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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
JOSÉ FERNANDO EHLERS DE MOURA
CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA
Porto Alegre
2006
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JOSÉ FERNANDO EHLERS DE MOURA
CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA
Dissertação apresentada a PUCRS
como requisito para obtenção
do título de Mestre na área de
Instituições do Direito do Estado
Orientador:
Dr. Eugênio Facchini Neto
Porto Alegre
2006
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha esposa Cristina e aos meus filhos Maria Francisca, Maria Cristina
e José Fernando, pelo estímulo e compreensão.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Eugênio Facchini Neto, pelos sábios conselhos e
fidalguia de trato.
RESUMO
Condições da Democracia
A presente dissertação objetiva investigar as condições necessárias para que exista e
se mantenha uma democracia.
Após esboçar-se um conceito sintético de democracia, examinam-se os três modelos
encontrados na história: a democracia antiga, a moderna e a contemporânea, buscando-se os
elementos permanentes existentes nesses três modelos.
Passa-se, após, à perquirição das condições, propriamente ditas, da democracia,
apurando-se a existência de condições institucionais, socioeconômicas, psicológicas,
psicossociais e éticas.
Sustenta-se que, para se manter a democracia com estabilidade e perenidade, é
necessário que ela se incorpore à vida e à cultura da sociedade e que seja aplicada em todas
as interações sociais, não devendo se constituir apenas em uma forma de se autorizar e
eleger governos. Impõe-se a participação de todos na solução de problemas comuns.
Exercida no lar, no trabalho, na sociedade, no governo do país, deve ser levada às
relações entre as nações, para banir-se as guerras, consagrando-se como um direito da
humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia. Ética. Direitos Humanos. Direito
Constitucional. Ciência Política. Sociologia. Filosofia.
ABSTRACT
Conditions for Democracy
This essay intends to investigate the necessary conditions for the existence and the
maintenance of a state of Democracy.
It begins with a synthetic concept of Democracy, analyzing three models pertaining
to History: the ancient, the modern and the contemporary concepts of Democracy,
identifying the permanent elements in the models.
Following, it deals with the proper conditions for Democracy, ascertaining the
existence of institutional, socioeconomic, psychological, psychosocial and ethical
conditions.
The essay asserts that, to maintain Democracy in stability and permanence, it is
necessary to incorporate Democracy to social life and culture as an interactive action, not
only as a way to authorize and elect governments, but also with the imposing participation
of all in the solution of common problems.
Exercised at home, at work, in society and by governments, Democracy must be
carried on to the good understanding between nations, to avoid and eliminate wars,
worshiped as a right of humanity.
KEY-WORDS: Democracy. Ethics. Human Rights., Constitutional Law. Political
Science. Sociology. Philosophy.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................9
2 EVOLUÇÃO DE ALGUMAS IDÉIAS E DE UMA PRÁTICA........................13
2.1 CONCEITO...........................................................................................................13
2.2 DEMOCRACIA ANTIGA....................................................................................15
2.3 DEMOCRACIA MODERNA. .............................................................................17
2.3.1 Origens doutrinárias: representação e representação política....................18
2.3.2 Montesquieu......................................................................................................20
2.3.3 Montesquieu e a representação política na democracia moderna...............21
2.3.4 A contribuição de Rousseau............................................................................23
2.3.5 Governo representativo e poder constituinte. Sieyès....................................29
2.3.6 Evolução da concepção da democracia...........................................................31
2.3.7 Os “modelos” de democracia liberal de Macpherson....................................33
2.3.8 Democracia contemporânea e a teoria das elites...........................................35
2.3.9 Joseph Schumpeter...........................................................................................37
3 CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA......................................................................40
3.1 A IMPOTÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO.............................................................40
3.2 CONDIÇÕES INSTITUCIONAIS...................................................................... 41
3.2.1 Condições institucionais da democracia.........................................................41
3.2.2 Condições institucionais imprescindíveis.......................................................45
3.2.3 Princípios do Estado de Direito. Common Law............................................48
3.2.3.1 Princípio da legalidade....................................................................................55
3.2.3.2 A igualdade perante a lei.................................................................................58
3.2.3.3 Amparo judicial...............................................................................................61
3.2.4 Democracia: conceito mais abrangente que o de Estado de Direito............63
3.2.5 Partidos políticos...............................................................................................64
3.2.6 Sistemas eleitorais.............................................................................................71
3.2.7 Os sistemas de governo.....................................................................................80
3.2.7.1 Presidencialismo............................................................................................81
3.2.7.2 Parlamentarismo............................................................................................83
3.2.7.3 Semipresidencialismo....................................................................................91
3.2.8 Críticas aos sistemas de governo...................................................................95
3.2.9 Sistema híbrido de governo sugerido por Giovanni Sartori......................104
3.2.10 Desvirtuamento da representação política e crise no Brasil....................107
3.2.11 Burocracia e tecnocracia.............................................................................110
3.3 CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS..............................................................111
3.3.1 Sociedades agrárias e industrialização.........................................................114
3.3.2 A necessidade de institucionalização política das sociedades simples em
transformação..........................................................................................................118
3.3.3 A propriedade privada e o preconceito liberal............................................120
3.3.4 Desenvolvimento socioeconômico e democracia...........................................123
3.3.5 A conversão de recursos econômicos em recursos políticos........................128
3.3.6 Modernização e mudança de valores, crenças e costumes..........................130
3.3.7 Desenvolvimento democrático: expansão das liberdades............................132
3.3.8 Países multiculturais e democracia................................................................133
3.3.9 As condições socioeconômicas no mundo contemporâneo..........................137
3.3.10 Crise do capitalismo e crise das conquistas trabalhistas...........................139
3.3.11 A nova tecnologia produtiva.........................................................................140
3.3.12 A globalização no século XX.........................................................................141
3.3.13 A progressiva ociosidade da mão-de-obra humana. Desemprego............143
3.3.14 Marginalidade, migração, violência e criminalidade.................................149
3.3.15 A desvalorização do trabalho e o aviltamento da dignidade humana......153
3.3.16 A solução democrática da distribuição da riqueza. Economia solidária..155
3.4 CONDIÇÕES PSICOLÓGICAS E PSICOSSOCIAIS.........................................159
3.4.1 O ocaso da República de Weimar...................................................................161
3.4.2 Crenças e valores. Condições culturais da democracia................................163
3.4.3 O caso da Argentina.........................................................................................165
3.4.4 A influência do modo como a sociedade encara a autoridade......................171
3.4.5 A influência do prestígio ou do êxito dos governos.......................................173
3.4.6 Costumes condicionantes: confiança, cooperação, participação..................175
3.5 CONDIÇÕES ÉTICAS..........................................................................................179
3.5.1 O descaminho ético dos meios de comunicação para induzir no povo falsa
consciência..................................................................................................................180
3.5.2 O elevado custo das eleições e as distorções do poder econômico................184
3.5.3 A corrupção política é infensa apenas ao regime democrático, não aos
regimes despóticos ou autoritários. .........................................................................187
3.5.4 O aumento da corrupção e suas causas...........................................................188
3.5.5 Fonte da corrupção no Brasil: insensibilidade e desprezo ao sofrimento dos
mais pobres.................................................................................................................193
3.5.6 Necessidade de concretização do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana......................................................................................................194
3.5.7 Desenvolvimento da sociedade como expansão das liberdades....................196
4 DEMOCRACIA: VIDA E CULTURA.................................................................197
4.1 NECESSIDADE DE VIVER OS VALORES DEMOCRÁTICOS NA VIDA
SOCIAL E EM TODOS OS AMBIENTES, COMO NO LAR E NO TRABALHO..197
4.1.1 Valor e cultura democrática nas relações familiares.....................................198
4.1.1.1 Necessidade de participação geral para a realização da democracia................199
4.1.1.2 O valor e a cultura democrática no trabalho.....................................................200
4.1.1.3 A necessidade e fecundidade do processo participativo para a realização da
democracia....................................................................................................................202
4.2 VISÃO MARXISTA E VISÃO DEMOCRÁTICA DA LUTA DE CLASSES.....204
4.3 EXTRAPOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE PELO CAPITALISMO:
ORIGEM DA DESIGUALDADE................................................................................205
4.4 DEMOCRACIA NA EMPRESA: AUTOGESTÃO...............................................210
4.5 “PAZ PERPÉTUA” (KANT): INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS. CIDADANIA UNIVERSAL.......................................................217
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................219
REFERÊNCIAS...........................................................................................................223
1 INTRODUÇÃO
Pretende a presente dissertação apurar as condições que contribuem para que surja,
subsista e se desenvolva o regime democrático nas várias sociedades humanas. Para tanto, o
método utilizado foi a pesquisa bibliográfica, que se serviu, inclusive, de pesquisas de
campo empreendidas por autores que constam de suas referências bibliográficas.
Inicialmente, na seção 2, intenta-se bosquejar um conceito amplo de democracia,
sem o que seria tarefa vã, e fadada ao malogro, buscar suas condições. Após os traços
ligeiros de um conceito sintético, com aquele objetivo apresentam-se três visões de
democracia encontrados na história do Ocidente, cujo confronto e comparação possam
proporcionar a ilação de alguns elementos permanentes: a democracia antiga, a democracia
moderna e a contemporânea, salientando-se sumariamente as contribuições doutrinárias de
maior significação dos pensadores sociais que versaram as duas últimas.
na seção 3 versam-se as condições da democracia propriamente ditas e expõe-se
sua atuação e influência, apuradas em quatro espécies distintas: condições institucionais,
condições sócioeconômicas, condições psicológicas e psicossociais e condições éticas.
Entre as condições institucionais salientam-se o Estado de Direito, a limitação do poder de
governar e a garantia judicial, baseadas nos princípios da legalidade, isonomia dos seres
humanos e amparo judicial, que asseguram os direitos e liberdades individuais, como
liberdade de reunião, de associação e de expressão e direito de voto.
Como condições institucionais também são contemplados: os partidos políticos,
pois, sem estes, a democracia não funciona; os sistemas eleitorais, que podem ampliar ou
restringir as manifestações de vontades dos cidadãos e propiciar ou cercear sua atuação na
formação do poder; e os sistemas de governo, que determinam a forma como o poder é
constituído e exercido.
O tratamento dispensado às condições institucionais remata com o enfoque do
magno problema suscitado pelo impacto do elevado grau de evolução tecnológica das
circunstâncias existenciais das sociedades contemporâneas na solução de seus problemas e
na sua administração, o que enseja a preterição da democracia pela tecnoburocracia ou
tecnocracia.
O exame das condições socioeconômicas da democracia discute a influência do
desenvolvimento social e econômico e do modelo da sociedade rural ou industrial na
participação maior ou menor do povo no governo, assim como o surgimento de instituições
políticas e a organização do poder na evolução de sociedades simples para sociedades
complexas. Aponta-se que a probabilidade de um país se desenvolver e manter um regime
aberto aos interesses da maioria da população depende da medida em que a sociedade e a
economia proporcionem alfabetização, educação e comunicação; criem ordem social mais
plural do que centralmente subjugada; e impeçam desigualdades maiores entre os estratos
politicamente relevantes do país. Não obstante, adverte-se que, embora uma economia
desenvolvida promova algumas condições exigidas para a democracia, não cria todas as
condições necessárias. Em uma situação de desigualdade social, verifica-se que a posse de
recursos econômicos por uma camada da sociedade converte-se na posse de recursos
políticos dessa camada para promover seus desígnios, amiúde em detrimento dos interesses
da maioria do povo, circunstância que remete para um regime político hegemônico ou
autocrático. Sob outro ângulo, sugere-se à proporção que um país atinge níveis
superiores de industrialização reduzem-se as desigualdades excessivas em recursos
políticos de monta. Embora esse processo não promova igualdade, ele disponibiliza
igualdade maior na distribuição de recursos políticos. De outra parte, observa-se a
modernização dos países importa mudança fundamental em valores, atitudes e expectativas
dos indivíduos e das sociedades. Considera-se que desenvolvimento democrático do país
identifica-se com processo de expansão das liberdades reais das pessoas, o que repele
concepções mais restritas de desenvolvimento, como a que o assimila ao crescimento do
Produto Nacional Bruto (PNB).
Contemplam-se, ainda, os problemas suscitados para a vida democrática pelos
conflitos étnicos em países multi-culturais. Abordam-se, outrossim, as particularidades das
condições socioeconômicas do mundo contemporâneo, com o amesquinhamento da
contraprestação do trabalho, a precarização deste e o desemprego provocado pelo novo
modelo de produção industrial e pela tecnologia; e conseqüente incremento da
desigualdade, com ameaça à sobrevivência de milhões de criaturas, situação que,
concomitantemente, dissemina miséria, violência e crime. Esse panorama sem dúvida
aniquila a dignidade humana e constitui condição negativa à existência da democracia. Em
contraposição, como condicionamento positivo à democracia, sugere-se o incremento a
uma economia social ou solidária.
No que tange às condições psicológicas e psicossociais, examina-se o poder das
idéias ou crenças e costumes de um mero de pessoas envolvidas no projeto político e no
implemento da respectiva forma de governo, idéias ou crenças compartilhadas pelos
ativistas políticos que reúnem as condições para adoção do projeto, os quais as propagam
ao povo. Sob esse enfoque analisam-se o colapso da República de Weimar e a ascensão do
nazismo e os infortúnios da Argentina no século XIX e nos primeiros três quartos do século
XX para encontrar-se com seu povo, onde os estratos hegemônicos nutriam a concepção de
que eleições perdidas podiam ser revertidas pela força, ou promoviam eleições desde que
tivessem certeza de que seus adversários não as vencessem.
Salienta-se ainda o modo como a cultura encara suas autoridades e seu governo e
como se relaciona com eles, assinalando-se o modelo de interação que pode favorecer o
governo democrático ou o governo autoritário, contrapondo-se os valores culturais da
Noruega com os do grupo tribal Amhara da Etiópia. Complementam-se os
condicionamentos dessa natureza, observando-se as influências do prestígio ou êxito dos
governos, assim como dos costumes padronizados no convívio social, tais como confiança,
cooperação e participação. Por fim, apura-se a necessidade de condições éticas para a
existência e funcionamento da democracia, declinando-se as virtudes necessárias para tanto,
como também os efeitos da atuação dos meios de comunicação, do elevado custo de
eleições e da interferência do poder econômico. Foca-se o impacto da corrupção e buscam-
se suas causas.
No seção 4 – Democracia: vida e cultura, discorre-se sobre a fecundidade da
extensão do valor democrático a todas as formas e situações de interação social, nos
diversos ambientes, assim como as decorrências dessa praxe, apanhando o desenvolvimento
e a propagação da democracia a círculos cada vez mais amplos até a convivência
internacional.
2 EVOLUÇÃO DE ALGUMAS IDÉIAS E DE UMA PRÁTICA
2.1 CONCEITO
A espécie humana vive e sobrevive em sociedade, realidade, ao que consta,
Aristóteles foi o primeiro a proclamar. Os trânsfugas da sociedade são exceções que
revelam pessoas, na maioria das vezes, acometidas de moléstia mental, exceções, portanto,
confirmadoras da regra de que o meio natural de vida humana é a sociedade dos homens. E
não sociedade sem organização política. Como observou o professor Cezar Saldanha
Souza Junior,
A ligação entre o social e o político não é meramente acidental, no sentido de que
possam ser separados, sem afetar a realidade de cada um desses elementos. Ao
contrário, trata-se de uma relação essencial: não há o político sem a sociedade, nem
a sociedade sem o político,
como ainda,
a história não nos proporciona nenhum exemplo de sociedade desprovida de
qualquer organização política, ainda que rudimentar. Supor que possa existir
sociedade sem organização política, seria crer em uma espontaneidade auto-
organizadora dela própria (Freund). Mesmo para os contratualistas clássicos, como
por exemplo Hobbes e Rousseau, o ‘estado de natureza’ anterior à organização
política não era um fato histórico ou real. Tratava-se de uma hipótese a que
recorriam para, em representando como seria a vida humana fora de uma unidade
política, avançarem princípios normativos de como a sociedade deveria ser
politicamente reorganizada (Ferreira Filho).
1
1
FERREIRA FILHO apud SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre:
Sagra-Luzzatto, 2002 (b). p. 45 e 20-21.
Não foi outra a lição de Burdeau: “Le politique est si profondement inclus dans le
social que l’on ne peut l’en extirper sans que la societé se dissolve”
2
Por democracia” assinala Norberto Bobbio entende-se uma das várias formas
de governo, em particular aquelas em que o poder não está nas mãos de um ou de
poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas
autocráticas, como a monarquia e a oligarquia
3
. O mesmo autor em outra obra conceitua
democracia, em linhas gerais,
no único sentido em que se pode falar racionalmente de democracia sem permitir
enganos, ou seja, um sistema no qual vigorem e sejam respeitadas algumas regras
que permitam ao maior número de cidadãos participar direta ou indiretamente das
deliberações que em diversos níveis (locais, regionais, nacionais) e nas mais
diferentes sedes (a escola, o trabalho, etc.), interessam a coletividade.
4
Entendemos que a síntese perfeita de governo democrático foi formulada por
Lincoln, quando disse que “democracia era o governo do povo, pelo povo e para o povo”,
caso se afastasse a impossibilidade, apontada por alguns politicólogos, de o povo governar-
se a si mesmo. Diz-se democrática uma unidade político-administrativa, assentada num
território, quando se faculta a todos os seus habitantes, sem qualquer distinção, a não ser a
implementação de idade que presumivelmente supere a infância, a escolha dos governantes
e das regras de convivência, esta diretamente ou através de representantes. Este é um
conceito singelo, de senso comum, que não pretendemos questionar nem desenvolver neste
momento inicial de abordagem do tema, o qual serve apenas, como definição estipulativa,
na expressão dos semióticos anglo-saxões, como estaca provisória destinada a sondar as
condições do solo para posterior estaqueamento seguro da edificação.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho divisa com nitidez três modelos de democracia no
curso dos tempos: a dos “antigos”, de que Atenas é o grande exemplo; a dos “modernos”,
2
A política estão profundamente inserida no social que o se pode extirpá-la sem que a sociedade se
dissolva” (tradução livre) apud BURDEAU, G. Traité de science politique. Paris: Librarie Générele, 1966. p.
119 e 401- 402.
3
BOBBIO, N. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 7.
4
BOBBIO, N. Qual socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 46.
que se identifica com o “governo representativo”; e a “contemporânea”, que oferece
aspectos originais em relação às formulações anteriores
5
.
2.2 DEMOCRACIA ANTIGA
Na Antigüidade, a democracia foi praticada apenas na Grécia, segundo a opinião
dominante dos historiadores, que nos legaram conhecimento mais pormenorizado de
Atenas, embora várias outras cidades-estado gregas tivessem sido governadas pelo povo,
cujas instituições, porém, são escassamente conhecidas. Portanto, ao falar de democracia
antiga, reportamo-nos à democracia ateniense, que foi, na verdade, democracia para
poucos, para os cidadãos, enquanto mantinha uma numerosa massa de escravos. Como as
demais cidades helênicas, Atenas experimentou, na sua vivência histórica, diversas formas
de governo: monarquia, aristocracia, e, em torno de 509 a.C., fez-se democracia,
inaugurando essa forma de governo na História da humanidade. Naquela época
introduziram-se as reformas preconizadas por Clístenes, considerado o fundador da
democracia de Atenas. Assim, ao versar democracia, as obras de Platão e Aristóteles
contemplavam a democracia ateniense. Todavia, esse regime não perdurou por muito
tempo. Em decorrência da derrota na guerra do Peloponeso a democracia foi extinta, por
volta de 404 a.C. Reintroduzida em 403 a.C., suprimida em definitivo em 322 a.C.
Entretanto, foi na vigência do regime democrático que Atenas atingiu o apogeu econômico
e cultural. Nesse período o povo governava-se diretamente, pois a Constituição ateniense
previa como órgão máximo a assembléia popular (ecclesia), da qual deveriam participar
todos os cidadãos atenienses, podendo eles usar da palavra, formular propostas, inclusive
leis. As decisões eram adotadas pela maioria de votos dos presentes. Fixou-se um quorum
5
FERREIRA FILHO, M. G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 1-36
mínimo para certas deliberações, um jeton pela presença (em proveito dos pobres) e uma
multa pela ausência (dos ricos), pois as assembléias não atraíam os cidadãos.
Significativa definição de democracia encontramos, nessa Antigüidade grega, na
peça “Os Persas” (472 a.C.) de Ésquilo, quando Atossa pede para ser instruída sobre Atenas
e seu povo, o coro responde simplesmente com este verso: “Eles não são escravos nem
súditos de homem nenhum”. Nessa visão dos atenienses, por um ateniense, vislumbra-se a
forma de organização de um povo com liberdade ideal ou genuína democracia.
Considerava-se cidadão ateniense o homem, filho de pai ateniense e de mãe filha de
pai ateniense, determinando-se, portanto, a cidadania pelo sangue, embora, em caráter
excepcional, se concedesse a prerrogativa de cidadão, por deliberação da assembléia, a
quem não reunisse os requisitos mencionados. Portanto, não usufruíam a prerrogativa da
cidadania, não gozando da participação política, as mulheres; os homens nascidos em
Atenas que não fossem filhos de pai ateniense e de mãe filha de pai ateniense (os metecos)
linha de filiação estabelecida desde a reforma de Sólon (591 a.C.), que promovera um
levantamento dos atenienses –; os libertos, assim como os estrangeiros e os escravos. Com
tais limitações à cidadania, no período de esplendor da civilização helênica, o número
aproximado de cidadãos era de 40.000, enquanto que a população era de 300.000,
aproximadamente, de modo que os cidadãos representavam apenas 13% da população, aos
quais incumbia deliberar sobre toda a matéria política fundamental, como guerra e paz,
aprovação de tratados, edição de leis, etc.
Após a morte de Péricles (429 a.C.), ao começo da guerra com Esparta, exacerbou-
se a luta política entre facções radicais, que buscavam, na luta pelo Poder, afanosamente,
sua vitória e a derrota dos grupos adversários a qualquer preço, com prioridade, inclusive,
sobre a vitória na guerra. Nesses embates muitos viram surgir a figura do demagogo,
político que explorava as paixões populares visando sua vitória pessoal ou de sua facção,
difundindo falsidades com aparência de realidade e iludindo a opinião pública, com
prejuízo do bem comum. Com a proliferação dos demagogos a administração da polis
desviou-se de seus fins sadiamente desejáveis para atender às pretensões pessoais dos
demagogos, descaminho a que historiadores atribuíram a decadência de Atenas e ao qual
Platão e Aristóteles vincularam a democracia para menosprezá-la. Essa visão da função do
demagogo na história ateniense não é, entretanto, pacífica. M.I. Finley, v. g., utiliza o termo
em sentido neutro, sustentando que os demagogos constituíram elemento estrutural do
sistema político ateniense, o qual restaria sem função sem eles; assim o termo se aplicaria
igualmente a todos os líderes, independentemente de classe ou ponto de vista, os quais
foram julgados, largamente, não por suas maneiras ou métodos, mas individualmente, por
seu sucesso ou fracasso, aduzindo, mais adiante, que os demagogos foram os arquitetos
daquela estrutura política e os construtores da política
6
.
2.3 DEMOCRACIA MODERNA
Passaram-se séculos sem que se cogitasse algo sobre democracia ou que se tivesse a
idéia de revivê-la. Após a Idade Média, na esteira do Renascimento e na aurora do
Iluminismo, ressurge a idéia da democracia sob o invólucro e a concepção da República.
Delineia-se o projeto da democracia moderna. Relega esta o governo direto pelo povo e
concebe como idéia fundamental o governo representativo. Contribuíram sobremaneira
para o projeto da democracia moderna Montesquieu, através De L’Esprit des lois..., (1748),
Jean Jacques Rousseau, com Contrat social (1762), não obstante rejeitasse a idéia da
democracia representativa, e Sieyès, com discursos e escritos diversos.
6
FINLEY, M. I. Democracy ancient and modern. New Jersey: Rutgers University Press, 1985. p. 69 e 75
2.3.1 Origens doutrinárias: representação e representação política
Originariamente, o conceito de representação não se inseria no contexto político,
pois traduzia o ato de apresentar-se alguém perante um tribunal ou apresentar-se por
intermédio de procurador. Essa concepção inicial era jurídica e correspondia à prática do
direito em Roma. Significava, também, a inserção na mente do que se achava ausente, a
presença em imagem mental de algo exterior ou distante, por obra de operações realizadas
pelo intelecto. Por fim, definia-se como representação a atuação dos atores que encenavam
uma peça teatral, simulando vivência de personagens inexistentes. Exceto na hipótese da
apresentação em pessoa ao tribunal, em todos os outros casos representação significa estar
no lugar de. A transposição do mundo exterior para a mente ou idéia da pessoa
(representação mental) foi objeto da teoria do conhecimento e ensejou a criação de sistemas
e renhidas controvérsias filosóficas na modernidade, que não nos cabe enfocar nesta
dissertação. O tema da representação ingressa na esfera política a partir de Hobbes, o qual é
versado no capítulo XVI do livro II do Leviatã. Haja vista esta curta passagem, escolhida
aleatoriamente:
Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada
por um só homem ou pessoa, de tal maneira que seja feito com o consentimento de
cada um dos que constituem essa multidão. Porque é a unidade do representante e
não a unidade do representado que faz com que a pessoa seja una. E é o
representante o portador da pessoa e só de uma pessoa. Esta é a única maneira
como é possível entender a unidade de uma multidão (p. 98).
Relevante na análise teórica da representação de Hobbes é a teoria da autorização, a
qual lhe enseja elaborar a concepção do Estado como Pessoa Artificial, representante das
pessoas naturais, dos indivíduos como cidadãos-súditos que autorizam o representante a
falar e agir em seu nome. O que importa, para Hobbes, é que a autorização decorre do
consentimento dos indivíduos de alienar para a Pessoa Artificial, para o Estado, o direito de
fazer e promulgar leis, praticar a vingança ou usar a força, governar, declarar a guerra e a
paz, direito que não pode retornar aos representados, após cedido ou alienado. A
autorização faz o soberano representante da multidão por consentimento voluntário e essa
autoridade é irrevogável, salvo quando ameaça o direito à vida dos súditos.
Ao identificar a Pessoa Artificial com a Pessoa Pública e definir soberano como
representante autorizado, Hobbes reformula o entendimento de representação na política, se
o compararmos com o anterior professado pela teologia política medieval. Para esta,
representar consistia, primacialmente, em ser autorizado a ter poder, tendo-o recebido da
fonte originária de todo poder, que é Deus, por obra da graça ou por um favor. Assim,
representar é receber o poder de Deus para ser seu representante entre os homens. Nessa
concepção medieval, o governante não atuava em nome dos governados, nem falava em
nome deles, que não os representava, mas agia e falava em nome de Deus, que detinha o
Poder. O representante ocupava o lugar de Deus na terra, na condição de seu vigário,
concepção que alimentou as repetidas e infindáveis guerras entre imperadores e papas para
decidir quem havia sido investido como o vigário divino. Contrariamente, para Hobbes, a
instituição do Estado resulta da concordância e do pacto de uma multidão de homens de
autorizar todos os atos e decisões do homem ou da assembléia de homens a quem seja
conferido pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles, devendo tal
autorização ser dada por todos, sem exceção, tanto pelos que votaram a favor dele como
pelos que votaram contra ele, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de
viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens. Desta
instituição do Estado é que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a
quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido. Portanto, a
representação surge do pacto e do ato de autorização por meio do qual o soberano se torna
representante das pessoas dos súditos, portador delas, não podendo ser destituído. O pacto
constitui alienação de direitos e não pode ser desfeito sem caracterizar guerra civil. Assim,
com Hobbes, a fonte do poder se desloca de Deus ou da Natureza para a sociedade.
2.3.2 Montesquieu
Montesquieu (De l’Esprit des lois) classifica três espécies de governo: o
Republicano, o Monárquico e o Despótico (p. 31). Escreve ele que “Quando, numa
república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia” (p.
31). Nela todos os cidadãos decidem sobre as questões de interesse comum, da mesma
forma que na democracia antiga. Montesquieu não a censura, não a menospreza, nem a
julga utópica. Apenas aduz que “num Estado popular, é preciso uma força a mais: a
Virtude” (p. 41), a qual constitui o princípio dessa forma de governo, enquanto que a honra
e o temor constituem o princípio, respectivamente, do governo monárquico e do governo
despótico. Todavia, exige várias qualidades para essa virtude, sem as quais a república ou a
democracia ruiria, exigências que, por óbvio, dificultam enormemente a viabilidade da
democracia, integrada por homens comuns, com os vícios e defeitos comuns dos humanos.
Examinando a Constituição da Inglaterra, observa Montesquieu a existência de três
espécies de poderes, no Capítulo VI do Livro XI (De L’ Esprit des Lois), aduzindo que não
existe liberdade “quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder
legislativo está reunido ao poder executivo” (p. 149). Prosseguindo:
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder
legislativo e do executivo...Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo
corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de
fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as
divergências dos indivíduos (p. 149).
Inspirado na Constituição da Inglaterra, Montesquieu apreendeu o mecanismo
institucional de controle do poder pelos seus próprios órgãos e o legou à posteridade, o qual
se tornou precioso instrumento da democracia moderna. A seguir, no mesmo Capítulo, após
reconhecer que “num Estado livre, todo homem que supõe ter uma alma livre deve
governar a si próprio” (p. 150), afirma ser
necessário que o povo, no seu conjunto, possua o poder legislativo. Mas como isso
é impossível nos grandes Estados, e sendo sujeito a muitos inconvenientes nos
pequenos, é preciso que o povo, através de seus representantes, faça tudo o que não
pode fazer por si mesmo (p. 150).
Aduz Montesquieu ser conveniente que “em cada localidade principal os habitantes
elejam entre si um representante” (p. 150).
A grande vantagem dos representantes é que são capazes de discutir os negócios
públicos. O povo não é, de modo algum, capaz disso, fato que constitui um dos
graves inconvenientes da democracia” (p. 150). no Capítulo II do Livro II o
autor afirmava que “o povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar
parte de sua autoridade” (p. 32),
mas negava que fosse capaz de dirigir um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os
momentos e aproveitá-lo” (p. 32). Esclarece, ademais, Montesquieu não ser necessário que
os representantes do povo, que receberam uma instrução geral dos que os elegeram,
recebam outra particular para cada questão a decidir, como ocorria nas dietas da Alemanha,
o que ocasionaria infinitas delongas, tornaria cada deputado senhor de todos os demais,
além do perigo de um capricho paralisar toda a força da nação nas ocasiões mais urgentes
(p. 150). Repele, pois, o mandato imperativo.
2.3.3 Montesquieu e a representação política na democracia moderna
Montesquieu assume a concepção laica da representação e confere-lhe elementos
mais modernos, como a eleição dos representantes. Parece claro em Montesquieu que o
representado deve escolher, através de eleição, seu representante, contrariamente à praxe da
democracia antiga, para a qual o sorteio era o instrumento democrático, enquanto que a
eleição era considerada pelos gregos, instrumento aristocrático. Infere-se, também, das suas
palavras, que Montesquieu define a amplitude da representação do legislador ou do
governante.
Como nota Ferreira Filho
7
, Montesquieu adota uma nova idéia de representação, na
qual o representante não se limita a atuar como um mero porta-voz que transmite a vontade
preexistente do representado, mas se constitui em alguém mais sábio que este, que fala por
ele. Trata-se da representação moderna, ao contrário da representação antiga ou medieval
(não a do poder político exercido pelo rei ou imperador em nome de Deus), a qual, na
forma laica, correspondia ao mandato como contrato de direito privado, em que o
mandatário se limitava a seguir as instruções do mandante, configurando o mandato
imperativo. Na representação política, advogada por Montesquieu e que veio caracterizar a
democracia moderna, o representante defende os interesses do representado, mas goza de
autonomia nessa defesa, orientando-se pelos seus próprios critérios. Além do conceito mais
amplo da representação, transparece do escólio de Montesquieu um preconceito autoritário
ou, como quer Ferreira Filho, “um elemento aristocrático: o governo exercido pelos mais
capazes.”
8
.
Temos aí, na obra de Montesquieu, entre outros tantos contributos, as duas idéias
fundamentais do que, nos fins do século XVIII, se convencionou denominar república (res
publica, originariamente) ou “governo representativo”: eleição e representação política,
idéias que marcaram a democracia moderna, embora os mais renomados publicistas da
época não pretendessem que com esses dois institutos se edificasse a democracia, pois esta
era mal vista, manchada sua concepção dos vícios encontrados na democracia ateniense, ou
encarada com temor, temor de que a choldra pudesse confiscar os bens dos ricos, mormente
no período histórico de formação dos direitos fundamentais da primeira dimensão (séc.
XVIII), concernentes às liberdades e propriedade.
Ocorre que na modernidade a democracia é concebida, primeira, como política e, só
mais tarde, como social. Como afirma Janine Ribeiro, essa seqüência não existiu entre os
antigos
Para os gregos, a democracia é política e social. Basta ler os comentadores gregos,
mesmo os inimigos da democracia: quando falam de oi polloi (os vários, os
muitos), se referem ao povo não como entidade jurídica, mas como o grupo de
pobres. Por isso a grande crítica à democracia é que ela pode confiscar os bens dos
7
FERREIRA FILHO, M. G. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 14.
8
Ibidem.
ricos. Dizem os seus críticos que seria injusto e tirânico o populacho valer-se de
seu número para expropriar as riquezas dos poucos.
9
Como afirma José Antônio Giusti Tavares:
na tradição da teoria clássica do Ocidente, em Platão e Aristóteles em particular, a
democracia era entendida como uma forma política perversa e designava um
regime no qual a maioria pobre e, logo, os seus dirigentes, expropriavam a maioria
rica e governavam despoticamente, sem qualquer limite legal.
10
Essa conotação negativa da democracia persistirá por longo tempo, indo contaminar
políticas e doutrinas destinadas aos interesses das maiorias, sabidamente pobres, quando
contrárias aos interesses de minorias ricas detentoras do poder.
2.3.4 A contribuição de Rousseau
Não obstante, o substrato da democracia antiga” vai se enriquecer, no dealbar da
modernidade, de um travejamento coerentemente articulado, embora possa merecer a
censura de artificioso, na obra de Jean-Jacques Rousseau, Contrat Social (1762). Buscando
os fundamentos racionais da sociedade e do Poder, partiu Rousseau, assim como vários que
o antecederam, do estado de natureza em que se achava a humanidade primitiva.
Contrapôs-se, todavia, Rousseau a Hobbes, pois concebeu o homem na natureza como
originariamente bom propenso a conviver em harmonia com seus semelhantes, no gozo dos
direitos emergentes da natureza, os direitos naturais. A liberdade do homem no estado de
natureza era perfeita: ele fazia o que queria e só queria o que podia. Entretanto, essa
liberdade é impossível no estado civil, onde se pode almejar apenas uma “liberdade
imperfeita” (ROUSSEAU, p. 77). A liberdade imperfeita é a liberdade civil, que tem
9
RIBEIRO, R. J. A democracia. São Paulo: Publifolha, 2002. p. 41.
10
TAVARES, J. A. G. O que esperar da social-democracia no Brasil? Brasília: Instituto Teotônio Vilela,
2003. p. 18.
limites impostos pela vontade geral, enquanto que a liberdade natural tinha limites na
vontade, nas próprias forças do homem. A liberdade subordinada antes à vontade exclusiva
do indivíduo é agora concebida como sujeita exclusivamente à vontade geral. Como esta é
a “verdadeira” vontade do indivíduo, soluciona-se o problema fundamental da vida política,
isto é, conciliar liberdade e domínio: o indivíduo obedece a si mesmo ao obedecer à
vontade geral.
O contrato social realiza não somente a liberdade civil, mas também a liberdade
moral. Ele produzirá a vontade geral que elevará o homem além do egoísmo de sua vontade
particular, por meio da obediência rigorosa à lei. Essa sujeição não obsta que seja livre,
sendo antes garantia da sua liberdade, pois “o impulso do puro apetite é escravidão, e a
obediência à lei que se deu a si mesmo é a liberdade”.
11
Mas como condição da liberdade faz-se necessário realizar a igualdade, “porque a
liberdade não pode subsistir sem ela”.
12
. Na sociedade, a igualdade também se transforma.
Não é mais a igualdade natural, mas a igualdade civil que precisa existir. A igualdade civil
“corrige”, de algum modo, as disparidades da natureza, onde uns e outros podem ser
diferentes de acordo com a força e as qualidades naturais. Assim os homens, “podendo ser
desiguais na força ou no gênio, tornam-se iguais por convenção e direito”.
13
Com efeito, se
a desigualdade natural não causa sujeição no estado de natureza, que os homens vivem
isolados, a desigualdade, no estado civil, criaria dependência de alguns em relação a outros,
ameaçando a liberdade. Para afastar essa ameaça, Rousseau propugna pela igualdade
econômica, sustentando que se deva assegurar que não haja grandes diferenças no que
tange às riquezas, pois a desigualdade material origina a sujeição de uns em relação a
outros.
Todavia, a sociedade, pela forma como se organizou, mormente por força da
propriedade, engendrada pela agricultura, provocou desigualdades que culminaram por
deturpar e perverter os homens. Com a propriedade passa-se do estado de natureza para o
estado social. “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado
11
ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. Paris: Le Livre de Poche, 1996. Livre I, cap.VIII, p. 37.
12
Idem, p. 66.
13
Idem, cap. IX, p. 39.
um terreno, lembrou-se de dizer: Isto é meu; e encontrou pessoas, suficientemente simples,
que acreditaram nele”
14
. estaria a origem dos crimes, guerras, males sociais e demais
horrores.
Impõe-se o contrato social para instaurar não só o poder, como também a vida
social, pois esta não é natural ao homem. Se vivemos em sociedade, pelo pacto dos
detentores da propriedade, dos ricos, cumpre restaurar a vida social em novas bases, já que
o poder civil carece de legitimidade, pois tutela o interesse dos ricos contra os pobres,
estando toda a vida social desvirtuada pelo domínio do homem sobre o homem.
Não obstante, a propriedade origina a idéia de justiça, que “dar a cada um o seu”
implica uma certa partilha, como também leis que regulem sua aquisição, conservação e
perda. Por intermédio da justiça e das leis se estrutura a vida em sociedade. Impõe-se, por
conseguinte, refazer a organização social, assim como o poder político que a assegura, a
fim de que possa o homem viver em harmonia com sua natureza específica. Orientar essa
reconstrução foi o objetivo do Contrat Social.
A refundação da república se obtém pelo contrato social que instaura uma nova
sociedade, livre do domínio, assim como um novo poder, originário e tutelar do povo. O
contrato social constitui “o ato pelo qual um povo é povo”, estabelecendo “o verdadeiro
fundamento da sociedade”.
15
É ato unânime e deve ser tacitamente acolhido em toda
sociedade bem ordenada, embora não tenha forma expressa. Consoante escreveu Rousseau,
o problema fundamental a ser solucionado pelo contrato social “é encontrar uma forma de
associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força
comum, e por meio da qual cada um, unindo-se a todos, obedeça, contudo, a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes”.
16
Cogita Rousseau que, sendo os homens livres e iguais em direitos, somente se
associariam, para viver em melhores condições do que no estado de natureza, contanto que
14
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens discours
sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes (bilíngüe). Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1971. p.
87.
15
ROUSSEAU, J. J. Contrat Social. Paris: Le Livre de Poche, 1996. Livro I, cap. 5, p. 31.
16
Idem, p. 32.
conservassem a liberdade e os direitos naturais e se beneficiassem, além disso, da força
decorrente dessa associação. Considera Rousseau que o objetivo será atingido desde que o
pacto disponha: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a
direção suprema da vontade geral; e nós recebemos cada um como parte indivisível do
todo”
17
. Portanto, todos se associam, submetendo-se à vontade geral. O instrumento
adequado, por conseguinte, é a vontade geral, que “é sempre reta e tende sempre à utilidade
pública”
18
. Para Rousseau, essa vontade não se identifica com a “vontade de todos”,
embora se manifeste com a participação de todos. Enquanto a vontade geral decorre do
interesse comum, a “vontade de todos” é a vontade de interesses “parciais”, de facções ou
de partidos
19
.
No pacto defendido por Rousseau não separação entre governante(s) e
governados. Todos são governantes (não se submetem a ninguém, permanecendo livres) e
governados, simultaneamente. Mas todos se sujeitam a uma vontade impessoal, a que
resulta da participação de todos, a mencionada vontade geral, que se expressa na lei.
Na concepção rousseauniana da vontade geral estava implícito que o povo inteiro
constituísse uma unidade orgânica ou homogênea, distinta dos indivíduos que a integravam,
e portadora de uma vontade única. Nota Luís Fernando Barzotto que essa concepção de
povo não é inédita na história do Ocidente, pois já estava presente na prática e teorias
gregas.
20
Se democracia é o regime político no qual o povo (demos) governa, qual o sentido
de povo, demos, para os gregos? Viam eles como povo, de início, não o conjunto dos
cidadãos, mas a maioria das pessoas, na qual predominavam os pobres. Daí ter Platão, na
República, atribuído a Sócrates a definição de democracia como o governo dos pobres.
Aristóteles, na Política, adota o mesmo conceito: “O regime é uma democracia quando os
livres e pobres, sendo a maioria, exercem a soberania”.
21
Essa concepção confere uma
característica socioeconômica à democracia, antes que política. A história de Atenas, aliás,
confirma essa conotação, pois se introduziu a democracia em decorrência de luta contra
17
ROUSSEAU, J. J. Du contrat social. Paris: Le Livre de Poche, 1996. Livro I, cap. VI, p. 33.
18
Idem, Livro II, cap. 3
19
Ibidem.
20
BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2003. p. 85.
21
ARISTÓTELES, Política, IV apud BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS:
Ed. UNISINOS, 2003. p. 52.
os eupátridas, que constituíam a nobreza, a primeira das três classes em que Teseu dividiu o
povo ateniense, à qual incumbia fazer e executar as leis. Críticos da democracia ateniense,
entre os quais Aristóteles, qualificavam-na como regime deturpado pelo fato de nela o
poder se exercer em proveito de uma facção dos pobres, do demos e não do conjunto
dos cidadãos, facção aquela que se deixava arrastar pelos demagogos.
A concepção de povo como unidade orgânica, possuindo interesses únicos, que
lavrava entre os gregos, vai empolgar a visão da sociedade em Rousseau e a Revolução
Francesa, na modernidade ocidental. Para Rousseau, ela constitui a garantia da igualdade e
da liberdade de todos os cidadãos. A essa visão de democracia que contempla o povo como
uma totalidade unificada, dotada de vontade única, Luís Fernando Barzotto chama de
“plebiscitária” (BARZOTTO, 2003, p. 89) :
O que importa, para a caracterização da democracia plebiscitária, é que, no seu
funcionamento, a lei ocupa o lugar central. Ela é concebida como a expressão da
vontade geral, a vontade do povo. Este, nas suas assembléias, dispensa a discussão,
uma vez que, por definição, o povo deve ter uma única vontade, devendo os
indivíduos consultarem-na no seu íntimo. Todo o processo político tem como ideal
a unanimidade. O dissenso é visto como um sintoma patológico da vida política, e a
minoria está simplesmente errada, pois é na maioria que a vontade geral se
manifesta.
22
Somente a lei contém a vontade geral. Ela também deve prever as ocasiões em que
o povo tenha de se reunir em assembléia para legislar. A função da assembléia é revelar a
vontade geral, isto é, a lei. Em decorrência não se deve perguntar ao cidadão o que pensa,
qual é sua vontade particular sobre determinado problema ou controvérsia, mas o que ele
pensa ser a vontade geral, pois o cidadão se converte em órgão da vontade geral. Nessas
condições, o raciocínio daquele que foi derrotado na votação poderia se reconstituir da
seguinte maneira:
Quando, pois, domina a opinião contrária à minha, tal fato não prova senão que eu
me equivocara e aquilo que julgara ser a vontade geral não o era. Se minha opinião
particular tivesse predominado, eu teria feito algo diferente do que eu quisera;
então eu é que não seria livre.
23
22
BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2003. p. 117-118.
23
ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. Paris: Le Livre de Poche, 1996. Livro IV, cap. II, p. 121.
O sentir é o predominante na existência, segundo Rousseau, de modo que existir é
sentir. A sensibilidade antecede a inteligência, tivemos sentimentos antes de ter idéias.
24
Os
conflitos, as controvérsias descabem quando a vontade geral domine as consciências
individuais. Basta que cada um ausculte os seus sentimentos. Aquele que propuser uma lei
não fará senão dizer o que todos sentiram, não cabendo divergências nem eloqüência
para se lograr a aprovação da lei, a que os demais aderiram, desde que esteja seguro
dessa adesão. Nesse entendimento, o diálogo e o debate de idéias e argumentos não são
hábeis para buscar a vontade geral. Pelo contrário, sua omissão assegura que o deliberado
majoritariamente traduz a vontade geral:
Se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos
qualquer comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria
sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa.
25
Daí ser necessário que “cada cidadão opine de acordo consigo mesmo”. A lei,
obra da vontade geral, realiza a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos. Nenhum
governante, nem a monarquia hereditária podem pretender colocar-se acima da lei, pois o
governante é membro do Estado e, como tal, não pode esquivar-se a se submeter à vontade
que anima o Estado, que é a vontade geral expressa na lei. Essa concepção da igualdade de
todos os homens e a função da lei como obra da vontade geral e sustentáculo da liberdade
manifestavam o teor revolucionário do pensamento de Rousseau, em cuja época
dominavam a monarquia absoluta e os privilégios de nascimento, que repudiavam a
igualdade e a liberdade da maioria.
Todavia, as funções absolutas da lei, que impunha ao cidadão a renúncia de todos os
direitos em proveito da sociedade, positivando-os, e fazendo da vontade geral legiferante a
fonte única e exclusiva de todos os direitos, e a própria concepção da vontade geral como
produto do sentimento íntimo de cada um, infenso à razão e, por conseqüência, ao diálogo e
ao debate de idéias, revelam artificiosidade e fazem da vontade geral algo esotérico ou um
fetiche.
Relevante, sem embargo, foi a influência da teoria filosófica de Rousseau na
Revolução de 1789 e no pensamento político universal. Da sua concepção da vontade geral
24
ROUSSEAU, J. J. apud BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS: Ed.
UNISINOS, 2003. p. 113.
25
ROUSSEAU, J.J. Du contrat social. Paris: Le Livre de Poche, 1996. Livro II, cap. III, p. 47.
e da igualdade deriva, outrossim, o ensinamento de que o poder democrático é legítimo,
no qual todos participam da elaboração da lei, isto é, das normas de convivência, embora
por meio de representantes, mediação, todavia, que Rousseau repelia. Entretanto, Rousseau
concorreu para que as primeiras insurreições liberais vitoriosas descartassem a implantação
da democracia, pois ele sustentava que a vontade geral somente se manifestava através da
decisão de todos os cidadãos diretamente, como em Atenas, o que já era inviável nos países
mais importantes da época, dadas suas dimensões e contingente populacional,
circunstâncias que apontavam para a conclusão de ser impossível a democracia.
Argumentava ele que o poder se podia transmitir, o que não ocorria com a vontade. Assim,
“o soberano pode bem dizer: eu quero agora o que quer este homem, contudo não pode
dizer: o que este homem quererá amanhã, eu o quererei ainda” (Contrato Social, Livro II,
cap. I). Por isso rejeitava a representação, o que excluía a democracia nos Estados
modernos. O próprio pensador genebrino reconheceu essa inviabilidade ao escrever que
“toda forma de governo não é própria para qualquer país”, de modo que a democracia
calharia em países “pequenos e pobres” (Contrat Social, Livro III, cap. VIII). Seguramente
essa restrição, aliada às críticas de Platão e Aristóteles, prejudicou, se não afastou, a opção
e os esforços pela adoção do regime democrático no século XVIII.
2.3.5 Governo representativo e poder constituinte. Sieyès
Emmanuel Sieyès, na França, elaborou as linhas clássicas do governo
representativo, base da democracia moderna, dentro da órbita do pensamento
rousseauniano. Ele traça o modelo de governo representativo, mas distinto de democracia,
em função da idéia de nação, que nele ganha dimensão maior e necessita, a nação, de
representantes para ser governada. A nação é uma entidade distinta dos homens que a
constituem, pois ela perdura enquanto as gerações se sucedem e desaparecem. A soberania
reside na nação e não no povo. A nação atua e manifesta sua vontade por meio dos
representantes. Os representantes têm essa função, a de manifestar a vontade da Nação.
Esta nasce do pacto social. Para Sieyès, a nação não constitui uma entidade étnica, mas um
ente produzido pela vontade dos homens que a integram. Ele distingue três épocas ou
etapas na formação das sociedades políticas:
Na primeira se verifica um número mais ou menos considerável de indivíduos
isolados que desejam reunir-se. Somente a vontade deles forma a nação. Os
indivíduos têm os direitos dela, e só falta exercê-los. Esta primeira etapa está
caracterizada pelo jogo das vontades individuais. A associação é a sua obra. As
vontades individuais são a origem de todo o poder. A segunda etapa se caracteriza
pela ação da vontade comum...
26
A primeira dessas etapas corresponde ao momento do estado de natureza; contém,
pois, as vontades individuais cuja obra é a associação, isto é, a sociedade civil. A segunda
etapa se caracteriza pela atuação da vontade comum e a unidade de vontade nela existente
se identifica com a vontade geral de Rousseau. Mas a terceira etapa ultrapassa a concepção
de Rousseau ao apresentar a teoria do governo representativo: “Distingo a terceira etapa da
segunda naquilo em que não atua nela a vontade real, mas uma vontade comum
representativa...”
27
Aduz mais adiante: “Como uma nação grande não pode reunir-se na
realidade em todas as ocasiões que as circunstâncias exigissem, fora da ordem comum, é
necessário que confie os poderes necessários nessas ocasiões a representantes
extraordinários...”
28
Sieyès complementa a teoria do governo representativo nacional com a concepção
do poder constituinte, dele originária, vista como mais importante e original do que a do
governo representativo. “A liberdade” – afirma no curso de seu Essai sur les Privilèges – “é
anterior a toda sociedade, a todo legislador... O legislador se estabeleceu não para conceder,
mas para proteger nossos direitos.”
29
Esse pensamento, oriundo da corrente do direito
natural da Ilustração, é o que serve de premissa da sua tese fundamental sobre o poder
constituinte e se acha na base da sua afirmação do direito originário e exclusivo da nação de
elaborar sua própria constituição política. A nação, fruto do pacto social, necessita de um
26
AYALA, p. XV apud SIEYÈS, E. Qué es el Tercer Estado? Madrid: Aguilar, 1973.
27
Idem, p. XVI.
28
Ibidem.
29
Ibidem.
poder para garantia do pactuado. Esse poder, entretanto, deve ser limitado, para que não
descambe para o excesso. Assim, a nação, por meio de representantes extraordinários,
exercendo o poder constituinte, produz a sua organização política documentada numa
Constituição, a qual preverá o governo por representantes ordinários da nação. Considera,
pois, Sieyès o poder constituinte um direito originário e não como, mais tarde, sustentou
Carl Schmitt em sua Teoria da Constituição um poder originário desprovido de natureza
jurídica. Se a liberdade é anterior a toda sociedade concluía Sies toda nação deve ser
livre. Esse pensamento, levado às suas últimas conseqüências, teve trágico desenlace,
tempos depois, ao justificar terríveis tiranias.
O governo representativo de Sieyès, assim como o governo direto de Rousseau,
correspondia, teoricamente, a todos os cidadãos, o que importava em sua natureza
democrática, embora Sieyès rejeitasse o termo democracia (démocratie) por preconceito
histórico. Dissemos que o governo seja por meio de representantes, em Sies, ou
diretamente, para Rousseau, correspondia teoricamente” a todos os cidadãos, porque, na
prática, o direito de eleger os governantes, o direito de voto, não se estendia à
universalidade dos cidadãos, pois excluía as mulheres e os homens que não tivessem certo
nível mínimo de renda (sufrágio censitário). Aliás, o preconceito que inferiorizou a mulher,
subordinando-a ao homem, é milenar, enquanto que as classes ricas, de regra, dominantes,
propagavam que os possuidores de patrimônio eram os maiores interessados na boa gestão
pública, criando, assim, outro preconceito.
2.3.6 Evolução da concepção da democracia
A burguesia tendo ascendido ao poder com a Revolução de 1789, impôs, sem
demora, limites econômicos ao exercício do sufrágio eleitoral. Na primeira Constituição
republicana francesa, de três de setembro de 1791, introduziu-se distinção entre cidadãos
ativos e cidadãos passivos. Os ativos constituíam os únicos titulares do direito de votar em
eleições primárias, os quais deveriam provar sua qualidade de contribuintes de impostos
diretos e não poderiam se encontrar em “estado de domesticidade”, isto é, não poderiam ser
empregados em domicílio de outrem (secção II, art. 2º). Por esse expediente excluíam-se os
pobres e, portanto, as maiorias, do direito de voto.
Na história do Ocidente, todavia, com o passar do tempo e o aumento das pressões
populares, em alguns Estados de governo representativo, ocorreram reduções gradativas das
exigências de acesso à participação política, isto é, para votar e ser votado, como na
Inglaterra, incorporando, em sucessivas reformas legislativas, maior número de eleitores, o
que representou evolução para a democracia. Entretanto, na França, a introdução do
sufrágio universal ocorreu de golpe, com a revolução de 1848, sufrágio universal masculino
esclareça-se pois o voto feminino foi acolhido pelas legislações bem mais tarde. A
partir de então passou a ser utilizada a expressão “democracia representativa” para a forma
de governo característica desses Estados, desaparecendo a acepção milenarmente negativa
associada no passado à palavra “democracia”.
Essa nova expressão teve apoio na obra clássica de John Stuart Mill, Considerations
on representative government (1861), na qual preconizou a maior participação popular no
governo como única forma de satisfazer a todas as exigências do estado social, concluindo
que, pela impossibilidade da participação de todos, pessoalmente, nos negócios públicos,
exceto em uma comunidade compreendida em uma cidade pequena, o tipo ideal de governo
perfeito tinha de ser o representativo.
30
Assim, desde meados do século XIX, acolhe-se como democracia o governo
representativo, propício à participação de todos, ou da maioria. Delineia-se a democracia
moderna, consistente na democracia representativa, na qual o povo se governa de modo
indireto, através de representantes que elege, instituto que a distingue da antiga democracia
direta, em que o povo se governava diretamente, adotando, em assembléia aberta à
participação de todos os cidadãos atenienses, as decisões reclamadas.
30
MILL, J. S. Consideraciones sobre el gobierno representativo. Madrid: Alianza Editorial, 2001.
.
2.3.7 Os “modelos” de democracia liberal de Macpherson
Não resta dúvida de que a forma mais prestigiada de democracia é a democracia
liberal, a qual foi concebida para adaptar um plano de governo democrático a uma
sociedade dividida em classes, o que não se intentou, na teoria e na prática, até o século
XIX, como sustenta C. B. Macpherson, catedrático de Ciência Política da Universidade de
Toronto
31
, não se devendo incluir os modelos e visões anteriores de democracia entre os
modelos da democracia liberal. Como observa Macpherson, não constitui novidade
assinalar que na tradição ocidental geral de pensamento político, desde Platão e Aristóteles
até os séculos XVIII e XIX, a democracia se definia se é que se pensava nela como o
governo dos pobres, dos ignorantes e dos incompetentes, a expensas das classes ociosas,
civilizadas e ricas. Assim, a democracia, vista desde os estratos superiores de sociedades
divididas em classes, significava a dominação de uma classe, a dominação da classe
equivocada. Era uma ameaça de classe, tão incompatível com uma sociedade liberal como
com uma sociedade hierarquizada. A tradição ocidental dominante, até os séculos XVIII e
XIX, era, portanto, ademocrática ou antidemocrática
32
. Nesse longo período, de mais de
dois mil anos, despontaram algumas visões democráticas e seus defensores, inclusive
alguns aspectos de democracia na prática, embora sem abranger toda uma comunidade
política. Ao observarmos essas visões e teorias democráticas, veremos que têm algo em
comum, que as aparta notoriamente da democracia liberal dos séculos XVIII e XIX. A
distinção decorre do fato de que todas resultavam de uma sociedade não dividida em
classes ou se adaptavam a uma sociedade sem classes. Não seria exagerado dizer aduz
Macpherson – que, para a maioria delas, a democracia era uma sociedade sem classes ou de
31
MACPHERSON, C. B. La democracia liberal y su epoca. Madrid: Alianza Editorial, 1997. p. 19.
32
Idem, p. 20.
uma só classe, e não um mecanismo meramente político para ser adaptado a uma sociedade
desse tipo. Esses modelos, essas visões anteriores da democracia, eram reações contra as
sociedades divididas em classes de suas épocas respectivas.
Na concepção de Macpherson, o conceito de democracia liberal não resultou
possível até que os teóricos a princípio alguns e, mais tarde, a maioria dos teóricos
liberais encontraram motivos para crer que a norma de “um homem, um voto” não seria
perigosa para a propriedade, nem para a manutenção das sociedades divididas em classes.
Bentham e James Mill foram os primeiros pensadores sistemáticos que assim entenderam,
no início do século XIX. Como nota Macpherson, basearam sua conclusão na mescla de
duas percepções: a primeira, a dedução a partir do seu modelo de homem (que assimilava
todos os homens a um modelo de burguês maximizador, do qual se inferia que todos eles
estavam interessados em manter o caráter sacrossanto da propriedade), e a segunda, sua
observação da deferência habitual das classes baixas ante as classes altas. Macpherson
entende classe – é bom que se esclareça – em termos de propriedade; assim afirma que uma
classe está formada por aquelas pessoas que têm as mesmas relações de propriedade ou de
não-propriedade de terras produtivas e/ou capital.
A tradição liberal, desde Locke e os enciclopedistas, até o presente, acolheu, desde o
início, as liberdades de mercado da sociedade capitalista. Os liberais dos séculos XVII e
XVIII, que não eram democratas desde Locke até Burke aceitavam inteiramente as
relações capitalistas de mercado. Assim também sucedeu com os democratas liberais do
início do século XIX. Mais tarde, aproximadamente desde meados do século XIX até
meados do século XX, os pensadores democrático-liberais buscaram combinar a aceitação
da sociedade capitalista de mercado com uma postura de humanismo ético. Essa mescla
produziu um modelo de democracia bastante diferente daquele de Bentham, mas que
prosseguia incluindo a aceitação da sociedade de mercado. Como o componente liberal da
democracia liberal incluiu de modo significativamente constante a aceitação das relações
capitalistas e, portanto, da sociedade dividida em classes, parece adequado a Macpherson
colocar as teorias democráticas anteriores ao século XIX, todas as quais rechaçavam a
sociedade dividida em classes, fora da categoria democrático-liberal. Encara-as, o autor
citado, como modelos artesanais de democracia e, como tais, prefere considerá-los como
precursores da democracia liberal.
33
Macpherson distingue três modelos sucessivos de democracia liberal que
predominaram desde princípios do século XIX até o presente. Ao primeiro chama de
Democracia como Proteção: seu argumento favorável ao sistema democrático de governo
consistia em que não havia nenhuma outra maneira que pudesse, em princípio, proteger aos
governados contra a opressão do governo. Ao segundo chama A Democracia como
Desenvolvimento: trouxe uma nova dimensão moral, ao entender a democracia basicamente
como meio de desenvolvimento individual da própria personalidade. O terceiro, A
Democracia como Equilíbrio, abandonou a reivindicação moral, sob o pretexto de que a
experiência do funcionamento real dos sistemas democráticos havia demonstrado que o
modelo do desenvolvimento pessoal não era realista em absoluto; em seu lugar, os teóricos
do equilíbrio ofereciam uma descrição e uma justificação da democracia como competição
entre elites que produz um equilíbrio sem muita participação popular. Este é o modelo
imperante atualmente. Todavia, sua insuficiência revela-se cada vez mais evidente, o que
leva Macpherson a examinar, depois, as perspectivas e os problemas de um quarto modelo,
o da Democracia como Participação.
34
2.3.8 Democracia contemporânea e a teoria das elites
Na segunda metade do século XX, após a tragédia e o pavor da Grande Guerra
Mundial e depois de um curto período de efervescente entusiasmo com a democracia,
resultante do fim da aventura totalitária e da derrota do nazi-fascismo, que disseminara o
33
MACPHERSON, C. B. La democracia liberal y su epoca. Madrid: Alianza Editorial, 1997. p. 32.
34
Idem, p. 33-34.
terror no Ocidente, uma onda de cético pessimismo propagou-se a respeito das
possibilidades do governo democrático.
Minando a convicção no princípio da democracia, propalou-se que o povo não se
governa, como resultado do exame da tomada de decisões no Estado moderno e
contemporâneo. Contribuíram para o prestígio dessa assertiva o pensamento, entre outros,
de Maurice Duverger e Raymond Aron. A crítica de Rousseau ao governo representativo,
segundo a qual a vontade não se representa e o fato de o povo eleger quem governa não
significa que ele se governe (Contrat Social, Livro III, cap. 15), foi revivida. Essa linha de
pensamento ganhara consistência com a denominada Teoria das Elites, que teve como
precursores, ainda no século XIX e início do século XX, Ludwig Gumplowicz, Gaetano
Mosca, Vilfredo Pareto, e Roberto Michels. A primeira formulação dessa teoria
encontramos na obra Elementi di scienza política (1896), de Gaetano Mosca, esboçada
quinze anos antes:
Entre as tendências e os fatos constantes que se acham em todos os organismos
políticos, um existe cuja evidência pode ser a todos facilmente manifesta: em todas
as sociedades, a começar por aquelas mais mediocremente desenvolvidas e que são
apenas chegadas aos primórdios da civilização, até as mais cultas e fortes, existem
duas classes de pessoas: as dos governantes e a dos governados. A primeira, que é
sempre a menos numerosa, cumpre todas as funções públicas, monopoliza o poder
e goza as vantagens que a ela são anexas; enquanto que a segunda, mais numerosa,
é dirigida e regulada pela primeira, de modo mais ou menos legal ou de modo mais
ou menos arbitrário e violento, fornecendo a ela, ao menos aparentemente, os
meios materiais de subsistência e os que são necessários à vitalidade do organismo
político (I, p. 78)
35
.
O êxito, porém, do termo Elite deve-se a Pareto, que, poucos anos depois,
influenciado por Mosca, formulou, na introdução da obra Systèmes socialistes (1902), a
tese, de acordo com a qual, em toda a sociedade uma classe “superior” que empolga o
poder político e os poderes econômicos, à qual se denominou de “aristocracia” ou Elite
36
.
Asseverou Mosca que o povo jamais se governou e que o governo sempre foi exercido pela
elite, uma entidade que ele denominou classe dirigente, a quem incumbe adotar as medidas
políticas necessárias. Na complexidade dos Estados modernos, entendeu ser inviável que
35
BOBBIO, N. MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1992. V. 1, p. 385.
36
Idem.
uma só pessoa, ou todas, ou a maioria exercite essa função. Não obstante, admitiu ele que a
organização política do povo contribui para a composição da minoria governante, quando,
em alguns casos, essa minoria se abre à participação que vem debaixo, enquanto que, em
outros casos, em que permanece fechada ao acesso das camadas inferiores, a influência da
maioria desaparece. O governo das minorias pode, outrossim, ter norte e sentido
democrático se sua atuação se destinar, não à satisfação dos interesses minoritários dos
governantes, ou de facções por estes lideradas, mas à realização das necessidades e
interesses das maiorias governadas.
Na trilha daquela concessão de Mosca, cabe questionar se o fato de as minorias ou
elites, na história das instituições políticas, de regra, terem governado as maiorias, constitui
uma fatalidade que jamais poderá ser superada. Não haverá evolução espiritual na história
das sociedades humanas? A difusão da educação e a participação popular não poderiam, em
futuro não remoto, determinar a mudança da regra, fazendo com que as maiorias venham a
escolher caminhos e soluções, embora tal implique mudança radical na realidade atual do
mundo? Essa é a esperança que nutre a crença na democracia.
2.3.9 Joseph Schumpeter
Sob outro enfoque, Joseph Schumpeter manifestou seu ceticismo ou pessimismo
com a realização da democracia
37
, contribuindo significativamente para o prestígio da
concepção elitista. Segundo ele, em resumo, a democracia constitui um mecanismo para
escolher e autorizar governos, partindo de grupos e partidos em competição; a função dos
eleitores não é solucionar problemas políticos, mas a de escolher dirigentes que irão decidir
37
SCHUMPETER, J. Capitalisme socialisme et démocratie. Paris: Payot, 1954. p. 392 e ss.
quais são os problemas políticos e como solucioná-los; a função do rodízio eleitoral é a de
afastar o risco de tirania por meio da alternância dos governantes; o modelo político baseia-
se no modelo do mercado econômico, fundado no pressuposto da soberania do consumidor
e da demanda, o que amplia racionalmente os ganhos, possibilitando que o sistema político
prodigalize distribuição excelente de bens políticos; a natureza volúvel e consumista dos
sujeitos políticos determina a existência de um organismo governamental habilitado para
estabilizar as reivindicações da vontade política, estabilizando a vontade geral” por meio
da máquina do Estado. Transparece do pensamento de Schumpeter que a função da política
é administrar a economia, enquanto que a questão da legitimidade se limita à eleição dos
dirigentes.
Argumentou Schumpeter que nós, as pessoas comuns, os eleitores, quando nos
afastamos das preocupações privadas de ordem familiar ou profissional, para penetrar no
domínio das questões nacionais e internacionais, sem nenhum vínculo direto e visível com
as nossas, a volição individual, o conhecimento dos fatos e a gica cessam rapidamente de
exercer a função que lhes atribui a doutrina clássica. O fenômeno que mais impressiona
Schumpeter, e que lhe parece constituir o núcleo da desordem, consiste no desaparecimento
quase completo do senso das realidades. Segundo ele, normalmente, os grandes problemas
políticos se classificam, entre todas as atividades psíquicas do cidadão típico, no gênero
daquelas distrações reservadas para as horas de lazer, que não chegam a se constituir em
hobby, e entre os assuntos de conversação ociosa. Esse senso enfraquecido e distante da
realidade se traduz, não apenas no enfraquecimento do senso de responsabilidade, mas
ainda na ausência de volições efetivas. Schumpeter admite que o eleitor tem, em matéria de
política geral, suas fórmulas feitas e suas aspirações, seus sonhos em vigília e suas
contrariedades; ele tem, sobretudo, suas simpatias e suas antipatias. Não obstante, todos
esses elementos não geram normalmente o que nós chamamos vontade, isto é, a contra-
partida psíquica de uma ação responsável, visando objetivos precisos. Com efeito aduz
ele – não há, à vista do particular que medita a respeito das questões nacionais, nem campo
de ação para uma tal vontade, nem tarefa à qual ele se possa dedicar. Conclui Schumpeter
que o cidadão é membro de uma comissão incapaz de funcionar, a comissão constituída do
povo inteiro, e isto porquê ele consagra menos esforço disciplinado para dominar um
problema político do que ele dispensa no curso de uma partida de bridge ou de bisca. “Não
se consegue fazer beber a um público que não tem sede”.
38
Primordialmente, para Schumpeter, mesmo se não houvesse partidos políticos para
influenciá-lo, o cidadão típico tenderia, em matéria de negócios públicos, a ceder a
prejuízos e impulsos extra-racionais ou irracionais. Como se observa, o prestígio de sua
crítica ao modelo clássico da democracia representativa ampara-se na acuidade da sua
análise psicológica do cidadão comum, o eleitor-padrão. Ademais, segundo o mesmo autor,
avançando na sua perquirição do que se chamou “psicologia das massas”, com o propósito
crítico da democracia, a vontade que observamos, ao analisar processos políticos, é, em
grande parte, fabricada, e não espontânea. E é nessa contrafação que consiste
freqüentemente tudo o que corresponde na realidade à “vontade geral” da doutrina clássica.
Portanto, por azar, a vontade do povo é o produto, e não a força motriz, da ação política.
Essa visão aniquila, sem dúvida, a teoria de Rousseau.
Interesses minoritários, amiúde, valem-se dos múltiplos recursos modernos da
publicidade e da mídia para formar a opinião pública e induzi-la a sufragar suas concepções
e candidatos em eleições. Penetra-se e trabalha-se o subconsciente das massas, com aqueles
meios. Utiliza-se a mesma técnica publicitária e midiática com o objetivo de criar
associações de idéias favoráveis ou desfavoráveis, tanto mais eficazes quanto menos
racionais. Servem-se dos mesmos subterfúgios, reticências e artifícios visando criar
convicções por obra de afirmações reiteradas, que atingem seu alvo na mesma medida em
que se dispensa de apresentar argumentos racionais, os quais poderiam criar o risco de
despertar as faculdades críticas do público. Por meio dessas fraudes, interesses minoritários
econômicos, ou de outra natureza, podem lograr eleger seus candidatos em algumas
eleições, mas, certamente, não o lograrão sempre, pois, como admite Schumpeter, a
propaganda política tem limites e alguma verdade na sentença de Jefferson: “a longo
prazo, o povo é mais sábio do que pode ser qualquer indivíduo”, como também verdade
naquela de Lincoln a respeito da impossibilidade de “enganar-se todo o tempo o mundo
todo”.
38
SCHUMPETER, J. Capitalisme socialisme et démocratie. Paris: Payot, 1954. p. 394.
3 CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA
3.1 A IMPOTÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO
A Constituição brasileira, em seu Preâmbulo, art. , declara que “A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...”, enquanto seu § único
assevera que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. É óbvio que a norma constitucional,
por si só, não é suficiente para instaurar a democracia no país, contrariamente à opinião
difundida com o fim dos governos militares, quando se elaborava a Carta de 88. Se
condições subjacentes são altamente favoráveis, como afirma Robert A. Dahl, a
estabilidade democrática é provável com praticamente qualquer tipo de constituição que o
país adotar. Se as condições forem altamente desfavoráveis, nenhuma constituição salvará a
democracia. Entretanto, uma terceira hipótese mais interessante: em país em que as
condições não são altamente favoráveis nem altamente desfavoráveis, mas mistas de
modo que a democracia é incerta, mas não impossível –, a escolha do projeto constitucional
poderia ter importância. Em suma: se as condições forem mistas em um país, algumas
favoráveis e outras desfavoráveis à democracia, “uma constituição bem planejada ajudaria
as instituições democráticas a sobreviver, ao passo que uma constituição mal elaborada
poderia contribuir para a ruptura das instituições democráticas”.
39
A efetividade da democracia depende ou é condicionada – por vários outros
elementos que concorrem para que a poliarquia, na acepção de Dahl, se delineie, já que seu
39
DAHL, R. A. Sobre a democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001. p.
146.
modelo perfeito ao que parece até o presente ainda não se realizou. A realidade apenas
nos oferece modelos aproximados, em graus variados, daquele ideal. Com a democracia
ocorre problema semelhante ao que levou Platão a conceber a teoria das idéias para
explicá-lo: no mundo das realidades apenas encontramos cópias imperfeitas da forma ideal
de democracia que sobrepaira no mundo supra-sensível, no mundo das idéias. A história do
ocidente proporciona a impressão de que a poliarquia, nos países em que se manifesta, é um
processo, que avançou aos poucos, às vezes com retrocessos. Entre as condições que a
favorecem notam-se fatores sociais, psicossociais, culturais, econômicos, além dos
institucionais. Sobre a base desses fatores se apóia esse regime
40
. Além dessas condições,
acrescentamos nós serem imprescindíveis condições éticas para que a democracia funcione
satisfatoriamente.
3.2 CONDIÇÕES INSTITUCIONAIS
3.2.1 Condições institucionais da democracia
Qualquer concepção de democracia que se adote, desde uma concepção mínima,
aceita por muito tempo por parcela considerável da ciência política isto é, como um
procedimento para dirimir divergências e conflitos políticos por meio do princípio
republicano, como o chamou Madison, isto é, decisão da maioria, tendo cada cidadão um
voto, hipótese em que os eleitores participam quando elegem periodicamente os
40
FERREIRA FILHO, M. G. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 37.
governantes até uma concepção máxima a satisfação completa dos interesses do povo
por governos eleitos periodicamente, pelo voto da maioria dos cidadãos, em sufrágio
universal qualquer dessas concepções, como dizíamos, necessitam de instituições para
viabilizá-las.
Essas instituições constituem condições institucionais da democracia, cujos
fundamentos Robert A. Dahl sintetizou em três axiomas que espelham, na realidade, a
motivação dos atores políticos que decidem optar pela democracia, em determinado estágio
da história da sociedade, motivação que qualificamos de utilitária e, pois, denunciadora de
que os atores políticos são movidos por interesses, além de possíveis ideais: 1 A
probabilidade de um governo tolerar uma oposição aumenta com a diminuição dos custos
esperados da tolerância; 2 A probabilidade de um governo tolerar uma oposição aumenta
na medida em que crescem os custos de sua eliminação; 3 Quanto mais os custos da
supressão excederem os custos da tolerância, tanto maior a possibilidade de um regime
competitivo
41
, isto é, um regime que convive com a divergência e a crítica e submete as
diferenças à disputa eleitoral.
Dahl, aliás, localiza o ponto cardial da democracia na contínua receptividade
(responsiveness) do governo às preferências dos seus cidadãos, considerados como
politicamente iguais
42
. Assim, estabelece, na obra Poliarchy, o que fizera antes em outra
obra, A Preface to democratic theory (1956), isto é, que, para o governo continuar, por
certo período de tempo, receptivo às preferências de seus cidadãos, tidos como
politicamente iguais todos os governados, sem exceção, devem ter inconfundíveis
oportunidades de:
1. Formular suas preferências;
2. Manifestar suas preferências para seus concidadãos e para o governo por meio de
ação individual ou coletiva;
3. Ter suas preferências igualmente sopesadas pela atuação do governo, isto é,
sopesadas sem discriminação do conteúdo ou da fonte da preferência.
41
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 15.
42
Idem, p. 1.
Para Dahl essas são as três condições necessárias para a democracia, embora o
sejam provavelmente suficientes para que se tenha democracia
43
. A seguir, Dahl sustenta
que para essas três oportunidades coexistirem numa grande população, como as
encontradas na maioria dos estados-nação da atualidade, as instituições da sociedade devem
providenciar ao menos oito garantias, relativas àquelas três condições, de modo que se terá
poliarquia, isto é, democracia aproximada, em determinado caso examinado, desde que, em
escala de 0 a 1, se obtenha, pelo menos 0,5, pela soma das condições positivas. Essas
garantias são:
I. Formular preferências:
1. Liberdade para criar ou aderir a organizações;
2. Liberdade de expressão;
3. Direito de voto;
4. Direito dos líderes políticos de competir em busca de apoio;
5. Existência de fontes alternativas de informação.
II. Manifestar preferências relativamente às cinco liberdades supra, mais garantias
de elegibilidade para os cargos públicos e de eleições livres e honestas;
III.Ter preferências igualmente sopesadas na atuação do governo em relação às
garantias supra e possuir instituições para submeter às políticas do governo ao voto e a
outras expressões de preferência.
Após afirmar que “democracia” é um termo de muitos significados, que cada um
pode entender a seu modo, afirma Norberto Bobbio que existe, porém, um significado
preponderante sobre o qual estão de acordo todos os que reivindicam democracia.
Este significado preponderante é aquele segundo o qual por ‘democracia’ se
entende um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) que consentem a mais
ampla e segura participação da maior parte dos cidadãos, em forma direta ou
indireta, nas decisões que interessam à toda a coletividade. As regras são, de cima
para baixo, as seguintes: a) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade,
sem distinção de raça, religião, condições econômicas, sexo, etc., devem gozar dos
direitos políticos, isto é, do direito de exprimir com o voto a própria opinião e/ou
eleger quem a exprima por ele; b) o voto de todos os cidadãos deve ter peso
idêntico, isto é, deve valer por um; c) todos os cidadãos que gozam dos direitos
políticos devem ser livres de votar segundo a própria opinião, formando o mais
43
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 2.
livremente possível, isto é, em uma livre concorrência entre grupos políticos
organizados, que competem entre si para reunir reivindicações e transformá-las em
deliberações coletivas; d) devem ser livres ainda no sentido em que devem ser
colocados em condição de terem reais alternativas, isto é, de escolher entre
soluções diversas; e) para as deliberações coletivas como para as eleições dos
representantes deve valer o princípio da maioria numérica, ainda que se possa
estabelecer diversas formas de maioria (relativa, absoluta, qualificada), em
determinadas circunstâncias previamente estabelecidas; f) nenhuma decisão tomada
pela maioria deve limitar os direitos da minoria, em modo particular o direito de
tornar-se, em condições de igualdade, maioria.
44
Aduz Bobbio que para que um Estado seja “verdadeiramente” democrático não
basta a observância destas regras, “uma vez que basta não observar uma delas para que não
seja democrático (nem verdadeiramente nem aparentemente)”. Aí temos as condições – que
poderíamos qualificar de institucionais ou procedimentais da democracia, que Dahl
prefere chamar de poliarquia, como se viu, considerando ser importante conservar a
distinção entre democracia como um sistema ideal e os arranjos institucionais que m sido
considerados como uma espécie de aproximação imperfeita do ideal democrático e
aduzindo, o autor referido, que o uso do mesmo termo (democracia) em ambos os casos
implica desnecessária confusão e irrelevantes argumentos semânticos no curso da análise.
O arquétipo da democracia, elaborado pela teoria política, parece não ter ainda se realizado
na experiência dos povos. Encontramos apenas aproximações, maiores ou menores, ao
mesmo, o que implica admitir que a democracia perfeita ainda não aconteceu, podendo-se
mesmo duvidar que possa acontecer. Diante dessa contingência adverte Giovanni Sartori:
que a democracia está exposta de maneira muito singular a uma tensão fato-valor,
em torno da qual gira. Assim sendo, pode-se dizer que a democracia deve a
própria existência a seus ideais. E é por isso que precisamos da palavra democracia.
Apesar de sua imprecisão descritiva, ajuda-nos a manter sempre diante de nós o
ideal – o que a democracia deve ser
45
.
Dessa tensão conclui Sartori que o problema de definir democracia é duplo,
exigindo tanto uma definição descritiva quanto prescritiva, de modo que uma não existe
sem a outra e, ao mesmo tempo, uma não pode ser substituída pela outra. Para fugir do erro
devemos lembrar que o ideal democrático não define a realidade democrática e, vice-versa,
que uma verdadeira democracia não é, e não pode ser, o mesmo que uma democracia ideal;
44
BOBBIO, N. Qual socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 55-56.
45
SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994. p.
24.
e, ainda, que a democracia resulta de interações entre seus ideais e sua realidade e é
modelada por elas: pelo impulso de um deve ser e pela resistência de um é.
46
Observe-se que as condições institucionais envolvem alguns procedimentos
imprescindíveis instituições públicas estruturadas em normas jurídicas para que os
governantes sejam escolhidos livremente pelo número maior de governados e realizem a
vontade das maiorias, o que é curial na democracia. Todavia, as condições institucionais
não são suficientes para efetivar a democracia, pois o seu funcionamento pode ser fraudado,
viciando-se eleições e camuflando-se interesses minoritários para parecer majoritários.
Assim as constituições semânticas e as nominais, referidas por Loewenstein, ou os
pomposamente denominados atos institucionais, assim chamados pela dissimulação, ou
pela mentira ou hipocrisia para ocultar o que realmente são: a tirania de uma única vontade
ou a tirania da vontade de poucos. É leitura possível da história que a democracia é um
processo, quando é buscada, que avança aos poucos, incluindo, progressivamente,
quantidades maiores de pessoas que participam das decisões de governo ou interesses das
maiorias que são atendidos.
3.2.2 Condições institucionais imprescindíveis
Entre as condições institucionais, três são imprescindíveis, pois, sem elas, é
impossível a democracia: o Estado de Direito, a limitação do poder de governar e a
garantia judicial.
Inspirado em Montesquieu, que asseverou ser experiência eterna que todo homem
que tem poder é levado a dele abusar, avançando até onde encontra limites (De l’esprit de
46
SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada – 1º o debate contemporâneo. São Paulo: Ática, 1994.
lois, Livro XI, Cap. IV), Madison elaborou a proposição fundamental da sua teoria,
“Hipótese I: Na ausência de controles externos, qualquer indivíduo, ou grupo de indivíduos,
tiranizará os demais”. A idéia-chave do Estado de Direito é a atribuição a todas as pessoas,
naturais ou jurídicas, privadas ou blicas, do binômio direitos-obrigações, e sua sujeição,
inclusive o poder público, ao regramento jurídico. É óbvio que os governos não devem
elaborar as normas que os sujeitam, pois, se assim fosse, poderiam deter poder absoluto.
Daí porque Estado de Direito implica a existência de uma Constituição que defina e limite
os poderes dos governantes. Nesse sentido a doutrina do Poder Constituinte, elaborada
originariamente por Sieyès (Essai sur les Privilèges e Qu’est-ce que le Tiers État?)
Segundo ela, os homens, unidos pelo pacto social, elaboram, por meio de representantes
extraordinários, a Constituição. Esta concede o poder aos governantes, os quais são
compelidos a obedecer, sem desvios, às normas e limites que ela estabelece.
Por conseguinte, é a Constituição que institui o Estado, e ela antecede e está acima
dos poderes constituídos, que não a podem contrariar, sob pena de se deslegitimarem para o
exercício do poder.
47
A idéia de Constituição firmou-se no século XVIII, tendo
Bolingbroke, em 1733, sido um dos primeiros a expressá-la como “o complexo de leis,
instituições e costumes ..., segundo os quais uma comunidade é governada” (apud
FERREIRA FILHO, 2001, p. 96). Esse entendimento foi partilhado por Montesquieu, entre
outros. À época da Revolução Francesa, entendeu-se a Constituição como documento
escrito formalizado visando a limitação dos poderes dos governantes como garantia dos
cidadãos contra abusos, como revela o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789: “Não tem constituição a sociedade na qual não esteja assegurada a
garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes”. Com essa idéia, a reunião
dos Estados Gerais, que a Revolução transformou em Assembléia Nacional, elaborou a
Constituição de 1791.
Entretanto, anterior a esta, a Constituição americana de 1787 cuidou
primordialmente de assegurar estabilidade à associação dos Estados em federação. Essas
concepções inspiraram a idéia da Constituição escrita, que se revelou necessária para os
povos, como se depreende da história dos séculos XIX e XX, sendo exceções os Estados
47
SIEYÈS, E. Qué es el Tercer Estado? Madrid: Aguilar, 1973. p. 73 e ss.
que não possuem Constituição, como a Grã-Bretanha, a qual, entretanto, consagrou
princípios, altamente institucionalizados em costumes políticos, adotados nas Constituições
escritas de outros povos, para cuja obediência, no entanto, a peculiaridade do caráter do
povo inglês dispensa a forma escrita.
Como se constata, para a realidade da democracia, não é suficiente o
reconhecimento do direito dos cidadãos de participar das decisões coletivas. É
imprescindível que todos tenham direitos e obrigações iguais para que o voto de cada um
tenha o mesmo valor e que possa, igualmente, cada um, escolher entre uma e outra
alternativa. Para que se implemente essa condição faz-se mister que se assegurem direitos a
todos que vão decidir, – como adverte Norberto Bobbio –
direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de
associação, etc. os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi
construída a doutrina do estado de direito em sentido forte, isto é, do estado que
não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do
reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo. Seja qual
for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessário para
o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente
procedimentais que caracterizam um regime democrático. As normas
constitucionais que atribuem estes direitos não são exatamente regras do jogo: são
regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo.
48
A concessão ou conquista de tais direitos de liberdade precedeu a concessão dos
direitos políticos, pois esta como observa Bobbio “foi conseqüência natural da
concessão dos direitos de liberdade, pois a única garantia de respeito aos direitos de
liberdade está no direito de controlar o poder ao qual compete esta garantia.
49
O Estado de
Direito foi concebido, originariamente, como outras criações políticas consagradas na
atualidade, pela Inglaterra, através do rule of law, ao qual a Europa continental incorporou
sua versão.
48
BOBBIO, N. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do Jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
p. 20.
49
Idem, p. 28.
3.2.3 Princípios do Estado de Direito. Common Law
Para os ingleses, embora sem Constituição formal, rule of law significa a hegemonia
do Direito, o que implica a atuação conjunta de três princípios: 1) a supremacia absoluta
das normas de direito comuns a todos, o que exclui qualquer poder arbitrário de parte do
governo; 2) a igual sujeição de todos, inclusive autoridades, à lei e aos tribunais comuns; e
3) a garantia pelo direito comum das liberdades do cidadão, asseguradas também pelos
tribunais
50
. Temos aí, portanto, três princípios que caracterizam o Estado de Direito: 1)
legalidade, pois a lei pode impor limitações à liberdade individual; 2) isonomia: a lei
deve ser igual para todos, excluindo discriminações; e 3) amparo judicial: sujeição da
aplicação dos dois princípios anteriores, isto é, da legalidade e isonomia, ao controle de
juízes independentes e imparciais.
Ordenamento com tais características, na Inglaterra, é a common law, constituída
pelo conjunto de regras que a jurisprudência elabora, adapta e aplica séculos, entre as
quais sobressaem as que integram o due process of law, que assegura todas as demais. O
direito inglês, no qual prevalecem normas não escritas, compõe-se de decisões judiciais,
orientadas, na origem, em costumes locais, law of the land. Desde o século XIII, esse
direito consuetudinário local foi joeirado por juízes nomeados pelo rei, os quais modelaram
os costumes, conformando-os a uma compreensão mais larga da idéia de justiça.
Portanto, a common law é basicamente direito jurisprudencial, elaborado pelos
juízes, que o aforisma “judge made law” traduz. Ao aplicar esse direito, o juiz sente-se
vinculado aos precedentes, o que não o inibe de promover-lhe adaptações sugeridas pelo
tempo e circunstâncias, orientação que resguarda sua continuidade, sem relegar a
renovação. O fundamental desse sistema jurídico são as liberdades e direitos, como a
liberdade pessoal, direito de propriedade, liberdade de expressão, de pensamento, etc., o
que, hoje, se conhece como direitos humanos fundamentais.
50
FERREIRA FILHO, M. G. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 97-98.
Tais direitos, no presente, integram o conceito de democracia, pois pertencem
igualmente a todas as pessoas, sem qualquer distinção. Foram eles reconhecidos e
proclamados em instrumentos constitucionais, cujo mais celebrado foi a Magna Charta
Libertatum a Carta Magna das Liberdades de 1215, que, há vários séculos, orienta
realizações políticas e decisões judiciais.
Inimaginável para o rei João da Inglaterra, a quem a tradição legou o apoda de Sem
Terra, e para seus barões revoltados, naquele longínquo ano de 1215, a amplitude e a
perenidade histórica de princípios pactuados na célebre Magna Carta, que encerrou um
episódio memorável de luta de classes, como aquele inserido no capítulo 39 do texto
redigido em latim, língua culta e idioma oficial da época: Nullus liber hommo capitur, vel
imprisonetur, aut dissaisiatur, aut utlangetur, aut exultetur, aut aliquo modo destruatur,
nec super eum ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel
per legem terrae (Nenhum homem livre será apreendido, feito prisioneiro, posto fora da lei
ou exilado, nem de alguma forma arruinado, nem iremos nem mandaremos a ninguém
contra ele, exceto mediante o juízo de seus pares ou pela lei da terra).
O clima da época da elaboração da Magna Carta era de notório descontentamento e
revolta em decorrência do abuso na taxação de impostos e pelas repetidas derrotas impostas
pela França, acontecimentos que ensejaram a revolta dos senhores feudais. Com o apoio
dos burgueses, forçaram João Sem-Terra a conceder-lhes as garantias insertas na Magna
Carta, documento que proclamava que os reis ingleses, desde então, poderiam majorar
impostos ou alterar as leis com a aprovação do Grande Conselho, composto por membros
do clero, condes e barões. A Magna Carta é considerada a base das liberdades inglesas. Na
realidade, resultou de imposição da nobreza, apoiada pela burguesia, sobre o poder real.
Para a garantia focada importam as expressões legale judicium parium suorum, a
qual, para Eduardo Couture
51
, configura a garantia do juiz competente, a que acrescentamos
ou do juiz natural, e, especialmente, per legem terrae, expressão que, na época atual,
poderia significar, segundo, ainda, Couture
52
, garantia de julgamento com base na lei
51
COUTURE, E. Las garantias constitucionales del Proceso Civil. In: Estudios de Derecho Procesal Civil.
Buenos Aires: Depalma, 1978. p. 48.
52
Ibidem.
preexistente. Durante os dois séculos seguintes, a Carta foi re-expedida várias vezes por
diversos monarcas ingleses, tendo os seus princípios sido acolhidos pelo direito
consuetudinário ou comum da Inglaterra
53
. Na re-expedição da Carta, ocorrida em 1225, no
reinado de Enrique III, o texto sofreu redução de 63 para 37 capítulos, sendo que a cláusula
atinente ao devido processo legal, per legem terrae, passou do capítulo 39, onde teve
origem, para o capítulo 29. Em 1354, quando a Magna Carta foi editada pelo Rei Eduardo
III, com a denominação de Statute of Westminster of the Liberties of London, o texto
aparece pela primeira vez redigido no idioma inglês, tendo a expressão do capítulo 29 per
legem terrae sido alterada para due process of law, a qual, posteriormente, aparece
consagrada na Petition of Rights de 1627 e no Habeas Corpus Act de 1640
54
.
Observa-se que os direitos fundamentais contemplados na Magna Carta foram
reconhecidos sob a forma de contrato, em caráter privado, a pessoas integrantes de uma
classe social, a nobreza. Como refere Pérez Luño
55
, a evolução posterior operou uma
trajetória progressiva de tais documentos do âmbito privado para o direito público, o que
ocorre na medida em que se dissolve o sistema estamental próprio do feudalismo, com a
perda de poder da nobreza, em proveito do tiers état, e vão surgindo com os parlamentos
instituições representativas das novas classes sociais, sob a liderança da burguesia, que
idealiza e busca a soberania popular. Com o avanço do constitucionalismo, a garantia do
devido processo legal transforma-se em direito fundamental, despontando em cartas e
documentos públicos, não mais como simples direito de uma classe, da nobreza, mas como
princípio e garantia da cidadania e de todos os homens, por inerente à pessoa. Em
decorrência da independência dos Estados Unidos em 1776, à garantia do devido processo
legal vai galgar os textos constitucionais. Assim, algumas constituições estaduais, como as
da Pennsylvania, de agosto de 1776, Maryland e Carolina do Norte, novembro e dezembro
de 1776, todas após o 4 de julho, mencionam a law of the land, expressão originária da
Carta Magna. Na “Declaração de Direitos” de Maryland, de 03/11/1776, fez-se, pela
primeira vez, menção expressa ao trinômio, hoje inscrito na Constituição Federal norte-
53
HOYOS, A. La garantia constitucional del debido proceso legal (Art. 32 de la Constitución Política). In:
Revista de Processo, São Paulo, n. 47, p. 46, julho-setembro de 1987.
54
Ibidem.
55
LUÑO, A. E. P. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. Madrid: Tecnos, 1984.
americana vida-liberdade-propriedade. Esta Constituição, editada em 1787, não
contemplava a garantia do “devido processo legal”. Todavia, em 1789, Madison apresentou
ao I Congresso uma emenda à Constituição Federal que acabou se convertendo na Quinta
Emenda: no person shall be... deprived of life, liberty or property, without due process of
law (nenhuma pessoa se privada de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido
processo legal). Mais tarde, a expressão due process of law passou a integrar a seção I da
Décima Quarta Emenda da Constituição, a qual, no entanto, somente foi promulgada após a
Guerra Civil, aplicando-se, portanto, a todos os Estados, pois a Quinta se aplicava à
Federação.
Depois de consagrada esta garantia na Constituição Federal norte-americana, com
variações de redação (devido processo legal, direito constitucional de defesa, bilateralidade
do processo, princípio de contradição, processo devido, garantia de justiça ou de audiência),
passou a ser adotada em diversas constituições da Europa e da América Latina
56
. Sua
influência, entretanto, não se limitou às constituições, tendo sido incorporada ainda em
vários tratados internacionais. Assim, o Artigo IX da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 10. 12. 48: “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”; também o
Artigo X: “Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência
por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres,
ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”; como ainda o Artigo XI:
1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em
julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ão ou
omissão que, no momento, não constituam delito perante o direito nacional ou
internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que no
momento da prática era aplicável ao ato delituoso.
O princípio do devido processo legal também teve guarida no Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, aprovado pelas Nações Unidas em 16. 12. 66, e, no nosso
continente, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, firmada em San José, Costa
Rica, em 22. 11. 69, à qual aderiu o Brasil por ato de 25. 09. 92. Essa garantia é bastante
antiga no direito brasileiro. A Constituição do Império, de 25 de março de 1824, em seu art.
56
HOYOS, A. La garantia constitucional del debido proceso legal (Art. 32 de la Constitución Política). In:
Revista de Processo, São Paulo, n. 47, p. 47, julho-setembro de 1987.
179, refletia suas linhas gerais. Veja-se o inciso XI desse artigo: “Ninguém será
sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por
ella prescripta”, como ainda o XII: “Será mantida a independência do Poder Judicial.
Nenhuma Autoridade poderá avocar as Causas pendentes, sustá-las, ou fazer reviver os
Processos findos”, como também o XIII: A Lei será igual para todos, quer proteja, quer
castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”, e, ainda, o XVII:
“À excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos particulares, na
conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Commissões especiaes nas
Causas civeis, ou crimes”.
Verifica-se, assim, que as primeiras condições institucionais da democracia
amanheceram na primeira Constituição brasileira, embora imperial, por cópia dos países
líderes do mundo na época. Nossa primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de
1891, quase nada inovou nessa matéria, o que também ocorreu com a Emenda
Constitucional de 03. 09. 1926, além da manutenção da legalidade da decretação da prisão,
do princípio da anterioridade da lei condenatória, do juízo competente, excluído, portanto,
os especiais, exceto para as causas previstas em lei, e ampla defesa nos processos criminais
e a criação do remédio do habeas corpus contra a arbitrariedade da prisão.
O diploma constitucional de 16 de julho de 1934, além de ter mantido as garantias e
princípios das cartas anteriores, disse com certa ênfase no art. 113, inciso 26: Ninguém
será processado, nem sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei
anterior ao facto, e na fórma por ela prescripta”; e no inciso 27: A lei penal retroagirá
quando beneficiar o réu.”
A Carta política de 1937, sem embargo da hipertrofia do executivo e do seu
autoritarismo antidemocrático, com ligeiras mudanças de redação, assegurou no art. 122,
inciso 11:
À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de
pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem
escrita da autoridade competente. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem
culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por
ela regulada; a instrução criminal será contraditória, assegurada, antes e depois da
formação da culpa, as necessárias garantias de defesa.
No inciso 13 determinava: “Não haverá penas corpóreas perpétuas. As penas
estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores.”A seguir
enumerava os crimes para os quais a lei poderia prescrever a pena de morte, além dos casos
previstos na legislação militar para o tempo de guerra. Arrematando o capítulo dos direitos
e garantias individuais, dispôs o art. 123 que
a especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras
garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados
na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as
necessidades da defesa, ... (o grifo é nosso).
Entende Luiz Rodrigues Wambier
57
que “No direito positivo brasileiro, o princípio
do devido processo legal somente chegou ao texto constitucional, de modo expresso e
claro, na Constituição de 1946, onde veio insculpido em seu art. 141, § 4º”. Rezava o
referido dispositivo: A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer
lesão de direito individua.l” Esse princípio manteve-se, a partir de então, nas Constituições
posteriores, embora com restrição ditada pela Emenda Constitucional 7, de 13. 04. 77,
mas íntegro e ampliado na Constituição de 1988. Sem embargo de ter contido a
Constituição de 1946 apenas o princípio da justicialidade, segundo o qual é inafastável da
apreciação do Judiciário toda e qualquer lesão de direito sofrida por qualquer cidadão,
dessa garantia de controle jurisdicional sustenta Wambier que “deflui tranqüilamente a do
devido processo legal, por ser inimaginável que se garanta ao cidadão o direito ao controle
jurisdicional dos atos, sem que isso se faça mediante o uso de instrumental apropriado,
devidamente previsto no ordenamento jurídico”
58
.
Tanto a Carta de 1946, como as que a sucederam abrigavam dispositivos
semelhantes no que respeita às restrições e exigências de regularidade e legalidade da
prisão, o instituto do habeas corpus, a plena defesa, o contraditório, a repulsa ao foro
privilegiado e aos tribunais de exceção e a garantia de que ninguém seria processado ou
sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior. A Emenda
Constitucional 7, de 13 de abril de 1977, alterou a Constituição de 1967, com a
Emenda nº 1 de 1969, dando a seguinte redação ao parágrafo 4º do art. 153:
57
WAMBIER, L. R. Anotações sobre o princípio do devido processo legal. In: Revista de Processo, São
Paulo, n. 63, p. 59, julho-setembro de 1991.
58
Idem.
A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram
previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância,
nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.
Inseriu-se uma condição à busca do remédio judicial, reduzindo-se sua amplitude,
ao impor ao cidadão o percurso da via administrativa intermediária, que poderia ser
substitutiva ou dilatória. O expediente não prosperou, pois a Constituição de 1988, no art.
5º, inciso XXXV, afastou o obstáculo e ampliou a garantia da cidadania: “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, dando ao princípio dimensão
inimaginada no passado, não alcançada pela Constituição de 1946 quando criou a garantia,
já que a simples ameaça a direito passou a ensejar a terapia do Judiciário.
Entre vários, entende Nelson Nery Júnior
59
que o devido processo legal, princípio
fundamental do processo civil, além de garantia constitucional do Estado de Direito,
constitui “a base sobre a qual todos os outros se sustentam”. Diz o art. 5º, inciso LIV, da
Constituição Federal vigente: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”. Aduz Nery Júnior:
Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due
process law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que
garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por
assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do
processo são espécies.
No mesmo passo afirma Ada Pellegrini Grinover
60
que constituem manifestações do
devido processo legal o princípio da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de
utilizar-se em juízo prova obtida por meio ilícito, assim como o postulado do juiz natural,
do contraditório e do procedimento regular. Como salienta Nelson Nery Júnior
61
,
Genericamente, o princípio do due process of law caracteriza-se pelo trinômio
vida-liberdade-propriedade, vale dizer, tem-se o direito de tutela àqueles bens da
vida em seu sentido mais amplo e genérico. Tudo o que disser respeito à tutela da
vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da due process clause.
À época da instituição da garantia pela Magna Carta, em 1215, a proeminência da
proteção destinava-se ao processo penal. A concepção do “devido processo”, todavia, foi se
59
NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. p. 31.
60
GRINOVER, A. P. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José
Bushaatsky, 1973. p. 133.
61
NERY JÚNIOR, N. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. P. 34.
ampliando através dos tempos, tendo a doutrina e a jurisprudência evoluído no sentido de
configurá-la como um dos direitos fundamentais da cidadania, tanto no âmbito substantivo
como na esfera processual (substantive due process e o procedural due process).
Para Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco
62
, o devido processo legal, como princípio constitucional, significa o conjunto
de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de
suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função
jurisdicional”. na obra Os Princípios Constitucionais e o Código de Processo Civil”
63
,
Ada Pellegrini Grinover escreve que somente se poderá alcançar a plenitude do Estado de
Direito, mediante a utilização de instrumentos processuais tutelares, e que se entenda o
direito ao provimento jurisdicional, o direito de ação e o direito ao processo, não como
simples “ordenação de atos, através de qualquer procedimento, mas sim, o devido processo
legal”. Humberto Theodoro Júnior
64
, versando a mesma questão, assevera que,
a garantia constitucional de direito ao processo (direito à tutela jurisdicional)
será efetiva na medida em que se assegurar o recurso ao devido processo legal, ou
seja, aquele traçado previamente pelas leis processuais, sem discriminação de parte,
e com garantia de defesa, instrução contraditória, duplo grau de jurisdição,
publicidade dos atos, etc.
3.2.3.1 Princípio da legalidade
O princípio fundamental no Estado de Direito é o princípio da legalidade. Na
Constituição brasileira ele está assim redigido: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II). Na Declaração dos Direitos do
62
GRINOVER, A. P et al. Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 1986. p. 50.
63
GRINOVER, A. P. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José
Bushaatsky, 1973. p. 6
64
THEODORO JR., H. Princípios gerais do Direito Processual Civil. In: Revista de Processo, São Paulo, n.
23, p. 179, 1981.
Homem e do Cidadão de 1789 ele se enunciou nestes termos: Tudo o que não é proibido
pela lei não pode ser impedido e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não
ordena”. Esse princípio traça a esfera de liberdade do indivíduo diante da lei e do Estado.
No que tange ao Estado, estabelece que este não pode agir senão de acordo com a lei. Com
efeito, não lhe compete proibir uma atuação se a lei não a proíbe. o pode ordenar uma
conduta, se a lei não a impõe. As pessoas naturais ou jurídicas m a arma do mandado de
segurança contra a infração desse dever pelo Estado, com o que se exclui o arbítrio dos
governantes.
À época em que se concebeu o Estado de Direito, ao final do século XVIII, a noção
de lei estava jungida à noção de justiça. Somente se admitia lei que correspondesse ao justo
ou, na menos nobre das hipóteses, ao razoável, que não deixava de ser uma forma de
justiça. Daí ter escrito Montesquieu que as leis eram “as relações necessárias que derivam
da natureza das coisas” (livro primeiro, O espírito das leis), como também identificou a lei
com a razão humana, embora admitisse a influência das condições e particularidades de
cada povo na sua redação.
Na sua concepção Rousseau afirmava que a lei deveria corresponder à “vontade
geral”, que busca o interesse geral, jamais os interesses particulares. À vontade geral
contrapunha a “vontade de todos”. O pensamento de Rousseau foi consagrado no art. da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A lei é a expressão da vontade
geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer pessoalmente ou por seus
representantes para a sua formação...” Na definição da lei o texto reproduziu o conceito de
Rousseau, embora dele se desviasse ao admitir a representação dos cidadãos.
Aquele dispositivo define a lei como expressão da vontade geral. Decorre dessa
concepção que não será lei a que não expressar a vontade geral. Assim, não será lei a que
expressar vontade minoritária, como a de grupos, facções, ou a que criar privilégios de
qualquer natureza. O positivismo jurídico esvaziou a lei do valor de justiça, concebendo-a
apenas como ferramenta de governo, o que lhe amesquinhou a noção, desvalorizando-a, a
ponto de servir a qualquer objetivo, embora menos digno, como ao arbítrio das maiorias
legislativas.
Executivos fortes valeram-se de sua força para pautar a elaboração de leis pelo
Poder Legislativo, quando não assumiram eles mesmos a função legislativa, perseguindo
objetivos que nem sempre correspondiam ao bem comum ou ao atendimento dos desígnios
das maiorias. Na verdade, o Executivo, muitas vezes, foi o legislador.
Montesquieu advertira que “quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
magistrados, o poder de legislar está reunido ao poder de executar, não há liberdade, porque
se pode temer que o mesmo monarca ou senado faça leis tirânicas, para executá-las
tiranicamente”
65
. Essa advertência encontrou eco no pensamento de Madison na
formulação da 2ª Hipótese de sua teoria, segundo Dahl
66
: A acumulação de todos os
poderes, legislativo, executivo, judiciário nas mesmas mãos implica a eliminação dos
controles externos (generalização empírica). A eliminação dos controles externos gera
tirania. Por conseguinte, a acumulação de todos os poderes nas mesmas mãos implica
tirania. Essa cultura animou a formação do regime político norte-americano.
É óbvio que o esvaziamento do conteúdo de valor da lei abala a concepção do
Estado de Direito. Se este pode subsistir com leis injustas, que atendam a interesses
minoritários, facciosos ou arbitrários, qual a valia do Estado de Direito? De quê serve ao
povo? Assim se chamaram Estados de Direito a Estados totalitários. Para afastar essa
deturpação, Constituições contemporâneas como vimos adjetivaram de democrático o
Estado de Direito ou o Direito do Estado. Contra tal descaminho do Estado de Direito o
Direito tem arma para tutela da Democracia, que é a concepção do sistema jurídico como
“rede hierarquizada de princípios, regras e valores
67
, de modo que “interpretar uma norma
é interpretar o sistema inteiro: qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma
aplicação da totalidade do Direito”
68
. Assim, “cada preceito deve ser visto como parte viva
do todo”
69
, enquanto que “os princípios se situam na base e no ápice do sistema, vale dizer,
atuando como fundamento e cúpula do mesmo,”
70
segundo o judicioso pensamento de
Juarez Freitas. Com apoio nas premissas levantadas, pode-se afirmar que a mera
65
MONTESQUIEU. De L’esprit des lois. Livro XI, Cap.6.
66
DAHL, R. A. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1989. p.15.
67
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 25.
68
Idem, p. 70.
69
Ibidem.
70
Idem, p. 71.
observância formal da regra constitucional de elaboração legislativa não honra a
Democracia e não é suficiente para conferir legitimidade à lei, que se implementa com o
conteúdo axiológico que colima o bem geral ou comum.
3.2.3.2 A igualdade perante a lei
O segundo princípio do Estado de Direito estabelece que a lei, ao criar direitos e
impor obrigações, considere todas as pessoas, que estiverem na mesma situação, como
iguais, sem distinção de qualquer natureza. A esse tratamento se convencionou chamar de
isonomia. A isonomia traduz dois elementos da moderna noção material da lei: a
generalidade e a abstração. A lei deve ser abstrata e geral por princípio, com escassas
exceções, como a lei orçamentária e a que concede pensão a alguém por um motivo
especial. Decorre daí que legalidade e igualdade se vinculam indissoluvelmente.
A igualdade perante a lei foi a principal idéia-força da grande Revolução de 1789 no
combate aos privilégios do regime político da monarquia, em que o regramento jurídico era
desigual para o povo, para a nobreza e para o clero. Clero e nobreza gozavam de privilégios
que relegavam o povo à situação de inferioridade. Por isso, vencedora a Revolução e
banido o Ancien régime, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 dispôs
no artigo 6º, segunda parte, que a lei deve ser a mesma para todos, seja quando protege,
seja quando pune”.
O tema da igualdade ensejou controvérsias acaloradas. É pensamento de muitos que
a desigualdade é característica do universo. Outros divergem diametralmente, pretendendo
igualitarismo completo entre as pessoas, argumentando com o modo primitivo de vida dos
grupos humanos, em estado de natureza. Entretanto, uma visão equilibrada admite que as
pessoas são desiguais sob vários aspectos, ao mesmo tempo em que reconhece que são
iguais em sua natureza, essencialmente, como membros da mesma espécie humana.
O pensamento liberal sobrevalorizava a liberdade ao combater a intervenção do
Estado, relegando a igualdade. Mas o absolutismo estatal desapareceu no século XIX, e a
liberdade perdeu o encanto para as multidões que não encontravam meios de sobrevivência
ou que sobreviviam penosamente com salários vis. Endeusavam a liberdade os que
detinham o capital e perseguiam empreendimentos e a exploração econômica, não querendo
que o Estado lhes tolhesse os passos. Essa liberdade não empolgava aos que subsistiam
arduamente e só podiam sonhar com uma vida menos miserável e menos desigual à dos que
viviam no ócio e na abastança. Como esclareceu Pontes de Miranda,
a desigualdade econômica não é, de modo nenhum, desigualdade de fato, e sim a
resultante, em parte, de desigualdades artificiais, ou de desigualdades de fato mais
desigualdades econômicas mantidas por leis. O direito, que em parte as fez, pode
aparar e extinguir as desigualdades econômicas que produziu. Exatamente é que
se passa a grande transformação da época industrial, com a tendência a maior
igualdade econômica, que há de começar, como começou em alguns países, pela
atenuação mais ou menos extensa das desigualdades.
71
A maioria das Constituições proclama a igualdade em sentido jurídico-formal, isto
é, como igualdade perante a lei. A Constituição brasileira de 1988 inicia o capítulo dos
direitos individuais afirmando que todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza (art. , caput). Robora essa assertiva com várias outras normas
concernentes à igualdade ou colimando igualar desiguais mediante a concessão de direitos
sociais. Nesse rumo, o citado art. 5º, I, estatui que homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações. No art. 7º traça regras de igualdade dos trabalhadores no que respeita
ao trabalho, proibindo distinções decorrentes de determinados fatos, como diferença de
salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, de idade,
cor ou estado civil; e de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de
admissão do trabalhador portador de deficiência (XXX e XXXI). No art. 3º, que
estabelece os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, fixa o de erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III), assim
como repele preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
71
MIRANDA, P. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969. São Paulo: Ed. Revista
dos Tribunais, 1970. Tomo IV, p. 689.
discriminação (IV). Professa a seguridade social para todos, com universalidade de
cobertura e atendimento, direito à saúde e educação baseada em princípios democráticos e
de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, e justiça social como
finalidade das ordens econômica e social (arts. 170, 193, 196 e 205). São diretrizes que
descortinam o compromisso com a igualdade substancial.
Todavia, se o princípio da igualdade exige que o legislador não possa distinguir,
isso não implica que a lei deva tratar a todos como abstratamente iguais. O tratamento igual
não resulta de serem as pessoas inteiramente iguais o que não é real mas a igualdade
considerada concerne a aspectos ponderados pela norma, pois as pessoas tidas por iguais
podem, obviamente, ser diferentes em outras características desprezadas pelo legislador.
Não seria demais lembrar que igualdade e desigualdade o conceitos relativos. Cumpre,
ainda, ponderar – o que é sapiência antiga – que o princípio da isonomia, que concede igual
tratamento da lei aos iguais, atribui, também, tratamento desigual aos desiguais na medida
em que se desigualam.
Modalidade dessa variante do princípio isonômico é o instrumento de ação social
empregado atualmente, conhecido como “discriminação positiva”. É remédio criado nos
Estados Unidos. Funda-se em tratamento manifestamente desigual, com sentido
compensatório, destinado a minorias negros, imigrantes, ou mulheres (as quais, porém,
não constituem minoria), etc. – adotado pela lei para corrigir os efeitos perversos da
discriminação racial, étnica, sexual, ou social preconceituosa. Apregoa-se como política
legislativa e administrativa de favorecimento a grupos prejudicados, com ônus aos grupos
anteriormente beneficiados. Com base nessa discriminação positiva, Estados americanos
reservaram vagas, em escolas superiores, para minorias raciais (negros, fundamentalmente),
assim como na órbita federal concedeu-se prioridade a integrantes de minorias nas
licitações para certos serviços. Com orientação idêntica, no Brasil, legislou-se reservando
vagas para mulheres entre candidatos às eleições legislativas. Atualmente pretende-se,
mediante essa estratégia, reservar vagas em universidades para negros e mestiços.
Essa política não se exime de críticas, pois, ao beneficiar um grupo, pode prejudicar
integrante de grupo distinto, vitimando-o com a injustiça da desigualdade, como ocorreu
nos Estados Unidos com o caso Bakke, estudante branco que invocou a
inconstitucionalidade de lei da Califórnia de reserva de vagas na universidade para
minorias, pois fora preterido, apesar de seu aproveitamento escolar ter sido superior aos dos
candidatos oriundos das minorias.
3.2.3.3 Amparo judicial
O amparo judicial, também denominado de justicialidade, constitui garantia própria
do Estado de Direito, mediante a qual o Estado assegura a todos os conflitos de interesses
dos membros da sociedade, com pretensões de direito à legalidade ou igualdade, a
apreciação dos respectivos pleitos por juízes independentes e imparciais. Embora não
contemplada em obras dedicadas ao Estado de Direito, essa garantia revela-se incontestável
e inafastável. Através dela todo o ordenamento jurídico encontra aplicação aos casos
concretos em que alguma norma é invocada ou questionada. De regra, esse mister incumbe
ao Poder Judiciário, como no Brasil. Entretanto, pode ser atribuído a outro órgão. Assim na
França, em que o Conselho de Estado, originário do Executivo, tem a atribuição de exercer
o controle dos atos da administração.
Afirmam os doutos que essa garantia surgiu no direito inglês, cuja origem foi o
princípio inscrito no tão citado art. 39 da Magna Carta, concernente à liberdade individual,
onde se assegurava que ninguém seria preso, exilado, etc., sem um julgamento legal, por
seus pares, ou de acordo com a lei da terra (“by the law of the land”). Posteriormente, a
partir do século XIV, a referida garantia adquiriu a feição do due process of law, de que
tratamos, o qual foi incorporado à Constituição dos Estados Unidos através da Emenda,
cujo texto assim se traduz: “ninguém será privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o
devido processo legal”.
Entre as várias interpretações desse princípio, encontradas na doutrina norte-
americana, a mais antiga o visualiza sob ótica formal, como “procedural due process”,
segundo Lawrence Tribe.
72
Restringe a aplicação de atos de governo e de leis. Na área
judicial estabelece o direito a um juízo independente e imparcial, defesa ampla com a
garantia do contraditório, direito de produzir provas e de contestar as apresentadas pelo
litigante contrário, etc. Em fins do culo XIX, a Suprema Corte adotou interpretação
distinta ao ressaltar o enfoque material, inicialmente opondo direitos individuais, como a
liberdade de contratar, ao avanço dos direitos sociais, embora mais tarde alterasse essa
orientação, vindo a fixar-se no tratamento justo, com proporcionalidade, razoabilidade, etc,
já no final do século XX.
Entre nós, o princípio do amparo judicial ou justicialidade existe desde nossa
primeira Constituição, a de 1824, onde consta no art. 179 (XI e XII). Na Constituição de
1946 o princípio adquiriu maior amplitude, como também mencionamos, no art. 141, §
4º: A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual”.
Na Constituição de 1988, como expusemos, essa garantia é ampliada: A lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV). A
par dessa ampliação, em que a simples ameaça à lesão de direito não se exclui do controle
do Judiciário, encontram-se outras garantias judiciárias no art. 5º da Carta, como a do juiz
natural (XXXVII e LIII); a do devido processo legal (LIV); a da ampla defesa, do
contraditório e do direito a recurso (LV); a ciência ao juiz competente de toda prisão de
qualquer pessoa (LXII); e o relaxamento imediato da prisão ilegal pela autoridade judiciária
(LXV).
A garantia da justicialidade, para sua perfeita conformação com o princípio
democrático, deve ser entendida nos termos propostos por Luis Fernando Barzotto, isto é,
como uma continuação do processo deliberativo democrático que se no âmbito
da representação popular. O juiz não pode pensar sua atividade como uma mera
adesão a normas positivadas (normativismo) nem pode criar o direito ex nihilo
(decisionismo), mas está obrigado a dar continuidade, em cada caso, à discussão
democrática que se expressa nas leis e decretos dos poderes legitimados pelo voto
popular. Assim como o processo democrático está submetido à teleologia
TRIBE, L. H. Constitutional choices. Cambridge: Harvard, 1985. p. 414.
constitucional, assim também o processo judicial deve conceber-se como uma
atividade de concretização das finalidades da constituição e das leis em
conformidade com esta.
73
A Constituição Brasileira assegura tais condições institucionais ou procedimentais
da democracia no seu Título II, no qual contempla os Direitos e Garantias Fundamentais,
que abrangem os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, os Direitos Sociais, a
Nacionalidade, os Direitos Políticos e o Partidos Políticos (artigos 5º a 17).
3.2.4 Democracia: conceito mais abrangente que o de Estado de Direito
Embora imprescindível à garantia de buscar quaisquer direitos junto a um poder
imparcial do Estado para que se tenha um Estado de Direito democrático, a compreensão da
democracia é idéia mais ampla. José Afonso Silva reconhece à democracia, como
realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana,
conceito mais abrangente do que o de Estado de Direito, já que este surgiu como expressão
jurídica da democracia liberal
74
. O envelhecimento do liberalismo suscitou a questão da
convergência entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A insuficiência do
liberalismo, nos novos tempos, indicou o conceito de Estado Social de Direito, veiculado
por constituições ocidentais que abrigaram seção ou capítulo com direitos econômicos e
sociais. Todavia, essa denominação não se revela isenta, pois regimes políticos nazistas e
fascistas a adotaram, embora as constituições democráticas da República Federal da
Alemanha e da Monarquia Espanhola se tenham denominado Estado Social e Democrático
de Direito.
73
BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2003. p. 192-193.
74
SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 112.
O artigo da Constituição brasileira proclama que “a República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito” a Constituição portuguesa instaura o
Estado de Direito Democrático. Nessa redação,“democrático” qualifica o Direito, não o
Estado, enquanto que na Constituição brasileira “democrático” qualifica o Estado. Não
vemos nessa diferença de adjetivação do substantivo senão mera diferença formal, pois,
interpretar uma norma é interpretar é o sistema inteiro: qualquer exegese comete,
direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito” ou “qualquer
exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras e
de valores componentes da totalidade do Direito.
75
Acresce que, em ambas as Constituições, o Estado está abrangido pelo Direito, que
o organiza e limita. Admitindo-se uma definição sintética, adequada é a sugerida por Luis
Fernando Barzotto: “..diremos que o Estado Democrático de Direito expressa a estrutura
jurídico-política de uma comunidade que, sob um Estado de Justiça, delibera sobre o
conteúdo da vida boa e do bem comum.”
76
3.2.5 Partidos políticos
O direito de se reunir para buscar objetivos comuns, para lograr providências ou
políticas que se entendam necessárias ou convenientes, por aqueles que assim pensam,
encontra sua expressão e realização, na modernidade, nos partidos políticos.
A democracia direta ateniense, assim como, mais tarde, o pensamento político de
Rousseau – para quem a plenitude democrática se efetivava pela forma direta e a
75
FREITAS, J. A interpretação sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 70.
76
BARZOTTO, L. F. A democracia na Constituição. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2003.
mediação de alguma entidade seria perturbadora da manifestação da vontade geral não
sentiram necessidade da existência de partido político. Foi a prática da democracia
representativa que se amoldou ao canal do partido político. Como adverte Duverger
77
, a
analogia das palavras não nos deve enganar, pois historiadores e publicistas deram a
designação de partidos às facções que dividiam as repúblicas antigas, aos clãs que se
reuniam sob alguma liderança na Itália da Renascença, aos clubes que congraçavam
deputados às assembléias revolucionárias, aos comitês que preparavam as eleições
censitárias das monarquias constitucionais, como ainda às organizações populares de
massa nas democracias modernas. Essa identidade de designação partidos políticos
reconhece Duverger que se justifica em certo sentido, pois traduz certo parentesco
profundo, de vez que todas essas instituições desempenharam a mesma função, que é a
de alcançar o poder político para exercê-lo. Todavia, na sua compreensão que
entendemos judiciosa os partidos políticos, no sentido moderno, surgem a partir de
1850. Outros autores, entretanto, como Ostrogorski, Erskine May, Afonso Arinos e
William Bennet Munro, vislumbram o nascimento dos modernos partidos políticos na
Inglaterra, desde a luta entre os direitos do Parlamento e as prerrogativas da coroa, no
século XVII, asseverando Munro que foi a partir de 1680 que se definiu a noção de
oposição política, isto é, a noção fundamental na democracia, de que os adversários do
governo não são inimigos do Estado e de que os opositores não são traidores ou
subversivos.
78
Os partidos que se identificaram com princípios sócio-políticos e buscaram o poder
para introduzi-los na legislação ou na prática política foram os que mais se desenvolveram
e obtiveram conquistas históricas. Ingressaram nesses partidos e neles militaram, além dos
idealistas, grupos de interesse o que também ocorre atualmente cujos interesses, muitas
vezes econômicos, se beneficiam dos princípios esposados pelos partidos, mas que tais
grupos dissimulam ou acobertam, preferindo ostentar sua adesão à idealidade do princípio
que o partido consagra e tem por bandeira.
77
DUVERGER, M. Les partis politiques. Paris: Armand Colin, 1951.
78
DALLARI, D. A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003. p.161.
Não nos deteremos na discussão das definições de partido político, que são
inúmeras, e, muitas vezes, díspares, da lavra dos mais eminentes mestres do direito público
e da ciência política, pois não interessam aos objetivos desta dissertação. Sem embargo,
parece-nos útil adotar um conceito, que poderá se revelar profícuo nas implicações do
partido político com a democracia. Com esse objetivo sufragamos a definição de partido
político oferecida por Paulo Bonavides, para quem partido político “é uma organização de
pessoas que inspiradas por idéias ou movidas por interesses, buscam tomar o poder,
normalmente pelo emprego de meios legais, e nele conservar-se para realização dos fins
propugnados.”
79
Com apoio nas várias definições existentes, Bonavides deduz
sumariamente os vários dados que entram de maneira indispensável na composição dos
ordenamentos partidários: a) um grupo social; b) um princípio de organização; c) um
acervo de idéias e princípios, que inspiram a ação do partido; d) um interesse básico em
vista: a tomada do poder; e e) um sentimento de conservação desse mesmo poder ou de
domínio do aparelho governativo quando este lhe chega às mãos.
A identidade do partido político é o seu programa de governo ou de legislação,
calcado nos princípios que o partido adota. Sem esse programa, ou quando o programa
constitui mero pretexto para justificar a existência do partido, ou se revela ambíguo,
servindo para apoiar candidatos com quaisquer idéias ou propostas, ou quando se limita a
enunciar trivialidades ou lugares-comuns, o partido é, na realidade, mero veículo de
transporte ao poder para usufruí-lo apenas na satisfação de vaidades dos eleitos ou para
manutenção de prerrogativas, vantagens ou privilégios em proveito de grupos ou classes, o
que frauda a democracia. Assim também frauda a democracia o partido e candidatos que se
servem de um programa para se eleger e, depois de eleitos, relegam ou abandonam o
programa.
O caudilhismo, o carisma e o personalismo de candidatos, como o culto popular de
suas qualidades pessoais, constituem distorções quando induzem as massas à crença de que
os líderes possuem dons excepcionais para a solução de problemas cios freqüentes nos
povos que se iniciam na poliarquia ou ainda imaturos nessa prática que deturpam a
democracia, a qual se realiza não com façanhas de pessoas de dotes excepcionais, mas com
79
BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Ed., 2003 (a). p. 346.
políticas que priorizem o interesse das maiorias, embora determinadas pessoas possam se
constituir em fiadoras ou garantia de êxito dessas políticas, o que, porém, deve incumbir
aos partidos políticos, identificáveis por seus programas, pois as pessoas são passíveis das
vicissitudes dos sentimentos e da vida, circunstâncias efêmeras, além de fortuitas. A
consciência ingênua credita o progresso e a prosperidade das nações aos dons pessoais e ao
voluntarismo dos líderes. Daí o culto aos heróis e “grandes homens”, aos quais se atribuem
dotes sobrenaturais ou quase mágicos. Essa é uma concepção política primária que conflita
com a democracia, pois serve para amparar o poder absoluto do governo de um só,
enquanto que a solução dos problemas da sociedade, o progresso e a prosperidade
podem ser logrados com o diagnóstico lúcido e a participação da maioria. Como afirmou
Sartori:
enquanto o eleitor vote simples e naturalmente em um notável local ou em alguma
classe de cacique local (no contexto do personalismo latino-americano), os partidos
continuarão sendo etiquetas de pouca monta, se é que têm alguma. Por conseguinte,
enquanto prevaleçam estas condições, não haverá um sistema de partidos
estruturado. Sem embargo, quando o apoio se dá mais ao partido do que aos
notáveis ou caciques, isto é, quando o eleitor se relaciona com imagens abstratas do
partido, neste momento já não é o chefe ou o der individual o que faz com que o
partido seja “eleito”, senão o partido que elege (põe no cargo) o indivíduo. À
medida que se desenvolve o processo, o sistema de partidos chega a ser
considerado como um sistema natural de canalização da sociedade política e
quando o eleitorado por assente um conjunto de rotas e alternativas políticas, da
mesma maneira que os motoristas dão por assente um determinado sistema de
estradas, então o sistema de partidos chegou à etapa de consolidação estrutural.
80
O eleitor não pode se identificar com a imagem abstrata de um partido enquanto
essa imagem não lhe seja proposta, isto é, até que se deixe de estimulá-lo com meros
partidos de políticos notáveis. Assim também o eleitor não pode considerar o partido como
uma entidade abstrata a menos que tenha capacidade de abstração; e isto implica, por sua
vez, alfabetização. Em condições de analfabetismo generalizado é difícil que ocorra a
consolidação do sistema de partidos (a menos que ocorra por motivos étnicos ou
religiosos). Clara e naturalmente,“vemos” um sistema de partidos estruturado quando o
partido organizado de massas desloca e amplamente substitui o partido de pessoas
80
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 51-52.
notáveis.
81
Segundo Sartori, o Brasil não poderá estabilizar seu sistema político enquanto se
baseie no “partido atomizado”, uma situação na qual o partido é pouco mais do que um
nome para que os políticos se unam e separem como desejem.
82
Inveracidade ou inautenticidade de programas partidários, abandono de programas
legítimos, após as eleições, pelos eleitos, caudilhismo, votos apenas nas qualidades pessoais
dos candidatos, que a propaganda exalta, cultua ou falseia, constituem desvios da
democracia, correntes nos regimes poliárquicos novos ou imaturos, que ainda não
assimilaram sua doutrina, e que a desservem e abastardam.
A modernização ou desenvolvimento sócio-econômico de países, cujos níveis desse
desenvolvimento são inferiores, - como no Brasil comparados com os dos países líderes
do mundo, desencadeia, com freqüência, um processo de turbulência e instabilidade das
instituições, que enseja soluções autoritárias. Sociedades que lograram criar em larga escala
instituições políticas poliárquicas, com capacidade de promover participação política mais
extensa do que as existentes são, presumivelmente, mais estáveis e imunes a golpes de
Estado. Entretanto, sociedades em que a participação popular excede a institucionalização
são, obviamente, instáveis, enquanto que sociedades com altos níveis proporcionais de
ambas participação e institucionalização têm estabilidade assegurada.
83
Sistemas
políticos com estas características são politicamente modernos e desenvolvidos. Eles
possuem instituições com demonstrada capacidade para absorver no interior do sistema as
novas forças sociais e os crescentes níveis de participação produzidos pela modernização.
A futura estabilidade de uma sociedade com escasso nível de participação política
depende amplamente da natureza das instituições políticas com as quais enfrenta a
modernização e a expansão da participação política. Os principais meios institucionais para
organizar a expansão dessa participação são os partidos políticos e o sistema partidário.
84
Ainda, segundo Huntington, a sociedade que desenvolve com algum sucesso partidos
81
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 52.
82
Idem, p. 205.
83
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 398.
84
Ibidem.
políticos organizados enquanto o nível de participação política é relativamente baixo, como
ocorreu na Índia, Uruguai, Chile, Inglaterra, Estados Unidos e Japão, terá, provavelmente,
menor expansão desestabilizadora da participação política do que uma sociedade na qual os
partidos são organizados mais tarde no processo de modernização. Em algum aspecto, os
partidos políticos o necessários para organizar e estruturar o incremento da participação
popular.
O relativo sucesso dos estados comunistas em prover a ordem política decorreu em
larga parte da prioridade concedida de modo consciente à organização política. Na União
Soviética, uma função do NEP foi propiciar a reconstrução e o fortalecimento do partido, a
revigoração de seus quadros, antes do maior esforço lançado na industrialização da
sociedade e na coletivização da agricultura soviética na década de 1930. Adequadamente os
bolchevistas deram prioridade à perfeição da organização política por meio da qual
governariam a Rússia.
85
A mesma estratégia seguiram o Partido Comunista da China nos
anos após 1949 e o México no período da Revolução, de 1910 a 1940.
Como adverte Huntington, elevado nível de participação combinado com baixos
níveis de institucionalização de partidos políticos produzem anomia política e violência.
Inversamente, entretanto, um baixo nível de participação tende também a enfraquecer os
partidos políticos frente a outras instituições políticas e forças sociais... Um partido com
apoio de massa é, obviamente, mais forte do que um partido com apoio restrito.
86
Participação sem organização degenera em movimentos de massa; organização sem
participação degenera em claques personalistas. Partidos fortes requerem altos níveis de
institucionalização política e altos níveis de apoio da massa. “Mobilização” e
“organização”, estes dois slogans da ação política comunista, definem precisamente a trilha
do partido forte. O partido e o sistema partidário que os combinem reconciliam a
modernização política com o desenvolvimento político.
87
85
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 400.
86
Idem, p. 402.
87
Ibidem.
Enquanto eleições e parlamentos são instrumentos da representação, partidos são
instrumentos de mobilização. Parlamentos são compatíveis com sociedades tradicionais
relativamente estáticas. A força dos grupos dominantes na estrutura social se reproduz no
interior do parlamento. A existência de uma assembléia eleita não constitui, em si mesma,
qualquer indicação de modernidade do sistema político nem de sua suscetibilidade de
modernização. O mesmo se pode dizer de eleições. Eleições sem partidos reproduzem o
status quo: constituem o expediente conservador que confere aparência de legitimidade
popular a estruturas e lideranças tradicionais, resistentes à mudança. Eleições com partidos,
porém, aparelham a sociedade de um mecanismo destinado à mobilização política dentro da
estrutura institucional. Os partidos políticos comandam a participação popular através dos
canais eleitorais em sentido oposto a situações anômicas.
88
Em países em que os partidos tiveram débil existência, ou, em regimes autoritários,
foram reprimidos e declarados ilegais, na medida em que a modernização progride a
necessidade de organizar a participação política também aumenta. Quanto mais duradoura a
ausência organizacional, mais explosiva a situação social.
A modernização desencadeia a migração de populações das regiões rurais para os
centros onde as atividades econômicas se desenvolvem e oferecem trabalho. O incremento
do processo produtivo, enriquecido com novas técnicas, transforma a fisionomia da
sociedade e promove o surgimento de novas camadas sociais, que necessitam expressar
suas visões da sociedade e aspirações. Se estas não encontram canais apropriados de
partidos políticos para absorvê-las e buscar sua realização, a instabilidade se instaura e as
chances de desordens, violência e golpe de Estado aumentam.
O Estado sem partidos é o Estado natural da sociedade tradicional. Nele a
resistência conservadora transforma-o em Estado antipartidário. Quanto mais hostil o
governo se revela com os partidos políticos na sociedade que se moderniza, tanto mais
provável futura instabilidade nessa sociedade. Golpes militares são muito mais freqüentes
em Estados sem partidos do que naqueles que possuem algum modelo de sistema
partidário. O regime sem partidos é um regime conservador; um regime antipartidário é um
88
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 402.
regime reacionário.
89
A estabilidade de um sistema político moderno – como assevera
Huntington depende da força de seus partidos políticos. Um partido, por sua vez, é forte
na medida em que ele tem apoio institucionalizado na massa.
A suscetibilidade de um sistema político a intervenção militar varia inversamente à
força dos seus partidos políticos. Golpes militares não destroem partidos; ratificam a
deterioração que ocorrera neles. Violência, tumultos, e outras formas de instabilidade
política ocorrem com maior probabilidade em sistemas políticos sem fortes partidos do que
nos sistemas que os possuem.
90
3.2.6 Sistemas eleitorais
Da igualdade de direitos dos cidadãos decorre o princípio republicano de que cada
um tenha um voto, com peso igual para todos, nas eleições dos governos e dos legisladores,
banido na atualidade o critério censitário que priorizava a desigualdade econômica e social.
A fim de proteger o eleitor contra eventuais perseguições ou prejuízos, as legislações
adotam medidas para assegurar o sigilo do voto. Diz Giusti Tavares talvez um tanto
prolixamente, mas não sem bastante pertinência em muitos aspectos:
Sistemas eleitorais são construtos técnico-institucional-legais instrumentalmente
subordinados, de um lado, à realização de uma concepção particular da
representação política e, de outro, à consecução de propósitos estratégicos
específicos, concernentes ao sistema partidário, à competição partidária pela
representação parlamentar e pelo governo, à constituição, ao funcionamento, à
coerência, á coesão, à estabilidade, à continuidade e à alternância dos governos, ao
consenso público e à integração do sistema político.
91
89
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London:
Yale University Press, 1996. p. 407- 408.
90
Idem, p. 408- 409.
91
TAVARES, J. A. G. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas – teoria, instituições, estratégia.
Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1994. p. 17.
Na racionalidade do sistema eleitoral encontra-se sempre uma teoria, - como afirma
Giusti Tavares logo adiante conscientemente assumida ou não, concernente à natureza, às
funções e aos propósitos da representação política, que determina os princípios e os
critérios com que o sistema eleitoral tece suas regras e constrói mecanismos, visando certos
efeitos almejados sob as condições sócio-políticas em que o sistema eleitoral foi concebido.
Os sistemas eleitorais determinam o modo pelo qual os votos se transmudam em
cadeiras nos parlamentos e, portanto, afetam a conduta do eleitor. Em outro sentido,
orientam o destino do voto, isto é, se o eleitor vota em um partido ou em uma pessoa. Na
primeira hipótese, importa saber se a transformação dos votos em cadeiras é ou não
proporcional, de onde resulta que a principal divisão dos sistemas eleitorais se faz entre a
representação proporcional e a majoritária. Releva ainda identificar quem realiza a seleção
dos candidatos e os sistemas se bipartem em promover o voto na pessoa do candidato ou
no partido. Tratando-se ambos os critérios (proporcional e majoritário) de questão de grau,
além de ensejar combinações, a classificação geral e a tipologia dos sistemas eleitorais,
como admite Sartori
92
, constitui assunto complicado.
O sistema eleitoral de concepção mais elementar e por isso mais difundido é o
sistema majoritário. Vota-se no nome do agente político (na votação eletrônica identificado
por um mero) e o eleito será o que lograr maior número de votos, isto é, escolhido pelo
maior número de concidadãos. Na hipótese majoritária, o vencedor fica com tudo”.
Adapta-se perfeitamente o sistema majoritário quando se trata da eleição de um
representante ou governante, como na escolha de Presidente da República, de Governador
de Estado ou de Prefeito municipal. Todavia, mesmo nessas hipóteses, se forem mais de
dois candidatos, pode ocorrer distorção, qual seja o fato de o candidato com maior soma de
votos e, portanto, vencedor, ter obtido menos votos do que a soma dos votos dados aos
candidatos derrotados, o que importa em ser a eleição decidida não pela maioria, mas pela
minoria dos eleitores. Para afastar-se essa distorção, prejudicial à autoridade do vencedor,
adota-se a eleição em dois turnos, quando nenhum dos candidatos obtém maioria absoluta
no primeiro turno, disputando o segundo turno apenas os dois candidatos mais votados.
92
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 15.
Entretanto, o sistema de dois turnos inclina os partidos a se tornarem flexíveis, como disse
Duverger, levando-os a moderar a política, circunstância que milita contra a política
ideológica e favorece a política pragmática, segundo Sartori
93
. Entretanto, se os partidos
são débeis ou só têm o rótulo de partido, consistindo em mero agrupamento de políticos em
luta pelo poder, os sistemas eleitorais têm pouca importância.
A deformação, consistente no fato de o vencedor somar menos votos do que a soma
dos votos dados aos vencidos pode ocorrer também nas eleições para o parlamento ou para
uma de suas câmaras, no sistema distrital majoritário, quando os parlamentares são
escolhidos uninominalmente por distrito, por maioria simples, como sucede na Grã-
Bretanha, Estados Unidos, etc. A distorção já se verificou várias vezes na história britânica,
quando, somados os votos de todos os distritos, evidenciou-se que o partido que obteve a
maior soma de votos, havia elegido menor número de deputados do que o outro, que tivera
votação menor. Explica o ocorrido a circunstância de que o partido que somou mais votos
no total das circunscrições tenha perdido em vários distritos por poucos votos, enquanto em
outros vencera com larga margem de sufrágios. O sistema enseja ainda sub-representação,
na hipótese em que o percentual dos membros eleitos de uma agremiação partidária revela-
se inferior ao percentual de seus votos relativamente ao total dos sufrágios. O inverso
também sucede, isto é, a super-representação de um partido em relação aos outros. Não se
exclui uma derradeira deformação do sistema majoritário: uma considerável minoria ficar
alijada de participar do parlamento. Tais distorções influenciam a formação do sistema de
partidos.
A crônica da sabedoria ou da malícia política e das fraudes eleitorais se enriqueceu
com o traçado dos distritos, no modelo majoritário, quando se elege um representante
por distrito como o sistema britânico ou o norte-americano. Ao estabelecer as dimensões
e o desenho dos distritos, o legislador ou responsável pode considerar as tendências sociais,
econômicas e eleitorais das populações respectivas, inserindo-as em um ou outro distrito,
ou alterando o traçado deste, de acordo com as previsões e conveniências de um partido.
Nos Estados Unidos, onde a eleição presidencial é realizada por um colégio eleitoral,
93
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 80.
integrado por representantes estaduais eleitos pelo sistema majoritário, sucedeu que o
candidato vencedor tivesse obtido menos votos populares que o candidato derrotado. O
abuso da técnica manipulatória da configuração de distritos tem ocorrido em vários países,
tendo sido denominada de gerrymandering, em memória do astucioso político americano
que ganhou fama por operá-la com perícia.
94
Esse abuso foi, finalmente, banido pela
Suprema Corte em 1964, sob a presidência do Juiz Earl Warren, ao decidir o litígio entre
Reynolds v. Sims, ao estabelecer que os distritos devem conter substancialmente igualdade
populacional.
A deficiência da sub-representatividade de minorias, no sistema majoritário, tem-se
atenuado pela elegibilidade de três ou mais deputados por distrito, combinado com o limite
do voto de cada eleitor a número de candidatos inferior ao total, como ocorreu no Brasil
com o Decreto 2.675, de 20/10/1875, conhecido por “lei do terço”, que estabelecia que o
eleitor poderia votar em dois terços dos candidatos. Resultado análogo também pode ser
obtido pela técnica de chapa completa bloqueada, autorizando cada partido a inscrever
apenas quantidade de candidatos inferior ao total que deve ser eleito.
Sem embargo desses expedientes, a muitos pareceu mais adequado ao critério de
justiça, com vistas à distribuição de cadeiras entre os partidos disputantes de vagas em casa
do parlamento, o sistema de representação proporcional, pelo qual se busca equivalência
entre o percentual de votos conquistados por um partido e a quantidade de cadeiras que lhe
caberão na câmara ou parlamento respectivo. Nesse critério, o vencedor não “fica com
tudo”, pois o triunfo é compartilhado. Essa proporcionalidade propende a afastar a sub-
representatividade, embora não a suprima por inteiro na hipótese de algum partido não
lograr quociente mínimo, isto é, o denominado quociente eleitoral, obtido pela divisão do
total de sufrágios pelo número de cadeiras a serem preenchidas, o que terá influência,
certamente, no sistema partidário.
A representação proporcional foi concebida em meados do século XIX e teve, entre
seus arautos, John Stuart Mill e Thomas Hare, tendo este projetado o procedimento com o
94
Essa prática celebrizou o governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, que, em 1812, ardilosamente
traçou um distrito em forma de salamandra, o qual concentrava seus votos e dispersava os de seus opositores
(apud SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 35).
qual se obtém a distribuição dos assentos. Observou-se que a representação proporcional
dificulta ou obsta que um partido logre a maioria e domine as políticas nacionais, tendo
Charles Boix afirmado que sua implantação decorreu do receio de conservadores de que o
crescimento eleitoral dos partidos socialistas os levasse ao poder.
95
Se assim foi, obstruiu-se
com tal engenhosa artimanha a vontade popular. O sistema proporcional foi adotado
inicialmente pela Bélgica em 1899, depois pela Finlândia, em 1906, pela Suécia, em 1907,
e vários outros países. Ingressou no Brasil pelo Código Eleitoral de 1932 para a eleição de
deputados federais, estaduais e vereadores.
Na Alemanha redemocratizada, após Grande Guerra, retornou a representação
proporcional global que existira na República de Weimar (1919-1933) para a câmara
baixa do parlamento (Bundestag), mas conjugado com o voto majoritário em distritos
uninominais. A distribuição das cadeiras, no âmbito nacional, se faz proporcionalmente à
quantidade de votos conquistados pelo partido, desde que atingida a cláusula de barreira de
5%. Entretanto, o preenchimento das vagas correspondentes ao partido é feito com
anterioridade pelos parlamentares eleitos nos distritos e o remanescente delas com os
nomes constantes da lista partidária. Embora alguns classifiquem esse sistema como misto,
na realidade não o é.
É difícil classificar todos os sistemas eleitorais claramente como majoritários ou
proporcionais. O sistema de dois turnos pode ser tanto um sistema majoritário com distritos
eleitorais de um representante, como um proporcional com distritos eleitorais de vários
representantes. Há, portanto, duas formas distintas de estabelecer a proporcionalidade
vencedora: uma a mais freqüente por meio de quocientes eleitorais; a outra se obtém
elegendo-se os vencedores de acordo com a votação que conseguem os candidatos em
distritos com dois ou mais representantes (em um distrito de dois representantes seriam os
dois primeiros mais votados, e assim sucessivamente). No primeiro caso se elegem os
candidatos na base de partes iguais (quocientes eleitorais); no segundo, elegem-se na base
95
BOIX, C. Setting the rules of the game: The choice of electoral systems in advanced democracies.
AMERICAN POLITICAL SCIENCE REVIEW, v. 93, n. 3, setembro de 1999 apud FERREIRA FILHO, M.
G. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 174.
das maiores proporções de votos.
96
Surge, de imediato, dúvida sobre a possibilidade de se
considerar critérios proporcionais esses dois critérios distintos. Sartori opina
afirmativamente, considerando que ambos os critérios produzem resultados proporcionais e
que qualquer dos dois pode oferecer, per se, um mesmo grau de proporcionalidade justa.
97
A distinção entre sistemas majoritários e proporcionais não significa que todos os
sistemas eleitorais possam classificar-se dicotomicamente nessas duas modalidades apenas,
pois também encontramos os sistemas mistos. Pondere-se, entretanto, que amiúde se aplica
erroneamente o conceito de misto. Considere-se o seguinte exemplo invocado por Sartori:
um parlamento bicameral cujas câmaras alta e baixa se elegem por meio de sistemas
diferentes, tal não configura um sistema misto. Somente os que elegem uma mesma câmara
combinando critérios de proporcionalidade e de pluralidade constituem sistemas eleitorais
que se pode chamar de mistos.
Giusti Tavares apurou 38 variedades de sistemas eleitorais, vigentes nas principais
democracias representativas contemporâneas, o que lhe permitiu classificá-las em 14
variedades majoritárias, 2 mistas e 22 proporcionais, ordenando-as fundamentalmente,
embora não exclusivamente, do ponto de vista do efeito diferenciado da rmula de cada
uma.
98
Os sistemas majoritários do tipo inglês são sistemas plurais de uma eleição. Na
hipótese de se exigir um vencedor por maioria absoluta, dever-se-á recorrer ou ao voto
alternativo, como se usa, por exemplo, na Austrália, para a câmara baixa, ou ao sistema de
eleição em dois turnos, em que os dois candidatos mais votados no primeiro turno disputam
o turno final. O voto alternativo é um sistema de votação “preferente no interior de
distritos que elegem um representante. Nele se exige que o eleitor numere a todos os
candidatos na ordem da sua preferência. Os candidatos com menor número de votos são
eliminados e se redistribuem as preferências até que se verifique o vencedor por maioria
absoluta. Nessas condições, o voto alternativo insere-se no sistema majoritário. Enseja,
96
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001.p. 16-17.
97
Idem, p. 17.
98
TAVARES, J. A. G. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas – teoria, instituições, estratégia.
Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1994. p. 18.
ademais, acentuada personalização do voto, embora se vote em candidatos de partidos
diversos.
Há sistemas que oferecem uma espécie de prêmio à maioria, com o objetivo de criar
ou robustecer uma maioria. Trata-se aí, sem vida, de votação proporcional. Assim, o
sistema Sáenz Peña, utilizado na Argentina até 1962, que destinava, sobre a base dos
distritos eleitorais, duas terças partes das cadeiras à lista partidária que obtivesse maior
número de votos e o terço restante à lista do partido que conquistasse o segundo lugar. Não
obstante utilizasse votação em listas para distritos com vários representantes, esse sistema
criava uma ampla maioria absoluta, de modo a buscar a imposição de um sistema
bipartidário em cada distrito eleitoral.
O Paraguai há bastante tempo, adotou um sistema pelo qual duas terças partes das
cadeiras eram deferidas ao partido que conquistasse mais votos e o terço restante era
distribuído proporcionalmente entre todas as demais listas partidárias. Sem embargo do
desmedido prêmio à maioria, um terço era proporcional.
O voto único transferível, que apresenta alguma semelhança com o voto alternativo,
é, todavia, ao contrário deste, proporcional, pois se encontra em distritos com vários
representantes, enquanto o voto alternativo elege apenas um representante distrital. No
sistema do voto único transferível os eleitores numeram os candidatos pela ordem de sua
preferência, como no voto alternativo. Entretanto, todo voto acima do quociente eleitoral
reverte para a segunda preferência. Os candidatos com número de votos inferior ao
quociente são eliminados e as preferências de seus votos são redistribuídas até que todas as
cadeiras sejam preenchidas. Há, ainda, outras fórmulas encontradas em eleições
proporcionais, cuja análise refoge aos objetivos da presente dissertação.
Como observa Sartori, as diferenças entre os vários sistemas proporcionais são
matemáticas. O fator, porém, mais importante para estabelecer a proporcionalidade ou
desproporcionalidade do sistema de representação proporcional é o tamanho do distrito
eleitoral, que se mensura pelo número de membros do parlamento ou câmara que cada
distrito elege. Assim, desprezando-se os refinamentos matemáticos, pode-se afirmar que
quanto maior seja o distrito (o que elege maior número de parlamentares) maior será a
proporcionalidade, como Holanda e Israel, que elegem representantes em nível nacional,
respectivamente, 150 e 120 membros. Ambos os países, portanto, estão mais próximos da
proporcionalidade pura. De modo contrário, quanto menor seja o número de representantes,
menor será a proporcionalidade.
Muitas vezes os sistemas de representação proporcional conjugam-se com os
sistemas de listas que oferecem aos eleitores a nominata dos candidatos dos partidos, com
freqüência número igual de nomes ao número de candidatos elegíveis pelo distrito. Essas
listas podem ser fechadas, quando a ordem de elegibilidade dos candidatos partidários é
escolhida pelo partido, na proporção em que este conquistar votos, ou abertas, quando
inexiste ordem de elegibilidade pré-fixada pelos partidos, cabendo aos eleitores escolher os
nomes dos representantes nos quais deposita seus votos.
No sistema de lista fechada o eleitor vota no partido, e não na pessoa dos
candidatos, ou nesta indiretamente, pois há uma ordem de nomes determinada pelo
partido. O voto se destina à proposta política dos partidos, que devem tê-la definida para
que o eleitor a escolha. O candidato vincula-se à proposta de seu partido, pela qual deve
empenhar-se, caso eleito. Esse sistema é o que melhor realiza o processo político
democrático, desde que os partidos tenham programas como fundamento de sua existência
e propostas claras deles decorrentes que vincularão os candidatos respectivos.
A fórmula de lista organizada pelos partidos pode também prever que o eleitor
quebre a ordem seqüenciada de nomes e vote em um nome de sua livre escolha, fora da
ordem. Esse dispositivo foi denominado panachage. O sistema de lista aberta não contém
seqüência ordenada de nomes estabelecida pelos partidos, deixando ao eleitor a livre
escolha de nomes. Faculta a personalização do candidato, e sua escolha pelo eleitorado em
virtude de seus dotes pessoais, reais ou imaginários, e, muitas vezes, ilusórios, alardeados,
propagandeados, falsos, o que frauda o interesse e a vontade de eleitor e vicia o processo
democrático.
Deparam-se, ainda, duas fórmulas possíveis: a lista livre e o voto limitado. Na lista
livre o votante tem tantos votos quantos forem os candidatos a serem eleitos, podendo dar
dois votos a qualquer dos candidatos, como pode ainda votar em candidatos de partidos
diferentes. Esse sistema existe apenas na Suíça, país cujo ordenamento constitucional
permite saber-se antecipadamente a duração e a composição do governo. Por fim, o voto
limitado concede a cada eleitor mais de um voto, em número menor, porém, que o número
de representantes elegíveis.
A deficiência dos sistemas majoritários é que são suscetíveis de manipulação.
Entretanto, os sistemas proporcionais não são perfeitos, pois facultam a proliferação de
partidos, deficiência que se reduz com a adoção de sistemas parcialmente proporcionais.
Existe, ademais, outra técnica destinada a frear a multiplicação supérflua de partidos: a
cláusula de barreira, a Sperrklausel alemã, de 5% na Alemanha, fixada, porém, em distintos
percentuais em outros países, pela qual somente elegerá candidatos o partido cujos votos
atingirem o percentual mínimo ou em outra modalidade – o partido somente obterá
registro, isto é, terá existência legal, se atingir o percentual mínimo de votos em um número
determinado de eleições.
Nos povos com elevado grau de consciência pública e de consenso em torno de
princípios constitucionais basilares, as conseqüências do sistema eleitoral e do sistema
de governo no funcionamento da democracia representativa são escassas e tendem à
irrelevância. Como assevera Giusti Tavares,
Uma sociedade civilizada pode funcionar com um sistema eleitoral e com um
sistema de governo tradicionais ou mesmo arcaicos, como nos Estados Unidos,
ou com um sistema de governo que, atravessado pela ambigüidade institucional
e pela superposição de competências, contém a virtualidade do conflito
intragovernamental, sem possuir regras ou autoridade superior para solvê-lo,
como ocorre na Quinta República francesa.
Mas em países com baixo nível de consenso e de consciência pública, o
funcionamento do sistema político depende, em quase todos os seus aspectos, e
em grande medida, da adequação e da nitidez com que se definem
constitucionalmente as regras eleitorais e os mecanismos do sistema de
governo.
99
Parece-nos ser este o caso do Brasil.
99
TAVARES, J. A. G. Sistemas eleitorais nas democracias contemporâneas – teoria, instituições, estratégia.
Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 1994. p. 373-374.
3.2.7 Os sistemas de governo
Nos governos, as relações entre os poderes legislativo e executivo podem
apresentar-se sob três modalidades compatíveis com a poliarquia: ou ambos esses poderes
são reciprocamente independentes, ou há equilíbrio entre eles, ou o legislativo subordina o
executivo. Há uma quarta possibilidade de relacionamento, na qual o poder executivo
subordina o legislativo, mas aí não subsiste a poliarquia, e tem-se o governo autoritário ou a
ditadura.
A primeira modalidade, caracterizada pela separação de poderes, surgiu nas
monarquias constitucionais ou limitadas, na evolução histórica do absolutismo para o
governo representativo, que culminou com o presidencialismo ou sistema presidencial de
governo. Essa designação expressa o predomínio do executivo corporificado no Presidente
da República. A segunda modalidade indica interdependência entre os poderes legislativo e
executivo, que não atuam separadamente, embora conservem sua distinção. Situa-se o
parlamentarismo ou o sistema parlamentar de governo, no qual a soberania corresponde ao
legislativo. A terceira modalidade, raramente praticada, denominada de governo diretorial,
é típica do regime suíço. Nela o parlamento governa, limitando-se o poder executivo a
aplicar as decisões do parlamento.
Sem embargo, existem ainda sistemas mistos ou intermediários, como o
semipresidencialismo, em que o executivo é exercido conjuntamente pelo presidente, chefe
do Estado, eleito, no mais das vezes, pelo voto popular, e por um primeiro-ministro, chefe
do governo, sujeito ao parlamento, como na França, e a forma exótica de Israel, com
presidente e primeiro-ministro eleito pelo voto popular, entre outras características. Como
se observa, os sistemas mais disseminados são presidencialismo e parlamentarismo.
Entretanto, para o observador rigoroso resulta bastante difícil classificar vários sistemas
existentes em uma dessas duas modalidades. Decorre essa dificuldade, em parte, da
circunstância de que a maioria dos sistemas presidenciais não é definida adequadamente e,
de outra parte, do fato de que os sistemas parlamentares diferem tanto entre si que sua
denominação comum se torna ilusória.
3.2.7.1. Presidencialismo
Juridicamente o sistema presidencial se caracterizou, desde 1787 (Estados Unidos),
pela separação e independência dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário, cada
um com competência relativamente especializada em uma das três funções do Estado. O
executivo é exercido unipessoalmente pelo Presidente da República.
O primeiro critério comumente utilizado para definir um sistema presidencial é a
eleição popular direta ou quase direta do chefe do Estado para o exercício de um mandato
por tempo determinado, variável de quatro a oito anos. Esse critério constitui certamente
condição definitória necessária, porém, insuficiente. Como argumenta Sartori, Áustria,
Islândia e Irlanda utilizam a eleição popular direta de seus presidentes e, no entanto, seu
presidencialismo é, apenas, de fachada. Sem importar o que digam suas constituições a
respeito de suas prerrogativas de poder, esses presidentes são pouco mais que decorativos,
pois Áustria, Islândia e Irlanda funcionam com todas as características de sistemas
parlamentares.
100
A despeito da popularidade de seus presidentes eleitos, não se pode
classificar a esses países como presidencialistas. Duverger classifica-os como
semipresidenciais, fundado apenas no critério jurídico-constitucional.
Um segundo critério conceitual ampara-se em que o executivo, nos sistemas
presidenciais de governo, não é designado ou destituído pelo voto do parlamento. O
100
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 97-98.
governo constitui prerrogativa presidencial; é o presidente, a seu arbítrio, quem nomeia ou
substitui os seus ministros. Note-se, todavia, que tal critério característico não desaparece
na hipótese de se conceder ao parlamento – como ocorre em alguns sistemas presidenciais –
o poder de censurar ministros, mesmo quando a censura parlamentar determina a renúncia
ao cargo. O critério distintivo não desaparece porque em ambas as hipóteses o presidente
detém, de modo unilateral, o poder de nomear e preencher os cargos do seu ministério
como melhor lhe aprouver.
Todavia, ainda não bastam esses dois critérios para identificar um sistema
presidencial. Acresce que um sistema presidencial puro não comporta nenhuma hipótese de
outra autoridade que se interponha entre o presidente e seu ministério. O terceiro critério,
de acordo com Sartori, é que o presidente dirige o executivo.
Em conclusão, um sistema político é presidencial se e somente se o chefe de
Estado (o presidente) (a) é eleito popularmente; b) não pode ser destituído do cargo por
votação do parlamento ou do congresso no curso do seu mandato pré-estabelecido, exceto,
obviamente, a hipótese de impeachment, por crime de responsabilidade; e c) encabeça ou
dirige de alguma forma o governo que designa. Quando concorrem estas três condições
conjuntamente temos, sem dúvida, um sistema presidencial puro.
101
Não obstante, encontramos países como Estados Unidos, Argentina, Bolívia e
Chile, até o governo Allende, cujas eleições presidenciais o, ou foram, quase diretas, -
nas quais o presidente é (ou foi) eleito pelo parlamento ou por algum colégio eleitoral,
como no caso de nenhum candidato obter maioria absoluta do voto popular. Todavia, essa
particularidade não é de monta a desnaturar o sistema presidencial. No modelo, cujo
protótipo reside em Washington, o parlamento o pode destituir o presidente, que enfeixa
o executivo (salvo impeachment), nem o presidente pode destituir o parlamento, sendo que
o executivo constitui organismo autônomo.
Na atualidade encontramos uns vinte países presidencialistas, concentrados, em sua
maioria, na América Latina, além do protótipo, na América do Norte. Por razão histórica a
101
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 99.
Europa não possui sistemas presidenciais puros. Quando os Estados europeus iniciaram a
prática do governo constitucional, todos, com exceção da França, que se converteu em
República em 1870, eram monarquias. Estas possuíam um chefe de Estado hereditário.
Mas, enquanto o Europa não possuía presidente eleito, pelo menos até 1919, na América,
quase todos os países proclamaram sua independência como repúblicas, exceto o Brasil e,
em certo sentido, o México. Como repúblicas, tiveram de eleger seus chefes de Estado, isto
é, seus presidentes. Assim, a divisão entre os sistemas presidenciais e os parlamentares não
resultou da adoção de teorias que sustentassem a superioridade de um sistema em relação
ao outro, mas, sim, da situação histórica.
3.2.7.2. Parlamentarismo
102
O princípio fundador dos sistemas parlamentares, qual seja o de que o parlamento é
soberano, conferiu-lhes a denominação. Distingue a natureza dos mesmos a ausência de
separação do poder entre o governo e o legislativo. O compartilhamento desse poder é a
característica fundamental do parlamentarismo.
Essa palavra, porém, não designa um sistema apenas. Se o funcionamento dos
sistemas parlamentares se revela tão diversificado, na realidade, sua explicação encontra-se
no fato de se vincularem a espécies bastante distintas de relações entre o executivo e o
legislativo, das quais constituem, por sua vez, o resultado. Há, pelo menos, três variedades
principais de sistemas parlamentares: o sistema de primeiro-ministro ou de gabinete, do
tipo inglês, em que o executivo forçosamente prevalece sobre o parlamento; o modelo
francês de governo por assembléia (Terceira e Quarta Repúblicas), que quase impossibilita
102
Amparamos nossa exposição dos sistemas de governo na visão de Sartori, cuja propriedade e penetração –
a nosso juízo – outros enfoques não foram capazes de afastar.
governar; e, entre ambos esses modelos, encontra-se a fórmula do parlamentarismo
controlado pelos partidos.
103
Pode-se compartir o poder de muitas maneiras. Sartori vislumbra claridade nessa
penumbra ao se voltar para a estrutura de autoridade nuclear em que se outorga poder ao
chefe do executivo, o primeiro-ministro, para governar. De acordo com esse ponto de vista,
o chefe do governo pode relacionar-se com os demais integrantes do mesmo como:
a) Um primeiro acima de seus desiguais.
b) Um primeiro entre desiguais.
c) Um primeiro entre iguais.
Eis aí todas as fórmulas para compartilhar o poder nos sistemas parlamentares
porque excluem a concentração do poder em uma só pessoa, como sucede com o presidente
norte-americano, cujo governo é somente seu gabinete privado. Na realidade, são fórmulas
muito diferentes. Um primeiro-ministro britânico está na situação em que é um primus
acima de seus desiguais, porque ele é o que realmente comanda o governo e desfruta
liberdade para designar e destituir ministros que certamente lhe são “subordinados”. O
chanceler alemão é menos preeminente, mas continua sendo um primus entre desiguais,
enquanto que o primeiro-ministro de um sistema parlamentar ordinário é um primus inter
pares, e, portanto, não é tão primus na realidade.
104
Um primeiro acima de seus desiguais é o chefe do executivo que, por sua vez, é
chefe do partido, quem dificilmente pode ser destituído pelo voto do parlamento, e quem
designa ou substitui os ministros do seu gabinete como lhe aprouver. De modo que este
“primeiro” governa acima de seus ministros e pode contradizer suas ordens. Um primeiro
entre desiguais poderia não ser o líder do partido oficial, e, no entanto, não se lhe poderia
destituir por meio de um mero voto parlamentar de desconfiança; espera-se que permaneça
no cargo ainda que os membros do seu gabinete mudem. Assim este “primeiro” pode
103
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 116-117.
104
Idem, p. 118.
destituir seus ministros, mas estes não podem destituí-lo. Por fim, um primeiro entre iguais
é um primeiro-ministro que cai com seu gabinete, que geralmente deve incluir no gabinete
ministros que lhe são “impostos”, e que tem pouco controle sobre o grupo, pois tais
ministros buscam seus próprios interesses.
105
Essas fórmulas contemplam uma escala de acordos para compartilhar o poder que
prejudica as concepções convencionais sobre vantagens ou excelências do sistema
parlamentar sobre o presidencial, ou vice-versa. Mas também, com apoio nessa escala, se
pode afirmar que um primeiro-ministro inglês pode governar muito mais efetivamente do
que um presidente estadunidense.
106
As fórmulas de compartir o poder que melhor têm
atendido à promessa de governar são: a) um primeiro-ministro acima de seus desiguais, e b)
um primeiro-ministro entre desiguais. Ambas essas hipóteses de governo parlamentar com
melhor desempenho encontramos na experiência inglesa e na alemã. Obviamente, o melhor
desempenho aproveita à democracia.
O sistema inglês de primeiro-ministro pressupõe governo de um só partido. Entende
Sartori que fracassaria na hipótese de governo de coalizão. Além de governo de um
partido, pressupõe também um sistema de distritos eleitorais que elege um só representante,
o que engendra a modalidade de sistema bipartidário. Saliente-se ainda que o governo de
um partido requer estrita disciplina partidária, a qual predomina em Westminster, pois,
lá, votar contra o governo do próprio partido, significaria jogá-lo à oposição. Resulta dessas
circunstâncias que o governo de Westminster depende de três condições relevantes, as
quais sugere Sartori que dependem uma da outra na seguinte ordem: a) eleições
majoritárias; b) um sistema bipartidário; e c) uma forte disciplina partidária.
107
Desse
esquema extrai Sartori a implicação de que, caso se altere a primeira condição, eclodirá um
“efeito dominó”, não percebido pelos acadêmicos e políticos britânicos que pressionam
pela adoção de algum sistema de representação proporcional e, em todo caso, pela
revogação do sistema em que o vencedor fica com tudo. Nessa conjuntura, o sistema inglês
105
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 118-119.
106
POLSBY, N. W. Does Congress work? In: Bulletin of the American Academy of Art and Sciences,
Massachusetts, v. XLVI, n. 8, maio de 1993.
107
SARTORI, G., op. cit. p. 120.
de primeiro-ministro pode ser facilmente destruído enquanto que, pelo contrário, não é fácil
criá-lo.
O Reino Unido e os países que seguem o modelo inglês constituem o modelo forte
de parlamentarismo com um primeiro-ministro, ao passo que a Alemanha apresenta o
modelo débil, o mais débil da categoria.
108
A República Federal Alemã nunca teve um
sistema de dois partidos (mesmo que se considere a UDC e a USC bávara como um
partido), e por breve período foi governada por um partido. Durante muito tempo
possuiu um sistema de três partidos, enquanto seus governos de coalizão sempre foram de
dois membros, ausente o sistema eleitoral majoritário. Ademais, o chanceler alemão é eleito
no parlamento e por ele, e de nenhum modo formal (legalmente formal) é o líder do seu
partido. Circunstância peculiar consiste em que os partidos alemães informam ao
eleitorado, ao ensejo das eleições, quem seria seu chanceler no caso de vitória eleitoral,
infringindo ou, pelo menos, debilitando o princípio parlamentar. Sartori, todavia, não
muita importância a esse fato, pois a designação pré-eleitoral do primeiro-ministro é viável
em um sistema partidário de dois ou de dois e meio partidos, que faculta somente a dois
contendores a possibilidade de vitória. Todavia, carece de sentido em sistemas
multipartidários que necessitam de coalizões mais amplas de mais de dois partidos,
revelando-se, ademais, absurda a indicação pré-eleitoral de primeiro-ministro quando as
coalizões amplas de governo são formadas por partidos cuja força é semelhante, hipótese
em que o cargo de primeiro-ministro é negociado pelos partidos coligados.
Sartori atribui a formação do sistema alemão aos seguintes fatores e razões que
explicam a Kanzlerdemokratie e com a seguinte ordem: a) a proibição dos partidos opostos
ao sistema; b) a Sperrklausel; e c) o chamado voto construtivo de censura. Sartori diverge
da maioria dos observadores que afirmam que o sistema tripartidário alemão se deve à
cláusula de exclusão de 5%, a Sperrklausel, combinada com o sistema eleitoral misto (meio
majoritário). Considera equivocada essa explicação. Entende ele que o sistema eleitoral
alemão resulta em representação proporcional quase pura, sendo pouco provável que o
umbral de 5% reduza o formato de um sistema de partidos a três contendores em algum
108
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p.121.
lugar, incluída a Alemanha. Sustenta Sartori que os primórdios do sistema político alemão
não se encontram no sistema eleitoral, mas na circunstância de que as decisões judiciais
modificaram fundamentalmente o “desenvolvimento natural” do sistema de partidos. O
Tribunal Constitucional de Karlsruhe proibiu em 1953 o funcionamento do Partido
Socialista do Reich, neonazista, e, em 1956, o Partido Comunista. Não fossem essas
decisões judiciais, talvez o sistema tripartidário alemão não existisse. Assim as estruturas
constitucionais em nada influíram nesse relevante acontecimento. Avalia ainda Sartori que
aquelas decisões judiciais foram particularmente “circunstanciais”, pois decorriam do
estado de ânimo que prevalecia nos anos cinqüenta e do contexto específico que as
justificou, não acreditando o autor citado que pudessem se repetir, na atualidade, em
alguma democracia estabelecida.
109
De modo que o primeiro fator explicativo do sistema político alemão, segundo
Sartori, foi a vedação da atuação dos partidos opostos ao sistema, no importante significado
de que proporciona aos outros dois fatores uma força de que carecem por si mesmos. Após
a cláusula de barreira, a Sperrklausel, apreciada, merece atenção o terceiro fator – o voto
de censura construtivo que constitui o elemento especificamente constitucional da
Kanzlerdemokratie. Essa norma estabelece que o chanceler não pode ser destituído pelo
voto de censura do parlamento, a menos (e até que) se tenha designado o seu sucessor.
Embora essa possibilidade constitucional não constitua obstáculo intransponível, não se
deve menosprezar sua eficácia, como pondera Sartori, pois é muito mais fácil reunir uma
maioria negativa, maioria que simplesmente destitua um governo, do que congregar uma
maioria positiva que também se ponha de acordo sobre a pessoa do novo chanceler.
110
Depois de ter observado que o princípio da liderança alemã parecia apresentar
constituição mais débil do que o inglês, Sartori conclui que essa debilidade é corrigida pelo
voto de censura construtivo, além de contar com um reforço adicional, pelo qual o
parlamento somente nomeia o chanceler, e não o governo todo, como ocorre na maioria dos
sistemas parlamentares. Esse procedimento assegura que o premier esteja acima de seu
governo; que ele é, definitivamente, como se disse antes, um primeiro entre desiguais.
109
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 122-123.
110
Idem, p. 123.
Tendo presente que o modelo alemão como se viu resultou de circunstâncias
particulares, ele se revela mais difícil de ser imitado com sucesso, contrariamente ao que
muitos pensam, do que o sistema inglês, que se conformou constitucionalmente. Como
decorreu de circunstâncias especiais, que desaparecem ou se alteram com o tempo, Sartori
prevê a possibilidade de que o sistema alemão, como foi até a metade dos anos noventa,
poderia estar desaparecendo, desde que outros partidos ultrapassam a barreira de 5%,
podendo a unificação das duas Alemanhas aumentar, com o tempo, o número de partidos
para quatro ou cinco. Esses fatos colocariam em cheque a sobrevivência da
Kanzlerdemokratie, pois a força do chanceler não vai além do seu próprio partido. Essa
limitação carece de importância enquanto o segundo sócio das coalizões alemãs, o PFD, foi
seis a sete vezes menor, condições em que o partido liberal não pode aspirar a nomear o
chanceler, nem condicionar sua designação; seu poder se restringiria a destituir o governo
de coalizão dominado pelos socialistas ou pelos democrata-cristãos. Supondo-se, todavia,
que outros partidos se tornassem importantes e que as futuras coalizões tivessem que
incluir, pelo menos, três partidos cuja força fosse quase igual ou menos desiguais, o sistema
de primeiro-ministro do modelo alemão, sob tais condições, deixaria de funcionar, que
seus outros fundamentos a “eleição solitária” no parlamento e o voto de censura
construtivo – provavelmente não seriam suficientes para ampará-lo.
111
Encontram-se outros exemplos de governos parlamentares funcionais, entendendo-
se “funcional” com dois significados, quais sejam governo efetivo e governo estável,
distinção que Sartori acomoda em três combinações: a) governo efetivo e estável; b)
governo estável e possivelmente efetivo; c) governo instável.
A primeira combinação inclui principalmente os sistemas de um primeiro-ministro,
mas também abrange países com um “sistema em que predomina um partido”, como Suécia
e Noruega (durante prolongados períodos desde a década de 1930), Japão (entre 1954 e
1993) e Espanha (desde 1982), que não podem possuir as estruturas de um sistema de
primeiro-ministro, nem um formato de dois ou três partidos, e que, não obstante, possuem
durante dez e até quarenta anos o governo de um partido (do mesmo partido), pelo mero
111
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 124-125.
fato de que em legislaturas sucessivas esse partido obtém a maioria absoluta de cadeiras.
Deve-se distinguir entre sistema de partidos predominante, no qual avultam as qualidades
sistêmicas, e sistema de um partido dominante, em que um partido desfruta de cômoda
maioria relativa sobre os demais, o que muitos autores não fazem.
Os sistemas com um partido predominante proporcionam a estabilidade e a
efetividade pertinentes aos governos de um partido, embora neste esquema talvez não
haja correlação positiva entre eficiência e duração, porque os países que não possuem
governos alternados (ou em raras ocasiões) carecem do estímulo proporcionado pelo
rodízio de dois partidos no poder. Releva considerar que aquilo que não se pode lograr por
meio do princípio da liderança, pode obter-se mediante uma especial estruturação do
sistema de partidos. Esta constatação amplia significativamente o elenco das democracias
parlamentares funcionais através de casos que não se podem explicar mediante algum
acordo constitucional.
112
Países que saem de uma ditadura parece não terem outra opção senão o governo
parlamentar. Assim a maioria das poliarquias latino-americanas, descontente com o regime
presidencial, mudaria para o parlamentar. Sem as condições estruturais a amparar um
modelo de sistema parlamentar, o caminho natural desses países é a adoção pura e simples
do princípio do governo de assembléia, apontado por pregoeiros do parlamentarismo como
um descaminho, uma forma degenerada do regime. Não é essa a verdade, porém. Se o
princípio básico de todos os sistemas parlamentares é a soberania do parlamento, o governo
de assembléia constitui conseqüentemente a aplicação daquele princípio.
O protótipo do governo de assembléia foi a Terceira República francesa, chamada
significativamente de “República de deputados”. Mas a Quarta República francesa e a Itália
a afastaram por meio do fortalecimento do governo partidário, ironicamente alcunhado de
“partidocracia parlamentar”. A maior parte das experiências parlamentares pós-comunistas,
na atualidade, é do tipo assembleísta. Esse modelo apresenta as seguintes características,
segundo Giovanni Sartori: a) o gabinete não dirige a legislatura; b) o poder não está
unificado, mas disperso e atomizado; c) a responsabilidade do todo quase desaparece; d)
112
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 126.
pouca ou nenhuma disciplina partidária; e) os primeiros-ministros e seus gabinetes não
podem atuar rápida e decisivamente; f) as coalizões raras vezes solucionam seus desacordos
e nunca terão segurança de contar com o apoio parlamentar; e g) os governos nunca podem
atuar e falar uníssona e claramente.
113
Nesse modelo nota-se a disposição de mudar o governo com freqüência. Os
governos de coalizão que caem são substituídos por outro governo de coalizão dos mesmos
partidos. Por isso derrubar o próprio governo não significa, como na Inglaterra, entregá-lo
aos outros, mas dar-se oportunidade aos ministeriáveis de ingressar no gabinete. Para um
candidato a primeiro-ministro, a instabilidade do gabinete é uma porta aberta para a sua
carreira.
114
Mas qual a relevância da instabilidade do gabinete, nestes casos, para a
democracia, para os desígnios do povo? Amiúde se afirma que a “estabilidade” é a
principal característica da democracia funcional. Raciocina-se que se um sistema
parlamentar logra um governo estável, também obterá um governo efetivo. Inversamente, o
governo instável constitui sintoma de um mau governo. Não obstante, essas avaliações não
abrigam toda a verdade.
Entende-se por “governabilidade” a eficácia ou eficiência do governo em executar
as providências requeridas pela sociedade. Note-se que o conceito não concerne às
qualidades reais e pessoais do governante, mas a capacidades estruturais. Os desempenhos
dependem tanto das pessoas como a condução de um veículo depende dos condutores, para
usar uma imagem utilizada por Sartori. Os condutores, porém, necessitam de estradas, além
das condições operativas do veículo para realizar um plano de transporte ou deslocamento.
Da mesma maneira, não se pode ter um governo capaz de tomar decisões, sem um cargo de
primeiro-ministro que lhe permita tomar tais decisões, além de outras condições favoráveis,
pois esse modelo de primeiro-ministro poderia achar-se impossibilitado de atuar se o
processo de adotar providências fosse minado de obstáculos e reagisse negativamente.
Pondere-se, outrossim, que não se deve confundir “governo eficaz” com “governo ativista”.
Aquele é um governo capaz de executar suas políticas, embora, em determinadas situações,
possa optar por não agir, se a inatividade for mais vantajosa para seu projeto de governo.
113
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 128.
114
Idem, p. 128-129.
Portanto, o governo eficaz pode decidir não atuar, enquanto que o governo impotente não
consegue atuar, ainda que queira. Por sua vez, o governo ativista pressupõe que não
problema que a política não resolva e, por isso, faz sempre e faz muitas coisas, que podem
se revelar inapropriadas ou prejudiciais. Nessas condições, melhor seria que esse governo
fosse ineficiente: quanto menos eficaz fosse, menores seriam os danos.
115
Governo estável não se confunde com democracia estável. A democracia estável, a
estabilidade do regime é sempre necessária. A estabilidade do governo, porém, depende de
sua mera duração. Os governos podem ser longevos e impotentes. Sua longevidade não
implica eficácia ou eficiência. Sucede amiúde, nos sistemas parlamentares que necessitam
se organizar com governos de coalizão, que prolonguem sua sobrevivência não fazendo
nada. Nessas circunstâncias, o pouco que conseguem realizar fazem-no nos primeiros
meses, quando é mais difícil serem destituídos. Depois se deixam flutuar na bonança,
evitando escolhos, como reformas e medidas que contrariem interesses poderosos e
provoquem censura e desestabilização, e assim permanecem, à deriva, sem fazer nada. Por
conseguinte, embora se possa conceder que a estabilidade do governo seja necessária para a
realização de um programa, não a constitui, porém, condição suficiente do governo efetivo.
Tanto o presidencialismo como o parlamentarismo pode frustrar expectativas. A
insatisfação com ambos esses modelos buscou uma solução mista, uma forma política que
contivesse o mais prestigiado de cada um desses sistemas. A essa forma mista se chamou
de semipresidencialismo.
3.2.7.3 Semipresidencialismo
O semipresidencialismo buscou no presidencialismo a presidência eleita
popularmente ou, ao menos, um presidente que não é eleito no parlamento e pelo
parlamento. Como analisa Sartori,
115
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 130.
Pero más allá de esta base común las dos formas se alejan radicalmente la una de la
otra, porque el semipresidencialismo es ‘semi’ precisamente porque divide en dos al
presidencialismo al sustituir una estructura monocéntrica de autoridad con una
autoridad dual. En los sistemas presidenciales, el presidente esprotegido y aislado
de la interferencia parlamentar por el principio de la división de poderes. En cambio,
el sistema semipresidencialista funciona basado en el poder compartido: el presidente
debe compartir el poder con un primer ministro; a su vez, el primer ministro debe
conseguir un apoyo parlamentario continuo.
116
Não obstante, essas características não são suficientes para definir o
semipresidencialismo. Com respeito ao presidencialismo, aquele hauriu vigamentos no
protótipo indisputável da presidência norte-americana, que se consolidou em um esquema
difundido por vários países. Entretanto, não se pode definir um sistema político sem
localizá-lo em algum país.
O semipresidencialismo, sem nenhuma dúvida, possui paradigma marcante na
Quinta República francesa, razão pela qual orientará nosso escorço, embora se possa
mencionar também como semipresidenciais como o fez Duverger além da França, os
governos da Alemanha de Weimar, Portugal (entre 1976 e 1982), Sri Lanka, Finlândia,
Áustria, Islândia e Irlanda, embora Shugart e Carey incluam a Irlanda entre os países
parlamentaristas (apud SARTORI, 2001, p. 142). Em dezembro de 1993, também a Rússia
adotou o sistema semipresidencial.
Para Sartori, um sistema político é semipresidencial se concorrem as seguintes
características: a) o chefe de Estado (o presidente) é eleito pelo voto popular, seja direta ou
indiretamente, para um período predeterminado no cargo; b) o chefe de Estado compartilha
o poder executivo com um primeiro-ministro, estabelecendo-se uma estrutura de autoridade
dual cujos três critérios definitórios são: c) o presidente é independente do parlamento, mas
não se lhe permite governar sozinho ou diretamente, conseqüentemente sua vontade deve
ser canalizada e processada por meio de seu governo; d) o primeiro-ministro e seu gabinete
são independentes do presidente porque dependem do parlamento; estão sujeitos ao voto de
confiança e (ou) ao voto de censura, e em ambos os casos exige-se o apoio de uma maioria
parlamentar; e) a estrutura de autoridade dual do semipresidencialismo faculta diferentes
116
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 136.
contrapesos de poder, assim como predomínios de poder variáveis dentro do executivo, sob
a rigorosa condição de que a “potencial autonomia” de cada unidade componente do
executivo subsista.
117
Os sistemas semipresidenciais, por decorrência de sua própria denominação,
apresentam uma estrutura duplicada de poder, como um corpo com duas cabeças. Com esta
configuração, o esquema constitucional do semipresidencialismo impõe uma diarquia entre
um presidente, que é o chefe do Estado, e um primeiro-ministro, que chefia o governo.
Na Constituição francesa de 1958, as atribuições do primeiro-ministro foram
traçadas nos artigos 20 e 21, em que se estabelece, respectivamente, que “O governo
determina e dirige a política nacional”, e que o “primeiro-ministro dirige as ações do
governo”. Por sua vez, as atribuições do presidente foram esboçadas com menor
transparência e mais esparsamente nos artigos 11, 12, 15, 16 e 52 da Constituição, nos
quais se verifica que os poderes mais importantes do presidente apresentam caráter
ocasional; não são atribuições normais, mas faculdades excepcionais, que podem ser
exercidas raras vezes. Acresce que a maioria das prerrogativas presidenciais não constitui
poderes de decisão; destina-se antes a impedir uma decisão ou a submeter a providência ao
povo francês através de dissolução do parlamento ou referendum e, de certo modo, lhe
reserva a atuação ao âmbito da defesa nacional e da política exterior. O presidente pode
ainda opor-se a qualquer medida por meio de seu pouvoir d’empecher, seja pelo veto, seja
negando-se a firmar decretos. Todavia, não o texto da Constituição de 1958 fixa os
traços do sistema semipresidencial, que a alteração de 1962 conferiu-lhe a fisionomia
atual com um aporte relevante: a eleição direta do presidente pelo povo.
Enorme problema para os sistemas presidenciais, de difícil enfrentamento, é o das
maiorias divididas, quando a maioria popular que elege o presidente não é a mesma
representada no parlamento, onde o presidente eleito vai se defrontar com uma maioria que
se lhe opõe. E o sistema semipresidencial enfrenta a mesma dificuldade? Para alguns
inexiste diferença, pois sustentam que em ambos os sistemas uma maioria dividida impele
fatalmente ao conflito e à paralisação. No sistema presidencial o conflito eclode entre o
117
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 148-149.
presidente e o Congresso, ao passo que no sistema semipresidencial o conflito ocorre entre
o presidente e o primeiro-ministro apoiado pelo parlamento; em nenhum dos dois sistemas
o conflito é afastado.
Para Duverger e outros, o semipresidencialismo não é uma ntese dos sistemas
parlamentar e presidencial, mas uma alternância entre fases presidenciais e parlamentares,
de modo que o sistema francês é presidencial quando a maioria presidencial e parlamentar
são a mesma, e parlamentar, quando são diversas (apud SARTORI, 2001, p. 139-140).
Sartori diverge dessa concepção. Para ele, enquanto o presidencialismo puro é uma
estrutura propensa à paralisação, o semipresidencialismo propõe um mecanismo que a
evita. Rechaça ele a idéia de alternância de fases presidenciais e parlamentares ao afirmar
que ocorre mera oscilação, e não alternância. A alternância sugere que se passa de um
regime a outro, enquanto que a oscilação é um movimento dentro do sistema. Quando algo
oscila, continua sendo o mesmo. Segundo a interpretação de Sartori, o
semipresidencialismo evoluiu até se converter em um verdadeiro sistema misto baseado em
uma estrutura flexível de autoridade dual, isto é, um executivo bicéfalo, cuja “primeira
cabeça” muda (oscila) quando mudam as combinações da maioria.
Con una mayoría unificada, el presidente prevalece decisivamente sobre el primer
ministro y la Constitución que se aplica es la ‘material’ (las convenciones
constitucionales). A la inversa, y alternativamente, con una mayoría dividida el que
prevalece es el primer ministro, apoyado por su propio Parlamento y también
porque la Constitución formal (lo que establece por escrito) apoya su pretensión de
gobernar por derecho propio.
118
Não resta dúvida de que qualquer estrutura dual pode afastar-se da sinergia e incidir
em enfrentamento e, conseqüentemente, paralisar, por obra do conflito. Não garantia de
que tal não ocorra no semipresidencialismo francês. Mesmo assim, como remata Sartori,
deve-se reconhecer que, com esta fórmula, o problema das maiorias divididas encontra
solução na “troca de cabeça”, ao reforçar a autoridade de quem obtenha a maioria. “Y éste
es un brillante, aunque involuntario, acto de brujería constitucional.”
119
118
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 140-141.
119
Idem, p. 14l.
3.2.8 Críticas aos sistemas de governo
Com a exceção dos Estados Unidos, o presidencialismo, nos demais países que o
adotaram, não tem funcionado a contento, ou tem ensejado rotundos desastres. A despeito
da impressão superficial de robustez, oriunda da sua rigidez, quando comparado ao
parlamentarismo, mormente ao parlamentarismo de assembléia, o presidencialismo, na
realidade, tem se revelado frágil na sua prática, sucumbindo, amiúde, a golpes de Estado e
outros infortúnios.
Quando as instituições são concebidas para organizar a convivência ou superar
dificuldades de uma sociedade e atendem às idiossincrasias dessa sociedade e aos objetivos
a que se destinam, elas frutificam, cumprem sua função e dão testemunho de sua
excelência. Assim os sistemas de governo. Entretanto, se outros países, mormente os novos
e emergentes, maravilhados com o seu funcionamento no país de origem, decidem importá-
los e adotá-los, dificilmente renderão os mesmos frutos e terão igual desempenho que
tiveram no país de origem, e muito provavelmente se revelem nocivos e até calamitosos,
que inadequados ao meio e à índole da sociedade para onde foram transplantados. Essa
parece ter sido a sina do presidencialismo nos países latino-americanos, cujos costumes e
valores são bem diversos dos norte-americanos, que lhe deram origem.
O traço mais característico do presidencialismo de Washington é a separação dos
poderes, com o mecanismo dos freios e contrapesos, divisão que separa o executivo do
apoio parlamentar, realidade que fez Neustadt afirmar que os Pais Fundadores não criaram
um governo de poderes separados, mas “um governo de instituições separadas que
compartem o poder”, enquanto que, para Jones, “temos um governo de instituições
separadas que competem pelo poder compartido”, o que o faz qualificar o sistema político
norte-americano como um “sistema truncado” (apud SARTORI, 2001, p. 101). Por sua vez,
Sartori insiste em que a característica definitória e central do modelo de Washington é de
“um poder Executivo que subsiste separado, por direito próprio, como um organismo
autônomo.”
120
Isso, porém, não significa que o presidente dos Estados Unidos seja indiferente ao
apoio do Congresso. A despeito de dividida e, na verdade, quanto mais dividida a estrutura
do poder, mais necessário, parece, ter um governo unido, o que implica o controle do
executivo e do Congresso pela maioria. Esta, aliás, foi, durante um século e meio, a teoria e
a prática do governo norte-americano. A partir, porém, do governo Eisenhower, em 1954 e
em 1957, o Congresso foi controlado pela oposição, após 72 anos, o que voltou a ocorrer
nos anos subseqüentes com certa freqüência. O Congresso, com maioria oposicionista,
provoca, com freqüência, paralisação e indefinição política. Em outro enfoque, o fato de
um Congresso dominado pela maioria de um partido apoiar o governo de outro partido
significará contribuir para que se tenha outra presidência do adversário.
È ilusório acreditar que o sistema presidencial seja responsável por governos fortes.
Como afirma Sartori, a opinião de que os sistemas presidenciais são sistemas fortes,
ironicamente, se apóia no pior dos acordos estruturais um poder dividido sem defesa ante
o governo dividido –
y no comprende que el sistema estadunidense funciona, o ha funcionado, apesar
de su Constitución, y dificilmente gracias a su Constitución. En la medida en
que puede seguir funcionando requiere, para destrabarse, de tres factores: falta
de principios ideológicos, partidos débiles e indisciplinados y una política
centrada en los asuntos locales. Con estos elementos un presidente puede
obtener en el Congreso los votos que necesita negociando (‘horse trading’)
favores para los distritos electorales. Quedamos finalmente con la
institucionalización de la política de las componendas, lo que no es nada
admirable. Lo que tenemos estructuralmente, de hecho, es un Estado débil.
121
No Brasil, conhecemos por demais as calamidades associadas à prática do nosso
sistema presidencial. Sem falar na República Velha o que fugiria aos objetivos desta
dissertação – somente na Nova República, não se pode ocultar os infortúnios causados pela
convivência contínua de presidentes com maiorias oposicionistas no Congresso, que
120
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 101-102.
121
Idem, p. 104-105.
redundou no impeachment de um presidente e em barganhas com distribuição de cargos
úblicos e outros favores para obter a aprovação de seus projetos no legislativo.
Embora Mayhew sustente ser de escassa relevância o fato de se apresentar dividido
o controle partidário nos Estados Unidos, entre a presidência e o Congresso, por não afetar
a produção legislativa (apud SARTORI, 2001, p. 103), não considera ele a realidade
apontada por Sartori de que isso resulta da crescente atomização dos partidos norte-
americanos, que faz com que a oposição legislativa eleja projetos do governo. Decorre
dessa atomização, outrossim, que o presidente norte-americano, ao possuir maioria no
Congresso, essa maioria existirá no papel, de modo que nunca poderá contar com uma
maioria verdadeira e confiável.
Os partidos, nos Estados Unidos, revelam-se pouco mais do que partidos eleitorais,
isto é, partidos que se destinam apenas a eleger candidatos, sem outras implicações,
proporcionando apenas um símbolo para que dois candidatos se enfrentem em distritos
eleitorais que elegem um só representante. E, no Congresso, o que são tais partidos?
Responde Sartori que a crescente dissolução dos partidos eleitorais deve refletir-se de
alguma maneira no Congresso, com a fragmentação cada vez maior e cada vez mais
localista, orientada para os distritos eleitorais, embora menor, obviamente, no Senado. De
modo que essa realidade transforma o legislativo em um parlamento em que a política se
converte em política de miuçalhas, no qual seus membros cada vez mais se desempenham
como paroquianos em seus distritos, como mensageiros de seus eleitores, e as maiorias
facilmente se convertem em algo vaporoso e volúvel.
122
Remata Sartori asseverando que os
estadunidenses possuem um mecanismo constitucional desenhado para a paralisação
governamental, defeito que surge com todo o vigor quando se exporta seu
presidencialismo.
123
Peter Bachrach e Aryeh Botwinick atribuem as deficiências do sistema norte-
americano à versão do republicanismo realizada por Madison, a qual cuidou da necessária
proteção à esfera da economia privada, concedendo-lhe segura base na sociedade para se
122
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 105-106.
123
Idem, p. 107.
desenvolver e prosperar. Entretanto, - afirmam a nação pagou pesado preço por ter suas
práticas políticas lançadas no molde madisoniano. As concepções de Madison são ainda
fortemente refletidas no sistema político contemporâneo dos Estados Unidos, um sistema
que, de um lado, se caracteriza por larga não-participação e, de outro, pelo egocentrismo
político daqueles que não participam. Ambas persistentes feições do sistema m
contribuído significativamente para a inabilidade do governo em governar responsável e
efetivamente. O cultivo de um genuíno sistema político democrático foi anatematizado por
Madison e seus colegas. Para eles, permitir que homens e mulheres comuns tivessem voz
política seria cortejar as paixões das massas. A Constituição foi estruturada, como disse
Hannah Arendt, para proteger direitos privados, não para promover a participação pública.
Ela acreditou que o povo comum melhor desenvolveria suas capacidades e personalidades
na esfera privada e que a política incumbiria aos melhores do ponto de vista social e
intelectual.
124
A herança não-participatória dos Founding Fathers adquiriu vigorosas raízes na
vida americana contemporânea, especialmente entre os membros da mais baixas camadas
socioeconômicas. Indivíduos dessas classes experimentam uma sensação de impotência e,
todavia, vislumbram escassa relação entre seus problemas pessoais e ansiedades e
conseqüências públicas. Em decorrência, os integrantes dessas classes têm optado
maciçamente por situar-se fora da vida política.
125
Contrastando com o comportamento político dos mais baixos estratos
socioeconômicos, grupos das classes média e superior – desde velhos, estudantes, veteranos
dos negócios e fazendeiros têm, em números crescentes, invadido o espaço público no
empenho de maximizar suas vantagens privadas. Rousseau, Hegel, Marx e Hannah Arendt
afirmaram que a espécie de atividade política exercida por grupos das classes média e
superior constitui perversão da política. Para Madison, entretanto, que não fez distinção
nítida entre interesses egoístas e interesses esclarecidos, a atividade assumida pelas classes
média e superior devia ser encarada como legítima. O que Madison não antecipou foi a
extensão em que os fragmentados interesses privados invadiriam e usurpariam o espaço
124
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 145.
125
Idem, p. 145-146.
público e ameaçariam o debate público sobre propostas e soluções públicas. Com a
expansão do eleitorado, a busca dos interesses privados tem se tornado uma forma de
“ganância pública”, como uma frenética competição entre grupos de interesse por mais
vantagens, mais privilégios e, - mais importante, - mais isenções da lei. Na verdade, a
democracia tem sido corrompida não pelas camadas inferiores das massas não-
participativas, mas pelos supostos pilares e guardiães da lei – as classes superior e média.
126
Embora fosse da maior importância para Madison que “diferentes e desiguais
facilidades de adquirir propriedade” fossem protegidas, ele não aprovaria uma
conseqüência pela qual a preponderância do poder dentro da comunidade tivesse mudado
para poucos, os privilegiados e os ricos. Madison não previra como a proteção da
desigualdade concernente à propriedade incentivaria a transformação de pequenos
empresários em barões ladrões e estes, por sua vez, em gigantescas corporações. A
diversidade de meios pelos quais o poder é exercido por essas corporações é
incompreensível.
127
Enquanto riqueza e poder se concentram progressivamente nas classes altas e na
estrutura corporativa, os mais baixos estratos sociais padecem em deprimido padrão de vida
e com crescente sentimento de impotência. Como resultado, uma crescente divisão de
classe entre poucos poderosos que governam e muitos alienados governados que ameaçam
a própria existência da democracia americana.
128
Não resta dúvida de que o presidencialismo, a despeito de sua inflexibilidade e
outras imperfeições, logrou se desenvolver satisfatoriamente e dominar as consciências nos
Estados Unidos, graças às condições especiais e raras que confluíram na formação da
sua sociedade. Vasto território, habitado, no início, por pequenos proprietários em
igualdade de condições, que professavam a ética do trabalho almejando o progresso e a
prosperidade; e contando com as inúmeras oportunidades que a extensão do solo e suas
riquezas proporcionavam, o sistema capitalista de produção encontrou os requisitos
necessários para medrar e frutificar. O sucesso do capitalismo, sob cujo regime se produziu
126
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 146.
127
Idem, p. 146-147.
128
Idem, p. 2.
intensa mobilidade social vertical e se expandiu à prosperidade e a liderança da nação, não
propiciou que fosse contestado ou questionado pelos dois grandes partidos políticos, que
não serviram de expressão para classes sociais em luta, de modo que o sistema partidário
leva o eleitor a relegar a opção por princípios ou ideologias, ofertando-lhe, em troca, bens a
que ele melhor valoriza, como lucro pessoal, rentabilidade, oportunidades de progresso e
abastança e “reconhecimento” da nacionalidade.
Na interação entre capitalismo e sistema político presidencial, nos Estados Unidos,
Cezar Saldanha Souza Junior descobre
um importantíssimo processo de causação circular cumulativa ou de
realimentação recíproca: o consensus social capitalista torna viável e possível o
funcionamento razoavelmente adequado do sistema político presidencialista; e
este, por sua vez, ajuda vigorosamente a manutenção e o reforço daquele
consensus social. O presidencialismo americano (um conjunto sistêmico de
arranjos institucionais e de partidos não-ideológicos) já teria entrado em colapso
sem o consensus social capitalista vigente na comunidade, mas este último não
poderia ter subsistido sem o poderoso reforço que recebe do sistema político
presidencialista em vigor.
129
Observa Souza Junior, ademais, que essa causação circular cumulativa é análoga
àquela que se constitui entre dissenso ideológico e sistema político parlamentarista, nos
Estados sociais:
O dissenso entre partidos conservadores e partidos socialistas impõe a adoção
dos arranjos institucionais parlamentaristas como a única forma de administrar
pacificamente, num quadro legal-democrático, esse conflito (que, no fundo,
tem bases sociais). No entanto, o parlamentarismo, por sua vez, para funcionar
adequadamente, requer partidos de idéias (os únicos capazes de formar
maiorias em torno de programas), o que vem a reforçar um dissenso
ideológico mínimo entre os partidos que competem pelo governo
130
.
A história dos países governados pelo sistema presidencial oscila, com uma única
exceção, de sombria a desalentadora, o que nos compele a questionar se o seu problema
político se deve tão só ao presidencialismo ou se pode ser atribuído a outras causas. No que
concerne aos países latino-americanos, impõe-se reconhecer que a situação política não se
deve apenas ao mau funcionamento do sistema presidencial, mas acha-se vinculada e
largamente intensificada pela paralisia econômica, a gritante desigualdade de seus povos e
129
SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e tipos de estado no ocidente. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002 (c).
p. 176.
130
Idem, p. 176-177.
a herança cio-cultural. Não obstante, o único instrumento apropriado para enfrentar e
solucionar tais problemas é a política e a política democrática. Não se nega que a política
pode piorar a situação, o que ocorre por vezes. Mas não temos outro meio para melhorar e
progredir, senão as políticas democráticas, voltadas, não para interesses minoritários e
mesquinhos, ou para facções, mas para o conjunto da sociedade.
Embora possam parecer, os governos latino-americanos o são todo-poderosos. A
maioria de seus presidentes enfrenta sérios problemas para cumprir seus programas de
campanha, o que os faz balançar entre a carência de poder e o abuso do mesmo, levando-os,
com freqüência, à ditadura, quando obtêm apoio militar para tanto. Parece que o
enfrentamento dos problemas sócio-econômicos esbarra na separação dos poderes, o que
suscita os problemas políticos.
Voltados para os transtornos dessa separação, muitos preconizam a adoção do
parlamentarismo como remédio para solucionar o problema político, como Juan Linz
131
,
para quem o presidencialismo, provavelmente, é menos adequado do que o
parlamentarismo para apoiar regimes democráticos estáveis, de modo que, na América
Latina, a solução dos problemas políticos não seria o aperfeiçoamento do presidencialismo,
mas sua eliminação de vez e substituição pelo parlamentarismo, sob o argumento principal
de que os sistemas presidenciais são rígidos, enquanto que os parlamentares são flexíveis.
Aduz que a flexibilidade reduz os riscos, pois “as crises dos sistemas parlamentares são
crises de governo, não de regime”, como resume Valenzuela. Com efeito, os sistemas
presidenciais oferecem menos condições, dada sua rigidez, para solucionar crises
relevantes. Não obstante, entendemos que a importação pura e simples de um sistema
parlamentar para a América Latina não resolveria o problema político de governabilidade,
pois a democracia parlamentar somente funciona, em suas várias modalidades, com
partidos adaptados ao parlamentarismo, isto é, com partidos que se tenham socializado
(com fracassos, uma longa existência e incentivos apropriados) para ser organismos
coesivos e/ou disciplinados, como lembra Sartori
132
, o que não se aplica ao
131
LINZ, J. e VALENZUELA, A. (comps.) The failure of presidential democracy. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1994.
132
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 111.
presidencialismo, no qual, na hipótese de divisão entre o executivo e o legislativo com
maioria oposicionista, a paralisia pode ser evitada por meio da indisciplina partidária.
Contrariamente, a disciplina partidária constitui condição necessária para o funcionamento
do sistema parlamentar, pois, com partidos indisciplinados, os sistemas parlamentares se
convertem em sistemas de assembléias não funcionais.
133
Entretanto, observando a América
Latina, não encontramos partidos políticos compatíveis com o parlamentarismo e a cultura
política nesse continente não se coaduna com os princípios partidários necessários ao
desempenho satisfatório do sistema parlamentar.
Poucos países nutrirão um juízo tão depreciativo em relação aos partidos políticos,
como o Brasil, o que é avesso ao parlamentarismo. Muitos políticos, se não a maioria,
servem-se dos partidos como partidos de aluguel, que “alugam”, segundo seus interesses
eleitorais, para concorrer a algum cargo eletivo. Com freqüência, esse “negócio” ou
relacionamento partidário se destina a uma eleição; para outros períodos eleitorais,
consultando suas possibilidades de somar mais votos, o candidato troca de partido; eleito,
vota ou decide contra a orientação do partido, seguindo apenas seus interesses eleitorais,
sem nenhuma disciplina partidária. Ora, um parlamento formado de representantes com
essa mentalidade, leva governos – a braços com a angústia da ingovernabilidade – a
negociar com a oferta de cargos públicos e outros favores para obter aprovação das medidas
necessárias ao seu programa de governo, o que se revela extremamente prejudicial, além de
eticamente duvidoso. Nessa situação, os partidos, na sua maioria, são inconsistentes e
imprestáveis para governar, servindo, apenas, para os mesquinhos desígnios de políticos
oportunistas.
Argumentaram os defensores do parlamentarismo, na campanha do referendum de
1993, que a adoção do sistema parlamentar que acabou derrotada pela vontade popular
promoveria a consolidação e adequação dos partidos ao novo sistema. Porém, como notou
Sartori, inexiste evidência histórica ou comparativa que apoiasse tal expectativa, enquanto
que a coesão e disciplina partidárias, nas votações parlamentares, jamais foram
133
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 112.
conseqüência dos governos parlamentaristas.
134
mencionamos que o parlamentarismo
puro dificilmente funciona a contento, que é governar, isto é, promover as medidas que a
sociedade reclama, pois, com freqüência, degenera em governo de assembléia, em que a
responsabilidade dos governantes se volatiliza.
Parece que os modelos inglês e alemão, de parlamentarismo limitado, se enquadram
entre os sistemas parlamentares que melhor funcionam. Mas esse desempenho positivo
ocorre sob um conjunto determinado de condições favoráveis. Na Inglaterra, o governo
sempre foi de um partido, sem que terceiros partidos obstassem o governo unipartidário,
excluídas, portanto, as coalizões governamentais, pois apenas os dois maiores partidos têm
possibilidade de receber o governo do eleitorado, a hoje, graças ao sistema eleitoral
majoritário. Como sistema parlamentar de governo, o governo depende da confiança do
parlamento. Teoricamente, podendo a Câmara dos Comuns levar à demissão do governo,
controla-o por meio desse poder. Na prática, entretanto, a relação é inversa. O governo,
sendo composto pelo líder de um partido que goza de sólida e coesa maioria na Câmara dos
Comuns, pode razoavelmente esperar poder continuar no cargo e ver aprovada a sua
proposta legislativa. O executivo, portanto, é claramente predominante nos confrontos do
parlamento.
135
Se esse sistema de apenas dois partidos com chances de vitória se desfizesse,
se um terceiro partido triunfasse, ou se o sistema alemão se fragmentasse e se polarizasse
mais do que até aqui, ambos esses modelos desapareceriam.
136
Isso nos ensina que um
sistema de governo funcional repousa sobre condições especiais, cuja excelência somente
ocorre com o concurso das mesmas. Daí que a importação e a adoção de um sistema
estrangeiro ofereça reduzidíssimas chances de sucesso. Revela-se utópico construir um
sistema de governo eficiente somente por meio da lei e demais instrumentos jurídicos, pois
sua funcionalidade e eficiência dependem também de condições sócio-econômicas,
culturais e éticas.
Considerando a disfuncionalidade dos sistemas de governo, aos países descontentes
com seu presidencialismo conflituoso e inoperante, com o executivo travado por maiorias
134
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 122-113.
135
LIJPHART, A. Le democrazie contemporanee. Bologna: Il Mulino, 2001.
136
SARTORI, G., op. cit,. p. 154-155.
parlamentares oposicionistas, assim como às democracias parlamentaristas que funcionam
mal, provavelmente as dirigidas por assembléias, com sistemas partidários fragmentados,
com excesso de partidos e, provavelmente, ainda, com representação parlamentar
proporcional, Sartori, embora com reservas, recomenda a adoção de um sistema
semipresidencial, não sob o argumento – no contexto do parlamentarismo – de que o
semipresidencialismo “seja melhor”, mas porque é “mais fácil de aplicar”. Sem embargo,
não somos otimistas com a escolha do semipresidencialismo, que a divisão de poder
entre presidente e primeiro-ministro pode incidir em enfrentamento e, em decorrência,
paralisar o executivo dividido, não nos parecendo seguro ou fácil harmonizar o dualismo
nos casos de “cohabitação”, circunstâncias que fragilizam o sistema.
3.2.9 Sistema híbrido de governo sugerido por Giovanni Sartori
Todavia, afigura-se-nos melhor sugestão, também de Giovanni Sartori, sua proposta
de presidencialismo alternativo. Parte ela da imaginosa construção de que presidencialismo
e parlamentarismo são mecanismos impelidos por um motor. No presidencialismo o
motor é o presidente, enquanto que, no parlamentarismo, é o parlamento. Com muita
freqüência, o motor presidencial falha ao descer às interferências parlamentares, ao passo
que o motor parlamentar carece de potência suficiente para decolar e ascender à função de
governar. De sua parte, o semipresidencialismo é um sistema com dois motores. Não
obstante, como os dois motores funcionam simultaneamente, podem impelir para direções
opostas ou convergir e confrontar-se. Embora o sistema francês tenha conseguido
manipular o governo dividido, não se pode descartar o risco de possuir dois motores que
enveredem para direções diversas. Estas considerações levaram Sartori a buscar um sistema
com dois motores cuja ignição não se produza simultaneamente, mas sucessivamente. Esse
sistema pode ser chamado de presidencialismo alternativo ou presidencialismo
intermitente. A idéia básica é lograr um sistema parlamentar motivado ou reprimido,
respectivamente, pelo deslocamento do presidente, ou por sua substituição. Enquanto o
sistema parlamentar funcionar, faculta-se sua atuação, nada se lhe opondo. Mas se não
puder cumprir as condições pré-determinadas, então se apaga o motor parlamentar e
acende-se o presidencial.
137
A fórmula do presidencialismo alternativo busca a atuação responsável dos
governos de três maneiras, isto é, por meio de três acordos estruturais:
1) No início do primeiro ano da legislatura o parlamento elege um governo,
caso seja de quatro anos a legislatura; se for de cinco anos, elege dois
governos, um para cada metade da legislatura, ou seja, trinta meses. O
sistema político iniciará funcionando segundo as regras do
parlamentarismo normal.
2) Se, e, quando, fracassam os governos que vinham funcionando no sistema
parlamentar, então o sistema se transforma em um forte mecanismo
presidencial pelo período restante da legislatura. Tal implica que o
presidente seja também o chefe do governo, que nomeia e destitui, a seu
arbítrio, os membros do seu gabinete, como também que o governo não
esteja sujeito a um voto de confiança nem possa ser destituído pelo
parlamento. Nessa hipótese, a função do parlamento se reduz ao controle.
3) O presidente é eleito direta ou indiretamente pela maioria absoluta do
voto popular, ocorrendo que o período do seu mandato coincide com a
duração da legislatura (quatro ou cinco anos), podendo ser reeleito sem
limite de vezes. Releva não limitar a reeleição do presidente, pois é
recomendável recompensar-se ao presidente que faz bom governo.
Acresce que a natureza descontínua de seus poderes plenos afasta o
motivo que justifica a limitação da reeleição. Durante o governo
parlamentar o presidente tem apenas as funções de um presidente de
república no sistema parlamentarista; sua legitimidade direta e
137
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 168.
independente é, em princípio, uma legitimidade “reservada”, podendo
ocorrer que não se faça necessária a alternativa presidencial, desde que o
governo parlamentar se desincumba a contento.
138
Decorre desse mecanismo de presidencialismo alternativo, segundo Sartori, que a
posição dos governos iniciais de natureza parlamentar se verá reforçada consideravelmente
porque os partidos entenderão que se o governo cair, o parlamento perderá importância.
Assim também os membros do parlamento se sentirão desestimulados a provocar, com
freqüência, a queda de governos para ter ensejo de obter ministérios para si. Na legislatura
de quatro anos, a “caça ao ministério” começa e termina com o primeiro governo; na
legislatura de cinco anos, os ambiciosos têm uma oportunidade, e o jogo é demasiado
breve para que valha a pena jogá-lo. Por essas considerações entende Sartori que se pode
esperar razoavelmente que os governos baseados no parlamento não só perdurarão por mais
tempo, como ainda serão mais efetivos e empreendedores. Recomendável ainda que tanto a
eleição do presidente como a do parlamento se faça pelo processo de dois turnos de
votação.
139
Trata-se aí apenas de um bosquejo de sistema de governo, em largas pinceladas,
que pode ser normatizado mais minuciosamente. Sem embargo da hibridez do sistema,
pode-se cogitar de sua aplicação, que tem a virtude de espancar as imperfeições tanto do
presidencialismo como do parlamentarismo. Corrige os males do parlamentarismo com a
aplicação subsidiária do presidencialismo e os males deste com a aplicação daquele. Exclui,
ademais, a possibilidade de dissolução do parlamento pelo presidente e, conseqüentemente,
a antecipação de eleições parlamentares, que a experiência demonstra que estimula
rivalidades e enfrentamentos e quase nunca o novo parlamento eleito modifica a orientação
do dissolvido.
Na apreciação crítica dos sistemas de governo constatamos deficiências que podem
prejudicar o atendimento da vontade do povo. Entretanto, deve-se salientar que tais
sistemas presidencialismo, parlamentarismo ou semipresidencialismo não constituem,
em si, óbices à realização daquela vontade. Pelo contrário, são instrumentos da democracia
destinados a responder positivamente às aspirações populares. Como adverte Sartori, as
138
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 170-171.
139
Idem, p. 17l.-172.
estruturas não podem substituir as pessoas, mas a pessoa errada terá um mau desempenho,
ainda que a estrutura seja correta, enquanto que as más estruturas desgastam a pessoa
adequada.
140
As porosidades dos sistemas de governo surgem das circunstâncias
conjugadas com a índole e/ou a cultura das sociedades e com a ambição egoísta dos
operadores políticos que integram os poderes executivo e legislativo.
3.2.10 Desvirtuamento da representação política e crise no Brasil
Grande responsabilidade pelas crises políticas, particularmente no Brasil, - crises
que ameaçam e, várias vezes, suprimiram o regime democrático – podem ser atribuídos aos
representantes políticos, aos detentores de mandato conferido pelo povo para governar e
legislar, o que nos leva a repensar a crítica feita por Rousseau à representação política.
A entrega dos atores políticos à vida pública é por demais absorvente e, amiúde,
incompatível com o exercício de outra atividade profissional, o que compele os não
privilegiados com herança, abastança familiar ou ganhos rentistas, a buscar na atividade
política meio de subsistência econômica, enquanto os abastados são sensíveis aos interesses
concernentes às fontes de sua riqueza, quando não inteiramente voltados a eles,
circunstâncias que engendram vínculos corporativos. Se ainda ponderarmos os custos
elevadíssimos, na atualidade, das campanhas eleitorais para os cargos executivos e
legislativos, poderemos entender a complexa rede de interesses em que se engolfam os
mandatários políticos e que os descaminham e desviam do cumprimento fiel dos mandatos
conferidos por seus eleitores.
140
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 174.
O inadimplemento ou o adimplemento ruim das obrigações do mandato popular e as
crises políticas doriginárias, como as oriundas do financiamento ilícito ou delituoso de
campanhas, com prejuízo deplorável do princípio e da verdade democrática, recomendam a
limitação viável da representação política e preconizam a adoção de institutos próprios da
democracia direta, autorizada pela Constituição brasileira no seu artigo 14, bandeira
desfraldada com tanto empenho cívico e arrojo pelos juristas Paulo Bonavides e Fábio
Konder Comparato.
141
As elites nacionais, que sempre dominaram o país sob a forma oligárquica, de regra,
nunca se opuseram abertamente às conquistas democráticas vividas na Europa e nos
Estados Unidos, dispondo-se, inclusive, a importá-las, desde que elas, as donas do poder,
continuassem a manipular e a dominar o “povo”, o que levou Sérgio Buarque de Holanda a
dizer que “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido”
142
. Para Fábio
Comparato, todavia, longe de um simples mal-entendido,
a democracia entre s foi e continua a ser mero disfarce ideológico, um roto u
que mal encobre a nudez da dominação oligárquica. Aceitamos todas as fórmulas
políticas e dispomo-nos a experimentar quaisquer novidades, desde que se possa
manter e fazer funcionar uma democracia sem povo.
143
Somente em longo prazo se poderá reduzir sensivelmente a corrupção dos atores
políticos, mas desde que se criem instituições adequadas e se logre formar
generalizadamente espírito público com respeito integral aos valores republicanos e
democráticos. Observa-se autêntico divórcio entre a vontade popular mandante, a vontade
passiva da cidadania, e a vontade mandatária governante da elite hegemônica, com
esvaziamento da representação pela negação, de fato, da identidade volitiva ficta de
governantes e governada, postulada de modo abstrato e característica da democracia
moderna, abastardando-se na inversão que privilegia a supremacia da vontade do
representante para satisfazer seus interesses egoístas de poder e fortuna, com detrimento da
ética republicana e do povo preterido, que se queda órfão do mandato que outorgara, na
ausência de representação política identificada com seus interesses. Assalta-nos a
141
Através de artigos na imprensa e das obras: BONAVIDES, P. Teoria Constitucional da Democracia
Paticipativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2003; e COMPARATO, F. K. Para Viver a Democracia. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
142
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 160.
143
FOLHA DE SÃO PAULO, 05/08/2005.
convicção de que a crise resulta do modelo de representação que se manifesta exaurido,
sugerindo a realidade a abertura de um processo de elaboração de novo paradigma para
superar o que se esgotou, pois o povo não pode permanecer aguardando passiva e
indefinidamente que os atores políticos, seus mandatários, se regenerem.
Para sanar-se essa deturpação, afigura-se-nos que se impõe maior utilização dos
instrumentos da democracia direta previstos no art. 14 da Constituição: plebiscito,
referendo e iniciativa popular, o que poderá levar à revisão da Lei nº 9.709, de 18/11/1998,
que regulamenta a execução do disposto no referido art. 14 da C.F., para que nenhuma
emenda à Constituição, por exemplo, se faça sem consulta popular, bem como se submeta a
esta a adoção ou rejeição das políticas de governo, nos atos de alcance institucional e
interesse relevante da nação. Impõe-se, ainda, conceder aos eleitores o direito de cassar os
mandatos de mandatários infiéis. Se, no passado, era inviável consultar-se com freqüência
populações numerosas, atualmente a informática afasta aquele óbice.
Não se preconiza a substituição da democracia representativa pela democracia
direta, mas uma limitação e aprimoramento daquela, que permita melhor funcionamento
das instituições democráticas para que se assegure a soberania do povo e se inviabilize a
soberania de representantes corruptos que perseguem seus objetivos privados no espaço
público enquanto encenam o espetáculo da democracia apenas de fachada. Cuida-se de
enriquecer a democracia representativa com recursos da democracia direta. O que se
entende pertinente às condições nacionais é modelo semelhante ao praticado em alguns
estados norte-americanos e na Suíça, a democracia semidireta, que implica o que Maria
Victoria de Mesquita Benevides denominou de cidadania ativa.
144
O aprimoramento da
democracia se logra por meio do exercício continuado e repetido de seus instrumentos
pelo povo, que aprende participando.
144
BENEVIDES, M. V. M. A cidadania ativa referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática,
2003.
3.2.11 Burocracia e tecnocracia
Notável obstáculo à efetivação da democracia na realidade contemporânea tem se
revelado a complexidade do Estado moderno, que cresceu, não somente em dimensões, mas
também em suas funções, multiplicadas para enfrentar os desafios da civilização, da
democracia e da tecnologia, o que implicou aumento enorme do aparelho burocrático,
aparelho hierarquicamente estruturado, infenso ao princípio democrático. Compare-se o
número de ministérios com que operava o Estado no século XVIII com a quantidade de
ministérios existentes nos Estados da atualidade. Foram, em média, quadruplicados, além
de cada ministério necessitar de um exército de funcionários para operar, o que se repete
com as entidades paraestatais. Os avanços da democracia, com o alargamento do sufrágio
determinam o aumento das reivindicações, cujo atendimento compele o Estado a assumir
novos encargos, os quais determinam novas prestações e o conseqüente crescimento do
aparelho burocrático.
A par desse óbice, os desenvolvimentos tecnológicos, inerentes às sociedades
industriais, cujos problemas demandam soluções técnicas emanadas de especialistas, sugere
a muitos o remédio de governar exclusivamente com o concurso de técnicos ou da
tecnocracia, isto é, o governo dos técnicos, ou a tecnoburocracia, o governo da burocracia
dos técnicos, dos especialistas. Na sociedade tecnológica, é imprescindível o técnico, isto
é, aquele que detém uma especialização, um saber, mas altamente desenvolvido, capaz
de dar solução técnica aos problemas surgidos na área de sua especialização.
Exemplificando, quem poderá dar solução a problemas econômicos de um Estado
moderno? Certamente não será um cidadão comum, ou profissional com especialização
distinta da economia. Na sociedade tecnológica, as decisões técnicas são cada vez mais
necessárias. No entanto, “a democracia se sustenta sobre a idéia-limite de que todos possam
decidir tudo”, como disse Norberto Bobbio.
Pode-se exprimir o paradoxo ainda de outro modo: segundo o ideal
democrático o único especialista em negócios políticos é o cidadão (e, nesse
sentido, o cidadão pode-se dizer soberano). Mas, na medida em que as
decisões se tornam sempre mais técnicas e menos políticas, não fica mais
restringida a área de competência do cidadão e, conseqüentemente, sua
soberania? Não é, portanto, contraditório pedir sempre mais democracia em
uma sociedade sempre mais tecnizada?
145
Para a solução desse problema, entendemos que se deva distinguir entre atender à
vontade do povo e atender aos interesses do povo. A “vontade do povo” não pode ser
atendida em todos os seus pleitos, pois, com freqüência, esbarra em óbices técnicos.
Todavia, o que não pode ser postergado, sem prejuízo do princípio democrático, são os
“interesses do povo”, os interesses da maioria. Impõe-se aí distinguir entre meios e fins. Às
maiorias populares cabe eleger os fins ou os objetivos a serem buscados pelos agentes
políticos, pelos governos. Entretanto, o povo nem sempre pode escolher os meios, quando
dependem de conhecimentos técnicos,
146
para alcançar seus fins ou objetivos, pois nem
todos os meios são hábeis para atingir aos fins pretendidos, como também nem toda técnica
é suscetível de escolha. O que conflita com a soberania do povo e, portanto, com a
democracia, é o governo tecnocrático, aquele em que os técnicos elegem os objetivos e as
políticas destinados ao povo.
3.3 CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS
Tratamos em conjunto as condições sociais e as econômicas da democracia, pois,
em muitas situações, distingui-las separadamente não é fácil, tão imbricadas se acham,
ocorrendo que as condições econômicas não deixam de ser, também, sociais. As condições
sociais concernem às circunstâncias existenciais de convivência dos agrupamentos
145
BOBBIO, N. Qual socialismo? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 61.
146
BENEVIDES, M. V. M. A cidadania ativa referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática,
2003. p. 84.
humanos, com vigência delimitada no tempo, enquanto que as condições econômicas
resultam da produção, distribuição, acumulação e consumo de bens e (ou) serviços
utilizados pelos membros da sociedade, cuja operatividade, organização e características
dependem da tecnologia empregada.
O pensamento iluminista, tão fecundo para a concepção democrática, não contribuiu
para demonstrar a influência dos fatores sociais e econômicos na existência da democracia.
Foi, talvez, Tocqueville, no século XIX, o primeiro pensador político de vulto a apontar o
reflexo da sociedade e sua cultura nas instituições e, especialmente, na democracia
147
.
Escreveu ele em De la Démocratie en Amérique, publicada em 1835, que
o estado social é ordinariamente o produto de um fato, algumas vezes de leis, o
mais freqüentemente das duas causas reunidas; mas, desde que existe, pode ser
considerado como a causa primeira da maior parte das leis, dos costumes e das
idéias que regulam a conduta das nações: o que ele não produz, ele o modifica.
148
Como ratifica Dahl, é largamente admitido que um alto nível de desenvolvimento
socioeconômico favorece não só a transformação de um regime hegemônico em uma
poliarquia, mas também ajuda a manter se necessário uma poliarquia
149
, de modo a
apurar-se uma associação sobremodo significativa entre nível socioeconômico e
desenvolvimento político. Assim, dados apontados por Dahl indicam que
quanto maior o nível socioeconômico de um país, maior sua probabilidade de ter
um regime político competitivo e, quanto mais competitivo o regime político de um
país, maior sua probabilidade de estar em um vel relativamente alto de
desenvolvimento econômico.
150
Assim também, amparado em dados, pode o autor formular outras duas proposições:
Quanto maior o nível socioeconômico de um país, maior a probabilidade de que
seu regime seja uma poliarquia inclusiva ou uma quase-poliarquia; e, se um regime
é uma poliarquia, é mais provável que ele exista num país com nível de
desenvolvimento socioeconômico relativamente alto do que num país de nível
mais baixo
151
,
O que faz Dahl concluir que as chances de competição política livre dependem
efetivamente do vel socioeconômico da sociedade. Todavia, essas relações não são
147
Conforme MANENT, P. Tocqueville et la nature de la démocratie. Paris: Julliard, 1982.
148
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Livro I, p. 55.
149
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 62.
150
Idem, p. 64.
151
Idem, p. 65.
lineares. Existe um limiar superior, talvez na faixa de PNB per capita de aproximadamente
U$ 700-800 (dólares americanos em 1957), acima do qual as chances de poliarquia (e,
portanto, de uma política competitiva) são tão elevadas que qualquer novo aumento no
PNB per capita (e de variáveis associadas com esse aumento) não podem alterar o
resultado de maneira significativa.
Assim também surge um limiar inferior, talvez no patamar aproximado de U$ 100-
200, abaixo do qual as possibilidades da poliarquia (ainda que não necessariamente de
outras formas de política competitiva) são tão débeis que as diferenças no PNB per capita
ou de variáveis afins realmente nada significam.
152
Sem embargo da circunstância de tais
dados estatísticos se evidenciarem desatualizados, parece-nos irretorquível que níveis mais
elevados de desenvolvimento socioeconômico favorecem a construção da democracia,
enquanto que regime dessa natureza dificilmente será encontrado em países pobres, com
população com nível reduzido de renda.
Entretanto, não corresponde à realidade que todos os regimes competitivos, ou
mesmo poliarquias, existam em países com alto nível de desenvolvimento
socioeconômico, como também é falso que todos os países com elevado nível de
desenvolvimento socioeconômico sejam poliarquias, ou mesmo regimes competitivos, o
que ainda reconhece Dahl, pois ocorre um bom número de casos desviantes, entre os quais
ele citou a Índia, um regime competitivo talvez uma poliarquia –, a União Soviética e a
Alemanha Oriental, antes da queda do comunismo, que ele classificou como regimes
hegemônicos os dois últimos, com níveis socioeconômicos elevados
153
.
152
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 68.
153
Idem, p. 68-69.
3.3.1 Sociedades agrárias e industrialização
Ainda hoje há muitos países no mundo preponderantemente agrários ou no início da
fase industrial, fato que atrai o interesse – não só histórico, mas de investigação mais ampla
sobre essas sociedades. O enfoque histórico descortina dois modelos contrastantes de
organização, com diversas nuanças. O modelo predominante, que Dahl, apoiado em estudos
de Gerhard Lenski e Kaare Svalastoga, chama de sociedade camponesa tradicional, revela
acentuada propensão para a desigualdade, hierarquia e hegemonia política. O outro, que ele
denomina de free farmer society, que chamaríamos de sociedade de agricultores livres, é
bem mais igualitário e democrático
154
. Apesar de ignorado com freqüência nas discussões a
respeito de sociedades agrárias, esse modelo fornece quantidade considerável de exemplos
históricos relevantes apontados por Dahl, como Suíça, Estados Unidos, Canadá, Nova
Zelândia e Noruega.
Tocqueville foi, talvez, pioneiro reconhece Dahl ao indicar a dificuldade de
explicar o desenvolvimento político dos Estados Unidos, em comparação com outros países
do sul, exceto se ponderados os efeitos independentes das crenças, entre as quais,
obviamente, as crenças a respeito de igualdade. Além dos efeitos das crenças nesses
valores, Tocqueville também assinalou o fato da proporção de igualdade com que se
distribuiu a terra na grande nação do Norte. Como a posse da terra ou o direito de produzir
na terra, na sociedade agrária, é a fonte maior de status, renda e riqueza, a desigualdade na
distribuição da propriedade fundiária implica desigualdade na distribuição dos recursos
políticos, de modo que as desigualdades sociais, na sociedade agrária, são cumulativas, e
não esparsas, o que determina a acentuada relação do poder com a propriedade fundiária.
Outra condição esta não explorada por Tocqueville, mas apontada por Dahl é o
estágio da tecnologia militar e o apoio dessa tecnologia ao exercício da coerção pelo grupo
ou classe que a exerce. Aliás, o domínio de tecnologia avançada, não militar, mas a
154
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 69.
utilizada na produção de quaisquer bens, confere maior poder aos seus detentores
relativamente aos que não a possuem. Exemplifica Dahl o reforço à desigualdade oferecido
pela tecnologia militar na figura do cavaleiro, custosamente equipado, que enfrentasse o
campônio medieval desarmado ou armado apenas com armas leves, sem quaisquer chances
no confronto, ou, em outro exemplo, a posse de cavalos e mosquetes pelos conquistadores
aproveitou a um punhado de espanhóis para subjugar e conquistar as avançadas civilizações
indígenas do México e do Peru. No que tange aos Estados Unidos, a tecnologia militar
fortaleceu a igualdade ao armar a população com mosquetes e rifles relativamente baratos,
porém eficientes para a coerção, nas condições da época (séculos XVIII e XIX).
Na sociedade camponesa tradicional, essas condições laboram na mesma direção:
desigualdades cumulativas de status, riqueza, renda e meios de coerção implicam forte
desigualdade em recursos políticos. Essa desigualdade é robustecida pelas crenças
vigorantes. Uma reduzida minoria, dotada de recursos superiores, opera e mantém um
sistema político autocrático (hegemônico, segundo Dahl, no mais das vezes encabeçado por
um único governante), por meio do qual a minoria pode também fortalecer seu domínio
sobre a ordem social, e, assim, reforçar ainda mais as desigualdades iniciais. Esse ciclo
perverso e desaçaimado de desigualdades sempre crescentes culminam com inanição em
massa, resistência passiva ou até levantes esporádicos de camponeses, queda na produção
agrícola e, por causa do largo descontentamento, vulnerabilidade a invasões estrangeiras,
quando o governante autocrático não recua ante os perigos respectivos. Para a maioria da
população a vida é penosa, marcada por privações, dependência, repressão a dissidente e
relativa ignorância, enquanto que uma ínfima minoria usufrui imenso poder, riqueza e
apreço social.
Na sociedade oposta de agricultores livres (free farmer society), entretanto, a terra é
distribuída de maneira mais eqüitativa, embora distante da perfeita igualdade. Se as normas
são igualitárias e democráticas, como Tocqueville afirmou que eram nos Estados Unidos,
há, então, um reforço recíproco das mesmas. Em certos casos, ambas as tendências
convergentes para a igualdade, ou para um grau inferior de desigualdade, o robustecidas
por determinadas características da tecnologia militar. Como refere Dahl, nos Estados
Unidos, o mosquete e, mais tarde, o rifle, ajudou a produzir uma espécie de igualdade em
coerção por mais de um século. Também as montanhas na Suíça, as montanhas e os fiordes
na Noruega e na Nova Zelândia e a considerável extensão do Chile reduziram as
perspectivas de um monopólio exitoso da violência por qualquer camada da população
155
,
circunstâncias que favoreceram a igualdade e, portanto, a democracia. É a geografia física
condicionando o regime político mais aberto e igualitário ou contribuindo para sua
existência.
Quando a sociedade agrária inicia o processo de industrialização, o aumento ou
redução da igualdade no desenvolvimento da sociedade industrial depende do tipo da
sociedade agrária em que ocorre a industrialização. Na sociedade agrária tradicional, a
industrialização se revela logo, ou mais tarde, um fator equalizador, pois transforma o
sistema de desigualdades cumulativas num sistema de maior igualdade com relação a
alguns recursos-chaves e, no que respeita a recursos políticos em geral, a industrialização
dispersa as desigualdades, embora não as erradique. Levada a uma sociedade de
agricultores livres (free farmer society), porém, a industrialização pode ensejar aumento das
desigualdades em recursos políticos, mesmo que essas desigualdades sejam mais dispersas
do que cumulativas.
156
Em termos amplos, pode-se dizer que à proporção que um país se
aproxima de níveis elevados de industrialização, diminuem as desigualdades extremas em
recursos políticos relevantes. Embora esse processo não crie igualdade, ele produz maior
uniformidade na repartição dos recursos políticos.
Acresce, como sugere Dahl, que as sociedades industriais alteram seu padrão de
desigualdades de outro modo também: apesar de não obstarem inteiramente a acumulação
de valores, como riqueza, renda e status comparados com sociedades camponesas
tradicionais, elas restringem acentuadamente a acumulação de recursos políticos e
produzem, em seu lugar, um sistema de desigualdades dispersas, por meio das quais os
atores, afastados de um tipo de recurso político, têm considerável oportunidade de acesso,
de alguma forma, a outro recurso político compensatório. Se o regime político for uma
poliarquia, o sistema de desigualdades dispersas, então, é fortalecido ainda mais.
157
155
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 56.
156
Idem, p. 87- 88.
157
Idem, p. 87.
Todo regime político é ameaçado pela alienação e hostilidade generalizadas,
produzidas pelos diferentes interesses e sentimentos de pessoas e grupos. Desigualdade
extrema vivida por significativa parcela da população importa ameaça para qualquer
regime, seja autoritário ou democrático. Entretanto, razões para crer que os regimes
autoritários são capazes de tolerar maior dose de desigualdade do que regimes competitivos
ou democráticos. Tal ocorre porque os autocráticos ou hegemônicos mormente os que
possuem ordenamentos sociais controlados centralmente, dispõem dos maiores meios de
coerção que podem utilizar para reprimir a eclosão de insatisfações, contendo as frustrações
e agressões dos excluídos, que acabam desaguando ou no desespero ou na apatia nihilista.
Os regimes políticos abertos e competitivos contam com menos recursos repressivos, pois
as condições essenciais para um regime competitivo e, especialmente, para uma poliarquia,
pressupõem uma ordem social mais pluralista e garantias legais e constitucionais restritivas
da coerção dos governos.
No país com regime autoritário, desigualdades excessivas reduzem as possibilidades
de surgimento de um sistema estável de crítica ou, como diz Dahl, de contestação pública.
De outra parte, se a sociedade conta com regime que conviva com a crítica (ou
contestação pública), as desigualdades excessivas ampliam as chances de que a política
competitiva seja postergada por uma autocracia. As poliarquias são particularmente
vulneráveis aos efeitos de desigualdades extremas
158
. A situação de desigualdades
excessivas na distribuição de valores-chave é equivalente à situação de desigualdade
excessiva na distribuição de recursos políticos decisivos, o que se revela nocivo à política
competitiva e à poliarquia, pois provoca ressentimentos e frustrações que debilitam o
comprometimento com o regime.
Todavia, regimes de política competitiva e mesmo poliarquias conseguem subsistir
a uma dose considerável de desigualdade quando esta não suscita no grupo excluídas
reivindicações de maior igualdade ou de mudança do regime. Também, ao surgirem
reivindicações de maior igualdade, o regime pode lograr assentimento dos grupos excluídos
ao atender a parcela das reivindicações, não a todas, ou, ainda, por meio de respostas que
158
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 87- 88.
não reduzem objetivamente as desigualdades, mas subjetivamente diminuem os
sentimentos de privação relativa.
159
O regime político de maior estabilidade seo que suportar a livre expressão, por
todos os membros da sociedade, de críticas e reivindicações, a contestação pública, e que
proporcione a redução das desigualdades extremas e a possibilidade de vida digna para
todos. Somente a poliarquia ou a utopia são capazes disso.
3.3.2 A necessidade de institucionalização política das sociedades simples
em transformação
Enfocada a sociedade do ângulo mais sociológico do que econômico nota-se que
nas sociedades simples com poucas forças sociais, um grupo guerreiros, sacerdotes, uma
particular família, um grupo racial ou étnico pode dominar os outros e induzi-los
efetivamente a aquiescer ao seu governo. A sociedade pode existir com pequena
comunidade ou sem ela. Mas em uma sociedade de maior heterogeneidade e complexidade,
nenhuma força social isolada pode governar, muito menos criar uma comunidade, sem criar
instituições políticas que tenham alguma existência independente das forças sociais que as
criaram. Como disse Rousseau, le plus fort n’est jamais assez fort pour être toujours le
maître, s’il ne transforme sa force en droit et l’obéissance en devoir”
160
.
Em sociedade mais complexa, o poder relativo dos grupos muda, mas se a sociedade
é uma comunidade, o poder de cada grupo é exercido por meio de instituições políticas que
159
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 103-104.
160
“O mais forte não é jamais tão forte para ser sempre o senhor se ele não transformar sua força em direito e
a obediência em dever”(tradução livre). apud HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies.
New Haven and London: Yale University Press, 1996. p. 9.
temperam, moderam e redirecionam o poder para tornar o domínio de uma força social
compatível com a comunidade de muitos.
161
Acresce que a sociedade complexa também
requer alguma definição em termos de princípio geral ou obrigação ética do nculo que
mantém a convivência dos grupos e que distingue sua comunidade de outras comunidades.
Em uma sociedade simples a comunidade é baseada na relação imediata de uma pessoa
com outra: marido com mulher, irmão com irmão, vizinho com vizinho. A obrigação e a
comunidade são diretas; nada se impõe de fora. Na sociedade mais complexa, todavia, a
comunidade abrange a relação de pessoas individualmente ou grupos com algo distinto
deles mesmos. A obrigação é com algum princípio, tradição, mito, proposta ou código de
comportamento que as pessoas e os grupos têm em comum. Combinados, estes elementos
constituem a definição de Cícero de comunidade, ou o “andar junto de um número
considerável de homens que estão unidos pela concordância comum a respeito da lei e
direitos e pelo desejo de participar dos benefícios mútuos.” Consensus juris e utilitatis
communio são os dois lados da comunidade política. Há, ainda, um terceiro lado. Para as
atitudes se refletirem no comportamento, a comunidade implica não apenas um “andar
junto”, mas, preferentemente, um regulado, estável e protegido andar junto. O andar junto
deve, em síntese, ser institucionalizado. E a criação de instituições políticas abrangendo e
refletindo o consenso moral e o interesse mútuo é, conseqüentemente, o terceiro elemento
necessário para a manutenção da comunidade em uma sociedade complexa. Tais
instituições dão, em contrapartida, novo significado para a proposta comum e criam novos
vínculos entre os interesses particulares dos indivíduos e dos grupos.
162
Nas sociedades simples a comunidade pode existir sem a política ou ao menos sem
instituições políticas altamente diferenciadas. Na sociedade complexa a comunidade é
produzida pela ação política e mantida por instituições políticas.
163
Historicamente, as
instituições políticas emergem da interação e divergência entre as forças sociais e do
gradativo desenvolvimento dos procedimentos e expedientes organizacionais para resolver
as divergências.
164
161
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 9.
162
Idem, p. 10.
163
Idem, p. 11.
164
Ibidem.
A relação entre a cultura da sociedade e as instituições políticas são dialéticas.
Comunidade, segundo Bertrand de Jouvenel, significa “a institucionalização da confiança”,
e a função essencial das autoridades públicas” é “aumentar a confiança mútua no coração
de todo o social.”Inversamente, a ausência de confiança na cultura da sociedade opõe
enormes obstáculos à criação de instituições públicas. As sociedades deficientes em
governo estável e efetivo são também deficientes em confiança mútua entre seus cidadãos,
em lealdades nacionais e públicas e em habilidades organizacionais e capacidade.
165
Se, na
comunidade assim institucionalizada, o consenso da igualdade de todos em direitos e
obrigações e de que as decisões e escolhas dos representantes e dirigentes políticos devem
ser feitas pela maioria, temos as condições necessárias da poliarquia.
3.3.3 A propriedade privada e o preconceito liberal
As sociedades comerciais e industriais, no curso da história, têm sido mais propícias
para a política competitiva do que as sociedades agrárias. A doutrina liberal ortodoxa
explicava esse fato traçando uma conexão entre uma ordem social pluralista e uma
economia competitiva com propriedade privada, afirmando que a política competitiva
exigia economia competitiva. Argumentava que assim como a tolerância com oposições e a
existência de governo representativo competitivo exigem ordem social pluralista, esta
exige, por sua vez, economia capitalista competitiva. O pensamento liberal clássico
sustentava, outrossim, que para a economia socialista subsistir ao mesmo tempo em que
concebia o socialismo como a única alternativa moderna ao capitalismo era necessária
uma ordem social inteiramente centralizada, com a concentração de sanções sociais,
165
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 28.
econômicas e físicas em mãos de autoridades centrais, o que redundaria em regime político
autoritário ou hegemônico. Com efeito, após a Revolução Bolchevique, a União Soviética
ilustrava essa concepção, pois, lá, um regime político enormemente hegemônico
estabeleceu uma ordem social centralmente controlada, com economia socialista
contralizada por inteiro. Essa teoria, embora superficialmente persuasiva, como diz Dahl,
não demonstra efetivamente que as equações estivessem corretas, enquanto que outros
desdobramentos históricos evidenciaram sua inadequação.
Economistas liberais clássicos, como Adam Smith, aduz Dahl tinham
consciência, pela história do mercantilismo, de que a propriedade privada não era uma
condição suficiente para a competição econômica; a primeira equação especificava tão
que ela era condição necessária. Experiências posteriores com diversas ditaduras Itália,
Alemanha, Japão, Espanha e outras revelaram que a propriedade privada não significa
nenhuma garantia real de economia competitiva ou de ordem social que permita
contestação pública, e menos ainda a poliarquia. Os casos extremos, como Itália, Alemanha
e Japão, evidenciaram que uma espécie de propriedade privada poderia coexistir mesmo
com uma ordem social regida centralmente.
Outras realidades recentes desmentiram as equações dos liberais clássicos. Assim a
subsistência de democracias inclusivas em países com economias mistas, não genuinamente
capitalistas competitivas, que empregam larga variedade de técnicas e controles, os quais,
combinados, mantêm, e podem mesmo robustecer, a ordem social pluralista, de que é
paradigma a Suécia. Aliás, praticamente todos os países industrializados com regimes
poliárquicos substituíram o capitalismo competitivo puro por sistemas mistos, e, nesse
processo, lograram manter ordens sociais pluralistas
166
.
Em síntese, pode-se afirmar que a propriedade privada não é uma condição
necessária nem suficiente para uma ordem social pluralista, nem, portanto, para a
contestação pública e a poliarquia. A ordem social pluralista e, portanto, a contestação
pública e a poliarquia, podem existir em país com economia descentralizada, seja qual for a
forma de propriedade. Mas a contestação pública e, portanto, a poliarquia, provavelmente
166
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 59.
não existirão em país com comando altamente centralizado da economia, seja qual for a
forma de propriedade
167
.
Consideramos fecundo o insight de Karl Marx para a compreensão da sociedade,
sua existência material, sua cultura e seus valores, quando escreve no Prefácio da
Contribuição à Crítica da Economia Política,
na produção social de seus meios de existência, os homens ingressam em relações
definidas, indispensáveis e alheias a suas vontades, relações de produção
correspondentes a uma determinada etapa do desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. O agregado dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, o verdadeiro alicerce sobre o qual se ergue uma superestrutura
jurídica e política e ao qual correspondem determinadas formas de consciência social.
O sistema de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da
vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina sua
existência, porém, pelo contrário, é sua existência social que lhes determina a
consciência. Em certo estágio de sua evolução, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em choque com as relações de produção existentes, ou, o que é mera
expressão legal disso mesmo, com as relações de propriedade dentro das quais elas
haviam ingressado anteriormente. De formas de evolução das forças produtivas, essas
relações passam a ser entraves delas. Inaugura-se, então, uma época de revolução
social. Com a mudança das fundações econômicas, toda a imensa superestrutura
transforma-se mais ou menos rapidamente...
168
Parece-nos que a assertiva peremptória, como regra absoluta, de que a consciência
não determina a existência dos homens, possa merecer alguma restrição, embora em linhas
gerais, comportando algumas exceções, se admita que o modo de existência da sociedade
conforme a consciência dos atores sociais. Sem embargo, temos em Marx uma
interpretação bastante judiciosa do impacto da tecnologia, através do aumento da
produtividade, na organização da sociedade, bem como das transformações sociais e, em
especial, da transformação do mundo medieval no mundo industrializado moderno.
167
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 61.
168
Versão para o português de Octavio Alves Velho da tradução para o inglês de BOTTOMORE, T. B. apud
FROMM, Erich. Conceito marxista do homem, Rio de Janeiro: Zahar, 1962.
3.3.4 Desenvolvimento socioeconômico e democracia
Na busca de explicações, é imperioso que nos perguntemos como fez Dahl: altos
níveis de organização socioeconômica e produtividade “causam” a política competitiva? A
política competitiva, inversamente, induz o desenvolvimento socioeconômico? A política
competitiva e o desenvolvimento socioeconômico interagem e se reforçam mutuamente?
Ou, finalmente, são ambos causados por algo mais?
169
São questões da maior relevância na
investigação das condições socioeconômicas da democracia. Todavia, são questões que
nem a interpretação materialista da história de Marx, nem outra teoria consegue responder
satisfatoriamente.
Pode haver relação entre esses fatos, mas a existência de relação nada esclarece
sobre suas causas. Como afirma Dahl na página citada, as causas podem ser extraídas
dos dados com o auxílio da teoria. Entretanto, algo ele com clareza: por causais que as
relações possam ser, não são elas simples, nem unidirecionais. Os dados apurados não
amparam a assertiva de que o alto nível de desenvolvimento socioeconômico constitui
condição necessária ou suficiente para a política competitiva ou para a poliarquia, como
demonstra a realidade da China, Filipinas ou Grécia, nem a afirmação inversa, de que a
política competitiva constitui condição necessária ou suficiente de um alto nível de
desenvolvimento socioeconômico.
Dahl um paradoxo na relação entre política competitiva e sociedades pré-
industriais. No século XIX, algumas sociedades pré-industriais tiveram política competitiva
e, em alguns casos, até mesmo poliarquia, como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia,
Canadá, Noruega, Suécia, entre outras. No mundo contemporâneo, porém, são raros os
regimes poliárquicos no nível pré-industrial. Neste maior propensão aos regimes
hegemônicos ou autoritários.
169
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 70.
A solução desse paradoxo, para Dahl, consiste no fato de que as sociedades agrárias,
pré-industriais européias e de língua inglesa do século XIX, eram, sob muitos aspectos,
bastante diferentes das sociedades pré-industriais do mundo contemporâneas, marcadas
estas, de regra, por analfabetismo disseminado, cultura pré-científica, pré-letrada,
amparadas na tradição, com sistemas de comunicação deficientes ou fragmentados,
enormes desigualdades de riqueza, status e poder, classe média independente de diminutas
proporções ou inexistente e, com freqüência, governos autocráticos ou autoritários. Essas
características contrastam com os Estados Unidos pré-industrial, que não apresentava tais
características negativas, mas o inverso, como evidencia a visão positiva de Tocqueville.
A essas diferenças estruturais acresça-se a diferença, de regra, relevante da atuação
do Estado no desenvolvimento socioeconômico. O Estado jamais foi considerado força
desprezível nos processos complexos de transformação das sociedades agrícolas nas
sociedades industrializadas e urbanizadas dos séculos XIX e XX. Os governos, inclusive
nos Estados Unidos, atuaram decisivamente. Contudo, como observa Dahl, eles não
tiveram atribuições de liderança ou comando, pois o desenvolvimento econômico era mais
“autônomo” do que “induzido”. Opostamente, em muitos países pré-industriais da
atualidade, as lideranças políticas estão empenhadas na utilização de todos os instrumentos
de indução e coerção, proporcionados ao Estado, para transformar e mudar os meios de
vida e produção, amiúde recalcitrantes ao extremo, da antiga sociedade.
170
No curso do século XIX, naqueles países que desenvolviam com afinco a política
competitiva, a condução da parte mais substancial do desenvolvimento era atribuída a
grupos não-governamentais, em consonância com a visão e a estratégia dos deres
políticos, enquanto que a liderança dos países pré-industriais dos nossos dias emprega a
estratégia do dirigismo estatal na busca do desenvolvimento. Afirma Dahl que a estratégia
do século XIX ajudou a produzir uma considerável medida de autonomia e descentralização
na ordem social. Na perspectiva mais característica do mundo atual, a autonomia e a
descentralização meramente perpetuam a sociedade tradicional e obstam as transformações
necessárias para o crescimento econômico. Desse modo, as estratégias de mudança
170
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 73.
utilizadas pelos líderes das sociedades pré-industriais contemporâneas sobrevalorizarão,
provavelmente, uma necessidade premente de centralização e hegemonia.
171
Nota Dahl que assim como alguns casos desviantes do século XX deixam
perfeitamente claro que a industrialização e a urbanização não são condições suficientes
para a política competitiva, v.g., a União Soviética ou a Alemanha nos anos 30, também os
casos históricos desviantes evidenciam que a industrialização e a urbanização nem mesmo
constituem condições necessárias à política competitiva. Assim também as sociedades
agrárias, pré-industriais, não são inerentemente inadequadas para a política competitiva ou
mesmo para a poliarquia, já que algumas sociedades agrárias, pré-industriais, tiveram
sistemas políticos competitivos, tendo fornecido, por vezes, na verdade, embasamento
valioso para uma poliarquia inclusiva.
Se um país pré-industrial, hoje, oferece um quadro adverso para o regime
competitivo ou para uma poliarquia, tal ocorre, certamente, como conseqüência de um
conjunto de circunstâncias, como analfabetismo, pobreza, classe dia reduzida e cultura
política autoritária. Essas circunstâncias se vinculam, no mundo atual, a precário suporte
industrial e urbano. Entretanto, elas não são, como não eram, características pertinentes a
sociedades pré-industriais.
172
Presumindo a existência de relação entre contestação pública (e poliarquia) e o nível
de desenvolvimento socioeconômico, bem como a ocorrência de exceções relevantes e
marcos abaixo ou acima dos quais as possibilidades para o surgimento da poliarquia não se
alteram de modo significativo, Dahl logra estabelecer hipótese bastante geral para traçar
conexão entre sistema político e nível socioeconômico:
as chances de um país se desenvolver e manter um regime político competitivo (e,
mais ainda, uma poliarquia) dependem da medida com que a sociedade e a economia
do país a) proporcionem alfabetização, educação e comunicação; b) criem ordem
social mais plural do que centralmente dominada; c) obstem desigualdades extremas
entre as camadas politicamente relevantes do país.
173
171
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971.
172
Idem, p. 74.
173
Idem, op. cit.
Parece óbvio que sempre que a quantidade de cidadãos for ampla, as possibilidades
de extensa participação e contestação pública subordinam-se, em alguma medida, à difusão
da leitura, escrita, alfabetização, educação e imprensa. Tal difusão, como se viu,
relaciona-se com a urbanização e a industrialização. O desenvolvimento urbano, comércio,
indústria e profissões não só requer como promove aquela difusão.
Uma economia avançada pode e deve reduzir o analfabetismo, disseminar a
educação em geral, ampliar as oportunidades de educação superior e multiplicar os meios
de comunicação. Tem que produzir mão de obra qualificada, pois necessita dela. Precisa
dispor de trabalhadores que saibam ler e escrever, trabalhadores especializados que saibam
ler projetos e executar instruções escritas, engenheiros, técnicos, cientistas, contabilistas,
advogados, gerentes de todas as especialidades. Não gera como necessita utilizar
sistemas rápidos e eficientes de comunicação, que transmitam as mais amplas quantidades
de informações. Tais exincias implicam múltiplas organizações altamente especializadas,
manipuladas por pessoal intensamente estimulado, mormente pela febre de prosperidade
que galvaniza os espíritos: fábricas, lojas, escolas, universidades, hospitais, sistemas de
transporte de massa e milhares e milhares de outras espécies de organizações.
174
É
inafastável o condicionamento operado pela tecnologia moderna, com a elevada
produtividade que propicia, no traçado desse panorama.
Dahl adverte, primeiro, que, embora uma economia avançada crie algumas
condições exigidas para a ordem social pluralista, não cria todas as condições requeridas, o
que ilustra com os exemplos da União Soviética e Alemanha Oriental, antes da queda do
comunismo, que combinavam economias bastante avançadas com ordens sociais
centralmente controladas. Entretanto, admite que, à medida que sistemas hegemônicos
avançam para níveis superiores de desenvolvimento econômico, como ocorreu com a União
Soviética e o Leste Europeu, vai se tornando cada vez mais difícil manter a ordem social
por meio do controle central, pois o próprio desenvolvimento econômico produz as
condições da ordem social pluralista, se o seu argumento estiver correto, de modo que o
monopólio sobre as sanções socioeconômicas usufruídas pelos deres hegemônicos é
solapado pelo próprio êxito de sua economia: quanto mais forem bem-sucedidos na
174
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p.76-77.
transformação progressiva da economia e, com ela, inevitavelmente, da sociedade, mais
estarão eles ameaçados pelo fracasso político. Se mesmo assim persistirem em manter seu
domínio político por meio da manipulação da violência, sua contumácia será extremamente
onerosa, e precário seu domínio. Não teria sido essa a explicação da ruína da União
Soviética?
Segundo, a despeito de o “sucesso” econômico ser capaz de ameaçar as hegemonias
gerando reivindicações de liberalização política, o êxito econômico não tem ameaçado as
poliarquias, mas o fracasso econômico, sim. Tal ocorre porque as dificuldades econômicas,
especialmente quando provocam desemprego acentuado ou inflação acelerada,
desencadeiam demandas de um regime hegemônico e de ordem social centralmente
dominada, que só se obtêm com manipulação da violência.
Terceiro, talvez, a agudeza da distinção esteja se perdendo, pois está se tornando
evidente que as sociedades afluentes produzem suas frustrações e insatisfações. Embora a
afluência possa aumentar as pressões pela política competitiva em países hoje governados
por regimes hegemônicos, não é nada evidente que a afluência continuará robustecendo a
lealdade à democracia nos países que já possuem poliarquias inclusivas.
175
Desde Aristóteles ou, talvez, desde os filósofos pré-socráticos, tem-se afirmado na
teoria política que as desigualdades extremas contribuem acentuadamente na geração de
regimes autoritários, ao passo que os regimes competitivos e abertos necessitam, para sua
sobrevida, possuir a preponderância de uma camada social intermediária de cidadãos mais
ou menos iguais, evitando, assim, desigualdades extremas de status, renda e riqueza entre
os cidadãos. As sociedades industriais avançadas provocam desigualdades excessivas. Não
obstante, a maioria delas desenvolveu poliarquias inclusivas. Divergem as explicações
desse aparente paradoxo.
175
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 78-80.
3.3.5 A conversão de recursos econômicos em recursos políticos
Para sobreviver, as sociedades contemporâneas organizam sistemas produtivos que
produzem toda a sorte de bens, assim como renda, riqueza, status, ocupação, saber e uma
infinidade de outros valores. A produtividade do sistema depende da tecnologia utilizada, a
qual tem se revelado, no mundo moderno, constantemente inovadora, descobrindo, de
modo contínuo, novas técnicas e novas formas capazes, sempre, de oferecer maior
produtividade, o que orienta os investidores na aplicação de capital. Os inventores
trabalham em pesquisa nas condições oferecidas pelos detentores de capital, as quais
permite a estes a apropriação da tecnologia inventada, cujo emprego lhes proporcionará
incremento da riqueza. Aí reside fonte relevante de desigualdade.
O uso de recursos por alguém pode influenciar o comportamento de outros
cidadãos, em determinadas circunstâncias. Esses recursos convertem-se, então, em recursos
políticos. Aqueles que controlam o Estado podem empregar o poder deste para reordenar a
distribuição inicial dos recursos políticos produzidos pela ordem socioeconômica, seja pela
incidência tributária, seja limitando a contribuição para campanhas políticas, assim como
podem os cidadãos criar novos recursos políticos através do sufrágio.
Desigualdades excessivas na distribuição de recursos-chave, como renda, riqueza,
status, saber e poder militar equivalem a desigualdades excessivas em eficácia política. E
um país com desigualdade excessiva em eficiência política inclina-se, com muita
probabilidade, para ser desigual excessivamente na manipulação do poder, reunindo, assim,
as condições para um regime hegemônico ou autocrático
176
.
Nos primórdios do desenvolvimento de uma sociedade, se a condição de igualdade
maior na sociedade de agricultores livres ao contrário das sociedades agrárias
tradicionais, marcadas pela desigualdade se vincular também a um grau maior de
176
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 82.
igualdade política obtida por meio do sufrágio, de partidos competitivos, de eleições e
líderes responsivos, então o acúmulo de desigualdades será mais inibido. Somando
popularidade, seguidores e votos, os líderes políticos podem neutralizar alguns efeitos
potenciais das diferenças de riqueza e status e utilizar os poderes reguladores do Estado
para reduzir essas diferenças ou suas decorrências na vida política.
177
Ao se industrializar, ocorre alteração profunda na natureza das igualdades e
desigualdades dos habitantes da sociedade agrária. A industrialização redistribui
intensamente e de modo desigual benefícios e privilégios. Todavia, como já mencionado, as
necessidades da sociedade industrial avançada e as aspirações que ela engendra e satisfaz
disseminam vários recursos políticos, que nas sociedades camponesas tradicionais são
empolgados por elites diminutas, como alfabetização, educação, conhecimento técnico,
habilidades organizacionais, acesso a líderes, etc. Embora a industrialização não elimine as
desigualdades, ela reduz acentuadamente várias delas. À proporção que a renda média
cresce com o progresso da tecnologia e o aumento da produtividade, muitas vantagens até
então empalmadas por pequenas elites se apresentam ao alcance de segmento crescente da
população.
178
À proporção que um país alcança níveis superiores de industrialização
reduzem-se as desigualdades excessivas em recursos políticos relevantes. Embora tal
processo não produza igualdade, ele proporciona igualdade maior na repartição dos
recursos políticos.
179
Entretanto, observa Dahl que o aumento ou a redução da igualdade no
desenvolvimento da sociedade industrial depende do tipo de sociedade agrária em que se
desenvolve a industrialização. Operada na sociedade agrária tradicional, a industrialização,
cedo ou tarde, revela força equalizadora ao transformar o sistema de desigualdades
cumulativas em sistema de maior paridade em relação a alguns recursos-chave, e, no que
toca aos recursos políticos em geral, ela dispersa, embora não exclua, as desigualdades.
Desencadeada na sociedade de agricultores livres (free farmer society), porém, a
177
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 82-83.
178
Idem, p. 85-86.
179
Idem, p. 87.
industrialização pode majorar as desigualdades em recursos políticos, embora essas
desigualdades sejam mais esparsas do que cumulativas.
180
Se a mudança social e econômica solapa ou destrói as bases tradicionais da
sociedade, a conquista de um nível elevado de desenvolvimento político depende da
capacidade do povo para desenvolver novas formas de associação. Nos países modernos,
segundo Tocqueville, “a ciência da associação é a mãe da ciência; o progresso de tudo o
mais depende do progresso que ela produziu.” Essa associação exitosa foi a característica
do sucesso e da prosperidade dos Estados Unidos. O grande problema da América Latina,
como apontou George Lodge é que nela “é relativamente reduzida a organização social no
sentido que s conhecemos nos Estados Unidos.”O resultado é um “vácuo motivação-
organização” que dificulta a democracia e o desenvolvimento econômico.
181
3.3.6 Modernização e mudança de valores, crenças e costumes
No âmbito psicológico, a modernização dos países implica mudança fundamental
em valores, atitudes e expectativas. O imaginário do homem tradicional esperava
continuidade na natureza e na sociedade e não acreditava na capacidade do homem de
mudá-las e controlá-las. O homem moderno, ao contrário, admite a possibilidade de
mudança e crê que ela seja desejável. Ele tem, na expressão de Daniel Lerner, uma
“personalidade móbil” que se adapta às mudanças do seu ambiente. Estas mudanças exigem
alargamento das lealdades e identificações dos grupos concretos e imediatos, como família,
clã, aldeia, para agrupamentos mais vastos e impessoais, como classe e nação. Acompanha
180
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 87-88.
181
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 31.
esse alargamento um aumento da confiança em valores universais e padrões de realização
preferentemente a valores particulares e avaliações individuais.
182
No nível intelectual, a modernização envolve ampla expansão do conhecimento do
homem sobre seu ambiente e a difusão desse conhecimento por toda sociedade através do
aumento da alfabetização, dos meios de comunicação de massa, e da educação.
Demograficamente, a modernização significa mudança nos padrões de vida, notória
melhora na saúde e expectativa de vida, aumento ocupacional, mobilidade vertical e
geográfica e, em particular, o rápido crescimento da população urbana em contraste com a
rural.
183
A facilidade com a qual sociedades tradicionais têm adaptado seus sistemas
políticos às demandas da modernidade depende quase diretamente das habilidades
organizacionais e capacidades de seu povo. Somente raros povos possuíram em larga
medida tais habilidades, como os japoneses, que foram hábeis em fazer a transição
relativamente fácil para uma economia desenvolvida e uma política moderna.
184
Os aspectos da modernização mais relevantes para a política podem ser amplamente
agrupados em duas categorias. Primeiro, a mobilização social, na formulação de Karl W.
Deutsch
185
, é o processo pelo qual os “principais conjuntos de antigos compromissos
sociais, econômicos e psicológicos são erodidos e desfeitos e as pessoas tornam-se
disponíveis para novos modelos de socialização e comportamento.” Isso significa mudança
de atitudes, valores e expectativas do povo, dos associados ao mundo tradicional para
aqueles pertinentes ao mundo moderno, como conseqüência da alfabetização, educação,
aumento das comunicações, exposição à mídia e urbanização. Em segundo lugar, o
desenvolvimento econômico corresponde ao crescimento da atividade econômica total e ao
rendimento da sociedade. Pode ser medido pelo produto nacional bruto (PNB) per capita,
nível de industrialização e nível de bem-estar individual, estimado através de índices como
expectativa de vida, níveis calóricos, provisão de hospitais e número de doutores.
182
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 32.
183
Idem, p. 32-33.
184
Idem, p. 31.
185
Social Mobilization and Political Development, AMERICAN POLITICAL SCIENCE REVIEW, n. 55,
Sept. 1961, p. 494 apud HUNTINGTON, S. P. op cit. p. 33.
Mobilização social abrange mudanças nas aspirações individuais, de grupos e sociedades;
desenvolvimento econômico compreende mudanças em suas capacidades. A modernização
exige a ambos.
186
A modernização política abrange aumento na participação política pelos grupos
sociais por toda sociedade. A participação política ampliada pode acentuar o controle do
povo pelo governo, como nos regimes autocráticos, ou acentuar o controle do governo pelo
povo, como nos regimes democráticos. Mas em todos os estados modernos os cidadãos são
diretamente envolvidos e afetados pelas questões governamentais. Autoridade
racionalizada, estrutura diferenciada e participação da massa distinguem assim a política
moderna da política pretérita.
187
3.3.7 Desenvolvimento democrático: expansão das liberdades
Como ensina Amartya Sen, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de
expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. O enfoque nas liberdades humanas
contrasta com as visões mais restritas de desenvolvimento, como as que simplesmente
identificam o desenvolvimento com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB),
aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social.
O crescimento do PNB ou das rendas individuais obviamente pode ser muito importante
como um meio de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros da sociedade
188
;
isoladamente, porém, o incremento do PNB e de rendas privadas não constitui
desenvolvimento da sociedade. Esse, aliás, é um equívoco freqüente na concepção do
186
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale
University Press, 1996. p. 33-34.
187
Idem, p. 34-35.
188
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
desenvolvimento, no qual incidiram os governos militares, no Brasil, quando se sustentou
que na fase inicial do desenvolvimento era imperioso gerar riqueza e fazê-la crescer (ou o
bolo), para, só mais tarde, após ter alcançado níveis consideráveis, promover-se a sua
repartição.
Na verdade, as liberdades são os fins primordiais do desenvolvimento como
também os meios principais. Deve-se entender a notável relação empírica que vincula umas
às outras as diferentes liberdades, como insiste Amartya Sen. Liberdades políticas
(liberdade de expressão e eleições livres) ajudam a promover segurança econômica.
Oportunidades sociais (serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica.
Facilidades econômicas (oportunidades de participação no comércio e na produção) podem
auxiliar a gerar prosperidade individual, além de recursos públicos para os serviços sociais.
Assim liberdades diversas reagem entre si e podem fortalecer umas às outras.
189
E sem
essas liberdades não se faz democracia.
3.3.8 Países multiculturais e democracia
Não só as relações e conflitos entre as classes que se alinham em posições distintas
na produção econômica condicionam a poliarquia ou o seu oposto. Também grupos ou
comunidades com diferenças de religião, língua, raça, ou grupo étnico, e região, com suas
relações e conflitos, influenciam o surgimento ou a manutenção da poliarquia ou da
autocracia. Como notou Cezar Saldanha Souza Junior,
Todas as rivalidades entre grupos dentro da sociedade, localizem-se na economia,
na religião, na educação, na cultura, na estratificação social, na composição racial,
na estrutura regional, na organização familial, ou em outras áreas da atividade
189
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 25-26.
humana, podem se transformar em conflitos políticos. Não campo de reações
sociais conflituosas que esteja imune a invasão do poder, ‘politizando’ o conflito.
190
A identidade étnica ou religiosa é assimilada na infância ou profundamente na
personalidade, especialmente quando as pessoas também m laços com solo pátrio. Os
conflitos entre subculturas étnicas ou religiosas se pejam de paixões, que descarregam
ódios e violências entre grupos rivais. O vínculo desses grupos ou comunidades com
subculturas regionais origina, com freqüência, nações, cujos líderes reivindicam autonomia
ou independência. Ante exemplos históricos desse desafio, sustentou John Stuart Mill que
as fronteiras do país, com governo representativo, deveriam coincidir com as fronteiras da
nacionalidade, o que parece apoiar a experiência de Estados multinacionais. Não obstante,
essa coincidência de fronteiras é controversa na doutrina política.
O pluralismo subcultural, por força das paixões que desencadeia, tem solapado,
repetidamente, a tolerância e a segurança recíprocas, imprescindíveis ao exercício da
contestação pública, sem a qual a poliarquia é uma quimera. Por isso, esta floresce mais
amiúde em nações mais homogêneas, sem pluralismos subculturais.
Todavia, se a poliarquia ou o regime competitivo são menos prováveis em países
com pluralismo subcultural, nãoo eles impossíveis. Observa Dahl que o pluralismo
subcultural tende a ser maior, na atualidade, nos países menos desenvolvidos, atingindo
níveis extremos, predominantemente, em nações novas, de modo que eles carregam todas
as desvantagens das nações novas, como baixo PNB per capita, nível elevado de absorção
da mão-de-obra na agricultura, baixa urbanização, alta taxa de analfabetismo, escassa
circulação de jornais. Além disso, têm eles, relativamente, grandes superfícies
191
. Os baixos
níveis de desenvolvimento socioeconômico, como se deixou inferir, não se coadunam
com a política competitiva, sendo mais propensos a engendrar hegemonias. No surgimento
de uma nação, é corrente a interação de diversos fatores contrários ao regime competitivo e
favorável à autocracia, sendo um deles o pluralismo subcultural. Em decorrência, algumas
associações entre pluralismo subcultural e hegemonia podem ser razoavelmente atribuídas a
190
SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002 (b).
p. 24.
191
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 111-112.
outros fatores, como o vel socioeconômico.
192
o obstante, a política competitiva pode
ocorrer mesmo em países com acentuado pluralismo subcultural, como Bélgica, Canadá,
Índia, Holanda e Suíça, entre outros, que lograram desenvolver e manter poliarquias.
Dahl aponta três condições, que lhe parecem essenciais, para o país, que abrigue
pluralismo subcultural considerável, manter seus conflitos em nível suficientemente baixo
para assegurar a poliarquia. Primeiro, é mais provável que o conflito se mantenha em níveis
moderados se nenhuma subcultura étnica, religiosa ou regional for “indefinidamente”
privada da oportunidade de participar do governo, isto é, da coalizão majoritária cujos
líderes formam o “governo” ou a administração.
Essa contingência, por sua vez, implica vontade de cooperação entre um número
suficiente de membros de cada subcultura, especialmente entre os líderes, que interpenetre
as subculturas, pelo menos durante algum tempo. Diversas são as fontes comuns de
incentivos à cooperação. Uma delas é o compromisso com a preservação da nação, da sua
unidade, independência e suas instituições políticas. Outra é o reconhecimento, de parte de
cada subcultura, de que é incapaz de formar uma maioria que possa governar, exceto como
integrante de uma coalizão com representantes de outras subculturas. Satisfaz-se essa
condição desde que cada subcultura seja minoritária.
As perspectivas parecem mais pessimistas para o país dividido apenas em duas
subculturas do que para aquele dividido em mais de duas, pois, no de duas, uma delas será
maioria e, a outra, minoria. Entretanto, mesmo subdividido em mais de duas subculturas,
uma poderá constituir maioria. Portanto, ser cada subcultura minoria é condição necessária,
embora não suficiente. Não contribui para a conciliação entre subculturas a circunstância de
ser uma majoritária e a outra minoritária, já que ausente o estímulo para a maioria conciliar,
pois a majoritária pode formar coalizão dominante ou impor seu governo. Inferiorizada, a
minoria poderá não vislumbrar viabilidade de se libertar jamais da dominação política da
maioria, não encontrando ela, também, incentivo para conciliar.
O segundo requisito para reduzir conflitos no país com significativo pluralismo
subcultural é o conjunto de entendimentos ou engajamentos, nem sempre previstos nas
192
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 112.
normas constitucionais formais, que proporcione grau relativamente elevado de segurança
às diversas subculturas. Entre as formas mais encontradas desses arranjos de segurança
mútua distinguem-se as garantias de que as principais subculturas serão representadas no
parlamento proporcionalmente ao número de seus membros. Essa modalidade de garantia
pode ser estendida ao Executivo, como no Conselho Federal da Suíça, do qual participam
todos os partidos, ou no arranjo Proporz, introduzido na Áustria durante a Segunda
República. Nos casos em que se assegura participação no Executivo, o arranjo exige
unanimidade ou faculta a cada minoria que exerça o direito de veto sobre decisões que
concernem às principais questões subculturais. Nos casos em que as subculturas são mais
ou menos regionais, os arranjos de segurança mútua podem estabelecer o federalismo,
como no Canadá, na Índia e na Suíça. Na Suíça, a ampla autonomia local proporciona tutela
ainda maior às subculturas. Por fim, as garantias mútuas podem consistir também em
normas constitucionais, pactos ou negociações que imponham limites à autoridade de
qualquer coalizão parlamentar para regular questões relevantes para uma ou mais
subculturas, como garantias de língua na Suíça, na Índia e no Canadá, ou as garantias ou
entendimentos na Holanda.
O terceiro requisito de Dahl é não só mais conjectural, como também mais difícil de
ser enunciada com maior precisão, como ele reconhece. As chances da poliarquia são
maiores se o povo do país acreditar que a poliarquia é efetiva no atendimento de
reivindicações relativas aos principais problemas do país, como eles são concebidos pela
população ou, pelo menos, pela camada política.
193
Como mais uma vez se constata, as
idéias e crenças do povo ou de seus líderes constituem elemento fundamental tanto na
instauração, como na manutenção, não da poliarquia, como ainda de qualquer regime
político. E isto vale não para os países multiculturais, mas também para todos os demais
países.
No que respeita à manutenção, é óbvio que, se os pleitos de soluções propostos ao
governo para problemas relevantes não são atendidos no curso de largos períodos de tempo,
a desilusão e a desobediência afastarão a confiança e o compromisso iniciais com a ordem,
mormente se o problema não resolvido implicar privação acentuada de parcela considerável
193
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 115-119.
da população, como inflação descontrolada, amplo desemprego, miséria, discriminação
grave, etc.
3.3.9 As condições socioeconômicas no mundo contemporâneo
Após a última Grande Guerra, os horrores do conflito, que gerou milhões de mortes
e as mais terríveis crueldades, inspiraram, como reação, aos sobreviventes e à humanidade
toda, propensão à harmonia, paz e fraterna solidariedade para a convivência humana em
novos tempos. A tais sentimentos incorporou-se o Plano Marshall para a reconstrução da
Europa, o qual proporcionou altas taxas de investimento que ensejaram o crescimento da
economia mundial e considerável prosperidade, sobre cuja onda se edificou o Wellfare
State, que propiciou a milhões de trabalhadores maior proteção, comparada com a existente
no passado, maior segurança e os melhores salários da História.
Todavia, nas duas últimas décadas do século XX, o surto de prosperidade e boas
intenções generalizadas se esgotou, enquanto as economias capitalistas passaram por
rápidas e profundas transformações. O pensamento técnico-industrial, que combinava o
fordismo com o Keynesianismo, operava a produção industrial em grandes proporções e
com muita rigidez, utilizando organização produtiva altamente verticalizada, na convicção
de que a empresa deveria incorporar todas as áreas de sua atividade econômica, desde a
exploração da matéria-prima até a distribuição dos seus produtos acabados, acreditando-se
que a empresa era tanto melhor quanto maior “big is beautiful”, assim se proclamava o
que exigia amplos espaços, grande concentração operária e acumulava consideráveis
estoques, necessitando, para tanto, de vultosos capitais.
As grandes concentrações de trabalhadores haviam propiciado a organização
coletiva da mão-de-obra e, portanto, o sindicalismo, que promovia as lutas reivindicatórias
de melhoria das condições de trabalho e de aumento de salários. Se o sindicato, por essas
lutas, no século XIX, era visto com reservas e temor pelos empresários e círculos bem
situados e, por isso, combatido, no século XX, depois da Segunda Grande Guerra, passou a
ser encarado, de regra, como forma de organização legítima e democrática dos
trabalhadores. Werner Sombart havia notado (O Apogeu do Capitalismo) que o
movimento dos trabalhadores, que tantos desgostos dera ao moderno empresário e que, sem
embargo, havia atuado como aquela força “que sempre quer o mal e sempre produz o bem”,
também viera, como tudo o que ocorrera naquele tempo, no fim de contas, a salvar o
capitalismo, pois obrigara ao empresário, na medida em que a força de trabalho majorava
seus custos (com o êxito das reivindicações proletárias), a aumentar a produtividade
recorrendo à tecnologia e, conseqüentemente, a ampliar o lucro e a desenvolver mais
energia ecomica, fazendo Sombart lembrar Lagardelle: “Heureux le capitalisme, qui
trouve devant lui um prolétariat combatif et éxigeant”.
194
Também ganhara as consciências, nas cadas de 50 e 60, a convicção de que o
acolhimento das reivindicações razoáveis dos trabalhadores, proporcionando-lhes melhores
condições de vida, contribuiria para afastá-los do caminho do comunismo, que dominava o
leste europeu. Nessa esteira, partidos social-democratas adotaram propostas das classes
trabalhadoras, além dos da extrema-esquerda. Entre 1945 e 1973 a economia mundial teve
enorme expansão, beneficiando-se de uma taxa de crescimento anual de cerca de 6%.
194
“Feliz o capitalismo, que se defronta com um proletariado combativo e exigente” (tradução livre).
3.3.10 Crise do capitalismo e crise das conquistas trabalhistas
Em decorrência da primeira crise do petróleo, em 1973, elevou-se o custo
energético da produção, circunstância revigorada com a segunda crise em 1979, fatos que
afetaram negativamente a economia capitalista, desencadeando um surto transnacional de
estagflação. A retração sofrida pelos mercados não pode mais conviver com o sistema de
produção em massa, e rígida, do fordismo. Percebeu-se que o mercado não comportava
mais níveis fixos de produção, nem poderia o capital continuar mantendo grandes
concentrações produtivas e volumosos estoques, com enorme dispêndio de capital e de
recursos financeiros, como exigia a produção em massa e em longo prazo.
A partir de 1973 o crescimento da economia mundial caiu significativamente. A
legitimação e fortalecimento dos sindicatos, que haviam se revelado necessário à
conservação e harmonia social, como também para que o proletariado excluísse de seus
pleitos a “pauta socialista”, surgiam, na segunda metade da década de 70 e na década de 80,
como percalços para as novas necessidades do capital, que não se coadunavam mais com o
sistema de acumulação rígida, mas impunham que esta se tornasse flexível. O Estado do
Bem-Estar Social, com o ideal do pleno emprego e suas conquistas sociais e trabalhistas,
obtidas com a colaboração do capital, passou a ser rejeitado, trazendo insegurança aos
trabalhadores, acrescida de elevados índices de desemprego.
Preocupou-se Friedrich A. von Hayek, renomado economista à época, tido como
precursor do neoliberalismo, com o avanço das lutas e reivindicações do proletariado e os
compromissos do Estado do Bem-Estar-Social com os trabalhadores, que ele encarava
negativamente.
195
Hayek e sua escola atribuíam as origens da crise ao poder conquistado
pelos sindicatos e, de modo geral, pelo movimento operário, poder que consideravam
excessivo e nefasto por corroer as bases da acumulação capitalista e endividar o Estado
195
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado
democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 9-10.
com os encargos sociais, comprometendo o equilíbrio do mercado e levando à insolvência
fiscal do Estado. Esse pensamento orientou, posteriormente, o governo de Margaret
Thatcher na Inglaterra, que reprimiu com violência as greves, impôs uma legislação anti-
sindical e provocou elevado nível de desemprego.
A desincorporação de atividades secundárias, distintas da essencial, e o
enxugamento de empresas operaram-se, entre outros processos, por meio de subcontratação
e terceirização de atividades-meio. A terceirização promove a extinção de setores, com o
objetivo de redução de custos. Pela terceirização, partes da empresa o desativadas e
adquiridas por outras empresas, existentes ou que se formam com esse objetivo. Esse
processo, que atende aos interesses econômicos do empresário, revela-se perverso para o
trabalhador, pois implica dispensa de mão-de-obra e contribui para a precarização das
condições de trabalho e para a deterioração da situação social do trabalhador nas empresas
destinatárias da exploração que se terceiriza, sem embargo da criação de vagas nestas,
que com predomínio de trabalho precário. Não se olvide que os que sobrevivem com os
ganhos do seu trabalho constituem a maioria das pessoas.
3.3.11 A nova tecnologia produtiva
Por obra dessa nova conjuntura propaga-se novo padrão de uso e remuneração do
trabalho, bem diferente daquele que havia prevalecido por quase trinta anos, após o fim da
Segunda Guerra Mundial.
A nova tecnologia, com a eletrônica, a informática, melhores comunicações e
transportes mais rápidos, reduziu a importância dos estoques da velha produção em
massa. Desde então o processo produtivo passou a ser orientado por novos métodos, de que
foi pioneira a indústria japonesa Toyota, com a sua estratégia denominada produção
enxuta. O princípio básico desta consiste em combinar novas técnicas gerenciais com
máquinas cada vez mais sofisticadas para produzir mais com menos recursos e menos mão-
de-obra. Enquanto no fordismo a produção se fazia com base nos recursos financeiros da
empresa, no toyotismo ela se volta para a demanda do mercado. Deixa-se de produzir em
conformidade com a capacidade produtiva da empresa para se produzir em conformidade
com a capacidade aquisitiva do mercado. Preconiza-se que a instabilidade do mercado
regule o volume da produção e a remuneração do trabalho, que não devem mais ser rígidos,
mas flexíveis para ajustar-se àquele.
A produção massiva do modelo fordista gerava desequilíbrio entre a produção e o
consumo. Como é do mercado que advém o lucro, a preservação deste impôs a modificação
flexibilizadora do sistema produtivo. A mudança, voltada para o mercado, preconiza a
flexibilidade, a desregulamentação, a descentralização e a privatização das necessidades
coletivas, o que vai inspirar a cultura yuppie do consumo individualizado e o atendimento
personalizado dos consumidores, com a variedade infindável das características das
mercadorias, até na profusão das cores, ao sabor do gosto pessoal, a cultura do
individualismo assim como a flexibilização, inclusive dos fatores produtivos, como a
desregulamentação da tutela trabalhista, com aceno à diluição desta no Direito Civil e a
desativação da justiça especial para o trabalho, anelo do capital.
3.3.12 A globalização no século XX
O novo sistema de produção flexível e a “fábrica global” facilitaram e incentivaram
a produção local e outras atividades econômicas em muitas regiões do mundo, propiciando
o deslocamento de indústrias e negócios de um país para outro, ensejando desse modo uma
nova divisão internacional do trabalho.
Mesmo que se admita que existe uma economia mundial desde o século XVI, é
forçoso reconhecer que os processos de globalização se intensificaram amplamente nas três
últimas décadas do século XX. Surgem mercados de capital, unidos globalmente por meio
do aporte das tecnologias da comunicação e informática, que promovem o livre fluxo de
investimentos em escala mundial. Calcula-se que os fluxos mundiais de moeda estrangeira
transações exclusivamente eletrônicas somam aproximadamente um trilhão de dólares
por dia
196
.
Despontam grandes empresas que operam em vários países as multinacionais
capazes de expandir sua produção e outras atividades por todo o mundo, deslocando
fábricas de um país para outro, em busca de mercados e (ou) menores custos, como mão-
de-obra mais barata, ou levando atividades poluidoras do centro para a periferia. Nota o
sociólogo Boaventura de Sousa Santos que
a própria evolução do nome por que são conhecidas assinala a constante expansão
das actividades destas empresas com actividades em mais que um Estado nacional:
de empresas multinacionais para empresas transnacionais e, mais recentemente,
para empresas globais.
197
O faturamento anual de algumas delas tem sido superior ao PNB de muitos países
periféricos. Estados e regiões competem acirradamente, oferecendo isenções fiscais,
tributárias e outras regalias, para sediar instalações dessas empresas, cuja mobilidade da
produção, em busca de menores custos e maiores lucros, é facilitada pela tecnologia
moderna. O enorme poder por elas empolgado, decorrente de seu poderio econômico,
constitui, muitas vezes, ameaça aos interesses populares, pela possibilidade de manipulação
da mídia e influência na política. Essa realidade tem promovido o aumento da importância
do intercâmbio, assim como o surgimento e crescimento de blocos regionais de comércio.
As transações internacionais têm majorado sua proporção no PNB de muitos países.
196
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001. p.
290.
197
Ibidem.
Tais fatos são conscientizados e sustentados pela hegemonia de conceitos neo-
liberais das relações econômicas, dando-se ênfase aos mercados privados, à
desregulamentação da atividade econômica, à privatização de empresas e serviços públicos,
à redução da função do Governo e ao livre comércio internacional. Adotada pelo FMI,
BIRD, bancos regionais e GATT, a concepção neoliberal tem sido levada ao mundo em
desenvolvimento e aos países da ex-União Soviética.
A globalização neoliberal é a resposta do capital ao desafio da crise, pois a
necessidade de lucro impõe-lhe a intensificação da exploração dos mercados existentes e a
busca de novos mercados, a fim de se assegurar a perpetuação do processo acumulativo, o
que é inerente ao sistema capitalista desde sua origem.
A hegemonia dos interesses econômicos privados gera o enfraquecimento, quando
não a anulação, da eficácia do Estado na gestão macro-econômica, como conseqüência da
transnacionalização da economia. O domínio que o Estado detinha, até a pouco, sobre a
moeda e as comunicações – havidos como atributo da soberania nacional e imprescindível à
segurança nacional desaparece. A negociação entre países em desenvolvimento, carentes
de investimentos, e os detentores globais de capital e dos recursos de investimento não
pode, obviamente, deixar de ser desigual.
3.3.13 A progressiva ociosidade da mão-de-obra humana. Desemprego
A necessidade do capital de preservar ou aumentar o lucro, em que se insere a busca
da redução de custos operacionais, entre os quais o custo da mão-de-obra, logrou êxito em
vários setores, com o auxílio da moderna tecnologia, que dispensa e substitui o trabalho
humano em muitas operações. Observa-se que a introdução da automação e outros avanços
tecnológicos extinguiram milhares de postos de trabalho e continuam extinguindo outros
mais. Como afirmou Robert L. Heilbroner, no prefácio à obra de Jeremy Rifkin, O Fim dos
Empregos,
os economistas nunca se mostram claros sobre o que as máquinas fazem por nós e
para nós. Por um lado, elas são a própria encarnação do investimento que move a
economia capitalista. Por outro lado, e na maioria das vezes, quando uma máquina
entra, um trabalhador sai e, às vezes, muitos trabalhadores saem. Os economistas
sempre afirmaram que a máquina pode eliminar alguns trabalhadores aqui e acolá,
mas que, no final, a produtividade será aumentada significativamente e,
conseqüentemente, a renda nacional. Mas, quem fica com a renda?
Aqui se pode r o problema dos fins da democracia. Ocorre, ademais, nos nossos
dias, notória aceleração na evolução do progresso tecnológico. A aprendizagem do uso de
determinada máquina como, por exemplo, de um torno mecânico por um aluno que
ingresse em escola técnica, tem que ser refeita dois ou, no máximo, três anos após, pois,
nesse tempo, o torno em que fez seu aprendizado estará obsoleto, fora de produção, e
substituído por outro mais aperfeiçoado, como notou o jornalista Clovis Rossi em artigo na
imprensa.
198
Nos Estados Unidos, apenas na década entre 1981 e 1991, foram suprimidos um
milhão e oitocentos mil empregos. A maior indústria metalúrgica americana, United States
Steel, possuía, em 1980, 120.000 empregados. Dez anos depois, em 1990, reduziu seu
quadro para apenas 20.000, mantendo o mesmo volume de produção, graças aos novos
aportes tecnológicos. Na Alemanha, 500.000 empregos foram extintos em apenas doze
meses, entre 1992 e 1993.
A reestruturação produtiva inaugurada com a produção enxuta da indústria japonesa
Toyota estendeu-se também ao setor de serviços. Em fevereiro de 1993, o BankAmerica
Corporation, na época o segundo maior banco dos Estados Unidos, comunicou que estava
transformando 1.200 empregos de período integral em atividades de meio período. O banco
avaliava que menos de 19% de seus funcionários seriam trabalhadores em período integral
em futuro próximo. Seis em cada dez funcionários, aproximadamente, do BankAmerica
trabalhariam menos de 20 horas semanais, ao mesmo tempo em que deixariam de receber
benefícios. O banco, que obtivera lucros elevados nos anos de 1992 e 1993, anunciou que a
198
FOLHA DE SÃO PAULO, 01/05/98.
deliberação de transformar mais cargos em trabalho de meio período fora adotada para
tornar a empresa mais flexível e reduzir custos indiretos.
199
Não foi esse um caso isolado. As empresas americanas, na generalidade, estavam
introduzindo um sistema de trabalho de duas espécies, integrado de um núcleo de
empregados fixos, em regime de jornada integral, acrescido de uma área periférica de
trabalhadores facilmente descartáveis, com trabalho de meia jornada, trabalhadores
contingenciais. Era uma das formas de precarização do trabalho, a par da subcontratação e
da gerada pela terceirização, resultantes, todas, do novo modelo gerencial, da reestruturação
produtiva das empresas, do método da produção enxuta ou flexível, o mesmo que
determina a substituição da mão-de-obra humana pela máquina.
No estabelecimento de distribuição da Nike, em Memphis (USA), 120 empregados
permanentes, cada qual percebendo mais de US$ 13 por hora, entre salário e vantagens,
trabalhavam juntamente com 60 a 255 trabalhadores temporários. Os temporários eram
fornecidos pela Norrell Services, uma das maiores empresas norte-americanas de serviços
temporários nos anos 90. Esta cobrava US$ 8,50 por hora em relação a cada trabalhador,
que ela remunerava a US$ 6,50 a hora, a metade do que percebiam os empregados fixos da
Nike, retendo para si US$ 2,00 por hora de trabalho, pelo serviço de intermediação da mão-
de-obra. Essa a origem da significativa diferença de salário, embora os temporários
realizassem, no mesmo local, trabalho idêntico ao executado pelos empregados fixos
200
.
Empresas colocadoras de trabalhadores temporários, como a Norrell, na década de
90, forneciam às empresas americanas 1,5 milhão de trabalhadores. A Manpower, então a
maior empresa fornecedora de trabalhadores temporários dos Estados Unidos, era o maior
empregador individual do país, com 560 mil empregados. Em 1993 mais de 34 milhões de
americanos foram trabalhadores “contingenciais”, prestando serviços temporários em meia
199
RIFKIN, J. O fim dos empregos o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo:
M. Books do Brasil, 2004. p. 191.
200
NEW YORK TIMES, “Temporary Workers Are on Increase in Nation’s Factories”, 06/06/93 apud
RIFKIN, J. op. cit. p. 191.
jornada, ou por tarefa, ou como freelancers
201
, isto é, trabalho precarizado, em qualquer
dessas hipóteses.
Entre 1982 e 1990, o trabalho de temporários cresceu dez vezes mais do que o
emprego permanente. Em 1992, os trabalhos temporários correspondiam a 2 entre cada 3
novos empregos no setor privado. Trabalhadores temporários, por contrato e em meia
jornada, integravam mais de 25% da força de trabalho nos Estados Unidos
202
.
O incremento do trabalho temporário constitui parte da estratégia das empresas nos
Estados Unidos e em outros países para reduzir os custos do trabalho, reduzindo salários e
vantagens, como assistência médica, aposentadorias, licenças médicas pagas e férias. No
Brasil, a menos que o contrato de temporário se desvirtue pela inobservância das
respectivas exigências legais, a empresa tomadora se beneficia da prestação de serviços
sem assumir a condição de empregadora, que incumbe à empresa que fornece o trabalhador
temporário, a qual assume os encargos trabalhistas e previdenciários, mais reduzidos do que
os correspondentes ao empregado permanente
203
.
De qualquer sorte, no estrangeiro ou no Brasil, o trabalho temporário constitui
forma de precarização do trabalho destinada a reduzir seu custo, adotada pela empresa
capitalista como estratégia de reengenharia flexibilizadora. Consiste em locação de trabalho
como forma de sua exploração, que atende aos interesses recíprocos das empresas
contratantes, perversidade, portanto, atentatória à dignidade da pessoa humana, legalizada,
porém. Implica concentração e exclusão, a um tempo. Concentração de riqueza pela
economia que as empresas obtêm de dispêndios com o trabalho e exclusão do trabalhador,
pela perda de status com a insegurança de sua descartabilidade e com o aviltamento de
salário. O trabalho é amoldado aos requisitos da produção enxuta que elimina estoques
ociosos e acorre just-in-time à demanda do mercado.
201
RIFKIN, J. O fim dos empregos – o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo: M.
Books do Brasil, 2004. p. 191-192.
202
WALL STREET JOURNAL, “Hired Out: Workers Are Forced to Take More Jobs with Few Benefits”,
11/03/93 apud RIFKIN, J. op. cit. p. 192.
203
LEI nº 6.019 de 03/01/74.
Na terceirização instrumento também da reestruturação produtiva pós-fordista
muitos fornecedores são empresas reduzidas que pagam salários baixos e proporcionam
escassas vantagens aos trabalhadores. A terceirização foi incorporada à economia japonesa
e tem sido adotada nos Estados Unidos, Europa e no capitalismo atuante em outros
continentes. Nas negociações com sindicatos tem se tornado freqüente a ameaça de
empregadores de lançar mão do trabalho temporário ou da terceirização para frear as
pretensões dos empregados
204
.
Os vínculos com a empresa, a solidariedade profissional e a satisfação
proporcionada pelo trabalho desaparecem tanto no trabalho temporário como na
terceirização de serviços, o que debilita a sindicalização e, por conseqüência, as
reivindicações da classe trabalhadora, mormente em países – como os Estados Unidos – em
que a sindicalização se faz por empresa. Esses fatos explicam o esvaziamento dos
sindicatos e a ausência de participação dos trabalhadores na atualidade, que constituíram
quando atuantes – importantes fatores no avanço da democracia.
Em 1995, 800 milhões de pessoas, no mundo, estavam desempregadas ou
subempregadas. Em 2001, mais de um bilhão delas se inseriam em uma dessas duas
categorias.
205
Elevados índices de desemprego crônico continuam a acometer as nações
mais desenvolvidas do mundo. O índice da Alemanha, em agosto de 2003, era de
aproximadamente 10%, e 60% dos desempregados estavam sem trabalho mais de um
ano. O desemprego na França e na Itália em 2003 andava em torno de 9%, enquanto que na
Espanha era, aproximadamente, de 12%. A média geral da União Européia era de 7,9%,
sendo que, na zona expandida da Europa, ela excedia a 8,7%
206
.
Do lado oposto do planeta a situação não é melhor. O desemprego no Japão atingia
a 3,68 milhões de pessoas no início de 2003, com a média geral de 5,5%, a maior
percentagem de trabalhadores desempregados desde o início dos registros na década de 50.
204
RIFKIN, J. O fim dos empregos – o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo: M.
Books do Brasil, 2004. p. 195.
205
Idem, p. XIII.
206
Ibidem.
O nível de desemprego da Indonésia era de 9,1% e o da Ìndia, de 8,8%. No Caribe e na
América Latina, a fração média era de 10%
207
.
Também nos Estados Unidos o desemprego é notório. Embora seu governo
difundisse o índice de 4% nos anos de alta, na segunda metade da década de 90, na
realidade, a proporção pertinente era bem maior. Estudo da Universidade de Chicago
apurou que se o desemprego camuflado fosse considerado, o índice real estaria próximo, na
época, ao da União Européia, pois, embora alguns americanos encontrassem emprego após
a recessão de 1989-1992, milhões de trabalhadores desesperançados haviam desistido de
buscar ocupação e abandonaram o mercado de trabalho, deixando de figurar nas estatísticas
oficiais
208
. Nota Rifkin que muitos desempregados não constam das estatísticas pelo fato de
terem sido encarcerados. Em 1980 a população presidiária era de 330 mil internos. No ano
2000, quase dois milhões cumpriam pena prisional. Entre 2003 e 2004, 1,8% dos
trabalhadores adultos do sexo masculino se achavam presos. Entretanto, muitos
trabalhadores que se empregaram no curso da alta do mercado entre 1995 e 2000 eram
empregados temporários ou de meia jornada, sem benefícios, ficando sem trabalho a maior
parte do tempo. Grande proporção deles retornou ao desemprego no final de 2003
209
.
O Reino Unido é o único país do G-8 a seguir o exemplo norte-americano, tendo
aumentado largamente o crédito ao consumidor, no empenho de aquecer a economia. Em
curto prazo, o expediente teve sucesso. O desemprego no Reino Unido, nos últimos anos,
situa-se entre os menores do mundo e sua economia tem crescido. Não obstante, tal decorre
não de crescimento natural ou auto-sustentado, mas da liberação do crédito e do acúmulo
de dívidas, o que significa tratar-se de expansão artificiosa. O débito familiar atingiu US $
1,4 trilhão. O britânico médio tem gastado de 120% a 130% de sua renda anual graças aos
instrumentos de crédito a que se habituaram os norte-americanos, como cartões de crédito,
207
RIFKIN, J. O fim dos empregos – o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo: M.
Books do Brasil, 2004. p. XIV.
208
Idem, p. XV.
209
Ibidem.
financiamento de hipotecas, empréstimos e saques a descoberto
210
. Desse modo os
britânicos aumentam suas dívidas pessoais acima dos níveis americanos.
Observa-se, destarte, que a utilidade do sistema em algum aspecto, como no que
respeita ao crescimento e empregabilidade maior, pode ser lograda com artifícios como a
produção do supérfluo ou com desvios nocivos ou viciosos de conduta dos cidadãos, como
o consumismo desenfreado. Mesmo assim, o sucesso seria provisório, persistindo apenas
até os limites da expansão do crédito e a ruína dos consumidores e da economia, como
ocorrera no final dos anos 20 e início dos anos 30.
A ocorrência de níveis elevados de desemprego na Europa gera privações que não
se refletem bem nas estatísticas de distribuição da renda. Freqüentemente tenta-se fazer
com que essas privações pareçam menos graves, argumentando que o sistema europeu de
seguridade social, incluindo o seguro-desemprego, propende a compensar a perda de renda
dos desempregados. Todavia, o desemprego não implica mera deficiência de renda que
possa ser compensada com transferências do Estado, embora com pesado custo fiscal que
pode ser, ele mesmo, um ônus gravíssimo; é também fonte de efeitos debilitadores muito
abrangentes sobre a liberdade, a iniciativa e as habilidades dos indivíduos. Entre seus
múltiplos efeitos, o desemprego contribui para a “exclusão social” de alguns grupos e
provoca a perda de autonomia, de autoconfiança e de saúde física e psicológica.
211
3.3.14 Marginalidade, migração, violência e criminalidade
Crescente violência eclode e se exacerba na maior parte dos países, inclusive no
nosso, o que tem proporcionado um dos maiores desafios para as autoridades públicas, qual
210
COWELL, “Personal Debt Surges in Britain”, THE NEW YORK TIMES, 03/09/2003 apud RIFKIN, J. op.
cit. p. XVII.
211
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 35-36.
seja reprimir ou debelar toda a sorte de conflitos, roubos, assaltos, seqüestros, fraudes e
homicídios, que ameaçam assustadoramente um dos mais relevantes direitos da cidadania,
que é o direito à segurança e à inviolabilidade pessoal e patrimonial.
O sociólogo francês Loic Wacquant realizou análise minuciosa de tumultos urbanos
em cidades do mundo desenvolvido. Observou ele que, em quase todos os casos, as
comunidades onde ocorrem distúrbios apresentam um perfil idêntico. Muitas são antigas
comunidades de trabalhadores que foram relegadas na transição de uma sociedade antes
manufatureira para outra destinada à informação. De acordo com Wacquant,
para os residentes de áreas operárias desalentadas, a reorganização das economias
capitalistas – notória na mudança da manufatura para os serviços baseados na
informação – o impacto das tecnologias eletrônica e de automação nas fábricas e
escritórios e a erosão dos sindicatos... têm se traduzido em índices anormalmente
altos de desemprego e regressão de condições materiais
212
.
Aduz Wacquant que o fluxo crescente de imigrantes para comunidades pobres
restringe ainda mais as oportunidades de emprego e os serviços públicos, aumentando as
tensões entre os residentes, que são forçados a competir por uma fatia menor do bolo
econômico. O ingresso elevado de imigrantes oriundos do terceiro mundo ou do leste
europeu na Europa Ocidental e do sul do continente nos Estados Unidos tem causado
conflitos e violência de natureza semelhante. os imigrantes são trânsfugas da miséria
e escassez de trabalho de seus países de origem, em busca de sobrevivência, atraídos
pela prosperidade do mundo desenvolvido. Essa realidade reflete em parte a alteração na
dinâmica da economia global e os albores de uma nova ordem mundial, com a redução
acentuada do trabalho. Os distúrbios e a violência decorrentes da competição por
trabalho e proteção social entre os imigrantes e os nacionais m originado políticas
repressivas da imigração, além do ódio nutrido por preconceitos étnicos, xenofobia, e o
ressurgimento da ideologia nazi-fascista. Entretanto, a extrema-direita que tem
capitalizado votos no combate ao fluxo migratório – raramente aponta os avanços
tecnológicos como causa do desemprego, embora este decorra de estratégias de
reengenharia, downsizing e automação.
212
WACQUANT, L. When Cities Run Riot”. UNESCO Courier, fevereiro de 1993, p. 10. apud RIFKIN, J.
O fim dos empregos o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo: M. Books do
Brasil, 2004. p. 215.
No período histórico posterior à guerra fria parece que a área da marginalidade se
alarga e surgem com mais intensidade conflitos entre gangues de terroristas, bandidos,
guerrilhas, enquanto criminosos se organizam empresarialmente para assaltar e explorar
o contrabando e o tráfico de drogas e armas, ao mesmo tempo em que as oportunidades
de trabalho lícito declinam. O historiador militar Martin van Creveld prevê que as
distinções entre guerra e crime se esfumam e podem desaparecer à medida que bandos
de celerados, alguns com vagos objetivos políticos, ameaçarem a aldeia global com
atentados, seqüestros e massacres.
213
A tragédia e o crime se banalizam. Nesse novo
panorama de conflitos os exércitos e as polícias nacionais revelam-se cada vez mais
impotentes para controlar e reprimir a violência e são substituídos, com freqüência, por
forças de segurança privadas estipendiadas para guarnecer mansões e áreas seguras para
a próspera elite da sociedade tecnológica.
O notável avanço da tecnologia, que proporciona tantas maravilhas, enseja aos
empresários beneficiados pelo acréscimo da produtividade, seus executivos e aos bem
situados em geral, encarar o futuro com otimismo, já que visto apenas através do prisma
desse progresso, que o desvela utópico e pleno de promessas. Todavia, se enfocado pelo
prisma que detecta a proliferação de multidões que vagueiam na penúria, sem encontrar
ocupação ou ocupando-se na criminalidade, em futuro no qual a maior parte do trabalho
formal será executado pelas máquinas, o otimismo desaparecerá.
A escritora francesa Viviane Forrester, na obra “O Horror Econômico”,
apreendeu com rara sensibilidade o sofrimento e a angústia a que o desemprego submete
suas vítimas. Escreve ela que:
longe de representar uma liberação favorável a todos, próxima de uma fantasia
paradisíaca, o desaparecimento do trabalho torna-se uma ameaça, e sua rarefação,
sua precariedade, um desastre, que o trabalho continua necessário de maneira
muito lógica, cruel e letal, não mais à sociedade, nem mesmo à produção, mas,
precisamente, à sobrevivência daqueles que não trabalham, não podem mais
trabalhar, e para os quais o trabalho seria a única salvação. (...) Se o Padre Eterno
lançasse hoje a maldição: ‘Ganharás o pão com o suor do teu rosto!’, isso seria
entendido como uma recompensa, como uma benção! Parece que se esqueceu para
213
CREVELD, M. The transformation of war. New York: Free Press, 1991.
sempre que, até a bem pouco, o trabalho era muitas vezes considerado opressor,
coercitivo. Infernal, geralmente.
214
As pesquisas tecnológicas, estimuladas e financiadas por grandes empresas ou
fundações, buscam, há anos, substituir o trabalho humano por máquinas e inventos de toda
ordem, muitas vezes, os mais sofisticados, o que tem causado inovações surpreendentes no
mercado de trabalho. Em conseqüência desses inventos, postos de trabalho tradicionais
desaparecem, enquanto outros, antes insuspeitados, surgem, mas, no geral, em menor
número do que os extintos. Outros, ainda, passam por modificações significativas.
Máquinas têm substituído o braço humano desde a Revolução Industrial, ao passo que a
Revolução Industrial opera a substituição da inteligência humana em várias atividades.
Segundo José Pastore
não é à toa que os robôs se multiplicam por toda parte. É irônico verificar que os
empregos para robôs estão crescendo a uma velocidade muito mais alta do que os
empregos para os seres humanos. O homem moderno enfrenta, hoje, a concorrência
dos novos entes que ele mesmo criou. Na década de 80, quando surgiram, o mundo
acumulou 30 mil robôs. Em 1990, já havia 400 mil. Hoje (isto é, em 1997, quando
o autor escreveu) eles ultrapassavam a casa do milhão. Até o fim do século (XX),
serão bem mais de 2 milhões. E, dizem os entendidos, que a revolução da
mecatrônica mal começou sendo que seus reais efeitos só serão sentidos a partir
do ano 2020
215
.
A competição pelos mercados, no mundo atual, exclui a possibilidade de se
cogitar de combater ou minorar o desemprego renunciando as empresas às tecnologias mais
avançadas com o objetivo de utilizar mais mão-de-obra. Para a empresa moderna inexiste o
dilema de inovar ou o inovar. O sistema que se movimenta na busca do lucro e impõe a
produção para o mercado exige a competição através da melhoria da qualidade e da
diversificação dos produtos, assim como a redução dos custos, o que implica a contínua
busca da inovação tecnológica. A empresa que não se adapta a isso, quebra e desemprega.
Esse mecanismo engendra a expansão sem limites do consumo, o que demanda criatividade
para achar novos objetos de consumo e necessita do desenvolvimento de hábitos de
consumo ilimitado dos potenciais consumidores. Essa é a tarefa assumida pela propaganda
e publicidade midiáticas, organizadas empresarialmente. Parece óbvio que o sucesso de tal
sistema necessita exacerbar o hábito de consumir, isto é, gerar o consumismo, enquanto que
214
FORRESTER, V. O horror econômico. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 112.
215
PASTORE, J. A agonia do emprego. São Paulo: LTr Editora, 1997. p. 16.
este, para ser satisfeito, precisa que os consumidores possuam renda, poder aquisitivo, para
consumir. Técnica paralela, pois aumenta a freqüência da aquisição, é a obsolescência
planejada das mercadorias pela indústria: a duração das lâmpadas é limitada, os automóveis
e eletrodomésticos adquiridos se desvalorizam e o consumidor deve substituí-los pelos
novos modelos lançados no mercado, muitos objetos se destinam a uso único, no qual se
consomem. Esses hábitos, criados pelo marketing da sociedade capitalista, tecem um estilo
de vida, bem diferente da sociedade do passado, que se nutre de comportamentos e valores
consentâneos com as necessidades e fins do sistema produtivo.
3.3.15 A desvalorização do trabalho e o aviltamento da dignidade
humana
A intranqüilidade social provocada pelo recrudescimento das batalhas entre os
trabalhadores, liderados por seus sindicatos, e as empresas, no século XIX, em que
aqueles reivindicavam melhores condições de trabalho, redução de jornadas e maiores
salários, abrandou quando a sociedade, em obra de civilização, valorizou o trabalho
reconhecendo direitos e proteção social aos que trabalhavam, despossuídos de outros
bens, na sua maioria, assim dignificando a pessoa do trabalhador.
Mais tarde, nos anos 70 do século XX, quando a prosperidade, gerada pela
acumulação rígida do capitalismo, entrou em declínio, abalada pelos dois choques do
petróleo, quando o avanço tecnológico e os robôs substituíam o braço e a inteligência
humana em muitas funções, o sistema atribuiu a causa da crise ao alto custo do Estado
de Bem-Estar-Social e aos direitos conquistados pelos trabalhadores, tendo passado a
preconizar a desvalorização do que havia valorizado o trabalho com a poda dessas
conquistas e a desconstrução do Welfare State.
Quando, no passado, se afastou a fixação do salário pela lei da oferta e da
procura, assim se valorizando e dignificando o trabalho e, por conseqüência, o homem
que trabalha, surgiu a paz social. Agora se prega o retorno da regulamentação do
trabalho ao mercado e suas leis. Um culo após a caminhada em que a tutela do
trabalho avançou do mercado para a proteção legal, proclama-se a necessidade do seu
retorno às flutuações do mercado, sob a regência da lei da oferta e da procura, a pretexto
de combater-se o desemprego. Assim, o valor do trabalho se amesquinha em preço
regulado pelo mercado e se desconstrói uma disciplina jurídica forjada para proteção do
hiposuficiente da sociedade burguesa. Esse é o sentido da flexibilização e
desregulamentação do estatuto do trabalho, hoje em pauta mundial, que nada mais
significa senão a depreciação do valor do trabalho humano por força de sua
superfluidade.
Hoje, portanto, não é mais na dignidade do homem que trabalha que se pensa, em
primeiro lugar, mas no mercado, no mercado para o qual devem afluir mercadorias em
maior quantidade, com melhor qualidade e de custo mais baixo, para assim se preservar
o poder concorrencial da empresa e possibilitar a esta proporcionar empregos. O que
importa, primacialmente, é a sadiez e robustez da empresa, e não do trabalhador. O que
interessa é a produtividade e a geração de riqueza. Advoga-se, ingênua ou
maliciosamente, que a dignidade do trabalhador se sujeite os azares da lei da oferta e da
procura para que surjam empregos, argumento hábil, inclusive, para defender a
escravidão. É o velho liberalismo do laisser faire, laisser passer, da revolução burguesa,
que retorna, apodado de “neoliberalismo”, para parecer novidade.
Nesse contexto relegam-se princípios constitucionais, universais e nacionais, que
assentaram a República Federativa do Brasil sobre os fundamentos da dignidade da
pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e a ordem
econômica sobre a valorização do trabalho humano, com o fim de assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social (CF, art. 1º, III e IV, e 170).
Nesse cenário a busca do pleno emprego, elemento fundante, também, da ordem
econômica, segundo o artigo 170, VIII, da Constituição, se esvazia e o direito social ao
trabalho se esfuma, limitada a ação do Estado a pouco mais do que manter agências de
colocação para cadastrar ofertas de emprego e desempregados à procura de vagas,
atuando como mero intermediário. O trabalhador está sendo superado e desvalorizado
pela tecnologia e pelos robôs.
A prioridade política e econômica são as empresas, o lucro, os bens, as coisas,
pois configuram o sistema que gera tudo o mais. A sobrevivência e a dignidade de
milhões de criaturas, cujo único meio de sobreviver é o trabalho, ficam na dependência
daquela prioridade. O homem, o trabalhador, o constitui um fim em si mesmo, mas
apenas o apêndice de uma engrenagem cuja finalidade é o lucro e a geração de riqueza,
que aproveita a poucos. Só o lucro pode assegurar a sobrevivência e a dignidade dos que
trabalham. Essa é a ideologia burguesa da época em que a técnica torna supérfluo o
trabalho da maioria da humanidade. Como asseverou o manifesto do grupo alemão
Krisis”, com sarcasmo cruel,
a venda da mercadoria ‘força de trabalhoserá no século 21 tão promissora quanto
a venda de carruagens de correio noculo 20. Quem, nessa sociedade, não
consegue vender sua força de trabalho é considerado ‘supérfluo’ e está sendo
jogado no aterro sanitário social. Quem não trabalha não deve comer !...
Não seria o tempo de se pensar ou repensar outras formas de sobrevivência com
dignidade, ou na superação do emprego como tal?
3.3.16 A solução democrática da distribuição da riqueza. Economia
solidária
Cumpre considerar que se grande número de pessoas ou a maior parte delas é
privada da renda oriunda do trabalho, o mercado também se deprime e a redução dos
lucros do capital será fatal, o que poderá ensejar recessão global. Essa eventualidade
aconselha que os ganhos de produtividade decorrentes da inovação tecnológica deixem
de ser apropriados com exclusividade pelo capital e sejam compartilhados com os
trabalhadores de alguma maneira, seja por meio da criação de um fundo formado com a
contribuição das empresas cujas inovações tecnológicas dispensem mão-de-obra, seja
pela redução de jornadas e (ou) aumentos de salários. Esse será apenas o primeiro passo
na senda de uma nova ordem mundial do trabalho compatível com a democracia.
O passo seguinte deverá ser o desenvolvimento e fortalecimento da economia
social, que se pode chamar também de economia solidária
216
, economia não adstrita ao
mercado, economia voltada à satisfação de necessidades de pessoas sem condições de
contraprestar o bem ou o serviço que lhe é concedido, isto é, sem o poder aquisitivo que
a economia de mercado exige para proporcionar uma existência digna. O ator, por
excelência, da economia social, será o denominado terceiro setor
217
, que se utilizará da
sociedade e trabalho em forma cooperativa, trabalho em mutirão, trabalho mutual,
trabalho remunerado com o produto de fundos, ou rendas, ou contribuições, ou taxas
específicos, a serem criados.
Diante dessa perspectiva, a instituição de uma renda mínima garantida para todos
os carentes começou a ser defendida nos Estados Unidos desde 1963, com base no
princípio de que toda pessoa faz jus a uma parcela mínima da produção da sociedade,
além da inafastável utilidade para a economia de mercado capitalista ao criar poder
aquisitivo para potenciais consumidores. Constitui o nimo existencial ou mínimo vital.
O projeto de renda mínima contou com o apoio, inclusive, do renomado economista
neoconservador Milton Friedman, que foi assessor dos presidentes Nixon e Reagan.
Friedman defendeu a adoção da renda garantida sob a forma de imposto negativo sobre a
renda, ao se opor ao sistema de previdência social, embora não cresse que a automação
extinguisse a maioria dos empregos.
218
Em 1967 o presidente Lyndon Johnson criou
Comissão Nacional de Renda Garantida, integrada por líderes empresariais e sindicais e
outras lideranças americanas, a qual, após dois anos de audiências e estudos alentados,
216
SINGER, P. Globalização e Desemprego Diagnóstico e Alternativas. São Paulo: Contexto, 1998, p.
132.p. 132.
217
RIFKIN, J. O Fim dos Empregos O Contínuo Crescimento do Desemprego em Todo o Mundo. o
Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda., 2004. p. 248 e ss.
218
apud RIFKIN, J. op. cit. p. 259.
apresentou relatório preconizando, pela unanimidade de seus membros, a renda anual
garantida, fundando-se em que
o desemprego ou o subemprego entre os pobres freqüentemente são decorrentes de
forças que não podem ser controladas pelos próprios pobres. Para muitos pobres, o
desejo de trabalhar é forte, mas as oportunidades não são... Mesmo que os atuais
programas sociais fossem aperfeiçoados, não lograriam assegurar renda adequada
para todos os americanos. Por essas razões, recomendamos a adoção de um novo
programa de complementação de renda para todos os americanos necessitados
219
.
Entretanto, a instituição da renda anual garantida não se viabilizou nos Estados
Unidos. Na Europa Ocidental, porém, obteve melhor sorte; vários países adotaram-na
sob diferentes formas. O modelo francês apresentava-se particularmente judicioso, pois
contemplava regra contratual pela qual “a habilitação à renda mínima fica condicionada
à aceitação pelo beneficiário de trabalho que seja social ou culturalmente útil à
comunidade ou a participação em cursos de retreinamento ou de reintegração à vida
ativa”
220
. Portanto, o modelo francês não apenas concede renda assistencial aos
desempregados, mas prevê contrato pelo qual o beneficiado assume obrigações,
circunstância que credencia esse modelo acreditamos a encômios generalizados,
que não se limita simplesmente a deferir o direito, mas impõe em contrapartida, pela via
negocial, uma obrigação, condição que melhor se ajusta à correspondência biunívoca de
direitos e obrigações, imprescindível à segura interação da vida em sociedade.
A criação de cooperativas de produção e consumo, a que se associassem os sem-
trabalho e os que sobrevivessem precariamente com trabalho eventual seria uma
alternativa de reinserção produtiva para os descartados de trabalho do sistema
capitalista. Quanto mais empresas se associassem às cooperativas, maiores seriam as
possibilidades de êxito, como pequenas empresas e pessoas atuando na confecção de
roupas, alimentos, material de construção, reparação de automóveis e eletrodomésticos,
creches, clínicas, escolas, etc.
219
“Guaranteed Annual Income: A Hope and Question Mark”, AMERICA, 11/12/1971, p. 503 apud RIFKIN,
J. O Fim dos Empregos O Contínuo Crescimento do Desemprego em Todo o Mundo. São Paulo: M. Books
do Brasil Editora Ltda., 2004. p. 260.
220
“Minimum Guaranteed Income” apud RIFKIN, J. op. cit. p. 26l.
Atualmente o desemprego atinge não o trabalhador sem qualificação.
Diplomados de curso superior têm sido largamente dispensados do trabalho, de modo
que administradores de empresa, engenheiros, arquitetos, contadores, advogados e
outros profissionais desativados poderiam associar-se às cooperativas e oferecer o apoio
gerencial e técnico necessário aos novos pequenos empreendimentos.
Paul Singer refere como exemplo experiência ocorrida em British Columbia, no
Canadá, consistente na criação por Michael Linton do que denominou Local
Employment and Trading System (LETS), no início da década de 80. Consiste num
sistema que congrega produtores locais para intercambiarem seus produtos mediante
crédito mútuo. O sistema publica periodicamente listagens de produtos que os
associados oferecem e dos bens e serviços demandados por eles. Esse procedimento
facilita amplamente o intercâmbio entre os consócios, propiciando conhecimento melhor
do mercado e adaptação a ele pelos associados. Todas as compras e vendas entre
associados são a crédito e registradas em microcomputador. Cada transação constitui um
crédito para o vendedor e um débito para o comprador. Intensificando-se o intercâmbio,
novos créditos e débitos se somam e compensam-se e, ao cabo de um período
determinado, um mês, por exemplo, os membros podem produzir e consumir sem
necessitar efetuar pagamentos com moeda oficial
221
. Assim se substitui a competição
pela solidariedade.
Outra alternativa revolucionária, se comparada com as formas tradicionais de
trabalho, como o do escravo, o do servo da gleba ou o trabalho remunerado, é o trabalho
comunitário ou voluntário, que não é coato, mas espontâneo e solidário, sem expectativa
de ganho material. Constitui um intercâmbio social, sem embargo possa, muitas vezes,
proporcionar implicação econômica tanto para o destinatário como para o agente.
Em futuro próximo, a despeito do progresso tecnológico resultante da Terceira
Revolução Industrial, a maioria das pessoas ainda necessitará trabalhar na economia de
mercado formal ou informal para sobreviver, embora os empregos ou as horas de
trabalho continuem a declinar. No que concerne à quantidade crescente de pessoas
221
SINGER, P. Globalização e Desemprego – Diagnóstico e Alternativas. São Paulo: Contexto, 1998. p. 132.
descartadas da economia de mercado, os governos serão desafiados por duas
providências: ou despenderão somas progressivamente mais elevadas de recursos em
segurança, forças policiais e edificação de prisões para encarcerar as hordas crescentes
de delinqüentes, ou investirão em projetos de formas alternativas de trabalho na
economia social ou solidária, algo como Non-Profit Liaison Network (Rede de Ligação
Sem Fins Lucrativos), programa anunciado pela administração Bill Clinton nos Estados
Unidos, em 12 de abril de 1994, criando uma nova parceria entre o setor público e o
terceiro setor, consistente de redes cooperativas entre departamentos e ancias do
governo e organizações do terceiro setor, com o objetivo de solucionar problemas de
crimes, moradia, saúde e outras questões nacionais urgentes
222
.
As políticas amparadas no neoliberalismo compelem a sociedade a seguir
caminhos opostos à democracia. Estamos sendo confrontados pelo dilema proposto por
Paulo Singer: “Por enquanto, empresa capitalista e democracia são antípodas. Estamos
diante de um dilema histórico: ou a liberdade do capital destrói a democracia ou esta
penetra nas empresas e destrói a liberdade do capital.”
223
3.4 CONDIÇÕES PSICOLÓGICAS E PSICOSSOCIAIS
A realização de qualquer forma de governo depende das idéias ou crenças de um
número suficiente de pessoas envolvidas no respectivo projeto de governo: são as idéias ou
crenças dos ativistas políticos, isto é, daqueles que reúnem as condições necessárias para
lograr a adoção do projeto, além de propagarem suas concepções, levando-as ao povo, por
meio de sua liderança. Atribuímos a essas idéias ou crenças sentido amplo. Nesse enfoque
222
RIFKIN, J. O fim dos empregos – o contínuo crescimento do desemprego em todo o mundo. São Paulo: M.
Books do Brasil, 2004. p. 249-250.
223
SINGER, P. Uma Utopia Militante – Repensando o Socialismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 182.
não efetuamos distinção entre crença” e “conhecimento”
224
. Denomina-se, normalmente,
de conhecimento a crença bem fundada ou insuscetível de controvérsia, como a concepção
de um cientista a respeito de determinado fenômeno ou área da realidade, que comporta
comprovação ou explicação racional ou objetiva, enquanto que se tem por crença a
concepção sem maior amparo racional, derivada de fatores idiossincrásicos, ou emocionais,
ou de percepção equivocada da realidade.
No âmbito psicológico, a modernização dos países implica mudança fundamental
em valores, atitudes e expectativas, como frisamos. O imaginário do homem tradicional
esperava continuidade na natureza e na sociedade e não acreditava na capacidade do
homem de mudá-las e controlá-las. O homem moderno, ao contrário, admite a possibilidade
de mudança e crê que ela seja desejável. Ele tem, na expressão de Daniel Lerner, uma
“personalidade móbil” que se adapta às mudanças do seu ambiente. Estas mudanças exigem
alargamento das lealdades e identificações dos grupos concretos e imediatos, como família,
clã, aldeia, para agrupamentos mais vastos e impessoais, como classe e nação. Acompanha
esse alargamento um aumento da confiança em valores universais e padrões de realização
preferentemente a valores particulares e avaliações individuais.
225
Tocqueville, na conceituada e fecunda obra De la Démocratie en Amérique, atribuiu
aos costumes uma das grandes causas gerais da manutenção da república democrática nos
Estados Unidos
226
. Aqui também entendemos relevantes quando não decisiva a
influência dos costumes na adoção das formas de governo, mas dos costumes na acepção a
eles atribuída pelo próprio Tocqueville:
Entendo aqui a expressão costumes no sentido que os antigos davam à palavra
mores. Não a aplico apenas aos costumes propriamente ditos, que poderíamos
chamar hábitos do coração, mas também às diferentes noções que os homens
possuem, às diversas opiniões correntes entre eles e ao conjunto de idéias de que se
formam os hábitos do espírito. Compreendo, pois, com esta palavra, todo o estado
moral e intelectual de um povo.
227
224
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 125.
225
HUNTINGTON, S. P. Political order in changing societies. New Haven and London: Yale University
Press, 1996. p. 32.
226
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Livro I, p. 337.
227
Idem, p. 338.
Portanto, a função que atribuímos às idéias e crenças se identifica com a atribuída
por Tocqueville aos costumes, nos quais aquelas se inserem. Parece incontestável a
influência do ideário ou crenças na conduta e na ação das pessoas, inclusive em suas opções
políticas e eleitorais. A ação não guiada pela crença é ação determinada ou pela simples
busca do prazer ou por causa patológica, na qual também pode estar implicada alguma
crença. É óbvio, outrossim, que as crenças individuais influenciam as ões coletivas, as
quais, por sua vez, atuam na constituição e no funcionamento das instituições. Dificilmente
poderia uma democracia subsistir se a maioria dos atores políticos do país tivesse a
convicção de que o melhor governo fosse o autoritário, aparelhado de hipertrofia de poder.
3.4.1 O ocaso da República de Weimar
Esse foi o deplorável destino ao qual sucumbiu a república de Weimar, em 1933. O
triunfo dos regimes autoritários é alcançado, na maior parte dos casos, pela atuação de
minorias de ativistas políticos animadas pela crença nessa solução. A construção da
democracia impõe uma crença bem mais difundida na superioridade dessa forma de
governo. Nos anos 60, Raymond Aron via duas espécies de inimigos do regime
democrático, por ele denominado de “constitucional-pluralista”: os que denunciavam a
dissolução da unidade nacional pelo jogo dos partidos, e os que sonhavam com a unidade
social e a liquidação dos oligarcas que manipulavam o jogo político por trás da cena
parlamentar
228
. A essas duas oposições ideológicas ele classificou como revolucionários de
direita e revolucionários de esquerda. A atuação inconseqüente de ambas determinou o
colapso da república de Weimar, na Alemanha. Ambas contestações, ou facções
revolucionárias afirma Aron existem, virtuais ou ativamente, em todas as sociedades
228
ARON, R. Démocratie et totalitarisme. Paris: Gallimard, 1965. p. 180.
modernas. O argumento de umas e outras é facilmente inteligível e apresenta alguma
semelhança. Nada mais cativante, à primeira vista, do que sonhar com uma sociedade na
qual a oposição das classes tenha desaparecido, nada mais exposto à crítica do que o regime
político no qual o poder emerge dos próprios conflitos
229
. Entretanto, a sociedade humana é
naturalmente conflituosa e não se achou melhor maneira de solucionar seus conflitos senão
através do diálogo e da negociação, com o recurso derradeiro à vontade das maiorias. Na
república de Weimar, no início dos anos 30, as duas escolas revolucionárias da direita e
da esquerda eram vigorosas e mobilizavam as massas. Nacional-socialistas e comunistas
eram uníssonos no combate ao regime existente. “A oposição de direita, em Weimar, era
robusta, pois o regime constitucional-pluralista era recente, não gozava de nenhum
prestígio e simbolizava o fracasso” (tradução livre), aduz Aron
230
. Para recrutar adeptos em
grande quantidade, em nome da palavra de ordem unidade da nação”, é preciso que essa
unidade pareça enfraquecida ou que o destino da coletividade se mostre periclitante. Os
revolucionários da esquerda também eram fortes, pois a economia, deteriorada pela
cobrança externa das dívidas da Grande Guerra e pela conseqüente desvalorização do
marco, fora, ainda, golpeada pela catastrófica crise de 1929. Naquela época, o regime
constitucional-democrático perdia o apoio necessário das massas populares, pois incapaz de
assegurar, aos olhos de uns, a unidade da nação, e, aos olhos de outros, o mínimo de bem-
estar e de prosperidade, sem os quais nenhuma sociedade moderna se viabiliza. O regime
democrático funda-se na lei da maioria. Naquele período, o parlamento de Weimar estava
constituído por maioria infensa ao regime constitucional. A deterioração propagou-se por
todos os partidos, assumindo a forma daquilo que Aron chamou de excesso de espírito
partidário.
O regime democrático pressupõe a existência de partidos políticos, mas não pode o
partido constituir-se num absoluto, pois ele representa apenas uma parcela da opinião
pública, enquanto que o regime de liberdades implica a convivência harmônica e
construtiva de todas as parcelas de opinião enquanto tais. Na república de Weimar, todos os
partidos tendiam a tornarem-se totalidades, todos possuindo sua ideologia e suas tropas. As
229
ARON, R. Démocratie et totalitarisme. Paris: Gallimard, 1965. p. 180.
230
Idem, p. 180-181: “L’opposition de droite était forte , dans la république de Weimar, parce que le régime
constitutionnel-pluraliste était de date récente, ne jouissait d’aucun prestige et symbolisait la défaute.”
duas oposições reunidas (direita e esquerda), compostas, em 1933, por nacional-socialistas,
comunistas e uma fração de alemães-nacionais constituíram a maioria parlamentar contrária
ao governo constitucional-democrático. Sem a maioria, este se inviabilizou. O caminho
estava aberto para o golpe de Estado que entronizou Hitler e desencadeou o flagelo do
nazismo e a Guerra Mundial. Como se observa, sem embargo da crise econômica, as
crenças por meio da depreciação do ideal democrático foram decisivas para o
banimento da democracia na Alemanha.
3.4.2 Crenças e valores. Condições culturais da democracia
Compreende-se, sem dificuldade, que um regime autoritário, uma ditadura, ou um
regime hegemônico, como o denomina Robert Dahl, não necessita de tão amplo apoio na
opinião pública para se implantar. Basta-lhe o apoio minoritário, quando a massa do povo
se revela indiferente ou desinteressada, e desde que possua a força repressiva para se impor.
Não assim a democracia, cuja mais eficiente sustentação não é o interesse de poucos, mas o
consenso ou a adesão das maiorias.
Entretanto, nota-se que o êxito das crenças políticas depende, muitas vezes, das
pessoas distintas que as defendem e difundem. Como lembrou Dahl
231
, as crenças de Lênin
e, posteriormente, de Stalin, certamente, influíram muito mais nos acontecimentos da União
Soviética no século passado do que as crenças de dois camponeses russos que fossem
escolhidos aleatoriamente. Assim também o modo como as instituições políticas
funcionaram nos Estados Unidos desde 1787 tem sido determinado muito mais pelas
crenças dos 55 deres que participaram, naquele país, da Convenção Constitucional de
1787, do que pelas crenças de 55 cidadãos comuns de Filadélfia naquele ano. Esses fatos
231
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 126.
não nos devem levar a pensar que as crenças dos cidadãos comuns sejam irrelevantes o
que não corresponderia à realidade mas revelam que as crenças dos ativistas políticos e
líderes têm influência superior a dos liderados ou pessoas comuns nas realizações políticas.
Outro aspecto relativo às crenças nos chama a atenção: nos países em que as crenças
políticas individuais se mostram rudimentares e desorganizadas é mais aleatória a relação,
se houver, entre crença e ação política. Nessas sociedades a consciência política dos
cidadãos é escassa ou nenhuma e toda a sorte de preconceitos medra, disseminando-se o
pessimismo, quando não o niilismo, a respeito das instituições, de eleições e dos políticos,
inexistindo organização e participação popular. Na verdade, em todos os países, a maioria
das pessoas tem crenças políticas elementares. Apenas escassas minorias possuem crenças
políticas mais avançadas e complexas. Em geral, percebe-se certa relação no nível de
educação formal existente na sociedade e o nível de complexidade das crenças políticas das
minorias. Sob outro aspecto, é mais viável que pessoas com mais elevado nível de educação
e com maior interesse e envolvimento em política possuam também crenças políticas mais
avançadas ou complexas. Assim, a efetivação da democracia depende da crença no
processo eleitoral como meio de solução viável dos problemas da sociedade, no qual todos
os cidadãos com idade mínima tenham voto igual (um voto por pessoa), o que implica a
exclusão de preconceitos. E a crença na democracia está associada indissoluvelmente à
crença na igualdade jurídica de todos igualdade derivada da igual dignidade humana
para decidir e eleger propostas e candidatos.
Estas crenças, entretanto, dependem de certo grau de instrução ou percepção e de
generoso estado de espírito que permita o discernimento da igualdade em dignidade de
todas as pessoas, como também da falsidade dos preconceitos. Entretanto, o
conhecimento, a idéia da igualdade humana é, ainda, insuficiente para condicionar a
democracia. Faz-se mister, também, comunhão de estado de espírito solidário e fraterno, de
modo que todos os cidadãos se queiram iguais no direito de eleger seus governantes e no
direito de escolher as normas de convivência, o que implica, também, a disposição dos
vencidos de se resignar com as decisões da maioria. Esse querer importa, outrossim, uma
conduta ética que rejeite privilégios incompatíveis com o sufrágio universal. Portanto,
crença e vontade são as condições subjetivas da democracia. O agir guiado pelo respeito do
outro e pelo respeito da vontade do outro, cuja pessoa é igual em dignidade a toda e
qualquer outra pessoa, e cuja vontade é igual em direitos às vontades de todas as demais
pessoas, é condição ética, objetiva, da democracia.
Há uma inclinação no homem, ou sentimento, que os clássicos antigos, como Cícero
(De Amicitia) e Aristóteles (A Ética a Nicômaco), chamavam de amizade política, segundo
lembra Cezar Saldanha Souza Junior, e que os sociólogos contemporâneos e a doutrina
social cristã denominam de solidariedade,
232
sentimento indispensável à homogeneidade
política da sociedade e condição psicosocial – podemos dizer – da poliarquia.
3.4.3 O caso da Argentina
A importância da crença ou convicção democrática para a realização do regime
democrático é ilustrada pelas turbulências e rupturas institucionais vividas por vários
países, entre os quais pela República Argentina nos séculos XIX e XX, exemplo apontado
por Robert A. Dahl
233
, em análise histórica comparativa com a Suécia. Esses dois países,
assim como a Grã-Bretanha e outras democracias estáveis – segundo Dahl – tiveram
desenvolvimento político muito semelhante no final do século XIX, na trilha de um
progresso democrático. A Argentina condensou em algumas décadas o que havia ocorrido
na Suécia no curso de séculos: uma década de revolução e luta pela independência, de 1810
a 1820, outra década de anarquia, caudilhismo e guerras civis, segundo Germani em
Política y Sociedad e em Hacia una Democracia de Masas (apud DAHL, 1971, p. 133),
com duas décadas seguintes de autocracia unificadora. Todavia, nos oitenta anos
posteriores, a Argentina ostentou a aparência daquilo que Dahl denomina de poliarquia
232
SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002 (b).
p. 27.
233
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 132 e ss.
(polyarchy) em desenvolvimento. Ela se regia pela Constituição de 1853. Entretanto, a
participação se limitava a uma restrita minoria, embora – como ressalta Dahl essa
participação em eleições não parecesse ter sido maior na Grã-Bretanha sob a Lei de
Reforma de 1867, ou na Suécia ou Holanda até o final do século.
Próximo a esse final de século, na Argentina, o crescimento acelerado da classe
média manifestou-se na vida política. Partidos se organizaram e demonstraram poderosa
força eleitoral, especialmente os radicais, representantes das classes médias, os quais, com
pertinácia, reivindicaram sua inclusão no sistema. Em 1911, quase à mesma época em que a
Suécia e alguns anos antes da Holanda, a Argentina aprovou e assegurou o sufrágio
universal masculino, o que incrementou a participação eleitoral, a qual passou de 21% de
todos os cidadãos do sexo masculino em 1910 para 69% em 1912. Embora tenha a
participação decaído nos doze anos seguintes, julga-a Dahl comparável, aproximadamente,
com a dos Estados Unidos, e não muito inferior à da Suécia na década de 20. Acresce que
ela se elevou para 81% em 1928 e 75% em 1930. Nesse passo, em termos de participação
eleitoral, a Argentina era, também, comparável a outras poliarquias. Ademais, com a vitória
do candidato presidencial do Partido Radical, em 1916, a Argentina parecia percorrer sem
violência a perigosa transição de uma poliarquia competitiva para uma poliarquia amparada
no sufrágio universal. Esse país apresentava ainda outros fatores favoráveis à configuração
de uma democracia estável, segundo critérios admitidos hoje em dia. Sua população era, em
larga margem, urbanizada, o analfabetismo era baixo, a educação difundida, o país
moderadamente próspero, seu PNB per capita o mais elevado, provavelmente, da América
Latina, além de possuir uma grande classe média.
Como ocorreu com a maioria dos países, a Grande Depressão de 1929 causou sérios
problemas para a Argentina. Entretanto, outras poliarquias, também largamente
dependentes do comércio internacional, como a Suécia, Austrália e Nova Zelândia,
enfrentaram a crise, porém, com ações que conservaram, restauraram e, talvez, até mesmo
aumentaram a confiança de seus cidadãos no desempenho de seus governos. Não assim na
Argentina. A despeito de os abonados notáveis terem perdido poucos privilégios sob os
governos dos radicais, seus partidos perderam votos e parlamentares. Em fins da década de
20, os conservadores atacavam cada vez mais as instituições democráticas na Argentina
sufrágio universal, partidos políticos, a Câmara dos Deputados, assim como a ineficácia e o
personalismo do presidente. Eclodiu a crise econômica e um golpe militar liquidou a
experiência Argentina com a poliarquia. Após 1930 esta somente foi restaurada no final do
século.
Por quê a poliarquia ruiu na Argentina e não na Suécia, Austrália, Nova Zelândia e
outros países? Robert A. Dahl ignora uma explicação satisfatória (DAHL, 1971, p. 135-
136). Não obstante, reconhece que diferenças nos regimes não podem ser explicadas
invocando-se os fatores explanatórios usuais: nível de desenvolvimento socioeconômico,
urbanização, educação, dimensão da classe média, renda per capita, etc., de modo que uma
explicação integral seria, seguramente, muito complexa. Sem embargo, assevera que um
fator crucial emerge com chocante clareza: os argentinos parece nunca desenvolveram
uma forte crença na legitimidade das instituições da poliarquia. Em decorrência, quando o
regime enfrentou sérias dificuldades, a poliarquia foi facilmente descartada por ditaduras
apoiadas principalmente pelas elites conservadoras, a chamada oligarquia, e, mais tarde,
sob Perón, pelas classes trabalhadoras, sem que nenhuma dessas classes jamais
manifestasse convicção muito profunda sobre a legitimidade da poliarquia.
Sem embargo das aparências, a poliarquia da Argentina não se desenvolveu, de
1853 a 1930, segundo o modelo padrão do ocidente europeu: 1) durante todo o seu período
de dominação, os notáveis rejeitaram abertamente as eleições como fundamento legítimo de
seu poder de governar; e 2) grande parte da população permaneceu isolada e alienada do
sistema político. Assim, - segundo Dahl enquanto percorria o caminho que conduz de
uma oligarquia competitiva a uma poliarquia, a Argentina não logrou realizar o que alguns
países europeus conseguiram durante sua transição: nem as elites argentinas, nem a camada
média, nem as classes trabalhadoras foram convertidas à crença na legitimidade da
poliarquia. Evidenciou-se que os notáveis, por sua própria conduta, ensinavam aos
argentinos que as eleições não precisavam ser coercitivas para os perdedores ou potenciais
perdedores. Assim, negavam a legitimidade de uma instituição fundamental da poliarquia,
embora alardeassem, durante o dilatado período de governo aparentemente “constitucional”
dos anos de 1860 à reforma eleitoral de 1911, os requisitos constitucionais e legais para o
sufrágio universal. Segundo a lei e a Constituição, “o voto” era “universal, para homens
apenas, sem qualquer pré-requisito concernente a analfabetismo, riqueza, propriedade, etc.”
Os notáveis supunham, obviamente, que se tais requisitos chegassem a ser cumpridos sua
posição governante se enfraqueceria ou seria aniquilada. Assim como na Espanha, na
mesma época e com conseqüências semelhantes, as eleições eram, repetitivamente,
realizadas de modo fraudulento e cercadas de violência. Os notáveis não excluíam a
massa popular da participação na vida política; não queriam sequer permitir que os
conflitos entre eles próprios fossem solucionados através de eleições. Entendiam suas
diferenças internas, como o alcance da dominação de Buenos Aires sobre as províncias,
como conflitos com conseqüências graves demais para terem solução por meio de simples
eleições. Com essa concepção mesquinha, desde os primórdios do regime “constitucional”,
os líderes do país rejeitavam as eleições como meio legítimo de substituição de um
governo. Para todos os efeitos, não deixavam quaisquer alternativas à rebelião.
Não se nega que em outros países, onde a poliarquia, posteriormente, lançou raízes,
que seus notáveis também usaram de ilegalidades, corrupção e, até mesmo, de violência,
para vencer eleições. Os pleitos, na Grã-Bretanha, no século XVIII, não constituíam
modelo de lisura. Mas a Argentina segundo Dahl era diferente em três aspectos: 1) em
volume e extensão, a fraude e a violência eram, sob todos os aspectos, extraordinárias – não
muito diversas daquelas famosas eleições na Espanha, no século XIX, em que o resultado
era anunciado com antecedência; 2) como na Espanha, desprezando abertamente as leis e a
Constituição que ostensivamente davam legitimidade ao regime, os notáveis contribuíam
para solapar a legitimidade de todo o regime baseado em eleições; 3) por fim, na Argentina,
diversamente da Grã-Bretanha, não houve período de transição entre o governo dos
notáveis e o sufrágio pleno, durante o qual a camada política viesse a acatar a legitimidade
de eleições marcadas pela lisura. A lição que os notáveis então veiculavam era esta: quando
as eleições não são favoráveis, os vencidos não estão obrigados a aceitar seus resultados.
Tal foi o legado recebido pelas classes média e trabalhadora quando, por fim,
puderam disputar eleições por obra da reforma de 1911, conquistada pela pressão dos
radicais, que se manifestou, ainda, nas revoltas abortadas de 1893 e 1905. A reforma de
1911 introduziu na Constituição o sufrágio universal masculino, dispôs sobre o voto secreto
e criou tribunais eleitorais, com juízes federais, para fiscalizar os pleitos.
Não obstante, a realidade evidenciou que pouco mudara desde 1930, no breve
interregno não ditatorial de 1955 e 1966. Em 1962, viabilizada a apresentação de
candidatos pelos peronistas ao Congresso e a alguns governos provinciais, conquistaram
eles a maioria dos votos. Todavia, o presidente Frondizi anulou as eleições. Apesar disso,
ele foi detido e destituído da presidência pelas forças militares antiperonistas, insatisfeitas
com os resultados eleitorais e receosas do retorno do peronismo. Agendadas eleições
presidenciais, em 1963, para substituir Frondizi, vedou-se aos peronistas lançar candidato.
Contudo, em 1966, quando se vislumbrou a possibilidade de vitória dos peronistas em
vários governos provinciais nas eleições seguintes, os militares assumiram o poder, sem
esperar o desfecho eleitoral, obviamente com amplo apoio dos notáveis e das classes
médias temerosas do retorno do peronismo e enfastiadas com o sistema de partidos
fragmentados. A nova ditadura, liderada pelo general Onganía, buscou liquidar esses males
suprimindo eleições e todos os partidos políticos e governando por decreto.
Como observou Dahl, “but where it is the norm that those who lose the election may
reverse the results by force, polyarchy rests on fragile foundations. And such was the case
in Argentina”
234
. Banida da política por notáveis, que não dissimulavam aberto desprezo
pelos processos eleitorais, a maioria da população permaneceu apartada e alienada do
sistema político, o que explica sua indiferença com a legalidade formal e com os golpes
militares. Acresceu outro fator que ampliou largamente seu isolamento e alienação: o
elevado número de não-cidadãos que permanecia afastado do sistema eleitoral. Como notou
Dahl, a taxa de imigração na Argentina superava em muito a dos Estados Unidos.
Enquanto, porém, o sufrágio quase universal e partidos competitivos nos Estados Unidos
asseguravam facilmente aos imigrantes o direito à cidadania para ter o direito ao voto, na
Argentina reduzia-se o incentivo do imigrante à cidadania, pois, até 1911, mesmo obtida a
carta de cidadão, permanecia o estrangeiro excluído da política, além de outros fatores.
Esse dado ganha relevo se considerarmos que em 1914 quase um terço da população
argentina e metade dos habitantes de Buenos Aires, que domina a vida política da nação,
era composta de estrangeiros. Entre os adultos do sexo masculino os habilitados ao voto,
234
“Mas se é norma que quem perde eleição pode reverter os resultados pela força, a poliarquia permanece
sobre frágeis fundações. E tal foi o caso da Argentina” (tradução livre) apud DAHL, R.A. Polyarchy. New
Haven and London: Yale University Press, 1971. p.138.
como cidadãos – as proporções eram ainda mais elevadas: talvez quatro entre cinco homens
adultos, em Buenos Aires, não eram cidadãos, banidos, portanto, da participação na vida
política do país. A maioria dos imigrantes certamente integrava as classes
trabalhadoras. Assim, a Argentina possuía um grande proletariado, e mesmo uma
expressiva classe média, sem vínculo maior com o sistema político. Dessa realidade Dahl
captou a regra básica que dominou a política argentina, embora um tanto cínica, mas não
menos real: acredito em eleições desde que possa ter certeza de que meus oponentes não
vencerão (tradução livre)
235
.
É manifesto que o monopólio da violência e das sanções socioeconômicas por um
governo, que o utiliza para excluir oposições, afasta a viabilidade de um regime
competitivo e democrático. Entretanto, a ausência desse monopólio pelo governo não
implica, necessariamente, a existência de política competitiva ou democrática, pois essa
carência, em certas circunstâncias, pode apenas gerar um regime débil e instável. Mais
contribui para a democracia a dispersão dos recursos à violência e sanções
socioeconômicas, ou sua repulsa pelas instituições tanto ao governo como à oposição.
Convicções arraigadas de certas elites e da justeza de seus valores e propostas,
aliadas às ambições de poder de algumas personalidades, são particularmente deletérios aos
regimes competitivos e democráticos, como a tradição de intervencionismo militar em
alguns países latino-americanos, tal como ocorreu no Brasil e Argentina, entre outros, em
passado não remoto. Onde as forças militares se concebem como solução por meio de
intervenções na vida política em defesa de determinados interesses ou de sua própria
concepção dos interesses nacionais, qualquer governo que contrarie essa concepção será
instável e a democracia inexistente.
235
“I believe in elections as long as I can be sure that my opponents will not win.” apud DAHL, R. A.
Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 140.
3.4.4 A influência do modo como a sociedade encara a autoridade
Toda e qualquer sociedade humana pressupõe alguma organização. Mais ou menos
organizada, encontramos, em todas, autoridades. Sem embargo da doutrina anarquista, as
sociedades humanas não foram ainda capazes de se organizar sem a figura da autoridade. A
autoridade exerce funções, para cujo desempenho detém poderes, inclusive de alguma
coerção, que o convívio social entende necessários. A autoridade está presente em todos os
grupos sociais, desde o grupo social primário a família –, passando pelas associações ou
sociedades privadas, que atendem às mais diversas necessidades, como econômicas,
profissionais, recreativas, culturais, educacionais, desportivas, filantrópicas, etc., até a
organização política onde a autoridade tem maior visibilidade como o município, o
estado, o país e as organizações internacionais.
A natureza peculiar da cultura de cada sociedade fornece a forma de interação dos
atores sociais com a autoridade e vice-versa. Diversos autores sublinharam a relevância das
crenças relacionadas à autoridade ou de atitudes relativas a ela
236
. Eckstein concede
importância notável aos padrões de autoridade existentes em um país, tendo suscitado a
hipótese de que uma democracia seria mais estável se os padrões de autoridade do governo
fossem congruentes com os padrões de outras instituições e associações do país. Parece
evidente que tais padrões de autoridade têm correspondência na consciência e nas crenças
dos cidadãos. É admissível a hipótese de que as crenças a respeito da natureza das relações
de autoridade entre governo e governados é relevante para a existência de diferentes formas
de governo. O modo pelo qual os habitantes se relacionam com suas autoridades e
governantes modo inserido em suas crenças expressa a viabilidade, nesse país, da
democracia ou de um regime autoritário. É imprópria e difícil conciliar a crença de que o
236
ECKSTEIN, H. Division and cohesion in democracy: a study of Norway. Princeton: Princeton University
Press, 1966.
relacionamento na família ou com autoridades de grupos sociais limitados, v. g., sociedades
ou associações, deve ser aberto, admitindo críticas e sugestões das pessoas às autoridades
respectivas, com a crença de que esse tipo de relacionamento não se aplique aos
governantes do país, com os quais o padrão de interação deva ser de hierarquia e
obediência. Nessa hipótese, ocorreria, obviamente, hiato ou incongruência cultural. Se a
maioria dos habitantes do país comunga da crença de que a relação adequada do povo com
o governo é de completa hierarquia, cumprindo ao governo expedir ordens e ao povo
obedecer a elas, as condições existentes são de implementação de um regime autocrático.
Eckstein elegeu a Noruega para testar, em termos, sua teoria, sob o argumento de que os
noruegueses têm obtido êxito expressivo na solução de seus conflitos, pois acreditam, quase
unanimemente, em relações de autoridade democráticas e as praticam. Atesta ele que as
normas democráticas são praticadas pelos noruegueses na família, nas escolas, nas
associações econômicas e amistosas, grupos de pressão e partidos, governos locais e
nacional, não sendo de estranhar que os noruegueses as encarem como normas naturais e
morais, como “modo de vida” espontâneo, e não apenas uma forma meritória do governo
nacional
237
.
Como paradigma oposto, Dahl
238
invoca as crenças do grupo tribal que governou a
Etiópia, os Amhara, estudado por Donald N. Levine, na obra Ethiopia: Identity, Authority,
and Realism. De acordo com Levine, o complexo de crenças, símbolos e valores
concernentes à autoridade constitui um fator-chave da cultura política Amhara. Perpassa
toda a cultura Amhara a idéia de que a autoridade, por si só, é boa, pois indispensável para
o bem-estar da sociedade e alvo de constante acatamento, obediência e louvor. A
obediência é a finalidade maior da socialização das crianças de Amhara. Esse costume
familiar é convergente com o restante da cultura. Patriarca familiar, chefe paroquial,
abonado proprietário de terras, dignitários eclesiásticos e políticos, oficiais militares, todos
são vistos sob o prisma da paternidade. Toda essa disposição e conduta alcançam a forma
mais completa e a mais larga escala no vínculo com a mais elevada imagem de autoridade,
237
ECKSTEIN, H. Division and cohesion in democracy: a study of Norway. Princeton: Princeton University
Press, 1966. p. 173.
238
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 143.
o imperador, o qual constitui o alvo das mais extremadas formas de obediência. É praxe os
súditos etíopes prostrarem-se na sua presença e não erguer, sequer, o olhar para ele.
A cultura Amhara veda a crítica pública direta e franca a qualquer autoridade, de
modo que toda interação política se processa por meio de relações autoritárias. Nessa
cultura, com tais crenças percebe-se com facilidade não as mínimas condições para
florescer a democracia, que não existe sem o direito de oposição e de contestação pública.
3.4.5 A influência do prestígio ou do êxito dos governos
Outras crenças que contribuem para o êxito de governos e regimes são crenças na
sua eficácia em solucionar os problemas críticos vividos pela sociedade, como também a
confiança e o espírito de cooperação que eles inspiram nos membros da sociedade, fatores
apontados por Dahl
239
. Como salienta esse autor, assim como na Grã-Bretanha no século
XVIII e nos Estados Unidos no século XIX, desempenhos bem sucedidos influenciaram as
percepções – especialmente entre os intelectuais da eficácia relativa de diferentes tipos de
regimes no século XX, como os êxitos das ditaduras na Itália, Alemanha e União Soviética,
nos anos 30, que rivalizavam com os sucessos democráticos na Suécia e nos Estados
Unidos com o New Deal. A influência de paradigmas autoritários foi também expressiva na
América Latina, como se viu com o PRI no México, Vargas no Brasil, Perón na Argentina
e Fidel Castro em Cuba.
Nota-se que a socialização política e o modo pelo qual se percebe o desempenho
dos diversos regimes contribuem vigorosamente para a formação das crenças a respeito da
eficácia dos governos. Essas crenças tanto podem fortalecer, como enfraquecer ou alterar as
239
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 142 e ss.
crenças dominantes sobre autoridade. Assim, se um governo é percebido como eficaz, seus
sucessos certamente aumentarão o prestígio do paradigma de autoridade que ele representa.
Na hipótese de insucesso, o inverso ocorre.
Como todos os governos falham parcialmente – adverte Dahl a socialização enche
um reservatório de confiança que funciona como reserva nos períodos de adversidade. Em
regimes novos, o nível desse reservatório está baixo ou, mesmo, vazio; mas nos regimes
antigos, com um somatório apreciável de conquistas, o nível do reservatório, seguramente,
estará mais elevado. Na Itália, de 1919 a 1923, na Alemanha de Weimar e na Espanha
republicana, essas democracias recentes tinham escassas reservas para explorar, enquanto
que as elevadas reservas de confiança na capacidade do governo de solucionar os
problemas ajudaram as poliarquias na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a sobreviver ao
desafio do desemprego em massa nos anos 30
240
.
A confiança recíproca favorece em três situações, pelo menos, a democracia e a
contestação pública, que lhe é inerente, ao passo que a desconfiança máxima aproveita à
autocracia. Primeiramente, a poliarquia necessita de comunicação recíproca e esta é
bloqueada entre pessoas que não confiam umas nas outras. Em segundo lugar, certo grau de
confiança recíproca é necessário para as pessoas se reunirem com liberdade para promover
seus objetivos. As organizações estruturadas com comando vertical descendente podem se
viabilizar – embora nem sempre eficientes com desconfiança mútua. Entretanto, as
organizações fundadas em influência recíproca, em de igualdade, sem hierarquização
rígida, dificilmente se podem constituir e manter em clima de desconfiança. Por fim, os
conflitos são mais danosos para as pessoas que desconfiam entre si. A contestação blica,
sem a qual a democracia não existe, implica considerável grau de confiança no adversário:
podem ser adversários, mas não inimigos implacáveis
241
. Como ressalta Richard Rose,
citado por Dahl,
um sentimento de confiança é constante na cultura política... No governo, a
confiança é importante entre companheiros e adversários partidários, pois assegura
a todos que o grupo que está no comando não se prevalecerá da ausência de
restrições constitucionais aos poderes do governo. Caso se prevalecesse, tal não
seria violação da lei, mas da confiança, e os líderes políticos valorizam sua
reputação de confiabilidade.
240
DAHL, R. A. Polyarchy. New Haven and London: Yale University Press, 1971. p. 149.
241
Idem, p. 151-152.
3.4.6 Costumes condicionantes: confiança, cooperação, participação
A confiança inspira a cooperação, animando o povo a engajar-se em ações
cooperativas – como revelam psicólogos sociais o que, muitas vezes, se evidencia
imprescindível na conquista e na manutenção de instituições democráticas. As crenças na
possibilidade e o anseio de cooperação são, como a confiança, muito variáveis, sendo
compreensível que a falta de capacidade de cooperar prejudique a viabilidade da
democracia. A cooperação e o conflito surgem não apenas entre indivíduos, mas também
entre grupos, facções, partidos, classes sociais ou unidades políticas.
Decorre da concepção democrática que a solução dos problemas sociais e nacionais
não pode ser obra exclusiva ou precípua de governantes e líderes carismáticos, mas
sinergicamente de todos, que são iguais em características humanas, cabendo a cada um
contribuir para aquelas soluções, participando de alguma forma nesse objetivo. Essa
convicção desenvolve o sentimento de salutar responsabilidade de cada pessoa com a
sociedade. Consoante apregoa Cezar Saldanha Souza Junior,
A constituição democrática só pode subsistir se, de um lado, por obra de seus
mecanismos internos e face à realidade viva e inevitável dos conflitos, for
tecnicamente adequada a promover a harmonia política, e, de outro, se as pessoas e
as coletividades que devem obrigar-se ao seu exercício assumirem os valores
mínimos sobre os quais aqueles mecanismos se alicerçam
242
.
Eis a síntese do consensus, condição imprescindível da realização da poliarquia.
Contando com as condições institucionais, é ainda necessário que as pessoas, convictas de
serem todas iguais por sua condição humana, o que as faz iguais em direitos e obrigações,
devam estar animadas a solucionar cooperativamente as divergências e problemas da
242
SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002 (b).
p. 11.
sociedade, excluindo as soluções de força ou do poder econômico, e admitindo a da
vontade da maioria.
Como afirmam sociólogos contemporâneos, para estabilidade e consolidação do
regime democrático faz-se mister, além das instituições políticas – sufrágio universal,
partidos políticos, parlamento eleito a existência de cultura política compatível com os
fundamentos do modelo institucional e com o regime. Almond e Vërba chamaram de
cultura cívica a essa cultura política nutriz psicosocial do governo democrático no ocidente,
cuja versão inicial surgiu na Inglaterra e nos Estados Unidos, apresentando, posteriormente,
outras versões nos Países Escandinavos, nos Países Baixos e na Suíça. Essa cultura vicejou
em dez a quinze países, naqueles a que Burdeau, em conhecida divisão, chamou de sociétés
apaisées, por oposição às sociétés conflictuelles
243
. Naquelas consenso relativo à ordem
social, pois os cidadãos, ou a maioria deles, se entendem iguais entre si, encaram as
divergências políticas como naturais, cuja solução incumbe à maioria, sempre respeitada a
ordem social. as tensões existentes não abalam a unidade, enquanto que as diferenças
sociais são decididas por meio da negociação, da conciliação ou do voto, ausentes partidos
políticos que questionem as instituições assentes ou sua legitimidade. O consenso político
relativo aos fundamentos da ordem política integra-se no consenso social, mais amplo,
que abrange a comunidade, e não se delineia como dado autônomo, embora as
Constituições da maioria desses países busquem salvaguardá-lo e fortalecê-lo como
pressuposto da democracia e para preservar o consenso social. Essa atitude decorre da
experiência histórica das sociedades apaisées, que viveram conflitos trágicos no seu
passado, como a guerra civil. O consenso político, construindo instituições eficientes e
recebidas como legítimas pela comunidade, hábeis para arbitrar os conflitos e regular as
disputas pelo poder, foram, paulatinamente, desarmando os espíritos, apagando os
ressentimentos e, assim, instaurando a paz e o consenso social. Burdeau oferece como
exemplos de sociedades apaisées os Países Escandinavos, a Inglaterra e os Estados Unidos,
nas quais as lutas políticas não são tão dramáticas ou violentas a ponto de abalar a unidade
espiritual do grupo.
243
apud SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002
(b). p. 80-81.
No reduzido grupo de sociedades apaisées, os Estados Unidos lograram ampliar
mais extensamente o consenso, que se estende além do âmbito político e social, indo
abranger, inclusive, o âmbito econômico com o sistema capitalista. Consoante assevera
Cezar Saldanha Souza Junior, apoiado em Manoel Gonçalves Ferreira Filho (A Democracia
Possível) e John H. Ferguson e Dean E. Mchenry (American Federal Government), “os
dois grandes partidos políticos americanos não se dividem em termos ideológicos.
Constituem máquinas de eleger Presidentes e seus objetivos não vão muito além do
clientelismo político e da distribuição de posições e de cargos públicos.”
244
Excluído o reduzido número desses países (pouco mais de uma dúzia), a grande
maioria das nações do planeta sobrevive sob o fogo cruzado de interesses contrapostos, na
insegurança de instituições encaradas das mais diversas formas por seus habitantes, cuja
legitimidade é, com freqüência, contestada, em detrimento constante da coesão social.
Nelas está ausente o sentimento da igualdade e do respeito entre as pessoas, que inspira o
respeito pelas opiniões divergentes, assim como a possibilidade de negociação e
conciliação, e ausente ainda apreço por instituições capazes de resolver pacificamente as
divergências. As causas mais óbvias dessa hostilidade ou desarmonia estão nas disparidades
das condições de vida e renda das pessoas, na diversidade e (ou) antagonismo das crenças
filosóficas ou religiosas, ou na presença de minorias radicais, étnicas ou confessionais
inassimiláveis. São as “sociedades conflituosas” da classificação de Burdeau, cuja
emergência ele não atribui apenas à míngua de desenvolvimento econômico e cultural, pois
entre elas situa também Bélgica, Itália e França.
A democracia é fruto opimo talvez o mais belo e autêntico da cultura ocidental
fecundada pela mensagem cristã. Ela vinga em convívio fraterno, entre pessoas que se
creiam iguais, com direitos e responsabilidades iguais, que se respeitem mutuamente, assim
como as opiniões contrárias e, em clima de humildade, admitindo que a própria crença ou
opinião pode não ser correta, exercitem o diálogo e a conciliação, sendo a vontade da
maioria a suprema instância. Daí a dificuldade para medrar em outras culturas, em que se
conviva com a desigualdade, o domínio e a violência.
244
apud SOUZA JUNIOR, C. S. Consenso e democracia constitucional. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2002
(b). p. 82.
Crenças maniqueístas, que simplifiquem obtusamente o conflito, como a eterna luta
entre o Bem e o Mal, em que cada um se como o Bem e seus adversários como o Mal,
deterioram as possibilidades de realização da democracia e de soluções democráticas, pois
são preconceituosas, além de incompatíveis com o espírito de cooperação.
Um dos mais inquietantes acontecimentos da atualidade, violador da ordem
estabelecida pelas instituições internacionais do ocidente, foi um país poderoso empreender
guerra preventiva a outro, para submetê-lo a seus desígnios, com desprezo do princípio da
autodeterminação dos povos, face externa do princípio democrático, não hesitando em
desencadear a destruição e o sacrifício de milhares de vidas, não de soldados, mas,
principalmente, de mulheres e crianças, sob o pretexto de desarmá-lo e levar a democracia
ao país atacado. O estupro não realiza o amor, nem o estupro institucional e cultural pode
promover a democracia.
O mais compatível com a democracia é encarar a competição e o conflito como
fatos naturais e normais nas relações sociais, e as pessoas e os grupos se disporem a dirimir
os dissensos cooperativamente por meio da negociação e do acordo, mas, se o acordo se
frustrar, buscar a solução apelando à arbitragem (eleições) da maioria. Um certo ceticismo,
exercido na postura de duvidar o ator político da correção e da adequação do seu interesse e
da sua proposta e de considerar a possibilidade de pertinência da proposta do adversário, -
modalidade de descrença na própria posição constitui o estado de espírito e as atitudes
mais compatíveis com o espírito democrático, pois aceitam a possibilidade de todos e de
cada um de acertar como também de errar, assim como a igualdade humana e jurídica dos
contendores, fundamento da democracia. Esse é um saudável ceticismo (com a própria
idéia e pretensão). Onde os conflitos não se dirimem nem pela cooperação, nem pela
arbitragem da maioria (eleições), a democracia desaparece e a autocracia desponta.
3.5 CONDIÇÕES ÉTICAS
Assim como Montesquieu encontrou princípios nas formas de governo de sua
classificação, tendo atribuído o princípio da virtude à república, - denominação que
concedeu ao governo com supremacia popular, - enquanto via na monarquia o princípio da
honra e no despotismo, o do temor, entendemos imprescindível à realidade e ao
funcionamento da poliarquia a virtude consistente na busca e atendimento constante e
inflexível, pelos atores políticos, do interesse da maioria, se inviável o consenso. Essa
disposição implica humildade, para jamais se crer o ator político mais sábio que a maioria
dos cidadãos, como também isenção e probidade, para jamais sobrepor o interesse próprio,
ou de minorias, ou de facções, econômicos ou de outra índole, ao interesse da maioria.
Portanto, humildade, isenção e probidade são virtudes exigidas pela prática da democracia,
que devem orientar as ações tanto de governantes como de governados, tanto de
legisladores como de eleitores. O abandono dessas virtudes nos costumes políticos leva à
disfunção e ao desvio da democracia, ensejando o predomínio de interesses minoritários e
de facções sobre o interesse da maioria, o que é fatal à democracia.
A humildade deve dominar o agir do vencido nas eleições, seja eleitor ou candidato,
para que aquiesça espontaneamente às decorrências do resultado eleitoral, reprimindo as
pulsões egolátricas. A isenção e a probidade também devem orientar a conduta do eleitor e
do eleito; do eleitor, para que não venda ou negocie seu voto em proveito do seu interesse
particular (bens materiais, emprego, financiamento, etc.), exercendo-o exclusivamente
como expressão do seu convencimento a respeito do bem da sociedade; do eleito, para que
não se desvie da vontade da maioria e não se corrompa agindo ou sufragando propostas em
prol de interesses de grupos minoritários ou econômicos, ou do seu interesse particular,
com detrimento do interesse público.
Não viola a ética democrática a defesa e promoção, pelo detentor de cargo
legislativo, de interesses de classe social, ou de atividade lícita, ou de profissão, desde que
não contrariem o bem público ou o interesse da maioria. É, aliás, inerente à democracia
representativa que os interesses de todos os segmentos da sociedade possam ser
representados.
Todavia, viola a ética democrática o agir político que se afasta do princípio da
representatividade, passando o representante ou o governo a representar a si mesmo e aos
seus interesses pessoais ou de grupo, relegados a vontade ou os interesses dos
representados, o que se generaliza quando o nível de participação do povo é precário. A
transgressão da ética é estimulada pela circunstância de que para muitas pessoas é
extremamente difícil, se não impossível, lograr seus objetivos sem desrespeitar os
mandamentos éticos.
3.5.1 O descaminho ético dos meios de comunicação para induzir no povo
falsa consciência
É freqüente a mídia ou o marketing propagarem propostas e defenderem medidas e
políticas proclamadas por determinados setores ou partidos políticos, sob a invocação do
bem comum ou do interesse nacional. Sob esse pretexto, preconizam-se providências que
não interessam nem beneficiam o povo ou a maioria, mas apenas grupos e interesses
minoritários, embora poderosos.
O direito à informação é um dos princípios fundamentais do processo democrático.
A igualdade política dos cidadãos constitui pressuposto da democracia, segundo o qual
todos têm direito de votar e ser votados. Decorre desse axioma que todos os cidadãos são
competentes em política. Sem embargo, essa competência da cidadania democrática
subordina-se à qualidade da informação, cuja deficiência ou tendenciosidade prejudicam
aquela competência. O direito à informação autêntica é indispensável à interação no espaço
público da vida republicana, onde se trava o debate de idéias e propostas e onde se formam
as opiniões. Esse direito, porém, é desafiado pelo fato de que no ordenamento capitalista os
meios de comunicação são explorados por empresas privadas voltadas para os interesses do
mercado. Portanto, o direito do cidadão à informação e a faina no espaço público da vida
republicana são condicionados pelos interesses privados dos meios de comunicação.
Em artigo na imprensa
245
, o historiador Décio Freitas lembrava que o escritor
tcheco-eslovaco Milan Kundera cunhara em um de seus romances o neologismo
imagologia, que traduz a criação de imagem agradável, apetecível ou sedutora para
mercadorias ou pessoas, com o objetivo de conquistar o público e o mercado, por meio dos
modernos recursos da publicidade e do marketing.
O que conta não é a realidade ou verdade, mas a ‘imagem’, à sua vez um ‘produto’.
O homem não é mais do que sua imagem. Seria erro crer que nossa imagem é
simples aparência, sob a qual se esconderia a verdadeira substância do nosso ‘eu’,
independentemente do olhar do mundo. Os imagólogos provam que o contrário é que
é verdadeiro: nosso ‘eu’ é simples aparência imperceptível, indescritível e confusa,
enquanto que a única realidade, fácil de perceber e descrever, é a nossa imagem aos
olhos dos outros. A imagologia é mais forte do que qualquer realidade, da qual, de
resto, perdemos o controle.
246
Essa concepção tem afinidade com o modo de olhar de Guy Debord
247
para a pós-
modernidade, segundo o qual, toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas
condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o
que era vivido diretamente tornou-se uma representação”, ou “o espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.
Na realidade, a televisão está mudando nossa forma de vida. A evolução do homo
sapiens culminou por transformá-lo em um animal leitor, capaz de realizar abstrações, cuja
compreensão (inteligência, intelligere) vai mais além de sua vista, e, na realidade, tem
pouca relação com o que . Mas o homo sapiens esem processo de ser deslocado pelo
homo videns, um animal fabricado pela televisão cuja mente não é conformada por
245
ZERO HORA, 16/12/2001.
246
Ibidem.
247
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997. p. 13-14.
conceitos, por elaborações mentais, mas por imagens. O homo videns somente‘vê’ e seu
horizonte está limitado pelas imagens que se projetam. Portanto, enquanto que o homo
sapiens tem direito de dizer, inocentemente, ‘já vejo’ em lugar de ‘já entendo’, o homo
videns sem ajuda do entendimento. Porque muito do que lhe é mostrado tem pouco
significado e, na melhor das hipóteses, quando tem importância, explica-se-lhe mal.
248
A
videopolítica influi profundamente nas eleições, como salienta Sartori, e nas decisões que
tomam os políticos
porque os políticos reagem cada vez com mais freqüência, não aos acontecimentos
mesmos, mas aos fatos que a televisão apresenta (ao que esta torna visível) e
inclusive a fatos iniciados (e em grande proporção propiciados) pelos meios de
comunicação. Certamente, a videopolítica muda o cidadão, porque o cidadão que
a política em imagens (videocidadão) é um protagonista totalmente novo dentro ou
fora do sistema político.
249
Não se pretende negar que a televisão também oferece vários aspectos positivos. É
útil para expor os males e as s ações ou a ausência de ações que seriam necessárias.
Merece aplausos quando mobiliza os telespectadores para que lutem por causas justas, ou
quando denuncia abusos ou a corrupção política. É elogiável por veicular informações
corretas e levá-las ao maior número de pessoas.
A televisão alcança a um público numeroso, mas suas imagens, a forma em que
apresenta as notícias, comunica a aparência da informação, não a sua essência, nem a
plenitude da informação, mas a parcialidade desta. A mais pessoas dá-se menos e mais
superficialmente, como ainda se veicula informação emocional por meio de imagens que
provocam compaixão ou repulsa, nem sempre com pertinência. Como notava Décio Freitas
no citado artigo jornalístico,
na atual vida política brasileira, chama-se o imagólogo de “marqueteiro” um
profissional especializado em transformar determinado candidato em “produtoa
ser “vendido” no “mercado” eleitoral. Sua função é fabricar uma imagem do
candidato que quadre às necessidades, aspirações e predileções dos consumidores
(eleitores). O que conta não são o passado, as idéias ou os interesses que o
candidato encarna, mas a imagem que dele se projeta. O imagólogo fabrica uma
contrafação para enganar os consumidores do mercado eleitoral.
248
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 164-165.
249
Idem, p. 165.
Transpõe-se para o processo eleitoral apanágio da democracia o que é inerente
ao regime capitalista de produzir bens para o mercado, cujos produtos são promovidos pela
publicidade e propaganda, esta, muitas vezes, artificiosa, para não dizer enganosa. Após as
eleições, os eleitores se surpreendem ao constatar que o eleito não era o candidato que
haviam elegido, ou que haviam elegido alguém inexistente. Daí que a decepção com os
eleitos tem sido uma constante, o que vem minando no povo a crença na democracia.
A sociedade projetada pela imagem, principalmente pela televisão, secundada pelo
rádio e pelo jornal, ganha realidade e gera expectativas e pulsões no imaginário da maioria
das pessoas, cujo mundo é formado por relações sociais mediadas pela seqüência dessas
projeções, com as mensagens subliminares que são veiculadas, ditadas pelos controladores
e negociadores da mídia na promoção de interesses econômicos e da propaganda.
A construção e a montagem dessas imagens serviu-se da ficção cinematográfica
através de um popularíssimo ator de vigoroso porte atlético, herói de aventuras em que
desempenhava o papel de super-homem salvador, derrotando o mal e os maus graças à
força descomunal de seus músculos, para fazê-lo candidato vitorioso ao governo de um
Estado norte-americano. Na promoção de tal candidatura estava explícita a sugestão de que
o ato de governar se exerceria na luta salvadora do Estado, cujo sucesso dependeria dos
dotes excepcionais de um super-homem utilizados contra os malfeitores, seus adversários.
Como notou o filósofo José Arthur Giannotti em artigo na imprensa, esse recurso de buscar
um ator fora do jogo partidário nega a política em dois planos, ao que nós ajuntamos que
nega também o jogo democrático e a própria democracia.
Em primeiro lugar, aumenta o grau de imprevisão do processo de governar, pois
um amador ascende a uma posição de mando sem preparo para decidir sobre
questões complexas e incapaz de escolher auxiliares dos quais não pode fazer uma
avaliação correta. Em segundo lugar, e esse me parece o lado mais perigoso, o ator,
transformado em der, termina impondo à política um viés autoritário, negando o
jogo entre aliados e adversários para dela fazer processo de concessão de
autoridade para ‘salvar’ o país
250
.
Por esse processo solerte encobre-se a realidade e induz-se o povo em erro,
fazendo-o crer que a política é uma luta ou uma guerra, que carece de herói, com as
qualidades de Hércules, para derrotar os adversários, identificados com o Mal. Essa ilusão
250
FOLHA DE SÃO PAULO, 26/10/2003, Caderno Mais!
escamoteia a percepção da realidade pelo povo, na qual o jogo político não pode ser
confundido com a simplificação maniqueísta de luta do Bem contra o Mal, que necessite de
heróis ou figuras carismáticas para vencer. Assim se promovem desígnios escusos, como
guerras preventivas, ou contrários aos interesses da maioria popular. Na disputa política
democrática, não batalha do Bem contra o Mal, simplificação primitiva e
preconceituosa, que ingênua ou maliciosamente nega ou oculta a realidade profundamente
humana de pessoas que sentem e querem coisas diversas. O que as separa é pensar de modo
diferente e ter propostas distintas para a solução dos problemas da sociedade. Essas
divergências são naturais e corriqueiras entre criaturas, que não são autômatos de artifício
engendrados para dar respostas uniformes a estímulos, mas pessoas que sentem e pensam
de modo diferente. Por isso o discrepante, o adversário deve ser legitimado e não encarado
como a personificação do mal. A prática da democracia é precisamente a maneira pacífica e
civilizada de convivência e solução de disputas entre pessoas com propostas diversas para
as questões do espaço público.
Foi a ilusão imagológica através da estetização da política no fascismo e no nazismo
estetização apontada por Walter Benjamin o que induziu em erro a opinião pública e
permitiu a receptividade desses regimes em vários setores e a ocultação, “sob o manto
diáfano da fantasia”, da violência despejada pelo totalitarismo. Todavia, em nossos dias, a
imagologia estetiza a política em mais larga escala para criar ou confundir a opinião
pública.
3.5.2 O elevado custo das eleições e as distorções do poder econômico
Sabida e desventuradamente, no mundo contemporâneo, uma campanha eleitoral
não se faz sem fundos pecuniários consideráveis. Para a arrecadação desses fundos é fácil
imaginar-se os compromissos assumidos pelos candidatos e, mesmo não assumidos
expressamente, as medidas adotadas pelos eleitos em pagamento das contribuições de
campanha e destinadas a favorecer aos doadores. São contraprestações feitas com recursos
públicos ou em detrimento do interesse popular, que podem configurar crime, além do
abandono da ética.
Como observou John Rawls com pertinência, as liberdades tuteladas pelo princípio
da participação igual são desmerecidas sempre que possuidores de maiores recursos
privados utilizam suas vantagens para controlar o curso do debate blico, pois tais
desigualdades, ao cabo, ensejarão que os mais aquinhoados exerçam influência maior sobre
a legislação e, com o tempo, tendam a determinar a decisão de questões sociais segundo
seus interesses
251
. Daí porque se impõe a adoção de medidas compensatórias com o
objetivo de preservar o valor eqüitativo para todas as liberdades políticas iguais. para
tanto, segundo Rawls, uma variedade de medidas, v.g., nas sociedades que admitem a
propriedade privada dos meios de produção, deve-se assegurar que a propriedade e a
riqueza sejam amplamente distribuídas e verbas públicas destinadas regularmente a
estimular a livre discussão política.
Mais relevante ainda é tornar os partidos políticos independentes dos interesses
econômicos privados, destinando-lhes suficientes recursos orçamentários para desempenhar
sua função constitucional. Sugere Rawls
252
, exemplificativamente, que as subvenções
partidárias se regulem por critério que considere o número de votos recebidos em diversas
eleições recentes ou algo semelhante. O que importa é que os partidos políticos sejam
independentes em relação aos interesses privados. Se a sociedade não arcar com os custos
da organização dos partidos e se for necessário levantar fundos para eles entre os setores
socioeconômicos mais favorecidos, as reivindicações desses grupos certamente receberão
atenção excessiva.
E a probabilidade de isso acontecer é ainda maior quando os membros menos
favorecidos da sociedade, após serem efetivamente impedidos de exercer seu grau
eqüitativo de influência devido à carência de bens, se fecham na apatia e no
ressentimento.
253
251
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 246.
252
Ibidem.
253
Idem, p. 246-247.
Afirma Rawls
254
que um dos principais defeitos do governo constitucional,
historicamente, tem sido sua incapacidade para assegurar o valor eqüitativo da liberdade
política, pois não adota as providências corretivas necessárias, as quais, na verdade, parece
que nunca foram consideradas seriamente, de modo que disparidades excessivas na
distribuição da propriedade e da riqueza, incompatíveis com a liberdade política, têm sido
toleradas pela lei, de modo que o poder político se acumula entre os mais abonados e se
torna desigual, enquanto estes utilizam o aparelho coercitivo do Estado e suas leis em
proveito de seus interesses minoritários e privilegiados. Dessa forma as desigualdades do
sistema socioeconômico podem aniquilar qualquer igualdade política que possa ter existido
em condições historicamente favoráveis. O sufrágio universal revela-se ineficaz contra essa
distorção, pois, quando os partidos políticos e as eleições são financiados por contribuições
privadas, e não por fundos públicos, o fórum político acaba condicionado pelos interesses
privados dominantes, que legislarão em seu benefício e afastarão as medidas básicas
necessárias para estabelecer uma norma constitucional justa.
255
São desvios éticos dos fins
da democracia, largamente difundidos no passado e no presente, com prejuízos para os
interesses das maiorias, ensejados pelas desigualdades de recursos econômicos dos
membros da comunidade.
Os descaminhos éticos e sua manifestação exacerbada nos escândalos de corrupção
envolvendo administradores e homens públicos refletem-se no imaginário popular,
equivocadamente, como graves defeitos originários do regime democrático, o que leva às
críticas e ao desencanto com a democracia. Na realidade, ocorre nessa visão um lapso na
atribuição de fatos ou de relacionamento de causa e efeito. O desencanto e a descrença
popular não decorrem da democracia em si, mas da fraude e corrupção que a deturpam.
254
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 247.
255
Ibidem.
3.5.3 A corrupção política é infensa apenas ao regime democrático, não
aos regimes despóticos ou autoritários
Como observou Renato Janine Ribeiro, é impossível comparar a corrupção nos
diferentes regimes políticos “pela singela razão de que só nas repúblicas ou democracias ela
se coloca como problema.”
256
É óbvio que se o poder se exerce nas monarquias absolutas e
nas ditaduras em proveito de interesses dos poderosos, que são minorias, pois esses regimes
o facultam, a corrupção reside no próprio exercício do poder, ou não é corrupção, caso se
entenda ser legítimo governar-se para atender aos interesses minoritários. Todavia, se o
poder se destina a servir à generalidade ou à maioria, como nas poliarquias, ele se corrompe
e se desvia de seu fim quando serve às minorias em detrimento do interesse do povo,
quando utiliza o que é de todos em proveito de poucos privilegiados. Portanto, quando se
diz que a corrupção degenera e envilece a política, isso ocorre em relação à política
democrática, pois, em outros contextos, obter vantagens patrimoniais com a política poderá
não ser considerado corrupção. Como lembra Sartori, a corrupção somente se converte em
corrupção quando os entes políticos atingem a etapa de diferenciação estrutural que faz
surgir nas palavras de Max Weber uma burocracia “legal-racional”. Em particular, a
corrupção existe como tal quando um serviço se converte em um “serviço público”, isto
é, prestado por funcionários eleitos e/ou funcionários públicos nomeados pelo Estado, o que
aos cidadãos o direito de recebê-lo gratuitamente.
257
Daí que carecem de razão os que
afirmam que África, Oriente Médio e Ásia sejam regiões de corrupção generalizada, o que
é inadequado a países cuja cultura considera que o cargo político constitui apêndice da
riqueza e da linhagem e onde se tenha por normal que a política sirva para angariar fortuna.
Entretanto, no Ocidente, que viveu o processo histórico que culminou com a
concepção da burocracia “legal-racional”, a corrupção que compromete e defrauda a
256
RIBEIRO, R. J. A sociedade contra o social. São Paulo: Companhia de Letras, 2000. p. 172.
257
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p.161-162.
democracia – é freqüente e vastamente praticada nos vários países, embora alguns, como os
nórdicos, tenham resistido a ela com maior sucesso. E o que é pior: tem ela aumentado nos
últimos tempos. Por quê?
3.5.4 O aumento da corrupção e suas causas
Giovanni Sartori aponta três razões para o crescimento da corrupção. A primeira é a
perda da ética e, em particular, a perda da ética do serviço público. Uma segunda
expressiva razão é que simplesmente demasiado dinheiro no meio. E a terceira, uma
razão relacionada com a segunda, é que o custo da política se tornou excessivo e, em larga
proporção, está fora de controle.
258
Assim, poucos anos, no Japão, o custo de uma cadeira do PLD foi, em média, de
mais de sete milhões de dólares. Nos Estados Unidos, o dispêndio da conquista de uma
cadeira no Senado, na Califórnia, subiu a dez milhões de dólares, enquanto que a média no
restante do país foi de quatro milhões de dólares; e a despesa bi-anual nas eleições para o
Congresso é, aproximadamente, de quinhentos milhões de dólares. Na Itália, avaliou-se que
o custo da eleição de l992 foi de mil e quinhentos bilhões de liras ou cerca de novecentos
milhões de dólares.
259
Essas fortunas, sem dúvida, constituem investimento para os
candidatos, cujo retorno em dividendos políticos e/ou monetários é por eles esperado, assim
como pelos doadores de fundos às suas campanhas. Nessas condições bastaria a igualdade
democrática para eleger um candidato pobre? É sabido que não. Ele necessita de um
financiador ou patrocinador. E reside a fonte da corrupção. O candidato abonado,
258
SARTORI, G. Ingeniería constitucional comparada - una investigación de estructuras, incentivos y
resultados. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. p. 162.
259
Idem, p.162-163.
também, muitas vezes, se socorre de financiador ou patrocinador, pois não deseja desfalcar
seu patrimônio pessoal ou familiar na competição política.
O financiamento público ou criação pelo Estado de um fundo destinado a custear as
campanhas eleitorais tem sido considerado um remédio anticorrupção, que sana alguns
males. Não obstante, não constitui uma panacéia, pois não evita que candidatos ou partidos
busquem no âmbito privado suplemento da quota que lhes foi destinada pela lei.
No passado, o inimigo maior da democracia e das liberdades foi o arbítrio e a
prepotência de uns poucos. Hoje, quando se reconhece no Ocidente o direito de todos à
liberdade e à igualdade, o dinheiro e a corrupção são as maiores ameaças à democracia.
Ameaças solertes que atuam na sombra, dissimuladas e subreptícias, e assim conduzem
algumas poliarquias.
A Associação Americana de Ciência Política criou recentemente uma força-tarefa
para avaliar a influência do fator econômico na poliarquia dos Estados Unidos. O relatório
dessa pesquisa, firmado por quinze intelectuais de conceituadas universidades norte-
americanas, apresenta conclusões desalentadoras, segundo as quais o grau de participação e
visibilidade na vida política do país depende cada vez mais do poder econômico. O
documento, sob o título “Democracia Americana numa Era de Crescente Desigualdade”,
afirma que “o progresso em direção à realização dos ideais da democracia norte-americana
pode ter estacionado e, em alguns temas, retrocedido”, além de apontar várias evidências do
efeito negativo da desigualdade social nas práticas democráticas, como o fato de que 90%
das famílias com renda anual acima de US$ 75.000 votam em eleições presidenciais, ao
passo que o percentual cai para 50% entre as famílias com renda anual abaixo de US$
15.000. Outra realidade revelada concerne a filiações a organizações políticas não-
governamentais. Enquanto a quantidade de trabalhadores sindicalizados caiu pela metade
desde os anos 1970, sendo de apenas 13,5% da força de trabalho na atualidade, os grupos
de interesse”, cuja maioria é sediada em Washington, se multiplicaram. Atualmente, quase
75% dos mais ricos têm alguma filiação a ONGs.; entre os mais pobres o índice é de 29%.
A idealizadora da força-tarefa, a cientista política da Universidade de Harvard,
Theda Skocpol, em entrevista para o jornal Folha de São Paulo
260
, afirmou que, na área da
participação política, nas várias últimas décadas, nas quais o dinheiro se tornou por demais
importante na política e para organizar a vida civil, a desigualdade de renda também
cresceu. Os muito ricos, capazes de doar grandes quantias de dinheiro, têm aumentado sua
influência no processo político e nos moldes do debate público. Portanto, parte do modo
como a crescente desigualdade econômica afeta a democracia é que a participação também
ficou mais desigual. Obviamente, sempre tem sido assim, mas isso está aumentando,
declarou. Aduziu que a segunda área importante é sobre o que o governo faz e deixa de
fazer. Asseverou que muitos indícios de que grupos de interesse, que são capazes de
gastar somas em lobby, podem modificar a legislação ou vetar decisões, impedindo o
governo de adotar medidas que pessoas ricas e empresários não desejam. Se a desigualdade
econômica nos Estados Unidos tem sido tão nociva à democracia, de que ela é capaz no
Brasil, que tem níveis de disparidade de renda dos mais elevados do mundo?
A Organização das Nações Unidas divulgou, em abril de 2004, estudo do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sob o título de “A Democracia na
América Latina”, que relata pesquisa na qual foram ouvidas 18.643 pessoas em 18 países
da região, entre os quais Brasil, México, Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Colômbia e
Paraguai. Para as questões propostas, 54,7% responderam que apoiariam um governo
autoritário que pudesse resolver os problemas econômicos; para 56,3% o desenvolvimento
econômico era mais importante do que a democracia; 43,9% acharam que a democracia não
resolvia os problemas de seus países. Nos países das pessoas pesquisadas as ditaduras não
mais subsistiam, tendo sido substituídas por instituições democráticas. A esperança de
conquistar prosperidade econômica, com liberdade política, pela trilha do “Consenso de
Washington”, esbarrava nas largas faixas de pobreza e desigualdade social, e se esfumava.
A promessa de desenvolvimento não se cumpriu e gerou frustração. O PIB per capita da
região era de US$ 3.739 em 1980 e, vinte anos depois, em 2000, atingia a US$ 3.952, o que
o levantamento do PNUD classificou de “avanço quase irrelevante”. O estudo refere
“melhorias relativas” no Brasil, Chile e México, mas considera insuficientes para barrar o
260
FOLHA DE SÃO PAULO, 26/06/2005, Caderno Mais!
crescimento da pobreza. Em 1990 a América Latina era habitada por 190 milhões de
miseráveis. Em 2001, quando a população atingia a 496 milhões de pessoas, 209 milhões
eram pobres. Em 2003, quase metade da população, isto é, 43,9%, sobrevivia abaixo da
linha da pobreza. Avançaram, ademais, os desníveis de renda. Em 1997, os 20% mais ricos
detinham 55% da renda produzida, enquanto os 20% mais pobres obtinham apenas 4,8%. O
estudo registrou ainda que nos últimos 15 anos “o desemprego e a informalidade
aumentaram significativamente”. Em 2002, o índice de desemprego na região foi de 9,2%,
um dos mais elevados, comparado com as demais regiões no mundo, que ainda se eleva ao
dobro se avaliada apenas a população jovem.
O estudo da ONU aponta quatro pontos que entende centrais: o exercício da
política, o papel do Estado, o modelo econômico e a globalização.
1) No que concerne ao primeiro item, afirma o estudo que uma crise
política na América Latina, que constitui perigo para a democracia, pois o
poder dos presidentes é apenas formal, não se traduzindo em eficácia na
ação de governar, ao mesmo tempo em que os eleitores não se sentem
representados pelos parlamentos. Entende que as instituições devem ser
revitalizadas. Do contrário, a aparente impotência da política aumentará o
enfraquecimento da democracia, “não só em sua capacidade de expansão,
mas também em sua sustentabilidade”.
2) Faz-se necessária uma nova estabilidade, pois uma crise de
estabilidade na América Latina. O Estado perdeu a hegemonia na tomada
de decisões, submetendo-se a pressões privadas. É freqüente a confusão
entre o interesse público e o privado. Urge fortalecer o Estado. Segundo a
ONU, “com Estados débeis, mínimos, se poderá aspirar à manutenção
de democracias meramente eleitorais”.
3) Impõe-se uma economia para a democracia: a sustentabilidade da
democracia depende da redução dos níveis de pobreza. A economia é
imprescindível para tanto. O pensamento único, a receita universal [...]
atenta contra o desenvolvimento da democracia e da própria economia”. É
possível distribuir renda sem desorganizar o mercado. As alternativas
econômicas devem ser debatidas. À máxima de que as questões técnicas
não são decididas pelo voto, os especialistas da ONU confutam com o
argumento de que “o bem-estar de uma sociedade não se decide em
laboratório de técnicos”.
4) Até agora enfatizaram-se apenas questões financeiras e comerciais.
Olvida-se o primordial: “Os poderes exteriores deixaram de ser
exteriores”. Passaram a condicionar e até a determinar as decisões dos
Estados em diversos setores, da segurança à saúde e educação. O poder
nacional “não pode se extinguir em nome de um incontrolável poder
global”.
Os autores do documento da ONU entrevistaram também 231 personalidades da
América Latina: políticos, empresários, religiosos, funcionários públicos e jornalistas, entre
esses, 41 presidentes ou ex-presidentes e vice-presidentes ou ex-vice-presidentes, entre
julho de 2002 e junho de 2003. Os subscritores do estudo sintetizaram três elementos que
constituem riscos à democracia, na opinião dos entrevistados. O primeiro foi o assédio dos
interesses privados ao Estado através dos lobbies, o qual também utiliza a “compra de
votos”, além de “fabricar” candidatos. Ocorrem, outrossim, pressões externas. Empresas
estrangeiras, instaladas nos países latino-americanos, pressionam demasiadamente as
políticas desses países.
Por fim, a pesquisa apurou que apenas 14% das pessoas confiavam em partidos
políticos; enquanto 96% dos entrevistados afirmavam que os governantes eleitos não
cumpriam as promessas de campanha; e 64,6% achavam que essas promessas decorriam de
“mentiras” contadas apenas para vencer eleições.
Ora, afigura-se-nos que sem o consenso positivo das maiorias nas instituições
democráticas, inexiste condição necessária de sua manutenção e correm elas grave perigo
de desaparecimento. Não se pode seguir suas práticas formais, como optar por propostas de
partidos e candidatos e votar em eleições, quando não se acredita que as propostas serão
honradas pelos eleitos e que as eleições terão conseqüências efetivas. Sem isso, seria
esperar que o povo se prestasse a encenar indefinidamente uma farsa.
O descrédito popular, em países marcados pela desigualdade social e econômica,
decorre também da circunstância de que as propostas políticas vencedoras obtêm sucesso
eleitoral porque contam com maiores recursos para controlar a mídia e patrocinar políticas
e candidatos, assim convencendo a maioria votante de que tais propostas e candidatos
buscam o bem comum, mas ocultando que atendem a interesses privados poderosos.
3.5.5 Fonte da corrupção no Brasil: insensibilidade e desprezo ao
sofrimento dos mais pobres
A corrupção não se resume no mero furto de um bem. Tem ela origem no instinto
primário de conservação e quando este não transite pelo filtro de uma consciência ética que
barre aquela pulsão; quando a pessoa busca um bem para si, mesmo sabendo que essa busca
pode causar um mal ou prejuízo a outrem. E quando muitos procedem da mesma maneira,
temos a corrupção generalizada.
Como nota Renato Janine Ribeiro, no Brasil, a insensibilidade ao sofrimento dos
mais pobres, sedimentada ao longo de cinco séculos tendo no passado se
institucionalizado a escravidão é o caldo de cultura para a corrupção. A escravidão não
fez mal aos negros. Entre outros males, ela contribuiu para embotar nossas consciências.
“O desdém pela pobreza nos torna uma sociedade viciada. Como valores éticos poderão
vicejar nesse terreno?”
261
Se não nos compadecemos na convivência com milhões de
criaturas que sobrevivem penosamente, vítimas de todas as privações, e com as milhares de
crianças exploradas em trabalhos insalubres e perigosos, quando não abandonadas às ruas,
relegadas à mais absoluta indignidade? Não obstante, nossa República ter como um de seus
261
FOLHA DE SÃO PAULO, 02/07/2005.
fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF)? O embotamento do senso
ético não é capaz de barrar os impulsos egocêntricos.
3.5.6 Necessidade de concretização do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana
Os movimentos de trabalhadores rurais m merecido críticas acerbas das
associações de classe dos proprietários rurais, de parlamentares e da imprensa por suas
invasões a glebas alheias. As censuras enfatizam o desrespeito ao direito de propriedade.
Todavia, vítimas na maior parte da penúria dos campos e do desemprego das cidades,
penúria aquela provocada pela concentração da propriedade agrária, constituem multidões
de maltrapilhos que, não possuindo propriedade, nem teto, nem alimento, vegetam na
intempérie, migrando constantemente na busca de algo para sobreviver. A injustiça social
lhes nega os direitos da cidadania. Carecem de assistência. Como lhes exigir o respeito à
propriedade alheia e a outros valores da sociedade afluente, nos quais não foram
socializados, sobrevivendo penosamente à míngua de pão e instrução? Como se pretender
que ajam com comedimento e dever de respeito ao alheio, se a sociedade lhes recusou o
mais elementar para sobreviver com a dignidade de pessoas? Se violentados pela miséria e
pela fome, atirados ao desabrigo das estradas, quê moral hipócrita poderá pretender que
respeitem o que pertence aos outros, aos abonados?
A industrialização da década de sessenta expulsou muitos braços da lavoura,
gerando um exército industrial de reserva e os denominados “bóias-frias”, produtos picos
de modalidade de exploração rural mecanizada. O Brasil é um dos países de maior
concentração da propriedade fundiária. Como escreveu o economista Ivônio Barros Nunes,
a concentração da propriedade significa centralização de poder, exclusão de muitos
do processo de administração da sociedade. O latifúndio é um sistema de poder.
Um latifúndio é sempre uma empresa autocrática, seja qual for o número de
pessoas que nele trabalhe, quer o dono more nela, por perto ou muito longe
(CIDA/OEA, 1966). Esse sistema fundiário criou-se como base de perpetuação de
um sistema de poder de clara exclusão social, antes os escravos, depois os
trabalhadores rurais, os sem-terra, os posseiros...
262
Nesse cenário, a força moral no combate desabrido à injustiça social poderá
arrostar a corrupção, cujo nascedouro reside na indiferença e no desprezo de muitos com
respeito à pobreza e à miséria, pois pobreza e miséria, hoje, não constituem fatalidades, mas
violência contra o ser humano e, portanto, violações dos direitos fundamentais. Entre esses
direitos, poderia ser relegado o mais elementar de todos, aquele, sem o qual, nenhuma
liberdade teria aplicação nem utilidade, isto é, o direito de sobreviver, de subsistir
materialmente, de não carecer de alimentação para o ser humano manter-se vivo? Se a
saúde, o trabalho e a moradia são direitos sociais, entre outros, segundo o artigo da
Constituição brasileira, não se poderá exigir do Estado ou da sociedade ação ou providência
a fim de que pessoa nenhuma pereça, por falta de alimento, como pré-condição para o
exercício de quaisquer direitos, garantias ou liberdades?
Hoje é pacífico que a tese de Malthus não subsiste ante o progresso científico e
tecnológico, que pode produzir alimentos suficientes para saciar a fome de todos os
famintos da humanidade. Na Índia, advogados e organizações populares lograram obter
junto à Corte Suprema do país o reconhecimento do direito à alimentação. Lá, quando
falta de alimentos, se o Estado os têm ou pode obtê-los, deve entregá-los à população. A
submissão à miséria com a insatisfação das necessidades elementares de sobrevivência,
além de violência perversa, constitui negação total da liberdade humana.
262
NUNES, I. B. O direito achado na rua. Brasília: UNB, 1990. p. 41-42.
3.5.7 Desenvolvimento da sociedade como expansão das liberdades
Se o desenvolvimento da sociedade pode ser concebido como um processo de
expansão das liberdades reais, como ensina Amartya Sen, implicação ética de realizá-lo
para que se efetive a liberdade com os demais direitos fundamentais, que correspondem a
todas as pessoas e constituem os fundamentos da democracia.
O desenvolvimento requer que se afastem as principais causas de privação da
liberdade, como pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e exclusão social,
negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva da repressão
estatal. Não obstante o aumento sem precedentes da opulência global, negam-se liberdades
elementares a um elevadíssimo número de pessoas, talvez à maioria da humanidade. Por
vezes a ausência de liberdades decorre da pobreza econômica que rouba das pessoas a
liberdade de saciar a fome, de ter nutrição suficiente ou medicamentos para doenças
curáveis, como rouba a oportunidade de abrigar-se ou ter um teto, de usufruir água tratada
ou saneamento básico. Assim também a privação de liberdade está presente na carência de
serviços públicos e assistência social, responsável pela ausência de combate a epidemias e
outras espécies de infortúnio e insegurança. Como ainda sacrificam a liberdade – a hipótese
mais focada, mas não a única – os déspotas que revogam as franquias políticas e implantam
regimes autoritários que obstam a participação na vida social, política e econômica da
comunidade.
263
Somente no regime democrático se concretiza o princípio da dignidade da
pessoa humana objetivo axiológico de qualquer ordenamento constitucional
contemporâneo pois recusar a quem quer que seja o direito de participar ativamente da
organização do porvir da comunidade a que pertença é relegar sua humanidade.
263
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 18.
4 DEMOCRACIA: VIDA E CULTURA
4.1 NECESSIDADE DE VIVER OS VALORES DEMOCRÁTICOS NA
VIDA SOCIAL E EM TODOS OS AMBIENTES, COMO NO LAR E NO
TRABALHO
A solidez e a perenidade da democracia somente são alcançadas pela absorção desse
valor pela cultura e sua vivência pelos cidadãos, em todos os ambientes, na vida diária. Na
família, no trabalho, no clube, na associação profissional, recreativa, beneficente ou
cultural, na escola, no sindicato, em todo relacionamento humano, se as pessoas se
encararem e interagirem como iguais, isto é, com direitos e obrigações iguais, igualmente
livres e responsáveis, buscando com lealdade o melhor para as coletividades respectivas,
então se terá plantado a democracia no solo pátrio, com as maiores e melhores chances de
vingar e frutificar. Se o homem pode subsistir e se realizar em sociedade, e possui, a par
dos instintos de conservação do ego, aquilo que os clássicos antigos chamavam de amizade
política ou filia e hoje se conhece por solidariedade, o sentimento ético nela baseado
revela-se imprescindível para que os impulsos individuais não disseminem a corrupção,
mas a democracia, que constitui a solidariedade institucionalizada. É preciso que cada um
renuncie a impor seus desígnios ao outro, que não consinta que seu proveito implique
algum prejuízo para quem quer que seja.
Como se constata, é mister que o viver democrático primeiro seja introjetado e
assimilado na alma de todas as pessoas e a democracia vivida em todas as esferas, no
relacionamento interpessoal, como um valor, para depois se propagar e difundir, indo
alcançar o governo da sociedade e na última etapa de desenvolvimento o governo das
nações, o governo da humanidade inteira. Como valor do relacionamento humano, não
pode a democracia ser concebida a meias, isto é, que possa existir em algumas áreas das
relações humanas e em outras não, assim como uma pessoa não pode ser meio virtuosa ou
meio honesta. qualquer concessão a valor contrário compromete e nega o valor que se
busca e pretende. Assim, nega a democracia como valor o chefe de Estado que diz defendê-
la para seu povo, mas invade com seu exército outro país e o submete aos desígnios de
grupo ou grupos econômicos com que se identifica.
No surto progressivo do valor democrático há dois territórios que devem ser focados
como alvos prioritários de conquista das próximas campanhas: a família e o trabalho.
Penetrando nesses domínios, a democracia ganhará forças para se elevar a áreas mais
amplas. O derradeiro baluarte a ser conquistado será o relacionamento internacional, o
convívio das nações.
4.1.1 Valor e cultura democrática nas relações familiares
Na família, se ambos os sexos são iguais em direitos e obrigações, e, portanto, têm
ambos igual direito à liberdade, são inconcebíveis o patriarcalismo e o autoritarismo de
outrora, assim como a submissão da mulher. Portanto, não se justifica que um dê e o outro
receba ordens. A convivência terá que se arranjar pelo consenso, o que se logra com o
concurso diligente, leal e generoso de ambas as vontades. No que respeita aos filhos e sua
educação, também deve ser banido o autoritarismo, tendo em vista os direitos reconhecidos
à infância e à juventude, o que implica a exclusão dos castigos sicos. A função dos pais
consiste na proteção, assistência e no ensino aos filhos, por meio da palavra e do exemplo.
A pedagogia do exemplo é a mais fecunda.
Carole Pateman
264
e os teoristas feministas em geral notam uma continuidade
relevante entre o pensamento patriarcal e o liberal. Sustentam eles “que os ‘separados’
mundos liberais da vida privada e pública são atualmente relacionados, conectados pela
estrutura patriarcal”.
265
O mundo público da democracia liberal pressupõe a primazia dos
homens e esta é, a seu turno, predicada tacitamente para a estrutura familial patriarcal, na
qual as mulheres exercem a maior parte das tarefas domésticas, assim liberando os homens
para seus ativos papéis públicos. A igualdade jurídica dos gêneros hoje reconhecida, porém,
não comporta a limitação dos papéis sociais de mulher exclusivamente à esfera privada. A
democracia como valor conjuga igualdade e liberdade de todos os seres humanos e opera
não só no governo da sociedade, mas onde houver interação social.
Os problemas de hoje não podem ser solucionados com a visão dos liberais do
século XIX, para quem a democracia se realizava simplesmente com a participação do povo
nas eleições, elegendo e autorizando governos. A eleição de governos é apenas uma das
várias manifestações do viver democrático.
4.1.1.1 Necessidade de participação geral para a realização da democracia
Hoje, a realidade exige participação, participação de todos nas causas comuns, as
causas que afetam a todos na comunidade. Essa mobilização não pode compactuar com a
exclusão de legiões de pessoas marginalizadas por causas socioeconômicas. Se todos são
iguais, com igual direito à liberdade, todos, sem exceção, devem militar em prol do que é
vital para cada um. Se a causa concerne a todos, não pode ser encargo de alguns, enquanto
vários ou muitos permaneçam indiferentes. A democracia é a única maneira de governar
264
PATEMAN, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
265
Idem, p. 132.
que considera a todos com igualdade na medida em que concede a cada pessoa igual poder
de influir nas decisões coletivas que atingirão sua existência. Ela implica descentralização e
dispersão do poder político para estendê-lo em partes iguais a todos os cidadãos. Somente
na democracia todas as pessoas são consideradas como sujeitos, nunca como objetos, pois
no regime democrático cada indivíduo é dignificado como cidadão livre para participar,
em igualdade com os demais concidadãos, das decisões que concernem à comunidade. A
participação de todos assegura a defesa dos interesses, se não de todos, pelo menos da
maioria. Se o poder, na democracia, se desconcentra e dispersa para residir em cada
cidadão, é necessária a reunião e a participação da coletividade de cidadãos para que se
alcancem seus fins.
Se a atividade do homem primitivo se resumia em captar na natureza o alimento e o
abrigo de que necessitava para subsistir, a evolução da humanidade revelou a insuficiência
da natureza para satisfazer as necessidades humanas. Foi preciso que o homem atuasse
sobre ela, modificando-a, para atender a novas necessidades. Essa intervenção do homem
sobre o mundo para obter bens a aplacar suas necessidades constitui o que se chamou
trabalho. O modo de trabalho evoluiu, por etapas, com as sociedades, denotando
progressiva valoração ética do trabalhador. Da consideração escravista do homem-coisa”
passou a concelebrante de negócio jurídico que impõe subordinação ao prestador, e desta
fase está evoluindo para o exercício de atividade cooperativa ou participativa, conquista da
evolução democrática dos dias de hoje.
4.1.1.2 O valor e a cultura democrática no trabalho
A organização da empresa com base na propriedade dos meios de produção e a
demanda de mão-de-obra para pôr em funcionamento a engrenagem produtiva de bens e
serviços engendrou a hierarquia na empresa, pela qual o empresário e/ou seus prepostos
comandam a organização e os trabalhadores são subordinados, cumprindo a estes obedecer
às ordens emanadas daqueles. Essa organização aliena do trabalhador o produto do seu
trabalho, transferindo-o à propriedade exclusiva do empresário, assegurando àquele apenas
uma remuneração convencionada. Do ponto de vista pessoal, esse processo gera sentimento
de frustração e impotência no trabalhador, vendo-se este apenas como peça da engrenagem
produtiva, pois cria riqueza da qual não participa, a não ser com sua quota de salário, além
de sofrer a concorrência, em muitas atividades, dos inventos e robôs, que o expulsam do
emprego. A dependência social, econômica e jurídica do trabalhador, ao lado da
impessoalidade da organização produtiva, principalmente nas grandes empresas, mas
também nas pequenas dirigidas autoritariamente, provoca sensação de insatisfação que
gera, por sua vez, hostilidade e ansiada necessidade de emancipação. Daí observar-se que
os conflitos constituem fator constante em todo e qualquer estabelecimento empresarial. Na
realidade, porém, os conflitos são inerentes à própria convivência humana. Talvez, nas
relações de trabalho eles se manifestem mais intensamente, por obra dos interesses
contrapostos que fazem a luta de classes, e com mais persistência por força da natureza
continuada da relação de emprego. O inconformismo do trabalhador impele-o a reivindicar
maior participação no processo produtivo, que o ordenamento limita a moderadas elevações
salariais na maior parte das vezes.
Alguns cientistas sociais vêem a função desempenhada pela luta de classes na
reforma social como um mal necessário. Contrariamente, como sustentam Bachrach e
Botwinick, quando a luta política, iniciada e mobilizada pelos que se situam nos níveis
inferiores da sociedade, é conduzida com observância das normas democráticas, essa luta
deve ser vista sob luz positiva, como inestimável energizante do sistema e como contra-
força ao poder do dinheiro e status. A luta da classe trabalhadora assim deveria ser
encorajada como um meio de revitalizar a nossa falha política democrática (dos norte-
americanos, a quem se referem os autores, mas que pode ser reportada a outros povos) pelo
realinhamento dos partidos políticos ao largo das linhas de classe expandindo a participação
dos cidadãos e a consciência pública das decorrências do interesse nacional.
266
266
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. X, Preface.
A participação dos trabalhadores, manifestada na luta reivindicatória de maior poder
na empresa, conduzida com respeito aos direitos de todos, consistente na busca pacífica de
realização de ideais, assemelhar-se-ia à competição política entre os diversos grupos e
partidos no encalço do poder político numa democracia, o que constitui a luta como
expressão da vida humana e, portanto, luta saudável e edificante. Exemplo maior dessa
espécie de luta nos legou Mahatma Gandhi.
4.1.1.3 A necessidade e fecundidade do processo participativo para a
realização da democracia
O objetivo da democracia participativa é, portanto, não apenas democratizar o local
de trabalho em si mesmo, mas fazer o local de trabalho emergir como alavanca para realizar
mais igualitária redistribuição de poder, de modo a levar a uma maior democratização de
todo o processo político.
267
As pessoas das camadas sociais inferiores dificilmente têm condições de adquirir
educação política nas instituições socioeconômicas privadas e suas instituições políticas. A
fim de adquirir consciência de seus interesses, o povo, na atualidade, precisa envolver-se no
processo político. Se esse processo estimula a participação democrática, ele se
essencialmente educativo. Por meio do aprendizado em comunicar-se, refletir, dialogar e
agir em conjunto com outros, os participantes adquirem a capacidade de tornar-se seguros e
realistamente cônscios de quais sejam seus interesses políticos.
268
267
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 12.
268
Idem, p. 11.
Constitui relevante evidência empírica que a participação política alimenta e eleva a
identidade do grupo. Aguçando a consciência do eu individual, ela pode também engendrar
a transformação do sentimento de impotência em sentimento de poder. Os movimentos
pelos direitos civis e pelos direitos das mulheres (nos Estados Unidos) demonstraram a
notável capacidade do movimento de massas para fomentar diálogo contínuo e luta e
remoldar a massa amorfa e passiva em um grupo coeso altamente articulado, de atores
politicamente conscientes, como lembram Bachrach e Botwinick. Esses movimentos
também demonstraram como, no curso da luta, os seus membros aprofundaram a
compreensão das conseqüências. O movimento pelos direitos civis, por exemplo, que
inicialmente se voltou contra a segregação dos negros nos ônibus e nos restaurantes, logo se
ampliou para abranger a luta dos negros contra o problema da pobreza da classe social. As
mulheres, que começaram com a reivindicação de tratamento igual no mundo dos homens,
mudaram em seguida para contestar os valores desse mundo. Em ambos os grupos a
participação levou a uma nova consciência do eu: no início, os participantes se integraram
nos respectivos movimentos, o que os fez sentir, após, um capitoso senso de poder.
269
Os trabalhadores que assumiram a luta pela democracia no local de trabalho podem
experimentar um comparável alargamento como resultado da participação política. Como
ganham experiência no processo democrático, eles adquirem uma avaliação da democracia
no contexto de suas próprias vidas. Tomando parte no processo democrático, como os
negros e as mulheres antes deles, podem os trabalhadores também adquirir suficiente senso
de eficácia política para incentivá-los a integrar-se ativamente na política local e
nacional.
270
269
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 30.
270
Idem, p. 30-31.
4.2 VISÃO MARXISTA E VISÃO DEMOCRÁTICA DA LUTA DE
CLASSES
Para o marxista clássico, o objetivo maior da luta de classes é a destruição do
Estado burguês, o que é visto como pré-condição para o estabelecimento do socialismo. O
socialismo, a seu turno, é considerado como a pré-condição para a emancipação de todos os
membros da sociedade, incluída a classe trabalhadora. Para o democrata, a expansão da
democracia, baseada na extensão aos trabalhadores dos direitos participativos e, portanto,
na redistribuição de poder em proveito das classes subordinadas, é o objetivo da luta de
classes na atualidade. Cada passo dado para a realização desse objetivo é um fim em si
mesmo e uma base para promover o avanço da democracia. Nessa luta o objetivo não é
destruir o Estado burguês, mas transformá-lo, pela pressão política de massa, de hostil em
força de apoio para a maior democratização da sociedade.
271
Impressionam as proporções da tamanha e injusta concentração de riqueza e difusão
da pobreza existentes no Brasil, séculos, e séculos verberados, sem remédio. Como
conformar essas desproporções a níveis civilizados, sem a consciência, o concurso e a
participação dos maiores interessados? Em nome de quê princípio ético se poderia privar a
estes de lutar para corrigir esse mal que os degrada e infelicita, e de participar em
campanhas e políticas destinadas a debelá-lo?
271
BACHRACH, P. & BOTWINICK, A. Power and empowerment – a radical theory of participatory
democracy. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 153.
4.3 EXTRAPOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE PELO
CAPITALISMO: ORIGEM DA DESIGUALDADE
Robert A. Dahl no que ele chama de capitalismo das sociedades anônimas um
dos principais males sociais da sociedade norte-americana. Para ele, a propriedade e o
controle de empresas afeta de duas maneiras, estreitamente relacionadas, mas muito
diferentes, a desigualdade política. Em primeiro lugar, contribuem para a criação de
grandes diferenças entre os cidadãos no tocante à riqueza, renda, status, qualificações,
informações, controle sobre informações e propaganda, acesso a líderes políticos e, de
modo geral, oportunidades previsíveis na vida não só para adultos como também para filhos
ainda em gestação, recém-nascidos e crianças. Depois de feitas todas as devidas ressalvas,
diferenças como essas contribuem, por sua vez, afirma ele, para gerar importantes
desigualdades entre os cidadãos em sua capacidade e oportunidade de participar, como
políticos de iguais condições, do governo do Estado.
Em segundo lugar, para Dahl, e ainda mais óbvio, com raríssimas exceções, a gestão
interna das unidades econômicas é inteiramente antidemocrática tanto de jure quanto de
facto. Na verdade, a igualdade política autêntica foi rejeitada pelos americanos como
princípio correto de autoridade dentro de empresas. Por isso mesmo, a propriedade e
controle de empresas criam enormes desigualdades entre os cidadãos na sua capacidade e
oportunidades de participar da administração de unidades econômicas.
272
Desde o passado, teóricos políticos têm ordinariamente presumido que o conflito
entre democracia e direitos de propriedade poderia ocorrer apenas se a propriedade fosse
desigualmente distribuída; quanto maior a desigualdade, supostamente maior a
possibilidade de conflito. Entende Dahl que se poderia denominar a este de o clássico
problema republicano de distribuição de poder e propriedade, o qual poderia ser entendido
272
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. p. 50.
de duas maneiras: a democracia pode ser considerada como um perigo aos direitos de
propriedade ou estes podem ser tidos como um perigo à democracia. Para a primeira
opinião, o relevante é defender os direitos de propriedade e o perigo está na igualdade
política: se os cidadãos são politicamente iguais, mas desiguais economicamente, os menos
abonados se aliarão contra os mais abonados e o processo democrático lhes proporcionará
meios de obstruir os direitos de propriedade dos privilegiados. A maioria pobre poderia
servir-se de sua igualdade no Estado para se apropriar da propriedade da minoria rica.
A segunda opinião, contrariamente, sustenta que o perigo vem do outro lado.
Recursos econômicos, em grande parte, podem se converter em recursos políticos. Se os
cidadãos são desiguais em recursos econômicos, provavelmente o serão também em
recursos políticos e será inviável lograr a igualdade política. Em caso extremo, a minoria
abastada empolgará recursos políticos maiores que os dos demais cidadãos, o que lhes
facultará controlar o Estado, dominar a maioria dos cidadãos e esvaziar inteiramente o
processo democrático.
A única solução para essa tirania, capaz de resguardar o governo republicano, seria
encontrar alguma maneira de distribuir os recursos econômicos mais ou menos
uniformemente, o bastante para obstar grandes quantidades de ricos e pobres. Poder-se-ia
denominar a esta segundo Dahl de a clássica solução republicana, a que foi adotada por
teóricos políticos simpáticos ao governo popular, de Aristóteles a Rousseau.
Para Locke, que via o direito de adquirir mais restritivamente, a pessoa não deveria
tomar mais do que pudesse usar, devendo deixar “o suficiente e igualmente bom” para os
demais (Two Treatises of Government). Para ele, o direito à propriedade encontrava sua
justificação no trabalho, de modo que somente os que trabalhassem para produzir bens e
serviços, os operários e empregados, teriam direito de possuir os bens e serviços produzidos
pela empresa, além de rejeitar o direito de alguém possuir terra ou cobrar arrendamento por
ela. Admitia que os que laborassem para melhorá-la, fariam jus, no máximo, aos frutos do
seu trabalho.
Como lembra Dahl, essas idéias clássicas sobre distribuição da propriedade foram
admitidas por ambos os lados nos primeiros debates na América sobre propriedade versus
democracia. Ambas as posições, todavia, vislumbravam o mal vindo da direção oposta. Se
a luta de classes estava na consciência dos atores políticos, - aduzimos nós - era, na
verdade, reflexo da realidade. Assim, na Convenção de Massachusetts, em 1820-1821, o
ministro Story, nos primórdios de sua extensa carreira, salientou o clássico problema
republicano afirmando que o sufrágio universal não poderia existir por muito tempo em
uma comunidade onde fosse grande a disparidade de propriedade. Nessa hipótese, os
detentores da propriedade seriam compelidos a restringir de alguma maneira o direito de
voto ou esse direito, sem muita tardança, dividiria a propriedade. Aduziu Story que, em
consonância com a natureza das coisas, os que não possuem propriedades e vêem seus
vizinhos possuírem mais do que pensam que eles necessitam, não podem ser favoráveis a
leis elaboradas para a proteção da propriedade.
273
Ambos os lados, todavia, inclinavam-se
em concordar que a melhor solução seria a mais ampla difusão de recursos econômicos, o
que nos Estados Unidos da época significava propriedade. E essa ampla difusão da
propriedade, de fato, ocorreu naquela época, entre os homens brancos americanos, período
em que as condições no país propiciavam a solução republicana clássica, mais ou menos a
mesma época em que Tocqueville visitou os Estados Unidos e o descreveu depois em A
Democracia na América. Aclamava-se a ideologia da democracia agrária que desfraldava o
sonho – sonho da época em que as maiores riquezas provinham da terra – de uma república
de fazendeiros, os quais usufruiriam larga distribuição eqüitativa de terras, conseqüência de
causas que Tocqueville qualificava de acidentais”. Entretanto, essas condições, que
entusiasmaram a Tocqueville, eram raríssimas na história e poucos países as tiveram.
Segundo Dahl, a boa sorte americana acabou quando aquela ordem econômica, que
produzira um justo grau de igualdade entre os cidadãos brancos adultos, sem muito
planejamento, regulamentação ou decisões coletivas deliberadas, foi ultrapassada pela nova
ordem revolucionária do capitalismo das pessoas jurídicas. Como força externa não sujeita
à regulamentação, o capitalismo das sociedades anônimas geraria automaticamente
desigualdades na distribuição da propriedade, assim como em outros recursos sociais e
econômicos.
274
Os afortunados da nova prosperidade, no afã de racionalizar sua benfazeja e
273
PETERSON, M. D. Democracy, liberty, and property: the state constitutional conventions of the 1820’s.
apud DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.p. 61.
274
DAHL, R. A. op. cit. p. 63.
suspeita cornucópia, não relutaram em falsear e dissimular a realidade alterando idéias
fundamentais da ideologia democrática para legitimar a nova ordem econômica, o que John
M. Blum classificou como “uma das mais estranhas inversões na história do pensamento
político”. “O homem tornou-se o homem econômico, a democracia foi identificada com
capitalismo, a liberdade com a propriedade e seu uso, a igualdade com oportunidade de
ganho, e progresso com mudança econômica e acumulação de capital”.
275
Surpreende o sucesso incomum que tiveram os “novos conservadores radicais”
como os chama Dahl em transferir para a propriedade da pessoa jurídica a justificação
ideológica da propriedade privada, que fora o credo da ideologia antiga dos republicanos
democráticos agrários. Assim a legitimidade da propriedade privada, que se arraigara na
ideologia mais antiga e na consciência americana, se deslocou para a nova ordem
econômica. A transferência foi tão perfeita que a propriedade das pessoas jurídicas
enfrentou nos Estados Unidos segundo Dahl menos contestação, talvez, do que em
qualquer outro país do mundo e certamente menos do que em qualquer país europeu. A
Suprema Corte também contribuiu para esse processo de transferência ideológica ao
conceder às sociedades por ações imunidades constitucionais contra a regulamentação
estadual e federal.
Foi assim que um mecanismo econômico, que regularmente produzia desigualdade
na distribuição de recursos econômicos e políticos, granjeou a sagração dos incontestados,
ao menos em parte, envergando as vestes de uma ideologia vetusta, que legitimava a
propriedade privada fundada em que a ampla difusão dela robusteceria a igualdade política.
Em decorrência, os americanos quase não se questionaram se uma alternativa ao
capitalismo de pessoas jurídicas não poderia ser mais compatível com seus compromissos
com a democracia.
276
Não seria inútil meditar-se sobre como a perfídia escamoteia o interesse
paramentando-o do manto da austeridade por meio da importação do passado de ética
própria de uma realidade social e econômica incompatível com a realidade presente. O
capitalismo amoldado às sociedades anônimas persegue rendimentos incomensuráveis, que
275
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p.64.
276
Idem, p. 64 - 65.
em poucos países, como nos Estados Unidos, por força da concentração da propriedade,
revertem para uma escassa minoria de investidores,
277
gerando desigualdade econômica
extremada, que Jefferson jamais consideraria lícita a um povo com aspirações
democráticas.
Nas exatas dimensões em que foi concebido, o direito de propriedade seria o direito
de domínio exclusivo sobre coisas. Sua destinação, tutelada pelo ordenamento jurídico,
buscou proteger a liberdade econômica e a identidade cultural e afetiva de pessoas e
famílias. Excluída essa finalidade, descabe cogitar-se de “função social da propriedade.
Todavia, quando se dilata largamente, o direito de propriedade não se limita à incidência
exclusiva sobre coisas, como concebido, mas se constitui em exercício de poder sobre
outros homens, hierarquizando-os e sujeitando-os, o que possibilita sua manipulação em
contrariedade à dignidade da pessoa humana. Por essas razões, a propriedade privada não
pode ser confundida com o poder de controle empresarial nem lhe deve servir de
fundamento, o que também se diz da propriedade rural que exceda o âmbito de subsistência
econômica do lavrador e sua família.
278
Ao se confundir a concepção de propriedade-fruição com propriedade-poder
deturpou-se o conceito originário do direito de propriedade concernente à tutela da
dignidade humana e – como afirmou Fábio K. Comparato – “erigir esse composto equívoco
à categoria de direito fundamental significa garantir constitucionalmente a exploração do
homem pelo homem”.
279
Essa extrapolação deformadora do direito de propriedade está nas
origens da subordinação do trabalhador na relação de emprego, nas maiores e mais
escandalosas disparidades de rendas e na desigualdade dos membros da sociedade.
Nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o nosso, a concepção
vigente do direito de propriedade propicia que o crescimento da riqueza global, do produto
nacional, não afaste, mas, pelo contrário, amplie os desequilíbrios internos e a
desigualdade. A propriedade das sociedades por ações, nos países desenvolvidos, enseja a
uma minoria de maiores acionistas de grandes corporações e seus administradores acumular
277
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 87.
278
COMPARATO, F. K. Para viver a democracia. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 80.
279
Idem, p. 46.
riquezas e poder capazes de decidir sobre governos e políticas, inclusive políticas
internacionais e até sobre a guerra a outros países, assim como o controle da opinião
pública por meio da manipulação da mídia e até a formação de vontades de maiorias. Tem-
se aí a fraude manifesta à democracia.
Para John K. Galbraith, com os olhos postos nos Estados Unidos, o capitalismo
moderno é caracterizado pela subordinação do Estado aos interesses da grande empresa e
da alta finança.
O papel dominante do setor privado no setor público é uma evidência. Seria melhor
afirmar isso claramente.(...) A intrusão do setor nitidamente privado no setor
público se generalizou. Dotados de plenos poderes na grande empresa moderna, é
natural que os executivos estendam esse papel para a política e para o Estado.
280
Como ainda,
À medida que o interesse da empresa se transforma em poder sobre o que era o
setor público, ele atende, como seria de prever, ao interesse da própria empresa.
Esse é o seu objetivo. Isso é mais relevante e evidente no mais amplo desses
movimentos, das empresas nominalmente privadas para dentro do establishment
militar, o Pentágono. É daí que vem a principal influência sobre o orçamento de
defesa. Isso também acontece e muito mais que perifericamente na política
externa, nos acordos militares e, de uns tempos para cá, na própria ação militar. A
guerra. Embora seja esse um uso normal e esperado do dinheiro e de seu poder, a
verdadeira extensão dos efeitos fica dissimulada em quase todas as formas
convencionais de manifestação.
281
Entendemos pertinente a definição de espaço blico adotada por John Dewey
282
em termos do grau de impacto que uma decisão exerce sobre a sociedade. Para Dewey, uma
organização ou instituição é uma entidade pública se suas decisões têm impacto
significativo sobre um largo mero de pessoas na sociedade. Não resta dúvida de que as
grandes empresas, as sociedades anônimas, causam ou podem causar esse impacto na
sociedade por meio de suas decisões, sendo notório que inspiram ou provocam a adoção de
medidas e políticas governamentais. Repele aos valores da democracia que uma
organização, cujas decisões ou não-decisões causem impacto considerável sobre ampla
quantidade de pessoas na sociedade, possa tomar essas decisões e/ou não-decisões
orientada exclusivamente pelos interesses privados de minorias dirigentes e acionistas.
280
GALBRAITH, J. K. A economia das fraudes inocentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
281
Idem, p. 73-74.
282
DEWEY, J. The public and its problems. Chicago: Swallow Press, 1954.
.
4.4 DEMOCRACIA NA EMPRESA: AUTOGESTÃO
Também não se coaduna com os valores democráticos a ordem econômica em que a
empresa, que produz para a satisfação de necessidades sociais, seja dirigida por uma ou
poucas pessoas que buscam exclusivamente o lucro, enquanto os empregados muitas
vezes, centenas ou milhares, nas maiores empresas são meros subordinados, com direito
apenas ao salário pela atividade que prestam, sem direito de eleger a diretoria nem de
participar dos ganhos ou dos destinos da organização, privilégio reservado apenas aos
maiores acionistas e administradores, que auferem a propriedade da riqueza gerada.
Se a concepção democrática reconhece a todos os cidadãos o direito de eleger os
governos, representantes e políticas do país, por quê não reconhecer direitos semelhantes
aos cidadãos trabalhadores na gestão das empresas? Se pretendemos alcançar a igualdade
política, a consumação do processo democrático e o resguardo dos direitos políticos
primários, nossa ordem econômica deve contribuir para realizá-los ou, ao menos, não
entorpecê-los. Se porfiamos em fazer democrática a ordem política no escopo de realizar
a justiça por quê não fazer democrática também a ordem econômica? O sistema social é
contraditório se a ordem política democrática abriga ordem econômica oligárquica, se a
ordem política é justa e a ordem econômica profundamente injusta.
O instituto da co-gestão representa um passo significativo no sentido da democracia
econômica e da democracia da empresa. A experiência européia evidencia dois modelos
dessa espécie. No primeiro, os trabalhadores da empresa elegem um representante, à
semelhança da democracia parlamentar, para integrar o órgão de direção da empresa. No
segundo modelo, constituem-se órgãos de representação dos trabalhadores junto aos órgãos
de administração existentes na empresa.
283
Não obstante, avanço democrático maior e decisivo obtém-se com um sistema de
empresas econômicas coletivamente possuídas e democraticamente geridas por todas as
pessoas que para elas trabalham: cooperativas de trabalhadores, autogestão ou democracia
industrial, que Dahl prefere denominar empresas autogeridas.
284
Como tais empresas são
democráticas nos limites estabelecidos por controles políticos democráticos externos e
pelos mercados, as pessoas que nelas trabalhassem poderiam ser chamados de cidadãos da
empresa. Estes ou seus representantes, gerentes ou diretores eleitos, fixariam os salários e
decidiriam como seria alocada a renda excedente, as importâncias a serem reservadas para
reinvestimento e para ser distribuída entre os cidadãos da empresa e o princípio que
nortearia a distribuição.
Afiguram-se-nos consideráveis as vantagens das empresas autogeridas em relação
às sociedades anônimas de propriedade de acionistas e administradas por diretorias eleitas
pelos maiores acionistas, como também em relação às empresas estatais hierarquicamente
administradas. A realidade contemporânea desmente a ilusão, talvez perfidamente
difundida, de que a sociedade por ações promoveria a democratização do capital pela sua
extensão ao maior número de possuidores, pois ele se concentrou ou seu controle nas
mãos de poucos. Mais relevante, como nota Dahl, seria a contribuição que as empresas
autogeridas poderiam dar para os valores da justiça e da democracia.
A autogestão das empresas inspirou muitos sonhos em seus pregoeiros. Disse-se que
criaria algo como uma “democracia participativa” e que alteraria o caráter e a conduta
humana por meio da participação, estimulando o desenvolvimento pessoal e fazendo as
pessoas mais cooperativas e generosas, ensejando a instauração de uma comunidade
solidária fundada no trabalho, com o desaparecimento do individualismo e do auto-
interesse e a geração de cidadãos com elevado espírito público.
283
SILVA, A. A. Co-gestão no estabelecimento e na empresa. São Paulo: LTr. Editora Ltda, 1991.
284
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 79.
São, ahoje, apenas sonhos que nutriram a imaginação utópica. Preferimos, com
algum ceticismo, cortar as asas a tantos devaneios, sem deixar de vislumbrar no horizonte
alguns vestígios de um promissor amanhã. Experiências de autogestão em algumas
empresas nos Estados Unidos e Europa alternaram resultados maus e razoáveis. Entretanto,
deve-se ponderar que essas experiências são poucas e o prazo bastante reduzido, com
operários com formação concluída na sociedade que se pretendia alterar, circunstâncias
inadequadas para que se possa formular um juízo seguro. Mudanças de caráter e
personalidade dos trabalhadores somente se poderiam esperar ao cabo de várias gerações.
Não obstante, é-nos lícito prever que a empresa autogerida reduzirá sensivelmente o
antagonismo e a conflituosidade existentes entre empregadores e empregados, circunstância
que inspiraria a estes interesses na prosperidade da empresa, pois atos nocivos a esta seriam
danosos a todos. Ademais, sendo mais numerosos e situando-se mais próximos dos
cidadãos comuns do que proprietários e gerentes, os trabalhadores gozariam de maior
identificação e representatividade junto aos consumidores e cidadãos, de modo que eles
padeceriam as conseqüências prejudiciais de suas decisões, e não os gerentes.
Embora não se pudesse afiançar que um sistema de empresas em regime de
autogestão originasse uma ordem igualitária auto-regulável, pois diferenças internas na
mesma empresa e entre as diversas empresas, em recursos pessoais, forçosamente
existiriam, a regulamentação e a redistribuição seriam bem mais viáveis do que no sistema
de capitalismo de sociedades por ações, pois a distribuição inicial gerada pelas empresas
seria bastante menos desigual, o que tornaria esse sistema muito mais compatível com a
solução republicana clássica de ampla difusão dos recursos econômicos entre os cidadãos
do que o capitalismo das sociedades anônimas.
Ademais, a completa e igual cidadania nas empresas reduziria ao mínimo as
relações adversas e conflitivas nos locais de trabalho, o que teria reflexo na sociedade e na
política em geral. Acresce que a ordenação capitalista das sociedades anônimas impõe aos
administradores a obrigação de atender prioritariamente aos acionistas-proprietários e
secundariamente aos interesses dos empregados, enquanto que no sistema de empresas
autogeridas, pelo contrário, os interesses prioritariamente atendidos seriam os dos
empregados, que elegeriam direta ou indiretamente os administradores.
Como é sabido, nos fins do século XIX, na Grã-Bretanha e Estados Unidos,
disseminou-se a crença entre operários e empregados, preconizada por reformadores
sociais, de que as cooperativas poderiam solucionar a questão social, o que provocou a
criação de grande número dessas sociedades por produtores. Desafortunadamente, tiveram
curta duração. As lideranças sindicais, talvez equivocadamente, depreenderam dessa
experiência de cooperativismo que as lutas sindicais e as negociações coletivas de trabalho
teriam melhores condições de proporcionar maiores ganhos aos trabalhadores do que as
cooperativas. Por obra dessa convicção, na Europa e nos Estados Unidos, as organizações
trabalhistas e socialistas descartaram a criação de cooperativas de produtores como objetivo
principal, em curto prazo, de sua luta. A maioria dos autores que versaram aquele episódio
avaliou tendenciosamente a mudança de objetivo, tendo apregoado que a empresa gerida
por trabalhadores era idéia utópica que fracassara, carecendo de importância para a
economia moderna.
285
Mais recentemente, todavia, algumas circunstâncias animam a uma reformulação
daquela avaliação, como as conseqüências danosas do capitalismo de sociedades anônimas,
o fracasso do comunismo e alguns sucessos surpreendentes, como as cooperativas de
fabricantes de madeira compensada nos Estados Unidos e o complexo Mondragon, na
Espanha, como ainda a experiência da autogestão na Iugoslávia e a análise econômica
formal, evidenciando que uma economia de mercado dominada pelo trabalho atenderia
teoricamente aos requisitos da eficiência, como demonstrou Jaroslav Vanek em General
Theory of Labor-Managed Market Economies.
286
O sistema de autogestão na Iugoslávia foi uma experiência nacional única.
Introduzido em 1950, após o rompimento com a URSS em 1948, o sistema passou a
funcionar de fato em 1953, com novas normas e reformas econômicas. O Estado deixou de
ser o proprietário formal dos meios de produção, os quais se tornaram “propriedades
sociais”, ao passo que os trabalhadores de cada empresa se constituíram, na realidade,
curadores da parcela dessa propriedade, socialmente possuída. Essa norma foi incorporada
à Constituição de 1993. Não sendo proprietários do patrimônio da empresa, mas curadores
285
COMMONS, J. R. et al. History of labor in the United States. apud DAHL, R. A. Um prefácio à
democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.p. 106.
286
VANEK, J. General theory of labor-managed market economies. apud DAHL, R. A. op. cit. p. 106.
em nome da sociedade, os trabalhadores não poderiam aliená-lo. A estrutura legal e as
formas de organização das unidades autogeridas passaram por um processo quase contínuo
de mudanças, o que dificulta sua avaliação. Cada indústria era administrada por um
conselho de trabalhadores, eleito por todos os empregados por meio de unidades eleitorais
nas empresas maiores. Por lei, todas as empresas com mais de sete trabalhadores deveriam
ter um conselho, mas nas empresas com menos de 30 trabalhadores todos eles compunham
o conselho. Nas maiores empresas a composição do conselho poderia variar de 15 a 120
membros, mas a média era de 20 a 22. Além dos conselhos de trabalhadores e das unidades
econômicas, os trabalhadores também podiam participar do processo decisório através de
reuniões com todos os integrantes da empresa, por meio de referendos sobre questões
importantes
287
.
Os membros do conselho tinham mandato de dois anos; entretanto, podiam ser
destituídos por votação de seu eleitorado. Reuniam-se mensalmente. Os conselhos de
trabalhadores possuíam subcomitês para tratar de determinadas questões; a partir de 1957
tornou-se obrigatória sua criação para atender à disciplina interna, bem como a contratações
e demissões. Os membros dos subcomitês não precisavam ser membros do conselho. Este
elegia o órgão executivo, isto é, a diretoria, a qual, em geral, porém, nem sempre, era
composta por seus próprios membros. A diretoria possuía de 3 a 17 membros, eleitos pelo
período de um ano. Se um membro fosse reeleito, tornava-se inelegível pelos dois anos
consecutivos. A diretoria poderia reunir-se várias vezes por semana, tendo, entre suas
funções importantes, a supervisão do trabalho do diretor, assegurando o cumprimento dos
planos da empresa e a elaboração do plano anual. Desde 1964 o diretor era eleito pelo
conselho dos trabalhadores, com mandato limitado a quatro anos.
288
O sistema iugoslavo constituiu um paradoxo: economia singularmente
descentralizada, que logrou o mais elevado nível de controle democrático no interior das
empresas, foi organizada e funcionou em Estado não-democrático, constituindo o inverso
das atuais poliarquias, que possuem governos democráticos no Estado, mas não na gestão
das empresas.
287
PATEMAN, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 120-121.
288
Idem, p. 121.
Parece inegável, atualmente, sob outro enfoque, que as perdas sofridas pelos
trabalhadores com a quebra de sua empregadora são comumente mais amplas do que
aquelas em que incorrem os investidores, pois é mais acessível e menos oneroso, no que
respeita aos problemas humanos, ao investidor prudente, ingressar e afastar-se do mercado
mobiliário, do que um trabalhador entrar e sair de uma empresa ou do mercado de trabalho.
Alguns casos, como os ocorridos na Chrysler Corporation e na Rath Packing Company,
evidenciam que os trabalhadores se dispõem a consideráveis sacrifícios em salários e
vantagens, em prazos limitados, com o objetivo de evitar a falência da sua empregadora.
Maiores estímulos teriam para preservar a empresa se fossem seus donos, o que ocorreu
com a Mondragon, consórcio de mais de 80 cooperativas de trabalhadores, na Espanha. Na
fase de expansão da economia espanhola, esse complexo de cooperativas cresceu a taxas
surpreendentes. Quando sobreveio conjuntura recessiva, os trabalhadores dispuseram-se a
realizar sacrifícios para preservar sua fonte de sobrevivência, tendo decidido contribuir com
mais capital, sem cortar os salários.
289
Exemplos como esses autorizam a esperança de que
um sistema de empresas autogeridas majoraria o empenho para aperfeiçoar o capital
humano, e não o contrário.
Acresce que várias tentativas fracassadas de autogestão evidenciaram que o
insucesso se deveu não a deficiências inerentes ao sistema, mas a deficiências sanáveis,
como ausência de crédito, ou de capital, ou de capacidade administrativa dos gestores. As
cooperativas de produtores, no passado, ademais, foram em geral organizadas em
circunstâncias adversas, quando buscavam os trabalhadores, em meio à crise, salvar
empresas falidas assumindo seu comando, muitas vezes em conjunturas recessivas, em
condições nas quais excepcionalmente poderiam ter êxito. Sem embargo, é aceitável o
argumento de Dahl, para quem a autogestão no trabalho não precisa ser justificada
inteiramente por suas conseqüências, porquanto, como no Estado, justifica-se como questão
de direito.
E da mesma maneira que as imperfeições do processo democrático no governo do
Estado não justificam que se abandone a democracia em favor da tutela, assim nas
empresas tampouco justificariam que aceitássemos melhor a tutela na gestão das
unidades econômicas.
290
289
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. p. 101-102; e
THE ECONOMIST, 31 de outubro de 1981, p. 84.
290
DAHL, R. A. op. cit. p. 124.
O crescimento da igualdade e a redução da disparidade em recursos econômicos dos
cidadãos, entre outras repercussões benéficas na sociedade, reduziriam enormemente a
necessidade do uso corrupto do dinheiro na política. Uma economia de empresas auto-
administradas, além de mais eqüitativa, facilitaria a difusão da renda e da riqueza,
constituindo passo decisivo para maior igualdade política, justiça distributiva e liberdade.
Como afirmou Dahl:
um sistema de empresas autogeridas, claro, não eliminaria interesses, metas,
perspectivas e ideologias conflitantes entre os cidadãos. Mas tenderia a reduzir os
conflitos de interesses, daria a todos os cidadãos um interesse mais
aproximadamente igual na manutenção da igualdade política e das instituições
democráticas no governo do Estado e facilitaria o desenvolvimento de um consenso
mais forte sobre padrões de justiça.
291
4.5 “PAZ PERPÉTUA” (KANT): INTERNACIONALIZAÇÃO DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS. CIDADANIA UNIVERSAL
Como pensou Tocqueville, a democracia é basicamente uma forma secularizada de
cristianismo, cuja realidade, vivência e difusão por todo planeta é imprescindível para que
se assegure a paz. O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem constituem o
fundamento das Constituições democráticas da atualidade. Como escreveu Bobbio:
a paz, por sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva
proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Ao
mesmo tempo, o processo de democratização do sistema internacional, que é o
caminho obrigatório para a busca do ideal da “paz perpétua”, no sentido kantiano
da expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e
da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado. Direitos do homem,
democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico:
291
DAHL, R. A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. p. 91.
sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não democracia; sem
democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos
conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os
súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos
fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como
alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
Estado, mas do mundo.
292
Concebida a democracia inicialmente como direito de primeira geração, o titular do
direito respectivo, era o indivíduo, o cidadão. Todavia, hoje, para a conquista da paz
perpétua visualizada por Kant, impõe-se transcender a natureza legitimadora do indivíduo,
do grupo ou do povo, para situar a democracia como direito de quarta geração, como direito
da humanidade, fazendo-a variar de titularidade axiológica, trasladando-a do cidadão para o
gênero humano
293
. Como exclamou São Paulo ao profligar o nacionalismo tradicional dos
judeus: Não judeu nem grego, não há escravo nem livre, não homem nem mulher;
pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gálatas, 3, 28).
292
BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 1.
293
BONAVIDES, P. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2003
(b). p. 59.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta já longa exposição entendemos que se possam extrair as seguintes conclusões:
1. uma incontestável igualdade natural entre os homens decorrente de
pertencerem todos a uma mesma espécie, ímpar e inconfundível, sem embargo das
diferenças individuais de sexo, de raça, de atributos físicos e intelectuais, de condição
econômica e social, de profissão, de crença filosófica ou religiosa.
2. A espécie humana é a mais evoluída das formas de vida que existiram e existem
no planeta, tendo o desenvolvimento de seu sistema nervoso e mental logrado a consciência
e o pensamento, faculdades que possibilitam a seus membros atuar sobre a natureza e
transformá-la, criando cultura, o que nenhuma outra espécie viva logrou.
3. Essa realidade singular e a circunstância daí decorrente de que o agir humano não
é determinado exclusivamente pelo instinto de conservação e sobrevivência cometem à
pessoa humana adotar uma ética pertinente e compatível com a dignidade espiritual maior
do mais evoluído ser vivo, para que adapte o seu agir a esse nível e, assim, modele o seu
direito com as linhas dessa dignidade, de modo a afastar a violência, a opressão, a
dominação e a autocracia.
4. Essa ética e esse direito encontram sua conformação na democracia, que não é
apenas forma de governo pela vontade da maioria, mas também forma de vida em
sociedade, em que as pessoas se consideram iguais na dignidade de seres humanos, valor
maior que não pode ser postergado por preconceitos de raça, de sexo, de condição social,
econômica, ou de crença filosófica ou religiosa.
5. A democracia para existir necessita de condições institucionais,
socioeconômicas, psicológicas, psicossociais e éticas. Estas condições são as bases sobre as
quais a democracia se edifica e desenvolve.
6. A democracia pressupõe um valor a igualdade dos membros do gênero humano
que não deve servir apenas à concepção dos governos controlados pelas maiorias, mas
que, como valor, gera solidariedade entre os iguais e se revela o mais apropriado para
orientar todas as relações sociais, no lar, no trabalho e em todos os espaços da sociedade,
como também para resolver todas as divergências e disputas. A introjeção do hábito
democrático nas pessoas e sua vivência em todas as interações constituirão a maior garantia
da estabilidade e perenidade da democracia.
7. Esse valor entre múltiplas negações foi negado, no passado, ao instituir-se a
escravidão. A negação persiste no Brasil, sedimentada no curso de cinco séculos, na
insensibilidade com o sofrimento dos mais pobres, que sofrem toda sorte de carências e
constituem parte considerável de nossa sociedade. Essa insensibilidade com o sofrimento
dos iguais na essência, mas desiguais na situação social e econômica, contrária ao
sentimento natural de solidariedade, embota a consciência ética e é responsável pela
corrupção generalizada.
8. O desenvolvimento e a democracia constituem um processo único, pois ambos
consistem em expansão das liberdades para que se eliminem as principais causas de
privações e de carências, que não são as tiranias, como também a miséria e a pobreza
que privam as pessoas de saciar a fome, de ter nutrição suficiente e abrigo, de ter
saneamento e tratamento médico contra doenças curáveis e de ter educação, com real
prejuízo da igualdade de oportunidades.
9. O direito de propriedade se concebeu como direito de domínio exclusivo sobre
coisas. Destinou-se, com a proteção do ordenamento jurídico, a tutelar a liberdade
econômica e a identidade cultural e afetiva de pessoas e famílias. Sem essa destinação,
inexiste função social da propriedade. Deturpa e corrompe esse direito utilizá-lo para
dominar e subordinar pessoas, acumular grandes extensões de terra como reserva de
patrimônio, migrá-lo para o controle de sociedades anônimas a fim de gerar riqueza
extraordinária para poucos, ou lograr recursos políticos para privilegiar interesses privados.
10. O progresso tecnológico substitui, progressivamente, profissões, formas de
trabalho e mão de obra humana por máquinas, reduzindo empregos e subtraindo meios de
sobrevivência de milhões de pessoas, o que sugere a necessidade de se instituir novas
formas de organizações produtivas em que a hierarquia derivada de uma concepção
distorcida de propriedade, responsável por gerar desigualdade, seja substituída pela
cooperação sinérgica da autogestão.
11. As sociedades humanas são naturalmente conflitivas, enquanto que a solução
dos problemas comuns demanda a participação de todos. Essa participação, que envolve as
vítimas da desigualdade, na busca de maior redistribuição de poder em proveito dos pobres
ou subordinados, converte-se em luta de classes quando os detentores de maior poder
resistem em redistribuí-lo. Se essa luta é inafastável e necessária para que a democracia
avance, a rudeza e a brutalidade da luta podem ser relegadas pela ética especificamente
humana que instaure a disputa com respeito aos direitos fundamentais de todos os
contendores, do mesmo modo como competem partidos políticos e candidatos a cargos
eletivos nas democracias.
12. A participação pacífica em mobilizações coletivas visando redistribuição de
poder e maior igualdade fortalece a identidade do grupo, alimenta o diálogo contínuo,
aumenta a consciência comum e aprofunda a compreensão das conseqüências, afastando o
sentimento negativo de impotência, o que enriquece a experiência do processo democrático
e enseja aos participantes avaliações da democracia no contexto de suas vidas.
13. As guerras no mundo contemporâneo são conseqüência da subordinação do
Estado aos interesses da grande empresa e da alta finança, como também dos conflitos
étnicos. Para bani-las impõe-se que a propagação do espírito democrático em todas as
esferas conquiste a democratização do sistema internacional por meio do reconhecimento e
proteção dos direitos do homem acima de cada Estado, pois sem eles não existe
democracia, e haverá paz estável, que não tenha a guerra como alternativa, quando os
cidadãos não forem apenas deste ou daquele Estado, mas cidadãos do mundo e a
democracia reconhecida como direito da humanidade. Não foi outro o legado cristão.
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ZERO HORA, 16/12/2001.
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