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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DANIEL REIZINGER BONOMO
Colocutores em trânsito
Os tontos movimentos dos romances Grande Sertão: Veredas e Berlin Alexanderplatz
São Paulo
2007
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DANIEL REIZINGER BONOMO
Colocutores em trânsito
Os tontos movimentos dos romances Grande Sertão: Veredas e Berlin Alexanderplatz
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Língua e Literatura Alemã
Orientador: Prof. Dr. Helmut Paul Erich Galle
São Paulo
2007
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Folha de aprovação
Daniel Reizinger Bonomo
Colocutores em trânsito – Os tontos movimentos dos romances Grande Sertão: Veredas e
Berlin Alexanderplatz
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Língua e Literatura Alemã
Orientador: Prof. Dr. Helmut Paul Erich Galle
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição_________________________ Assinatura_____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição_________________________ Assinatura_____________________________
Prof. Dr. ________________________________________________________________
Instituição_________________________ Assinatura_____________________________
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Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Helmut Galle, que, desde os meus anos de graduando da Faculdade de
Letras, ensinou-me a crescer com seriedade e prazer pelos meus estudos.
Ao Prof. Dr. João Adolfo Hansen, pela atenção e paciência que sempre dedicou ao meu
trabalho.
Ao Prof. Dr. Carl Wege, pelo companheirismo e rara amizade.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão da
bolsa de mestrado e pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa.
Aos amigos do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Às seguintes pessoas, que, em algum momento e de algum modo, ajudaram-me: Ana
Cândida Franceschini de Avelar Fernandes; Ana Flora Franco, Artur Voltolini, Gabriela
Reizinger Bonomo, Henrique Ribeiro, Henrique Piccinato Xavier; Marcela Abreu
Guimarães, Márcio Guimarães Araújo, Maria Luiza Xavier Souto, Maurício Fleury,
Pedro Heise e Sérgio Hannemann.
Aos meus pais, pela compreensão e carinho dedicados.
À Joana Souto Guimarães Araújo, pela presença em minha vida.
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5
Resumo
O paralelismo entre os romances Berlin Alexanderplatz e Grande Sertão: Veredas surge
na crítica literária brasileira a partir de um comentário de Davi Arrigucci Jr. Com o
intuito de prosseguir a discussão levantada, faz-se aqui uma análise mais detalhada dos
elementos que os aproximariam como representantes do discurso do romance moderno.
Privilegia-se, para tanto, as movimentações que caracterizam as trajetórias dos
protagonistas Franz Biberkopf e Riobaldo, com a observação dos deslocamentos das
personagens no espaço, emocionalmente, e, também, com a atenção que deve ser dirigida
ao trânsito que opera a narrativa dos dois romances. Devem ser destacadas, com isso,
particularidades desses romances que melhor os situam na tradição que os associa aos
livros Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister e A Educação Sentimental.
Palavras-chave: Berlin Alexanderplatz; Grande Sertão: Veredas; Movimentação;
Romance moderno.
5
6
Abstract
The parallel between the novels Berlin Alexanderplatz and Grande Sertão: Veredas was
first drawn within the Brazilian literary criticism in a comment made by Davi Arrigucci
Jr. With the intent of pursuing the discussion raised by the author, this article proposes a
more detailed analysis of the elements which define both texts as representative works of
the modern novel discourse. The analysis focuses on the movements which characterize
the trajectories taken by the protagonists Franz Biberkopf and Riobaldo, with a view on
the characters’ transit in space, as well as emotionally, and also in regard to the transit
that operates the narration within both novels. In this light, the article outlines the
particularities which situate both novels within the tradition that associates them with the
books Wilhelm Meisters Lehrjahre and L’Éducation Sentimentale.
Keywords: Berlin Alexanderplatz; Grande Sertão: Veredas; Movement; Modern novel.
Zusammenfassung
Die Parallelen zwischen den Romanen Berlin Alexanderplatz und Grande Sertão:
Veredas werden in der brasilianischen Sekundärliteratur seit Davi Arrigucci Jr.s
Kommentar sichtbar. In der Absicht, die dort begonnene Diskussion fortzusetzen, werden
hier die Elemente im Detail untersucht, die beide Texte als Exponenten des modernen
Romans einander annähern würden. Besonderes Augenmerk gilt den für die Laufbahn
beider Protagonisten charakteristischen Bewegungen, den räumlichen und emotionalen
Veränderungen der Figuren sowie insbesondere dem „Verkehr“, der die Erzählung in
beiden Romanen vorantreibt. Hiermit sollen die Besonderheiten dieser Romane, die sie in
einer gemeinsamen Traditionslinie mit Wilhelm Meisters Lehrjahren und der
L’Éducation Sentimentale verorten.
Stichwörter: Berlin Alexanderplatz; Grande Sertão: Veredas; Bewegung; moderner
Roman.
6
7
Procuramos inutilmente fixar um círculo,
uma paisagem em que nosso espírito se compraz,
mas a vida é terrivelmente móvel.
(Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro)
*
.
*
ANJOS, Cyro dos. O Amanuense Belmiro. 15ª ed. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 2000, p. 167.
7
8
Sumário
Apresentação.........................................................................................9
Problemas da forma romanesca..........................................................18
Berlin Alexanderplatz e Grande Sertão: Veredas..............................35
Andeja vida: Riobaldo........................................................................43
Andeja vida: Franz Biberkopf............................................................53
Os tontos movimentos........................................................................63
Ventos de não deixar se formar orvalho.............................................83
Bibliografia........................................................................................90
8
9
Apresentação
Caso escolhêssemos, na ordenação de uma pequena coleção de livros, justapor os
romances Berlin Alexanderplatz (1929) e Grande Sertão: Veredas (1956), faríamos isso
sobre qual superfície? Pode ser que o ato causasse algum estranhamento, afinal, qual foi
seu impulso? O que se entende com isso? De quais critérios se pode fazer uso para
justificar tal vizinhança?
Recorreríamos à ajuda daquele plano injusto de um intrigante heteróclito, incerto
na ausência de leis aparentes, ou assumiríamos como total arbitrariedade a improvável
escolha? Certamente não nos bastaria argumentar que ambos os autores, Alfred Döblin e
João Guimarães Rosa, foram médicos ou coisa do tipo, tampouco que tiveram seus textos
capitais transformados em séries televisivas, pois logo saltariam as diferenças em maior
número e importância, tornando insustentáveis esses argumentos que não se satisfazem
em qualidades próprias dos textos. Ora, num deles estamos em um grande espaço urbano
intensamente habitado, barulhento, confuso na multidão de veículos passantes, pedestres,
construções em andamento etc., e no outro o que temos é a amplitude de um espaço
vazio, abandonado, por vezes, aos cantos de um vento ou de uma ave; num deles
encontramos uma narrativa extremamente fragmentária, descontínua, amontoados de
peças discursivas, enquanto no outro presenciamos um fluxo narrativo ininterrupto de
grande fôlego; a consciência da personagem protagonista de um deles parece não ter
muitas práticas reflexivas, mas a do outro sim, pois fala, incontinência verbal, durante
todo o romance, “especulando idéias”; e assim poderiam ainda seguir outras destas
distinções que rápido se impõem.
Talvez aproximar os dois romances numa estante trouxesse o conforto de um jogo
compensatório, talvez Riobaldo pudesse, com a sua presença, pensar por Franz
Biberkopf, ajudá-lo com suas idéias; ou, então, seria Franz Biberkopf que tranqüilizaria
Riobaldo, ensinando-lhe a esquecer e sufocar suas angústias com alguns tragos; talvez o
silêncio do sertão acalmasse um pouco Berlim ou, pelo contrário, as agitações berlinenses
é que animariam um pouco a calmaria sertaneja. Mas um mecanismo compensatório
gratuito, brincalhão apenas tranqüilizaria o aparente disparate; seria antes preciso colocar
à prova, rastrear semelhanças na diferença ela própria, encontrar uma comunidade em
9
10
seus modos narrativos, em qualidades que justificassem que ambos, Berlin
Alexanderplatz e Grande Sertão: Veredas, estão sim próximos, para um necessário
diálogo que se dá na esfera dos grandes romances do século XX.
Curioso é pensar que, quem sabe com a mesma arbitrariedade, James Joyce
(Ulysses) ou Carlo Emilio Gadda (Quer Pasticciaccio Brutto de Via Merulana, por
exemplo) poderiam ser convidados a participar e ampliar nossa talvez desarrazoada
aproximação de distantes, o que nos faria imediatamente notar que, sobre todas as
semelhanças e distinções possíveis, atrairia uma em particular: Döblin e os dois novos
companheiros estão num mundo urbano, citadino, mas o brasileiro Guimarães Rosa
resiste, elegendo para o conjunto de paradigmas da escrita romanesca do século XX um
livro que se escreve sobre um solo e mundo outros: o sertão brasileiro, território em tudo
oposto ao espaço que melhor define a experiência moderna, o espaço da cidade.
Teria a cidade de São Paulo chegado atrasada ao rol das metrópoles do século
XX? Certamente, mas isso com certeza não explicaria melhor a questão. Pode-se
perguntar, como já se fez, pelos motivos da não-existência de um correspondente urbano
para a posição que o Grande Sertão: Veredas ocupa na literatura brasileira, mas essa
pergunta necessariamente evita recair sobre Guimarães Rosa, que, muito provavelmente,
não haveria de ficar seduzido com a agitação do centro de São Paulo que hoje
conhecemos. Na leitura da obra de Guimarães Rosa, constata-se que ele preferiu a
vivência e imaginação sertanejas como matéria de sua ficção, podendo até recordar-se
que ele, funcionário da diplomacia que foi, percorreu e fixou residência em várias
localidades urbanas, como Hamburgo, Paris e Rio de Janeiro, sem que a nenhuma delas
tenha sido possível colocar-se lado a lado, como tema de seus livros, com aquela
Cordisburgo e região que o escritor deixou aos dez anos de idade. Pode ser instrutivo
observar como ele registra suas impressões em uma nota daquele problemático período
em que viveu na Alemanha (trata-se de uma observação de um passeio, provavelmente
em 1940):
Die Lüneburger Heide = stille Insel, no meio das atividades industriais e militares
no Novo Reich em (re)construção. Como um vácuo. Chão barato e pobre. (m/.) Agora há
estradas asfaltadas, a indústria se localiza aqui, de preferência, por ser pobre o solo para a
10
11
agricultura, e as indústrias, ocupando-o, oneram de pouco a agricyltura. De um dia para o
outro, aldeias começam a virar cidades. Um trem-de-ferro passa, pequenino, na planície,
fumando entre pinheiros e carvalhos. (m/.)
1
.
Ou então esta outra, também em 1940 (provavelmente):
HARBURG
Grande movimento às margens do rio, com tôda a navegação dos vaporzinhos do
Elba. Um dos últimos tettos de palha, com um ninho de cegonha na cumieira (frontão,
empena). no meio de um pomar. Ao lado de vacas pastando, erguem-se modernas
fábricas, um quadro raro de desenvolvimento rápido.
A cidade se mistura com o campo. Já em Wilhelmsburg, (Himmelfahrt) os rostos
dos passageiros do bonde se mudaram, maravilhosamente. Não são só gente tão de
cidade. As crianças teem caras tostadas, amorenadas. Roupas lavadas, de todas as cores,
se penduram, perto das casas. nas cordas, ao vento. Muitos jardins, rodeando as casas.
Caminhões e autos. Pontes, braços de rio, guindastes, docas, ferrovias portuarias (trilhos)
armazéns: cara de Harburg voltada para o sul
2
.
Na apreensão do espaço urbano de Guimarães Rosa há reservas. Pode-se até
encontrar um certo tom de lamento em suas observações sobre o desenvolvimento
industrial que prejudica a agricultura. Parece mais animar Guimarães Rosa a distância
deste mundo de bondes e fábricas, quando, “maravilhosamente”, mudam-se as
fisionomias observáveis para algo que não corresponda mais àquilo identificado como
“gente tão de cidade”. Mas prende a atenção, contanto que se observe a complexidade
dos elementos tratados nas notas, um tema central da observação: trata-se da coexistência
de elementos urbanos (fábricas, bondes, automóveis, estradas asfaltadas) com elementos
rurais (vacas pastando, um teto de palha com um ninho de cegonha, agricultura) numa
paisagem em que “a cidade se mistura com o campo”, e isso pode já contribuir para que
1
Foi mantida a grafia original, sem que se fizessem correções sobre o texto. O documento faz parte do
espólio do escritor pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(IEB/USP). Cf. FJGR. MJGR – EO. Cx. 01, 01 (173). 26/33.
2
Cf. FJGR. MJGR – EO. Cx. 01, 01 (173). 27/33. Também aqui foi mantida a grafia original.
11
12
se pense algo além daquela desgastada oposição entre campo e cidade, que poderia, por
sua vez, opor representações literárias como o Grande Sertão: Veredas e o Berlin
Alexanderplatz. Nessa região fronteiriça observada nas notas, deflagra-se uma
complexidade mais que social da relação entre campo e cidade, fato que seguramente não
escapou à sensibilidade de Guimarães Rosa e a sua ficção.
Sem que se queira conferir demasiada importância às notas comentadas, deve aqui
ser registrado que, de algum modo, a mais recente crítica do Grande Sertão: Veredas, em
nomes como os de Ettore Finazzi-Agró, João Adolfo Hansen e Willi Bolle, por exemplo,
já reconhece como ele se presta à mediação dos ambientes urbano e sertanejo,
especialmente em sua condição narrativa, que propõe uma espécie de diálogo entre um
narrador sertanejo, Riobaldo, e um ouvinte que de alguma cidade chega para ali
permanecer calado. “Muito falo, sei; caceteio. [...] Mas o senhor calado convenha” (GSV,
p. 133)
3
.
Será preciso, no entanto, reconhecer, para a particularidade de nossa aproximação,
que, embora em muitos aspectos distintos, existem elementos da narrativa romanesca que
em si fazem os livros de Guimarães Rosa e Alfred Döblin participar de uma mesma
realidade. Se a modernidade da prosa brasileira do século XX está exemplarmente no
romance Grande Sertão: Veredas, podemos pensar como este livro dialoga com outros
paradigmas dessa mesma modernidade, como o Berlin Alexanderplatz, por exemplo.
Houve já quem notasse uma possível aproximação destes dois romances. Davi
Arrigucci Jr. deve ser considerado o primeiro crítico a ladear Alfred Döblin e Guimarães
Rosa
4
. Arrigucci, contudo, não aprofunda a questão comparativa, limitando-se a uma
breve menção, que sua análise do Grande Sertão: Veredas possibilita, aos comentários
que faz Walter Benjamin sobre o Berlin Alexanderplatz em seu conhecido texto Crise do
Romance (Krisis des Romans). Acompanhemos:
3
A edição do Grande Sertão: Veredas aqui utilizada é a seguinte: ROSA, João Guimarães. Grande Sertão:
Veredas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958. Sempre que essa edição for citada, será com a sigla
GSV.
4
Bem anterior, também o texto A Linguagem do Iauaretê, de Haroldo de Campos, menciona o nome de
Alfred Döblin; no entanto, o autor não dá à aproximação dos dois romancistas significativa atenção. Cf.
CAMPOS, Haroldo de. A Linguagem do Iauaretê. In: Guimarães Rosa. Eduardo F. Coutinho (org.). 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, pp. 574-579. (Coleção Fortuna Crítica).
12
13
Pelo lado da restauração da poesia épica, muito afastada do universo do romance
europeu há séculos, talvez a comparação mais adequada, pela direção do projeto, fosse
com Alfred Döblin, que se opõe, no final da década de vinte, à herança flaubertiana da
escrita do romance, por outro lado, tão vigorosa em Joyce ou no André Gide de Les faux
monnayeurs. Opondo-se a essa herança, em que o romance é visto como uma forma
escrita, Döblin voltou-se também para a linguagem falada, o dialeto berlinense, servindo-
se da montagem de documentos heterogêneos da vida cotidiana e glosando o estilo das
narrações populares, para fazer explodir estrutural e estilisticamente o romance. Como se
vê, porém, o seu é um mundo urbano e muito diferente daquele que serviu aos propósitos
de Guimarães Rosa, anos mais tarde. Mas, se é bem verdade, como observou Benjamin,
que a trajetória de Franz Biberkopf de proxeneta a pequeno-burguês, no mundo dos
marginais em torno do centro comercial que é a Alexanderplatz de Berlim, constitui um
avatar do romance de formação do período burguês, também a travessia de Riobaldo em
meio aos jagunços do sertão mineiro o é. Se, no primeiro caso, temos uma espécie de
Educação sentimental de um marginal; no outro, temos igualmente a Educação
sentimental de um jagunço
5
.
A questão levantada concentra-se no modo épico dos dois romances, em grande
parte entendida pelo efeito da ilusão de oralidade que neles habita, e retoma em seguida o
problema em torno do Bildungsroman, problema cujos desdobramentos, a partir desse
comentário de Benjamin, aqui por Arrigucci revisitado, ganharam relevância na literatura
crítica de Döblin.
Interessante notar que, nos poucos comentários que recebe o Berlin
Alexanderplatz no Brasil, geralmente estão associados o texto de Walter Benjamin escrito
em 1930, precisamente, e o livro de Döblin, de 1929. O contexto em que estão inseridos
ambos, o texto de Benjamin e o de Döblin, é o de uma “crise do romance” tomada como
um problema geral, como o sinal de um tempo em que romances do século XIX, então
modelos tradicionais, já não mais deveriam ser possibilidades comuns à representação
literária moderna. Generalizada, afirmamos, pois não apenas Walter Benjamin e Döblin
trataram dessa “crise”, uma discussão bastante significativa àquele momento (na
5
ARRIGUCCI JR. Davi. O Mundo Misturado. Romance e Experiência em Guimarães Rosa. In: Novos
Estudos CEBRAP. N.º 40, novembro de 1994, p. 21.
13
14
passagem da década de 20 para a de 30), mas também autores como Otto Flake e Robert
Musil, por exemplo, deram no período suas opiniões.
Em seu texto, Benjamin reconhece que Alfred Döblin “não se resigna com essa
crise, mas antecipa-se a ela e a transforma em coisa sua”
6
. Admirado que estava com a
leitura do Berlin Alexanderplatz e do texto teórico de Döblin que lhe serve de apoio, A
Construção da Obra Épica (Der Bau des epischen Kunstwerks, 1928), Walter Benjamin
chega a considerá-lo, Döblin, um “narrador nato”, “insurgindo-se contra o romancista”
que seria um Flaubert. Se quando Benjamin escreveu o seu bastante reconhecido
contributo à teoria literária, O Narrador (Der Erzähler, 1935/36), Alfred Döblin não
representasse já para ele um membro da “inteligência burguesa de esquerda”, talvez o
autor de Berlin Alexanderplatz pudesse também figurar como objeto de suas
considerações que são desenvolvidas sob o exemplo de Nicolai Leskov, nome que hoje
muita vez precisa do acompanhamento de uma nota explicativa. Döblin não participou da
luta de classes no sentido em que Benjamin pensava melhor funcionar um intelectual
socialmente, interagindo no processo produtivo propriamente, mas, antes, como um
“protetor” do proletariado, um “mecenas ideológico”, como se lê em seu texto O Autor
como Produtor (Der Autor als Produzent, 1934)
7
.
De um ponto de vista unicamente literário, podemos em uma análise conciliar
muito bem alguns argumentos dos textos teóricos de Döblin e Benjamin, sobretudo nos
temas da “objetividade épica”. Mas algo nos horizontes políticos destes dois intelectuais
parece que foi oposto, e poderíamos hoje apenas imaginar quão notória seria a
contribuição que os estudos sobre Döblin e seu Berlin Alexanderplatz receberiam, caso
6
BENJAMIN, Walter. Krisis des Romans. Zu Döblins Berlin Alexanderplatz. In: Gesammelte Schriften III.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p. 231. Ed. brasileira: BENJAMIN, Walter. A Crise do Romance. In:
Obras Escolhidas I. 7ª ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 55.
7
BENJAMIN, Walter. Der Autor als Produzent. Ed. brasileira: BENJAMIN, Walter. O Autor como
Produtor. Conferência Pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de Abril de 1934. In:
Obras Escolhidas I. 7ª ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 120-136.
Benjamin observa nesse texto que naqueles primeiros anos da década de 30 o “conceito de intelectual
ganhou terreno no campo da inteligência de esquerda e domina seus manifestos políticos, de Heinrich
Mann a Döblin” (p. 126), e que tal conceito, no entendimento de autores como Döblin, era determinado por
uma “concepção do ‘intelectual’ como um tipo definido por suas opiniões, convicções e disposições, e não
por sua posição no processo produtivo”. Para Benjamin, o “lugar do intelectual na luta de classes só pode
ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”.
14
15
houvesse Benjamin privilegiado Döblin com um O Narrador como o fez com Leskov
8
.
Imaginações apartadas, trataremos de Döblin não como um autor que precisaria de uma
reavaliação da importância de seu trabalho, pois isso já não se faz mais necessário.
Insistiremos mesmo é na possibilidade entrevista de que há certo paralelismo entre os
romances de Alfred Döblin e Guimarães Rosa, e que as semelhanças e diferenças dos
textos deles contribuem igualmente para que se entenda a experiência da modernidade e
do discurso romanesco nela inserido.
Nosso primeiro passo neste trabalho será investigar alguns dos problemas
suscitados em torno do romance enquanto discurso literário típico dos tempos modernos,
privilegiando questões na tradição do chamado Bildungsroman (romance de formação ou
educação); em seguida, partiremos para o tratamento específico que cada um dos dois
romances deve receber, ou seja, uma análise do “döblinismo”, para usar uma definição do
próprio autor, e da “joãozice”, ou “guimarãesrosice” do Grande Sertão: Veredas
9
. Nossa
análise terá inicialmente como foco as trajetórias dos protagonistas Riobaldo e Franz
Biberkopf, pretendendo na seqüência, como a linguagem dos dois romances, evidenciar
os “tontos movimentos” que compõem os caminhos da narrativa e da vida modernas.
Assim, almejamos fechar um todo coerente ao final de nosso trabalho, quando talvez
consigamos inseri-los num conjunto mais abrangente que os situem em diálogo com
questões tradicionais da forma romanesca, tal como o nosso recorte irá privilegiar. Caso
nossa análise destes dois romances esclareça melhor em que medida podem os dois textos
estar próximos, nosso objetivo terá sido atingido, e assim talvez aquela coleção de livros
inicialmente imaginada não careça tanto de uma ordenação mais “sensata”.
“Tudo é muito diferente do que imaginava o leitor ao tirar esse livro da estante”,
escreveu Walter Benjamin sobre o Berlin Alexanderplatz. Mas, e se nessa mesma estante
8
Semelhante colocação encontramos em dois textos de Helmuth Kiesel. Cf. KIESEL, Helmuth. Geschichte
der literarischen Moderne. Sprache – Ästhetik – Dichtung im zwanzigsten Jahrhundert. München: C. H.
Beck, 2004, p. 356; KIESEL, Helmuth. Lesskow oder Döblin? Über die fragliche Grundlage der
vielberufenen These von der Unmöglichkeit des Erzählens in der Moderne. In: Wirklichkeit der Kunst und
das Abenteuer der Interpretation. Festschrift für Horst-Jürgen Gerigk. Klaus Manger (org.). Heidelberg:
Winter, 1999, pp. 171-180.
9
Os dois termos, “joãozice” e “guimarãesrosice”, não são invenções minhas, mas foram por mim
encontrados nos manuscritos de Guimarães Rosa pertencentes ao IEB/USP. Cf. FJGR. MJGR – EO. Cx.
16, 01 (49). 7/10.
15
16
estivesse também o Grande Sertão: Veredas presente, o que haveria de imaginar esse
mesmo leitor?
16
17
O que nos tranqüiliza é a seqüência simples, a reprodução da realidade avassaladora da
vida numa seqüência unidimensional, tal como diria um matemático; a ordenação, ao longo de
um fio, de tudo quanto aconteceu no espaço e no tempo, precisamente aquele célebre ‘fio da
narrativa’, que constitui afinal também o fio da vida. Felizes os que podem dizer ‘quando’, ‘antes
de’ e ‘depois de’! Mesmo vítima da maior desgraça ou debatendo-se com a dor, desde que sejam
capazes de reproduzir os acontecimentos tal como se sucederam no tempo, sentem-se tão felizes
como se estivessem no sétimo céu. É deste artifício que o romance tem tirado proveito: tanto faz
que o viandante passeie a cavalo pela estrada sob chuva torrencial ou que arraste penosamente os
pés na neve com vinte graus negativos, pois o leitor está numa situação confortável. Tal seria fácil
de compreender se este truque da épica, com o qual já as amas sossegavam as crianças, a
comprovada ‘redução perspectivista do entendimento’, não fizesse parte já da própria vida. Na
relação de fundo consigo próprios os homens, na sua maioria, são narradores.
(Robert Musil, O Homem sem Qualidades)
.
MUSIL, Robert. Der Mann ohne Eigenschaften. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt Taschenbuch, 2004, p.
650. Ed. brasileira: O Homem sem Qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989, p. 462. Optou-se aqui pela tradução portuguesa de Maria Lin Moniz integrante de
Sobre o Romance no Século XX. A Reflexão dos Escritores Alemães. Teresa Seruya (org.). Lisboa: Edições
Colibri, 1995, p. 48.
17
18
Problemas da forma romanesca
Quando, entre 1936 e 1938, Mikhail Bakhtin se dedica ao estudo de uma tipologia
histórica do romance que traçasse as linhas gerais de um seu desenvolvimento, algumas
modalidades são categoricamente sugeridas: o romance de viagens (La Vida de Lazarillo
de Tormes, o Gil Blas, do escritor francês Alain René Lesage etc.), o romance de
provação da personagem (as hagiografias do início do cristianismo, por exemplo), o
romance biográfico (biografias, autobiografias ou confissões, como em Agostinho) e o
romance de educação (Erziehungsroman) ou Bildungsroman
10
. Justificadas as
modalidades de romance escolhidas segundo princípios ordenadores da construção da
personagem central, o Bildungsroman (e com ele Goethe) assume, para Bakhtin, a
relevante tarefa de assimilação do tempo histórico “em todos os seus momentos
essenciais”
11
. Destacando-se das outras modalidades e, de algum modo, incorporando-as
também, o Bildungsroman está em seu texto associado à idéia de uma escrita capaz de
compreender a “plenitude do tempo”, sendo ela um presente, além de autônomo,
composto das marcas de um passado e da projeção de um futuro. Assim, devido ao modo
pelo qual configura os seus temas, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister
(Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1795/1796) de Johann Wolfgang Goethe, paradigma da
modalidade, é caracterizado por Bakhtin como um tipo “realista” de romance, pois nele
se dá a representação dos “problemas da realidade e das possibilidades do homem, da
liberdade e da necessidade, os problemas da iniciativa criadora”
12
através de um olhar
cuja sensível abrangência faz indissociáveis tempo e espaço – “cronótopo”.
Aos parâmetros de uma sensibilidade historicamente situada na segunda metade
do século XVIII, desvinculados que foram das convenções outrora sobre a estética
artística atuantes, corresponde um característico discurso sobre a forma romanesca que,
presente tanto em Bakhtin como já no tempo de Goethe (guardadas as diferenças que há
entre as reflexões primeiras dos românticos e os estudos especulativos do teórico russo),
10
Este estudo de Bakhtin, conhecido apenas em modo fragmentado, pode ser encontrado em língua
portuguesa na tradução de Paulo Bezerra. BAKHTIN, Mikhail. O Romance de Educação e sua Importância
na História do Realismo. In: Estética da Criação Verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 203-
258.
11
Idem, ibidem, p. 223.
12
Idem, ibidem, p. 222.
18
19
faz notar a importância que a apreensão de uma assim denominada “totalidade da época”,
o que pode ser traduzido por uma complexa, multifacetada realidade, tem para o
“gênero”:
A grande forma épica (a grande epopéia), inclusive o romance, deve apresentar
um quadro integral do mundo e da vida, deve refletir o mundo todo e a vida toda. No
romance, o mundo todo e a vida toda são apresentados em um corte da totalidade da
época. Os acontecimentos representados no romance devem abranger de certo modo toda
a vida de uma época. Nessa capacidade de abranger o todo real está a sua essencialidade
artística
13
.
Como se nota, o “quadro integral do mundo e da vida” deve pertencer igualmente
ao romance, um “corte da totalidade” de sua época, e à epopéia antiga, mas, não do
mesmo modo, devemos acrescentar, pois, ainda com Bakhtin, verificamos que uma das
particularidades do romance está na proximidade entre aquilo que é representado em seu
enunciado e o “presente inacabado” da realidade em movimento que se encontra fora do
livro, tempo que reúne os romancistas e os seus leitores, enquanto na epopéia antiga os
acontecimentos heróicos são ambientados num passado distante e absoluto, sendo o
“tempo antigo” hierárquico e axiológico, para o qual a memória divinizada (Mnemosýne),
e não o conhecimento e a experiência individuais, como no romance, vem a ser o
instrumento com o qual o aedo opera a função poética
14
. De uma evidente complexidade
histórica, o processo pelo qual o tempo de um presente compartilhado substitui o passado
axiológico nas diferentes formas de representação poética é bastante dinâmico. Apenas
como esboço do problema, cabe notar que, de Homero aos trágicos Ésquilo, Sófocles e
Eurípides, encontramos já uma significativa mudança, pois, se a ação trágica ainda está
situada num tempo mítico, a sua função nos concursos em que eram representadas as
peças já diz, todavia, algo de sua importância para a experiência dos espectadores ali
presentes, valendo então o passado lendário e absoluto à “cura” de questões individuais
13
Idem, ibidem, p. 246.
14
Cf. BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance (Sobre a Metodologia do Estudo do Romance). In: Questões
de Literatura e Estética. A Teoria do Romance. 5ª ed. São Paulo: Editora UNESP/Hucitec, 2002, pp. 397-
428. V. tb. VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos Míticos da Memória. In: Mito e Pensamento entre os
Gregos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, pp. 135-166.
19
20
em seu tempo atuais, como assegura a Poética aristotélica
15
. Nosso maior interesse aqui é
porém mais restrito, e quer por ora somente observar que, entre a apreensão de uma
“totalidade” histórica e a qualidade romanesca de almejar tal realização, surge a questão
desse “presente inacabado” como problema fundamental, como veremos adiante com o
desenvolvimento de nosso trabalho. Voltemos uma vez mais entretanto às questões
suscitadas pela teoria bakhtiniana.
A escrita do romance, como demonstra Bakhtin, distingue-se historicamente de
outras formas ficcionais por ser a de um “gênero por se constituir”, quer dizer, uma
prática em movimentação constante, contrastando assim com aquelas cujo cânone define
modelos tradicionais mais precisos. Tal prática, em sua já comentada relação com o
tempo histórico, apresenta em seus exemplares variados modos próprios para o
dimensionamento temporal e espacial daquilo que é narrado, associando-se a isso as
liberdades de suas feições plurilíngüe (encenação de vozes sociais e imaginários
diversos) e parodística (naquilo que serve como tema e também naquilo que é
incorporado ao texto em referências, empréstimos e apropriações das diversas tradições
populares e eruditas)
16
. Em cada uma de suas grandes realizações, a escrita múltipla do
romance parece surpreender um modo particular de configurar um mundo próprio
legítimo e legível, participante, em maior ou menor grau, das experiências de cada um de
seus leitores.
Considerando aqui o interesse de Bakhtin no Bildungsroman para as suas
observações sobre a totalidade de uma época que pode estar presente na escrita do
romance, pensemos também nas discussões que circulavam nos dias de Goethe e de seus
contemporâneos. Após a publicação de Wilhelm Meisters Lehrjahre, segue-se um intenso
15
Deve aqui ser notado, também, mais um aspecto das diferenças entre os momentos antigo e moderno
desta relação de um trabalho poético com o presente de suas relações e efeitos. Observa Luiz Costa Lima,
por exemplo, que por “inconciliáveis que sejam os horizontes dos homens antigo e moderno, [...] a tragédia
não deixa de ser uma ‘obra do efeito’ (ein Werk der Wirkung). Como, em nossos dias, a tragédia – ou a
obra de arte, em geral – não está mais ligada ao calendário da polis, fazendo parte de suas celebrações, mas
à experiência isolada do indivíduo, seu efeito já não mais pode ser entendido como purificação, efetuada no
âmbito da festa cívica, de determinados afetos (piedade e terror).” Cf. LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio
ao Pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 44. V. tb. LIMA, Luiz Costa. Mímesis e
Modernidade. Formas das Sombras. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003, pp. 36-49.
16
Cf. os dois textos de Bakhtin já citados (notas 10 e 14) e também: BAKHTIN, Mikhail. A Cultura
Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. 5ª ed. São Paulo:
Hucitec/Annablume, 2002.
20
21
debate sobre o livro
17
. Um de seus comentadores é Friedrich Schlegel (1772-1829), em
quem se encontram tanto idéias em parte próximas àquelas de Bakhtin quanto também
críticas singulares ao texto de Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Para
Schlegel, o romance de Goethe deveria ser o paradigma poético, estético, moral e
filosófico de sua época. No seu entendimento, em seus aspectos fundamentais a “poesia
romântica” deveria ser “progressiva” e “universal”
18
. Isto é, Schlegel não aceita a
existência de um limite histórico ou temático para a escrita ficcional, conferindo à tarefa
de representação um sentido inesgotável e impossível, pois infinito, porém praticável.
Evidencia-se assim que uma longa tradição de condicionamentos retórico-poéticos é
então deixada de lado, interessando mais ao momento a competência individual de
perceber e organizar uma realidade apreensível em diferentes níveis, cabendo ao “espírito
orgânico”
19
moldar o “universal”, a totalidade do real num correspondente sistema
poético, sendo o romance, “como a epopéia, um espelho do inteiro mundo circundante,
um retrato da época”
20
.
O Wilhelm Meisters Lehrjahre conseguiu satisfazer às amplas exigências deste
Schlegel apenas parcialmente. Considerado por ele uma das maiores tendências de seu
tempo (ao lado da Revolução Francesa e da Doutrina da Ciência de Fichte)
21
, o Wilhelm
Meisters Lehrjahre era para ele também um romance ainda um tanto incompleto e
deficiente, pois, em suas palavras, um “romance perfeito deveria ser uma obra de arte
muito mais romântica do que o Wilhelm Meister; mais moderna e mais antiga, mais
filosófica, mais ética e mais poética, mais política, mais liberal, mais universal, mais
social”
22
. O texto de Goethe, tanto para Schlegel quanto para Novalis, apesar de
exemplar, foi considerado insatisfatório, e isso também diz respeito à maleabilidade do
17
Cf. o belo trabalho de Wilma Patricia Maas. MAAS, Wilma Patrícia. O Cânone Mínimo. O
Bildungsroman na História da Literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000. Neste texto é possível
encontrar desde algumas importantes referências à compreensão dos termos Bildung e Bildungsroman até
uma breve, porém significativa abordagem da trajetória desses conceitos.
18
Entenda-se aqui “poesia romântica” como romance, pois esta é uma das acepções do termo identificável
em F. Schlegel. Refere-se aqui também à conhecida definição do fragmento 116 da revista Athenäum
(1798): “Die romantische Poesie ist eine progressive Universalpoesie” (“A poesia romântica é uma poesia
universal progressiva”). Cf. SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a Poesia e Outros Fragmentos.
Tradução, prefácio e notas de Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994, pp. 98-99.
19
“O intelecto é mecânico. A espirituosidade (Witz) é química. O gênio é espírito orgânico”. Idem, ibidem,
p. 109.
20
Idem, ibidem, p. 99.
21
Cf. o fragmento 216 da Athenäum. Idem, ibidem, pp. 102-103.
22
Este comentário de Schlegel foi colhido no livro de Wilma Patricia Maas. Cf. a nota 17.
21
22
“gênero” romance, sugerindo a problemática de sua prática que lida com a ausência de
fronteiras claras e por isso mesmo não põe termo às questões com as quais trabalha com o
encerramento delas numa totalidade sem ruídos.
A distância entre nós e os textos de Goethe, Schlegel ou Novalis não elimina boa
parte de suas questões então desenvolvidas, mas acrescenta ao problema alguns seus
desdobramentos. Podemos localizar nesta segunda metade do século XVIII muito do
nosso modo de pensar, ler ou escrever um romance (incluso nisso também os modos de
produção, comercialização e circulação dos textos deste “gênero”). Assim reconhece
Michel Foucault em sua análise epistemológica, quando afirmou que
[...] o pensamento que nos é contemporâneo e com o qual, queiramos ou não,
pensamos, acha-se ainda muito dominado pela impossibilidade, trazida à luz por volta do
fim do século XVIII, de fundar as sínteses no espaço da representação e pela obrigação
correlativa, simultânea, mas logo dividida contra si mesma, de abrir o campo
transcendental da subjetividade e de constituir inversamente, para além do objeto, esses
“quase transcendentais” que são para nós a Vida, o Trabalho, a Linguagem
23
.
Leve-se em conta que a experiência e o conhecimento subjetivados a tal ponto
fissuraram as bases das tradicionais práticas de representação (as premissas que outrora
orientaram o trabalho poético, estabelecendo uma noção coletiva válida tanto para a
produção quanto para a recepção e para a avaliação dos textos), abrindo um campo
inteiramente novo para as relações entre ficção e realidade, sobre o qual o século XIX,
sobretudo, pôde trabalhar as formas daquilo que talvez ainda hoje constitua a nossa idéia
de “literatura”. Sem deixar de mencionar que essas novas feições da linguagem estão
intimamente relacionadas aos modos de produção capitalistas, ao declínio da autoridade
real e da Igreja (e de suas relações com as artes), aos modos de vida mais livres, nos quais
se desenvolveu com maior independência o pensamento científico, e a tudo aquilo que
transformou processualmente o assim chamado “regime antigo” nesta política e vida
modernas que hoje conhecemos, interessa aos limites de nosso trabalho o problema que
atinge a forma romanesca, quando, reconhecida a sua paternidade na epopéia antiga, a
23
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas. 8ª ed.
Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 343.
22
23
época em que ela definitivamente floresce traz em si uma espécie de impossibilidade de
“fundar sínteses” no espaço da representação.
Para seguir o tema, há também em Georg Lukács o desenvolvimento de questões
que nos tocam. Para ele, igualmente, o romance como herdeiro da epopéia clássica tem
por finalidade encerrar uma certa “totalidade”:
O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não
é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se
problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade
24
.
Mas também Lukács reconhece as diferenças entre os modos antigo e moderno de
tal intenção. Em suas palavras, a “epopéia dá forma a uma totalidade de vida fechada a
partir de si mesma”, enquanto “o romance busca descobrir e construir, pela forma, a
totalidade oculta da vida”
25
. Com isso, a escrita do romance pode ser caracterizada como
um processo, um movimento em direção ao sentido que não lhe pertence a priori, mas
que deve ser obtido no correr de sua narrativa. Assim, desde os primeiros autores
modernos que identificamos nos românticos alemães como exemplo, o problema da
“totalidade” a que visa o romance sofre da preponderância de um olhar subjetivo que da
realidade colhe apenas fragmentos e organiza, a seu modo, uma composição que se quer
plena de sentido. Retomaremos adiante a questão.
Já vimos antes com Bakhtin que o “idealista” e romântico Wilhelm Meisters
Lehrjahre pode ser lido como um tipo “realista” de romance na representação dos
“problemas da realidade e das possibilidades do homem”
26
, mas quão menos “realista”
seria a obra de Kafka, por exemplo, para um tempo em que o sujeito individual já não
pode mais ser um elemento unificador e a centralidade do mundo senão um objeto sujeito
às circunstâncias que lhe escapam ao entendimento? Deste modo, o “realismo” de um
texto ficcional e o seu modo de representação da realidade só poderão ser compreendidos
24
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas
Cidades; Ed. 34, 2000, p. 55.
25
Idem, ibidem, p. 60.
26
Cf. a nota 12.
23
24
se julgados de acordo com o contexto em que eles estão inseridos
27
. Quando Auerbach
formula que o Wilhelm Meisters Lehrjahre é de longe o texto mais realista de Goethe, ele
o faz com maiores restrições que Bakhtin. Para Auerbach o realismo de Goethe é ainda
estreito, sua literatura não compreende “situações concretas de ordem política ou político-
econômica” e as “reviravoltas contemporâneas na divisão social”, tratando antes do
“mundo da classe média” que “repousa diante dos olhos do leitor numa calma quase
atemporal”. Auerbach justifica tal situação nas condições de vida e na personalidade do
próprio Goethe, alegando com isso “que Goethe nunca representou dinamicamente a
realidade da vida social contemporânea, nunca como germe de situações futuras ou em
estado de gestação”
28
. Sabe-se que durante a primeira metade do século XX essa
preocupação com a representação da realidade sofreu o advento de posturas de teóricos
marxistas mais radicais, como o mesmo Georg Lukács por nós já citado, que
posteriormente à publicação de A Teoria do Romance desenvolveu uma série de ensaios
sobre o tema. A discussão do problema, que na literatura mais que um reflexo da
realidade social não se valorizava, trouxe para a ordem do dia questões como a diferença
entre o “narrar” e o “descrever” que poderiam ser identificadas nas escritas romanescas,
sobretudo a partir de Balzac. Uma boa contribuição à discussão nessa ocasião foi dada
por Bertolt Brecht, que, num texto de 1938, reflete de modo mais amplo o problema do
realismo na literatura. Brecht defende que seria demasiado simplista atar o conceito
“realismo” a alguns considerados romancistas burgueses e com isso determinar um
padrão de escrita realista. Para Brecht, “o estilo realista só pode ser distinguido do não-
realista na medida em que é confrontado com a própria realidade da qual trata”. Com
grande sensatez, escreve Brecht que não “o conceito de estreiteza, mas o de amplitude
combina com o realismo. A própria realidade é ampla, multifacetada, contraditória; a
história cria e refuta modelos”
29
.
27
Como afirma Luiz Costa Lima, a “ação da obra de Kafka é contemporânea a um tempo em que o
controle do imaginário dispensa a idéia de verdade, sua elocubração filosófica ou religiosa, e torna esse
controle o princípio de atuação das múltiplas agências do poder. Noutras palavras, a verdade deixa de ser
afirmada a partir e em função de uma certa racionalidade, para que se confunda com o fato bruto de que
certo poder quer, afirma e impõe tal coisa”. Cf. LIMA, Luiz Costa. Limites da Voz Kafka. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993, p. 184.
28
AUERBACH, Erich. Mimesis. A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. 4ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2002, pp. 399-404.
29
BRECHT, Bertolt. Amplitude e Variedade do Modo de Escrever Realista. In: Estudos Avançados. Nº 34,
v. 12, setembro/dezembro de 1998, pp. 267-276.
24
25
Paradigmas do romance moderno do século XX, como Kafka, podem ser assim
compreendidos no deslocamento do conceito “realismo” com a elasticidade que lhe é
própria e a realidade que lhe condiz. Recordando aqui das nossas observações sobre a
totalidade de uma época que deve ter lugar no romance e a existência de modos
particulares pelos quais ela é procurada, podemos também trazer para o nosso texto esta
observação de Michel Butor, para quem a “busca de novas formas romanescas cujo poder
de integração seja maior representa pois um triplo papel com relação à consciência que
temos do real: de denúncia, de exploração e de adaptação”
30
. Ora, a percepção que
determinado escritor tem do mundo que lhe rodeia é de fato uma condição a ser
explorada em sua escrita, a qual pode denunciar em sua linguagem uma realidade que é
um certo efeito de realidade, pois resulta sobretudo de seu gesto criativo e das adaptações
que lhe foram possíveis e desejadas por ser adequadas a um imaginário socialmente
compartilhado. Nos desejos de um autor, é verdade, reside a subjetividade de um texto,
mas é aí também que moram as qualidades dos grandes romancistas, pois neles surgem
da relação de seus sentimentos individuais com os sentimentos tomados como gerais a
sociabilidade e o sucesso da circulação de seus livros. O interessante nisso é que, como
resultado de um bom trabalho de questões subjetivas, o texto do romance que assim se
destaca acaba por verter aquilo que é da esfera pessoal do autor em algo que, modelado
literariamente, supera o seu confinamento no indivíduo, como afirma Adorno:
De fato, os romances que hoje contam, aqueles em que a subjetividade liberada é
levada por sua própria força de gravidade a converter-se em seu contrário, assemelham-se
a epopéias negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si
mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu
endossar o mundo pleno de sentido
31
.
Num mundo abandonado à subjetividade dos homens, garantir na forma de
representação do romance o sentido de um conjunto que se constrói a partir de uma
realidade histórica tornada complexa, e que ainda assim tem por intenção abranger uma
30
BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 11.
31
Cf. ADORNO, Theodor W. Posição do Narrador no Romance Contemporâneo. In: Notas de Literatura
I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p.62.
25
26
certa totalidade, tendo por perto a transitoriedade de um “presente inacabado”, como já
observamos, não se faz sem problemas, e isso termina por exigir ao texto que assim está
condicionado, em favor da vitalidade de suas idéias, experimentar modos narrativos
estratégicos que intencionam dar conta dessa situação. Usualmente, o catalisador da
problemática da forma romanesca encontra-se na situação do indivíduo que é eleito
protagonista para em si suportar, de modo exemplar, os confrontos que emergem da
exposição de determinada personalidade às circunstâncias externas que se lhe oferecem.
Tais confrontos são, em grande medida, os responsáveis pela dose de realidade que
despertam as leituras de romances, pois se não há nessa forma literária, como se acredita
haver para a epopéia antiga, um sentido imanente à vida que já de antemão está dado, faz-
se necessário então que se construa algum, e isso apenas se dá através da forma
biográfica que nos caminhos de um protagonista sugere o desenvolvimento de um sentido
no embate entre os mundos interior e exterior dessa personagem.
Com maior ou menor êxito, os sentidos revelados pela trajetória de uma
personagem que procura por algo são num romance logrados. Eles dependem, sobretudo,
do aspecto temporal da narrativa que apresenta um “antes” e um “depois” de suas
personagens. Dependem também da disposição que estes têm para a vida, já que a
disparidade da realidade que permeia o enunciado do romance provavelmente será para
eles no desenrolar do texto um motivo de maior ou menor resignação. A complexidade
desse processo, que está situado na travessia que empreendem num texto um protagonista
e as suas idéias, pode ser compreendida na forma romanesca através da inadequação
existente entre as idéias da personagem privilegiada e a realidade que ali se apresenta
mais ou menos tolerante em relação a elas. Foi também Georg Lukács, em seu livro já
mencionado, que a partir de uma semelhante observação categorizou de forma distinta
romances como o Dom Quixote, A Educação Sentimental e Os Anos de Aprendizagem de
Wilhelm Meister. Dada a condição de um mundo disposto em fragmentos heterogêneos, o
protagonista de um romance que se aventura por ele tem para Lukács em sua “alma” as
condições básicas de duas disposições diferentes entre si: “a alma é mais estreita ou mais
ampla que o mundo exterior que lhe é dado como palco e substrato de seus atos”
32
. No
32
Cf. o livro citado na nota 24, p. 99. Bakhtin também afirma que “um dos principais temas interiores do
romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem
26
27
primeiro caso, está o por ele denominado “idealismo abstrato” do Dom Quixote, no qual o
vigor ingênuo e a falta de problemática como dados interiores da personagem central
fazem vir à tona a superioridade da realidade exterior com a qual ele se depara. No
segundo caso, que tem maior interesse para o nosso trabalho, e por Lukács foi intitulado
“romantismo da desilusão”, é a “alma” do protagonista, “mais ampla e mais vasta que os
destinos que a vida lhe é capaz de oferecer”
33
. Dessa discrepância, nasce a dificuldade de
unificar os mundos interiores e exteriores, sem com isso concorrerem resignação e
pessimismo sobrepostos à tentativa de uma vida satisfeita em seus ideais. O paradigma
dessa forma romanesca é A Educação Sentimental de Gustave Flaubert. No mundo
apresentado por esse romance, a convivência de valores desiguais que animam as tensões
de sua narrativa não encontra o conforto de uma unidade que poderia, talvez, ser forjada
artificialmente pelo protagonista Frédéric Moreau. Antes, sobressai uma série de
frustrações que o convívio social demonstra ter a vida preparado para ele, como o fez
para todos, e desse fracasso, como que tomado pela fatalidade, o protagonista reconhece
que a plenitude da vida inclui em si as adversidades que tornam estéreis as suas lutas
corporais e a boa vontade que o acompanharam.
Como um tipo romanesco localizado entre as duas formas que acima destacamos
está Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, o Bildungsroman, que para Lukács
sintetiza as suas outras duas categorias ao reconciliar o “indivíduo problemático, guiado
pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta”
34
. Sustentada pela trajetória de
uma personagem central que também vê os seus desejos pessoais idealizados sucumbirem
ao passo que a nudez dos fatos se apresentam, a forma desse romance, contudo, encontra
uma via alternativa onde, transformados pela ação do tempo, fundem-se as realidades da
“alma” do protagonista e do mundo que a rodeia:
Eis por que a interioridade aqui em apreço situa-se entre os dois tipos antes
analisados: sua relação com o mundo transcendente das idéias é frouxa, tênue tanto
subjetiva quanto objetivamente, mas a alma voltada puramente a si própria não integra o
seu mundo numa realidade que é ou deve ser perfeita em si mesma, que se opõe como
ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade”. Cf. o livro de Bakhtin citado na nota 14, p.
425.
33
Idem, ibidem, p. 117.
34
Idem, ibidem, p. 138.
27
28
postulado e poder rival à realidade externa, senão porta em si, como sinal do laço remoto
embora ainda não rompido com a ordem transcendental, a aspiração a uma pátria no
aquém que corresponda ao ideal – um ideal pouco claro no que aceita, inequívoco na
rejeição. De um lado, portanto, essa interioridade é um idealismo mais amplo e que se
tornou com isso mais brando, mais flexível e mais concreto e, de outro, uma expansão da
alma que quer gozar a vida agindo, intervindo na realidade, e não contemplativamente.
Assim, essa interioridade situa-se a meio caminho entre idealismo e Romantismo, e ao
tentar em si uma síntese e superação de ambos, é rejeitada por ambos como
transigência
35
.
Embora de forma bastante resumida, faz-se necessário ao nosso trabalho a atenção
que demos aqui às categorias de Lukács para as análises que adiante terão lugar. Como
formas romanescas que parecem transformar e intensificar os problemas dos tipos acima
enfocados, leremos os romances de Guimarães Rosa e Alfred Döblin em suas
particularidades.
A linguagem literária adquire no contexto do século XIX temas sem precedentes
históricos, resultantes das novas condições de vida em que se encontraram, por exemplo,
os indivíduos que viviam em capitais de um crescente e acelerado desenvolvimento
industrial e econômico, como Londres ou Paris. Os problemas desse desenvolvimento
urbano encontramos já na literatura de um Dickens ou de um Poe, caso fiquemos apenas
com alguns dos exemplos que a prosa do período em questão pode oferecer. São do
território londrino as imagens que se projetam de uma cidade pouco higiênica, rude e
utilitária, como a Coketown do Hard Times de Dickens; e é o mesmo terreno londrino que
serve de palco para as observações e caminhadas de um narrador de Poe em The Man of
the Crowd, onde os modos e comportamentos de distintas classes e de um determinado
indivíduo em meio ao movimento de uma multidão de passantes são detalhadamente
analisados. Se aceitarmos, como aqui se quer fazer acreditar, que a experiência moderna
está de muitas maneiras ligada à movimentação e à transitoriedade da vida dos centros
urbanos, estaremos a firmar um acordo com o parisiense Baudelaire, para quem a
“modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra
35
Idem, ibidem, pp. 138-139.
28
29
metade o eterno e o imutável”
36
. Adicionando a esse moderno modo de ler o mundo as
posteriores experiências estéticas das vanguardas históricas (Expressionismo, Dadaísmo,
Futurismo etc.), encontraremos a situação da linguagem verbal que se prestou a definir a
poética da modernidade sobre o desmantelamento das representações clássicas. Em
Baudelaire, o movimento e o transitório modernos ainda são apenas seus temas, mas nos
futuristas e depois naqueles que em meados do século XX praticaram a poesia concreta,
descendentes de Mallarmé que eram, fez-se do movimento o modo de escrever ele
próprio, ocupando o movimento “da” palavra o lugar da palavra “sobre” o movimento.
Mas quando e de que modo isso tudo afetaria a prosa do romance, que, por sua
“natureza”, não pode estar livre daqueles “antes de” e “depois de” que configuram uma
representação do mundo no “fio da narrativa”
37
?
Certamente em James Joyce já é possível localizar, nos termos que desejamos, a
moderna prosa do romance em sua plena realização. O uso que o autor irlandês faz em
suas narrativas do chamado “monólogo interior” (stream of consciousness), das técnicas
de montagem que assemelham construções cinematográficas numa narrativa não linear,
assim como os profusos trabalhos que ele opera sobre o léxico da língua inglesa, resulta
numa prosa exemplar do romance moderno. Ao lado dele, autores como os de nosso
interesse, Guimarães Rosa e Alfred Döblin, foram mais de uma vez situados, já que
técnicas narrativas similares às do autor irlandês foram por eles utilizadas. Encontra-se na
prosa desses autores, como pretendemos demonstrar, uma movimentação constante que,
além de caracterizar as vidas de seus protagonistas Riobaldo e Franz Biberkopf, habita de
igual modo a superfície dos enunciados que as narram. Há nisso, devemos também notar,
o suporte de um contexto histórico que se apresenta ao lado das representações literárias
transformado, ou melhor, em transformação, pois “presente inacabado”. No caso de
Alfred Döblin, o espaço histórico que lhe serve de tema no Berlin Alexanderplatz, ou
seja, a Praça Alex, como é conhecida, e o seu entorno, de 1925 a 1933, período que
compreende a narrativa do livro, tem por qualidade a modernização de seus limites num
intenso trânsito de pessoas, automóveis, bondes, mercadorias, informações etc. Esse
período, que inclui ainda a implantação do metrô no local, bem como reformas estruturais
36
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Poesia e Prosa. Ivo Barroso (org.). Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 859.
37
Cf. a epígrafe deste trabalho.
29
30
a cargo da moderna arquitetura de Martin Wagner, empresta à praça a condição de
Weltstadtplatz
38
. O livro de Döblin, para fazer jus à condição da praça, requer o trânsito
da paisagem para si, como elemento constituinte de sua narrativa, valorizando a
circulação do que ali se movimenta com a inclusão destes ambulantes em seu romance,
que assim forja um texto “da” cidade, e não um texto “sobre” a cidade
39
. De modo
similar, Guimarães Rosa empreende no seu Grande Sertão: Veredas uma espécie de texto
“do” sertão, destacando-se assim de toda uma tradição brasileira de representações do
espaço sertanejo, em cuja distância entre narrador e personagens desempenhavam-se
narrativas que podem ser identificadas como textos “sobre” o sertão. Inserido nessa
tradição que tratou literariamente as regiões do interior brasileiro, incluindo nisso nomes
como José de Alencar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, Simões Lopes Neto, Afonso
Arinos de Melo Franco, e também contemporâneos seus como José Lins do Rego e Mário
Palmério, distancia-se dela todavia o autor de Grande Sertão: Veredas por realizar no
plano da linguagem a constituição de uma fala particular que se quer portadora da voz do
sertão em si, como se fosse possível inverter os modos do tradicional olhar urbano em
direção ao sertão através da invenção de um sentir e pensar sertanejos que encontrassem a
sua realização na voz autoritária de Riobaldo, que no livro não permite outro falar,
deixando mudo o seu interlocutor citadino. Porém, a “voz do sertão”, que é Riobaldo, não
se deixa convencer como tal sem maiores problemas, já que em sua falsa naturalidade ela
é significativamente complexa, enxertando-se de leituras das representações cultas que já
foram feitas do espaço sertanejo, além de abusar ricamente nos usos lingüísticos, o que
acaba por configurar um discurso que só pode mesmo extrapolar os domínios de
determinada região que seria, no caso, o sertão mineiro. Por conseguinte, a voz de
Riobaldo, assim como o enunciado carregado de discursos heterogêneos do Berlin
Alexanderplatz, é composta de outras vozes várias que ela faz falar, multiplexando um
sem-número de significados a partir das operações que nela têm lugar
40
. Como já
38
Cf. JOCHHEIM, Gernot. Der Berliner Alexanderplatz. Berlin: Ch. Links Verlag, 2006, pp. 128-151. Este
recente livro compreende de modo significativo a história da praça desde os seus dias primeiros até à
atualidade.
39
Sobre o trânsito como parte constitutiva da paisagem no Berlin Alexanderplatz há o livro de Johannes
Roskothen. Cf. ROSKOTHEN, Johannes. Verkehr. Zu einer poetischen Theorie der Moderne. München:
Wilhelm Fink Verlag, 2003.
40
Como linguagem literária que é, o texto do romance de Guimarães Rosa não deixa de ter implicações
políticas quando na fala de Riobaldo podem ser notados “imaginários do intelectual organizador da cultura
30
31
observou Bella Jozef, o “sertão roseano é um sertão enfaticamente significante, mas
nunca completamente significado, num processo dinâmico que não nos fornece um
sentido acabado. É um sertão polivalente, ambíguo, um sertão construído na
linguagem”
41
. Sendo assim, em relação aos romances do século XIX que orientaram
construções de categorias que os definem como as de Lukács por nós mencionadas,
romances mais modernos como Grande: Sertão Veredas e Berlin Alexanderplatz trazem
às questões de uma teoria da forma romanesca adicionais motivos, provenientes
sobretudo da linguagem que neles narra uma certa situação de vida dos seus protagonistas
e intensifica os desafios de “heróis” já outrora problemáticos, como são os casos das
personagens dos livros A Educação Sentimental e Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm
Meister.
Ressaltamos até aqui em nosso trabalho com especial atenção o problema da
“totalidade” que, como vimos, na forma de representação do romance encontra
dimensões desconhecidas da epopéia clássica. Sem a intenção de concluirmos a questão,
isso caso seja possível concluí-la, prosseguiremos em nossas observações sobre as
linguagens dos dois livros que nos interessam, relacionando-as ao problema romanesco
da compreensão numa narrativa de um certo “inteiro mundo circundante”.
Talvez, poderíamos pensar, representar uma grande cidade ou um grande sertão
possibilite a um discurso romanesco trabalhar com o múltiplo de um modo em parte
facilitado, já que a amplitude dos espaços sertanejo e urbano é para qualquer um bastante
vaga. Certamente, não se pode abranger por completo o que a totalidade de tamanhas
dimensões guarda em si nas suas variadas esferas; essa pretensão escaparia a qualquer
tipo de registro dos que conhecemos, já que eles são sempre em algum aspecto
excludentes. Mas não é numa suposta “perfeição” de uma completude abrangida em seus
distintos aspectos que exatamente reside a questão da “totalidade” no romance, e sim no
alcance do recorte que é feito desta realidade integral, o que sem dúvida significa para o
que, com redes interpretativas, tentou cercar a metáfora ‘Sertão’ com flores e arame farpado”, como
observou João Adolfo Hansen. Cf. HANSEN, João Adolfo. Terceira Margem. In: Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros. N.º 41. 1996, p. 58. Nesse texto, as questões aqui apenas mencionadas ganham seu
devido desenvolvimento.
41
Cf. JOZEF, Bella. O Romance Brasileiro e o Ibero-Americano na Atualidade. In: Guimarães Rosa.
Eduardo F. Coutinho (org.). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 195. (Coleção Fortuna
Crítica).
31
32
entendimento moderno um conjunto multitudinário, vago e furtivo, e por isso mesmo
escapa infinitamente ao passo que se queira compreendê-lo.
A cidade e o sertão são, para o romance, aquilo que o mar é para a antiga epopéia:
um mundo de mistérios, sem porteiras nem fronteiras, com os quais se constroem
narrativas que sobre a grandeza desses espaços crescem sem medida. Como já vimos,
decorre disso que enunciados como os dos romances de Guimarães Rosa e de Alfred
Döblin que operam nos seus textos a integração de idéias, imaginários e elementos
discursivos vários entre si distantes, que fazem “falar” a cidade e o sertão, enquanto
praticam uma mistura de constituintes diversos e desenrolam concomitantemente a
história de seus protagonistas, atingem um ponto crítico que os situam nos limites da
verossimilhança “habitual” da literatura. Citando Ettore Finazzi-Agró:
[...] em Grande sertão se dá, a meu ver, uma espécie de “imperfeição”, no
sentido já apontado de uma impossibilidade em marcar os limites (textuais e de gênero)
desta obra, em que, de fato, a consciência da partição e da heterogeneidade convive com
o desejo de uma representação global [...] Grande sertão vale justamente pelo muito que
nele deveu (isto é, que o autor achou que nele devia) caber. E esse “valor” só podia ser
alcançado, de fato, através de uma mistura de gêneros e de discursos, somente graças
àquele excesso, àquela extravagância, que nos entrega a obra na sua “imperfeição”:
produto de uma contaminação infinita, em que se reflete um mundo (histórico, social,
ético...) cheio de verdades contaminadas, de misturas entre as coisas; Grande sertão é
imperfeito na medida em que tenta representar uma realidade em que a perfeição é apenas
uma ilusão ótica, é apenas o fruto precário de uma decisão, de um ato de força, de um
determinismo oco
42
.
Como portadores de um discurso farto em referências históricas, presenças
míticas, situações políticas, morais e personagens vários que se ligam com maior ou
menor relevância às histórias de seus protagonistas, Grande Sertão: Veredas e Berlin
Alexanderplatz, para realizarem algo que se sustente como um recorte satisfatório de uma
certa “totalidade” do real, ao desenvolverem as histórias de seus personagens centrais,
42
Cf. FINAZZI-AGRÓ, Ettore. Um Lugar do Tamanho do Mundo. Tempos e Espaços da Ficção em João
Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, pp. 34-35.
32
33
usam de modos narrativos que em si parecem permitir que de tudo neles seja incluso.
Nessa “vontade enciclopédica” dos dois romances, revela-se uma forma narrativa
estratégica, um “hiper-narrador inclusivo”, como notou João Adolfo Hansen para o caso
do estilo que é Riobaldo
43
, com uma definição que poderia ser igualmente aplicada à
narrativa inclusiva do romance de Döblin.
O Berlin Alexanderplatz, como o livro de Rosa, é também de uma narrativa
“contaminada”, um texto que parece ser incapaz de excluir qualquer elemento discursivo
que imaginemos poder participar da vida de uma metrópole. Nele, procura-se abraçar a
pluralidade urbana com todos os seus conflitos e contradições, como se nota quando a sua
narrativa caminha com o encadeamento de discursos heterogêneos que se ligam sem uma
aparente afeição mútua. Intimidar-se com a disparidade dos elementos que circulam no
espaço urbano não é para o romance de Döblin, sendo ele dono de um enunciado que, ao
menos potencialmente, tudo parece poder comportar.
Ao que indica a teoria de Bakhtin, é imperativo que o romance lide em seu
discurso com este potencial plurilingüístico, ou seja, com uma quantidade diversificada
de vozes que dramatizam nele um leque de formações imaginárias, temporais,
lingüísticas etc. No romance “devem ser representadas todas as vozes sócio-ideológicas
da época, ou seja, todas as linguagens, qualquer seja a sua importância; o romance deve
ser o microcosmo do plurilingüismo”, afirma o teórico russo. Com a feição de um
problema inerente ao gênero, esta encenação de plurais formações em convivência
íntima, apesar de seus aspectos distintivos, no romance moderno conhece textos como os
de Guimarães Rosa e de Döblin, que têm discursos enriquecidos no diverso que visa uma
“totalidade”.
Nessa abrangência dos discursos do Grande Sertão: Veredas e do Berlin
Alexanderplatz, embora seja tocado o problema do recorte de uma “totalidade”, atinge-se
do mesmo modo um significativo conflito, próprio da qualidade desta forma de
representação que lhes caracteriza. Quanto mais se aproximam esses textos de uma certa
“totalidade” mediante o crescimento de suas narrativas que se recheiam sem restrições,
mais se compromete neles o sentido de uma unidade que se quer construída a partir
43
Cf. HANSEN, João Adolfo. O O. A Ficção da Literatura em Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Hedra,
2000, p. 23.
33
34
daquele outro aspecto romanesco que, como já mencionamos, responde também pela
constituição dessa “totalidade”, isto é, o desenvolvimento das trajetórias de seus
protagonistas. Próximos como heteróclitos, os romances de Guimarães Rosa e de Alfred
Döblin, ao trabalharem com uma variedade de discursos distantes reunidos em uma única
narrativa que apresenta a polêmica e o contraste de formações imaginárias de
temporalidades diversas, dissolvem o elemento orgânico que nos romances do século
XIX, ou no Wilhelm Meisters Lehrjahre, como vimos, integra protagonista e o seu
entorno numa unidade de sentido ficcional tomada exemplarmente por “totalidade”.
Riobaldo e Franz Biberkopf, caso sejam a redução de toda a vida de uma época, não
chegam todavia a unificar o sertão e a cidade, mas posicionam-se como agentes nos quais
registros vários são dramatizados e assim produzem uma constante indeterminação,
corroborada incansavelmente pelo que se pode apreender de seus “anos de
aprendizagem”.
Em nosso trabalho, procuraremos definir as experiências de Riobaldo e de Franz
Biberkopf a partir da análise de pontos de suas trajetórias particulares. Adiantamos, por
ora, que será o caráter transitório de suas vidas que mais nos interessará na escolha desses
pontos. Entendemos com isso, acrescente-se, que na movimentação dos protagonistas de
nosso interesse reside um elemento esclarecedor desta especificidade moderna dos
romances aqui focados. Pretendemos ainda, com o desenvolvimento de nosso texto,
identificar a presença de tal movimentação em outros níveis, antes de concluir.
34
35
Berlin Alexanderplatz e Grande Sertão: Veredas
I. Berlin Alexanderplatz, publicado em 1929, acumula, assim como o Grande
Sertão: Veredas, uma numerosa quantidade de interpretações; suas leituras elegem-no um
dos mais notáveis romances do século XX, sobretudo quando os temas em questão são o
espaço urbano e a vida de seus habitantes socialmente marginalizados e seu entorno
caótico e transtornado.
Vistos tradicionalmente como campos propícios à multiplicidade, os centros
urbanos encontram no discurso literário do romance um justo correspondente. Dotado de
uma complexa narrativa, o Berlin Alexanderplatz inclui em seu texto os mais variados
elementos discursivos que perturbam o cotidiano movimentado da vida urbana. Como
cedo observou Walter Benjamin, o espaço que rege a vida do protagonista Franz
Biberkopf não é muito amplo, atinge no máximo um raio de mil metros
44
, mas o limite
geográfico do espaço histórico representado sofre neste romance de uma evidente
expansão, tornando-se antes uma espécie de espaço sem limites, pois o discurso do Berlin
Alexanderplatz funciona de tal forma que inúmeras associações lhe são possíveis,
deixando vagos os seus contornos.
Assim, a trajetória de Franz Biberkopf, com seus empregos precários, seu
envolvimento com criminosos, seus relacionamentos amorosos e amizades duvidosas,
seus acidentes de percurso e seu limite intelectual que lhe restringe as opções, é
acompanhada daqueles variados elementos discursivos que compõem o circular cotidiano
de informações de uma grande cidade: as notícias dos veículos de massa, os discursos
políticos, as propagandas dos produtos em mercado, a sonoridade do trânsito de veículos
etc., tudo justaposto numa organização de efeito descontínuo, paratática, em que os
discursos que a compõem são nivelados numa única superfície, tornando próximos e
paralelos registros tão desiguais quanto trechos bíblicos e conversas de uma mesa de bar
sobre política, referências históricas e alusões míticas, observações de um narrador e
pensamentos dos personagens etc.
Não existe no Berlin Alexanderplatz um discurso soberano que não se sinta
perturbado por discursos de um entorno, distinguindo nesse aspecto a sua representação
44
Cf. o texto de Benjamin citado na nota 6, p. 58 da edição brasileira.
35
36
da cidade dos tempos modernos daquela que podemos encontrar em um filme como Die
Sinfonie der Groβstadt (1927), de Walther Ruttmann, que, em sua técnica de montagem
também sistematizada, faz da cidade um espaço sob a organização de um tempo linear no
qual são integrados harmonicamente distintos aspectos sociais, políticos e culturais,
fazendo-se ausente a disparidade das convivências conflitantes.
Observe-se que, por exemplo, num pequeno trecho da narrativa do Berlin
Alexanderplatz, no primeiro capítulo do quarto livro, pode ser lida, como quem com bons
olhos e ouvidos caminhasse, toda a ambiência da praça que intitula o romance no seu
trânsito de pessoas e bondes, com seus trabalhadores da construção civil, ruas que lhe
circundam ocupadas de prédios simultaneamente comerciais e residenciais; e,
prosseguindo, tem-se o próprio comércio dali enumerado: “comes e bebes, venda de
frutas e legumes, especiarias e mercearias finas, empresa de transportes, decoração e
pintura” etc. (BA, tp, p. 127)
45
, que se encontra interrompido por propagandas de uma
sedução retórica, barata e violenta:
– O seu coração vai pular! O seu coração vai pular de alegria quando possuir um
lar equipado com as famosas Höffner. Todos os seus sonhos de conforto e ambiente
agradável vêem-se agora superados por uma realidade nunca antes imaginada. Poderão os
anos ir passando, que esta visão se manterá fonte de prazer, e a sua durabilidade e
aplicabilidade prática terão encanto sempre renovado (BA, tp, p.128)
46
.
Publicidade, um discurso político que entrecorta, dados comerciais, novamente
publicidade e, seguindo assim, chega a narrativa do Berlin Alexanderplatz às residências
da região e visitamos o prédio em que finalmente encontramos o nosso protagonista
45
A edição do Berlin Alexanderplatz aqui utilizada é a seguinte: DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz.
Die Geschichte vom Franz Biberkopf. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002. Durante o nosso texto ela
sempre será citada com a sigla BA. Ed. brasileira: DÖBLIN, Alfred. Berlim Alexanderplatz. A História de
Franz Biberkopf. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. Ed. portuguesa: DÖBLIN, Alfred.
Berlim Alexanderplatz. A História de Franz Biberkopf. Tradução de Sara Seruya e Teresa Seruya. Lisboa:
Dom Quixote, 1992. As siglas tb e tp nas citações valem respectivamente para as traduções brasileira e
portuguesa. A partir deste momento, incluiremos em nosso trabalho o texto original em língua alemã das
citações que faremos uso em traduções do romance.
46
“– Ihr Herz lacht! Ihr Herz lacht vor Freude, wenn Sie ein mit den berühmten Höffner-Möbeln
ausgestattetes Heim besitzen. Alles, was Sie sich an angenehmer Wohnlichkeit erträumten, wird von einer
ungeahnten Wirklichkeit übertroffen. Wie auch die Jahre entschwinden, wohlgefällig bleibt dieser Anblick,
und ihre Haltbarkeit und praktische Verwendbarkeit erfreuen immer von neuem” (BA, pp. 131-132).
36
37
Franz Biberkopf, “depois do desaguisado com Lüders”, mas, antes que o texto alcance o
próprio Franz, visitamos todos os andares e acompanhamos um pouco da vida de cada
um dos moradores desse prédio: um advogado no primeiro andar, o administrador e “dois
corpulentos casais” no segundo andar, um polidor de móveis no terceiro andar etc. (BA,
tp, pp. 129-132). Suspenso que estava Franz Biberkopf, ele apenas deixa de estar ausente
no capítulo seguinte (BA, tp, pp. 132-135), quando reaparece nosso protagonista em meio
a uma profunda crise cuja descrição inclui as palavras de um narrador, pensamentos
desgovernados de Biberkopf, que em sua cama passeia e conversa com uma aranha no
teto do quarto dependurada, além de referências religiosas e históricas (Karl Liebknecht e
Rosa Luxemburg, Jugendbewegung etc.).
A constante inconstância no alternar de discursos configura a narrativa do Berlin
Alexanderplatz, e nisso tudo mal se sustenta Franz Biberkopf, “um gigante infantil e
desamparado, perdido no remoinho da cidade”, como notou já Anatol Rosenfeld em
1959, num primeiro texto sobre o livro e seu autor publicado no Brasil
47
.
Uma personagem como Franz Biberkopf, para quem faltam iniciativas, fez com
que a primeira crítica do Berlin Alexanderplatz fosse bem dividida. Se Walter Benjamin
num primeiro momento parece elogiar o livro de Döblin, contemporaneamente, em 1930,
artigos de escritores comunistas, como Johannes Becher, apresentam num tom mais
irritado os “problemas” políticos e literários do livro. Para Becher, o trabalhador dos
transportes Biberkopf é um artificial “produto de laboratório”, não o “consciente
representante de uma classe”, como deveria ser um “verdadeiro” trabalhador dos
transportes
48
. Franz Biberkopf não toma partido; quando anda, anda de fato em cima de
muros. Os leitores da publicação Linkskurve reclamam quando, também em 1930, uma
editora de Moscou prepara a publicação do Berlin Alexanderplatz na União Soviética; o
Escritório Internacional para Literatura Revolucionária alega que Döblin não tem o
47
ROSENFELD, Anatol. A Confusão de Babel: Alfred Döblin. In: Letras Germânicas. São Paulo:
Perspectiva; Edusp; EdUNICAMP, 1993, pp. 168. (Artigo publicado inicialmente no Suplemento Literário
de O Estado de S. Paulo, em 28 de fevereiro de 1959).
48
Cf. BECHER, Johannes R.. Einen Schritt weiter! In: Materialien zu Alfred Döblin Berlin Alexanderplatz.
Matthias Prangel (org.). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975, p. 93.
37
38
direito de ser lido pelos trabalhadores soviéticos
49
. Para outro autor que publica nesse
mesmo órgão em 1929, Döblin se declarou um inimigo da organizada luta de classes do
proletariado ao publicar o Berlin Alexanderplatz
50
. Quer dizer: àqueles que a literatura
tem a sua validade dentro de um programa político que lhe determina uma função
específica, o Berlin Alexanderplatz parece não haver agradado.
Rico em sua narrativa, o romance de Döblin não poderia mesmo ajustar-se às
estreitas exigências políticas de alguns de seus leitores. Antes, o Berlin Alexanderplatz
demonstrou, desde a sua publicação, a capacidade de projetar um amplo leque de
interpretações e uma variedade enorme de reações entre os extremos dos que negavam ou
festejavam o seu aparecimento. Com uma técnica narrativa que o aproxima das
montagens cinematográficas, Berlin Alexanderplatz surpreendeu a sua época,
polemizando o seu lugar histórico para os que tinham a estética literária como principal
objeto de estudo, e alimentando os que na literatura procuravam suas relações com a vida
e valores representados, pois o livro de Döblin, tal qual o Grande Sertão: Veredas, pode
proliferar significados ao gosto de seus leitores, dependendo das intenções de quem o
quer compreender.
Como romances polêmicos, que dividiram as opiniões daqueles que os tomaram
como críticos, os romances de Döblin e Guimarães Rosa poderiam já estar próximos,
como veremos em seguida ao abordar o Grande Sertão: Veredas
51
.
49
Cf. a reprodução deste texto também em: Materialien zu Alfred Döblin Berlin Alexanderplatz. Matthias
Prangel (org.). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975, p. 100.
50
NEUKRANTZ, Klaus. Berlin Alexanderplatz. In: Materialien zu Alfred Döblin Berlin Alexanderplatz.
Matthias Prangel (org.). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975, p. 87.
51
De passagem, note-se que em outros aspectos, valeria também investir numa aproximação do livro de
Döblin com textos de outros autores brasileiros, como, por exemplo, aquele Paulinho Perna Torta, de João
António, onde são narradas as “perambulagens” da trajetória de um marginal de fama na barafunda do
centro paulistano. Outra comparação interessante estaria no Berlin Alexanderplatz com Os Ratos, de
Dyonelio Machado, no qual o protagonista Naziazeno enfrenta problemas de uma esfera social pouco
privilegiada numa linguagem que funde, ao modo de Döblin, os pensamentos de um narrador e da
personagem central.
38
39
II. Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.
(João Cabral de Melo Neto, Psicologia da Composição)
.
Desde sua publicação em 1956, o Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa
tem incentivado uma considerável quantidade de interpretações, constituindo hoje tais
leituras uma extensa fortuna crítica que, bastante diversificada, ora ressalta as qualidades
estéticas do romance, ora lhe compreende numa determinada situação histórica; ora lhe
encontra traços políticos, ora lhe extrai sentidos metafísicos, sem que, ao privilegiar um
aspecto específico do livro, necessariamente seu intérprete negue ou ignore as suas outras
qualidades.
Já as primeiras reações ao Grande Sertão: Veredas foram as mais distintas,
revelando cedo alguns admiradores incondicionais entre uns outros que recusavam sua
grandeza. Os cadernos ou seções de literatura de jornais e revistas de então promoviam
debates, colhiam posturas divergentes e acentuavam como polêmica a situação do
romance emergente. É de se notar com alguma curiosidade, por exemplo, um anúncio de
uma livraria de São Paulo, publicado na Folha da Manhã, em 22 de julho de 1956,
poucos dias após o lançamento do livro de Guimarães Rosa
52
. O anúncio qualifica
Grande Sertão: Veredas como “um livro diferente, terrível, consolador e estranho”.
Muito provavelmente, poucas outras vezes um adjetivo como “estranho” deve haver sido
utilizado em uma propaganda que pretende comercializar um romance. Pode ser que a
dificuldade que o livro impôs às costumeiras classificações é que tenha incentivado tal
ocorrência, que, justifica-se com alguma razão, pois mesmo em relação ao Sagarana,
primeiro livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas estava distante, e mais
afastado ainda ele estava dos romances regionalistas típicos (se bem existe um
regionalismo típico), tratando-se mesmo de um estrangeiro em seu contexto; um
estrangeiro cuja língua, ao entendimento de muitos ainda desafiava.
As perplexidades em relação ao Grande Sertão: Veredas, além de extensas, são
bastante interessantes. Um comentário que talvez mereça atenção é o de Nelson Werneck
MELO NETO, João Cabral de. Psicologia da Composição. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, p. 96.
52
Documento encontrado no Fundo João Guimarães Rosa do IEB/USP. Cf. MPJGR – S/JGR. R4, 13, p. 4.
39
40
Sodré, que em artigo de 16 de novembro de 1956, reclama verossimilhança ao texto de
Guimarães Rosa, acusando-o de cometer o mesmo erro de escritores como Taunay,
Arinos, Waldomiro Silveira, Alcides Maya e Coelho Neto, ou seja, traduzir
“pitorescamente” o espaço sertanejo. Escreve Sodré:
Traduzir o sertanejo em linguagem erudita, fazer do sertanismo a base de uma
tentativa de renovação do idioma, como sr. Guimarães Rosa pretendeu, é completar o
falso antigo com nova notação. A linguagem do autor, no caso, nem é a dos dicionários e
nem a do povo. A falsidade na forma corresponde à falsidade no fundo, no conteúdo. Tal
falsidade traduz-se na ausência de comunicação na obra: não a entendem os leitores
comuns, não a entendem os homens de letras. Ora, onde e quando os motivos populares
foram traduzidos assim, de sorte a não serem entendidos por pares e ímpares? Obscuro,
falso nos ambientes e falso nas personagens, o sr. Guimarães Rosa aparece como um
gênio incompreendido, só acessível a alguns, os iniciados, os predestinados
53
.
Notável nesse comentário de Sodré, desconsiderando seus argumentos que pedem
para um texto literário refletir com fidelidade a realidade correlata que ele concebe, é que
um ponto fundamental do Grande Sertão: Veredas é tocado: a falsidade. “O Guimarães
Rosa quer que todo mundo faça pirâmide e não biscoito. Mas o que é a obra do
Guimarães Rosa senão uma pirâmide de confeitaria?”, declarou certa vez Nelson
Rodrigues
54
.
Ora, é mesmo surpreendente a fala de Riobaldo, que tanto recorda e reflete ao
“ordenar” sua vida num monólogo incessante de mais de 500 páginas cujo ousado léxico
faz uso da oralidade sertaneja, de eruditismos, latinismos, arcaísmos, neologismos,
estrangeirismos etc. “O senhor me organiza?”, pergunta Riobaldo (GSV, p. 345).
Monumental, Grande Sertão: Veredas não permite que seus contornos sejam facilmente
identificados.
Coincidem aproximados na fala de Riobaldo elementos diversos que se
apresentam numa linguagem rica em delicadezas poéticas, produzindo a todo momento
um estado de indeterminação que atinge o seu leitor de diversas maneiras. Já em 1957
53
SODRÉ, Nelson Werneck. Um Caso Singular. Artigo publicado nas Notas de Crítica do jornal Última
Hora de São Paulo, em 16 de novembro de 1956. Cf. FJGR. MPJGR – S/JGR. R4, 96, p. 57.
54
Cf. RODRIGUES, Nelson. Flor de Obsessão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 78.
40
41
afirmava Antonio Candido que na “extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas
de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado”
55
.
Pode ser, por conseguinte, que a tarefa mais interessante para a crítica do Grande
Sertão: Veredas seja a de desvendar seu mecanismo, e com isso entender de que modo
ele é capaz de produzir as variadas leituras que lhe tomam como objeto. Também
específico, esse modo de ler o romance tem no livro de João Adolfo Hansen um belo
exemplar. Analisando os “procedimentos retóricos” de Guimarães Rosa, Hansen
investiga o texto do romance como dispositivo capaz de projetar em seus leitores, através
de suas recategorizações e reclassificações lingüísticas que produzem “efeitos de
essências e reminiscências”, interpretações que o tomam como “platonismo da mímese,
livro de sociologia, exemplificação psicanalítica, estudo gramatical e lingüístico, análise
estrutural e análise estruturalista, ilustração semiótica, ajustes de conta com a Verdade do
realismo socialista, cantigas de comover de amigos, declaração de amor e de ódio, filme,
romance fluvial sem fim joyceano, partilhas acadêmicas, assunção vanguardista” etc
56
.
Também o livro de Willi Bolle, mais recente, auxilia quando procura classificar as
diferentes correntes que se encontram dentro da fortuna critica de Grande Sertão:
Veredas. Para Bolle são cinco os principais “tipos metodológicos”: os estudos
lingüísticos e estilísticos; as análises de estrutura, composição e gênero; a crítica genética,
dedicada a esclarecer o processo de elaboração do texto; as interpretações esotéricas,
mitológicas e metafísicas; e, por fim, as interpretações sociológicas, históricas e políticas,
dentro das quais ele se inclui
57
.
Imerso nessa considerável gama de leituras, nossa abordagem do romance de
Guimarães Rosa procura sua especificidade ao rastrear a trajetória da personagem
Riobaldo, narrador, em seus “anos de aprendizagem” e na “educação de seus
sentimentos”. De certo modo, podemos afirmar que isso nos levaria a participar das
análises de estrutura, composição e gênero, de acordo com as definições de Willi Bolle.
Ao ler contudo os caminhos de Riobaldo, procuraremos alcançar também através dele
outros aspectos do livro, como, por exemplo, o caráter transitório dos elementos de sua
55
CANDIDO, Antonio. O Homem dos Avessos. In: Tese e Antítese. 4ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000,
p. 121.
56
Cf. o livro de Hansen citado na nota 43.
57
Cf. BOLLE, Willi. Grandesertão.br. O Romance de Formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2004, pp. 19-20.
41
42
narrativa que, para nós, deve dizer algo em relação à composição do texto de Guimarães
Rosa como problematização de seus significados e questões romanescas.
Assim como faremos com o Grande Sertão: Veredas, teremos em seguida, como
ponto de partida em nossa análise do Berlin Alexanderplatz, uma leitura da trajetória de
seu protagonista, trilhando o caminho aberto por Walter Benjamin quando ele associou a
vida de Franz Biberkopf à de Frédéric Moreau de A Educação Sentimental. Claro está
para nós que acompanhar apenas as andanças e transformações sofridas por Franz
Biberkopf é ocupar-se de somente uma parte do romance, visto, como observamos, que o
Berlin Alexanderplatz compõe-se ainda de muitos outros elementos que são os tantos
anônimos que circulam junto aos acontecimentos vários que compõem um cotidiano de
uma grande cidade. Todavia, será através do percurso do protagonista que abriremos
nossa análise para a aproximação que desejamos com o romance de Guimarães Rosa,
quando procuraremos ampliar o nosso trabalho com um tratamento mais abrangente dos
dois romances.
42
43
Andeja vida: Riobaldo
I.
Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. (GSV, p. 550).
Percorrer a trajetória de Riobaldo significa acompanhar um ir e vir que, tão
movente quanto sua fala e extenso quanto sua memória, pouco fixa e mais se assemelha
ao inacabado de um devir que emerge dos pedaços que constituem o narrar de sua
existência. Espalhados no texto numa ordenação muito própria, os fragmentos que
compõem o fluxo narrativo ininterrupto que conta a vida do jagunço Riobaldo são
orientados por um modo retrospectivo de narrar e acompanhados das incessantes
interferências reflexivas do narrador que julga seu passado com os olhos do presente.
Organizar os acontecimentos narrados por Riobaldo de modo linear, porém, seria tarefa
insuficiente para quem, como nós, pretende ler sua trajetória. “Contar seguido,
alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância” (GSV, p. 95). A sucessão dos
fatos narrados, tal como se encontram no livro, muito importa, pois obedece aos
sentimentos do protagonista que recorda e especula, percorrendo assim a enunciação do
Grande Sertão: Veredas os caminhos da memória e do entendimento de Riobaldo, que,
afetivos, escolhem quais os momentos de sua vida devem ser notados como cruciais e
destacados, assim como insinuam de que modo podem eles ser compreendidos.
Ficcional, é certo que a fala de Riobaldo opera suas decisões como lembranças
que, submetidas às vontades reflexivas e lexicais do presente do narrador, revelam sua
arbitrariedade. “Assim eu acho, assim é que eu conto” (GSV, p. 95). De qualquer forma,
uma trajetória se faz notar, com fatos que se sucedem no texto, e seu narrador, Riobaldo,
é quem reconhece e nos faz reconhecer que mudanças em sua vida houve, muitas, entre
um antes, passado que é lembrado, e um depois, presente da narrativa e de suas leituras
que lembra:
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi
puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia.
Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde.
E me inventei neste gosto, de especular idéia (GSV, p. 11).
43
44
Especulando, sem deixar as fantasias de lado, Riobaldo recorda sua infância de
menino pobre, e também seus saudosos anos de estudos, no Curralinho, que, de certo
modo, justificam também sua capacidade atual de reflexão, pois não fora ele privado de
toda educação, sendo homem letrado que ainda no presente cultiva o hábito de ler:
Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre,
Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até
geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos
mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E
que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo
saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado (GSV, p. 15).
Fatos que remetem o leitor à juventude de Riobaldo, como esses anos no
Curralinho, são visitas de um Riobaldo velho a um tempo já distante, que ele no presente
de sua narrativa recorda como jagunço aposentado, casado, proprietário, religioso, e de
tudo muito desconfiado. “Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se
desmentir” (GSV, p. 24). O intervalo que separa o acontecido do presente da narrativa
contraria Riobaldo, atrapalha-o, pois mesmo as melhores e mais distantes lembranças
podem ser aborrecidas pelos acontecimentos que viriam em seguida e que lhe marcaram
com grande significação. “Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje
eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele” (GSV, p. 81). O Riobaldo saudoso que
traz ao leitor suas mais longínquas recordações não o faz sem conhecer a seqüência de
fatos que marcaram sua vida como um todo, portanto, em seu presente de narrador, tal
conhecimento influi em sua leitura, balanço que atribui significados especiais a cada um
dos momentos que compõem sua trajetória:
Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta,
recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem
saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos. Para trás, não há paz. O senhor
sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o
ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... (GSV, p. 42).
44
45
Os pedaços de um passado que se misturam ao longo do texto são,
simultaneamente, o presente de uma fala ciente dos desdobramentos que lhes tingem um
sentido. O ódio, sentimento comum, pode igualmente ser visto como a “coisa mais
alonjada” na vida do jagunço Riobaldo, profissional da violência que também foi. Mas o
ódio certamente não foi a grande motivação que levaria Riobaldo à vida de jagunço,
sendo outros os sentimentos que parecem mais incentivadores. Dos dois acontecimentos
que, talvez, mais decisivos foram na mocidade de Riobaldo, um é o encontro dele, na
Fazenda São Gregório, propriedade de seu padrinho e pai Selorico Mendes, com os
jagunços que por lá passam e pedem curta estadia, entre eles o Alaripe, Hermógenes,
Ricardão e Joca Ramiro, seus futuros companheiros, amigos e inimigos do banditismo.
Isso acontece logo depois da morte da mãe de Riobaldo, quando afirma que sua vida
“mudou para uma segunda parte. Amanheci mais” (GSV, p. 106). A narrativa adquire, no
momento desse encontro, o tom de admiração que envolve o jovem Riobaldo, que tudo
observa e se deixa impressionar, fortemente, pela canção que escuta na voz de um Siruiz.
“Meu coração restava cheio de coisas movimentadas”, comenta Riobaldo acerca do
episódio (GSV, p.115). Inquieto, é o Riobaldo que experimentara a sensação dessa
proximidade ao bando de Joca Ramiro, “grande homem príncipe”, que decide fugir da
fazenda de Selorico Mendes, movimentar-se, e voltar para o Curralinho, onde, com o
auxílio de Mestre Lucas, consegue um trabalho, que é o de professor, na Nhanva, de Zé
Bebelo, personagem que lhe inicia no banditismo paradoxalmente (tornando-o assim
simultaneamente aluno e professor), pois o discurso de Zé Bebelo afirma, politicamente,
o desejo de acabar com a bandidagem
58
.
O outro acontecimento da mocidade de Riobaldo que o marcaria decisivamente,
anterior ao contato com o bando de jagunços, é o encontro dele com o menino que é
Reinaldo e que é Diadorim, como mais tarde ele viria a saber. “Amanheci minha aurora
(GSV, p. 103). Afastado no tempo, o encontro se dá quando Riobaldo, com 14 anos,
encontra-se no porto do de-Janeiro, pedindo esmola para pagar uma promessa de sua
mãe. O menino que é Diadorim causa grande impressão ao menino que é Riobaldo.
58
Paradoxos assim podem ser explicados com certa facilidade caso se pense na realidade que ainda hoje se
faz notar em algumas regiões brasileiras. Antonio Candido já observara que a iniciativa privada
desempenha funções que caberiam ao poder público nos lugares em que a pressão da lei não se faz sentir.
Cf. CANDIDO, Antonio. Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários Escritos. 2ª ed. São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977, p. 135.
45
46
“Finas feições”, “suave de ser, mas asseado e forte”, Diadorim menino seduz Riobaldo
menino, que em sua mãe não mais pensava, aceitando o passeio em canoa em que, juntos,
deixam o de-Janeiro e atravessam as águas bravas do São Francisco. Travessia que se
evidencia simbolicamente rica, objeto certo da crítica do Grande Sertão: Veredas, traduz-
se como o momento em que surge como questões para Riobaldo temas fundamentais: o
amor, o medo e a coragem
59
.
A educação dos sentimentos de Riobaldo está em grande parte creditada à
personagem Diadorim. Deve-se a Diadorim, no seu misto de homem e mulher, não
apenas o modo confuso pelo qual Riobaldo aprende a amar, mas também o modo pelo
qual Riobaldo desenvolve sua sensibilidade e enfrenta seus medos. “Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza” (GSV, p. 29). Diadorim,
o Reinaldo, educa o olhar de Riobaldo:
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por
prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e
pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – “É
formoso próprio...” – ele me ensinou (GSV, p. 137).
Curiosa, a condição necessária à educação dos sentimentos de Riobaldo é a sua
tolice, ou melhor, apenas enquanto amigo de Reinaldo, seu igual, jagunço e homem, é
que ele pode questionar seus limites e ampliá-los. Assim também com o medo,
sentimento constante em Riobaldo, que luta para superá-lo. “Cada hora, de cada dia, a
gente aprende uma qualidade nova de mêdo!” (GSV, p. 84). É Diadorim que ainda
menino lhe comove com o seu jeito de não ter medo. “Quieto, composto, confronte, o
menino me via. – ‘Carece de ter coragem...’ – êle me disse” (GSV, p. 102). A frase,
59
Mais do que isso, esse encontro é também, para José Carlos Garbuglio, a cisão que faz existir o Riobaldo
que conhecemos pois até “ao encontro, Riobaldo leva uma vida apagada, resultante sobretudo da
impossibilidade natural de ver, de sentir e de conhecer o mundo de que participa. Se existência,
etimologicamente, significa secessão (ex + sistere = separar, por fora de), Riobaldo ainda não existe, pois
está no mundo ainda como parte componente da estrutura, em estado de fusão com o cosmos. Por isso não
pode contemplá-lo nem refletir sobre ele. Sua posição reflete o estágio do homem primitivo que ainda não
se separou do cosmos. Estágio que vai superar a partir do conhecimento de Diadorim, seu guia e iniciador,
pois é graças a ele que começa a descortinar as complexas vertentes da vida. O mundo de Riobaldo fica,
então, repartido entre um passado obscuro de que muito pouco se sabe, com parcas e fragmentadas
informações e o que se abre agora, dimensionado pela narrativa empreendida”. Cf. GARBUGLIO, José
Carlos. Rosa em Dois Tempos. São Paulo: Nankin, 2005, pp. 39-40.
46
47
repetida, ecoa anos depois e mais de uma vez num Riobaldo já chefe de jagunços, Urutú-
Branco, que não se esqueceria dela, pois sempre oscilante, entre o medo e a coragem que
deveria ter para vingar a morte de Joca Ramiro. No presente da fala de Riobaldo seu
medo maior é um, “o Cujo”, mas em seu passado, jornadeando, predomina um outro:
“mêdo de homem humano” (GSV, 383). Na tentativa de superar esse medo que lhe
acompanhava é que Riobaldo se compromete, na “concruz dos caminhos”, com “o Pai da
Mentira”.
Diadorim, que dos amores de Riobaldo é o maior, “amor de ouro”, confunde-se
entre as confusões de Riobaldo, misturada que está aos mistérios que escapam ao seu
entendimento. Enquanto vive, Diadorim é homem, duplo que divide Riobaldo. O coração
fraturado de Riobaldo procura o seu conforto em Otacília, “amor de prata”, e na
Nhorinhá, a “prostitutriz”. “Coração mistura amores. Tudo cabe” (GSV, p. 179).
Riobaldo conhece, com essas três mulheres, três formas de amar. Nhorinhá e
Otacília são lembranças de um Riobaldo que está ao lado de Diadorim, causa de suas
dúvidas, e por isso mesmo é que se apresentam como possíveis soluções ao estado
angustiante em que ele se encontra. “Todo amor não é uma espécie de comparação?”
(GSV, p. 150)
60
.
De qualquer modo, é o “amor de ouro” de Riobaldo que mais influi em sua
trajetória, despertando-lhe sentimentos inéditos desde o encontro inicial, trazendo-o de
volta à companhia dos jagunços quando do segundo encontro entre eles (Riobaldo havia
naquele momento, em uma de suas crises, escapado ao bando de Zé-Bebelo, e foi o
encontro com Reinaldo que lhe motivou o retorno ao banditismo), conduzindo-o pelo
sertão no enfrentamento de batalhas e incentivando-o às ações que lhe determinam o
caráter.
60
Sobre os amores de Riobaldo há o excelente texto de Benedito Nunes, que analisa as “diferentes formas
ou estágios de um mesmo impulso erótico” no narrador: “primitivo e caótico em Diadorim, sensual em
Nhorinhá e espiritual em Otacília”. Cf. NUNES, Benedito. O Amor na Obra de Guimarães Rosa. In:
Guimarães Rosa. Eduardo F. Coutinho (org.). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, pp. 144-
169. (Coleção Fortuna Crítica).
47
48
II. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonho
– tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades?
Se sonha; já se fez... (GSV, p. 26).
Quando Riobaldo lembra dos acontecimentos de sua juventude, desconhece como
algumas coisas ocorreram. “Ah, a mocidade da gente reverte em pé o impossível de
qualquer coisa!” (GSV, p. 151). Crente, como afirma ser, nos desígnios do destino,
Riobaldo não rejeita que em sua trajetória o controle e o entendimento daquilo que
ocorria muita vez lhe escapava. “A gente vive não é caminhando de costas?” (GSV, p.
526). Sendo assim, necessário é reconhecer os momentos em que Riobaldo supera seus
receios e se impõe ao operar decisões. Desses, dois são os momentos que se destacam: o
primeiro é quando ele toma a palavra para opinar no julgamento de Zé-Bebelo, e o
segundo é quando ele resolve “fechar o trato, fazer o pacto” nas Veredas-Mortas com “o
Tristonho”.
Antes, já havia Riobaldo tomado decisões mais ou menos refletidas. Por exemplo,
quando foge, ainda moço, da fazenda de Selorico Mendes e volta para o Curralinho,
realiza Riobaldo, autônomo, uma decisão. Ou então, quando Riobaldo escapa ao bando
de Zé-Bebelo, no início de sua trajetória como jagunço, faz isso também como decisão
necessária às suas vontades de “resolver os projetos em seu espírito”. Mas deve ser
reconhecido que essas duas decisões são fugas, desvios, distintas das posteriores que se
apresentam como enfrentamentos.
No momento em que o bando de Joca Ramiro faz do inimigo Zé-Bebelo
prisioneiro, realiza-se o julgamento em que os jagunços reunidos decidem o destino dele.
Durante o julgamento diversas posições se apresentam e contrastam. O Hermógenes,
como era de esperar, quer a morte de Zé-Bebelo, e assim também Ricardão, seu
companheiro. Sô Candelário, inflamado, pensa que um duelo de facas resolveria bem a
questão, mas não tem Zé-Bebelo por criminoso, como Titão Passos e João Goanhá, que
não acham justo a morte como sentença para uma pessoa que ali no sertão guerreia como
todos eles. Estabelecido o impasse, ainda se apresentam duas figuras menores, até que,
“feito menino em escola”, Riobaldo inicia a sua fala, superando seus receios.
48
49
A argumentação de Riobaldo, que fala alto sua “verdade forte”, defende Zé-
Bebelo. Riobaldo sustenta sua postura ao discursar em favor do passado digno e da
integridade de Zé-Bebelo. Em seguida, questiona os efeitos que trariam a morte de Zé-
Bebelo para eles jagunços; pergunta-se, dar cabo de Zé-Bebelo honraria ou envergonharia
o bando de Joca Ramiro? E prossegue, sugerindo Riobaldo que bom seria se Zé-Bebelo
fosse embora da região deles, deixando as terras de Minas Gerais e Bahia. “Sei que me
desconheci” (GSV, p. 259), afirma Riobaldo, reconhecendo o passo que dera. Riobaldo
vacila, mas consegue ali impor seus valores, e suas palavras obtêm vitorioso resultado,
pois Joca Ramiro, por fim, acata a sugestão de Riobaldo no acordo que faz com Zé-
Bebelo.
O Riobaldo que se destaca entre os jagunços neste momento oscila entre a
satisfação e o arrependimento. “Eu quis, de repentemente, tornar a ficar nenhum,
ninguém, safado humildezinho...” (GSV, p. 262). Mas a aprovação de Diadorim não
tarda, conferindo ao amigo a qualidade de “homem de tôdas valentias”. É preciso notar
que Diadorim reconhece a coragem de Riobaldo, dando menor valor às palavras de seu
discurso, mas apreciando com louvores o “rompante brabo”, “acendido”, que nele
“exportava uma espécie de autoridade”. Anuncia-se, assim, durante o julgamento de Zé-
Bebelo, o Riobaldo que seria o Urutú-Branco, que, com seu bando, vingaria a morte de
Joca Ramiro.
Certamente, as palavras de Riobaldo contribuem decisivamente na sentença mais
amena que recebe Zé-Bebelo. Hermógenes, contrariado durante o julgamento, é o autor
do próximo acontecimento significativo: o assassinato de Joca Ramiro. Assim, a
responsabilidade de Riobaldo está claramente vinculada à necessidade de vingança que
exige a morte de Joca Ramiro, sem que se esqueça a sua fidelidade ao amigo Diadorim,
filho do “grande homem príncipe”, que já bastaria como motivação.
O balanço que Riobaldo faz de sua trajetória, quando pensa no presente de sua
fala, deve ser observado:
Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutú-Branco – depois de ser
Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na
remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a bondade. Só que não entendo quem se praz com
49
50
nada ou pouco; eu, não me serve cheirar a poeira do cogulo – mais quero mexer com
minhas mãos e ir ver recrescer a massa... (GSV, p. 512).
A transformação dos nomes revela a transformação do próprio narrador. Se no
presente Riobaldo “quer a fé, mais a bondade”, faz isso com seus motivos, pois no
passado ele não se satisfez com “nada ou pouco”, quis mais, e foi assim que parece haver
se consagrado como o chefe Urutú-Branco. A segunda decisão significativa que toma
Riobaldo, que é o pacto com “o Tranjão”, por ele procurado nas Veredas-Mortas, influi
em toda sua narrativa. Ao lado do amor do narrador por Diadorim, as dúvidas que
acometem Riobaldo sobre a existência do diabo e, conseqüentemente, sobre a validade do
trato ao qual ele se submeteu colocam-se como tema fundamental do Grande Sertão:
Veredas. É após o suposto pacto que Riobaldo se transforma no chefe Urutú-Branco,
antes:
Noção eu nem acertava, de reger; eu não tinha o tato mestre, nem a confiança dos
outros, nem o cabedal de um poder – os poderes normais para mover nos homens a minha
vontade (GSV, p. 347).
Ou então:
Um com o meu retraimento, de nascença, deserdado de qualquer lábia ou
possança nos outros – eu era o contrário de um mandador (GSV, p. 354).
Riobaldo “era o contrário de um mandador”, mas após o pacto apresenta-se de
modo inverso. A transformação é nítida, Riobaldo passa a dar ordens, responder a seus
companheiros, mais falar, tornando-se, por fim, chefe do bando. O texto do Grande
Sertão: Veredas, como fala de um narrador já velho, apresenta-se com a perspectiva do
Riobaldo pactário, consciente das mudanças que ele sofreu com o suposto trato. “Eu
ainda não era ainda. Se ia, se ia”, reconhece Riobaldo ao falar de sua fase anterior ao
pacto (GSV, p. 369). A condição do narrador anterior ao pacto é por ele mesmo vista
como um estado de insuficiência. Ansioso, jagunço que não se satisfazia com “nada ou
pouco”, que sempre desgostou “de criaturas que com pouco e fácil se contentam” (GSV,
50
51
p. 142), e confuso em relação às coisas que não entendia, como seu amor por Diadorim,
Riobaldo se dispõe ao trato ambiciosamente. “Eu queria ser mais do que eu” (GSV, p.
397). Numa tentativa de superar suas fraquezas, Riobaldo se compromete
definitivamente, comprometendo assim a narrativa de sua vida que demonstra a todo
momento sua preocupação no presente com a existência do “Um-que-não-existe”.
Riobaldo, após o pacto, “ficou sendo”:
E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu
queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! (GSV,
p. 396).
Já na condição de chefe, há um momento exemplar deste outro Riobaldo: do alto
de uma pedra, ele olha para os seus homens, e segundo ele, eles “nem careciam de ter
nomes”, valiam o querer dele, “para viver e para morrer”. “Tinham me dado em mão o
brinquedo do mundo” (GSV, p. 414).
Por certo, os resultados vitoriosos do chefe Urutú-Branco acompanham
significativas frustrações. O pacto, que pode ser lido como responsável pelo modo forte e
corajoso com o qual age o comandante Riobaldo, impõe-lhe, por isso mesmo, uma
inquietação que, para sua crendice, é questão insolúvel e incomoda o presente de sua fala.
A morte de Hermógenes, o traidor assassino de Joca Ramiro, que põe termo às batalhas
de Riobaldo, custa a vida de Diadorim, seu “amor de ouro”. “Eu estou depois das
tempestades” (GSV, p. 560).
A trajetória de Riobaldo inclui ações bem-sucedidas, inclui aprendizados, a
descoberta de amores, sucessivos acidentes relevantes, guerras, momentos pacíficos,
perdas irreparáveis, tristezas, alegrias etc., acontecimentos e sentimentos narrados, no
presente da enunciação, com as palavras de quem desconfia de que, ao final de tudo isso,
possa ainda resultar alguma espécie certa de “progresso” para si. “Esta vida é de cabeça-
para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas” (GSV, p. 138)
61
. A insegurança
61
Como bem observou Susana Kampff Lages, um “texto como Grande Sertão: Veredas, em que as
aventuras de um jagunço são apresentadas como rememoração-confissão daquele que as viveu, pode ser
facilmente reconduzido a um enquadramento evolucionista: o próprio protagonista narra a história de sua
51
52
de Riobaldo, que constantemente assume suas incertezas, duvida das atitudes que tomou,
problematiza o seu desenvolvimento como protagonista do romance de Guimarães Rosa.
“Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma” (GSV, p. 354). Riobaldo faz entender que no
passado muito ele não soube, e no presente muito ele não entende, sensível às mudanças
que sofreu e à contínua movimentação das pessoas e da vida. “De cada vivimento que eu
real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fôsse
diferente pessoa. Sucedido desgovernado” (GSV, p. 95). Isso posto, liga-se ao percurso de
Riobaldo e à sua experiência o sentimento de incerteza que abala as bases de um
desenvolvimento seguro, embaralhando os significados que, lidos na trajetória do
protagonista, não asseguram contudo um sentido único aos movimentos dele, mas
acentuam o trânsito de suas vivências.
Próximo à conclusão de nosso trabalho, retomaremos uma vez mais o problema
da trajetória de Riobaldo. Por ora, basta ressaltar que em Riobaldo sua “competência foi
comprada a todos os custos, caminhou com os pés da idade” (GSV, p. 46).
vida como processo de ‘individuação’, de uma evolução positiva da inciência à sabedoria, da carência à
plenitude. A leitura que vê um progresso espiritual no personagem tem como pressuposto a crença no
triunfo do Bem como conseqüência necessária a toda ação humana”. Evitamos tal postura em nossa análise.
Cf. LAGES, Susana Kampff. João Guimarães Rosa e a Saudade. São Paulo: Ateliê Editorial; Fapesp,
2002, p. 28.
52
53
Andeja vida: Franz Biberkopf
I.
Porque a rua hoje é um fato conflitante, é um elemento
de desgosto, o cara sai de casa, pisou na rua, pumba!
Conflito. Conflito, você está na área de conflito, se cuide,
salve-se quem puder! (João Antônio, Merdunchos)
.
A trajetória de Franz Biberkopf que narra o Berlin Alexanderplatz está dividida
nos nove livros que compõem o romance, cada um deles, por sua vez, dividido em
capítulos. O livro de Döblin se coloca de modo bastante direto, toda a trajetória de Franz
Biberkopf já é apresentada na abertura do livro de modo resumido e sem nenhum volteio,
restando apenas à curiosidade do leitor entrar em contato com os fatos em si e seus
detalhes. Sabe-se, imediatamente, que Franz Biberkopf será atingido três vezes, até que
alcance sua “iluminação”; que um verdadeiro “tratamento de choque” caracterizará sua
trajetória desde o momento inicial do romance que lhe apresenta recém-saído de um
presídio e com o forte desejo de ser um “homem decente”.
Sobre o passado de Franz Biberkopf pouco se comenta, apenas que foi operário da
construção civil e do transporte de mobílias e que estivera preso por matar sua antiga
companheira de nome Ida. Cumpridos os seus quatro anos de reclusão, o protagonista
deixa o cárcere e enfrenta Berlim, de modo bastante inseguro, sofrendo do claro contraste
que a agitação urbana estabelece com a rotina segura de seu passado de prisioneiro.
Durante quase todo o livro, sobretudo nos momentos mais problemáticos que enfrenta,
Franz Biberkopf lembrará do conforto desse seu passado, quando não estava exposto às
adversidades da agitação sofrida que marcam a vida de uma pessoa pouco privilegiada
como ele.
De início, transtornado, os movimentos de Franz Biberkopf são precários, e ele
perambula sem destino pelas ruas de Berlim. Neste momento, será um judeu
desconhecido que o levará para sua casa e tentará ajudá-lo ao conversar com ele, que mal
se comunica. Na casa do judeu, Franz Biberkopf atinge ainda um estado lamentável de
desespero em sua desorientação; será preciso que o judeu que o carregou lhe conte uma
ANTÔNIO, João. Merdunchos. In: Os Melhores Contos. Seleção de Antônio Hohfeldt. 2ª ed. São Paulo:
Global, 1997, p. 97.
53
54
história em cujo desfecho, que vem com o auxilio de um outro judeu que ali chega,
desenha-se uma situação que a Franz Biberkopf parece interessar para que o seu frágil
equilíbrio seja recobrado. A história narrava a curta vida de um certo Stefan Zannowich,
um impostor que a todos enganava e vivia com isso uma vida de príncipe até que,
desmascarado, é preso e põe fim à sua vida, terminando o seu corpo junto ao lixo da
cidade. Franz Biberkopf sente-se neste momento tocado, indigna-se e conclui:
[...] então nós não somos nada porque uma vez fizemos algo de errado? Todo
mundo pode se levantar de novo, recuperar-se depois de ter estado trancafiado, não
importa o que fizeram! (Arrepender-se! A gente precisa de alívio! Atacar! Aí tudo fica
para trás, tudo acabou, medo e tudo.) (BA, tb, p. 24)
62
.
Resoluto, Franz Biberkopf sai às ruas, procura mulheres, paga prostitutas, e ainda
visita a irmã de sua falecida companheira Ida. “O Franz, o Franz! Franz voltou à vida,
Franz voltou!” (BA, tb, p. 34)
63
. Com o sentimento de quem torna a viver e quer as coisas
mudadas, Franz Biberkopf, ao final do primeiro livro, assume confiante a fixa idéia de ser
“um homem decente”. “Ele jurou a todo mundo e a si mesmo manter-se um homem
decente” (BA, tb, p. 39)
64
.
A primeira coisa que fascina o protagonista do livro parecem ser os discursos que
lhe chegam aos ouvidos. Franz Biberkopf ergue sua cabeça pela primeira vez após
escutar os judeus que lhe impressionam e, logo em seguida, anima-se com a fala de um
representante dos comerciantes ambulantes de Berlim, que faz com que ele,
impensadamente, filie-se ao grupo deles de modo imediato sem nem saber como poderá
colaborar financeiramente com isso, desempregado que ainda está. Ingênuo, Franz
Biberkopf acha que o importante “é ter cabeça e usá-la e saber o que acontece ao nosso
redor para não ser derrubado de saída” (BA, tb, p. 56)
65
. Enquanto ensaia os seus
62
“‘Ja, sind wir denn nichts, weil wir mal was getan haben? Es können alle wieder auf die Beene kommen,
die gesessen haben, und die können gemacht haben, wat sie wollen.’ (Was bereuen! Luft muβ man sich
machen! Drauf losschlagen! Dann liegt alles hinter einem, dann ist alles vorbei, Angst und alles.)” (BA, pp.
29-30).
63
“‘Allens Franz, allens Franz! Franz ist wieder lebendig, Franz ist wieder da!’” (BA, p. 41).
64
“Er hat aller Welt und sich geschworen, anständig zu bleiben” (BA, p. 46).
65
“Die Hauptsache ist, Kopf haben, und daβ man ihn gebraucht, und daβ man weiβ, was um eenen los ist,
daβ man nicht gleich umgeschmissen wird” (BA, pp. 64-65).
54
55
primeiros passos em sua recente condição de liberto, Franz Biberkopf procura o apoio das
palavras reconfortantes. “Ser decente e isolado. Essa é minha palavra” (BA, tb, p. 59)
66
.
Após enfrentar uma de suas primeiras situações problemáticas, serão as palavras
encontradas em um jornal que trarão de volta a Franz Biberkopf alguma alegria e a calma
de que necessita. Tal situação mencionada é um pequeno conflito que a alienação política
de Franz Biberkopf provoca em um bar freqüentado pelos “vermelhos”. Repreendido por
carregar uma braçadeira com a suástica hitlerista, o vendedor de jornais Franz Biberkopf
entra numa discussão que lhe deixa fora de si, mas ainda consegue nosso protagonista
nesse momento se controlar, sem que haja no bar maior confusão. “É preciso ficar feliz
por ter pernas boas e não estar na prisão”, afirma Biberkopf para o seu próprio bem (BA,
tb, p. 83)
67
. A calma almejada, como já notamos, é devolvida a este vendedor ambulante
quando ele encontra as palavras da manchete de um de seus jornais. “Do infortúnio à
felicidade”, lê-se na manchete (BA, tb, p. 89)
68
, lendo-se ali também o desejo de
Biberkopf de que assim seja a transformação que possa operar a sua trajetória.
O segundo livro de certa forma não coloca Franz Biberkopf em maiores
problemas, mas, como nos alerta o narrador do livro, isto é apenas uma trégua. “Eu não o
convoquei para um jogo, mas para viver sua dura, verdadeira e esclarecedora existência”
(BA, tb, p. 41)
69
. Assim sendo, já no terceiro livro, Biberkopf sofre o primeiro dos três
golpes anteriormente anunciados. Franz Biberkopf, agora vendedor de mercadorias
diversas, envolve-se com uma viúva que lhe dá o prazer de sua companhia por algumas
horas e algum dinheiro, confiando assim sua mercadoria a ela, mas, quando volta para
recuperá-la, Otto Lüders, seu companheiro de trabalho e tio de sua namorada Lina, havia
lá passado, levando a mercadoria de Franz. Com isso, Biberkopf, traído, perde a
mercadoria e o contato com a viúva, isolando-se de seus próximos, inclusive de Lina.
Posteriormente, num bar, “Franz reflete sobre o que teria havido, sua cabeça lhe pesa,
66
“‘Anständig bleiben und for sich bleiben. Das ist mein Wort’” (BA, p. 67).
67
‘“Man muβ froh sein, wenn man seine Beine hat und drauβen ist”’ (BA, p. 95).
68
‘“Durch Unglück zum Glück”’ (BA, p. 102).
69
“Ich habe ihn hergerufen zu keinem Spiel, sondern zum Erleben seines schweren, wahren und
aufhellenden Daseins” (BA, p. 47).
55
56
tomba para a frente como se estivesse dormindo, o dono do bar pensa que está cansado,
mas é na amplidão e no vazio que suas pernas escorregam” (BA, tb, p. 106)
70
.
Incapaz de reagir, é o seu passado de prisioneiro que mais uma vez lhe vem à
lembrança, opondo à reclusão, paradoxalmente, sua condição de liberto como um castigo:
[...] esse é meu castigo, eles me soltaram, os outros ainda estão descascando
batatas na prisão junto ao grande monte de lixo, e eu tenho de pegar o bonde, maldição,
não era tão mal assim por lá (BA, tb, p. 106)
71
.
Durante o quarto livro, Franz Biberkopf “nota que seu princípio deve ter uma
falha” (BA, tb, p. 113)
72
, mas esse reconhecimento ainda pouco modifica a sua vida. O
que lemos no quarto livro é uma intensa crise de Franz Biberkopf, que demora para
reagir, bebe e dorme por duas semanas, e sofre de dores estomacais e alucinações,
encontrando-se péssimo fisicamente quando resolve tomar alguma atitude, sofrendo da
abstinência de álcool. Biberkopf procura Minna, a irmã de Ida, sua ex-mulher por ele
assassinada, mas encontra apenas Karl, o marido dela, que lhe trata mal, deixando-o
furioso, mas Franz mais uma vez se controla para não agir com violência, carregando
então o sentimento de bravura, afirmando “não ter medo de nada” ao final do quarto
livro. “Eu tenho punhos. Veja só que músculos os meus” (BA, tb, p. 151)
73
.
Não tarda para que surja no romance o segundo golpe que leva o novamente
vendedor de jornais Franz Biberkopf. O quinto livro inicia com a afirmação de que o
“nosso homem retorna ao ponto onde estava, não aprendeu nada, nem discerniu nada”
(BA, tb, p. 153)
74
. Teimoso em sua ingenuidade, Biberkopf resiste em acrescentar algo ao
seu entendimento, repete seus erros, chegando mesmo a incomodar o leitor que dele
espera reações melhor pensadas. É neste quinto livro que surge a figura de Reinhold,
personagem cuja amizade dedicada do insistente Franz Biberkopf somente lhe rende
70
“Franz überlegt, wie das passiert sei, dabei wird ihm der Kopf schwer, fällt ihm wie im Schlaf nach vorn
über, der Wirt glaubt, er ist müde, aber es ist die Blässe, Weite und Leere, darin rutschen auch seine Beine
ab” (BA, p. 120).
71
“Das ist die Strafe, mich haben sie rausgelassen, die andern buddeln noch Kartoffeln hinter dem
Gefängnis an dem groβen Müllberg, und ich muβ die Elektrische fahren, verflucht, es war doch ganz schön
da” (BA, p. 120).
72
“Er merkt, sein Grundsatz, so einfach er ist, muβ irgendwo fehlerhaft sein” (BA, p. 129).
73
‘“Ich habe Fäuste. Sieh mal, was ich für Muskeln habe”’ (BA, p. 175).
74
“[…] der Mann steht wieder da, wo er stand, er hat nichts zugelernt und nichts erkannt” (BA, p. 177).
56
57
prejuízos. De início, a relação de Biberkopf com Reinhold, figura sombria, é alimentada
por uma troca de mulheres que entusiasma o ex-penitenciário. Reinhold é um
personagem que não se contenta com a companhia de uma mulher que ultrapasse a
permanência de algumas poucas semanas ao seu lado, necessitando assim, de tempo a
tempo, substituir suas companheiras. Para Reinhold, a amizade de Franz Biberkopf tem
seu proveito, já que nosso protagonista, num primeiro momento, aprecia a idéia de tomar
para si as mulheres por Reinhold descartadas. Mas, quando Franz Biberkopf, já com a
segunda mulher que de Reinhold resta em suas mãos, resolve que tal troca de amantes
não deve prosseguir, acreditando que com a sua decisão faz bem a Reinhold, cria-se a
discórdia que não lhe custará pouco. “Franz Biberkopf metera-se em má companhia”
(BA, tb, p. 167)
75
.
Os acontecimentos seguintes do romance envolvem ambos, Biberkopf e Reinhold,
numa noturna ação criminosa. Com o bando de Pums, que é um trambiqueiro, um falso
negociante de frutas, ajudam os dois “amigos” no roubo de uma mercadoria qualquer.
Porém, ao contrário de Reinhold, Biberkopf não estava ciente de que esse Pums liderava
uma quadrilha de arrombadores e ladrões, e de que ele, Franz Biberkopf, arriscava-se ao
aceitar aquele trabalho que se lhe oferecia ocasionalmente. Biberkopf, é certo,
desconfiava da integridade de Pums e de seus homens, hesitando ao ser convidado para
um trabalho com eles, mas, ingênuo e confiante que era em seu companheiro Reinhold,
aceita mecanicamente o invite de Pums ao notar que também o seu “amigo” os
acompanharia. Quando Biberkopf percebe que estão a roubar uma mercadoria, arrepende-
se, causando um certo desconforto entre os outros criminosos. “Quero sair daqui, sair
daqui, patifes, cachorros, não quero isso” (BA, tb, p. 199)
76
. Terminado o roubo, voltam
os ladrões para o carro que dispara em fuga e é perseguido por um outro automóvel.
Reinhold, que já estava descontente com Franz Biberkopf, aproveita a situação, atirando-
o para fora do carro em movimento, facilitando para que o automóvel que os perseguia
passasse por cima de Biberkopf, atingindo-o violentamente.
Franz Biberkopf, um homem forte, sobrevive, mas o incidente, que é o segundo
dos três grandes golpes que sofre o protagonista, custa-lhe o seu braço direito.
75
“In eine dunkle Gesellschaft war Franz Biberkopf geraten […]” (BA, p. 193).
76
“Ich möchte weg, ich möchte weg, die Gauner, die Hunde, ich will das gar nicht” (BA, p. 229).
57
58
II. Tenho algo a fazer, vai acontecer alguma coisa,
não vou fugir, sou Franz Biberkopf (BA, tb, p. 211).
O maneta Franz Biberkopf não é um sujeito vingativo, como se lê no sexto livro
do romance, o mais longo de toda a narrativa. Conquanto ele não apresente uma
verdadeira transformação de nosso protagonista, como se verá, o sexto livro do Berlin
Alexanderplatz aciona uma nova fase do mesmo Franz Biberkopf. “Agora vocês não
verão Franz Biberkopf bebendo e escondendo-se. Agora o vêem sorrir: é preciso dançar
conforme a música” (BA, tb, p. 203)
77
.
Inicialmente, são os antigos amigos de Franz Biberkopf, Herbert e Eva, que lhe
ajudam na sua recuperação e pagam as suas despesas. Desejosos de alguma justiça, esses
amigos de Biberkopf lhe cobram um esclarecimento que os faça compreender de que
modo ele pôde perder o braço. Mas Biberkopf não se interessa por um acerto de contas,
desvia de seu passado e busca por uma nova postura que, enfim, revele seu valor. “Franz
Biberkopf olha reto à frente e pensa: não tenho nada a ver com o que estão dizendo. E, se
fizerem alguma coisa, também não tenho nada a ver com isso. Não vai fazer meu braço
crescer, e está certo o braço ter sumido. Ele tinha de sumir, não há como reclamar. E não
é o fim ainda” (BA, tb, p. 218)
78
.
Franz Biberkopf volta às ruas, faz novas amizades, novos trambiques, esconde seu
envolvimento com o bando de Pums, e carrega a convicção de que o necessário neste
momento é ganhar o seu dinheiro, pois a “vida afinal lhe valeu de alguma coisa” (BA, tb,
p. 223)
79
. “Sou homem livre, ou ninguém”, afirma o “mais lúcido” Biberkopf de que se
agora tem notícia (BA, tb, p. 227)
80
.
De acordo com este momento da vida de Franz Biberkopf, surge-lhe, apresentado
por sua amiga Eva, o seu grande amor neste romance: Mieze, uma mocinha “de primeira”
que “encanta Franz ao primeiro olhar” (BA, tb, p. 242). Mieze não se torna apenas a
77
“Jetzt seht ihr Franz Biberkopf nicht saufen und sich verstecken. Jetzt seht ihr ihn lachen: man muβ sich
nach der Decke strecken” (BA, p. 235).
78
“Franz Biberkopf blickt geradeaus, denkt: das geht mich nichts an, was die sagen. Und wenn die was
machen, das geht mich auch nichts an. Davon wächst mir der Arm nicht, und das ist auch ganz richtig, daβ
der Arm weg ist. Der muβte ab, da gibts nichts gegen zu bellen. Und das ist noch nicht das letzte” (BA, p.
252).
79
“Das Leben hat ihm doch etwas genützt” (BA, p. 259).
80
“Ich bin ein freier Mann oder keiner” (BA, p. 264).
58
59
responsável pelos sentimentos mais nobres de nosso protagonista, mas também coloca em
cena o rufião Biberkopf, estabilizando-o em vários sentidos:
Em que alturas está agora o nosso Franz Biberkopf? Sua vida está boa, como
tudo mudou! Esteve perto da morte, e como se ergueu! Que criatura saciada ele é agora, a
quem nada falta, comida, bebida ou roupa. Tem uma namorada que o faz feliz; tem mais
dinheiro do que gasta; já pagou toda sua dívida com o Herbert; Herbert, Emil, Eva são
seus amigos, querem o seu bem. Deixa-se ficar dias a fio com Herbert e Eva, espera por
Mieze, vai até o lago Müggelsee, onde rema com dois outros sujeitos: pois Franz fica
cada dia mais habilidoso, mais forte no braço esquerdo. De vez em quando ele aparece na
Münzstrasse, também, ou na casa de penhores (BA, tb, p. 250)
81
.
Com o nosso protagonista em boas condições, é com alguma surpresa, ou
decepção, que talvez o leitor mais esperançoso reaja aos acontecimentos do final do sexto
livro, quando Franz Biberkopf procura por Reinhold e acredita novamente em sua
amizade. Feliz, Biberkopf ainda encerra o sexto livro a dançar no bar de Herbert, e “as
pessoas a quem mais ama enquanto dança com Eva são duas: uma é a sua Mieze, que
gostaria que estivesse presente, a outra é... Reinhold” (BA, tb, p. 282)
82
. Assim, o velho
Biberkopf, que por um momento pareceu “mais lúcido”, dá início à repetição dos
mesmos erros anteriores, demonstrando que o seu misto de ingenuidade e tolice lhe
dificulta qualquer aprendizado. O comportamento insensato do Franz Biberkopf que se
reaproxima de Reinhold não encontra qualquer explicação razoável, tendo em vista que
nem mesmo é um oculto desejo de vingança que lhe move, mas um inexplicável
sentimento de admiração que ele parece nutrir pelo personagem.
Simploriamente, Biberkopf acredita que aprendeu “uma lição” ao perder o braço,
compreendendo o ato de Reinhold como justa reação à sua condição atrapalhada e
81
“Auf welcher Höhe steht jetzt unser Franz Biberkopf! Wie gut geht es ihm, wie hat sich alles gewandelt!
Er war schon dicht am Tode, wie hat er sich erhoben! Welch sattes Geschöpf ist er jetzt, dem nichts fehlt,
nichts am Essen, Trinken, nichts an der Kleidung. Ein Mädel hat er, das ihn glücklich macht, Geld hat er,
mehr als er verbraucht, seine ganz Schuld an Herbert hat er schon abgetragen, Herbert, Emil, Eva sind seine
Freunde, sie meinen es gut mit ihm. Tagelang sitzt er bei Herbert und Eva herum, erwartet Mieze, fährt
zum Müggelsee raus, wo er mit zwei andern zusammen rudert: denn Franz wird von Tag zu Tag
geschickter und stärker im linken Arm. Ab und zu horcht er an der Münzstraβe, an der Pfandkammer
herum” (BA, p. 290).
82
“Und am innigsten liebt er, während er mit Eva tanzt, liebt er zwei: die eine ist seine Mieze, die er gern
da hätte, der andere ist – Reinhold” (BA, p. 328).
59
60
nervosa que o tornava uma pessoa suspeita e indesejada durante a ação ilegal do bando de
Pums daquela noite. Assim, livre de pensamentos que supostamente poderiam lhe
incomodar, Franz Biberkopf aproxima-se mais uma vez do bando de Pums, ignorando os
conselhos de Herbert, Eva e Mieze, e obtém com isso alguma vantagem financeira.
Porém, as vantagens do seu tolismo são poucas e logo cessam, e o esperado terceiro
golpe logo atinge Biberkopf, resultado de sua proximidade com Reinhold, que o
convence a lhe apresentar a sua Mieze. Após algumas manobras, que se aproveitam
também da ingenuidade de Biberkopf, Reinhold consegue se aproximar de Mieze,
arranjando um meio de ganhar a sua companhia em um passeio. Durante o passeio em
Freienwalde, Reinhold agride Mieze, tirando-lhe a vida ao final do sétimo livro do
romance.
Dotado de uma lentidão e ignorância exemplares, Franz Biberkopf desconhece
que foi traído mais uma vez e demora a entender que perdeu Mieze para sempre. Quando
as coisas começam a ficar mais claras para ele, Biberkopf já está ao lado de Reinhold na
página de um jornal que os acusa de autores do assassinato de Mieze. A burrice levou-o à
ruína, e o que se lê no oitavo livro, e também no começo do nono livro do Berlin
Alexanderplatz, é a lamentável derrocada de Franz Biberkopf. “Franz pensa: minha vida
acabou, estou farto, acabou-se” (BA, tb, p. 368)
83
. O desespero domina os sentimentos do
nosso protagonista, que enfrenta agora a maior de suas crises, a crise que finalmente lhe
trará uma transformação significativa em sua vida.
Franz Biberkopf não encontra um meio de se vingar de Reinhold, suportando o
seu ódio e a sua dor solitariamente, o que o transtorna profundamente. Momentos depois,
quando Biberkopf é preso, notam os responsáveis que ele deve ser encaminhado para um
manicômio, tal é o estado de Franz. Distante de sua sanidade, Biberkopf vive o seu
tormento e aproxima-se da morte, renunciando insistentemente os tratamentos que
pretendem lhe recuperar a saúde. Quando a sua situação torna-se realmente grave e a sua
vida corre perigo, é a própria Morte que lhe aparece e dialoga com Franz, fazendo-o
enxergar duramente todos os seus erros, dizendo-lhe que o “mundo não se importa com
ele”, Biberkopf, que geme e sofre e sente a dor que lhe causa o reconhecimento de seus
consecutivos tropeços inconseqüentes. O diálogo de Franz Biberkopf com a Morte
83
“Da findet Franz: Mein Leben ist zu Ende, mit mir ist es aus, ich habe genug” (BA, p. 426).
60
61
elimina-o, colocando em cena o seu substituto, o renascido Franz Karl Biberkopf, um
auxiliar de porteiro de uma fábrica de médio porte.
Andamos por uma alameda escura, primeiro não havia lampiões acesos, a gente
só sabia que o caminho era comprido, aos poucos ficou mais claro, mais claro, por fim
vê-se o lampião ali, e afinal a gente lê a placa da rua debaixo dele. Foi um processo de
revelação muito peculiar. Franz Biberkopf não andou por essa rua como nós. Ele correu
desenfreadamente por essa rua escura, bateu nas árvores, e quanto mais corria mais batia
nas árvores. Estava escuro, e ao bater nas árvores ele fechou os olhos horrorizado. E
quanto mais batia, mais horrorizado fechava os olhos. Com a cabeça esburacada, quase
sem sentidos, finalmente chegou. Ao cair, abriu os olhos. Então o lampião brilhava claro
por cima dele, e lia-se a placa (BA, tb, p. 424)
84
.
Como se lê no trecho acima, Franz Biberkopf é dono de uma trajetória bastante
acidentada que, se o fez aprender algo, não o fez de uma forma pacífica, mas impingindo-
lhe golpes nada agradáveis. A situação do Franz Karl Biberkopf é a de um homem
conformado em seus limites:
Muita desgraça vem do fato de se andar sozinho. Quando há muitos, a coisa é
diferente. A gente precisa acostumar-se a escutar os outros, pois o que os outros dizem
também me diz respeito. Aí percebo quem eu sou e o que posso me propor. Ao meu redor
e por toda parte se luta a minha luta, preciso prestar atenção, antes que note chegou
minha vez (BA, tb, p. 425)
85
.
Franz Karl Biberkopf é talvez um sujeito que, assim como o Riobaldo do Grande
Sertão: Veredas, reconheceria que no passado muito ele não soube, mas ao contrário do
84
“Wir sind eine dunkle Alle gegangen, keine Laterne brannte zuerst, man wuβte nur, hier geht es lang,
allmählich wird es heller und heller, zuletzt hängt da die Lanterne, und dann liest man endlich unter ihr das
Straβenschild. Es war ein Enthüllungsprozeβ besonderer Art. Franz Biberkopf ging nicht die Straβe wie
wir. Er rannte drauflos, diese dunkle Straβe, er stieβ sich an Bäume, und je mehr er ins Laufen kam, um so
mehr stieβ er an Bäume. Es war schon dunkel, und wie er an Bäume stieβ, preβte er entsetzt die Augen zu.
Mit zerlöchertem Kopf, kaum noch bei Sinnen, kam er schlieβlich doch an. Wie er hinfiel, machte er die
Augen auf. Da brannte die Laterne hell über ihm, und das Schild war zu lesen” (BA, p. 499).
85
“Viel Unglück kommt davon, wenn man allein geht. Wenn mehrere sind, ist es schon anders. Man muβ
sich gewöhnen, auf andere zu hören, denn was andere sagen, geht mich auch an. Da merke ich, wer ich bin
und was ich mir vornehmen kann. Es wird überall herum um mich meine Schlacht geschlagen, ich muβ
aufpassen, ehe ich es merke, komm ich ran” (BA, p. 500).
61
62
jagunço mineiro, o berlinense provavelmente preferisse esquecer a singular história que
morreu com o nome Franz Biberkopf e não recordá-la como o faz o Urutú-Branco no
romance de Guimarães Rosa. “Nada mais há a relatar sobre sua vida” (BA, tb, p. 424),
confirma o narrador ao demonstrar que Franz Karl Biberkopf é uma segunda pessoa,
ajustada à massa que o carrega nos movimentos incessantes do agitado espaço urbano
que é Berlim.
62
63
Os tontos movimentos
Os tiros que encerram a batalha final do romance de Guimarães Rosa vêm de
“profundas profundezas”, longe estão, sendo os últimos nas páginas últimas do livro,
minguam junto à consciência de Riobaldo. Derradeira tempestade, as mortes de Diadorim
e de Hermógenes desacordam o protagonista Riobaldo. Deixemo-nos com ele, “depois
das tempestades”, acordar:
Ouvi os rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e
meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acôrdo, dado ataque, mas
que não estivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava
recebendo socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Prêsas, João Curiol e o Acauã –: que
molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo – como no
instante em que o trovão não acabou de rolar até ao fundo, e se sabe que caíu o raio...
(GSV, p. 560).
Estranho ao romance, é momento raro e breve no texto do Grande Sertão:
Veredas um Riobaldo assim desacordado. De um tiro inicial, que não se ouve, mas que se
lê como anterior à primeira palavra do livro e como motivador da fala que se inaugura,
aos tiros finais que são também o silêncio da ausência de Diadorim, tagarela Riobaldo,
colocando em ação os signos de uma agitada trajetória rememorada. “Para trás, não há
paz”, afirma Riobaldo (GSV, p. 42).
Faz-se notar na fala de Riobaldo que, para ser contrário ao seu passado, seu
presente deseja religiosamente quietude e paz:
O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à parte
de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é? (GSV, pp. 568-569).
Todavia, a desejada calmaria que não encontra Riobaldo em seu passado (mesmo
que, vez por outra, Riobaldo recorde os eventos e os lugares, as pessoas, as palavras e as
coisas de suas “velhas alegrias”, os campos floridos de seus tranqüilos momentos: uma
“brisbrisa”, um manuelzinho-da-crôa, Nhorinhá “vestida de vermelho”, Otacília “no
63
64
enquadro da janela”, Diadorim “duro sério, tão bonito, no relume das brasas” etc.)
também não se dá em seu presente, quando os conflitos de outrora rememorados, suas
inquietudes e inseguranças afirmadas, assombram-no. As boas lembranças, embora
existam, não aliviam o protagonista Riobaldo, já que convivem, no presente de sua fala,
misturadas com o medo e a frustração que resultam dos seus anos de jagunço em
atividade.
Riobaldo contudo, na revisão de seu passado, faz do seu desejo de paz coisa atual
e passada, como se esse sentimento que tão caro lhe é sempre o houvesse acompanhado:
Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no
extrato, no meio daquela diversidade, despropósitos, com a morte da banda da mão
esquerda e da banda da mão direita, com a morte nova em minha frente, eu senhor de
certeza nenhuma (GSV, p. 334).
Mas, se ao iniciarmos nosso texto demos atenção ao instante imóvel e
desacordado de Riobaldo, procuramos com isso evidenciar que em sua trajetória o ritmo é
outro, combinando sua fala com a constante movimentação e a pouca paz de sua andeja
vida. A trajetória de Riobaldo, que, como já notamos, elege dúvidas e incertezas,
inscreve-se sobre movediço solo, sendo a fala que a narra operante, simultaneamente o
solo e o movimento.
Quando o leitor do Grande Sertão: Veredas se depara com a imagem de um
Riobaldo fora de si, sem acordo, ainda lhe resta, porém, a sensação de que nem tudo
parou, pois não se cala o Riobaldo narrador, sobrevivendo a fala do protagonista à morte
de Diadorim. Como em Grande Sertão: Veredas é o próprio Riobaldo quem narra a sua
história, em nenhum momento nos distanciamos dele, e mesmo quando lhe ocorre a
maior de suas perdas, o abalo que se segue não o silencia, mas, ao lhe atingir
profundamente, incentiva a fala que é o texto de todo o romance. Em Berlin
Alexanderplatz outro é o caso.
Franz Biberkopf não enfrenta menores crises que as de Riobaldo: enganam-no,
perde um de seus braços e também a mulher a quem mais amou. Todos esses momentos
64
65
críticos perturbam o ânimo do protagonista, afastando-o de suas atividades ao lhe
atrapalhar em sua usual movimentação pelo centro urbano berlinense em busca de uma
vida “decente”.
Quando, por exemplo, Franz Biberkopf sofre o primeiro dos três golpes que o
atingem durante o romance, que é a traição de Otto Lüders, ele se isola de seus
conhecidos e do mundo, passando a viver recluso sem mais praticar o comércio que lhe
ocupava. “Não é da conta de ninguém o que eu faço. Se quero ficar cochilando, cochilo
até depois de amanhã sem me mexer...” (BA, tb, p. 119)
86
. Também quando Biberkopf,
vítima de sua ingenuidade, encontra-se envolvido na ação criminosa que lhe tira um de
seus braços, deixa ele mais uma vez de agir, convalescendo em casa de amigos enquanto
nega o ocorrido e ignora aqueles que esperam dele alguma resposta aos envolvidos no
incidente. Franz Biberkopf, assim como Riobaldo, quer a paz.
A paz e a tranqüilidade de uma vida “decente”, contudo, não lhe atingem tão
facilmente quanto os golpes que ele sofre. Franz Biberkopf permite que passem os dias
de sua vida com seguidos descuidos, e confere assim à sua história uma tonalidade que
contrasta fortemente com o seu desejo de paz. E, desconhecendo a paz, assim como
desconhece a sensatez, Biberkopf apenas entrevê algum sossego quando lhe tocam os
infortúnios que impedem a circulação incessante que o caracteriza. Logo, nunca é um
verdadeiro estado de tranqüilidade que o atinge, mas a calmaria inquieta de um ser
entrevado por seus erros.
Curiosamente, como segurança e conforto, parece colocar-se no romance de
Döblin o presídio de Tegel, local onde Biberkopf esteve preso pelo assassinato de sua
antiga companheira Ida. Muita vez, quando complicam as coisas para Biberkopf, ativam-
se em sua memória as imagens de seu antigo cotidiano de prisioneiro:
O que fazer? E então a coisa o atravessa e ele fecha a boca com força: esse é meu
castigo, eles me soltaram, os outros ainda estão descascando batatas na prisão junto ao
86
“Wen geht das was an, was ich mache. Wenn ich dösen will, döse ich bis übermorgen auf einem Fleck”
(BA, p. 136).
65
66
grande monte de lixo, e eu tenho de pegar o bonde, maldição, não era tão mau assim por
lá (BA, tb, p. 106)
87
.
Mas Tegel, lembranças de Biberkopf e passado próximo ao livro, ocupa mesmo é
o espaço que antecede o início da narrativa, significando assim também a ausência do
livro e de sua ação. “Começa agora a pena”, lê-se no primeiro capítulo do romance (BA,
tp, p. 13)
88
, e o outrora trabalhador do transporte de mobílias tem de encarar sua vida na
cidade, despedindo-se dos “bons tempos” em que o seu isolamento era bem assistido. A
vida, movente, agita-se. “Der Rosenthalerplatz unterhält sich” (BA, p. 51).
Privado de suas andanças, o Franz Biberkopf que se esconde no quarto de sua
residência ou na casa de seus amigos, ou que é recolhido em um hospital ou em um
presídio, destaca-se aparentemente como uma personagem ferida em sua propriedade. Se
os períodos críticos do incauto Biberkopf, ao lhe aproximarem da morte, colocam-lhe
entre quatro paredes, devemos notar com isso que, por outro lado, a vida de Biberkopf
participa usualmente do vaivém que anima as ruas berlinenses e do trânsito que a
existência precária de Franz faz necessário, já que lhe é ordinário sua incessante troca de
mulheres, amigos, empregos, estados psíquicos e físicos.
Se no Grande Sertão: Veredas, como já observamos, em nenhum momento nos
distanciamos de Riobaldo, o mesmo não se dá no Berlin Alexanderplatz. O romance de
Döblin, diverso do de Guimarães Rosa, não faz uso de uma única voz em sua narrativa,
mas alterna constantemente as várias vozes que o narram, resultando disso inúmeros
momentos no romance em que perdemos o protagonista Franz Biberkopf. Quando
Reinhold assassina Mieze, por exemplo, Franz Biberkopf não nota de imediato que isso
ocorreu, ignora que mais uma vez fora apunhalado, e enquanto o caso caminha para o seu
desvendamento, logo no primeiro capítulo do livro seguinte (oitavo), surgem
emparelhando esse acontecimento tão significativo à trama a notícia de uma luta de boxe,
um discurso sobre o modo pelo qual as plantas se protegem do frio, um comentário sobre
87
“Was soll man machen? Und da gieβt es durch ihn, und er beiβt seinen Mund zu: Das ist die Strafe, mich
haben sie rausgelassen, die andern buddeln noch Kartoffeln hinter dem Gefängnis an dem groβen Müllberg,
und ich muβ die Elektrische fahren, verflucht, es war doch ganz schön da” (BA, p. 120).
88
“Die Strafe beginnt” (BA, p. 13).
66
67
a falta de importância da publicação de algumas outras notícias, uma mesa de bar com
pessoas que contam piadas etc. (BA, pp. 397-399). Semelhante, porém, ao Grande
Sertão: Veredas, no Berlin Alexanderplatz, é a continuidade da narrativa que não tem o
seu discurso abalado por um Franz Biberkopf fora de cena, como observamos igualmente
no caso daquele Riobaldo desacordado. No romance de Döblin, a eleição de um
protagonista como Franz Biberkopf não quer excluir da narrativa os inúmeros outros
anônimos e seus discursos que assim como ele freqüentam Berlim. Assim, se a existência
de Berlim não depende exatamente da existência individual de Biberkopf, e o romance de
Döblin constrói a sua narrativa com ambos, mesmo com um Franz Biberkopf morto,
poderíamos ainda ter algumas páginas do Berlin Alexanderplatz indiferentes ao
protagonista.
Revela-se aqui, com a questão que leva em conta as relações de proximidade e
distância entre leitores e protagonistas, que os romances de Döblin e de Guimarães Rosa
diferenciam-se no modo como narram suas histórias. Não obstante tal distinção entre as
narrativas dos dois romances, continuaremos o nosso texto com a atenção voltada às
movimentações dos dois protagonistas, sem, por ora, insistirmos nas diferenças de seus
enunciados, já que ainda esperamos demonstrar, com o desenvolvimento de nosso
trabalho, que essas mesmas diferenças são também fatores de aproximação dos dois
romances.
Riobaldo, a certa altura da narrativa, afirma que o sujeito que “é pobre, pouco se
apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas” (GSV,
p. 41). Sendo pobres, de “vida muito repagada” (GSV, p. 97), e vivendo os dois em
contínua movimentação, “perna direita, perna esquerda, perna direita, perna esquerda”
(BA, tb, p. 123), Riobaldo e Franz Biberkopf são ambos sujeitos provisórios, traço esse
que é fundamental em suas personalidades
89
. As trajetórias dos dois protagonistas, que
privilegiamos em nosso trabalho, demonstram que ambos são portadores de uma vida
bastante movimentada, jornadeando um pelo sertão em seu ofício de jagunço, enquanto
89
“[...] fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito
provisório” (GSV, p. 390). O Riobaldo no qual demonstramos nosso interesse, neste momento, é o que se
diferencia nas páginas do romance de Guimarães Rosa como jagunço, apesar de ocupá-las, as páginas, nas
palavras de um Riobaldo fazendeiro, que é quem, como narrador, movimenta o Riobaldo “provisório” ao
recordar sua história.
67
68
caminha o outro com seus empregos temporários pelo centro berlinense. Não bastasse o
vaivém que suas atividades exigem, também os sentimentos que se apoderam dos dois
são significativamente transitórios. A “natureza da gente é muito segundas-e-sábados”,
como diz Riobaldo (GSV, p. 172).
Ao nos determos, primeiramente, nas histórias de Riobaldo e de Franz Biberkopf,
verificamos que desde os seus momentos iniciais pouco nelas está livre deste caráter
transitório que procuramos acentuar. Riobaldo ainda moço, insatisfeito na propriedade de
Selorico Mendes, não se deixa ali estar, apesar do conforto, mas coloca-se em movimento
e parte em direção ao Curralinho, como já notamos. Daí em diante, inicialmente com o
bando de Zé-Bebelo, e depois sob a chefia de Joca Ramiro, transita constantemente
enquanto jagunço em guerra, que em suas palavras é “o constante mexer do sertão” (GSV,
p. 341). Já Urutú-Branco, chefe de seu bando, Riobaldo muito vaga pelo sertão, confuso
de sentimentos, sem mesmo saber esclarecer aos seus companheiros o destino deles todos
que seria posteriormente a travessia do Liso do Sussuarão. “Aonde é que jagunço ia? À
vã, à vã” (GSV, p. 421). Ou seja, até mesmo quando é incerto o rumo de suas andanças, o
trânsito de Riobaldo e de seus jagunços é ininterrupto. “Mesmo deitado, eu sentia que
estava caminhando, galopando”, reconhece Riobaldo (GSV, p.422), dando-nos a entender
que a maior constância da vida de um jagunço é o seu viver nômade, a sua inconstância
de homem andejo que não se deixa fixar em parte alguma. “Homem anda como anta:
viver vida. Anta é o bicho mais boçal...” (GSV, p. 525).
Não é outro o modo pelo qual vive Franz Biberkopf, que anda pelas ruas de
Berlim à procura de trabalho, ou então a trabalho, como vendedor ambulante; à procura
de uma mulher ou, então, à procura de um bar que possa aliviar suas dores; se envolvido
numa ação criminosa, anda Biberkopf também, e até mesmo quando nada lhe ocupa,
caminhar pode lhe ajudar, incluindo-o na vida citadina. Mais que uma escolha, a
movimentação de Franz Biberkopf é uma condição que se lhe impõe, pois adaptar-se
como cidadão, deixado o presídio de Tegel para trás, significa enfrentar as ruas com seus
transeuntes, bondes, automóveis e tudo o mais que nelas se movimenta, incluso aí os
mais diversos discursos que numa grande cidade circulam sem cessar. Também superar
suas crises, nas quais se confina Franz Biberkopf entre quatro paredes, como já
68
69
observamos, implica adentrar o trânsito de Berlim e colocar-se lado a lado com os
pedestres anônimos que dão forma à cidade:
Para fora do buraco, para a rua fria. Havia muita gente. Uma quantidade incrível
no Alex, todo mundo ocupado! Parece que não podem viver sem isso. Franz Biberkopf
correu com eles, revirando os olhos para a direita e para a esquerda. Como quando um
cavalo escorrega no asfalto molhado e leva um pontapé com a bota na barriga e tenta se
levantar, sai aos tropeções, e depois dispara feito louco (BA, tb, p. 148)
90
.
Constantemente, o discurso do Berlin Alexanderplatz associa o caminhar de Franz
Biberkopf a um marchar, como se a todo momento que o protagonista enfrenta as ruas,
tomasse ele, contra a sua vontade, parte de uma guerra:
Franz Biberkopf marcha pelas ruas, passo firme, esquerda direita, esquerda
direita, não vou alegar cansaço, nada de botequim, não vou beber, veremos, chegou uma
bala voando, vamos ver, apanho eu com ela, fico deitado, esquerda direita, esquerda
direita, esquerda direita. Rufar de tambores e batalhões. Finalmente ele respira (BA, tb, p.
276)
91
.
Pudesse, e alguma inteligência melhor auxiliasse Franz Biberkopf, talvez ele
evitasse uma parte dos conflitos que lhe envolvem, mas, existindo as ruas, sempre alguma
coisa caminha ao lado do nosso protagonista e, sendo ele muita vez boçal como uma anta,
para usar dos termos de Riobaldo, acontece geralmente de ele não poder escapar de seus
infortúnios e ver-se num campo de batalha em guerra, tal como o personagem de
Guimarães Rosa. “Vida, e guerra é o que é: êsses tontos movimentos, só o contrário do
que assim não seja” (GSV, p. 217).
90
“Raus aus dem Loch, auf die kalte Straβe. Viel Menschen. Kolossal viel Menschen gibts am Alex, haben
alle zu tun. Wie dies nötig haben. Der Franz Biberkkopf lief Ihnen, der drehte die Augen rechts und links.
Als wenn ein Gaul ausgerutscht ist auf dem nassen Asphalt und kriegt einen Tritt in den Bauch mitm
Stiebel und krabbelt hoch, und nun karriolt er los und läuft wie verrückt” (BA, p. 172).
91
“Da marschiert Franz Biberkopf durch die Straβen, mit festem Schritt, links rechts, links rechts, keine
Müdigkeit vorschützen, keine Kneipe, nichts saufen, wir wollen sehen, eine Kugel kam geflogen, das
wollen wir sehen, krieg ich sie, liege ich, links rechts, links rechts. Trommelgerassel und Bataillone.
Endlich atmet er auf” (BA, p. 320).
69
70
Um pouco atrás em nosso texto, observamos que não apenas os “corpos” de
nossos protagonistas estão em constante movimento, mas que também os sentimentos que
lhe pertencem têm aspectos transitórios:
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou (GSV, p. 24).
A noção defendida por Riobaldo de que as pessoas “vão sempre mudando” traz
mais uma vez ao nosso texto a questão do “desenvolvimento” das personagens que
estudamos ao considerarmos suas trajetórias. O Riobaldo para quem “viver é um
descuido prosseguido” (GSV, p. 68), no presente de sua fala depara com uma série de
problemas que emergem enquanto ele recupera o seu passado. Para os problemas que
assim surgem em sua fala, Riobaldo não parece querer a ajuda de soluções definitivas,
preferindo deixar sem respostas as suas dúvidas, pois toda e qualquer explicação, em seu
caso, seria uma simplificação indesejada
92
. Se em seu presente de jagunço aposentado
inquietam-lhe questões existenciais que ora faz ele afirmar uma coisa, ora outra,
sustentando, por exemplo, a tensão entre o ser e o não-ser do diabo e, conseqüentemente,
colocando em dúvida a validade de seu pacto e do seu compromisso de homem crente,
em seu passado de jagunço em atividade, como nos faz acreditar a sua voz, menores não
eram as suas inseguranças.
Marcando-lhe profundamente a lembrança de Diadorim, o ser duplo que essa
donzela guerreira é, sendo simultaneamente homem e mulher, delicadeza e força, projeta
em Riobaldo a sua ambigüidade. Assim, absorvido pelo que aprendeu com Diadorim, a
educadora maior de seus sentimentos, Riobaldo transfere a ambigüidade de sua amada
para todas as coisas por ele observadas. “Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com
igual formato de ramos e fôlhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a
92
Se Riobaldo, de vez em vez, pede o auxílio do visitante “instruído” a quem ele dirige a sua fala, isso
contudo não demonstra uma verdadeira vontade de ter esclarecidas as suas questões, já que no texto do
Grande Sertão: Veredas não há espaço para o seu interlocutor, que está a todo momento emudecido pela
voz de Riobaldo. “Ah, o que eu prezava ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para se estudar
dessas matérias...” (GSV, p. 221). Deste modo, o uso que faz Guimarães Rosa de um citadino “instruído”
em silêncio pode ser encarado como estratégia do autor, que assim não quer ver reduzidas as indagações de
seu protagonista.
70
71
mandioca-brava, que mata?” (GSV, p. 12). Com a desconfiança entre os seus sentimentos
mais caros, Riobaldo narra a sua trajetória entre Deus e o diabo, entre o homem e a
mulher, entre o legal e o ilegal e assim por diante, sem deixar de lado o trânsito de suas
opiniões. “Eu era dois, diversos?” (GSV, p. 460)
93
. Por exemplo, a certa altura, em meio
aos outros jagunços, após um momento em que lhe ocupara observar o Hermógenes,
reflete Riobaldo sobre a sua relação com os seus companheiros de profissão:
Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom. Aquêle povo da malfa,
no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer. – “Comeu lôbo?” E vozear
tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim já pensavam (GSV, p. 164).
E logo abaixo, repetindo a sua questão com outra formulação, decide-se Riobaldo pelo
contrário: “E eu era igual àqueles homens? Era” (GSV, p. 164). Essa alternância de
opiniões de Riobaldo demonstra que o personagem inquisitivo que ele é não assume
posturas excludentes, sendo usualmente uma coisa e outra simultaneamente
94
. “Acho que
eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo” (GSV, p. 442). Coragem e medo que,
como já vimos, estão entre as maiores preocupações de Riobaldo, também exemplificam
as suas variações: “Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era
variável” (GSV, p. 45). E assim, moventes como seus passos, os sentimentos de Riobaldo
transitam de um lado para o outro, pois “[...] manter firme uma opinião, na vontade do
homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso. Vai viagens imensas” (GSV, p.
501).
De acordo com Riobaldo, o “que nesta vida muda com mais presteza: é lufo de
noruega, caminhos de anta em setembro e outubro, e negócios dos sentimentos da gente”
(GSV, p. 435). Mas Riobaldo “nunca tinha certeza de coisa nenhuma”, como afirma em
seu discurso (GSV, p. 354). Resta-nos com isso verificar se a sua observação mantém a
validade no caso de Franz Biberkopf.
93
Lembre-se o verso do Fausto de Goethe: “Zwei Seelen wohnen, ach! in meiner Brust”. Cf. GOETHE,
Johann Wolfgang von. Fausto Uma Tragédia Primeira Parte. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 118.
94
Embora sentimentos e opiniões contrárias coexistam em Riobaldo, vale lembrar que o seu desejo
expresso é outro: “Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom
e o ruím ruím, que dum lado esteja o prêto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a
alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados...” (GSV, p. 210).
71
72
Franz Biberkopf, dada sua ingenuidade, talvez seja capaz de demonstrar até com
maior nitidez a mobilidade de seus sentimentos. O imediatismo do protagonista de Berlin
Alexanderplatz chega a impressionar, e não raro encontramos Franz Biberkopf, sem
maiores reflexões, saltando bruscamente de um estado emocional a outro
95
.
Os sentimentos de Franz Biberkopf são aparentemente simples: ele pode ser
violento, se irritado, ou fraternal e amoroso, se alegre. Dono de um humor inconstante,
Franz Biberkopf tem entre as suas mais significativas questões o controle de seu ânimo.
Com a sua antiga companheira, Franz Biberkopf foi extremamente violento e
descontrolado, e obteve assim seus anos de reclusão em Tegel. Liberto em Berlim, a vida
que recomeça para Biberkopf exige dele prudência e sobriedade. No entanto, como já
observamos ao nos determos em sua trajetória, não pôde o ex-presidiário lidar
sobriamente com todas as dificuldades que lhe cruzaram o caminho.
Numa de suas primeiras situações difíceis, que é uma cena do livro em que, por
razões políticas, freqüentadores de um bar implicam com a figura de Franz Biberkopf,
surge prontamente a questão do autocontrole. Franz Biberkopf ali sabe que não deve se
meter em confusão, travando então uma complexa luta com os seus impulsos para não
avançar contra os freqüentadores:
Eu me entreguei, pensa Franz, agarrou-se na janela diante da veneziana, vou
estourar, homem, tomara que não me agarrem; quero ficar em paz com todos, mas vai
haver uma desgraça, tomara que ele não seja idiota ao ponto de me agarrar (BA, tb, p.
85)
96
.
Claramente perturbado em seu equilíbrio, Franz Biberkopf deixa o bar para evitar
maior confusão e cumprir com o seu desejo de ser um homem “decente”. A exemplo
dessa situação, poderíamos ainda localizar no livro outros momentos semelhantes em que
o autocontrole de Franz Biberkopf é acionado não sem transtornos. Contudo, tratando
aqui da transitoriedade dos sentimentos de Biberkopf, mais proveitoso será observar
como são paradoxais as ações da personagem que os têm por guia.
95
Vale mencionar que “emoção” deriva do vocábulo latino motio, implicando “movimento”, “ação”.
96
“Ich hab mich ergeben, denkt Franz, hat sich ans Fenster geklemmt vor der Jalousie, hier geh ich los,
wenn die mich bloβ nicht anfassen; ich bin allen gut, aber es gibt ein Malheur, wenn der bloβ nicht so
dämlich ist, mich anzufassen” (BA, p. 97).
72
73
Ao ocuparmo-nos da trajetória de Franz Biberkopf, mencionamos a situação em
que ele esteve envolvido no início de sua amizade com Reinhold, que era a curiosa troca
de amantes que unia os dois. Constatamos também, que a mudança de opinião de Franz
Biberkopf, que decide interromper a permuta, causou-lhe grande aborrecimento e a perda
de um de seus braços. Mas Franz Biberkopf parece nutrir sentimentos iguais pela sua
amada Mieze e por Reinhold, insistindo na amizade deste, enquanto nós leitores, desde o
final do quinto livro do Berlin Alexanderplatz, que é o momento do acidente que lhe tira
o braço, sabemos que a figura sombria de Reinhold não pode lhe fazer bem. Como
conseqüência de sua relação cega com Reinhold, Franz Biberkopf, “um espírito que
perdoa e concilia”, facilita no sétimo livro do romance que a sua pequena Mieze seja
assassinada por Reinhold.
A ambivalência de Franz Biberkopf, endossada por sua ingenuidade, não se
restringe às suas relações fraternais, mas atinge também suas esferas política, jurídica e
econômica. Franz Biberkopf é contraditório, vende os jornais de um partido, mas sustenta
amizade e admiração por membros de um outro, isso quando não prefere afirmar que a
política não lhe diz respeito. “E mais uma vez não existe ninguém mais contente que o
nosso Franz Biberkopf, que manda a política para o diabo” (BA, tb, p. 270)
97
. Podemos
verificar igualmente que o mesmo oscilar que caracteriza a postura política de Franz
Biberkopf faz com que ele não consiga, até que se alcance as últimas páginas do livro,
estabelecer o seu lugar social numa estabilidade econômica ou jurídica. Biberkopf está
durante todo o livro entre o emprego e o desemprego, entre o “decente” e o criminoso,
alternando os seus desejos e confundindo-se entre eles.
Do mesmo modo que transitam as pernas, os sentimentos e as posições de Franz
Biberkopf pelas ruas berlinenses, podemos pensar que ali circulam as mercadorias que
lemos no livro anunciadas, os discursos anônimos que noticiam fatos públicos e privados
etc. Ao escrever seu Berlin Alexanderplatz, Alfred Döblin não ignora que o trânsito de
pessoas, carros, bondes, mercadorias e informações constitui parte importante da
paisagem de uma grande cidade. Sem deixá-lo de lado, a narrativa do Berlin
97
“Und wieder gibt es nichts Zufriedeneres als unsern Franz Biberkopf, der die Politik zum Deibel schickt”
(BA, p. 314).
73
74
Alexanderplatz parece querer a mesma complexa linguagem com a qual a cidade se faz
legível. Neste sentido, Berlin Alexanderplatz não é uma “expressão” da cidade,
entendendo, aqui, “expressão” como uma prática de texto que demonstraria o estado
anímico de um autor, sujeito particular (a fascinação, o susto, a paixão, o medo num
lamento ou numa canção de amor), em sua relação específica com um objeto (no caso, o
tema da cidade moderna). Antes, o romance de Döblin é uma narrativa que procura com
maior objetividade aproximar a estrutura urbana de seu discurso, e para isso coloca em
cena os elementos flutuantes e variáveis de um cotidiano metropolitano: discursos
políticos, questões econômicas, anúncios de produtos e serviços, textos jornalísticos,
estatísticas, presenças míticas e também personagens inconstantes e passageiros, entre
eles o protagonista Franz Biberkopf.
Não apenas no Berlin Alexanderplatz, mas também no Grande Sertão: Veredas,
às qualidades transitórias dos protagonistas que ressaltamos até então em nosso trabalho
correspondem os seus enunciados com igual mobilidade. É indispensável, neste caso,
pensá-los em conjunto.
Observar o trânsito acidentado nas andanças de Biberkopf, assim como as viagens
pelo sertão de Riobaldo, pode ser interessante quando se nota que a fala possui
semelhanças com o “ato de caminhar”. Afirma Michel de Certeau que o
[...] ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act)
está para a língua ou para os enunciados proferidos. Vendo as coisas no nível mais
elementar, ele tem com efeito uma tríplice função ‘enunciativa’: é um processo de
apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e
assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma
realização sonora da língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou
seja, ‘contratos’ pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação
verbal é ‘alocução’, ‘coloca o outro em face’ do locutor e põe em jogo contratos entre
colocutores)
98
.
98
Cf. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 177.
74
75
Ao movimento do que é narrado, nos livros de Döblin e de Guimarães Rosa,
podemos somar o movimento do que narra. Por exemplo, no Berlin Alexanderplatz, às
barreiras que Franz Biberkopf tem de transpor em sua trajetória com esforço estéril
correspondem interrupções de elementos discursivos estranhos ao texto da trama de
nosso protagonista. Os caminhos interditados para Franz Biberkopf encontram no texto
que os narra semelhante situação quando entrecruzam a história do protagonista
fragmentos discursivos que dela não participam diretamente, como pode ser notado no
início do segundo livro do romance, onde após um relato das condições de Berlim
naquele momento, que incluem notícias bastante diversificadas, não se obtêm notícias de
Franz Biberkopf, sem antes, por cinco páginas, demorar-se o texto nas histórias de dois
amigos quaisquer que comentam o desemprego de um deles e no caso de uma garota que
se encontra furtivamente com um senhor de meia-idade (BA, tb, pp. 48-52). Também,
sem que se fixe num determinado assunto, o texto de Döblin repetidas vezes transita num
mesmo trecho da narrativa por elementos deveras diversificados. O trecho a seguir,
apesar de longo, é talvez o melhor exemplo dessa estratégia de que Döblin faz uso:
Lojas de bebidas, restaurações, mercadinhos de fruta e verdura, produtos
coloniais e especiarias, transportes, pinturas decorativas, confecção feminina, produtos de
farinha e moinhos, garagens, corpo de bombeiros: a vantagem da mangueira a motor é a
construção simples, fácil manejo, pouco peso, tamanho reduzido. – Camaradas alemães,
nunca o povo foi enganado de maneira mais infame, nunca uma nação foi traída de
maneira mais degradante e injusta como o povo alemão. Recordam ainda como
Scheidemann, a 1º de novembro de 1918, prometeu paz, liberdade e pão no peitoril da
janela do Reichstag? E como cumpriram a promessa? Equipamento para canalizações,
companhia de limpeza de janelas, sono é remédio, cama de paraíso Steiner. – Livraria, a
biblioteca do homem moderno, nossas edições completas e autores e pensadores
influentes reúnem-se e constituem a biblioteca do homem moderno. São os grandes
representantes da vida intelectual européia. A lei de proteção do inquilinato é um pedaço
de papel. Os aluguéis sobem constantemente. A classe média trabalhadora é atirada ao
chão e sufocada, o oficial de justiça tem colheita farta. Pedimos créditos públicos até
15.000 marcos à pequena indústria, proibição imediata de todas as hipotecas dos
pequenos industriais. – É desejo e dever de toda mulher preparar-se para a hora do parto.
Todos os pensamentos e emoções da futura mãe giram em torno do nascituro. Então a
75
76
escolha da bebida certa para a futura mãe é particularmente importante. A legítima
cerveja Engelhardt-Caramelo possui como nenhuma oura bebida as qualidades do bom
sabor, da força nutritiva, é digestiva, tem efeito refrescante. – Cuide do futuro de seu
filho e de sua família com um seguro de vida de uma seguradora suíça, Caixa de Pensões
de Zurique. – O seu coração vai pular de alegria quando você tiver um lar mobiliado com
os famosos móveis Höffner. Tudo o que você sonhou sobre conforto é superado por essa
realidade nunca antes imaginada. Embora os anos passem, essa visão permanece
agradável, e sua durabilidade e utilidade prática são uma renovada alegria (BA, tb, pp.
115-116)
99
.
O heteróclito acima não deixa de compor de modo interessante o ambiente
transtornado de uma grande cidade. Com isso, mais do que afirmar que a narrativa do
Berlin Alexanderplatz pratica uma movimentação contínua que se faz homóloga ao
trânsito urbano, queremos também observar que, apesar de nesse procedimento Döblin
utilizar elementos estranhos à história de Biberkopf, como já mencionamos, os pedaços
discursivos que rodeiam a trajetória do protagonista são também significativos para a
99
“Destillen, Restaurationen, Obst- und Gemüsehandel, Kolonialwaren und Feinkost, Fuhrgeschäft,
Dekorationsmalerei, Anfertigung von Damenkonfektion, Mehl und Mühlenfabrikate, Autogarage,
Feuersozietät: Vorzug der Kleinmotorspritze ist einfache Konstruktion, leichte Bedienung, geringes
Gewicht, geringer Umfang. – Deutsche Volksgenossen, nie ist ein Volk schmählicher getäuscht worden,
nie wurde eine Nation schmählicher, ungerechter betrogen als das deutsche Volk. Wiβt ihr noch, wie
Scheidemann am 9. November 1918 von der Fensterbrüstung des Reichstags uns Frieden, Freiheit und Brot
versprach? Und wie hat man das Versprechen gehalten! – Kanalisationsartikel, Fensterreinigungs-
gesellschaft, Schlaf ist Medizin, Steiners Paradiesbett. – Buchhandlung, die Bibliothek des modernen
Menschen, unsere Gesamtausgaben führender Dichter und Denker setzen sich zusammen zur Bibliothek
des modernen Menschen. Es sind die groβen Repräsentanten des europäischen Geisteslebens. – Das
Mieterschutzgesetz ist ein Fetzen Papier. Die Mieten steigen ständig. Der gewerbliche Mittelstand wird auf
das Pflaster gesetzt und auf diese Weise erdrosselt, der Gerichtsvollzieher hält reiche Ernte. Wir verlangen
öffentliche Kredite bis zu 15.000 Mark an das Kleingewerbe, sofortiges Verbot aller Pfändungen bei
Kleingewerbetreibenden. – Der schweren Stunde wohlvorbereitet entgegenzugehen ist Wunsch und Pflicht
jeder Frau. Alles Denken und Fühlen der werdenden Mutter kreist um das Ungeborene. Da ist die Auswahl
des richtigen Getränks für die werdende Mutter von besonderer Wichtigkeit. Das echte Engelhardt-
Karamelmalzbier besitzt wie kaum ein anderes Getränk die Eigenschaften des Wohlgeschmacks, der
Nährkraft, Bekömmlichkeit, erfrischenden Wirkung. – Versorge dein Kind und deine Familie durch
Abschluβ einer Lebensversicherung einer schweizerischen Lebensversicherung, Rentenanstalt Zürich. – Ihr
Herz lacht! Ihr Herz lacht vor Freude, wenn Sie ein mit den berühmten Höffner-Möbeln ausgestattetes
Heim besitzen. Alles, was Sie sich an angenehmer Wohnlichkeit erträumten, wird von einer ungeahnten
Wirklichkeit übertroffen. Wie auch die Jahre entschwinden, wohlgefällig bleibt dieser Anblick, und ihre
Haltbarkeit und praktische Verwendbarkeit erfreuen immer von neuem. –” (BA, pp. 131-132). Até o
momento presente, ao citar trechos das traduções do Berlin Alexanderplatz, optamos por não interferir nas
escolhas de seus tradutores pois, geralmente, o sentido do texto original está preservado e não é dos
objetivos de nosso trabalho fazer comentários sobre as traduções. Em todo caso, na versão em língua
portuguesa do trecho acima, facilmente se nota a diferença de data que marca o discurso de Scheidemann.
76
77
compreensão de sua vida, uma vez que situam suas atividades no conjunto de
experiências que podem ser vivenciadas na Berlim de seus dias. De qualquer modo, a
narrativa do romance de Döblin que agrupa em si grande variedade de discursos, não o
faz sem a ironia de um narrador que conhece os verdadeiros valores desta barafunda de
informações que ocupa o espaço urbano:
O que importa se dois remadores berlinenses se afogam no Danúbio, ou
Nungesser cai com seu Weissen Vogel na Irlanda? O que gritam na rua compramos por
dez fêniques e jogamos fora, abandonamos em qualquer parte. Queriam linchar o
primeiro-ministro húngaro porque ele atropelou um menino camponês com seu carro. Se
o tivessem linchado, a manchete diria “Linchamento do primeiro-ministro húngaro na
cidade de Kaposvar”, o que teria multiplicado a gritaria, os letrados teriam dito lanchar
em vez de linchar e teriam rido, os outros oitenta por cento teriam dito: bobagem, de
qualquer modo isso não me interessava ou a gente deveria fazer o mesmo por aqui (BA,
tb, p. 344)
100
.
De grande atualidade, as questões colocadas no Berlin Alexanderplatz estão
desenvolvidas de tal modo que confluem no romance os movimentos de Franz Biberkopf
e a movimentação da linguagem que os narra. Por isso também, Alfred Döblin não utiliza
exatamente a mesma língua alemã de Goethe, mas prefere em seu texto um forte efeito de
oralidade, aproximando sua escrita dos modos de falar berlinenses de sua época. A ilusão
de oralidade que se obtém com esse recurso sugere mais ainda o caráter de mobilidade
que encontramos no texto do romance, já que nele se antecipam a um discurso literário
vinculado às normas cultas da língua as liberdades lingüísticas que normalmente se dão
na fala. Da mesma forma, o texto de feição não menos móvel do Grande Sertão: Veredas
abusa igualmente dos efeitos de oralidade, sobretudo porque todo o romance é
100
“Was macht es aus, wenn zwei Berliner Paddler in der Donau ertrunken sind, oder Nungesser ist
abgestürzt mit seinem ‘Weissen Vogel’ bei Irland. Was schreien die auf der Straβe aus, für 10 Pfennig
kauft man es, schmeiβt es weg, läβt es wo liegen. Den ungarischen Ministerpräsidenten wollten sie
lynchen, weil er einen Bauernjungen mit seinen Auto überfahren hat. Wenn sie ihn galyncht hätten, hätte
die Überschrift gelautet: ‘Lynchung des ungarischen Ministerpräsidenten bei der Stadt Kaposvar’, das hätte
das Geschrei vermehrt, die Gebildeten hätten statt Lynchungen Lunching gelesen und darüber gelacht, die
andern 80 Prozent hätten gesagt: schade so wenig, oder wenn schon, geht mir nichts an, müβte man
eigentlich hier auch machen” (BA, p. 398).
77
78
apresentado como uma fala, a do protagonista Riobaldo
101
. Cheio de artifícios, o texto de
Guimarães Rosa é dotado de uma rica linguagem que já há muito tem sido objeto de
estudo daqueles cujo interesse maior está nos malabarismos formais do autor, como, por
exemplo, o livro de Mary L. Daniel, de 1968
102
. Aqui, contudo, restringimos nosso
interesse em observar que a linguagem serpentiforme do Grande Sertão: Veredas é mais
um dos aspectos que reforçam as movimentações de Riobaldo, como o faz a narrativa do
Berlin Alexanderplatz com Franz Biberkopf.
“Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma” (GSV, p. 22).
Arbitrária, a fala operante de Riobaldo não apenas ordena ao seu modo a narração de sua
história, como também pratica um contínuo deslocamento das normas que determinam o
“bom uso” sintático e lexical dos termos da língua portuguesa. Para contar a “matéria
vertente” (GSV, p. 96), a narrativa do romance de Guimarães Rosa investe na
transformação das palavras que utiliza, adaptando prefixos e sufixos aos termos como lhe
convém (“desfalar”, “desmim de mim-mesmo”, “compertencer”, “movimental”,
“andantemente”, “influimento”, “noivável”, “raivabundo” etc.), fazendo a junção de
outros dois termos para a obtenção de um terceiro (“prostitutriz”, “patatrás”, “tartamelar”
etc.), reduzindo vocábulos (“confa”, “supro” etc.), jogando com a sonoridade da língua
nos usos onomatopaicos (o “chochorro mateiro”, o “chirilil dos bichos”, o “chiim dos
grilos” etc.), além de atualizar arcaísmos do idioma na fala de Riobaldo.
Tal como a pedra que Riobaldo guarda consigo a fim de presentear Diadorim, que
de início é um topázio (GSV, p. 59), mas em seguida é transformada numa safira (p. 353),
sendo ainda depois uma ametista (p. 534), a fala de Riobaldo ganha movimento com as
variações que ela apresenta: “vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão” (GSV, p.
13). Desviando das certezas de um discurso seguro daquilo que afirma, dos trabalhos que
a fala caprichosa de Riobaldo efetua sobre a língua portuguesa, resulta como efeito uma
espécie de indeterminação que condiz com a sua noção de que a “vida é um vago
variado” (GSV, p. 471). Corroboram ainda essa indeterminação os recorrentes momentos
101
Um estudo detalhado da oralidade de Grande Sertão: Veredas pode ser encontrado no livro de Teresinha
Souto Ward. Cf. WARD, Teresinha Souto. O Discurso Oral em Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Duas
Cidades; INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.
102
Cf. DANIEL, Mary L. João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
78
79
em que Riobaldo lança mão de imagens de grande delicadeza poética, que bestam o
entendimento dos seus leitores com “coisas que não cabem em fazer idéia” (GSV, p. 201).
Por exemplo, frases como: “Vaqueiro pode laçar o lugar do ar?” (GSV, p. 472); “Então,
eu vi as côres do mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei” (GSV, p. 142);
“Já tenteou sofrido o ar que é saudade?” (GSV, p. 27) etc., imbuem de mistério o texto do
romance e assim, toda a movimentação que há na superfície da narrativa do Grande
Sertão: Veredas, similar ao vôo de um pássaro que Guimarães Rosa descreve como “vai
sôbre vem sob” (GSV, p. 29), faz também com que dela sejam projetadas
conseqüentemente significações profundas que a muitos estudiosos do autor interessam.
Nas palavras de João Adolfo Hansen há no enunciado do romance de Guimarães Rosa a
“efetuação de um fundo”
103
, ou seja, revela-se, para o leitor que assim queira, essências e
substâncias transcendentes com esse movimento que “vai sobre” o texto do Grande
Sertão: Veredas e que volta sob a forma de sutis efeitos metafísicos
104
.
Resta ainda notar, que na fala falsamente ingênua de Riobaldo encontra-se uma
grande variedade de saberes que pertencem ao autor do romance. Deste modo, assim
como o Berlin Alexanderplatz, o Grande Sertão: Veredas possui uma vasta variedade de
vozes, unificadas em seu caso nos movimentos da voz de Riobaldo. Estão presentes lado
a lado no romance de Guimarães Rosa o imaginário sertanejo, sua tradução urbana de
longa tradição em nosso país, a religiosidade católica ou kardecista, autores como
Plotino, além dos amplos conhecimentos lingüísticos do autor, atualizando
temporalidades diversas e dispondo conteúdos vários. Em meio a essa pluralidade,
configura-se uma narrativa arbitrária que tem a capacidade de adequar ao seu modo tudo
aquilo que lhe convém, experimentando a verossimilhança e a unidade que disso tudo
resulta.
Com discursos que não se diferenciam da variedade e da transitoriedade das
histórias narradas, mas que as produzem ao transformarem discursos distantes em
próximos, transitando constantemente entre uma coisa e outra, Grande Sertão: Veredas e
103
Cf. o texto de Hansen citado na nota 43, p. 71 e seguintes.
104
Entre os estudos que privilegiam tais interpretações, destacamos aqui os de Francis Utéza e de Heloísa
Vilhena de Araújo. Cf. UTÉZA, Francis. JGR: Metafísica do Grande Sertão. Trad. de José Carlos
Garbuglio. São Paulo: Edusp, 1994; ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. O Roteiro de Deus: Dois Estudos sobre
Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1996.
79
80
Berlin Alexanderplatz confundem significações e geram sentidos múltiplos. Como nota
Klaus Scherpe, quando Döblin recorre às tradicionais referências simbólicas da cidade
(prostituta, selva, matadouro), aos diálogos com o texto bíblico (Jó, Jeremias, Isaac), aos
eventos marcados com a presença de elementos naturais sugestivos (vento, floresta), e
também à estadia de Franz Biberkopf num sanatório como momento de transformação do
velho em “novo Franz”, garante-se para o conjunto que se constrói de modo não orgânico
possíveis unidades de sentido
105
. Assim, numa Berlim babilônica, a saída do presídio de
Tegel, por exemplo, pode ser lida num parentesco com a tradição ali presente, ou seja,
pode ser a expulsão de Franz Biberkopf do Éden; o “sacrifício” do protagonista
encontrará igualmente no texto os animais do episódio do matadouro; Franz Biberkopf
pode ainda assemelhar Jó ou competir com os heróis da mitologia grega; a figura sombria
de Reinhold pode ser associada às repetidas frases que anunciam o “ceifeiro” presente
etc. Todavia, textos que assim como o Berlin Alexanderplatz ordenam uma significativa
multiplicidade de elementos terminam por comprometer a eleição de uma unidade de
sentido única que se forje com associações mais ou menos evidentes.
É ainda de algum modo complicado apreender do Berlin Alexanderplatz
oposições nítidas. Como o texto de Döblin desmancha as identidades possíveis, ele talvez
não deva ser lido do mesmo modo que se lê um texto em que se pode opor um verdadeiro
a um falso, ou um mal a um bem, a exemplo da análise que faz Volker Klotz do Berlin
Alexanderplatz em seu significativo livro Die erzählte Stadt, orientada por uma
concepção da representação literária na qual a relação entre o discurso ficcional e a
realidade a ele correspondente considera positivamente a validade de oposições
previamente concebidas (como aquela entre campo e cidade, sertão e litoral), de um
simbolismo compartilhado e de um antropocentrismo, que opõe, por sua vez, indivíduo e
massa. Franz Biberkopf, para Klotz, está na condição de Fausto, ou seja, entre os opostos
Deus e Mephisto, como uma pessoa em teste, em luta com as condições de Berlim
106
. O
problema desse modo de ler o livro de Döblin é que Franz Biberkopf não chega a ser
destacado, como um flâneur baudelairiano, do coletivo que o carrega, e nem predomina
105
Cf. SCHERPE, Klaus R.. Von der erzählten Stadt zur Stadterzählungen. Der Groβstadtdiskurs in Alfred
Döblins “Berlin Alexanderplatz”. In: Diskurstheorien und Literaturwissenchaft. Jüngen Fohrmann e Harro
Müller (orgs.). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1988, p. 433.
106
Cf. KLOTZ, Volker. Die erzählte Stadt. Ein Sujet als Herausforderung des Romans von Lesage bis
Döblin. München: Carl Hanser, 1969, p. 409.
80
81
no livro, apesar de algumas referências míticas, uma fascinação ou um horror, como o de
alguns autores expressionistas, ao simbólico monstro urbano. Berlin Alexanderplatz mais
afirma, com as montagens de sua narrativa, a perda das relações sociais e morais
seguramente identificáveis; Berlin Alexanderplatz mais concilia a simultaneidade
conflitante sem abstenções.
Neste ponto de nosso trabalho, esperamos que a observação que fizemos
anteriormente, de que as próprias diferenças entre os romances de nosso interesse eram
fatores que os aproximavam, esteja mais bem esclarecida. De um modo ou de outro, o
que se afirma nos textos do Berlin Alexanderplatz e do Grande Sertão: Veredas, sob a
condição de uma linguagem em permanente trânsito, é uma indeterminação que envolve
as trajetórias de seus protagonistas de ponta a ponta. As suas narrativas, com grande
liberdade e êxito, operam as decisões que julgam estar de acordo com a disposição de
seus textos de compreender o espaço complexo de uma grande cidade e de um grande
sertão, e com isso, ao elegerem protagonistas como Riobaldo e Franz Biberkopf,
permeiam as suas experiências desta vaguidão que não fixa valores seguros e
conclusivos. “Eu estou contando assim, porque é meu jeito de contar”, diz Riobaldo ao
justificar suas escolhas (GSV, p. 95), como também, no livro quinto do Berlin
Alexanderplatz, o seu narrador, após discorrer sobre assuntos locais de Berlim, não volta
ao seu protagonista sem antes comentar o seu modo de narrar, afirmando assim:
Depois dessa informativa digressão sobre acontecimentos públicos e privados em
Berlim, junho de 1928, retornamos a Franz Biberkopf e seu tormento com as moças. É de
se supor que também para essas participações só se tenha encontrado um pequeno círculo
de interessados. Não discutiremos aqui as causas. Mas de minha parte isso não me
impedirá de seguir tranqüilamente os rastros do meu pequeno ser humano em Berlim,
centro e leste. Cada um faz o que julga necessário (BA, tb, p. 180)
107
.
107
“Wir kehren nach diesem lehrreichen Exkurs über öffentliche und private Ereignisse in Berlin, Juni
1928, wieder zu Franz Biberkopf, Reinhold und seiner Mädchenplage zurück. Es ist anzunehmen, daβ auch
für diese Mitteilungen nur ein kleiner Interessentenkreis vorhanden ist. Wir wollen die Ursachen davon
nicht erörtern. Aber das soll mich meinerseits nicht abhalten, ruhig den Spuren meines kleinen Menschen in
Berlin, Zentrum und Osten, zu folgen, es tut eben jeder, was er für nötig halt” (BA, p. 209).
81
82
Afinal, como diria Riobaldo, “pão ou pães, é questão de opiniães...” (GSV, p. 9).
82
83
Ventos de não deixar se formar orvalho
Nosso trabalho procurou, até o momento, relacionar os romances de Guimarães
Rosa e de Alfred Döblin com vistas a um melhor entendimento de suas particularidades e
contribuições para os problemas que envolvem a compreensão do romance moderno.
Para tanto, privilegiamos aspectos desses dois romances que os associam à tradição do
denominado Bildungsroman, como, por exemplo, a leitura que fizemos das trajetórias de
Riobaldo e Franz Biberkopf. Contudo, frisaremos que a terminologia Bildungsroman não
é aqui aplicada como categorização dos romances Grande Sertão: Veredas e Berlin
Alexanderplatz, ainda que a questão já exista. Não a aplicamos no sentido moralista,
como boa educação do leitor de romances, como o fazia Karl Morgenstern ao cunhar a
expressão, como também não a aplicamos num sentido de fazer associados os dois
romances de nosso estudo a uma modalidade que os compreenderia e explicasse os
sentidos
108
. Procuramos, antes, utilizar da discussão em torno do discurso do romance
para melhor compreender os casos de Guimarães Rosa e Döblin.
O Bildungsroman é aqui apresentado como uma modalidade romanesca que
contribui para a teorização do tipo de romance que se inaugura com Os Anos de
Aprendizagem de Wilhelm Meister, ou seja, um tipo simultaneamente louvado e criticado,
eficiente e deficiente, romântico e realista, moderno. Sempre muito ampla, a listagem que
se pode fazer de romances que participam da modalidade em questão permanece, na
maioria das vezes, vaga e discutível. Neste caso, entender a categoria Bildungsroman não
significa limitar um grupo de textos passíveis de tal título, mas investigar e compreender
os problemas que ela suscita para a prosa de ficção, sobretudo em seu período moderno.
Assim, tocar em problemas tais quais os da representação épica e sua intenção de
“totalidade”, do desenvolvimento de um protagonista e sua unidade de sentido, da
linguagem particular de um autor e da idéia de um texto orgânico, como também acercar-
se dos significados dos romances em jogo nos seus leitores, torna-se fundamental para
aquilo que pretendemos. Se encontramos alguma comunidade em textos como os do
108
Uma melhor elucidação dos problemas que existem no uso da terminologia Bildungsroman pode ser
encontrada nos seguintes textos: MAZZARI, Marcus Vinicius. O Bildungsroman na Literatura Brasileira:
Prolegômenos para um Estudo. In: Blickwechsel: Akten des XI. Lateinamerikanischen
Germanistenkongresses, São Paulo, Paraty, Petrópolis 2003. Band II. São Paulo: Edusp, Monferrer
Produções, 2005, pp. 85-92; e no texto de Wilma Patrícia Maas, citado na nota 17 de nosso trabalho.
83
84
romance de Goethe, A Educação Sentimental, de Flaubert, o Grande Sertão: Veredas e o
Berlin Alexanderplatz, não podemos simplesmente reduzi-los a uma modalidade que os
aceite sem por eles ser modificada; ou seja, melhor procedimento é ocupar-se das
particularidades de cada um dos romances mencionados, para então esboçar um plano em
que situaremos as qualidades diversas observadas em diálogo.
Há uma carência, é certo, em nosso trabalho: ele não dedica maior atenção a uma
análise dos romances de Goethe e Flaubert, embora os tome como paradigmas. O foco
deste trabalho é o discurso do romance moderno tal como ele se apresenta em Döblin e
Guimarães Rosa. Parte-se daí, portanto, para as relações seguintes que eles estabelecem
com a sua suposta tradição.
O livro de Döblin, como vimos, filia-se ao Bildungsroman pelas mãos de Walter
Benjamin, inicialmente
109
. Em nosso meio, Davi Arrigucci Jr., orientado por Benjamin,
aproxima o Berlin Alexanderplatz do romance de Guimarães Rosa
110
. Com isso, temos
que a polêmica segue, por exemplo, quando um outro crítico, José Antonio Pasta Jr.,
afirma que a lógica de base do Grande Sertão: Veredas configura “uma contradição
insolúvel”, que não propõe “síntese” ou “superação”, mas conhece o movimento contínuo
da “formação como supressão”, que o afastaria
[...] a grande distância, do Wilhelm Meister, cujo modelo, sob muitos aspectos
sociais, inverte. Inverter é ainda aproximar-se, mas, submetido ao ritmo da má infinidade,
que por definição não conhece superação ou síntese, o romance de Rosa acaba por
contrariar essencialmente o romance de formação clássico, que tem por eixo axiológico a
renúncia à totalidade, o recorte nítido das identidades sexuais, a especialização produtiva,
a crítica das aparências...
111
Ao seguirmos o debate, com o mesmo interesse pelas movimentações do Grande
Sertão: Veredas, discutimos em nosso trabalho conceitos, como o de “totalidade” na
representação do romance, por exemplo, que não distanciam totalmente Döblin e
109
Cf. o já citado Krisis des Romans, de 1930.
110
Cf. o texto de Arrigucci já citado na nota 5 de nosso trabalho.
111
Cf. PASTA JÚNIOR, José Antonio. O Romance de Rosa. Temas do Grande Sertão e do Brasil. In:
Novos Estudos CEBRAP. N.º 55, novembro de 1999, p. 69.
84
85
Guimarães Rosa da tradição do Bildungsroman, mas os aproximam dela, considerando
que a impossibilidade de fechar uma “totalidade” plena é qualidade inerente ao discurso
épico da modernidade, o romance. Mencionamos, em relação aos temas da “superação” e
“síntese” e, por conseguinte, em relação ao problema da “totalidade” que se apreende
com a observação da trajetória de uma personagem protagonista, que desde o Wilhelm
Meisters Lehrjahre o encerramento de uma unidade satisfatória que se apresente como
“síntese” traz consigo inevitavelmente problemas de várias ordens. Por exemplo, os
sucessivos cortes que a realidade representada num romance faz na esfera dos anseios
mais ingênuos de jovens protagonistas apaixonados como são Meister e Moreau levam à
concepção de uma experiência cuja totalidade é uma resultante construída com elementos
de desilusão e resignação, logo, elementos supressivos.
Observemos, a seguir, um trecho do romance de Goethe em que Wilhelm parte
do seu ambiente de origem para dar início às suas aventuras:
Percorreu lentamente vales e montanhas com um sentimento de grande prazer.
Rochedos sobressalientes, ribeiros murmurejantes, escarpas cobertas de verdura, vales
profundos, via-os ele aqui pela primeira vez; e, no entanto, os seus primeiros sonhos
juvenis já haviam pairado por regiões assim. Diante daquela vista, sentia-se
rejuvenescido; a sua alma estava lavada de todas as dores padecidas e foi com plena
serenidade que ele recitou para si passagens de diversos poemas, em especial do Pastor
Fido, que naqueles lugares solitários acudiam em massa à sua memória. Também se
lembrava de várias passagens das suas próprias canções, que recitou com particular
satisfação. Animou o mundo que se encontrava diante de si com todas as figuras do
passado, e cada passo em direção ao futuro lhe parecia cheio do pressentimento de acções
importantes e de acontecimentos notáveis
112
.
Ou então o breve trecho de A Educação Sentimental, em que, ao ouvir a conversa
de Pellerin sobre temas da arte, Moreau observa simultaneamente a sua amada senhora
Arnoux, enquanto “as palavras caíam-lhe no espírito como metais numa fornalha,
112
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister. Tradução de Paulo
Osório de Castro. Prefácio, notas e tradução das canções por João Barrento. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1998, pp. 120-121.
85
86
juntavam-se à sua paixão e transformavam-se em amor”
113
. Nos dois fragmentos, o
mundo exterior encontra no olhar dos protagonistas uma luz que o ilumina e embeleza,
pleno de sentido e fulgor. Não podemos deixar de notar que daí, para as adaptações que
os condicionam menos fantasiosos ao final dos dois romances, configura-se uma espécie
de “supressão” nos anseios dos protagonistas, eles próprios ajustados a uma realidade
menos “grandiosa”, que é o que podemos entender da conversa-balanço que têm Moreau
e seu amigo Deslauriers nas últimas páginas do livro de Flaubert ou da formação
profissional específica que assume o Meister no Wilhelm Meisters Wanderjahre, que
contraria de algum modo seus desejos juvenis por uma “formação universal”. Isso, por
certo, retoma também o problema da disposição para a vida que alimentam os
protagonistas desses romances, que não encontra uma correspondência simples nos casos
dos romances de Guimarães Rosa e Döblin, embora os personagens centrais destes
também nutram esperanças. Riobaldo narra ele mesmo sua trajetória, como
rememoração, num procedimento que contamina aquilo que seriam suas “disposições
iniciais” com um misto de lembranças e considerações do presente da narração. Por sua
vez, Biberkopf em matéria de anseios não deseja mais que a “decência”, ser um “homem
decente”, e não o Walter Scott da França, como Moreau, ou muito menos um próximo de
Shakespeare, como Meister.
Ao atentarmos às trajetórias de Riobaldo e Biberkopf, constatamos também que as
“supressões” nos desenvolvimentos de suas histórias colocam em jogo problemas mais
radicais quanto à integração de suas vidas e idéias à realidade de seus entornos. Chega-se
a intitular, como o fez Marcus Vinicius Mazzari, a trajetória de Biberkopf como uma
“formação pela deformação”, tendo em vista que em seu trajeto, o protagonista de Berlin
Alexanderplatz perde, inclusive, um de seus braços
114
.
O problema central, nos parece, e que distingue as experiências de Riobaldo e de
Biberkopf como casos mais tensos que os de Moreau e Meister, é que o mundo
circundante em transformação do qual aqueles participam é composto de uma incessante
113
FLAUBERT, Gustave. A Educação Sentimental. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo:
Círculo do Livro S. A., s/d, p. 63. Em ambos os casos, isto é, nas citações de Goethe e de Flaubert, não
deve ser ignorado a ironia do narrador.
114
Cf. MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de Formação em Perspectiva Histórica – O Tambor de Lata
de Günter Grass. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999, p.87. Neste momento de seu livro, Mazzari aproxima o
Berlin Alexanderplatz também do romance de Grass.
86
87
movimentação que o define e dá o tom narrativo de seus romances. A despeito disso, não
podemos excluir dos romances de Goethe e Flaubert elementos transitórios em alguns de
seus constituintes. Por exemplo, a vida de Wilhelm Meister, como membro de uma
companhia de teatro, é a de um nômade, bem como Frédéric Moreau não se fixa
profissional e sentimentalmente (pelo menos até o momento de sua resignação, ou seja, o
final do livro). Mas a movimentação nesses dois romances difere em muito da que
encontramos em Grande Sertão: Veredas e Berlin Alexanderplatz, pela intensificação dos
problemas reflexivos e da linguagem que compõem a realidade de Riobaldo e também
pelo transtorno alarmante que gira em torno de Biberkopf como texto “da” metrópole.
Em decorrência disso, em nosso trabalho não apenas observamos as mobilidades de
Riobaldo e Biberkopf enquanto personagens que muito se deslocam no espaço e
emocionalmente, mas também procuramos salientar a linguagem dos dois romances
como operantes do transitório. Portanto, por um lado, não podemos afastar esses
romances de Goethe e de Flaubert de um mesmo campo de investigação que inclui os
livros de Rosa e Döblin, assim como não devemos considerá-los essencialmente opostos
aos exemplares mais modernos, embora possamos reconhecer as distinções entre eles
quando alinhados em uma única tradição.
Riobaldo sem Diadorim e transtornado pelo passado, Biberkopf sem Mieze e um
braço, como personagens que traçam um percurso no espaço narrativo de seus livros, dão
a entender que no processo de suas trajetórias as dificuldades são muitas e efetuam
transformações significativas. Como resultante de seus trajetos, podemos constatar o
estado de suas condições últimas, ou seja, um Riobaldo proprietário de terras, casado,
religioso e aposentado de suas antigas atividades de jagunço; e um Franz Karl Biberkopf,
sujeito outro, empregado como auxiliar de porteiro de uma empresa de médio porte e
cidadão ajustado livre da criminalidade. Porém, como as condições últimas dessas
personagens não constituem o núcleo de seus romances propriamente
115
, demos maior
115
Não podemos esquecer, como ao longo de nosso trabalho fizemos, que a narrativa do Grande Sertão:
Veredas se faz como rememoração de seu protagonista, portanto a perspectiva é a de um jagunço
aposentado em suas atuais condições. Mas, neste momento, apenas frisamos que é a lembrança do passado
no presente da fala de Riobaldo que se encarrega de compor o livro.
87
88
atenção em nosso trabalho às movimentações de suas vidas, às andanças que parecem
configurar as narrativas dos dois textos e jogar com seus significados:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu
atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia
dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a
nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso
do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (GSV, p.35).
No trecho acima, por exemplo, o pensamento aparentemente imediatista de
Riobaldo, além de, em grande medida, aproximá-lo neste aspecto de Franz Biberkopf,
toca na questão de seu trânsito como fundamento de sua experiência. Se aceitarmos essa
condição, será preferível examinar a movimentação de Riobaldo e sua fala a procurar
pela síntese de sua trajetória, já que uma coisa, necessariamente, e no caso deste livro,
compromete a outra. Quer dizer, o Riobaldo que menino admirou o bando de jagunços,
aprendeu com Diadorim a amar, reconhecer e enfrentar seus medos; o Riobaldo que em
momentos foge e em outros enfrenta, discursa, assume, e pactua, é um Riobaldo em
conformidade com o movimento de sua incessante fala, que, tal como o vento que varre o
orvalho das folhas, nega a formação de substâncias que sintetizem o processo pelo qual
ele se transforma. O movimento está em tudo no romance de Rosa, ele é o seu sentido.
Do mesmo modo, a linguagem do romance de Döblin que se quer análoga ao movimento
de uma grande cidade é um trânsito constante de seus elementos urbanos. Franz
Biberkopf, como parte de Berlim, é um ser cuja trajetória móvel substitui a condensação
de uma unidade resultante estática; o sentido de seu percurso é sua mobilidade.
Quando, no início de nosso trabalho, imaginamos próximos o Grande Sertão:
Veredas e o Berlin Alexanderplatz, esboçamos alguns dos problemas que a reunião
levantaria. Procuramos solucionar a questão de um modo em que a distância, dentro do
universo romanesco, entre os ambientes urbano e sertanejo parece-nos reduzida. Quem
sabe com isso, aliviamos algo das inquietações sofridas por Riobaldo, que, diante das
incertezas de suas observações sobre a mobilidade da vida sertaneja, recorre à imagem de
88
89
uma grande cidade que o socorreria, e que poderia ser, talvez, a Berlim por onde tanto se
moveu o seu não menos inquieto companheiro Franz Biberkopf:
Mas o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê; é que
nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos... Rodeando por terras tão
longes; mas eu tinha raiva surda das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva –
porque eu não era delas, produzido... E naveguei salaz (GSV, p. 487).
Sertanejos ou citadinos, em Riobaldo e Biberkopf os giros são os mesmos,
fundamentos em verbo e vento, encontram-se no espaço dos volteios dos romances de
seus passos.
89
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