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GERALDA DE FÁTIMA LOPES PASCHOAL
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA À LUZ DO
PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
PUCPR
CURITIBA
2006
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GERALDA DE FÁTIMA LOPES PASCHOAL
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA À LUZ DO
PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Educação no Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Peri Mesquida
CURITIBA
2006
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Agradeço:
aos meus pais, Manuel e Lurdes e aos meus
irmãos pela alegria e pelo afeto;
ao Edmilson, meu marido, agradeço de uma
forma especial pelo companheirismo desde o
ensino fundamental e o incentivo ao longo de
toda minha trajetória acadêmica. A você, o
meu muito obrigado pelo que me ajudou e
continua ajudando;
às minhas filhas, Tânia e Aline, que
entenderam minha ausência nos momentos em
que tanto precisavam de minha atenção;
ao Professor Dr. Peri Mesquida pela,
orientação paciente durante o período de
realização do mestrado;
aos demais professores do mestrado, que de
diversas maneiras contribuíram para o
desenvolvimento desta pesquisa;
aos meus colegas professores, pelo incentivo e
carinho.
“É dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado”.
Michel Foucault
RESUMO
Este trabalho desenvolve um estudo conceitual e interpretativo acerca do pensamento de
Michel Foucault e sua presença na educação escolar, apresentando os três momentos de
sua trajetória: Arqueologia, Genealogia e Ética, com o objetivo de destacar o tipo de
relação saber/poder, suporte teórico deste estudo. A partir desse referencial teórico, é feita
uma análise interpretativa de algumas ementas de Programas de Aprendizagem dos cursos
Formação de Professores e de Pedagogia de uma instituição de ensino superior privada,
bem como do Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógica que orienta o curso.
O trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, tem-se um estudo das principais
obras que marcaram a trajetória das pesquisas de Michel Foucault. No segundo, uma
abordagem da questão da sociedade disciplinar e o estudo interpretativo das três formas de
organização do poder, tendo em vista os mecanismos de vigilância e controle, em especial
na sua articulação com a educação escolar e as práticas educacionais. No terceiro, uma
análise do programa dos cursos de Formação de Professores e de Pedagogia, procurando
identificar o conceito de “disciplina”, com a intenção de observar a presença de Foucault
no programa dos cursos em questão.
Palavras-chave: educação, formação de professores, disciplina, vigilância, controle,
saber, poder.
ABSTRACT
This work presents a conceptual and interpretative study regarding the Michael
Foucault’s thought and his presence in scholar education, presenting three moments in
his trajectory: Archeology, genealogy and ethics with the goal of highlighting the kind of
relation knowledge/power that will be a theoretical support for this study. By means of
this theoretical reference we have achieved an interpretative analyses of some learning
programs for teachers and pedagogy courses in private institutions as well as the
institutional project and didactic pedagogical organization that drives the course. The
work is organized in three chapters. In the first one, we have pointed out the main works
of Michael Foucault, taking into account those with great importance in his research
pathway. In the second part, we have broached the disciplinary society issue, through an
interpretative study of the three ways of the power organization focusing the surveillance
mechanism and control, mainly in its articulation with scholar education and the
educational practices. In the third chapter we have analyzed the formation program
courses for teachers and pedagogy courses, trying to identify the concept for “discipline”
with intention of observing his presence in the programs of these courses.
Key-words: education, teachers education, discipline, control, vigilance, power, know.
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 1
1. APRESENTAÇÃO GERAL DOS TRÊS MOMENTOS DO
PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT..................................................... 6
1.1 Características gerais do eixo arqueológico ................................................. 7
1.2 As obras do período arqueológico................................................................. 10
1.2.1 História da loucura ..................................................................................... 11
1.2.2 O nascimento da clínica............................................................................... 15
1.2.3 As palavras e as coisas................................................................................. 18
1.2.4 Arqueologia do saber................................................................................... 22
1.3 Últimas considerações sobre a arqueologia................................................... 25
1.4 Características gerais da genealogia.............................................................. 27
1.5 As obras do período genealógico................................................................... 31
1.5.1 Vigiar e punir................................................................................................ 32
1.5.2 História da sexualidade: a vontade de saber.............................................. 35
1.6 Últimas considerações sobre a genealogia..................................................... 37
1.7 Características gerais do eixo denominado ético........................................ 38
1.8 As obras do período ético................................................................................ 39
1.8.1 História da sexualidade: o uso dos prazeres.............................................. 40
1.8.2 História da sexualidade: o cuidado de si.................................................... 42
1.9 Últimas considerações sobre o momento ético.............................................. 43
2. OS MECANISMOS DISCIPLINARES E SUA PRESENÇA
NA EDUCAÇÃO................................................................................................... 44
2.1 As formas de punição...................................................................................... 44
2.1.1 O suplício....................................................................................................... 44
2.1.2 A teoria dos reformadores................................................................................ 48
2.1.3 A prisão......................................................................................................... 50
2.2 A sociedade disciplinar.................................................................................... 52
2.3 O panótico........................................................................................................ 57
2.4 Um bio-poder................................................................................................... 59
2.5 As técnicas disciplinares e as instituições de ensino..................................... 61
2.6 Os mecanismos que permitem o funcionamento da disciplina................... 65
2.7 O espaço da visibilidade (modelo panótico) nas instituições
educacionais........................................................................................................... 67
2.8 O papel da avaliação para o funcionamento do poder disciplinar.............. 69
3. O PODER DISCIPLINAR E OS CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
UM ESTUDO DE CASO............................................................................. 77
3.1 As técnicas disciplinares e o Curso de Formação de Professores............... 77
3.1.1A arte das distribuições................................................................................ 78
3.1.2 O controle da atividade............................................................................... 79
3.1.3 A organizão das gêneses................................................................................ 83
3.1.4 A composão das forças................................................................................... 84
3.2 Os recursos para o bom adestramento e o curso de Pedagogia e de
Formação de Professores .......................................................................................... 85
3.2.1 A vigilância hierárquica.................................................................................... 86
3.2.2 A sanção normalizadora.............................................................................. 87
3.2.3 O exame......................................................................................................... 88
3.3 Últimas considerações sobre a pesquisa documental................................... 94
CONSIDERAÇOES FINAIS............................................................................... 101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 104
INTRODUÇÃO
Ao lado de pensadores como Martin Heidegger, Antonio Gramsci, Jürgen
Habermas e Jean Paul Sartre, Michel Foucault (1926-1984) foi um dos principais
pensadores do culo XX. No campo da filosofia, sua recepção foi significativa em todo
o mundo. No Brasil, são vários os comentadores que fazem a recepção do pensamento de
Foucault, dentre os quais pode-se citar Roberto Machado, no Rio de Janeiro, Salma
Tannus Muchail, em São Paulo, e Inês Lacerda Araújo, em Curitiba. Esses
comentadores, além de apresentarem ao grande público o pensamento de Foucault,
estabelecem linhas de leitura do filósofo, que destacam um aspecto ou outro de sua
filosofia. Por exemplo, é visível a diferença entre a leitura de Salma Tannus Muchail, que
se ocupa preferencialmente do Foucault da genealogia, das relações entre saber e poder
que o filósofo desenvolve a partir da cada de 1970, e a leitura desenvolvida por Inês
Lacerda de Araújo, que Foucault a partir, preferencialmente, de As Palavras e as
Coisas e outros textos da década de 1960, privilegiando a análise do filósofo sobre
formações discursivas e o estabelecimento do estatuto das ciências humanas.
No caso da Educação, não poderia ser diferente: o pensamento de Foucault vem
ocupando um lugar significativo, tanto como “referencial teórico” de algumas
dissertações de mestrado, quanto em livros e artigos de intelectuais, da área, interessados
em novas perspectivas para suas análises. Como referencial teórico, Foucault, vem
ampliando os horizontes do pensamento educacional brasileiro, que foi marcado, após o
período tecnicista, por uma forte influência de Marx e Engels, que foram tomados como
pontos de partida para uma interpretação que atribuía ao intelectual não mais um papel
de interpretar o mundo, mas de transformá-lo, recorrendo para isso a uma leitura dialética
da realidade e procurando identificar seus próprios trabalhos, como um movimento
engajado em transformações.
2
Nesse contexto, no Brasil, em especial no campo da educação e das ciências
sociais, a presença de um autor que não se alinhava com as análises marxistas não
parecia muito bem vista. Inicialmente tido como estruturalista, depois de não apresentar
saídas para os problemas que apontava, parecia que Foucault não teria lugar no campo
das discussões sobre a educação.
Porém, nos últimos anos, alguns estudiosos da área da educação, como Veiga Neto,
Adriana de Oliveira Lima, Capriano Luckesi, entre outros, têm apresentado análises de
problemas educacionais a partir da filosofia de Foucault, bem como aspectos do próprio
pensamento de Foucault que contribuem, de modo significativo, para o pensamento
educacional brasileiro.
Os livros dos autores em questão, da área de educação, não apenas se associam às
diferentes leituras do filósofo que se tem na sua recepção no Brasil pela Filosofia, como
também caracterizam uma recepção peculiar do pensamento de Foucault no campo da
Educação, destacando aspectos como a noção de “sociedade disciplinar”, bem como a
leitura da educação como um dispositivo que se encontra nas escolas, mas também nas
fábricas, nos hospitais, nos quartéis e nas prisões, enfim, nas instituições que, segundo
Foucault, se ocupam do “seqüestro” (FOUCAULT, 1978, p. 96) dos indivíduos com a
promessa de “melhorá-los”, tornando-os dóceis e produtivos.
Nesse sentido, toda a seriação que se tem na escola, assim como as normas, o
controle do tempo e das atividades, o exame e, acima de tudo, a sua atuação a partir do
princípio da visibilidade Panoptismo (FOUCAULT, 1987, p. 173), passam a ser
entendidos a partir de uma correspondência com um propósito que se estabelece em
relação a um sujeito que não se apresenta mais como senhor do conhecimento e da
natureza, mas produzido por meio de sempre novas subjetivações (sujeições).
3
Trata-se, portanto, de uma análise que considera o sujeito como produto de jogos de
poder que se articulam com instituições como a educacional – além de mostrar que um
sujeito, uma vez entendido como um produto, uma invenção, pode sempre ser
reinventado. Vem daí o aspecto revolucionário de Foucault, que ensina ao homem que
ele tem mais liberdade do que imagina, uma vez que pode ser, como um artista, inventor
de si mesmo.
Acredita-se ser de fundamental importância para a formação docente que o
professor tenha consciência do tipo de educação com a qual está envolvido, podendo
avaliar a própria prática em sala de aula como parte de um projeto de formação de
indivíduos e articulada com certas formas de exercício de poder. A título de ilustração do
que pode ser este tipo de avaliação da ão docente, pretende-se fazer um estudo
interpretativo e crítico do programa do curso de Pedagogia em instituições privadas, a
partir de conceitos foucaultianos, com destaque para aqueles ligados à noção geral de
“disciplina”.
Assumindo o ponto de vista de Foucault, de que os homens, em seus discursos,
falam de práticas e relações de poder, serão analisados alguns enunciados presentes no
Projeto Institucional e na Organização Didático-Pedagógica do curso supra citado para o
período de 2000 a 2005. Pretende-se verificar se os mecanismos de controle estão
expressos nos discursos daquele projeto no período proposto, levando em conta,
especialmente, algumas ementas das disciplinas em estudo e o sistema de avaliação
proposto no programa do documento em questão.
A análise do material tem como referência a discussão da relação saber/poder, que
se concretiza em práticas disciplinares. Nesse sentido, as obras Arqueologia do Saber, As
Palavras e as Coisas, Vigiar e Punir, bem como a coletânea de textos intitulada
Microfísica do Poder, de Michel Foucault, assumem um papel central na realização deste
4
trabalho, na medida em que permitem a compreensão de enunciados, como aqueles que
se tem em um projeto pedagógico, como parte de um discurso, que possui modalidades
particulares de existência e cujo aparecimento e manutenção se relacionam com formas
de exercício de poder.
Estabelecendo um recorte nesta proposta de estudo, embora não se deixa de tomar
as ementas como material primário de trabalho, a análise irá ocupar-se de forma especial
do quesito “avaliação”, que tem como objetivo aprovar ou reprovar o aluno de uma
determinada série, a partir de conteúdos pré-estabelecidos, como um mecanismo que
permite uma triagem que define a permanência ou o desligamento do aluno de uma
determinada etapa do processo ensino-aprendizagem ou sua ascensão para outras etapas.
O sistema de avaliação é, ao certo, o que permite retomar de forma mais clara alguns
conceitos trabalhados por Foucault, principalmente o conceito de poder, como um
exercício, que se torna possível por meio da disciplina, que controla e normaliza os
indivíduos.
Ao abordar esse aspecto, uma das obras de Foucault passa a se destacar em relação
às demais: trata-se de Vigiar e Punir, no qual o autor analisa os mecanismos de punição e
de vigilância, enfim, do poder disciplinar. Essa obra é o principal referencial para a
análise da dinâmica disciplinar na prática educacional. Em relação ao exame, tem-se nela
a explicitação de que, na educação, é esse mecanismo que permite o estabelecimento da
verdade sobre os indivíduos, um saber indispensável para o exercício do poder
disciplinar.
Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Apresentação
geral dos três momentos do pensamento de Michel Foucault, é feita uma abordagem
geral da trajetória do pensamento de Foucault, considerando a divisão que o toma em três
períodos: Arqueologia, Genealogia e Ético. No segundo capítulo, Os mecanismos
5
disciplinares e sua presença na Educação, é trabalhado o conceito de sociedade
disciplinar, tendo em vista os mecanismos de vigilância e controle, em especial na sua
articulação com a educação e as práticas educacionais. No terceiro capítulo, Análise
interpretativa do Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso
de Pedagogia de uma instituição particular, é feito um resgate do conceito de
disciplina com a intenção de observar sua presença no programa do curso em questão e
no sistema de avaliação sugerido.
6
2. APRESENTAÇÃO GERAL DOS TRÊS MOMENTOS DO
PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT
Os escritos de Michel Foucault apresentam uma unidade determinada pelo fato
de serem pesquisas realizadas acerca dos saberes sobre o homem, bem como sua
constituição e possibilidades. Porém, quanto aos procedimentos, conceitos e objetivos,
esses escritos formam uma trajetória marcada por modificações, que são reconhecidas
e divididas por vários comentadores em três eixos que apresentam as seguintes
denominações: eixo arqueológico, eixo genealógico e eixo, ético. A intenção que se
tem neste capítulo é fazer uma apresentação de forma descritiva de tais períodos,
realizando um levantamento das principais características das obras que formam os
três momentos do pensamento de Michel Foucault (MUCHAIL, 2001, p.7-8).
Segundo Dreyfus e Rabinov, o próprio filósofo afirma, em entrevistas dadas, a
divisão de seu pensamento em três momentos, quando diz: “procurei criar uma
história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos
tornaram-se sujeitos(DREYFUS & RABINOV, 1995, p. 231), reforçando mais uma
vez a classificação feita por estudiosos que o tomam como referencial teórico para
suas pesquisas, conforme os eixos citados acima.
Para desenvolver esta apresentação, pretende-se fazer, num primeiro momento,
uma exposição das principais características do conjunto de obras que formam o
denominado eixo “arqueológico”, que se constituiu especialmente na década de 1960.
Em seguida, pretende-se, da mesma forma, apontar as características do pensamento
de Foucault, que correspondem, na década de 1970, ao eixo genealógico. Por fim, far-
se-á uma abordagem do terceiro momento, denominado eixo ético, que tem lugar no
final da década de 70 até o ano de 1984, quando se dá morte do filósofo.
7
1.1 Características gerais do eixo arqueológico
Em suas pesquisas, Michel Foucault reivindica para sua “arqueologia” um lugar
no movimento de transformação dos procedimentos metodológicos da história,
conhecida como história nova. Segundo ele, com a história nova, o problema das
descrições historiográficas deixa de ser o encadeamento de fatos e o estabelecimento
de relações de causalidade entre todos os acontecimentos de uma determinada época e
passa a ser o projeto de uma história geral. (FOUCAULT, 1987, p.3-20).
Para o filósofo, cabe aos novos historiadores o empenho em estabelecer uma
série de acordos com a especificidade e o nível dos acontecimentos. No entanto, a
descontinuidade dos saberes, segundo o filósofo, assumiu um papel fundamental nessa
nova metodologia e deve ser trabalhada e analisada pelos historiadores, de vez que
ela- a nova metodologia- fez surgir o projeto de uma história geral no lugar da prática
tradicional, que buscava descrever o processo de evolução linear do ser humano,
fundado na hipótese de que todos os acontecimentos históricos fizeram parte de uma
mesma série e que existe um centro em torno do qual todos os fatos encontram um
razão de ser.
Para Foucault, o projeto de uma história geral surge a partir da desconfiança
frente às totalizações da história, como as que descrevem a consciência de uma época,
a sua visão de mundo ou, ainda, o espírito de um povo. Segundo ele, a história nova
procurava organizar e descrever conjuntos de acontecimentos, que poderiam ser
entendidos como constituídos por meio das relações que efetivamente ocorrem entre
os elementos desses conjuntos. Por isso, o surgimento da história nova corresponderia
a um deslocamento para fora dos domínios da historiografia tradicional e da reflexão
clássica sobre a filosofia da história. Não se trata, nesse caso, de saber quais são os
fins últimos da história que regulam as sucessões dos fatos humanos, pois o que
8
interessa é a possibilidade de descrevê-los em sua positividade e efetividade naqueles
conjuntos específicos.
No domínio da história das idéias e das ciências, as novas descrições dos
discursos resultaram num desvelamento de formações discursivas, que nem sempre
obedeciam à mesma cronologia utilizada para demarcar os acontecimentos políticos,
econômicos e sociais; da mesma forma, nem sempre mostravam, por exemplo, o
nascimento de uma ciência a partir de outra. As novas descrições historiográficas
passaram a tomar como pressuposto, em oposição à linearidade da história tradicional,
uma série de descontinuidades, que podem ser definidas como cortes epistemológicos
ou, ainda, como uma leitura das estruturas arquitetônicas das formas de discursos.
Sobre esse ponto de vista, essas análises não se reportaram mais a um sujeito
absoluto que governa, de fora, a evolução de uma idéia, o progresso de uma ciência, o
refinamento de um conceito ou ainda a evolução de uma mentalidade. Não se tratava
mais de se procurar uma norma que, externa aos discursos, regularia suas
proliferações. A atenção se voltava, então, para a descrição interna da estrutura dos
discursos e das mutações que elas sofreram em momentos precisos da história da
humanidade. Nesse caso, as análises deixavam de lado o interesse pelas “escolas”,
“movimentos”, e “autores”, abandonando noções como “séculos” e “influências”.
Passaram a procurar uma forma de fixar precisamente as modificações pelas quais os
conceitos de uma ciência foram reutilizados por outras ciências mais novas e, ainda,
em saber como uma teoria deu lugar a outra, considerando em especial as mudanças
ocorridas no sistema dos discursos.
Embora não discordando da idéia de que os fatos discursivos são correlatos ao
contexto social, político e econômico de uma época, em sua forma de fazer história,
Foucault não concede que se uma relação em que os saberes sejam simples
9
reflexos de sistemas econômicos. Para ele, a explicação das relações entre os agentes
sociais não possui uma determinação causal dada, por exemplo, por fatores
econômicos apenas, que acabariam constituindo grandes continuidades e fariam
aparecer um processo de determinações causais numa história totalizante.
É no espaço daquela história contínua e global que se refugiava, segundo
Foucault, a figura do sujeito, a qual, desde o final do século XVIII, funciona no saber
ocidental como seu fundamento. As pesquisas “arqueológicas”, realizadas por
Foucault, colocam em questão tal fundamento.
Para Foucault, o conjunto que essas pesquisas organizam foi formado a partir
das questões do método, colocadas pela história epistemológica (história nova).
Porém, dada a especificidade de sua temática (o nascimento das ciências humanas), a
arqueológica se voltou para uma análise das ciências, sem, contudo, deter-se no vel
anterior da epistemologia, entendida como uma explicação interna da ciência.
Tal especificidade, que se refina a cada livro de Foucault, desenvolve-se a partir
da análise arqueológica, fazendo com que a arqueologia mesmo se modifique e se
retifique a cada momento. Pode-se dizer que isso se deva às exigências específicas
adotadas para a realização de cada pesquisa, mas também à especificidade da própria
análise, pois o que se vê desde a publicação de A história da loucura na idade
clássica, em 1961, até A arqueologia do saber, em 1969, são livros que abrem e
fecham o período arqueológico, são deslocamentos temáticos e uma constante
mudança de objetivos e do sistema argumentativo.
Em linhas gerais, os acontecimentos que foram descritos nas pesquisas
(arqueológicas) ocorreram em sua maioria entre os séculos XVI e XX e foram
escolhidos por Michel Foucault para uma reflexão sobre o homem enquanto sujeito e
10
objeto do conhecimento. É uma reflexão que se na busca de condições históricas e
de possibilidade de saberes sobre o homem.
1.2 As obras do período arqueológico.
O conjunto das obras, que representam o eixo arqueológico das pesquisas de
Foucault, é composto por: História da loucura na idade clássica, de 1961, O
nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico, de 1963, As palavras e as
coisas, uma arqueologia das ciências humanas, de 1966, e A Arqueologia do saber,
de 1969.
Nesse conjunto de obras, Foucault faz um estudo aborda a questão da formação
do saber discursivo e das relações estabelecidas entre eles, sendo que, nas obras da
década de 1960, observa-se que o discurso é entendido como uma enunciação restrita
ao âmbito da linguagem verbal, ao mesmo tempo em que o estudo proposto não se
limita ao seu conteúdo e à sua forma. Diferentemente, interessa ao filósofo entender
os processos de transformação ocorridos nos discursos que, por exemplo, deixaram de
ser tomados como representação do mundo e das idéias, para serem percebidos como
práticas produzidas e, ao mesmo tempo, produtoras de materialidades. Passando por
essa transformação, o discurso deixa de ser simplesmente uma expressão verbal no
sentido formal e passa a ser a própria prática dessa instância da linguagem que é a
prática discursiva.
É importante não confundir a prática discursiva com os modos pelos quais as
idéias são apresentadas, nem com o raciocínio que por, inferência, cria sucessões de
palavras, e muito menos como resultante da sabedoria de um sujeito que tem
capacidade de formar ou construir frases gramaticais. Ao contrário, na arqueologia do
saber, o discurso é entendido como um agrupamento de regras que foram definidas,
11
historicamente, inscritas em tempos e espaços, e que criam as condições de
possibilidades de exercício das funções enunciativas, em cada época, para áreas,
como: a social, a econômica, a geográfica ou a lingüística. Em sua trajetória histórica,
o processo discursivo é percebido por um movimento de finitude que se numa rede
microfísica, que permite seu surgimento como uma prática social na qual se inserem
as relações de poder. A materialidade, que é produzida na constituição de um
discurso, explica que ele não apenas fala da luta e da repressão, mas ele próprio é
parte de tal constituição, edificando-a e alimentando-a ao mesmo tempo em que se
constitui nela.
1.2.1 História da loucura
A História da loucura na idade clássica foi sem dúvida o primeiro livro que
marcou a trajetória das pesquisas arqueológicas de Foucault. Nessa obra, o filósofo
apresenta a análise de um discurso científico, o da psiquiatria, seguindo o propósito de
deixar de lado a história das ciências propriamente ditas, bem como o saber sobre a
loucura produzido pela própria psiquiatria.
As análises que Foucault realiza nessa obra não compreendem um período
posterior ao início do século XIX. Porém, não pode ser considerado um livro que faz
apenas uma abordagem sobre o nascimento da psiquiatria, ou que investiga apenas o
discurso teórico sobre a doença mental. Dessa forma, não se poderia afirmar que suas
análises se limitariam à fronteira espacial (geográfica) e temporal (Época Clássica,
Europa) da prática psiquiátrica ou da psiquiatria como ciência. Mais do que isso, ele
vai buscar relações entre o saber psiquiátrico e outras formas de saber, buscando
localizá-lo em uma episteme que tem sua origem dada a partir de certas
circunstâncias.
12
O objetivo do autor é estabelecer relações entre os saberes para que, dessas
relações, surjam compatibilidades e incompatibilidades que possam estabelecer
regularidades, de modo a permitir individualizar uma determinada formação
discursiva. A análise arqueológica apresentada na obra referida está centrada num
período, que tem início na segunda metade do século XVI e se encerra no final do
século XVIII, denominado por Foucault como Época Clássica. Seu alvo principal é a
prática do enclausuramento do louco, bem como a relação da loucura com a medicina.
Segundo Foucault, na Idade Clássica a loucura se encontra em meio ao grupo da
desrazão, que é apartado da sociedade para o grande enclausuramento juntamente com
a pobreza, a homossexualidade, entre outras formas tidas como estranhas ao convívio
social. “O classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média [o fez
com] a segregação dos leprosos” (FOUCAULT, 1989, p.53). Nessa época, tem-se, por
exemplo, a passagem de uma visão religiosa da pobreza: “De um lado, haverá a
religião do bem, que é o da pobreza submissa e conforme a ordem que lhe é proposta”
(FOUCAULT, 1989, p.61). Para uma outra, que atribui a ela uma negatividade, uma
desordem moral é um obstáculo à ordem, social condenando-a e exigindo sua
reclusão. “Do outro, a religião do mal, isto é, da pobreza insubmissa, que procura
escapar a essa ordem”. Dessa forma, “a primeira aceita o internamento e encontra
seu descanso. A segunda se recusa a tanto, e por isso o merece” (FOUCAULT, 1989,
p.61).
Segundo Machado, (1982,p,64), “o grande enclausuramento assinala, assim, o
nascimento de uma ética de trabalho”, pois o mesmo é moralmente concebido como o
grande antídoto contra a pobreza: “(...) o trabalho não parece ligado a problemas que
ele mesmo suscitaria; é percebido, pelo contrário, como solução geral, panacéia
infalível, remédio para todas as formas de miséria” (FOUCAULT, 1989, p.71), mas
13
também contra tudo o que poderia ser entendido como desatino e não racional.
“Trabalho e pobreza situam-se numa oposição simples; suas amplitudes estão na razão
inversa uma da outra” (FOUCAULT, 1989, p.71). O que Foucault pretende esclarecer
na obra, em questão é que a internação do louco, na Época Clássica, não segue
critérios científicos expressos pela medicina; diferentemente, sua internação obedece a
uma ordem ética na medida em que a desrazão remete à idéia do não razoável. “A
partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida [pela] condenação
ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho”
(FOUCAULT, 1989, p.73). O principal objetivo de Foucault, nesse sentido, é mostrar
a impossibilidade de associação que se tem nesse período entre o conhecimento da
loucura e o saber médico.
Em sua História da loucura Foucault demonstra que a psiquiatria é uma ciência
recente, que tem seu nascimento na ruptura entre a medicina clássica, que desconhece
a loucura como doença, e a medicina moderna, que se dirige ao louco a partir da
categoria de doença mental, deixando claro que não se pode mais falar em doença
mental antes do final do século XVIII, momento em que se deu o início da
patologização do louco. Mais do que uma história da psiquiatria, Foucault procura
mostrar que ela é resultado de um processo histórico mais amplo, que de modo algum
diz respeito à descoberta de uma natureza específica de uma essência da loucura.
(MACHADO, 1982, p.79-80).
Para Roberto Machado (1982, p. 58), um aspecto fundamental daquela obra é o
reconhecimento da insuficiência de uma leitura da ordem da história interna da clínica
psiquiátrica, para dar conta da questão das condições de possibilidade de seu
nascimento. Para ele, na História da loucura não se tem propriamente uma história da
14
ciência no sentido epistemológico, mas uma análise das rupturas e o estabelecimento
de certas mudanças na ordem do saber (Ibidem).
Ainda segundo (1982, p. 86), na História da loucura a arqueologia tem um
sentido preciso e restrito de investigação das condições de possibilidade mais
profundas do que as dadas ao nível da própria ciência. Para Machado (Ibidem), não há
propriamente, em História da loucura, uma arqueologia do saber. O que se formula
naquele livro de 1961 é uma arqueologia da percepção, que não exclui o saber, mas
toma-o não por sua garantia de verdade ou de cientificidade, mas enquanto uma
formação discursiva sobre a loucura que é bem mais ampla do que o saber oficial e
que inclui, inclusive, as formações extra-discursivas e o que elas dizem sobre o louco
e a loucura.
Por formação extra-discursivas, Foucault entende as instituições, no caso o
Hospital Geral, com sua forma arquitetônica, as disposições das pessoas, as formas de
isolamento, tudo isso “diz como o louco é percebido e não apenas as formações
propriamente discursivas, entre as quais considera, por exemplo, os registros de
internamento e outros relatórios, que nem sempre seriam considerados como um saber
científico.
Em sua História da loucura, Foucault não se limita a fazer uma história
normativa definida pelo presente de uma ciência, isto é, pela maneira como a ciência
se apresenta naquele momento, como se fosse o resultado de uma evolução que
levasse a ela, mas a toma como produto de certos jogos em que certas formações não
evoluem para ela, mas têm que desaparecer para dar lugar ao valor conferido hoje, por
exemplo, ao saber médico.
Para a epistemologia o progresso em geral se apresenta como uma característica
da ciência. É um processo finalizado em direção à verdade e de uma verdade cada vez
15
mais aperfeiçoada e depurada dos erros iniciais. Diferentemente, as análises de
Foucault não se ocupam tanto em apresentar uma contribuição para a história da
ciência psiquiátrica, compreendida como um progresso. Ele identifica as diferenças
entre as várias instâncias sociais que terminavam por recolher o louco no Hospital
Geral, na Idade Clássica, de um discurso próprio ao saber médico, que se constitui a
partir do século XIX e que tem um lugar privilegiado no Asilo e no Hospital
Psiquiátrico. “O século XIX aceitará e mesmo exigirá que se atribuam exclusivamente
aos loucos esses lugares nos quais cento e cinqüenta anos antes se pretendeu alojar os
miseráveis, vagabundos e desempregados” (FOUCAULT, 1989, p.73).
Por fim, com esse livro tem lugar uma nova maneira de se pensar a psiquiatria,
tanto como ciência como parte de um processo de subjugamento do louco que se
revela na teoria e na prática.
1.2.2 O nascimento da clínica
Na obra O nascimento da cíinica, Foucault retoma o problema da diferença
entre a medicina moderna e a medicina clássica apontada em História da loucura, por
meio de uma arqueologia da percepção (MACHADO, 1982, p.85). Segundo ele, não
se deve opor simplesmente a medicina ao seu passado, mas investigar uma ruptura
muito mais ampla da própria positividade do saber com seus objetos, conceitos e
métodos. Por exemplo, enquanto a medicina clássica se como parte da história
natural, a medicina moderna encontra seus princípios na Biologia.
Algumas peculiaridades caracterizam esse novo livro. A primeira, mais
evidente,é a mudança de objeto. Enquanto na História da loucura se ocupava da
loucura e da doença mental, O nascimento da clínica passa a analisar a doença em
termos mais amplos (e não mais a psiquiatria) o que tem início no século XIX
16
(MACHADO, 1982, p.85). a segunda a diferença é que, em O nascimento da clínica,
sua preocupação está centrada na observação, ou seja, numa arqueologia do olhar que
extrapola a anteriormente denominada arqueologia da percepção, embora não a
abandone. Não se trata apenas de fazer uma análise que apresente a ruptura operada
pela medicina moderna, que era um recorte de um novo domínio e a demarcação de
um espaço da representação para um espaço objetivo, isto é, a passagem de um espaço
de configuração da doença tida como nosográfica, classificatória, para um espaço de
localização da doença no espaço do corpo individual, identificada a partir de sintomas,
como foi trabalhado na obra anterior. O que se percebe em O nascimento da clínica é
a transformação no modo de existência do discurso médico, o qual não utiliza a
mesma linguagem que se tem antes da ruptura da medicina moderna. O que Foucault
compara no livro de 1963 entre a medicina clássica e a moderna é a forma como os
casos são observados. Para a medicina classificatória, quanto mais geral fosse a
essência, mais simples ela seria. Para a clínica, ao contrário, a simplicidade está ao
nível dos elementos e a complexidade dos casos individuais é dada pela combinação
desses elementos” (MACHADO, 1982, p. 105). Assim, a clínica, diferentemente da
medicina nosográfica, se caracteriza pela prática do estudo de casos, do exame
simples de indivíduos. O que se tem, nesse sentido, é o desaparecimento da medicina
ocupada com o ser da doença e o surgimento de outra medicina, preocupada com o
corpo doente.
Metodologicamente, segundo Roberto Machado (1982, p. 106), O nascimento da
clínica, está situado em dois níveis considerados necessariamente conjugáveis: a
percepção e a linguagem, sendo que, quando Foucault fala em “linguagem”, pretende
deixar claro que não se trata de conteúdos temáticos, mas sim da “estrutura falada do
percebido”. Segundo ele, O nascimento da clínica é inteiramente construído para
17
refutar a tese histórica tradicional de que a medicina se tornou científica ao se
transformar em um conhecimento empírico (MACHADO, 1982, p.115). Foucault não
nega em momento algum que a medicina moderna seja empírica, porém, faz uma
crítica à dicotomia estabelecida pelos historiadores entre a teoria e a experiência. Para
ele, é a arqueologia e não a epistemologia que permite observar a ruptura entre a
medicina clássica e a moderna.
A arqueologia, nesse contexto, pretende dar conta da produção de um tipo de
conhecimento que não pode ser estudado pela epistemologia, pois não se trata do
estudo de um discurso científico. O projeto de análise arqueológica contempla a
ruptura que inaugurou a medicina moderna e a exposição do caráter original deste
novo conhecimento: o saber médico moderno estruturado na clínica. Para isso vai
correlacionar o olhar e a linguagem, usando expressões como: “percepção médica”,
“experiência médica” e “olhar médico”, para definir o conhecimento (MACHADO,
1982, p.117).
A linguagem médica moderna pode ser compreendida, segundo a arqueologia,
como uma botânica dos sintomas, um complemento indispensável para a percepção do
olhar que, segundo Foucault, não se trata do “olhar de qualquer observador, mas o de
um médico apoiado e justificado por uma instituição, o de um médico que tem poder
de decisão e intervenção (...). Finalmente, é um olhar que não se contenta em constatar
o que evidentemente se dá a ver; deve permitir delinear as possibilidades e os riscos; é
calculador” (FOUCAULT, 1994, p. 101).
A doença se deixa transparecer nos sintomas, no corpo doente. E os sintomas,
tomados nesse sentido, não remetem a algo específico, mas são signos a serem
decifrados pelo observador atento que é o médico. O mesmo que se tem “no tocante às
18
relações entre esta linguagem, de ação que é o sintoma, e a estrutura explicitamente
lingüística do signo” (FOUCAULT, 1994, p. 105).
Não se trata, portanto, de um estudo que considera exclusivamente a linguagem
médica. O filósofo trata também de uma análise da linguagem da gramática dos
signos, do corpo do doente, do que ele fala. enquanto na Época Clássica a linguagem
era a representação do pensamento, algo que, como um símbolo, remete a uma
entidade anteriormente dada, a doença, que antes era classificada pela nosografia. A
própria linguagem possuía um papel de catalogação, em conformidade com as regras
da representação.
Talvez essa seja a principal diferença entre a arqueologia que se tem na História
da loucura e aquela do O nascimento da clínica. Nessa última não se tem um estudo
predominantemente histórico-descritivo, mas conceitual. Ao longo de suas ginas,
percebe-se uma modificação no projeto arqueológico que foi apresentado em A
história da loucura como uma análise da percepção e do conhecimento. Trata-se de
níveis heterogêneos e com pouca comunicação. Observa-se que em A história da
loucura, a percepção assinalava a relação com o louco no espaço institucional; em
O nascimento da clínica, o que se vê é a pretensão de dar conta do conhecimento em
dois aspectos: o olhar e a linguagem. , o corpo como signo; aqui, o olhar como
percepção.
Por fim, em O nascimento da clínica, não aparece uma definição para a noção
do saber como uma categoria metodológica, nem uma percepção institucional, como
na de 1961, o que vai ocorrer mais tarde, em As palavras e as coisas. Na obra de
1963, o que define a arqueologia é o olhar médico. Trata-se de uma arqueologia do
olhar.
19
1.2.3 As palavras e as coisas
A obra As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas
(publicada em 1966)- parece ser a radicalização do projeto arqueológico de Foucault.
Nela, o filósofo defende a tese de que pode haver as ciências humanas a partir do
momento em que aparecem as ciências empíricas, como a Biologia, a Economia e a
Filologia Moderna.
Para explicar o nascimento das ciências humanas na modernidade
1
, em As
palavras e as coisas Foucault toma como crivo da análise arqueológica o regime de
erudição, o comentário e a gramática geral e procura analisar essas três considerações
históricas no Renascimento, no século XVI, na Idade Clássica, nos séculos XVII e
XVIII, e na Modernidade, século XIX até este momento. “(...) As ciências humanas
não receberam por herança um certo domínio delineado, dimensionado talvez em
seu conjunto, mas não-desbravando, e que elas teriam por tarefa elaborar com
conceitos enfim científicos e métodos positivos” (FOUCAULT, 1990, p.361).
A análise realizada naquela obra foi a dos acontecimentos discursivos no nível
em que eles se tornaram possíveis. Aqui, o olhar do arqueólogo não se voltou para as
relações entre os fatos sociais econômicos, políticos e os do de saber. O objetivo foi
mostrar que, antes da Modernidade, a figura epistemológica do homem ainda não
havia surgido no saber ocidental.
O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão:
nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que
fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou
das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como homem, pois o
homem não existia (FOUCAULT, 1990, p. 361-362).
1
É importante ter presente que, para Foucault, o termo modernidade compreende o final do século XVIII,
o século XIX e o XX. O período anterior, que vai da segunda metade do século XVII até o final do século
XVIII, ele chama de Idade Clássica.
20
Em As palavras e as coisas, constatou-se que as relações entre o pensamento e a
cultura se modificaram e que, com essas modificações, alteraram-se também os
sistemas de signos por meio dos quais emergiram diferentes formas de conhecimento.
A arqueologia do saber mostrou que a história da filologia não é herdeira do regime da
erudição e do comentário que se teve no Renascimento, e nem é um aperfeiçoamento
da gramática geral que teve lugar na Idade Clássica. Para essas três formas de saber,
não é o mesmo objeto que se apresenta.
Segundo Foucault,
o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” ou três regiões epistemológicas,
todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas uma com as outras; essas
regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral, como a biologia, a
economia, a filologia (FOUCAULT, 1990, p.372).
Em cada uma delas, a linguagem aparece como um estatuto distinto e funciona
de acordo com regras singulares, coisas e formas de seu conhecimento próprio.
Segundo Roberto Machado (1982, p. 123-125), o propósito da arqueologia em
As palavras e as coisas, é descrever os sistemas formados pelos modos de
relacionamento entre os elementos do saber e da cultura. A descrição desses sistemas
se dá ao nível das relações interdiscursivas, pois é nesse nível que se pode visualizar a
característica particular de cada sistema e as modificações pelas quais uns dão lugar
aos outros. Naquela obra, Foucault descreve a ruptura que separou o saber do
Renascimento do saber da Idade Clássica e o que fez nascer a Modernidade.
Os critérios da análise arqueológica na obra referida acima não foram os graus
de racionalidade e de cientificidade atingidos pelas atuais ciências da linguagem, mas
as regras internas dos discursos, aquelas pelas quais se definiram os lugares ocupados
pelo sujeito de conhecimento, o tipo de objetivo que foi tomado como configurações
21
empíricas ou transcendentais pelos discursos, as positividades correlativas aos
domínios estudados e as relações que se estabelecem entre essas positividades. Se
estudadas em seu conjunto, essas regras dão lugar ao que Foucault denominou
epistémè, que nada mais é do que o saber positivo de uma época.
A radicalidade das análises arqueológicas dos discursos consiste em identificar
as regras pelas quais determinadas formas de subjetividades aparecem na história e
não outras. Do mesmo modo, estudar as empiricidades do conhecimento, em seu nível
arqueológico, consiste em procurar as regras que tornaram possíveis os aparecimentos
de certos objetos de conhecimento e não de outros. Essas regras são as mesmas que
regulam o nascimento e o funcionamento das ciências da vida e das riquezas nos
períodos descritos em As palavras e as coisas, a forma como gramática a Geral, a
História Natural e a Análise das Riquezas, na Idade Clássica, a Filologia, a Biologia e
a Economia Política, na Idade Moderna, constituíram-se como ciências. Também no
seu livro de 1966, Foucault não privilegiou o discurso formalmente investido como
estatuto de ciência para analisar o que efetivamente foi dito, na história da cultura
ocidental, a respeito da linguagem da vida e dos objetos de desejos; ele utilizou
também, entre outros, os discursos literário e filosófico.
Dessa forma, descobriu configurações que não foram institucionalizadas como
ciências, mas que funcionaram como princípios que regularam a formação de
conceitos, domínios, modos de percepção e de articulação do conhecimento e que
abriram espaços para a formação das ciências possíveis em cada época estudada. No
entanto, mesmo aqui, a arqueologia não se fundamenta numa teoria do conhecimento,
pois não tem como função principal explicar as causas das transformações que
incidiram sobre o conhecimento, no geral. Seu propósito fundamental é descrever,
passo a passo, os acontecimentos que marcaram as alterações das positividades
22
epistemológicas. Esse procedimento, que opera na descrição do nascimento das
ciências humanas, não constitui uma regra universal para a explicação de todo e
qualquer acontecimento discursivo.
Dessa forma, as mudanças que alteram o espaço geral do saber no fim do século
XVIII e no início do século XIX, foram descritas pela “arqueologia” em sua
positividade, ou seja, essas descrições não foram orientadas por uma teoria, mas pela
especificidade dos objetos descritos.
Para Foucault, a descrição do funcionamento da Gramática Geral e do
nascimento da Filologia Moderna não mostra a pura e simples evolução da linguagem.
Ela apresenta uma forma de articulação do saber, que vem se modificando por meio
da descrição arqueológica do nascimento da Filologia Moderna. Segundo ele,
nessas condições era necessário que o conhecimento do homem nem surgisse, com seu corpo
científico, como contemporâneo e do mesmo veio a Biologia, a Economia e a Filologia, de tal
sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados na
história da cultura européia pela racionalidade empírica (FOUCAULT, 1990, p. 372).
Com uma análise das modificações ocorridas na linguagem, pode-se
compreender a relevância dos recortes que a arqueologia do saber operou no campo da
história das idéias. Com ela é possível dar conta dos acontecimentos discursivos, ao
nível de sua própria constituição, reportando-se ao momento de sua enunciação.
O propósito de Foucault em As palavras e as coisas foi descrever a constituição
das ciências humanas a partir de uma inter-relação de saberes ou uma rede conceitual
que lhes crie o espaço de existência, deixando de lado as relações e as estruturas
econômicas. Seu principal objetivo foi aprofundar e generalizar as inter-relações
conceituais, capazes de situar os saberes constituídos das ciências do homem sem
23
pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais: a questão da
articulação do saber com os saberes extra-discursivos.
1.2.4 Arqueologia do saber
Em 1969, é publicado o livro Arqueologia do saber, obra que encerrou a fase de
pesquisas arqueológicas de Michel Foucault sobre a história da psiquiatria clínica, da
medicina, das ciências da vida, da linguagem e das riquezas, na cultura ocidental.
Nessa última obra, Foucault busca uma tentativa de sistematizar o método
arqueológico que havia sido utilizado nos trabalhos anteriores, procurando apresentar
as possíveis conseqüências que a metodologia nova pode trazer à Filosofia e à
História.
Seu projeto, naquela obra, é fazer uma reflexão sobre as idéias que foram
apresentadas nas pesquisas realizadas anteriormente, e resolver as dificuldades
encontradas no desenvolvimento de suas pesquisas. Nesse sentido, a obra Arqueologia
do saber passa a ser um projeto desenvolvido com o intuito de propor uma revisão,
um aprofundamento e uma retificação dos resultados adquiridos nas pesquisas
anteriores. Sua intenção é fazer uma análise reflexiva sobre as pesquisas já realizadas
e sistematizar o que foi praticado, buscando uma nova definição para a história
arqueológica.
Do ponto de vista da arqueologia, no entanto, a novidade dessa obra não está na
explicitação do critério do método utilizado, mas na forma como os discursos são
tematizados.
A análise do discurso, nessa obra, não se prende às regras tradicionais de
distribuição dos discursos em ciências, poesias, romances e filosofia. Para Foucault,
os discursos, quando interrogados pela arqueologia, se mostram em níveis mais
24
baixos, sendo passíveis de uma neutralidade somente enquanto discurso. Em
Arqueologia do saber, falar sobre o discurso é falar de relações discursivas ou, ainda,
de regularidades discursivas e de articulações entre discursos. A arqueologia,
deixando em segundo plano a questão da cientificidade, acaba interrogando as
condições de existência de discursos. Nesse sentido, Foucault deixa claro que sua
tarefa foi uma tentativa de libertar a história do pensamento de sua sujeição à
transcendência. Essa questão fica mais clara quando afirma:
Meu objetivo era analisar a história na descontinuidade que nenhuma teologia haveria de reduzir
de antemão, (...) permitir que ela fosse desdobrada numa anonimidade sobre a qual nenhuma
constituição transcendental imporia a forma do sujeito; abri-la para uma temporalidade que não
prometesse o retorno de qualquer aurora. Meu objetivo era depurá-la de todo narcisismo
transcendental (FOUCAULT, 1987, p. 200).
Nessa obra, Foucault caracteriza o discurso como sendo um agrupamento de
regras historicamente definidas e inscritas em tempos e espaços específicos, nos quais
se têm as condições de possibilidades para o exercício das funções enunciativas que
são analisadas em cada época, para áreas como a social, econômica, geográfica ou
lingüística. Na História, o acontecimento discursivo é percebido como um movimento
de finitude que se numa “rede microfísica”, permitindo seu surgimento, nas
instituições, como prática social. Essa materialidade, que não é produzida por um
sujeito constituinte, explica que o discurso não fala simplesmente da luta e da
repressão, mas que é o próprio poder, desempenhando-se poder que edifica saber e é
por ele realimentado, ou seja, é um poder que se exerce.
Um enunciado é sempre um acontecimento que nem a ngua nem o sentido podem esgotar
inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado,
de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para
25
si mesmo uma existência remanescente no campo da memória, ou na materialidade dos
manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo o
acontecimento, mas está aberto a repetições, à transformação, a reativação; finalmente, porque
está ligado não apenas a situações que o provocam e a conseqüências por ele ocasionadas, mas
ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o
precedem e o seguem (FOUCAULT, 1987, p. 32).
Foucault ainda mostra que um enunciado não é uma enunciação no sentido da
filosofia analítica, isto é, que não está fechado sobre si mesmo. Segundo ele, “é
necessário que um enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar, uma data”
(FOUCAULT, 1986, p 99).
Para o filósofo, a função enunciativa se exerce no interior de outras
formulações e sempre de maneira contextualizada. Porém, o enunciado não pode ser
confundido com a enunciação, pois, para ele, “há enunciação cada vez que um
conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem seu individual
espaço-temporal... a enunciação é um acontecimento que não se repete...”
(FOUCAULT, 1987, p.116).
Com isso, pode-se verificar que o discurso, em hipótese alguma, pode ser
simplesmente um recurso de linguagem, pois ao discurso é atribuído um papel mais
importante:
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, à medida que se apóiem na mesma
formação discursiva... O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que
teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e porque ele pôde
emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico –
fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria historia, que coloca os problemas de
seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua
temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo
(FOUCAULT, 1987, p. 135-136).
26
Nesse sentido, a linguagem não é vista como um simples meio para
representação do mundo ou para a transmissão de pensamentos ou, ainda, para
enunciar algo. Cabe a ela fazer muito mais que isso, pois é marcada pelo tempo e pelo
espaço, constituindo o que Foucault chama de “prática discursiva”, que reforça a idéia
de que o discurso precisa ser apreendido pelo que ele é e não pelo que possa
representar. Deixa de ser um simples meio para se chegar a uma realidade ou para
representar a materialidade e torna-se criador de realidades, com o poder de
transformar e recriar o mundo constantemente. Dessa forma, ele pode ser entendido
como uma materialidade e, sob esse aspecto, o discurso é o próprio poder.
1.3 Últimas considerações sobre a arqueologia
Para Foucault, a análise arqueológica se distingue da análise epistemológica das
ciências humanas, pois para a arqueologia a análise dos saberes não consiste apenas
em descrever os processos de superação dos obstáculos epistemológicos, muito menos
em julgar a história de uma ciência sob a perspectiva do seu momento atual. Seu papel
é apresentar as regras que dão coerência aos discursos de um determinado período
histórico.
A norma que orienta a abordagem arqueológica é a possibilidade de por meio da
descrição de uma dispersão de fatos discursivos, mesmo que não sejam ciências e não
apresentem afinidades entre seus domínios, encontrar as regras pelas quais, em certos
períodos da história, do pensamento, puderam aparecer determinados saberes. Essas
regras também explicariam porque certos objetos, tipos de subjetividades, teorias e
temas epistemológicos não puderam aparecer em outras configurações do saber.
Se a abordagem arqueológica, propositadamente, se afasta da Filosofia das
Ciências, tal como ela se configura com o positivismo de Augusto Comte, da teoria do
27
conhecimento, tal como foi formulada a partir de Kant, e da análise do sentido, tal
como a empreendem as análises do discurso no século XX, é porque a “arqueologia” é
uma tentativa de suprimir o papel fundamental que o sujeito, ou a consciência, têm
exercido na história das idéias e das ciências, em que tradicionalmente, o sujeito teria
assumido a soberania da produção do conhecimento e dos fatos históricos. Com isso, a
historiografia tradicional, que foi fundada tendo por pressuposto a noção de sujeitos
soberanos, faz uma seqüência linear de fatos organizados pelo tempo e classificados
como fases da evolução da consciência humana.
A Arqueologia do saber, que fecha as obras do período arqueológico, aponta a
homogeneidade dos instrumentos metodológicos, encontrados em cada período
histórico, como um fator que clarifica questões desenvolvidas nas obras anteriores, ao
mesmo tempo em que, ao apontar a esfera do poder, característica central do período
genealógico, sinaliza para os próximos trabalhos do filósofo que se passa a tratar na
seqüência.
1.4 Características gerais da genealogia
Na década de setenta, Michel Foucault tem como foco de seus estudos a
genealogia. Nessa fase, ele parte da seguinte questão: o porquê do surgimento do
saber. Nesse momento, sua preocupação volta-se para o esclarecimento do surgimento
dos saberes a partir de condições de possibilidades externas aos próprios saberes
imanentes e é na análise dos porquês dos saberes imanentes que Foucault pretende
explicar sua existência e as transformações que sofrem, situando-os como peças de
relações de poder ou dispositivos políticos.
Para Foucault, toda a teoria é provisória e acidental. Dessa forma, nem a
arqueologia e nem a genealogia têm como objetivo fundar uma teoria, mas, sim,
28
realizar análises fragmentárias e transformáveis. Ademais, deve-se ter presente que a
análise genealógica de Foucault produz um importante distanciamento em relação à
Ciência Política, que se limita ao âmbito do Estado na investigação sobre o poder. Em
suas pesquisas, Foucault descobre a diferença entre Estado, poder absoluto e poder,
deixando evidente a existência de formas de exercícios de poder que são diferentes
do poder do Estado. É nesse contexto que surge a distinção entre a macro e a micro
formas de poder, tendo-se, por um lado, as grandes transformações do sistema estatal,
por exemplo, as mudanças de regime e, por outro, um poder capilar, que se situa ao
nível do próprio corpo social e que penetra no cotidiano e é caracterizado como
micro-poder.
Portanto, a microfísica do poder significa mais do que um deslocamento do
espaço, mas um deslocamento do vel em que o poder se efetua. O aparelho de
Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra
localizado unicamente nele, mas que o ultrapassa e o complementa. Dessa forma, nem
o controle e nem a destruição do aparelho do Estado transformariam, em suas
características fundamentais, a rede de poderes que impera na sociedade.
Metodologicamente, Michel Foucault procura dar conta do nível molecular do
exercício de poder, sem partir do centro para a periferia, isto é, sem partir do macro-
poder que se poderia apontar no Estado, para as micro-relações de poder. Ele reluta
em relação à idéia de que o Estado seria um órgão central e único de poder. Partindo
da questão colocada, o fato de que existem técnicas de poder relacionados com a
produção de determinados saberes, seria mais produtivo analisar como os micros-
poderes, que têm uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar,
se articulam com o poder mais geral, constituído pelo aparelho de Estado.
29
Porém, se é certo que Foucault propõe uma análise ascendente do poder, é certo
também que, para ele, os “poderes” não estão localizados em nenhum ponto
específico da estrutura social, mas funcionam como uma rede de dispositivos ou como
um mecanismo de que ninguém escapa e que não existe limites. O poder não existe
como um ser, em si. O que existe são práticas de relação de poder nas quais esse se
exerce, se efetua e funciona. Ele está presente em tudo. O poder é luta, afrontamento,
relação de forças, situação, estratégia. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto
que alguém possua. O poder está nas relações e é algo que se exerce numa disputa e
não algo de que se poderia tomar posse.
Na genealogia, Foucault procura mostrar o poder não na sua concepção negativa,
como algo que diz não, que impõem limites, reprime ou castiga. Sua preocupação é
apresentar o poder como uma concepção positiva que extrai saberes e uma
produtividade. Para fazer uma reflexão positiva sobre o poder, Foucault tem como
modelo o corpo humano, que na modernidade não é tomado para ser supliciado ou
mutilado, mas para ser adestrado de tal forma a se aproveitar ao máximo suas
potencialidades e aperfeiçoar suas capacidades, ou seja, o poder permite formar
homens dóceis politicamente e produtivos economicamente.
As análises genealógicas de Foucault nem são gerais, e nem globalizantes. Trata-
se de apresentar um resultado de investigações limitadas com objetivos bem
demarcados. São análises que não podem ser aplicadas indistintamente sobre novos
objetos, nem podem assumir a pretensão de uma metodologia de valor universal. É,
antes, uma leitura do presente, entendido como parte de um jogo de forças, no qual o
filósofo busca um posicionamento. Elas surgiram explicitamente quando o autor
pesquisava sobre a penalidade, os castigos que se impunham aos condenados.
Voltando-se em especial para a modernidade, os estudos genealógicos de Foucault
30
focalizam as tecnologias de controle exercidas sobre os corpos enclausurados
(prisão), em relação aos quais detectou um tipo específico de poder o qual chamou de
“poder disciplinar”.
O poder disciplinar cria um tipo de homem que é extremamente necessário ao
funcionamento e à manutenção da sociedade industrial capitalista e, segundo
Foucault, pode ser caracterizada da seguinte maneira:
- é um tipo de organização de espaços de técnicos, de distribuição dos corpos em
espaços individualizados classificatórios e combinatórios, nos quais os indivíduos
ocupam espaços fechados, esquadrinhados e hierarquizados para desempenhar as
funções que lhes são exigidas. Esse princípio está presente, entre outros, nos hospitais,
nas fábricas, nas instituições de reclusão, nos orfanatos, nas escolas, etc;
- é um controle que se exerce sobre o corpo, uma sujeição do corpo para
produzir o máximo de rapidez com eficácia. Um exemplo característico desse aspecto
é observado nas fábricas, que são divididas em setores para facilitar a vigilância e o
controle de pessoal, visando a uma maior produção. Outro exemplo pode ser apontado
nas instituições de ensino superior, que são divididas em departamentos, cursos, com
toda uma burocracia e classificação, visando, hoje, igualmente, à produção;
- é um princípio de vigilância que se exerce como um instrumento de controle, e
que atua de forma contínua e permanente por um olhar invisível. Pode-se notar a
presença da vigilância em locais de grande aglomerado de pessoas e de forma
privilegiada nas instituições sociais como as fábricas, os quartéis, as prisões, as
escolas, etc;
- é uma prática contínua de registros de conhecimento sobre indivíduos,
permitindo uma articulação entre o exercício do poder e a produção de um saber sobre
31
aqueles em que se investe o poder, um saber que é um efeito do poder disciplinar e
que permite a sua manutenção.
Todos esses aspectos são inter-relacionados e se adaptam às necessidades
específicas das diversas instituições que realizam um objetivo similar do ponto de
vista político (tornar o homem útil e dócil). Segundo Foucault, essas técnicas são
vistas e compreendidas como positivas. As pessoas pedem por mais vigilância, por
mecanismos mais aprimorados de produção, por mais disciplina, etc.
Nas leituras realizadas até o momento acerca do pensamento de Foucault,
percebe-se que as ciências humanas, cuja constituição histórica é uma questão central
em sua investigação desde seus primeiros livros, abordadas sob a perspectiva de uma
arqueologia do saber, são retomadas no contexto da genealogia, que não se ocupa
tanto com o surgimento das ciências humanas, porém, mais propriamente, com as
ciências do homem, ou técnicas que se aplicam sobre os homens e, ao mesmo tempo,
um saber sobre o homem, que não é exatamente nobre, como se pretende um
conhecimento científico ou ideológico, mas um conhecimento surgido de registros que
permitem a formação tanto de sujeitos quanto dos domínios de saber.
Nesse universo, não se pode falar de um saber neutro, pois todo saber tem
pretensões políticas, de domínio e possui sua gênese em relações de poder. Para
Foucault, em seus estudos genealógicos, saber e poder se implicam mutuamente e
caminham sempre juntos. Dessa forma, todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo
tempo, um lugar de formação de saber, acúmulo e transmissão de saber. Em especial,
podemos apontar as instituições ligadas ao ensino e à aprendizagem.
1.5 As obras do período genealógico
32
O chamado período genealógico dos escritos de Foucault é composto por dois
livros: Vigiar e punir: nascimento da prisão, de 1975, e História da sexualidade: a
vontade de saber, de 1976. Nessas duas obras tem-se a análise histórica da questão
do poder que é compreendida, segundo Foucault, como um instrumento aplicado à
produção de saberes.
Nessas duas obras Foucault apresenta um estudo da formação do poder
disciplinar enquanto forma de exercício de poder. Nelas observa-se a relação entre
formações discursivas e o exercício do poder, além de se observar, novamente,
Foucault ocupando-se do que se poderia chamar de extra-discursivo: as instituições
sociais, como se teve na História da loucura. Aqui, as disposições espaciais e de
tempo dizem tanto quanto os discursos sobre os loucos, presos e estudantes. De forma
análoga, também ao que se teve em alguns escritos da primeira fase de seu
pensamento, o filósofo voltará a olhar para a história, considerando em especial a
passagem da Idade Clássica para a modernidade, em que ele identifica o surgimento
daquele tipo de exercício de poder que denominou de disciplinar e que está ligado ao
funcionamento das prisões, escolas, etc.
Apresenta-se seguidamente, notas introdutórias apenas dos livros, sem
considerar os cursos, conferências e as diversas publicações do filósofo, hoje, em sua
maioria, apresentados como livros e, em grande parte, traduzidos para a língua
portuguesa. Na apresentação das obras do período genealógico buscar-se-á um
tratamento mais sintético, uma vez que esta pesquisadora volta com mais
freqüência a esses textos nos próximos capítulos.
1.5.1 Vigiar e punir
33
A obra Vigiar e punir: nascimento da prisão foi, sem dúvida, a que melhor
caracterizou o termo genealogia, utilizado por Michel Foucault nesta segunda fase de
suas pesquisas. Nela Foucault apresenta o propósito de fazer uma “genealogia da
‘alma’ moderna” (FOUCAULT, 1987, p. 31), na forma de uma análise microfísica do
poder punitivo. Para ele essa “alma” sintetiza tanto o universo dos saberes, nos quais
se produz o indivíduo na modernidade, quanto a própria alma do indivíduo, que é
colocada em julgamento e recolhida nas prisões.
Segundo Foucault, “não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou
um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que
é produzida permanentemente, em torno da superfície, no interior do corpo
pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos”
(FOUCAULT, 1989, p. 31). Tanto ela existe, que é o alvo de um poder que
não se volta mais diretamente com o intuito de descarregar nele sua ira, mas
a ele recorre para atingir sua alma, uma alma sob a qual um corpo se prende,
recebe investimentos, é modelado para se buscar resultados que vão para
além dele.
Nessa obra, Foucault deixa claro que as características de relações de poder são
diferentes das características do poder do Estado e seus aparelhos, e busca mostrar que
o poder não está centrado em um ponto específico da estrutura social, ou seja, o
Estado não é o centro do poder, mas funciona como uma rede de dispositivos ou
mecanismos de poder do qual nada e ninguém escapa, pois todos estão sujeitos a essa
rede de dispositivos do poder. Segundo ele, não existe ponto exterior possível a essa
rede, constituída pelas práticas ou relações de poder da qual nada e ninguém está
isento ou imune. Também nela, Foucault não desconsidera a repressão, porém enfatiza
que não se pode definir o poder simplesmente como algo que diz não, impõe limites e
castiga.
Em Vigiar e punir, a análise da alma” moderna em julgamento pode ser
entendida como um estudo do aparecimento da prisão, que no final do século XVIII
coexiste com o suplício e as teorias dos reformadores, como forma de punição e que,
curiosamente, acaba suplantando as demais e tornando-se a forma de punição por
34
excelência da modernidade. A substituição do modelo representativo e da festa
bastarda, que caracterizava o suplício pela prisão, pode ser explicada se for
entendida no conjunto da própria sociedade disciplinar e a prisão mesma como uma
instituição própria dessa sociedade.
Em sua análise, Foucault pretende isolar o momento de passagem da aplicação
das punições generalizadas para o aprisionamento, como revelador da formação de um
novo tipo de exercício de poder, possuidor de novas exigências e necessidades. Com
isso, ele pretende mostrar que os procedimentos de uma ou de outra forma de
repressão, bem como os resultados de sua aplicação, estão diretamente ligados a uma
maior forma de rentabilidade na economia dos exercícios de poder.
Seu objetivo é mostrar que a forma de poder que se estabelece a partir do final
do século XVIII, apresenta aspectos positivos e produtivos na medida em que não
apenas exclui ou reprime, mas produz. Ele produz a própria realidade, os indivíduos e
o conhecimento que se tem sobre ele.
Dessa forma, tem-se a ênfase num tipo de poder cuja positividade tem como
alvo o corpo humano. O poder objetiva diminuir suas possibilidades de revolta,
tornando-o cil politicamente e, ao mesmo tempo, produtivo. Assim, aumenta-se a
força econômica dos indivíduos ao mesmo tempo em que se diminui sua força
política.
Em Vigiar e punir, tendo como ponto de partida as prisões, Foucault faz uma
análise das instituições disciplinares, mostrando que tanto do ponto de vista
econômico quanto do ponto de vista político, o objetivo é tornar o homem um ser útil
e dócil, ou seja, o poder disciplinar não mutila, nem destrói, nem descarta o cidadão,
mas fabrica um indivíduo que não é o outro do poder, nem é anulado por ele, mas,
sim, um de seus mais importantes efeitos. A obra assinala a passagem dos
35
mecanismos de punição corporal para os mecanismos disciplinares caracterizados, por
exemplo, pela vigilância, tão constante, estruturada e interiorizada que dispensa a
presença física da vigia que tem por si mesma, o efeito moralizador da ação. Para
caracterizar essa vigilância permanente, Foucault recorre ao projeto arquitetônico de
Bentham, do final do século XVIII, chamado de panóptico, que se caracterizava por
uma construção na forma de anel, no centro da qual encontrava-se uma torre de
vigilância e ao redor, como um anel, as celas onde ficariam os prisioneiros expostos, o
tempo todo, ao olhar do vigia. Tal princípio, pensado inicialmente para as prisões,
acabou se tornando um modelo da arquitetura para as mais variadas instituições
modernas, um vez que se descobriu que aquele olhar, que parte de um para muitos, é
extremamente produtivo e pouco dispendioso.
Essas instituições modernas, dentre as quais se destaca a escola, caracterizaram-
se não apenas pela vigilância permanente, mas também pelo modo peculiar de
organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o
indivíduo em sua conduta.
Nessa sociedade disciplinar, onde se tem o nascimento dos saberes que vão ser
denominados ciências humanas, o exame constitui um mecanismo privilegiado de
obtenção da verdade. Com o exame, se tem, mais uma vez, um exemplo de um modo
de poder no qual a sugestão não se faz apenas na forma negativa da repressão, mas,
sobretudo, no modo mais sutil do adestramento, da produção positiva de
comportamentos que possam definir o indivíduo ou o que ele deve ser, segundo o
padrão da normalidade.
1.5.2 História da sexualidade: a vontade de saber
36
Ao lado de Vigiar e punir, a obra A vontade de saber é uma peça importante
para a composição do chamado eixo genealógico do pensamento de Foucault. Como
em Vigiar e punir, também nessa obra Foucault não pretende fazer uma reflexão sobre
o poder tendo em vista o Estado e seus aparelhos. A questão que ele procura abordar é
a do poder, entendida como uma peça chave para a construção e produção do saber,
um poder que não é analisado e nem visto como uma dominação global. Em especial
nessa obra, o autor tem como objeto de estudos a sexualidade na sociedade e, com ela,
procura mostrar que as relações de poder não se dão fundamentalmente nem ao nível
do direito e nem ao nível da violência. Conforme Foucault,
permanecemos presos a uma certa imagem do poder-lei, do poder-soberania que os teóricos do
direito e a instituição monárquica tão bem traçam. E é desta imagem que precisamos liberar-nos,
isto é, do privilégio teórico da lei e da soberania, se quisermos fazer uma análise do poder nos
meandros concretos e históricos de seus procedimentos. É preciso construir uma analítica do
poder que não tome mais o direito como modelo e código (FOUCAULT, 1988, p. 86-87).
Nessa obra Foucault pretende mostrar que a dominação capitalista não
conseguiria se sustentar, se fosse essencialmente repressiva. Igualmente, é nesse
momento que se tem a noção de micro-poder e, com ela, a idéia mencionada acima, de
que o aspecto negativo do poder não é tudo e talvez não seja o fundamental.
É interessante ressaltar que, em suas obras, Foucault não nega a existência da
repressão. Ao contrário, ele a considera como uma primeira forma de dominação.
Porém, mostra que não se pode definir o poder apenas como algo que diz “não”, que
impõe limites e que castiga. Para o filósofo o poder possui um lado produtivo e
transformador por meio de seu exercício nas instituições disciplinares, tanto do ponto
de vista econômico quanto do ponto de vista da sexualidade, abordado de forma
37
especial em A vontade de saber, em que aquele autor apresenta uma interessante
correlação entre a produção da verdade e a produção de prazeres.
No caso particular de A vontade de saber, ao voltar-se para a constituição dos
diversos discursos sobre a sexualidade, tendo em vista a relação saber/poder, mas
também a que se nos pólos do poder/prazer, Foucault faz uma abordagem histórica
do poder em sua importância para construir uma economia política do saber. Porém,
numa postura um tanto diferente de Vigiar e punir, em que não se tem uma
explicitação teórica do poder, mas uma utilização prática, nessa obra ele se propõe a
sistematizar seus fundamentos teóricos, como fizera em seu texto de 1971, intitulado
“Nietzsche, a Genealogia e a História”, em que expusera a concepção de genealogia
que marcaria seu livro de 1975. Ressalte-se que nesse item em particular, revela-se
não apenas uma nova explicitação, mas um refinamento de sua concepção de poder,
explicitada até então. Essa possibilidade de mudança fica clara quando Foucault
afirma: “trata-se, portanto de, ao mesmo tempo, assumir outra teoria do poder, formar
outra chave de interpretação histórica e, examinando de perto todo um material
histórico, avançar pouco a pouco em direção a outra concepção de poder. Pensar, ao
mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder sem o rei” (FOUCAULT, 1988, p. 87).
Esse refinamento pode ser identificado como uma genealogia do bio-poder, um
poder que, lançando mão da sexualidade, pretende controlar os corpos dos indivíduos,
um tipo de poder que está diretamente ligado às atividades socioeconômicas, ao
capitalismo em geral. Segundo Foucault, “o bio-poder, sem a menor dúvida, foi
elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que pode ser garantido
às custas da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e, por meio de
um ajustamento, dos fenômenos de produção ao processo econômico” (FOUCAULT,
1988, p. 132).
38
Tal otimização do processo econômico acontece se houver um controle rígido
e acentuado sobre os corpos no aparelho de produção, o que Foucault procura
entender, nesse momento, a partir da sexualidade, que, “longe de ter sido reprimida na
sociedade contemporânea, está, ao contrário, sendo permanentemente suscitada”
(FOUCAULT, 1988, p.139). Segundo Foucault, retomando sua leitura da
modernidade a partir da Idade Clássica tais procedimentos de controle foram
colocados em ação a partir do final do século XVIII e início do século XIX, e fizeram
com que surgisse a analítica da sexualidade que marca, juntamente como uma
analítica do poder disciplinar, a sociedade em que se vive.
1.6 Últimas considerações sobre a genealogia
O propósito de Michel Foucault, neste segundo momento de seu pensamento,
que denominou-se eixo genealógico, foi de apresentar os vínculos entre a verdade e o
poder. Nessa fase de seus estudos, ele procurou redirecionar a questão dos saberes,
presentes no momento arqueológico, correlacionando-os com formas de exercício de
poder. Nesse sentido, o filósofo foi além de fazer uma simples busca do passado que
constituiu os saberes pré-existentes. Ao remexer a memória do passado, ele procurou
uma resposta para as atuais táticas de utilização dos saberes. Com as pesquisas
genealógicas, o filósofo não apenas identifica certas maneiras de descrever os saberes
em determinados períodos da história ocidental, mas correlaciona tais descrições com
o presente. Sua análise se torna uma crítica do presente, na medida em que a
genealogia mesmo não poderia ser apenas um estudo do passado, que é tomado como
estratégia para a compreensão do presente, no qual o genealogista identifica um jogo
de forças em que pretende tomar uma posição.
39
Assim, além de identificar e descrever saberes nos escritos do período
genealógico, Foucault se volta para “explicitar de que maneira o surgimento e o
funcionamento, as transformações e o desaparecimento de saberes desqualificados
têm correlatos indissociáveis nas práticas sociais; não apenas enunciá-las, mas
também denunciar as relações que aquelas regras ou condições de surgimento de
‘verdades’ mantêm, recíproca e circularmente, com mecanismo de poder”
(MUCHAIL, 2001, p. 09).
Conclui-se, portanto, que a genealogia não busca respostas para uma verdade
situada num determinado momento, a partir do conhecimento de suas origens, mas
introduz o acaso e o descontínuo num jogo que, aparentemente estático, deve assumir-
se novamente como dinâmico, solto e sem resultados previamente definidos. Segundo
Salma Tannus Muchail, diferentemente dos historiadores tradicionais, que buscam um
ponto de apoio, a genealogia, reduz todo o absoluto à relatividade do devir
(MUCHAIL, 2001, p. 11). E essa é sua principal estratégia.
1.7 Características gerais do eixo denominado ético
Na visão de Foucault, a ética faz parte da moral e dos códigos que dizem
respeito ao comportamento humano, tomado do ponto de vista do que é certo e do que
é errado. Particularmente para Foucault, ela diz respeito à constituição que o indivíduo
faz de si mesmo como um sujeito moral, dono de suas próprias ações, na relação
consigo mesmo e com o mundo. Ainda segundo aquele filósofo, no plano ético o jogo
das verdades remete a uma reflexão sobre as relações existentes entre o falso e o
verdadeiro, tendo presente o que é certo e o que é errado não apenas do ponto de vista
lógico, mas também do ponto de vista moral. Este jogo, entre o certo e o errado, faz
40
um balanço do entendimento que cada indivíduo tem do mundo e de si mesmo, como
cada indivíduo se vê no mundo.
Em seus dois últimos livros, que se caracterizam por uma genealogia da ética,
Foucault propõe uma abordagem sobre a questão ética na qual a preocupação do
indivíduo é com o seu próprio “Eu” na relação com os outros e com a verdade. Um
indivíduo que se pode dizer produzido, como se teve nos escritos da década de
setenta, porém, aqui, produzido deve significar produzido por si mesmo e não mais
pelos outros, por instituições ou jogos de poder de que não se tem um controle de
forma efetiva por meio de normas definidas pelos códigos jurídicos ou religiosos. O
indivíduo é produzido por práticas como as do cuidado de si. Verifica-se, desse modo,
uma variação do sujeito, entendido como produto das malhas tecidas pelo poder, para
um sujeito que procura gerar, constituir a si mesmo.
Vale notar ainda que Foucault não nega suas análises anteriores, mas parte delas
para chegar a novas conclusões. Pode-se dizer que, nesses últimos escritos, a
genealogia, enquanto um engajamento, no presente assume novos contornos. Porém,
não se trata de um projeto diferente. O próprio engajamento do filósofo é o mesmo. O
que se altera são os meios.
1.8 As obras do período ético
As obras publicadas por Foucault, que compõem o terceiro momento de sua
produção filosófica são: História da sexualidade II: O uso dos prazeres e História da
sexualidade III: O cuidado de si. Nessas duas obras, Foucault pretende centrar suas
pesquisas em alguns aspectos da ética ocidental ligados à sexualidade, tendo em vista,
de forma especial, o mundo grego - romano e a ruptura que o cristianismo vai
significar em relação ao mundo antigo. Nessa fase, a principal preocupação do
41
filósofo é investigar e analisar como se a relação do indivíduo consigo mesmo e, a
partir daí, a constituição da sua subjetividade.
Para desenvolver esse trabalho Foucault propõe dividir sua História da
Sexualidade em seis volumes; porém, sua morte interrompeu essa atividade,
limitando-o apenas aos três primeiros: A vontade de saber, que ainda se caracteriza
pela investigação do sujeito como produto de relações de poder, O uso dos prazeres e
O cuidado de si, além do quarto volume, inacabado, que inauguram essa nova
preocupação do filósofo.
Em sua história da sexualidade Foucault não pretendia estudar o
comportamento, a conduta ou as práticas sexuais dos indivíduos. Seu principal
objetivo era investigar o funcionamento da sexualidade, entendida como um grande
sistema que leva ou possibilita o sujeito a falar sobre si mesmo e de seus desejos, algo
aparentemente proibido pela sociedade moralista e controladora.
Nas obras desse período, Foucault tem postura contrária à idéia de um sujeito
preexistente, transcendental ou psicológico. Da mesma forma, ele questiona a idéia de
um sujeito que pudesse ser tomado como mero organizador e unificador de um
determinado grupo de enunciados. Assim, embora se afaste de uma concepção de
sujeito como produto de relações de poder, ele recusa também a idéia de um sujeito
livre, ou de livre arbítrio, portanto, de um sujeito constituinte. Para ele, a subjetividade
não se localiza no nível da representação, mas, sim, no nível da própria produção. Ela
é, ao mesmo tempo, produzida e produtora, ou seja, é uma forma de ver e construir o
mundo.
1.8.1 História da sexualidade: o uso dos prazeres
42
Mantendo a intenção de não privilegiar o poder como repressão, em O uso dos
prazeres Foucault volta-se para a sexualidade como um objeto de um tipo de cuidado
que estabelece uma rie de códigos e normas de conduta. Diferentemente do que
fizera em textos anteriores, no entanto, suas análises extrapolam a Idade Clássica e se
iniciam pelo mundo antigo. Nesse volume, em especial, pelo mundo grego.
Entretanto, ficou claro que empreender essa genealogia me afastava muito de meu projeto
primitivo. Devia escolher: ou manter o plano estabelecido, fazendo-o acompanhar de um rápido
exame histórico desse tema do desejo, ou reorganizar todo o estudo em torno da lenta formação,
durante a Antiguidade, de uma hermenêutica de si (FOUCAULT, 1984, p. 11).
Nessa obra Foucault mostra que, antes da intervenção cristã sobre a sexualidade,
que passou a ser associada ao pecado, é possível identificar uma outra que não a toma
nesse sentido, porém, que não significa uma ausência de regras ou uma liberalização
sexual. No mundo grego, Foucault identifica um investimento cuidadoso sobre as
práticas ligadas à sexualidade, porém, estabelecidas a partir de outro princípio. Não se
tem a imposição de regras com relação à sexualidade por associá-la ao pecado, mas a
uma série de fatores que Foucault identifica como dietética, uma econômica e uma
erótica, termos que utiliza para sintetizar os fatores que levam o homem grego a
cumprir certos preceitos, qual seja: o respeito a uma moralidade não se fez sempre por
princípios estanques.
Duas hipóteses são formuladas por Foucault nessa obra. Na primeira hipótese ele
pretende mostrar que as normas à obediência e às morais codificadas, estão sempre
associadas a uma ética: a uma prática modificadora de si mesma, uma ética que
implica num conhecimento de si mesmo e a busca de uma sabedoria. Na segunda
hipótese, ele supõe que, embora os códigos estejam sempre associados às práticas
individuais, a constituição às técnicas de cuidado de si e da relação consigo e com os
43
outros seguem certos padrões que estabelecem preceitos que os indivíduos se dão a si
mesmos, como condições para a constituição de sua subjetividade.
A formulação dessas duas hipóteses apresenta a possibilidade da realização de
uma história genealógica, que dá privilégios aos modos pelos quais os homens
colocaram para si próprios o problema do apetite sexual, o uso dos prazeres e a
relação dos prazeres com a verdade, tornando-se senhores de seus desejos e
responsáveis por suas práticas.
1.8.2 História da sexualidade: o cuidado de si
Foucault aponta no mundo grego um tipo de cuidado de si que deixa claro como
o homem é constituído como sujeito, por meio da expansão da vontade de
poder/saber, que é produtora de subjetividade.
Recusando mais uma vez a perspectiva da repressão, em que o sujeito foi
pensado a partir da Ciência e da Filosofia Moderna, Foucault o sujeito como um
triplo resultado: como exigência do discurso, como peça momentânea e, ainda, como
produto de práticas de controle. Para Foucault não qualquer instância unitária e
substancial que mereça ser considerada sujeito, como acredita a Filosofia Moderna, se
afirmarmos que o sujeito não é sinônimo de consciência, tampouco podemos torná-lo,
agora, como sinônimo de “instintos” e imaginação, ou do “corpo” como unidade do
“ser humano” (FOUCAULT, 1988, p. 51-59).
Igualmente, em O cuidado de si Foucault não entende o poder como uma
instância perene, nuclear e constituidora da subjetividade. Mesmo quando aponta a
relação entre o poder e o individuo, Foucault não deixa de lembrar que não se trata de
se substancializar qualquer um deles.
44
Em sua análise, Foucault afirma que a sexualidade moderna foi determinada pela
pastoral cristã que, a partir do século XVIII, se voltou ao controle dos indivíduos e à
moralização de seus costumes. Segundo ele, o cristianismo contribuiu de forma
considerável para que a experiência moderna da sexualidade tenha se tornado, com
mais ênfase, objeto de conhecimento científico, do que o campo para o uso das
faculdades que os homens têm de serem senhores deles mesmos.
1.9 Últimas considerações sobre o momento ético
Como se vê, numa perspectiva foucaultiana a ética faz parte da moral, do
processo comportamental e dos códigos que apontam o que é certo e o que é errado,
do conjunto das coisas que se pode ou que não se pode fazer. Cabe a ela, atribuir
valores positivos e negativos, bem como às diferenças comportamentais do sujeito. A
peculiaridade de suas análises é que, nesse universo, o indivíduo pode constituir a si
mesmo como um sujeito moral. Portanto, sua ética se constitui como uma
preocupação do indivíduo consigo mesmo.
Para Foucault, a ética é um jogo de verdades. É a relação entre o falso e o
verdadeiro e tal relação tem a função de balizar o entendimento que cada indivíduo
tem para consigo mesmo e, conseqüentemente, o entendimento que cada um tem do
mundo.
Sobre esse aspecto, não se trata de fazer uma história sobre uma prática em si
mesma, mas, sim, de um estudo relacionado às práticas que podem ser discursivas ou
não e que permitem essa relação de si para consigo, que faz com que cada um veja a si
mesmo como sujeito ético (VEIGA-NETO, 2003, p. 98-99).
45
Seguindo os pressupostos teóricos aqui apresentados, pretende-se, no próximo
capítulo dessa dissertação, aprofundar a expressão da relação de poder na concepção
de Foucault sobre sociedade disciplinar voltada para a Educação.
46
2. OS MECANISMOS DISCIPLINARES E SUA PRESENÇA NA
EDUCAÇÃO
Este capítulo apresenta um estudo das três formas de organização do poder de
punir que existiam no final do século XVIII: o direito monárquico, as teorias dos
reformadores e a prisão, para chegarmos ao que Foucault denomina de poder
disciplinar. Nesse ponto, passamos a uma abordagem descritiva e interpretativa de
algumas características do exercício de poder disciplinar, tendo em vista
especialmente a educação, em geral, e a educação no Brasil, em particular.
Para desenvolver este capítulo pretende-se fazer, num primeiro momento, um
estudo interpretativo das três formas de organização de poder, buscando uma possível
correlação com o sistema educacional. Num segundo momento, tenta-se fazer uma
apresentação da sociedade disciplinar por meio de um levantamento interpretativo das
suas principais características e sua relação com a educação, apontando-a em especial
as práticas pedagógicas como parte da “sociedade disciplinar”.
2.1 As formas de punição
Tomando como referência especialmente o livro Vigiar e punir, pretende-se
apontar as principais características das três formas de punição identificadas por
Foucault no final do século XVIII, a saber: o suplício, as teorias dos reformadores e a
prisão. Essa análise é imprescindível para se chegar à prisão como o suporte
institucional do poder disciplinar, uma vez que, conforme veremos, embora não
tivesse um suporte teórico como, por exemplo, as teorias dos reformadores, nem o
efeito teatral do suplício, a prisão acaba se impondo sobre as demais e permanecendo
como a forma de punição por excelência nos séculos XIX e XX.
47
2.1.1 O suplício
O suplício está diretamente ligado ao poder monárquico, que pode ser
identificado na Europa de meados do século XVI até o final do século XVIII, e é
caracterizado por uma compreensão do direito como extensão da vontade do rei e o
império, como extensão do corpo do rei, que o era simplesmente entendido como
uma metáfora, mas como a representação de uma realidade política.
O direito monárquico era uma cerinia de manifestão do poder real na qual o
rei se coloca no processo, pessoalmente ou por um representante, não como um
mediador, mas como parte atingida e que deve ser reposta. Essa reposição da soberania,
que por um instante foi lesada, acontece pela tomada do corpo do infrator, que é vencido,
destruído e morto em uma execão, que deve ser pública. Nessas execões, a
participão do público se dava como espectador e testemunha, chegando, em alguns
casos, a tomar parte na execão, porém, mesmo nesses casos, sem desconhecer que o
poder de punir ou perdoar o condenado é uma atribuição do soberano e não pertence, de
forma alguma, ao povo. Dessa forma, o soberano permitia a participação violenta do
povo no suplício, por um instante, opondo limites a essa manifestação no momento
seguinte, deixando sempre claro que ele era a fonte do direito e da força que fazia com
que a lei fosse cumprida. Em resumo, o corpo da lei era o corpo do soberano.
A principal característica do direito monárquico era a aplicão do suplício,
sinônimo do poder monárquico e base da aplicação da lei nesse período, em especial em
se tratando de imposão de penas aos condenados. No poder monárquico, mesmo
havendo a prática de diferentes penalidades, como o banimento e a multa, o suplício era
uma peça importante, uma vez que, por exemplo, antes do banimento se aplicava o
oite. O suplício, no entanto, acabou se tornando mais caractestico no caso em que a
pena imposta era a morte do condenado. Nesse caso, a morte não era entendida apenas
48
como a privão da vida ou do condenado para a sociedade, mas sim como "o termo
final de uma graduação calculada de sofrimentos" (FOUCAULT, 1987, p. 34). Aqui, o
suplício ainda pode ser entendido como a "arte de reter a vida no sofrimento”
(FOUCAULT, 1987, 34).
Sobre isso, Foucault afirma que:
O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma
pena, para ser um suplício, devia obedecer a três critérios fundamentais: produzir uma certa
quantidade de sofrimento, que se possa suportar se não medir exatamente, ao menos apreciar,
comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente
privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de
sofrimento: (...) a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a a mil
mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência... (FOUCAULT, 1987, p. 34).
Quanto à execução, o suplício deveria ser equivalente ao crime cometido pelo
condenado. Era executado na forma de um ritual organizado e calculado para realizar
uma "marca" naquele que o recebia. Essa "marca" deveria se estender, também, aos que
assistiam ao suplício, os quais, vendo-o, o cometeriam os atos que levaram à sua
realização. Seria, portanto, uma ão exemplar, no sentido de que ninguém se atrevesse
a cometer aquele crime pelo qual o condenado estava sendo supliciado, pois teria um
castigo idêntico.
Nesse sentido, pode-se afirmar que é possível ainda hoje apontar traços do suplício,
o mais como aplicação de uma pena originada do poder do rei, mas como a aplicação
de castigos exemplares, como se tem, por exemplo, ainda hoje, nas escolas, em que a
punição aplicada visa a produzir um efeito sobre o faltoso e também sobre os demais
membros da comunidade escolar.
No entanto, deve-se ressaltar que o objetivo da punição que se tem nos dias de hoje
o é eliminar o corpo do condenado, mas atingir sua alma e ampliar suas
49
potencialidades de tal maneira que se obtenha corpos dóceis, tanto naquele que é punido
quanto nos demais alunos. Não se trata, assim, simplesmente da vingança do rei, do
inimigo vencido, mas de algo pensado no conjunto de um projeto educacional.
No poder monárquico, a exposição pública do supliciado, além de imprimir uma
“marca” naqueles que o assistiam, era, ainda, uma manifestação pública do poder que
pune. Nesse contexto, a presença física do corpo do rei era necessária para o bom
funcionamento da ordem social, pois “organiza-se uma iconografia, uma teoria
política da monarquia, mecanismos jurídicos que, ao mesmo tempo, distinguem e
ligam a pessoa do rei e as exigências da Coroa” (FOUCAULT, 1987, p. 30-31).
O suplício tinha, na manifestação pública de seus procedimentos, a chave de sua
eficácia, pois tanto a exposição do corpo do indivíduo supliciado, que mantivesse a
força do soberano, quanto a representação dos castigos, permanentemente
apresentados para a sociedade, apoiavam-se sobre o conhecimento que oblico tinha
de seus métodos e, acima de tudo, de seus efeitos.
O conhecimento dos métodos e efeitos das formas de punição era o que permitia
e possibilitava as relações de poder que as sustentavam e que mantinham em
funcionamento a sociedade monárquica. Nesse sentido, é possível afirmar que a
manifestação pública de tais formas de práticas punitivas era uma estratégia
fundamental, sem a qual não poderiam ser instrumentos eficazes para a afirmação das
relações de força a ela ligada. Novamente tendo presente o ambiente de sala de aula,
pode-se dizer que, em muitos casos, o professor se impõe como uma figura de poder
aos modos do poder monárquico, garantindo o cumprimento de suas ordens por meio
de sua própria presença autoritária.
Se, por um lado, a punição era pública, por outro, o processo que ia da acusação
à condenação era secreto; o réu não podia ter acesso ao processo e nem constituir
50
advogado. O poder que o julgava era absoluto e somente o rei, cujo corpo havia sido
atingido pelo crime, detinha o poder de punir.
No final do século XVIII, a despeito de toda a aparente eficácia desse tipo de
punição, as grandes fogueiras que caracterizavam o suplício vão desaparecendo da
Europa. O próprio povo, que tinha uma participação no suplício, como expectador,
testemunha e participando da festa bastarda que era aquela forma de punição, aos
poucos deixa de ser um agente do suplício para tornar-se um problema, pois, na
medida em que o criminoso agredia o corpo do rei, ele poderia ser um herói, uma vez
que era capaz de enfrentar o soberano que nem sempre era uma figura querida pelos
súditos.
O fato, no entanto, é que o novo modo de produção, que se tem no final do
século XVIII, com a segunda revolução industrial, não mais pode descartar corpos,
mas adestrá-los e, ao mesmo tempo, não pode mais ocupar-se quase que
exclusivamente de crimes de sangue, como se tinha no suplício, mas do crime contra a
propriedade privada. A punição deveria ser mais abrangente e mais eficaz para o novo
modelo que se formava.
2.1.2 A teoria dos reformadores
Por volta do final do século XVIII e início do século XIX, o suplício (punição
generalizada e violenta) foi aos pouco substituído pelo aprisionamento, que deixa de
ser visto como uma espera pela punição e passa a ser concebido como a própria
punição. Essa mudança, como se assinalau, relaciona-se com a mudança no setor
produtivo, mas também com as novas necessidades que essa mudança provoca, em
especial nos aglomerados urbanos, em que a população passa a se constituir como
uma riqueza, pois viabiliza o funcionamento da indústria, mas, ao mesmo tempo, um
51
perigo em função das possibilidades de assalto, greves e mesmo de uma guerra civil e
tudo o mais que está ligado ao aglomerado humano que se tem no interior e do lado de
fora das fábricas.
Pode-se dizer que a reforma foi uma estratégia do poder de punir para responder às
novas ilegalidades populares que surgiam contra a indústria e o corcio. Com essa
nova forma de poder o monarca deve renunciar ao seu direito de misericórdia, de forma
que o sistema punitivo seja eficaz, inflexível, baseado em leis que se tornaram públicas.
Com a reforma a intenção que se tem é de que a verdade do crime seja comprovada.
Nesse caso, deve haver, também, a certeza de que a punição será realizada. Para que isso
aconteça, era necessário individualizar o criminoso de tal forma que se pudessem
detectar, por exemplo, os casos de reincidência e, isso ocorrendo, aplicar a eles um
tratamento mais rigoroso.
Essa nova realidade exige uma nova estratégia do poder de punir e é disso que
passam a tratar as teorias dos reformadores que, a título de exemplo, pode-se citar:
Beccaria Servsn, Dupay, ou Lacertelle, Duport, Pastoret, Target e Bergasse, que não
negam a necessidade da prática da punição, mas reivindicam, paralelamente à
necessidade de um abrandamento das punições caracterizadas pelo suplício, formas de
punição mais abrangentes e eficazes, especialmente no que se refere ao crime contra a
propriedade privada.
Essa mudança faz parte "de todo um mecanismo complexo, onde figuram o
desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral
maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um
policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de
captura, de informação" (FOUCAULT, 1987, p. 72).
52
Com esse novo modelo, criou-se também a necessidade de, segundo Foucault,
“fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à
sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade
atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundidade no corpo social o poder de punir” (FOUCAULT, 1987 p. 76).
As críticas realizadas pelos reformadores contra o direito morquico eram mais
pela sua desordem do que pela sua severidade. Segundo eles, as leis não eram
devidamente aplicadas e, quando o eram, aconteciam os excessos, fato normal se fosse
considerado o super-poder monárquico. Em suas concepções o que se esperava era um
maior alcance desse poder e que ele fosse exercido de forma mais humana, porém, com
muito mais ênfase se esperava que ele fosse exercido de forma contínua e eficaz,
buscando atingir o espírito das pessoas, por meio dos sinais que usam e da forte ligação
que apresentam entre o crime e o castigo.
2.1.3 A prisão
A terceira forma de punir, que pode ser identificada no final do século XVIII e
início doculo XIX, segundo Foucault, é a prio. Essa nova forma de punição consiste
na reclusão pura e simples do cidadão que comete um crime. Com esse novo modelo
de punição, aparentemente a única coisa que o condenado perde é sua liberdade de ir e
vir na sociedade. Pode-se dizer, na realidade, que a prisão é uma instituição bem mais
complexa do que aparenta. Com ela tem-se uma ruptura com as formas de punição da
Idade Clássica e o estabelecimento de uma nova forma de constituição do exercício do
poder.
Com a prisão, a preocupação com o bem social deixará de ser prioridade e
passará a ser tratada num segundo plano. Esse novo modelo de punição tem em seu
foco e objetivo atingir o indivíduo que se desvia da norma em seu comportamento
53
moral e psíquico. Com a prisão, o indivíduo deverá ser punido não apenas por seus
atos, mas pelas suas intenções. Dessa forma, deverá ser avaliado não somente pelo
crime que ele possa ter cometido, mas por seu potencial de periculosidade para a
sociedade. Nesse momento, a justiça terá a função de corrigir as virtualidades, tendo
como principal objetivo a privação da liberdade e a reformulação das atitudes
comportamentais dos indivíduos.
Nos julgamentos, as circunstâncias em que o crime fora cometido passam a ser
consideradas importantes, bem como o grau de periculosidade do criminoso. E isto não
se faz apenas por meio de um julgamento e de uma condenação, mas de um julgamento e
de uma condenação perpétua, que vai além do tribunal do júri, estendendo-se à prisão,
o apenas como privação da liberdade mas também como instância de julgamento e de
uma constante reavaliação da pena.
A prio se encontra no centro da sociedade disciplinar. Ela é seu principal suporte
institucional na medida em que, frente à prisão, as demais instituições são inocentadas,
pois nenhuma é tão cruel quanto ela. Porém, por outro lado, a prisão mesmo reivindica
uma inocência na medida em que, o que nela ocorre, não é diferente do que ocorre nas
escolas, fábricas, quartéis, etc.
Com o estudo das três formas do exercício do poder de punir que se deu no final do
culo XVIII e início do século XIX, percebe-se que a prio o estava prevista no
direito monárquico nem nos códigos dos reformadores. Ela é um movimento quepode
ser entendido como parte de uma modificação que ocorre e que institui a própria
sociedade moderna.
Quanto ao suplício, este vai desaparecendo no final do século XVIII e na primeira
metade do século XIX, quando o os reformadores levantam suas vozes,
condenando-o, mas também o povo. No final do século XVIII e início do século XIX,
54
foram desaparecendo, um a um, a confissão pública, o pelourinho e a fogueira, que
eram os principais instrumentos que constituíam o suplício. É nesse momento que o
direito monárquico cede lugar à teoria dos reformadores e à prisão, pois essas duas
formas de exercício de poder concordavam, entre si, que o direito não era uma
prerrogativa do soberano, mas, sim, de toda a sociedade. É evidente que nem por isso
concordavam quanto à forma de se executar esse direito.
As teorias dos reformadores não conseguiram se impor em substituição ao
direito monárquico, cabendo à prisão esse papel. Essa nova forma de punição (prisão)
se generalizou como forma de punição por excelência, na modernidade; isso ocorreu
porque a prisão é uma instituição apropriada à sociedade disciplinar, na qual a forma
de exercício de poder se por meio da vigilância e do controle do corpo, ou seja, o
exercício de poder se pela forma de “adestramento” característica, fundamental da
sociedade disciplinar.
2.2 A sociedade disciplinar
Segundo Foucault, o surgimento da sociedade disciplinar está ligado à expansão do
capitalismo, que necessita de corpos dóceis, produtivos e disciplinados. Diferente do
poder monárquico e da teoria dos reformadores, o corpo o é destruído e nem exposto
exemplarmente à sociedade. A disciplina pretende tornar o corpo dócil e apto para
aprodução. Ela não somente acentua a dominação, mas aumenta as aptidões do corpo. O
corpo, que é alvo e objeto do poder disciplinar, pode ser construído, pode ser modelado
de acordo com a necessidade da sociedade moderna, para ter suas aptidões aumentadas
por meio de métodos e técnicas voltadas para tal controle.
A descoberta do corpo como alvo do poder, no entanto, não é uma invenção
moderna, ela ocorre, segundo Foucault, nos séculos XVII e XVIII:
55
houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder (...). É
dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado. (...) Não se trata de cuidar do corpo, em grosso modo, como se fosse uma unidade
indissociável, mas trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de
mantê-lo ao nível mesmo da mecânica (...). Esses métodos, que permitem o controle minucioso
das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de as disciplinas (FOUCAULT,
1987, p. 125-126).
Para ele, a disciplina não foi criada ou inventada por um único idealizador, mas
foi resultado de adaptações, cópias, leitura das mais diversas e diferentes práticas,
como se tem, por exemplo, nos mosteiros na Idade Média. O mesmo se observa nos
mecanismos ou recursos adotados para se obter, com o máximo de aceitação e
eficiência, a dominação sobre os corpos dos indivíduos, um conhecimento acumulado
por séculos. Portanto, pode-se inferir que a disciplina sempre foi utilizada como um
dispositivo para assegurar a ordem. A novidade que se vê, a partir da sociedade
moderna, é que ela, além de se generalizar, passa a atender três critérios, os quais
Foucault classifica como:
1) tornar o exercício do poder o menos custoso possível (economicamente, pela pouca despesa
que acarreta; politicamente, por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa visibilidade,
o pouco de resistência que suscita); 2) fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados
a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível, sem fracassos, nem lacuna;
3) ligar, enfim, esse crescimento econômico do poder e o rendimento dos aparelhos no interior
dos quais se exerce (sejam aparelhos pedagógicos, militares, industriais, médicos). Em suma
fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema
(FOULCAULT, 1987, p. 191).
Percebemos, nesse caso, que a disciplina deixou de ser um dispositivo de
controle para tornar-se um padrão, o modelo disciplinar, que passa a ser não apenas
56
aplicado, mas constitutivo de colégios, quartéis, hospitais, etc. Nesses espaços, a
disciplina constitui uma verdadeira anatomia política do detalhe. Neles, a organização
espacial, por exemplo, se faz de forma quadricular, permitindo que os indivíduos
sejam facilmente localizados e monitorados, ficando fácil identificar sua presença ou
ausência, bem como seus movimentos. A constituição do próprio espaço em que se
tem essas instituições segue a disciplina por princípio, num fenômeno que expressa
uma forma de relação entre saber e poder voltada para o controle dos indivíduos e
para a produção. Nela, a atenção aos menores detalhes, o que hoje se denomina de
qualidade total, não é um detalhe, mas faz parte de uma estratégia política.
Segundo Foucault,
não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que pode ter cada
uma de singular, mas de localizar, por uma série de exemplos, algumas das técnicas essenciais
que, de uma a outra, se generalizam mais facilmente. Técnica sempre minuciosa, muitas vezes
íntima, mas que tem sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e
detalhado do corpo, uma nova ‘microfísicado poder, e porque não cessaram, desde o século
XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro
(...). A disciplina é uma anatomia política do detalhe (FOUCAULT, 1987, p. 128).
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de
uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto
mais útil.
A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados, corpos
dóceis (...). A disciplina aumenta a força do corpo e diminui essa mesma
força. Ela dissocia o poder do corpo, faz dele, por um lado, uma ‘aptidão’
e, por outro lado, a energia, a potência que poderia resultar disso e faz
dela uma relação de sujeição estrita (...). A coerção disciplinar
estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e
uma dominação acentuada (FOUCAULT, 1987, p. 127).
57
A disciplina não implica, como no caso do suplício, em grandes atos teatrais de
punição. Ela é sutil, porém, insidiosa, é sub-reptícia, vai se apoderando dos corpos
sem que esses tomem ciência dela. Trata-se de “pequenas astúcias dotadas de um
grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente
suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram
coerções sem grandeza” (FOUCAULT, 1987.p. 128). O cuidado no detalhe, a
coerente atenção às minúcias, tudo isso articulado a um todo que se caracteriza e se
mantém pelo funcionamento desses detalhes.
A disciplina é uma anatomia política do detalhe que, aparentemente, é
indolor e não produz efeitos colaterais. Provavelmente seja por essas
peculiaridades insidiosas que os sistemas disciplinares se encontram tão
arraigadamente incrustados na sociedade moderna, fazendo-se presentes em
todas as mais variadas atividades humanas, participando de todo o cotidiano
das pessoas sem que elas se apercebam da sua presença, ou mais, sendo
aceita tacitamente, pois parecem fazer parte da essência da vida, de uma
vida tão boa, quanto produtiva. Quando, no entanto, os mecanismos
disciplinares são notados e, por algum motivo, relevante ou não, demonstra-
se alguma insatisfação, rebelando-se contra eles, afrontando-os, revelando
um corpo não tão dócil, tal procedimento será criticado, taxado de
indisciplinado e, conseqüentemente, penalizado por dispositivos
aparentemente tão “naturais” quanto a própria disciplina. Também as sanções
estão previstas em regulamentos, e os julgamentos que se seguem devem
ser sumários e as punições certas.
O que surpreenderá sempre é que a discussão sobre o certo e errado
parece dar-se sempre como uma tentativa de interpretar e julgar o
comportamento dos indivíduos, no caso, daquele não tão dócil quanto se
esperava e nunca dos próprios sistemas disciplinares, pois esses se
apresentam acima do bem e do mal e o próprio poder disciplinar se pretende
incontestável.
Não se trata de uma obrigação contratual, mas mecanismos que fazem
funcionar uma subordinação não reversível, que se apresenta como “natural”.
O conjunto de técnicas e estratégias que constituem a disciplina, fluem por
onde a vida parece seguir seu “curso natural” ou, mais do que is,o, “a minúcia
dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo darão em breve no quadro da escola (supervisor,
inspetor escolar, etc.), do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo
localizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do
ínfimo e do infinito” (FOUCAULT, 1987, p. 129).
Embora não se possa concordar que o modelo disciplinar faça parte da natureza
do homem, o certo é que a observação minuciosa do detalhe, num esmiuçamento da
58
vida, em processos de saber e poder, que tem por objetivo o controle e a utilização dos
indivíduos, é um fator constitutivo do homem moderno, do sujeito moderno.
Para Foucault, o aparecimento dos mecanismos disciplinares responde aos
seguintes critérios básicos: que o exercício de poder seja o menos custoso possível e
que os efeitos de poder sejam levados ao máximo de intensidade. E isso ocorre porque
a vigilância está diluída no tecido social. Parece ter se tornado natural o direito de
punir, coagir e, também, que todos assumam papel de juízes. Foi esse funcionamento
indiscriminado do poder disciplinar, que inclui sujeições e treinamentos, que tornou
possível o trabalho tal como ele é na economia capitalista. Todo esse aparato formado
pela disciplina, o controle do espaço, o controle do tempo, a correção corporal, foram
meios que contribuíram para a formação acumulativa do capital juntamente com a
acumulação de homens.
Na modernidade, o poder disciplinar demonstra-se mais eficiente e mais contínuo
na cobertura dos pequenos espaços em que, no suplício, proliferavam as imposições.
Utilizando-se apenas do olhar, a forma de exercício de poder da sociedade disciplinar
pode ser mais connua e com um custo muito inferior à da Idade Clássica.
Com relação aos reformadores, enquanto eles procuravam uma forma de punição
que pudesse reconstituir o corpo social, a disciplina elabora processos para a coerção
individual dos corpos e, por meio desse investimento sobre indivíduos, obter a ordem
social, evitando, por exemplo, a guerra civil.
Esses conceitos, de Foucault, são fundamentais para a da discussão das
pedagogias educacionais, desenvolvidas nos séculos XIX e XX, com todas as suas
características coercivas e insidiosas, visivelmente poderosas e dominadoras, pois
percebe-se que essas cnicas disciplinares são aplicadas, ainda hoje, em instituições
59
de ensino e instituições de formação de professores, conforme se tentará deixar claro
na continuação dessa dissertação.
2.3 O Panóptico.
Uma das principais características da sociedade disciplinar é a visibilidade. Nela,
o exercício do poder se faz por meio da transparência. Segundo Foucault, o projeto
arquitetônico que traduz de forma mais clara o princípio da visibilidade é de Benthan
e se chama Panóptico. Foucault descreve esse novo projeto arquitetônico da seguinte
maneira:
o princípio é conhecido: na periferia, uma construção em anel; no centro,uma torre; esta é vazada
de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em
celas, cada uma atravessando a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o
interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que para o exterior, permitindo que a luz
atravesse a cela de lado a lado, um doente, um condenado, um operário, ou um escolar. Pelo
efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recordando-se exatamente da claridade, as
pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia, tantas janelas, tantos pequenos teatros, em que
cada ator está sozinho perifericamente individualizado e constantemente visível. (...). Em suma,
o princípio da masmorra é invertido (FOUCAULT, 1987, p.177).
Segundo o mesmo autor, a ação contínua de poder que o panóptico provoca no
indivíduo, é permanentemente assimilada por ele, pois o panóptico induz as pessoas
colocadas nele a se comportarem de acordo com as regras pré-estabelecidas pela
aplicação do princípio do olhar contínuo: “plena luz e o olhar de um vigia captam
melhor que a sombra, que finalmente protegia” [e nesse sentido], pode-se afirmar que
“a visibilidade é uma armadilha” (FOUCAULT, 1987, p.177).
No panóptico, pouco importa quem esteja vigiando. Trata-se de um poder que é
exercido de forma impessoal. A própria disposição arquitetônica permite o
funcionamento do poder. Existe de uma espécie de coação, bem como a possibilidade
60
de se extrair o máximo de produtividade dos que são vigiados, sem com isso ter de
recorrer à força física, pois para se ter um comportamento desejado bastava apenas o
olhar atento do vigia. Com o modelo panótico, inverte-se a posição, pois o que antes
se queria esconder, agora é exposto: “daí o efeito mais importante do panóptico:
induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade, que assegura o
funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 1987, p.177). O princípio
arquitetônico da Idade Clássica, das grandes construções como forma de exercício do
poder do rei, as fortalezas de guerra para se dobrar o inimigo, é substituído por outro
princípio, por uma arquitetura mais leve por meio da qual a luz deve passar e, com ela,
o olhar vigilante.
O panóptico é um exercício constante de afirmação de um poder ramificado que
se multiplica, se fixa, impõe comportamentos, distribui e organiza os espaços. A partir
do ideal de multiplicação e fortificação, no final do século XVIII, os números de
instituições transformadoras desenvolveram-se de tal maneira, que possibilitava
observar uma família a partir do comportamento de uma criança na escola. Tomando a
escola cristã como exemplo, Foucault afirma que ela “não deve simplesmente formar
crianças ceis; deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de
viver. A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até
nos adultos e exercer sobre eles um controle regular” (FOUCAULT, 1987, p.186).
Seria dispensável mencionar que, nos dias de hoje, o princípio da transparência e
da visibilidade está mais presente e arraigado do que nunca. Os anúncios de que se
está sendo filmado estão por toda parte e, por mais que pareça curioso, quer-se cada
vez mais câmaras que filmem as pessoas. Outro efeito perverso desse princípio está
nos programas que exploram com muito sucesso de público a exposição de pessoas
permanentemente vigiadas em programas de televisão. Todos exemplos que ilustram a
61
atualidade do tema do panóptico, além do refinamento e importância que ele recebe
em nossos dias.
2.4 Um bio-poder
Um outro aspecto indispensável para se compreender a forma como se o
exercício do poder na sociedade disciplinar,é traduzido com a expressão bio-poder,
que exprime a necessidade que se estabeleceu na sociedade contemporânea não de
anular forças, mas de produzi-las, fazê-las crescer, otimizá-las, de tal maneira que o
indivíduo possa ser útil, dócil e integrado ao sistema econômico de maneira eficaz e
controlada. Segundo Foucault, “o bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento
indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que pode ser garantido às custas
da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de produção ao processo econômico” (FOUCAULT,
2001, p. 132).
O bio-poder funciona como uma anátomo-política do corpo humano e, também,
como uma bio-política voltada para a população. Segundo Foucault, “as disciplinas do
corpo e as relações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se
desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (FOUCAULT, 2001, p. 131). Em
relação a esse olhar sobre o indivíduo e sobre a população, é possível apontar uma
profunda transformação em relação à Idade Clássica, no momento em que o direito da
vida e da morte deixa de pertencer ao soberano e passa a apoiar-se numa estrutura de
poder que tem por finalidade gerar e garantir a vida, “razão porque a sexualidade,
longe de ter sido reprimida na sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo
permanentemente suscitada” (FOUCAULT, 2001, p.129). Porém, é importante
lembrar que esse poder que garante e controla a vida da população não possui um
62
caráter humanista. Ele tem seu fundamento na razão de ser do poder disciplinar e na
lógica de seu exercício, que tornaram cada vez mais intenso o olhar sobre a
população, sua saúde, enfermidades e o que ela viabiliza pela saúde que possui, por
exemplo.
O bio-poder, que substituiu a velha potência de morte e um certo desperdício da
vida, que simbolizava o poder monárquico, permitiu o desenvolvimento rápido das
escolas e colégios não apenas como local do ensino, mas do cuidado sobre o corpo das
pessoas e local de investimento sobre a população.
A articulação entre a disciplina e as bio-políticas, como dois conjuntos de
técnicas orientadas ao homem: o primeiro voltado, para o homem-corpo, no cerne de
uma anatomia política que treinava e adaptava os organismos vistos de uma forma
mecanizada, ainda que percebidos como um corpo individual; o segundo, voltado para
o homem-espécie, alvo de uma biologia política que regulamentava os fatores vivos
da população, percebendo-a esta como algo que se massifica. Embora cada um dos
pólos apresentasse um conjunto de mecanismos e dispositivos de poder, ambos
constituíam instrumentos de normalização, destinados a aumentar a forças humanas
com vista à sua utilidade.
A manutenção do bio-poder se faz, segundo Foucault, por meio das instituições
médicas, educacionais, administrativas de poder, que mantinham as relações de
produção no nível dos processos econômicos, operando como fatores de segregação e
hierarquização social e do investimento no corpo vivo para retirar dele sua força
distributiva. Isso se tornou possível com a entrada dos fenômenos próprios à vida
humana no universo da saber, do conhecimento, isto é, com a constituição do homem
como objeto de conhecimento de uma determinada ciência, ou conjunto de ciências
que tem o homem como objeto.
63
Em tese, Foucault afirma na História da sexualidade: vontade de saber, que toda
a produção do saber gera um poder capaz de articular formas de controle. Assim, é
possível afirmar que tanto o saber-poder como a análise do bio-poder funcionam
como suportes para um conhecimento sobre o homem que permitem manter em
funcionamento instituições como a universidade.
Ligadas às mudanças nas formas de punição, está uma série de
mecanismos os quais vão desde uma transformação arquitetônica até um
tipo de investimento nos corpos dos indivíduos e no corpo social que
permitem a nova forma de exercício de poder que, conforme se verá não irá
se limitar à prisão, mas recobrirá também os quartéis, fábricas, escolas. A
nova arquitetura se caracteriza pela visibilidade e os mecanismos são as
técnicas de relação de poder. É nesse momento que se estabelece um novo
modelo arquitetônico, conhecido como panóptico e também uma nova forma
de investimento sobre os indivíduos denominado bio-poder. É com esse novo
modelo de arquitetura (panóptica) e de cuidado sobre os corpos, que a
repressão é substituída pelo poder disciplinar, poder esse, que tem seu
fundamento e sua sustentação no controle do tempo, na vigilância constante
e na produção do conhecimento.
Seguindo os pressupostos teóricos aqui apresentados, pretende-se, nos próximos
itens, aprofundar a análise dessa forma de relação de poder, que se constitui no final
do século XVIII e início do século XIX, tendo como foco central, a partir desse
momento, a Educação e as práticas escolares.
2.5 As técnicas disciplinares e as instituições de ensino
Para Foucault, as principais funções da sociedade disciplinar têm sua base e seu
fundamento no controle do tempo e dos corpos. Pode-se dizer que o controle do tempo
é exercido como prática contínua não só nas fábricas, nas prisões, nos orfanatos, nos
hospitais, nas casas de recuperação, mas também nas instituições educacionais, mais
precisamente nas instituições escolares, que tomamos como objeto privilegiado para
este estudo. Na educação, essa nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil se traduz
numa utilização exaustiva do tempo, com o objetivo de intensificar seu uso nas
atividades. Nesse contexto, a rapidez se apresenta como uma virtude, mas não
64
somente ela, trata-se do cuidado com os prazos para a entrega das atividades, a
finalidade e assiduidade ao cronograma de atividades propostas, etc. Em resumo, o
que se busca é a eficiência e, para tanto, deve-se atentar para algumas características
do ambiente em questão, dos atores envolvidos e da própria integração entre ambiente
e indivíduo.
O cuidado com os hábitos deve instigar à ação. Não cabe à disciplina produzir
corpos sobre os quais seja preciso fazer incidir constantemente uma parcela de
coerção e intimidação. Ao contrário, são corpos aptos para a ação sem que isto
implique na necessidade de se ter presente, a todo o momento, a coerção. Por ser
dispendioso na economia de forças empregadas, tal procedimento seria alheio a seus
mecanismos. Para essa economia é muito mais interessante “fabricar assim corpos
submissos e exercitados, corpo dóceis” (FOUCAULT, 1987, p. 127).
A disciplina postula, igualmente, que se deixe de lado os aglomerados de
pessoas, a massa desarranjada e disforme. Diferentemente, ela propõe uma disposição
de indivíduos no espaço físico, que se separem convenientemente os corpos, que se
mantenha a devida distância entre eles, e que cada um esteja individualmente
ocupando o seu devido e próprio espaço, o clássico “espelho de classe”, o mais que
isso, suficiente para que cada indivíduo exerça a sua atividade, sem interferir e sem
que seja interferido pelos demais. Somente nesse sentido é que se pensa, na sociedade
disciplinar, o conceito de coletivo, no sentido de unidade, de participação, de
colaboração e, principalmente, de eficiência. Não importa se o espaço sico é aberto
ou fechado, o importa é que o mesmo seja totalmente preenchido, de acordo com as
necessidades da atividade.
Outros instrumentos que devem estar presentes para o funcionamento do poder
disciplinar, em especial na educação, são o olhar hierárquico, a sanção normalizadora,
65
além do exame, que combina os dois primeiros. Tal combinação de fatores pode ser
aplicada nas mais diferentes atividades. Os militares utilizam-se da “ordem unida”,
nos quartéis, ou a disposição das camas, nos alojamentos, as disposições das mesas
nos setores administrativos dos grandes escritórios, a distribuição do maquinário na
indústria e, nas escolas e nas instituições de ensino superior, a organização das
carteiras em filas demonstra que o principio é sempre o mesmo (FOUCAULT, 1987,
p. 132-135). Deve-se ter presente que o fim das filas e a organização em círculos, por
exemplo, não significa senão uma nova opção para o olhar do professor. É
interessante notar também que é o exame que qualifica os estudantes para a evolução
em séries, que são dispostas gradualmente.
É evidente que de nada adianta um corpo, ainda que individualmente bem
treinado e adestrado, se não for capaz de executar os procedimentos a ele
determinados sem o devido sincronismo com os outros corpos. Com isso, Foucault
decompõe o conceito de disciplina em mais um componente, qual seja o tempo, que é
necessário e indispensável para que a eficiência seja alcançada. Assim, cada atividade
deve começar e terminar em horários pré-estabelecidos e o desenrolar das tarefas
obedecerá a um sincronismo próprio.
Mas a disciplina busca uma espécie de auto-regulação. No caso das instituições
educacionais, quanto mais eficiente for o sistema disciplinar, menor será o número de
inspetores, de colaboradores e outras figuras que se agregam ao universo escolar com
o objetivo de manter a ordem, corrigir, organizar, fixar, regulamentar e, em última
instância, transformar o que não é útil em utilidade e eficiência, conforme se lê a
seguir:
A escola torna-se um aparelho de aprender, onde cada aluno, cada nível e cada momento, se
estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino.
Um dos grandes partidários da escola mútua a medida desse processo: Numa escola de 360
crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno, por sua vez, durante uma sessão de três
66
horas, poderia dar meio minuto a cada um. Pelo novo método, todos os 360 alunos escrevem,
lêem ou contam durante duas horas e meia cada um (FOUCAULT, 1987, p. 149).
O controle rigoroso, aliado a outras regulamentações, forma um sistema punitivo
composto por um mecanismo de dispositivos disciplinares, que é o que faz funcionar
as normas gerais da educação. Tais normas permitem a mediação dos desvios e a sua
redução por meio da ampliação de micropenalidades a pequenos desvios, como
atrasos, ausências, interrupções das tarefas, desatenção, negligência, falta de zelo,
desobediência, tagarelice, insolência, atitudes incorretas, gestos não conformes,
sujeira, imodéstia, indecência, etc, uma vez que “o treinamento dos escolares deve ser
feito da mesma maneira: poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um
silêncio total que poderia ser interrompido por sinais” (FOUCAULT, 1987, p.
149).
Essas técnicas disciplinares, entendidas como o controle sobre o espaço e o
tempo, além da vigilância e do saber que produz saber, acrescidas de tantas outras
formas sutis de aprisionamento dos corpos, são a garantia para o bom adestramento,
para a boa subordinação. E elas se aplicam de forma privilegiada na escola: “a escola
mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos
sinais a que se tem que reagir imediatamente. Até as ordens verbais devem funcionar
como sinalização” (FOUCAULT, 1987, p. 150). Dessa forma, se tem que a escola não
é apenas uma representante das instituições disciplinares, mas um espaço privilegiado
tanto para o controle sobre os indivíduos quanto, o que é mais importante, para a
produção de sujeitos, se não docilizados, ao menos tão rebeldes quanto o próprio
sistema permite e precisa.
2.6 Os mecanismos que permitem o funcionamento da disciplina
67
Da mesma maneira que os colégios confessionais, as instituições educacionais
de ensino superior são bons exemplos da presença de mecanismos disciplinares, tais
como a seriação e a distribuição espacial. Entre outras características, é possível
observar que essas instituições separam convenientemente os estudantes que são
distribuídos em classes, em grupos de trinta a quarenta e cinco alunos, ou com
algumas turmas maiores, como é o caso de até sessenta alunos nas instituições
particulares.
Com esse esquema de distribuição e divisão em classes, é possível garantir a
visualização e o controle de tudo o que está acontecendo dentro das salas de aula,
possibilitando, assim, verificar e observar se todas as turmas, dos mais diferentes
cursos, estão cumprindo as tarefas que lhes foram designadas.
Além da seriação do ensino e da distribuição dos alunos em pequenos grupos,
tem-se também o cuidado de que as atividades de todos os grupos iniciem e terminem
no mesmo horário, o qual é estipulado no início do ano letivo, seguindo normas
estabelecidas pela própria instituição educacional a partir da crença de que, com o
tempo fracionado, com horários bem definidos de entrada, saída e intervalos, o ritmo
coletivo e obrigatório, produto da programação de uma série de gestos previamente
definidos, permite o ordenamento na sala de aula, que parece, em alguns casos, ser
mais importante do que os conteúdos ali trabalhados. Tal rigor no cumprimento dos
horários com vista à constituição de um tempo das ações integralmente úteis é,
segundo Foucault (1987, p. 137), uma das “virtudes fundamentais” que se cultiva
naquelas instituições.
A atenção voltada para o relógio não cuida apenas de “construir um tempo
integralmente útil” (FOUCAULT, 1987, p. 137), mas de fazê-lo visando a “uma
68
espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento” (FOUCAULT, 1987, p.
138).
O fracionamento do tempo é articulado com o fracionamento dos espaços,
objetivando de que cada indivíduo se encontre e permaneça em seu devido lugar, bem
como o fracionamento dos gestos, “a posição do corpo, dos membros, das
articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma ampliação, uma
duração; é prescrita sua ordem de sucessão. Assim, o tempo penetra o corpo, e com
ele todos os controles minuciosos do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 138).
Tais gestos não são apenas previamente definidos, mas correlacionados entre si,
visando “à atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez”,
enfatizando, dessa forma, em relação ao corpo, um princípio geral da disciplina: “No
bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar
ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido”, [pois]
“corpo bem disciplinado forma o contexto da realização do mínimo gesto”
(FOUCAULT, 1987, p. 138). Ora, “um corpo disciplinado é a base de um gesto
eficiente (...). A disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com
o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro”
(FOUCAULT, 1987, p. 139).
No caso das instituições de formação de professores, conforme se verá adiante, a
pesquisa mostrou que o mesmo sistema de vigilância e controle é praticado, porém,
em alguns casos, de uma forma mais sutil. Todavia não se pode deixar de constatar
que as aulas seguem o princípio da seriação, que o espaço físico é dividido em blocos,
salas, seguindo o princípio da visibilidade que, em cada sala são colocados
determinados grupos de alunos, dispostos em filas, com horários pré-definidos para
69
entrada, saída e intervalos, etc. Daí que as exigências de escolarização são, em si,
disciplinares.
2.7 O espaço da visibilidade (modelo panóptico) nas instituições educacionais
Em sua arquitetura e divisão do espaço interno, nas instituições educacionais, da
mesma forma que em algumas repartições públicas, é comum encontrar uma recepção
separando o ambiente interno do ambiente externo. Esse tipo de separação, feita na
entrada, tem por objetivo não permitir que os desejáveis internos se evadam ou
circulem nos ambientes externos e que indesejáveis estranhos ao sistema circulem
nele.
Por sua vez, nessas instituições educacionais, os corredores devem estar vazios
durante as aulas, principalmente de alunos, pois se eles estiverem fora de seus lugares
durante as atividades, serão imediatamente identificados pelos ruídos de seus passos e
de suas vozes e passiveis de receberem as punições previstas. Esse exercício de poder
mostra-se econômico, nesse sentido, pois se esse mecanismo de controle funcionar,
todos serão facilmente vigiáveis.
Com cada turma de aluno em sua sala é desfeito o aglomerado perigoso e
imprevisível de milhares de alunos, que são divididos em pequenos grupos e cada um
desses grupos alocados em compartimentos, salas, que podem ser estrategicamente
vigiadas, como é igualmente o caso das salas com vidros cobertos com películas de
insul-filme nas portas, no espírito proposto pela arquitetura panóptica.
No caso do curso em estudo, o grupo de alunos é formado por aproximadamente
400 “corpos dóceis”: “O corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas
operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O
70
poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não analítica e ‘celular’,
mas também natural e ‘orgânica’” (FOUCAULT, 1987, P. 141).
Dessa forma, para garantir o bom funcionamento do trabalho nessas instituições,
cada indivíduo -o aluno, o professor, o coordenador, o pedagogo, etc. - deve estar em
seu lugar e cumprindo sua função. O corredor vazio durante as atividades escolares é
tomado como sinônimo de que os professores estão ensinando, os alunos estudando e
os funcionários desenvolvendo suas funções. Significa que o tempo, medido e pago,
no caso especial de instituições privadas, está sendo utilizado sem deixar espaços para
impurezas ou defeitos. Durante o transcurso de um tempo limpo e de qualidade, “o
corpo deve ficar aplicado a seu exercício (...). A exatidão e a aplicação são, com a
regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p.
137).
De forma análoga ao que se tem em outras instituições disciplinares, nas
educacionais foi criado uma estrutura própria, de forma a proporcionar um olhar que
vigia e controla. No caso das instituições de ensino, essa vigilância é feita de forma
horizontal, aluno-aluno, professor-professor e também vertical, professor-aluno,
coordenação-professor, etc. Nessa organização, a hierarquia e a vigilância,
curiosamente, movem-se também no sentido da base para o pico, na medida em que
os estudantes são também vigilantes e cobram o bom andamento da instituição, em
especial no que tange à ordem estabelecida.
Esse processo de dominação e controle é praticado, de forma transparente, em
qualquer repartição pública ou privada ou em qualquer outro aglomerado humano,
devidamente organizado em torno de alguma tarefa. Esse processo de controle é
praticado em especial quando se trata de instituições educacionais, pois é muito forte
a crença de que, para existir eficiência nas atividades propostas, também a
71
necessidade de uma ordem, bem como o empenho de cada indivíduo no cumprimento
de suas tarefas, as quais devem ser realizadas no menor espaço de tempo possível.
Nesse contexto, além de corpos dóceis e produtivos, é necessário também que eles
sejam desnudos, totalmente visíveis a uma vigilância que deve ser contínua e
ininterrupta, uma vigilância à qual os indivíduos, que não podem se ocultar da luz em
cantos escuros estão constantemente expostos, de maneira contínua e perpétua.
Os registros contínuos do que é vigiado constitui um curioso saber, não no
sentido de um conteúdo clássico a ser aprendido, mas um saber sobre pessoas, sobre
seus comportamentos e os seus desvios diante da norma, um saber que permite o
estudo de formas de se evitar o desvio dessa mesma norma, o que não deixa de ser
tematizado nas ciência do homem, permitindo, conforme se viu, uma relação entre
saber e poder não por um conhecimento clássico que confere ao professor um status
de sábio, mas porque ele e a instituição de ensino acumulam um saber fruto da
vigilância, algo parecido com o saber de um padre sobre o que confessa, ou de um
analista sobre seu paciente.
Ainda que o processo disciplinador possa parecer perfeito, com os corpos
devidamente separados e individualizados, exaustivamente treinados pelas sucessivas
repetições de exercícios com complexidade crescente, sincronizados pelo tempo pré-
estabelecido, não se terá a certeza da sua eficiência se não se estabelecer um sistema
de controle avaliativo, o qual exigirá a identificação e o registro de cada indivíduo
numa série em que se têm pequenas punições e pequenas recompensas. Como parte do
exame, periodicamente são aplicadas avaliações com conotações de prêmio e castigo,
com o intuito de separar os bons dos maus, os competentes dos incompetentes, os
aptos dos inaptos, conforme se verá a seguir.
72
2.8 O papel da avaliação para o funcionamento do poder disciplinar
A questão da avaliação, à luz do pensamento de Michel Foucault, e como parte
de relações de poder vem sendo analisada por diversos autores no Brasil. Entre eles,
merece destaque Adriana de Oliveira Lima, que toma o pensamento de Foucault como
referência para realizar um estudo das relações de poder, presentes no processo
ensino-aprendizagem. Em suas análises, dando ênfase às questões de disciplina,
dominação, punição e submissão, a autora toma, como objeto de estudo, provas
realizadas por estudantes, as quais são utilizadas como modelo para explicar como se
constituem um dos principais mecanismos de um tipo de exercício de poder, de tal
forma que “vão tomando abrangência de tal forma que chegam a perder sua relação
com a avaliação da aprendizagem” (LIMA, 1996, p.21).
Segundo aquela autora, é possível, com estudos foucaultianos, compreender
“que o instrumental provas e testes tem sua origem justamente no contexto da
apropriação e/ou divisão do poder e que, dessa forma, o âmago da discussão está em
desvendar os mecanismos do exercício de poder... Esses mecanismos de vigilância, de
punição e de disciplina certamente nos demonstram a luta contínua em sua existência
no concreto, no especifico” (LIMA, 1996, p. 31-32).
É nos instrumentos de avaliação que estão expostos os conhecimentos que
permitem o sucesso ou determinam o fracasso do indivíduo. A avaliação constitui-se
um espaço de legitimação, hierarquização, exclusão de conhecimentos, um campo do
saber que está embutido no currículo e nos programas de formação de professores. É
certo que não se trata apenas do currículo em si, mas, sim, do discurso sobre o
currículo, que constitui um dos elementos-chave da relação saber/poder. A eficácia do
poder disciplinar deve-se, como procuramos salientar, ao emprego sistemático de
instrumentos bastante corriqueiros: a vigilância, que é hierárquica, contínua e
73
silenciosa; a medição, que é comparativa; a punição, que é corretiva, diferenciadora e
normalizadora. Porém, é a combinação de tudo isso, num procedimento específico que
é o exame, que representa o cerne desse modelo. Dessa forma, a análise do sistema de
avaliação permite, segundo Foucault, “captar o poder em sua extremidade e em suas
últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar..., ele se prolonga, penetra nas
instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção
material” (FOUCAULT, 1982, p. 182).
Os exames, formas de vigiar, controlar, punir e criar indivíduos, permitem a
circulação do poder em instituições e têm por finalidade, a princípio, transmitir e
produzir conhecimentos num sistema em que, segundo Lima,
o poder não poderá ser percebido como fenômeno de dominação maciço e homogêneo
(individuo, grupo ou classe sobre os outros), mas como circular, em cadeias, algo do qual
ninguém pode apropriar-se como no caso de um bem. Dessa maneira, compreender o poder é
aproximar-se mais do micro, de sua existência social mais concreta (ao nível de buscar suas
formulações gerais) e perceber “como” realizar seus desdobramentos para os níveis celulares da
sociedade. Assim, nas relações intra-escolares, uma produção de saber que lhe é específica e
constitui um “sistema de verdades” (...) em que sistema de verdade, sob que “sabersubsiste a
escola em seu “saber” e “verdades” internas (LIMA, 1996, p. 34).
Para exemplificar o cotidiano pedagógico e sua relação poder/saber, a autora
usa, como exemplo, a resolução do cálculo num texto que trata da significação do
poder no interior de uma prova. “O cálculo é estruturado de maneira que o único
meio de resolução seja a montagem do ‘esquema’ dado pelo professor” (LIMA, 1996,
p. 43), um esquema que vem, na maioria das vezes, preparado ou indicado pelo
sistema de ensino dentro da sua norma padrão, que o professor também deve obedecer
e seguir determinadas regras. Segundo a referida pesquisadora, em nenhuma prova
aparece a tentativa de emprego de novos meios para se tentar chegar às soluções das
74
questões” (LIMA, 1996, p. 43). Com isso, é possível perceber “um poder ainda mais
celular exercido pelo professor, que consiste na maneira como devem ser resolvidas as
questões” (LIMA, 1996, p. 43). Dessa forma, pode-se afirmar que o professor, ao
utilizar a forma costumeira e normativa de se resolver determinadas questões, acaba
na maioria das vezes, passando ao largo ou deixando escapar um conjunto de
respostas criativas, que são ou que poderiam ser produzidas por seus alunos. Isso
porque as resoluções criativas fogem ao padrão normal apresentado pelo sistema de
ensino.
Não se pode perder de vista que tal procedimento é imposto, em muitos casos,
também ao professor pelo sistema de ensino, que chega à escola já determinado em
muitos de seus detalhes. Com essa prática, tanto na escola regular como no ensino
superior, o estudante é levado a seguir sempre o esquema normativo que o mestre lhe
propõe ou impõe.
Essa mesma questão (da avaliação) é abordada e analisada por Cipriano Carlos
Luckesi, que também utiliza o pensamento de Michel Foucault como referência para
seus estudos. Em sua pesquisa, ele mostra como a avaliação tem sido tomada como
instrumento de exercício de poder disciplinar sobre o aluno. Segundo ele, “A
avaliação da aprendizagem constituiu-se num lugar especial, por onde, através do
nível micro das relações interpessoais, se processa uma larga e consistente forma de
administração do poder, que conforma os sujeitos a um modo de ser, a um caráter”
(LUCKESI, 1992, p. 03).
Com base na obra Vigiar e Punir, Luckesi declara que existe uma rede
microfísica, na qual emerge na forma de um exercício de poder, na qual a avaliação da
aprendizagem escolar possui várias instâncias julgadoras, que tornam evidentes os
aspectos positivos e negativos de cada estudante. Desse modo, “a avaliação da
75
aprendizagem, articulada com outras esferas da ação pedagógica, cria condições para
um engessamento da personalidade do educando” (LUCKESI, 1992, p. 05).
O processo de avaliação permite a constituição de dados e a descrições de fatos
que podem ser utilizados com a finalidade de legitimação de comportamentos e
habilidades, ou para a reprovação e mudanças de outros. Dessa forma, ela facilita a
definição dos destinos sociais dos sujeitos, classificando-os, hierarquizando-os,
aprovando-os e reprovando-os. Nesse contexto, a linguagem não é mais vista como
veículo ou mediação da realidade, como se teve no período da representação. Ela
mesma é um instrumento de constituição, de produção de realidades, ou seja, um
instrumento de exercício de poder.
Se analisarmos os discursos que constituem os currículos, percebemos que eles
corporificam noções particulares sobre o conhecimento, sobre a forma de organização
da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Esses discursos indicam qual
conhecimento é legítimo, qual é ilegítimo, quais formas de conhecer o válidas e
quais não são. Eles têm o poder de autorizar ou desautorizar, incluir ou excluir. Nesse
processo discursivo, o indivíduo é produzido como um sujeito particular,
economicamente produtivo e politicamente dócil. O poder está inscrito nos currículos
que controlam, regulam e governam o conhecimento acadêmico veiculado nas
instituições de ensino, um conhecimento que não se separa das regras de regulação e
controle que definem suas formas de transmissão e sua forma de avaliação.
Observa-se nesta pesquisa que, nas instituições de ensino e em particular no
curso de formação de professores, objeto de estudo desta dissertação, estão
subordinadas a funções de controle, nas quais o currículo é o elo de ligação entre o
conhecimento e as regras que determinam sua transmissão e, por sua vez, a avaliação
é vista como elo de ligação entre o que é transmitido e o que se aprendeu. Vale ter
76
presente que a avaliação permite o controle do desempenho individual, tendo como
pano de fundo os conteúdos propostas nos programas de aprendizagem do curso.
No currículo tem-se claro, por meio da vigilância hierárquica e em especial do
exame constante, o que deve ser considerado como qualidade, tanto no que se refere
ao trabalho do discente quanto do docente. Tais mecanismos possibilitam o
estabelecimento de saberes sobre aqueles que se vigia, bem como a ligão entre o saber
que deles se extrai e o poder que se exerce sobre eles. Nesse caso, o registro permanente
se o instrumento fundamental do poder disciplinar, que pode ser mais individualizado e
contínuo do que na Idade Clássica, estudada por Foucault, em que o exercício do poder
se dava de forma descontínua, global e confusa. O exame possibilita a retirada do
indivíduo do anonimato, identificando nele desvios ou méritos, que poderão ser punidos
ou recompensados. O indivíduo deve exteriorizar o que sabe no exame e, por meio dessa
exteriorizão, se estabelece um saber sobre ele. O exame é, na escola, uma constante
troca de conhecimentos entre o professor e o aluno, reservando um conhecimento
específico do professor sobre o aluno, mas também da instituição sobre o professor, em
especial no quadro de avaliações institucionais que tomam o professor como objeto de
avaliação.
O exame faz a individualidade tornar-se visível e entrar num campo
documentário, em que tudo é registrado, além de ser premiado ou recompensado
conforme o caso. A sanção normalizadora é uma arte de punição fundamentada no
desempenho de cada indivíduo em relação aos colegas ou às regras desse conjunto.
Sua função, a partir da aferição feita pelo exame e pela subseqüente classificação dos
indivíduos, é coagir aqueles que apresentam um rendimento abaixo do esperado,
tomando parte no mesmo processo classificatório que define a ascensão dos níveis
subseqüentes das classes escolares ou a ocupação de outros espaços institucionais em
77
níveis graduais. A própria classificação e a ascensão, ou não, a níveis mais elevados
é, ela mesma, parte da punição ou da recompensa, uma vez que a aprovação e a
reprovação são apresentadas como castigo ou recompensa.
Por meio dos dispositivos da avaliação, as instituições de ensino básico e de
formação de professores julgam, segundo seus padrões de verdade, a verdade
discente, definindo sobre as medidas apropriadas a serem tomadas para garantir a
aquisição do conhecimento, projetando modos de correção, elaborando diagnósticos e
prognósticos. Com a avaliação, o professor põe em prática seu poder de julgar e
sentenciar o lugar a ser ocupado pelo indivíduo que passou pelo processo avaliativo.
A avaliação, nesse contexto, é o olhar que compara, estabelece as diferenças,
hierarquiza, homogeneíza e inclui, aluno e professor, na topologia social. É ela que
define o lugar que cada indivíduo deve ocupar, em vel intelectual, na hierarquia
social.
No sistema educacional brasileiro, o exercício de poder não acontece em casos
isolados. Nele há sempre uma ordem panótica que é necessária para possibilitar a ação
pedagógica. O exame é um fator inestimável num sistema que avalia alunos,
professores, instituições, programas de pós-graduação, correspondendo à afirmação de
Foucault, quando afirma que uma escola
se torna uma espécie de aparelho de exame ininterrupto, que acompanha em todo o seu
comprimento a operação do ensino. Tornar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os
alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos,
que permite ao mesmo tempo medir e sancionar (FOUCAULT, 1987, p. 166).
O que se vê, a partir das análises de Foucault, é a necessidade de se fazer uma
reflexão do tipo de profissional que é necessário ser formado pelas instituições de
ensino e, em especial, as instituições que formam profissionais que atuarão na área da
78
educação. Será que esses devem se submeter aos interesses dominantes e deixar na
exclusão milhares de jovens? Será que, ao buscar a inclusão de todos no sistema
educacional, o que se visa é de fato uma melhoria da qualidade de vida das pessoas ou
a viabilização da produção de corpos menos perigosos e mais aptos a certas tarefas?
Qual será a posição assumida nas instituições de formação de professores, tendo em
vista o cidadão-profissional que se propõe a preparar, frente aos jogos de poderem que
eles estão inseridos? Como estão sendo trabalhados os conceitos de disciplina, saber e
poder nos discursos pedagógicos de formação desses profissionais, que atuam como
formadores e educadores das futuras gerações?
Por meio de suas análises e dos conceitos mencionados anteriormente, Foucault
permite que se remeta àquelas questões de maneira muito atual e profunda, mostrando
que as instituições de formação de professores passam a constituir-se num
observatório político, num aparelho que permite o conhecimento, o controle de seus
componentes. Na busca por respostas a tais indagações e para verificar a prática dos
conceitos saber/poder no curso de Pedagogia de uma instituição de ensino superior
privada, far-se-á, no terceiro capítulo desta dissertação, uma análise dos documentos
que delegam competências a todos os envolvidos no programa do curso, com a
finalidade de investigar e fiscalizar todas as etapas desse programa, bem como
algumas das ementas utilizadas entre 2000 e 2005.
79
3. O PODER DISCIPLINAR E OS CURSOS DE FORMÃO DE
PROFESSORES: UM ESTUDO DE CASO
Neste capítulo será feita uma análise interpretativa do programa de formação de
professores do curso de Pedagogia da instituição em estudo, considerando o Projeto
Institucional e a Organização Didático-Pedagógico no período de 2000 a 2005. O
objetivo proposto é verificar a presença, nesse documento, dos conceitos ligados à
temática da disciplina trabalhados por Foucault. Esse estudo levará em conta
especialmente algumas ementas de Programas de Aprendizagem constantes na
programação do curso em estudo, bem como o programa de avaliação institucional
descrito no Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso.
Organizar-se-á esta análise tendo-se como referência, em primeiro lugar, o que
Foucault aponta como as “técnicas” (FOUCAULT, 1987, p. 130), ligadas à disciplina,
e, em segundo lugar, o que ele denomina de “recursos para o bom adestramento”
(FOUCAULT, 1987, p. 153).
3.1 As técnicas disciplinares e o Curso de Formação de Professores
As técnicas disciplinares são alguns mecanismos simples, desenvolvidos pela
sociedade industrial moderna a partir da descoberta de que o homem não é dado pela
natureza, como se tinha até o início do século XVII, que era a figura do soldado ideal,
alguém que já se reconhece como tal por seus traços de nascença. No caso do soldado,
pela sua força, vigor e coragem. Diferentemente, a partir da segunda metade do século
XVIII, descobriu-se que o homem, da mesma maneira que um soldado, é algo que se
fabrica: “a partir de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que
se precisa” (FOUCAULT, 1987, p. 125).
80
Essas técnicas surgem, assim, a partir da descoberta de que posturas podem ser
corrigidas, que uma coação pode percorrer lentamente as partes do corpo,
assenhorando-se dele para torná-lo disponível para aquilo que se espera dele, a partir,
portanto, da descoberta do corpo como “objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, p.
125). São elas que permitem a união entre o corpo analisável e o corpo manipulável,
visando a aumentar suas aptidões e, ao mesmo tempo, acentuar sua dominação.
Considerar-se-á, neste primeiro grupo, as seguintes técnicas: a arte das
distribuições, o controle da atividade, a organizão das gêneses e a composição das
foas, e serão tomados alguns exemplos que ilustrem a presença desses aspectos nas
ementas estudadas e também na organização do documento em estudo.
3.1.1 A arte das distribuições
O primeiro elemento que constitui o primeiro conjunto, a arte das distribuições,
corresponde à organização do espaço, partindo do princípio do quadriculamento
individualizante, conceito já mencionado no segundo capítulo desta dissertação.
Com a prática do quadriculamento, os indivíduos devem ocupar espaços
determinados em que possam ser vigiados e controlados permanentemente. Essa
prática é possível de ser verificada na ementa do Programa de Aprendizagem
“Educação infantil 0 a 6 anos: conhecimentos e metodologias”, que tem a seguinte
redação: “Concepções existentes sobre a Educação Infantil, função atual da Educação
Infantil, o cuidar, educar e aprender em situações orientadas. Desenvolvimento e
aprendizagem na etapa de 0 a 6 anos. Características evolutivas. O currículo da etapa.
As áreas curriculares e os principais blocos de conteúdos. Os ciclos na etapa de
Educação Infantil. O planejamento da ação educativa. A jornada escolar na creche e
81
na pré-escola. A organização do espaço em uma creche. Áreas do planejamento a
serem planejadas e implementadas na Educação Infantil”.
Essa ementa se constitui claramente dentro do modelo em questão. Nela pode-se
notar a preocupação, com o professor que está sendo formado, em conhecer “a
organização do espaço em uma creche”. Isto remete à idéia de que o espaço não é algo
dado, mas que deve ser pensado, planejado e construído a partir de certas finalidades
esperadas.
Outro aspecto que aparece na ementa e que traduz a “arte das distribuições” é a
seriação do ensino, especialmente quando se fala em “etapas” e em “características
evolutivas”. A idéia que está presente aqui é de que cada indivíduo, de acordo com a
idade e o nível intelectual, deverá ser colocado num determinado lugar, com um
determinado grupo de nível intelectual semelhante. Com esse modelo, cada indivíduo
deve ocupar seu lugar num espaço pré-determinado.
A utilização desse novo modelo (seriado) em oposição às organizações maciças
e, ao mesmo tempo confusas, é considerada de grande importância no contexto
educacional, a partir do final do século XVIII até os dias atuais. A organização do
espaço e a disposição das carteiras são preocupações marcantes nesse modelo, e
elementos indispensáveis ao controle das atividades e à vigilância hierarquizada,
condições indispensáveis ao bom funcionamento e à produtividade no sistema
educacional.
3.1.2 O controle da atividade
Um segundo dispositivo característico da disciplina, o controle da atividade,
também pôde ser observado como uma preocupação presente nas ementas do curso
estudado e que foram analisadas. Conforme se observou no segundo capítulo desta
82
dissertação, o controle da atividade consiste numa arte do corpo humano, na qual os
gestos passam a ser decompostos, observados na forma como são realizados, de modo
que se possa descobrir os menores gestos para cada ação, aquele que ocupa menos
tempo e é o mais eficaz. Para isso, o tempo é decomposto com o objetivo de se tornar
o mais útil possível. Esse dispositivo penetra cada ato, cada gesto, por menor que seja,
determinando sua direção e tempo de duração, constituindo, por fim, um controle
anátomo-cronológico do comportamento do indivíduo.
O controle da atividade foi observado, por exemplo, na ementa dos seguintes
Programas de Aprendizagem:
a. “Estágio supervisionado no Ensino Fundamental 1
a
e 2
a
séries do 1
o
ciclo”, que tem a seguinte redação: “Diagnóstico da realidade,
procedimentos e instrumentos de coleta de dados, organização e
sistematização da análise de dados, aplicado à docência no 1
o
ciclo,
propondo e desenvolvendo estratégias que atendam às necessidades e
expectativas individuais e coletivas do contexto de atuação”.
“Estágio supervisionado no Ensino Fundamental 3
a
e 4
a
séries do 2
o
ciclo”, que possui a seguinte redação: “Diagnóstico da realidade,
procedimentos e instrumentos de coleta de dados, organização e
sistematização da análise de dados, aplicado à docência no 1
o
ciclo,
propondo e desenvolvendo estratégias que atendam às necessidades e
expectativas individuais e coletivas do contexto de atuação”.
b. “Estágio supervisionado na Educação Infantil”, que possui a seguinte
redação: “Pesquisa diagnóstica, projeto de pesquisa, mapeamento da
realidade, procedimento de coleta de dados, organização de instrumentos e
83
análise dos dados obtidos (Projeto Institucional e Organização Didático-
Pedagógico). Elaboração de projeto de intervenção de forma inovadora”.
c. “Estágio supervisionado em classes de alfabetização”, que possui a seguinte
redação: Pesquisa diagnóstica, procedimentos e instrumentação de coleta de
dados, organização, sistematização e análise aplicadas à docência na
educação infantil. Reflexão sobre a prática pedagógica, propondo
alternativas que atendam às especificidades do contexto de atuação”.
d. “Estágio supervisionado (educação de jovens e adultos)”, que é descrita
como segue: “Pesquisa diagnóstica. Elaboração de um projeto institucional
para intervenção na realidade, tendo como foco o processo ensino-
aprendizagem de jovens e adultos”.
e. “Atividades acadêmico científico culturais”, que têm a seguinte redação:
“A realização de pesquisa na ação docente, enfocando a construção do
conhecimento por meio de levantamento diagnóstico, elaboração de projeto e
relatórios de pesquisa, divulgação dos resultados em eventos promovidos
pelo CSFP e outras instituições (Seminários, Semana de Extensão,
Encontros de educadores etc.)”.
Nota-se, nessas ementas, a idéia de se produzir um gesto eficiente, articulado
com os demais corpos e objetos do aparelho de produção escolar, no mínimo de tempo
possível, como diz Foucault. É o que se lê, por exemplo, na primeira ementa, quando
se coloca em foco com “o contexto de atuação”; na segunda, quando se tem presente o
desenvolvimento de estratégias “que atendam às necessidades e expectativas
individuais e coletivas do contexto de atuação”; na terceira, quando, novamente, se
apresenta a preocupação com um “mapeamento da realidade”, aspectos que permitem
a articulação entre espaço, tempo e corpos numa atividade controlada.
84
Pode-se verificar que a mesma intenção de controle das atividades se faz
presente também no Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do
curso, por exemplo, onde se lê: “O cumprimento das atividades pertinentes a cada
campo de estágio será condição básica para aprovação do professor/estudante. No
estágio supervisionado, estará automaticamente reprovado o professor/estudante que
faltar mais de 10% da carga horária estabelecida para o estágio”. Nesse caso,
independente do motivo que levou o professor/aluno a faltar no estágio, o mesmo
deverá repor de qualquer maneira essa falta, mesmo que essa seja devidamente
justificada. “O professor/estudante poderá ter atraso de, no máximo, 10 (dez) minutos
nos dias de estágio (...). Quando ocorrem 02 (dois) atrasos superiores a 10(dez)
minutos do horário do estabelecimento, estes serão computados como 1(uma) falta”.
Caso o supervisor de estágio julgue necessário, “o professor/estudante poderá repor o
máximo, de 10% de faltas com tarefas e atividades pedagógicas”.
Esse mesmo mecanismo (o controle) pode ser relacionado com o diagnóstico da
clínica médica, como se viu no primeiro capítulo desta dissertação, em que se
percebe que, em relação á medicina clínica, “quanto mais geral fosse a essência mais
simples ela seria” (MACHADO, 1982, p. 105). Em relação á clínica “a simplicidade
está ao nível dos elementos e a complexidade dos casos individuais é dada pela
combinação desses elementos” (MACHADO, 1982, p.105).
Para Foucault, “a gênese da manifestação da verdade é também a gênese do
conhecimento da verdade. Não existe, portanto, diferença de natureza entre a clínica
como ciência e a clínica como pedagogia” (FOUCAULT, 1994, p.125). Dessa forma,
segundo Foucault,
forma-se, assim, um grupo, constituído pelo professor e seus alunos, em que o ato de reconhecer
e o esforço de conhecer se realizem em um único movimento. A experiência médica, em sua
85
estrutura e em seus dois aspectos de manifestação e de aquisição, tem agora um sujeito coletivo;
não é mais dividida entre o que sabe e o que ignora; é feita solidariamente por aquele que
descobre e aqueles diante dos quais se descobre (FOUCAULT, 1994, p.125).
3.1.3 A organização das gêneses
A organização das gêneses é a terceira das técnicas disciplinares que pode ser
observada nas ementas das disciplinas do curso estudado. Considerando o indivíduo num
processo de desenvolvimento, ela divide o peodo de um determinado aprendizado em
segmentos sucessivos (séries ou ciclos), que devem ser ministrados sucessivamente, sem
que uma nova etapa se inicie antes que a anterior tenha sido concluída e avaliada.
Esse conceito foi observado, por exemplo, na ementa do seguinte programa de
aprendizagem: “Parâmetros Curriculares Nacionais 1
a
e 2
a
séries ou 1
o
ciclo”, que
tem a seguinte redação: A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto
sócio-político, econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repetência e evasão
no Ensino Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos
alunos e professores nesse processo. O projeto educativo e a gestão participativa. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas transversais”.
Nesse caso, a disciplina supõe uma sucessão temporal que comporta dificuldades
crescentes, com um aspecto cumulativo que permite um controle maior. Torna-se claro
que a “promoção, repetência e evasão” devem constituir preocupações do futuro
profissional da educação, um profissional que deve estar atento ao processo, sem, no
entanto, possuir uma visão ctica sobre ele, seu alcance, o poder que circula por ele, etc.
Nessa ementa, foi possível observar ainda outro conceito trabalhado por Foucault, ou
seja, a composição das forças, que se verá a seguir, da mesma forma que a ementa que
apresentada poderia também ser tomada para exemplificar a organização das gêneses:
“A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto sócio-político,
86
econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repetência e evasão no Ensino
Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos alunos e
professores nesse processo. O projeto educativo e a gestão participativa. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas transversais”.
No Projeto Institucional do curso estudado, a preocupação com o processo
classificatório define os níveis, classes e ocupação dos espaços, ou seja, não se constitui
em uma preocupação voltada apenas para os alunos, mas para o próprio curso. Dessa
forma, para garantir um bom resultado na avaliação do MEC e manter seu
credenciamento, a Instituição de Ensino Superior elaborou seu próprio programa de auto-
avalição. Esse programa tem como finalidade “verificar a eficácia das relações
educativas entre professores e alunos, dos programas e disciplinas, bem como sua
dinâmica nos diferentes cursos de graduação. Desta forma, possibilitou tomar decisões
em relação a mudanças e aperfeiçoamentos nas práticas internas e à definição de novas
propostas para o ensino”.
Dessa forma, tem-se a avaliação como um princípio que abrange todo o sistema
educacional como condição para possibilitar aão pedagógica.
3.1.4 A composição das foas
A composição das forças parte do princípio de que o movimento articulado das
partes definirá o bom resultado do todo. Nesse contexto, a eficiência se manifestará na
produtividade das forças compostas. O corpo individualizado (seriado) passa a ser uma
unidade inserida em um conjunto que se caracteriza pela formação de um tempo,
composto por meio do ajustamento das forças dos indivíduos entre si, possibilitando a
87
extração da máxima quantidade de força e uma eficiência maior do conjunto assim
articulado como, funciona uma empresa capitalista.
Alguns exemplos de ementas para essa técnica podem ser apontados nos seguintes
Programas de Aprendizagem:
a. “Parâmetros Curriculares Nacionais – 3
a
e 4
a
series ou 2
o
ciclo”, que apresenta a
seguinte ementa: “A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto sócio-
político, econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repencia e evasão no
Ensino Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos alunos e
professores nesse processo. O projeto educativo e a geso participativa. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais e os temas transversais”.
b. “Organização do Centro de Educação Infantil”, com a seguinte redação:
“Atender às demissões externas e internas das instituições de educação infantil.
Contemplar as características sócio-culturais, valorizando-as e incorporando-as
nas intervenções pedagicas, permitindo propostas pedagógicas significativas,
que devem ser fruto do trabalho coletivo, respeitando o desenvolvimento da
criança em suas difereas individuais. Esse trabalho deve ser dinâmico,
intencional, sustentando uma prática democtica”.
Dessa forma, fica clara a noção de conjunto em expressões como “gestão
participativa”, bem como na noção de processo, que se expressa na frase: “o
desenvolvimento dos alunos e professores nesse processo” ou, ainda, na valorizão de
propostas pedagógicas que sejam fruto do “trabalho coletivo”.
3.2 Os recursos para o bom adestramento e os cursos de Pedagogia e de
Formação de Professores
88
O segundo conjunto utilizado nas instituições disciplinares, que se articula com
as técnicas analisadas, permitindo a circulação e o exercício do poder disciplinar é
denominado por Foucault de “recursos para o bom adestramento” (FOUCAULT,
1987, p.153). Nesse segundo grupo serão considerados os seguintes elementos: a
vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
Apresentar-se-á, na seqüência, cada recurso individualmente, como foi feito com
as técnicas disciplinares, deixando claro que tais recursos e cnicas são
interdependentes e que a apresentação, em partes, corresponde apenas a um propósito
de sistematizar à própria exposição, tornando-a clara. Tal opção permite apontar a
relação de certas ementas com certos dispositivos, porém, sem perder de vista que
cada uma reúne mais de um desses dispositivos.
3.2.1 A vigilância hierárquica
Como foi mencionado no segundo capítulo deste trabalho, a vigilância
hierárquica, primeiro elemento que forma o conjunto de recursos para o bom
adestramento, é a articulação do olhar de forma piramidal, produzindo efeitos de
poder penetrando nos lugares mais distantes, ocupando todos os espaços. Esse
conceito está presente, por exemplo, na ementa dos seguintes Programas de
Aprendizagem: “Parâmetros Curriculares Nacionais – 1
a
e 2
a
ries ou 1
o
ciclo” e
“Parâmetros Curriculares Nacionais 3
a
e 4
a
séries ou 2
o
ciclo”, apresentadas
anteriormente, neste mesmo capítulo.
Uma análise do princípio da visibilidade, como mencionado no segundo
capítulo desta dissertação, deveria ir para além dos elementos discursivos que se está
tomando em consideração para esta análise: as ementas dos Programas de
Aprendizagem. Deveria considerar também os elementos extra-discursivos, como a
89
própria visibilidade prevista nas estruturas arquitetônicas, nas portas com vidros, nos
espaços sem pontos de ocultamento, etc.
O objetivo inicial desse olhar vigilante, que se permite por meio da “presença
constante da luz”, é ser conhecido por aquele que, vigiado, constitui sobre ele um
princípio de controle. Porém, a meta final é que o indivíduo possa olhar a si mesmo,
sem que isso se processe por um fator externo, transferindo o ponto de vigilância de
uma torre fora para a consciência que produz dentro de si e que resulta no olhar atento
do indivíduo sobre si mesmo.
O controle do tempo de chegada e de permanência do aluno na sala de aula reflete
um controle sobre o próprio corpo e sobre a “produção”, preparando o futuro profissional
para o exercício das tarefas que lhe forem designadas, com rapidez e eficncia. Em uma
empresa capitalista, o uso do tempo está intimamente relacionado com a quantidade de
produção e/ou a diversidade do serviço prestado. Em instituições de ensino superior
privadas, que atuam como se fossem empresas, a mesma coisa acontece.
3.2.2 A sanção normalizadora
Um segundo recurso desse conjunto, a sanção normalizadora, pode ser
observado nas mesmas ementas mencionadas no item anterior. Ela se pauta na
dualidade castigo-recompensa, que deve atingir todo o comportamento que será
colocado, por exemplo, no campo das boas e das más notas, as quais tem o poder de
classificar e diferenciar, pela micro-economia da recompensa e da penalidade, cada
indivíduo. Com isso, conforme se viu anteriorment, a própria classificação dos
indivíduos se tornará uma forma de punir ou recompensar.
A sanção normalizadora pode ser observada, também, no discurso do Projeto
Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso em estudo, quando se
90
estabelece punições, como a reprovação, por exemplo, para aqueles estudantes que
não alcançam “nota igual ou superior a 7.0 (sete) e freqüência mínima de 75% (setenta
e cinco por cento) nas aulas e demais atividades acadêmicas previstas”( Projeto
Institucional e Organização Didático-Pedagógico).
Dessa forma, a avaliação em geral no sistema educacional pode ser analisada como
o olhar que compara, diferencia, hierarquiza, mas também que pune o aluno no mesmo
momento em que o classifica e define seu lugar na hierarquia.
Nesse contexto pode-ses afirmar que a classificão, ao mesmo tempo que
identifica as pessoas, conforme suas aptidões e comportamentos, exerce também uma
preso constante, isso porque não é interessante pertencer ao grupo dos incompetentes.
É por meio dessa justificativa que é exercitado o poder discriminador, desenvolvendo um
saber que se projeta no interior dos saberes pedagicos e das ciências humanas, os
especialistas em avaliação, os que ensinam ao professor como avaliar:
“A avaliação será feita de forma processual e contínua, considerando-se aspectos
quantitativos e qualificativos do trabalho do professor/estudante realizado junto aos
campos do estagiário, que deverá atingir um mínimo de 70% de aproveitamento ao final
do esgio. A nota final do estágio supervisionado será a media resultante das notas
obtidas em atividades desenvolvidas no estágio (Projeto Institucional e Organização
Didático-Pedagógico).
3.2.3 O exame
Nas instituições educacionais, a prática da avaliação constitui o cerne da
disciplinarização e da edificação de uma topologia para os indivíduos inseridos nesse
sistema, antecipando a previsibilidade de suas colocações e distribuições futuras na
sociedade moderna. Essa prática é a concretização do poder/saber que se
91
instrumentaliza por meio do exame que, por sua vez, é configurado na articulação
entre a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora (recursos estratégicos para
garantir a classificação, segundo os quais os alunos são incluídos em lugares
diversos).
O exame é um instrumento que se soma à vigilância hierárquica e à sanção
normalizadora, na forma de um registro contínuo. Esse conceito está presente, por
exemplo, no discurso da ementa do Programa de Aprendizagem “Trabalho de
conclusão de curso”, que tem a seguinte redação: “Organização e apresentação de
relatório de pesquisa realizado para o seminário de apresentações”. Esse registro
permanente será o instrumento fundamental do poder disciplinar. Ele possibilita o
estabelecimento de saberes sobre aqueles que se vigia, fazendo a ligação entre o saber
que deles se extrai e o poder que se exerce sobre eles.
É por meio da avaliação que se faz um diagnóstico das aptidões e dos desvios,
tanto no bom funcionamento e qualidade dos cursos quanto no aprendizado do
educando e na capacidade do professor. De acordo com o resultado, é aplicada, no
caso positivo (aprovação), a premiação e, no caso negativo (reprovação), a punição.
Com o processo de avaliação as instituições educacionais, segundo seus padrões de
verdade,julgam a verdade discente, definidos sobre as medidas apropriadas a serem
tomadas para garantir o aprendizado, projetando modos de correção, elaborando
diagnósticos, prognósticos, etc.
Na investigação dos documentos Projeto Institucional e Organização Didático-
Pedagógico do curso de Pedagogia da instituição em estudo, foi possível relacionar a
questão da avaliação, presente no documento em estudo, bem como as disciplinas e
suas ementas, com a visão de Foucault, notadamente ao se perceber a existência,
consentida, de uma indiscreta e intensa relação de poder. É um poder que, em sua
92
minúcia reguladora, delineia o ritual do olhar que atravessa do centro à periferia para
definir os critérios e a adequação da avaliação, levando em conta as previsões
comportamentais e o desempenho do estudante que comporão as estatísticas de
aprovação ou de reprovação. A estatística se transforma num parâmetro de julgamento
do próprio programa dos cursos de Formação de Professores e de Pedagogia, ambos
objeto de estudo nesta dissertação.
Um segundo aspecto que chama a atenção no que diz respeito à avaliação, em
relação ao Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico dos cursos em
estudo, é o aspecto da avaliação institucional, que se mencionou anteriormente. Como
se sabe, a avaliação de um curso de graduação é feita por um grupo de professores,
designado pelo MEC que, como avaliadores, exercem o poder de julgar, sentenciar,
premiar e punir os cursos e instituições avaliadas. No interior da instituição, organiza-
se uma avaliação permanente, tanto prevendo a avaliação externa quanto visando-a
uma otimização do curso. “Ao inserir novos procedimentos para cada curso de
graduação, a instituição vem desenvolvendo uma avaliação dos programas de
aprendizagem e dos docentes, buscando a superação dos problemas diagnosticados; a
auto-avaliação institucional cria estratégias para garantir sua autonomia em relação às
outras instituições (Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico).
Nesse sentido, é possível verificar que a sanção normalizadora não está presente
apenas no processo de auto-avaliação no âmbito exterior, mas também presente e
atuando constantemente, no interior dos indivíduos, os quais, para se manterem em
determinados cargos do sistema de ensino superior, se auto-vigiam e ao mesmo tempo
se auto-controlam e, de uma certa maneira, praticam uma espécie de auto-punição
constantemente cobrando sempre mais e mais produção.
Com essa estratégia, a instituição em estudo busca uma prática permanente de
avaliação, bem como garantir autonomia no gerenciamento e intervenção no que diz
respeito à prática de ensino dos docentes e à aprendizagem dos alunos dos cursos de
graduação.
A avaliação dos cursos consolida-se, assim, na regência das normas, do
planejamento, que define qual a resposta a dar tanto no sentido do saber dos conteúdos
quanto dos comportamentos. Dessa forma, tanto para um quanto para o outro exigem-
se padrões de verdade que se sustentam na sanção normalizadora (mecanismo de
pena ou recompensa), visando a corrigir desvios em relação ao regulamento, à lei, ao
93
horário estabelecido, à duração de um exercício, ao tempo do aprendizado e à
quantidade dos conteúdos aprendidos.
Diz o documento que a avaliação institucional deve se constituir num processo
de aperfeiçoamento constante e de crescimento com qualidade:
“Com relação à melhoria contínua, os gestores dos cursos de graduação estarão
desenvolvendo análise diagnóstica dos dados coletados com vistas à superação dos
problemas detectados, assim como a proposição de ações para a manutenção e o
aperfeiçoamento de novos procedimentos já consolidados, devendo pautar-se pela
coerência das atividades quanto à concepção e aos objetivos do projeto pedagógico e
quanto ao perfil profissional a ser formado, validação das atividades acadêmicas por
colegiados competentes; orientação acadêmica individualizada; adoção de
instrumentos variados de avaliação interna; disposição permanente de participar de
avaliação externa. Com base na avaliação, desenvolvida de 1996 a 2002, e
considerando as demandas relativas à criação e implantação de um programa de
avaliação institucional, foi ampliada a concepção de avaliação acadêmica para outras
dimensões básicas da instituição, configurando uma ampla auto-análise institucional”
(Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógio).
Dessa forma, a avaliação institucional deverá ser processual, diferenciada,
progressiva, qualitativa e continuada, fruto de um acompanhamento mais próximo por
parte dos agentes dos processos de ensinar e aprender, isto é, os docentes deverão
passar por um processo contínuo de aperfeiçoamento intelectual, pois a Instituição
tem como objetivo garantir a qualidade do profissional que compõe o quadro e
94
também a qualidade do profissional que se pretende formar, adequando-o ao mercado
de trabalho.
Nesse caso, a tulo de exemplos aponta-se alguns aspetos relevantes que serão
avaliados pela própria instituição, entre esses estão presentes:
- “Aperfeiçoar continuamente a qualidade dos processos de ensino e
aprendizagem nos cursos de graduação da instituição.
- Aperfeiçoar a gestão administrativa dos processos de aprendizagem, de ensino e
de apoio para a qualidade dos cursos de graduação. Capacitar cada agente, aluno,
professor-administrador ou funcionário da equipe de apoio a realizar um processo
contínuo de auto-avaliação em relação a seu papel no aperfeiçoamento constante da
qualidade dos processos de aprendizagem e de ensino nos cursos de Graduação da
instituição em estudo.
- Envolver progressivamente todos os agentes relacionados com o ensino de
Graduação no processo de auto-avaliação, de seu papel no aperfeiçoamento da
qualidade da aprendizagem e do ensino nos cursos de Graduação da instituição em
questão.
- Subsidiar a Pró-Reitoria Acadêmica com dados que orientem as decisões
gerenciais de aperfeiçoamento constante de qualidade de ensino da instituição em
estudo.
- Instrumentalizar os gestores dos cursos de graduação para manter, corrigir e
aperfeiçoar os diversos processos inerentes às práticas educativas de tais cursos”
(Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico).
95
Além desses aspectos a serem considerados, todos os cursos da instituição em
estudo devem atender às exigências de Resolução 56/2003, que norteia o sistema de
avaliação da aprendizagem previsto para todos os cursos da instituição. Dessa forma,
as dimensões a serem avaliadas, de acordo com o programa de auto-avaliação, são:
- “Organização e processos de ensino e aprendizagem”.
- Características do corpo docente.
- Infra-estrutura: instalações, laboratórios e recursos necessários à qualidade da
aprendizagem.
- Corpo discente e processos de ensino e de aprendizagem” (Projeto Institucional
e Organização Didático-Pedagógico).
Em relação à organização relativa aos processos de ensino e aprendizagem
(organização didático-pedagógica). O programa de auto-avaliação visa:
- “À gestão de curso”;
- à organização acadêmico-administrativa;
- ao atendimento aos alunos;
- aos projetos pedagógicos do curso;
- ao sistema de avaliação;
- à articulação entre as diferentes atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à
extensão;
- ao corpo docente;
- à formação acadêmica e profissional.;
- à condições de trabalho;
96
- ao desempenho acadêmico;
- à infra-estrutura;
- ao espaço físico;
- aos equipamentos;
- aos serviços;
- à biblioteca;
- a laboratórios, clínicas e instalações específicas” (Projeto Institucional e
Organização Didático-Pedagógico).
Não se deve perder de vista que essa avaliação se desdobrará em instâncias
menores, até atingir todos os segmentos envolvidos no processo ensino-
aprendizagem. Da mesma forma, a instituição recebe o mesmo poder, de avaliar,
julgar, punir e premiar os membros que compõem seu quadro. No caso do
professor/aluno avaliado, o professor avaliador exerce o mesmo poder deixando clara
a presença do segundo conjunto utilizado pela disciplina, ou seja, a vigilância
hierárquica, a sanção normatizadora e o exame, conjunto de recursos para o bom
adestramento.
3.4 Últimas considerações sobre a pesquisa documental
No desenvolvimento desta pesquisa, foi possível observar que o poder de
controle se encontra disposto no documento analisado tanto nas ementas dos
Programas de Aprendizagem quanto nos critérios de avaliação que envolvem os
programas dos cursos de Pedagogia e de Formação de Professores da instituição em
estudo. Esses critérios são permeados de estratégias “eficazes” e sistemáticas, com o
intuito de assegurar o funcionamento de mecanismos de controle e o exercício do
97
poder. Essas estratégias se dão por meio de níveis que estão subordinados uns aos
outros, de forma hierárquica, visando a atingir “o desenvolvimento dos alunos e
professores nesse processo”.
Dada a avaliação, a divulgação dos resultados, bem como qualquer adaptação ou
readaptação às diferentes interpretações, também está prevista no sistema avaliativo
dos referidos cursos. De acordo com o artigo 5
o
da Resolução 60/2002 - “Devem ser
divulgados aos alunos todos os resultados referentes às atividades de avaliação,
reservados os critérios específicos para o Estágio Supervisionado, a Prática de Ensino,
o Internato Hospitalar e os trabalhos de conclusão de curso” (Projeto Institucional e
Organização Didático-Pedagógico).
Pelo controle estatístico, o controle da atividade intelectual também está
garantido: “O cumprimento das atividades, pertinentes a cada campo de estágio, se
condição básica para aprovação do professor/estudante” (Projeto Institucional e
Organização Didático-Pedagógico).
Com se viuanteriormente, é possível observar que o controle perdura durante
todas as fases do programa e em todas as disciplinas que foram analisadas, pois as
especificidades de cada segmento são minuciosamente controladas. A eficiência desse
controle está garantida em uma minuciosa subdivisão e hierarquização de níveis, que
se desenvolvem da seguinte forma: MEC, coordenação geral, coordenador de
departamento, professor regente em sala e, por último, o próprio professor/aluno que,
por sua vez, controla os demais colegas e o corpo docente. Dessa forma percebe-se a
difusão do olhar que esquadrinha, que vigia a delegação do exercício de poderes
pequenos e fragmentados, como garantia de resultados que reforçam o poder do pólo
difusor.
98
Nota-se também, que o documento foi elaborado de acordo com a topologia da
instituição, no qual é delegada a competência que cabe a cada individuo, bem como
seu cargo de ocupação em que se dão os procedimentos do conhecimento do que é o
processo de avaliação. Nesse documento, Projeto Institucional e Organização
Didático-Pedagógico, fica claro um dos instrumentos do poder disciplinar: a
normalização. É possível observar, também que o documento em estudo tem por
objetivo orientar e normalizar a função e a atuação de todos os indivíduos que estão,
de uma forma ou de outra, envolvidos nesse programa educacional, mais precisamente
no programa de formação de professores da instituição estudada.
Da análise documental podemos inferir também que os mecanismos de controle
tanto do corpo docente quanto do corpo discente formam uma complexa pirâmide de
olhares, os quais estão praticamente sempre de acordo com a hierarquia, de acordo
com a ocupação e a importância de cada membro que compõe o processo num todo. O
controle, a vigilância, a normalização, a produção de conhecimento ocorrem do início
ao fim do processo de desenvolvimento do documento Projeto Institucional e
Organização Didático-Pedagógico.
Em relação à avaliação de cada disciplina em estudo, percebemos que a
vigilância e o controle estão explícitos, o que é possível observar até mesmo no
momento da orientação de como o indivíduo deve proceder no dia e no momento da
avaliação. O mesmo acontece com o professor que, de certa maneira, também está
sendo observado, controlado e avaliado, uma vez que o mesmo deve seguir as normas
que são impostas pelo próprio sistema de ensino. Caso o professor atrase com a
correção e os resultados da avaliação, o mesmo é advertido, pois tem um prazo
estipulado para a entrega das notas. Nesse caso, há cobrança tanto por parte da
coordenação do curso quanto dos alunos, ansiosos para saber se foram premiados com
99
a aprovação ou punidos com uma eventual reprovação. Esse procedimento revela a
teoria foucaultiana sobre a disciplinarização: “A disciplina exerce seu controle, não
sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento” (FOUCAULT, 1996,
p.106).
A disciplina, enquanto vigilância constante, pode ser percebida nas atribuições
que constam no projeto pedagógico dos cursos: “A disciplina é uma técnica de poder
que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às
vezes, ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o
tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares” (FOUCAULT,
1996, p.10).
Esse sistema se desdobra no aperfeiçoamento, na multiplicação e na
diversificação de instrumentos de vigilância, de modo que as instituições cumpram as
funções de controle do tempo e do espaço, que respondem à estruturação e ao
desenvolvimento da sociedade disciplinar. Além do controle do espaço, também o
controle do tempo da produção do conhecimento: o poder disciplinar atribui funções
e controla o exercício dessas funções. No caso da Instituição em estudo, no curso de
Pedagogia, uma das figuras que garante o exercício do poder disciplinar é o diretor ou
coordenador do curso. Cabe a ele operacionalizar, vigiar e punir, pois é ele quem
responde por todo o processo de produção e cumprimento do regulamento, firmado
em documento com o conhecimento e aval de todos.
O coordenador do curso deve pôr em prática e fazer funcionar os mecanismos de
exercício do poder. No caso da avaliação, o documento em estudo, Projeto
Institucional e Organização Didático-Pedagógico, deixa claro quais são os
mecanismos e instrumentos que o coordenador do curso, e o corpo docente devem
usar. O coordenador e todos os membros que compõem o quadro são responsáveis
100
pelo processo de execução da avaliação realizada no curso em suas diferentes fases,
sendo a mesma discutida anteriormente, planejada e implantada no projeto pedagógico
dos cursos. No caso do curso, em estudo, a figura do coordenador confirma a seguinte
observação de Michel Foucault: “a disciplina implica um registro contínuo. Anotações
do indivíduo e transferência da informação de baixo para cima, de modo que, no cume
da pirâmide disciplinar, nenhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar
escape a esse saber” (FOUCAULT, 1996, p.106).
É possível observar, no documento em estudo, um fortalecido controle do que se
denomina qualidade da educação. Tal controle se observa por meio do monitoramento
contínuo, o qual tem como objetivo comparar, classificar e, em última instância,
responsabilizar-se pelo sucesso ou pelo fracasso do grupo, devido aos mecanismos
que estimulam a competição entre os cursos das várias instituições.
Na realidade, existe um processo seletivo pelo qual aquele que não se submete
ao poder disciplinar torna-se excluído do programa. Tal fato se pela inadequação
ou incapacidade para o sucesso. Como a instituição interiorizou o papel de controlar,
vigiar, normatizar a produção e transmissão de conhecimento, o indivíduo que não se
adapta ao programa pode, até mesmo, prejudicar e comprometer o próprio processo de
avaliação exigido pelo MEC.
Dessa forma, é possível arriscar dizer que é por meio da avaliação que se torna
possível conhecer e controlar cada aluno que compõe o programa, catalogando-o e
dispondo-o, lado a lado com outros alunos, de acordo com o quadro de
“competências” esperadas. É por meio da avaliação que se pode observar a figura do
aluno desviante como avesso complementar do aluno exemplar e normatizado. Com
isso, é possível afirmar que os indivíduos das sociedades disciplinares transformam-se
em agentes de normatização, na medida em que, convencidos da racionalidade das
101
normas, passam a exigir para si mesmos e para os outros, uma adequação a tais
normas: esses indivíduos se transformam em agentes do poder-saber que os constitui
como indivíduos normais.
No presente estudo, para se enquadrar dentro da normalidade, os alunos dos
cursos de Pedagogia e de Formação de Professores devem estar necessariamente
subordinados à funcionalidade da avaliação como instrumento de controle desse
sistema e, de certa maneira, indiretamente, devem se submeter à relevância do
currículo, do programa, de acordo com a proposta curricular do curso de formação de
professores estipulado pelo MEC, de acordo com o nível em que o aluno se encontra,
na definição prévia dos padrões de eficiência exigida pelo sistema educacional.
Portanto, a avaliação também está subordinada a discursos que, com a pretensão
de científicos, exercem poder mediante a produção e divulgação de um determinado
conhecimento tido como mais adequado, o melhor e verdadeiro. Com isso, percebe-se
a grande proliferação discursiva em torno de uma necessidade generalizada de avaliar.
Na busca de um pretenso intercâmbio público de análises confiáveis, avaliam-se
alunos, professores, disciplinas, currículos, cursos, instituições, programas e sistemas
educacionais numa grande rede de vigilância, controle, normalização e normatizaçao
de um exercício de poder que, para quem o exerce, aparece como produção de saber.
Esse processo se por meio do que Foucault caracteriza como poder hierárquico e
foi possível verificar seu funcionamento no âmbito dos documentos analisados.
Dessa forma, pode-se afirmar que o conceito de disciplina está presente no
documento do programa de formação de professores em exercício a partir de 2000, do
curso de Pedagogia da instituição em estudo. Percebemos, também, uma estreita
ligação no sistema educacional brasileiro com a estrutura de poder, de acordo com o
pensamento de Michel Foucault. Esse processo de vigilância e controle, presente no
102
sistema educacional, tem a possibilidade de se transformar em contra-poder e exercer-
se dentro desse poder:
É nesse campo de correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder. Com
isso, será possível escapar ao sistema Soberano-Lei que por tanto tempo fascinou o pensamento
político. E se é verdade que Maquiavel foi um dos poucos e nisso certamente o escândalo do
seu ‘cinismo’ ao pensar o poder do Príncipe em termos de correlações de força, talvez seja
necessário dar um passo mais, deixar de lado a personagem do Príncipe e decifrar os
mecanismos de poder a partir de uma estratégia imanente às correlações de força (FOUCAULT,
1980, p. 92).
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desse trabalho foi fazer um estudo conceitual e interpretativo acerca
do pensamento de Michel Foucault e sua presença na Educação escolar, em particular.
No primeiro capítulo foi feita a leitura e o estudo das obras que marcaram os três
períodos da trajetória de Foucault começando pelo estudo interpretativo da primeira
fase dessa trajetória, Arqueologia, tendo como foco a questão da análise do discurso e
o processo de formação do conhecimento sobre o homem. As atenções de Foucault se
voltam para a descrição das estruturas internas do discurso e mutações que elas sofrem
em momentos preciosos da história da humanidade. O segundo momento da trajetória
de Foucault é denominado genealógico. Nessa fase, Foucault direciona suas pesquisas,
voltando-se para o esclarecimento do surgimento dos saberes a partir de condições de
possibilidades externas aos próprios saberes imanentes. É nesse período que surge a
distinção entre a macro e a micro-forma de poder, tendo-se, por um lado as grandes
transformações do sistema estatal, as mudanças do regime e, por outro, um poder que
se situa ao nível do próprio corpo social e que penetra no cotidiano e é caracterizado
como micro poder. Nesse período de suas pesquisas, Foucault faz uma análise
ascendente do poder que tem uma existência própria e formas especificas ao nível
mais elementar, mostrando que os poderes não estão localizados em nenhum ponto
específico da estrutura social, mas funcionam como uma rede de dispositivos ou como
um mecanismo a que nada ou ninguém escapa e que não existe limites. Com o estudo
das obras da fase genealógica foi possível entender o conhecimento escolar como
resultante da apropriação pedagógica do conhecimento, produzida pelos diferentes
campos do saber. Foi possível, ainda, perceber que sua forma é estruturada em
diferentes teorias e princípios metodológicos no campo do ensino-aprendizagem. Por
meio da análise do conceito disciplinar da relação de poder e saber pode-se concluir
104
que o poder disciplinar, presente nas instituições de ensino, produz um campo de
saber sobre o aluno, o professor, o ensino e a avaliação. Verifica-se que o poder
disciplinar discutido por Foucault, por meio das técnicas de organização do tempo, do
espaço e das técnicas de vigilância, que constituem um campo de conhecimento sobre
a avaliação, classifica e monitora o estudante, adequando-o e moldando-o para
participar da sociedade em que vive. No terceiro momento do pensamento de Michel
Foucault, denominado eixo ético, o filósofo toma como objeto de estudo o
comportamento humano, do ponto de vista da formação de um sujeito moral. No eixo
ético, a principal preocupação que se tem é com o indivíduo na relação consigo
mesmo e na sua produção a partir de práticas, como as do cuidado de si.
No segundo capítulo, fiz-se um estudo sobre os mecanismos disciplinares
apontando a relação desses mecanismos com a educação. Inicialmente, trabalhau-se
de forma interpretativa as três formas de organização de poder, tomando como
referência a obra Vigiar e punir. No estudo dessa obra foi possível analisar as três
formas de punição que Foucault identifica no final do século XVIII: o suplício, as
teorias dos reformadores e a prisão, bem como os motivos que levam a prisão a
tornar-se a forma de punição por excelência da modernidade, qual seja: é uma
instituição moderna, assim como as escolas, os hospitais, os quartéis, etc, uma
instituição na qual circula o poder disciplinar e que, ao mesmo tempo, permite que ele
circule em outras instituições da chamada sociedade disciplinar, na qual se tem um
investimento no corpo, intencionando atingir a alma dos indivíduos. Passou-se, em
seguida, ao estudo da sociedade disciplinar, a qual, segundo Foucault, está
diretamente ligada à expansão do capitalismo e à sua necessidade de produção de
corpos dóceis. Com a disciplina nasce uma arte do corpo que o torna menos perigoso
e, ao mesmo tempo, mais obediente e mais útil. Com a disciplina, pretende-se que o
105
exercício de poder seja o menos custoso possível e que o poder seja eficiente. Uma
das principais características da sociedade disciplinar é o modelo panóptico e uma das
instituições mais importantes para seu funcionamento é a escola, voltada à produção
de subjetividades.
No terceiro capítulo, procedeu-se a uma análise interpretativa do programa de
formação de professores e do curso de Pedagogia da instituição em estudo,
verificando se os conceitos relacionados à temática da disciplina trabalhados por
Foucault estão presentes na sua organização e nas ementas de alguns programas de
aprendizagem. Num primeiro momento, foram analisadas as técnicas: a arte das
distribuições, o controle da atividade, a organizão das gêneses e a composição das
foas, tomando alguns exemplos que ilustraram a presença desses aspectos na
organização do documento Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico e
também nas ementas estudadas. Em seguida,foram tratados os recursos para um bom
adestramento, composto pelos seguintes elementos: a vigilância hierárquica, a sanção
normalizadora e o exame. Neste estudo foi possível observar que o poder de controle
se encontra disposto tanto nas ementas dos Programas de Aprendizagem quanto em
seus critérios de avaliação. Foi possível observar, também que o controle está
presente em todas as etapas do programa e em todas as disciplinas. Constatou-se
também que o documento, mencionado acima, foi elaborado de acordo com a
topologia estabelecida pela instituição. Na análise do referido documento ficou clara a
presença do exercício do poder disciplinar. Dessa forma, pode-se afirmar que o
conceito de disciplina está presente no documento do programa de formação de
professores em vigor a partir de 2000, nos cursos de Pedagogia e de Formação de
Professores da instituição em estudo.
106
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