão do que leram. Essa mesma espontaneidade demonstrada pelas crianças, ao
apresentarem suas idéias, pode também ser percebida com relação à leitura da imagem. Ao
questioná-las se o menino estaria feliz ao longo de toda a história, instigando-os a buscar
comprovação no texto, um dos sujeitos fez uma leitura da imagem de modo espontâneo,
apontando a página 11, como um momento em que o menino não estaria feliz.
223
O comportamento espontâneo de ler a imagem, demonstrado por essa criança, veio
seguido de outra atitude interessante por parte de outro sujeito. Ao perguntar o porquê de o
menino estar representado de modo triste na página indicada, o S3 disse que seria porque ali
ele no meio de uma enxurrada. O uso do vocábulo enxurrada demonstra que esse sujeito
está atento à palavra, compreendeu-a e, principalmente, está aplicando essa idéia para
expressar-se.
A respeito do personagem, deixei para abordar no final a questão estética,
questionando as crianças se elas consideravam aquele menino, do modo como estava
ilustrado, feio ou bonito. A resposta veio de modo imediato e em coro: o menino era feio
segundo os padrões das crianças. Os comentários foram de que os pés e mãos eram muito
finos, a cabeça era redonda demais, parecendo um bolachão, segundo o S6 e, o nariz
quadrado também era algo estranho.
A configuração da linguagem verbal foi o aspecto discutido em seguida: Como é que a
gente sabe que é o menino ou a mãe que estão falando e não é o narrador da história? Um
sujeito comentou que a diferença estava nos verbos de fala dizer, falar, gritar que sempre
se referiam a algum personagem, dando o exemplo da página 12: “A mãe com extremo
espanto grita”. Concordei com essa idéia, mas tentei auxiliá-los a perceberem outra diferença
que havia para distinguir, principalmente, as falas ou pensamentos do personagem e os
momentos em que o narrador estava se pronunciando. A conversa, que se desenrolou a partir
desse tópico, trouxe diferentes observações das crianças e, também, a constatação de que a
mediação tem um limite, que é o do momento em que o sujeito aprendiz se depara com algo
desconhecido.
Med.: [...] o que mais que aparece quando são eles [os personagens] que falam?
Med.: Quando é que o menino chuva fala pela primeira vez?
S?: Aqui, oh sôra. [indicando a página 4]
Med.: Ah, como é que a gente sabe que é ele que está falando ali, não é o narrador?
S1: Olha a chuva!... É aí que me acabo, me solto, me molho, me largo.
Med.: Como é que a gente sabe que é ele? Tem alguma coisa de diferente nessa palavra?
S?: Não tem travessão.
Med.: Não tem travessão.
S10: Tem o me.
Med.; Ah, tem o me, é uma boa opção. Olha ali, me, ele que está falando. Mas, o que mais?
Comparem com a do lado ali, que é o narrador que está falando. O que é que tem de diferente
entre as duas?
S8: É que aqui ele tá falando e aqui o...
224
Med.: O narrador está..., mas o que é que tem de diferente entre as duas, no jeito delas
estarem aí?
S?: É que aqui, parece que o menino está falando...[mostra com gestos o formato no qual a
palavra está disposta]
Med.: Ah, tem uma que é curvada e a outra não. E, além disso, além da curva, o que é que
tem no início e no fim?
S?: A casa.
S?: Ele na janela.
Med.: Não, no início e no fim do que o menino fala? Olhem ali, o que é que o menino diz,
o que é que tem?
S?: Olha a chuva.
[...]
Med.: Antes do O?
S?: Nada.
Med.: O que serão aquelas duas coisinhas? Vocês nunca viram isso?
S?: Eu já.
S?: Eu não.
S?: Já, mas não sei.
Med.: Será que aparece quando menino falar de novo? Procurem aí para ver se elas aparecem
na fala do menino?
S6: Aparece.
Med.: Olha lá, o S6 achou de novo no pensamento [página 8]. É ele falando ou é ele
pensando, aí?
S?: Pensando.
O desconhecimento dos sujeitos a respeito do que eram aspas, sinal gráfico
utilizado para ressaltar as falas do protagonista nesse texto —, fez com que eles não
conseguissem identificá-lo mesmo com o auxílio da minha mediação. No entanto, os sujeitos
apresentaram outros bons argumentos para caracterizar o trecho do texto verbal que estava
sendo lido como uma fala do personagem. A ausência do travessão que desconcertou as
concepções de organização de texto dos sujeitos foi superada pela presença do pronome
oblíquo de primeira pessoa “me”, que foi encontrado por um dos sujeitos.
O surpreendente nessa identificação não está apenas no fato de o sujeito ter
reconhecido esse elemento verbal, mas sim em qual sujeito fez essa descoberta. No início do
diálogo, ao questionar as crianças sobre como poderíamos saber que aquele trecho era uma
fala do personagem e não do narrador, o S1 sujeito comentado anteriormente como
bastante competente na leitura do verbal — não conseguiu apontar nenhum elemento concreto
para responder ao meu questionamento, ele apenas leu o que estava posto naquele trecho. S10,
no entanto, sujeito também caracterizado nesse estudo como pouco competente na leitura
do verbal, trouxe para o diálogo um elemento concreto para argumentar na definição do
225
trecho lido como sendo uma fala do menino. Esse fato não pode ser lido como uma regressão
do S1, mas como uma evolução do S10 que demonstra estar mais atento ao que está lendo.
Em termos de habilidade leitora, esse sujeito está deixando a zona de desenvolvimento
proximal e atingindo a zona de desenvolvimento real, pois aos poucos está se tornando
independente no processo de leitura.
Na continuação do diálogo, o olhar de um dos sujeitos nos atraiu para um detalhe da
imagem que representa o menino protagonista da narrativa: Ô tia, mudando o cabelo dele
aqui! Voltei meu olhar para a informação que o S7 havia apontado, outras crianças fizeram o
mesmo, acrescentando detalhes: Aqui branco ou, aqui preto A comparação espontânea
se instaurou entre as crianças para perceberem a mudança apontada pelo S7. Mesmo antes que
eu os questionasse sobre o porquê dessa mudança S10 surgiu com uma explicação usando a
imagem da página 4, na qual os cabelos do menino, que haviam atraído a atenção das
crianças, estavam representados pela cor branca. S10 declarou: Por causa que aqui é preto e
não aparece. A presença do fundo preto onde o menino aparecia fez com que fosse necessário
representar os cabelos do menino na cor branca para que eles pudessem ser vistos pelo leitor.
Essa foi a explicação dada de modo espontâneo pelo S10 que, novamente, demonstrou
desenvolvimento da sua capacidade leitora. Os outros sujeitos ficaram um pouco incrédulos
daquela interpretação, por isso ainda usei a capa como outro exemplo da mesma situação.
A leitura da imagem, buscando interação com a palavra, surgiu novamente no final do
encontro quando instiguei os sujeitos a observarem mais atentamente as páginas 6 e 7. Não
houve dificuldade para ler a imagem, construindo sentidos para ela, e, depois, para buscar na
palavra elementos que interagissem com essa imagem, agregando-lhe sentidos. Além disso,
na leitura do verbal, os sujeitos ainda identificaram a presença de uma rima, demonstrando
estarem atentos à sonoridade.
Med.: Agora, olhem só. O que é que está acontecendo com as nuvens aí?
S?: Tá cinza.
S?: Tá ficando cinza.
Med.: Estão cinzas, não é? Estão se aproximando?
S?: É chuva.
Med.: E o que é que diz na palavra ao lado, sobre essas nuvens? O que é que elas são?
S1: Escura e tenebrosa.
Med.: Escura, cinza, tenebrosa.
S?: Dá frio, dá arrepio.
Med.: Dá frio, dá arrepio.
226
S?: Dá rima, sôra!
Por fim, tentei mediar os sujeitos para que compreendessem a idéia metafórica
proposta no final da narrativa do menino se tornar menino chuva: “o menino, agora menino
chuva” (p. 24). Essa seria uma leitura que os sujeitos deveriam fazer não apenas partir do
verbal ou do visual, seria uma leitura de ambos, dos sentidos transmitidos pela união desses
códigos na construção da narrativa e, principalmente, uma leitura individual de cada um dos
sujeitos. A dificuldade em lidar com uma informação metafórica talvez tenha sido o motivo,
pelo qual, apenas um sujeito, S5 tenha se pronunciado diante do meu questionamento. Os
demais sujeitos se dispersaram nesse momento, passando a explorar o livro, folheando
páginas, comentando algo com o colega ao lado, e, apenas o S5 disse: ele gosta muito, muito
de chuva então. Mesmo que não tenha havido reflexão sobre esse ato, esse sujeito expôs aos
colegas a sua leitura sobre o menino se tornar menino chuva.
É certo que outros aspectos, principalmente referentes à estrutura narrativa, deveriam
ter sido abordados na exploração mediada dessa narrativa. No entanto, a mudança de rotina
dos encontros, ao propor aos sujeitos uma exploração direta do livro, lidando
simultaneamente com palavra e imagem, sem antes ter lido a palavra, modificou até mesmo a
proposta de mediação. Por se tratar de um encontro no qual o diálogo é o ponto central, não
como controlar o que será dito. Apesar de eu ter previamente preparado um roteiro, no
momento em que a mediação inicia, o rumo que será tomado depende principalmente do que
os sujeitos dirão e, a partir disso, o mediador precisa segui-los, aproveitando cada uma das
oportunidades de construção de sentido que se formam ao longo da conversa.
4.4.9.2 Algumas considerações: um caminho construído, mas não finalizado
O trabalho de leitura mediada com essa última narrativa não significa o fim. A análise
desse encontro, no qual os sujeitos se depararam com diferentes experiências, traz também
para o estudo diferentes constatações e que não podem ser consideradas conclusivas.
A leitura de uma narrativa poética era uma experiência ainda não vivenciada pelas
crianças, ao menos como experiência de leitura mediada. Por isso, ao longo do encontro, se
percebem momentos em que dificuldade de lidar com esses novos elementos, mas também
outros em que a facilidade e a espontaneidade com que os sujeitos operam com o texto é
227
surpreendente. Além disso, a necessidade de mediar esses sujeitos para interagirem com o
texto se alterna entre algo fundamental em determinados momentos e algo praticamente
dispensável em outros.
Todos esses comentários demonstram que o caminho de leitura que se tentou traçar até
aqui com esses sujeitos não se completou por inteiro. Foi um caminho que se formou a cada
passo e, tornou-se mais visível, em determinados momentos e, nem tanto em outros, mas um
caminho que surgiu para que esses alunos ampliassem a sua habilidade de leitura. E essa
habilidade teve um desenvolvimento que se não foi pleno, foi ao menos perceptível ao longo
do desenrolar do estudo.
228
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Três foram os elementos fundamentais para que esse estudo existisse: leitor, texto e
mediador. Interessa, no entanto, nesse ponto, no qual se unem os fios da trama dessa pesquisa,
abordar a ação do leitor mirim e do mediador adulto. O texto surge como coadjuvante, pois é
o palco que possibilitou a ação investigativa proposta por essa pesquisa. Leitor e mediador
atuaram, modificaram-se, acertaram, erraram, enfim, colocaram-se à prova. O texto foi o
instrumento para que todas essas ações acontecessem. Ele existiu somente por meio do leitor e
da interação mediada.
Assim como a teoria foi colocada em prática, agora o reverso se dá: a prática passa a
ser rediscutida à luz da teoria que embasou esse estudo. Para isso, dois caminhos são traçados,
um a partir da figura do leitor e outro considerando o mediador, os dois elementos que
sustentaram a aplicação do estudo teórico. O primeiro caminho toma como ponto de partida a
figura do leitor delineada no capítulo inicial com base nos estudos de Vigotski, Piaget e
Wallon, associando o enfoque teórico às ações dos leitores nos encontros de leitura mediada.
Esse caminho inicial, portanto, parte de um leitor caracterizado a partir de visões teóricas e,
chega ao leitor real, os sujeitos da pesquisa, que vivenciaram a leitura mediada das narrativas.
O segundo caminho analisa a ação do mediador, seus acertos e erros em relação à teoria, mas,
principalmente, a partir da prática vivenciada nos nove encontros de leitura mediada que
ocorreram nesse estudo, apontando comportamentos necessários para que a ação mediada se
estabelecesse com mais sucesso.
A preferência por organizar esta parte final do trabalho dessa maneira se justifica por
não ser possível apontar aqui conclusões ou definições fechadas. A pesquisa que até aqui se
apresenta, iniciou trazendo uma perspectiva fundamentalista (BOGDAN e BIKLEN, 1994),
isto é, tinha o objetivo de ampliar os conhecimentos a respeito do processo de leitura de
narrativas verbo-visuais, associando-o à idéia de ensino/aprendizagem mediada. Porém, todo
esse conhecimento foi apresentado, com um segundo objetivo, que se situa na concepção da
pesquisa aplicada, ou seja, “a preocupação pelas implicações práticas imediatas” (BOGDAN e
BIKLEN, 1994, p. 264) do conhecimento teórico. Trata-se, portanto, de uma articulação entre
teoria e prática, um encadeamento, no qual se amplia o leque de conhecimentos que são
aplicados em um contexto de pesquisa e, conseqüentemente, aumentam a compreensão
teórica. Em ambos os caminhos, o trajeto se dará ciclicamente da teoria à prática, com
insistência na ação-reflexão-ação.
O que se apresenta a partir desse ponto é o que de comum entre o leitor que se
tentou delinear com base na teoria, e o leitor real que recebeu a mediação e interagiu com o
texto, — o que foi apenas previsão e qual foi a realidade.
A partir da visão de Vigotski, o leitor no contexto desse estudo seria uma criança
capaz de modificar-se, moldar-se, aprender, movida pelo seu interesse, e cujo
desenvolvimento cognitivo seria decorrência de sua interação social. As experiências
vivenciadas pelo leitor seriam a mola propulsora de seu progresso, associadas à sua
capacidade desenvolvida de decodificação e compreensão no processo de leitura que lhe
conferem competência na construção de sentido nesse processo.
A vivência da leitura mediada com os sujeitos selecionados para a pesquisa não vem
como comprovação de toda essa definição construída a partir da teoria de Vigotski. A prática
não pode ser vista como caminho para confirmação da teoria. A investigação deve servir
como ferramenta para delinear pontos de contato com a teoria, confirmando-a, mas também,
reformulando-a.
Dessa forma, é preciso que se considere que o interesse que aproxima a criança do
processo de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo não surge de modo espontâneo. Se a
criança é movida pelo interesse é papel do mediador despertar esse sentimento. O contato com
o texto literário, com a narrativa verbo-visual, cujo “objetivo central é [...] atrair o pequeno
leitor para o processo de descoberta do mundo” (COELHO, 2000, p. 131), ao leitor a
possibilidade de dialogar e interferir no texto e pode servir de alavanca para despertar o
interesse da criança leitora. Ter consciência de que ao ler, não se precisa buscar respostas
únicas ou fechadas, mas se pode procurar as próprias observações, esse sentimento de
liberdade, pode ser desencadeador do interesse do leitor mirim pela leitura. O mediador
230
precisa tirar proveito dessa característica do texto literário que se apresenta ao leitor de modo
aberto, com lacunas a serem preenchidas pela ação leitora (ISER, 1979).
Ao selecionar os sujeitos para comporem o grupo de pesquisa, teve-se como meta
escolher sujeitos que fossem competentes na decodificação e na compreensão do texto escrito.
Esses sujeitos, portanto, sob a ótica vigotskiana, em relação ao processo de leitura e às
habilidades de decodificação e compreensão leitora estariam mais próximos da zona de
desenvolvimento real. O processo de seleção dos sujeitos provou, no entanto, que mesmo com
as crianças oriundas da mesma série escolar, essa delimitação do desenvolvimento não
poderia ser uniforme. O modo com que cada leitor, naturalmente, lida com o texto é único. No
caso da pesquisa, na qual sujeitos com diferentes níveis de desenvolvimento da capacidade
leitora fizeram parte, essa pluralidade de leituras tornou-se ainda mais evidente. O leitor
descrito a partir da teoria de Vigotski estaria na zona de desenvolvimento real em termos de
leitura, no entanto, a realidade mostrou que utilizar e confiar numa classificação estanque
como essa não seria condizente com a noção de aprendizagem, até mesmo, porque o processo
de leitura não ocorre da mesma maneira para todos os sujeitos, sejam eles ou não da mesma
faixa etária e/ou do mesmo nível de escolaridade. O modo com que as crianças interagiram
com as narrativas, em alguns momentos, demonstrou que elas estavam na zona de
desenvolvimento real em determinados aspectos e em outros, ainda na zona de
desenvolvimento proximal, sendo necessária, portanto, a mediação da leitura.
A passagem da zona de desenvolvimento proximal para a zona de desenvolvimento
real é percebida ao longo do processo de investigação mediada nos momentos em que certos
comportamentos das crianças precisaram primeiro ser mediados, para progressivamente serem
aplicados de maneira espontânea. Por exemplo, ao considerar os primeiros encontros de
leitura, percebi dificuldade por parte dos sujeitos para expressar as suas idéias, a partir do que
liam tanto na palavra quanto na imagem. As crianças não se sentiam à vontade para construir
sentidos, precisavam ser mediadas. Ao chegar ao quarto e quinto encontros, a habilidade de
ler a palavra e a imagem e estabelecer sentidos a partir delas de maneira isolada ou em
interação ficou mais próxima da competência ou da independência. O comportamento
comparativo em relação às ilustrações é outro exemplo dessa aproximação da independência.
Inicialmente, era preciso instigar os sujeitos a compararem as imagens, como, por exemplo,
na leitura da narrativa Ah, cambaxirra se eu pudesse..., mas depois esse comportamento foi
aplicado de maneira mais espontânea a cada nova necessidade de ativá-lo.
231
A mediação desses comportamentos e de outros demonstra a idéia de Piaget ao
considerar a criança um sujeito em constante desenvolvimento. Os leitores, sujeitos dessa
pesquisa, mesmo sendo previamente selecionados, o poderiam ser considerados, prontos
para interagir com o texto e ultrapassar o que nele estava posto, sendo capazes de ler nas
entrelinhas, por exemplo. Essa capacidade depende dovel de vivência leitora que o sujeito
tem. A prática demonstrou que as crianças do grupo de leitura mediada tinham dificuldade de
ler nas entrelinhas, de ultrapassar o nível do texto, principalmente no início desse estudo,
quando precisavam ser constantemente mediadas.
Em relação ao estágio de desenvolvimento, a prática não refutou a teoria,
comprovando que os sujeitos ainda oscilavam entre as operações concretas e as operações
formais. Na leitura da narrativa Indo não sei aonde buscar não sei o quê, a imprecisão é
característica marcante e, em determinados momentos, os sujeitos precisaram ser mediados
para buscarem, no concreto, a compreensão dessa incerteza, pois somente o que estava posto
no texto não era suficiente para que a compreensão fosse atingida.
O avanço e o retrocesso foram movimentos constantes no desenvolvimento
demonstrado pelos aprendizes, ao longo dos encontros de leitura mediada. A mediação diante
de um grupo precisa buscar meios para que todos participem do diálogo que se estabelece.
Avançar e retroceder, estabelecer um movimento descontínuo, se faz necessário para que um
sujeito não fique para trás, não se perca do grupo. O avanço de um sujeito pode significar o
retrocesso de outro e vice-versa. A coletividade, na qual a criança está inserida, torna-se co-
participante junto com o mediador do desenvolvimento cognitivo desse aprendiz, sob a ótica
walloniana. A atuação do S1 durante os encontros de leitura mediada, em muitos momentos,
provocou o progresso de outros sujeitos, a partir do seu comportamento diante do texto.
O mediador precisa estar atento para que a atuação de um sujeito, que desponta em
relação aos outros pela sua competência em determinadas habilidades, não acabe por
suplantar o restante do grupo que, passivo, apenas aguarda e aceita a resposta dele. O grupo
deve auxiliar no desenvolvimento de todos: cada elemento deve dar a sua contribuição, e a
participação mais eficiente de um elemento não deve servir para ignorar os demais, que ainda
não alcançaram um determinado nível. É função do mediador dar oportunidade a todos de
sentirem-se capazes de auxiliar o grupo.
232
O modo de agir da criança leitora frente ao objeto de leitura depende, portanto, da
atuação do mediador. Uma criança que em contato com o texto foi impelida apenas a
decodificar o código verbal e retirar informações do texto tende a posicionar-se dessa maneira
com o objeto de leitura. Um leitor mirim que, ao contrário, é desafiado a decodificar e
construir sentidos a partir do que leu, transcendendo o que está posto no texto —,
espontaneamente terá esse comportamento no processo de leitura. A função mediadora, que
passa pelo modo com que o leitor se relacionará com o texto, é fundamental na definição do
tipo de leitor cujo desenvolvimento se objetiva auxiliar.
A aprendizagem mediada, portanto, alcança o seu objetivo auxiliar o sujeito a
tornar-se senhor da sua aprendizagem a partir da atuação do mediador, do modo com que
ele se comporta e exerce a sua função na EAM. Reuven Feuerstein aponta quatro
características fundamentais para que uma interação seja considerada mediada:
intencionalidade e reciprocidade, transcendência, mediação do significado e mediação da
consciência da modificabilidade. Essas são características que o mediador deve ter como base
na sua atuação, buscando manter um relacionamento aberto com o aprendiz, tendo
consciência de que aquilo que está sendo ensinado não deve ter apenas significado para
aquele momento, mas deve servir como degrau para que a criança alcance novos
conhecimentos, além de acreditar que a sua mediação associada à capacidade do aprendiz são
combustíveis para a transformação, isto é, para a modificação da criança em relação ao seu
modo de ver e relacionar-se com o mundo de informações que a cerca.
Essas características constroem a base da ão mediadora. No entanto, durante essa
ação, o mediador precisa também estar consciente a respeito de alguns comportamentos que
também são necessários para que o ato de mediar realmente seja uma maneira especializada
de interação e não se torne apenas um diálogo de perguntas e respostas, no qual o mediador
pergunta e o aprendiz responde, buscando sempre contentar o primeiro.
Por isso, o segundo caminho dessas considerações finais, que encerram essa pesquisa,
tenta delinear, a partir dos encontros de leitura mediada algumas ações as quais o mediador
deve estar atento, para que a experiência de aprendizagem mediada, não se torne uma
experiência de aprendizagem conduzida, na qual o ponto de vista do mediador prevalece
sobre o dos mediados. Dessa forma, com base na interação resultante da leitura mediada é
possível apontar algumas ações imprescindíveis no processo de mediação:
233
- permitir a alternância de papéis, tanto no que diz respeito ao turno do diálogo quanto em
relação ao próprio ato de mediar. A voz do mediadoro pode prevalecer durante a conversa
mediada, ela é apenas a voz que procura instaurar a discussão e que precisa silenciar mais do
que se pronunciar, permitindo assim que os aprendizes exercitem a sua capacidade
comunicativa e, conseqüentemente, o seu desenvolvimento cognitivo. O mediador não é o
único capaz de mediar, o aprendiz pode também atuar nessa função auxiliando seus colegas.
No processo de leitura, o leitor mediador tenta auxiliar as crianças a perceberem as
possibilidades de sentido existentes no texto, mas o seu olhar não pode ser considerado o
único. A visão da criança leitora, que está sendo mediada, pode e deve surgir como
possibilidade de leitura, como aconteceu, por exemplo, no encontro em que a narrativa
Raposa foi lida a partir do código verbal associado ao visual. Em determinado momento, uma
das crianças, S8, fixou-se em uma das imagens da personagem Raposa, percebendo o modo
com que o corpo dela estava disposto na página. Mesmo que essa tenha sido apenas uma
percepção e não tenha vindo acompanhada de uma interpretação, algo que surgiu a partir
da mediação, esse é um comportamento que não pode ser ignorado pelo mediador que deve
aproveitá-lo, demonstrando, assim, o próximo comportamento a ser discutido;
- deixar os aprendizes à vontade para se expressarem, talvez, deveria ser caso fosse
proposta uma lista crescente dos comportamentos que um bom mediador deve demonstrar
o primeiro comportamento fundamental de um bom mediador. Uma criança, que se diante
de um adulto que corrige tudo o que ela diz, não aceita as suas opiniões ou pouca atenção lhe
quando está falando, provavelmente, não terá vontade alguma de expor as suas idéias a
respeito do que leu. Mediar significa dar voz ao aprendiz, ouvir o que ele tem a dizer e tentar
tirar o melhor proveito disso para o processo de mediação e, principalmente, para o
desenvolvimento do sujeito como ser social e cognitivo. Elogiar um determinado sujeito, que
sempre traz boas contribuições e aceitá-las de imediato como, por exemplo, o S1 pode
ser algo prejudicial. As demais crianças do grupo de mediação podem se acostumar a esperar
que esse sujeito sempre dê a resposta correta. Para evitar esse prejuízo ao desenvolvimento de
todos os aprendizes, o mediador deve aceitar a resposta do sujeito que mais facilmente se
pronuncia, mas deve aplicá-la na elaboração de um novo questionamento, buscando, assim, a
participação de um ou mais sujeitos que se pronunciarão acreditando que o diálogo não se
fechou com a fala de seu colega;
234
- não ter pressa, não se mostrar ansioso, deixar que os sujeitos aprendizes construam um
sentido ou raciocínio. O aprendiz precisa ter tempo para pensar, para organizar suas idéias e,
assim, chegar às suas próprias conclusões. Esse comportamento comprova, mais uma vez, que
o mediador não pode fazer prevalecer a sua visão, as suas idéias, impondo-as às crianças o
que, às vezes, por pressa injustificável, acaba acontecendo e prejudicando o desenvolvimento
do aprendiz;
- o último comportamento que pode ser apontado nesse estudo e que de certa forma resume
todos os comportamentos discutidos anteriormente é aquele que diz que mediar não é
conduzir, mas auxiliar. Mesmo que em determinados momentos a mediação tome ares de
trabalho conduzido, é preciso que se tenha em mente que o trabalho mediado, envolvendo um
grupo, precisa ter um guia, que tenta fazer com que todos caminhem juntos. Dessa forma,
nem sempre a vontade de um pode prevalecer, não há como permitir que os sujeitos exercitem
constantemente a sua individualidade, pois o perigo de prejudicar o resultado quando uma
das crianças é privilegiada ou o mediador perde o controle do grupo. A experiência de
mediação em grupo precisa mesclar coletividade com individualidade, nessa pesquisa tomou-
se cuidado para atender a esse requisito: o texto lido era o mesmo, as leituras, às vezes,
podiam ser individuais, mas também eram coletivas em outros momentos para que a leitura
não ficasse apenas no nível da curiosidade, mas resultasse na construção de um sentido, a
partir do diálogo mediado.
Todos esses comportamentos surgem no movimento de análise dos encontros de
leitura mediada que ocorreram nesse estudo. O olhar crítico, voltado para atuação do
mediador nos encontros, propiciou o delineamento dessas ações indispensáveis na atuação
mediadora. Essas ações, portanto, surgem a partir da prática, e encontram apoio teórico na
discussão a respeito da importância do diálogo como princípio para o processo de
aprendizagem mediada.
Permitir a alternância de papéis, deixar os aprendizes à vontade para se expressarem,
não ter pressa e não conduzir, mas auxiliar, são ações do mediador que o auxiliam a atuar no
diálogo mediado, não como coordenador da conversa, mas como membro participante, assim
como os sujeitos aprendizes. A voz do mediador, portanto, sob esse ponto de vista, que surge
a partir da prática, não pode dominar o diálogo, isso, encontra apoio no conselho de Lipman
(1997, p. 44), que afirma costumar exortar o seguinte aos professores: “Sejam filosoficamente
235
discretos! Não façam preleções às crianças! Deixem que descubram por si mesmas e que, no
correr do processo, aprendam a pensar por si mesmas!”. Nessa perspectiva, o diálogo deve ser
uma alternância de vozes, um momento de expor as suas idéias e ser ouvido, de maneira que
todos falem e todos ouçam, sem que uma ação predomine para nenhum dos lados envolvidos.
Por isso, as ações destacadas tornam-se fundamentais no processo de mediação e no
estabelecimento de uma experiência de aprendizagem mediada que se desenvolve a partir do
diálogo.
Dessa forma, a relação leitor-texto foi possibilitada a partir do diálogo, isto é, da
metodologia dialógica, que “permite ao educador não apenas compreender a realidade do
educando, mas também interferir positivamente, através de sua prática pedagógica, na
realidade da criança, ajudando-a na construção e na significação crítica e criativa de seu
mundo” (CASAGRANDA, 2002, p. 56), no caso o mundo da leitura, foco desse estudo. Foi, o
diálogo mediado que auxiliou na busca pela resposta ao questionamento inicial: É possível
modificar o modo com que uma criança lê, influenciando-a a perceber os elementos e os
códigos envolvidos na construção do texto e, principalmente, a utilizá-los na compreensão do
que está sendo lido? E, com base no exposto, chega o momento de responder a esse
questionamento.
A mediação, como forma especializada de interação de um mediador com um aprendiz
possibilita modificação no modo de ver o mundo e, conseqüentemente, modifica o
comportamento do sujeito frente ao mundo e a si mesmo. Portanto, o ato de mediar significa
influenciar, modificar o sujeito a agir de maneira diferente frente ao objeto com o qual está
interagindo. Instigar o leitor mirim a perceber a presença de dois códigos passíveis de leitura
na construção de um texto significa auxiliar essa criança a modificar o seu modo de ler. A
vivência de uma experiência de leitura mediada proporciona à criança a possibilidade de
desenvolver a sua competência leitora, de transformar o seu comportamento leitor frente ao
texto, de despertar o seu olhar trazendo à tona a sua marca, a sua própria imaginação,
realizando assim a sua leitura, única em relação a todos os demais indivíduos que com aquele
texto interagirem (PILLAR, 1999). No entanto, é fundamental que não se ignore que o modo
com que esse leitor em formação perceberá o texto dependerá também da atuação do
mediador que tentará tirar proveito das possibilidades de evolução do sujeito leitor,
ampliando-as ou reduzindo-as, de acordo com o seu comportamento liberal ou restritivo.
236
O mundo da leitura está à disposição do olhar de qualquer leitor, mas é preciso que ele
seja visto e aproveitado da melhor maneira, de modo que a formação do leitor mirim comece
desde cedo e torne-se um processo gradativo e constante ao longo de toda a vida. Saber ler a
palavra e a visualidade que constituem alguns textos é um desses aprofundamentos
fundamentais para que o leitor amplie as possibilidades de interação com o texto. Para isso, o
leitor ainda em formação precisa de um guia, que o ajude a captar todos os estímulos que o
texto lhe oferecer, pois como diz Perin (2003, p. 28): “Os maiores bolsos que existem são os
olhos do homem/ que guardam todo o mundo”. Esse bolso guardará toda essa informação
se souber como lhe conferir algum sentido para organizá-la e tirar o melhor proveito, sendo
assim, capaz de compreender e agir diante do mundo.
237
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