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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA II: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES
ESPACIAIS
ÚRSULA ANDRÉA DE ARAÚJO SILVA
CORPO E FRONTEIRA
O Diário de Samuel Fritz e a conquista do espaço amazônico
NATAL
2007
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2
ÚRSULA ANDRÉA DE ARAÚJO SILVA
CORPO E FRONTEIRA
O Diário de Samuel Fritz e a conquista do espaço amazônico
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-
Graduação em História, Área de Concentração em
História e Espaços, Linha de Pesquisa II: Cultura,
Poder e Representações Espaciais, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da
Profa. Dra. Maria Emília Monteiro Porto.
PROFA. DRA. MARIA EMÍLIA MONTEIRO PORTO
NATAL
2007
3
ÚRSULA ANDRÉA DE ARAÚJO SILVA
CORPO E FRONTEIRA
O Diário de Samuel Fritz e a conquista do espaço amazônico
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:
_________________________________________
Profa. Dra.Maria Emília Monteiro Porto
__________________________________________
Prof. Dr. Arno Wehling
________________________________________
Profa. Dra. Fátima Martins Lopes
____________________________________________
Prof. Dr. Paulo César Possamai (Suplente)
NATAL
2007
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4
A minha mãe e ao meu esposo.
5
AGRADECIMENTOS
Seria impossível listar todos os agradecimentos e contribuições diversas
que recebi durante a gestação desse trabalho e que deram uma nova
dimensão ao mesmo.
Muitas pessoas foram importantes durante esse momento da minha vida
quando passei por momentos de tribulação pessoal e acadêmica, contudo
nunca estive sozinha realmente.
Agradeço, de uma forma geral, a todos aqueles que estiveram comigo e
me auxiliaram mesmo que fosse apenas em um momento de desabafo; aos
professores que participaram de minha formação nessa nova etapa da vida
acadêmica, dentre os quais destaco os professores do Programa de Pós-
Graduação em História da UFRN, Paulo César Possamai e Fátima Martins
Lopes. O primeiro foi importantíssimo durante a reformulação do projeto não
mostrando novas possibilidades como apresentando referências que foram
utilíssimas para meu trabalho e a segunda devido ao seu conhecimento da
região e de seus cronistas teve papel semelhante e me auxiliou bastante.
Vários outros professores de outras instituições foram contatados e me
ajudaram em maior ou em menor medida, mas quero salientar aqui a
contribuição do professor Eduardo Gusmão de Quadros que também se dedica
a estudar o padre Samuel Fritz dentre outros assuntos. Destaco também o
papel importantíssimo de um grande amigo que fiz durante esse período, meu
companheiro de turma Helder Alexandre Medeiros de Macedo, pessoa
humilde, ávido pesquisador e, sobretudo humano e prestativo.
Na fronteira entre os agradecimentos institucionais e pessoais está a
minha orientadora e amiga, Maria Emília Monteiro Porto que é uma admirável
entusiasta e incentivadora incansável, responsável e co-autora de minha
produção desde meus primeiros passos como pesquisadora e que está de
todas as formas presente neste trabalho. Agradeço-lhe especialmente por ser
mais que uma orientadora, por ser compreensiva, terna, impulsionadora e
amiga.
Agradeço aos meus familiares pela torcida incessante e pelo crédito
dispensado a mim. Sou grata, sobretudo a minha mãe, Vicência Lourdes de
Araújo Silva e a minha sogra, Maria Zilneide Barbosa, mulheres admiráveis e
6
exemplos de vida e de luta, cada uma com seu estilo próprio demonstrado seu
carinho e toda confiança na minha caminhada.
Finalmente, quero tornar público meu agradecimento e reconhecimento
a Janio Gustavo Barbosa, meu esposo e historiador que como eu é apaixonado
por fazer História, por tudo que ele representa como pessoa para mim e por
todo o apoio e acolhimento que me tem prestado, pois certamente sem ele eu
não teria conseguido concluir essa etapa.
7
RESUMO
Considerando que a tradição jesuítica na qual o padre Samuel Fritz estava
integrado tem uma clara dimensão política e institucional que se revela na
iniciativa missionária colocada desde o Concílio de Trento, seu Diário é um
relato de experiência como missionário na região de Maynás transcorrendo o
período de 1686 até 1725. Em sua narrativa observa-se uma rie de dados
relativos à conquista da Amazônia, disputas entre as Coroas Ibéricas e
franceses, holandeses, ingleses, transformação da cultura e do espaço às
vésperas do Tratado de Madri. Explorarei aqui a relação entre espaço e o
homem, neste caso, o missionário através de suas práticas espaciais, pois uma
política efetiva e geométrica de controle das fronteiras foi aplicada somente a
partir de 1750 com os governos reformistas e que até então a Amazônia era
objeto de iniciativas autônomas não tendo sido até então ão prioritária das
políticas estatais concentradas como estavam nas regiões centrais (minas de
Prata) e que a ação missionária de Samuel Fritz representou naquele momento
o mais importante avanço fronteiriço para a Coroa Espanhola, coincidindo ao
fim com os limites acordados posteriormente em Madri e Santo Idelfonso,
coloco a questão de como e com quê políticas a experiência de Fritz em
Maynás pôde representar um avanço sobre esse espaço amazônico. Assim,
abordarei o problema sob três aspectos que correspondem a capítulos: o
primeiro capítulo foi dedicado à questão da política atlântica das Coroas
Ibéricas e às relações de geopolítica interna que elas criaram como o centro e
a periferia fazendo emergir uma nova ordem; no segundo capítulo estudei as
transformações espaciais causadas pelo encontro e pelas disputas entre a
ordem indígena e européia gerando uma nova organização; no terceiro
examinei os limites políticos do Estado e a emergência do corpo do missionário
como instituição, tendo como apoio a tradição e a ação missionária, e em que
medida contribuíram, ou não, para o desbravamento da fronteira leste da
América Espanhola influindo no processo de delimitação da fronteira entre
Portugal e Espanha.
Palavras-chave: Corpo. Fronteira. Amazônia. Samuel Fritz. Espaço.
8
ABSTRACT
Considering that the Jesuitical tradition which Father Samuel Fritz belonged,
has a clear political and institutional dimension that reveals itself in the
missionary initiative placed since the Trento Council, his journal is a experience
story as missionary at Maynás region during the period from 1686 until 1725. In
his narrative, a series of data related to the conquer of Amazonia, conflicts
among the Iberic Kingdoms and french, dutches and british, transformation of
culture and space close the period of the Madrid Deal. I´ll explore the men and
space relationship, in this case, the missionary in his special practice, therefore
an effective and geometrical politic for border control was only applied at 1750
with reformist governments and that Amazônia was, until now, an object of
autonomous initiatives, not being until now a priority focused state politics action
like the ones in the central regions (silver mines) and that the missionary action
of Samuel Fritz represented ant that moment represented the most important
border advance to the Spanish Kingdom, coinciding with the end of the borders
previously set in Madrid and Santo Idelfonso, I´ll put the question of how and
with which politics the experience of Fritz in Maynás could represent an
advance about Amazônia space. Then I´ll approach the problem about three
aspects that are chapters: The first one was focused to the Iberic Kingdoms
atlantic politics and the internal geopolitical relationships they created as the
centre and the border emerging a new order; in the second chapter I studied the
special transformation cause by the encounter and conflicts between the Indian
and European order generating a new organization; in the third chapter I´ll
examined the political border of the state and the emergency of the missionary
body as an institution, with the tradition and missionary action as support, or
not, to the exploration of the east border of Spanish America influencing the
delimitation process of the border between Portugal and Spain.
Keywords: Body. Border. Amazônia. Samuel Fritz. Space
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10
2. A E O IMPÉRIO: A Política Atlântica de Portugal e Espanha
.......................................................................................................................... 25
3. A CRUZ E A ESPADA: transformações espaciais e o nascimento de um
novo espaço ................................................................................................... 50
4. MURALHAS DO SERTÃO: fronteiras missionais e a corporeidade como
instituição de fronteira ...................................................................................74
5. CONCLUSÃO ............................................................................................ 102
REFERÊNCIAS...............................................................................................106
ANEXO A.........................................................................................................118
10
INTRODUÇÃO
Muito se tem falado atualmente sobre a questão da internacionalização
da Amazônia. Considerada patrimônio mundial da humanidade, alguns
argumentam que essa floresta não deveria ser administrada por governos
nacionais, mas sim por organizações internacionais que melhor saberiam
explorar todo o seu potencial e beneficiar o conjunto da humanidade através da
utilização de seus recursos naturais. O grau de persuasão dessa assertiva é
forte, mas são muitos os interesses que regem esse assunto. Em um debate
ocorrido nos Estados Unidos, o ex-ministro Cristóvam Buarque foi questionado
sobre a internacionalização da Amazônia e solicitado que tratasse a questão
sob uma ótica humanista e não como brasileiro. Sua resposta
1
foi muito
perspicaz e faz pensar a questão sob novos aspectos, pois evidencia a
impossibilidade de se colocar sobre a questão sem nacionalidade e questiona a
internacionalização de outros patrimônios simbólicos como o Museu do Louvré.
O posicionamento do governo brasileiro, se considerarmos as
discussões promovidas pela atual ministra do Meio Ambiente, Marina Silva
2
,
tem sido positivo quanto a essa questão, pois ela acredita que o Estado
brasileiro é capaz de prover as questões locais e internacionais relativas à
soberania desse espaço. Isso seria possível a partir de uma conscientização,
através da educação, das comunidades locais e da sociedade brasileira em
geral, aliado a um conjunto de políticas públicas que visem garantir o
desenvolvimento sustentável desta região, assegurando assim sua
preservação e a soberania nacional.
O estudo sobre esse espaço impõe-se contemporaneamente em razão
da discussão a partir da qual a Amazônia deixaria de ser um território
exclusivamente brasileiro para se tornar um espaço internacional do qual todas
as nações poderiam beneficiar-se e intervir em questões de cunho político,
econômico, ambiental. Porém sua própria definição é em si internacional já que
abrange ou foi dividida em porções entre cinco países sul-americanos.
1
http://www.ecoturismobrasil.com.br/internacionalizacao_da_amazonia.htm.
2
http://www.unb.br/brasilemquestao/2002/noticias_amazon.html.
11
Para esse trabalho o optamos por uma definição jurisdicional atual da
Amazônia, pois esse marco não era uma realidade naquela ocasião. Nossa
Amazônia é aquela apresentada por nosso interlocutor, o Samuel Fritz, que
está localizada nas imediações dos rios Solimões e Napo, atravessando o atual
território brasileiro e comunicando-se com o boliviano e o peruano.
A internacionalização da Amazônia poderia ser considerada como um
dos últimos mitos projetados sobre a Amazônia que foi alvo, no passado, do
fascínio potencializado pelos mitos com as lendas das Amazonas, do El
Dorado, do Paraíso Terreal, do País da Canela. Aos aventureiros e
conquistadores que viviam na realidade a impossibilidade de concretizar o mito
que os movia a viagens longas e perigosas restou o exotismo da cultura
amazônica que despertou curiosidades e pesquisas constituindo gabinetes
para esse fim, especialmente no século XIX.
3
Podemos concluir, então, que a
intervenção internacional na Amazônia é uma lógica que remonta à época
colonial. Essa intervenção ocorria também a nível local, pois o Império Inca
manteve diversas populações amazônicos como reinos tributários apesar da
barreira natural imposta pela Cordilheira dos Andes, assim o contato entre os
Incas e os índios amazônicos era escasso a despeito destes últimos
guardarem características herdadas dos Incas.
4
Após a dominação desse Império e devido aos mitos que rodeavam o
imaginário sobre a Amazônia, que na época moderna e pelas resoluções do
Tratado de Tordesilhas era uma jurisdição espanhola em quase toda sua
extensão, os espanhóis não pouparam esforços para conquistá-la, que ela
era considerada parte do Império Inca e, portanto, possessão espanhola.
Então, iniciava-se a penetração espanhola na Amazônia devido ao direito de
posse territorial e pelo impulso exercido pelos mitos.
O número de indígenas ali era enorme e sua diversidade também era
bastante significativa. Muitos ofereceram resistência à dominação, o que
dificultou a criação e a imposição das instituições de colonização e controle
usadas em regiões centrais.
5
A solução inicial era enviar missionários para
3
AMÓDIO, Emanuele. La antropologia selvage. Conocimento Del outro americano y control imperial en
la Espana Moderna. In: Debate y Perspectivas. n. 2, sept.. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2000.
4
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
5
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. p. 323.
12
Amazônia assim como foi feito em outras regiões como o México, os Andes e
outros para pacificar esses índios e posteriormente ir implantando as estruturas
coloniais, porém a diversidade e quantidade de índios aliada ao fato de
estarem localizados numa zona e composta de uma cultura periférica exigiu
métodos diferentes dos aplicados às regiões centrais que estamos
considerando aqui prioritariamente no âmbito econômico. Dessa forma, a
política de descaso com localidades periféricas prevaleceu e a Amazônia
continuou sendo precariamente atendida por poucos missionários que tinham
que dividir atenções em múltiplas aldeias.
Avançando na costa litorânea brasileira estavam os portugueses e os
luso-brasileiros que já haviam iniciado o empreendimento da conquista da
costa leste-oeste. Partiram da Paraíba em 1580, passando pelo Rio Grande do
Norte, seguiram até alcançar o Maranhão e daí avançaram ainda mais até
conquistar o território de Maynás. Não queremos dizer aqui que esse fosse um
projeto premeditado para alcançar a região de Maynás, porém era preciso
conquistar esse espaço para continuar seguindo na conquista até atingir as
minas de Potosí ou, ao menos, um caminho até lá. Não podemos negar que a
resistência imposta ali fez desse espaço um obstáculo importante a ser
transposto.
Nesse contexto, é importante salientar que esse avanço pelo litoral
brasileiro em direção à Amazônia ocorreu em razão da defesa das incursões
estrangeiras e pela atração que exercia nos luso-brasileiros o contrabando que
cercava as minas espanholas. A expedição de Pedro Teixeira foi emblemática
dessa conjuntura porque ele atravessou o território amazônico e tomou posse
dessa faixa de terra para a Coroa Portuguesa em flagrante desobediência ao
Tratado de Tordesilhas e fazendo valer o Uti Possidetis que foi reivindicado
posteriormente. Para legitimar seu ato, lavrou uma Ata e chantou um marco na
região que de acordo com os luso-brasileiros foi fixado na província dos
Omágua. Esse fato gerou muita controvérsia e foi o pivô de uma longa
discussão entre Samuel Fritz, autoridades centrais e os luso-brasileiros.
6
Esse é um dos momentos do processo de ocupação no qual se destaca
a atuação dos missionários. Eles eram integrantes necessários das expedições
6
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, 1917. p. 361 e
366.
13
que objetivavam a descoberta de novas terras e a conversão dos que as
habitavam, pois Igreja e Estado corroboravam dos mesmos interesses nesse
período. Mas não era só Portugal que atuava assim, essa era uma prática
característica das políticas monárquicas. Várias ordens religiosas como
franciscanos, jesuítas e carmelitas
7
foram mobilizadas pelo Governo do Estado
do Maranhão e Grão-Pará para promover a ocupação do Amazonas e
afluentes, portanto, as missões estavam a serviço da Igreja e do Estado
simultaneamente, contudo sua atuação não era autônoma, dependia de cartas
régias.
É esse ambiente de disputas representado pela missão e receptáculo do
corpo material e simbólico do missionário, ou seja, o corpo físico representando
a materialidade da realidade vivenciada com todas as fragilidades humanas
possíveis, ao mesmo tempo em que esse corpo significava simbolicamente as
instituições Igreja e Estado que o chegavam ali senão através do religioso,
que será o locus do nosso estudo percorrendo os anos de 1686 até 1725. Esse
período corresponde à cronologia do Diário de Samuel Fritz e ao momento
posterior à União Ibérica quando ocorria a reorganização espacial no território
luso-brasileiro.
A Amazônia era uma região periférica
8
aos Reinos, mas era lá assim
como na região Sul
9
, no Mato Grosso
10
e em Chiquitos que se dava o encontro
das experiências bélicas portuguesas, espanholas e indígenas, mediadas pela
lógica missional. A missão é um locus privilegiado de observação por se
configurar como uma zona de contato.
11
Nessas zonas de contato ocorrem
trocas culturais de toda ordem, são lugares onde culturas e trajetórias culturais
distintas confluem e convivem, tendo sua origem na invasão ou na violência.
7
MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Os principais grupos missionários que atuaram na Amazônia
brasileira entre 1607 e 1759. FRAGOSO, Hugo. A era missionária (1686-1759). In: HOORNAERT,
Eduardo (coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992.
8
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. GIRALDO,
Manuel Lucena, FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe. Debate y Perspectivas. n. 2, sept.. Madrid:
Fundación Mapfre Tavera, 2000.
9
Nessa região os conflitos entre os índios Guaranis da região de Sete Povos das Missões e as tropas luso-
brasileiras foram denominados como Guerra Guaranítica.
10
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções.o Paulo: Brasiliense, 2000.
11
PRATT, Mary Louise. Apocalipsis en los Andes: zonas de contacto y lucha por el poder interpretativo.
Conferência pronunciada no Banco interamericano de Desarollo Washington. 29 de março de 1996,
n°15. Centro Cultural Del Bid.p. 04-5.
14
Estamos aqui considerando as missões de Maynás como uma zona de contato
na qual o universo indígena envolveu-se e dialogou com o universo europeu.
Era um núcleo onde podemos visualizar a confluência da política
atlântica, a transformação da cultura e os limites das políticas estatais, algo que
Samuel Fritz ajudar-nos-á a compreender.
Esse conjunto de dados e questões apresentadas faz remeter à questão
do espaço e suas relações tanto com as disputas fronteiriças de caráter
institucional, como com as fronteiras culturais.
A construção dos espaços tem sido, ao longo da História, tratada como
um processo natural, ou seja, o espaço era visto exclusivamente como um
palco ou um pano de fundo para que transcorressem os fatos e não era
concebido como produto das ações humanas. Contudo, é possível perceber
através dos novos estudos que essa construção é fruto de práticas humanas,
constituindo-se como um ato cultural. Estudos históricos e a aproximação e
utilização de categorias da Geografia levaram estudiosos a questionarem o
tema e a elaborarem novos conceitos que se desdobram do conceito de
espaço ou se ligam a ele de alguma forma. Para alcançar essa compreensão
utilizo os estudos de pensadores como Michel de Certeau
12
, Gilles Deleuze e
Félix Guatarri
13
e Sérgio Buarque de Holanda
14
que problematizaram a noção
naturalizada de espaço e o trataram como uma construção cultural produzido
pela interação entre homem e natureza. Certeau apresentou uma diferenciação
entre lugar e espaço, concebendo o lugar como qualquer terreno que ainda não
sofreu ação humana, ainda não foi praticado. Ao contrário, o espaço define-se
pela ão humana, ele é construído culturalmente. Mas precisamos estar
atentos para não excluir nenhuma possibilidade de espaço, pois habitualmente
associa-se esse termo à terra e aqui entendemos que a escrita, a música e
outros objetos também podem ser considerados espaços. Gilles Deleuze e
Félix Guatarri são filósofos contemporâneos que introduziram as noções de
espaço liso e estriado que são conceitos totalmente interligados e dependentes
12
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Vozes,
1994.
13
DELEUZE, Gilles, GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34,
1997.
14
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. o Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_____. Raízes do Brasil. o Paulo: Companhia das Letras, 2003. _____. Monções. São Paulo:
Brasiliense, 2000.
15
da utilização humana do espaço. Holanda dedicou vários estudos à
problemática espacial enfocando a questão da fronteira e a interiorização do
território brasileiro.
A discussão sobre espaço remete ao conceito de território que também
foi reelaborado. Na definição do geógrafo Antonio Carlos Robert Moraes
território significa a relação de uma sociedade com seu espaço, humanizado
pelas relações sociais. “A constituição de um território é, assim, um processo
cumulativo, a cada momento um resultado e uma possibilidade um contínuo
em movimento.”
15
Maria Emília Monteiro Porto considera o espaço como o
processo de sua produção com formas políticas e culturais e o território
expressa a posse institucional reconhecida pela diplomacia internacional.
16
Pilar Ponce Leiva entende que para controlar um território é preciso marcar
fronteiras geográficas e estabelecer áreas de influência política, cultural e
econômica que em muitos casos supera amplamente as linhas fronteiriças, e
reivindicá-las como exclusivas ante possíveis intrusos.
17
Era o que ocorria nas
cerimônias de posse que eram consideradas pelos conquistadores como
demarcadores simbólicos fortalecidos pelos marcos de pedra ou fixação de
bandeiras frente a outros que chegassem depois. Não estamos aqui falando
ainda de demarcação, pois durante o Período Colonial essa era uma tarefa
quase que impossível de cumprir sendo ao fim o homem o demarcador do
espaço.
18
Assim, o território seria algo institucionalizado, no caso da Amazônia,
seja pela diplomacia européia, seja pelas autoridades indígenas.
Nessa linha revitalizou-se o tema da fronteira que não é nenhuma
novidade para os estudos históricos. A fronteira tem sido abordada sob
diversos ângulos, desde o político até o cultural. Mas esse assunto não está
esgotado, pois à medida que esses estudos progressivamente problematizam a
fronteira, apontam uma série de novos sentidos. O clássico estudo de
15
MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial
brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 17.
16
PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical. Pós-doutorado, Madri, 2006.
17
LEIVA, Pilar Ponce, “Los cuestionarios oficiales: ¿un sistema de control del espacio?”. Francisco de
Solano, ed. Cuestionarios para la formación de las Relaciones Geográficas de Indias. S. XVI-XIX.
Col. Tierra Nueva e Cielo Nuevo, nº 25. Madrid: CSIC, 1988. In: Ibid.
18
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
16
Frederich Turner
19
que trata da colonização dos Estados Unidos e sua
expansão para o Oeste tem sido bastante utilizado e revisitado, servindo como
modelo para estudos atualizados; a Revista de Índias dedicou um volume ao
assunto focando a América e tratando temas como trocas culturais nas
fronteiras, fronteiras missonais, entre outros; Arthur Cézar Ferreira Reis
20
estudou a temática fronteiriça relacionada à Amazônia, entre outros estudos.
Seu papel para a ampliação da compreensão do processo de ocupação na
Amazônia é importantíssimo.
A comemoração do V Centenário do Encontro de Culturas oportunizou a
emergência de um volume considerável de estudos que não somente
contestam a visão imperialista e tradicional
21
com que o evento do encontro
vinha sendo tratado, como produziram uma revisão dos temas e a releitura de
fontes usadas. Utilizamos essa expressão corroborando com os argumentos
oferecidos por Arno Wehling
22
e colocando-nos frente à visão imperial desse
período. Esse movimento não findou e gerou uma tendência atual de revisão
do processo de formação das fronteiras entre as potências européias,
especialmente as disputas entre Portugal e Espanha expressas nos
tratados de
Tordesilhas e Madrid. Esses estudos têm utilizado a perspectiva comparada e
valorizam a relação entre centro e periferia entendida aqui mais numa
perspectiva econômica da relação entre colônias e Metrópole, como a
aplicação e recepção das políticas ibéricas no espaço colonial, oferecendo uma
melhor análise sobre o conjunto do processo. Nesse sentido apontamos os
trabalhos de Manuel Lucena Giraldo e Felipe Fernandez-Armesto
23
que
trabalham as questões relativas ao centro e à periferia e vão além ao avaliarem
aspectos culturais envolvidos no processo.
Além da abordagem clássica sobre fronteira como um limite geográfico,
temos novos estudos que apresentam concepções inovadoras sobre o tema
19
TURNER, Frederick J. El significado de la frontera en la Historia Americana. p. 10. In: SOLANO,
Francisco de. BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera. Madrid:
CSIC, 1991.
20
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Limites e demarcações. Secult, 1993.
21
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. De Varnhagen a FHC. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2002.
22
WEHLING, Arno. “A propósito do “encontro de culturas”: princípios e fundamentos jurídicos em
confronto na América quinhentista”, Lisboa, Actas do IV Congresso das Academias da História Ibero-
americanas. 1986, p. 81-94.
23
GIRALDO, Manuel Lucena. Debate y Perspectivas. n. 2, sept.. Madrid: Fundación Mapfre Tavera,
2000.
17
como o das fronteiras missionais. Diante da impossibilidade de controle estatal
sobre um marco indefinido, traçado ficticiamente e impraticável na realidade tal
como o fora a linha de Tordesilhas, restava apenas as possibilidades que a
ação das instituições missionárias representavam, garantindo a conquista de
uma fronteira sobre a qual posteriormente um limite será estabelecido, tal como
o seria em 1750 e 1777, a linha de Madrid e de Santo Ildefonso. Nesse sentido,
entre outros trabalhos, queremos destacar artigos de Maria Emília Monteiro
Porto sobre a temática das fronteiras jesuíticas no Rio Grande colonial
24
, nos
quais a partir de documentos sobre a capitania percebe a condição de fronteira
associada aos aspectos bélicos e de trocas culturais. Num estudo
contemporâneo ela examina as fronteiras culturais em bairros das periferias de
Natal, onde a partir de entrevistas e questionários observa o fortalecimento de
uma fronteira cultural.
25
Outro estudo visualiza o missionário na nova terra,
nesse caso a capitania do Rio Grande, todo o processo de adaptação e os
conflitos materiais e espirituais próprios dessa vivência.
26
Os trabalhos de Mário Cesáreo
27
também evidenciam a vivência do
missionário em território novo através de sua colocação corporal e estratégias
discursivas. Seu estudo perpassa o século XVI tendo como cenário a América
com exceção do exemplo de Francisco Xavier que peregrina de Roma à
China e compreende quatro personagens que estão divididos em duas
categorias: martírio e beatitude. Lucena e Francisco Xavier estão inseridos no
primeiro conceito, enquanto Mendieta e Sandoval pertencem à lógica do
segundo. Cesáreo é apresentado aqui como modelo fundamental para nosso
trabalho, oferecendo conceitos intensamente instigantes para nossa questão.
Pensando a condição de fronteira numa região periférica como era a Amazônia
observa-se a emergência do corpo como instituição fronteiriça tendo em vista
que o poder do Estado estava personificado pelos missionários, seu corpo e
dos índios sob seu controle que se configuravam como verdadeiras barreiras à
24
PORTO, Maria Emília Monteiro. A configuração da identidade regional no Rio Grande do Norte . In:
Oscar Federico Bauchwitz. (Org.). Café Filosófico. Natal: Argos Editora, 2001, p. 113-130.
25
_____. Fronteiras urbanas e representação: espaço e violência em Felipe Camarão e Bom Pastor. In:
Gilvan Ventura da Silva; Anselmo Laghi Laranja; Sebastião Pimentel Franco. (Org.). Exclusão social,
violência e identidade. 1 ed. Vitória: Flor&Cultura, 2004, v. , p. 184-194.
26
_____. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_ corpo_colonial.htm.
27
CESÁREO, Mario. Menu y emplazamientos de la corporalidad barroca”, In: M.Moraña, Relecturas
del Barroco de Indias. Hanover, Ediciones del Norte. 1994 e CESÁREO, Mario. Cruzados, mártires
e beatos. Emplazamientos del cuerpo colonial. Purdue Research Foundation/USA. 1995.
18
cobiça de outros, que ficou conhecido pela expressão “muralhas do sertão”
28
a
partir do excelente trabalho de Nádia Farage sobre a região do Rio Branco.
Existem outros trabalhos importantes que também evidenciam o corpo
sob óticas diversas. É o caso dos trabalhos como o de Jean-Claude Schmitt
29
que apresenta um estudo sobre a tradição intelectual ocidental por meio dos
gestos e modelos de comportamento; o de Peter Burke
30
que pesquisa o
processo de fabricação, circulação e recepção da imagem do rei Luís XIV
sendo o corpo o fundamento dessa ação; o de Ernest H. Kantorowicz
31
que
trabalha a imagem e a corporeidade real dividida em suas duas funções, uma
privada e outra pública; o de Marc Bloch com a imagem real santificada; o de
Norbert Elias
32
que estuda o comportamento social durante o Antigo Regime; o
de Eugen Weber ocupando-se das preocupações com a higiene corporal e os
cuidados médicos
33
; o de Michel Foucault
34
aplicando uma análise acerca do
discurso médico e religioso acerca do corpo doente; o de Mary Del Priore
35
fazendo a analogia do território com o corpo; sobre as concepções pagãs do
corpo e as influências da Igreja sobre ele durante a Idade Média
temos
Georges Duby
36
, Philippe Ariès
37
, Michelle Perrot
38
, José Rivair Macedo
39
; o de
Giorgio Agamben
40
tratando sobre as expressões do corpo e José Gil
41
trabalhando a questão da géstica e algumas repressões que o impostas ao
28
FARAGE, Nadia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. 1a.
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra / ANPOCS, 1991.
29
SCHMITT, J. C. (1995) “A moral dos gestos”, In: SANT’ANNA, Denise B. de (org.). Políticas do
Corpo. o Paulo, Estação Liberdade, p.141-157.
30
BURKE, Peter. A fabricação do rei. São Paulo: Jorge Zahar, 1994. _____. História do corpo. In:
_____. A escrita da História.o Paulo: UNESP, 1992.
31
KANTOROWICZ, Ernest. Os dois corpos do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
32
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro, 1994. _____ A
sociedade de corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
33
WEBER, Eugen. França fin-de-siècle. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
34
FOUCAULT. Os anormais. o Paulo: Martins Fontes, 2002.
35
DEL PRIORE, Mary. Imagens da Terra fêmea. VAINFAS, Ronaldo. América em tempo de
conquista.o Paulo: Jorge Zahar, 1992.
36
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios. 1 ed. o Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
37
AIRÈS, Philippe, DUBY, Georges. História da Vida Privada I. Do Império Romano ao Ano Mil. 11.
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
38
DUBY, Georges, PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. 476 ed. Edições
Aprofundamentos: Coleção História das Mulheres, 1990, v. 2.
39
MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 4 ed. .São Paulo: Contexto, 1999. (Repensando a
História)
40
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. Da UFMG,
2002.
41
GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997.
19
corpo culturalmente; Merleau-Ponty discute a existência humana a partir da
relação do homem com seu corpo, como condição de sua própria existência.
Outra noção importante que norteará essa pesquisa é o conceito de
guerra que é uma constante nos relatos dos cronistas e missionários,
juntamente com a descrição das populações nativas e a recorrência aos mitos
fundadores
42
no primeiro momento de contato. A narrativa de guerra que
fundou o relato histórico
43
acompanha a História sempre, pois é uma
característica humana a tentativa de subjugar e impor força e ideais. A questão
da guerra no período colonial é um assunto que dispõe de muitas fontes para
análise, apesar de, na maioria das vezes, vermos restritamente descrições de
ações e imagens negativas muito fortes sobre a questão. Devemos considerar
que o próprio ato de conquistar implica, em certa medida, em promover guerra,
dado que aqueles indivíduos passíveis de serem conquistados oferecem,
quase sempre, resistência.
Vários estudos têm colocado o indígena como protagonista histórico,
retirando-o do lugar de vítima do sistema e o mostrando como um agente ativo
no processo. Em 1992, uma síntese bastante rica foi organizada por Manuela
Carneiro da Cunha
44
que compreende uma série de artigos, dos quais mais da
metade é dedicada aos índios amazônicos, além de abordar a Pré-História, a
Arqueologia e a legislação indigenista. Um artigo especificamente coincide com
os marcos espaciais e temporais desse trabalho, trata-se do estudo de Antônio
Porro intitulado “História Indígena do Alto e Médio Amazonas Séculos XVI a
XVIII”
45
, que investiga desde o contato entre nativos e europeus até as disputas
de poder entre as Ordens religiosas. John Hemming também se dedicou a esse
estudo em Red Gold
46
onde oferece dados riquíssimos sobre as populações
indígenas americanas. Stuart B. Schwartz e James Lochkart
47
oferecem um
estudo bastante interessante numa perspectiva comparada entre as colônias
portuguesa e espanhola onde obviamente os índios ocuparam parte importante
42
QUADROS, Eduardo Gusmão de. Embaixadores de dois reinos. Missionários e fronteiras na região
amazônico-caribenha. Tese de Doutoramento. UNB, 2005.
43
TOYNBEE, Arnold. Guerra e civilização. Lisboa: Editorial Presença, 1963. Coleção Perspectivas.
44
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
45
PORRO, Antonio. História Indígena do Alto e Médio Amazonas – Séculos XVI a XVIII. In: Ibid.
46
HEMMING, Jonh. Red Gold. London : Macmillan, 1978.
47
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
20
nesse estudo, haja vista seu valor para o contexto colonial. Fátima Martins
Lopes
48
também tem se debruçado sobre a questão indígena procurando
entendê-la na sua herança cultural e como produto da convivência com os
colonizadores. Abordando a guerra indígena existe um interessante artigo de
autoria de Carlos Fausto em que mostra a forma e o sentido da guerra na
sociedade indígena.
49
Na mesma perspectiva de desconstrução da antiga visão
dos vencidos está o antropólogo Pierre Clastres que se coloca frente à
tendência contemporânea dos estudos etnográficos de retirar o aspecto
violento do universo cultural indígena demonstrando que, ao contrário, havia
um grande gosto pela guerra, oferecendo inclusive o estereótipo do índio como
um ser-para-a-guerra.
50
Não é possível negar que as guerras aconteciam e
eram uma prática indígena anterior ao contato com os brancos que foi, com
esse contato, reformulando-se e incorporando novos saberes e estratégias,
para ambos.
Com relação ao encontro de culturas, alguns conceitos foram elaborados
para denominar esse contato e convivência. Aculturação talvez seja o conceito
mais popular relacionado ao tema e veio sendo largamente trabalhado
significando a modificação cultural dos indígenas. Conceitos como
deculturação
51
e desculturação
52
aparecem na historiografia e foram
trabalhados por outros autores, mas são sinônimos de aculturação. Com a
renovação dos estudos históricos observou-se que esse contato não foi tão
estático, não se restringia a uma aquisição dos valores europeus pelos nativos,
mas sim de uma interculturação
53
que quer indicar a troca entre europeus e
indígenas e a convivência e o conseqüente aprendizado decorrido desse
processo, o que não retira o aspecto violento do encontro, não o suaviza, mas
o coloca em novos marcos, certas vezes difíceis de admitir. Ainda pensando o
48
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande
do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte, 2003.
49
FAUSTO, Carlos. DA INIMIZADE. Forma e simbolismo da guerra indígena. In: NOVAES, Adauto
(org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
50
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. Pesquisas de antropologia política. Editora Cosac e
Naify. 2004. p. 233.
51
RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da Amazônia. Da soberania difusa à
soberania restrita. Brasília: Senado Federal, 2005.
52
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
53
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. “Los imperios en su contexto global, c. 1500- c. 1800”. Debate y
Perspectivas. n. 2, sept.. Madrid: Fundación Mapfre Tavera, 2000, p. 27-46.
21
encontro de culturas temos o conceito de mestiçagem
54
que concerne mais
especificamente aos aspectos biológicos, o que não exclui o aspecto cultural,
mesmo porque também se inclui nessa classificação, e que ocorreu
largamente, principalmente pelo déficit de mulheres brancas na Colônia e a
grande disponibilidade de mulheres indígenas.
Como um último ponto apresentamos um conceito que permeia toda a
discussão posta aqui que é o de civilização. Esse conceito surgiu basicamente
para se opor à idéia de barbárie, com uma conotação de estágio superior
técnica e culturalmente. Para Fernand Braudel
55
toda civilização está
assentada numa economia, num espaço, num aparato tecnológico e numa
mentalidade. Essa noção de civilização esmuito próxima a de sociedade, de
acúmulo de bens culturais através dos intercâmbios culturais e migrações. Na
medida em que processo civilizatório ocorre, redistribui-se o espaço, ele é
marcado, individualizado, restringido e, ao mesmo tempo, abre-se um leque de
possibilidades de melhorias ou evoluções. Um espaço pode apresentar
vantagens e desvantagens para ser palco das trocas culturais dependendo de
sua posição geográfica, das suas riquezas ou deficiências naturais.
Todas as questões apresentadas sobre a internacionalização da
Amazônia, o papel dos mitos, a construção dos espaços e territórios e o
processo de formação das fronteiras, o encontro de culturas ou interculturação
tendo a guerra como fundamento do relato histórico e sua forma e sentido nas
sociedades indígenas, desconstruindo a visão dos vencidos e, por fim, a
emergência do corpo como instituição fronteiriça, podem ser aplicadas ao caso
da Amazônia.
Alguns desses pontos podem ser observados na fonte que estudamos
nesse trabalho. Trata-se do Diário do padre Samuel Fritz que nasceu na
Bohemia (Áustria) em 1654 numa família nobre. Aos 19 anos foi aceito para
ingressar em um dos Colégios da Companhia de Jesus. Nosso padre resume
sua experiência na região de Maynás em seu Diário apresenta-se em seu
discurso como um religioso preocupado com as almas a salvar, embora não
deixe de empreender uma defesa da Coroa, pois estava ali a serviço da
54
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
55
BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
22
Espanha e entrando em confronto com as tropas portuguesas. Podemos ali
observar a guerra e disputas pelo espaço, as ações luso-brasileiras,
espanholas, indígenas e missionais. Esse Diário é uma fonte pouco explorada
em sua totalidade, mas por fornecer dados importantes sobre a inserção de
inúmeras aldeias indígenas à sociedade colonial e sobre o embate diplomático
envolvendo as Coroas Ibéricas tem sido referência nos estudos sobre os
conflitos de fronteira entre Portugal e Espanha, desde os mais tradicionais até
mais recentes, tais como os de Reis, Cortesão, Antonio Porro e Lucena
Giraldo.
Cotejamos duas versões disponíveis: uma de Pablo Maroni
56
sendo
parte da obra Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de
las relaciones de los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740), publicada em
Iquitos, Peru pelo Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana e Centro de
Estudios Teológicos de la Amazonía em 1988
e outra de Rodolfo Garcia
57
que
está publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1917.
Além do Diário o padre produziu um mapa
58
que traçou contendo os territórios
que havia conquistado para a Coroa de Espanha, porém ele não será
trabalhado nesse estudo.
A compilação produzida por Pablo Maroni é mais extensa e detalhada,
destacando o caráter hagiográfico do padre e sua atuação diplomática,
apresenta aspectos de interculturação não explorados pela outra versão. A
versão que Rodolfo Garcia escreveu é uma tradução do Diário para a revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) na qual reconhece a
importância da fonte por narrar a inserção dos índios amazônicos na sociedade
colonial e a disputa territorial operada pelos luso-brasileiros e espanhóis,
apresenta uma longa introdução e um estudo historiográfico.
Considerando tudo o que foi dito, os limites que se apresentam à
compreensão da conquista da Amazônia visto que sua história foi contada
centrando-se nos grandes nomes, na política dos Impérios Ibéricos ou na visão
dos vencidos centrada na derrota total de índios e mestiços e que autores
56
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de lãs relaciones de
los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). Iquitos (Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía
Peruana; Centro de Estudios Teológicos de la Amazonía, 1988.
57
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, 1917.
58
A imagem do mapa que consta na Biblioteca de Quito está representada nos anexos A deste trabalho.
23
como Hespanha, Bicalho, Fragoso e outros vêm esforçando-se por demonstrar
os limites dos impérios, podemos explorar a relação entre missionário e esse
espaço que ele ocupava a partir dessa variante representada pelas
considerações de que existiam outras institucionalidades presentes na luta pelo
espaço e que relações podemos estabelecer entre corpos e instituições.
Pretendemos realizar tal pesquisa através de um estudo da bibliografia
sobre a época moderna no contexto da expansão da política atlântica até a
Amazônia conectando-a com uma análise do discurso
59
de Samuel Fritz em
seu Diário. Levamos em conta o trabalho de Michel Foucault em “A ordem do
discurso” que induz a atentar para questões como as interdições do discurso, o
compromisso do autor com a instituição a qual pertence, a finalidade do escrito,
os sistemas de exclusão, os “procedimentos internos” do discurso, a produção
do mesmo e os métodos, propriamente, do discurso. Ainda na perspectiva da
análise do discurso utilizaremos duas obras de Eni Orlandi, são elas: “Análise
de Discurso: princípios e procedimentos”
60
e “Discurso e Texto: formulação e
circulação dos sentidos”
61
nesses trabalhos o autor demonstra o processo de
análise e os possíveis enganos que podem ocorrer caso detalhes sejam
esquecidos durante o método.
Exploraremos a problemática sob três hipóteses: as hierarquias que
compõem a organização do espaço no desenvolvimento da política atlântica
possibilitam emergir novas institucionalidades; nos encontros inter-étnicos
formas políticas complexas colocam-se num jogo que determina as
transformações espaciais; nas fronteiras radicais ocorre o obscurecimento da
institucionalidade estatal possibilitando a emergência do corpo como
instituição. Abordaremos o problema sob três aspectos: o primeiro capítulo foi
dedicado à questão da política atlântica das Coroas Ibéricas e às relações de
geopolítica interna que elas criaram como o centro e a periferia fazendo
emergir uma nova ordem; no segundo capítulo estudarei as transformações
espaciais causadas pelo encontro e pelas disputas entre a ordem indígena e
européia gerando uma nova organização; no terceiro examinarei os limites
59
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2
de dezembro de 1970. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola. 2001.
60
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes. 6. ed. 2005.
61
________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes. 2. ed. 2005.
24
políticos do Estado e a emergência do corpo do missionário como instituição,
tendo como apoio a tradição e a ação missionária, e em que medida
contribuíram, ou não, para o desbravamento da fronteira leste da
América
Espanhola influindo no processo de delimitação da fronteira entre Portugal e
Espanha.
Por fim destacamos que toda essa conjuntura foi vivenciada nos moldes
da conquista através da transposição de fronteiras, fossem elas espaciais,
culturais ou religiosas. Esse movimento na Colônia tornava-se bastante
peculiar pela autonomia que os agentes conquistavam e nesse contexto o
corpo é o veículo pelo qual as ações ocorrem. É ele a última e a única
possibilidade disponível para alcançar os objetivos, o que oferece uma
dimensão muito radical a essa vivência de fronteira.
Dessa forma, passamos à primeira parte da questão na qual
discutiremos a política atlântica promovida por Espanha e Portugal em relação
as suas colônias, focalizando a América.
25
2. A FÉ E O IMPÉRIO: A Política Atlântica de Portugal e Espanha
Esse capítulo está dedicado a estudar as diretrizes da política atlântica
praticada pelos reinos ibéricos com relação a suas colônias.
Entendemos por política atlântica o contexto inicialmente europeu de
disputas de mercados internacionais decidido nas rotas do comércio atlântico.
O conjunto de ações desenvolvidas pelas metrópoles para suas colônias gerou
uma rede de relações complexa na qual o mundo americano acabou por se
integrar abarcando toda a diversidade de rotas, gentes e idéias que circulavam
por essas águas que uniam Impérios europeus e sociedades ultramarinas.
Iniciarei a explanação com uma breve caracterização da sociedade
ibérica. Em seguida trataremos os principais aspectos da política atlântica
como a expansão marítima, a guerra, o papel dos ameríndios e o
estabelecimento de centros e periferias coloniais.
A partir do estudo produzido por Stuart B. Schwartz e James Lockhart
62
pudemos concluir que Portugal e Espanha possuíam muitas características
culturais comuns. Constituíam-se de vários reinos e idiomas, mas tinham uma
experiência cultural compartilhada, principalmente na forma de organização. Os
ibéricos eram muito ligados à província de origem e à família. Apesar das
propriedades rurais tinham a cidade como centro para a organização. Ali se
localizavam os órgãos administrativos, as residências dos proprietários
abastados onde funcionavam os grupamentos funcionais.
O contato entre os ibéricos era uma prática antiga e se fazia também a
nível institucional através de laços matrimoniais entre as casas dinásticas.
Rafael Valladares, num estudo sobre o período da União das Coroas Ibéricas
mostra que o discurso das rivalidades absolutas entre ibéricos é frágil e
equivocado.
63
Mas a imagem de impérios isolados permaneceu e representou
na historiografia da Restauração em Portugal o mito da passividade e
inflexibilidade dos espanhóis e do vigor e plasticidade portuguesa.
62
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
63
VALLADARES, Rafael.“Brasil: de la unión de coronas a la crisis de Sacramento”, In: Acuarela de
Brasil, 500 años después. Seis ensayos sobre la realidad histórica y económica brasileña. Salamanca:
Ediciones Univerisidad de Salamanca, 2000. p. 24-36.
26
A instituição da escravidão era bastante importante para essa
sociedade, pois possuir escravos implicava distinção social. Receber o nome
da família a qual pertencia demonstrava um bom nível de relacionamento entre
senhores e escravos; seus afazeres relacionavam-se às tarefas domésticas,
mas também estavam envolvidos na produção de riquezas. Quanto ao
governo, os portugueses centralizaram o poder muito precocemente desde o
século XIV e o volume de suas leis era impressionante.
Todo o ideal de mudança da época moderna esteve assentado sob a
égide do mercantilismo. Tratou-se de um conjunto de idéias e práticas
econômicas adotadas pelas monarquias absolutas dominantes na Europa entre
os séculos XV e XVIII, fase correspondente à transição do feudalismo ao
capitalismo, portanto, à era de acumulação originária do capital, desenvolvendo
a política econômica do capitalismo comercial. Caracterizou-se pelo
protecionismo alfandegário, desenvolvimento das marinhas mercantes,
aperfeiçoamento das instalações, formação de companhias de navegação e
busca de uma balança comercial favorável. Na Europa Ocidental, o
mercantilismo começou a criar raízes na segunda metade do século XV. Os
fatores que contribuíram para esse desenvolvimento foram o monopólio da
exportação, o mercado de manufaturas têxteis e a navegação do Báltico ao
Mediterrâneo.
O mercantilismo foi muito ressaltado pelo seu caráter unificador, facilitou
a vinculação das regiões, propiciou a circulação de homens e mercadorias,
reduziu os pedágios ou os eliminou, e organizou os serviços de correios.
Porém, isto aconteceu onde as estruturas sociais e de poder político
permitiram-no. Para que o mercantilismo vigorasse plenamente fazia-se
necessária a existência de um Estado forte, capaz de planejar aspectos
importantes da economia e de realizar, posteriormente, a prática dessa
planificação. Era essencial que o poder central tivesse capacidade de controlar
as particularidades, as relações sociais básicas e as fragmentações políticas
não podiam servir como obstáculos. O poder do Estado devia estar ligado à
capacidade tributária da sociedade, isso quer dizer que essa capacidade
aumentava de acordo com a riqueza e isso tornar-se-ia possível se
houvesse a circulação de metais, que por sua vez dependia da atividade
27
comercial. Com isso, os governantes dos Estados compreenderam que a
acumulação de riqueza estava sujeita a existência de um poder forte que
tivesse condições de intervir nas relações sociais, políticas e econômicas.
64
Na França e na Inglaterra, o mercantilismo, as monarquias absolutas e o
regime colonial estimularam-se mutuamente. Contudo, foi nestes países que o
mercantilismo encontrou uma oposição ferrenha. Tiveram que lutar contra os
preconceitos medievais que prestigiavam o ócio, particularmente, contra as
concepções da Igreja que condenavam a usura porque a Igreja defendia uma
economia natural, de subsistência. Apesar disso, esses obstáculos não foram
suficientes para impedir as práticas mercantilistas, principalmente depois que
as monarquias adotaram esse sistema e a monetarização entrou em pleno
avanço e, conseqüentemente, a economia natural em retrocesso. A partir daí
os pecados passaram a serem vistos como virtudes, pois as antigas
concepções fortaleciam a conjuntura social da época. A Reforma Protestante
teve grande papel nessa transformação, pois João Calvino (1509-1564)
propagava a idéia de que construir seu patrimônio também era servir a Deus.
O conjunto de interesses do Estado e os principais agentes de
desenvolvimento econômico (mercadores, proprietários de minas, etc)
constituíram um poderoso fator de unificação nacional e base sólida do poder
estatal. O mercantilismo implantou uma nova escala de valores: o indivíduo
empreendedor passou a ser exaltado e o seu espírito criador veio a se
contrapor às concepções ideológicas do medievo que menosprezava o trabalho
manual.
Então, para que os Estados Nacionais vigorassem foi necessário que as
sociedades desenvolvessem dinâmicas que levassem à superação do
feudalismo. Uma das soluções foi a implantação de um novo princípio de
relações de trabalho e de submissão entre os países - o sistema colonial. Esse
sistema enquadrou-se perfeitamente no capitalismo comercial e na política
mercantilista. Pode-se dizer que foi um dos pontos-chave. O regime colonial
teve grande papel no processo de desenvolvimento das dinâmicas dos países.
Contudo, é necessário ressaltar que os processos ocorridos num país não
seguiram necessariamente a mesma trajetória e que esse sistema não nasceu
64
POMER, Leon. O surgimento das nações. 7. ed. São Paulo: Atual, 1994.
28
pronto, ele foi sendo formulado e aprimorado pelas experiências dos
envolvidos.
O sistema colonial operou uma modificação no panorama econômico do
século XVI e isso se deve ao estabelecimento e expansão das plantações
tropicais e à escravidão negra. Conseqüentemente, um sistema puramente
mercantil começou a se enfraquecer. Com as plantações tropicais cresceu a
predominância do capital industrial e a fonte principal de acumulação monetária
ocorria por seu intermédio.
Nesse processo de consolidação dos Estados Nacionais a busca pela
balança comercial favorável era um ponto decisivo para a obtenção de
prestígio perante outras nações em formação ou minimamente interessantes
de se tornarem aliadas. Para alcançar esse fator era necessário angariar
parceiros, mas, sobretudo conquistar colônias. Foi assim que a expansão
ultramarina ganhou proporção mundial.
O descobrimento das terras a oeste do Atlântico tem que ser entendido
em um contexto amplo que está relacionado com a crise pela qual a Europa
Ocidental atravessou no século XIV. Problemas populacionais causados pela
Peste Negra causaram devastação no continente gerando a diminuição da
mão-de-obra. A guerra dos Cem Anos, na qual a França e a Inglaterra
mandaram contingentes enormes para as batalhas, também contribuiu para
esse decréscimo populacional. A mudança no sistema de pagamento do tributo
servil para a renda-dinheiro deu certo alívio, mas por outro lado sobrecarregou
demais os camponeses. Esta insegurança no campo, sobretudo em razão do
futuro, gerou revoltas camponesas e uma tremenda instabilidade. O campo era
a partir daí palco solitário. A população rural transferiu-se para as cidades onde
havia a esperança de dias melhores e onde o seu artesanato poderia ser
exercido e comercializado nas feiras livres. O excedente populacional que não
conseguiu emprego, logo fez crescer a quantidade de pobres e marginais. Os
poucos que se empregavam formavam a mão-de-obra explorada nas
nascentes indústrias têxteis. Este desenvolvimento foi mais evidente na
Inglaterra onde o gado lanígero já tinha certa tradição e onde o crescente
movimento de cercamento dos campos foi mais intenso. Na França, a indústria
29
estava mais voltada para os artigos de luxo que não tinham tanta demanda na
Europa.
Este aumento do movimento comercial da Europa e a crescente
necessidade de metal fizeram com que os países então nascentes lançassem-
se em busca de metais preciosos. Por outro lado, o comércio impedido no
Atlântico pelos muçulmanos fez com que possibilidades fossem surgindo na
solução dos problemas. Esse contexto europeu favoreceu o empreendimento
das navegações portuguesas a partir do culo XV que tinham como intuito
conquistar novos territórios fornecedores de matérias-primas comerciáveis e
lucrativas no mercado europeu, objetivo compartilhado por outros países.
A expansão marítimo-comercial européia deslocou o eixo econômico do
Mediterrâneo para o Atlântico, ampliou as relações comerciais entre o Ocidente
e o Oriente, provocou a entrada de metais preciosos na Europa, fez crescer o
poder real e deu origem aos impérios coloniais.
A busca de novos caminhos para o Oriente, fonte de riquezas, constituía
sobrevivência. Era preciso enfrentar o Atlântico e explorá-lo. Para isso
precisavam de recursos financeiros volumosos e da existência de Estados
Nacionais sendo Portugal e Espanha os primeiros a arcar com os custos da
realização da conquista.
As navegações desenvolveram-se envolvidas pela grande expansão
comercial e urbana. As primeiras viagens de descobrimentos deveram-se
primordialmente às ambições de espanhóis e portugueses de terem sua
parcela no comércio com o Oriente. Desde algum tempo esse comércio vinha
sendo monopolizado pelas cidades italianas de Veneza e Gênova e disso
resultava que a população da Península Ibérica via-se obrigada a pagar altos
preços pelos produtos que lhes interessava. Para os grupos mercantis
conseguir buscar mercadorias no Oriente significava torná-las mais baratas e o
conseqüente o monopólio do comércio mediterrâneo, devido ao fato de não
haver mais intermediários.
Uma segunda causa das viagens de descobrimentos foi o fervor
missionário dos espanhóis. Sua bem-sucedida reconquista da Península
Ibérica às forças do Islã gerara um excedente de zelo religioso que se traduzia
no desejo de converter os “gentios” do Ultramar.
30
A essas causas cabe acrescentar os progressos no conhecimento
geográfico e tecnológico que permitiram aos marinheiros aventurarem-se mais
intrepidamente no mar alto. A partir do século XII, seria impossível encontrar
uma pessoa instruída que não aceitasse o fato da esfericidade da Terra.
Engenhos tecnológicos como a bússola e o astrolábio já eram conhecidos
muito antes da viagem de Cristóvão Colombo. As caravelas, a imprensa e a
disseminação dos mapas ampliam esse quadro.
65
Se excetuarmos os nórdicos, que descobriram o continente norte-
americano por volta do ano 1000 d.C., os pioneiros da navegação oceânica
foram os portugueses. Portugal, que possuía uma estreita aliança entre o
Estado e os grupos mercantis, foi o primeiro a se lançar na empresa. no
século XIII já havia sido abolida a vinculação do servo à terra. Além disso,
Portugal já era acostumado a retirar do mar suas riquezas como sal e pescado.
Comprimido entre a Espanha e o Oceano, Portugal optou pelo Oceano. Assim
que chegaram à África, trataram de conseguir escravos para trabalharem nas
ilhas atlânticas.
A dinastia de Avis deu o impulso necessário para o lançamento ao mar
de caravelas portuguesas e com isso um grande impulso em suas descobertas
marítimas. Os portugueses haviam-se aventurado pelo Atlântico, alcançando
os Açores antes de 1350 e conquistando Ceuta em 1415. Entre 1434 e 1498
várias tentativas foram feitas até que em 1498, utilizando a rota feita por
Bartolomeu Dias, Vasco da Gama chegou às Índias e assim revelou como
poderiam atingir diretamente os entrepostos do Oriente.
A “descoberta” em 1500 do caminho para as terras do Novo Mundo abriu
novas possibilidades sem, contudo, colocar Portugal em proeminência junto
aos Estados capitalistas nascentes. Portugal continuou por vários anos
repassando a sua riqueza colonial através da política mercantilista adotada
pela Inglaterra, França e Holanda. Os proventos do comércio de nada serviram
como forma de capitalizar a economia de Portugal, serviram para sustentar
uma estrutura feudal superada, sustentando o luxo de uma classe parasitária.
O grupo mercantil jamais conseguiu evoluir para uma classe capitalista.
66
65
BLACK, Jeremy. Mapas e História. Construindo imagens do passado. São Paulo: Edusc, 2005.
66
LOPES, Luiz Roberto. História da América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto. 1986. p.13-18.
31
A expansão portuguesa seguiu através da implantação de feitorias e
capitanias hereditárias, transferindo sua prática da Ásia e África, até então
eficaz. As feitorias tinham um cunho marcadamente comercial, mas exerciam
funções militares também. As capitanias hereditárias tinham um caráter
senhorial e os empreendimentos eram iniciados com recursos privados. Optou-
se por dividir o território da América Portuguesa em capitanias hereditárias que
tinham início no litoral e atingiam o meridiano de Tordesilhas. Segundo Celso
Furtado
67
, apesar do modelo ser o feudal português, deve-se entender esse
regime como um empreendimento que visava a capitação de recursos
particulares. A mesma dinâmica era implementada pelos estrangeiros nos
entrepostos na Ásia, o que ocasionou perdas para Portugal que passou a ver
no Brasil a última possibilidade para reerguer seu Império. Esse quadro da
economia atlântica e a integração da prata peruana quase nessa mesma época
apontavam para uma mudança de curso.
O primeiro ponto português de acesso à América foi a costa leste, com a
chegada da frota de Cabral em 1500 a Porto Seguro e a fundação de São
Vicente mais ao sul em 1516. Com as investidas das forças estrangeiras nessa
costa recém-descoberta os portugueses tementes de perder as terras foram
obrigados a iniciar uma política colonial como medida preventiva. A
centralização das medidas administrativas e a transferência das esferas de
ação civil, militar, judiciária, fazendária e eclesiástica e o investimento de
particulares fixou uma economia açucareira em Pernambuco mais eficiente a
partir de 1580 que se estendeu para a Bahia depois.
68
Os portugueses mostraram-se colonizadores muito adaptáveis mesmo
porque com o pequeno número de colonizadores de que podiam dispor,
sabiam que a alternativa mais plausível era recorrer a contatos pacíficos e
absorver alguns traços da cultura local. Charles Boxer
69
contesta a teoria de
que os portugueses foram os mais preparados descobridores ultramarinos por
sua posição geográfica ou experiência marítima, pois, segundo ele, essa
67
Celso Furtado op cit PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical. Pós-doutorado,
Salamanca, 2006.
68
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972; GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política a
administrativa do Brasil (1500-1810). Rio de Janeiro: José Olympio, Brasilia: MEC, 1975.
69
BOXER, Charles R. O Império marítimo português.o Paulo: Companhia das Letras, 2002.
32
experiência era muito restrita e não os credenciaria para empreendimentos de
tal porte.
Segundo Schwartz e Lockhart, não havia uma política imperial
preconcebida, assim usavam a técnica mais apropriada a cada momento:
conversão, cooperação ou ameaças. As pretensões portuguesas eram
modestas, eles o queriam administrar vastas áreas, sua atuação dava-se
através de portos comerciais. Mas, com as perdas das colônias na Ásia e na
África o destino desses conquistadores mudou: o Brasil era sua única saída.
Não havia um modelo ou projeto de ação definido para a política
expansionista portuguesa. As práticas eram adaptáveis à época e ao lugar ao
qual chegavam. “Os interesses mercantis, o proselitismo religioso e, mais
tarde, os intuitos povoadores ou de drenagem demográfica constituíam,
sucessivamente, a justificação oficial da colonização do Brasil.”
70
Desta forma,
não havia uma estratégia sistemática por parte da Metrópole. “As instituições
políticas nativas eram com freqüência preservadas, como instâncias de
mediação com o poder português”
71
, contudo isso se aplica somente para os
primórdios do contato devido aos interesses de contato pacífico. Comparada a
Castela, Portugal era um pequeno país com recursos econômicos e
demográficos modestos; mas, mesmo assim conseguiu promover sua
expansão da Ásia até o Brasil devido a sua tradição de mercadores marítimos.
A Espanha vivia o tempo da Reconquista. A formação do Estado
Nacional esteve vinculada a lutas de grupos militares cristãos que tentavam
expulsar os islâmicos que se fixaram na Península Ibérica desde o século VIII.
Mas foi somente após o casamento de Isabel de Castela e Fernando de
Aragão que os espanhóis conseguiram reunir condições para expulsá-los. 1492
não foi o ano do descobrimento da América por Cristóvão Colombo, foi
também o ano da recuperação de Granada. A guerra de Reconquista esgotara
o tesouro real. Mas esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã.
Não por acaso, cento e cinqüenta mil judeus declarados foram expulsos do
país neste ano. A Espanha adquiria realidade como nação, levantando
70
HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes. p. 169. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda Baptista, GOUVEIA, Maria de
Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
71
Ibid. p. 171.
33
espadas cujas empunhaduras desenhavam o sinal da Cruz. A rainha Isabel
fez-se madrinha da Santa Inquisição.
Decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes para se
libertarem da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que
açambarcavam o comércio das especiarias e plantas tropicais, as musselinas e
as armas brancas, provenientes de misteriosas regiões do Oriente. O desejo de
metais preciosos, meio de pagamento para o tráfico comercial, impulsionou
também a travessia dos mares malditos. A Europa inteira necessitava de prata.
Colombo comandou quatro expedições, porém os empreendimentos
ultramarinos vinham apresentando magros rendimentos, o que acarretou a
anulação de alguns privilégios do conquistador. O contraste entre as riquezas
transportadas pelas embarcações portuguesas que retornavam do Oriente e os
minguados rendimentos proporcionados pelas terras ocidentais exploradas
pela Espanha levaram os Reis Católicos a multiplicar concessões a inúmeras
expedições visando atingir Catai ou Cipango.
A façanha do descobrimento da América não podia explicar-se sem a
tradição militar de guerra de Cruzadas que imperava na Castela medieval e a
Igreja o se fez de rogada para dar caráter sagrado à conquista de terras
incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era espanhol,
converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do
reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra.
Três anos depois do descobrimento, Colombo dirigiu pessoalmente a
campanha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana, em cujos ataques
foram dizimados. Mais de quinhentos índios enviados à Espanha foram
vendidos como escravos em Sevilha e morreram miseravelmente. Entretanto,
alguns teólogos protestaram e a escravização dos índios foi formalmente
proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida, mas
abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deveriam
ler para os índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão blico, um
extenso e retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa
católica.
Ao mesmo tempo em que nova expedição partiu de Palos, comandada
mais uma vez por Colombo e tendo como objetivo estabelecer uma feitoria nas
terras que se supunham asiáticas, a Coroa Espanhola desenvolveu intensa
34
atividade diplomática. Junto à monarquia portuguesa, os Reis Católicos
afirmaram seus direitos sobre as terras descobertas a Ocidente e protestaram
contra o envio de poderosa frota àquelas terras, que D. João II dizia pertencer-
lhe. Junto ao papa Alexandre VI, os Reis Católicos obtiveram diversas bulas
72
,
assegurando um fundamento jurídico que lhes reforçava o direito de
propriedade sobre as terras recém-descobertas e que foi contestado pelo
governo português. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da
África à Coroa de Portugal e à Coroa de Castela outorgaram as terras
“desconhecidas como as até aqui descobertas por vossos enviados e as que
se hão de descobrir no futuro...”: a América fora doada à rainha Isabel. Em
1508, uma nova bula concedeu à Coroa Espanhola, perpetuamente, todos os
dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja
do Novo Mundo incluía o direito de premiação real de todos os benefícios
eclesiásticos.
Os Reis Católicos, apesar de garantidos por tão amplas concessões
pontificais, acabaram negociando um tratado com Portugal, cujos dirigentes
adotavam atitudes belicistas que poderiam levar a novo conflito na Península
Ibérica. O Tratado de Tordesilhas foi uma tentativa de resolver o impasse sobre
a questão do direito de exploração dos mares e territórios descobertos e
permitiu a Portugal ocupar territórios americanos além da linha divisória traçada
pelo Papa.
El limite ó lindero entre las dos conquistas de las
Coronas de Castilla y Portugal, se funda en la concesión de la
Bula de Alejandro VI, en la cual mando se formase una línea
imaginaria de polo á polo, distante de las islas de Cabo Verde
hacia el Occidente 22 grados y un tercio, y que perteneciesen
para siempre los descubrimientos y conquistas desde aquella
línea hácia el Occidente á los reyes de Espana, y las
conquistas hácia el Oriente á los reyes de Portugal.
73
72
Inter coetera (sendo duas), Eximiae devotionis, Dudum siquidem.
73
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones de
los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). Iquitos (Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía
Peruana; Centro de Estudios Teológicos de la Amazonía, 1988. p. 332.
35
Pelo tratado resolvia-se a controvérsia mediante verdadeira partilha do
mundo entre Portugal e Espanha à revelia das demais potências européias.
Para Francisco de Solano, o Brasil nasceu em Tordesilhas quando o mundo foi
dividido entre Portugal e Espanha estendendo a sua vizinhança ibérica ao
globo (Ásia, África e América).
74
Porém a questão estava resolvida apenas para essas coroas e o para
os demais interessados no comércio com o Brasil. A crise estava posta e agora
era preciso defender aquilo que estava estabelecido para pelo tratado ao passo
que países como França e Holanda mantinham suas relações comerciais
mesmo que de forma ilegal e por não reconhecer a resolução do acordo.
Para demonstrar o desacordo e a revogação de tal medida, não
respeitaram o acordo e se lançaram nas navegações em busca de territórios e
mercados consumidores. Uma forte reação à supremacia ibérica sobre a
exploração dos mares e novos territórios foi exercida pelos Países Baixos e
para legitimar sua ação buscaram um fundamento jurídico que respaldasse seu
ato. “Nesse momento contratam a Hugo Grotius que desenvolve [...] o
questionamento do direito adquirido sobre os mares e terras atlânticas pelas
monarquias portuguesa e espanhola”.
75
O jurista holandês Hugo Grotius formulou a teoria do direito natural pelo
qual os mares estariam abertos à navegação de qualquer nacionalidade,
beneficiando os flamengos.
76
Eles tinham até a União Ibérica uma confortável
relação comercial com Portugal, a qual veio a se desfazer por vontade da
Espanha. Essa atitude impulsionou-os a empreenderem navegações, não
reconhecendo nem respeitando os limites coloniais impostos pelas potências
ibéricas. Contudo, tiveram que confrontar além dos nativos, as forças
metropolitanas. Esses empreendedores relacionaram-se com as populações
nativas, algumas vezes amistosamente através da troca inicial de matéria-
prima por objetos de pequeno valor para os europeus, mas que fascinavam os
74
SOLANO, Francisco de. Contactos hispanoportugueses en América a lo largo de la frontera brasileña.
(1500-1800). In: _____. BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la
frontera. Madrid: CSIC, 1991. p. 188.
75
GONZÁLEZ, F. J. D. apud PORTO, Maria Emília Monteiro. Jesuítas na capitania do Rio Grande -
séculos XVI-XVIII. Arcaicos e Modernos. 2000, Tese (Doutorado em História), Universidad de
Salamanca, Salamanca.
76
BEBIANO, Rui. A pena de Marte: escrita da guerra em Portugal e na Europa (séculos XVI XVIII).
Coimbra: Edições Minerva. 2000. Coleção Minerva-História. p. 163.
36
índios e que sedimentavam alianças e em outras ocasiões, violentamente
instigando rivalidades preexistentes entre as tribos indígenas.
Enquanto esse impasse tramitava os espanhóis não estagnaram seu
processo de exploração e conquista. Para os castelhanos, expansão
significava conquista clássica, incluindo migração permanente. A migração e
fixação para o sul era uma prática enraizada na sociedade castelhana. Em
1513, o Pacífico Sul resplandecia ante os olhos de Vasco Nunes de Balboa; no
outono de 1522, retornavam à Espanha os dezoito sobreviventes da expedição
de Fernão de Magalhães que tinha unido pela primeira vez ambos os oceanos
e verificado que o mundo era redondo ao dar-lhe uma volta completa. Três
anos antes, haviam partido da Ilha de Cuba, em direção ao México, as dez
naves de Fernão Cortez e em 1523, Pedro de Alvarado lançou-se à conquista
da América Central. Francisco Pizarro entrou triunfalmente em Cuzco, em
1533, apoderando-se do coração do império dos Incas e em 1540, Pedro de
Valdívia atravessava o deserto do Atacama e fundava Santiago do Chile. Os
conquistadores penetraram o Chaco e descobriam o Novo Mundo do Peru à
nascente do rio mais caudaloso do planeta.
77
Para o mundo da época, a
descoberta da América foi uma decepção, uma barreira entre a Europa e o
Oriente. Queriam encontrar na América ou “Índias Ocidentais”, uma passagem
para atingir as Índias Orientais. Contudo, as riquezas Asteca e Inca atraíram os
espanhóis e iniciou-se a conquista.
78
Os resultados dessas viagens de descobrimento e a fundação de
impérios coloniais foram quase incalculáveis. Para começar, expandiram o
comércio, tirando-o dos estreitos limites do Mediterrâneo e dando-lhe
proporções de um empreendimento mundial. O pequeno, mas sólido,
monopólio do comércio com o Oriente, mantido pelas cidades italianas, foi
gravemente prejudicado. Gênova e Veneza mergulharam aos poucos numa
relativa obscuridade. Um segundo resultado foi o tremendo aumento no volume
do comércio e na variedade dos artigos de consumo.
Outra conseqüência importante da descoberta e da conquista de terras
ultramarinas foi a expansão do suprimento de metais preciosos. Quando
77
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 23-
59.
78
PINSKY, Jaime (org.) História da América através de textos. Textos e documentos. V. 4.
37
Colombo chegou à América, a quantidade de ouro e de prata existente na
Europa mal era suficiente para sustentar uma economia dinâmica. Na verdade,
passaram-se cinqüenta anos para que se fizesse sentir todo o impacto da
riqueza da América. Durante algum tempo o ouro foi o metal mais abundante e
era relativamente barato em relação à prata. Por volta de 1540 essa relação
inverteu-se. As enormes importações de prata, provenientes das minas do
México, da Bolívia e do Peru, produziram tal depreciação no valor da prata que
se tornou necessário entesourar certas quantidades de ouro para transações
de crucial importâncias. Daí em diante, durante cerca de oitenta anos, a
economia européia baseou-se na prata. O resultado foi uma tremenda inflação.
A mineração de prata na Alemanha foi arruinada pela enxurrada de prata
oriunda da América. Em conseqüência, a posição da Alemanha declinou,
enquanto a Inglaterra e os Países Baixos ascendiam a uma situação de
proeminência. Durante um breve período a Espanha partilhou dessa
proeminência, mas estava pouco aparelhada para conservá-la. O
desenvolvimento industrial da Espanha era demasiado débil para atender a
demanda de produtos manufaturados por parte dos colonizadores europeus no
Hemisfério Ocidental.
Outro fator importante para entender a época moderna e o contexto de
conquistas provocado pela circulação de novas idéias e tecnologias é a guerra.
Indissociável da História e fundante da mesma, a guerra foi uma constante dos
fatos e da vida humana e geradora de novas circunstâncias, espaços e
relações.
Então, inicialmente devemos definir o conceito de guerra que pode ser a
“luta armada entre nações, ou entre partidos de uma mesma nacionalidade ou
de etnias diferentes, com o fim de impor supremacia ou salvaguardar
interesses materiais ou ideológicos”
79
ou de uma forma mais democrática como
quer Luigi Bonanate ao definir guerra como “embate voluntário [...] com o
propósito de submeter um ao outro fisicamente [...] é, portanto, um ato de
violência com o qual se pretende obrigar o nosso oponente a obedecer à nossa
vontade.
80
79
Dicionário Eletrônico Houaiss. Guerra.
80
BONANATE, Luigi. A Guerra.o Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 29-30.
38
Assim, quando um Estado tem interesse por um território e lhe é vetado
o intercâmbio, utilizam-se da ferramenta mais eficaz de opressão: a guerra.
Contudo, sabemos que nem sempre ao longo da História esse foi o primeiro
recurso utilizado nem mesmo que foi o mais eficaz. Porém, sabemos que a
época moderna foi marcada por conflitos que desembocavam em guerras para
determinação da supremacia.
Segundo Bonanate, a guerra foi gerada pela política, haja vista que ela
se desenvolve a partir de uma relação estatal que submete homens
acidentalmente.
81
Ele nos lembra que os grandes deslocamentos populacionais
promovem transformações culturais decorrentes, primeiramente, “do conflito,
da mistura e da integração entre costumes e conhecimentos diferentes e
heterogêneos.”
82
Mas, a função cultural da guerra ocorre quando os
membros reconhecerem-se semelhantes no valor e no direito.
Quando a guerra envolve Estados que “medem” forças, os estadistas
sentem-se impulsionados a iniciar a guerra quando existe risco a
vulnerabilidade do seu país. Podemos dizer que esse foi o sentimento da
Coroa Espanhola em relação à Amazônia a partir do século XVI quando as
incursões estrangeiras foram intensificadas. As alianças, ao desequilibrarem o
arranjo estabelecido, colocaram-se como mais um motivo para ocasionar a
guerra e essa era uma estratégia muito utilizada e eficaz no contexto colonial
para pacificar o contingente indígena e torná-lo aliado a ponto de defender seu
par mesmo contra outra tribo.
A guerra e o comércio são meios para a obtenção de um objetivo, sendo
o último mais rentável e pacífico, que a guerra, além de implicar violência,
acarreta despesas que nem sempre são compensadas. No caso amazônico, o
comércio foi largamente desenvolvido, configurando um intercâmbio cultural e
de produtos.
No contexto europeu, a escassez de produtos como ouro, prata,
especiarias, perfumes e drogas incentivou a expansão comercial como já
dissemos. A guerra era cada vez mais dispendiosa e a burguesia requeria
sempre mais luxo, tornando imprescindível a busca de novas regiões que
81
BONANATE, Luigi. A Guerra. p. 66-7.
82
Ibid. p. 39-40.
39
abastecessem os desejos europeus.
83
Para efetivar a conquista de novos
lugares era preciso estar atualizado na arte da guerra, que “estava-se
perante uma evolução irreversível, pois as cnicas da guerra foram, no tempo
do Renascimento, das que mais depressa se transformaram. [...] A arte da
guerra, agora, é tal que tem de ser aprendida de novo de dois em dois anos”.
84
A tecnologia bélica foi sendo aprimorada ao longo da Idade Moderna,
pois se passou a perceber que a forma desordenada e imprecisa que eram
características dos combates desde a Antiguidade causavam perdas
desnecessárias. Para a racionalização da guerra houve um fator decisivo: a
utilização da pólvora para disparo. Nesse momento e com a organização dos
países em Estados Modernos, o modelo de guerra foi alterado. Numa visão
micro, o valor do indivíduo foi afetado, e no âmbito macro, os Estados
Nacionais ampliaram a extensão e a intensidade das guerras.
85
Arnold
Toynbee também observa que a invenção da pólvora e as descobertas
precederam as guerras de religião e estenderam os limites da sociedade
ocidental.
86
No contexto bélico o soldado moderno foi perdendo, paulatinamente, a
noção de valor individual. De acordo com Jacob Burckhardt as armas de fogo
vieram a afetar o valor do indivíduo, uma vez que ele poderia ser atingido ou
morto à longa distância. Isso democratizou a guerra, na medida em que
qualquer pessoa podia tornar-se guerreiro, independentemente do seu valor
individual ou de sua classe social.
Burckhardt apresenta-nos uma compreensão da racionalidade da guerra
renascentista, considerada como uma ciência com técnicas, regras e
justificações. Nesse período o que parecia interessar era a performance
correta, a solenidade.
87
Porém, nem sempre era possível vivenciar a guerra de
forma racional, que essa ação envolve o sentimento dos combatentes e que,
em geral, combate-se por um ideal. Assim, tudo passa a ser encarado
emocionalmente e dispensa as regras postas no confronto com a realidade. O
83
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. V. 1. imprensa Universitária, Editorial Estampa,
1983.p. 54.
84
Ibid. p. 187.
85
Ibid. p. 36.
86
TOYNBEE, Arnold. Guerra e civilização. Lisboa: Editorial Presença, 1963. Coleção Perspectivas. p.
25.
87
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. o Paulo: Companhia
das Letras, 1991. p. 88-9.
40
próprio autor reconhece essa dimensão: “...sob determinadas circunstâncias,
todo esse tratamento racional dispensado aos assuntos bélicos deu lugar aos
mais terríveis horrores.”
88
No século XVII os holandeses foram os mestres da ciência bélica, a qual
se espalhou rapidamente pela Europa ocidental.
89
As transformações ocorridas
na arte militar na Europa durante a formação dos Estados Nacionais
produziram uma revolução, na concepção de Pedro Puntoni, que explicam a
primazia da civilização ocidental na constituição dos impérios coloniais,
caracterizados pelo crescente uso de armas de fogo, fortalezas construídas
nos moldes italianos, o destaque para a infantaria e aumento no contingente
dos exércitos e sua profissionalização. Os exércitos eram engrossados com a
utilização de índios e marginais que prestavam serviço em troca do perdão de
seus delitos.
Apesar do quadro na Colônia ser de retardamento ou desatualização na
entrada de inovações técnicas, os europeus souberam adequar-se ao contexto,
ainda que adverso. Todo o aparelhamento que foi produzido ou utilizado em
Portugal era transportado para o Brasil através dos colonos ou militares que
vinham atuar na Colônia, pois “cada colono [era] um homem de guerra”.
90
O
saber militar europeu foi transportado no período das invasões holandesas.
Além disso, deu origem a um tipo de guerra característico chamado de guerra
de emboscada ou guerrilha, responsável pela vitória portuguesa sobre os
holandeses em 1654.
A guerra também pertence ao universo cultural indígena e os discursos
de viajantes atestam um grande gosto do indígena pela guerra.
Independentemente das razões, as guerras aconteceram e eram uma prática
indígena anterior ao contato com os brancos que foi, com esse contato, sendo
reformulada e incorporando novos saberes para ambos.
Com o encontro cultural, as populações americanas tiveram que se
reorganizar e, com isso, os europeus passaram a absorver os costumes dos
88
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. p. 88-9.
89
SILVA, Kalina Vanderlei. O Miserável Soldo e a boa ordem da sociedade colonial. Militarização e
marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura
Cidade do Recife, 2001. p. 41.
90
Ibid. p. 71.
41
nativos e vice-versa.
91
Os hábitos europeus herdados do Antigo Regime
tiveram que se moldar aos costumes locais, ainda que existisse resistência,
todavia houve a adaptação por uma questão de sobrevivência de ambos os
lados. Observamos essa adequação também quanto ao modo de guerrear. O
contato entre portugueses, holandeses, índios e negros fez com que os
primeiros adquirissem a tática de guerrilha ou guerra de emboscada que era a
melhor possível nos territórios da Colônia. E em troca os últimos aprenderam a
manejar o armamento vindo da Europa.
As táticas de guerra e a sua concepção passaram por mudanças ou
adaptações quando foram transportadas da Europa para a América, dado que
durante a conquista e colonização do Brasil figuraram vários personagens
estrangeiros e nativos compondo uma nova forma de guerrear e essa mistura
de elementos acabou por compor uma forma própria de guerra.
92
Operou-se,
assim, uma reconceptualização da cultura imperial de Portugal e Espanha
através do diálogo entre o modelo europeu e da experiência americana
fragmentada em suas tradições ancestrais.
Essas concepções encontraram-se em solo brasileiro e ao longo de sua
convivência foram se moldando para ambos os lados. O indígena aprendeu a
utilizar o armamento vindo da Europa e o colonizador aprendeu a se adaptar às
condições e conselhos que lhes era oferecido, assim trocavam saberes e
experiências, ao mesmo tempo em que elaboravam, consciente ou
inconscientemente, um novo saber construído com elementos culturais
distintos, porém eficazes para as circunstâncias que vivenciavam.
Era necessário que houvesse motivos para se declarar guerra aos
índios, o que a tornava justa principalmente se a questão fosse de cunho
religioso. Segundo Beatriz Perrone-Moisés, a guerra justa foi o principal
dispositivo legal para a escravização dos índios. Dentre as causas legais para
91
PRODANOV, Cleber Cristiano. O mercantilismo e a América. 5. ed. o Paulo: Contexto, 1998. p.
55.
92
Existem alguns trabalhos que versam sobre a temática da guerra durante o período colonial brasileiro
como SILVA, Janice Theodoro da. O barroco como conceito. In: SCHUMM, Petra. Barrocos y
Modernos. Nuevos caminos en la investigación del Barroco Iberoamericano. Vervent, 1998.
Visualizando a incorporação dos costumes indígenas, europeus e negros nesse processo. Sobre a lógica
guerreira e a atuação indígena temos PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a
colonização do sertão do Nordeste do Brasil. 1650-1720. o Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, 2002. Um
outro trabalho que podemos apontar é uma monografia SILVA, Úrsula Andréa de Araújo. “TEATRO
DAS CRUELDADES”. Uma narrativa da guerra brasílica. UFRN, 2005.
42
a guerra justa estavam “a recusa à conversão ou o impedimento da
propagação da Fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos
portugueses [...] e a quebra de pactos celebrados”.
93
De acordo com a mesma autora, as leis que compunham a legislação
indigenista nunca foram reunidas em um digo específico. Os interesses dos
missionários, colonos e autoridades coloniais sempre confrontavam-se em
relação à liberdade dos índios. Podemos dizer que os índios mansos ou
amigos foram beneficiados, de certo modo, já que não eram alvo da escravidão
(exceto a jesuítica), mas sim promotores dela aos índios bravos.
Uma outra forma de manipular o contingente indígena que não quisesse
ser aldeado era permitir a permanência em suas terras tornando-se povo
aliado, especialmente quando se tratava de uma nação que ocupasse
territórios fronteiriços, de grande interesse para a defesa. Esse tipo de
concessão denota a força da resistência indígena apesar dela não ter
prevalecido na maioria das situações. Demonstra também uma visão
estratégica necessária para a defesa e pacificação dos índios.
Pedro Puntoni salienta a utilização de índios e sua arte militar para dar o
tom da chamada guerra brasílica, os quais eram requisitados para o serviço de
defesa aos seus senhores ou missionários e conduzidos pelo capitão-da-aldeia
ou capitão-da-nação, comumente o principal.
94
Vimos até aqui quem eram os conquistadores da América, como e por
quais motivos decidiram apoderar-se desse território. Porém essa posse não
estava restrita ao espaço, ela abrangia o englobamento dos homens que
pertenciam a ele. Esses homens foram denominados índios e causaram
espanto e estranheza aos conquistadores que pode ser explicado pelo
ambiente cultural com que se depararam ao ampliarem e aprofundarem a
conquista e pelo imaginário europeu construído em relação a essas
populações.
Apesar de haver presença humana nativa nesse território praticando-o,
os nativos encontrados foram desconsiderados como seres humanos e,
93
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Guerra Justa. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (cood.). Dicionário da
História da Colonização Portuguesa no Brasil. São Paulo: Verbo, 1994. p. 385.
94
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão do Nordeste do
Brasil. 1650-1720. p. 188.
43
portanto, o território foi dito desabitado. Pela lei natural os nativos foram
considerados apenas um signo, assim as ilhas estavam despovoadas
respaldando a conquista das mesmas, pois “os territórios desabitados
torna[va]m-se propriedade do primeiro que vier a descobri-los.”
95
Contudo,
havia consciência de que existia uma grande população no Novo Mundo e uma
sociedade hierárquica. Francisco de Victoria contestou a posse da América
argumentando que os povos indígenas não tiveram seus direitos
respeitados.”
96
Assim, formalmente, o ato de posse era inválido. Contudo, ele
continuou a ser efetuado em toda parte onde houvesse um conquistador a
serviço da sua Coroa, mesmo que “eles não [estivessem] no mesmo universo
de discurso”.
97
O ritual da cerimônia de posse
98
não significava aos
expectadores os índios e por isso eles não esboçavam nenhuma reação ao
ato que acabava por ser formalizado mediante o argumento da falta de
contestação dos nativos. Esse ritual era praticado pelos conquistadores
mediante o contingente nativo sem que eles entendessem o que se passava,
pois os símbolos usados pelos europeus não significavam nada à população
nativa que assistia esse movimento sem entender e tentando apreender o
evento e seus atores. O simples ato de presenciar o ritual conferia-lhe
legitimidade. Esse ritual tinha por objetivo simbolizar a posse da terra e se
configurar como um ato fundador, um processo de humanização. O ato de
nomear também era uma forma de marcar a presença e o controle dos
colonizadores sobre as terras que “descobriam” ou efetivamente colonizavam.
99
É certo que os indígenas que observavam esse ato não entenderam o
que estava passando-se. Os indígenas ficavam paralisados, sem reação ao
fato que lhes retirava o direito ao seu território porque o ritual era-lhes
incompreensível. O entendimento dava-se a posteriori através das
conseqüências como a desapropriação e escravização.
Vindos de Estados em processo de centralização monárquica, os
europeus aqui encontraram comunidades em que o poder político confundia-se
95
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Vozes,
1994. p. 85.
96
GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo: EDUSP, 1996. p. 86, 91.
97
Ibid. p. 84.
98
SEED, Patrícia. Rituais de posse. São Paulo: UNESP, 2000.
99
QUADROS, Eduardo Gusmão de. Embaixadores de dois reinos: missionários e fronteiras na região
amazônico-caribenha (1750-1801). Tese de doutoramento. Brasília: UNB, 2005.
44
com a autoridade moral ou religiosa do chefe supremo. Tendo em vista o
aumento da religiosidade com a Reforma, não é de estranhar que causassem
escândalo aos padres católicos as práticas religiosas o diferentes dos
indígenas americanos, como as Guerras Floridas dos Astecas.
Os conquistadores defrontaram-se com diferentes tipos de sociedade
indígena na América desde os considerados mais primitivos até os de
organização mais complexa. É o caso dos chamados impérios Asteca, Inca e
da Civilização Maia que possuíam uma desenvolvida economia agrícola, que
criava, inclusive, excedentes de produção usados para o abastecimento das
camadas superiores dessas sociedades e até mesmo para o comércio.
Sociedades em que era dominante o modo de produção asiático, na qual havia
classes sociais, Estados centralizados e de administração complexa, mas em
que também não havia propriedade privada da terra. Tratava-se de um sistema
de servidão coletiva.
Apesar de serem considerados uma massa indissociável, o contato
mostrou toda a heterogeneidade desse povo. É verdade que existiam traços
comuns, mas as diferenças eram muitas. A ngua é um dos fatores pelos quais
se pode perceber essa diversidade e era também um obstáculo inicial para o
contato com os europeus.
100
Os ameríndios, segundo Schwartz e Lockhart, foram divididos segundo o
critério de fixação no espaço como não-sedentários, semi-sedentários e
sedentários. Quanto menor o nível de fixação o contato poderia ser mais
dificultado, haja vista que os índios com hábitos nômades eram menos
sociáveis. Não havia nenhuma obrigatoriedade de contato entre as tribos,
muitas comunidades não sabiam nada sobre outras tribos mesmo que
estivesse geograficamente próximas. Uma pretensa unidade política destes
povos só cresceu lentamente com a experiência colonial.
Houve um outro tipo de classificação, a cultural, que levava em
consideração o grau de organização da sociedade: altas culturas e demais
culturas. A esfera das altas culturas da América tinha um traço histórico de
multiplicidades, porém as fontes não permitem maiores conclusões. Os
100
URBAN, Greg. A História da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da (org). História dos índios no Brasil. o Paulo: Companhia das Letras, 1992. FREIRE, José
Bessa. Da "fala boa" ao português na Amazônia brasileira. АMERINDIA. n
°
8, 1983.
45
cronistas espanhóis em geral deixaram-se impressionar favoravelmente pelas
concepções jurídicas e pela organização judiciária de Astecas e Incas, atitude
inversa à que tiveram quanto às práticas religiosas. As fontes jurídicas
reconhecidas eram os costumes dos diferentes povos. O processo judiciário
tinha grau equivalente de organização e sofisticação vários tipos de juízes e
tribunais. A esfera das demais comunidades indígenas consideradas mais
simples foi estudada somente em relação ao Brasil por Arno Wehling. Segundo
ele, esse é um tema pouco conhecido e estudado. As fontes do direito eram os
costumes tribais e as decisões dos chefes ou do conselho dos anciãos, sem
que se conheça instância de recurso. A matéria jurídica compreendia normas
relativas ao parentesco e às guerras inter-tribais.
Essas esferas jurisdicionais encontraram-se na América e promoveram
um cruzamento através de concessões e reconhecimento das práticas
consolidadas dos povos “dominados” pelos “dominadores”. Em grande medida,
as regras locais eram respeitadas e mescladas ao direito ibérico, mesmo
porque o processo de implantação dos preceitos dos colonizadores era algo
que demorava bastante devido à longa tradição da cultura indígena. Em
questões de incompatibilidade entre as leis, o jurista local recorria ao bom
senso. Um exemplo dessa realidade é relativo ao matrimônio. Na cultura
indígena o casamento consangüíneo era permitido, ou melhor, era um
costume.
101
Para as sociedades ibéricas estava proibido por lei. Mediante
impasse na realidade colonial, o caminho mais seguro era a permissividade da
união entre parentes de segundo grau em diante, nunca de primeiro grau.
Nas regiões ocupadas por sociedades indígenas de média e alta
culturas, onde a concentração populacional era grande, a hierarquização social
apresentava-se bem definida, a economia tinha excedentes produzidos por
mão-de-obra trabalhando em relações de produção baseadas na servidão
coletiva, os sistemas políticos eram ou tendiam a ser centralizados, a conquista
fez-se pela subjugação dos ameríndios. Essa modalidade ocorreu, sobretudo
nas áreas dos Impérios Inca, Asteca e Maia, o que explica terem os indígenas
persistido como componentes predominantes da população do Peru, Bolívia,
101
WEHLING, Arno. “A propósito do encontro de culturas”: princípios e fundamentos jurídicos em
confronto na América quinhentista”, Lisboa, Actas do IV Congresso das Academias da História Ibero-
americanas. 1986, p. 81-94.
46
Equador, México e outras atuais repúblicas latino-americanas. Modalidade
inteiramente diferente das duas anteriores foi a ocorrida no Paraguai. Desde os
primeiros contatos entre os espanhóis e os índios guaranis criou-se uma
interdependência.
Portanto, a convivência de culturas o diferentes para ser praticável e
em muitas medidas pacífico exigia certo grau de concessões e mesmo de
reconhecimento das instituições (que não eram assim consideradas) nativas.
Essas considerações são muito pertinentes para o caso da Amazônia
porque os índios que ali viviam eram vistos como seres que estavam num
estágio de evolução primário mesmo que suas instituições funcionassem de
acordo com sua lógica interna, mas que para os olhos dos colonizadores eram
bárbaras. Autores como Márcio Souza apontam dados que colocariam os
índios amazônicos entre as sociedades de altas culturas, tese muito contestada
segundo a proposição de que o ambiente amazônico não seria propício ao
desenvolvimento especializado. O intercâmbio cultural e o pagamento de
tributos aos Incas poderiam figurar como a resposta para os achados
arqueológicos na Amazônia sem que tivesse sido produzido ali.
102
Após o contato inicial e a formalização do direito territorial que abrangia
a posse dos nativos, os conquistadores passaram a se relacionar com essa
população de acordo com seus critérios culturais que eram baseados no
modelo hierárquico, resultando na exploração da mão-de-obra nativa.
Finalmente temos que destacar as conseqüências espaciais da política
atlântica que acabaram por implicar também formas de relações diferenciadas
nos diversos ambientes onde foram aplicadas as práticas dessa política.
Provavelmente essa é a conseqüência mais importante de todo esse contexto
por ter definido centros e periferias coloniais que deram nova dinâmica à
História e estabeleceram marcos que ainda são sentidos hoje.
A política dos Impérios em expansão adequava-se à importância
econômica que a Colônia representasse. As limitações ou estímulos ao
desenvolvimento de uma região obedeciam ao posicionamento geopolítico que
o lugar ocupa no contexto geral da trajetória e expansão da colonização. Essa
102
FAUSTO, Carlos. Os índios antes do Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2005.
47
foi a tendência que criou regiões centrais e marginais no sistema colonial.
103
Logo, locais que apresentavam atrativos comerciais desde os primeiros
momentos seriam transformados em centros coloniais para onde se
transportariam colonos e toda a estrutura administrativa e eclesial, ainda que
essas estruturas funcionassem precariamente. Os locais mais distantes,
desconhecidos ou onde não fossem detectados produtos comerciáveis eram
considerados periferia, pois essa relação leva em consideração principalmente
o fator econômico. Contudo a condição de centro ou periferia é mutável.
Mediante a descoberta de produtos mais lucrativos ou o esgotamento da
exploração anterior, o foco é alterado.
nas regiões de fronteira, as formas de intervenção obedeciam a uma
política de conquista e de redução. A região que resistia à dominação poderia
não apresentar a menor possibilidade de integrar-se na dinâmica
ocidentalizada do sistema colonial. Podemos tomar como exemplo a América
com relação à Espanha e a Portugal no século XVI. A América Espanhola
ocupava um lugar de destaque para sua Metrópole. Os “reinos de Índias” não
eram inferiores aos demais reinos unidos à Espanha. Do ponto de vista do
direito público não eram considerados países estrangeiros e seus naturais
eram considerados súditos da Coroa. A América Portuguesa, ao contrário, era
uma possessão exploratória, pois a Coroa estava voltada para o comércio nas
Índias. Na América Portuguesa vigorava uma política semelhante à feudal na
administração da terra, pois o donatário não era proprietário da terra e sim uma
espécie de arrendatário, diferentemente da América Espanhola.
A distância da América com relação à Coroa impossibilitava uma
organização administrativa inteiramente assumida e dirigida pela Metrópole
tanto espanhola quanto portuguesa. Por isso, os soberanos incentivavam o
espírito de iniciativa e lucro.
104
Para solucionar esses problemas a Espanha
criou a Casa de Contratação (1503), para fazer o transporte dos viajantes para
a América e o Conselho das Índias que foi efetivado em 1524. Inicialmente
tinha-se a figura do adelantado, como Cristóvão Colombo que exercia um
governo pessoal e exclusivo.
103
PORTO, Maria Emília Monteiro. Fronteira, jesuítas e missões. In: www.cafefilosofico.ufrn.com.br
104
BENNASSAR, Bartolome. La América española y la América portuguesa, siglos XVI-XVIII. 2.
ed. Madrid: Ediciones Akal, 1987. p. 82-3.
48
A estrutura político-administrativa pode ser dividida em dois casos: o da
metrópole e o da colônia. Na metrópole, os principais órgãos da administração
colonial eram a Casa de Contratação, o Conselho de Índias, os juízes de
residência e os visitadores. Na América, se dispunha assim: os vice-reinos, as
audiências, as capitais gerais e os cabildos. A máquina dirigente era
completada com a ajuda da Igreja, intimamente ligada ao Estado Espanhol.
105
Por causa dessa distância e pela dificuldade de comunicação criou-se a
necessidade de dar autonomia às instituições na Colônia, principalmente nos
vice-reinados espanhóis. Existia uma hierarquia bem definida na América
Espanhola onde os governadores estavam no topo sendo um instrumento de
controle burocrático e que exerciam o mandato de três a oito anos; depois
vinham os capitães gerais incumbidos das funções militares; as Audiências
representavam a conveniência de uma instância administrativa constituída por
altos funcionários com igualdade de direitos e os vice-reis
106
advinham da alta
nobreza. O território estava dividido em municípios e cidades de onde emanava
o poder local através dos vecinos, alcaldes e cabildo. a América Portuguesa
funcionou primeiro como uma feitoria, depois foi dividida em capitanias
hereditárias e um controle estatal foi efetivado a partir do Governo Geral em
1549.
Segundo Schwartz e Lockhart, os europeus que se fixavam em áreas
periféricas eram pobres, marginais e não traziam mulheres consigo para
habitar essas áreas isoladas e que não possuíam atrativos econômicos. A
atuação desses homens dava-se através da escravização dos índios, da guerra
prolongada e pelas missões. As mudanças e a implantação de estruturas que
pertencessem ao centro foi bastante lenta, mas ocorreram tentativas.
Áreas como o rio da Prata, o Brasil Meridional, a Argentina, a Venezuela,
o Chile foram consideradas como periferia por apresentarem traços gerais
semelhantes, diferenciados pela administração colonial. Essas áreas
abrigavam indígenas semi-sedentários que possuíam uma estrutura
minimamente organizada sob a qual era possível impor uma colonização.
105
AQUINO, Rubin Santos Leão de, JESUS, Nivaldo Freitas de Lemos e OSCAR, Guilherme Pahl
Campos Lopes. História das sociedades americanas. 8 ed. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2002.
106
BENNASSAR, Bartolome. La América española y la América portuguesa, siglos XVI-XVIII. 2.
ed. Madrid: Ediciones Akal, 1987. p. 93. SÁNCHEZ, Carlos J. Hernando. Las Índias en la monarquia
católica. Imagenes e ideas políticas. Valladolid, 1996. p.140 e 150.
49
Esses espaços dividiam jurisdições, o que possibilitava comércio, contrabando,
guerras e um trabalho de diplomacia intenso para solucionar questões de
impasses a nível territorial e de soberania. Uma das dificuldades para delimitar
e definir a fronteira era a interligação da área e a semelhança básica das
sociedades de ambos os lados. Nas localidades sob o domínio espanhol a
encomienda foi uma estrutura aplicada mesmo nos locais de difícil emprego.
Por estarem instaladas em zonas isoladas, existia o favorecimento de não
haver concorrência nem uma presença institucional incisiva, ou seja, eram
praticamente instituições autônomas. Isso deu uma sobrevida maior a esse
elemento nas periferias do que em áreas centrais. Os europeus integravam-se
na vida indígena de uma forma espetacular: tornavam-se chefes e gozavam de
muito prestígio; no Paraguai os espanhóis mantinham verdadeiros haréns, o
que os colocava em conflitos com os padres, além da problemática constante
da escravização indígena. Em muitas áreas a encomienda deixou de ser viável,
mas, mesmo assim, sobreviveu.
Considerando tudo que foi discutido e apontado podemos dizer que
integrar a política atlântica podia ser atraente, mas também era uma tarefa
difícil de r em prática devido às várias nuances que envolviam os diferentes
interesses imperialistas. Mais complicado então era participar
inconscientemente de um empreendimento tão complexo como foi num
primeiro momento para os ameríndios. A realidade vivenciada a partir dessa
convivência de europeus e nativos gerava a necessidade de adaptação
institucional e cotidiana. Tudo isso acarretava mudanças em todos os aspectos,
pois era impossível implantar os modelos na forma original, era preciso ocorrer
um ajustamento. Culturalmente operavam-se as transformações que
conseqüentemente modificavam o espaço, pois esses processos estão
imbricados.
50
3. A CRUZ E A ESPADA: transformações espaciais e o nascimento
de um novo espaço
Vamos agora passar à discussão sobre o espaço. Entendemos que a
construção desse elemento é fruto da ão humana, o que materializa um ato
cultural. Michel de Certeau enfrentou essa discussão em sua obra “A invenção
do cotidiano” ao analisar as relações humanas com os caminhos da cidade. A
partir dessa análise, ele chegou à conclusão de que o espaço é “um lugar
praticado”
107
, ou seja, um lugar, um ambiente é considerado espaço na medida
em que se torna usual, que circunscreve trajetórias, caminhos e histórias.
Dessa forma, acreditamos que a Amazônia é também um espaço
construído e que sua delineação foi promovida pela ação conjunta de índios,
missionários, mestiços, europeus e sertanistas num processo que se estende
do século XVII ao início do século XVIII, pois temos como limite espacial e
suporte documental os relatos de Samuel Fritz.
Assim, queremos pensar a construção do espaço colonial na Amazônia
em conexão com a política atlântica e a fronteira missional.
A conquista da Amazônia fez-se mediante a movimentação espacial
promovida pelos diversos agentes desse processo. Dessa forma torna-se
necessário definir conceitos que esclarecem o processo de construção
espacial. O primeiro deles é propriamente o espaço que é construído a partir
das práticas humanas. Ligado ao primeiro, temos o estriamento, que
corresponde à idéia de colocação e exploração do espaço. A Amazônia parece
abarcar perfeitamente essa definição de relação espacial por se tratar de uma
imensa floresta que dificultava a locomoção em seu seio, mas que, por outro
lado, também sofria estriamento pela atuação dos índios que habitavam. De
acordo com estudos arqueológicos e etnográficos, podemos dizer que os
indígenas foram os responsáveis pelo estriamento
108
do território da América e,
por conseguinte, da Amazônia.
107
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Vozes,
1994. p. 201-2.
108
Estriamento é um conceito bastante pertinente para pensar as práticas no espaço (CERTEAU, 1994)
dos agentes humanos. É uma categoria que nos chega através do trabalho de Gilles Deleuze e Félix
Guatarri Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997.
51
O espaço estriado é caracterizado pela ação e presença humana que o
modificam e pode ocorrer em duas modalidades de corte: o planejado, somente
possível se houver conhecimento prévio do lugar, e o desordenado,
característico de exploradores ou aventureiros. No caso do estriamento colonial
consideramos como desordenado tanto o indígena, num primeiro momento,
como o do agente colonizador europeu, pois o movimento indígena era
nômade ou semi-nômade e o europeu seguia quase que um instinto
desbravador sem planejamento ou era guiado pelos naturais a seu modo.
Essa relação ocorre simultaneamente para os interlocutores, ou seja, o
espaço amazônico de Maynás era estriado para os Omágua, pois eles o
praticavam, viviam e mantinham uma relação com a terra. Para os
colonizadores ou missionários esse espaço era liso na medida em que lhes era
desconhecido. Ao praticá-lo, estriavam-no e ao mesmo tempo tornavam aquele
espaço liso para os indígenas por introduzirem uma nova lógica espacial,
novos ambientes.
E por fim, o que significa fronteira. Francisco de Solano define fronteira
como
’los espacios de reciente ocupación, áreas en vías de
colonización. Espacio geográfico en el cual los procesos de
producción, de estructuración institucional y social no se han
integrado aún en un continuo normal, pero están en camino de
formación o de transformación’. Y dentro de esta definición,
puede hablarse de una frontera comercial, una frontera
demográfica, una frontera agrícola y/o una frontera minera.
109
Ainda de acordo com seu pensamento fronteira e linha de demarcação
não querem dizer a mesma coisa. A primeira significa a separação na prática
entre as jurisdições e a segunda é a divisão oficial que nem sempre ou nunca
foi respeitada. Ele salienta que nessas fronteiras os habitantes estiveram mais
em contato que em luta.
109
SOLANO, Francisco, BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la
frontera. Madrid: CSIC, 1991. p. 191.
52
Essa consideração pode ser pensada de duas formas para a região de
Maynás. Antes de ser alvo de interesses imperialistas com a confluência de
espanhóis e portugueses, os habitantes estiveram em contato pacífico com
outros povos através do comércio e contrabando de produtos na parte Sul em
direção ao Caribe. No Ultramar a atividade do contrabando representou um
comércio muito florescente, lucrativo e, em alguma medida, necessário, pois os
Impérios em expansão não permitiam a exploração das áreas sob suas
jurisdições, o que acabava por gerar uma situação de ilegalidade para
aventureiros e conquistadores. Em contrapartida lutas foram travadas ao norte
para impedir o avanço luso-brasileiro as suas terras. Denunciada ésta a través
de las quejas jesuíticas por los ataques bandeirantes, por reclamaciones
oficiales del Estado español por irregularidades y transgresiones de límites.
110
Em cada lado da linha de demarcação a ocupação fez-se de forma
própria e distinta da outra e o o cumprimento das resoluções do Tratado de
Tordesilhas aliado às práticas espaciais de expansão independentes
colocaram-no obsolescente, o que resultou em novas discussões e assinatura
do Tratado de Madri mais tarde.
Para Francisco de Solano, Tordesilhas foi a única fronteira delimitada
juridicamente em comum acordo entre as diplomacias portuguesa e espanhola.
Porém, essa fronteira ficou submetida a interpretações e a vaguidade das
medidas, o desconhecimento geográfico, humano e ecológico, a fisionomia
difusa dos espaços cortados, condicionaram uma fronteira movediça e
dinâmica. Esse dinamismo estava diretamente relacionado com os interesses
social, econômico, político e administrativo de cada país. Além do fato de que
na realidade cotidiana de conquistadores, colonos e índios era impossível
saber onde espacialmente estavam localizados, ou seja, a transgressão do
território fazia-se também pela dificuldade de demarcar as fronteiras e pela
liberdade de que os agentes humanos nesse contexto tinham para locomover-
se.
111
110
SOLANO, Francisco, BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la
frontera. p. 189-90.
111
_____. Contactos hispanoportugueses en América a lo largo de la frontera brasileña. (1500-1800). In:
_____. BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera.
53
De acordo com os estudos de Maria Emília Monteiro Porto podemos
considerar a fronteira como espaço lico e de trocas culturais, ou seja, é
nesse lugar de tensões que homens confrontam-se para alcançar a paz e o
acordo.
112
A cobertura por florestas contínuas deu à ocupação da Amazônia uma
dinâmica que se desenvolvia exclusivamente ao longo dos rios.
113
A vastidão
da bacia hidrográfica abrange, na atualidade, cinco países e é caracterizada
por sua imensa área verde e enorme e complexa rede hidrográfica. O rio
Amazonas corta aquela planície aproximadamente ao meio e é navegável em
toda a sua extensão, ultrapassando os 25 mil quilômetros de bacia. A
penetração e a fixação do branco e, conseqüentemente, a dizimação da
população nativa obedeciam ou eram limitados pelos cursos dos rios e
afluentes. Contudo, a rzea teve grande importância no processo de
ocupação colonial por ter sido a única via de penetração. Essa porção do
território representa 1,5%, enquanto a terra firme representa 98%.
Foi esse espaço natural fechado o palco de infinitas histórias que estão
abrigadas ali e algumas perdidas para sempre. Um espaço totalmente adverso
e repelente pelo isolamento e pela natureza indomável, ela própria atuando
como defensora dos seus nativos devido a difícil sobrevivência que se impunha
naquelas paragens, entre elas a modificação periódica do curso dos rios e suas
enchentes.
Mas, por que ir a um local tão distante e adverso como a Amazônia?
Com as viagens exploratórias e a decadência do Oriente, os mitos e as
aspirações de riqueza foram transportados para a América. O encontro com
populações ameríndias fez, num primeiro momento, concretizar todo o
imaginário em torno desse espaço que se acreditava ser a Ásia. Além disso,
havia uma motivação cristã para o contato. As expedições tinham um caráter
de Cruzada com a finalidade de converter os infiéis e idólatras.
Na Amazônia tivemos uma conquista operada por espanhóis e
portugueses e o contato com outros povos como holandeses, franceses,
ingleses que também acabaram por fazer parte desse processo cultural.
112
PORTO, Maria Emília Monteiro. Fronteira, jesuítas e missões. In: www.cafefilosofico.ufrn.com.br.
113
HOORNAERT, Eduardo (coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 14.
54
A exploração e ocupação da Amazônia pertencem a um movimento
maior que ia se expandindo até alcançar esse espaço. O Mar do Sul era o
início das rotas de penetração espanhola no Novo Mundo.
114
Essas rotas foram
criadas a partir da viagem de Vasco Núñez de Balboa. Em 1494, apesar da
resistência sofrida, os espanhóis conseguiram estabelecer-se na Venezuela
consolidando o comércio escravista e de exploração de peles, pérolas e ouro
no interior. Os espanhóis atravessaram o continente a partir de 1509 pelo istmo
do Panamá avançando sobre o que será Porto Rico, Jamaica e Cuba. Com o
esgotamento das jazidas de ouro e da mão de obra indígena seguiram ao
continente em duas grandes e simultâneas direções. Conquistaram o Império
Asteca com Hernán Cortéz e se fixaram no México entre 1519 e 1521. A etapa
seguinte foi a conquista da Colômbia até alcançar o Peru com Francisco
Pizarro, conquistando o Império Inca em 1532-1533.
A viagem de Álvar Núñez Cabeza de Vaca iniciou a conquista da
América do Norte pelo sul e se seguiu com Hernando de Soto e Coronado do
México entre 1539 e 1542. La Espanhola era a sede principal e o ponto de
contato com as Antilhas. Iniciava-se a consolidação da etapa caribenha da
conquista. A exploração do ouro apresentou possibilidades de estabilização
nessa área. Na fase caribenha não houve conquista plena, pois as relações
expressavam-se pelas trocas e incursões. Nas Filipinas o sistema de
encomiendas
115
foi testado, porém não logrou êxito devido à insuficiência
econômica para manter um comércio internacional. Assim, “a tendência foi, ao
fim, alcançar um predomínio colonial nas Américas, deixando na Ásia redutos
comerciais, demonstrando ressonâncias da atividade genovesa-portuguesa no
Mediterrâneo, África e Ásia e que começam a dissolver a imagem de um povo
tradicionalmente imóvel.”
116
1544 foi o ano da descoberta das minas de prata
em Potosí o que obrigou a Coroa espanhola a ampliar a administração da
conquista americana devido à rentabilidade do negócio que florescia ali.
114
GIRALDO, Manuel Lucena. Laboratorio Tropical. Caracas, Monte Ávila Ed.
Latinoamericana/CSIC, 1993. LOCKHART, James e SCHWARTZ, Stuart B., América latina en la
edad moderna: una historia de la América española y el Brasil coloniales, AKAL, D. L. 1992.
115
A encomienda era uma forma de trabalho compulsório indígena nas zonas rurais em troca do
atendimento religioso. Foi extensivamente usada na colonização da América Espanhola entre os Incas e
Astecas antes de ser substituída pela mita.
116
PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical. Tese de pós doutoramento. Madri,
2006.
55
A ocupação espanhola obedecia à dinâmica do sistema de estações de
relevo, onde cada conquista preparava a próxima etapa. As condições locais
eram o motor da conquista. “O governador local apoiava ou ajudava a
organizar a operação, esperando anexá-la a seu território, o que geralmente
não acontecia. Quando o chefe da expedição conquistava, se dirigia à Coroa e
acabava por conseguir uma governação separada”.
117
Com a efetivação das
conquistas as instituições administrativas como o Requerimento, o Conselho de
Índias de 1524, as Ordenanzas de Nuevos Descobrimentos y Poblaciones de
1573, a Recopilación de Índias de 1680, os cargos jurídicos, eclesiásticos, civis
e militares, a distribuição de terras, o apoio à especialização regional, a
distribuição da população indígena e a lenta implantação do sistema urbano
eram transferidas para a nova colônia.
Os primeiros conquistadores da Amazônia de que se tem notícia são os
espanhóis. Porém, esse foi quase sempre um território de tensão, haja vista
que essa fronteira esteve sempre em movimento pela atuação de portugueses,
espanhóis, holandeses, franceses, ingleses, indígenas e sertanistas e porque
era uma área de comércio intenso.
Os espanhóis que haviam conquistado o Império Inca tencionavam
conquistar o território além da Cordilheira dos Andes. Vicente Yanez Pinzón
havia tomado posse das terras para a Coroa de Espanha, restava consolidar a
conquista. As tentativas anteriores a Gonzalo Pizarro fracassaram, mas ele
persistiu no seu objetivo de tomar posse do território para encontrar canela,
especiaria de grande valor comercial e o reino do El Dorado no noroeste da
Amazônia.
118
Com sua expedição confirmou-se o reconhecimento geopolítico
de posse da Espanha sob a Amazônia, pois as terras descobertas situavam-se
a oeste do meridiano indicado no Tratado de Tordesilhas.
A penetração espanhola na Amazônia foi uma conseqüência “natural” da
conquista, pois o território a leste dos Andes pertencia ao Império Inca que
possuía quatro divisões sendo a que correspondia à Amazônia chamada de
Antisuyo e os povos dali de chunchos. Motivados pelos mitos do El Dorado e
117
PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical.
118
RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da Amazônia. Da soberania difusa à
soberania restrita. Brasília: Senado Federal, 2005. SOUZA, Marcio. Breve História da Amazônia. 2. ed.
Rio de Janeiro: Agir. 2001.p. 24 e 29.
56
do País da Canela, adentraram a região após a transposição dos obstáculos
físicos e materiais da empreitada. Ao se depararem com os povos amazônicos
descobriram que os boatos o iriam concretizar-se. Mas nem tudo estava
perdido, apesar do calor, da umidade, dos insetos e do tratamento dos
ameríndios, havia um número altíssimo deles para serem “civilizados” e então
passaram a aplicar o modelo de colonização que conheciam: fundação de vilas
e escravização do contingente indígena. Muitas tribos foram bastante
resistentes como os Incas anteriormente e as doenças ajudaram a dizimá-los.
“É óbvio que, nessas condições, foi difícil criar e impor as instituições de
colonização e controle que haviam sido usadas no México ou na região central
dos Andes”.
119
Estava conhecida a Amazônia litorânea e coube a Francisco de Orellana
desbravar o interior. Pizarro não foi recebido amistosamente por algumas tribos
indígenas e reagiu violentamente, matando vários índios. Após 10 meses de
viagem, chegaram ao rio Coca, onde Orellana foi incumbido de comandar
expedição pelo rio Amazonas, passando pelo Napo, Paranauaçu, Negro e
Nhamundá, onde teriam encontrado as mulheres guerreiras de Conhori. Os
Reis Católicos, atendendo ao pedido de Orellana, nomearam-no Adelantado e
governador das terras descobertas, a qual chamaram Nova Andaluzia. Voltou
com recursos próprios, mas morreu no arquipélago de Marajó.
Desde esse período homens de todas as partes do globo confluíram
para na intenção de concretizar seus sonhos de riqueza e estabilidade, viver
grandes aventuras e materializar os mitos que ouviam, constituindo uma prática
específica de viagens.
120
Índios, aventureiros, conquistadores, contrabandistas
e religiosos estiveram ali, cada qual com o seu objetivo e mantendo relações
de diversas ordens tais como convivência pacífica, guerra, submissão, trocas.
Podemos dizer então que os capítulos iniciais da história da Amazônia
foram escritos por indígenas e espanhóis. Pelo Tratado de Tordesilhas todo o
rio Amazonas localizava-se em território espanhol, porém esse não foi um fator
que tivesse provocado desânimo à ambição portuguesa e assim transpondo
119
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. p. 323.
120
GIRALDO, Manuel Lucena. Imperios confusos, viajeros equivocados: españoles y portugueses en
la frontera amazônica.
57
obstáculos naturais como vegetação e clima e o próprio isolamento provocado
por estes conseguiu-se conquistar essa fronteira às custas de muitos esforços
e vidas.
A penetração portuguesa na Amazônia começou no século XVII para
tentar manter outros europeus afastados dali, pois eles “foram antecedidos, no
vale amazônico, pelos espanhóis e pelos anglo-holandeses. Os espanhóis, no
papel de descobridores; os anglo-batavos, como primeiros ocupantes e
exploradores.”
121
As primeiras três décadas do século XVII foram essenciais
para consolidar o domínio português da foz do rio Amazonas. Seguiram, então,
avançando para o norte em conflito direto com os espanhóis e seus aliados,
atravessando deliberadamente a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. A
penetração territorial promoveu o encontro na Amazônia dos colonizadores de
ambas as Coroas, missionários, índios e sertanistas. Aqueles que vinham
promovendo a conquista da costa leste-oeste da América Portuguesa queriam
continuar sua expansão até onde a vista alcançasse e as vidas agüentassem.
Depararam-se com dificuldades: era preciso saber lidar com o espaço natural
amazônico e era preciso vencer os obstáculos humanos como missionários a
serviço da Espanha e os ameríndios viventes ali.
Entre 1600 e 1630, os portugueses consolidaram o seu
total domínio da foz do rio Amazonas. Avançaram para o
norte, sob a desconfiança dos espanhóis, e atravessaram a
linha do Tratado de Tordesilhas. Com a fundação do Forte do
Presépio de Santa Maria de Belém (1616), os portugueses
violaram deliberadamente o tratado e se aproveitaram do fato
de Portugal estar sob o donio espanhol.
122
O Maranhão que havia sido fundado em 1612 como colônia francesa,
tornou-se parte do domínio português estabelecido por carta régia de 13 de
junho de 1621 e compreendia as capitanias do Piauí, Maranhão, Grão-Pará e
Rio Negro, hoje Amazonas. O Maranhão estava diretamente subordinado a
121
HOLANDA, Sérgio Buarque de; CAMPOS, Pedro Moacyr (Dir.). História geral da civilização
brasileira. 5. ed. São Paulo: Difel, 1976. t. 1, v. 1. p. 257.
122
SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir. 2001. p.71.
58
Lisboa, tendo sua área sido sucessivamente redefinida obedecendo a novas
estratégias de defesa e colonização. O povoamento no século XVII deu-se
através dos engenhos de açúcar e outra frente gado a partir de
Pernambuco e Bahia pelo sertão. A fundação do Estado do Maranhão e Grão-
Pará como diretamente subordinado a Lisboa configurou-se como uma ação
institucional irreversível perante à Espanha, ou seja, essa subordinação à
Coroa Portuguesa denotava a separação na prática dos interesses e políticas
da duas Coroas que estavam unidas. Sua posição geográfica permitia o acesso
mais próximo à Metrópole e agilidade no processo decisório sobre questões
locais, pois do Maranhão e do Pará era mais fácil se comunicar com Lisboa
que com a Bahia, pois esse território era isolado do resto da América
Portuguesa.
Em 1616, os portugueses após terem sido expulsos do Maranhão,
fundam um forte nas proximidades do rio Pará dando origem à cidade de
Belém, o que resultou em lutas constantes com os nativos chegando a quase
despovoar a região. A expedição de Castelo Branco insere-se na lógica da
ocupação litorânea da costa leste-oeste e para demarcar os limites territoriais
entre as Coroas Ibéricas. “A 13 de dezembro, reunidos os chefes militares,
ficou deliberado o imediato avanço sobre o Amazonas.”
123
Ergueram o forte do
Presépio e a terra ocupada foi chamada “Feliz Lusitânia”. De acordo com
Márcio Souza, com a fundação do Forte do Presépio de Santa Maria de Belém
(1616), os portugueses violaram deliberadamente o tratado e se aproveitaram
do fato de Portugal estar sob o domínio espanhol.
124
Castelo Branco fez aliança com os Tupinambá e construiu um núcleo
urbano e igreja matriz em devoção à Nossa Senhora de Belém. Contudo, a
convivência o foi sempre pacífica. A tranqüilidade inicial foi quebrada pelos
conflitos com os Tupinambás, estrangeiros e entre os próprios fundadores do
novo núcleo.
125
Prosseguindo a ocupação luso-brasileira do espaço temos Bento Maciel
Parente, um capitão e grande exterminador de índios do Maranhão foi
nomeado em 1626 capitão-geral do Ceará, recebeu autorização para fazer
123
HOLANDA, Sergio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira. A época colonial: do
descobrimento à expansão territorial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.259.
124
SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir. 2001. p. 71.
125
Ibid, p.260.
59
expedições ao rio Amazonas e no ano seguinte a capitania hereditária de Cabo
do Norte foi-lhe concedida, a qual pertencia a margem norte do Amazonas.
Operou-se nessa região uma verdadeira corrida para legitimar a posse das
margens do rio que, a essa altura, já era alvo de ambições. Sucederam
expedições exploratórias que acabaram por tomar a posse espanhola do rio.
Um século após a expedição de Francisco de Orellana no sentido oeste-
leste, Pedro Teixeira foi incumbido pelo governador de São Luís a fazer o
trajeto contrário leste-oeste em direção a Quito com o objetivo de ocupar
essa vasta extensão de terras para a Coroa Portuguesa. As instruções
recebidas do governador do Maranhão e Grão-Pará Jácome Noronha eram de
reconhecer o rio Amazonas, identificar portos para serem fortificados,
assegurar boas relações com as populações indígenas e implantar, em área
próxima às terras dos Omágua, uma povoação portuguesa. Seguiu até Quito
onde foi calorosamente recebido com sua expedição, foi abastecido e voltou na
companhia de dois sacerdotes jesuítas Cristóbal de Acuña e André de Artiede.
A presença desses religiosos é fato contemplado no Diário de Samuel Fritz:
Los primeros de la Compañía que entraron á la Grande Omagua, fueron, por
el año de 1639, los PP. Cristóbal de Acuña y Andrés Artieda”.
126
Era 1639 e do ponto de vista português os limites estavam postos
mesmo violando o Tratado de Tordesilhas. Vivia-se a União Ibérica ainda, o
que teria conferido legitimidade ao ato de Pedro Teixeira. O movimento de
penetração continuou mesmo no ano seguinte quando se extinguiu a união
dinástica. Essa entrada obteve uma importância geopolítica formidável e foi
inclusive um dos argumentos da diplomacia portuguesa para respaldar a posse
desse território frente aos interesses espanhóis.
A principal entrada do século XVII foi a de Pedro
Teixeira, pelo rio Amazonas. Motivado pela chegada a Belém,
por via fluvial, de espanhóis saídos de Quito, Pedro Teixeira
organizou a expedição de 1637, objetivando definir a rota
Pará-Peru, há décadas ambicionada. Subindo o Amazonas e o
Solimões, tomou posse para Portugal, simbolicamente, das
126
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. Iquitos
(Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana; Centro de Estudios Teológicos de la
Amazonía, 1988. Série Monumenta Amazônica. p. 307.
60
terras até o rio Napo, o que evidentemente ultrapassava de
muito o meridiano de Tordesilhas. [...] Com base na viagem de
Pedro Teixeira que a diplomacia portuguesa, mais tarde,
reivindicou o direito de posse da Amazônia. Além disso, a
expedição facilitou a instalação posterior de fortes e missões
religiosas no vasto território.
127
Percebemos aqui a questão da fluidez da fronteira e da mudança sobre
a importância que é atribuída a uma localidade. Com a União Ibérica a disputa
pela Amazônia tomou dimensões geopolíticas importantes. A soberania da
Amazônia foi um problema enfrentado por Portugal e Espanha, pois a
insatisfação com essa situação era muito grande e provocava conflitos dentre
os quais o mais diretamente vinculado à questão geopolítica foi o que envolveu
a ão missionária do padre Samuel Fritz. Havia uma luta constante entre os
agentes espaciais na fronteira entre as Coroas Ibéricas na Amazônia. A
fronteira imaginária era personificada pela atuação dos corpos no espaço, pois
onde houvesse um homem ali estava a fronteira
128
. No caso trabalhado aqui
essa fronteira era uma verdadeira muralha do sertão que era constituída por
mais ou menos 28 tribos sob o controle de Samuel Fritz.
Portugal e Espanha estavam sob o comando da dinastia espanhola dos
Habsburgos e como o Brasil era uma colônia portuguesa ficou sob o domínio
da Espanha. A Amazônia continuava sob a autoridade da Espanha, mas
intensificava-se um movimento de interiorização luso-brasileira que acarretou
conseqüências diplomáticas que só irão ser resolvidas em 1750.
Ainda durante a União Ibérica os portugueses fortaleceram seu objetivo
de ocupar a Amazônia, mas apesar da situação formal cada Coroa queria
exercer seu domínio sobre a região. A Espanha estava amparada pelo Tratado
de Tordesilhas e Portugal afirmava sua posse com base na expedição de
Pedro Teixeira. Nesse período a Amazônia que já era espaço fluído
127
WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Colonial. 4. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p.114.
128
SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas
fronteiras e nas fortificações. In: NOVAIS, Fernando. História da Vida Privada. V. 1. Companhia das
Letras, 1997. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
61
transformou-se em uma atmosfera de experiências comuns tanto para
portugueses quanto para espanhóis.
Foi nesse período que a Amazônia passou a integrar o circuito de
conquistas portuguesas que foi considerado o evento mais importante desse
século, tendo a historiografia destacado a expedição de Pedro Teixeira como
marco. Foi essa expedição que possibilitou a reivindicação do direito de posse
da Amazônia pela diplomacia portuguesa posteriormente.
Sobre a demarcação dessa posse Fritz comenta:
O sitio era para a banda do Sul, em terras altas, um
pouco acima do rio Cuchivara, onde, de facto, dizem, tomaram
posse e deixaram por padrão um tronco grande.
Esse padrão, pois, faz agora objecto de todo o pleito, e
como não existe quem se recorde ponctualmente do sitio
onde puzeram aquelle marco, pretendem que fosse mais
acima da provincia de Omaguas, e nesta conformidade
informaram ao rei de Portugal haver eu missionado em terras
de sua conquista.
129
Essa questão tornou-se uma controvérsia para o padre devido ao fato de
que sua colocação nessa localidade era ilegal. Ele foi preso no Colégio do Pa
mediante a acusação de espião espanhol e de que estava missionando em
terras portuguesas. Tudo isso foi causado pela suposta fixação do marco que
foi supostamente chantado na aldeia dos Omágua, segundo a Ata de Pedro
Teixeira, o que não era reconhecido por Fritz que posicionava discursivamente
o tal marco em terras mais distantes. Todos esses impasses foram largamente
discutidos na ocasião em que ficou prisioneiro no Colégio do Pará, inclusive
com correspondência ao embaixador ordinário de Castela em Madri. Para
desfazer os mal entendidos, Fritz não cansava de argumentar e se
corresponder com as autoridades de quem esperava uma solução rápida. A
resposta tão esperada chegou 19 meses depois e lhe era favorável.
129
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, 1917. p. 386.
62
Eu, desde o principio de minha chegada, havia
reclamado sôbre esse poncto, mostrando-lhes com evidencia
que as provincias em que até então missionara, fôra de toda
controversia, se comprehendiam dentro dos limites da Corôa de
Castella, o que não negavam todos os peritos; mas o
governador não deu outra resposta ao padre Superior senão
dizer-lhe:" - Não havemos de dar credito ao que diz o padre
castelhano". Vendo-me coagido, sem poder ir á minha missão,
quiz embarcar para Lisbôa, appellando para as magestades
castelhana e portugueza, a dar contas de mim, para que ficasse
em sua immunidade e liberdade o Evangelho de Christo: mas
todas as minhas diligencias se malograram, e assim estive
detido naquella cidade dezoito mezes com farta afflicção de meu
coração, pelo amparo em que ficavam assim meus neophytos e
outros muitos infieis, que havia deixado com bôas disposições
para reduzir.
130
De acordo com o Diário de Samuel Fritz, os portugueses valiam-se de
uma “cedula da Real Audiencia de Quito” que dava à tropa de Pedro Teixeira o
direito de tomar posse da Aldeia do Ouro na subida do rio Marañon.
131
Porém,
o padre contestava sob a alegação de que o marco referido estava situado
mais acima da província dos Omágua.
Os portugueses entendiam que os limites do seu território iam até o rio
Napo em decorrência da tomada de posse de Pedro Teixeira em 1639 que, por
sua vez, não era reconhecida pelos espanhóis. Alguns choques ocorreram, por
causa do domínio do Solimões, entre tropas portuguesas e espanholas, até
que os primeiros conseguiram expulsar da região os jesuítas que estavam a
serviço da Espanha.
Essa interiorização da colonização portuguesa era percebida e mal vista
pelos habitantes da região. Temos no discurso de Samuel Fritz dados que
atestam o avanço da fronteira e as motivações que tinham. Em suas palavras,
Os Portuguezes, depois que partiram, foram a
Guapapaté, um dia rio abaixo, e em frente da aldêa se
detiveram dez dias tirando alli em terra firme salsaparilha.
Tambem fizeram á margem do Sul um desmonte, deixando
por marco uma arvore grande, que chamam Samona (LIV),
130
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. p. 385.
131
Ibid.
63
dizendo que haviam de vir povoar a terra, e não duvido que
assim venham a fazer pelo muito que cobiçam escravizar os
indios cá de cima; além de que excogitam que por aqui hão de
achar a porta para entrar no El-Dorado, que sonham não estar
muito distante.
132
Ainda de acordo com o Diário de Samuel Fritz na região de Maynás era
possível encontrar ouro. Os índios garimpavam-no no rio Iquiari e produziam
lâminas para seu comércio. Durante algum tempo acreditou-se que a área
onde as missões de Maynás estavam alocadas correspondiam ao El Dorado, o
que impulsionou expedições. Não os utensílios de ouro faziam parte desse
universo comercial, artigos como farinha, banana e redes eram muito
valorizados entre os índios que comerciavam também entre si.
133
A Amazônia durante bastante tempo ficou relegada a um segundo plano
pelas políticas reais, mas também teve seu valor reconhecido quando
ameaçada de perda. Isso é parte integrante do movimento irradiado da Europa
em direção à América, pois a Amazônia foi motivo de disputa entre as
potências marítimas modernas sobressaindo-se Portugal e Espanha num
longo processo que só foi finalizado nos tratados de Madri e Santo Ildefonso.
A colonização foi lenta partindo e se concentrando em Belém e em São
Luís. Quanto à demografia, em 1672 havia apenas oitocentos europeus
ocupando aquele espaço. Os colonos que provinham dos centros açucareiros
tentaram repetir o sucesso da indústria, porém a escassez de mão-de-obra
ocasionada pela guerra, escravização e doenças e a dificuldade de transporte
mantiveram os lucros em níveis baixos. Segundo Charles Boxer, pela
precariedade material dos moradores era preciso utilizar a mão-de-obra
indígena para produzir riquezas e a própria subsistência. Nesse contexto de
pobreza era impossível importar escravos africanos. Com isso, tornou-se
patente a necessidade e a urgência de empregar a mão-de-obra indígena
seguindo a estratégia de ão portuguesa que era de defesa da posse, criação
de uma economia regional e a conversão do indígena ao Cristianismo.
132
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. p. 394.
133
Ibid. p. 380.
64
A economia da região era baseada na troca de produtos naturais da
mesma como algodão, açúcar e a moradia ainda eram bem sticas, mesmo
porque os povoadores se denominavam pobres em geral.
Depois de 1680 as drogas do sertão começaram a ser exploradas. A
pressa em explorar essa fonte de riqueza foi desastrosa: os engenhos foram
sacrificados e os produtos logo foram esgotados nas proximidades dos centros
populacionais.
Até o final do século XVIII as capitanias portuguesas do Pará e do
Maranhão eram povoações pobres e mal organizadas. A partir daí os objetivos
políticos e a expansão comercial passou a transformar a Amazônia.
A coleta das drogas do sertão” funcionou como objetivo para realizar a
ocupação do interior da Amazônia. Elas proporcionavam alto rendimento ao
colono português com a venda na Europa e provocaram escravização e
matança aos índios.
134
Frente a essa movimentação estava a atuação de Samuel Fritz que
também foi pautada numa ação diplomática. Por inúmeras vezes ele teve que
administrar conflitos e argumentar a legalidade de sua territorialidade, viajou
diversas vezes por esse motivo indo a Quito e até se disponibilizando para
viajar à Corte para pôr fim aos desentendimentos. Talvez essa atitude fosse um
tanto ingênua para alguém tão perspicaz, um homem que sozinho conseguiu
pacificar um contingente indígena enorme não poderia acreditar que fosse
conseguir somente através da palavra retirar as pretensões territoriais daqueles
que avançavam a sua região e que viviam sob a lógica da conquista e do
status. Um exemplo de sua atuação diplomática foi o encontro com o frei
Vitoriano Pimentel.
Os domínios de Espanha e Portugal ainda não haviam
sido definidos na Amazônia, o que seria feito muitos anos
depois, a partir de 1750. Santo Elias do Jaú não tinha uma
economia forte, por mais interesse que missionários e colonos
pudessem ter no extrativismo as drogas do sertão que
se havia iniciado no vale do rio Jaú e seus afluentes. O papel
daquela ponta-de-lança criada por portugueses no rio Negro
era nitidamente geopolítico: Santo Elias do Jaú era uma
134
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. O trabalho na Colônia. In: LINHARES, Maria Yedda (org.).
História Geral do Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
65
fronteira, no fim do século XVII, a ponta mais avançada do
processo de expansão (mercantilista) português pela
Amazônia. Frei Vitoriano Pimentel sabia disso, pois um dos
objetivos principais de sua viagem de 1702 era tentar
convencer o padre Samuel Fritz jesuíta a serviço da
Espanha, residente no Solimões da legitimidade das
reivindicações territoriais portuguesas sobre longos trechos
desse rio. O encontro entre Pimentel e Fritz acabou ocorrendo
em fevereiro de 1703, na missão de Santa Maria Maior –
imediações de Tabatinga.”
135
Aqui se reconhece o valor diplomático da ação do padre Samuel Fritz
que não só nessa ocasião foi requerido para legislar sobre a questão da
territorialidade das missões. Recorrentemente o padre e seus índios eram
importunados sob a justificativa de que sua ação passava-se fora da jurisdição
que lhe competia apesar de ter recebido o aval do rei.
O crescente movimento de luso-brasileiros avançando para esse espaço
não recrudesceu. A interiorização promovida por colonos, sertanistas e
mestiços deslocados do lado português delimitado no Tratado de Tordesilhas
tendeu a se intensificar durante o período da União Ibérica.
Nesse processo as forças peninsulares foram deteriorando-se na mão
dos sucessores de Felipe II e o povo português reagiu embalado pelo
Sebastianismo
136
. Assume D. João IV em 1640, extinguindo a União Ibérica.
Contudo o Tratado de Tordesilhas ainda estava em vigor e os portugueses o
aceitavam o domínio espanhol na Amazônia. Separadas as Coroas, Portugal
considerava a Amazônia território seu, respaldando-se na Ata de Pedro
Teixeira
137
, onde constava a posse das terras no interior da região. Tornou-se
premente para Portugal tornar efetiva a ocupação da Amazônia, independente
dos interesses da Espanha.
Terminada essa fase, o conceito de fronteira entre as Coroas Ibéricas
alterou-se. Antes vigorava os limites decretados e acordados entre ambas
135
LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios. Brasília: UNB, 1999. p. 28-9.
136
O Sebastianismo foi um movimento que se iniciou em Portugal depois do desaparecimento de Dom
Sebastião, então rei, na batalha de Alcacer-Quibir em 1578. Os adeptos desse movimento acreditavam na
volta do rei salvador que resgataria o trono português do domínio castelhano restaurando sua honra e
soberania perdidas com a União das Coroas Ibéricas. VAINFAS, Ronaldo. Dicionário de Brasil
Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 523-6.
137
RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da Amazônia. Da soberania difusa à
soberania restrita. Brasília: Senado Federal, 2005.
66
através dos tratados de limites, com a Restauração Portuguesa passou a
vigorar como critério de posse da terra o antigo princípio romano Uti
Possidetis
138
a ser legalizado pelo Tratado de Madri. Instalava-se a
controvérsia: para Portugal o ato de posse de Pedro Teixeira deveria ser
considerado válido, do lado espanhol Samuel Fritz reivindicava a legitimidade
de sua atividade missionária.
A insatisfação de ambas as partes com essa situação
era muito grande. Freqüentemente, esse quadro conflitual
latente se exprimia em pequenos incidentes, dos quais o mais
diretamente vinculado à questão geopolítica foi, sem dúvida, o
que surgiu diante da ão missionária do Padre Samuel Fritz,
a serviço da Espanha, no alto Solimões.
139
Verificamos que a experiência de Fritz tomou uma dimensão geopolítica
importante na medida em que sua ação estava ocorrendo justamente na
fronteira entre as duas Coroas Ibéricas que passaram por um processo de
dissolução na Colônia devido à união das Coroas ocasionada pela crise
sucessória da Casa Dinástica de Avis.
O contato entre portugueses e espanhóis ao longo da fronteira
americana foi constante e contínuo de acordo com Francisco de Solano. Esse
movimento era forçado pelos interesses econômicos, pelo comércio
acarretando um trânsito espacial que anulou a linha imaginária de
Tordesilhas.
140
Concordamos com essa consideração respaldada também pelas
palavras de Schwartz e Lockhart ao colocarem que uma das grandes
dificuldades de se delimitar fronteiras reside na semelhança e na interligação
138
RIBEIRO, Nelson de Figueiredo. A questão geopolítica da Amazônia. Da soberania difusa à
soberania restrita. p. 249. QUADROS, Eduardo Gusmão de. Embaixadores de dois reinos:
missionários e fronteiras na região amazônico-caribenha (1750-1801). Tese de doutoramento.
Brasília: UNB, 2005 e A e a fronteira na região amazônico-caribenha: Uma Análise a partir do
Diário de Padre Samuel Fritz. Revista Brasileira do Caribe, vol. 4, n 8, jan/ jun, 2004, UFG.
139
_____. A questão geopolítica da Amazônia. Da soberania difusa à soberania restrita. p. 71.
140
SOLANO, Francisco de. Contactos hispanoportugueses en América a lo largo de la frontera brasileña.
(1500-1800). In: _____, BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la
frontera. p. 215.
67
entre as sociedades que são postas em lados opostos. Mesmo pertencendo a
jurisdições distintas, o comércio permanece em meio a guerras e diplomacia.
Esse movimento da fronteira continuou até as resoluções do Tratado de
Madri demarcando as imediações das missões de Maynás como marco divisor
entre as possessões espanhola e portuguesa. As várias intervenções e
debates que Samuel Fritz promoveu ou se envolveu o foram em vão. Era ali
realmente o limite. Para defender sua posição e evidenciar que estava
licitamente ocupando um território espanhol, ele não poupou esforços e
aguardou pacientemente, porém não passivamente a resposta do rei de
Portugal que acabou afirmando a veracidade de suas declarações.
141
Porém,
sua condução até suas missões foi uma armadilha para tentar novamente
destituí-lo dali. Os luso-brasileiros tentaram mais uma vez tomar posse do
território de Maynás.
Todo esse movimento de conquista envolvia relações com os nativos.
No caso de Maynás observou-se uma diversidade de tribos, sobressaindo-se
os Omágua no Diário do padre Samuel Fritz. Os Omágua tinham costumes
semi-sedentários, pois eram obrigados pela natureza a se deslocarem para
terras altas que os abrigassem contra as águas das enchentes. Essas
enchentes ocorriam anualmente e atingiam a normalidade do cotidiano da
sociedade indígena que era obrigada a migrar para terras mais altas todos os
anos até que as águas baixassem e pudessem retornar a seus territórios.
Para escapar á grande enchente que sóe haver neste
rio todos os annos, em fins de Janeiro de 1689, da reducção
de São Joaquim dos Omaguas, que é principio de minha
missão, desci á aldeia dos Jurimaguas.
142
Estima-se que as migrações de indígenas para a Amazônia tenham
começado 10 mil anos. Exploradores europeus faziam contatos por volta do
século XV, mas sua efetiva conquista e colonização deu-se a partir do século
XVII como desdobramento de contatos esporádicos anteriores. Esse processo
141
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 319.
142
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. p. 375.
68
excedia a submissão de homens, era preciso domar a natureza ou saber
conviver com ela.
Mas toda a proteção que a natureza oferecia também era algo que
aguçava o imaginário e as ambições imperialistas européias uma vez que a
porta de entrada para a Amazônia era justamente o ponto central de encontro
da economia atlântica de então – o Caribe.
Os índios que migraram para essa região viviam ali de acordo com uma
estrutura cultural própria baseada na vida comunitária e com instituições
adequadas às suas necessidades. Com a expansão ultramarina dos povos
europeus, esses dois universos culturais distintos entraram em contato,
principalmente pelo comércio. Os diferentes povos como ingleses, holandeses,
franceses, espanhóis e portugueses que não tinham uma política estatal para
explorá-la sistematicamente, tornavam a Amazônia um espaço disputado,
porém ainda não efetivamente explorado pelos Impérios em expansão. Em
última instância, pode-se dizer que este era um “espaço de ninguém”
oficialmente. Isso tudo é o que configura a política atlântica.
143
Os índios que viviam na Amazônia sobrevivim dos alimentos fornecidos
pela natureza: rios e floresta, ambas em bastante abundância. As populações
indígenas que viviam na várzea de grandes rios como o Solimões eram
numerosas e densas. Uma dessas populações era a dos Omágua que já
haviam sido registrados na literatura de viagem desde Orellana e que
destacamos aqui por ser o centro das missões de Samuel Fritz. Segundo a sua
descrição oferecida no Diário, os Omágua eram uma tribo bastante numerosa e
extremamente belicosa. Eram homens de estatura mediana, robustos e mais
pretos que os índios do monte
144
, muito curiosos, falantes e altivos. Cultivavam
algodão para fazer roupas, conheciam a cerâmica, viviam em grandes aldeias
e desenvolveram um sistema político incluindo líderes tribais
Sobre esse povo “os primeiros cronistas falam em províncias
governadas por senhores, geralmente sugerindo um poder político
centralizado”.
145
O povo Omágua estava organizado em aldeias com chefe
143
PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical.
144
De acordo com os dados do Diário de Samuel Fritz estes correspondem aos índios que habitavam as
“terras secas”, as terras mais altas que provavelmente estariam livres das enchentes periódicas dos rios da
região.
145
HOORNAERT, Eduardo (coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 32.
69
próprio e governador e estas unidas formavam províncias que possuíam um
chefe supremo. Referiram-se à guerra pela qual mantinham grandes áreas
despovoadas,
Os Omagua viviam em contínuo estado de guerra com
as tribos do interior. Para a defesa, as aldeias eram cercadas
de paliçadas, ou localizadas em ilhas, onde ficavam
inacessíveis aos habitantes da terra firme que não possuíam
canoas. As incursões eram motivadas pelo desejo de vingança
ou de adquirir escravos. Os velhos e as mulheres, que não
prestavam para a escravidão, eram mortos imediatamente,
enquanto os cativos de categoria elevada ou coragem notável
que, se deixados vivos, representariam um perigo constante,
eram mortos no decorrer das cerimônias. As cabeças eram,
conservadas dentro das casas, como troféu.”
146
Segundo Meggers apesar da ostensiva belicosidade dos Omágua, a
guerra não funcionou como um método de controle populacional. Aponta
inclusive um acordo de defesa mutua de chefe Omágua com vizinhos da
fronteira na várzea. Em contraponto ajudavam a frear o aumento da população
da terra firme e faziam os prisioneiros necessários para engrossar as fileiras de
mão-de-obra. A lançadeira de dardos tinha múltipla função, tanto era usada na
caça, na pesca como na luta. Machados e enxós eram ferramentas para o
trabalho agrícola produzidas de pedra ou com casco de tartaruga.
Os prisioneiros eram considerados propriedade e suas atividades
colocava-os na condição de empregados. Não possuíam habilidades diferentes
daquelas existentes na comunidade e quando ocorriam momentos de crise
de alimentos, eles eram descartados sem prejuízo à aldeia. Isso funcionava
também como um controle populacional. Outro ponto destacado pelos
primeiros cronistas foi o comércio. Contatos esporádicos com outros povos
acabaram por incluí-los em redes comerciais locais e internacionais. Samuel
Fritz oferece-nos uma dimensão desse comércio: Taromases comercian con
los Caripunas y otros amigos de los franceses de la Cayana (sic), de quienes
146
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
p. 162.
70
tenian una escopeta.”
147
Aqui está citado não somente o comércio, mas
também a aquisição de produtos diferentes dos usados pela sua cultura como
é o caso da referida escopeta. Em outro trecho temos referido o comércio entre
os próprios índios.
Reparé que, no obstante que todos mostraban deseo
de seguirme para arriba, tienen muchos motivos que los
retraen de esta resolucion; y es el principal, que viviendo allá
abajo, con facilidade y poco costo se proveen de herramienta
inglesa del o Orinoco, porque la compran con unos abalorios
que hacen de caracoles. [...] Con esos abalorios van los
comerciantes [...] á tierras de otros infieles y rescatan unos
cautivos; estos despues los llevan por el Rio Negro á los
Guaranacuas, hasta donde llegan los ingleses, porque pocos
días median de estos Guaranacuas, caminando por tierra se
llega á los Pajonales y río Orinoco.
148
Desta forma, percebe-se a importância que a atividade comercial obteve
entre os indígenas amazônicos que participavam tanto de um comércio inter-
tribal como a nível internacional.
Os primeiros relatos destacam a abundância de alimentos e destacam
que era necessário pouco trabalho para conseguir atingir esse nível de
armazenamento. Para os Omágua, a mandioca era o alimento básico seguido
do milho, mas havia outras culturas como amendoim, pimenta, abacaxi, tabaco,
algodão e outros. Com relação aos métodos agrícolas, Meggers destaca na
narrativa de Fritz o modo e a eficácia dos Omágua que potencializava a
produção. Eles tinham criações de tartarugas, os peixes tinham grande
importância para a subsistência e as castanhas-do-pará eram importantes para
a dieta.
Havia muita semelhança entre os índios da várzea e da terra firme que
inclui a alimentação, casas comunais e manufaturas como cerâmica e adornos.
As diferenças estão nas armas, na organização social, política e religiosa.
149
147
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones
de los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). p. 323.
148
Ibid. p. 337.
149
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
p. 171, 176-7.
71
Nas aldeias, o povoamento incorporava índios de diferentes tribos onde
eram doutrinados.
A população das missões era constantemente
acrescida de fugitivos do baixo rio, que procuravam o asilo
sagrado contra as brutais incursões portuguesas em busca de
escravos. Em 1710, entretanto, expedições particularmente
devastadoras penetraram na zona das missões, provocando o
seu abandono e a retirada dos sobreviventes. A missão de
San Joachim de Omaguas foi restabelecida abaixo da foz do
Ucaiali mas, em 1731, tinha apenas 522 habitantes. A ngua
Omagua, que pertencente à família lingüística Tupi, foi
escolhida pelos missionários para a comunicação oficial
intertribal e para o catecismo.
150
A autora atribui a decadência da tribo Omágua às doenças contraídas
dos colonizadores e às incursões preadoras de índios que associadas aos
ensinamentos adquiridos nas missões acabaram quase que por extinguir o
modo de vida Omágua até o princípio do século XVIII.
Estima-se que na época do primeiro contato eles fossem 100 mil
indivíduos. As densas florestas entre os rios da região eram o habitat mais
extenso. Nesses lugares a prática da agricultura era mais difícil, além de
abrigar caçadores. Aí os grupos eram pequenos e semi-nômades.
O padre destacou a posse de escravos pelos Omágua e enfatizou que
os tratavam como iguais: “los miran con mucho amor, como á sus propios hijos,
los proveen de vestido, comen en un mismo plato y duermen con ellos debajo
de un mismo toldo, sin hacerles la menor vejación.
151
Interessante observar
que os mesmos índios que lutavam contra a escravização por parte dos
portugueses também praticavam essa relação social de poder. Fritz chega a
comparar o português ao índio bárbaro. Acrescenta que existia um costume
bastante peculiar e que deve ter causado-lhe espanto ao se deparar com esses
povos. Eles tinham o costume de deformar a cabeça na parte frontal, o que
lhes dava uma aparência muito exótica. Os Omágua distinguiam-se dos demais
indígenas pelo costume de achatar o crânio sendo considerado um distintivo de
150
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. p. 156.
151
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones
de los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). p. 305.
72
beleza na sua cultura. Meggers destaca a técnica narrada por Fritz: “este
formato era dado na infância ‘colocando na testa dos bebês uma pequena
prancha ou um entrançado de junco amarrado com um pouco de algodão, para
não os ferir, e os amarrados pelos ombros a uma pequena canoa que lhes
servia de berço’.”
152
Essa tradição foi descrita no Diário como herança do
Diabo.
153
Mas como podemos entender que povos que mantinham uma relação
estreita com o Diabo, mbolo antagônico do Cristianismo, solicitassem uma
proteção missionária? Obviamente esse foi uma leitura de Fritz para a
realidade, pois era preciso tornar inteligível aos seus leitores e interlocutores o
que se passava em suas missões. Além disso, esse argumento fazia-se muito
eficaz para respaldar a idéia de que a fé que funcionava na realidade era a
católica professada pelos espanhóis.
Os caminhos conduziam ao interior e algumas aldeias podiam ser
atingidas por canoa durante a cheia do rio. As casas eram construções grandes
e retangulares. Elas eram “rigorosamente espaçadas e orientadas com o longo
eixo perpendicular à margem do rio. Havia uma porta em cada extremidade. O
interior era sempre varrido e guarnecido com redes, grandes esteiras e vasos
de cerâmica.”
154
A cerâmica era uma arte bastante desenvolvida. Homens e
mulheres cobriam seus corpos com roupas de algodão pintados com desenhos
coloridos. Os homens despiam-se nos momentos de trabalho, pois as roupas
tolhiam seus movimentos.
Sobre o controle populacional entre os Omágua a autora destaca o
infanticídio, praticavam a vingança por envenenamento e assassinato dos
inimigos que viviam na terra firme com os quais estavam em luta, matavam
alguns prisioneiros como os de idade avançada ou que gozavam de prestígio
social e de notável coragem. Os Omágua tinham o costume de fazer
prisioneiros e eles eram mantidos quando não significavam um aumento
populacional insuportável à aldeia, caso contrário, eles eram executados.
155
152
Samuel Fritz op cit MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. p. 157.
153
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones
de los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). p. 304.
154
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. p. 157.
155
Ibid. p. 177.
73
Algumas características do povo Omágua foram consideradas
influências andinas como a deformação do crânio, o uso do escudo como
arma, a lança, a lançadeira, as roupas de algodão e as características sócio-
políticas e religiosas.
156
A Amazônia foi inserida no circuito de conquistas portuguesas como o
último capítulo dessa História. Mas o bastava desvendá-la aos olhos
humanos e trazê-la ao conhecimento mundial, era preciso explorar, fazer brotar
riquezas daquela terra exuberante que demonstrou, por várias vezes, possuir o
tesouro mais precioso que poderia oferecer os homens de pele vermelha
que construíram desde os primórdios cada linha da História que hoje
conhecemos e tentamos entender. Foi a partir da convivência do índio com o
branco, dessa mestiçagem que a Amazônia integrou-se à América Portuguesa
e daí ao espaço atlântico.
Depois de termos visualizado a conquista espanhola, a portuguesa e a
consolidação da colonização da Amazônia podemos concluir que a construção
do espaço amazônico foi fruto da ão conjunta dos indígenas, dos colonos e
dos religiosos. O estriamento desse espaço foi operado partindo das margens
e do curso dos rios da região. Contudo, um espaço não precisava respeitar a
circunscrição do outro, principalmente quando ele era de produção indígena.
Nem mesmo os religiosos conseguiram frear os impulsos dos colonos, tendo
que ceder aos seus pedidos ainda que a contragosto.
156
MEGGERS, Betty J. Amazônia. A ilusão de um paraíso. p. 179-80.
74
4. “MURALHAS DO SERTÃO”: fronteiras missionais e a
corporeidade como instituição de fronteira
Dando continuidade aos aspectos importantes da política atlântica
vamos trabalhar neste capítulo os jesuítas, sua tradição e seu papel para a
política atlântica.
É notório que durante a época moderna a religiosidade fora exacerbada
e marcada de forma decisiva para a sociedade e os acontecimentos
posteriores. Para Jacques Heers, a amplitude dos empreendimentos, a
persistência do entusiasmo em alguns meios seriam explicados pelo estudo
das mentalidades coletivas, ou seja, uma análise do fator religioso ligado às
Cruzadas. A religiosidade do homem medieval foi um fator, sem dúvida,
determinante no empreendimento cruzadista, mas a ele outras questões se
aliaram. A questão demográfica impulsionou o aumento da população e a
necessidade de buscar novas áreas tanto para o cultivo como também
simplesmente para possuí-las. Outro dado importante foi o político: os filhos
que não herdavam os bens familiares viam-se marginalizados e empenhavam-
se em se colocar sob as intenções das Cruzadas. Os que a ela se juntavam
tinham um só sentimento: a busca da salvação de suas almas através do
serviço a Deus e pela libertação do centro espiritual do Cristianismo.
157
A Igreja ibérica funcionava de acordo com a sociedade a qual pertencia.
Igreja e Estado estavam ligados e se assemelhavam bastante na forma de
organização: vários corpos independentes que competiam entre si. A Coroa
intervinha diretamente na Igreja nomeando bispos e dignitários das catedrais e
agia como árbitro em questões entre ordens religiosas. A sociedade não
reconhecia a Igreja como uma entidade devido à pulverização de sua
organização.
158
Estava dividida em seculares e regulares, essa divisão
considerava níveis de educação, recursos e esfera de atuação. Agiam também
na área da educação abrindo escolas, participavam nas universidades e
administravam hospitais.
157
HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Difusão Européia do Livro, Editora da Universidade
de São Paulo, 1974.
158
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. p. 32.
75
A Companhia de Jesus da qual Samuel Fritz fazia parte era um todo
muito bem organizado, inserido numa tradição.
159
Os jesuítas, que foram
autorizados pelo Conselho das Índias a se estabelecerem na América
Espanhola em 1566, praticaram seu trabalho religioso nas aldeias missionárias
que se localizavam próximas às povoações coloniais já que os índios deveriam
ser disponibilizados para o trabalho junto aos moradores. Os jesuítas
passaram a existir como ordem religiosa quando começaram as conquistas e
surgiram com toda força nas Índias Ocidentais espanholas a partir de 1570.
Esses religiosos despertaram sentimentos ambíguos e contraditórios durante
as suas atuações, porém para os autores as divergências com outras ordens
religiosas foram menores na realidade do que possa parecer. Eles salientam o
caráter propagandístico da Companhia.
A ordem dos jesuítas era uma organização da época moderna, tinha
mais centralização que as demais ordens e um caráter internacional. Os
jesuítas estavam mais distantes da tradição do claustro que outras ordens da
época, como a dos mendicantes. Assim, eles estiveram mais próximos às
populações nativas e aos colonos com os quais estiveram em conflito por
causa da utilização da mão-de-obra indígena.
O saber jesuítico deve ser entendido como a síntese entre a herança do
conhecimento aristotélico e da tradição hermenêutica cristã, a orientação
humanística de seu regime educativo (Ratio Studiorum) e suas práticas
institucionais.
Os jesuítas davam muita importância à formação acadêmica de
seus membros e à educação como forma de apostolado, a difusão do
conhecimento produzido nos Colégios, os resultados das observações do meio
natural e moral das suas missões constituíam-se como exemplos missionários
e fonte para reformulação da atuação da Ordem nas missões.
160
Para os jesuítas, o contato com os nativos era um estímulo intelectual
que enriquecia sua missão apostólica e o intercâmbio de notícias através de
cartas e informes beneficiava a atividade intelectual. As cartas eram um hábito,
um exercício e uma obrigação para os missionários. Era através dessa
159
MACHADO, Heloísa Guaracy. Tradição, tradicionalismo e atualidade na perspectiva da longa duração
histórica. Cadernos de História. Belo Horizonte. V. 7, n 8, 2 semestre. 2005. Ed. Puc Minas. p. 15.
160
LEDEZMA, Domingo, FIGUEROA, Luis Millones. Introducción: los jesuítas y el conocimiento de la
naturaleza americana. In: _____. Historias Naturales y el saber de los jesuitas. Iberoamerica, 2005. p.
10.
76
ferramenta que se davam as notícias, faziam-se pedidos, reclamações e
exercitava-se a arte da retórica e da persuasão. Seus escritos eram
verdadeiros instrumentos de propaganda missionária. Durante os primeiros
cinqüenta anos da Companhia de Jesus operou-se uma compilação das fontes
de informação cultural e científica. Aentão não havia histórias completas e
detalhadas das experiências dos missionários. Em 1598, Cláudio Acquaviva,
Geral da Companhia, deu instruções aos provinciais para que produzissem
textos historiográficos sobre suas missões.
A cultura corporativa jesuítica tinha largo alcance, pois fazia circular
inúmeras cartas, informações e pessoas e permitia estender para além do
Evangelho as indagações dos membros, ou seja, de posse das informações
sobre natureza e cultura de diversos lugares, eles podiam interrogar sobre
questões como a humanidade indígena e a manutenção da escravidão. Esse
processo favorecia a produção local do conhecimento que se transmitia à
Companhia na Europa. Contrastando com esse pensamento temos a
colocação de Arno Wehling que registra a falta de dinamicidade do
conhecimento produzido pela ausência de massa crítica. Assim, o que existia
era um saber referenciado à interpretação dominante submetido ao controle
institucional rígido, à censura real eclesiástica, inquisitorial e da própria
Companhia.
161
De acordo com Ana Lúcia de Oliveira
162
, para os jesuítas da época
barroca conhecer o mundo no qual estavam inseridos, decifrá-lo era uma
estratégia de sobrevivência. Para se sentirem seguros era necessário estar
bem localizados inclusive geograficamente. Eles consideravam que a vida na
Terra era um estágio para se alcançar o reino dos céus, por isso era
imprescindível saber viver. Eles deviam também exercitar seu aprendizado
encaixando-se numa “cartografia moral” através de seus escritos.
A compreensão da sociedade e da natureza do Novo Mundo ajudava os
jesuítas a alcançarem seus propósitos nesse espaço. Antes de alçarem essas
empreitadas havia uma preparação intelectual e espiritual nos Colégios da
161
WEHLING, Arno. O pensamento jesuítico no Brasil colonial. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n.
410, jan/mar. 2001.
162
OLIVEIRA, Ana Lúcia de. Por quem os signos dobram. Uma abordagem das letras jesuíticas. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 2003.
77
Europa e devido a isso, eles “fueron historiadores e intérpretes privilegiados de
la naturaleza americana.”
163
Todo o aparelhamento acadêmico dado aos jesuítas tinha como
finalidade prepará-los para o encontro com as populações de terras distantes
como a Amazônia e a permanência dos missionários nessas localidades por
mais adversas que as condições pudessem ser.
Antes do missionário viver realmente sua experiência missional e ser
confrontado com a realidade americana, ele era preparado nos Colégios dentro
de uma disciplina rigorosa, moral e intelectual. Ali se desenvolviam habilidades
que seriam, posteriormente, utilizadas nas suas missões. Era muito valorizada
a capacidade de escrever e essa foi uma característica muito marcante da
Companhia de Jesus. A escrita para os missionários era um hábito, um
exercício, uma obrigação e a possibilidade de estar em contato com o mundo
europeu. Era através dessa ferramenta que se davam as notícias, faziam-se
pedidos, reclamações e se exercitava a arte da retórica e da persuasão. Seus
escritos tornaram-se verdadeiros instrumentos de propaganda missionária.
Ao analisarmos discursos jesuíticos, que são verdadeiros discursos
sobre o outro e sobre eles mesmos – neste caso o índio e os jesuítas –
devemos estar conscientes de que só temos o controle do discurso jesuítico e
conseqüentemente da seleção que este fez ao escrever, temos a sua visão
do universo no qual ele estava inserido por vontade própria ou por imposição
da Companhia de Jesus, mesmo porque se configurava num desafio
missionário servir em terras longínquas, devemos levar em consideração de
quem parte o discurso e por que ele foi reproduzido de tal forma. Para tentar
esclarecer essa questão, tomamos o texto de Fernando Torres Londoño.
Segundo ele, a produção jesuítica tinha a seguinte função: “... consolidar e
edificar, dando a conhecer as obras feitas em nome de Deus.”
164
A partir da leitura desses documentos podemos verificar a intenção
explicitamente propagandística da Companhia de Jesus, sempre exaltando os
feitos dos seus missionários e atribuindo os fracassos decorrentes do processo
163
LEDEZMA, Domingo, FIGUEROA, Luis Millones. Introducción: los jesuítas y el conocimiento de la
naturaleza americana. p.09.
164
LONDOÑO, Fernando Torres. Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no século XVI. Revista
Brasileira de História. São Paulo, ANPUH: Humanitas Publicações, v. 22, n. 43, 2002. p. 15.
78
de catequese e/ ou aculturação à interferência de terceiros, fosse este índio,
colono ou ambos. É interessante observar que no Diário de Samuel Fritz os
fracassos são pouco mencionados, obviamente não por não terem existido,
mas porque era mais importante exaltar os sucessos do que ofuscá-los com a
menção a fracassos. Talvez isso fosse uma defesa dos próprios missionários
para ocultar suas fraquezas perante todo o público europeu, em especial, o
público dos Colégios, sedentos por informações que deveriam encorajá-los a
se tornarem efetivamente missionários em terras distantes e adversas.
Os missionários da Companhia de Jesus espelhavam-se no exemplo de
Inácio de Loyola, o qual instituiu as regras que regiam o seu trabalho e
daqueles que se propunham à vida missionária.
Segundo Domingos Ledezma e Luis Millones Figueroa, a Companhia de
Jesus fundou-se com uma profunda vocação missionária, o que a diferenciava
de outras ordens religiosas de origem medieval e por não propor uma vida
monástica, nem conventual e exigir certo rigor intelectual de seus membros.
Para los jesuitas el estudio no era un mero apéndice de
la vida espiritual sino también una forma de participar en los
debates intelectuales de la época y el modo de desarrollar un
proyecto científico propio, lo que se manifestó especialmente
durante el siglo XVII. Asimismo, los jesuitas se interesaron
más, a diferencia de las ordenes, por el conocimiento de las
ciencias prácticas y el manejo de asuntos mundanos.”
165
Obviamente essa preocupação intelectual fez dos jesuítas os mais bem
preparados. Seu lema: “Un solo mundo no es suficiente” (Unus non sufficit
orbis),
166
demonstra a aspiração política imperial da Companhia e alude a
vontade dos jesuítas como soldados de Cristo de expandir sua obra
missionária. Suas notícias e a propaganda missionária davam-se pela
produção textual onde figuravam informações sobre a natureza de lugares
desconhecidos e das atividades desenvolvidas nas missões em diversas partes
165
LEDEZMA, Domingo, FIGUEROA, Luis Millones. Introducción: los jesuítas y el conocimiento de la
naturaleza americana. p. 09.
166
Ibid. p. 12.
79
do mundo. Informar sobre a experiência missionária e seus avanços era muito
importante para dar exemplo e encorajar novos discípulos.
Con el fin de orientar a sus lectores y para dar una idea
verdadera de los retos que significaba la labor misionera en
aquellas regiones lejanas, las crónicas incluían información
sobre la historia y cultura de los pueblos visitados y, con
mayor o menor detalle, las particularidades de la naturaleza de
la región. Esta nueva producción narrativa significó un
segundo impulso para los temas del mundo natural en el
corpus textual de la Compañía.
167
Esse estímulo era oferecido pela produção escrita tendo sido a
descrição da Natureza o primeiro tema para o qual os jesuítas voltaram-se.
Tendo como antecedente a tradição hagiográfica cristã, as histórias jesuíticas
buscavam exaltar, enfatizar as virtudes, sacrifícios, perigos e os feitos dos
missionários incentivando novos discípulos ao serviço através do seu exemplo.
Mesmo concentrando-se na descrição do trabalho missionário e nos conflitos,
Samuel Fritz ainda teve oportunidade de oferecer dados sobre a Natureza em
seu Diário.
Atravesamos aquí la Bahia de Amazonas, grande y
furiosa, y entramos al puerto de Yavacuará. Aquí es muy
hermosa la vista, ver desde más debajo de Parú hasta arriba
de Yavacuará, campiñas y cerros, unos pelados, otros con
arboleda espesa.
168
As primeiras histórias serviram de modelo para as posteriores, apesar de
serem aplicadas a novos espaços havia uma lógica geral que começava por
apresentar a geografia, a flora, a fauna, os potenciais naturais, os nativos e
depois os acontecimentos próprios de cada lugar.
167
LEDEZMA, Domingo, FIGUEROA, Luis Millones. Introducción: los jesuítas y el conocimiento de la
naturaleza americana. p. 13.
168
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. Iquitos
(Perú): Instituto de Estudios de la Amazonía Peruana ; Centro de Estudios Teológicos de la
Amazonía, 1988. Série Monumenta Amazônica. p. 312.
80
À medida que as missões eram consolidadas e os colégios superiores
fundados ocorria uma difusão do conhecimento geográfico, etnológico e natural
que aumentava o interesse pelo exótico e pelo desconhecido. O contato dos
jesuítas com o mundo natural das terras longínquas despertava a reflexão
sobre a realidade e a participação em vários assuntos. Acercarse de manera
efectiva a los nativos, cuya salvación era el objetivo de las misiones, implicaba
conocer el mundo natural del cual derivaban sus prácticas culturales.
169
Isso
implicava numa dinâmica de comunicação e intercâmbio com os nativos.
Assim, essa literatura produzida nas missões funcionava como um
estímulo para produzir novos missionários interessados em empreender a
aventura espiritual em lugares distantes e muito diferentes da sua realidade.
Em outro artigo, Luis Millones Figueroa coloca que apesar do Novo Mundo ter
recebido esforçados e capazes missionários, os mais influentes cultural e
politicamente permaneceram na Europa. La experiencia americana era
percibida como una tarea ante todo misional con alto riesgo y era lógico
querer aprovechar y proteger en los centros de mayor importancia a los
miembros destacados.
170
Porém, isso não quer dizer que aqueles que vieram
para a América eram despreparados ou menos inteligentes, mesmo porque a
curiosidade intelectual poderia surgir e se desenvolver em quem se mudava
para a América e porque a Companhia tinha um projeto de criação de elites
intelectuais locais.
Proliferava uma verdadeira rede de comunicação que ia do âmbito local
ao internacional, nutrindo a curiosidade de mestre e estudantes dos colégios
jesuítas na Europa. Y de esta manera, relatos y objetos del Nuevo Mundo,
aun de los lugares más remotos, quedaban a disposición de la Compañía para
deslumbrar y obsequiar a señores poderosos que ayudaban a financiar las
misiones.
171
Para aquela época isto significava a busca pelo conhecimento
que se justificava e contribuía para o conhecimento de Deus expresso no lema
da Companhia de Jesus: ad majorem Dei gloriuam.
172
169
LEDEZMA, Domingo, FIGUEROA, Luis Millones. Introducción: los jesuítas y el conocimiento de la
naturaleza americana. p. 15-6.
170
FIGUEROA, Luis Millones. La intelligentsia jesuita y la naturaleza Del Nuevo Mundo en el siglo
XVII. p. 27.
171
Ibid. p. 28.
172
Ibid. p. 36-7.
81
Figueroa salienta o fato dos jesuítas (no caso do seu estudo,
Nieremberg e Kircher) dedicarem suas obras a figuras políticas importantes no
momento de sua produção ou publicação. Debió parecer lógico y necesario
para estos intelectuales de la Compañía que quienes mandaban sobre el
Nuevo Mundo comprendieran a la manera jesuita – los secretos de su
naturaleza.
173
Ao mesmo tempo havia uma preparação muito rigorosa e espiritualizada
nos centros europeus. Ainda vivia sob as influências da transição cultural da
Idade Média para a Idade Moderna quando a experiência religiosa do século
XVII recolocava o corpo na literatura espiritual, ao passo que o Concílio de
Trento restringe-o. Todo o aparato desenvolvido em torno da pregação tinha
como fim uma função pedagógica, onde a natureza constituía-se como suporte
para uma mensagem à organização humana.
174
O homem moderno necessitava visualizar, simbolizar o mundo para
satisfazer sua necessidade de representação, mas não era somente o mundo
visível, ele desejava conhecer e representar o homem interior, seus anseios e
possibilidades.
Na época Moderna o discurso religioso operava uma verdadeira
conquista imaginária da interioridade. Tratava-se de “anatomizar” a alma
175
, ou
seja, através da prática dos sermões tanto o predicador quanto o fiel eram
modelados para se comportar de determinadas formas. Mas para isso ser
atingido com eficácia era necessário antes de qualquer coisa treinar os
religiosos. A partir daí, então, uma gama de ensinamentos foram formulados
para esse fim, determinando a maneira de se colocar durante o sermão, os
gestos e toda a teatralidade que envolveria o público fiel. Nesse contexto
destacam-se os Exercícios Espirituais de Ignácio de Loyola como uma
ferramenta bastante eficaz para racionalizar os sentimentos e moldar o contato
com o plano espiritual. Aliado a isso estava o objetivo de uma ciência teológica
e de uma filosofia moral buscando conhecer todos os recursos psíquicos como
173
FIGUEROA, Luis Millones. La intelligentsia jesuita y la naturaleza Del Nuevo Mundo en el siglo
XVII. p. 43.
174
DE LA FLOR, Fernando R. La península metafísica. Arte, literatura y pensamiento en la España de
la Contrarreforma. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1999. p. 64.
175
Ibid. p. 216.
82
uma reserva de uma área de atuação específica voltados para a atuação no
mundo exterior através da doutrinação do interior, da espiritualidade.
176
“... la conciencia de esa corporalidad está inscrita profundamente y
desde muy antiguo en los códigos es decir, en las retóricas que
normatizavan la función de la palabra en la prédica.
177
Assim, podemos dizer
que a parte mais importante do sermão era a palavra e isso era um benefício
para aqueles irmãos que tinham de missionar em terras distantes e com
poucos recursos. A palavra, mesmo quando não entendida, tinha uma força
própria que era extraída da teatralidade do ofício religioso e era reforçada pela
gestualidade que, de acordo com o estudo de Jean-Claude Schmitt
178
, é
universal.
O trabalho de Jean-Claude Schmitt evidencia uma história dos gestos
que está intimamente ligada à Companhia de Jesus, pois havia toda uma
racionalização e moderação dos gestos para os jesuítas. Assim, a gestualidade
pode ser aplicada ao estudo das missões. Ele entende que os gestos são
aquisições sociais e que existe uma ordem universal que leva à compreensão
para além das palavras. Dessa forma, os primeiros contatos não poderiam ser
totalmente incompreensíveis.
179
Assim era preciso formular uma regra geral que pode ser observada no
manual de oratória de Quintiliano que dividia suas regras em cinco partes: a
inventio, concepção do tema, a dispositio, sua disposição no discurso, elocutio,
o estilo do discurso, memoria e pronunciatio, que envolviam a expressão
gestos e voz. Nestas regras da tradição clássica estão dispostas as maneiras
como o conjunto do corpo deve se apresentar para a eficiência do ato retórico:
A cabeça é um dos membros principais na ação,
assim como no corpo (...) O que se requer, pois, em primeiro
lugar, é que a cabeça esteja sempre direita e em uma postura
176
DE LA FLOR, Fernando R. La península metafísica. Arte, literatura y pensamiento en la España de
la Contrarreforma. p. 218.
177
______. p. 310.
178
SCHMITT, J. C. (1995) “A moral dos gestos”. In: Políticas do Corpo. Denise B. de Sant’Anna (org.).
São Paulo, Estação Liberdade, p.141-157.
179
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
83
natural. Porque baixa denota humildade; demasiado
levantada, arrogância; inclinada a um lado, desfalecimento, e
tê-la muito tesa e firme é sinal de uma certa barbárie.
180
A forma de vestir-se também estava prevista. Nem tanto esmero nem
tão pouco cuidado, o orador deveria apresentar-se de forma simples para que
suas vestes não fossem motivo de desatenção perante a Palavra. Esta atenção
significa uma preocupação tanto com o corpo quanto com a eficácia do
conjunto, pois à oralidade do sermão juntava-se toda a gestualidade que lhe
dava mais sentido; era a preocupação com o corpo de fiéis e a recepção da
Palavra.
A oralidade do sermão protagonizava a transferência e um
deslocamento do livro.
181
Essa era uma técnica utilizada desde a Idade Média
que equivalia a substituição do livro pela mão, era como se todos os
ensinamentos da Bíblia estivessem incorporados no pregador, seu corpo ou
melhor, sua mão era o manancial de onde jorrava a palavra de Deus. Se decía
de un buen orador sagrado que tenía la Sagrada Escritura <<en la uña>>.
182
Essa metáfora simbolizava a incorporação do discurso ao corpo imaginário.
Talvez por isso De La Flor tenha considerado a Igreja como um teatro.
183
Es cierto que en las retóricas sacras se legisla
minuciosamente sobre el cuerpo, al que se trata en última
instancia de <<domesticar>> para que se exprese las
verdades que afectan a la salvación. Ese cuerpo que enuncia
la palabra divina, no podría ser en verdad de ningún modo
indiferente a ella, tiene de ser, justamente, modificado,
arrebatado incluso, por esa dialéctica.
184
180
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
181
DE LA FLOR, Fernando R. La península metafísica. Arte, literatura y pensamiento en la España de
la Contrarreforma. p. 312.
182
Ibid.
183
Ibid. p. 323.
184
Ibid. p. 327.
84
De acordo com Fernando De La Flor, naquela época o movimento das
mãos na pregação correspondia a boa parte da eloqüência, o que não ocorria
com outras partes do corpo que poderiam fazer movimentos sensuais,
impróprios aos objetivos do sermão: ... otras partes de ese mismo cuerpo ideal
que evocamos deben, a gusto de los teóricos, permanecer inmóviles. Son, por
ejemplo, los labios y las narices, porque textualmente: <<No hay un solo
movimiento decente que se pueda hacer con ellos.>>.
185
Assim, o pregador
deveria estar totalmente consciente de que pequenos gestos sinuosos poriam
os objetivos sagrados em risco de perdição e a ele próprio. Outro elemento
muito importante no sermão era a voz e sua entonação.
La voz es, en el contexto de la predicación, proyección
del cuerpo en el espacio de la puesta en escena, y esa
proyección no se efectúa en su correcta dimensión sin un
conjunto de operaciones que chequean, valoran el campo,
llamémosle proxémico, de su actuar. La actio prescribe
entonces de qué modo el predicador debe hacerse cargo,
debe medir con su voz el ámbito de escucha, y debe, incluso,
también elegir la trayectoria, la dirección de esa misma voz,
debe colocar en suma su cabeza y dirigir su cuerpo hacia la
orientación favorable. [...] Y debe el predicador también probar
esa voz en todo tipo de ejercicios prévios, de simulaciones de
situación y de ensayos sobre materias inanimadas.
186
Vemos aqui o polimento e todo o cuidado com os detalhes que fazem a
diferença e a eficácia. Sangue, suor e lágrimas eram emitidos durante os
exercícios e prédicas como produtos da elevação espiritual do orador, contudo
essas emissões eram frutos do esforço e poder de controle e concentração do
mesmo.
187
Perante essas exibições de elevada espiritualidade estava um
público fiel que era conduzido pelas palavras do orador e envolvido por
sentimentos e ações pré-concebidas e determinadas compondo o quadro
“teatral” durante o ofício religioso.
188
185
DE LA FLOR, Fernando R. La península metafísica. Arte, literatura y pensamiento en la España de
la Contrarreforma. p. 334-6.
186
Ibid. p. 328-9.
187
Ibid. p. 338.
188
Ibid. p. 342 ss.
85
Era esse ambiente que formava os missionários que eram enviados para
as Colônias onde o trabalho significava um estágio para aqueles jesuítas e
também se configurava um desafio, uma verdadeira aventura. Por isso e por
toda a expectativa envolvida era preciso apresentar um bom resultado.
Apesar da grande importância da escritura, o foco principal da
Companhia de Jesus era a cristianização dos povos e assim os missionários
lançaram-se a essa tarefa na América por isso também tanta preocupação com
a preparação do religioso.
Tudo era regido pela Companhia de Jesus no que diz respeito aos seus
missionários. Uma série de restrições e obrigações foram impostas e se criou a
tradição da escritura das experiências o que figurava como outra forma de
controle. Os missionários possuíam uma apurada consciência histórica
materializada em seus relatos. No palco do século XVII, mediante as
transformações e revoluções científicas, apesar de conservadores, os jesuítas
não se recusaram a aceitar novos modelos culturais, ao contrário, “os
integraram nos marcos mais tranqüilizadores de um saber consolidado e
tradicional em cujo seio perdia sua cara potencialmente revolucionária”.”
189
A Companhia de Jesus agiu sobre o corpo elaborando uma série de
regras para sua conduta social. Havia uma disciplina interna estabelecida para
o cotidiano dos jesuítas que os tornava mais preparados para agir nos moldes
da Ordem. Eles se dedicavam a orações mentais, estudo e meditação dos
Exercícios Espirituais, trabalhavam em hospitais, faziam peregrinação, pediam
esmola, em outra fase da preparação deviam doutrinar pública e
individualmente crianças e pessoas simples, fazer pregação ou ouvir
confissões. Era um corpo moldado para sofrer e transpor obstáculos físicos em
nome da fé cristã.
Todo esse trabalho servia como condicionamento prévio para a
experiência nas missões porque o missionário deveria estar disposto
fisicamente para fazer seu trabalho e vencer as dificuldades impostas pela
realidade. O condicionamento externo para a atuação no espaço colonial era a
única garantia da continuidade do trabalho missionário. A correta atuação do
189
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
86
missionário no espaço através dos gestos, cerimônias, atitudes sociais definia
o êxito ou o fracasso dos projetos.
190
O corpo do missionário estava submetido a várias nuances como
condicionamento, deslocamento e adaptação à nova realidade. Era o encontro
com um mundo novo, culturas diferentes e hábitos muitas vezes
incompreensíveis e “reprováveis”. Por isso era preciso estar preparado para se
fazer entender minimamente e essa tarefa foi desempenhada através dos
gestos. Os jesuítas entendiam que os gestos realizavam a comunicação entre
corpo e alma e, por isso, tinha grande importância e como política cultural, seus
gestos passavam a idéia de moderação. Então, o corpo configura-se como
espaço simbólico e instrumental privilegiado para o discurso e a prática
religiosa.
É espaço instrumental privilegiado devido às
circunstâncias de seu condicionamento, deslocamento e
adaptação. Tentar entender as condições a que estava
submetido o corpo do missionário nos leva a pensar a cultura
européia no trânsito entre Idade Média e Moderna quando, a
princípios do XVI, a experiência religiosa recoloca o corpo na
literatura espiritual, e me remeto com obviedade a Santa
Tereza e São João da Cruz. E em seguida a esses, o Concílio
de Trento e as restrições ao corpo como materialidade
fundamental, apesar das palavras fundantes: “Esse é meu
corpo.
191
No Novo Mundo, o trabalho religioso era encarado como um limite
radical e era através dele que o projeto civilizador seria posto em prática. O
corpo era um veículo de comunicação entre missionários e índios bastante
eficaz, principalmente quando a linguagem verbal não era possível. Nesses
momentos, os gestos falavam, mas o corpo não era somente um instrumento
de transposição da fronteira oral, ele funcionava como instituição de fronteira
defensiva porque estando longe de toda forma de poder organizado era ele o
limite. Nesse processo é o corpo o protagonista, quando não comunicação
190
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
191
Ibid.
87
com palavras, usava-se gestos universais e compreensíveis para qualquer
cultura. Assimilar e imitar os gestos indígenas era uma forma eficaz de se fazer
entender e de se aproximar.
A disciplina e os elementos de civilização européia foram introduzidos
pelos missionários na sociedade colonial. A instrução religiosa elementar
obedecia a uma rotina e era uma das formas mais importantes de assimilação.
Segundo as Leis das Índias, os missionários deviam instruir os índios em
língua nativa, mas devido à falta de alguns conceitos, a instrução foi feita em
espanhol, primeiro através dos intérpretes índios. En el caso de los niños
considerados prioritariamente, la instrucción se lograba rápidamente.
192
Os
indígenas estiveram muito mais dispostos a adquirir a língua dos colonizadores
que o contrário, mesmo porque se beneficiavam no intercâmbio comercial, no
entanto, muitos missionários aprenderam a língua geral, o que era uma
ferramenta primordial de aproximação e houve, inclusive, a invenção de uma
língua na Amazônia chamada Nheengatu do lado português.
193
Para os missionários em terras longínquas era mais ameaçadora a
possível dissolução no outro do que a morte, porém essa dissolução ocorria em
muitas medidas tanto pela impossibilidade de fugir dela quanto pela
necessidade de aproximação com os futuros fiéis. Isso implicava o
reconhecimento do outro. Nesse contexto, os escritos atuavam como um
instrumento de sobrevivência e contato com a civilização européia.
A metrópole era o modelo inatingível e desejado. Era necessário viver
uma simulação que era sentida como verdade, uma reelaboração da
experiência religiosa. Para atingir essa intenção, não se pouparam esforços e
nesse processo, uns aprenderam com os outros.
194
Essa condição radical e definitiva que o corpo toma é
derivada do afrouxamento e da distância com o poder e
192
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. In: SOLANO, Francisco, BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre
la frontera. Madrid: CSIC, 1991. p.56.
193
Sobre a implantação e expansão do Nheengatu consultar FREIRE, Bessa. “Da fala boa ao Português na
Amazônia Brasileira”. Ameríndia, Paris, v. 8, p. 39-83, 1983.
194
FERNANDEZ-ARMESTO, Felipe. Los impérios en su contexto global. c. 1500 c. 1800. In:
SOLANO, Francisco, BARNABEU, Salvador (coords.). Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera.
Madrid: CSIC, 1991.
88
instituições metropolitanas nos espaços coloniais, fazendo
com que a Europa se configure como um discurso e que o
mundo metropolitano se “desrealize pela ausência de seus
usos”, ameaçando desse modo sua identidade geográfica e
corporativa.”
195
É por isso que o corpo do missionário passou a congregar as funções
concernentes ao Estado e à Igreja ao mesmo tempo em localidades
distanciadas dos centros. Ele passava a ser a única referência de autoridade
metropolitana em muitas situações e do seu comando dependiam as ações
efetuadas nessas regiões.
Seguindo a tradição espanhola, os jesuítas estavam concentrados nas
cidades com sedes em Lima e Cidade do México. Devido a seu vigor intelectual
e ação como educadores, eles substituíram os dominicanos na educação
secundária dos mais abastados. As doações que recebiam eram destinadas à
construção de igrejas suntuosas e emprego no desenvolvimento das
propriedades que administravam e eram muito bem sucedidas, ao contrário das
demais ordens que arrendavam ou entregavam a administração a leigos que
não conseguiam mais do que se assemelhar a haciendas hispânicas. Sua
organização e tino comercial fizeram a diferença.
Instalados em áreas centrais no século XVI procuraram um campo de
atuação entre os índios. Como as áreas estavam ocupadas e divididas entre
ordens mais antigas, os jesuítas tiveram de deslocar-se para as margens e
trabalhar obrigatoriamente com modestas populações de índios semi-
sedentários ou não-sedentários; os dois principais campos de ação foram o
extremo norte do México e o extremo sudeste da América do Sul espanhola, ou
“Paraguay”. Vista às vezes por observadores distantes como alguma trama
para criar um estado independente nas vastidões remotas, a localização
periférica foi escolhida simplesmente porque ainda estava disponível. E embora
não pudessem atuar exatamente como uma paróquia rural no Vale do México,
as comunidades jesuítas foram organizadas segundo os mesmos princípios
195
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
89
adotados por todas as ordens na periferia, como deixa claro seu nome de
reducciones.
196
Sabe-se que a Companhia de Jesus era uma ordem religiosa que
gozava de bastante prestígio e que pelo fato de Igreja e Estado estarem unidos
durante a Idade Moderna, a realização dos projetos estatais contava com o
apoio eclesiástico. Como foi dito, os missionários tinham como missão gerir
os indígenas e devido à união entre Igreja e Estado os cargos de ambas as
instituições muitas vezes fundiam-se num único servidor, ou seja, en
Hispanoamérica, [...] el rey ejercía el Real Patronato y los virreyes eran
también, ocasionalmente, arzobispos.
197
Por isso, a presença missionária nas fronteiras durante os séculos XVII e
XVIII fazia-se imprescindível, modificando-se a relação com a Metrópole de
acordo com a importância que cada missão ocupava decorrente de sua
posição geográfica e importância econômica.
De acordo com Charles Boxer a aliança entre a Cruz e a Coroa era uma
prerrogativa guardada e mantida pela Igreja no Ultramar. Essa aliança frutífera
também foi recentemente discutida no estudo de Eduardo Gusmão de Quadros
no qual ele remonta a história da relação entre Igreja e Império desde os
primórdios.
198
Contudo, durante o período colonial o poder da Igreja prevalecia
ao poder do Estado, apesar de estarem unidos. Logo, a realização dos projetos
estatais contava com o apoio eclesiástico. Na conquista da América, los
misioneros se convirtieron en una verdadera corporación de gestores indígenas
que servían por igual a la Iglesia y al Estado.
199
O rei exercia o Real Patronato
e os vice-reis atuavam como arcebispos sendo escolhidos pelo rei. Ainda
vigorava a idéia da santidade real, por isso seu poder era legitimado no Antigo
Regime pela analogia com a divindade.
200
Desta forma, durante os séculos XVII e XVIII, as missões foram uma
constante nas fronteiras, instituição que atendia ambas as partes interessadas.
196
SCHWARTZ, Stuart B., LOCKART, James. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. p. 192-3.
197
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. p. 45.
198
QUADROS, Eduardo Gusmão de. Embaixadores de dois reinos: missionários e fronteiras na
região amazônico-caribenha (1750-1801). Tese de doutoramento. Brasília: UNB, 2005.
199
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. p. 45.
200
WEHLING, Arno. Direito e justiça no Brasil colonial. p. 30.
90
É óbvio que houve diferenças nas relações de acordo com o espaço que
ocupavam e os interesses que defendiam, ou seja, as missões das áreas
centrais eram mais bem atendidas como são exemplos as missões da América
Central que recebiam auxílio militar, mesmo precário, e pecuniário. “En muy
amplia medida las misiones eran mantenidas por la hacienda real”
201
e
“dependían ampliamente de la posibilidad de vincular los fines políticos con los
religiosos.”
202
A preocupação voltava-se mais para as áreas centrais, pois certamente
era ali que interessava investir e garantir que homens e terras estivessem
assegurados e para efetuar esse trabalho inicial ninguém melhor que os
religiosos já que eram polidos intelectualmente e agentes de civilização.
Percebe-se que investir nas missões era vantajoso para os interesses da
Coroa, mas os investimentos materiais e defensivos não ocorriam com
regularidade e quando acontecia era somente voltado para áreas centrais e de
fronteira. Mas, por que as missões prosperaram? Mesmo estando sob controle
régio, as missões tinham certa autonomia por uma série de questões como
uma institucionalidade própria e o distanciamento dos centros. Além disso, o
que mais importava para os religiosos era alcançar seus objetivos espirituais,
mesmo que aliado a isso estivessem os empreendimentos comerciais.
Portanto, era preciso agir em prol da propagação da católica e defender os
territórios que ocupavam.
Na periferia, ao contrário, os constantes pedidos de ajuda das missões
eram freqüentemente ignorados até que se constituísse uma ameaça de perda
territorial. Era mediante essa circunstância que o dinheiro fluía e se enviavam
missionários para conservar o território para a Coroa.
Así se reconocía con nitidez el valor de los misioneros
como agentes de la Corona en la frontera y así se utilizaban
también, conscientemente, sus servicios. En primer lugar, eran
los más hábiles y prácticos exploradores y agentes
diplomáticos.
203
201
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. p. 47.
202
Ibid. p. 49.
203
Ibid. p. 50-1.
91
Dessa maneira, o Estado legitimava o trabalho missionário e lhe atribuía
funções que inicialmente deveriam ser exercidas por ele, mas que devido à
distância e à burocracia era mais cômodo dotar de poder, em certa medida, os
agentes da colonização mais qualificados para tal propósito.
Samuel Fritz oferece dados sobre essa solicitação de recursos e mais
missionários, pois desse atendimento dependia o sucesso da cristianização.
Não era uma regra, mas algumas vezes as solicitações eram atendidas. Em
1692 Fritz foi pessoalmente a Audiência de Quito e depois de expor as
necessidades que afligiam suas missões recebeu resposta favorável e a
concessão de recursos para sua subsistência e ornamentação de suas igrejas.
Sobre a solicitação de missionário fixo entre os Omágua temos: Enviaron en
varias ocasiones embajadas al P. Lucero, pidiendo los enviase misionero
conforme les habia prometido, dándo-le juntamente cuenta, como á amigo, de
las guerras que tenian con sus enemigos.
204
Praticamente após cinco anos,
Fritz foi surpreendido com a chegada de novos missionários para auxiliá-lo com
a tarefa de catequizar os índios da região.
Á 13 de junio llegué á mi residencia de San Joachim,
donde no sucedió cosa notable hasta el mes de diciembre, en
que tuve el consuelo llegasen á esa mi mision dos nuevos
obreros recien venidos da Europa, ambos paisanos mios, del
pueblo de Bohemia; estos fueron, el P. Wenceslao Breyer y el
P. Francisco Vidra; el uno bajó por entonces á asistir en la
reduccion de Guadalupe y el otro se quedó en mi compañía.
205
O padre Samuel Fritz chegou ao complexo de Maynás em 1686 após
bastante tempo de solicitação por parte dos Omágua, de acordo com o Diário.
Sua primeira incursão no espaço que se tornou sua Amazônia representada
nos mapas que produziu foi um evento muito esperado e bastante festejado
pelos Omágua.
204
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 309.
205
Ibid. p. 344.
92
Habiendo, pues, tenido noticia aquellos bárbaros que
habian llegado de Quito á La Laguna nuevos misioneros y que
el uno de ellos se estaba previniendo para bajar á sus tierras,
llevados de superior impulso, en treinta y más canoas subieron
á encontrarle; lleváronlo muy alegres á su primer pueblo, y al
llegar puerto, no contentos que subiese de la canoa por sus
pies, le cargaron á porfia en sus brazos, y entre danzas e
música de flautas, pífanos y otros instrumentos, fueron
llevándolo á la posada que le tenian prevenida. Lo mismo
hicieron en los demás pueblos situados en treinta y más islas,
que fué corriendo el Padre cuanto antes, para darse á conocer
y comunicarles las primeras noticias de la religion xtiana.
206
Havia muito, eles solicitavam um missionário para lhes proteger do
avanço luso-brasileiro em seu território. Porém, ser aceito e iniciar seu trabalho
religioso sem que fosse alvo de desconfianças dependeu de um acontecimento
místico, inusitado: uma mensagem espiritual de uma anciã da aldeia que
apareceu em sonho para seu filho. Podemos considerar contraditório agir com
elementos sobrenaturais em benefício de seu propósito católico, pois o padre
apropriou-se do universo indígena para conseguir introduzir elementos da
católica entre os índios. Aqui temos um exemplo da dissolução das culturas
que se punham em contato. Vejamos o trecho do Diário:
El hijo infiel, que la amaba tiernamente, no acertaba
apartase del sepulcro, lamentando sin cesar su muerte,
cuando, de improviso, una noche, estando despierto y lloroso,
se le puso delante la madre muy alegre, vestida con una gala
toda claridad, y le dijo estas palabras: <<Notienes, hijo, para
qué llorar mi muerte, porque apenas espire, que mi alma, más
resplandeciente que el sol, fué llevada á un pais sumamente
ameno, donde veo cosas admirables que no acierto explicarte,
y todo esto o debo al bautismo que recebi de manos del
Padre, sin el cual me hubiera ido á los Infernos
irremediablemente.>>.
207
206
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 309-10.
207
Ibid. p. 311.
93
Assim, a resistência inicial foi dando lugar à progressiva catequese que
não alcançou todos os objetivos almejados muito em razão da dificuldade posta
pela tradição, pela obstinação em manter heranças culturais ou desconfiança
do novo e pelas longas distâncias e problemas de locomoção. O alto número
de aldeias dificultava o trabalho catequético ao mesmo tempo em que impunha
ao padre um ritmo acelerado, mantendo-o sempre em movimento.
Samuel Fritz iniciou sua atuação entre os índios Omágua
208
, uma tribo
bastante numerosa e belicosa que via na ação missionária uma eficaz forma de
defesa ao avanço português na fronteira. Ele tinha a tarefa de missionar em
todas as tribos da região e chegou a pacificar cerca de 28 povos. “Padre
Samuel Fritz, sendo um religioso, assumiu também a função de um ‘chefe’, ou
seja, para os índios, alguém que serve, ajuda e protege. Religião e política,
afinal, não eram esferas separadas para os povos da bacia amazônica.”
209
Mesmo porque viver numa região isolada do seu centro de poder significava
que era preciso tomar posições políticas mediante determinados fatos. Não era
possível esperar uma resolução do Estado ou da Igreja para questões
cotidianas e urgentes localmente. Essa fixação de um jesuíta ali nos confins da
Amazônia pode ser interpretada como estratégica também, pois se vivia o
período posterior à União Ibérica e, portanto, ainda vigorava a indefinição dos
limites entre portugueses e espanhóis, mesmo estando sob o mesmo cetro real
e apesar de manterem o mesmo objetivo, ou seja, conquistar a Amazônia,
eram rivais, pois se colocavam em posições opostas.
A tradição intelectual e institucional do Ocidente realizou seu encontro
no Novo Mundo com uma realidade bastante distinta da sua e nessa
experiência o corpo do missionário foi revelado discursivamente. O missionário
representava a materialidade da religião na Colônia onde a precariedade
limitava sua ão ao mesmo tempo em que aguçava a criatividade com a qual
realizava seus intentos. Sabemos que o padre Samuel Fritz construía com seus
208
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 309-10.
209
PORRO op cit QUADROS, Eduardo Gusmão de. A e a fronteira na região amazônico-caribenha:
Uma Análise a partir do Diário de Padre Samuel Fritz. Revista Brasileira do Caribe, vol. 4, n 8, jan/
jun, 2004, UFG. p. 251.
94
índios igrejas e capelas nas missões e os objetos usados para as celebrações
eram produzidos por ele mesmo.
210
... y yo hasta ahora por siete años no he tenido casi
ayuda ninguna de Quito en herramienta y bujerías para ganar
las voluntades destos bárbaros; menos, para la decencia y
estimacion entre ellos, los requisitos para las iglesias, que
fuera de un altar portátil con un ornamento hecho un andrajo, y
una campana pequeña, no tengo nada; ni de la Hacienda Real
de Quito se da á las misiones socorro alguno.
211
Todo o polimento intelectual e a tradição que Samuel Fritz personificava
deparou-se com um contexto totalmente adverso. Naquelas terras distantes e
isoladas ele tinha a oportunidade de colocar em prática o projeto de
ocidentalização da Companhia de Jesus, transformando índios bárbaros” em
cristãos civilizados. Provavelmente, Fritz tinha consciência de que não seria
fácil nem rápido seu trabalho e que precisava materializar a religião para se
tornar inteligível. Aos poucos, ele foi tornando-se confiável, afinal estava ali em
razão da solicitação dos Omágua, pois a atuação jesuítica era
reconhecidamente eficaz frente aos abusos das tropas portuguesas que queria
cativar esses índios. Sua chegada foi uma verdadeira festa e ali se deparou
com a diferença que teria de enfrentar: os Omágua eram uma população muito
belicosa e populosa, eram hombres de mediana estatura, robustos y más
prietos que los índios del monte; muy curiosos, parleros y altivos”
212
, possuíam
escravos, mas os tratavam como iguais; a natureza da região era muito
exuberante, estavam rodeados por rios pelos quais navegavam para entrar em
contato com outras tribos, fazer comércio, pesca e havia toda uma diversidade
de pequenos insetos e animais causando doenças, a precariedade material era
geral, muitas privações inclusive alimentares e as distâncias.
O modelo religioso vigente na Colônia era ou pretendia ser uma réplica
do modelo metropolitano. Os colonos e religiosos transportados para a América
210
MARONI, Pablo. Noticias autenticas Del famoso rio Marañon (1738) seguidas de las relaciones
de los P. P. A. de Zárate y J. Magnin (1735-1740). p. 368.
211
Ibid. p. 330.
212
Ibid. p. 305.
95
eram os responsáveis pela difusão dessa religiosidade. Porém, assim como
nas demais esferas da vida social, a religião encontrou obstáculos para ser
difundida da forma concebida inicialmente. Além da convivência com índios e
negros, os colonos e religiosos deparavam-se com a precariedade material
vivenciada na Colônia que impossibilitava, algumas vezes, colocar em prática
os projetos idealizados. A religião era catalisadora social e tinha função de
controle desse mesmo contingente. Mas, nos confins da Amazônia os fatos
passavam-se de forma diferente. Havia ali um grande contingente indígena
para ser “civilizado”. Samuel Fritz tentava construir uma réplica do modelo
religioso que viveu na Europa, porém sua experiência era outra e
impossibilitava essa realização nos moldes desejados. Com seu trabalho
conseguiu amistar cerca de 28 povoados, doutrinando esses indígenas de
forma precária devido à falta de companheiros com os quais dividisse sua
responsabilidade. Tornou-se artífice e junto aos seus índios construía igrejas,
ainda que a natureza destruísse aquelas paredes a cada enchente anual e
lutava pela condição de livres para eles.
A ausência das instituições metropolitanas deu um caráter individual e
solitário à empresa evangelizadora na América. Essa ausência era substituída
pela corporeidade do missionário, constituindo-se em instituição. Essa
perspectiva de precariedade e devoção missionária construiu um modelo de
histórias santas. As hagiografias que continham o relato de toda a experiência
política, cultural e descrições de viagens eram a representação de uma viagem
espiritual.
A experiência de Samuel Fritz leva a essa leitura. Uma peregrinação
num lugar remoto e alvo de ambições imperialistas onde existia um homem de
Deus para defender todos e principalmente as terras de Sua Majestade. A
edição feita pelo jesuíta Pablo Maroni evidencia a figura desse padre como
santo e o que é mais interessante é que essa imagem aparece como uma
leitura indígena.
A vida nas fronteiras era algo o duro que as impressões idílicas foram
abandonadas nos relatos e no caso do Diário essas impressões sequer
aparecem, em seu lugar aparecia o trato com preocupações cotidianas como
pacificação de índios nas proximidades, manutenção da vida, administração de
96
conflitos e que ao se tornarem intensos desviam a “descrição do discurso sobre
a diferença étnica e se detém no que já é propriamente a cultura local
tornando-se então inventário e diagnóstico da realidade política.”
213
Assim, , a
última etapa do processo de encontro entre Europa e América, a compreensão
deriva do entendimento do que ocorre e deve ser feito.
A região onde Samuel Fritz estava alocado era uma fronteira e por essa
condição estava vulnerável a investidas de outros grupos. A experiência
missional de Samuel Fritz denota bem o significado do corpo em regiões de
fronteira. Um pedaço de matéria que pode abrigar toda a força e toda a
fragilidade. O corpo do missionário ali na fronteira era o símbolo do Estado e da
Igreja e na ausência de ambas as instituições era seu corpo que funcionava
como instituição. O ato da oratória e da persuasão eram um importante
instrumento para impor interesses e limites, pois era o corpo e a missão que
delimitavam fisicamente os contornos jurisdicionais de cada Coroa.
No outro extremo de toda essa imponência vivida pelo corpo está sua
fragilidade, a doença e a debilidade sica. Essa foi uma verdadeira barreira
com a qual Samuel Fritz lutou. A natureza amazônica foi implacável ao produzir
no seu corpo ano após ano a debilidade que lhe abatia cada vez mais. Era uma
luta diária e incessante, pois ele tinha consciência de que seu trabalho não
poderia parar. Para livrar-se da doença pediu auxílio até a seus inimigos, os
portugueses que o fizeram cativo por dois anos no Pará. Ao invés de
enfraquecê-lo, esse fato deu-lhe mais importância entre seus índios. Nesses
momentos, os fenômenos naturais eram atribuídos ao fato de Samuel Fritz
estar encarcerado.
Em Maynás, a questão mais conflituosa foi o avanço fronteiriço luso-
brasileiro que o colocava em risco a possessão territorial, mas também e
principalmente para Fritz seu domínio religioso na região. Tratava-se do
processo expansionista das entradas e bandeiras que é bastante conhecido e
assunto largamente tratado pela historiografia que exalta a figura do
bandeirante ou paulista como o personagem mais apropriado para o
aprisionamento dos indígenas. Freqüentemente eles entravam em confronto
com os religiosos que não concordavam com a escravização dos índios. A
213
PORTO, Maria Emília Monteiro. O corpo colonial. In: www.cafefilosofico.ufrn.br/ emilia_
corpo_colonial.htm.
97
impossibilidade de frear definitivamente as incursões dos conquistadores
colocava em xeque também a função do padre como protetor dos índios
perante à escravidão e o desautorizava diante dos índios menos crentes.
Dessa forma, era preciso não só converter, era preciso também defender. Essa
era uma das prerrogativas estatais das missões como lembra Bolton, pois as
missões funcionavam como instrumentos de defesa dos domínios reais e por
isso era mais fácil conseguir apoio governamental quando as missões estavam
alocadas nas fronteiras porque ali elas necessitavam de defesa e marcavam a
territorialidade.
Bolton ressalta também que os religiosos eram un mejor
instrumento de protección para la provincia que toda una compañia de
soldados.
214
Isso advinha da diferença entre os projetos de colonização. O projeto
dos missionários estava baseado na evangelização e na educação moral cristã
diferentemente dos objetivos dos colonos e soldados. Além disso, ou
justamente por isso, conseguiam resultados melhores, o que os tornou eficazes
promotores da fronteira. E como cumprir essa função de defesa da fronteira
senão pela instituição do corpo como instrumento dotado de significado perante
toda a diversidade e a precariedade de um espaço fronteiriço. Dentre as
responsabilidades dos missionários, além de amansar os índios, estavam
incumbidos de relatar suas experiências, apontar possíveis locais de
exploração econômica e alertar sobre incursões estrangeiras. Los misioneros
no sólo ayudaron a expandir, controlar y promover la frontera sino también, y
más significativamente, ayudaron a civilizarla.”
215
Como primera y prioritaria tarea, los misioneros
extendían la fe. Además, intencionada o incidentalmente,
exploraban las fronteras, promovían su ocupación, las
defendían de los asentamientos internos, enseñaban el
castellano a los indígenas y los disciplinaban según las
buenas costumbres, según los rudimentos de la agricultura y
las artesanías europeas e incluso por el autogibierno. [...] Por
estas razones y por motivos religiosos genuinos, las misiones
214
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. p. 50-1.
215
Ibid, p. 52.
98
recibieron el apoyo real. Constituyeron uno de los rasgos
conspicuos del genio fronterizo de España.
216
Desta forma, podemos dizer que as missões atuaram como verdadeiras
instituições de fronteira, elas estiveram onde o Estado não de ir e fizeram
muito mais do que suas condições materiais permitiam-lhes porque os
missionários acreditavam na causa que defendiam.
Outro dado interessante que podemos extrair dessa citação é o fato de
que a Real Fazenda colocava os investimentos de presídios e missões no
mesmo ramo, o da guerra, ou seja, o controle de defesa nas regiões de missão
era tão importante quanto manter a ordem social.
Essa era uma das tarefas exercidas por Samuel Fritz. Durante o período
que pregou e peregrinou ali, passou bastante tempo doente, chegando a quase
morrer, porém sem esmorecer na fé e na missão. Por causa de tantos feitos, foi
possível construir uma imagem de santo. Sua morte foi um espetáculo à parte
e a transposição da última fronteira. Longe de estar despreparado para a morte
devido a sua fé e ao seu estado de saúde, o padre ainda consolava seus
seguidores.
Dos dias antes, esto es, el dia 18 de marzo, dijo á un
Padre que le acompañaba: Non videbo diem nativitatis meae.”
(Es á saber que el dia 9 de abril cumplía los setenta y uno de
su edad). Ese mismo dia, en que se pudo decir se dió á si
mismo el viático, habiendo hecho poco antes confesión
general, despues de misa, estando junto todo el pueblo em la
iglesia, como quien se despedia de sus amados hijos, con
particulares muestras de ternura les dijo rogasen y pidiesen á
Dios se cumpliese en él su santísima voluntad en cuanto á
vivir ó morir, que no pedia la vida sino para cuidar de sus
almas y mostrarles el camino de su salvación; y que, se
muriese, rogasen á Dios por el descanso de su alma, pues les
habia querido mucho.
217
216
BOLTON, Herbert Eugene. La misión como instituición de la frontera en el septentrión de Nueva
España. p. 60.
217
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 370.
99
De acordo com Maroni, ele previu ou pressentiu não chegar a
comemorar seu aniversário e nem sequer rezar missa no dia do santo de
devoção, São Joaquim em decorrência do seu estado físico e espiritual. Pero
este no quiso sino que fuese á celebrar su fiesta en el cielo, pues amaneció
muerto de un golpe, como se discurre, de apoplegía.
218
Ao se espalhar tal
notícia, todo o povoado pôs-se a chorar como quando perdiam um parente
querido e a disputar um lugar para constatar com seus próprios olhos o fato.
Concorreram todos à casa do Padre, sem querer dia e noite apartar-se do
cadáver até que se enterrou entre prantos e soluços/ suspiros contínuos, o
se satisfazia de olhar e diziam que parecia vivo. Aqui e com estas palavras
consolida-se a figura santa do padre Samuel Fritz.
En la realidad, e habiéndolo puesto en el ataud con las
vestiduras sacerdotales, el rostro, que antes era pálido y
mortal, se puso muy colorado y hermoso, como cuando era
vivo, conciliándose amor antes que horror. Así acabó sus dias
este santo varon, digno de vivir muchos siglos, siquiera hasta
acabar de convertir á todos los infieles del Marañon.
219
Neste dia consagrou-se o apostolado de Samuel Fritz sem, contudo,
finalizar sua missão que foi propagada através de seu exemplo pelos que
conheceram sua luta e a continuaram.
Como vimos o corpo foi a instituição que se fez eficaz na colonização do
Novo Mundo porque mediante a falta do aparelho do Estado e da dificuldade
de toda ordem, ele era a materialização do próprio Estado e da Igreja, pois era
o missionário que personificava essas instâncias de poder que foram
transportadas para a América ainda que de forma inadequada. Mesmo sendo o
corpo essa instituição que agregava valores e potencializava o homem de
religião, ele não estava isento de sofrer debilidades e demonstrar
insuficiências, tanto institucionais quanto físicas.
218
MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Marañón y misión apostólica de la Compañía
de Jesús [...], escribíalas por los años de 1738 un misionero de la misma compañía. p. 370.
219
Ibid.
100
Pelos dados oferecidos no Diário, na região de Maynás as coisas
passavam-se de forma muito difícil. A precariedade material era uma realidade
e a comunicação era muito complicada, demoravam-se meses para obter uma
resposta ou auxílio de qualquer aspecto, o que acabava por tornar mais viável
uma solução alheia ao controle superior, fosse da Ordem ou do Estado. Essas
soluções eram necessárias devido ao fato dos constantes pedidos de ajuda
serem freqüentemente ignorados até que se constituísse uma ameaça real de
perda de territórios, nesse contexto a área passava a ser atendida com envio
de dinheiro e missionários para conservar o território para a Coroa, contudo
isso não foi uma regra, muitas missões passaram anos sem que pudessem
contar com novos missionários para o serviço religioso.
Para Fritz, [...] Aquela região, o Maranhão’ como lhe chamavam os de
língua castelhana, era isolada o bastante para proteger as nações que ali
viviam.”
220
Triste engano: os portugueses estavam aproximando-se cada vez
mais. Quando da ocasião de retorno do padre Samuel Fritz da clausura no
Pará, sua escolta luso-brasileira que estava imbuída de recolocá-lo em sua
missão tinha em mente outro projeto: tomar posse de suas terras. Após cerca
de dois meses de preparativos, o padre foi acompanhado por uma escolta
conduzida pelo cabo Antonio Miranda a 8 de julho de 1691. Durante o percurso
o padre fez algumas paradas em aldeias e as notícias que foram proliferadas
sobre sua volta causaram grande alvoroço, pois os boatos indicavam que os
portugueses estavam chegando.
A 20 de Outubro, estando a tropa a sair para baixo, o
cabo manifestou-me como o motivo de querer passar aos
Omaguas havia sido para tomar posse daquellas terras,
segundo ordem tacita que trazia de seu governador; e que
desde logo me intimava que me retirasse daquellas provincias
por pertencerem á corôa de Portugal.
221
220
QUADROS, Eduardo Gusmão de. A e a fronteira na região amazônico-caribenha: Uma Análise
a partir do Diário de Padre Samuel Fritz. Revista Brasileira do Caribe, vol. 4, n 8, jan/ jun, 2004, UFG. p.
250.
221
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. p. 393.
101
A fronteira era a própria missão e seus aldeados organizados mediante
o comando daquele que deveria trazer a paz espiritual aos índios, mas que não
poderia fazê-lo sem antes combater num confronto belicoso seus inimigos.
Para alguns isso pode significar uma contradição do ministério religioso, porém
quando lembramos que a cruz e a espada estavam lado a lado no Novo
Mundo, essas ações passam a ter sentido. Na falta de instituições ou com sua
presença precária, o corpo do missionário e do índio figuravam como a única
instituição realmente eficaz, ao mesmo tempo em que talvez fosse a mais fácil
de combater: uma bala podia acabar com a resistência.
Nesse contexto a importância do corpo e sua colocação como um limite
institucional é indiscutível haja vista que o corpo do missionário desempenhava
uma função de defesa das possessões territoriais e espirituais nas colônias do
Novo Mundo. O exemplo do padre jesuíta Samuel Fritz atuando nas missões
de Maynás na Amazônia do século XVII com o objetivo de realizar o ideal
religioso de transformar a sociedade demonstra muito bem a radicalidade
vivida nas fronteiras, onde apesar do corpo representar uma fortaleza, a
fronteira, ele sofria as debilidades físicas próprias da fragilidade humana em
contato com ambientes e agentes diferentes. Pensando o corpo como uma
metáfora, Fritz representava nessa batalha a cabeça que comandava o grande
contingente indígena correspondendo aos membros a seu dispor e a natureza
figurava aí como o tronco, uma paisagem ativa e defensiva.
102
CONCLUSÃO
As discussões e os discursos sobre a Amazônia são abundantes e muito
importantes na atualidade em razão da problemática ambiental que se coloca
em pauta requerendo uma reflexão e a responsabilidade de todos. Com esse
estudo, pudemos relembrar ou tomar conhecimento de questões relacionadas
à Amazônia desde um tempo bastante longínquo, mas que, em certa medida,
continuam atuais. Os índios e a natureza nunca hão de deixar a agenda de
discussões e preocupações contemporâneas da mesma forma como eram
objeto de interesse durante os séculos que estudamos.
Assim, tomamos alguns pontos como objeto de reflexão nesse estudo,
tais como a vocação comercial e o intercâmbio cultural indígenas que eram
fundamentos dos povos amazônicos, em especial, àqueles que o padre
Samuel Fritz atendeu. Por isso sua inserção num contexto atlântico tanto de
comércio quanto de trocas culturais mais abstratas foram possíveis, mas o
sem conflitos, pois, ao contrário do que se quis pensar durante algum tempo,
os índios não eram criaturas passivas e bobas, mas sim indivíduos que
possuíam uma estrutura social muito bem montada e vivenciada sob a qual o
indivíduo estava submetido e totalmente afinado.
De uma relação igualitária entre europeus e índios como era a comercial
passaram a ser objeto de exploração. A convivência e a exploração que se
desencadearam do encontro com o europeu foram experiências muito duras
para os povos indígenas e seus “tutores”, os padres. Eles podem ser
considerados figuras ambíguas por estarem na fronteira entre os interesses do
Estado que representavam, a Igreja e os índios que protegiam ou manipulavam
e por terem a pretensão de formar um Estado independente regido pela
habilidade e pelo conhecimento intelectual e prático da realidade na qual
estavam inseridos. Ambíguos e fascinantes na medida em que davam
literalmente seu sangue pela causa que acreditavam e por seus protegidos,
já passando a uma relação de pertença.
O desejo de autonomia ou independência pura dos missionários pode
ser entendido como resposta à precária assistência que recebiam das
103
instituições metropolitanas, tendo que cotidianamente improvisar soluções para
a resolução de conflitos.
Tudo isso ocorria num espaço ao mesmo tempo em que acaba gerando-
o. Essa foi nossa problemática central pela qual tivemos a oportunidade de
conhecer as práticas espaciais desses agentes indígenas, religiosos,
sertanistas e mestiços que construíram uma Amazônia própria a partir de
suas incursões e explorações ainda num momento onde essa empreitada era
algo que chegava a ser heróico ou um encontro com a própria morte devido ao
fato da natureza amazônica não ser passiva, ela mesma também se redefinia,
impondo-se e exigindo de seus exploradores astúcia, sabedoria e experiência.
Modificar o espaço dependia exclusivamente de traçar uma estratégia e
impor um corpo vigoroso, este representado pelo corpo indígena que, em
muitas medidas, era manipulado pelos outros agentes do processo,
obviamente quando havia uma relação de confiança ou submissão. Esse corpo
operava as trajetórias que implicavam em transformações espaciais e com a
conseqüente descoberta de novos lugares e potencialidades, esses espaços
tornavam-se alvo de especulações e cobiça. O índio nesse contexto estava
numa posição conflituosa porque ao mesmo tempo em que estava sob a tutela
dos padres, não deixavam suas atividades com outros agentes colonizadores,
mas agiam também em defesa do território quando percebiam os malefícios de
algumas investidas.
A experiência do padre Samuel Fritz junto aos seus índios foi muito
vívida como não poderia deixar de ser pela circunstância de habitar uma
fronteira e atender índios inseridos em redes comerciais e de contrabando. Foi
essa condição de fronteira que possibilitou uma solução que podemos
descrever como poética hoje defender seus ideais e suas conquistas
materiais e espirituais com o próprio corpo, reabilitar sua tradição guerreira e
compor um verdadeiro exército, uma muralha no sertão composta por corpos
indígenas liderados pela inteligência jesuíta. Porém nem sempre a realidade
permite um final feliz para a poesia da vida e assim os indígenas após
resistirem muito e perderem seu padre agiram com outras armas, tais como a
fuga e a rendição, pois eram suas únicas alternativas no momento.
Podemos concluir de forma geral que o assunto abordado aqui continua
atual sob novas perspectivas e de uma maneira distinta posto que agora as
104
deliberações evoluíram e são objeto de discussões amplas e que envolvem
diversos interesses e chefes de Estados.
Considerando propriamente a fonte, o Diário do padre Samuel Fritz,
podemos reafirmar sua importância para os estudos sobre as comunidades
indígenas na Amazônia e suas relações durante o período. É notório que toda
a movimentação espacial promovida pelos ameríndios, religiosos, colonos,
sertanistas e bandeirantes repercutiram na realidade física da região
imprimindo-lhe uma nova lógica que culminou na dissolução da linha imaginária
do Tratado de Tordesilhas e nas discussões para a assinatura do Tratado de
Madri, o que corresponde aproximadamente aos contornos atuais do Brasil.
Um outro fator de extrema importância no Diário são os seus silêncios. Não
podemos afirmar que a omissão de dados e fatos tenha sido um ato deliberado
de Fritz nem assegurar que isso foi fruto proposital do trabalho dos seus
tradutores que eram jesuítas também. As diferenças entre o manuscrito e uma
cópia posterior haviam sido percebidas e consta na versão produzida por
Rodolfo Garcia.
222
A única afirmação quanto a isso é que é um fato
principalmente no que se refere aos conflitos bélicos dos quais o padre e seus
índios participaram. Outro silêncio que chega a ser gritante ocorre em relação à
resistência entre as culturas representadas, de um lado, pelo padre europeu e,
do outro, pelos índios amazônicos para se ajustarem na convivência cotidiana
e posterior imposição de pontos de vista.
A principal preocupação denotada no Diário é a disputa espacial entre
os habitantes do território de Maynás e os portugueses por isso o saber bélico
era tão importante quanto indispensável naquele contexto, pois apesar de não
ser nem a primeira nem a única solução, era a mais plausível e eficaz em
determinadas situações. São constantes no relato do padre as referências a
esse movimento de conquista e às conseqüências do mesmo.
Em contraposição aos silêncios, é relevante destacar o esforço dos
jesuítas Pablo Maroni e Rodolfo Garcia em não permitir que a fonte caísse em
esquecimento, e em especial a leitura hagiográfica dada por Maroni à
experiência de Samuel Fritz. Não podemos desconsiderar também que o
ambiente de periferia e fronteira possibilita a eclosão de respostas à dureza da
222
GARCIA, Rodolfo. O Diário do padre Samuel Fritz. p. 372.
105
realidade de uma forma muito peculiar e espiritual. Ao longo da História
diversas foram as manifestações místicas e messiânicas que povos oprimidos
propuseram. Nas áreas periféricas da América Espanhola ocorria um fenômeno
interessante: a produção” de santos. É possível observar esse fenômeno na
Amazônia visualizando a atuação do padre Samuel Fritz. Ele estava alocado
em uma região de fronteira, o que poderia conferir maior eficiência às
pregações devido ao contexto social no qual estava inserido e porque sua
peregrinação servia como exemplo de fé a ser seguido.
106
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