Download PDF
ads:
Bruno de Andrade Rodrigues
Estudo Descritivo dos Usos do
Clítico lhe na Variedade formal
do Português
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Linguagem
Rio de Janeiro
Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Bruno de Andrade Rodrigues
Estudo Descritivo dos Usos do Clítico lhe
na Variedade formal do Português
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Orientadora: Eneida do Rego Monteiro Bomfim
Rio de Janeiro
Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
ads:
Bruno de Andrade Rodrigues
Estudo Descritivo dos Usos do Clítico lhe na
variedade formal do Português
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre pelo programa de Pós-graduação em Letras do
Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
__________________________________________________
Profa. Eneida do Rego Monteiro Bomfim
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
______________________________________________
Prof. Ricardo Borges Alencar
Departamento de Letras – PUC-Rio
______________________________________________
Prof. José Carlos Santos de Azeredo
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
______________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências
Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, ________ de ____________de ________
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da
universidade.
Bruno de Andrade Rodrigues
Graduou-se em Letras no Centro Universitário da Cidade, em 2004,
onde foi monitor de Língua Portuguesa. Desenvolveu trabalhos nas
áreas de Sintaxe e de Teoria Lexical, tendo apresentado trabalhos
na área de Português L2 em congressos. Interessa-se por diversas
áreas da ciência lingüística; especialmente, pelas áreas de Sintaxe,
Morfologia e Semântica, no domínio da gramática; e pela área de
Sociolingüística.
Ficha Catalográfica
CDD: 400
Rodrigues, Bruno de Andrade
Estudo descritivo dos usos do clítico lhe na variedade formal do
português / Bruno de Andrade ; orientadora: Eneida do Rego Monteiro
Bomfim. – 2007.
190 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras)–
Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Letras
Funcion
alismo. 6. Pronome. 7. Cliticização. 8. Objeto indireto. 9.
Gramática. I. Bomfim, Eneida do Rego Monteiro. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III.
Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Jesus Cristo pela minha vida.
Aos meus pais amados
pelas lições de humildade,
respeito e perseverança.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Agradecimentos
À professora Eneida do Rego Monteiro Bomfim
pela preciosa e dedicada orientação.
A todos os professores que contribuíram para a minha
formação acadêmica.
Ao professor e amigo Ricardo Borges Alencar pelo incentivo
e inestimável ajuda.
À Chiquinha pela solicitude e apoio durante todo o curso.
Aos meus pais e irmão pela confiança e apoio nos momentos
de desalento.
À minha amada madrinha Dely, pela confiança e carinho.
Aos amigos Pedro, Joelcio, Fátima, Aline e Larissa que me
ajudaram a avivar meu espírito.
Aos amigos Daniel e Antônia pelos inúmeros acessos à
Internet.
Ao CNPQ pela concessão da bolsa.
Ao meu amado padrinho Manoel Augusto (in memorian)
pela orientação espiritual constante.
Muito obrigado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Resumo
Rodrigues, Bruno de Andrade; Bomfim, Eneida do Rego Monteiro.
Estudo Descritivo dos Usos do Clítico Lhe na Variedade Formal do
Português. Rio de Janeiro, 2007. 190p. Dissertação de Mestrado
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Este trabalho visou à descrição do comportamento sintático-discursivo
do pronome clítico lhe na variedade formal da modalidade escrita do
português. Preocupada com a investigação das propriedades sintáticas e
semânticas da atualização do lhe, a análise assentou-se na devida separação
entre os planos semântico e formal, os quais foram associados para efeito de
determinação das funções sintático-discursivas desse pronome. A pesquisa,
de cunho funcionalista, foi empreendida sob o pressuposto de que o
chamado objeto indireto, variedade de dativo e função tipicamente exercida
pelo pronome lhe, constitui uma função sintática heterogênea e não bem
definida que recobre indevidamente, na gramática tradicional, outros usos de
dativo. Assim, concluiu-se que o pronome lhe cumpre outras funções
sintático-discursivas não contempladas na tradição e nos estudos mais
recentes, que não podem ser reunidas sob o rótulo de objeto indireto.
Palavras-chave
Sintaxe; Discurso; Valências; Funcionalismo; Pronome; Cliticização
Objeto indireto; Gramática; Semântica; Dativos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Abstract
Rodrigues, Bruno de Andrade; Bomfim, Eneida do Rego Monteiro.
Estudy Descritive of the Uses of Clitic Lhe in Formal Variety
Portuguese. Rio de Janeiro, 2007. 190p. Dissertation Departamento de
Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work aimed the description of the syntactic-discursive behavior of
the clitic pronoun lhe in the formal variety of the written Portuguese
modality. Concerned with the investigation of the semantic and syntactic
properties of the lhe utilization, the analysis focus on the very separation
between the semantic and formal plans, which have been associated in order
to determine the syntactic-discursive functions of this pronoun. Our research,
of a functionalist basis, was done after the presupposition that the so called
indirect object, variety of dative and function typically performed by the lhe
pronoun, constitute a heterogeneous and not well defined syntactic function
that covers unduly, in the traditional grammar, other dative uses. Therefore,
we concluded that the lhe pronoun has got other syntactic-discursive
functions pondered neither by the grammar tradition nor by the more recent
studies, that can not be assembled under the same label of indirect object.
Keywords
Syntax; Discourse; Grammar; Functionalism; Pronoun; Function; Dative
Semantics; Indirect object; Valency.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Sumário
1. Introdução …………………………………………........ 10
1.2. - Metodologia ………………………………………….. 19
2. O Funcionalismo: fundamentação teórico
metodológica ................................................................... 24
2.1. – O modelo funcionalista de Michael A.K. Halliday .. 29
2.1.1. O conceito de função
2.2. – O modelo funcionalista Simon Dik ......................... 38
3. A Gramática de valências ............................................ 42
3.1. O conceito de valência
3.2. Alguns tipos de actantes ........................................... 48
4. O objeto indireto na tradição gramatical ....................... 49
4.1. Soares Barbosa
4.2. Maximino Maciel ........................................................ 50
4.3. Said Ali ....................................................................... 51
4.4. Joaquim Mattoso Câmara Jr. ..................................... 54
4.5. Carlos Henrique da Rocha Lima ................................ 56
4.6. Adriano da Gama Kury ............................................... 61
4.7. Celso Cunha ............................................................... 62
4.8. Evanildo Bechara ........................................................ 66
4.9. Conclusão ................................................................... 69
5. O caso dativo ................................................................. 74
5.1. Os dativos livres .......................................................... 78
5.1.1. O dativo de posse .................................................... 80
5.1.2. O dativo commodi et incommodi (ou de interesse)... 82
5.1.3. O dativo ético ............................................................ 87
5.1.4. Considerações finais ................................................. 88
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
6. Análise do comportamento sintático-discursivo
do pronome lhe ................................................................. 89
6.1.- Os corpora ................................................................ 91
6.2. - O verbo suporte e a expressão cristalizada ............ 92
6.3. - Análise dos corpora ............................................... 111
6.3.1 Verbos que se constroem tradicionalmente com o
chamado objeto indireto
6.3.2. Outras considerações ........................................... 121
6.4. – Verbos que se constroem com objeto indireto
cujo núcleo é um substantivo [ - animado] ...................... 131
6.5. – Os dativos livres .................................................... 135
6.5.1. O chamado dativo de posse
6.5.2. O chamado dativo de interesse .............................142
6.5.3. Os casos dos verbos aparecer e marcar ...............154
6.6. – Verbos que selecionam complemento introduzido
por preposição diferente de a e cliticizável em lhe ..........157
6.7.- O emprego de lhe em construções várias ...............160
6.7.1. Construções formadas por verbo + SP
6.7.1.2 Uma nota histórica .............................................. 164
6.8.- Construções formadas por verbo ser + adjetivo ......168
6.8.1. Construções com verbo semanticamente
esvaziado ........................................................................ 170
6.8.2. Os exemplos de lhe como substituto anafórico
de substantivo [ - animado] na literatura lingüística ........ 179
6.9. – Uma nota final: registro histórico ........................... 181
7. Conclusão .................................................................... 183
8. Bibliografia .................................................................... 189
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
1
Introdução
Este trabalho visa à descrição dos usos do pronome clítico “lhe” na
variedade formal escrita do português, à luz da teoria de valências, esposada nas
obras Gramática de Valências (1986), de Winfried Busse e Mário Vilela,
Gramática de Valências: teoria e aplicação (1992), de Vilela e Gramática da
Língua Portuguesa (2001), de Vilela e Ingedore Villaça Koch. Intentamos levar a
efeito um estudo cujo objetivo precípuo é corroborar a hipótese da
multifuncionalidade do “lhe” e determinar suas funções sintático-discursivas
1
funções que não foram contempladas pelos estudos gramaticais tradicionais.
A pertinência da gramática de valências à nossa pesquisa repousa na
assunção de que o verbo é, por excelência, o elemento central da frase,
responsável, pois, por determinar sintática e semanticamente a estrutura dessa
construção. Em outras palavras, o verbo é a unidade lingüística que não
determina o número de lugares vazios ou de argumentos, como também determina
as propriedades semânticas e morfossintáticas que devem apresentar esses
argumentos.
Com ser uma teoria que leva em conta a semântica, discriminando os níveis
formal e significativo, não os confundindo na análise (prática trivial na tradição
gramatical), a gramática de valências permite-nos sustentar a idéia de que se deve
distinguir, na descrição lingüística, entre o plano formal e o plano semântico, para,
posteriormente, associá-los, com vistas à realização de uma descrição que seja o
mais clara e coerente possível.
É consabido, nesse tocante, que, na tradição gramatical, muitas funções
sintáticas e classes gramaticais são definidas mediante noções semânticas; os
aspectos formais raramente são considerados, ou, quando o são, não constituem
aspectos fundamentais à descrição; ao contrário, parecem ser propriedades
“acessórias”, mais facilmente observáveis quando da análise dos dados. Em suma,
os aspectos formais parecem ter menos importância descritiva. Por exemplo, o
“sujeito” é definido em Cunha & Cintra (2001: 124) como “o ser sobre o qual se
faz uma declaração”; portanto, a definição apresentada pelos autores baseia-se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
11
num aspecto semântico, que (sabemos bem) não recobre várias ocorrências do
sujeito.
Perini (2004: 77), a seu turno, apresenta-nos uma definição de sujeito
assentada no aspecto formal, a saber, o sujeito é “o termo da oração que está em
relação de concordância com o NdP
2
. Sua definição pode ser parafraseada como
“o sujeito é o termo da oração com o qual o verbo concorda”. Evidentemente, essa
definição, embora conta de uma grande maioria de casos e, portanto, seja mais
precisa e coerente que a definição tradicional, não abriga, por exemplo, certos
casos em que se acha o verbo “ser”.
Escusando discussões irrelevantes, valemo-nos das definições
supramencionadas, a fim de dar testemunho da necessidade de não definir fatos
lingüísticos mediante noções semânticas, como também da necessidade de não
assentar a análise apenas em aspectos formais; melhor será considerá-los
separadamente e, depois, associá-los.
1. Preferimos a qualificação ‘sintático-discursivas’ a ‘sintático-semântica’, que é mais
geral e coerente com a proposição de cunho funcionalista. Da qualificação “sintático-discursivo”
depreende-se a semântica, que toda função que serve a propósitos discursivos tem,
necessariamente, valor significativo. Ademais, as funções de que nos ocupamos têm singular valor
discursivo; nossa análise, evidentemente, extrapola os limites da sintaxe e toma o discurso como
básico.
2. Lê-se “núcleo do predicado”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
12
Ora, sabe-se que toda teoria lingüística, independentemente dos
pressupostos e metodologia adotados, tem por objetivo descrever a relação entre o
significante e o significado; impõe-se distinguir, pois, esses planos na análise.
Enxertar indiscriminadamente a semântica na descrição é uma prática que deve
ser evitada.
Na medida em que a gramática de valências reconhece o erro de considerar
fatos semânticos sob um ponto de vista sintático e o erro de supor que os planos
semântico e sintático são totalmente isomórficos (de fato, não o são), procura
evitar a dissolução da semântica na descrição lingüística.
Outra vantagem dessa gramática é o tratamento mais cuidadoso dispensado
a casos de valência nominal, ou seja, a casos em que as unidades responsáveis por
determinar a estrutura valencial da frase é um substantivo ou um adjetivo. Sabe-se
que a tradição reconhece que certos nomes apresentam “transitividade”
3
, mas não
se nos oferece uma descrição satisfatória desses casos; deveras, não há, a rigor,
uma tentativa de descrição, senão o arrolamento de um número relativamente
grande e indefinido de nomes e as respectivas preposições por eles regidas.
Ademais, vale dizer que o conceito de transitividade, que, na tradição
gramatical, está estritamente relacionado à noção de regência e que é de natureza
puramente semântica, repousa na propriedade de o verbo exigir determinados
constituintes que, dispondo-se-lhe à direita, servem para completar-lhe o sentido.
Na gramática de valências, a noção de transitividade, que é reinterpretada sob o
rótulo “valência”, é a propriedade que tem o verbo de prever um determinado
número de lugares vazios que estão implicados no seu significado. Vê-se, aí, pois,
uma noção mais lúcida. Além disso, note-se que as relações de dependência entre
os constituintes frasais não se baseiam tão no aspecto semântico (deduzido do
conceito de transitividade que nos foi legado pela tradição), mas também no
aspecto sintático. Conclui-se considerar a noção de valência uma noção
semântico-sintática.
A explicitude do conceito de valência em face à noção de transitividade
parece repousar na idéia de que uma estrutura relacional latente no significado
do verbo, que é atualizada na cadeia sintagmática. Essa estrutura é prevista pela
semântica do verbo. O poder de explicitude da teoria acentua-se na postulação de
formalizações como X Y a Z ou X entrega Y a Z. Essas formalizações
concorrem para patentear o que se subentende na lição tradicional, a saber, a idéia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
13
de que o significado do verbo é determinante da noção de transitividade. Há que
ressaltar, contudo, que, não assentando na insuficiência semântica do verbo, a que
se deve a manifestação de seus “complementos” (visão tradicional), a teoria de
valências demonstra ser o significado do verbo o componente que seleciona os
argumentos (e não que “precisa ser completado”). A conseqüência dessa
concepção, que está, como dissemos, implícita na análise tradicional, é a assunção
de que existem argumentos facultativos, ou seja, que, em determinados contextos,
podem não ser atualizados na estrutura relacional (sem que despoje a frase de seu
caráter informativo). Numa frase com o verbo “escrever”, que apresenta a
estrutura relacional ‘X escreve Y a Z’, pode-se calar o argumento Y’, por
exemplo. Veja-se o giro abaixo:
(a) Pedro escreve todos os dias.
Ora, esse fato permite-nos dizer que a gramática de valências, embora
postule a existência de uma estrutura de relação no significado do verbo, admite
que essa estrutura não é “fixa”, “invariável”, senão variável, ou, melhor seria,
“adaptável” à situação discursiva. Disso se segue que há uma estrutura pré-
estabelecida que se pode manifestar de tal ou qual modo, quando do uso da língua.
Está clara, pois, a concepção funcionalista, segundo a qual o uso exerce influência
sobre a forma da língua. Vale lembrar que a obliteração ou não manifestação de
um dos argumentos do verbo pode implicar, de acordo com o contexto, um novo
matiz significativo. De fato, “Pedro escreve poemas” não veicula a “mesma” idéia
veiculada por “Pedro escreve todos os dias”. No primeiro caso, manifesta-se, por
força das necessidades discursivas, entre as quais se inclui a intenção
comunicativa do enunciador, o constituinte que representa, semanticamente, o
resultado da ação de “escrever”, a fim de se revelar o pendor de Pedro pelo gênero
“poesia”; no segundo caso, quer-se dizer que Pedro tem por hábito compor textos,
ou seja, que Pedro é um aspirante a escritor. Nesse último caso, a situação
discursiva vem em socorro da correta interpretação da mensagem; ou seja, é o
conhecimento partilhado entre os interlocutores que permitirá saber se Pedro se
inclina mais à composição de “crônicas” ou de “poemas”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
14
Não se olvide de que a gramática de valências, ao contrário da análise
tradicional, considera o sujeito como um argumento do verbo. Vale dizer que a
tradição gramatical inclui entre os argumentos ou complementos do verbo certos
constituintes que se dispõem à direita dele e que servem para completar-lhe o
sentido; o sujeito, que se dispõem, via de regra, à esquerda, não se inclui entre os
complementos dele. A vantagem da gramática de valências, nesse tocante, é clara:
por um lado, reconhece o fato de certos verbos não admitirem sujeito, o que indica
ser o sujeito um constituinte selecionado pelo verbo, tal como sucede com os
“complementos” da análise tradicional; por outro lado, admitindo que o verbo
determina semanticamente os seus argumentos, não ignora o fato de certos verbos
selecionarem, para ocuparem a posição de sujeito, substantivos que apresentem
determinados traços micos e de rejeitarem outros (trata-se da vulgarmente
chamada “restrições de seleção”). Por exemplo, uma frase como “O papel
quebrou” não é aceitável pelos falantes do português, porque o verbo “quebrar”
exige que ocupe a posição de sujeito um substantivo que designe um objeto rijo
(portanto, que possa ser quebrado). Do ponto de vista analítico, poder-se-ia dizer
que o verbo “quebrar” seleciona, para ocupar a posição de sujeito, um substantivo
cujo traço sêmico seja [+ quebrável]; disso se deduz a rejeição de substantivos
como “papel”, “toalha”, “almofada”, etc. Casos há em que o verbo não admite um
argumento na posição de sujeito, como em “*A chuva chove muito hoje”.
Evidentemente, quando usado no sentido figurado, o verbo “chover” admite
sujeito, como em “Chovem notas de cem reais sobre a cidade”.
3. Trataremos do conceito de transitividade no lugar adequado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
15
Dentre os trabalhos que fomentam nossa pesquisa, destaquem-se também
a obra Gramática Funcional (2004), de Maria Helena de Moura Neves e a obra
Introdução à Lingüística: fundamentos epistemológicos (2005), organizada por
Fernanda Mussalim e Anna Christina Bentes. Desses trabalhos colhemos
importantes contribuições sobre a teoria funcionalista, em que assenta nosso
trabalho. Não menos relevantes o as gramáticas tradicionais de Evanildo
Bechara (2002), de Rocha Lima (2001) e de Celso Cunha & Lindley Cintra
(2001).
Os trabalhos de José Carlos de Azeredo, intitulados de Iniciação à Sintaxe
do Português (2003) e de Fundamentos de Gramática do Português (2004),
representam, em face às gramáticas tradicionais supramencionadas, um
considerável avanço teórico, visto que, neles, o autor não assinala, com
perspicácia, pontos incoerentes da sintaxe tradicional (e da teoria gramatical, de
um modo geral), como também propõe novos enfoques, decerto mais elucidativos.
Nesses trabalhos, aproveitaram-nos, para efeito de descrição, suas considerações
sobre a noção de transitividade e sobre o conceito de objeto indireto.
Também se inclui na bibliografia deste trabalho a Gramática Descritiva do
Português (2004), de Mário Perini. Ainda que o autor se tenha proposto a
descrever os fatos lingüísticos do ponto de vista estritamente formal, relegando a
semântica a segundo plano (melhor seria, prescindindo da semântica), o que lhe
acarretou o abandono de questões ao abrigo de pesquisas futuras, sua concepção
sobre descrição lingüística e sobre a relação entre os planos semântico e sintático
na análise fundamentam nossa proposição. Ademais, Perini faz importantes
considerações acerca do conceito de transitividade e de regência, as quais são
esposadas em nosso trabalho. Ao contrário do que fez Perini, em nossa análise,
que não se pretende puramente formal (nem poderia sê-lo), procuramos
harmonizar os aspectos sintáticos e os aspectos semânticos, cuidando ser
necessária a devida separação entre eles.
Não nos podemos olvidar de mencionar os trabalhos de Vera Lúcia Paredes
Pereira da Silva e de Maria de Fátima Duarte Henrique dos Santos, que
constituem duas dissertações de mestrado e que se intitulam, respectivamente, de
Complementos verbais regidos de A e transformáveis em LHE (1974, PUC-Rio) e
de Tradição e Funcionalidade na análise de verbos de medida: um estudo de
aspectos sintático-semânticos (2002, PUC-Rio). No primeiro desses trabalhos, é-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
16
nos vantajoso o tratamento dispensado à cliticização em “lhe”; no segundo
trabalho, importam-nos as considerações sobre a teoria funcionalista, a teoria de
valência e o conceito de transitividade.
Finalmente, cite-se a obra clássica Sintaxis Histórica de la Lengua Latina,
de M. Bassols de Climent (1945), na qual o autor trata da função dativa na sintaxe
latina. Essa obra é assaz relevante à nossa análise, na medida em que
testemunho histórico da função dativa e apresenta-nos um tratamento
pormenorizado da questão.
No que toca à motivação de nosso trabalho, durante as aulas de gramática na
escola, o professor esforçava-se por ensinar a lição trivial, segundo a qual o
pronome clítico “lhe” cumpre (sempre) a função sintática de objeto indireto. Os
exemplos que se nos apresentavam eram quase todos “estereotipados”, isto é,
constituíam frases “prontas para análise”.
Em sua obra Gramática de Usos do Português (2003), Maria Helena de
Moura Neves apresenta uma classificação semântica dos verbos em cuja estrutura
relacional figura o objeto indireto. O objeto indireto, que, semanticamente,
representa o destinatário ou beneficiário da ação verbal, entra a fazer parte de
predicados
4
dos quais se deduzem as idéias de “elocução”, “comunicação oral ou
escrita”, “solicitação/ requerimento”, “instrução”, “indagação/resposta”,
“venda/transferência/negociação”, “doação / oferecimento, oferta”. Os exemplos
típicos são, respectivamente, “falar”, “dirigir”; “dizer”, “contar”, “escrever”;
“pedir”, “solicitar”, “requerer”; “ensinar”, “explicar”; “indagar”, “perguntar”,
“responder”; “vender”, “transferir”, “comprar”; “dar”, “doar”, “conceder”, etc.
Evidentemente, outros verbos triviais, em cujo predicado se inclui,
tradicionalmente, o objeto indireto, tais como “custar”, “competir” e “obedecer”,
entre outros.
4. “Predicado”, aqui, é tomado na acepção tradicional, a saber, designa a parte da oração
que encerra o verbo e seus complementos e eventuais adjuntos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
17
Em vista do exposto, habituamo-nos a classificar sintaticamente o
pronome “lhe” na frase abaixo como objeto indireto:
(b) Pedro disse ao seu pai toda a verdade.
Pedro lhe disse toda a verdade.
O problema dessa prática tradicional repousa no fato de o rótulo “objeto
indireto” estender-se a qualquer ocorrência do pronome “lhe”, quer se refira ele a
uma estrutura ‘a/para__SN’, que não é selecionada pela valência do verbo (como
veremos), quer a uma estrutura encetada de uma preposição diferente de “a” e de
“para”, tal como em ‘em__SN’. Vejam-se os exemplos que seguem:
(c) Meu avô construiu um balanço para meu irmão.
Meu avô lhe construiu um balanço.
(d) Júnior bateu em Pedro.
Júnior lhe bateu.
Ora, o constituinte “para meu irmão”, além de ser encetado pela preposição
“para” (no português brasileiro, a alternância com “a” parece ter baixa aceitação),
figura na frase por exigência do complexo verbal (que encerra o verbo e os seus
argumentos). Em outras palavras, esse constituinte não é previsto pela valência do
verbo “construir” (X constrói Y); sua atualização na estrutura sintática é motivada
por necessidades discursivas. Por outro lado, embora “em Pedro” seja selecionado
pelo verbo “bater”, tal constituinte é introduzido pela preposição “em” e
representa o ser que é afetado pela ação verbal. Vale lembrar que a tradição
gramatical sugere haver uma relação entre estruturas em “a” e pronome “lhe”, isto
é, o “lhe” cliticiza estruturas nominais que se constroem com a preposição “a” (às
vezes “para”) e que funcionam como argumento de um verbo transitivo indireto,
ou de certos nomes transitivos (aspecto formal). Ademais, o constituinte encetado
por a” a que se atribui o nome de “objeto indireto” cumpre o papel temático de
“destinatário” ou “beneficiário”. Entendemos por papéis temáticos “os papéis
desempenhados por todo argumento de um predicado [verbo] e atribuídos a esses
argumentos pelo próprio predicado que os seleciona”. (Fiorin, 2003:100).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
18
Levando-se em conta que alguns autores distinguem entre complementos
introduzidos por “a”, cliticizáveis em “lhe”, a que chamam “objeto indireto”, e
complementos encetados não por “a”, mas também por outras preposições, os
quais não são cliticizáveis em “lhe”, mas podem ser substituídos pelas formas
tônicas “(a)ele”, (a)ela”, “(a)isso” etc., não nos parece coerente entender o “lhe”
em (d) como objeto indireto. Essa visão é esposada por Rocha Lima (1976; 2001).
O autor distingue entre “objeto indireto” e “complemento relativo”, função
sintático-semântica que completa o sentido de um verbo transitivo relativo, por
intermédio de uma preposição obrigatória (“a”, “de”, “em”, etc.). Essa função não
é desempenhada pelo “lhe”, senão por formas como “(a)ele”, “(a)ela”, “(a)isso”,
anteriormente mencionadas. Lembremos que, de acordo com certos autores, o
rótulo “objeto indireto” recobre todo complemento preposicionado de um verbo
transitivo indireto. Celso Cunha (2001: 143) é um representante desse ponto de
vista. Destinamos uma seção para tratar do conceito de objeto indireto; por isso
cingimo-nos a essa breve consideração.
Entendemos que, uma vez cunhada a nomenclatura “objeto indireto”, para
dar conta da função dativa na sintaxe portuguesa, estendeu-se esse rótulo aos
demais casos de dativo. A função dativa se reveste de sub-variedades e sua
manifestação na língua portuguesa não foi contemplada pela tradição gramatical.
Dentre as três principais gramáticas tradicionais de nossa literatura, apenas a
Moderna Gramática Portuguesa (2002), do professor Evanildo Bechara, faz
referência à questão dos dativos. Nesse trabalho, o autor reserva uma pequena
seção na qual define os chamados “dativos livres”, a saber, constituintes sintáticos
que, remanescentes da sintaxe latina, apresentam-se com notável valor discursivo,
embora, como se depreende da nomenclatura, não sejam selecionados pelo verbo.
Ora, o fato de haver uma seção para tentar dar conta dos dativos indica que esses
constituintes, embora se relacionem etimologicamente com a função a que se
atribui o nome de objeto indireto (afinal, o objeto indireto é um dativo), se
comportam de modo diferente e, portanto, não se incluem na classe dos
tradicionalmente chamados “objetos indiretos”.
Acrescente-se que a tradição, na medida em que considera o objeto indireto
um complemento do verbo, isto é, um constituinte cuja função é completar o
sentido do verbo, não deveria considerar o “lhe” em (c) como um objeto indireto,
que ele figura no lugar de uma estrutura (‘para__SN’) que não é exigida pelo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
19
verbo. Note-se que a estrutura relacional do verbo “construir” prevê apenas dois
lugares: X constrói Y. A entidade que representa o “beneficiário” não é prevista
pela valência desse verbo. Em outro lugar, dispensaremos um tratamento acurado
a esses casos e elucidaremos melhor nosso ponto de vista; por ora, bastam-nos
essas palavras.
1.2
METODOLOGIA
Como é um trabalho de base funcionalista, pretendemos empreender uma
análise que tome a semântica como componente-base. Para tanto, intentando
evitar a confusão entre o plano semântico e o plano sintático, distinguimos os
aspectos semânticos e os aspectos sintáticos. A análise, portanto, tem como
objetivo principal associar esses dois planos. Acreditamos que, assim, podemos
dar conta de modo mais preciso dos usos do pronome “lhe”.
Nossa análise estriba-se no princípio de que a língua funciona paradigmática
e sintaticamente. O falante que usa um verbo como “dar” para construir seus
enunciados sabe (“inconscientemente”) que esse verbo determina uma estrutura
relacional, que pode ser formalizada como ‘X Y a Z’. Essa estrutura representa
sintaticamente um estado-de-coisas
5
, o qual constitui um “mundo” codificado
na/pela língua. Nesse mundo, uma entidade X uma coisa Y a uma entidade Z.
Essa concepção está relacionada à função ideacional, de Halliday (1970. apud.
Neves, 2004: 12), pela qual “o falante e o ouvinte incorporam na língua sua
experiência dos fenômenos do mundo real (...)” (Neves, 2004: 12).
Note-se que aquela estrutura relacional está disponível ao falante quando da
seleção desse verbo. No entanto, não queremos dizer que ela seja “fixa”,
“inalterável”, senão “adaptável” à situação discursiva. Isso explica o fato de
podermos calar um dos argumentos, de acordo com as necessidades discursivas.
Advogamos que uma estrutura relacional pré-estabelecida no significado
do verbo. A escolha de um verbo como “dar” implica a determinação de uma
estrutura relacional do tipo ‘X dá Y a Z’. Muitas vezes, pode-se calar o argumento
Z, ou Y. O uso, portanto, influencia a forma dos enunciados; mas, ao escolhermos
um determinado verbo, não escolhemos apenas uma unidade léxica, mas um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
20
complexo sintático-semântico-categorial; portanto um conjunto de propriedades
codificado nesse lexema. O verbo “dar”, portanto, encerra um componente
semântico, um componente sintático e um componente categorial. A tulo de
ilustração, tomemos a seguinte frase:
(e) Pedro deu um cartão a sua namorada.
DAR - Categoria: verbo TDI
(ou trivalente)
Entidade 1 Dador objeto Entidade 2 Recebedor
(plano semântico)
Pedro (deu) um cartão a sua namorada.
A1 Predicador A2 A3
(cadeia sintagmática)
5. “Um estado-de-coisas é concebido como algo que pode ocorrer em algum mundo (real
ou mental) (...) Sendo algo que pode ocorrer em um determinado mundo, um estado-de-coisas está
sujeito a determinadas operações, isto é, pode ser: localizado no espaço e no tempo; ter uma certa
duração; ser visto, ouvido, ou, de algum modo, percebido”. (Neves, 2004: 84)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
21
Escusando-nos da simplicidade de nosso gráfico, intentamos demonstrar a
separação e a associação dos planos semântico e sintático. Veja-se que, a seleção
do verbo “dar” implica o reconhecimento de uma estrutura semântica que
caracteriza o estado-de-coisas. Este constitui o primeiro nível. Essa estrutura
semântica é atualizada numa construção, a qual se caracteriza por apresentar uma
estrutura sintática. A construção, a seu turno, constitui o segundo nível. No
terceiro vel, especifica-se a análise da estrutura sintática, a fim de compreender
a interdependência entre os constituintes de que se compõe a frase.
De acordo com o ponto de vista esposado aqui, pretende-se patentear certos
aspectos da natureza da linguagem: em primeiro lugar, a linguagem é um veículo
de significação; do ponto de vista psicológico, em nossa mente/cérebro
estruturas significativas cujo acesso só é possível mediante a linguagem. Em
segundo lugar, conquanto o falante tenha um conhecimento (intuitivo) da sua
língua, conhecimento graças ao qual ele pode não construir sentenças em sua
língua (conhecimento operacional), como também pode avaliar o grau de
gramaticalidade dessas sentenças, ele não tem consciência do funcionamento do
mecanismo gramatical de sua língua, ou seja, ele é incapaz de explicar as regras
pelas quais constrói suas sentenças. Ora, o segundo nível de nossa análise, é o
único acessível ao falante e constitui o nível das construções sintáticas, das frases
de que se vale para efeito de comunicação. Finalmente, importa reconhecer a
explicitação de um dos componentes de regras de que se vale o falante para a
construção de suas frases: o componente sintático. No terceiro nível, procuramos
tornar patente a relação de dependência entre os constituintes sintáticos.
Cabe ressaltar que a associação entre os planos semântico e sintático não
implica o entender que eles sejam isomórficos. Não rareiam casos em que um
descompasso entre o papel temático desempenhado por uma estrutura nominal e o
uso do “lhe”. Ou seja, ensina-se que o “lhe”, enquanto forma típica da função de
objeto indireto, refere-se a uma entidade [+ animado/ humano], que desempenha o
papel temático de “destinatário” ou “beneficiário”; casos há, porém, em que o
pronome se refere a entidades [-animado], como também a uma estrutura nominal
cujo núcleo é um substantivo que representa uma entidade afetada pela ação
verbal. Veja-se que a tradição gramatical, embora estenda o rótulo “objeto
indireto” a vários usos do “lhe”, descurou de uma descrição mais precisa dos
aspectos semânticos dos constituintes sintáticos cliticizáveis em “lhe”. Ora, se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
22
numa frase como “custou-lhe fazer a prova”, o “lhe” é um objeto indireto, então
devemos reconhecer que o objeto indireto não representa a entidade a que se
destina a ação verbal. Escusando-se o fato de “custar” sequer veicular idéia de
“ação”, a verdade é que o “lhe” refere-se a uma constituinte que não desempenha
o papel temático de “destinatário”; representa, ao contrário, a entidade em que se
manifesta a situação
6
descrita pelo verbo “custar”.
Portanto, ao dizermos que pretendemos associar na análise os planos
semântico e sintático, não ignoramos o fato de que nem sempre há isomorfia entre
eles. Visamos a uma análise que, não incorrendo no erro de tratar fatos sintáticos
sob um ponto de vista estritamente semântico, procura integrar sintaxe e
semântica numa teoria que encara a língua como um meio de interação social.
A assunção de que uma estrutura relacional implicada no significado do
verbo e que está disponível ao falante quando da escolha de um determinado
verbo implica a noção de previsibilidade valencial, que constitui uma noção
fundamental à nossa análise. De acordo com essa noção, o significado do verbo
encerra uma estrutura relacional que, embora possa ser “adaptável” ao contexto,
codifica um estado-de-coisas “acabado”, suficiente para a comunicação do
pensamento. Isso não quer dizer que essa estrutura não possa ser ampliada
mediante o emprego de expressões adjuntas. Por exemplo, a escolha do verbo
“construir” implica a determinação da seguinte estrutura relacional: X constrói Y.
(cf. Meu avô construiu um balanço). O uso de uma expressão como “para meu
irmão” não é previsto pela estrutura relacional ou valencial do verbo “construir”.
Portanto, “para meu irmão” não é um argumento do verbo “construir”. O estado-
de-coisas instituído é o seguinte: uma entidade “avô” constrói uma coisa
chamada “balanço”. Esse estado-de-coisas pode ser modificado mediante a
inclusão de expressões circunstanciais, tais como “hoje”, “no domingo”, “ás cinco
horas da tarde”, etc. Da mesma sorte, numa frase como “Minha mãe fez um bolo
de chocolate”, pode-se ampliar a estrutura ‘X faz Y’ para ‘X faz Y (para Z)’, do
que resulta a frase “Minha mãe fez um bolo de chocolate para mim”; todavia, o
constituinte “para mim” não é previsto pela estrutura relacional do verbo “fazer”.
É claro que a estrutura valencial varia de acordo com a acepção do verbo. O
verbo fazer”, quando empregado com o sentido de “causar algo (mau)”,
apresenta em sua estrutura relacional um argumento introduzido por “a”: X faz Y
a Z (cf. Pedro fez mal a um amigo). O constituinte ‘a__SN’, nesse caso, é previsto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
23
pela estrutura relacional do verbo “fazer”. Vale aí investigar a natureza da
construção “fazer mal a Z (e da construção análoga “fazer bem a Z”), ou seja, é
possível considerá-la intermediária entre as expressões cristalizadas e as
construções com verbo suporte
7
, que, com relativo esvaziamento semântico, o
verbo “fazer” forma com o advérbio “mal” um conjunto de significado unitário,
que corresponde a um verbo simples, como “prejudicar”. Preferimos adiar a
questão para o capítulo seis, no qual nos ocupamos com a discussão dos casos de
verbo-suporte e construções cristalizadas. Não obstante, que notar o alto grau
de aderência entre “fazer” e o advérbio, o que nos leva a admitir formarem ambos
uma unidade de algum tipo. Incluí-la entre os casos de verbo suporte requer um
exame cuidadoso, que, em Neves (2000: 54), a definição de verbo-suporte não
prevê casos como esse. Intentando evitar comodismos descritivos, vamos dizer
que o constituinte “a__SN” serve de complemento ao conjunto “fazer mal”.
Finalmente, vale dizer que, sendo o conceito de “estado-de-coisas”
essencialmente semântico, a estrutura relacional, a seu turno, caracteriza-se por
ser um conceito de cunho formal. É a estrutura relacional que formaliza o estado-
de-coisas instituído pelo verbo.
6. Intentando evitar o uso indiscriminado do conceito de ação e não encontrando uma
alternativa adequada, lançamos mão do termo “situação”, consoante definido em Travaglia (1985:
51). Para o autor, situação é “(...) um termo geral para processos, estados, fenômenos, eventos,
fatos, etc.”
7. Veja-se, à página 92, a definição de “verbo suporte”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
24
2
O Funcionalismo: fundamentação teórico-metodológica
Reflitamos sobre a escola funcionalista neste capítulo, destacando seus
pressupostos teóricos, seu histórico, suas vertentes e principais representantes.
Outrossim, meditaremos sobre o conceito de “função”, de “transitividade” e de
“frase” do ponto de vista funcionalista.
Pertinentes são as palavras de Maria Helena de Moura Neves (2004: 1), que
assim se expressou:
“Caracterizar o funcionalismo é uma tarefa difícil, que os rótulos que se
conferem aos estudos ditos “funcionalistas” mais representativos geralmente se
ligam diretamente aos nomes dos estudiosos que os desenvolveram, não a
características definidoras da corrente teórica em que eles se colocam. Prideaux
(1994) afirma que provavelmente existem tantas versões do funcionalismo quantos
lingüistas que se chamam funcionalistas, denominação que abrange desde os que
simplesmente rejeitaram o formalismo até os que criam uma teoria. A verdade é
que, dentro do que vem sendo denominado ou autodenominado
“funcionalismo”, existem modelos muito diferentes”.
(grifo nosso)
Nesse passo de Neves, atente-se não ao fato de o rótulo funcionalismo
recobrir muitas versões de trabalhos, cujas características não parecem justificar
tal rotulação, mas também ao fato de existirem lingüistas que se dizem
“funcionalistas”, em virtude de rejeitarem o formalismo. Nesse tocante, as
palavras de Bates (apud. Newmeyer 2000: 13) sintetizam a situação teórica do
funcionalismo: “o funcionalismo é como o Protestantismo: um grupo de seitas
antagônicas que concordam somente na rejeição à autoridade do Papa”.
Evidentemente, o pensamento de Bates ignora o desenvolvimento da teoria
funcionalista e suas contribuições à compreensão do funcionamento da
linguagem. Além disso, a investigação funcionalista surgiu muito antes da teoria
gerativa.
Não obstante a ironia do pensamento de Bates, com o qual procura
responder à pergunta “o que de comum a todos os modelos teóricos?”, pode-se
dizer, seguramente, que os trabalhos funcionalistas assentam na concepção de que
a língua é um instrumento de interação social, e ao lingüista compete a tarefa de
investigar o modo como os falantes se comunicam pela língua. Consoante
Martinet (1994: 14. apud. Neves, 2004: 2), a competência comunicativa deve
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
25
nortear a investigação lingüística, visto que “toda língua se impõe (...), tanto em
seu funcionamento como em sua evolução, como um instrumento de comunicação
da experiência”. Entende-se por experiência “tudo o que [o homem] sente, o que
ele percebe, o que ele compreende em todos os momentos de sua vida”.
Os trabalhos funcionalistas estribam-se na idéia de que a estrutura
lingüística não pode ser descrita satisfatoriamente sem a consideração do evento
comunicativo. Vale lembrar que uma das grandes contribuições dos modelos
funcionalistas é a integração da pragmática na teoria gramatical. O funcionalista
estuda a língua na interação social, fato que o leva a rejeitar a autonomia da língua
em face ao discurso. Nesse tocante, diz-se comumente que a função comunicativa
da língua exerce influência sobre sua forma, ou, mais radicalmente, a forma da
língua “deriva” do uso que dela se faz.
8
No que toca à rejeição de uma autonomia da língua, os funcionalistas, entre
os quais Givón (1995) e Nichols (1984: 97), citados por Neves, advogam a idéia
de que a compreensão satisfatória do mecanismo gramatical depende da
consideração de fatores como “cognição”, “comunicação”, “processamento
mental”, “interação social”, “cultura”, “mudança” e “variação”, aquisição e
“evolução”.
8. Essa concepção se acha no artigo de Votre & Naro, denominado de Mecanismos
funcionais do uso da língua (D.E.L.T.A., vol. 5, nº 2, 1989).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
26
A gramática funcional, entendida aqui como “uma teoria da organização
gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global da
interação social” (Neves, 2004:15), segundo aqueles autores, não se ocupa da
análise da estrutura interna da língua, mas também, mormente, da análise da
situação comunicativa, a qual encerra o propósito do evento de fala, os
participantes desse evento e o contexto discursivo. A tarefa precípua de uma
gramática funcional é, consoante enfatiza Beaugrande (1993, cap. III. apud.
Neves, 2004: 3), “fazer correlações ricas entre forma e significado dentro do
contexto global do discurso”.
No que tange ao histórico do funcionalismo, pode-se afirmar que o modelo
funcionalista é tão antigo quanto o paradigma formal, o qual encerra o
estruturalismo saussuriano. O funcionalismo moderno remonta à concepção de
lingüistas que precederam Saussure, entre os quais citem-se Whitney, Von der
Gabelentz e Hermam Paul, representantes da escola neogramática no final do
século XIX. Esses autores levavam em conta em seus trabalhos fenômenos
sincrônicos e diacrônicos, bem como reconheciam a importância de a descrição
lingüística ser baseada em parâmetros psicológicos, cognitivos e funcionais.
Poder-se-ia referir muitos outros trabalhos, em que se pode patentear a visão
funcionalista; limitamo-nos a citar alguns. Na tradição antropológica americana,
acha-se o ponto de vista funcionalista no trabalho de Sapir (1921, 1949) e de seus
discípulos. Também podemos patentear o ponto de vista funcionalista na teoria
tagmêmica de Pike (1967), no trabalho de base etnográfica de Hymes (1972)
autor que cunhou o conceito de “competência comunicativa”- , na tradição
britânica de Firth (1957) e Halliday (1970, 1973, 1985), entre outros.
Dentre todos os trabalhos orientados numa visão funcionalista da
linguagem, os mais representativos, que a eles se deve o desenvolvimento da
teoria funcionalista, estão baseados nas concepções de um grupo de estudiosos a
que se atribui a designação Escola Lingüística de Praga. Seus trabalhos datam de
anos anteriores a 1930.
Os estudiosos de Praga concordavam na rejeição da dicotomia Chomskiana
entre “competência” e “desempenho” rejeição que pode ser contemplada
também nos modelos de Halliday e Dik.
Diz-se que a Escola de Praga caracteriza-se por ser um estruturalismo
funcional. Destarte, a língua é entendida como um sistema funcional, o qual
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
27
encerra um componente sistêmico e um componente funcional. Vale dizer que, na
Escola de Praga, a frase é considerada uma unidade comunicativa que veicula
informação e que está relacionada à situação comunicativa. Portanto, importa aos
estudiosos a análise das frases “reais”, a saber, efetivamente realizadas, a cuja
interpretação vem em socorro o contexto, quer verbal, quer não-verbal. É no
enunciado realizado na situação comunicativa que se podem verificar as
regularidades de que se deve ocupar a análise. A frase é uma unidade lingüística
que deve ser estudada não internamente (isto é, levando-se em conta seus
aspectos fonológico, morfológico e sintático), como também “externamente”, a
saber, correlativamente ao contexto comunicativo.
Destarte, a frase, do ponto de vista comunicativo, é bipartida em “tema”
(elemento de baixa informatividade) e “rema” (elemento de maior
informatividade). Nessa perspectiva, considera-se que a organização dos
constituintes frasais está relacionada à organização da informação da frase. Por
exemplo, os estudiosos de Praga demonstraram que, no theco, a ordem das
palavras é determinante da organização da informação na frase.
O termo funcionalismo pode recobrir qualquer abordagem que se assenta na
concepção de que as expressões lingüísticas servem ao propósito comunicativo.
Nesse tocante, Bechara (1991: 1 apud. Neves, 2004:55), observa que a
denominação “funcionalista” tem sido aplicada a “várias modalidades de
descrição lingüística e de aplicação pedagógica no estudo e ensino de línguas”.
Segundo o autor, a isso se deve a difícil tarefa de definir esse campo de estudos.
Consoante observa Nichols (1984, apud. Neves, 2004: 55), o rótulo
“funcionalismo”, em geral, é aplicado a três vertentes: uma conservadora, uma
radical e uma moderada. O funcionalismo conservador limita-se a enfatizar a
inadequação do modelo formalista (o qual compreende tanto o estruturalismo
quanto o gerativismo), sem propor uma análise própria e, supostamente, mais
adequada. O funcionalismo moderado aponta a inadequação do modelo formalista
(tendência comum no modelo funcionalista), mas suscita uma análise da estrutura
lingüística. O funcionalismo extremado rejeita o conceito de estrutura
9
e defende
que as regras assentam na função e não restrições sintáticas. Esse último tipo
de funcionalismo o valida a concepção saussuriana da língua, segundo a qual a
língua é um sistema de signos que se relacionam reciprocamente (“a língua é uma
sistema”) e defende que a gramática se reduz ao discurso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
28
Os modelos de Dik e Halliday podem ser incluídos entre os trabalhos
funcionalistas “moderados”, segundo Van Valin (1990, apud. Neves, 2004: 56),
uma vez que, embora considerem inadequado o modelo formalista, propõem uma
análise funcionalista da estrutura lingüística, enfatizando a relevância do
componente semântico e pragmático na descrição lingüística. Ademais, os
autores, ainda que admitam a validade da noção de estrutura para a compreensão
das línguas naturais, suscitam uma nova noção de estrutura, que difere da noção
formalista.
Vale lembrar que uma das críticas dos funcionalistas aos modelos
formalistas repousa na prática de tomar como elemento básico para análise a
“sentença”. Em Discourse Without Syntax (1979. apud. Neves, 2004: 57), Garcia
observa que a “sentença”, enquanto elemento básico de análise, não satisfaz aos
anseios daqueles que se interessam pela distribuição das unidades gramaticais no
interior da própria sentença. Ademais, segundo a autora, a estrutura da língua não
pode ser descrita satisfatoriamente sem a consideração do contexto, lingüístico,
já extralingüístico.
A idéia trivial, que parece perpassar todos os modelos funcionalistas, é que,
não ignorando o fato de competir ao lingüista a tarefa de registrar os fatos
lingüísticos arbitrários, que “se impõem” aos falantes, é necessário reconhecer
aspectos da linguagem que, embora óbvios, foram negligenciados pela
comunidade lingüística, tais como o fato de a linguagem servir como um
instrumento de comunicação entre os seres humanos. Garcia procurou explicar
fatos considerados arbitrários do inglês levando em conta aspectos comunicativos.
9. Pode-se dizer que Votre e Naro (cf. nota 8) são representantes do funcionalismo
extremado, uma vez que, para eles, “o conceito de estrutura no abstrato, considerada
independentemente das suas fontes geradoras – entre elas a comunicação – é uma espécie de ilusão
de ótica criada pelo próprio lingüista ao observar as regularidades, sem observar suas causas”.
(p. 170)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
29
Na subseção que se segue, delinearemos o modelo funcionalista de Michael
A. K. Halliday e de Simon Dik, que constitui trabalhos funcionalistas
“moderados”, segundo Van Valin (1990). Nessa subseção, verificar-se-ão algumas
considerações sobre o conceito funcionalista de “transitividade”. Não nos
olvidamos de refletir sobre o conceito de “função”, que é central na teoria
funcionalista e cuja aplicação é um pouco confusa. Nesse tocante, muita vez, não
se distinguem os termos “função” e “uso”. Vamos-nos deter a refletir
especialmente sobre os tipos de função de Halliday.
2.1
O modelo funcionalista de Michael A. K. Halliday
2.1.1
O conceito de função
Em princípio, apresentamos como o termo função é empregado na teoria
funcionalista. Mike Dillinger, em seu artigo Forma e Função na Lingüística
10
,
observa que a acepção na qual é empregado o termo função, em Lingüística, não
se identifica com o sentido que esse termo tem em matemática; seu sentido, em
Lingüística, se identifica com o sentido com que é empregado na álgebra: função
é, pois, sinônimo de “relação”. O autor, citando Garvin (1978), distingue três tipos
de relações designadas pelo termo “função” na teoria lingüística: função pode
designar a) relações entre uma forma e outra (função interna), b) relações entre
uma forma e seu significado (função semântica) e c) relações entre o sistema de
formas e seu contexto (função externa).
André Martinet ( 1994. apud. Neves, 2004: 5) atribui ao termo função a) o
valor de “papel”, ou seja, o termo refere-se à utilidade de um objeto ou de um
comportamento; b) o valor de “papel de uma palavra em uma oração” (acepção
tradicional); c) o valor matemático de “grandeza dependente de uma ou de
diversas variáveis”. Para Martinet (1994, p. 13. apud. Neves, 2004:5-6), fundador
da Sociedade Internacional de Lingüística Funcional (SILF), o termo funcional,
em Lingüística, refere-se “(...) ao papel que a língua desempenha para os homens,
na comunicação de sua experiência uns aos outros”.
outros sentidos atribuídos ao termo função. Nichols (1984. apud. Neves,
2004:6), distingue cinco sentidos com que é empregado esse termo: a) função
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
30
como sinônimo de interdependência; b) função como sinônimo de propósito; c)
função como sinônimo de contexto; d) função como sinônimo de relação; e)
função como sinônimo de significado. O autor nota que “a maioria das obras
funcionalistas usa função apenas nos sentidos de propósito e de contexto, e não
distingue entre os dois” (p. 101. apud. Neves, 2004:7).
Ressalte-se que o estudo funcionalista não determina claramente quais
funções ou relações constituem seu objeto. Conquanto seja muito corriqueiro o
emprego dos termos função e funcional na Escola Lingüística de Praga,
reconhecer a acepção na qual foram usados não é fácil. Dentre as razões
apresentadas por Neves, pelas quais é difícil reconhecer os sentidos com que esses
termos são usados, citem-se duas: por um lado, o termo funcional é empregado,
muita vez, com um sentido muito vago, ou serve como um mero rótulo; em
segundo lugar, uma abordagem funcionalista não se caracteriza tão-só pelo
emprego dos termos função e funcional. A abordagem funcionalista toma à
teleologia e à teleonomia, por exemplo, outros termos, tais como “meios”, “fins”,
“instrumento”, etc.
Não obstante a dificuldade de se reconhecer o sentido do termo função nos
trabalhos da Escola de Praga, pode-se dizer que, em geral, esse termo é
empregado na acepção de papel que uma entidade lingüística exerce no processo
comunicativo. Dessa idéia infere-se a noção de “código lingüístico”. Grande parte
dos autores da Escola Lingüística de Praga empregou o termo no sentido de
“tarefas” ou de “propósito”. Destarte, a linguagem desempenha uma série de
tarefas ou serve a uma série de propósitos aos seres humanos.
De acordo com o quadro teórico da teleologia, ou teleonomia, pode-se dizer
que “um fenômeno x é um meio para a realização de um fim F(Neves, 2004: 8).
Valendo-se da noção de “função”, pode-se alterar essa asserção para: “um
fenômeno x tem uma função f (ibid.id.). Quando se diz que uma entidade
lingüística “tem a função de”, diz-se que ela serve como um meio para um fim F.
A noção de função, portanto, encerra as idéias de propósito e de meio.
Não se pode olvidar que “função”, na teoria funcionalista, não se aplica às
relações de interdependência entre as palavras na oração (as ditas “funções
sintáticas”: objeto direto, objeto indireto, etc.); refere-se “ao papel que a
linguagem desempenha na vida dos indivíduos (...)” (Neves, 2004: 8). Para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
31
Halliday (1973: 104. apud. Neves, 2004: 8), esse é o sentido básico e principal do
termo “função” no Funcionalismo.
Doravante, destaquem-se três proposições que procuram determinar as
funções da linguagem. Uma dessas proposições é a de Karl Bühler, que aponta
três funções da linguagem. Essas funções estão hierarquicamente organizadas nos
enunciados; são elas: a função representativa, a de exteriorização psíquica e a de
apelo. Distinguem-se, no evento comunicativo, três elementos: o falante (que
informa algo), o “algo dito” (aquilo que se informa a alguém) e o ouvinte (que é o
receptor e decodificador da mensagem). Nessa atividade, se acham as três
funções, que não se excluem mutuamente; ao contrário, coexistem no mesmo
evento comunicativo. “Função”, no quadro teórico de Bühler, não se aplica ao
papel comunicativo da linguagem, com ser uma propriedade básica e
condicionadora do evento de fala. No entanto, em outras proposições, como a de
Mathesius (1923, apud. Neves, 2004: 10), por exemplo, a função comunicativa é
considerada como básica; a ela se relaciona, como secundária, a função
expressiva, a qual diz respeito à manifestação das emoções do falante.
A segunda proposição sobre as funções da linguagem, que constitui um
desenvolvimento da proposição de Bühler, é a de Roman Jakobson.
10. D.E.L.T.A., vol. 7, nº 1, 1991, p. 399.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
32
O lingüista russo acrescenta às três funções de Buhler mais três funções, do
que resulta um total de seis funções. Cada uma dessas funções relaciona-se
diretamente a fatores envolvidos no ato de comunicação verbal. Elencamos as seis
funções de Jakobson abaixo:
1) função referencial, que se relaciona ao contexto;
2) função emotiva, que se relaciona ao falante (ou remetente);
3) função conativa, que se relaciona ao ouvinte (ou destinatário);
4) função fática, que se relaciona ao canal de comunicação;
5) função metalingüística, que se relaciona ao próprio código lingüístico;
6) função poética, que se relaciona à mensagem.
Para Jakobson (1969, apud. Neves, 2004: 11), em todo enunciado um
“feixe” hierarquizado de funções. Cada um dos seis fatores envolvidos no evento
comunicativo, supramencionados, será destacado num ou noutro enunciado. Disso
se segue que, em cada mensagem, uma função primária (portanto, que tem
maior relevo na mensagem) e outras secundárias.
John Rupert Firth e Michael Halliday, representantes da escola britânica,
entendem o conceito de função no quadro teórico que considera a língua um
sistema de “opções”, cujas funções determinam as escolhas e os arranjos. Halliday
(1973a. apud. Neves, 2004: 12) esposa o conceito de Bühler sobre “função”,
muito embora sua teoria das funções da linguagem não seja orientada por um
ponto de vista psicológico, à semelhança do que sucede neste último autor.
Halliday (1978: 48. apud. Neves, 2004: 12) afirma ter Bühler um interesse
psicolingüístico, ao qual se deve o fato de ele investigar fenômenos que, embora
estejam relacionados à linguagem, “estão fora dela” (ibid.id.). Halliday, ao
contrário de Bühler, insta em que as múltiplas funções da linguagem se
manifestam na organização interna da língua e que, investigando-se a estrutura da
língua, pode-se patentear os vários propósitos a que serve a linguagem. De acordo
com a visão de Halliday, a pluralidade funcional constitui a base da organização
semântica e sintática, isto é, lexical e gramatical das línguas.
Deter-nos-emos na apresentação da proposição de Halliday. O autor propõe
a existência de três funções da linguagem. Em primeiro lugar, a linguagem serve à
expressão do conteúdo de pensamento; portanto, a linguagem tem uma função
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
33
ideacional. Dela se valem o falante e o ouvinte para incorporar e organizar na
língua suas experiências dos fenômenos do mundo físico e do mundo mental, o
qual inclui suas reações, cognições, percepções. Essa função reveste também os
atos lingüísticos do falante e ouvinte, concernentes à fala e à compreensão. Da
função ideacional deduzem-se duas subfunções, a saber, a “experencial” e a
“lógica”.
No tocante à noção de função ideacional, oportunas são as palavras de
Azeredo (2002: 17-18, seção 5), ao definir a função simbólica da linguagem:
“A função simbólica da linguagem é a responsável pela relação entre o indivíduo e
o conjunto de suas experiências da realidade. É a função graças à qual podemos
transformar todos os elementos do mundo em dados da nossa consciência e em
assunto de nossos discursos (..)
A língua, é claro, não é apenas um meio de comunicação; ela é, antes de tudo, um
sistema de categorias que permite ao homem organizar o mundo em uma
estrutura dotada de sentido”.
(grifo nosso)
A segunda função apontada por Halliday é a função interpessoal, pela qual
o falante pode participar do evento comunicativo. Assim, o uso da língua implica
interação social. Pela função interpessoal, o falante exprime seus julgamentos
subjetivos, posiciona-se de tal e qual modo relativamente a um assunto, assume
um papel comunicativo e social próprios. Nesse tocante, a função interpessoal
serve ao estabelecimento e à manutenção dos papéis sociais assumidos pelos
participantes do evento comunicativo.
Halliday considera também uma terceira função, a qual é instrumental em
face às duas primeiras mencionadas. A terceira função é a textual, que se refere
à construção do texto. Graças a essa função, as unidades lingüísticas são
ancoradas num contexto e num co-texto. O texto é, pois, o elemento básico do
discurso, com o qual os falantes se comunicam (comunica-se por textos e não por
frases isoladas). A função textual, não se cingindo a estabelecer elos coesivos
entre frases, refere-se, sobretudo, à organização interna da frase, ao seu
significado enquanto mensagem, quer em si mesma, quer na sua relação com o
contexto.
Doravante, observe-se a contribuição do modelo funcionalista de Halliday.
Delinearemos sua proposição, destacando os aspectos mais relevantes ao
desenvolvimento de nosso trabalho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
34
A gramática funcional de Michael A. K. Halliday assenta na teoria de John
Rupert Firth (Robins, 1964, p. 290. apud. Neves, 2004: 58) e foi influenciada
pelas idéias de Malinowski, Whorf e da Escola de Praga. Sua teoria denomina-se
sistêmico-funcional, porquanto, embora se baseie no modelo funcionalista de
Firth, é influenciada pela idéia formalista de que a língua é um sistema. Para
Halliday, a língua é uma rede sistêmica e sua gramática constitui-se de uma série
de estruturas sistêmicas. O modelo de Halliday é representante de uma
“lingüística funcional sistêmica”, que a lingüística é, tradicionalmente,
sistêmica; e se opõe a uma “lingüística formal sistêmica”, cujos representantes
principais são Saussure, Harris e Chomsky (entre outros).
Halliday afirma que a teoria lingüística constitui-se de dois “eixos”
alternativos: a cadeia (o sintagma) e a “escolha” (o paradigma) (Halliday, 1963.
apud. Neves, 2004: 59). A gramática sistêmica apresenta dois tipos de categoria:
os traços e as funções. Os traços, que são uma categoria paradigmática e se
referem a significado formal e a significado semântico, constituem propriedades
dos itens lingüísticos pelas quais eles se relacionam entre si similarmente. As
funções são uma categoria sintagmática. A gramática sistêmica é, pois,
paradigmática, por excelência, que inclui as relações paradigmáticas no nível
abstrato e profundo e toma o nível sintagmático como o nível da realização, a
saber, o nível em que se acham as unidades realizadas.
A gramática, enquanto rede sistêmica, encerra, portanto, um conjunto finito
de traços e um complexo de interdependências entre os traços de determinados
paradigmas. É a gramática que relaciona umas às outras as escolhas significativas
que decorrem das várias funções da linguagem e as realiza numa estrutura
unificada (Halliday, 1973, p. 364. apud. Neves, 2004: 60). Vale dizer que do
termo “escolha” não se deduz “escolha consciente” necessariamente, tampouco
“escolha livre”; deveras, uma escolha pode ser feita subconscientemente e pode
variar para uma escolha consciente.
De acordo com a proposição de Halliday, como apresentam as línguas uma
face “ideacional” (isto é, uma estrutura semântica de organização da realidade) e
uma “interpessoal” (isto é, serve ao propósito interacional), as metafunções
(anteriormente referidas) representam, no sistema lingüístico, os dois propósitos
mais gerais a que servem os usos da língua: “entender o ambiente (ideacional) e
influir sobre os outros (interpessoal)” (Neves, 2004: 62). Destarte, cada unidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
35
lingüística se define por referência à sua função no sistema. A gramática funcional
é responsável, pois, pela construção de todas as unidades da língua (suas orações,
suas expressões). Essas unidades são entendidas como “configurações orgânicas
de funções” (id. p. 63). Há, na gramática funcional, dois pressupostos básicos: a) a
maior unidade de funcionamento é o texto; b) as unidades lingüísticas são
multifuncionais.
Importa considerar que, porque o texto é a unidade real de comunicação, o
lingüista deve interessar-se por descobrir como se constrói o sentido do texto.
Assim, a língua é concebida como um sistema semântico, visto que é um sistema
de produção de significados mediante enunciados. O termo “semântico” recobre a
totalidade do sistema de significados de uma língua; esses significados se
codificam nos itens lexicais e nos itens gramaticais.
Pode-se dizer que a gramática codifica o significado. Na gramática
funcional de Halliday, importa investigar o modo como os significados são
veiculados, o que implica considerar as formas da língua como um meio para a
realização de um propósito, e não como um fim em si mesmas. A denominação
“gramática funcional” diz respeito a uma teoria lingüística que, assentada no
componente significativo (caráter funcional), procura interpretar as formas
lingüísticas (caráter gramatical).
Antes de levar a cabo essa ntese da gramática funcional de Halliday,
damos a saber, a título de ilustração, como o sistema de transitividade é concebido
pelo autor. Em princípio, vale dizer que a transitividade, em Halliday, está
intrinsecamente relacionada à função ideacional.
Note-se que a gramática funcional constitui-se de vários sub-sistemas que
codificam diferentes tipos de significados e que se relacionam às diferentes
funções da linguagem. Destarte, o sistema de transitividade, que encerra processos
(que dizem respeito ao verbo e exprimem as noções de ‘ação’, ‘percepção’,
‘atribuição’, ‘descrição’ e identificação’), os papéis semânticos
11
(os quais são
determinados pelo verbo), expressa o mundo ideacional, a saber, as experiências
do falante em relação ao mundo real. Especificando papéis como “agente”,
“receptor”, etc., o sistema de transitividade codifica a experiência do mundo e se
relaciona à função ideacional.
Meditemos um pouco mais no processo de produção de um enunciado.
Quando da elaboração de um enunciado lingüístico, o falante aciona a função
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
36
ideacional da linguagem, pela qual a realidade é estruturada na língua. A frase,
que é parte de um enunciado, é, consoante Halliday, uma unidade lingüística em
que se manifestam as relações sintático-semânticas, graças às quais pode
representar a realidade
12
.
Como é intenção do falante comunicar-se mediante a realização de
enunciados, ele aciona a função interpessoal, pela qual pode “agir” sobre o seu
destinatário. Assim, a estrutura sintático-semântica da frase se adaptará à sua
perspectiva da realidade, o que implica, necessariamente, diferença na análise e na
interpretação dos constituintes frásicos. O falante pode, conforme sua perspectiva,
selecionar um novo predicador (verbo) e, conseqüentemente, as unidades a ele
relacionadas (seus argumentos). Tomemos para exemplo a frase seguinte:
(f) O maratonista corria muito.
Nessa frase, o predicador de ‘ação’ (correr) que determina uma estrutura
semântica, a qual inclui, necessariamente um agente (maratonista). Esse
predicador determina, portanto, um esquema sintático-semântico específico. Veja-
se, por outro lado, a frase abaixo:
(g) O biólogo observava o comportamento do pica-pau.
Nessa frase, se acha um predicador de percepção, que seleciona um
experenciador, determinando uma estrutura sintático-semântica específica.
Ressalte-se que, do ponto de vista da função interpessoal, nessas frases, a
escolha do substantivo redunda na idéia de que não se escolheu nem o falante nem
o ouvinte para ocupar a posição de sujeito (função “sintática”).
Atentando-se à organização do circuito comunicativo, pode-se verificar
mais claramente como a função interpessoal influencia na forma dos enunciados
da língua. Os indivíduos interagem por meio da língua alternando-se nos papéis
de falante e ouvinte. Quando falante, o indivíduo seleciona: a) o modo de seu
enunciado (se é declarativo, interrogativo, etc.), e b) o sujeito da estrutura
sintática. O modo, que é obrigatório, diz respeito à organização dos participantes
no evento comunicativo. Assim, por meio do modo, o falante decide se vai
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
37
declarar, perguntar, ordenar, pedir, etc. Pelo modo, o falante assume um papel em
relação ao seu interlocutor e à própria interlocução.
Inserido numa situação de fala, o falante constrói orações cujo sujeito pode
ser ele próprio, o ouvinte ou nenhum dos interlocutores (não-pessoa, caso em que
se escolhe um substantivo).
Em suma, a visão de Halliday sobre transitividade é muito mais geral e
consistente do que a visão da gramática tradicional, porque não só leva em conta o
aspecto reflexivo da linguagem (“a língua codifica a realidade”) como inerente à
noção de transitividade, mas também toma o verbo como a unidade central da
frase, a qual é responsável por determinar a sua estrutura sintático-semântica.
Disso se segue considerar a unidade que ocupa a posição de “sujeito” um
argumento do verbo, a saber, um elemento que é exigido pela semântica do verbo.
O sistema de transitividade “fixa” determinados traços na frase,
estabelecendo, pois, as relações paradigmáticas e sintagmáticas. O nível sintático
é considerado o nível da realização. A escolha de um verbo implica o
estabelecimento de uma rede de relações.
11. Neste trabalho, adota-se a designação “papel temático” (Fiorin, 2003:100).
12. Relacionada ao sistema de modo (que diz respeito às funções como “sujeito”,
“complemento”, “predicador”, etc. e do qual deriva o sistema de “modalidade”) se acha a função
interpessoal. Assim também, relacionada ao sistema de “tema” ou “informação (que se refere às
relações internas ao enunciado e às relações entre o enunciado e a situação) se acha a função
textual. Portanto, num enunciado, não se verifica tão-só a função ideacional, senão todas essas três
funções (a ideacional, a interpessoal e a textual).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
38
2.2
O modelo funcionalista de Simon Dik
Vamo-nos deter a apresentar os aspectos mais pertinentes da teoria
funcionalista de Simon Dik, sem, contudo, pormenorizá-la. Em seu modelo,
aproveitam-nos as noções de predicação e de estado-de-coisas, que serão
apresentadas nessa subseção.
Em princípio, pode-se dizer que Simon Dik, à semelhança dos lingüistas da
Escola de Praga, estuda a linguagem do ponto de vista da teleologia; entretanto,
não é fácil avaliar a influência dos trabalhos de Praga sobre o desenvolvimento de
suas idéias. Sua gramática funcional foi inspirada na teoria pragmática da Escola
de Oxford e no Interacionismo Simbólico de G. H. Mead.
Consoante Dik (1989a. apud. Neves, 2004:76), numa abordagem
funcionalista da linguagem, avulta a seguinte questão: “Como ‘opera’ o usuário da
língua natural (the natural language user NLU)?” (ibid.id.). O lingüista
funcionalista se interessa por investigar como falante e destinatário se comunicam
satisfatoriamente mediante as expressões lingüísticas.
Vale lembrar que, no processo comunicativo, não intervém apenas a
competência lingüística (pela qual o usuário é capaz de produzir e compreender
corretamente as expressões lingüísticas nas mais diferentes situações), senão um
elenco de competências ou capacidades, que referimos abaixo:
a) capacidade epistêmica: o usuário constrói, mantém e explora um
conhecimento organizado, bem como deriva conhecimento das formas
lingüísticas. Também armazena esse conhecimento apropriadamente e, depois, o
utiliza na interpretação de expressões lingüísticas subseqüentes;
b) capacidade lógica: uma vez arquivada uma parcela de conhecimento, o
usuário é capaz de derivar outras parcelas de conhecimento mediante regras de
raciocínio, como a dedução;
c) capacidade perceptual: o conhecimento do usuário provém de sua
percepção do ambiente; e ele é capaz de usar esse conhecimento adquirido para
produzir e interpretar as expressões lingüísticas;
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
39
d) capacidade social: relacionada ao conhecimento cultural que regula a
prática lingüística numa sociedade, essa capacidade permite ao usuário dizer
aquilo que é pertinente de modo adequado a um interlocutor particular, numa
situação de comunicação determinada, para cumprir objetivos comunicativos
particulares.
Todas essas capacidades se inter-relacionam e produzem um output. Dessa
sorte, diz-se que a gramática funcional é uma teoria geral da organização
gramatical das línguas naturais.
Segundo Dik (1989, p. 3. apud. Neves, 2004:77), a Lingüística deve
considerar dois sistemas de regras:
1) as regras que estruturam as expressões lingüísticas (regras semânticas,
sintáticas, morfológicas e fonológicas);
2) as regras que regulam os padrões de interação verbal (regras
pragmáticas).
O sistema 1) é considerado instrumental em relação ao sistema 2),
porquanto, de acordo com a concepção funcionalista, as expressões lingüísticas
são descritas e explicadas mediante a postulação de um quadro geral que provém
do sistema pragmático de interação verbal. Em suma, propõe-se que a teoria da
gramática seja um subcomponente da teoria do “usuário da língua natural” (NLU).
Consoante observa Dik (1980, p. 1. apud. Neves, 2004: 79), a teoria
funcionalista, conquanto diferencie sistema de uso, não estuda um abstraindo o
outro. Para o autor, para que uma descrição seja cabal, deve-se levar em conta os
papéis do falante e do ouvinte na situação de interação. Assim, a expressão
lingüística medeia a intenção do falante e a interpretação do seu interlocutor.
Dik (1978, 1989a. apud. Neves, 2004: 80) propõe que uma gramática
funcional, a fim de dar conta da natureza da linguagem, deve apresentar
adequação tipológica, adequação pragmática e adequação psicológica. Uma teoria
tipologicamente adequada é aquela que fornece um sistema de regras que pode ser
aplicado no estudo de qualquer ngua e que conta sistematicamente das
características pelas quais as línguas se assemelham e diferem. Uma vez integrada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
40
a gramática numa teoria pragmática da interação verbal, que é, por definição,
global, pode-se dizer que essa gramática apresenta adequação pragmática. Nesse
tocante, a gramática funcional a saber as características das formas lingüísticas
que são mais pertinentes ao seu uso; e essas características devem ser relacionadas
às regras e aos princípios que regulam a interação verbal.
A adequação psicológica pressupõe a inter-relação entre a competência
lingüística e o comportamento lingüístico. Assim, incluem-se na gramática:
“(i) um modelo de produção (um “gerador”, em termos computacionais); (ii) um
modelo de interpretação; (iii) um estoque de elementos e princípios usados tanto
em (i) como em (ii)”.
(Neves, 2004: 81)
Doravante, deter-nos-emos a refletir sobre a constituição do modelo de Dik.
Nele, os itens lexicais de uma língua são descritos na predicação, e o léxico se
compõe de todos os predicados básicos da língua. O léxico é, portanto, um
estoque de estruturas predicativas básicas. Os predicados designam propriedades
ou relações e se distinguem categorialmente, de acordo com as propriedades
formais e funcionais que apresentam.
A gramática funcional de Dik difere de outros modelos funcionalistas,
porquanto visa à análise da estrutura da sentença, levando em conta a
representação semântica e a estrutura fonética superficial.
Inicialmente, postula-se uma predicação subjacente, que é atualizada numa
forma de expressão, mediante regras que determinam a forma e a ordem em que
se dispõem os constituintes da predicação. A predicação se constrói mediante a
inserção de termos (que se referem a unidades em um determinado mundo) em
estruturas de predicado (as quais constituem “esquemas que especificam um
predicado juntamente com um esqueleto das estruturas nas quais ele pode
aparecer” (Neves, 2004:83)).
Um conjunto de estruturas de predicado e um conjunto de termos formam a
predicação. A esses conjuntos Dik
13
chama fundo. No “fundo”, inclui-se o léxico,
o qual encerra as expressões básicas da língua (os termos e predicados básicos).
Os termos e os predicados básicos podem ser ampliados mediante regras
produtivas, do que resultam termos e predicados derivados. O “fundo” constitui,
pois, um estoque de predicados e de termos ilimitado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
41
Explicitamos, a seguir, um exemplo de construção da estrutura predicativa;
antes de fazê-lo, cabem algumas considerações. Para construir a estrutura
subjacente de uma frase
14
, é necessária a seleção de um predicado. O predicado
(ou predicador) é o verbo, que designa propriedades ou relações. É o predicado
que estabelece a relação predicativa: ele determina o número de termos que o
acompanham e a eles atribui um papel semântico. A predicação, que é
estabelecida pelo predicado (verbo), designa um estado-de-coisas. O estado-de-
coisas é a codificação lingüística (provavelmente também cognitiva) da situação,
realizada pelo falante.
O exemplo que se segue foi colhido de Neves (2004:84):
Termo Predicado Termo Termo
Predicação Pedro entregar o livro à menina
Estado-de-coisas entidade 1 relação entidade 2 entidade 3
(h) Pedro entregar o livro à menina
Estabelecida a predicação, note-se que três entidades se relacionam, a cada
uma das quais atribui o predicado um papel semântico (ou temático):
Entidades 1 2 3
Papel semântico agente objeto recebedor
Termos Pedro livro menina
13. Dik (1989, p. 51 et seq. Apud. Neves, 2004: 83).
14. Dik usa o termo “cláusula”, que se refere à frase ou à oração.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
42
3
A Gramática de valências
Em Lingüística, o estudo sintático tem-se assentado em dois princípios de
análise: a constituência e a dependência. A constituência ou análise em
constituintes imediatos (IC) repousa na idéia de que a frase se estrutura
hierarquicamente mediante categorias sintáticas (N, SN, V, SV, etc.). A
dependência, a seu turno, assenta na idéia de que as unidades frasais são
interdependentes. A relação de dependência pode ser encarada como uma relação
de (co)ocorrência, de modo que uma unidade dependerá de outra, se a
possibilidade de ela ocorrer exigir a presença da outra.
A gramática de dependências toma o verbo como elemento central da
estrutura da frase elemento do qual dependem todos os demais. A gramática de
valências é, pois, um desdobramento da gramática de dependências.
A gramática de valências considera, portanto, o verbo como o elemento
central da frase e trata a relação entre esse centro e os demais elementos
dependentes sob dois pontos de vista: um sintático e outro semântico.
3.1
O conceito de valência
Em seu livro Gramática de valências (1986), Busse e Vilela dão-nos a saber
a definição de valência:
“Chamamos valência ao número de lugares vazios previstos e implicados pelo
(significado do) lexema. São precisamente os verbos que apresentam de modo mais
evidente estruturas relacionais do tipo valencial”.
(grifo no original)
Urge ter em conta o que os autores entendem por “lugares vazios”. Um
lugar vazio ou argumento, segundo os autores, é “(...) o termo contido na estrutura
de outro termo”. Assim, o verbo dar, por exemplo, prevê três lugares vazios: o
primeiro corresponde ao “dador” (sujeito); o segundo, ao “dado” (objeto direto); o
terceiro, ao “recebedor” (objeto indireto). Vale dizer que os tradicionalmente
chamados “complementos” do verbo, entre os quais se inclui o sujeito na teoria de
valências, são considerados variáveis do verbo, a saber, constituem lugares vazios
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
43
previstos pela semântica do verbo, que devem ser atualizados lexicalmente na
estrutura frasal. Destarte, a estrutura relacional ou valencial do verbo pode ser
formalizada mediante variáveis como x, y e z. A estrutura relacional de um verbo
como dar é formalizada como “X dá Y a Z”. O verbo beber, por exemplo,
apresenta a seguinte estrutura relacional: X bebeY.
A cada um dos lugares vazios previstos pelo significado do verbo,
representados com aquelas variáveis, a gramática de valências chama actantes.
Portanto, diz-se que o verbo dar prevê três actantes; e o verbo beber, dois.
Ressalte-se que o termo valência aplica-se a classes de palavras que apresentam
significado lexical, a saber, ao significado que “corresponde à organização do
mundo extralingüístico mediante as línguas” (Bechara, 2002:109). Esse termo
aplica-se ao verbo, ao substantivo e ao adjetivo (às vezes, ao advérbio).
O termo actantes aplica-se a uma gama de complementos do verbo da
gramática tradicional, entre os quais incluem-se o objeto direto, o objeto indireto,
o complemento relativo, etc. Alguns dos chamados “adjuntos adverbiais” da
gramática tradicional são classificados na teoria de valências como circunstantes.
Os circunstantes são, portanto, termos que exprimem idéia de circunstância
(tempo, lugar, modo, etc.) que não são previstos pela valência do verbo. Todavia,
nem todos os termos de valor circunstancial, que, na gramática tradicional, é
considerado adjunto adverbial, é um circunstante; por isso, impõe-se reconhecer
que um termo é circunstante não porque veicula idéia de circunstância e se
identifica com um adjunto adverbial qualquer, mas também (e principalmente)
porque não é previsto pela valência do verbo. Assim, em “Coloquei o livro na
estante hoje às três horas da tarde”, o termo “na estante”, embora indique idéia de
circunstância (lugar), é previsto pelo significado do verbo “colocar” (X coloca Y
em Z(= lugar)); os termos “hoje” e às três horas da tarde”, que exprimem ambos
idéia de “tempo”, não são previstos. Portanto, “na estante” é um actante; “hoje” e
“às três horas da tarde” são circunstantes.
Evidentemente, critérios formais para identificar os diferentes tipos de
actantes e para distingui-los dos circunstantes. O caso apresentado acima constitui
um exemplo a que esses critérios não se aplicam satisfatoriamente. Por exemplo,
um dos meios para se identificar um actante é aplicar formas como “(o)que”,
“quem” introduzindo perguntas. Assim, na frase “Pedro bebe vinho”, reconhece-
se o complemento direto mediante a formulação de uma pergunta introduzida por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
44
“o que”: “o que Pedro bebe?”. A forma “o que” corresponde a “vinho”, que é o
complemento direto de “beber”. Na teoria de valências, tal termo corresponde ao
actante 2 (A
2
). Reconhece-se o sujeito mediante a formulação de um pergunta
com a forma “quem”: “Quem bebe vinho?”. “Quem” corresponde a “Pedro”, que
é, pois, o actante 1 (A
1
).
Para saber se um termo é circunstante, basta-nos formular uma pergunta
introduzida por uma das seguintes formas “quando”, “onde”, “como”, “por que
(Koch&Vilela, 2001: 347). A forma “quando” corresponde a idéia de tempo; a
forma “onde”, a idéia de “lugar”; a forma “como”, a de “modo”; e a forma
“quanto”, de medida ou valor. Tomando-se para exemplo a frase anteriormente
citada e incluindo nela o termo “todos os sábados”, procedimento de que resulta
“Pedro bebe vinho todos os sábados”, pode-se formular uma pergunta iniciada por
“quando”: “quando Pedro bebe vinho?”. “Quando” corresponde a “todos os
sábados”, que é um circunstante.
Entretanto, como mencionamos, o critério exposto acima, não se aplica
satisfatoriamente ao exemplo com o verbo “colocar”, porque, embora “na estante”
sirva de resposta a uma pergunta introduzida por “onde” (“onde eu coloquei o
livro?”), esse termo é previsto pela valência do verbo; portanto, é um actante, e
não um circunstante.
Cabe acrescentar que Bussi e Vilela (1986: 25) consideram um termo como
“à (para) Raquel”, em “O Pedro constrói um baloiço à Raquel”, como um
circunstante “que pode apresentar a mesma estrutura que o objeto indireto” (p.25).
Adotamos o mesmo ponto de vista dos autores e consideramos os dativos “livres”,
funções sintático-discursivas que serão estudadas no capítulo quinto, como
“circunstantes”.
O método da pronominalização também é lido para reconhecer os
diferentes tipos de actantes. Em nossa frase-exemplo, “Pedro” pode ser
substituído pela forma “ele”; “vinho”, a seu turno, pode ser permutado com “o”. A
forma “ele” cumpre, via de regra, a função de sujeito; e a forma “o”, a de objeto
direto. Portanto, “ele” corresponde ao A1; e “o”, ao A2.
Valendo-se do pró-verbo “fazer”, por exemplo, amparado pelo pronome
“o”, pode-se também distinguir entre um actante e um circunstante. Vejam-se os
seguintes exemplos:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
45
(i) Meu avô leu uma história para o meu irmão.
(j) Meu avô deu uma bicicleta para o meu irmão.
Em (i), para saber se “para o meu irmão” é um actante ou um circunstante,
basta-nos reformular a frase introduzindo o conjunto formado por pronome “o” e
pró-verbo: Meu avô leu uma história e o fez para o meu irmão. Veja-se que a
introdução do pró-verbo não fere a estrutura sintático-semântica da frase. Ao
contrário, a inserção dessa forma, em (j), não é natural: *Meu avô deu uma
bicicleta e o fez para o meu irmão. A possibilidade de inserção do pró-verbo em
(i) patenteia o caráter circunstancial do termo “para o meu irmão”, que não está
intimamente relacionado ao verbo, senão ao complexo verbal que inclui os
complementos e possíveis adjuntos. Note-se que a relação do circunstante com o
verbo e os seus actantes é de natureza adjuntiva; em (j), a inserção do pró-verbo,
como não é natural, patenteia haver entre “para o meu irmão” e o verbo “dar” uma
relação de subordinação; portanto, indica ser esse termo um actante.
Todos os métodos apresentados pretendem dar testemunho de nossa intuição
sobre o caráter completivo ou adjunto dos elementos frásicos. Alguns métodos são
mais adequados a certos casos; outros parecem ser menos confiáveis; mas todos
decorrem do esforço intelectual de nossos estudiosos para descrever e explicar a
natureza das relações sintáticas entre os signos lingüísticos.
Cabe dizer que, dentre os nossos mais renomados estudiosos, Azeredo é um
dos que mencionam o conceito de valência. Em sua obra Fundamentos de
Gramática do Português (2002), à página 172, na seção 347, o autor define
valência do verbo como “[o] conjunto das posições estruturais que irradiam
desse verbo”. O autor ensina que um verbo como dizer seleciona obrigatoriamente
dois actantes e opcionalmente três: X disse Y (a Z). Refere a seguinte frase:
“Manuel disse um segredo a Maria. O termo à direita do verbo, “Manuel”, é o
actante 1 (sujeito); o termo disposto imediatamente à esquerda – “um segredo” – é
o actante 2 (objeto direto); e o termo “a Maria”, disposto após o objeto direto, é o
actante 3. Esse actante é, segundo Azeredo, opcional. Concordamos em que o A
3
é, em muitos casos, um actante facultativo.
Neste trabalho, interessa-nos estudar o comportamento sintático-semântico
do A
3
, o qual apresenta as seguintes características morfossintáticas e semânticas:
- é introduzido, de regra, pela preposição “a”;
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
46
- é cliticizável em “lhe”/”lhes” (bem como nas formas “me”, “te”, “se”,
“nos”, “vos”);
- serve de resposta a perguntas introduzidas por “a/para quem?”;
- denota o ser animado a quem se destina a ação verbal.
Reitere-se que intentamos demonstrar que o pronome “lhe”- marca própria
do A
3
(objeto indireto) - cumpre outras funções não-actanciais.
No que toca à centralidade do verbo na teoria de valências, cumpre destacar
que o verbo (predicado) não é responsável por determinar o número de lugares
vazios, bem como por determinar morfossintática e semanticamente os seus
actantes. Assim, de acordo com o número de lugares vazios, há verbos que
prevêem apenas um lugar vazio; outros que prevêem dois lugares vazios; e outros
que prevêem três lugares vazios. Também verbos que não prevêem lugar vazio
algum. Os verbos que prevêem apenas um lugar-vazio chamam-se monovalente;
os que prevêem dois lugares vazios, bivalentes; os que prevêem três lugares
vazios, trivalentes; e os que não prevêem lugar vazio, avalentes. autores que
admitem a existência de verbos que prevêem quatro lugares vazios, chamados,
pois, de tetravalentes (cf. X traduzir alguma coisa de Y para Z).
Do ponto de vista morfossintático, o verbo é que determina a marca ou
ausência de marca preposicional nos seus actantes. Do ponto de vista estritamente
sintático, é o verbo que determina a pronominalização; assim, certos actantes são
passíveis de substituição por tal ou qual pronome de acordo com o verbo de que
dependem. Por exemplo, em “Pedro obedece ao pai”, o termo “ao pai” pode ser
substituído por “lhe” ou pela forma tônica “a ele”; mas em “Pedro recorreu ao
pai”, esse mesmo termo não admite substituição por “lhe”, senão pela forma “a
ele”. Portanto, embora o pronome “lhe” cliticize, via de regra, estruturas encetadas
por “a”, casos em que não é possível o emprego dessa forma pronominal, em
virtude da natureza do verbo. Certos verbos rejeitam o emprego de “lhe”, como,
por exemplo, “assistir” (= ver, presenciar).
Ademais, de acordo com o verbo, os actantes podem revestir a forma de
sintagmas nominais, orações completivas ou reduzidas. Assim, o verbo “custar”
exige que o seu sujeito assuma a forma de uma oração de infinitivo: “Custa-me
aceitar sua decisão”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
47
Do ponto de vista semântico, a natureza verbal determinará a classe
semântica de seus actantes, ou seja, exigirá que seus actantes, para ocupar
determinada posição estrutural, apresentem tal ou qual traço sêmico. Por exemplo,
o verbo “beber” exige um actante que apresente o traço [+ animado] para ocupar a
posição de sujeito; orações como “A caneca bebe água” é inaceitável, porque
“caneca” é um substantivo [- animado] e, portanto, é rejeitado para ocupar tal
posição. Por outro lado, em “o menino bebe água”, a forma “menino”, com
apresentar o traço [+ humano], pode ocupar a posição de sujeito de “beber”.
Outrossim, é o verbo que determina os papéis temáticos desempenhados
pelos seus actantes. Melhor seria dizer que o verbo institui um determinado
estado-de-coisas e, de acordo com esse estado-de-coisas, os seus actantes
cumprem um determinado papel temático. Note-se que “chave” e “menino”
cumprem papéis temáticos (ou semânticos) diferentes, nas seguintes frases:
(l ) A chave abriu a porta.
(m) A chave quebrou.
(n) O menino caiu (no chão).
(o) O menino quebrou o brinquedo da irmã.
Em (l), veja-se que “chave” cumpre o papel temático de “instrumento”; em
(m), cumpre o papel de “objeto afetado”. Veja-se que, em (n), “menino” cumpre o
papel de “paciente”; em (o), de “agente”.
Segue-se, na próxima página, quatro dos dez actantes apresentados em
Busse e Vilela (1986: 35), dos quais destacamos as características formais. Esses
quatro actantes são os mais pertinentes ao nosso trabalho. A ser necessário nos
referir a outro tipo de actante, apresentaremos suas características no lugar
adequado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
48
3.2
Alguns tipos de actantes
- A
1
: sujeito tradicional
Posição estrutural (PE): antes do verbo.
Pronominalização: eu, tu, ele, isto ...
Interrogação: que, quem + V ?
- A
2
: objeto direto tradicional
PE: depois do verbo
Pronominalização: me, te, se, nos, a, o...
Interrogação: (o) que, quem + A
1
+ V?
- A
3
: objeto indireto tradicional
Marca estrutural: preposição a
Pronominalização: me, te, se, nos, lhe ...
Interrogação: a quem + A
1
+ V...?
- A
4
: complemento relativo
Marca estrutural: de, a, com, em...
Pronominalização: preposição + pronome oblíquo (ou demonstrativo) de/
a/ em + mim, ti, si, ela, ele, isso...
Interrogação: de/ a/ em ... que / quem + A
1
+ V...
Cumpre dizer que uma das diferenças formais entre o objeto indireto e o
complemento relativo repousa no fato de o pronome “lhe” não poder desempenhar
essa última função (A
4
). O constituinte que funciona como A
4
não é cliticizável
em “lhe”; é substituível pelas formas tônicas “ele”, “ela”, “eles” e “elas”,
antecedidas da preposição selecionada pelo verbo, consoante ensina Rocha Lima
(2001:252).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
49
4
O objeto indireto na tradição gramatical
Neste capítulo, passaremos em revista o tratamento do A
3
, tradicionalmente
chamado de “objeto indireto” nos mais importantes tratados gramaticais da língua
portuguesa. Dentre os autores mais renomados de nossa literatura gramatical,
destaquem-se Soares Barbosa, Maximino Maciel, Said Ali, J. Mattoso Câmara Jr.,
Carlos Henrique da Rocha Lima, Adriano da Gama Kury, Celso Cunha e Evanildo
Bechara. Esse elenco de autores, a que se somam outros gramáticos, foi
apresentado por Vera Lúcia Paredes Pereira da Silva, em sua dissertação de
mestrado, intitulada de Complementos Verbais regidos de A transformáveis em
LHE (1974, PUC-Rio). Entre os trabalhos a que dispensou atenção a autora, não
tivemos acesso aos de Soares Barbosa, Maximino Maciel, Adriano da Gama Kury
e Said Ali (“Gramática Secundária”). Vamo-nos limitar a referir os pontos mais
relevantes dos trabalhos desses três autores, destacados na dissertação de Silva; e
nos deteremos na apresentação e discussão do tratamento dispensado pelos demais
autores. Reitere-se que o elenco de autores apresentado por Silva não se restringe
aos oito autores referidos por nós. Nossa seleção se estriba na maior contribuição
de um e outro autor ao desenvolvimento de nosso trabalho: as características mais
relevantes do objeto indireto são claramente apresentadas nesses autores; ademais,
casos controvertidos de objeto indireto (que têm implicância na questão dos
dativos) também são lembrados em seus trabalhos.
4.1
Soares Barbosa
O primeiro dentre os autores destacados por Vera Lúcia é Soares Barbosa,
autor cuja obra Gramática Filosófica data do início do século XIX (1803). No
capítulo “Sintaxe de Regência”, o autor dedica-se ao estudo dos complementos,
quer nominais, quer verbais. No que toca aos complementos verbais, segundo
Barbosa, deve-se distinguir entre o “complemento objetivo” e o complemento
terminativo”, funções sintáticas que o autor relaciona, respectivamente, aos casos
latinos “acusativo” e “dativo”. Esses dois tipos de complementos servem para
completar o sentido relativo dos termos regentes (caso em que a complementação
é necessária). Barbosa define o complemento objetivo sob os pontos de vista
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
50
semântico e sintático: do ponto de vista semântico, o complemento objetivo se
caracteriza por representar o objeto sobre o qual recai a ação verbal; do ponto de
vista formal, é o termo com o qual se responde à pergunta “o que?”. O
complemento terminativo, a seu turno, é aquele que completa a significação
relativa das palavras regentes. Consoante observa Soares Barbosa, assim como as
significações relativas são distintas, assim também as preposições que se
empregam com esse tipo de complemento o são. Entre as preposições que
encabeçam o complemento terminativo, inclui o autor a preposição “a”. Aponta
como outra característica do complemento terminativo a possibilidade de
permutá-lo com “lhe”, forma pronominal que, segundo ele, desempenha sempre
essa função.
O complemento terminativo equivale ao objeto indireto lato sensu, a saber,
àquele que completa o sentido de verbo transitivo indireto (entendido esse tipo de
verbo como o verbo que seleciona uma preposição obrigatória). No que tange ao
uso da preposição “a”, observa Soares Barbosa que se usa “a” normalmente para
encabeçar o complemento cujo núcleo é substantivo [+ animado].
4.2
Maximino Maciel
Vera Lúcia Paredes P. da Silva, à gina 20, ao se referir à contribuição do
trabalho de Maximino Maciel, assim se expressou:
“O gramático sergipano, que afirma na Introdução de sua Gramática Descritiva
apresentar uma orientação totalmente diferente da que até então se havia feito em
língua portuguesa, realmente tem pontos de vista que o distanciam dos demais
autores estudados (...)”
No capítulo destinado ao estudo da Sintaxologia, que se subdivide em
“Sintaxe relacional”, “Sintaxe fraseológica” e “Sintaxe literária”, o autor dispensa
atenção à questão da complementação verbal. Na seção “Sintaxe relacional”, se
ocupa com as funções ou relações entre os vocábulos na sentença. Entende por
“função” o papel que as palavras cumprem na frase em virtude de estabelecerem
entre si uma dependência recíproca.
Maximino Maciel faz alusão a seis funções sintáticas, entre as quais inclui a
função objetiva, que é definida como aquela a que se transmite de modo mediato
ou imediato a ação do verbo de significação incompleta. Distingue o autor entre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
51
objeto direto e objeto indireto, conquanto os trate conjuntamente. Outrossim não
se refere a aspectos semânticos dessas funções. Restringe-se a arrolar palavras e
expressões que normalmente desempenham essas funções. Para o autor, o objeto
indireto pode ser introduzido por diversas preposições (a, de, por, em, com, para,
etc.).
Ressalte-se que o conceito de objeto indireto se estende a complementos de
nomes (substantivos e adjetivos). Destarte, o termo destacado nos seguintes
sintagmas é considerado objeto indireto: “inclinação ao mal”, “vocação às artes”,
“ávido de carinho”, “desejoso de amor”. O critério adotado por Maximino,
mediante o qual caracteriza o objeto indireto, é a obrigatoriedade de
complementação, por meio de preposição.
Não menos importante é a referência a expressões encabeçadas pelos
chamados “verbos suporte” (dos quais nos ocuparemos alhures), que equivalem a
uma construção cujo núcleo é o verbo simples acompanhado de um complemento,
tais como “ter estima a alguém – estimar alguém”, “ter gratidão a alguém
agradecer a alguém”, etc. Maximino Maciel considera o termo encetado por “a”
que cumpre a função de complemento dos nomes “estima” e “gratidão” como
objeto indireto
15
.
Finalmente, ao considerar como objeto indireto o complemento oracional de
certos substantivos, Maximino Maciel afirma que a análise gramatical se assenta
prioritariamente na forma e não no conteúdo lógico das sentenças.
4.3
Said Ali
Mestre M. Said Ali, que influenciou marcadamente a obra de Evanildo
Bechara - seu discípulo -, à página 164 de sua Gramática Histórica da Língua
Portuguesa (1964), distribui os verbos em duas classes: a transitiva e a
intransitiva. Os verbos transitivos são entendidos como verbos “cujo sentido se
completa com um substantivo usado sem preposição (..)” (Ali, 1964:164). O autor
acrescenta que, embora transitivos, alguns verbos se podem acompanhar de um
complemento introduzido por “a”, que não é, pois, obrigatório (trata-se dos casos
de “objeto direto preposicionado”).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
52
O termo que completa o sentido de um verbo transitivo é denominado de
“objeto direto”; semanticamente, o objeto direto representa “a pessoa ou cousa
que recebe a ação” (id.ibid.); pode representar, porém, o resultado da ação verbal,
ou também “o ponto de partida para onde se dirige um sentimento” (id.ibid.) (cf.
Otelo ama (a) Iago).. O objeto direto se relaciona, segundo o autor, ao acusativo
latino.
Vale notar que a preposição “a”, quer na função de objeto direto
(preposicionado), quer na função de objeto indireto, se prende a substantivo [+
animado], muito embora também possa ser empregada por necessidade de clareza.
15. Nesse tocante, concordamos com Vera cia Paredes: o complemento introduzido por
“a”, nesses casos, é selecionado pelo substantivo, e não pelo verbo. Veja-se que a substituição de
“gratidão” por “compaixão”, por exemplo, implica o uso de outra preposição, que é selecionada
por “compaixão” (cf. ter amor ao próximo/ ter compaixão para com o próximo). Coteje-se “dar
testemunho de” a “dar uma olhada em”. Ora, as preposições “de” e “em” são exigidas por
“testemunho” e “olhada”, respectivamente. Veja-se que esses substantivos podem aparecer fora
desses giros, regendo as referidas preposições: “A sua gratidão ao professor significa que você
reconhece o valor dele”; “A compaixão para com seu irmão deve ser cultivada em seu coração”;
“A olhada na prova foi muito rápida”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
53
Said Ali observa que, certos verbos, tais como dar, entregar, pedir, mostrar,
dedicar, entre outros, posto que exijam objeto direto, não se nos apresentam com
significação completa. Tais verbos exigem um outro termo que lhes complete o
significado. Esse termo tem como núcleo um substantivo que designa um ente a
que a ação verbal se destina. O autor acrescenta que este termo, “(...) precedido
sempre da preposição a, denomina-se de objeto indireto, ou, particularizando,
objeto dativo” (id.ibid.).
Ademais, Said Ali restringe as formas “o”, “a”, “os”, “as” à função de
objeto direto ou acusativo; as formas “lhe”, “lhes” cumprem particularmente a
função de dativo ou objeto indireto. No que toca à função dativa, o autor observa
que o dativo também representa a entidade a quem a ação verbal aproveita ou
desaproveita. Conclui que é “um têrmo necessário para alguns verbos, porém
acessórios para outros” (Ali, pp. 164-165). Relacionadas intimamente ao dativo
estão as noções de “posse”, “lugar”/ “direção”, etc.
Os verbos intransitivos, segundo o mestre, caracterizam-se por não exigir
objeto direto e subdividem-se em “intransitivos absolutos” e “intransitivos
relativos”. Note-se que essa noção de verbos intransitivos difere da noção
tradicional, isto é, os verbos são intransitivos não porque dispensam qualquer
complemento, senão porque dispensam o complemento ou objeto direto. Logo,
são exemplos de verbos intransitivos absolutos (ou seja, que dispensam qualquer
complemento) viver e chorar; também se incluem entre os intransitivos, ou, mais
propriamente, entre os intransitivos relativos, depender, precisar. Said Ali chama
ao complemento desses últimos verbos “objeto indireto”. Com encerrar, muita
vez, idéia circunstancial, propõe o autor que se chame a esse termo também
“objeto indireto circunstancial”.
A noção de transitividade em Said Ali, portanto, não se assenta na
necessidade de complementação (concepção tradicional), senão no fato de o
objeto direto representar o paciente da ação verbal; nem todo objeto direto,
contudo, representa o paciente da ação verbal.
Em sua Gramática Secundária, a que faz referência Silva, Said Ali
classifica os termos da oração em dois grupos: os integrantes e os acessórios. São
integrantes, segundo o mestre, os termos que completam o sentido de verbos
transitivos e intransitivos; são acessórios aqueles que individuam ou acrescentam
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
54
qualquer adendo ao sujeito, predicado ou complemento. Entre os integrantes,
inclui o mestre o objeto direto e o objeto indireto.
Atente-se ao fato de que a oposição ‘acessório x integrante (ou obrigatório)’
não se nota distintamente nos fatos da língua. Basta-nos essa observação,
porquanto uma discussão mais detida sobre esse ponto implicaria digressão.
4.4
Joaquim Mattoso Câmara Jr.
Não obstante incluirmos, neste capítulo, pontos de vista de gramáticos sobre
o objeto indireto, cuidamos ser necessário referir a contribuição do professor
Mattoso Câmara Jr., pela sua competência indiscutível enquanto lingüista (o
maior lingüista brasileiro).
Em seu Dicionário de Lingüística e Gramática (2002)
16
, à página 75, no
verbete complementos, ensina Mattoso:
“[os complementos o] vocábulos ou expressões que podem acompanhar o verbo
de uma oração (...) completando ou ampliando a comunicação lingüística feita no
predicado”.
O autor refere vários tipos de complementos, entre os quais inclui os
complementos objetivos, que se caracterizam, semanticamente, por exprimirem “o
objeto ou o alvo do processo verbal”. Ademais, tais complementos “acompanham
os verbos ditos de predicação incompleta”. Do ponto de vista formal, tais
complementos podem ser representados pelas formas clíticas “o(s)”, “a(s)”,
“lhe(s)”.
Atentando-se ao verbete transitividade, à página 235, que considerar,
segundo Mattoso, dois sentidos com que a palavra “transitividade” é empregada.
Em sentido estrito, transitividade diz respeito à “(...) necessidade, que há em
muitos verbos, de se acompanharem de objeto direto que complete a sua
predicação”. Acrescenta Mattoso que, em línguas em que se verifica a categoria
de casos (como em latim), esse complemento imprescindível é expresso pelo
‘acusativo’. Outrossim observa que a designação verbos transitivos se justifica,
em latim, pela possibilidade de tais verbos poderem construir-se na voz passiva,
mediante uma transformação tal, que o objeto da voz ativa passa a sujeito
paciente, no caso nominativo. Segundo Mattoso, os verbos chamados de
“intransitivos” não permitem tal transformação.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
55
Em sentido lato, o conceito de transitividade se estende aos casos em que
figura na frase um outro complemento, encetado por preposição obrigatória, a que
se o nome de objeto indireto. Porém, observa Mattoso que é “conveniente (...)
manter o conceito estrito de transitividade, que corresponde, também em
português, à possibilidade de transformação na construção passiva analítica”.
Disso se segue que o autor propõe que se subdividam os verbos intransitivos em
duas classes: os intransitivos relativos (cujo complemento é o objeto indireto); e
os intransitivos absolutos (que não exigem qualquer complemento, salvo casos
raros)
17
.
No verbete objetos, à página 180, Mattoso Câmara pormenoriza a questão
dos complementos objetivos, que são o tipo de complementos que nos interessam.
Do ponto de vista formal, refere a possibilidade de o complemento objetivo ser
expresso pelos pronomes clíticos: “o”, “a”, “os”, “as” cumprem a função de objeto
direto; “lhe” e “lhes”, a de objeto indireto. Alude ao aspecto semântico,
observando que tais complementos representam “o alvo do processo verbal, sobre
o qual incide (objeto direto) (...), ou para o qual o processo serve de termo de
referência”.
O objeto direto é um complemento não-marcado, a saber, não precedido de
preposição obrigatória; o objeto indireto, ao contrário, é um complemento
marcado, isto é, introduzido pela preposição “a”.
Entretanto, sabe-se que certos verbos exigem preposição diferente de a”
quando da relação com o seu complemento, o qual é semanticamente semelhante
ao objeto direto, conquanto não possa ser expresso pelas formas clíticas “o”, “a”,
“os”, “as”; analogamente, objeto direto (representando um ser animado) que
pode ser introduzido de “a” e é permutável por aquelas formas. No primeiro caso,
muitos gramáticos consideram tais complementos (ex.: tratar de alguém, depender
de alguém) objetos indiretos; no segundo caso, uma variante estilística do
objeto direto propriamente dito, denominada de objeto direto preposicionado.
16. A primeira edição foi publicada com o título de “Dicionário de Fatos Gramaticais, pelo
Centro de Pesquisas da Casa Rui Barbosa, MEC, Coleção Estudos Filológicos, 1.
17. Para Mattoso, o verbo “ir” exige um complemento de lugar encabeçado pela preposição
“a”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
56
Mattoso propõe, pois, que se distinga entre o objeto indireto stricto sensu, o
qual se caracteriza por ser introduzido de “a” e ser transformável em “lhe”; e o
objeto indireto lato sensu, que podem apresentar as características do primeiro
tipo, mas também pode ser regido de uma preposição diferente de “a”, admitindo
a substituição por um pronome oblíquo (que se prende a preposição regida pelo
verbo, como, por exemplo, em “precisamos dele” ou “assistimos a ele”).
Esse ponto de vista é esposado por muitos gramáticos, alguns dos quais
serão apresentados a seguir.
4.5
Carlos Henrique da Rocha Lima
A questão dos complementos verbais interessou bastante a Rocha Lima.
Segundo Rocha Lima, que distinguir entre três tipos de complementos
verbais: o objeto direto, o objeto indireto e o complemento relativo. Os dois
últimos complementos nos interessam aqui.
Em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (2001), à página 248,
o autor define o objeto indireto do ponto de vista semântico:
“o objeto indireto representa o ser animado a que se dirige ou destina a ação ou
estado que o processo verbal expressa”.
(grifo nosso)
Do ponto de vista formal, o objeto indireto apresenta as seguintes
características, apontadas por Lima, na página 249:
1) é introduzido da preposição a (às vezes para);
2) na terceira pessoa, corresponde às formas clíticas lhe e lhes;
3) Não admite a passagem para a função de sujeito na voz passiva, salvo
raríssimas exceções.
Importa considerar que, segundo Rocha Lima, “o objeto indireto pode
figurar em qualquer tipo de predicado (verbal, nominal, verbo-nominal)(p.249).
Acrescenta que pode figurar também em predicados com verbos intransitivos ou
com verbos na voz passiva. Conquanto o objeto indireto se inclua no capítulo
destinado ao estudo dos complementos verbais, não é, a rigor, um complemento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
57
do verbo, senão um complemento da oração. Para Rocha Lima, o objeto indireto,
muitas vezes, independe do regime do verbo.
Vale ressaltar que a lição de Rocha Lima destoa, de certo modo, das lições
mais corriqueiras, contempladas nos bancos escolares. Ou seja, o objeto indireto,
que tradicionalmente é definido de acordo com esquemas sintáticos relativamente
“fixos”, pode figurar em predicados diversos. Novamente, o rótulo “objeto
indireto” parece recobrir funções diferentes, quer do ponto de vista discursivo,
quer do ponto de vista formal. Melhor será dizer que o rótulo se aplica a
variedades da função dativa na sintaxe portuguesa.
Rocha Lima oferece um elenco de esquemas de construção em que figura o
objeto indireto, o qual é transcrito abaixo:
(p) Dar esmola a um mendigo (Dar-lhe esmola)
Escrever a um amigo (Escrever-lhe)
Mandei flores para a noiva. (Mandei-lhe flores)
(q) Beijar o anel ao cardeal. (Beijar-lhe o anel)
(r) Ter respeito aos mais velhos. (Ter-lhes respeito)
Sílvia servia de olhos ao marido (servia-lhe de olhos)
Madre Calcutá foi mãe a muitos desgraçados. (Foi-lhes mãe)
Ouvi essa história aos meus avós. (Ouvi-lhes essa história)
(s) O ancião fez saber aos herdeiros a sua última vontade. (Fez-lhes saber)
(t) A prova pareceu difícil aos estudantes. (Pareceu-lhes difícil).
(u) Obedecer aos superiores. (Obedecer-lhes)
Querer às crianças. (Querer-lhes)
(v) O documento foi entregue ao ministro por mim. (Foi-lhes entregue)
Note-se que Rocha Lima, não fazendo alusão às variedades de dativo,
reúnem vários usos do “lhe”, que deveriam ser tratados como variedades do
dativo, sob o rótulo “objeto indireto”. Não pretendendo pormenorizar a questão
agora, vale destacar o emprego do “lhe” em (q): o pronome cumpre a função de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
58
dativo de posse
18
, ou, para Lima, objeto indireto de posse; e o uso do pronome em
(t), caso em que se refere a uma estrutura ‘a + SN’, que é regida pelo nome
“difícil”. Muitos autores vêem neste caso um complemento nominal.
Imediatamente abaixo ao rol dos esquemas sintáticos transcrito
anteriormente, em que se inclui o objeto indireto, Rocha Lima apresenta vários
casos incontroversos de objeto indireto. Citaremos os mais relevantes.
Primeiramente, anuindo à tendência tradicional de referir os verbos mais comuns
que se constroem com objeto indireto, Rocha Lima dá-nos a saber os seguintes:
dar, oferecer, entregar, doar, dedicar, negar, recusar, dizer, perguntar, contar,
narrar, pedir, rogar, pagar, dever, etc. Conclui ser tipicamente construídos com
objeto indireto os verbos dandi, dicendi, rogandi e seus sinônimos e reversos.
Ressalte-se que, uma vez afirmando o autor que esse caso (e outros, que
posteriormente citou) é um caso incontroverso, parece admitir que alguns dos
esquemas sintáticos referidos anteriormente representam casos controversos, isto
é, casos em que o termo introduzido por “a” (ou “para”) pode não ser, a rigor, um
objeto indireto.
Após nos ter apresentado os verbos que, via de regra, selecionam objeto
indireto, o autor inclui entre os casos incontroversos expressões com verbo
suporte, tais como “ter amor a”, “fazer guerra a”, “pôr freio a”, as quais equivalem
aos verbos simples “amar”, “guerrear”, “frear”, respectivamente. Tais expressões
regiam dativo em latim, mas discordamos de seu ponto de vista, porque não
consideramos os complementos de nomes (substantivos e adjetivos) como objeto
indireto. Nesses casos, o termo regente é o substantivo, e não o verbo; o objeto
indireto é, para nós, um argumento do verbo. A possibilidade de, em muitos
desses casos, usar o pronome “lhe” permite-nos dizer tratar-se de casos de dativo.
Vale lembrar que a função dativa apresenta-se sob forma de complemento de
verbo (objeto indireto), complemento de nome (complemento nominal) e, em
alguns casos, de adjuntos adverbiais (de fim e de direção).Vê-se, pois, que a NGB
cunhou três nomenclaturas que recobrem casos de dativo na sintaxe portuguesa.
Consideremos, doravante, o conceito de complemento relativo. A
denominação complemento relativo foi tomada a Meyer Lübke
19
por Rocha Lima
e aplicada aos tipos de complementos verbais obrigatoriamente preposicionados
que se ligam a verbos de significação relativa. Tal complemento é semelhante
semanticamente ao objeto direto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
59
Rocha Lima, à página 252, distingue o complemento relativo do objeto
indireto, destacando que o primeiro dos complementos representa “o ser sobre o
qual recai a ação”, à semelhança do objeto direto. Ademais, não admite o emprego
das formas lhe e lhes, senão das formas tônicas ele, ela, eles, elas, antecedidas da
preposição selecionada pelo verbo. São exemplos de complementos relativos os
termos destacados a seguir: assistir a um baile (assistir a ele); depender de ajuda
(depender dela); precisar de conselhos (precisar deles), reparar nos outros (reparar
neles), etc.
Uma vez adotando o rótulo complemento relativo”, Rocha Lima patenteia
a diferença ignorada por alguns autores antigos entre complementos
preposicionados que não admitiam substituição por “lhe” e complementos
preposicionados que admitiam essa substituição. Ademais, atentou para o fato de
os complementos permutáveis com “lhe” referirem-se normalmente a uma
entidade [+humano] a que se destina a ação verbal; ao contrário de outros
complementos que, além de não serem permutáveis com “lhe”, representavam a
entidade [+/- animada] afetada pela ação verbal. Em suma, no vasto elenco dos
tradicionalmente chamados “objetos indiretos”, Lima distingue duas classes: a do
objeto indireto - que é, via de regra, introduzido por “a”, permutável com “lhe” e
representa a entidade [+ animado] a que se destina a ação verbal -, e a do
complemento relativo, que é introduzido não por “a”, como também por
qualquer outra preposição (em, de, para, com, etc.), não é permutável com “lhe”,
mas sim com as formas tônicas (ele, ela, eles, elas), e representa a entidade sobre a
qual recai a ação do verbo.
Todavia, casos como “Felipe bateu em Gustavo” (Felipe lhe bateu/ bateu
nele) ficam inexplicáveis. Veja-se que não cabe aqui considerar o “lhe” objeto
indireto, que, de acordo com o ponto de vista de Lima, o objeto indireto é
encetado quase exclusivamente por “a” e representa a entidade a que se destina a
ação (“Gustavo” é indubitavelmente a entidade afetada); as demais preposições
(com exceção de “para”, que pode encabeçar também o objeto indireto às vezes)
introduzem o complemento relativo. Está claro, pois, o emprego do pronome
“lhe” como dativo emprego a que não se pode aplicar sempre o rótulo “objeto
indireto”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
60
18. Vamo-nos ocupar com a questão dos dativos no próximo capítulo.
19. Segundo Vera Lúcia Paredes (1974: 46), o romanista alemão Meyer Lübke reservava o
regime relativo a verbos exclusivamente relativos, tais como “rir” e “zombar”, que expressam
estado de espírito. Eventualmente, podem reger a preposição “de”. O complemento relativo
assemelha-se, pois, a um adjunto adverbial, de acordo com o ponto de vista de Lübke. Para a
autora, Lima adota a denominação, mas não o conceito, porquanto considera o complemento
relativo semelhante semanticamente ao objeto direto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
61
4.6
Adriano da Gama Kury
Como não tivéssemos acesso ao trabalho de Kury, recorremos à exposição
de Silva (1974:46), que, baseando-se no livro Lições de Análise Sintática desse
autor, dá-nos a conhecer o tratamento dispensado aos complementos verbais,
dentre os quais destaca-se o objeto indireto.
Silva observa, de imediato, que Kury reconhece não ter o objeto indireto
uma caracterização precisa. Não obstante, Kury arrola as características
semânticas e formais desse tipo de complemento. O autor refere-se,
primeiramente, ao aspecto semântico do objeto indireto, observando que
representa o ser para o qual se dirige a ação de um verbo transitivo indireto. Cita o
seguinte exemplo: “Gosto de Música”.
Note-se, em princípio, que Kury adota o ponto de vista tradicional, ao
considerar de música objeto indireto. O autor acrescenta, após citar o exemplo
acima, que constitui um dos casos de objeto indireto que não admite o emprego de
“lhe” (“lhes”).
Kury também apresenta outra definição de objeto indireto. Segundo o autor,
o objeto indireto, quando figura em predicados com verbos bitransitivos,
representa o ser a quem se destina o objeto direto. Kury dá-nos a saber outra
definição, segundo a qual o objeto indireto indica o ser em benefício ou em
prejuízo de quem se realiza a ação. Nesse tocante, o conceito de objeto indireto se
confunde com o conceito de dativo de interesse, como veremos em breve. Note-se
que outros autores, tais como Said Ali e Rocha Lima, caracterizavam desse
modo o objeto indireto.
Kury continua definindo o objeto indireto do ponto de vista semântico.
Apresenta-nos outra definição, que pode ser parafraseada como “entidade em que
se realiza o fato expresso pelo verbo”. O exemplo citado é “Custou muito ao
menino aceitar esta situação”.
O autor também considera objeto indireto o constituinte que é regido por um
substantivo ou adjetivo. O exemplo citado pelo autor é “Tudo lhe é indiferente”,
em que o “lhe” figura no lugar de uma estrutura ‘a__SN’ que é exigida por
“indiferente”. Outro exemplo é a frase “Não lhe tenho medo”, na qual o “lhe”
figura no lugar de uma estrutura ‘a__SN’ que é regida por “medo”. Outros
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
62
exemplos citados pelo autor são “Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro” (de Machado
de Assis), A todos pareceu mudado”. No primeiro caso, “pulsar” não rege o
constituinte a que faz referência o pronome “lhe”. “Pulsar” é um verbo
intransitivo; não seleciona, pois, complemento algum. Ademais, o constituinte a
que se refere o pronome não é encetado de “a”, senão de “em”, e indica idéia de
“lugar” (o coração). No segundo caso, o constituinte “a todos” indica a entidade a
que se relaciona uma opinião.
Kury inclui entre os objetos indiretos casos de dativos livres, tais como o
dativo de posse, designado por ele de “objeto indireto de posse”, o dativo ético, o
qual, aliás, confunde com o dativo de interesse. O exemplo oferecido pelo autor é
“Não me toque no José”. Nesse exemplo, o pronome “me” não cumpre a função
de dativo de interesse, conforme ensina o autor, senão a de dativo ético. Não
obstante, o dativo ético é considerado uma variedade do dativo de interesse, o que
torna difícil, muita vez, a distinção (Climent, 1945:326).
Escusando, por ora, qualquer discussão sobre o comportamento sintático-
discursivo do pronome “me”, veja-se que, Kury, embora entenda o objeto indireto
como um complemento verbal, estende o rótulo a funções que são desempenhadas
por constituintes que não são selecionados pelo verbo, ou seja, que não são
argumentos.
4.7
Celso Cunha
A Nova Gramática do Português Contemporâneo (2001), de Celso Cunha
& Lindley Cintra, distingue-se de outros tratados de gramática por constituir um
estudo influenciado pelas contribuições da lingüística moderna. Haja vista à teoria
de Pottier, no capítulo destinado ao estudo das preposições. Ademais, não se trata
de um estudo normativo, senão de um estudo descritivo que leva em conta “as
diversas normas vigentes dentro do vasto domínio geográfico (principalmente as
admitidas como padrão em Portugal e no Brasil)” (2001: prefácio xxiii). Nota-se,
neste trabalho, uma abordagem que concebe a língua como algo que varia, evolui
no tempo e no espaço.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
63
No capítulo 7, em que os autores tratam dos conceitos de “frase”, “oração” e
“período”, reserva-se uma seção para tratar dos complementos verbais. Veja-se
abaixo a definição de objeto indireto, apresentada pelos autores:
“O OBJETO INDIRETO é o complemento de um verbo transitivo indireto, isto é,
o complemento que se liga ao verbo por meio de preposição”.
(p.143) (grifo no original)
Segue-se a menção às diferentes formas sob as quais se apresenta o objeto
indireto (substantivo, pronome ou numeral substantivo, expressão substantiva e
oração substantiva). Da definição apresentada, pode-se concluir que o objeto
indireto pode vir encabeçado por preposição diversa; portanto, não destaque a
uma ou outra. Nos exemplos apresentados, o objeto indireto é introduzido por “a”,
“de” e “com”.
Na gina 144, após referir o elenco das formas sob as quais se apresenta o
objeto indireto, os autores observam que os pronomes me, te, se, nos, vos, lhe,
lhes podem cumprir a função de objeto indireto. Acrescentam que as formas “lhe”
e “lhes” são “essencialmente OBJETO INDIRETO” (idem - grifo no original).
Não podemos prescindir de apresentar nosso ponto de vista sobre a seguinte
observação, que transcrevemos abaixo:
“Enquanto a preposição que encabeça um ADJUNTO ADVERBIAL possui claro
valor significativo, a que introduz um objeto indireto apresenta acentuado
esvaziamento de sentido. Comparem-se estes exemplos:
Cantava para os amigos. Não duvides de mim.
Viajou para São Paulo. Não saias de casa.
(p.145) (grifo no original)
Cumpre observar que, no capítulo 15, destinado ao estudo das preposições,
à página 559, os autores afirmam corresponder o objeto indireto, que é
introduzido, em geral, pelas preposições a e para, a um movimento em direção
a”, “coincidente com a base significativa daquelas preposições”. Veja-se que os
autores se contradizem. A verdade é que parece haver uma relação entre
‘exigência gramatical/ esvaziamento semântico’, de um lado; e ‘não-exigência
gramatical/ plenitude semântica’, de outro, em alguns casos; mas casos em que
o termo argumental é regido de tal ou qual preposição, em virtude de haver entre
ela o verbo certa “afinidade” semântica. Veja-se, por exemplo, o caso do verbo
“concordar”, do qual se deduz a idéia de “associação”, inerente à preposição
“com”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
64
Não há dúvida de que as preposições que encabeçam os chamados “adjuntos
adverbiais” (sobretudo, aqueles que se empregam com verbos de movimento)
exprimem noções gerais implicadas no significado desses verbos. Em “ir a São
Paulo”, a preposição “a” indica o ponto final de um movimento; uma vez
acrescentado “de__SN”, marcamos o ponto de partida do movimento (cf. “ir do
Rio de Janeiro a São Paulo”). As preposições “a” e “de” têm “contribuição”
semântica no estado-de-coisas designado na oração. Contudo, é igualmente
discutível o caráter acessório dos termos encabeçados por essas preposições nesse
caso. Entendemos que o verbo “ir” rege um complemento circunstancial; portanto,
um termo argumental. Citamos esse exemplo, todavia, por ser representante da
lição tradicional, segundo a qual existem aí adjuntos adverbiais.
Vale atentar para o fato de que, sendo o verbo “semanticamente cheio”,
como o verbo “ir”, o emprego de uma ou outra preposição não exprime
determinados conteúdos semânticos, como também parece depender menos de
uma exigência do sistema lingüístico; a rigor, o emprego depende das
necessidades discursivas do falante. Dada a frase “Felipe foi do Rio de Janeiro a
São Paulo sozinho”, poder-se-ia incluir uma forma “em __SN” para exprimir o
lugar em que estava Felipe quando ele se deslocou do Rio para São Paulo (cf.
Felipe foi do Rio de Janeiro a São Paulo sozinho no carro (do pai). Permutando
“em” com “de”, destaca-se a idéia de “meio”, o que confirma a contribuição
semântica das preposições. Por outro lado, o falante não pode permutar “em” com
a preposição “com”, por exemplo, na frase “confio em você”.
Acreditamos em que a questão do valor semântico da preposição não es
relacionada propriamente ao fato de o verbo ser transitivo ou intransitivo, em
outras palavras, de exigir ou não argumentos, senão ao próprio conteúdo
semântico do verbo. Veja-se que essa questão é normalmente discutida mediante o
confronto de verbos que exprimem idéia de movimento com verbos que exprimem
outra idéia. Por exemplo, é muito mais claro o valor significativo da preposição
“a” na frase com verbo “ir”, anteriormente citada, do que o seu valor significativo
em “anuir ao seu apelo”. Ora, é forçoso insistir numa idéia de “aproximação”
própria de “a” nesse exemplo. A verdade é que não se percebe claramente seu
valor semântico; destaca-se, ao contrário, seu valor sintático. Veja-se também que,
se, por um lado, pode-se argumentar que, uma vez encabeçando termos não-
argumentais, certas preposições apresentam claro valor semântico, como em “Vi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
65
Luísa ontem na escola”, em que a preposição “em” tem valor situacional,
introduzindo um termo que exprime idéia de “lugar onde”; por outro lado, em
“Coloquei o livro na estante”, o termo “na estante” é argumental, sem que a
preposição seja “esvaziada semanticamente”; ora, também marca ‘situação’ e
introduz um termo que exprime idéia de “lugar onde”. Deveras, a tradição ensina
tácita ou claramente a lição segundo a qual idéias circunstanciais são veiculadas
por termos não-argumentais, o que não é verdade. Como se depreende dos
exemplos apresentados, muitas idéias circunstancias, tais como de “lugar”,
“direção”, “tempo”, podem ser expressas por termos argumentais. Ora, na frase,
“marcar uma reunião para amanhã”, o termo “para amanhã” é argumental e
indica idéia de tempo.
Como não seja nosso objetivo discutir detidamente essa questão, bastam-nos
essas considerações. Atentando-se à observação de Cunha e Cintra, vale ressaltar
que os autores consideram “para os amigos” um adjunto adverbial, sem referir-se
ao conteúdo circunstancial que veicula. Para nós, trata-se de um caso típico de
dativo de interesse: é encetado pela preposição “para”, exprime o ser animado em
benefício do qual uma ação se realiza. Esse dativo confunde-se com a idéia de
“fim” em alguns casos; disso se segue entendê-lo como um adjunto adverbial.
Lembramos que a função dativa é classificada ora como objeto indireto, ora como
complemento nominal, ora como adjunto adverbial na tradição gramatical do
português.
Em suma, Celso Cunha adota o ponto de vista tradicional no tratamento do
objeto indireto, isto é, entende que o objeto indireto é qualquer termo
preposicionado que completa o sentido do verbo transitivo indireto. Não se refere
à proeminência de qualquer preposição na forma desse termo; tampouco aponta
aspectos semânticos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
66
4.8
Evanildo Bechara
Embora seu trabalho se oriente pelo modelo gramatical clássico, Bechara
procura fomentar o estudo gramatical tradicional com os fundamentos teóricos da
Lingüística moderna. Há, em sua Moderna Gramática da Língua Portuguesa
(2002), um novo enfoque sobre vários tópicos de gramática.
Interessa-nos o tratamento dado pelo autor aos complementos verbais.
Dentre os tipos de argumentos arrolados pelo autor, importa-nos considerar o
objeto indireto, o qual denota geralmente relação a um ser animado, introduzido
pela preposição a (...)” (p.421). Acrescenta Bechara que “[o objeto indireto]
refere-se à pessoa destinada ou beneficiada pela experiência comunicada no
primeiro momento da intenção comunicativa do predicado (...)” (idem).
Vejam-se as características formais e semânticas do objeto indireto, citadas
por Bechara, ao fim da página 421:
“a) é introduzido apenas pela preposição a (raramente para); b) o signo léxico
denota um ser animado ou concebido como tal; c) expressa o significado gramatical
“beneficiário”, “destinatário”; d) é comutável pelo pronome pessoal objetivo lhe/
lhes (...)”.
O objeto indireto, assim definido, distingue-se, pois, de outro complemento
preposicionado introduzido por preposição diversa, a que se o nome de
“complemento relativo”. O mestre refere-se ao complemento relativo,
identificando-o com o objeto direto, do ponto de vista semântico; mas daquele diz
que é introduzido sempre por preposição (ao contrário, do objeto direto) e que é
comutável pelos pronomes pessoais tônicos ele, ela, eles, elas, antecedidos da
preposição selecionada pelo verbo.
Conquanto inclua o objeto indireto entre os complementos verbais, Bechara
observa o seguinte:
“(...) o complemento indireto é um termo que se distancia mais da delimitação
semântica do predicado complexo e parece melhor um elemento adicional da
intenção comunicativa que, fica, no esquema sintático, a meio caminho entre os
verdadeiros complementos verbais e os adjuntos circunstanciais”.
(p. 422)
Para o mestre, o objeto indireto integra a relação predicativa estabelecida
entre o sujeito e o verbo de forma mediata. Acrescenta que, no uso corrente, em
circunstâncias em que não se verifica elipse ou “auxílio do entorno” (p.422),
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
67
elide-se esse complemento freqüentemente; ao contrário, o objeto direto ou
complemento relativo, segundo o autor, só é calado quando é recuperável na
situação comunicativa. Não se negue que o objeto indireto pareça ter menos valor
argumental, se cotejado com o objeto direto, que, para alguns autores, é o
complemento verbal por excelência; entretanto, assentar nossa intuição em
freqüência de ocorrência não contribui para confirmar uma teoria. Ora, na frase
“Escrevi cartas aos pais”, que é citada por Bechara, pode-se calar tanto o objeto
direto, quanto o objeto indireto. Da mesma sorte, na frase “Vi o acidente”, pode-se
calar o objeto direto. É claro que, nesse último caso, a supressão é recuperável na
situação de fala.
Deveras, de acordo com nossa intuição, o conteúdo semântico veiculado por
“aos pais” parece ter menos relevância ao estado-de-coisas designado na oração;
isto é, a entidade a quem se destina a ação de escrever é um conteúdo mais
facilmente omitido; no entanto, tal intuição não parece ser confirmada pelo
argumento de que um dos termos seja mais facilmente omitido que o outro. Se
assim fosse, deveríamos investigar todas as possibilidades de ocorrência ou não
desses termos e formularmos, posteriormente, uma lista, o que constituiria um
trabalho obsoleto, dada a dinamicidade e adaptabilidade do sistema lingüístico.
Não se pode prever a ocorrência ou não de um e outro termo. Para nós, tanto o
objeto direto quanto objeto indireto são argumentos do verbo; admitimos que o
último destes é, em muitos casos, facultativo; ambos, porém, são previstos pela
valência verbal. Se, por um lado, o objeto indireto, porque representa a entidade a
que se destina a ação do verbo, parece exprimir um conteúdo menos “relevante”,
em alguns casos, ao estado-de-coisas instituído (por isso, mais facilmente
suprimido); por outro lado, esse conteúdo está implicado na semântica do verbo.
Bechara menciona casos em que a preposição “para” encabeça um falso
objeto indireto. Lançaremos olhar sobre essa questão no capítulo destinado ao
tratamento da função dativa. Por ora, cabe acrescentar que o mestre reserva uma
seção para tratar dos chamados “dativos livres”, dos quais, de imediato, diz são
objetos indiretos. Veja-se o excerto que segue:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
68
Os chamados dativos livres os objetos indiretos vistos nesta seção são
argumentos sintático-semânticos extensivos da função predicativa do conteúdo
comunicado nas respectivas orações. Todavia, remanescentes de construções,
algumas das quais da sintaxe latina, aparecem sob forma de objeto indireto,
nominal ou pronominal, alguns termos que não estão direta ou indiretamente
ligados à esfera do predicado: são os chamados dativos livres (...)”.
(p. 423-424) (grifo no original)
Bechara reconhece, pois, que, embora sejam equivalentes estruturalmente a
objetos indiretos, esses termos não estão direta ou indiretamente relacionados ao
domínio da predicação. Pode-se dizer, portanto, que os dativos “livres” são termos
adjuntos, ou, em nossa proposição, circunstantes. Bechara cita quatro variedades
de dativo: o dativo de interesse, o dativo ético, o dativo de posse e o dativo de
opinião. O dativo de interesse (dativus commodi et incommodi) é “aquele
mediante o qual se indica de maneira secundária a quem aproveita ou prejudica a
ação verbal” (p.424). Como exemplo, oferece-nos a seguinte frase: “Ele
trabalha para os seus”. Observa que esse dativo “fica muito próximo da
circunstância de fim ou proveito” (idem.). À página 443, ao tratar dos tipos de
adjunto adverbial, refere a seguinte frase, da qual destaca o adjunto adverbial de
fim: “Mário trabalha para a família”. Ora, os dois termos em destaque veiculam o
“mesmo” conteúdo semântico (afinal, “para os seus” significa “para os
familiares”). Que diferença há afinal entre o dativo de interesse e o adjunto
adverbial de fim? Pretendemos discutir essa questão mais adiante.
O dativo ético é, segundo Bechara, uma variedade do dativo de interesse.
Seu emprego é muito corriqueiro na linguagem corrente. Esse dativo “representa
aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na
execução de um desejo”. Da definição do autor se conclui uma característica
importante desse tipo de dativo, a saber, vincular-se à enunciação, e não ao
enunciado. Não alude o autor ao aspecto formal.
O dativo de posse “exprime o possuidor”. O dativo de opinião “exprime a
opinião de uma pessoa”. São exemplos desses tipos de dativos os termos em
destaque nas seguintes frases, respectivamente: “Doem-me as costas”; Para nós
ela é culpada”.
No fim da página 424, Bechara informa-nos o seguinte:
“Isto evidencia que os pronomes adverbiais átonos, especialmente o caso do lhe
como símbolo formal do objeto indireto, cobrem outras funções além daquela de
complementação verbal.”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
69
Essa observação, feita no final da seção em que tratou dos dativos livres,
motivou-nos a empreender nossa pesquisa sobre a multifuncionalidade do
pronome “lhe”. De fato, o objetivo precípuo de nosso trabalho é patentear essa
multifuncionalidade, bem como determinar as funções desempenhadas por essa
forma pronominal, procurando insistir em que nem todas as ocorrências do lhe”
podem ser tratadas como casos de objeto indireto.
4.9
Conclusão
Em vista do exposto, a título de síntese do tratamento do objeto indireto na
tradição gramatical, podemos classificar os trabalhos de Soares Barbosa,
Maximino Maciel, Said Ali, André da Gama Kury e Celso Cunha no grupo de
autores que entendem o objeto indireto como um termo obrigatoriamente
preposicionado que integra a significação de um verbo (relativo ou transitivo
indireto); Said Ali, Mattoso Câmara Jr., Rocha Lima e Evanildo Bechara
compõem o grupo de autores que caracterizam o objeto indireto de modo
particularizado, distinguindo-o de outro termo preposicionado que serve para
integrar a significação relativa de determinados verbos.
Ficam claras, pois, duas abordagens distintas sobre o objeto indireto: no
primeiro grupo, os autores rotulam de objeto indireto qualquer termo
preposicionado que integra o significado de um verbo ou de um nome (caso
especial de Maximino Maciel e de Kury). Esses autores tratam do objeto indireto
lato sensu, a que se refere Mattoso Câmara. No segundo grupo, os autores
circunscrevem o rótulo “objeto indireto” ao complemento encetado pela
preposição “a” (às vezes para), permutável por “lhe”, que é representado por um
substantivo (ou palavra equivalente) que designa a pessoa a quem se destina a
ação verbal. Distingue-se do objeto indireto outro termo, obrigatoriamente
preposicionado, que representa o ser afetado pela ação verbal e que não é
permutável por “lhe”, senão pelas formas tônicas ele, ela, eles, ela, antecedidas da
respectiva preposição. Esse termo é denominado de “complemento relativo”.
Assim caracterizadas as duas correntes de pensamento, cuidamos necessário
comparar os pontos de vista de cada autor em cada um dos dois grupos, a fim de
que se note uma síntese precisa do tratamento do objeto indireto.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
70
Atente-se ao primeiro grupo, no qual se incluem Soares Barbosa, Maximino
Maciel, André da Gama Kury e Celso Cunha. Norteia o trabalho desses autores a
idéia de que o objeto indireto, do ponto de vista formal, é um termo
preposicionado que completa o sentido de um verbo (relativo, para Soares
Barbosa; transitivo indireto, para Kury e Celso Cunha). Dentre os autores
mencionados, Kury é o que mais se preocupou em definir o objeto indireto
semanticamente. O autor apresenta várias definições, dentre as quais destacamos
duas: “ser para o qual se dirige a ação de um verbo transitivo indireto” e “ser em
benefício ou prejuízo de quem a ão verbal se realiza”. Esta última definição
remonta à origem dativa do objeto indireto e o identifica com o dativo de
interesse. Nesse tocante, o objeto indireto, sendo um dativo subordinado, isto é,
que figura no enunciado por exigência do verbo
20
, abriga uma variedade de
dativo que, não pertencendo à esfera verbal, é antes um termo de valor discursivo,
a saber, circunstancial. Parece conveniente insistir em que o rótulo objeto indireto
tem sido empregado para referir-se a variedades do dativo que não constituem
termos argumentais. Vale reiterar que, embora haja menção ao caráter não-
argumental do objeto indireto, em alguns autores, esse termo é tradicionalmente
considerado um argumento do verbo.
No que toca ao uso do “lhe”, todos os autores (do primeiro e do segundo
grupo) concordam em que o clítico é uma marca do objeto indireto. Kury,
entretanto, observa que há casos em que a permuta por “lhe” não é possível; e isso
se explica pelo fato de o autor não ter atentado, mormente, à distinção formal
entre os termos preposicionados a que atribuía o rótulo objeto indireto.
Veja-se que Soares Barbosa afirma cumprir o “lhe” sempre a função de
objeto indireto. O “lhe” é, pois, uma das marcas do objeto indireto, à qual se reúne
a preposição “a”, para alguns autores.
Excetuando-se Soares Barbosa, Said Ali e Celso Cunha que não faz
referência a este caso -, Kury e Maximino Maciel chamam de objeto indireto o
termo preposicionado que completa o sentido de substantivos e adjetivos (em
alguns casos, também de advérbios) que se relacionam morfologicamente a
verbos. Celso Cunha adota, nesses casos, a nomenclatura complemento nominal.
Ressalte-se que também aqui se nota a função dativa: o “lhe”, que se usa em
alguns desses casos, é, como se vê, tradicionalmente considerado um “objeto
indireto”. Vale transcrever novamente a frase-exemplo de Kury “Tudo lhe é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
71
indiferente”, na qual se nota o pronome “lhe”, desempenhando, segundo o autor, a
função de objeto indireto. Para Celso Cunha, o “lhe” dessa frase cumpre a função
de complemento nominal. Independentemente da nomenclatura adotada, trata-se
de um emprego dativo do pronome.
Atendemos para o segundo grupo doravante. Nesse grupo, incluem-se os
autores que distinguem entre o objeto indireto e o complemento relativo; portanto,
esses autores caracterizam o objeto indireto de modo particularizado.
20. Como veremos, em Sintaxis Histórica de la Lengua Latina (1945), M. Bassols de
Climent distingue entre o dativo subordinado, o qual identifica ao objeto indireto (ou complemento
indireto), e os dativos livres, que não estão direta ou indiretamente relacionados a alguma palavra;
figuram, na frase, por exigência da situação discursiva. Consoante ensina Climent, na seção
“Dativo Subordinado”, “(...) el dativo podia usarse depiendendo de un verbo para indicar la
persona o cosa afectada indirectamente por la acción verbal, o en otras palabras, para introducir el
complemento indirecto”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
72
Mattoso Câmara adota o ponto de vista de Said Ali, no que tange à
transitividade. Para Mattoso, há que distinguir dois sentidos com que é empregado
o termo transitividade: num primeiro sentido, transitividade diz respeito à
necessidade de o verbo ser completado por um termo não-preposicionado, a que
se chama “objeto direto”; num segundo sentido, o conceito de transitividade
abriga a complementação feita pelo objeto indireto. Disso se segue distinguir entre
verbos “intransitivos relativos”, a saber, verbos cujo sentido se completa com
objeto indireto; e verbos “intransitivos absolutos”, ou seja, verbos que não
admitem complemento algum. Os verbos intransitivos são, pois, aqueles que não
exigem objeto direto; este integra a significação de verbos transitivos.
Mattoso Câmara aponta para o fato de se fazer referência, na literatura
gramatical, a dois tipos de objeto indireto: um lato sensu, que compreende termos
encetados por preposição diversa, e permutáveis pelas formas tônicas “ele”, “ela”,
“eles” e elas”; e um stricto sensu, que compreende termos encabeçados
ordinariamente por “a”, permutáveis por “lhe”. É a esse segundo tipo de objeto
indireto a que se referem Rocha Lima (2001) e Evanildo Bechara (2002).
Rocha Lima, como vimos, toma a Lübke a designação “complemento
relativo” e a adapta ao estudo sintático do português. O autor distingue, destarte,
entre o objeto indireto, que é introduzido, via de regra, pela preposição “a” e
permutável por “lhe”, e outro tipo de complemento verbal, introduzido não só pela
preposição “a”, como também por qualquer outra preposição, nunca permutável
por “lhe”, senão pelas formas tônicas “ele”, “ela”, “eles”, “elas”, precedidas da
preposição determinada pelo verbo.
O ilustre gramático afirma poder o objeto indireto inserir-se em predicados
diversos e abriga sob esse rótulo variedades do dativo. Vale dizer que também em
Lima o objeto indireto é tratado na seção de complementos verbais, conquanto
observe que esse termo “situa-se menos como um complemento do verbo (de cujo
regime, na maioria das vezes, independe)(...)”. Para Rocha Lima, o objeto indireto
não parece ser um verdadeiro argumento do verbo.
Embora generalize o emprego do objeto indireto, cita, entre os casos
incontroversos, verbos bitransitivos aos quais se relaciona o objeto indireto, tais
como dar, oferecer, entregar, doar, etc. O autor inclui também entre os casos
incontroversos de objeto indireto não casos de dativos livres, como também
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
73
expressões formadas de verbo (suporte) + substantivo, equivalentes a um verbo
simples, tais como “ter medo a alguém” (temer), “ter amor a” (amar).
Finalmente, Evanildo Bechara é o único, dentre os autores mencionados,
que reservou uma seção para tratar dos dativos livres, os quais são, do ponto de
vista formal - como pondera o mestre - objetos indiretos.
O objeto indireto propriamente dito é definido como um ser animado,
destinatário ou beneficiário da ação verbal. Do ponto de vista formal, é
introduzido pela preposição “a” (raramente “para”) e é permutável pelo clítico
“lhe”. Bechara também considera o objeto indireto um termo adicional, de valor
essencialmente discursivo, muito embora o inclua entre os argumentos do verbo.
Nenhum dos autores mencionados trata do objeto indireto, sem reuni-lo ao
grupo dos complementos verbais, ainda que um ou outro autor suscite o caráter
não-argumental desse termo.
A maioria relaciona o objeto indireto ao caso dativo; mas não o restringe a
um caso particular de dativo, a que Climent chama “dativo subordinado”
(1945:313) (porquanto depende de uma palavra na oração), senão o generaliza.
Assim, o objeto indireto recobre variedades de dativo que, não sendo termos
argumentais, têm valor circunstancial.
Para efeito de estudo do comportamento sintático-discursivo do pronome
“lhe”, o objeto indireto é entendido, neste trabalho, como um complemento verbal
introduzido pela preposição a” (às vezes “para”), que é permutável pelas formas
“lhe” e “lhes”. Ademais, semanticamente, representa um ser [+ animado] a que se
destina a ação verbal. Portanto, adotamos o sentido estrito em que é definido o
objeto indireto e o consideramos um termo argumental ou, de acordo com a teoria
de valência, esposada aqui, um actante.
Não nos podemos esquecer de que não se distinguem claramente as idéias
de “destinatário” e “beneficiário”; portanto, pode o objeto indireto representar a
pessoa em beneficio ou em detrimento da qual se realiza a ação”, muito embora,
para efeito de análise, restringiremos a noção de “beneficiário” ao dativo de
interesse, e reservaremos a noção de “destinatário” ao objeto indireto
propriamente dito.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
74
5
O Caso Dativo
Temos instado em que muitos dos empregos do “lhe”, alguns dos quais
remanescentes da sintaxe latina, foram considerados como casos de objeto
indireto. Como vimos, vários gramáticos definiram essa função sintática
relacionando-a ao caso dativo. Não obstante essa relação etimológica, defendemos
que não se pode aplicar o rótulo “objeto indireto” a todas as ocorrências do “lhe”,
pois seu comportamento sintático-discursivo é variado e escapa ao abrigo dessa
rotulação.
Neste capítulo, meditaremos sobre a relação entre o objeto indireto e o caso
dativo, definindo essa categoria e discriminando as suas variedades. Cabe lembrar,
consoante nos darão testemunho os excertos seguintes, que o objeto indireto é
considerado, neste trabalho, um actante; os dativos, ao contrário, são
circunstantes.
Em sua Gramática de Valências: Teoria e Aplicação (1992), Busse e Vilela,
à página 117, sobre o dativo escrevem:
“A categoria DATIVO, designada na seqüência da tradição francesa por
complemento de “objeto indireto (ou simplesmente complemento indireto),
aponta, ou para uma relação menos imediata com a ação do verbo, ou para uma
participação menos direta nessa acção, por parte da entidade designada com esse
nome. Contudo, essa caracterização apenas poderá (ou poderia) ser válida nos
verbos em que há complemento direto e indireto”.
(grifo no original)
Os autores, embora observem a prática tradicional de encarar o dativo como
objeto indireto, reconhecem que a tradição ou leva em conta características
semânticas (e não de modo sistemático), ou considera apenas as características
sintáticas do objeto indireto, sem que se refira ao aspecto supra-frásico. Também
reconhecem que a gramática de casos entendia o dativo como “uma soma
heterogênea de traços micos e de dados onomasiológicos não redutíveis a uma
única categoria (...)” (idem).
No limiar da página 118, os autores explicitam seu pressuposto teórico, no
que tange ao tratamento do objeto indireto:
“Partimos do pressuposto de que o verbo é o centro da frase (...) e dividiremos a
nossa exposição em duas partes bem distintas: o complemento indireto como
elemento obrigatório e constitutivo da frase (= como actante) e o complemento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
75
indireto como elemento não obrigatório, não constitutivo do verbo (= o centro da
frase), isto é, como circunstante.”
Veja-se que os autores procuram distinguir, na heterogênea classe do objeto
indireto, entre as ocorrências de objeto indireto obrigatório, isto é, selecionado
pela semântica do verbo, e as ocorrências de objeto indireto “acessório”, ou
melhor, não-obrigatório, ao qual atribuem os autores o rótulo de “dativo livre”.
Busse e Vilela procuram apresentar os verbos que se constroem com objeto
indireto obrigatório, entre os quais incluem os tradicionais verbos dicendi e dandi
(“dizer”, “comunicar”, “dar”, “oferecer”, etc.).
Ora, como se vê, a idéia de que o objeto indireto figura em estruturas
sintáticas bem definidas (e o dativo em estruturas sintáticas, a princípio, bem
variadas) é corroborada pelos autores.
Como esteja assentado o reconhecimento teórico de tratar diferentemente os
casos de objeto indireto e de dativos, deter-nos-emos na definição e na reflexão da
categoria dativa doravante; mas não descuremos da questão “objeto indireto x
dativo”.
Sem pretender fazer incursão na etimologia do dativo, tampouco discutir seu
aspecto morfológico, ater-nos-emos à obra clássica Sintaxis Histórica de la
Lengua Latina (1945), de M. Bassols de Climent (catedrático da Universidade de
Barcelona), na qual o autor discute, com clareza, a categoria Dativo. À página
309, observa, de início, que a designação “dativo” é uma adaptação feita pelos
gramáticos latinos; etimologicamente, casus dativus significa “caso da
atribuição”.
Bussols observa, naquela mesma página, que “mediante él suele expressarse
generalmente la persona a quien se atribuye o da alguna cosa”. Note-se, desde
logo, que o significado “pessoa a quem se atribui alguma coisa” é inerente ao
dativo. À página 312, Bussols refere-se à heterogeneidade do dativo e acrescenta
que o caso pode ser empregado por exigência gramatical (ou seja, por exigência
de um predicado (verbo, adjetivo ou substantivo)), ou pode ser empregado sem
estar subordinado a alguma palavra (caso em que o emprego se deve a fatores de
ordem discursiva). No primeiro caso, o predicado (o verbo, especificamente)
denota uma ação que se destina à pessoa (ou coisa, segundo o autor) designada
pelo dativo. No segundo caso, vale lembrar que o dativo, não estando vinculado a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
76
uma palavra específica, denota idéia circunstancial (1945:312). Bassols propõe
distinguir esses dois pontos de vista. Sua exposição assenta na idéia de que
dativos cujo emprego é decorrente de exigência feita por outra palavra (o verbo,
na maioria dos casos), ao qual chama “dativo subordinado” (que compreende o
objeto indireto e o dativo de finalidade
21
) (p.313); e dativos cujo emprego
independe de qualquer palavra específica, os quais são chamados de “dativos
livres”.
Vamo-nos basear nessa distinção para definir e explicar com mais clareza a
classe dos dativos. Essa distinção, ademais, explica o considerar muitas estruturas
introduzidas por “a”, que se prendem a nomes (adjetivos e substantivos) como
“objeto indireto” na tradição. Por outro lado, pela distinção, alerta-se para o fato
de que o objeto indireto stricto sensu (isto é, tal como definido em Lima (2001),
por exemplo) deveria recobrir apenas os casos de dativo subordinado, muito
embora a designação tenha sido estendida a casos de dativo livres.
Atente-se à definição de Bossols, no tocante ao dativo subordinado:
“Como ya hemos indicado, el dativo podia usarse dependiendo de um verbo para
indicar la persona o cosa afectada indirectamente por la acción verbal, o en otras
palabras, para introducir el complemento indirecto”.
O dativo subordinado é, portanto, um termo frásico cujo uso depende do
verbo que o seleciona. Semanticamente, indica a pessoa (ou coisa) que é afetada
indiretamente pela ação do verbo (melhor será dizer “a pessoa a quem a ação se
destina”). Ademais, se identifica com o complemento ou objeto indireto.
Bassols cita casos em que o dativo subordinado depende de substantivos
22
e
de adjetivos, observando que, com estes, o emprego do dativo é mais comum, em
virtude da herança verbal de muitos adjetivos (que eram, pois, particípios). Esses
adjetivos conservam a valência do verbo de que provêem na sua semântica.
Lembramos que esses casos são considerados por muitos autores hodiernos como
casos de complementos nominais (p.ex. (estar) apto ao trabalho).
Fique claro, pois, que, em frases como (x) e (z), haveria originariamente um
dativo. A gramática tradicional classifica os termos em destaque como objeto
indireto e complemento nominal, respectivamente:
(x) Pedro deu rosas à sua namorada.
(z) Pedro é grato ao irmão (pela a ajuda).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
77
M. Bassols de Climent apresenta-nos uma série de dativos livres, a qual
compreende o dativo de interesse ou de participação, o dativo commodi e
incommodi, o dativo ético, o dativo de posse, o dativo de opinião, o dativo de
agente ou autor. Este último dativo não importa ao nosso trabalho; porém dele
pode-se dizer que serve para “expresar la persona agente (..)” (p. 331). É
considerado, na tradição, um agente da passiva. Bussols observa que esse dativo é
um prolongamento do dativo commodi. O autor dá-nos os seguintes exemplos,
para patentear que a preposição “por” pode encabeçar tanto o dativo de agente
quanto o dativo commodi: “EL MUNDO FUÉ HECHO POR DIOS (dativo de
agente)”; “NO LO HAGO POR TI SINO POR (dativo commodi)”. Vale notar
que o dativo commodi, que pode, consoante nos testemunho o exemplo de
Bassols, ser introduzido pela preposição “por” (e também “para”) é, em alguns
casos, considerado um adjunto adverbial de favor, inclinação. Veja-se este
exemplo de Bechara (2002:447), em que o termo em itálico é um adjunto
adverbial de inclinação, por ele se expressa “a relação de favor, ajuda ou
disposição favorável, muito próximo ao valor benefactivo do dativo (...)” (ibid.id):
(A) Trabalhou sempre pelos amigos.
Confronte-se esse exemplo com o seguinte:
(B) Trabalhou sempre para os amigos.
21. Muitos desses dativos são considerados na tradição gramatical como “adjuntos
adverbiais de finalidade”.
22. Discordamos do exemplo referido por Bussols, no qual a estrutura “a la estatua de
Pompeyo” é selecionada por “tributado”, e não por “aplauso”: “El aplauso tributado a la estatua de
pompeyo”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
78
Note-se que as preposições “por” e “para” encabeçam termos que denotam o
beneficiário, o interessado no estado-de-coisas designado. autores, contudo,
que vêem, em (B), um adjunto adverbial de finalidade. É claro que as idéias de
‘finalidade’ e de ‘beneficiário’ se confundem muita vez. A distinção nocional é
tênue; portanto, muito difícil de ser feita. Bechara adverte-nos da necessidade de
não confundir o dativo de interesse (que indica o beneficiário) com o adjunto
adverbial de finalidade. Observa que “[o dativo de interesse] se refere sempre a
pessoa e às vezes integrável pelo pronome lhe, e alude ao beneficiário ou
prejudicado pelo processo verbal” (2002:443). Dá-nos a conhecer estes dois
exemplos: “Mário trabalha para a família” e “Comprou as flores [ao florista] para
a noiva”. Como não ficasse claro o ponto de vista do autor (afinal, teria querido
confrontar um exemplo de adjunto adverbial de finalidade com um exemplo de
dativo de interesse?). Ora, ‘família’, embora não designe ‘pessoa’, evoca-nos o
traço [+ humano]; portanto, pode ser considerado um dativo de interesse, assim
como sucede com ‘noiva’. Há, então, dois exemplos de dativo de interesse? Ou
um exemplo de adjunto adverbial de finalidade (para a família) e um exemplo de
dativo de interesse (para a noiva)? Quando o substantivo núcleo tem o traço [-
animado], a interpretação como adjunto adverbial de finalidade se impõe. Veja-se
“Estudou para medicina”. Contudo, pode a idéia de finalidade ser veiculada por
substantivo [+ humano], como nesta frase-exemplo de Bechara “Ele estudou para
médico (p.443). Não se depreende que alguém estudou em benefício de um
médico, senão que alguém estudou para se tornar um médico (finalidade).
Intentando evitar digressão, volveremos a essa questão alhures. Na seção
que se segue, discriminamos os tipos de dativos livres que nos interessam. Para
tanto, apresentaremos suas características formais e semânticas separadamente.
5.1
Os dativos “livres”
Veja-se esse passo de Busse & Vilela (1992:121):
“O chamado “dativo livre” tem como características gerais as seguintes: o facto de
designar PESSOAS que estão numa relação ESPECIAL (não apenas numa relação
mediata, mas sobretudo relação especial) - de interesse, de participação ou de
responsabilidade com o conteúdo descrito na frase, de considerar o conteúdo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
79
frásico na sua totalidade e de as Pessoas não participarem directamente nesse
conteúdo (...)”.
(ênfase no original)
Os dativos “livres” comportam-se semelhantemente ao objeto indireto (A
3
),
ainda que não sejam verdadeiros actantes. Os dativos “não estão direta ou
indiretamente ligados à esfera do predicado” (Bechara, 2002: 424). Têm
acentuado valor discursivo. Servem à expressão de conteúdos que, muitas vezes,
só podem ser compreendidos mediante o suporte contextual.
No que toca à necessidade de não incluir entre os objetos indiretos todos os
usos do pronome “lhe”, note-se o que escreveram Busse & Vilela (1992:27):
“Ocorrem freqüentemente membros de frase sob a forma a alguém ou a forma
pronominal (“dativo”) me, te, se, lhe, que não podem ser considerados como
actantes, facto este que tem merecido especial atenção na tradição gramatical. Em
(1) a) o ramo partiu-lhe o braço.
é evidente que partir apresenta uma estrutura relacional bivalente (“o que parte” e
“o que é partido”) e lhe não pode ser considerado como objeto indirecto.”
(grifo nosso)
Observe-se que o verbo “partir”, na medida em que seleciona dois lugares
vazios, não prevê o uso do pronome “lhe”. Assim, o pronome não pode ser um
objeto indireto, porque (escusando-se, por ora, razões semânticas) não figura na
frase por exigência do verbo “partir”. A primeira diferença entre usos do “lhe”
como objeto indireto e usos do “lhe” como “dativos livres” é que, enquanto objeto
indireto, o “lhe” sempre será previsto pela valência do verbo; o “lhe” será
considerado um complemento verbal. Para que o “lhe” possa ser considerado um
objeto indireto, é necessário que o verbo seja trivalente. De fato, se o verbo não é
trivalente (salvo casos particulares, como o de “custar”, “competir”, etc.), se
pode desconfiar de seu caráter actancial.
Reitere-se que o primeiro (e principal) critério, para saber se o “lhe” é um
A
3
ou um dativo, é atentar para a estrutura relacional do verbo: na função de
objeto indireto, o “lhe” será previsto pelo verbo.
Como observam Busse & Vilela (no excerto citado acima), os dativos
caracterizam-se geralmente por referir-se a pessoas; portanto, por apresentarem o
traço [+ humano]. Admitindo-se que o “lhe” pode referir-se a animais (sobretudo,
animais domesticados), cuidamos em que melhor será associar aos dativos
(também ao objeto indireto) o traço [+ animado]. Ademais, como veremos no
capítulo 6, o “lhe” tem sido empregado para referir-se a “coisas”, “objetos”, ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
80
melhor, retomam anaforicamente substantivos que apresentam o traço [-
animado], quer em função de dativo, quer em função de objeto indireto.
Caracterizaremos, doravante, cada qual dos dativos, destacando-lhes as
características formais e semânticas:
5.1.1
O dativo de posse
O dativo de posse designa “elementos que são uma “parte do corpo” de
pessoa, ou que são algo ligado a um ato ou seu resultado” (Koch & Vilela, 2001:
342). A relação de posse ou pertença estabelecida com o uso desse dativo é bem
geral. Muitas vezes, esse dativo indica uma propriedade inerente a uma pessoa ou
objeto. Do ponto de vista formal, pode ser representado pelo “lhe” (ou qualquer
outro clítico) e corresponde a estrutura “de + SN” de valor possessivo
23
.
Adverte-se que não é boa a lição segundo a qual o “lhe”, nesses casos,
corresponde ao pronome possessivo “seu” (e variações), porquanto, uma vez
flexionado no plural, “seu” refere-se à quantidade de seres “possuídos” (v. o rapaz
e suas irmãs atravessaram a rua). A equivalência com “dele” (e variações) é mais
adequada.
um mecanismo inerente ao emprego do “lhe” como dativo de posse, que
consiste na anteposição do artigo ao substantivo que designa “a coisa possuída”;
ademais, não se usa o possessivo. Vejam-se estes exemplos:
(C) Beijou-lhe as mãos.
(D) Beijou as mãos dela.
(E) * Beijou-lhe as mãos dela.
Parece existir apenas uma condição lingüística para o emprego desse dativo:
o verbo a que o pronome se atrela deve ser ou transitivo direto (bivalente) ou
intransitivo (monovalente); e, é claro, no estado-de-coisas designado, deve haver
relação de pertença.
Em suma, o dativo de posse é uma função sintático-discursiva que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
81
a) do ponto de vista formal, é representada por substantivo (ou pronome
clítico – “me”, “te”, etc.) introduzido pela preposição “de” (raramente, “a”);
b) do ponto de vista semântico, expressa o possuidor numa relação de posse
entre uma entidade [+ humano] e um membro ou característica somática que lhe é
própria. Mas, cumpre dizer que pode denotar o objeto a que se relaciona uma
propriedade qualquer. Também pode haver relação de posse alienável ou
inalienável, como veremos nos exemplos colhidos, no capítulo 6.
23. Do ponto de vista diacrônico, a estrutura correspondente era “a + SN”, de emprego raro
na ngua hodierna. Assim, frases como “beijou a mão à moça” (dito hoje como “beijou a mão da
moça”) correspondiam a “beijou-lhe a mão”, caso em que o “lhe” retoma anaforicamente o
sintagma “à moça”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
82
5.1.2
O dativo commodi et incommodi (ou de interesse)
O dativo (in-)commodi ou dativo de interesse é, provavelmente, o dativo que
mais se identifica com o tradicional objeto indireto. A distinção entre eles nem
sempre é fácil. Do ponto de vista semântico, a diferenciação entre um e outra se
torna quase impossível, visto que as noções “beneficiário” e “destinatário” se
confundem em muitos esquemas predicativos e estão relacionadas ao grau de
abstração semântica que se pretende fazer. Por exemplo, em “Eu entreguei a prova
ao professor (assim que bateu o sinal)”, “ao professor” indica o “destinatário”; em
“Comprei para minha irmã uma boneca que fala”, “para minha irmã” indica o
“beneficiário” (a saber, a entidade em proveito da qual se realiza a ação verbal).
Porém, “para minha irmã”, em outro nível de abstração semântica, pode ser
interpretado como o destino da compra. O papel de “beneficiário”, consoante
propõem alguns autores, pode ser expresso também pelo objeto indireto. A título
de coerência teórico-metodológica, restringimos ao dativo de interesse o papel
temático “beneficiário”; ao objeto indireto (que pode representar também o
“beneficiário”) atribuímos o papel de “destinatário” (ou “receptor”).
Em “Júlio deu o caderno a Pedro”, “Pedro” pode ser interpretado como o
beneficiário, se entendermos que representa a entidade beneficiada pelo conteúdo
comunicado em “deu o caderno”; isto é, “Pedro” não é um simples receptor, mas,
sobretudo, a entidade a quem Júlio beneficia, dando o caderno. Portanto, em um
nível de abstração, “Pedro” representa o destinatário (ou receptor), a saber, a
entidade a quem a ação verbal se destina (Júlio faz com que um objeto (caderno)
passe para a posse de Pedro); noutro nível, representa a entidade a quem a ação
verbal aproveita.
Do ponto de vista semântico, portanto, o dativo de interesse denota a
entidade em proveito ou em detrimento da qual uma ação é realizada. Do ponto de
vista formal, é atualizado por uma estrutura “para + SN”, não obstante alguns
autores insistirem na correspondência com “a + SN”. No português brasileiro,
rareiam casos em que o dativo de interesse é representado por esta última
estrutura. O índice formal do dativo de interesse é, pois, a preposição “para”; o
objeto indireto, por sua vez, embora encabeçado, via de regra, pela preposição “a”
(que na variedade formal é a mais adequada), na variedade coloquial (sobretudo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
83
falada), admite permuta de “a” com “para”. Assim, em Busse & Vilela (1992: 29),
o exemplo “Procurei um apartamento a um amigonão constitui uma frase usual
no português brasileiro (provavelmente, nem mesmo na variedade formal escrita).
Ouve-se/ escreve-se “Procurei um apartamento para o meu amigo”. O “lhe” pode
substituir o constituinte “para o meu amigo”, do que resulta a construção
“Procurei-lhe um apartamento”. Note-se que, além de ser introduzido por “para” e
denotar a entidade em benefício da qual se realiza a ação de “procurar”, o dativo
de interesse não é previsto pela valência verbal (“procurar” é um verbo
“bivalente”).
Pode-se dizer que o dativo de interesse figura em esquemas sintático-
semânticos variados, embora pareça apresentar restrições de co-ocorrência com
outros dativos e com o objeto indireto. Por exemplo, uma frase como “Entreguei a
mochila ao meu irmão para André”, em virtude da limitação de nossa memória
(entre outros possíveis fatores), provavelmente tenha baixa aceitação, embora
sejam comuns frases como “Entregue a mochila ao meu irmão para mim!”,
“Enviou o e-mail a sua tia para o seu irmão?”, nas quais os termos em itálico
indicam a entidade em proveito da qual se realiza uma ação (portanto, são dativos
de interesse) e co-ocorrem com o objeto indireto. Uma frase como “cortei-lhe os
cabelos para você”, embora não se verifique no uso corrente, constitui uma frase
potencial em português. Se substituirmos o “lhe”, que cumpre a função de “dativo
de posse”, pela forma equivalente “dele”, conferimos à frase o caráter usual:
“cortei os cabelos dele para você”. Note-se que “para você” – dativo de interesse -
, no exemplo em que figura o “lhe”, co-ocorre com o dativo de posse. Como o
são bem compreendidas as restrições a que nos referimos, não nos ocuparemos
com a questão neste trabalho.
Veja-se o exemplo referido por Koch e Vilela (2001: 343), no qual o “lhe”
cumpre a função de dativo de interesse e co-ocorre com o termo encabeçado por
“a” que indica “lugar para onde”:
“Levei-lhe (à Manuela) a mala à estação.”
24
Note-se que o “lhe”, que pode desempenhar a função de A
3
(alguém leva
alguma coisa a alguém), cumpre a função de dativo de interesse e, portanto, não é
previsto pela valência do verbo. Vale dizer que o dativo co-ocorre com o termo
que indica a “direção” (complemento circunstancial) e que corresponde ao A
6
.
25
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
84
Não pretendendo exceder-nos em pormenores, cabe observar a necessidade
de ter em conta, na análise, a relação entre o plano formal e o plano semântico. No
exemplo supramencionado, o verbo “levar” apresenta a seguinte estrutura
relacional: X leva Y a Z. A posição de Z pode ser ocupada por um constituinte
cujo núcleo é um substantivo [+ humano], caso em que se nota, tradicionalmente,
um objeto indireto (p.ex. O Padre levou água e comida ao mendigo); ou pode ser
ocupada por um constituinte cujo núcleo é um substantivo [- animado], que denota
idéia de “lugar”, caso em que a tradição chama adjunto adverbial de lugar ou
consoante alguns autores (Rocha Lima, 2001:252) “complemento
circunstancial”. Ora, atribuímos aos constituintes “à estação” e “ao mendigo”
função diferente, porque atentamos ao aspecto semântico: o primeiro deles se
constitui de um substantivo que representa uma entidade [+ humana], cujo papel
temático é o de “destinatário”; o segundo constitui-se de um substantivo que
representa uma entidade [- animada], cujo papel temático é o de “locativo”. Em
suma, sabemos que “ao mendigo” refere-se a ‘pessoa’; e “à estação”, a ‘lugar’.
Em vista do exposto, a tradição classifica o constituinte “ao mendigo” como
objeto indireto; e o constituinte “à estação” de adjunto adverbial de lugar (ou
complemento circunstancial)
26
.
____
24. Os autores, insistindo no emprego de “a”, comum no português de Portugal, escreveram
entre parênteses a forma Manuela). Intentando assentar nossa descrição na realidade lingüística
do Brasil, insistimos na correspondência com “para + SN” (cf. Levei-lhe para a Manuela a mala à
estação).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
85
Finalmente, à gina 29 de sua Gramática de Valências (1986), Busse e
Vilela, ao tratarem do dativo de interesse, observam que:
“Este dativo nem sempre é claramente determinável como tal, pois pode convergir
com o actante A
3
Está claro, pois, que a distinção entre o objeto indireto e o dativo de
interesse nem sempre é nítida; contudo, além de o dativo ser introduzido, via de
regra, pela preposição “para” no português brasileiro (“para” alterna com “a”
no objeto indireto na variedade coloquial do português brasileiro sobretudo na
modalidade oral), não é previsto pela valência do verbo. Muitas vezes, figura em
estruturas relacionais em que se acham dois lugares vazios apenas, o que equivale
a dizer que se insere em frases cujo núcleo é um verbo bivalente. Casos há,
porém, em que co-ocorre com o objeto indireto, como nesse exemplo de Busse
&Vilela, colhido da página 30 de sua gramática:
“Escrevi uma carta ao João para a sua namorada”.
(ênfase no original)
Neste exemplo, “ao João” denota a entidade a que se destina a ação verbal
(objeto indireto), e “para a sua namorada” indica a pessoa interessada no estado-
de-coisas designado, a saber, a entidade em benefício da qual se escreve uma carta
ao João. Esta frase é usual numa situação em que a namorada de João tivesse
pedido a mim que eu escrevesse uma carta a ele. Contudo, a substituição de um ou
outro termo pelo “lhe” exige o suporte contextual, visto que a operação dá
margem a rias interpretações. Por exemplo, se o “lhe” fizer referência a “João”
e se “João” for meu interlocutor, ele, João, poderia interpretar a frase como
“escrevi-lhe (=João) uma carta para (você) dar a sua namorada”. Se meu
interlocutor é, por exemplo, Joana – amiga de João – e eu lhe dissesse que escrevi
uma carta ao João para a namorada dele, a interpretação “escrevi uma carta
endereçada a João em benefício de sua namorada” é mais plausível. Mas, ainda
aqui, o interlocutor “Joana”, poderia entender “para a sua namorada” como o
destinatário ou a finalidade, de sorte que a sua interpretação seria “escrevi uma
carta para João endereçada à sua namorada”. Claro está que, nessa interpretação,
“João” indica o beneficiário; e “sua namorada”, o destinatário ou a finalidade.
Como tais especulações ainda não estão maturadas, cingimo-nos a enfatizar
que, embora, teoricamente, o pronome “lhe” possa funcionar tanto como objeto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
86
indireto quanto como dativo de interesse em frases em que ambos os termos co-
ocorrem, como na frase de Busse e Vilela, a quase sinonímia entre as noções
‘destinatário’ e ‘beneficiário’, torna seu emprego extremamente dependente de
uma situação comunicativa ou mesmo possa ser uma ilusão teórica. Parece-nos
que alguns dos sentidos anteriormente apontados seriam, realmente, expressos
com outros entornos. Por exemplo, se eu quisesse comunicar a Joana que eu
escrevi uma carta a João em benefício da namorada dele, eu poderia dizer algo
como “A namorada de João pediu que eu escrevesse uma carta (de amor) ao João
e eu fiz”. Supondo que “para sua namorada” indique o destinatário ou a finalidade
e sendo João meu interlocutor, eu poderia dizer “João, escrevi uma carta para você
para que dê a sua namorada”.
25. O A
6
, actante direcional, indica o lugar para onde se dirige o movimento descrito pelo
verbo. Do ponto de vista formal, é introduzido, via de regra, pela preposição “para”, “a” ou “de”;
corresponde ao conjunto preposição + advérbio de lugar” (ou locução adverbial: ir para lá, para
esse lugar) e à forma interrogativa “preposição + onde A
1
+ V” (para onde X vai?). Esse actante
figura normalmente em predicações da qual se infere idéia de “movimento”.
26. Escusando discussão teórico-terminológica, veja-se que da nomenclatura “complemento
circunstancial” se deduz claramente o aspecto semântico. Afinal, tanto o objeto indireto quanto o
locativo em questão são complementos; a diferença entre eles é que o primeiro é representado por
um substantivo que denota a pessoa a quem se destina a ação; e o segundo, por um substantivo que
designa o lugar para o qual se dirige a ação verbal.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
87
Finalmente, pertinentes são estas palavras de Busse e Vilela (1992:124):
“O característico do dativo designado por “commodi” é que o verbo não o rege em
termos de valência: este dativo é regido pelo complexo verbal, em que se inclui,
portanto, o verbo e os complementos apensos ao mesmo verbo (...)”.
(grifo nosso)
5.1.3
O dativo ético
Seguem-se as seguintes palavras de Busse e Vilela (1985: 30):
“O dativus ethicus aparece sempre e apenas com função pragmática e, por isso
mesmo, apenas é interpretável se se tiver em conta o texto, o contexto, em que o
locutor e o alocutário participam na ação de modo interessado. Por isso, apenas se
aceita com dativus ethicus a realização na forma pronominal na primeira ou
segunda pessoas”.
Esse dativo exprime, portanto, a entidade interessada na ação verbal e é
exterior à frase. É uma variedade do dativo de interesse. É muito comum na
linguagem da conversação, muito embora se ache um ou outro registro desse
dativo em textos escritos. Segundo Bechara (2002: 424), esse dativo “representa
aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na
execução de um desejo”. Para Busse e Vilela (1992: 124), o dativo ético, ainda
que mantenha estreita relação com o dativo de interesse, de sorte que, muita vez,
casos ambíguos (p.ex. Me limpa bem estes sapatos dos meninos “me” pode
ser interpretado como “dativo ético” ou como “dativo de interesse”), ocorre em
enunciados muito marcados emotivamente”. Ademais, nos casos de dativo ético, o
falante não é o beneficiário ou o prejudicado, mas um participante do processo
verbal.
Os exemplos abaixo foram colhidos de Bechara (2002:424):
(F) Não me reprovem estas idéias!
(G) Não me mexam nos papéis!
(H) Ele sempre te saiu um grande mentiroso.
27
Não obstante Busse, Vilela e Koch observarem que o dativo ético é
atualizado apenas pelas formas de e pessoas, pensamos pode o dativo ser
desempenhado pelo lhe” (pronome de pessoa tradicionalmente), visto que, no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
88
português brasileiro, flutuação entre as formas “te” e “lhe”. O “lhe”, é,
portanto, empregado para fazer referência à segunda pessoa do discurso, isto é, ao
interlocutor. Na frase (H), é possível permutar “te” com “lhe” (Ele sempre lhe saiu
um grande mentiroso).
5.1.4
Considerações finais
Escapa à alçada deste trabalho o dativo de opinião, pelo qual se exprime
uma opinião. Acreditamos em que o “lhe” não cumpre essa função. O dativo de
opinião, do ponto de vista formal, é introduzido pela preposição “para” e pode ser
representado por um substantivo ou por uma forma pronominal oblíqua ( “para
Fulano”; “para mim”, “para ele”, “para ti”, etc.). Esse dativo tem valor claramente
circunstancial e se comporta à semelhança de um advérbio de frase. Portanto, o
dativo de opinião situa-se fora da esfera da predicação.
Neste exemplo de Bechara (2002:424) “Para ele, a vida deve ser
intensamente vivida”, note-se que esse dativo se presta facilmente ao
deslocamento (cf. a vida, para ele, deve ser intensamente vivida/ a vida deve ser,
para ele, facilmente vivida/ a vida deve ser facilmente vivida, para ele). Via de
regra, dispõe-se antes do sujeito; mas, como se vê, pode deslocar-se para o interior
da oração, sem que esteja implicado na estrutura sintático-semântica. Esse dativo
também tem notável valor pragmático.
27. Grifo no original.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
89
6
Análise do comportamento sintático-discursivo do
pronome lhe
Neste capítulo, vamo-nos ocupar com a análise de nossos corpora Em
princípio, apresentaremos nossos pressupostos teóricos e procedimento de análise.
Em seguida, damos a conhecer a constituição de nossos corpora e os justificamos.
Instamos em que o princípio que norteia nossa análise é o da
“previsibilidade valencial”, ou seja, o valor actancial ou não-actancial
(circunstancial) de um constituinte frasal dependerá da valência do verbo: a
valência do verbo deve prever um espaço que potencialmente pode ser preenchido
pelo constituinte em pauta. Para efeito de análise deste trabalho, importa saber se
o “lhe” faz referência a um constituinte de valor actancial ou, em outras
palavras, se o “lhe” é um actante -, ou se faz referência a um constituinte de valor
não-actancial, ou seja, não previsto pela valência do verbo. Para tanto, é preciso
fazer saber o estado-de-coisas designado pelo verbo e observar se sua valência
prevê todos os participantes da “ação”, “evento”, “processo”, estado”, etc.
designado. Uma vez se referindo o “lhe” a um constituinte que represente um
participante implicado no estado-de-coisas designado pelo verbo, diremos desse
“lhe” se tratar de um actante; uma vez referindo-se o pronome a um constituinte
que represente um participante que não está implicado no estado-de-coisas
designado, diremos do “lhe” que é um não-actante (ou circunstante). Lembramos
que, entre os actantes, há os que são mais facilmente calados, por força da
situação discursiva, e os que não se prestam facilmente à supressão, excetuando-se
os casos de elipse discursiva, em que o constituinte suprimido pode ser
recuperado.
A análise de nosso objeto de estudo será realizada de acordo com os
seguintes aspectos morfossintáticos, sintáticos e semânticos:
- Tipo de preposição que encabeça o complemento verbal (“a”, “para”,
“em”, etc.);
Exemplos: dar um presente A ALGUÉM (dar-lhe um presente).
Dar um soco EM ALGUÈM (dar-lhe um soco).
Bater EM ALGUÈM (bater-lhe)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
90
- Tipo de verbo suporte ou pleno: o verbo-suporte é semanticamente
esvaziado e forma com o seu complemento um complexo sintático que, muita vez,
corresponde, do ponto de vista da experiência comunicada, a um verbo simples ou
pleno; o verbo pleno não forma (aspecto essencialmente sintático) com seu
complemento um complexo sintático: ambos são autônomos semanticamente;
Exemplos: Luís deu a prova ao irmão, antes de sair (com verbo pleno).
Luís deu um beijo na irmã (com verbo-suporte).
Pedro deu um banho no cachorro (com verbo-suporte).
Discriminamos os casos em que se verifica um verbo simples acompanhado
de seu complemento (nesse caso, tanto o verbo quanto o complemento têm
‘independência semântica’) e os casos em que o verbo e o seu complemento
formam juntos um complexo sintático qualquer (casos em que se nota o chamado
verbo-suporte ou uma expressão cristalizada). À questão dos verbos-suporte e
expressões cristalizadas deter-nos-emos mais adiante. Outrossim, aqui, importa
reconhecer a estrutura relacional do verbo.
Para efeito de análise, importa meditar sobre a ocorrência do “lhe” nas
seguintes frases:
(I) Felipe deu um relógio importado ao seu irmão (lhe). Felipe deu-lhe um
relógio importado.
(J) Felipe deu um banho no seu cachorro (lhe). Felipe deu-lhe um banho.
(L) Estudar para a prova de matemática foi difícil a / para Felipe. Estudar
para a prova de matemática lhe foi difícil.
- O papel temático do termo preposicionado, sobretudo do complemento a
que se chama tradicionalmente “objeto indireto”, bem como o traço sêmico
([animado], [inanimado], [humano], [não-humano]) do substantivo que
desempenha seja a função de objeto indireto, seja outra função qualquer;
Portanto, no que toca a esse último aspecto (semântico), levam-se em conta
os casos em que o objeto indireto é representado por substantivo [- animado],
conforme veremos mais adiante. O “dativo de posse” também pode ser
representado por substantivo [-animado].
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
91
Dada a complexidade de nosso objeto de estudo, foi-nos necessário
distinguir esses aspectos, a fim de que não nos escape ao exame. Evidentemente, a
teoria proposta aqui não esgota o assunto; faz, senão, um recorte do objeto
observacional que nos parece, no momento, mais adequado. O estudo está
assentado na separação e investigação dos aspectos formais e semânticos do
comportamento sintático-discursivo do pronome “lhe”.
Na próxima seção, apresentamos a constituição de nossos corpora. Em
seguida, vamos apreciar o conceito de “verbo-suporte” e “expressão cristalizada”,
consoante a lição de Maria Helena de Moura Neves (2000) e de Busse e Vilela
(1986)..
6.1
Os Corpora
Um corpus encerra exemplos colhidos de contos de Machado de Assis (“O
espelho”, “A Cartomante”, “Uns Braços”, “Pai contra Mãe”, “Miss Dólar”),
contos de Carlos Drummond de Andrade (“A Salvação da Alma”, “Maneira de
Amar”, “O Sorvete”, A Melhor Opção”, “A Doida”, “O Novo Dicionário”,
“Câmara Secreta”), dos livros “A Hora da Estrela” e “A Paixão Segundo G.H.”,
de Clarice Lispector e do livro “São Bernardo”, de Graciliano Ramos. Como se
vê, o corpus compreende textos da variedade literária do português brasileiro,
visto que os usos do pronome “lhe” que nos interessam são muito comuns nessa
variedade da língua. Destarte, não nos ocupamos do uso do “lhe” como objeto
direto – comum na variedade coloquial da língua falada.
Oportunamente, teremos a necessidade de ampliar nosso corpus, com vistas
a dar testemunho do uso do “lhe” como substituto anafórico de substantivos [-
animado]. Foram poucos os registros desse fenômeno nas obras literárias
supramencionadas; ademais, como são textos literários, levamos em conta a
influência de tropos de linguagem (tais como, a personificação). A fim de que o
fenômeno em questão fosse deveras atestado, recorremos a alguns trabalhos de
nossos lingüistas e gramáticos. Nesses trabalhos, os autores empregaram o “lhe”
para fazer referência a substantivos [- animado]. Dentre os renomados autores de
cujos trabalhos colhemos registros desse fenômeno, destaquem-se rio Perini
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
92
(“Gramática Descritiva do Português”), Ingedore Koch, José Carlos de Azeredo,
Evanildo Bechara, Mattoso Câmara Jr., Margarida Basílio, entre outros.
Esses trabalhos são vazados na variedade formal do português, de modo que
pensamos ser mais adequado dizer que nossos corpora encerram textos escritos na
variedade formal do português.
6.2
Verbo Suporte e Expressão Cristalizada
À gina 53 de sua obra Gramática de Usos do Português (2000), Maria
Helena de Moura Neves dá-nos a conhecer o conceito de “verbo-suporte”:
“(...) são verbos de significado bastante esvaziado que formam com seu
complemento (objeto direto), um significado global, geralmente correspondente ao
que tem um outro verbo da língua”.
(grifo no original)
Os seguintes exemplos são apresentados pela autora:
Odete DEU UM GRITO, alguém acenda a luz.. (CE)
(= gritou)
Severino FEZ UM ACENO para o Cangaceiro. (AC)
(= acena) (grifo no original)
Neves observa, à página 54, que nem sempre um verbo pleno
correspondente a uma construção com verbo suporte. Dá-nos a saber o seguinte
exemplo:
DÁ UMA COTOVELADA em Chico (AC).
(grifo no original)
À página 54, a autora descreve a forma das construções com verbo-suporte:
“a) um verbo com determinada natureza semântica básica, que funciona como
instrumento morfológico e sintático na construção do predicado”.
b) um sintagma nominal que entra em composição com o verbo para configurar o
sentido do todo, bem como para determinar os papéis temáticos da predicação.”
(grifo no original)
Segundo a autora, a caracterização referida acima se aplica a um conjunto
variado de construções, algumas das quais se podem incluir entre as construções
prototípicas, que, por sua vez, incluem um sintagma nominal não-referencial; de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
93
sorte que o complemento típico do verbo-suporte é representado por um
substantivo desacompanhado de determinante. Cite-se um exemplo da autora:
“A alquimia DEU ORIGEM à arte real (AQL)
(grifo no original)
Os verbos-suporte mais comuns são “dar”, “fazer”, “levar”, “tomar”, “pôr”,
“ter”, e “soltar”. Esses verbos podem funcionar como “verbos plenos”, a saber,
“[verbos] de alta carga de significação” (Neves, 2000: 55), quando seu
complemento é um sintagma nominal referencial. Citem-se estes dois exemplos da
autora:
Eu não lhe DERA A CACETADA pelas costas”. (PR)
(grifo no original)
“Sem temer represália das facções feministas mais exaltadas, Juca de Oliveira
FAZ UMA DECLARAÇÃO, no mínimo, muito polêmica: “Quando amor,
posse””. (AMI)
(grifo no original)
Há, segundo Neves, construções das quais entra a fazer parte um verbo
semanticamente esvaziado acompanhado de seu complemento direto e que podem
corresponder a um verbo simples, muito embora não sejam formadas de verbo-
suporte, porquanto constituem “expressões cristalizadas”. Citem-se os seguintes
exemplos da autora:
O homem FAZ PARTE da natureza”. (SL)
“O suco da fruta, porém, FAZ SUCESSO no exterior”. (AGF)
(grifo no original)
Neves também observa que os verbos-suporte configuram diferentes
estados-de-coisas, entre os quais os de “ação” (um beijinho), os de “processo”
(tomou conhecimento do texto) e o de “estado” (não tem noção dos riscos).
O “verbo-suporte” também é denominado de “verbo funcional”, “verbo-
geral”, “verbóide” e “verbalizador”.
Em sua obra Gramática de Valências (1986), Busse e Vilela, apresentam-
nos o conceito de verbo-suporte, denominado na tradição alemã da gramática de
valências de “verbo funcional”. Escrevem os autores, à página 81:
“(...) designa-se por verbos funcionais os verbos que fazem parte de uma forma
ampliada com um substantivo deverbal equivalente de modo mais ou menos
aproximado ao de um verbo simples”.
(grifo nosso)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
94
Ao contrário de Neves, os autores referem-se a um aspecto morfológico do
substantivo que funciona como complemento direto de um verbo-suporte (ou
funcional): o substantivo é uma forma nominalizada do verbo. É claro que da
maioria dos exemplos de Neves, alguns foram citados por nós, pode-se deduzir
essa característica.
Também, ao contrário de Neves, Busse e Vilela admitem a possibilidade de
o complemento de um verbo-suporte vir encabeçado de um determinante, sem que
disso se conclua interpretar o verbo-suporte como um verbo pleno. Dentre as
formas das construções com verbos-suporte, destaquem-se as construções com
verbo “dar” seguido de substantivo formado de sufixo “-ada” (“dar X-ada” = “dar
uma entrada”) e as construções com verbo “ter(“ter em consideração”, “ter em
conta”, “ter dúvidas acerca de”).
Como sejam comuns as construções “dar X-ada”, nas quais a forma
nominalizada não é calcada num verbo (como em “dar uma cotovelada”, “dar uma
dentada”), concordamos com Neves em não restringir as construções com verbo
suporte aos casos em que o complemento é substantivo deverbal conquanto
reconheçamos (e a autora também) essa característica. Aliás, deve-se ter em conta
que muitas formas em “-ada” veiculam ‘ato’, ‘resultado da ação’, ‘instrumento’ ou
‘meio da ação’, ainda que não sejam calcadas numa base verbal (cf. “pedrada”,
“tesourada”, “martelada”, etc.). Por outro lado, concordamos com Busse e Vilela
em não restringir os casos de verbo suporte a construções da qual fazem parte
substantivos que cumprem a função de complemento, desacompanhados de
determinantes; ou seja, pensamos em que, não obstante vir antecedido de
determinante o substantivo que serve de complemento ao verbo-suporte (isto é,
não obstante ter valor referencial), o verbo continua esvaziado semanticamente.
Destarte, nesse caso, ainda há verbo-suporte.
No que toca a expressões cristalizadas, Neves, embora pareça querer
distinguir entre expressões fixas construídas com verbos tipicamente chamados de
“verbos-suporte” e construções com verbos-suporte, argumentando que pode
haver construções com verbo esvaziado semanticamente acompanhado de seu
objeto que podem ser parafraseadas com um verbo simples, muito embora não
constituam construções com verbo-suporte, apresenta-nos mais de um exemplo
cuja expressão cristalizada não corresponde a um verbo simples. Dois dentre os
exemplos apresentados pela autora, foram citados na página 107, os outros são
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
95
referidos abaixo. Vale dizer que no exemplo “o homem faz parte da natureza”, a
“faz parte” não corresponde, a rigor, o verbo “participar” (o significado desse
verbo não é idêntico ao da construção perifrástica)
28
.
“Por isso mesmo o adolescente o se compreende a si próprio inteiramente,
porque não FAZ IDÉIA de suas crises e evoluções”. (AE)
“Outra curiosidade que Juca FAZ QUESTÃO de citar é a multa de quinhentos
dólares, aplicada a quem jogar papel no chão”.(AMI)
“O suco de fruta, porém, FAZ SUCESSO no exterior”. (AGP)
“João Grilo depois que começou a enterrar cachorro então, FAZ GOSTO”. (AC)
Note-se que não verbo que corresponda semanticamente a “faz idéia”,
“faz questão” e “faz sucesso”. Fique claro que não negamos, a princípio, a idéia
de que sejam essas construções “fixas”, “cristalizadas”; todavia, a maioria dos
exemplos citados testemunho de ocorrências de expressões cristalizadas que
não correspondem a um verbo simples. Qual seria o critério pelo qual podemos
distinguir entre construções com verbo-suporte” e “expressões cristalizadas”?
Neves afirma que certos tipos de construções com verbo esvaziado
semanticamente podem até manter relações de paráfrase com verbo simples,
mas que não constituem verbos-suporte (Neves, 2000:54) (grifo no original)”
contudo, a maioria dos exemplos citados o admite a correspondência. Disso se
conclui que as expressões cristalizadas, normalmente, não correspondem a um
verbo simples? E, quando for possível tal correspondência, ainda assim
continuarão a ser expressões cristalizadas? Como distinguir entre expressão
cristalizada e construção com verbo suporte? Quiçá, por constituir-se a expressão
de substantivo que não é necessariamente derivado de um verbo? Ou, por não
admitir a inserção de um determinante?
29
Decerto, pode-se dizer que as construções com verbo-suporte têm em
comum um nome abstrato, que veicula, geralmente, idéias de ‘ação’ ou ‘resultado
dela’, ou ainda o ‘instrumento ou meio da ação’, e que cumpre a função de “objeto
direto”. Não se negue que se possam constituir de substantivo que designe
‘estado’ ou ‘evento’, como nos seguintes exemplos colhidos da obra de Neves
(2000: 55):
“Nunca TEVE DIFICULDADE em conviver com meu pai”. (FA)
“Seu Marra TEM NOÇÃO de hierarquia e tacto suficiente”. (SA)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
96
28. Veja-se a diferença de significado das frases “o homem participa da natureza”, “o
homem faz parte da natureza” e “os contos participam da ficção”. Na primeira frase, o homem é
um ser agente da natureza e não uma simples “parte” dela; na segunda, o homem é mais um dentre
os seres que compõem a natureza; na terceira, os contos m em comum com a ficção certas
qualidades. Decerto, é possível permutar “participar” com “faz parte” na terceira frase, sem que
disso resulte alteração do significado básico da frase; mas a distinção entre as duas primeiras frases
se mantém.
29. Vale notar que “faz sucesso”, “faz questão”, embora não admitam determinantes
identificadores (artigos definidos), admitem o determinante quantitativo “muito”, por exemplo:
“Fulano faz muita questão de dizer onde se formou”; “O suco de fruta faz muito sucesso aqui na
praia”. Ora, parece-nos que a possibilidade de interpor o quantitativo entre o verbo e o seu
complemento indica não haver uma expressão cristalizada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
97
Em suma, em sua gramática, a autora não nos apresenta características pelas
quais se pode distinguir entre “construções com verbo-suporte” e “expressões
cristalizadas”; tão-somente informa-nos sobre o fato de essas expressões
assemelharem-se formalmente a construções com verbo suporte. Ora, as
construções com verbo suporte podem não encontrar correspondência com verbo
simples; assim também, pensamos em que as expressões cristalizadas podem o
corresponder a verbo simples.
Não obstante haver lacunas na lição de Neves, acima referida, em sua
Gramática de Usos, detendo-nos à leitura do artigo intitulado A delimitação das
unidades lexicais: o caso das construções com verbo suporte, da mesma autora,
publicado na revista Palavra (1999: 98-114)
30
, observamos uma rie de critérios
pelos quais se procura distinguir entre “construções de verbo suporte” e
“expressões cristalizadas, e entre estas e “construções de verbo + objeto”. Nesse
artigo, observa Neves que as “expressões cristalizadas” (ou fossilizadas) e as
“construções de verbo + objeto” constituem dois pontos extremados no continuum
variado das construções sintáticas: nas expressões cristalizadas, há forte aderência
entre as unidades constitutivas; nas construções formadas por “verbo + objeto”, os
elementos envolvidos cumprem funções independentes na estrutura argumental (o
verbo é o predicado; o objeto, o argumento) e apresentam individualidade
semântica. Entre esses dois extremos, medeia uma seqüência de graus de
aderência entre os elementos constitutivos da construção sintática. Os “verbos-
suporte” incluem-se entre esses dois extremos.
Cumpre dizer que procuraremos não nos exceder em discussão teórica nesse
ponto; observações críticas serão válidas, caso algumas das questões ventiladas
por Neves, com serem pouco claras, possam acarretar alguma dificuldade para a
interpretação de certos dados de nossa análise. Não obstante, circunscrevemo-nos,
por ora, a referir os critérios apresentados pela autora, com vistas à tentativa de
distinção entre os dois tipos de construção mencionados. Ponderamos em que a
apresentação desses critérios atende às necessidades descritivas deste trabalho e
satisfaz o nosso anseio por compreender melhor a natureza da estrutura das
construções sintáticas em pauta.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
98
Como mencionamos, as expressões cristalizadas e as construções
formadas por “verbo + objeto” constituem dois extremos, entre os quais medeiam
as construções com verbo-suporte. Citem-se as características desses dois
extremos. No tocante às expressões cristalizadas, importa considerar as seguintes
características sintático-semânticas: 1) a coligação dos elementos é bastante fixa e
não é possível ao falante interferir na ordem em que os elementos estão dispostos;
2) com serem verdadeiras fórmulas”
31
de significado unitário, parece impossível
suscitar a existência de um A2 (objeto direto); 3) o expressões cujos elementos
estão extremamente “soldados”, de sorte que elas constituem um verdadeiro
predicado (visto que são responsáveis por atribuir os papéis temáticos aos
constituintes adjacentes); e 4) formam um “bloco cristalizado” cujo significado é
unitário.
No tangente às expressões formadas por “verbo e objeto”, as quais
constituem o segundo extremo, impõe-se atender às seguintes características: 1)
essas combinações encerram verbo pleno e nome complemento; 2) nelas, os dois
elementos cumprem funções independentes na estrutura valencial (o verbo é o
“predicado” ou “predicador”; o nome, o actante).
30. Palavra/Departamento de Letras da PUC-Rio, 5, vol 1. gráfica Vozes Petrópolis,
RJ.
31. Jerpsen, 1924: 19. apud. Neves, 1999: 99.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
99
Chamados de “verbos gerais”, os verbos-suporte são verbos esvaziados
semanticamente, muito embora retenham um significado cuja contribuição para a
interpretação do significado total da construção pode ser descrita. As construções
com verbo-suporte ora se assemelham às construções cristalizadas, ora às
construções formadas por “verbo e objeto”, consoante o grau de
“gramaticalização” delas ou do verbo.
Referimos três exemplos colhidos do artigo de Neves, para ilustrar a
ocorrência das construções vistas aqui. A autora, em nota, destaca que os
exemplos provêm do Banco de Dados do Centro de Lexicografia da Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP (Campus de Araraquara) (Neves, 1999:112). É
mister dizer que o primeiro exemplo dá testemunho do caso das expressões
cristalizadas; o segundo refere-se ao caso das construções de “verbo e objeto”, e o
terceiro diz respeito ao caso de construção com verbo-suporte.
Acho que vou dar um pulo até a casa do tio Baltazar (SRB)”.
A oposição tentará findar propostas”. (VEJ)
Tenório dá uma olhada no jornal. (I)
(grifo no original)
Vamos preterir, por ora, quaisquer considerações. Atentaremos, doravante,
para a apresentação dos critérios por que se podem diferençar aquelas
construções.
A proposição de Neves está assentada nas propostas de Gross e Vivès (1986:
14-15. apud. Neves, p.100), a quem devemos o conhecimento de três critérios
sintáticos pelos quais se pode distinguir entre as construções de verbo-suporte e as
construções formadas por “verbo e objeto”, segundo Neves. No artigo em que nos
baseamos, a autora apresenta sumariamente as bases desses critérios. Igualmente
importante é a contribuição do gerativista Radford (1988: 89-104. apud. Neves,
p.100), a quem devemos a possibilidade de determinar se uma dada construção se
comporta como um constituinte ou não. São estes os critérios (ou testes) propostos
por Radford, mediante os quais podemos avaliar o comportamento sintático de
uma construção: a “distribuição”, a “anteposição”, a “posposição”, a
“coordenação”, a “intercalação de advérbios”, a “elipse”. Esses critérios importam
à tentativa de distinção entre as expressões cristalizadas e as construções de
verbo-suporte. Neves procura empreender essa tarefa valendo-se desses critérios.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
100
Os três critérios de Gross e Viès podem ser sintetizados assim: 1º critério – é
impossível atrelar ao nome que serve de complemento ao verbo-suporte um
constituinte formado por “de + nome humano”, de valor possessivo, ou um
pronome possessivo (cf. * O falante deu um riso do falante/seu (Neves,
1999:100)); critério aplicando-se o procedimento de “clivagem”
32
, pode-se
analisar de dois modos diferentes o complemento do verbo-suporte, quando a esse
complemento se atrela uma estrutura do tipo “Prep. + SN”; critério a oração
constituída por um verbo-suporte, quando do apagamento desse tipo de verbo,
pode corresponder a um SN, o qual, a seu turno, é constituído pela estrutura “de +
SN”. O núcleo do sintagma nominal “superior” é o nome-complemento do verbo-
suporte; o núcleo do sintagma nominal que se liga à preposição é o sujeito da
oração com verbo-suporte. (cf. Júnior deu um riso agradável / o riso de Júnior
(foi agradável)).
Alguns exemplos bastam para ilustrar o emprego desses critérios.
Lembramos que os exemplos são colhidos do artigo de Neves.
* O falante deu um riso do falante/seu.”
É uma olhada no jornal QUE o Tenório dá.
É uma olhada QUE o Tenório dá no jornal”.
Tenório dá uma olhada no jornal / a olhada de Tenório no jornal”.
O primeiro exemplo dá-nos testemunho da impossibilidade de atrelar a
estrutura “de + nome humano/possessivo” ao complemento do verbo-suporte, o
que nos leva a concluir se tratar de uma construção de verbo-suporte. Sucede
diferente com as construções formadas por “verbo (pleno) e objeto”, as quais,
portanto, admitem a articulação daquela estrutura com o objeto (cf. O Sr. Goulart
acredita que diluirá as responsabilidades / O Sr. Goulart acredita que diluias
responsabilidades deles/suas).
Os segundo e terceiro exemplos ilustram o critério da dupla possibilidade de
análise do complemento do verbo-suporte, mediante a aplicação do recurso de
“clivagem”. No segundo exemplo, “no jornal” é parte integrante do elemento em
foco “uma olhada no jornal”; nesse caso, “no jornal” pode ser entendido como um
“complemento” do conjunto “dar uma olhada”
33
(esse complexo relativamente
coeso seleciona a unidade “no jornal”). No terceiro exemplo, “no jornal”
relaciona-se a “uma olhada”; deveras, pode ser considerado um complemento do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
101
nome “olhada”. Assim, “no jornal” pode ser complemento tanto de “dar uma
olhada” quanto de “olhada”.
Finalmente, a quarta frase patenteia a validade do terceiro critério, a saber, a
correspondência entre a construção de verbo-suporte e um SN, a que se prende a
estrutura “de + SN”. Note-se que, no exemplo em questão, a unidade “a olhada de
Tenório” resulta do apagamento do verbo-suporte e da reprodução do sujeito do
verbo-suporte na forma “de + SN”. Consoante observa Neves (p. 102), a
relevância desse critério repousa no fato de as construções com verbo-suporte
serem fonte de nominalizações.
Cumpre observar que o segundo critério não se presta à aplicação no caso
das construções de verbo pleno, segundo Neves. Como não apresentasse exemplo
algum, não foi possível confirmar a validade de seu pensamento. Cabe lembrar
que, por esse critério, procura-se avaliar o grau de pertinência sintática do
complemento do nome-objeto do verbo-suporte a toda a expressão. Também no
âmbito das construções com verbo-suporte, casos há em que a validade do critério
depende de certas condições estruturais, ou é até questionável. Não nos
delongaremos nesse ponto, porquanto implicaria digressão; ademais, escapa ao
escopo desse trabalho qualquer incursão nesse domínio do estudo lexical.
Intentando abreviar essa seção, limitar-nos-emos a mencionar apenas três
dos sete testes propostos por Radorf, visto que a aplicação de todos eles aos dados
lingüísticos confluirá para duas conclusões gerais, que nos interessam para efeito
de fundamentação de nossa análise . Procuraremos também não nos exceder na
exemplificação. Os exemplos que seguem foram todos apresentados por Neves.
Vale lembrar que por estes testes procura-se distinguir entre as construções de
verbo-suporte e as expressões cristalizadas. Os testes incidem sobre o elemento na
posição de objeto do verbo, a fim de se verificar se é ou não um constituinte; e,
quando possível, também incidem sobre o conjunto “verbo + objeto”, para
cumprirem a mesma finalidade.
TESTE 1 distribuição: se o nome-objeto tiver a mesma distribuição de
outro elemento determinado, então o nome-objeto é um constituinte.
E então o falante deu um riso [um sorriso] e soltou a injúria suprema. (p. 104)
Esse exemplo ilustra, segundo a autora, um caso de construção de verbo-
suporte. Procurando distinguir entre as construções de verbo-suporte e as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
102
expressões cristalizadas, o teste não se aplica no caso destas últimas. Segue-se um
exemplo de caso de expressão cristalizada.
Acho que vou dar um pulo [dar um...?...] até a casa do tio Baltazar”.
Nos dois exemplos, o teste incidiu sobre o objeto do verbo. Quando aplicado
a toda a construção, o teste é válido tanto nos casos de construção com verbo-
suporte quanto nos casos de expressões cristalizadas. Disso se segue que, quando
o teste incide sobre toda a construção, os dois tipos de construção a do verbo-
suporte e a cristalizada comportam-se gramaticalmente de modo idêntico: são
constituintes da oração (SV). São exemplos disso as seguintes frases:
“E então o falante deu um riso [riu] e soltou a injúria suprema”.
“Dona Caropita deu as costas [virour-se], foi-se embora às pressas”.
Lembramos que a primeira das construções acima constitui um exemplo de
construção com verbo-suporte; a segunda, um exemplo de expressão cristalizada –
consoante a autora.
32. A “Clivagem” implica uma relação formal relativamente complexa, a qual “envolve o
elemento clivado, o acréscimo do verbo ser no mesmo tempo do verbo original e o acréscimo de
que ou quem” (Perini, 2004: 215). Também denominada de “focalização” por Azeredo (2004: 183,
seção 365), a clivagem está implicada na noção de “correspondência”.
33. Essa é a análise proposta pela autora. No entanto, poder-se-ia sugerir simplesmente a
interdependência entre “no jornal” e “olhada”, que, em outros contextos sintáticos, esses dois
elementos podem-se combinar (cf. A olhada no jornal que Fulano deu foi muito engraçada / A sua
olhada no jornal foi algo engraçada/ A olhada no jornal desse menino não nem pro gasto). É
claro que, admitindo-se, essa análise “no jornal” deverá ser encarado como um “constituinte
autônomo” (e não parte de um constituinte).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
103
TESTE 2 – deslocamento: podendo ser deslocado para outra(s) posição(ões),
o elemento será considerado um constituinte (ou sintagma).
E então o falante um riso deu e voltou a injúria suprema”.
Tenório uma olhada dá no jornal”.
A autora precede os exemplos supracitados com o sinal de “baixa aceitação”
(?) e observa que, embora não sejam usuais disso se conclui a sua estranheza -,
são gramaticalmente possíveis. A frase abaixo é um caso de expressão
cristalizada, segundo a autora. O teste aí não se aplica.
Acho que vou um pulo dar até a casa do Rio de Janeiro”.
O Capitão Aparício cabeça tem para tudo.”
Conquanto não fosse nosso objetivo, consoante já enfatizamos, descer a
pormenores, não podemos deixar de notar que nos dois casos a inversão não
parece satisfazer ao gênio do usuário da língua. Cremos que grande parte dos
usuários da língua hesitaria no julgamento da aceitabilidade dessas inversões. Para
nós, a inversão nos dois casos é “estranha”. Do ponto de vista gramatical, a
inversão (nos dois casos) constitui uma virtualidade do sistema (afinal, trata-se da
inversão da ordem “verbo-objeto”, que o português admite com certa
regularidade). O problema repousa na investigação do grau de aceitabilidade
dessas inversões, num e noutro caso. Estruturalmente, as construções não
apresentam restrições à possibilidade de deslocamento do objeto. Em suma, é uma
questão de “uso”, que deve ser avaliada relativamente ao grau de aceitabilidade
dos usuários da língua.
Acrescente-se que a inversão, em certas condições sintático-discursivas, é
possível (cf. “Cabeça ele tem, o que não tem é vergonha”). Nesse exemplo,
pensamos em que a topicalização (Azeredo, 2002:183-184, seção 365) do
constituinte “cabeça” é motivada, entre outras coisas, por uma retificação
discursiva, por referência anafórica (cf. Falante A: Esse garoto não tem cabeça... é
desajuizado... / Falante B: Não... Cabeça ele tem, o que não tem é vergonha).
Esperamos tenha ficado claro o nosso ponto de vista: a inversão da ordem
“verbo-objeto” na construção em pauta é possível, mas em certas condições
sintático-discursivas. No esquema sintático “sujeito-verbo-objeto”, que é deduzido
do exemplo de Neves, a inversão não parece natural. Ademais, é preciso
reconhecer que o critério de deslocamento sintático deve ser empregado com certo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
104
cuidado, que muitas “inversões” são motivadas não por fatores de ordem
gramatical, mas, mormente, de ordem estilístico-discursiva. Cuidamos que, nessa
matéria, a discussão não pode prescindir da situação discursiva e dos recursos
expressivos de que se valem os falantes quando do uso da língua.
TESTE 3 – coordenação: se o elemento admitir coordenação com outra
unidade, haverá identidade funcional
34
entre ambos.
E então o falante deu um riso e um olhar e soltou a injúria suprema”.
O exemplo anterior constitui um caso de “verbo-suporte”, segundo Neves. O
teste se demonstra válido aí. Nas frases abaixo, porém, as quais constituem casos
de expressão cristalizada, não é aplicável.
Acho que vou dar um pulo e [um?....] até a casa do tio Baltazar”..
O Capitão Aparício tem cabeça e [...?...] para tudo.”
Dona Caropita deu as costas e [...?...] foi-se embora às pressas”.
Novamente aqui, o ponto de vista da autora não é muito claro. Vale
perguntar que entende Neves por “é um constituinte do mesmo tipo daquele com o
qual coordena” (p.107). Pensamos em que a autora entende por “ser do mesmo
tipo” a propriedade de dois constituintes pertencerem à mesma classe funcional
(no sentido de Bloomfield). Assim, podemos coordenar unidades que têm a
mesma distribuição na cadeia sintagmática. Em “Os meninos vestiram as meias e
os sapatos e saíram”, “as meias” e “os sapatos” são coordenados porque têm a
mesma distribuição sintática (ocupam a posição de objeto direto do verbo
“vestir”). Assim também, podemos coordenar “vestiram as meias e os sapatos” e
“saíram”, porque ambas as unidades pertencem à mesma classe funcional ou
sintática (são sintagmas verbais). Por outro lado, não se pode coordenar “aos
domingos” com “o terço”, em * Elias reza o terço e aos domingos”, porque não
pertencem à mesma classe funcional (ou sintática).
Tendo em conta o exposto, atentemos ao primeiro exemplo de Neves
novamente. Ora, o não ser possível a coordenação de “um pulo” com outro
elemento (como sugerem as reticências entre colchetes) carece de explicação.
Veja-se que, na oração a que nos referimos, “pulo” pode coordenar-se com “uma
olhada” (cf. “... dar um pulo e uma olhada na casa do tio Baltazar”), porque
ambos pertencem à mesma classe sintática (ambos preenchem a posição de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
105
“objeto direto”). Nesse caso, a “um pulo” e “uma olhada” pode subordinar-se um
mesmo constituinte introduzido pela preposição “em” (“na casa do tio Baltazar”).
Poder-se-ia pensar numa coordenação entre dois sintagmas verbais: o segundo
dois quais com a elipse do verbo (“dar um pulo e (dar) uma olhada...”). De
qualquer maneira, a coordenação é possível porque ambos os constituintes
pertencem à mesma classe sintática. Todavia, nos casos em questão, o teste
proposto por Neves aplica-se ao “objeto” do verbo, e não a toda a construção.
Cabe, contudo, um esclarecimento: a autora entende a construção “dar uma
olhada” como um caso de construção com verbo suporte e “dar um pulo” como
um caso de expressão cristalizada. Assim, supondo a elipse do verbo, coordenar-
se-iam duas unidades, supostamente, diferentes, do ponto de vista mórfico-
semântico, porque ambas funcionam como sintagmas verbais.
Atente-se ao segundo exemplo. Se aproveitarmos da expressão “ter tempo”
(cristalizada ??) (“Fulano não tem tempo para nada”) o substantivo “tempo”, é
possível operar a coordenação com “cabeça” (... Aparício tem cabeça e tempo
para tudo). É claro que “ter cabeça para” (= ‘ter perspicácia, paciência’) e “ter
tempo para” (= ‘dispor de tempo, poder ocupar-se com’) veiculam significados
diferentes, mas os substantivos dessas construções podem coordenar-se, porque
preenchem a mesma função (a de objeto direto). Também, aqui, poder-se-ia
pensar na coordenação de dois sintagmas verbais: o segundo deles com a elipse do
verbo. A coordenação é possível também, porque ambos pertencem à mesma
classe sintática (ambos são sintagmas verbais).
Ressalte-se que, aplicado ao conjunto “verbo + objeto”, já no caso de verbo-
suporte, já no caso de expressão cristalizada, o teste revela-se válido.
deu um riso e falou
vou dar um pulo e visitar”.
A primeira destas frases constitui, segundo a proposta de Neves, um caso de
“verbo-suporte”; a segunda, de “expressão cristalizada”.
Ora, como se vê, a possibilidade de coordenar as unidades em negrito indica
serem ambas pertencentes à mesma classe funcional; são, pois, sintagmas verbais.
Aplicado ao constituinte que funciona como “objeto”, como em “dar um
pulo e uma olhada”, ainda que interpretemos esse caso como de coordenação de
dois “objetos”, também devemos admitir que “dar um pulo” pertence à mesma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
106
classe morfossintática de “dar uma olhada”; afinal, não seria cito supor que o
falante “extrai” de uma construção do tipo x o seu objeto para coordená-lo ao
objeto de uma construção de tipo diferente. Parece-nos que, uma vez admitindo a
coordenação de dois objetos (“um pulo” e “uma olhada”), não se pode sustentar a
idéia de que “dar um pulo” é uma expressão cristalizada, que, segundo Neves,
nesse tipo de construção “nem mesmo parece ser possível postular um SN em
posição de objeto” (Neves, 1999: 99).
Nossa idéia se sustenta, quando da observação do segundo exemplo da
autora. Podemos coordenar “ter cabeça” e “ter tempo”, supondo haver elipse do
verbo “ter”, porque ambas as construções funcionam como sintagmas verbais; por
outro lado, não supondo a elipse, ou seja, coordenados dois objetos, parece claro
que “cabeça” e “tempo” são constituintes de um mesmo tipo de construção.
Qualquer dúvida se esvai, quando comparamos as seguintes coordenações:
“Fulano tem tempo e cabeça para tudo” / “Fulano tem chinelo, sandália e tênis”.
Inserindo as unidades “chinelo”, “sandália” e “tênis” na oração anterior,
coordenando-as a “tempo” e “cabeça”, o resultado é, no nimo, “estranho”
possível, mas num contexto especial, do qual se deduz ironia, pilhéria (cf. (?)
Fulano tem tempo, cabeça, chinelo, sandália e tênis para tudo). Semanticamente,
do exemplo se deduzem dois universos incompatíveis: do conjunto “tem-chinelo-
sandália-tênis” deduz-se a idéia de ‘posse’, e os objetos diretos indicam as “coisas
possuídas”; por outro lado, do conjunto tem-tempo-cabeça” não se deduz aquela
idéia: “ter tempo” não equivale a “possuir tempo” e, do ponto de vista lógico, não
se admite para “ter cabeça” a interpretação ‘possuir cabeça’. Em suma, o sentido
que se deduz daqueles conjuntos não é, decerto, o mesmo, o que nos leva a
concluir que o verbo a que estão subordinados “cabeça” e “tempo” não é, do
ponto de vista sintático e semântico, o mesmo verbo a que se subordinam
“chinelo”, “sandália” e “tênis”. Junto àqueles dois substantivos, “ter” forma um
conjunto morfossintático de significado unitário; e os objetos “cabeça” e “tempo”
compõe construções que devem ser incluídas numa mesma classe morfossintática.
Em suma, para efeito de distinção e classificação das construções em
questão, não nos parece clara a pertinência do critério de coordenação. Esse teste
permite-nos avaliar se duas unidades pertencem à mesma classe funcional.
Coordenam-se duas unidades que têm identidade funcional. O teste, entretanto,
não se demonstra satisfatório para diferençar aquelas construções. Lembremos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
107
que, quando é aplicado ao “objeto”, para investigar se é ou não um constituinte, o
teste, como vimos, não resulta eficaz (podemos coordenar “um pulo” e “uma
olhada”, ou “cabeça” e tempo”). Quando aplicado a toda a construção, patenteia
que os dois tipos de construção propostos não diferem.
Cabe salientar que Neves, ao aplicar o teste ao “objeto” daquelas
construções, pretende investigar se o elemento nominal na função de “objeto” é
um constituinte “do mesmo tipo daquele com o qual se coordena” (Neves, 1999:
107). Sugere que, nas construções com verbo-suporte, a possibilidade de
coordenar os dois “objetos” implica o reconhecimento de que ambos são
constituintes. Ora, em sendo constituintes, concluir-se-á, segundo a autora, que
esses tipos de construção não formam um conjunto tão coeso quanto o caso das
expressões cristalizadas. Por outro lado, a autora sugere que, no caso das
expressões cristalizadas, a “impossibilidade” de coordenar dois elementos na
posição de objeto, impõe-se reconhecer que o elemento na posição de objeto não é
um tipo de constituinte; formaria com o verbo um “bloco” sintático, ou seja, um
conjunto cujos elementos são bastante “aderentes”.
A autora sugere ser possível, portanto, diferençar as construções pela
aplicação do teste ao elemento que ocupa a posição de “objeto”, que, quando
incide sobre toda a construção, o teste não permite diferençá-las. No entanto,
como procuramos mostrar, mesmo aplicado ao “elemento-objeto”, o teste não
parece assinalar diferença entre as construções; intuímos, contudo, diferença entre
“dá uma olhada” e “tem cabeça” – diferença que parece justificar-se, por um lado,
pelo viés gramatical: “olhada”, forma deverbal, combina-se com “dar”, do que
resulta a construção “dar__Xada” ; as formas “X(ada)” são, por isso, produtivas
no português atual (Basílio, 2004: 43); ademais, indica certa ‘duração’ (embora
rápida); por outro lado, do ponto de vista funcional (entendido, agora, na
concepção funcionalista), por exemplo, típica da variedade coloquial da língua
falada, a construção “dar uma olhada” emprega-se, normalmente, em situações em
que não caberiam verbos como “investigar” ou ‘demorar-se’, dos quais se infere o
traço [+ durativo] (cf. Falante A: Você leu o artigo? Falante B: não, dei uma
olhada, estava cansado, ou “Pedro olhou o carro (evento pontual) / Deu uma
olhada no carro (com certa duração)). Com “dar uma olhada”, o falante informa
que não se deteve na leitura do artigo, seus olhos apenas perpassaram pelo texto
rapidamente, de modo que ele “deu uma lida”, mas não “fez uma leitura”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
108
Também é coloquial o uso da expressão “tem cabeça”, que é empregada em
situações em que caberia, no registro formal, verbos ou perífrases verbais como
“pacientar/ ter paciência”, ou formas como é perspicaz”. Gramaticalmente, nota-
se que o conjunto não permite a inserção de determinante, como artigo, e é
constituído por uma forma simples (é, ao contrário de “olhada”, um substantivo
simples e concreto). Assim é que, as expressões cristalizadas podem compor-se de
substantivos de natureza morfológica diversa; ao contrário, as construções com
verbo-suporte, parecem encerrar, via de regra, substantivo deverbal.
A aplicação de alguns dos testes propostos por Neves, exceto (parece-nos) o
teste da coordenação, concorreria para corroborar ou refutar a nossa intuição.
A questão, como se vê, é complexa, e dela não nos podemos ocupar, ainda
que já nos tenha rendido certo capricho. Esperando que nossas especulações,
ainda que prematuras, não tenham sido vazias, reconhecemos que a aplicação do
critério de coordenação para avaliar a natureza morfossintática daquelas
construções carece de esclarecimentos.
____
34. O adjetivo “funcional” está empregado no sentido de Bloomfield em “A Set of
Postulates for the Science of Language”, em Language2, 153-164. Tivemos acesso à versão
portuguesa, traduzida por Lígia M. Cavallari (In: Marcelo Dascal (org) Fundamentos
Metodológicos da Lingüística. Vol 1: Concepções Gerais da Teoria Lingüística. São Paulo: Ed.
Global Universitária, 1978, pp. 45-60).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
109
Citem-se esses dois passos de Neves (1999:110), nos quais nos revela as
conclusões a que chegou.
“a) Aplicando-se os testes ao elemento-objeto do verbo, verifica-se que os dois
tipos de construções examinadas têm comportamento oposto: nas construções aqui
propostas como fixas, esse elemento não é um “constituinte”, isto é, não tem
individualidade, compondo um todo com o verbo da construção. Nas construções
aqui propostas como de verbo-suporte, por outro lado, esse elemento comporta-se
como sintagma nominal, com lugar na estrutura de constituintes da oração”.
“b) Aplicando-se os testes ao conjunto da construção (verbo + objeto), verifica-se,
diferentemente, que os dois tipos de construção têm o mesmo comportamento: em
ambos os casos o conjunto se comporta como um constituinte da oração (sintagma
verbal)”.
Na mesma página, no parágrafo seguinte, ao se referir a dificuldade de
distinguir entre construções de verbo-suporte e expressões cristalizadas, Neves
reconhece o seguinte:
“Com efeito, sob certos aspectos, elas [as construções de verbo-suporte] têm uma
interface com as combinações fixas, com as quais, por exemplo e salta aos olhos
de qualquer leigo -, compartilham a condição de equivalência semântica com um
verbo simples, isto é, a condição de unicidade semântica, vista no fato de que o
significado da unidade formada não é diretamente correspondente à soma das
partes”.
Levando-se em conta as palavras de Neves, pode parecer que, no que toca
aos questionamentos que fizemos no início deste capítulo, atinentes à distinção,
ou melhor, à dificuldade de distinção entre os dois tipos de construção, os critérios
de cuja ausência nos ressentíamos não nos tenham aproveitado. No entanto, deve-
se reconhecer que, aplicados ao elemento-objeto daquelas construções, os testes
surtiram o efeito desejado: as construções de verbo-suporte se distinguem das
expressões cristalizadas, pelo tipo de comportamento sintático do elemento-
objeto, que funciona como “constituinte”, no caso das construções de verbo-
suporte, e como um elemento sem individualidade (um “não-constituinte”), caso
em que compõe um todo com o verbo da construção. É claro que aqui os testes
foram aplicados sob o pressuposto segundo o qual essas construções já foram
distinguidas, quando da discriminação de suas características; afinal, a própria
autora assim escreve, à página 110:
“Se a verificação que, segundo Radford (1988), efetuei para os elementos que
compõem as construções propostas como de verbo-suporte (...) e como expressões
cristalizadas (...) estiver correta, pode-se concluir (...)”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
110
Acrescente-se que, como vimos, em parte, a aplicação de um ou outro teste
nem sempre é clara; carece, pois, de explicação. Escusando os problemas,
reconhecem-se as seguintes contribuições do trabalho de Neves à nossa descrição
do comportamento sintático-discursivo do pronome “lhe”. Antes, porém, devemos
salientar que as supostas “construções de verbo-suporte” ou “expressões
cristalizadas” que parecem figurar numa seção de nossos Corpora não abundam,
por um lado – o que nos escusa demasiadas complicações teóricas; por outro lado,
constituem exemplos, de certo modo, triviais, que podem ser avaliados
satisfatoriamente à luz das contribuições teóricas de Viés e Gross e Radford,
colhidas de Neves e apresentadas aqui.
relevância: no artigo, a autora, ao contrário do que sucede em sua obra
gramatical, dispensa um tratamento mais cuidadoso sobre a questão. Veja-se que
nos informações importantes sobre a constituição sintática daquelas
construções;
relevância: a maior relevância, provavelmente, seja o tratamento
criterioso da questão. Uma vez conhecidos os critérios mais pertinentes para
avaliar o comportamento gramatical daquelas construções, dispomos de um
instrumental do qual nos podemos socorrer, para fins de determinação do tipo de
construções em que se pode achar o pronome “lhe”.
No que toca ao comportamento do “lhe”, que notar sua versatilidade
estrutural, a saber, pode entrar a fazer parte de construções bem variadas, sintática
e semanticamente. Não obstante, seu comportamento é passível de descrição, em
outras palavras, seu uso é bem sistemático. Aliás, depreender a sistematicidade de
seu uso é o objetivo basilar de nosso trabalho. Na próxima seção,
empreenderemos a tarefa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
111
6.3
A análise dos Corpora
6.3.1
Verbos que se constroem tradicionalmente com o chamado
objeto indireto
Propomo-nos a meditar sobre os casos tradicionais em que o pronome “lhe”
funciona como “objeto indireto”. Cabe advertir que consideramos aqui o objeto
indireto stricto sensu, a saber, aquele que, do ponto de vista formal, é encetado
pela preposição “a” e, semanticamente, cumpre o papel temático de [destinatário],
caso em que é representado por substantivo [+ humano]
35
. Essa concepção de
objeto indireto se distingue da concepção mais tradicional (adotada por
Cunha&Cintra (2001), por exemplo), sobretudo, pela possibilidade de permuta
com “lhe”.
Procuraremos mostrar que a tradição, entre outras coisas, ignora o fato de o
objeto indireto de certos verbos (verbos citados à farta nas gramáticas
tradicionais) ser representado por substantivo [- animado] e de não desempenhar o
papel temático típico (ou seja, o de destinatário). Esses casos são marginalizados
na descrição tradicional, tacitamente ou não
36
. Todavia, não rareiam; mormente,
quando o pronome lhe” cumpre a função de dativo de posse (que, na tradição, é
considerado um tipo de objeto indireto).
Os exemplos abaixo, nos quais destacamos o verbo e o pronome em negrito,
dão-nos testemunho de casos em que o “lhe” é tradicionalmente um “objeto
indireto”. São casos prototípicos – levando-se em conta o que a tradição nos
ensina.
(1) (...) se querem ouvir-me calados, posso-lhes contar um caso de minha
vida (...)”. (O Espelho – Machado de Assis)
(2) “A moça pagou-lhe a cortesia com um sorriso”. (Pai contra mãe –
Machado de Assis)
(3) “Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança
por um instante; viria buscá-la mais tarde”. (Pai contra mãe – Machado de Assis)
(4) “(...) e sentou-se ele também esperando que ela lhe explicasse a causa da
vinda”. (Miss Dólar – Machado de Assis)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
112
(5) “Na paz, Ester era nossa cliente; vendíamos-lhe estampas de
decalcomania (...)”. (A Salvação da Alma – Carlos Drummond de Andrade)
(6) “O ex-diretor do Correio de Viçosa ergueu-se, atordoado (...). Sentei-me
num banco e apresentei-lhes as letras”. (São Bernardo - Graciliano Ramos)
(7) “(...) a tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado”. (A Hora
da Estrela - Clarice Lispector)
(8) “Quanto ao Padilha, eu sentia prazer em humilhá-lo mostrando-lhe os
melhoramentos que introduzia na propriedade”. (São Bernardo Graciliano
Ramos)
Damos a saber a estrutura relacional desses verbos a seguir:
CONTAR - X contar Y a Z
PAGAR – X pagar Y a Z
PEDIR – X pedir Y a Z
EXPLICAR – X explicar Y a Z
VENDER – X vender Y a Z
APRESENTAR – X apresentar Y a Z
ENSINAR – X ensinar Y a Z
MOSTRAR – X mostrar Y a Z
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
113
_____
35. Também se incluem nesse caso os substantivos que designam “animais”, sobretudo, as
espécies “domesticadas”, como os es e gatos. (substantivos [+ animado]) Contudo, como não
registrássemos esses casos em nossos corpora, cuidamos melhor seria referir apenas o traço
sêmico [+ humano], que, afinal, é a característica mais geral a que faz referência a tradição.
36. Embora não dispense um tratamento sistemático, Rocha Lima (2001: 248-251) quiçá
seja um dos poucos autores “tradicionais” que fizeram considerações importantes no tocante à
forma variada das construções em que figura o objeto indireto. Ademais, de certo modo, o autor
reconhece que o objeto indireto desempenha papel temático diferente do papel de ‘destinatário’, ao
se referir aos verbos unipessoais intransitivos que “regem” objeto indireto. O substantivo que
funciona como objeto indireto, nesses casos, designa “a pessoa em que se manifesta a ação”
(Lima, 2001: 251). Todavia, não referência em Lima, tampouco nos outros gramáticos
tradicionais, ao fato de o “lhe”, em certas variedades formais da língua escrita, referir-se a
substantivos [- animado], na função tradicionalmente denominada de “objeto indireto”, como
veremos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
114
Vejam-se, agora, os estados-de-coisas designados por eles:
CONTAR institui um estado-de-coisas em que uma entidade X transmite
informações (objeto) a uma entidade Z (destinatário);
PAGAR institui um estado-de-coisas em que uma entidade X faz com que
um “objeto” (de troca) passe à posse de Z (por algum tipo de serviço prestado por
Z.)
37
PEDIR – institui um estado-de-coisas em que uma entidade X transmite uma
informação (‘objeto’), que é interpretado como um “pedido”, a uma entidade Z.
EXPLICAR – institui um estado-de-coisas em que uma entidade X transmite
informações (‘objeto’) que servem para esclarecer algum fato, idéia, etc. a uma
entidade Z.
VENDER – institui um estado-de-coisas em que uma entidade X (vendedor)
transfere alguma coisa (objeto da compra) para a posse de Z (comprador).
38
APRESENTAR institui um estado-de-coisas em que uma entidade X dá a
saber (expõe) alguma coisa (“idéias”, “documentos”, etc.) a uma entidade Z.
ENSINAR institui um estado-de-coisas em que uma entidade X transmite
“alguma coisa” (conhecimentos) a uma entidade Z.
MOSTRAR institui um estado-de-coisas em que uma entidade X faz ver
(ou saber) alguma coisa (‘objeto’) a uma entidade Z.
É mister considerar, em princípio, que a idéia de ‘transferência’ subjaz a
todos aqueles estado-de-coisas, exceto os designados por “apresentar” e
“mostrar”. No entanto, não se pense que constituam casos de “irregularidade”;
deveras constituem outro “padrão” de referência de estado-de-coisas, aos quais
podemos reunir verbos como “revelar”, “exibir”, “expor”, “manifestar”, etc.
Todos esses verbos configuram um estado-de-coisas geral, que pode ser descrito,
grosso modo, como ‘uma entidade X faz ver (ou saber) alguma coisa a uma
entidade Z’. Poder-se-ia também, nesse caso, subentender uma idéia de
“transferência”, mas não uma transferência objetiva, senão vista sob uma
perspectiva subjetiva; em suma, poder-se-ia pensar numa “transferência
cognitiva”, segundo a qual “um ‘dado’ da consciência de X (conhecimento) torna-
se ‘dado’ de consciência de Z (conhecimento), quando da revelação do objeto”’.
É claro que, diferentemente do que sucede no caso da transferência objetiva, na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
115
“transferência cognitiva”, a entidade que “transfere” não deixa de “possuir” o que
transferiu: ela apenas faz que a outra entidade compartilhe do mesmo
conhecimento sobre o “objeto” posto em foco. Não nos pretendendo delongar
nessa questão (interessante, decerto), podemos incluir o verbo “apresentar” (e seus
correlatos) entre os verbos de cujo estado-de-coisas se pode deduzir algum tipo de
‘transferência’ ou ‘transmissão’. Esse recorte representa um nível mais
“profundo” de abstração semântica; num nível mais “superficial”, podemos reuni-
lo aos verbos que expressam o “objeto” como um elemento de percepção (visual).
De outra perspectiva semântica e evitando demasiada discussão- podemos dizer
que ele se insere no campo semântico de “revelação”.
As idéias atinentes aos estados-de-coisas dos verbos importam para fazer
notar a sistematicidade do objeto indireto (e, conseqüentemente, do “lhe”) em
estados-de-coisas dos quais se inferem as idéias de ‘transferência e/ou
negociação’, ‘elocução e/ou comunicação’, ‘instrução’, etc.
39
37. Ressalte-se que daremos a saber o estado-de-coisas que corresponde ao “mundo
“básico” descrito pelo verbo (ou seja, o “mundo-molde” em cuja base se podem construir outros
“mundos”). Portanto, para fins de análise, não consideraremos a relativa “iinfluência” de figuras
de linguagem (“metáfora”, “metonímia”, “personificação”, etc.) na configuração do estado-de-
coisas básico”, muito embora não descuremos de notar essa “influência” sempre que importar à
análise do comportamento sintático-discursivo do pronome “lhe”.
38. Simplificamos o estado-de-coisas, porquanto a relação entre as entidades envolvidas,
que nos interessa, já foi captada. Eventualmente, reiteraremos essa prática. É claro que, nesse caso,
dever-se-ia acrescentar um outro “objeto” que, na realidade designada, é tomado como uma
verdadeira “entidade”, dado seu valor de troca nesse tipo de relação. Em suma, especifica-se
uma relação de negociação, em que importam considerar: o vendedor, o comprador, a “coisa”
comprada, e o “objeto” de troca, cujo valor convencional corresponde ao “valor” da coisa vendida.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
116
Claro fique, pois, que aqueles são os estados-de-coisas nos quais,
comumente, se acha a entidade que corresponde ao objeto indireto; mas esse
termo oracional figura em outros estados-de-coisas. Assim, tradicionalmente,
constroem-se com objeto indireto verbos como “proibir”, “permitir”, etc., por um
lado; e “caber”, “competir”, “assistir” (=caber), etc., por outro
40
. Os dois
primeiros prevêem um A2, do que resulta uma estrutura relacional com três
lugares-vazios: X proibir (permitir) Y a Z; os dois últimos prevêem apenas dois
lugares-vazios: X caber (competir, assistir) a Z.
Atente-se, doravante, à estrutura relacional dos verbos que figuram naqueles
exemplos. Todos eles prevêem três lugares-vazios; são, pois, verbos trivalentes.
Esse tipo de estrutura, em que se acham três lugares, que são preenchidos
respectivamente pelo A1 (sujeito), A2 (objeto direto) e A3 (objeto indireto) é a
estrutura típica em que figura o objeto indireto. Diremos, portanto, que, verbos de
três lugares prevêem, via de regra, “objeto indireto”. Todavia, isso só não basta.
Veja-se que verbos que determinam três lugares vazios, mas um desses lugares
não é preenchido pelo objeto indireto (A3) senão pelo “complemento relativo”
(A4). Citem-se os seguintes: “advertir”, “avisar”, “informar”, etc. que
ressaltar, todavia, que esses verbos podem apresentar uma estrutura relacional
análoga na qual figura o “objeto indireto”, com variação de significado ou não (cf.
“Advertir alguém de alguma coisa / advertir algo a alguém; informar alguém de
algo / informar algo a alguém”, etc.).
____
39. Em sua obra Gramática de Usos do Português (2000), no capítulo dedicado ao estudo
do verbo (pp. 25-65), Neves apresenta-nos uma notável classificação dos verbos, do ponto de vista
de sua predicação, a qual compreende os estados-de-coisas tipicamente designados por verbos que
se constroem com “objeto indireto”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
117
Considere-se, portanto, aquela situação estrutural uma condição importante
para a atualização do objeto indireto (e, conseqüentemente, do “lhe”). Ou seja,
numa estrutura relacional de três lugares, um dos lugares será, potencialmente,
preenchido pelo objeto indireto. Reconhece-se, não obstante, o objeto indireto,
considerado aqui, levando-se em conta as seguintes características:
- Do ponto de vista formal, é introduzido pela preposição “a” (ás vezes
“para”, sobretudo, na variedade coloquial da ngua falada); é, via de regra,
representado pelo pronome clítico “lhe”;
- Do ponto de vista semântico, quando na forma nominal, é representado por
um substantivo [+ animado] que desempenha o papel temático de [destinatário/
beneficiário].
No que toca ao conceito de previsibilidade valencial, o objeto indireto será
sempre previsto pela valência do verbo; em outras palavras, o verbo “abrirá” um
espaço, na cadeia sintagmática, que poderá ser preenchido por um constituinte que
apresenta as características supracitadas.
____
40. Referimo-nos a “estado-de-coisas” em que figura o objeto indireto, não obstante termos
em conta a distinção nocional entre “predicação” e “estado-de-coisas”, como explicitado em Neves
(2004: 84). A “predicação” é o resultado da relação sintático-semântica entre o predicador (verbo)
e certo número de termos; o “estado-de-coisas” diz respeito a uma codificação lingüística (ou,
provavelmente, cognitiva) feita pelo falante da realidade. Assim, a predicação designa (ou
“materializa”) o estado-de-coisas, o qual, a seu turno, é a apreensão lingüística da realidade
experimentada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
118
Vamos considerar, doravante, casos em que o verbo se constrói com apenas
dois actantes: A1 (sujeito) e A3 (objeto indireto). Esses verbos selecionam, para
ocupar a posição imediatamente à direita, um constituinte introduzido pela
preposição “a”, que vai representar um papel temático diferente do papel de
[destinatário]
41
, comum aos objetos indiretos anteriormente vistos.
Vale notar ainda que o substantivo núcleo do objeto indireto dos verbos
abaixo apresenta o traço sêmico [+ humano]. Seguem-se os exemplos colhidos:
(9) “Custa-lhes acreditar, não?”
- “Custa-me até entender respondeu um dos ouvintes. (O Espelho
Machado de Assis)
(10) “(...) e pô-lo de agente, escrevente ou que quer que era, do solicitador
Borges, com a esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os
procuradores de causas ganharam muito.” (Uns Braços – Machado de Assis)
(11) Acudiu-lhe de pronto a lição do casuísta Sanchez, e das duas opiniões
tomou a que lhe pareceu provável”. (Miss Dollar – Machado de Assis)
(12) “(...) ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o
jeito de se ajeitar.” (A Hora da Estrela – Clarice Lispector)
(13) “Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no
Brasil se falava brasileiro” (A Hora da Estrela – Clarice Lispector).
41. Vamos representar o papel temático do objeto indireto desses verbos pela variante “x”,
que a literatura consultada não contempla os papéis temáticos que nos importam aqui. Quando
possível, vamo-nos referir ao comportamento semântico da entidade designada pelo substantivo
núcleo do objeto indireto, sem, contudo, sugerir qualquer rotulação.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
119
Damos a conhecer, abaixo, a estrutura relacional desses verbos.
CUSTAR – X custar a Z
PARECER – X parecer a Z
ACUDIR – X acudir a Z
FALTAR – X faltar a Z
OCORRER – X ocorrer a Z
Note-se, em princípio, que são verbos bivalentes: prevêem dois espaços
vazios um, à esquerda, é preenchido pelo A1 (sujeito); outro, à direita, pelo A3
(objeto indireto). O sujeito pode ter a forma nominal ou oracional. Apresenta-se
sob a forma nominal em (11), (12) e (13); sob a forma oracional, apresenta-se em
(9) e (10).
Detendo-nos à questão do papel temático do objeto indireto desses verbos,
em todos esses exemplos o constituinte a que o pronome “lhe” se refere, cuja
estrutura pode ser descrita como ‘a__SN’ (o traço [ _ ] indica a posição do
elemento na estrutura), é representado por um substantivo que não cumpre a
função de [destinatário] (ou seja, não representa a entidade a que se destina a ação
do verbo). Leve-se em conta também que tais verbos sequer designam “ação”. Os
verbos dos exemplos (9), (10), (11) e (13) descrevem uma “situação”
42
, em que a
entidade designada pelo substantivo na função de “objeto indireto” é tomada
como uma entidade em cuja mente se forma um pensamento (11, 13), um parecer
(ou se um efeito psíquico qualquer), como em (10), sobre a realidade
experimentada; ou também em cuja mente se forma um “obstáculo” (por idéias
pré-concebidas, etc.) para a percepção ou compreensão da realidade comunicada,
como (9). Em (9), “lhe” refere-se a um substantivo que designa uma entidade que
tem “dificuldadepara acreditar (por motivo vário) e até para “entender” - na
história relatada por uma das personagens. Em (12), “lhe” se refere a um
substantivo que designa uma entidade que carece de alguma coisa.
Sem delongar esse ponto, esperamos tenha ficado claro que o objeto indireto
dos verbos em pauta é representado por substantivo que desempenha um papel
temático “x” (que é, portanto, diferente do papel atribuído, tradicionalmente, ao
substantivo que desempenha aquela função).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
120
Instamos em que os casos analisados nesta seção constituem casos
tradicionais de objeto indireto. O primeiro grupo (o dos objetos indiretos que se
inserem em estruturas relacionais com três lugares) reúnem objetos indiretos que
podem co-ocorrer com o A2 (objeto direto); o segundo grupo, considerado aqui,
compreende os objetos indiretos que estão relacionados de forma imediata ao
verbo; são eles o único actante que se acha (imediatamente) à direita do verbo.
Aos dois grupos, todavia, é comum a seguinte característica formal: o constituinte
a que se chama “objeto indireto” é introduzido pela preposição “a” (além, é claro,
de ser substituível por “lhe”). Do ponto de vista semântico, os dois grupos
diferem, no que tange ao tipo de papel temático do substantivo que exerce a
função de objeto indireto. No primeiro grupo, o objeto indireto representa, via de
regra, o [destinatário]; no segundo grupo, representa um papel temático “x” (ou
seja, diferente do papel de [destinatário]). Quando enunciamos “O professor
ensina aos alunos análise sintática todo ano”, intuímos que “aos alunos”
representa a entidade a que se destina a ação de “ensinar” (portanto, representa o
“destinatário”); mas, ao enunciarmos “Custa ao professor (=lhe) ensinar análise
sintática todo ano”, não intuímos que “ao professor” seja o “destinatário”, senão a
entidade para quem é trabalhoso ou dificultoso ensinar análise sintática todo ano.
42. Veja-se o conceito de “situação” em nota 6, no capítulo introdutório.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
121
6.3.2
Outras Considerações
Antes de levar a efeito esta seção, importa-nos observar alguns aspectos do
comportamento do “lhe” nas seguintes frases.
(14) “Qual foi o pasmo de Matias ao abrir em casa o dicionário de
Português que comprara para o filho colegial, e verificar que ele era todo feito de
palavras cruzadas”. (Novo Dicionário – Carlos Drummond de Andrade).
(15) “[Macabéa] pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau”.
(A Hora da Estrela – Clarice Lispector, p. 61)
(16) “A velha Margarida mora aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa
(...). Tem um século, e qualquer dia destes compro-lhe mortalha e mando enterrá-
la perto do altar-mor da capela”. (São Bernardo – Graciliano Ramos, p. 11).
(17) O cais imundo dava-lhe saudade do futuro”. (A Hora da Estrela -
Clarice Lispector, p. 30).
(18) A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram
íntimos, arrancou-lhe a dentadura, enquanto ele dormia e desapareceu com ela”.
(A Melhor opção – Drummond)
Principiaremos nossas considerações pelo exemplo (15), que nos permite
corroborar uma hipótese importante à coerência de nossa proposição, no que toca
ao conceito de previsibilidade valencial. Tomemos a valência do verbo
“comprar”: X compra Y a/de Z. Nessa estrutura, especifica-se o seguinte estado-
de-coisas: “uma entidade X (comprador) adquire uma coisa qualquer (objeto) a/de
uma entidade Z (pelo repasse a este de um valor monetário qualquer)”. Não
descuramos de notar a flutuação entre “a” e “de”, que nos importará mais adiante.
Importa-nos agora patentear o fato de que o “lhe” pode figurar no lugar do
constituinte que indica o “vendedor” ou no lugar do constituinte que indica o
destinatário ou beneficiário, que não é previsto pela valência do verbo e que
apresenta a estrutura ‘para__SN’. Assim, dado o contexto em que João costuma ir
à venda de Manoel todos os sábados para comprar ovos, João certo dia diz a um
amigo que se queixa de um vendedor a quem costuma comprar pães: “Manoel
não... é boa gente! Todos os sábados vou na sua venda e lhe compro uma dúzia de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
122
ovos... E sai barato!”. Veja-se que o pronome “lhe” refere-se ao constituinte “a /de
Manoel” (cf. compro a Manoel/ de Manoel ovos), que indica a entidade que faz a
venda (vendedor). Se, por exemplo, o amigo de João se queixasse da mulher, que
lhe pede que compre ovos todos os sábados, João poderia dizer ao seu amigo: “A
minha mulher me pede também, mas eu não me importo... lhe compro uma dúzia
de ovos todos os sábados”. Nesse caso, o pronome “lhe” refere-se a um
constituinte que indica a entidade em benefício da qual uma ação é realizada.
Também cabe aqui entendê-la como o destinatário, ou seja, a entidade a quem se
destina a ação. Disso se conclui que, às vezes, torna-se muito difícil distinguir
entre as noções de [destinatário] e [beneficiário].
Não obstante, levando-se em conta aspectos formais da questão, vale notar o
seguinte: a) o “lhe cliticiza constituintes encetados pela preposição “a” ou,
eventualmente, “para”; b) no último caso em pauta, o “lhe”, conquanto se refira a
um constituinte que indica o ‘beneficiário/destinatário’, não figura na frase por
previsibilidade valencial, uma vez que o estado-de-coisas depreendido de
“comprar” compreende três “participantes”: aquele que compra, a coisa vendida e
aquele que vende. A entidade a quem se destina a compra (ou a quem a compra
beneficia”) não “participa” do estado-de-coisas designado. Cumpre observar
outrossim que a atualização do constituinte que indica a entidade a quem
compramos alguma coisa o vendedor por fatores de ordem discursiva, tende a
ser calado: muitas vezes, não importa ao enunciador dar a saber a seu interlocutor
a quem ele comprou uma cafeteira, por exemplo. Uma vez tendo comprado para si
mesmo, o enunciador, dentre tantas possibilidades, pode dizer, por exemplo,
“Olha o que comprei pra mim!” ou “Olha a cafeteira que eu comprei!”, etc.; ou
seja, pode anunciar ou calar o beneficiário ou o destinatário que é codificado
sendo ele mesmo, o enunciador. Todavia, sendo destinada a cafeteira a outra
pessoa por exemplo, a sua mãe o enunciador poderia dizer “Olha a cafeteira
que eu comprei pra minha mãe!”, etc.
Deveras, a possibilidade de enunciar, muita vez, o constituinte introduzido
por “para”, que indica o destinatário ou beneficiário da ação, suscita-nos algumas
dúvidas: 1) primeiramente, ao propor que o constituinte introduzido por “para”
não é previsto pela valência do verbo, estaríamos tacitamente dizendo que o
constituinte que indica o “vendedor”, que é introduzido pela preposição de” (no
português atual) ou “a” (em registros escritos muito formais, como em certas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
123
obras da literatura), é previsto pela valência do verbo, muito embora seja
freqüentemente calado no uso da língua. Destarte, poder-se-ia concluir existir
certa preeminência da estrutura sobre o uso, o que nos parece impróprio num
estudo de base funcionalista. Todavia, porque nos interessa, entre outras coisas,
descrever as diversas maneiras de expressão do dativo na língua portuguesa, em
sua variedade escrita formal, é preciso tomar a função tradicionalmente chamada
de “objeto indireto” como “ponto de referência” para o estudo do comportamento
gramatical e discursivo de outras unidades lingüísticas que se incluem na
categoria “dativo”. Assim, o objeto indireto é considerado um actante (ou um
complemento, em termos tradicionais); em outras palavras, é considerado uma
variedade de dativo que depende do verbo. Esse “ponto de referência” para o
estudo, ainda que elementar, da categoria dativo orienta-nos a análise de duas
maneiras: em primeiro lugar, dispensamos atenção ao domínio lingüístico que a
definição de “objeto indireto” recobre nesse tocante, esforçamo-nos por apontar
a discrepância entre o que nos ensina a tradição a esse respeito e os fatos de
língua; em segundo lugar, ocupamo-nos com a questão dos dativos que, ao
contrário da variedade recoberta pelo rótulo “objeto indireto”, são termos não-
actanciais (daí a designação “dativos livres”).
Do exposto se conclui o postular a existência de uma estrutura relacional
“fixada” (e não “fixa”), que representa um estado-de-coisas “bem delimitado”, do
ponto de vista da realidade “apreendida”. Vamo-nos deter um pouco mais nesse
ponto. Entendemos que o estado-de-coisas, que é uma codificação lingüística da
realidade, apreende essa realidade, mais ou menos como uma câmera fotográfica
que registra um evento, um acontecimento, uma paisagem (estado), etc. Em sendo
um acontecimento da realidade a porção apreendida, nele podem-se distinguir
participantes, ‘objetos afetados’, “pontos de referências” (indicação de tempo, de
lugar – que é feita por constituintes, denominados na teoria funcionalista de
“satélites”); esse estado-de-coisas pode ter certa duração e pode ser percebido de
algum modo. Na predicação, que compreende relações, basicamente, semânticas e
sintáticas entre o verbo (predicador) e os elementos a ele relacionados direta ou
indiretamente, opera-se um novo “recorte”, pois a predicação não inclui todos os
‘dados’ da realidade experimentada; assim na estrutura relacional de um verbo
como “comprar” não um lugar determinado para uma forma como “por
duzentos reais”, conquanto do estado-de-coisas designado se possa deduzir a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
124
referência ao “valor de troca de uma mercadoria”: uma entidade X adquire uma
coisa Y de uma entidade Z por um quantia qualquer”. A relação entre a língua (ou
linguagem) e o a realidade não é direta, contudo. Assim, não sendo um espelho da
realidade, a língua dispõe de uma estrutura própria. Por exemplo, uma frase como
“O carro furou o pneu” tem estrutura semelhante à da frase “O carro atropelou o
rato”, mas o conteúdo designado na primeira é diferente desta; por outro lado, é
semelhante ao conteúdo designado na frase “O pneu do carro furou”, que, a seu
turno, apresenta uma estrutura diferente da primeira frase.
Estando claro que reconhecemos a relação indireta entre língua e realidade,
não se negue, entretanto, que, é no domínio da predicação que melhor se pode
notar a “ação” da língua sobre a realidade: pela função simbólica da linguagem,
“podemos transformar todos os elementos do mundo em dados da nossa
consciência e em assunto de nossos discursos”.
43
Nossa preocupação repousa em mostrar que certos conteúdos como ‘a
entidade que se beneficia de uma ação’, ‘a entidade a quem a ação se destina’,
etc., que se associam ao modo como os “participantes” se relacionam no estado-
de-coisas designado, embora sejam codificados na língua, não se expressam,
muitas vezes, na estrutura relacional determinada pelo verbo, por constituintes
actanciais. É verdade que a estrutura relacional que se deduz quando empregamos
um verbo como “dar”, por exemplo, na sua acepção mais geral, é “fixada” pelo
uso (como diriam alguns funcionalistas); mas não se pode negar que a estrutura
relacional representará uma “parcela” do estado-de-coisas designado, e essa
estrutura pode expressar a relação entre unidades lingüísticas que veiculam
conteúdos relevantes no estado-de-coisas designado; assim é que, num estado-de-
coisas de que se deduz ‘relação de negociação’, como o descrito pelo verbo
“vender”, importam à representação estrutural conteúdos como ‘aquele que
vende’, ‘a coisa vendida’ e ‘a quem se vende’; outros conteúdos, com serem
“circunstanciais”, tais como ‘preço’, ‘lugar’, ‘tempo’, etc., são expressos por
unidades lingüísticas que não são termos actanciais, ou seja, previstos pela
valência daquele verbo.
Não negamos a existência da estrutura, tampouco, é claro, negamos que o
uso influencia a forma dos enunciados lingüísticos. No entanto, atendo-nos ao
estado-de-coisas, uma noção semântica (e provavelmente cognitiva), pela qual se
procura mostrar a relação entre o homem e a realidade experimentada por ele
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
125
mediante a linguagem
44
, insistimos em que, para se avaliar se um constituinte é ou
não um actante é preciso reconhecer o “recorte” lingüístico, portanto, estrutural,
da realidade representada em determinado estado-de-coisas. Vale notar,
finalmente, que esse recorte” nunca é “fixo” ou “invariável”; ao contrário é,
teoricamente, diferente, quando do uso de um verbo. Por isso se pode explicar, por
exemplo, o fato de um constituinte como no armário” ser interpretado como um
complemento em “Meu irmão colocou os sapatos de couro no armário” (X colocar
Y em Z), e como um “adjunto” em “Eu vi os sapatos do meu irmão no armário”
(X ver Y). Ora, o verbo “colocar” estabelece um estado-de-coisas em que o
conteúdo de ‘lugar’ é pertinente à expressão lingüística. A estrutura valencial do
verbo “colocar”, que está “contida” na sua semântica, vai prever um lugar para a
atuzalização de um constituinte que designa a idéia de ‘lugar’; por outro lado, o
estado-de-coisas designado pelo verbo “ver” poderia até incluir o conteúdo de
‘lugar’, embora isso não seja necessário, mas o “recorte” estrutural da língua não
o inclui como um conteúdo relevante; é claro que ele pode ser expresso por meio
de unidades lingüísticas variadas; em certas estruturas, no entanto, essas unidades
serão interpretadas como “complemento” ou “adjunto”, de acordo com a
pertinência semântico-sintática do conteúdo que elas veiculam.
43. Azeredo, 2004. p. 17, seção 5.
44. Segundo Azeredo (2004, p. 18. seção 6), “o mundo experimentado pelo homem não
entra em sua consciência de forma bruta e caótica, mas estruturado por meio das categorias da
linguagem, isto é, sob a forma de conhecimento”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
126
No que toca ao comportamento sintático-discursivo do constituinte que
apresenta a estrutura “de/a___SN” e que indica o vendedor, no exemplo (15),
ainda que não nos tenhamos referido à sua função sintática, entendê-lo como um
possível “objeto indireto” acarreta-nos muito problema (problema do qual nos
ocuparemos mais adiante): do ponto de vista formal, temos advogado que o objeto
indireto é caracterizado por vir encetado pela preposição “a(às vezes, “para”) e
que o “lhe”, quando na função típica de “objeto indireto”, se relaciona a um
constituinte introduzido pela preposição “a” (relação “lhe/prep. “a”). No entanto,
essa relação, embora verdadeira, não é necessária. Como veremos, o “lhe” vai
figurar em lugar de constituintes introduzidos por preposição diferente de “a”. A
fim de explicar, do ponto de vista formal, o emprego de “lhe” referindo-se à
entidade “vendedor”, poder-se-ia dizer que, embora haja uma estrutura
‘de__SN’, por força da preposição “a”, que alterna com “de”, o emprego do
pronome é possível. Assim, se creditaria a idéia segundo a qual uma relação
formal entre “lhe” e preposição “a”. Essa alternativa também não parece muito
adequada: em primeiro lugar, devemos ter em mente que o uso de “a”, nesse caso,
é raro na língua hodierna e, muito provavelmente, tenha baixa aceitação entre os
falantes; em segundo lugar, como dissemos, a presença de “a” não é necessária,
muita vez, para empregar “lhe”.
Do ponto de vista semântico, o constituinte que indica o vendedor não é o
destinatário esse papel é mais bem desempenhado por outro constituinte, como
vimos -, senão, em certo grau de abstração semântica, um “co-agente”. Essa
característica contraria a lição da tradição, segundo a qual o objeto indireto
representa o “destinatário”. É verdade que, como se viu, em certos casos em que
tradicionalmente se vê um objeto indireto, não se associa a essa função uma
entidade que desempenha o papel temático de “destinatário”; disso se poderia
deduzir que esse aspecto semântico não impediria que considerássemos aquele
constituinte um “objeto indireto”; mas, procedendo assim, estaríamos reiterando a
prática tradicional e inconveniente, por revelar um comodismo descritivo
censurável, de reunir fatos da ngua sob rótulos pré-existentes, como se o
arcabouço descritivo pré-existisse à língua e servisse de “molde” a que devemos
adaptá-la. As descrições, enquanto pontos-de-vista sobre uma “porção”
determinada da língua, podem ser revistas, readaptadas ou criticadas; mas não
queiramos que a língua seja “revista”, “readaptada” ou “criticada”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
127
Não nos interessa, portanto, aqui, dizer se o constituinte em questão é ou não
um objeto indireto, senão atestar o emprego variado do pronome “lhe”, que não
pode ser amarrado por rotulações pré-existentes na gramática tradicional.
Finalmente, cumpre dizer que o exemplo (14), ainda que não nos dê
testemunho do uso de “lhe”, atesta-nos a ocorrência de um constituinte como
“para o filho colegial”, que desempenha o papel de “destinatário” ou
“beneficiário”, e cuja estrutura é ‘para__SN’. É possível permutar “para o filho
colegial” com “lhe” (cf. Matias comprou para o filho colegial um dicionário.
Matias comprou-lhe um dicionário).
O caso discutido aqui medeia os casos de objeto indireto típico, que vimos
na sub-seção 6.3.1, e os casos que, embora possam ser considerados como casos
de “objeto indireto” na perspectiva da gramática tradicional, apresentam
características formais e semânticas que contrariam a concepção tradicional. Não
pretendendo abandonar essa discussão, que será retomada numa outra seção,
atente-se aos exemplos (17) e (18), doravante.
O exemplo (17) aponta-nos outra questão fecunda, que nos será oportuna
mais adiante, e a que fizemos menção, quando refletimos sobre o comportamento
do “lhe” em predicação com o verbo “comprar”. Levando-se em conta a valência
padrão do verbo “dar”: “X dar Y a Z”, a questão repousa na observação de que em
construções como X dar saudade”, “X dar medo”, “X dar dor (de cabeça)”, etc.,
nas quais o verbo “dar” é empregado na acepção de “causar”, possibilidade de
a preposição “em” introduzir o constituinte “Z”: “X dar saudade em Z”; “X dar
medo em Z”, “X dar dor (de cabeça) em Z”. Devemos admitir certo grau de
alternância entre as preposições “a” e “em”, que culminaria com o emprego de
“em”, nos registros informais. No entanto, cumpre notar uma condição sintático-
semântica: parece que, em determinadas construções em que se acha o verbo
“dar” acompanhado de um substantivo que designa um “estado”, “sentimento” ou
“sensação” próprios dos seres humanos, a alternância parece ser mais possível em
umas do que noutras. Do ponto de vista estritamente semântico, a preposição
“em” se justifica pelo fato de que, por ela, indica-se a noção de ‘interioridade’,
que é deduzida dessas construções, por força da presença de substantivos que
designam “estado”, “sentimento” ou “sensação” que se manifestam “no interior do
homem”. Assim, parece que a preposição “a” é mais adequada na expressão de
conteúdos de “transferência” (objetiva ou não: “Júnior deu a carteira ao irmão”/
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
128
“Este livro a Júnior muito conhecimento”). Propomos que, no exemplo de
Clarice, flutuação: em registros informais, sobretudo da língua falada (mas não
só), poder-se-ia ouvir mais comumente “dar saudade em alguém/nele/nela”.
Assim, numa frase como Lembrar de Henrique lhe dava saudade”, o pronome
“lhe” se referiria a um constituinte do tipo “em__SN”: Lembrar de Henrique
dava saudade em/na Maria” (dava saudade nela). Por outro lado, em registros
mais formais, sobretudo da língua escrita, poder-se-ia conservar a regência em
“a”: “Sua ausência saudade a mim/ a ele”. Volveremos a essa questão mais
adiante.
Finalmente, em (18), veja-se outra questão pertinente. A questão consiste em
saber se o “lhe” é um actante do verbo “arrancar” ou não. Cite-se a frase seguinte:
(M) A jovem arrancou-lhe o relógio.
Vamos substituir o pronome “lhe pela forma correspondente “dele”
(supondo que “lhe” se refira a um substantivo que designa um indivíduo do sexo
masculino). Vamos agora inseri-lo na frase: pode figurar em duas posições mais
comuns.
(N) A jovem arrancou dele o relógio.
(O) A jovem arrancou o relógio dele.
Em (N), é lícita apenas uma leitura: “a jovem arrancou de alguém o relógio”.
Em (O), duas leituras possíveis: “a jovem arrancou de alguém o relógio” ou “a
jovem arrancou o relógio que pertencia a alguém”. Em (N), “dele” indica a
entidade da qual se arrancou o relógio (‘paciente’); em (O), “dele” pode ser
interpretado também como a entidade a quem pertence o relógio (o “possuidor”).
O “lhe”, numa ou noutra interpretação, refere-se a um constituinte cuja
estrutura pode ser descrita como ‘de__SN’. Esse constituinte pode relacionar-se
ao verbo ou ao nome. Portanto, o “lhe” pode figurar por previsibilidade valencial
ou não. Não sendo previsto pela valência do verbo, caso em que se refere ao
“possuidor”, o pronome será considerado um dativo de posse, segundo nossa
proposição. Lembramos que o dativo de posse, como os demais dativos livres, é
um circunstante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
129
Veja-se que a questão não cabe, do ponto de vista da tradição, já que, nos
dois casos, haveria um objeto indireto: de acordo com a primeira perspectiva,
haveria um objeto indireto propriamente dito, ou melhor, desprovido de valor
“possessivo”; de acordo com a segunda concepção, haveria um “objeto indireto de
posse” (que corresponde ao “dativo de posse”). Não se pense que estamos
distinguindo, a rigor, entre objeto indireto e “dativo”; afinal, historicamente, o
objeto indireto é um dativo; mas devemos ter em conta que a categoria dativa
manifesta-se de forma variada na sintaxe portuguesa, e a tradição gramatical
reúne, sob o rótulo “objeto indireto”, vários empregos de dativo. Em vista do
próprio tratamento daquela função, na gramática tradicional, tal prática, no
entanto, resulta descritivamente inadequada. Lembramos também que o “objeto
indireto” mais trivial vincula-se ao que Climent chama de “dativo subordinado”
(Climent, 1945: 313). O “dativo de posse” (um circunstante, em nossa proposta)
inclui-se na classe dos “dativos livres”, a saber, dos dativos que não figuram no
enunciado por exigência da valência do verbo.
Não intentando negar a perspectiva histórica dessa questão, é mister ter em
conta uma distinção que nos parece lícita: o objeto indireto é um tipo de dativo
diferente, sob vários aspectos, do dativo que veicula idéia de “posse” (o “dativo de
posse”). A primeira diferença, como apontamos, repousa na relação que
mantém com o verbo: o objeto indireto, conquanto não neguemos sua relação
mais “frouxa” com o verbo (se a compararmos à relação entre este e o objeto
direto, por exemplo), é, em nossa proposta, selecionado pelo verbo; o “dativo de
posse” não é selecionado pelo verbo e se relaciona sintaticamente, quando na
forma nominal, a um nome (substantivo).
Dessa distinção particular podemos induzir uma distinção mais geral:
diremos que o objeto indireto, tal como o concebemos aqui, é um actante (é
previsto pela valência do verbo); os dativos “livres” de que tratamos são termos
não-actanciais (ou “circunstantes”), a saber, não são previstos pela valência do
verbo.
À semelhança do que sucedeu na frase com verbo “comprar”, que vimos
anteriormente, o pronome “lhe” refere-se a um constituinte introduzido pela
preposição “de”, embora a alternância entre as preposições “a” e de”, observada
no caso anterior, se note tão-só em certos empregos do verbo “arrancar”. No caso
analisado, não é possível o emprego de “a”. Em que pese a essa particularidade,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
130
vale o reconhecimento de que o “lhe” pode referir-se a unidades que são
introduzidas por preposição diferente da preposição “a”.
Já podemos levar a efeito esta sub-seção, ressaltando que a distinção entre as
noções de “objeto indireto” e “complemento relativo”, adotada por Rocha Lima
(2001: 251), a qual se baseia, entre outros aspectos, na possibilidade ou não de
cliticização do complemento pelo “lhe”, torna-se, no mínimo, confusa em casos
como os que vimos - que não rareiam. Veja-se que duas características formais
concorrem para distinguir o objeto indireto do complemento relativo: ao contrário
do primeiro, este último complemento pode vir introduzido por preposição vária
(“a”, “de”, “com”, etc.) e não corresponde à forma “lhe”, senão às formas tônicas
“ele/ela”, “eles/elas”, precedidas da preposição adequada.
Na próxima seção, damos a saber os casos de objeto indireto que é
representado por substantivo [- animado]. Os exemplos apresentados nessa seção
foram colhidos das obras literárias a que nos ativemos. Da Literatura colhemos
poucos exemplos. Esses casos abundam, todavia, nos trabalhos de linguagem
consultados. Como nos exemplos desses trabalhos o “lhe”, que faz referência a
substantivo [- animado], não cumprisse apenas a função de objeto indireto, tal
como o entendemos neste trabalho, ocorreu-nos que melhor seria não incluí-los
entre os exemplos da Literatura que serão apresentados doravante.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
131
6.4
Verbos que se constroem com objeto indireto cujo núcleo é um
substantivo [- animado]
Nosso intento aqui é patentear especialmente o emprego do pronome lhe”,
na função de objeto indireto, referindo-se anaforicamente a substantivos [-
animado], ou seja, que designa um ‘dado’ da realidade do qual não se deduz idéia
de “animação”. Recordem-se as características formal e semântica do objeto
indireto considerado neste trabalho: formalmente, é introduzido pela preposição
“a” (às vezes “para”) e pode ser representado por “lhe”; semanticamente,
representa o “destinatário” (ou “beneficiário”) no estado-de-coisas designado;
ademais, é representado por substantivo [+animado].
Seguem-se os exemplos registrados em nossos corpora; todos colhidos de
textos literários.
(19) Duzentos is por uma caixinha de sabonete inglês era preço mais do
que razoável, mas eu pedia quinhentos; e Ester, ignorando o valor das coisas, ou
dando-lhes um valor especial, que nos escapava, estendia os quinhentos réis”. (A
Salvação da Alma – Carlos Drummond de Andrade)
(20) “Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo (...), se
travavam conhecimento com alguma coisa de que conhecessem antes a
representação gráfica ou oral, dela se aproximavam não raro atribuindo-lhe um
valor mágico”. (O Sorvete – Carlos Drummond de Andrade)
(21) “Quanto à minha vida íntima, talvez também tenha sido a escultura
esporádica o que lhe deu um leve tom de pré-climax talvez por causa do uso de
um certo tipo de atenção (...)”. (A Paixão Segundo G.H. – Clarice Lispector)
(22) “(...) aquele guarda-roupas, depois de bem alimentado de água, de bem
enfartado nas suas fibras, eu o encararia para dar-lhe algum brilho, e também
dentro passaria cera pois o interior devia estar ainda mais esturrado”. (A Paixão
Segundo G.H. – Clarice Lispector)
Ocasião em que o pronome “lhe” irá fazer referência a outros
substantivos [- animado], quando estes cumprirão a função de “dativo de posse”.
Tomemos para reflexão os exemplos aqui citados. Damos a saber a estrutura
relacional dos verbos abaixo:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
132
DAR – X dar Y a Z
X dar Y em Z
ATRIBUIR – X atribuir Y a Z
Em princípio, vale notar que o verbo “dar” foi empregado nas acepções:
‘atribuir, transferir metaforicamente’, em (19) e (21); e ‘limpar, tornar luzidio’,
em (22). Aquelas correspondem à estrutura “X dar Y a Z”; estas à estrutura “X dar
Y em Z”. Não descuramos de notar um aspecto formal nessa última estrutura.
Contudo, dispensemos atenção agora ao emprego do “lhe”, no que toca à
referência a substantivo [- animado].
Em (19), o pronome retoma anaforicamente o substantivo “coisa(s)”; não
nos excederemos em pormenores; pensamos estar bem clara essa referência. Em
(20), também se refere o pronome ao substantivo “coisa”. Em (21), é ao segmento
“vida íntima” que se refere o pronome “lhe”.
Esses casos dão-nos testemunho da extensão de um emprego semântico do
pronome “lhe”, bastante vulgarizada na língua escrita culta do português
brasileiro, pelo menos em textos literários mais contemporâneos e em trabalhos
científicos, como os que levamos em conta neste trabalho. Destarte, o “lhe”
concorre com a forma oblíqua correspondente “a ele” (e variações) para a
referência a substantivos [- animado].
Cumpre dizer também que esses casos são tipicamente entendidos como
casos de “objeto indireto” na gramática tradicional. No entanto, uma vez que essa
tradição (a partir de Rocha Lima (2001)) não parece admitir que o objeto indireto
seja introduzido por preposição diferente de “a” ou “para”, o caso (22) acarreta
controvérsia.
Trata-se de um caso muito interessante por duas razões: primeiramente,
corrobora a possibilidade de o “lhe” referir-se a constituintes que são encabeçados
por preposição diversa de “a”; em segundo lugar, patenteia-nos a possibilidade de
o “lhe” inserir-se em estruturas complexas de algum tipo, que não cabe aqui tentar
definir ainda. Pensamos ser lícito interpretar “dar um brilho (em)” como uma
“unidade de sentido”, ou seja, uma construção sintática cujos elementos
apresentam em conjunto um significado unitário, embora cada qual conserve certo
significado. Portanto, “dar um brilho” significa, ‘limpar com esmero’. Não nos
preocuparemos em determinar a natureza dessa construção, ou seja, em classificá-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
133
la como constituída de “verbo-suporte” ou como resultado de uma “cristalização”;
afinal, Neves (1999:110) admite que aqueles testes adotados por ela não são
suficientes para distinguir entre construções com verbo-suporte e “expressões
cristalizadas”; a nós o cabe apontar qualquer solução nessa matéria. Vamo-nos
cingir, ao tratarmos da ocorrência de “lhe” em construções variadas (das quais
fazem parte o verbo, o substantivo, antecedido ou não por uma preposição ou
locução prepositiva), a assinalar os casos mais comuns de construções com verbo
suporte e de expressões cristalizadas, se estes ocorrerem.
Construções como a que apresentamos acima são comuns em giros como
“Hoje vou dar um brilho no carro”, “Lúcia um brilho nas janelas do quarto
todos os dias”, etc. Essa questão será mais bem enfocada alhures.
Finalmente, não podíamos preterir um caso em que o pronome, referindo-se
a substantivo [- animado], é empregado por motivo estilístico. A referência a um
substantivo [- animado] se justifica por “personificação”. Veja-se o exemplo:
(23) “Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol
chegava a voltar-se contra a luz (...)(Maneira de Amar Carlos Drummond de
Andrade).
No conto drummondniano, o personagem jardineiro tentava “captar as
graças ao (ou do) girassol”, que lhe era indiferente. Levando-se em conta que o
narrador atribui às flores características propriamente humanas
(“comportamentos”, “sentimentos”, “qualidades”), propomos que, nesse caso, o
emprego do “lhe” é motivado pela figura retórica da “personificação”. Uma vez
que os seres “flores” são representados como seres dotados de “animação”, pode-
se empregar o pronome “lhe” para fazer referência aos substantivos que os
designam. Outro exemplo desse emprego se nesse mesmo conto
drummondniano.
(24) “Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o de girassol e de
renovar-lhe a terra, na ocasião devida”. (Maneira de Amar Carlos Drummond
de Andrade).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
134
É mister ter em conta, no entanto, que esses dois casos dão-nos testemunho
do emprego de “lhe” como “dativo de posse” (“captar as graças do girassol
(=lhe)”), e não como “objeto indireto” tal como o entendemos neste trabalho.
que ressaltar ser possível, em (24), interpretar o referente do “lhe” como um
constituinte que denota o possuidor, estruturalmente descrito como ‘de__SN’ (do
girassol/dele), ou como um constituinte que denota o “beneficiário” ou
“destinatário”, embora, nesse caso, se possa discutir o conceito de ‘destinatário’,
já que o consideramos em predicações das quais se infere idéia de ‘movimento’ ou
‘deslocamennto’ (do verbo “renovar” não deduzimos essa idéia), e que pode ser
interpretado estruturalmente como ‘para___SN’. Assim, cumpre observar as
seguintes construções:
(P) O jardineiro renova a terra do/ao girassol (= lhe).
(Q) O jardineiro renova a terra para o girassol (=lhe).
Em (P), o constituinte “do girassol” (ou “ao girassol”) refere-se ao
“possuidor”, ou seja, entre a “terra” e o “girassol” um vínculo qualquer: trata-
se da porção de terra onde está plantado o girassol. Em (Q), o constituinte “para o
girassol”, que não é previsto pela valência do verbo (X renova Y), denota o
“beneficiário”, a saber, a entidade em benefício da qual se realiza uma ação.
Percebe-se um caso típico de “dativo de interesse”, uma variedade de objeto
indireto que, além de ser introduzido pela preposição “para” (no português
brasileiro, raramente é possível empregar a preposição “a” nesses casos), não é
previsto pela valência do verbo; ademais, designa o “beneficiário”. Claro fique
que é difícil, muitas vezes, distinguir entre esse tipo de dativo e o objeto indireto
propriamente dito, entre outras razões, pelo fato de tanto um quanto outro poder
desempenhar os papéis de “destinatário” ou “beneficiário”, em certos casos.
Vamos examinar com acuro essa questão mais adiante. Por ora, importa ter em
conta que, na frase em questão, o dativo denota o “beneficiário”, e não o
“destinatário”. Lembramos que o conceito de destinatário é considerado, neste
trabalho, numa perspectiva mais restrita, a saber, em contextos sintático-
semânticos dos quais inferimos idéia de ‘movimento’ ou ‘deslocamento’.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
135
6.5
Os dativos livres
6.5.1
O chamado dativo de posse
O pronome “lhe”, na função de dativo de posse, refere-se a um constituinte
que denota o possuidor, normalmente humano (embora possa ser representado por
substantivo [-animado]), num estado-de-coisas em que se estabelece uma relação
entre um ser (humano) e uma “parte” somática dele. Essa característica, embora
bastante geral, não é a única. Deveras, pode haver ‘vínculo’ entre um objeto e uma
característica material qualquer. Do ponto de vista formal, o “lhe” refere-se a um
constituinte que apresenta a estrutura ‘de/a___SN’, o qual se prende ao nome que
designa a “parte” possuída ou a característica própria.
Acrescente-se que haverá condições estruturais em que esse “lhe” poderá ser
empregado; vamos examinar, todavia, os exemplos, primeiramente, a fim de que
possamos referir essas condições. Citem-se os exemplos:
(25) “O espelho estava naturalmente muito velho, mas via-se-lhe ainda o
ouro, comido em parte pelo tempo”. (O Espelho – Machado de Assis)
(26) “E, de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa”. (A Cartomante
Machado de Assis).
(27) “Camilo pegou-lhe nas mãos”. (A Cartomante – Machado de Assis)
(28) “A curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe”. (A
Cartomante – Machado de Assis)
(29) “(...) primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos...” (Uns
braços – Machado de Assis)
(30) “Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do
mocinho (...) D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou.”
(Uns braços – Machado de Assis)
(31) Desde a madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos
olhos como uma tentação diabólica”. (Uns braços – Machado de Assis)
Os exemplos abundam, mas dispensemos atenção a esses sete
primeiramente. No primeiro dentre os exemplos, podemos notar um vínculo’
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
136
entre uma coisa e uma característica material: “o espelho” e “o ouro”. A
construção “via-se-lhe o ouro” equivale à construção “o ouro do espelho era
visto”. O “lhe” faz referência anafórica a “espelho”, reproduzindo-o na forma
‘de__SN’ (cf. do espelho). O constituinte resultante “do espelho” relaciona-se ao
nome “ouro”, do que resulta a construção “o ouro do espelho”.
Esquematicamente, o que dissemos pode ser assim representado:
... via-se-lhe o ouro
o espelho ---------------- de __SN (operação sintática)
(RA) lhe = do espelho -------------------------------
(nível textual) (vinculação sintático-semântica)
Atentando para o esquema acima, nele representamos dois comportamentos
do “lhe”: um textual, que se caracteriza pela referência anafórica ao constituinte
“o espelho” (RA); outro gramatical, que consiste em reproduzir esse constituinte
na forma ‘de__SN’ junto ao constituinte “o ouro” (vinculação sintática), do que
resulta, por outro lado, uma relação semântica de ‘vínculo’ do tipo “objeto-
característica material” (vinculação semântica). Em termos funcionalistas,
diremos que o falante/leitor além de ser capaz de reconhecer como referente de
“lhe” o segmento “o espelho”, pela atuação de um espectro de capacidades
(basicamente, a “lingüística”, a “epistêmica” e a “lógica”), também é capaz de
reconhecer esse elemento na forma ‘de__SN’, vinculando-o sintática e
semanticamente ao substantivo “ouro”, que denota uma característica material, e
depreendendo do conjunto a idéia de que o “ouro” é uma propriedade material de
que se reveste o “espelho”.
Não podemos nos olvidar de notar que o “lhe” refere-se a um substantivo
[- animado].
Os exemplos (26) e (27) evidenciam a relação entre “um ser humano” e
“uma parte de seu corpo”. Assim, em (26) e (27), o “lhe” refere-se a um
constituinte “de + substantivo” de valor possessivo. O núcleo substantivo denota
um ser humano cuja “testa” (em (26)) ou “mãos” (em (27)) se toca ou pega.
Cumpre mencionar o fato de os verbos “tocar” (‘sentir pelo tato’) e “pegar”
(‘agarrar’), considerados, na gramática tradicional, como exemplos de verbos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
137
transitivos diretos, selecionarem sistematicamente a preposição em”, com sutil
distinção semântico-pragmática entre os dois empregos.
Em (29), também referência a um elemento do corpo humano (“ossos”).
O pronome “lhe” refere-se a uma entidade [+ humano] cujos ossos era preciso
“quebrar”. O verbo, nesse caso, é bivalente (X quebrar Y).
Em (28), importa reconhecer que o “lhe” pode vincular-se a verbos
monovalentes (ou intransitivos, na gramática tradicional). Também corresponde a
um constituinte “de + substantivo”, que se refere a “ser humano”. Assim, na
ordem direta, lê-se “a curiosidade fustigava o sangue de alguém” e “as fontes de
alguém latejavam”. Veja-se que o “lhe” prende-se ao verbo “latejar”, que é um
verbo monovalente, ou seja, determina apenas um lugar na cadeia sintagmática.
O exemplo (30) também nos testemunho da vinculação do “lhe” a um
verbo monovalente. O verbo “bater” está empregado na acepção de ‘pulsar’. O
pronome refere-se a um constituinte do tipo “de + substantivo”, que se prende ao
substantivo “coração”: “(...) sentiu o coração de alguém bater”.
Em (31), vale notar que o “lhe” também se prende a um verbo monovalente;
esse fato é assaz relevante, como veremos ao cabo desta seção.
Ressalte-se que estamos aludindo à estrutura ‘de__SN’ que, como se sabe,
corresponde à estrutura ‘a__SN’, com valor possessivo, é claro. Ocorre que
construções do tipo “O cavalheiro beijou a mão à moça” constituem sintaxe
arcaica, típica de um estilo rebuscado e característica da língua literária mais
conservadora. Como pretendêssemos atentar para a realidade da língua atual,
cuidamos ser válida a alusão àquela estrutura apenas, não perdendo de vista o fato
de que, nos textos a que nos ativemos, sobretudo nos machadianos, é comum
ocorrerem constituintes que apresentam a estrutura em “a”. Cumpre notar, no
entanto, que a escolha entre o emprego de “lhe” e o emprego da forma
preposicionada não é aleatória: muita vez, o emprego da forma em “a” não
redunda no mesmo efeito expressivo do emprego de “lhe”.
Seguem-se estes outros exemplos:
(32) “Notava-lhe, principalmente, além da beleza, que era de primeira água,
certa severidade triste no olhar e nos modos”. (Miss Dollar – Machado de Assis)
(33) “A falar a verdade, o único defeito que Mendonça lhe achou foi a cor
dos olhos (...)”. (Miss Dollar – Machado de Assis).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
138
(34) Lembrava-se ao mesmo tempo de que era amado; e conquanto a idéia
lhe sorrisse ao espírito, outra vinha dissipar esse instantâneo prazer (...)”. (Miss
Dollar – Machado de Assis).
(35) “Os finos de água gelada empapavam-lhe a roupa e isso não era
confortável”. (A Hora da Estrela – Clarice Lispector)
(36) “D. Glória empinou a coluna vertebral, e o peito cavado se achatou.
Esse movimento de dignidade repentina fazia-lhe o vestido preto, gasto, ficar
esticado na barriga e frouxo nas costas”. (São Bernardo – Graciliano Ramos).
Esses exemplos são bastantes para dar a saber os seguintes aspectos do
comportamento sintático-discursivo do “lhe”: a) ambigüidade funcional, ou seja,
possibilidade de cumprir duas funções diferentes, conforme se refira a
constituintes estruturalmente e semanticamente distintos; b) referência a um
substantivo que denota uma “coisa” de uso pessoal (como uma vestimenta, por
exemplo), quando na função de dativo de posse; c) inserção em construção
estereotipada, também aqui na função de dativo de posse.
Em (32), o pronome “lhe”, que se prende ao verbo “notar”, na acepção de
‘observar’, ‘reparar em’, pode-se referir a um constituinte introduzido pela
preposição “de”, caso em que denota o possuidor. Esse constituinte formado pela
preposição “de” e por um substantivo que denota “ser humano” atrelar-se-á ao
constituinte “nos modos”, coordenado ao constituinte “no olhar”. Disso resulta a
construção “notava, principalmente, além da beleza (...) certa severidade triste no
olhar e nos modos (de alguém)”; como a personagem a quem se refere o narrador
é uma mulher, pode-se inserir no lugar do constituinte “de alguém” a forma “dela”
(cf. “(...) no olhar e nos modos dela.”). Nesse caso, o “lhe” cumpre a função de
dativo de posse. Por outro lado, é lícito supor referir-se o “lhe” a um constituinte
encetado pela preposição “em”. Destarte, ler-se-ia “(...) notava (..) em alguém
(nela) certa severidade no olhar e nos modos”, caso em que o artigo dos
constituintes “no olhar” e “nos modos” tem valor possessivo; daí se concluir que o
olhar e os modos são características da personagem que é alvo da observação (cf.
“(...) notava nela certa severidade no olhar e nos modos (dela)). No exemplo (51),
o “lhe” também se pode referir a um constituinte de valor possessivo, introduzido
pela preposição “de”, ou a um constituinte introduzido pela preposição “em”, que,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
139
à semelhança do exemplo anterior, denota idéia de ‘interioridade’ (cf. “(...) o
único defeito que Mendonça achou (nela) foi a cor dos olhos (dela)).
Entendemos por “construções estereotipadas” certos torneios sintáticos que,
não sendo necessariamente expressões “fixas”, como as que discutimos
anteriormente, são características de um estilo de linguagem, não de um autor
especialmente, mas de uma modalidade de língua. Assim, certas construções
sintáticas que são tipicamente “literárias”, tais como “cair-lhe ao pé”, “pôs-se-lhe
adiante”, “reboava-lhe dentro”, etc. Essas construções, do ponto de vista
gramatical, normalmente se estruturam com uma preposição ou locução
prepositiva que introduz um circunstante (locativo, na maioria das vezes).
Podemos referir-nos a elas como construções complexas, diferentes das estudadas
por Neves, é claro; mas tão variadas quanto aquelas.
Detendo-nos no exemplo (34), pode-se ver o constituinte “ao espírito”
(‘intelecto’, ‘compreensão’) relacionado ao verbo “sorrir”, na acepção de ‘ser
agradável, atraente’. Trata-se de um emprego tipicamente literário. Na construção
“sorrir ao espírito”, o constituinte “ao espírito” parece ser relativamente “fixo”, de
sorte que não é possível permutá-lo com “ao intelecto”, “à compreensão”.
Também não se pode permutá-lo com “a Maria”, por exemplo, sob pena de se
obter um resultado semanticamente diferente: assim, dizer “A riqueza sorri a
Maria” e “A sugestão sorriu ao espírito de Maria” é comunicar conteúdos de
pensamento diferentes; assim também não se comunica o mesmo conteúdo,
quando se diz “Fulano sorri a (ou para) Beltrano”.
No que toca ao emprego de “lhe”, note-se que o pronome faz referência a
um constituinte introduzido pela preposição “de”, o qual se prende a “ao espírito”
(cf. “(...) conquanto a idéia sorrisse ao espírito dele (...)” que a personagem é
um homem).
Quando nos ocuparmos com a discussão de casos em que o “lhe” se insere
em construções variadas, cuja definição apresentamos acima conquanto
reconheçamos que ela careça de mais precisão -, dispensaremos um tratamento
mais acurado a essa questão.
Por fim, os exemplos (35) e (36) patenteiam a ocorrência de “lhe” num
estado-de-coisas do qual se deduz um “vínculo” (“posse”) entre uma entidade
humana e uma peça de vestuário. Há que notar, no caso (36), a ocorrência do
causativo “fazer”, integrando uma locução verbal
45
(“fazer ficar”).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
140
Destarte, para a construção “(...) fazia-lhe o vestido preto (...) ficar esticado
na barriga (...)”, existe a paráfrase “(...) fazia o vestido preto dela (...) ficar
esticado na barriga (...)”.
Seguem-se as estruturas relacionais de todos os verbos levados em conta
aqui:
VER – X ver Y (de Z)
46
TOCAR – X tocar Y (de Z) / X tocar em Y (de Z)
PEGAR – X pegar Y (de Z) / X pegar em Y (de Z)
FUSTIGAR – X fustigar Y (de Z)
LATEJAR – X (de Z) latejar
QUEBRAR – X quebrar Y (de Z)
BATER – X (de Z) bater
ANDAR – X andar (diante de Y de Z)
NOTAR – X notar Y (de Z)
X notar Y em Z
ACHAR – X achou Y (de Z)
X achou Y em Z
SORRIR – X sorrir ao espírito (de Z)
EMPAPAR – X empapar Y (de Z)
FAZER – X fazer Y (de Z) infinitivo (predicativo)
Tendo em vista as estruturas relacionais apresentadas acima, pode-se
concluir haver duas condições estruturais gerais para o uso do “lhe” na função de
dativo de posse: o verbo deve ser bivalente, ou seja, deve exigir “objeto direto” ou
deve ser monovalente, ou seja, intransitivo, segundo a gramática tradicional.
Casos há em que um verbo bivalente, ou transitivo direto, pode admitir, em certos
empregos, uma preposição para introduzir o seu complemento (como “pegar”,
“tocar”, etc.), não obstante se poder também empregar o “lhe” com valor
possessivo. Em teoria, o “lhe” não terá valor de posse, quando empregado junto a
verbos trivalentes, ou seja, com verbos que selecionam objeto direto e objeto
indireto; nesses casos, empregar-se-á, eventualmente, a construção “de + (pron.)
substantivo”. Ademais, nas predicações em que o “lhe” pode ser um dativo de
posse, terá de haver uma relação de “posse”, alienável ou não, basicamente, entre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
141
uma entidade humana e uma característica somática, ou uma “coisa” de uso
pessoal. É possível, no entanto, que haja algum tipo de “vínculo” entre um objeto
e uma característica material qualquer.
As condições estruturais referidas acima são gerais; que notar, contudo, a
ocorrência do pronome “lhe” com valor de “posse”, quando o A4 ocupa posição
de argumento do verbo (bivalente), no seguinte passo de Lispector.
(37) “Ninguém lhe responde ao sorriso, porque nem ao menos a olham”. (A
Hora da Estrela – Clarice Lispector, p. 16)
O verbo “responder” está empregado na acepção de ‘corresponder’ e
apresenta a seguinte estrutura relacional: X responde a Y(de Z). Destaque-se a
relação de “posse” inalienável entre um aspecto fisionômico” e a entidade que o
manifesta.
45. Sem pretender fazer incursão em controvérsia que só perturbaria nossa descrição, vamos
adotar o ponto de vista mais comum na tradição gramatical sobre a natureza constitucional das
combinações “fazer + infinitivo”. Consoante Bechara (2002: 233), os verbos deixar, mandar, fazer
(causativos), bem como ouvir, sentir e ver (sensitivos), embora não formem locução verbal, “se
comportam sintaticamente como tal (...)”.
46. Os parênteses indicam que o termo preposicionado não é previsto pela valência do
verbo, ou seja, que se trata de um “circunstante”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
142
6.5.2
O chamado dativo de interesse
Tomemos o seguinte passo de Climent (1945: 324), em que escreve acerca
do dativo de interesse ou de participação:
“`Por medio del dativo puede expressarse una idea general de interes o
particpación. Este significado cabe conseiderarlo como derivado del dativo complemento
indirecto, con la única diferencia de que en estos giros la relación del dativo com el verbo
de la oración principal es más laxa”.
Consoante observa Climent, o dativo de interesse (ou de participação) serve
à expressão de uma idéia geral de “participação”; deve-se considerá-lo um
“derivado” do complemento ou objeto indireto. Nota também que a única
diferença entre uma e outra variedade é que a relação entre esse dativo com o
verbo da oração é mais “frouxa”; daí se concluir a idéia de que o dativo de
interesse não é previsto pela valência do verbo, ao contrário do objeto indireto
propriamente dito. Anuindo às palavras do catedrático e reconhecendo que o
dativo de interesse deve ser considerado uma variedade muito afim com o objeto
indireto, e deste só se distinguindo pela relação mais “frouxa” com o verbo,
vamos meditar, todavia, sobre as características semânticas e formais desta
variedade de dativo e sobre seu comportamento gramatical e discursivo.
Referindo novamente as características do dativo de interesse, vale notar as
seguintes: do ponto de vista semântico, é representado por um substantivo [+
humano] (embora também seja representado por substantivo [+ animado],
mormente quando designa animais domesticados) e cumpre o papel temático de
“beneficiário”
47
; do ponto de vista formal, é encetado pela preposição “para” (no
português brasileiro, raramente alternância com “a”) e pode corresponder ao
pronome “lhe”. Demais, não é previsto pela valência do verbo.
Antes de examinar os exemplos de nossos corpora, a fim de aclarar a idéia
de que esse dativo não é previsto pela valência do verbo, bem como de patentear
as características semânticas e formais a que nos referimos, dispensaremos nossa
atenção aos seguintes exemplos:
(R) No domingo é aniversário de Joana, e sua mãe vai fazer um bolo de
chocolate para ela.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
143
(S) O rapaz, muito cortês, abriu a porta do carro para a moça, que não
hesitou em entrar.
(T) Feche a porta da sala pra sua mãe, Gustavo!
(U) Pegue aquela bolsa preta pra sua irmã, por favor.
Os exemplos propostos, alguns dos quais típicos da ngua falada, procuram
ilustrar o emprego do dativo de interesse. Em primeiro lugar, cumpre observar as
características formais e semânticas dos termos em negrito, todos cumprindo a
função de dativo de interesse, consoante nossa proposição. Posteriormente,
tentaremos substituí-los pelo pronome “lhe”, a fim de patentear a possibilidade de
esse pronome cumprir tal função. Do ponto de vista semântico, todos os termos
em negrito têm em comum a propriedade de representar o beneficiário no estado-
de-coisas designado. Assim, em (R), assume-se a existência de um “mundo” em
que uma entidade chamada “mãe” vai fazer (preparar, confeccionar) uma coisa
chamada “bolo” para (em benefício de) uma entidade chamada “Joana”. No
estado-de-coisas, que se pretende uma representação do “mundo” na frase em
questão, incluímos o “beneficiário”; mas sabemos que a semântica do verbo
“fazer” não a inclui (“fazer”, nesse caso, pressupõe a existência de uma entidade
“agente” e o “objeto” produzido).
Note-se que, na valência do verbo “fazer” (‘preparar ou confeccionar’), não
um lugar previsto pela valência do verbo para o constituinte “para ela”; em
outras palavras, a semântica do verbo não inclui referência a uma entidade em
benefício da qual a ação designada por ele se realiza. Assim, a valência de “fazer”
pode ser formalizada como “X fazer Y” (cf. “Pedro fez o almoço”; “Pedro fez
uma torta de abacaxi”, etc.).
Supondo esteja claro o nosso ponto de vista, cingimo-nos a mencionar um
aspecto morfossintático (e pragmático) das frases (T) e (U), no tocante ao
emprego do dativo de interesse. Nesses exemplos, os verbos “fechar” e “pegar”
respectivamente estão empregados na forma de infinitivo e marcam, pois, a força
ilocucionária
48
de “pedido” ou “ordem”. O fato importa, na medida em que “o
atender a um pedido ou cumprir uma ordem” implica um “destinatário ou
beneficiário”: pratica-se uma ação em benefício de alguém ou para alguém. Nossa
hipótese é que, nos casos em que se anuncia um verbo na forma infinitiva, haveria
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
144
uma condição gramatical (e também pragmática) relevante para a atualização do
“dativo de interesse”. Parece válido pô-la em discussão em outros trabalhos.
Vale notar também o fato de o dativo de interesse, em tese, não poder figurar
em frases em que se acha o objeto indireto propriamente dito, ou seja, em
estruturas valenciais com três lugares vazios, em virtude de representar papel
temático muito semelhante ao papel temático normalmente desempenhado pelo
objeto indireto e (em decorrência disso, talvez) de não ser possível, dadas as
limitações de memória, processar a frase em que se achassem os dois tipos de
dativo. Cite-se um exemplo dessa situação estrutural.
(V) (?) Júnior entregou a chave do carro ao seu pai para a sua mãe.
47. É possível ver um “destinatário”, mas, por concisão descritiva, limitamo-nos a referir
o papel temático que lhe é próprio. O destinatário, como dissemos, é considerado aqui num
contexto sintático-semântico particular.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
145
A frase (V) expressa o seguinte estado-de-coisas: uma entidade chamada
“Júnior” entrega uma “coisa” chamada “chave” a uma entidade chamada “pai” em
benefício de uma entidade chamada “mãe”. A levar em conta também a
alternância, na língua falada coloquial, entre “a” e “para” no constituinte que
desempenha a função de “objeto indireto” (“a(o)/para o pai”), a ocorrência desse
dativo é ainda mais improvável. É claro que, no uso da língua, os falantes darão a
seus enunciados torneios diferentes a fim de expressar os conteúdos ‘destinatário’
e ‘beneficiário’ e de evitar co-ocorrência de termos que expressam conteúdos
semânticos cuja distinção não parece estabelecida nas categorias da mente, já que
não parecem distintos nas categorias da linguagem. No entanto, casos em que
um conteúdo sobressai ao outro Por exemplo, suponhamos que o falante A diga ao
falante B, quando este o inquire sobre uma carta que deveria enviar (a um tio
muito distante) pelos correios, conforme pediu a mãe (de A): “Ontem, fui aos
correios e enviei a carta pra minha mãe!”. Nesse contexto, “pra minha mãe” não
representa a entidade a quem se enviou a carta, senão a entidade em benefício da
qual se enviou a carta, que, pelo contexto, é fácil entender que o falante A foi
aos correios para enviar uma carta a uma entidade qualquer (a um tio distante),
que não está anunciada, conforme a recomendação da mãe. É somente pelo
contexto, portanto, que se pode desfazer a ambigüidade: num contexto, “pra
minha mãe” pode ser o destinatário (a pessoa a quem se destina a carta); noutro
contexto, como o apresentado aqui, pode ser o beneficiário, a saber, a pessoa em
benefício da qual a carta é enviada ou a pessoa interessada em que a carta chegue
ao seu destino (daí a designação “dativo de interesse”).
48. Ao produzir um enunciado, o falante o faz imprimindo-lhe uma determinada “força”:
de pergunta, de pedido, de ordem, de asserção. O conceito de “força ilocucionária” encerra, por
um lado, a entoação com que o falante pronuncia seu enunciado; por outro, a intenção (de
perguntar, pedir, etc.) com que o faz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
146
Não nos pretendendo exceder em demasiada discussão, que escapa aos
objetivos deste trabalho, vamos admitir que a co-ocorrência do dativo de interesse
e do objeto indireto, em virtude dos motivos referidos anteriormente, é muito
pouco provável; ou seja, o dativo de interesse não tende a ocorrer com verbos
trivalentes, tais como dar”, “entregar”, “enviar”, etc, em cujas predicações se
depreende indubitavelmente o “destinatário”, representado na forma de “objeto
indireto”. Pode figurar, nesses casos, entretanto, quando o constituinte que indica
o “destinatário” (o objeto indireto) é calado.
Vamos admitir outrossim que o dativo de interesse, como se pode deduzir
dos exemplos citados, figura, via de regra, em estruturas valenciais de dois lugares
vazios. Pode, entretanto, figurar, às vezes, junto a certos verbos monovalentes (ou
intransitivos). Veja-se, por exemplo, a frase “O rapaz trabalha para a família”,
caso em que a idéia de ‘beneficiário’ confunde-se com a de ‘finalidade’; parece-
nos, todavia, que, na construção análoga ‘O rapaz trabalha para o bem da família’,
a idéia de ‘finalidade’ prevalece sobre a idéia de ‘beneficiário’, que a estrutura
‘para__SN’ é formada pela forma substantiva “(o) bem”, da qual não se deduz o
traço [animação].
Esses exemplos com o verbo “trabalhar” pode-nos levar a concluir que, nos
casos de certos verbos monovalentes (ou intransitivos), torna-se difícil distinguir
os conteúdos de ‘beneficiário’ e ‘finalidade’, próprios de construções formadas
por “para” e “substantivo”. No entanto, qualquer especulação ou tentativa de
descrição sobre a atualização do dativo de interesse na sintaxe portuguesa não
pode prescindir do contexto. A fim de corroborar a dificuldade de distinguir entre
os dois conteúdos, tome-se a seguinte frase “Aline canta para a família? Ora,
como interpretar o termo introduzido pela preposição “para”? Qualquer resposta
prévia despojará a questão de aspectos semântico-discursivos interessantes; uma
resposta satisfatória, do ponto de vista funcionalista, deve levar em conta a
situação. Se sabemos que “Aline” canta no coral da Igreja, por exemplo, e que,
certo dia, em sua casa, ela toma em mãos o microfone e descansa sobre o regaço o
violão, e põe-se a cantar perante a família, que, reunida, se deleita com sua voz, o
constituinte “para a família” da frase em questão pode ser interpretado como
indicativo de ‘finalidade’, mas pode denotar o ‘beneficiário’ (cf. Aline canta para
(entreter) a família/ canta em benefício da família). Suponhamos agora que a frase
fosse enunciada numa situação tal, em que duas pessoas conversassem sobre a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
147
bela voz de Aline. Um dos participantes do diálogo poderia dizer aquela frase,
para lamentar o fato de Aline não almejar o sucesso na carreira musical. Por
exemplo, um deles poderia dizer: “Acho a voz de Aline muito bonita... Ela faria
muito sucesso!” O outro poderia acrescentar: “... É verdade... Pena que Aline
canta pra família”. Nesse caso, também podemos reconhecer a ‘finalidade’ ou o
‘beneficiário’; mas o falante não entende a frase da mesma maneira, nas duas
situações hipotéticas: a finalidade na primeira situação é entreter a família; na
segunda, é prover a subsistência da família (ou pelo menos ajudar a provê-la).
Assim também, na primeira situação, Aline canta para beneficiar (ou favorecer) a
família de algum modo, ou seja, para causar-lhe contentamento, prazer, etc.; na
segunda situação, Aline canta para beneficiar a família de outro modo, ou seja,
provendo (ou ajudando a prover) a subsistência da família. Em síntese, as
seguintes correlações semânticas:
Situação 1
FINALIDADE = entreter a família
BENEFÍCIO = entretenimento da família
BENEFICIÁRIO = a entidade que se entreteve
Situação 2
FINALIDADE = prover ou ajudar a prover a subsistência da família
BENEFÍCIO = subsistência ou possibilidade de subsistência da família
BENEFICIÁRIO = a entidade que subsiste ou a quem Aline ajuda a
subsistir.
Não intentamos, por meio dessa síntese, sugerir que os conteúdos sejam
distintos, senão mostrar como esses conteúdos são expressos, por meio de formas
lingüísticas semelhantes (ou, sob certa perspectiva, idêntica) e como se “diluem”
no âmbito discursivo. Assim é que, provavelmente, a única característica que
parece diferençar os dois conteúdos, tendo em conta, por exemplo, formas como
“para” e em benefício de” (cf. Aline canta para a família/ Aline canta em
benefício da família), é que, com a forma em benefício de marca-se o
‘benefício’, o ‘favorecimento’ da ação realizada: o resultado da ação, ou seja, a
finalidade é orientada para beneficiar alguém. Ao contrário, a finalidade com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
148
“para” é não-marcada, que não assinala, a priori, o benefício da ação. Portanto,
parece haver dois conteúdos finais e duas formas (dentre tantas outras, é claro) de
expressar a finalidade: um conteúdo final de benefício, expresso por uma forma
como “em benefício de” (cf. “em detrimento de”) e um conteúdo final não-
marcado, do ponto de vista da orientação subjetiva da finalidade (isto é, “fazer
algo para o bem/ para o mal/ para beneficiar/ para prejudicar alguém”), que é
expresso (entre outras formas) pela preposição “para”.
Sem mais delongas, esperamos tenha ficado claro o comportamento
sintático-discursivo dos termos em negrito nos exemplos de (R) a (U). Aqueles
constituintes dão-nos testemunho da função de dativo de interesse na sintaxe
portuguesa: a variedade de dativo que, provavelmente, mais se assemelhe ao
objeto indireto, semanticamente, formalmente (como nos deixa entrever o
fato de ambos poderem ser representados pelo pronome “lhe” e de,
eventualmente, haver alternância entre a” e “para” no objeto indireto (sobretudo
nas variedades informais da língua falada)). Cumpre ressaltar, contudo, no que
toca ao aspecto formal, que a alternância entre aquelas preposições sinaliza ser
improvável a co-ocorrência daqueles termos; o dativo de interesse, ainda que
empregado junto a verbos como “dar”, “entregar”, “oferecer”, caso em que é
calado o objeto indireto (“destinatário”), não admite a presença de “a”. Dessa
sorte, dada a situação em que “Júnior” tivesse que devolver ao vizinho uma
ferramenta que tinha sido emprestado ao seu pai, “Júnior”, após ter atendido ao
pedido do pai, poderia voltar a casa e dizer a sua mãe: “Mãe, já devolvi a
ferramenta pro meu pai”.
No enunciado em pauta, “pro meu pai” indica a entidade interessada em que
chegue às mãos do vizinho a ferramenta que ele lhe havia emprestado. Não se
negue que, nesses casos, pode haver ambigüidade, que, para evitá-la, no
contexto proposto, dever-se-ia supor que a mãe do menino estivesse ciente de que
a ferramenta não pertencia ao pai de Júnior, e que o pai de Júnior havia pedido ao
filho que devolvesse a ferramenta ao vizinho. A possibilidade de haver
ambigüidade, nesses casos, no entanto, não invalida nossa argumentação; cremos
que um corpus bem delimitado da língua falada possa encerrar muitas ocorrências
desse dativo em predicações como as que apresentamos.
Podemos permutar todos os termos em destaque em (R), (S), (T) e (U) com
o pronome “lhe”. As frases podem ser reescritas assim, com eventuais alterações:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
149
(R) No domingo é aniversário de Joana, e sua mãe vai lhe fazer (-lhe) um
bolo de chocolate.
(S) O rapaz, muito cortês, lhe abriu (-lhe) a porta do carro, e a moça não
hesitou em entrar.
(T) (lhe) feche-lhe a porta da sala, Gustavo!
(U) (lhe) pegue-lhe aquela bolsa preta, por favor.
Deter-nos-emos a examinar os exemplos colhidos da Literatura, doravante.
Seguem-se as frases:
(38) “Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo
recebê-lo”. (A Cartomante – Machado de Assis)
(39) “(...) tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio, a tia lhe arranjara
emprego (...)”. (A Hora da Estrela – Clarice Lispector, p. 30)
(40) “O infeliz defendia-se. Com as humilhações continuadas, limitava-se
por fim a engolir em seco. Um dia chorou, pediu-me soluçando que lhe
arranjasse uma colocação no fisco estadual”. (São Bernardo – Graciliano Ramos,
p. 86)
(41) “ [Macabéa] pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau”
(A Hora da Estrela – Clarice Lispector, p. 62).
(42) “A velha Margarida mora aqui em S. Bernardo, numa casinha limpa
(...) Tem um século, e qualquer dia destes compro-lhe mortalha perto do altar-
mor da capela”. (São Bernardo – Graciliano Ramos, p. 11)
São poucos os exemplos registrados; mas cuidamos não rareiam, quando da
ampliação de um corpus. Alguns dentre os exemplos foram citados. No que
toca aos exemplos (41) e (42), já citados alhures, importa dizer que a entidade que
denota o vendedor não está anunciada; o “lhe” refere-se a um constituinte
encabeçado pela preposição “para” que indica o beneficiário (ou o prejudicado) no
estado-de-coisas designado. É interessante lembrar, como se discutiu na sub-seção
6.3.2., que nesses casos o constituinte que designa a entidade que vende é calado;
e o constituinte cujo cleo é um substantivo que designa a entidade a quem a
“compra” beneficia é, geralmente, atualizado. De sorte, impõe-se reconhecer um
problema, que pode ser resumido na oposição “freqüência de uso” x
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
150
“previsibilidade valencial”. Ou seja, de acordo com a nossa proposta, o
constituinte que representa a entidade beneficiada é um circunstante, ou seja, um
constituinte que não é previsto pela valência do verbo “comprar”, uma vez que
esse constituinte não está implicado na semântica desse verbo, a despeito de ser
atualizado com muita freqüência (e raramente parece co-ocorrer com o
constituinte que indica o “vendedor”, posto que seja possível a co-ocorrência).
Logo, a freqüência de uso determinaria a previsibilidade valencial? Poderíamos
dizer, por exemplo, que, em virtude da (maior?) freqüência de uso do constituinte
que indica a entidade a quem a compra beneficia, esse constituinte se tornaria
previsto pela valência, ou seja, ele passaria a ser selecionado pelo verbo? Cabe
aqui deduzir desse questionamento a simplicidade e a obscuridade com a questão
de “transitividade” é abordada na tradição, normalmente redundando em duas
práticas: ou se “elegem” certas predicações como representantes de um padrão de
transitividade “ideal” (p.ex. em Hoje não comi / Hoje comi maçãs, o verbo
“comer” inclui-se na classe dos transitivos, que eventualmente podem dispensar
complemento direto); ou se diz que é no contexto que se deve classificar certos
verbos quanto à predicação, como se não se pudesse prever a sistematicidade de
sua predicação. As duas alternativas são inadequadas. Em primeiro lugar, deve-se
ter em conta que não é indiferente dizer “Hoje não comi” e “Hoje não comi
maçãs”; o emprego do verbo “comer” desacompanhado de seu complemento
direto não pressupõe necessariamente um caso de elipse discursiva; implica
reconhecer que foi empregado em outra acepção (ou, pelo menos, para cumprir
outros propósitos comunicativos). Em “Hoje não comi”, informa-se que não se fez
uma alimentação qualquer (“almoço”, “jantar”, “lanche”, etc.). Portanto, não é
indiferente o anunciar ou calar o complemento direto nesse caso. Em segundo
lugar, ao propor que a predicação de certos verbos seja reconhecida quando do seu
uso num contexto particular, a tradição mascara o fato de ser possível prever a
transitividade de um determinado verbo, como é o caso de verbos como “comer”,
“beber”, “escrever”, etc. Os estudos lingüísticos que se preocupam com uma
descrição mais coerente dessa questão reconhecem que certos verbos apresentam
dois potenciais funcionais; portanto, devem incluir-se numa terceira classe: a dos
verbos que podem comportar-se transitiva e intransitivamente. Assim, “comer”,
por exemplo, não se inclui na classe dos transitivos, na qual está o verbo “abrir”,
cujo objeto direto deve ser marcado formalmente na língua (a omissão do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
151
complemento explica-se por força da situação discursiva), tampouco se insere na
classe dos intransitivos, que pode empregar-se com objeto direto; entra a fazer
parte da classe dos verbos que apresentam dois potenciais funcionais: pode, em
um de seus empregos, construir-se com objeto direto; em outro, pode construir-se
sem esse complemento.
Concordamos que se deve entender a transitividade como um subsistema na
“rede sistêmica da língua” e se deve relacioná-lo, primeiramente, à função
ideacional, reconhecendo a influência de outras duas funções da linguagem, como
a “interpessoal” e a “textual” no estudo desse conceito. Considerada nessa
perspectiva, a questão da transitividade não se resolve em noções como
‘obrigatório’ e ‘acessório’, tampouco em ‘eventualidade de uso’.
Procurando responder àquela pergunta, e conscientes de que a resposta
apresentada não é, decerto, peremptória, a relação entre a atualização de certas
expressões lingüísticas e a previsibilidade valencial repousa no reconhecimento de
que a estrutura dos enunciados não é “fixa”, “invariável”; é, pois, suscetível às
pressões de uso. No entanto, ao mesmo tempo em que o “uso” exerce influência
sobre a forma da língua (modificando padrões, reorganizando paradigmas,
determinando escolhas dentre as possibilidades do sistema, etc.), também é
responsável por “fixar”, ou melhor, “estabelecer” as estruturas lingüísticas. Ora, o
uso a que nos referimos é o uso social da língua. Tendo em vista que esse uso, na
realidade social, assim como engendra variação e mudança, assim também
“conserva” certos padrões lingüísticos, pode-se dizer também que “fixa” modelos
estruturais, mais ou menos estáveis, pelos quais os falantes podem construir seus
enunciados; do contrário, a cada ocorrência de uma forma - verbal, por exemplo-,
poder-se-iam realizar combinações diversas; e o conceito de estrutura, portanto,
cairia por terra. É claro que a língua apresenta uma organização interna;
igualmente é evidente que o uso vai determinar a forma dos enunciados
produzidos pelos falantes em situações reais de comunicação; mas também é certo
que uma estrutura abstrata, relativamente estável, que pode ser descrita e que
constitui um “legado” do uso que fizeram da língua as diferentes gerações de
falantes; é justamente porque as gerações não se sucedem umas as outras, mas se
mesclam, que a estabilidade estrutural da língua se conserva.
Não se nega, portanto, a existência da estrutura e a necessidade de descrevê-
la. No que toca ao caso de “comprar”, admite-se que a língua faz um “recorte” da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
152
realidade, o qual inclui a entidade que denota o ‘beneficiário’; mas isso não
implica o sugerir que o constituinte que indica o “vendedor” seja um circunstante,
senão um actante facultativo. Destarte, é possível que se note na língua uma
reorganização do sistema de transitividade do verbo “comprar”: o verbo poderia
construir-se com o constituinte que indica o vendedor ou com o constituinte que
indica o beneficiário. Isso, todavia, não nos autoriza a considerar este último
constituinte como um actante; porquanto, afinal, veicula um conteúdo
“circunstancial”, do ponto de vista do estado-de-coisas designado. Não se
modificando o ato de comprar, na realidade extralingüística, vale o modelo de
predicação que supõe o “vendedor”, que é, junto ao “comprador”, a entidade que
participa efetivamente do estado-de-coisas designado. Esses papéis são, aí,
atualizados por constituintes actanciais, embora um deles (o que indica o
“vendedor”) seja facultativo.
Fique claro, portanto, que a noção de “previsibilidade valencial” é válida
também nos casos em que se acha o verbo “comprar”, na medida em que ela não
nega a idéia de que a língua é um sistema de possibilidades (o falante, nesse caso,
pode, pois, anunciar o constituinte que indica o ‘beneficiário’ e calar o que indica
o ‘vendedor’, para atender a determinados propósitos comunicativos), mas se
relaciona à idéia de que a língua é também uma realidade histórica e, portanto, os
esquemas de predicação estão disponíveis no léxico, para fins de uso. Esses
esquemas resultam de um “recorte” que a língua faz da realidade experimentada
pelo homem; desse “recorte” fazem parte “entidades” que são representadas por
unidades lingüísticas de valor actancial, ou circunstancial, consoante a pertinência
semântica no estado-de-coisas designado.
Não pretendendo aqui suscitar uma hierarquia dos papéis temáticos em
conformidade com a natureza actancial ou circunstancial dos termos oracionais, a
verdade é que certos conteúdos como o de ‘lugar’, ‘tempo’ podem ser veiculados
por actantes, como em “Pôr o livro na estante” e “A reunião durou duas horas”, ou
por circunstantes, como em “O soldado dorme no quartel todos os fins de
semana”.
Sumariando essa discussão, também não nos podemos olvidar de notar que o
constituinte que indica a entidade a quem se compra alguma coisa não cumpre o
papel temático de “destinatário”; como dissemos, melhor seria considerá-lo um
co-agente. Ademais, como a tradição gramatical não parece admitir a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
153
concorrência de outra preposição com a preposição a” introduzindo o “objeto
indireto”, não se justifica o querer incluir esse constituinte na classe dos objetos
indiretos.
Antes de levar a efeito essa sub-seção, cumpre notar a estrutura valencial do
verbo “arranjar”, que está empregado nas três ocorrências, na acepção de ‘obter’.
ARRANJAR – X arranjar Y (para Z)
O estado-de-coisas designado pelo verbo “arranjar” pode ser assim
resumido: “uma entidade X arranja /obtém uma coisa Y (“casa”, “emprego”,
“colocação”)”. O constituinte ‘para__SN’, que indica a entidade para quem se
consegue alguma coisa (“uma casa”, “um emprego”, etc.) não está implicada no
ato de “arranjar”; é, portanto, a entidade em benefício da qual uma situação
(“ação”, “processo”, etc.) é realizada. Essa entidade, que representa o
“beneficiário”, constitui um conteúdo circunstancial; e é, sintaticamente, um
circunstante.
Do exposto nessa sub-seção, pode-se concluir que, deveras, o dativo de
interesse constitui uma sub-variedade do dativo subordinado, designado na
tradição como “objeto indireto, deste não se distinguindo, sobretudo, sob o
aspecto semântico. Por outro lado, não se negue que esse dativo se manifesta na
língua (quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita) e que, segundo nossa
proposta, não constitui um actante do verbo, ao contrário do objeto indireto.
Outrossim cabe dizer que o objeto indireto figura em construções relativamente
bem determinadas, as quais encerram, quase sempre, um verbo que denota
‘movimento’ ou ‘transferência’, e nas quais cumpre o papel de “destinatário”; o
dativo de interesse, como se viu, inclui-se em construções com verbos bivalentes,
se bem que pareça figurar em construções com certos verbos monovalentes.
Insistimos em que a generalização, ou a tentativa de generalização,
apresentada acima, pode não ser a mais coerente; contudo pensamos constituir um
parâmetro para estudos posteriores sobre a questão, tendo em vista sempre o “nó”
descritivo feito pela tradição, na medida em que, definindo o objeto indireto como
um complemento do verbo, estende a definição, na prática analítica, a casos de
dativos que, consoante se depreende da qualificação “livres”, não cumprem a
função de complemento, senão de “adjunto”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
154
6.5.3
O caso dos verbos aparecer e marcar
Ocorreu-nos ser mais adequado reservar uma sub-seção para refletir o mais
breve possível sobre dois casos interessantes de emprego do pronome “lhe”. Esses
casos patenteiam, entre outras coisas, dois aspectos importantes do
comportamento sintático-discursivo do “lhe”: 1) a possibilidade de cumprir a
função de dativo ético, que constitui uma sub-variedade do dativo de interesse; 2)
e a possibilidade de cliticizar estruturas cujo papel temático não parece bem
definido. Citem-se esses dois únicos exemplos:
(43) “A porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela”. (A Cartomante Machado
de Assis)
(44) “Mendonça quis conservar-se no limite que lhe estava marcado. A
porta aberta do jardim podia ser esquecimento da parte dos fâmulos”. (Miss
Dollar – Machado de Assis)
Tomemos o exemplo (43). O verbo “aparecer”, empregado na acepção de
‘surgir, mostrar-se’, apresenta a seguinte estrutura valencial: X aparecer a Z. Pode,
entretanto, nessa acepção, dispensar o actante 3 (objeto indireto); mas isso não nos
impede de sugerir haver aí um A3.
A despeito de nossos corpora não encerrar nenhum caso em que o “lhe”
cumpre a função de dativo ético, não nos escusamos de notar o emprego de “lhe”
nessa função sintático-discursiva. Para tanto, considerem-se os significados
‘surgir’ e ‘tornar-se visível’, próprios do verbo “aparecer” e observem-se, abaixo,
as estruturas relacionais nas quais esses significados são expressos.
APARECER – X aparecer a Z
X aparecer
Citem-se os seguintes exemplos, a fim de dar testemunho do comportamento
sintático-discursivo do pronome “lhe” nessas estruturas.
(W) O fantasma apareceu a Pedro de repente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
155
(X) O fantasma apareceu para Pedro de repente.
(Y) O fantasma apareceu.
(Z) Pedro lhe apareceu em casa tarde da noite.
Nos exemplos (W), (X), o verbo “aparecer” seleciona um constituinte que
pode ser introduzido pela preposição “a” ou “para”. O exemplo (Y) mostra-nos ser
possível calar o A3; como dissemos, não negamos que o A3 possa ser obliterado
em muitos casos. Do ponto de vista semântico, o pronome “lhe” refere-se a um
constituinte cujo substantivo denota a entidade tomada como “destinatário”; isso
contraria, pois, a concepção mais geral do papel temático de destinatário
concepção esposada por nós -, a saber, entidade a quem a ação do verbo se
destina. Do modo como a definimos, pode-se entrever que o destinatário se deduz
de um tipo específico de estado-de-coisas: o de ‘ação’. Sem pretender suscitar
discussão infensa aos objetivos de nossa exposição, vamos admitir que o papel
temático seja “x”, ainda não bem conhecido; por coerência descritiva, não vamos
considerar a existência de um “destinatário”, na acepção em que é entendido nas
predicações com verbos tais como “dar”, “entregar”, “enviar”, “comunicar”, etc.
Um exame mais demorado dos papéis temáticos representados pelos substantivos
que cumprem a função de “objeto indireto” escapa aos objetivos de nosso
trabalho; podemos, todavia, suscitar haver naqueles exemplos ((W) e (X)) uma
entidade “perceptora”, a saber, que consegue perceber, pela visão, a entidade
representada no sujeito (“o fantasma”). Por outro lado, quiçá haja quem veja no
emprego de “para” a idéia de ‘destino/direção’, entendida, todavia, diferentemente
do modo como é entendida em predicações com verbo “ir”, “enviar”, “levar”,
“viajar”, etc. (cf. Ir a São Paulo / Ir (do Rio) para São Paulo).
Nossas considerações acerca da questão dos papéis temáticos não se
pretendem cabais; procuram, ao contrário, suscitar controvérsia, que é tão
necessária à melhor compreensão das relações entre significado e forma, em
matéria de linguagem. Demais, pretendem enfatizar que, dada a complexidade dos
fenômenos lingüísticos, não se pode querer reduzi-los a conceitos terminantes,
que devem ser aplicados a todos os casos; por vezes, é necessário “olhar mais de
perto”, a fim de que se nos afigure uma hipótese mais elucidativa. Em matéria de
linguagem, não se pode reduzir os esforços descritivos à resposta do tipo “sim ou
não”, sob pena de acarretar, por vezes, muita incoerência; muita vez, satisfaz ao
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
156
espírito um “é provável”, porquanto, assim, não se castra o desejo por
compreender melhor a natureza da linguagem e se promove a discussão,
pertinente em qualquer ramo de conhecimento humano.
Por fim, considerando o exemplo (Z), suponhamos uma situação em que o
falante A trava diálogo com o falante B sobre o fato de o filho de C ter chegado
tarde de uma festa. Assim, o falante A poderia enunciar a frase “Pedro lhe
apareceu em casa tarde da noite”. Veja-se que lhe” refere-se ao falante C; mas
esse falante não representa, no enunciado, o “beneficiário”, tampouco o
“destinatário”, ainda que se possa considerá-lo uma sub-variedade do dativo de
interesse. Apresentando comportamento essencialmente dêitico, o pronome “lhe”,
na função de dativo ético, “não representa um actante que participa na ação, mas
aponta para o locutor ou o alocutário” (Busse&Vilela, 1986: p. 30). Cumpre notar,
levando em conta a citação de Busse e Vilela, que o dativo ético pode referir-se à
pessoa do discurso, ou a “não-pessoa”. Por outro lado, por força do tratamento
pela forma “você”, que alterna com “tu”, no dialeto carioca, por exemplo, o
pronome “lhe” pode aparecer como a forma alternativa à forma “te”. Assim, “lhe”
pode referir-se ao enunciatário (2ª pessoa do discurso). Suponha-se que “Pedro”
fosse filho do falante B, e o falante A dissesse, a certa altura, “...e Pedro lhe
apareceu tarde da noite, não é?...”. Outro exemplo dessa função se em “Pedro
saiu-lhe um figurão nos negócios”, dito, por exemplo, pelo falante A ao falante B,
quer sendo B o pai de Pedro, quer sendo C o pai de Pedro. No primeiro caso,
“lhe” se refere à segunda pessoa do discurso; no segundo, à terceira pessoa.
No tangente ao exemplo (44), em que figura a forma “marcar”, na acepção
metafórica de ‘marcar’, ‘assinalar’, vale notar dois aspectos: um formal, que
repousa na forma da unidade cliticizada pelo “lhe” (a ele ou para ele?); outro
semântico, que diz respeito ao tipo de papel temático desempenhado pelo
constituinte a que se refere o pronome. Ilustramos o que dissemos assim:
Marcar – Voz passiva: X (o limite) estava marcado (a/ para Z)
Voz ativa: X marcar Y (a/para Z)
Indicamos, com os parênteses, a natureza circunstancial do termo. Intuímos
a adequação de “para”; todavia, como não se topasse nenhum exemplo da
estrutura ‘prep.+ subst.’, podemos conjeturar. Do eventual emprego de para”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
157
não se conclui a impossibilidade de empregar “a”; pode-se admitir a alternância
entre as preposições.
Convém notar também o tipo de papel temático desempenhado pelo referido
termo. Em que pese à assunção de que é um circunstante, não parece indicar o
“destinatário” nem o “beneficiário”. Limitamo-nos a essa observação, visto que
não é possível aqui aventar qualquer conjetura.
Esperamos que os casos aqui discutidos suscitem a investigação dos tipos de
papéis temáticos desempenhados pelas variedades de dativo tratadas. Avultam
dois papéis temáticos gerais, que se confundem muitas vezes, quando se dispensa
atenção aos casos de dativo de interesse e de objeto indireto – o “beneficiário” e o
“destinatário” – mas, como vimos, no domínio do objeto indireto, há outros papéis
temáticos que não foram definidos na tradição, e no domínio dos dativos “livres”,
os papéis temáticos constituem uma lacuna descritiva. Qualquer generalização
num e noutro caso, como temos procurado mostrar, priva-nos de uma investigação
mais acurada, que pudesse oferecer um quadro teórico mais coerente.
6.6
Verbos que selecionam complemento introduzido por
preposição diferente de a e cliticizável em lhe
Os casos ventilados nesta seção constituem ocorrência de “lhe”, cliticizando
constituintes principiados por preposição diferente de “a”, via de regra, pela
preposição “em”, se bem que, não raro, se deva considerar a alternância entre as
duas preposições.
Os exemplos em que a preposição “em” introduz o complemento não são
escassos. Citem-se estes abaixo:
(45) “(...) Galinhas ciscavam (...) embaixo, ao nível do chão, era a cadeia,
onde os presos se distraíam jogando-lhes sobras de comida ou pequeninas coisas
que as assustavam”. (Câmara Secreta – Carlos de Drummond de Andrade).
(46) “Lembrei-me do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde
vivíamos. Mexi-me em redor dele vários anos, lavei-o, tirei-lhe com areia e cinza
as manchas de azinhavre e dele recebi sustento” (São Bernardo Graciliano
Ramos, p. 57)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
158
(47) “E a conversa caiu. Para levantá-la, abri o jornal e preguei-lhe um
dedo”. (São Bernardo – Graciliano Ramos, p. 74)
(48) “Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que
lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu,
reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as
asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos...”. (A Cartomante Machado de
Assis)
(49) “Do contato com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas sua beatice não
lhe pegara (...)”. (A Hora da Estrela – Clarice Lispector, p.29)
Os constituintes a que se refere o “lhe” nesses casos são actantes,
excetuando-se o caso (48). É mister ressaltar, todavia, que, por coerência
descritiva e metodológica, não podemos considerá-los como casos de “objeto
indireto”. Seguem-se as estruturas valenciais dos verbos em destaque.
JOGAR – X jogar Y em Z
TIRAR – X tirar de Z Y / X tirar Y (de Z)
PREGAR – X pregar Y em Z
PASSAR – X passar (longe de Z)
PEGAR – X pegar em Z
Detendo-nos a analisar aquelas ocorrências de “lhe”, tomemos o exemplo
(45). O verbo “jogar” aí foi empregado na acepção de ‘arremessar’, e a preposição
“em” marca o objeto afetado pela ação de “jogar” (cf. Jogar amendoins no
elefante/ jogar amendoins para o elefante). A preposição “para” marcaria o
‘destino’. É importante atentar para o fato de o pronome referir-se a um
constituinte introduzido por preposição diferente de “a” (ou “para”), que indica o
‘paciente’ ou ‘objeto afetado’ pela ação do verbo.
No exemplo (46), assinala-se uma ambigüidade estrutural a que fizemos
alusão. O pronome “lhe” pode referir-se a um constituinte que apresenta a
estrutura ‘de__SN’, que pode vincular-se ao verbo “tirar” (‘fazer sair de um
lugar’), ou pode ajuntar-se ao constituinte as manchas de azinhavre (dele)”. No
primeiro caso, será um actante, embora não seja, segundo nossa proposição, um
objeto indireto, tampouco um complemento relativo; no segundo caso, cumpre a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
159
função de dativo de posse. que se notar a referência a substantivo [- animado]
(lhe = “tacho (velho)”).
Em (47), o clítico se refere a um constituinte locativo cuja estrutura pode ser
formalizada como ‘em__SN’. Esse constituinte é previsto pela valência de
“pregar” (‘fixar’) Outrossim substitui um constituinte cujo substantivo é [-
animado].
O exemplo (48) dá-nos a saber a referência de lhe” ao constituinte “dele”
(de Camilo), cuja estrutura pode ser descrita como ‘de__SN’, o qual integra a
locução “longe de” (“... lhe passava, ao longe, muito longe (dele)”).
Esquematicamente, o comportamento sintático-discursivo de “lhe” pode ser assim
representado:
“... a cartomante que lhe passava ao longe, muito longe...” [longe de X ]
nível sintático
[ de X ] = constituinte que integra a locução “longe de”.
[ de X] ou [lhe] = potenciais paradigmáticos.
Do ponto de vista do discurso, haveria duas possibilidades:
possibilidade - o emprego do constituinte “de X”, em que “X” representa
o pronome “ele”, que se refere anaforicamente a “Camilo” (forma lingüística
anteriormente anunciada no parágrafo, que se inicia com “Camilo reclinou-se no
tílburi...”). Esse constituinte poderia ser integrado na construção “longe de”: “...
passava ao longe, muito longe dele”.
2ª possibilidade – o emprego de “lhe”, tal foi o caso, para fazer referência ao
personagem “Camilo”. O “lhe” é interpretado sintática (ou seja, como forma
correspondente à forma “de__SN”) e semanticamente (isto é, como uma unidade
anafórica que remete a um substantivo [+ humano] que serve de ponto referência
a partir do qual se pode ‘situar’ a ação descrita por “passar”, à semelhança de um
‘locativo’ (cf. passar longe da casa/ do museu)), por força do advérbio longe”,
que pode, não raro, aparecer sob a forma de locução prepositiva (“longe de”).
Cumpre dizer que o pronome “lhe” é, nesse caso, um circunstante; não
figura na frase, portanto, por exigência do verbo “passar”.
O emprego do verbo “pegar”, em (49), na acepção de ‘contaminar’, é típico
da variedade coloquial da língua falada. O efeito estilístico do emprego desse
verbo não pode ser ignorado. Veja-se que o narrador, ao empregar o verbo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
160
“pegar”, nessa acepção, deixa patente o tipo de relação (de repressão, sujeição,
etc.) entre a personagem “Macabéa” e sua “tia”: a tia conseguira roubar-lhe o brio,
mas a moça não foi “contaminada” pela “devoção fingida” da tia.
Coteje-se aquele giro com “A gripe lhe pegou”. O pronome “lhe” substitui
um constituinte cuja estrutura pode ser formalizada como ‘em__SN’. Também
aqui se pode dizer que há uma entidade que representa o ‘paciente’.
No que toca à possibilidade de haver alternância entre preposições, posto
que não registrássemos nenhum caso, vejam-se os seguintes: “O guarda aplicou
uma multa a ele/nele”, “O pai aplicou uma punição a ele/nele”, etc. Nesses
exemplos, pode-se usar “lhe”: “O guarda aplicou-lhe uma multa” / “O pai aplicou-
lhe uma punição”.
6.7
O emprego de lhe em construções várias
6.7.1
Construções formadas por verbo + SP
As construções em que se acha o pronome “lhe” constituem os casos a que
chamamos de “construções estereotipadas”, em cuja estrutura se acha um verbo de
natureza vária (monovalente, trivalente, etc.) seguido de um sintagma
preposicional, que pode ser introduzido por uma preposição simples ou por uma
locução prepositiva. Seguem-se os exemplos:
(50) “Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente
no inexplicável de tantas cousas (...), e a mesma frase do príncipe da Dinamarca
reboava-lhe dentro”. (A Cartomante – Machado de Assis)
(51) “Apenas dera alguns passos surgiu-lhe em frente Miss Dollar latindo
(...)”. (Miss Dollar – Machado de Assis)
(52) “Até que não seria de todo ruim ser vampiro pois bem que lhe iria
algum rosado de sangue no amarelado do rosto”. (A Hora da Estrela Clarice
Lispector)
(53) “O Safado do velhaco, turuna, homem de facão grande no município
dele, passou-me um esbregue. Não desanimei: escolhi uns rapazes em Cancalancó
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
161
e quando o doutor ia para a fazenda caí-lhe em cima, de supetão”. (São Bernardo
Graciliano Ramos, p. 13)
(54) “Apenas abriu, caiu-lhe a carta aos pés”. (Miss Dollar Machado de
Assis)
(55) “- Pois sim. (...) E se ela não se convencer, sapeco-lhe um bocado de
patriotismo por cima”. (São Bernardo – Graciliano Ramos, p. 85)
A título de ilustração, impõe-se atentar às seguintes estruturas relacionais:
REBOAR – X reboar (dentro de Y)
SURGIU – X surgir (em frente de/a Z)
IR – X ir (bem) (em Y de Z) / X ir bem (a Z) (em Y)
CAIR – X cair em ( em cima de) Y / X cair a Y (de Z)
SAPECAR – X sapecar Y em (por cima de) Z
Vamos pôr em discussão esses casos. Comecemos, observando o seguinte: o
pronome “lhe” em todos os casos corresponde a um constituinte cuja forma é
‘de__SN”, que se atrela ao sintagma preposicional que se segue ao verbo.
Devemos, contudo, distinguir entre dois casos: 1) o constituinte que apresenta a
estrutura ‘de__SN’ pode atrelar-se à locução prepositiva, caso em que, a rigor, a
preposição desse constituinte é parte integrante da locução; 2) esse constituinte
pode relacionar-se ao sintagma preposicional formado por “preposição +
substantivo + preposição + substantivo”. Destarte, uma construção como
“reboava-lhe dentro” deve ser analisada como:
Reboava-lhe dentro
Reboava --------- dentro dele etapa 3
dentro ----- dele etapa 2
lhe = ele
de ------ ele etapa 1
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
162
O esquema acima, além de patentear a relação entre “lhe” e a forma
‘de__SN’, procura representar uma visão da estruturação sintática que pretende
contestar a análise tradicional que inclui o “lheentre os “adjuntos adverbiais”.
Como se pode depreender do esquema, o pronome “lhe” não corresponde a toda a
estrutura “dentro de”, senão a uma “parte” da estrutura. Sem pretender discutir
sobre a natureza constitucional da seqüência “dentro de”, vale notar que o
pronome “lhe” corresponde a uma forma como “ele”, a qual se combina com a
preposição, do que resulta um sintagma preposicional que, a seu turno, se atrela ao
advérbio “dentro”. Ora, entender o “lhe”, nesse caso, como um “adjunto
adverbial” não constitui uma análise aceitável, porquanto o “adjunto adverbial”
corresponde a toda a seqüência “dentro dele”. Ainda que consideremos a
preposição como parte “fixa” da construção, o “lhe”, correspondendo à forma
“ele”, não pode ser classificado como um “adjunto adverbial”, visto que ainda
assim não corresponde a toda a seqüência “dentro dele”: “lhe” não substitui a
forma “dentro”; corresponde, pois, à forma “de + ele”.
No esquema, conquanto se possa ver a “ruptura” da unidade “dentro de”,
não se pense que defendemos a inexistência de uma locução; intentamos
demonstrar as etapas de estruturação sintática: na primeira etapa, o pronome “ele”,
a que o “lhe” corresponde, se combina com a preposição “de”; na segunda etapa,
o conjunto “de + ele” (“dele”) se combina com a forma “dentro”; e, na terceira
etapa, o conjunto “dentro dele” se combina com a forma verbal “reboar”, ou, em
outros termos, integra o sintagma verbal.
No exemplo (51), admite-se a alternância entre “de” e “a”, já que existem as
variantes “em frente de” e “em frente a”; disso se seguem as formas “a ele” ou
“dele” (cf. surgiu em frente a ele/ dele).
O exemplo (52) é interessante, na medida em que “lhe” pode comportar-se
de duas maneiras diferentes. Primeiramente, é lícito entendê-lo como um dativo
de posse, caso em que corresponde a um constituinte do tipo de + ela” (“ela” =
Macabéa), que se dispõe junto ao sintagma preposicional “no amarelado do rosto”
(cf. “... bem que iria algum rosado de sangue no rosto dela”). Em segundo lugar,
tendo em vista a acepção ‘ajustar-se, harmonizar’, “lhe” parece corresponder a um
constituinte cuja estrutura pode ser descrita como ‘a__SN’ ou ‘em__SN’ (cf.
“...[bem] que iria [bem] a ela / nela um rosado de sangue no rosto”.). Trata-se de
um emprego semelhante ao que se pode notar em frases como “A roupa não lhe
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
163
vai bem”, “Como lhe vai o calção?”. Cabe observar que, nesses casos, a paráfrase
parece ser “A roupa não vai bem em você (nele)” ou “Como vai em você (nele) o
calção?”, se bem que não negamos ser possível ver um constituinte “a você) (p.
ex. A roupa vai bem a você / Como vai a você o calção?). o obstante, é lícito
concluir referir-se o “lhe” a um constituinte cuja estrutura é descrita como
‘em__SN’, ainda que se possa admitir a alternância com ‘a__SN’. Tais casos,
quiçá, se justifiquem pela influência da regência “vestir alguma coisa em alguém”
(p.ex. A mãe vestiu as calças no menino), a qual compartilha com a de “ir”, nos
casos supracitados, o significado básico de ‘ajustar a roupa ao corpo’.
No exemplo de Clarice, a estrutura relacional do verbo “ir” prevê a
atualização do constituinte formado por “em + subst. (ou pron.subst.)”, se bem
que seja facultativo. Se entendemos que “lhe” se refere a “de__SN” (cf. “...algum
rosado de sangue no amarelado do rosto dela”.), devemos considerá-lo um
circunstante.
Outrossim, em (53) e (54), o pronome “lhe” corresponde à forma ‘de__SN’.
Cumpre distinguir, no entanto, dois comportamentos do “lhe”: em (53), a forma
‘de__SN’ se prende à forma “em cima”, compondo com esta um sintagma
complexo; em (54), aquela forma prende-se ao constituinte “aos pés”. Nesse
último caso, “lhe” tem valor possessivo e, portanto, cumpre a função de dativo de
posse.
No exemplo (55), o pronome também se refere a um constituinte cuja
estrutura é descrita como ‘de__SN’. Esse constituinte se prende à forma “por
cima”.
É interessante perceber que o comportamento do “lhe” nos casos em que
figura uma locução prepositiva ((50), (51), (53), (55)) perturba a análise
tradicional, segundo a qual as formas “dentro de”, “em frente de/a”, em cima
de” e “por cima de” são “locuções prepositivas”; afinal, é patente a fragmentação
do conjunto, quando do uso do pronome. Aquelas formas, quando co-ocorrem
com “lhe”, não encerram a preposição “de” (na maioria dos casos, ou a”), fato
que nos leva a supor que o vínculo entre a preposição “de” e o resto da seqüência
não é tão “sólido”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
164
6.7.1.2
Uma nota histórica
Consoante nos ensina Climent (1945: 310), pela categoria dativa,
expressava-se, originariamente, dois tipos de significado: um gramatical e outro
de ‘direção’ (lugar para onde). Observa também que certos estudiosos da época
advogavam que a idéia de ‘direção’ deve ser considerada como “básica” para o
estudo do comportamento sintático-semântico do dativo, visto que as desinências
–ei e -ai, que indicavam o dativo, conquanto expressassem significado gramatical,
serviam, primeiramente, à expressão da idéia de ‘lugar para onde’ (‘direção’). O
autor ressalta, contudo, que, uma vez admitindo o ponto de vista daqueles
estudiosos, não se pode explicar, por um lado, como a idéia de ‘lugar’ e o
significado gramatical se fundiram numa única forma na sintaxe latina; por outro,
como o dativo passou a admitir o uso da preposição e por que se relaciona,
preferencialmente, a nomes que denotam ‘ser humano’.
Climent (1946: 310-311) propõe, pois, a hipótese segundo a qual cada qual
das referidas desinências, tendo se especializado, originariamente, numa
significação - -ei servia à expressão do significado “gramatical” (ou seja, por meio
dela, o dativo se caracterizou como um caso gramatical); -ai, por sua vez, servia à
expressão da idéia de ‘direção’ -, se juntaram a uma base
49
terminada em “vogal”,
de sorte que o produto se tornara formalmente idêntico. O autor refere o exemplo
do tema equo, ao qual se ajuntaram aquelas desinências, do que resultou a forma
equoi para a expressão do dativo, enquanto caso gramatical e caso que indicava
idéia de ‘direção’. Vale notar que, segundo Climent, admitindo-se a sua hipótese,
havia, a princípio, um dativo propriamente dito, a saber, que exprimia o
significado gramatical de ‘atribuição a’, e um dativo de direção, pelo qual se
expressava a idéia de ‘lugar para onde’.
A hipótese de Climent pretende explicar por que uma única forma
lingüística podia expressar, em latim, aquelas duas idéias. Também é baseando-se
nessa hipótese que o autor vai explicar, por exemplo, a correlação entre as idéias
de ‘pessoa a quem se destina a ação verbal’, ‘direção’ (‘lugar para onde’),
‘finalidade’ (‘direcionar-se a ação para certo objetivo’). Assim é que, no tocante
ao dativo de direção, observa o autor que se usava esse dativo, em vez do dativo
acusativo, para indicar o lugar a que se dirige a ação verbal. Após discorrer sobre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
165
a interpretação de certos giros na sintaxe latina, um dos quais constituiria herança
do indo-europeu, o autor conclui, à página 341, o seguinte:
“(...) el dativo de dirección arranca e deriva de un primitivo dativo complemento indirecto
que al dejar de expresar um concepto personal evoca una idea local (...)”.
Acrescenta ainda que o processo pelo qual o dativo passou a expressar a
idéia de ‘lugar para onde’ se em etapas. O autor dá-nos a saber as seguintes,
com exemplos em espanhol: DAR A LA DIOSA DE LA MUERTE > ENVIAR A
LA DIOSA DE LA MUERTE > ENVIAR A LA MUERTE > ENVIAR AL
LUGAR DE LA MUERTE > ENVIAR AL ORCO > IR AL ORCO. Não é difícil
traduzir essas construções para o português e distinguir nelas a entidade a quem se
destina a ação (à deusa) e o lugar para onde se dirige a ação (ao lugar de morte, ao
orco). Cumpre notar, nessa evolução proposta pelo autor, que não é tão nítido o
limite das idéias de ‘finalidadee de ‘direção’, no giro enviar a la muerte (“enviar
à morte”). O autor propõe que, em dar a la diosa de la muerte, um
complemento indireto (a la diosa de la muerte); em enviar a diosa de la muerte,
se nota uma idéia de ‘direção’; em enviar a la muerte, a idéia de direção’
permanece, embora, quando do apagamento do substantivo concreto, pareça
confundir-se com a idéia de ‘finalidade’, que nos parece cabível, em virtude de
existir o substantivo abstrato “morte”; a idéia de ‘direção’ se consagra nos dois
últimos giros, a saber, enviar al orco e ir al orco, dos quais se deduz um
constituinte que indica idéia de ‘lugar’ (orco).
49. O termo “base” designa aqui o conjunto formado pelo radical e vogal temática.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
166
No tocante à confluência das idéias de ‘direção’ e ‘finalidade’, cumpre dizer
que há, em português, muitas construções em que a forma ‘a__SN’ serve à
expressão das duas idéias. Por exemplo, numa construção como “Vou ao clube”,
“ao clube” indica a idéia de ‘lugar aonde’ (veja-se, aliás, que, pelo emprego da
preposição “para” no lugar de “a”, nesses giros, marca-se bem a idéia de
‘direção’.); já em “Vou à festa do/no clube”, ou em “Vou à reunião do/no
Departamento de Letras”, sobressai a idéia de ‘finalidade’
50
(cf. Vou à reunião do
Departamento de Letras / Vou ao Departamento de Letras para a reunião.). O
autor, à página 336, aponta para esse fato, observando que se deduz de
construções desse tipo idéia de ‘movimento’, própria do verbo: no primeiro caso,
orienta-se o movimento designado pelo verbo para um determinado lugar
(‘direção’); no segundo, orienta-se esse movimento para a realização de um
determinado objetivo (‘finalidade’).
Não se estendendo a discussão, cumpre notar, não raro, que a idéia de
‘lugar’, quando não implica a idéia de ‘direção’, pode confluir com a de tempo’.
Assim é que ambigüidade em giros como “A pancadaria ocorreu na festa de
Pedro”, no qual se atribui ao constituinte “na festa” tanto a idéia de ‘lugar’, por
metonímia, quanto a idéia de ‘tempo’, deduzido do substantivo “festa”.
A pertinência dessas considerações de cunho histórico estriba-se na
necessidade de ressaltar que os usos do “lhe” a que dispensamos tratamento é
herança do passado. Como veremos, oportunamente, ocorriam em épocas
remotas da língua portuguesa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
167
Acrescente-se também que as considerações aqui apresentadas visam à
apresentação, se bem que sumária, da relação entre as idéias de ‘pessoa a que se
destina a ação’, ‘direção’ e ‘finalidade’ e a categoria dativo. Nesse tocante, fique
claro que o dativo é, originariamente, definido como “o caso da atribuição”; por
esse caso, portanto, se expressava a entidade que a ação do verbo “atinge”
indiretamente. Na variedade mais estudada na língua portuguesa, por exemplo, o
dativo ou o chamado objeto indireto indica, consoante Climent (p. 313), via de
regra, a pessoa “afetada” pela conseqüência da ação verbal. Assim é que, em giros
como “Enviei uma carta ao meu irmão que mora em São Paulo”, o termo “ao meu
irmão” indica a entidade que é afetada” pela conseqüência decorrente de “enviar
a carta”: quem “envia uma carta” o faz a um “destinatário” (ao meu irmão).
50. Em espanhol, o autor apresenta os seguintes exemplos me voy al Café e me voy a bailar
(1945, p. 336). No primeiro, destaque-se a idéia de ‘direção’; no segundo, a idéia de ‘finalidade’.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
168
6. 8
Construções formadas por verbo ser + adjetivo
Ocupar-nos-emos na discussão dos casos em que o pronome “lhe se
subordina a um adjetivo, na função sintática de predicativo, que seleciona, por
meio de preposição obrigatória, um complemento de valor substantivo. Para efeito
de análise, não distinguimos entre adjetivos que entram em construções na
chamada voz passiva (“adjetivo-particípio”) e adjetivos que se acham fora desse
esquema sintático-semântico. Trata-se, como se vê, de casos que a gramática
tradicional chama “complemento nominal”. que notar o ponto de vista de
certos autores antigos da língua portuguesa que viam aí um caso de objeto
indireto, por influência do caso dativo.
Nos exemplos abaixo, destacamos o verbo “ser” e o adjetivo que se segue a
ele:
(56) “É-lhe indiferente isso”. (Miss Dollar – Machado de Assis)
(57) “A carta foi-lhe devolvida sem resposta”. (Miss Dollar Machado de
Assis)
(58) “A vida não lhe era e ele até economizava um pouco de dinheiro
(...)” (A Hora da Estrela – Clarice Lispector, p. 45)
(59) “Não lhe foi difícil apanhar o segredo de Mendonça (...)”. (Miss Dollar
Machado de Assis)
(60) “(...) morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia
nada e as divindades lhe eram estranhas”. (A Hora da Estrela Clarice
Lispector)
Em princípio, mister de salientar que essas ocorrências do pronome “lhe”
relacionam-se ao dativo subordinado, ou seja, ao dativo que figura na frase por
exigência de uma palavra que o seleciona; nos casos que vamos analisar, essa
palavra é o adjetivo que se segue ao verbo “ser”. O pronome deve ser considerado
um actante; mas não um complemento nominal, porquanto não nos interessa aqui
estudar o comportamento do “lhe”, incluindo-o em classes sintáticas pré-
estabelecidas; demais, admitindo a classificação em “complemento nominal”,
teremos de reconhecer a sua natureza pronominal. Assim é que, sendo um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
169
pronome clítico, lhe” vai subordinar-se ao acento tônico do verbo, posto que se
refira a um constituinte que é encetado pela preposição “a” ou “para”, o qual, a
seu turno, atrela-se ao nome (adjetivo).
Tomemos as estruturas relacionais dos adjetivos que figuram em nossos
exemplos:
INDIFERENTE – X (ser) indiferente a Z
DEVOLVIDO – X (ser) devolvido a Z
MAU – X (ser) mau para Z
DIFÍCIL – X (ser) difícil a/ para Z
ESTRANHA – X (ser) estranho a /para Z
O adjetivo “devolvido”, derivando do verbo “devolver”, vai, naturalmente,
herdar-lhe a regência. Outrossim, a fim de que não haja dúvida sobre a
“transitividade” desses adjetivos, cumpre notar as ocorrências “Indiferente a ele, a
menina saiu”, “Devolvida a prova ao professor, o aluno saiu”, etc., em que
“indiferente” e “devolvida” empregam-se sem o verbo “ser”, numa forma de
expressão “reduzida”. Esses casos são tratados na gramática tradicional como
casos de “orações reduzidas”. Veja-se que “a ele”, por exemplo, acompanha o
adjetivo “indiferente”, quando este é deslocado para outra posição (p.ex. a menina
saiu indiferente a ele). Por outro lado, embora não seja aceitável (ou, pelo menos,
tenha baixa aceitação) o deslocamento da forma reduzida “devolvida a prova ao
professor”, não é evidente a sinonímia estrutural entre “devolvida a prova ao
professor” e “devolver a prova ao professor”, como também não é possível
deslocar “ao professor” para depois do verbo “sair”, por exemplo; o procedimento
acarreta inaceitabilidade (cf. *devolvida a prova, o aluno saiu ao professor).
Não havendo dúvida sobre a transitividade desses adjetivos, importa
destacar, como se percebe, nas estruturas relacionais apresentadas, que o pronome
“lhe” faz referência a um constituinte que apresenta a estrutura ‘a/para___SN’.
Casos em que se nota alternância entre as preposições “a” e “para”. Do ponto
de vista semântico, o pronome “lhe” refere-se a um substantivo que designa ‘ser
humano’ e que cumpre o papel de ‘destinatário’, no sentido lato.
Devemos reconhecer que as definições de papéis temáticos são muito
inconsistentes; apresentam-se com variação num e noutro autor. O conceito de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
170
‘destinatário’, tal como é entendido, geralmente, é mais nítido no exemplo (57),
em virtude de o adjetivo “devolvida” originar-se do verbo “devolver”, o que faz
que ele “herde” a natureza sintático-semântica desse verbo. Nos demais exemplos,
o conceito de ‘destinatário’ deve ser dissociado da idéia de ‘movimento’ e deve
ser interpretado como o ‘termo da semântica do adjetivo’, ou seja, a entidade a
que a semântica do adjetivo “atinge” ou, em sentido inverso, a entidade que
“demarca” essa semântica, indicando que o significado do adjetivo não se estende
a outros termos.
Preterindo demasiada discussão teórica, não é boa lição o entender nesses
casos um objeto indireto, já que esse termo relaciona-se a verbo; tampouco
considerar o “lhe” um complemento nominal, dada a sua natureza pronominal.
Esses empregos do “lhe”, correntes na sintaxe latina, dão-nos testemunho do caso
dativo, que se subordina ao adjetivo; ademais, corroboram a idéia segundo a qual
o “lhe” emprega-se em esquemas sintáticos variados.
6.8.1
Construções com verbo semanticamente esvaziado
Intentando evitar, de antemão, qualquer distinção entre construções com
verbo suporte e expressões cristalizadas, o título desta seção expressa uma
característica comum aos dois tipos de construção, conquanto reconheçamos que,
no caso das construções com verbo suporte, o verbo conserva certo significado.
Lembramos que Neves (1999; 2000) admite que esses dois tipos de construção
comportam-se da mesma maneira, quando da aplicação dos testes de Radford
(1988) ao conjunto formado por verbo + objeto. Admitindo a proposta de Neves,
segundo a qual construções que medeiam entre as expressões cristalizadas e as
construções com verbo pleno, nas quais o grau de aderência dos elementos varia, e
não sendo possível inserir uma determinada construção numa ou noutra classe,
deveremos supor que se inclua entre as construções que permeiam entre aqueles
dois tipos.
Para tanto, é necessário tomarmos alguns parâmetros, mediante os quais
possamos distribuir as construções em dois grupos: o das que supostamente
apresentem verbo-suporte e o das que pareçam ser expressões cristalizadas.
Havendo alguma construção que escape à determinação proposta, diremos que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
171
pertence a um outro grupo. É evidente que essa distribuição não é definitiva,
senão provisória; serve-nos para uma reflexão mais cuidadosa sobre a natureza
constitucional das construções.
Antes de apresentar os parâmetros para análise, citem-se os seguintes verbos
que integram as referidas construções: “dar”, “fazer” e “ter”. São estes os
parâmetros considerados:
Parâmetro 1 as construções de verbo-suporte consideradas prototípicas
apresentam um substantivo que não é precedido de determinante.
Parâmetro 2 as construções com verbo-suporte se caracterizam,
fundamentalmente, por apresentar um substantivo deverbal.
Parâmetro 3 o substantivo que integra as construções de verbo-suporte
pode corresponder a um verbo simples.
Seguem-se os exemplos colhidos em nossos corpora, aos quais vamos
dispensar tratamento, doravante.
(61) “D. Severina apaziguava-o, com desculpas, a pobreza da comadre, o
caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos”. (Uns Braços – Machado de
Assis)
(62) “Não negara a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem
ainda algumas virtudes”. (Pai contra Mãe – Machado de Assis)
(63) “Tia Mônica devia ter-lhes feito advertência”. (Pai contra Mãe
Machado de Assis)
(64) “Mendonça recusou o convite que Jorge lhe fez (...)”. (Miss Dollar
Machado de Assis)
(65) “Meireles fazia-lhe sinais desesperado, alertando-o (...)”. (Câmara
Secreta – Carlos Drummond de Andrade).
(66) “Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato de
sopa quente, um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor”. (A Hora da
Estrela – Clarice Lispector, p. 59)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
172
(67) “Na hora em que Olímpico lhe dera o fora, a reação dela (explosão)
veio de repente inesperada: pô-se sem mais nem menos a rir”. (A Hora da Estrela
Clarice Lispector, p. 61)
Vejam-se, agora, a estrutura dessas construções em que figura o pronome
“lhe”.
FAZER – X fazer carinhos em Z
X fazer convite a Z
X fazer sinais a / para Z
X fazer advertência a Z
TER – X ter amor a/ por Z
DAR – X dar um (bom) banho em Z
X dar o fora em Z
Não nos excederemos na tentativa de classificação dessas construções,
decerto, já que não convém aqui nos deter a discutir outro fenômeno lingüístico.
Lançando mão do primeiro critério, damos a saber abaixo a primeira distribuição.
Parâmetro 1:
a) Construções de Verbo-Suporte
fazer carinhos
fazer advertência
fazer sinais
b) Expressões cristalizadas
ter amor
fazer o convite
dar um banho
dar o fora
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
173
Recorrendo ao segundo critério, observamos acentuada discrepância entre as
distribuições. Vejamos o resultado.
Parâmetro 2:
a) Construções com verbo-suporte:
fazer advertência
dar um banho
b) Expressões cristalizadas:
ter amor
dar o fora
fazer carinhos
fazer sinais
fazer o convite
Pelo terceiro e último critério, propõe-se outra distribuição:
Parâmetro 3:
a) Construções com verbo-suporte:
fazer advertência (= advertir)
fazer o convite (= convidar)
fazer carinhos (= acarinhar)
fazer sinais (= sinalizar)
dar um banho (= banhar)
ter (o) amor (= amar)
dar o fora (= dispensar alguém)
As classificações apresentadas, quando aplicamos - um de cada vez - os três
critérios propostos não satisfazem a nossa intuição. Lançando olhar à primeira
distribuição, pensamos que as construções “dar um banho”, “fazer convite” devem
integrar o grupo das construções com verbo-suporte, já que, como é possível
depreender dos casos mais triviais de construções de verbo-suporte, são
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
174
constituídas por um nome abstrato deverbal. Por outro lado, devemos admitir que
“fazer carinhos” e fazer sinais” devem ser relegadas ao grupo das construções
cristalizadas, já que se constroem em torno de um substantivo concreto.
Cabe advertir que algumas construções podem não pertencer a nenhuma das
duas classes, caso em que seria necessário admitir uma classe intermediária entre
os dois extremos (o das construções cristalizadas e o das construções formadas
por verbo pleno). O primeiro parâmetro explicita uma característica típica de
construções com verbo-suporte; no entanto, não constitui uma característica
relevante para efeito de classificação, que a determinação do substantivo que
integra aquelas construções está condicionada a fatores de ordem sintático-
discursiva. Veja-se, por exemplo, que o narrador machadiano precede o artigo ao
substantivo “amor”, em (80), pela necessidade de atualização do ‘dado’ designado
por “amor” (que, provavelmente, fora anunciado) e pela própria estruturação
sintática (o substantivo é reproduzido pelo pronome relativo “que” na oração
seguinte). Veja-se que, ao reproduzir esse substantivo na oração seguinte,
dispondo-o, portanto, junto à forma “tinha”, o artigo é suprimido (“tinha amor”).
Vale notar que Neves não nega que possam ser referenciais os sintagmas
nominais que entram a fazer parte das construções de verbo-suporte.
De acordo com o segundo critério, que expressa uma característica
importante das construções com verbo-suporte característica lembrada por
Busse e Vilela (1986: 81) não podemos incluir entre as construções com verbo-
suporte perífrases do tipo “fazer convite”, “ter amor”, as quais, embora não
derivem do verbo, são substantivos abstratos. É claro que “convite”, na acepção
de ‘pedaço de papel com que se convida formalmente’, é um substantivo concreto;
mas, na referida construção, é abstrato.
O terceiro parâmetro não nos aproveita para efeito de discriminação das
perífrases, já que, como observa Neves (2000: 54), tanto as construções com
verbo-suporte quanto as expressões cristalizadas podem ser parafraseadas
mediante um verbo simples.
Uma classificação satisfatória exigiria o recurso aos testes apresentados em
Neves (1999: 103-109), o que nos custaria desnecessário trabalho. Levando em
conta, por um lado, que as construções de verbo-suporte são formadas por
substantivo deverbal e, por outro, que o verbo conserva certo sentido, vamos
admitir que as seguintes perífrases podem ser consideradas como formadas por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
175
verbo-suporte: “fazer advertência” e “dar um banho”. Também vamos admitir que
a construção “dar o fora”, porque é constituída por uma palavra substantivada e
porque o verbo “dar” parece ser semanticamente mais esvaziado do que o verbo
“dar”, em “dar um banho”, vamos admitir que seja uma expressão cristalizada.
Veja-se, por exemplo, que, em “dar um (bom) banho”, a seqüência “um banho”
admite coordenação com outro constituinte. De sorte, a narradora de A Hora da
Estrela escreveu “(...) dar-lhe um bom banho, um prato de sopa quente, um
beijo na testa (...)”. que notar que intermedeia as duas seqüências em negrito
um constituinte (objeto direto) do verbo “dar”, funcionando como verbo pleno (cf.
“dar um prato de sopa quente [a Macabéa]”). As demais construções serão
consideradas um terceiro tipo de construção, cujo verbo, apresentando um certo
esvaziamento semântico, se combina com um substantivo que não é abstrato;
portanto, não poderiam ser incluídas entre as construções com verbo-suporte. Por
outro lado, não resultam de “gramaticalização”. Note-se a construção “faz parte”,
em “O artigo de Neves faz parte da revista Palavra”. Essa construção não pode ser
parafraseada com o verbo “participar”. Acrescente-se que o sentido de “fazer” o
significado lexical de “fazer” é tão esvaziado, que poderíamos substituí-lo, sob
certas condições discursivas, pelo verbo “ser” (cf. “O artigo de Neves é parte
(integrante) da coletânea de artigos da revista Palavra”). Atente-se, também, ao
uso dessa perífrase em situações como: falante A diz: - O técnico está se
queixando dos puxões de camisa na área... . O falante B completa: - ... Não
deveria... Faz parte! É verdade que é discutível o haver similaridade semântica nos
dois empregos da perífrase “faz parte”; ademais, o último emprego tem acentuado
valor pragmático. A despeito da diferença semântica e das necessidades
pragmáticas que motivem o seu emprego, sobretudo no último caso, não se negue
que o conjunto constitui um bloco com significado unitário.
Do exposto, pode-se deduzir uma nova distribuição daquelas construções:
a) Construções com verbo-suporte:
fazer advertência
dar um banho
b) Construções de outro tipo:
fazer convite
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
176
fazer carinhos
fazer sinais
ter amor
c) Expressões cristalizadas:
dar o fora
Devemos lembrar que essa nova distribuição não nos impede de admitir que
as construções em b) possam ser consideradas como exemplos de perífrases com
verbo-suporte, ou como exemplos de expressões cristalizadas, que, consoante
Neves (1999:99), certas construções podem assemelhar-se, de acordo com o seu
grau de “gramaticalização”, ora às construções que se acham num extremo (o das
construções com verbo pleno), ora às construções que se situam noutro extremo (o
das expressões cristalizadas). Acreditamos que elas possam constituir um subtipo
de construções com verbo-suporte, ou possam ser inseridas numa terceira classe
que intermedeia as duas classes extremas.
Cuidando justificada essa última distribuição, vamo-nos dedicar à análise do
comportamento do “lhe” nos exemplos de nossos corpora.
Em primeiro lugar, importa ficar claro que o pronome “lhe”, consoante
temos defendido, figura em esquemas sintáticos bem variados, do ponto de vista
da natureza morfossemântica dos elementos constituintes. Vimos até o momento,
entre outras coisas, que o pronome “lhe” insere-se em construções formadas por
verbo e sintagma preposicional com valor adverbial, em construções com verbo
ser + adjetivo”, em construções cujo verbo seleciona uma preposição diferente de
“a”. Nesta seção, vamos dispensar atenção ao comportamento do pronome “lhe
em construções de natureza específica, se cotejadas às outras tantas vistas
anteriormente.
De maneira geral, o “lhe”, nos exemplos referidos, substitui um constituinte
cuja estrutura pode ser descrita como ‘a/para __SN’, mas pode referir-se a
estruturas outras, tais como ‘por__SN’ (em (62)) e ‘em__SN’ (em (61), (66),
(67)). Impõe-se reconhecer um problema que, não estando resolvido no estudo de
Neves, acarreta-nos uma controvérsia da qual não nos podemos alhear. Os
constituintes a que se refere o pronome “lhe” são selecionados pelo “nome”, que a
construção encerra, ou pelo conjunto “verbo + nome”? Assume-se que essa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
177
dificuldade em determinar o elemento “regente” dessas construções estriba-se na
dificuldade de determinar o grau de gramaticalização delas. Em outras palavras,
só podemos saber se o nome é que seleciona o constituinte preposicionado, ou se é
toda a construção que o faz, caso determinemos o grau de gramaticalização dessas
construções. Destarte, quanto mais “gramaticalizada” a construção tanto mais
possível a subordinação do constituinte preposicionado ao conjunto; e quanto
menos “gramaticalizada” for a construção, tanto mais será a possibilidade de o
nome selecionar aquele constituinte.
Cuidamos que a gramaticalização parece maior em “dar o fora”, como se
deduz da distribuição dessa unidade, que é considerada um exemplo de expressão
cristalizada. Assim, diremos que o “lhe”, no exemplo (66), refere-se a um
constituinte que se subordina a toda a construção. Por outro lado, porque são
derivados de verbos, em “dar banho” e “fazer advertência”, os substantivos
“banho” e “advertência” é que selecionam o constituinte a que “lhe” se refere. No
que toca aos demais casos, vale notar que os substantivos “convite”, “carinho”,
“sinal” e amor” podem figurar desacompanhados dos verbos “fazer” e “ter”, em
giros como “O convite à Glória não agradou aos irmãos”, “O carinho de Joana em
Renato causava ciúmes em Elisa”, “Os sinais de Júnior ao motorista não fizeram
que este parasse o ônibus”, “O amor de Maria por/ a Pedro era notório”. Escusa
dizer que “carinho” está empregado como substantivo concreto; na acepção
abstrata, regeria “por” (ou “(para)com”). Veja-se, por exemplo, “O carinho dos
pais pelo filho (ou para com o filho)”.
Do exposto, vamos admitir que o “lhe”, em todos os exemplos, refere-se a
um constituinte preposicionado que é selecionado pelo “nome-objeto” dos verbos
“ter”, “fazer” e “dar”, afora o caso da construção “dar o fora”, em que todo o
conjunto governa a seleção do complemento.
Não se suponha, contudo, que nosso ponto de vista se pretende definitivo e
irrefutável; é provável que uma análise mais acurada da natureza sintático-
semântica das construções em que se topam aqueles verbos leve-nos a concluir
contrariamente a nossa proposta; no momento, entretanto, parece-nos uma
proposta aceitável, porque coerente com o enfoque do comportamento do
pronome “lhe”, apresentado neste trabalho.
Do ponto de vista semântico, o pronome “lhe” refere-se a constituintes cujo
substantivo desempenha um dentre os seguintes papéis temáticos: “destinatário”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
178
(em (63), (64) e (65)), “paciente” (em (61), (62), (66) e (67)). Destarte, pensamos
que não ferimos a coerência de nosso trabalho, no que toca à concepção do papel
de ‘destinatário’. Entendemos que, em giros como “fazer carinho em”, “dar banho
em”, “ter amor a”, o substantivo que designa a entidade que recebe carinho, em
quem se banho e por quem se nutre amor deve ser considerado como “objeto
afetado” pela semântica dos nomes “carinho”, “banho” e “amor”; daí se concluir o
propor o papel temático “paciente”. Por outro lado, em “fazer advertência a”,
“fazer sinais a” e “fazer convite a”, cuidamos haver uma referência a substantivo
cujo papel temático é o “destinatário”, quer na acepção de ‘entidade a que se
destina a ação’, típica em estado-de-coisas de que se deduz idéia de ‘movimento’,
quer numa acepção mais lata e, decerto, mais abstrata, de ‘entidade que demarca a
semântica do nome (ou verbo)’. Em giros como “fazer advertência a”, “fazer
sinais a”, é evidente a primeira acepção de “destinatário”; em “fazer convite a”,
parece destacar-se mais a segunda acepção.
Acreditamos que entender o conceito de “destinatário” em duas perspectivas
concorre para aclarar a relação semântica depreendida de giros como “Pedro é
favorável ao debate político televisivo”, “A mãe proibiu ao filho que fosse à
festa”, nos quais os constituintes “ao debate político” e “ao filho” podem cumprir
o papel de “destinatário”, mas não na acepção como é entendido em “Entregamos
o bilhete ao porteiro do prédio”.
O estudo dos papéis temáticos integrado na teoria gramatical pode ser muito
útil para que compreendamos melhor como os significados estão codificados na
língua em uso e como esses significados se relacionam para efeito de
interpretação das expressões lingüísticas produzidas pelos usuários da língua.
Concordamos, no entanto, que, muita vez, o tipo de relacionamento sintático entre
uma unidade e outra o encontra um correspondente semântico descritivo. Um
exemplo simples dessa situação pode-se ver nas frases “O engenheiro construiu a
casa” e “Gosto de sorvete”. A relação semântica entre o verbo “construir” e seu
complemento “a casa”, por um lado; e entre o verbo “gostar” e seu complemento
“de sorvete”, por outro, pode ser descrita mediante a postulação de um papel
temático como ‘objeto’. A definição de “objeto”, no entanto, varia de um para
outro exemplo. No exemplo com o verbo “construir”, o “objeto” é a coisa
resultante da ação do verbo (ou, simplesmente, o resultado da ação); no exemplo
com verbogostar”, o “objeto” é algo que desperta prazer quando da aplicação de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
179
um de nossos cinco sentidos (o paladar) e, portanto, é algo que é “alvo” de
apreciação. Disso se segue o sugerir outra designação que recubra este último tipo
de relação semântica, ou, no mínimo, o estender o conceito de ‘objeto’, fazendo-o
que ele represente outros tipos de relação semântica afim. Nem uma nem outra
alternativa é interessante, para efeito de descrição lingüística. Parece-nos que o
problema decorre, por um lado, da própria combinação entre as unidades: em
certas combinações não é tão nítido o tipo de relação semântica estabelecido. Por
outro lado, a postulação de um papel temático depende do grau de abstração
semântica do estudioso. Em decorrência da variabilidade dessa abstração, se
acham à farta diferentes tipos de papéis temáticos, definidos segundo perspectiva
diversa.
Finalmente, no tangente ao uso do “lhe” naquelas construções, vale dizer
que o pronome deve ser considerado um actante de algum tipo, mas não cabe
considerá-lo um complemento nominal, como o suporia a gramática tradicional.
6.8.2
Os exemplos de lhe como substituto anafórico de substantivo [-
animado] na literatura lingüística
Consoante disséramos, vamos apresentar nesta seção final os exemplos
colhidos da literatura lingüística, em que o “lhe” faz referência a substantivo [-
animado]. Importa, nesta seção, destacar tão-só esse fato, já que nos bastam as
considerações acerca do seu comportamento feitas nas seções anteriores. Escusa,
portanto, reiterá-las. Como tratamos desses casos nos exemplos da Literatura,
cingimo-nos a destacar, em negrito, o pronome e a expressão a que se refere.
Nessa expressão, se acha o substantivo [- animado].
Cumpre atentar para os seguintes exemplos:
(68) “Os verbos podem também fazer certas exigências concernentes à
forma das orações que lhes são subordinadas”. (Perini – GDP, 2004: 160).
(69) “As exigências feitas pelos verbos quanto à forma das orações que lhes
são subordinadas são muito variadas (...)”. (Perini, GDP, 2004: 177).
(70) “A concordância verbal, tal como entendida nesta análise, compreende
basicamente alguns procedimentos que rotulam certos sintagmas, atribuindo-lhes
funções sintáticas”. (Perini – GDP, 2004: 187)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
180
(71) “(...) e portanto a frase é bem formada. Posteriormente, as regras
semânticas a processam, atribuindo-lhe uma interpretação na qual o agente é “eu”.
(Perini – GDP, 2004: 192)
(72) “A Lingüística, embora seja uma ciência humana, tem valorizado a
linguagem formal como a sua escrita própria. Isto lhe deu uma posição de
destaque entre as ciências humanas”. (Orlandi, 2005: 16)
(73) “Ademais, esses conectores, ao introduzirem um enunciado,
determinando-lhe a orientação argumentativa”. (Koch, 2004: 72)
(74) “(...) como foi dito no capítulo anterior, que o referente representado
por um nome ou sintagma nominal (SN) vai incorporando traços que lhe vão
sendo agregados à medida que o texto se desenvolve”. (Koch, 2004: 31)
(75) “Pretendo, neste capítulo, proceder a uma reflexão sobre os conceitos
tão freqüentes na literatura lingüística contemporânea de intertextualidade e
polifonia, com o intuito, inclusive, de verificar, através da determinação das
características e do âmbito de abrangência que lhes têm atribuídos, se designam
um só fenômeno (...)”. (Koch, 2003: 59)
(76) “No texto 2, da página 31, tem-se o início catafórico, que o referente
da expressão “dona de uma luminosidade fantástica” é a ilha de Itaparica, que se
lhe segue no texto”. (Koch, 2003: 59).
(77) “Entre os objetivos do estudo da linguagem está, portanto, a descoberta
dos mecanismos e procedimentos que utilizamos tanto para produzir os sinais
sonoros e gráficos que constituem nossos discursos quanto para atribuir-lhes
sentido.” (Azeredo, 2002: 11)
(78) “(...) a regência do verbo transitivo impõe ao pronome pessoal que lhe
serve de objeto as formas oblíquas átonas: o, a, os, as, me, te, se, nos, vos (...)”.
(Azeredo, 2002: 179. seção 360)
(79) “Resta o problema de saber se tal gramática é possível (...) Ou, em
outros termos, se o estudo sincrônico é possível sem um paralelo estudo
diacrônico que lhe sirva de apoio”. (Câmara, Jr., 2004: 14).
(80) “O predicado de uma oração pode ser simples ou complexo, conforme
o conteúdo léxico do verbo que lhe serve de núcleo”. (Bechara, 2002: 414)
(81) “Muitas vezes aparece depois de certos verbos uma preposição que
mais serve para lhes acrescentar um novo matiz de sentido do que reger o
complemento desses mesmos verbos”. (Bechara, 2002: 419)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
181
(82) “A classificação corrente é atribuir a dez horas a função de predicativo.
Como o verbo é impessoal e está, por concordância atrativa, no plural, tem-se-lhe
proposto a função de sujeito”. (Bechara, 2002: 428)
(84) “Tais diferenças levaram alguns autores a dar outra classificação a
predicativos dessa natureza: Said Ali chamou-lhes anexo predicativo (...)”.
(Bechara, 2002: 482)
(85) “(...) o pronome que inicia as orações que eu pensei, que não queres,
dando-lhes o caráter de adjetivas (...)”. (Bechara, 2002: 489)
(86) “O adjetivo é geralmente definido como a palavra que acompanha o
substantivo para atribuir-lhe uma propriedade ou qualidade”. (Basilio, 2004: 88)
(87) Fatores sociais devem ter determinado o aparecimento de uma
categoria lingüística. No entanto, as categorias perderam qualquer relação com as
causas que lhes deram origens e ganharam autonomia”. (Fiorin, 2005: 15)
(88) “* A entoação, traço essencial para a conceituação da frase, é o que lhe
dá, a esta, unidade de sentido, demarcando-lhe o começo e o fim, e apontando-lhe
o propósito (declarativo, interrogativo, etc.)”. (Rocha Lima, 2001: 232)
(89) “Serve de modelo a frase declarativa, manifestação de um juízo, sem
qualquer traço dominante de natureza emotiva, capaz de perturbar-lhe a
organização gramatical”. (Rocha Lima, 2001: 234).
6.9
Uma nota final: registro histórico
Gostaríamos de levar a cabo nossa análise do comportamento sintático-
discursivo do pronome lhe”, ressaltando que muitos dos empregos contemplados
neste trabalho encontram registro em textos escritos do português arcaico, como
nos dão testemunho os seguintes passos
51
:
E el-rei, que viu viir, volveu a ele e britou a lança em ele. E o cavaleiro,
que alcançou em descuberto, feri-o tam rijamente que lhe falsou a loriga e
meteu-lhe o ferro da lança per a espádua seestra, e lançou-o em terra. Depois
deceu e filhou-lhe o escudo e subiu em seu cavalo (...)”. (Demanda do Santo
Graal, cap. 49)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
182
“- Senhor, disse el, todos os desta terra dizem, e eu bem cuido que é
verdade, que aquel que lhe poder tirar a carta da maão saberá a verdade desta
árvor, ca em na carta jaz a verdade (...)”. (Demanda do Santo Graal, cap. 30)
“Grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego d’ordenar
estórias, moormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam u forom nados
seus antigos avoos, seendo-lhe muito favorávees no recontamento de seus
feitos”. (Quadros da crônica de D. João I – prólogo, p. 17)
51. Os exemplos foram colhidos, respectivamente, de Demanda de Santo Graal. Editor: Pe.
Augusto Magne. Instituto Nacional do Livro. Rio de Janeiro, 1955, vol. 1. Reprodução fac-símile
de transcrição crítica do códice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena; e de Lopes, Fernão.
Quadros da Crônica de D. João I. Rodrigues Lapa (org.). Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
183
7
Conclusão
Este trabalho foi empreendido sob o pressuposto de que a tradição
gramatical estende o conceito de objeto indireto stricto sensu a outros casos de
dativo, representados na língua portuguesa pelo pronome “lhe”. Assim é que, para
efeito de estudo do comportamento sintático-discursivo do pronome “lhe” na
variedade formal do português brasileiro, foi preciso repensar o conceito de objeto
indireto na tradição gramatical; daí se seguindo, em conformidade com autores
como Rocha Lima (2001) e Evanildo Bechara (2002), por exemplo, a proposição
segundo a qual o objeto indireto deve ser considerado como um dos
complementos verbais (um actante), o qual se caracteriza, do ponto de vista
formal, por ser introduzido, via de regra, pela preposição “a” (às vezes, para”) e
por ser cliticizável em “lhe”. Do ponto de vista semântico, também aqui anuímos
à idéia segundo a qual o objeto indireto representa o ‘destinatário’, a saber, a
entidade a quem se dirige a ação do verbo.
Levando em conta o tratamento dispensado por autores como os referidos
acima, procuramos patentear que o pronome “lhe” não desempenha tão-só, como
nos deixa entrever a tradição, a função de “objeto indireto”. Por um lado,
conquanto não neguemos, sob hipótese alguma, a correlação entre “objeto
indireto” e “dativo”, o “lhe” cumpre outras funções decorrentes do heterogêneo
caso dativo. Como vimos, o “lhe” pode cumprir as funções de dativo de posse,
dativo de interesse e de dativo ético funções que são consideradas não-
actanciais. Por outro lado, no domínio das funções actanciais, discrepância
entre o que a tradição nos legou e os fatos da língua. Como vimos, a tradição
ensina-nos que o objeto indireto é introduzido pela preposição a” e é cliticizável
em “lhe”; no entanto, o lhe” figura em esquemas sintáticos cujo verbo seleciona
constituintes introduzidos por preposição diferente de “a” (na maioria das vezes,
“em”). É verdadeira a relação entre preposição “a” e pronome “lhe”; isto é, o
pronome “lhe” cliticiza estruturas em “a”, em muitos casos; mas não rareiam
casos em que “lhe” cliticiza estruturas introduzidas por preposição diferente de
“a”. Nesses casos, parece-nos que a única relação possível entre o emprego de
“lhe” e a categoria dativo repousa no fato de se referir a substantivo [+ humano].
Insistimos em que esses casos não podem ser tratados como casos de objeto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
184
indireto, tendo em vista sempre a definição tradicional, que remonta a autores
como Rocha Lima (2001) e Evanildo Bechara (2002) definição esposada por
nós.
Do ponto de vista semântico, os casos a que nos referimos acima constituem
casos em que se nota, por vezes, substantivos cumprindo papel temático diverso
do papel de ‘destinatário’. Muita vez, o “lhe” representa o ‘paciente’ (cf. Bater-
lhe/ bater nele); em outros casos, desempenha papel temático ainda não bem
definido. Nesse tocante, procuramos demonstrar que a generalização segundo a
qual o pronome “lhe” figura no lugar de constituintes cujo substantivo indica o
‘destinatário’ deve ser repensada, caso se pretenda desenvolver um quadro teórico
mais consistente dos empregos do pronome “lhe” no português. Não negamos a
generalização, é claro; mas reconhecemos que o “lhe” não se aplica tão-somente a
constituintes que indicam o ‘destinatário’. Não basta, portanto, para efeito de
descrição, dizer que o “lhe” aplica-se, normalmente, a constituintes que indicam o
‘destinatário’; melhor será investigar os casos em que essa idéia se sustenta e os
casos em que “lhe” substitui constituintes com função semântica diferente.
Reconhecemos outrossim que a tarefa suscitada acima pode ser dificultada
pela situação teórica da semântica, mormente no que toca a estudos que se
ocupam com a descrição dos papéis temáticos para fins de aplicação a uma teoria
gramatical; mas não deve ser negligenciada, caso se pretenda descrever
precisamente o comportamento do “lhe” na língua portuguesa.
No tangente ao âmbito dos dativos “livres”, procuramos demonstrar a
atualização do “lhe”, enquanto unidade de valor circunstancial, a saber, que figura
no enunciado por fatores de ordem discursiva, e não por exigência de uma palavra
qualquer. É nesse âmbito que prepondera a motivação discursiva do emprego do
“lhe”. Vimos que os dativos de interesse e ético são funções mais afins ao dativo
subordinado (objeto indireto). Nem sempre é cil distinguir o dativo de interesse
do objeto indireto propriamente dito; mormente pelo fato de não ser bem definido
na língua o âmbito das idéias de ‘destinatário’ e ‘beneficiário’. Todavia,
procuramos patentear a ocorrência do dativo de interesse na língua portuguesa, em
certas condições sintático-semânticas (e, provavelmente, pragmáticas) e insistimos
no emprego da preposição “para” como marca formal dessa função.
O dativo de posse, a seu turno, apresenta características formais e
semânticas bem definidas, do que se segue poder ser distinguido mais claramente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
185
do objeto indireto propriamente dito. Nesse tocante, cabe dizer que a
nomenclatura “objeto indireto de posse” se justifica pela insistência tradicional
na relação entre o objeto indireto (dativo subordinado) e a categoria “dativo”,
que, atentando para as condições estruturais e semânticas em que ocorre o dativo
de posse, não é difícil concluir a discrepância entre o conceito tradicional de
“objeto indireto” (isto é, termo oracional que se emprega com verbo transitivo
indireto, etc.) e os casos em que haveria um “objeto indireto de posse”. Como
vimos, o dativo de posse (ou o chamado “objeto indireto de posse”) emprega-se
com verbo bivalente (ou monovalente) e estabelece um ‘vínculo’ qualquer entre
uma “pessoa” e uma “parte de seu corpo”, ainda que possa estabelecer um
‘vínculo’ entre um objeto e uma determinada característica material.
O dativo ético, que não pôde ser contemplado de modo acurado neste
trabalho, pode ser representado pelo pronome “lhe”, em referência à segunda
pessoa do discurso, já em referência à terceira pessoa do discurso. É uma função
claramente discursiva pela qual se expressa, no estado-de-coisas designado, a
participação do interlocutor; daí o considerá-la uma variedade do dativo de
interesse. Provavelmente, haja condições estruturais e, mormente, pragmáticas, de
atualização desse tipo de dativo; e supomos que uma análise satisfatória do
comportamento desse dativo dependa de uma reflexão cuidadosa sobre as
condições discursivo-pragmáticas em que ele ocorre. É mediante essa reflexão
que se podeapontar diferença, caso exista, entre esse tipo de dativo e o dativo
de interesse. Sugerimos que uma análise que pretenda apontar diferença entre os
dois tipos de dativo pode ancorar-se na idéia, que nos parece coerente, segundo a
qual o dativo de interesse faz parte do enunciado, e o dativo ético está vinculado à
enunciação.
Procuramos também, neste trabalho, dar conta de aspectos semânticos e
sintáticos dos usos do pronome “lhe” de modo integrado. Para tanto, foi preciso
delinear uma separação entre eles e, quando da análise dos dados, associá-los,
reconhecendo que os aspectos semânticos não devem ser encarados como
determinantes de funções diferentes. Contudo, é evidente que concorram com os
aspectos formais para os diferentes empregos do pronome “lhe”. É notável a
influência do traço [+ humano] como condição relevante, embora não necessária,
ao emprego do pronome “lhe”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
186
Para examinar os empregos de “lhe” a que podemos chamar
“circunstanciais” e os empregos a que podemos chamar “actanciais”, foi
necessário postular o conceito de “previsibilidade valencial” que, não obstante as
questões controversas que suscite, serviu-nos para fundamentar nossa proposição.
Assim é que ressaltamos a necessidade de a teoria lingüística, ainda que de base
funcionalista, se preocupar com a descrição da estrutura lingüística, cuja
existência é inegável. Essa estrutura, todavia, decorre do uso e é por ele
influenciada. Por isso, deve-se evitar a abstração do uso; mas deve-se reconhecer
a existência de esquemas estruturais previstos pelo sistema lingüístico. O uso,
pois, é que “forma” os modelos estruturais pelos quais os falantes constroem seus
enunciados e é, também, responsável por “reorganizá-los”, readaptá-los a cada
situação discursiva.
Esperamos tenha-se confirmado o pressuposto de que o “lhe” insere-se em
esquemas sintático-semânticos bem variados. Por um lado, nas ocorrências que a
tradição, provavelmente, considerasse como casos de objeto indireto, se verificou
essa propriedade do “lhe”, que pode substituir constituintes introduzidos por
preposição diferente de “a” e representar papel semântico diferente do papel de
‘destinatário’. Por outro lado, casos há em que o “lhe” é empregado junto a verbos
chamados de “intransitivos”, na tradição gramatical, substituindo constituintes
“circunstanciais”. São exemplos ocorrências como “reboar-lhe dentro”, “passar-
lhe ao longe”, “surgiu-lhe em frente” etc., consideradas neste trabalho. Esses
casos não se relacionam propriamente ao dativo de direção; o constituinte
introduzido pela preposição ou locução prepositiva tem valor ‘situacional’; mas o
pronome “lhe”, não retomando toda a construção situacional, não é senão um
elemento dessa construção. Semanticamente, refere-se a “ser humano” que serve
como ponto de referência da situação descrita pelo verbo, à semelhança de um
‘locativo’ (cf. O estrondo reboava dentro da sala / A voz da moça reboava-lhe
dentro (dele)). Querer reunir aqueles particulares e expressivos usos do “lhe” sob
o rótulo “adjunto adverbial” é ignorar seus aspectos sintáticos e semânticos,
impedindo que se reconheça a necessidade de rever o tratamento tradicional
dispensado ao emprego desse pronome, que é mais rico e variado do que se
supunha.
É prática corriqueira incluir “lhe” entre os complementos nominais, quando
empregado junto a adjetivos, em estruturas do tipo “ser + adjetivo”. Maximino
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
187
Maciel chamava o “lhe”, nesses casos, de “objeto indireto”, porque se baseava na
origem dativa. Esses empregos do “lhe” dão-nos testemunho do dativo
subordinado, que, no latim, empregava-se junto a nomes. Em português, é comum
o emprego do “lhe”, em referência a “ser humano”, junto a adjetivos, tais como
“favorável”, “conveniente”, etc. Considerem-se tais casos como usos actanciais do
“lhe”; mas não devemos inseri-los em classe pré-existente.
Perfazendo este trabalho, e esperando que tenha lançado luz sobre a questão
dos usos do pronome “lhe” na modalidade escrita formal do português,
gostaríamos de acrescentar que estudos futuros que pretendam apresentar um
quadro teórico mais consistente das funções do pronome “lhe” não podem escusar
a reflexão sobre os problemas teóricos decorrentes da concepção tradicional de
“objeto indireto”, que acarreta, entre outras coisas, a dificuldade de classificar o
“lhe”, de acordo com a função sintático-discursiva que desempenha.
No que tange à revisão do “legado” teórico da gramática tradicional, demos
a conhecer os casos em que “lhe” se aplica a substantivos [- animado], quer nos
textos literários, quer nos textos de teoria lingüística, a que nos ativemos. O
emprego de “lhe” em referência a substantivo [-animado] sinaliza senão uma
inovação da língua, pelo menos uma tendência marcante da ngua portuguesa
atual. registro desse emprego nos textos literários em que nos baseamos, que
remontam aos séculos XIX e XX; todavia, parece-nos que se tem propalado cada
vez mais no português escrito atual, levando-se em conta os exemplos colhidos da
literatura lingüística. Muitos usos de “lhe” eram notórios no português arcaico;
portanto, são bastante antigos.
Em nosso trabalho, procuramos ventilar algumas questões concernentes ao
uso do “lhe” no português escrito, em sua variedade formal; portanto, esse recorte
teórico impediu-nos de estudar a manifestação do clítico na função de objeto
direto, comum na variedade coloquial falada da língua.
Como se percebeu, não nos preocupamos com a (re)classificação dos
empregos de “lhe”, que tal tarefa deve ser imputada a outros estudos; nossa
descrição pretendeu suscitar questionamentos, incentivando a produção de outros
trabalhos – decerto mais elucidativos - que lhe sirvam de suplemento. Isso não nos
impediu, todavia, de reconhecer a multifuncionalidade de “lhe” e de enfatizar a
necessidade de rever as concepções tradicionais acerca do comportamento
gramatical e discursivo desse pronome. Qualquer proposta de classificação não se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
188
pode escusar a rever tais concepções, tampouco pode ignorar a proposição da
multifuncionalidade do pronome “lhe”, numa teoria global da interação pela
linguagem.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
189
8
Bibliografia
ALI, M. Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo:
Edições Melhoramentos, 1964.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sorvete e outras histórias coletânea
baseada nas obras Contos de aprendiz (1986) e Contos plausíveis (1992). São
Paulo: Ática, 1997.
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos coleção obra prima do autor. São
Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002
_________ Iniciação à Sintaxe do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003.
BASILIO, Margarida. Formação e classes de palavras no português do
Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed.
Lucerna, 2002.
BLOOMFIELD, Leonard. In.: Marcelo Dascal (org) Fundamentos
Metodológicos da Lingüística. vol I: Concepções Gerais da Teoria Lingüística.
Tradução Lígia M. Cavallari. São Paulo: Ed. Global Universitária, 1978, pp. 45-
60. Título original: A Set of Postulates for the Science of Language.
BUSSE, Winfried; VILELA, Mário. Gramática de Valências. Coimbra:
Almedina, 1986.
CÂMARA Jr., J. Mattoso. Dicionário de Lingüística e Gramática.
Petrópolis: Vozes, 2002.
________ Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2004.
CLIMENT, M. Bassols de. Sintaxis Histórica de la Lengua Latina.
Barcelona: Consejo superior de investigaciones científicas, 1945.
CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova Gramática do Português
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FIORIN, José Luiz. (org.) Introdução à Lingüística II: princípios de análise.
São Paulo: Contexto, 2003, pp. 96-106.
_________ Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005.
KOCH, Ingedore G. Villaça. A Inter-ação pela Linguagem. São Paulo:
Contexto, 2003.
LIMA, C.H. da Rocha. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: José Olympio Ed., 2001.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
______________ A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LOPES, Fernão. Quadros da Crônica de D. João I. Rodrigues Lapa (org.).
Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.
LYONS, John (org.). Novos Horizontes em Lingüística, Estrutura e Função
da Linguagem (134-160). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1976.
MAGNE, Pe. Augusto (ed.). A Demanda de Santo Graal, vol. 1. Rio de
Janeiro, 1955. Reprodução fac-símile de transcrição crítica do códice 2594 da
Biblioteca Nacional de Viena.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
190
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. (org.). Introdução à
Lingüística: fundamentos epistemológicos, vol. 3. São Paulo: Cortez, 2005, pp.
165-218.
NASCIMENTO, Milton do. Teoria gramatical e Mecanismos funcionais do
uso da língua. D.E.L.T.A., vol 6, nº 1, 1990, pp. 83-98.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de Usos do Português. São
Paulo: UNESP, 2003.
__________ A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Ed., 2004.
__________ BASILIO, Margarida (org.). A Delimitação das unidades
lexicais: o caso das construções com verbo suporte. Palavra, 5. Departamento
de Letras da PUC-Rio Rio de Janeiro: Grypho, 1999, pp. 98-114.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é Lingüística. São Paulo: Ed. Brasiliense,
2005.
PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ática,
2004.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SANTOS, Maria de Fátima D.H. Tradição e Funcionalidade na análise de
verbos de medida: um estudo de aspectos sintáticos-semânticos, 2002
Dissertação de Mestrado Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica,
Rio de Janeiro.
SILVA, Vera Lúcia P. P. Complementos verbais regidos de A e
transformáveis em LHE, 1974 Dissertação de Mestrado Faculdade de Letras,
Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. O Aspecto Verbal no Português: a categoria e
sua expressão. Ed. rev. Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, 1985.
VILELA, Mário. Gramática de Valências: Teoria e Aplicação. Coimbra:
Almedina, 1992.
VILELA, Mário; KOCH, Ingedore G. Villaça. Gramática da Língua
Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2001.
VOTRE, Sebastião Josué; Naro, Anthony Julius. Mecanismos Funcionais
do Uso da Língua. D.E.L.T.A., vol. 5, nº 2, 1989, pp. 169-184.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510544/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo