Embora vise a relativizar o papel do patriarca de Ferney como intelectual
86
, o
autor de Le plaisir du texte desvenda-nos uma das facetas mais brilhantes da tática
voltairiana : a versatilidade que facilitou a grande penetração de seus escritos. Os “petits
rogatons, pâtés portatifs, fusées volantes”
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citados por Barthes, são, na luta pela
reabilitação de Jean Calas, as Pièces originales , a “Histoire d´Élisabeth Canning et des
Calas” , a bela carta circular de 1º de março de 1765 destinada à publicação e as
inúmeras missivas aos amigos e possíveis simpatizantes da causa que abraçara. Nesses
textos, ora o pathos, as referências bíblicas e os exemplos históricos, ora o gosto pelo
jogo, pelos disfarces e pelas meias-palavras atraem o leitor ao debate por meio de um
estilo leve, agradável e fluido, sem, obviamente, abrir mão da densidade.
É possível divisar uma mudança de perspectiva em relação ao autor que, em
1759, concluía um conto com a frase: “Il faut cultiver notre jardin”. Em Candide, nota-
se certo conformismo. Seria inútil a ação para tornar nosso “globule” um pouco melhor,
tal o absurdo dos acontecimentos que nos rodeiam. As palavras do discípulo de
Pangloss sugerem que o trabalho e a vida apartada do mundo nos auxiliariam a evitar o
sofrimento
88
. Esse desencanto do filósofo parece, aos poucos, ceder espaço a uma
atitude mais positiva. Não se trata de mudança radical na forma de enxergar o mundo, o
pessimismo continua presente em seus escritos. Constata-se, porém, uma alteração
sensível em sua conduta.
Em carta já citada
89
, de junho de 1763, o filósofo comenta seu desempenho
como ator nas tragédias para entretenimento dos genebrinos. Seu papel mais importante,
porém, e para o qual se sentia chamado, era o de autor. A propósito, a idéia de seguir
um “destino”
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ganha vigor ao longo dos anos em que se dedicou ao affaire Calas.
Chabot finissait le sien.” Poucos dias depois, o nobre ordena que seus lacaios batam no adversário.
Sully, o anfitrião de Voltaire na ocasião, recusa-se a acompanhar o amigo para dar queixa à polícia, pois
sabia que não resultaria em nada devido ao nome que Rohan –Chabot ostentava. Cf. Voltaire dans son
temps. (sous la direction de René POMEAU) Paris/ Oxford: Fayard/Voltaire Foundation, pp. 158-9.
IIème. tome.
86
O termo “intelectual” passou a ser empregado para designar os escritores engajados a partir do affaire
Dreyfus no final do século XIX. Embora seja um anacronismo, o termo é usado freqüentemente nos
estudos sobre Voltaire e outros filósofos do século XVIII.
87
BARTHES, op.cit., p. 94.
88
Cf. MAUZI, Robert. L´idée du bonheur dans la littérature et la pensée françaises au XVIII
e
siècle.
Paris: Armand Colin, 1969, pp.64-71.
89
v. [D11283] no capítulo “Uma estética do afago”, p. 37.
90
Em seu instigante ensaio “Voltaire”, Roger Bastide discorre sobre a importância do teatro na vida e na
obra de Voltaire. Explica-nos também que para os estóicos, a vida comparava-se ao teatro: “Deus nos deu
um papel a desempenhar , nossa tarefa consiste em desempenhá-lo bem; não devemos invejar a sina dos
outros nem tentar modificar o nosso destino, mas sim obedecer honestamente às regras do jogo. Nisso
consiste a moral. Voltaire não era estóico. Ao contrário, foi durante toda a vida aquilo que aprendera a
ser com seus amigos do “Templo”, um epicurista. Mudou portanto a ética teatral dos estóicos, mas
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