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Renata Fernandes Magdaleno
Certeza não é verdade
Romance policial e experiência urbana
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras da
PUC-Rio.
Orientador: Prof. Renato Cordeiro Gomes
Rio de Janeiro
Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510598/CA
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Renata Fernandes Magdaleno
Certeza não é verdade
Romance policial e experiência urbana
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro
de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
___________________________________________
Prof. Renato Cordeiro Gomes
Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio
___________________________________________
Profa. Vera Lúcia Follain de Figueiredo
Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio
___________________________________________
Profa. Analice de Oliveira Martins
CEFET/CAMPOS
___________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, ______ de ___________ de _______.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510598/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.
Renata Fernandes Magdaleno
Graduou-se em Comunicação Social na PUC-RJ em 1996. Pós-
graduada em literatura brasileira pela UERJ (Universidade do
Estado do Rio de Janeiro), em 1998. Trabalhou como repórter
de cultura do jornal O Globo de 1998 a 2005.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Magdaleno, Renata Fernandes
Certeza não é verdade Romance policial e experiência
urbana / Renata Fernandes Magdaleno ; orientador: Renato
Cordeiro Gomes. – 2007.
114 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
Inclui bibliografia
1. Letras – Teses. 2. Romance policial. 3. Cidade. 4. Rio
de Janeiro. 5. Gênero policial. 6. Internet. 7. Experiência
urbana. 8. Garcia-Roza, Luiz Alfredo. I. Gomes, Renato
Cordeiro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
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Agradecimentos
Ao meu orientador, Renato Cordeiro Gomes, pela dedicação, atenção e carinho de
sempre.
Ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
À professora Pina Coco, pelo incentivo e todas as preciosas dicas.
Aos colegas e professores que me ajudaram neste trajeto.
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Resumo
Magdaleno, Renata Fernandes; Gomes, Renato Cordeiro (Orientador).
Certeza não é verdade Romance policial e experiência urbana. Rio de
Janeiro, 2007. 114p. Dissertação de Mestrado. – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
No fim da década de 90, o mundo assistiu a um boom do romance policial.
Na pós-modernidade, com a retomada dos gêneros literários, as narrativas de
mistério ganham força e atingem o mercado editorial brasileiro. Mas o policial
chega repaginado para o leitor. Não que os elementos da trama dedutiva ou do
noir tenham desaparecido nas histórias contemporâneas, mas o formato conhecido
e aceito pelo público vem sendo usado para aprofundar questões da sociedade
contemporânea. A presente dissertação procura, portanto, mostrar como as
narrativas policiais pensam a sociedade, enquanto lêem a cidade. Para isso, são
privilegiados os livros escritos por Luiz Alfredo Garcia-Roza, com o delegado
Espinosa como protagonista. Teorias sobre a vida nas metrópoles e a forma como
o homem reage aos seus efeitos são articuladas na leitura das representações da
cidade. O estudo começa ligando o nascimento do romance dedutivo e o
surgimento do noir a grandes transformações que a sociedade e os centros urbanos
sofriam naqueles momentos. E procura mostrar que a cidade é mais do que um
simples cenário para as tramas se desenrolarem. Analisa a retomada do gênero na
pós-modernidade e o desenvolvimento do policial no Brasil. E investiga, ainda, a
presença do policial na Internet, percorrendo sites dedicados ao gênero. Tão ligada
à paisagem urbana, as narrativas de mistério tomaram também o terreno virtual,
aparentemente sem fronteiras.
Palavras-chave
Romance policial; cidade; experiência urbana; Rio de Janeiro; Luiz
Alfredo Garcia-Roza; gênero policial e Internet.
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Abstract
Magdaleno, Renata Fernandes; Gomes, Renato Cordeiro (Advisor).
Conviction isn’t true: detective novels and urbanity experience. Rio de
Janeiro, 2007. 114p. MSc. Dissertation. – Departamento de Letras,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
In the end of 90’s the world observe a boom of detective stories. In the
post-modernity the literary kinds of narratives were very used again and the
mystery stories were a success in the publisher market, even in Brazil, country
where this kind of narrative never developed. But the detective stories, in this
period, started to present some differences. Not that the classic elements weren’t
there, but, nowadays, they discuss aspects of the contemporary society. This work
will observe how this kind of literature thinks the society and talk about the city
life at the same time. The books of Luiz Alfredo Garcia-Roza, with Espinosa
detective as the protagonist, were privileged in this work. Theories about the life
in the contemporary cities and how people react to the effects of this kind of life
were articulated with the reading of the metropolis representations. This study
shows how the beginning of the detective stories were related with the big
transformations that society were living in those days. The cities never were just a
stage setting for the detective and his investigation. This work discuss this kind of
narrative in the post-modernity and the late success in the brazilian publisher
market. And, because the detective narrative was always so connected with the
city, the study observed too how those stories are in internet.
Keywords
Detective novel; city; urban experience; Rio de Janeiro; Luiz Alfredo
Garcia-Roza; detective narrative; Internet.
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Sumário
1. Introdução 9
2. Cidade: mais do que um simples cenário
19
2.1. As linhas retas do mapa contra o emaranhado de existências urbanas 19
2.2. A cidade das incertezas e a narrativa policial no Brasil 33
3. A cidade de Espinosa
46
3.1. O andar do detetive 46
3.2. Espinosa e Copacabana: Da diversidade dos habitantes à solidão dos
apartamentos
56
3.3. Espinosa e a solidão 63
3.4. A ética do detetive 73
4. Mistérios em cidades virtuais
87
4.1. Uma cidade localizada no mapa? 87
4.2. A narrativa policial no mundo sem fronteiras da Internet 94
5. Conclusão
103
Referências bibliográficas
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Não há mentiras nem verdades aqui
Só há música urbana.
Renato Russo, “Música urbana 2”
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Introdução
Logo no início de Bellini e os espíritos, o detetive Bellini, criado pelo
escritor Tony Belloto, antes de começar a investigação de um novo assassinato,
olha para a paisagem de São Paulo vista de sua janela e pensa:
Vi em primeiro plano os prédios altos do centro, depois as casas e sobrados dos
bairros de classe média e, por fim, as construções irregulares dos bairros pobres.
Atrás de tudo, como uma muralha, os morros azulados da serra da Cantareira. O
dia estava nublado e o ar-condicionado dava a falsa impressão de que vivíamos
numa cidade de temperaturas suportáveis. Aliás, do décimo quarto andar do
edifício Itália, a cidade inteira parecia suportável. (Bellotto, 2005, p. 21)
Do alto do edifício Itália, num cômodo refrescado pelo ar-condicionado, o
detetive se sente protegido do calor da vida na metrópole. A cidade que se vê de
cima é apenas um desenho de ruas se entrecortando, de luzes piscando, prédios e
casas em aparente harmonia e tranqüilidade. Mas para tentar entender os mistérios
que este centro urbano oferece ele precisa deixar a posição cômoda e se
embrenhar pelo asfalto. É o emaranhado de ruas, carros e pessoas que Bellini
enfrenta para desvendar os crimes que investiga. O detetive é retratado como esta
figura que pretende combater o mal da vida na grande metrópole. E a resposta
para o mistério que investiga está, aparentemente, escondida no turbilhão urbano.
Enquanto corre atrás de pistas, ele desvenda mais do que a identidade do
assassino. A própria cidade, com suas contradições, os seus efeitos sobre a alma
humana, os relacionamentos humanos, pode ser lida nas páginas dos romances
policiais, como se o leitor se debruçasse numa janela para ver a paisagem.
O romance policial nasce, no século XIX, estimulado pelo surgimento das
grandes metrópoles. É o momento em que a multidão ganha as ruas; surgem os
periódicos de grande circulação; a violência começa a aparecer com freqüência
nas páginas dos jornais e o outro não é mais apenas um vizinho amistoso, mas é
visto, muitas vezes, como um mistério perigoso e ameaçador. Temas como estes
já estavam presentes nos primeiros contos policiais de que se tem notícia, escritos
por Edgard Allan Poe: “Assassinatos na rua Morgue” (1841), “O mistério de
Marie Rogêt” (1842) e “A carta roubada” (1845). O escritor criou o primeiro
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detetive da história: Auguste Dupin. O leitor pouco sabe de sua personalidade,
mas pode encontrar em suas tramas informações sobre o tempo em que vive, com
a decadência da aristocracia e o crescimento da burguesia, e as transformações
que a vida nos grandes centros urbanos sofria, com o crescimento das cidades e do
número de seus habitantes.
O aparecimento da multidão ganhando as ruas, por exemplo, encantava,
amedrontava e estimulava os artistas da época e está presente em muitas das
primeiras narrativas de mistério e nos textos que já apontavam para o surgimento
do gênero. A massa aparece como um esconderijo, capaz de esconder os
passantes, já que o volume é tão grande que as fisionomias escapam mesmo aos
olhares mais detalhistas.
No texto “O homem da multidão” (1840), Edgard Allan Poe cria um
protagonista que tenta decifrar o rosto dos passantes, ler a multidão à sua frente
sentado na mesa de um café, procurando um significado para o fenômeno. O
conto, apesar de desprovido de um crime, já procura adotar um método de
investigação para a leitura da cidade, trabalhando com elementos que, mais tarde,
comporiam o gênero policial.
O protagonista de Poe se embrenha na multidão atrás de algum
significado, tentando ler a massa como um texto, e se detém em um velho, que
caminha sem rumo entre os pedestres. Ele é o mistério que procura decifrar e, ao
mesmo tempo, o gênio do crime, capaz de se esconder na massa, de sumir sem
deixar vestígios ou pistas. Mas a figura do velho aponta ainda para outro segredo,
a própria cidade, que apaga os vestígios privados no meio da multidão. Olhando
para os pedestres, o protagonista enxerga apenas a superfície de seus corpos, que
se parecem no movimento mecanizado. A narrativa aponta para um fim, uma
conclusão a ser revelada, uma profundidade a ser atingida. Mas ao escolher um
indivíduo no meio do turbilhão humano, o personagem se dá conta de que é
impossível decifrar algo mais do que sua fisionomia. Assim como a cidade, o
velho também parece ilegível.
Para Benjamin o conto de Poe apresenta uma radiografia do romance
policial. Lá os elementos do gênero já aparecem esboçados, ligados à cidade e
relacionados à sua leitura. O protagonista está atrás de um mistério, de um sentido
que promete ser revelado. A rua e a massa são o que este observador curioso
procura esmiuçar, entender, explicar. A única coisa suprimida é o crime.
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O texto trabalha ainda a figura do flâneur, personagem que anda sem
destino, atraído pelo fervilhar da multidão, pelos muitos estímulos de uma cidade
nascente. Segundo Walter Benjamin, no livro Charles Baudelaire: Um lírico no
auge do capitalismo (Benjamin, 1989), o flâneur pode ser considerado um esboço
de detetive, aquele que investiga sem ser visto, protegido pela multidão que
caminha nas ruas.
O gênero policial, portanto, surge como uma mediação para a leitura do
mundo urbano que deslancha após a Revolução Industrial. A investigação aparece
como uma forma de leitura e o texto em questão pode ser a própria cidade, a
sociedade e a paisagem urbana, onde crime, detetive e assassino vivem ou
circulam.
O investigador é aquele nomeado para garantir a ordem e o cumprimento
das regras sociais, que protegem a cidade do caos. O romance policial dedutivo
vai ressaltar, portanto, a cidade e a lei. Não glorifica o criminoso, mas, sim, seus
adversários. No momento em que condena aquele que quebra a lei e a ordem,
valoriza quem a segue com retidão. O assassino passa a ser, então, como afirma
Sandra Reimão, em O que é romance policial (1987), um inimigo público, já que
trouxe desequilíbrio e ameaçou a tranqüilidade da cidade.
Aos poucos vão-se criando, solidificando e divulgando a idéia de crime como
uma infração às leis do Estado e a idéia de criminosos como um inimigo público,
que pode prejudicar não só os indivíduos diretamente lesados por ele, mas
também a sociedade como um todo. Ao lado dessa concepção de criminoso como
um inimigo social, veremos também que a figura do criminoso é patologizada.
(...) Daí encontrarmos, às vezes, na narrativa policial, a idéia de ‘gênio do crime’,
em oposição ao ‘gênio da justiça’ (o detetive), como, por exemplo, Sherlock
Holmes versus Moriarty. (Reimão, 1983, p. 16)
Como afirma Sandra Reimão, a atitude do detetive condiz com o clima do
momento. A cidade moderna cria seus mecanismos após a Revolução Francesa
para conter um centro urbano que ameaça crescer de forma desordenada. As leis
surgem para conter a barbárie. A vingança pessoal do mundo arcaico dá lugar ao
poder e a organizações de instituições como a polícia, criadas para estabelecer a
ordem e coibir o crime. A população passa a se submeter a uma série de
mecanismos de controle. As casas são catalogadas e ordenadas por números, as
pessoas identificadas por suas assinaturas e os locais registrados pela fotografia.
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Nos jornais os acontecimentos da cidade também ganham registros diários, que
passam a ser acompanhados por seus leitores, os habitantes da metrópole.
As transformações aparecem retratadas, por exemplo, no segundo conto
policial escritor por Poe, “O mistério de Marie Rogêt”, lançado logo após
“Assassinatos na rua Morgue” e baseado numa história verídica, o homicídio de
Mary Cecília Rogers nos arredores de Nova York.
Na história, Dupin, o detetive, decifra todo o enigma acompanhando as
notícias publicadas pelos jornais. O mistério que tenta desvendar é o assassinato
de Marie Rogêt, encontrada morta num pântano, perto de um matagal. A moça
sumiu no meio da multidão e os periódicos que noticiam o fato divergem sobre o
local onde ela desapareceu. O narrador faz o leitor pensar em como uma pessoa,
deixando a casa da mãe e caminhando pela vizinhança, pode passar sem ser
notada pelos que vivem em volta. Mas o texto de Poe responde logo em seguida:
“Para chegar a um julgamento justo nessa questão e respondê-la com justiça,
deve-se ter em mente a enorme desproporção entre o número de conhecidos do
indivíduo mais popular de Paris e a população total da cidade” (Poe, 1885, p. 42).
O detetive reflete a necessidade de controlar a ordem, numa metrópole que
não pára de crescer e, através de seus métodos racionais, consegue garantir o
equilíbrio e trazer clareza aos princípios que regem esta sociedade. Falar das
transgressões, portanto, é uma forma de reafirmar idéias, regras e valores que
regem os centros urbanos. Como Poe destaca na cena descrita acima, até o
indivíduo mais popular de uma cidade como Paris pode sumir sem deixar
vestígios na massa, devido ao imenso número de habitantes da metrópole. Com
seus métodos rígidos e racionais ele tenta conter o que transgride as regras desta
cidade, cheia de perigos a espreita. E seu método de controle e leitura das cenas
urbanas é feito através dos relatos jornalísticos. Segundo Ricardo Piglia, em O
laboratório do escritor (Piglia, 1994), nos textos de Poe os jornais aparecem como
o mapa da realidade que se pretende decifrar.
Assim como as leis chegaram para transformar a selva da barbárie num
mundo civilizado, o detetive chega para conter a selva na qual a cidade moderna
começa a se transformar. Um ambiente tão perigoso que é preciso estar sempre
com os sentidos aguçados. A investigação não deixa de ser uma tentativa de trazer
ordem, de ler esta cidade. Para ele, certeza é verdade e o detetive a descobre ao
final de cada história, restabelecendo a ordem e denunciando o mal-feitor. Dupin é
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aliado da polícia e inimigo de quem transgride os rígidos padrões de certo e errado
e a razão que dominavam o mundo iluminista do século XIX.
Ao longo da história as narrativas policiais foram acompanhando a
mudança da vida nas grandes cidades, já que elas sempre foram o principal
cenário das tramas de mistério. O noir já trabalha, no século XX, com uma cidade
movida pelo dinheiro. Segundo Piglia, “no noir tudo se paga. O único enigma
insolúvel é o do dinheiro” (Piglia, 1994, p. 79). O detetive mergulha numa
metrópole sem esperanças, cheia de enigmas indecifráveis e suspeitos por toda
parte.
O centro urbano deixa, portanto, de ser um mapa composto por linhas
retas, por um caminho que leva a uma verdade única, como presume o
protagonista de “A morte e a bússola” (1942), conto de Jorge Luís Borges. Na
história o detetive tenta decifrar um crime acompanhando uma trajetória retilínea,
lendo o mistério da cidade e o enigma de um assassinato através de pistas que se
relacionam com linhas retas na superfície fria de um mapa. Mas a metrópole que
ele encontra não se encaixa mais na realidade racional desenvolvida por Dupin. O
protagonista depara-se com um emaranhado de caminhos múltiplo, fragmentados
e ilegíveis e acaba preso numa emboscada.
Isto porque a cidade iluminista de Dupin deu lugar à metrópole do policial
noir, sem grandes narrativas que expliquem e justifiquem a sua origem, afundada
na dúvida e no questionamento. O detetive dedutivo não pode mais sobreviver
numa sociedade onde não existe uma verdade absoluta explicada pela razão. O
romance negro é criado num momento em que as certezas passam a ser subjetivas,
devido a uma série de questionamentos e ideologias que surgiram no início do
século XX. O gênero, como mostra o conto de Borges, refletiu estas
transformações.
O policial conquistou uma legião de fãs pelo mundo, atraídos por histórias
dedutivas de escritores que se tornaram célebres, como Agatha Cristie e Conan
Doyle, e por romances negros de autores como Dashiell Hammett. Na pós-
modernidade, com a retomada dos gêneros literários, o romance policial chega
com força total, mas aparece repaginando. E ganha as prateleiras das livrarias do
mundo, apresentando novos escritores, subdivisões, conquistando legiões de
leitores e invadindo até a Internet, com o surgimento de uma série de sites
especializados.
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Alta cultura e cultura de massa se misturam e o romance policial
contemporâneo caminha nestas duas áreas, borrando os antigos limites que
definiam estes padrões. A pós-modernidade chega não mais para romper com o
passado, lema do modernismo, mas para reciclar antigos padrões, retomando
gêneros, mas indo além do formato estabelecido. Como Jesús Martin-Barbero
afirma em Dos meios às mediações (Martin-Barbero, 2003), na sociedade regida
pelas leis do consumo, a leitura deixa de ser vista como uma reprodução para ser
também produção. O texto perde sua verdade única e absoluta e passa a ser
considerado um espaço cheio, fecundo de sentido, ramificado, com significados
múltiplos. Um mesmo texto pode mesclar elementos da cultura culta e da popular,
tirando proveito de formatos narrativos como, por exemplo, o policial, para atrair
a atenção dos leitores. O autor afirma:
O que afinal restitui à leitura à legitimação do prazer. Não apenas à leitura culta, à
leitura erudita, mas também a qualquer leitura, às leituras populares, com o prazer
da repetição e do reconhecimento. Nas quais falam tanto o gozo, quanto a
resistência: a obstinação do gosto popular por uma narrativa que é ao mesmo
tempo matéria-prima de formatos comerciais e dispositivo ativador de uma
competência cultural, terreno no qual a lógica mercantil e a demanda popular às
vezes lutam, e às vezes negociam. (Martin-Barbero, 1997, p. 303)
Como defende Martin-Barbero, a busca de prazer e de uma leitura
agradável passou a ser uma preocupação do escritor, para atingir um público
maior e emplacar num mercado competitivo. Desta forma, o gênero policial na
pós-modernidade tem suas fronteiras borradas e suas regras são muito mais
citadas do que seguidas. A medida tem como objetivo também atrair um número
cada vez maior de leitores, optando por um formato consagrado e atraente,
seguindo, desta forma, o ritmo de um mercado editorial exigente. O clima de
suspense serve como isca para atrair um público mais amplo.
Os traços da narrativa dedutiva, inaugurada por Poe, ou do romance noir
continuam presentes, mas, muitas vezes, servem apenas de pretexto para
questionar a sua própria legitimidade. Como Vera Follain de Figueiredo define em
Os crimes do texto (2003):
A melhor ficção policial contemporânea recorre, então, à convenção do gênero
com uma dupla finalidade. De um lado aproveita o que já na narrativa de enigma
do século XIX apontava para a verdade como construção realizada a partir de
uma combinatória de dados. De outro corrói a confiança nas estruturas
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seqüenciais que, identificadas com a própria linha de raciocínio, com a forma da
própria razão, acabavam por ordenar a busca da verdade num discurso fechado,
que eliminava as probabilidades e abolia o acaso. (Figueiredo, 2003, p. 15)
O policial contemporâneo usa, portanto, elementos dos textos clássicos e
do noir para levantar reflexões. A narrativa questiona as certezas construídas
pelos romances de enigma com o intuito de colocar em dúvida a própria existência
de uma verdade absoluta na atualidade. Nas páginas dos policiais contemporâneos
os fatos passam a dar lugar às interpretações. A certeza deixa de ser verdade e
passa a ser considerada uma versão, construída a partir de um certo ponto de vista.
Foi neste período, a partir da década de 90, que o Brasil também assiste a
um boom do policial, tipo de narrativa que nunca tinha emplacado por aqui.
Surgem novos autores nacionais especializados no tema e outros se rendem ao
assunto; as editoras passam a criar séries policiais e as livrarias reservam espaços
cada vez maiores para os exemplares de mistério. As coleções ainda chamam o
leitor com uma série de particularidades. A Primeira Página, criada pela Nova
Fronteira, por exemplo, recorre a crimes que figuraram nas páginas dos jornais. E
em Elas são de morte, a Rocco procurou chamar atenção para uma literatura
policial com traços femininos, já que todas as autoras da série são mulheres.
Muitas teorias procuram explicar o sucesso tardio do gênero em terras
brasileiras, como a descrença da população na polícia, que sempre preencheu as
páginas policiais do jornal com esquemas de corrupção, e uma realidade social
que chamava os escritores a refletirem sobre os acontecimentos, em vez de criar
histórias presas na investigação. Em entrevistas para sites, jornais, revistas e
suplementos literários, escritores e estudiosos vêm afirmando que o gênero
atualmente é utilizado para pensar e analisar a vida nas metrópoles
contemporâneas.
Partindo deste pensamento, de que é possível ler a cidade através das
narrativas policiais, passei a analisar elementos contidos em textos do gênero e
compará-los com teorias e estudos que falam da vida nas grandes metrópoles e da
forma como o homem reage aos seus efeitos. As narrativas priorizadas foram os
livros do escritor carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, com o delegado Espinosa
como protagonista. Histórias passadas no Rio de Janeiro, principalmente no bairro
de Copacabana. O escritor é considerado hoje o autor de romance policial
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brasileiro mais bem-sucedido, traduzido numa série de países, com um texto
recheado de elementos do gênero, mesclados aos cenários urbanos e às cenas de
violência. A trajetória de Garcia-Roza também é curiosa. Psicanalista, ele deixou
uma bem-sucedida carreira acadêmica para se tornar autor de romances policiais
de sucesso. Suas histórias estão recheadas de questionamentos éticos e reflexões
sobre a vida num centro urbano.
Mas ao longo do texto cito ainda outros escritores, como Jorge Luís
Borges, Rubem Fonseca, Edgard Allan Poe e Tony Bellotto. O importante no
trabalho não foi analisar a qualidade dos escritos ou optar apenas pelos autores
mais consagrados, mas observar como os elementos das histórias podem ser
utilizados para pensar a vida numa metrópole.
O estudo foi dividido em três capítulos. O primeiro liga o nascimento do
romance dedutivo e o surgimento do noir a grandes transformações que a
sociedade e os centros urbanos sofriam naqueles momentos. E procura mostrar
que a cidade é mais do que um simples cenário para as tramas se desenrolarem.
Esta primeira parte analisa, ainda, a retomada do gênero na pós-modernidade e o
desenvolvimento do policial no Brasil, citando as muitas coleções que surgiram a
partir da década de 90 e a obra de alguns autores que passaram a escrever
exemplares do gênero, como, por exemplo, Luís Fernando Veríssimo.
No segundo capítulo, pesquiso os romances de Garcia-Roza, tendo em
vista quatro grandes temas: os caminhos que o delegado Espinosa percorre a pé
pela cidade e a forma como ocupa o espaço físico, o bairro de Copacabana
(cenário das histórias), a solidão do detetive e a sua ética. Os elementos dos
romances são relacionados com estudos contemporâneos que analisam a vida na
cidade e as suas conseqüências para a rotina do indivíduo.
Desta forma, por exemplo, relaciono a vida amorosa do delegado com
pesquisas do sociólogo Zygmunt Bauman, no livro Amor Líquido (2003), sobre os
relacionamentos afetivos na atualidade. O caminhar do detetive, cheio de
nostalgia, é analisado com as formulações de Andreas Huyssen, em Seduzidos
pela memória (2001), que apontam para um momento de valorização do passado e
da história, presenciado pelo mundo no fim do século XX. Ou lêem-se as relações
de Espinosa com o submundo e as classes dominantes de acordo com estudos de
Antonio Arantes, desenvolvidos no artigo “A guerra dos lugares” (1994), sobre a
forma como os indivíduos ocupam o espaço urbano e se locomovem na cidade,
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dividindo um mesmo local com diferentes grupos, muitas vezes antagônicos. A
intenção não é analisar de forma profunda o estudo de filósofos e teóricos e, sim,
demonstrar, através deles, como os romances policiais pensam e refletem a vida
numa metrópole.
No terceiro capítulo, observo se as tramas vêm refletindo a tensão entre
nacionalismo e cosmopolitismo presente no mundo contemporâneo, tendo como
base a Internet, terreno virtual aparentemente sem fronteiras. A pesquisa percorre
sites dedicados ao gênero. Como as narrativas policiais são marcadas pela
paisagem urbana, a idéia é pensar se a cidade, que aparece escrita nas páginas dos
romances, tem características locais ou se estas perderam importância, num
mundo onde as fronteiras dos países e continentes parecem elásticas. Como a
Internet é um terreno teoricamente neutro, sem nacionalidade ou limites definidos,
a intenção foi observar como o policial se comporta neste meio, como aparece
retratado nos sites especializados. Entre os endereços pesquisados está a Livraria
do Crime (www.livrariadocrime.com.br), primeira livraria brasileira especializada
no gênero, surgida no início de 2006.
No livro Cenários em ruínas (1987), Nelson Brissac defende que vivemos
em um mundo em que realidade e ficção se misturam. Tudo parece cenário, como
os letreiros luminosos, os outdoors, as imagens que compõem a cidade parecem
saídas de um filme. As notícias que ocupam os jornais e telejornais não diferem
muito das produções de Hollywood. Para o autor, no tempo em que vivemos, tudo
aparece logo como simulacro. Superfícies que se cruzam sem profundidade, em
que a única importância não é o seu significado, mas a aparência. Faltam
fundamentos que dêem consistência ao real. Não há mais uma verdade plena a ser
encontrada, mas uma sucessão de superfícies que, como num jogo, apresentam
sentido através da combinação de seus elementos.
E, para Brissac, a imagem do detetive particular contribui para a
constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea. O
investigador é aquele que está sempre à procura de sua identidade e da
significação dos lugares por onde passa. Está atrás de um mistério que não parece
ter fim. Mesmo que desvende um crime há sempre outro à sua espera. O autor
afirma:
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Todos esses personagens e locais são conhecidos, todas essas tramas já foram
traçadas em romances e filmes. Filosofia pop: remete às antigas novelas policiais
e ao filme noir, à arquitetura comercial, ao cinema de Hollywood e à literatura
best-seller. Todas as estórias confundidas, tudo trazido para o primeiro plano.
Onde o real se cruza com a ficção, a teoria com a narrativa e a escritura com a
fotografia. Os diferentes períodos e paisagens inscritos na superfície sem
historicidade nem dimensão da imagem. Não é nesta hiper-realidade que
indivíduos e lugares existem hoje em dia? (Brissac, 1987, p. 8)
O real, como citado no trecho acima, parece ter perdido a profundidade. E
a paisagem, os relacionamentos, os acontecimentos diários se apresentam como
simulacros, imagens superficiais e sem importância, que não diferem muito das
vividas por personagens de filmes e livros. Figuras como o detetive passaram a
fazer parte do nosso imaginário contemporâneo.
Se realidade e ficção se misturam e personagens pops como o
investigador, passaram a compor a nossa cultura e a fazer parte da nossa visão de
mundo, quer dizer que absorvemos esta ficção como parte da realidade. E, muitas
vezes, enxergamos fatos reais com a naturalidade de quem conhece o assunto, de
quem já viu aquilo acontecer no cinema ou nos filmes da televisão. E agimos
freqüentemente inspirados por personagens que na verdade ganham vida nas telas
das salas de cinema ou nos livros de suspense.
Mas o contrário também acontece. Detetives vêm sendo usados para
refletir anseios e buscas do homem contemporâneo, já que é uma figura pop aceita
e parte integrante de nossa cultura. Neste mundo, em que real e ficção se
misturam, o que há de realidade na composição da personalidade do detetive? Que
homem é este que aparece refletido nos gestos e rotina do investigador? E que
cidade é esta que este agente andarilho revela, enquanto busca os culpados de
crimes e assassinatos?
Foram estas as pistas que procurei seguir para refletir sobre os enigmas das
histórias policias contemporâneas. E os mistérios da cidade, que instigaram tantos
escritores do século XIX (houve uma proliferação de livros na época intitulados
os mistérios de Paris, de Londres, de Lisboa...) ou os novos (tão novos assim?),
que assolam os centros urbanos de nossos dias.
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2
Cidade: mais do que um simples cenário
2.1
As linhas retas do mapa contra o emaranhado de existências
humanas
Em “A morte e a bússola” (1975), o escritor Jorge Luis Borges descreve
Erik Lönnrot como um detetive que gosta de desvendar seus crimes pelo
raciocínio. Ele se sente um verdadeiro Auguste Dupin, mas, diferentemente do
detetive criado por Edgard Allan Poe, é dado a aventuras. Nada de apoiar os pés
numa mesa e descobrir os casos folheando jornais. Lönnrot vai atrás de suas
pistas. Na história ele é chamado para desvendar o assassinato do rabino Marcelo
Yarmolinsky. As evidências apontam para uma coincidência. Um ladrão,
provavelmente disposto a roubar o vizinho de quarto do rabino, teria matado o
religioso sem planejar. Percalços no momento do furto. A hipótese, contudo, não
agrada a Lönnrot. Ele rechaça o acaso e passa a buscar pistas pelos cômodos do
hotel, pequenos detalhes, evidências que o levem à identidade do assassino.
Nas páginas que seguem, o detetive percorre uma trama labiríntica. Um
crime leva a outro e outro e, quando os locais das execuções aparecem assinalados
num mapa da cidade, os três assassinatos formam os lados perfeitos de um
triângulo equilátero. Mas ele não se satisfaz. Não é possível que o mistério tenha
acabado por aí. E vai mais fundo nas investigações, até descobrir uma última
pista, que o leva ao local onde ocorrerá a quarta morte. E, numa casa abandonada,
construída como se estivesse lotada de espelhos, um lado refletindo exatamente o
oposto, Lönnrot descobre que caiu numa armadilha. Cada uma das evidências
havia sido plantada, com o único intuito de atrair a personalidade dedutiva do
detetive ao quarto local. Ele é a própria vítima.
Lönnrot é capturado porque procura ler a cidade como um texto. Cada um
dos assassinatos descritos no conto é acompanhado de uma pista. O criminoso
deixa uma frase no local, afirmando que, com aquela morte, mais uma letra foi
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articulada. Todas juntas formariam uma palavra: o nome de Deus, o texto que o
detetive procura decifrar para chegar à chave do enigma. Mas o mistério está
atrelado à metrópole, já que cada uma das letras que ele desvenda corresponde a
um ponto específico do mapa da região. Ler todo o texto deixado pelo autor das
mortes significaria descobrir o local do último assassinato e, portanto, desvendar o
mistério. Assim, ele chegaria antes do crime ter acontecido, prenderia o
responsável e salvaria a vítima.
Mas as suas técnicas dedutivas falham quando se defrontam com a rotina
de uma metrópole. O mapa é uma representação do centro urbano. Mas, assim
como as linhas deste mapa não conseguem dar conta de toda a vida de uma
cidade, apenas de sua geografia, o texto que o detetive lê desvenda apenas parte
do mistério. Ele não leva em conta a possibilidade de as pistas terem sido
plantadas e de poder ser a própria vítima. As regras haviam sido quebradas, a
dedução falhara, o acaso e o imprevisto estavam instalados. Lönnrot cai na
armadilha. Os centros urbanos são muito mais do que um conjunto de ruas e
avenidas. A cidade que o detetive procura desvendar, previamente definida e
organizada, seguindo regras rígidas e estipuladas, não corresponde à realidade que
ele encontra nas ruas.
Frente ao seu assassino, Lönnrot afirma: Em seu labirinto há três linhas a
mais – disse por fim – Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta.
Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero
detetive” (Borges, 1975, p.147). Lönnrot morre porque só conhece a linha reta,
um enigma que possui determinadas regras para ser desvendado. O labirinto do
assassino, porém, tem três imprevisíveis linhas a mais. Ele rechaça o acaso e se
perde nos devaneios de um labirinto de pistas, inventadas com esmero. A cidade
aparece como um livro, que o detetive lê e interpreta segundo o seu raciocínio,
esquecendo que o dia a dia nas metrópoles é cheio de imprevistos.
A vida urbana, a violência dos grandes centros, está longe de se parecer
com um triângulo equilátero, com lados perfeitos. Em vez de caminhos
propositalmente traçados, é um emaranhado de indivíduos e objetos em
movimento que compõe a sua aparência. Segundo Emir Rodríguez Monegal, autor
de Borges: una biografia literária (1987), quando escreveu “A morte e a
bússola”, o escritor argentino procurou retratar no conto a capital de seu país:
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Buenos Aires, apesar de os locais descritos e dos nomes dos personagens
sugerirem uma origem alemã ou escandinava.
A última cena do conto é descrita como um labirinto de espelhos. Cada
canto da construção parece imitar o outro com exatidão, fazendo com que Lönnrot
se sinta perdido. Difícil definir e decifrar uma cidade sozinho, ignorando sua
população, analisando cantos e ângulos de concreto similares, que parecem se
repetir, sem nenhum sentido aparente. “A casa não é tão grande, pensou.
Aumentam-na a penumbra, a simetria, os espelhos, os muitos anos, meu
desconhecimento, a solidão” (Borges, 1975, p.143).
O conto de Borges, além de ressaltar a proximidade do gênero policial
com a vida urbana, representa a morte do detetive dedutivo, criado por Edgard
Allan Poe, em 1841, ao publicar na Graham’s Magazine Filadélfia “Assassinatos
na rua Morgue. Já nos primeiros policiais da história, a cidade é muito mais do
que um simples cenário para as andanças de um investigador meticuloso. A
narrativa que inaugura o gênero já aparece ambientada nas ruas de uma cidade
grande. É numa Paris que começa a sentir os efeitos das grandes aglomerações,
dos periódicos populares de grande tiragem, dos primeiros sinais de insegurança e
violência característicos de uma metrópole que Poe ambienta sua curta história de
mistério, assim como os contos que a seguiram: “A carta roubada” (1845) e “O
mistério de Marie Rogêt” (1842), baseados em crimes reais, noticiados pelos
jornais da época.
O gênero nasce num momento em que a vida nas metrópoles sofre grandes
mudanças. Os homens assistiam, pela primeira vez, ao fenômeno das multidões
nas ruas. A luz artificial chegava às vias públicas, possibilitando que o movimento
de pedestres não diminuísse com a noite. É a época da mítica figura do flâneur,
tão bem retratada pela literatura de então. O personagem que, encantado com o
espetáculo das vias lotadas, as centenas de passantes circulando pelos cantos, se
deixa levar num vagar sem sentido e interminável.
Não por acaso, Edgard Allan Poe foi um dos primeiros a tratar do fascínio
e do fenômeno das enormes aglomerações de pedestres caminhando pelas ruas.
Segundo Walter Benjamin, no livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo (1989), nenhum tema se impôs com maior autoridade aos literatos do
séculos XIX do que o da multidão. O homem se deparava com o tumulto das ruas,
as aglomerações, o caminhar por horas e ainda permanecer distante do campo.
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Tudo parecia novo, causava espanto e inspirava os artistas. A massa despertava
medo, repugnância e horror naqueles que a viam pela primeira vez. “A massa
desponta como o asilo que protege o anti-social contra os seus perseguidores.
Entre todos os seus aspectos ameaçadores, este foi o que se anunciou mais
prematuramente, está na origem dos romances policiais” (Benjamin, 1989, p. 38).
Ela aparece como um esconderijo e ressalta a enorme quantidade de rostos
desconhecidos e ameaçadores que habitam a cidade grande.
Em 1840, Poe escreve o conto “O homem da multidão”. Passado em
Londres, no período pós-revolução industrial, o texto apresenta um personagem
convalescente, que assiste ao incessante movimento de transeuntes da janela do
café de um hotel. Em cada rosto que passa, ele desvenda uma personalidade, usa
traços físicos para descrever tipos de comportamento. Até que o seu olhar se fixa
num velho. Sua aparência e atitude fogem aos padrões de sua ciência e não é
possível definir este caráter com uma simples olhadela. O homem aparece como
um grande mistério.
É preciso encontrar uma resposta para este enigma e o protagonista deixa a
cômoda posição de observador para ganhar as ruas, perseguindo o velho em suas
andanças. No fim, admite estar diante de um gênio do crime, que se recusa a ficar
só, o próprio homem da multidão. Impossível desvendar suas intenções, pois a
motivação é apenas se embrenhar no aglomerado de gente. Assim como a cidade é
ilegível, composta por uma série de fragmentos que nunca formam um todo, o
velho também parece indecifrável. Ele é o flâneur, fascinado com as
aglomerações urbanas, andando sem objetivo pelas vias, denunciando os mistérios
e segredos que a massa esconde.
O personagem do flâneur, caminhando por ruas e esquinas sem rumo,
atraído pelo fervilhar dos passantes, aparece na história sempre ligado à
transformação da cidade depois da Revolução Industrial. Negando a economia do
dinheiro e o mundo dos negócios, que empurra o homem para a produção e o
trabalho, esta figura, segundo Willie Bolle, em “A metrópole: palco do flâneur”
(1994), condensa as questões que começavam a ser discutidas na vida moderna.
Seu ócio é um resquício da aristocracia, já que só quem não precisa trabalhar,
sobrevive de herança ou renda, pode se entregar à mobilidade constante e ao vivo
interesse por tudo o que está à sua volta.
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Na nascente vida das metrópoles não é mais possível passar os dias a vagar
pelos cantos. Os homens precisam se submeter às leis da economia e trabalhar
para garantir o seu sustento. A aristocracia passa a ser uma classe em extinção.
Assim como o protagonista de “O homem na multidão”, o indivíduo é empurrado
a participar da vida na cidade, a deixar a imobilidade e partir para a ação. O
flâneur, encantado com a enorme quantidade de pessoas, com o despertar da vida
nas cidades, resiste às mudanças.
Poe, em seu primeiro conto policial, “Assassinatos na rua Morgue,
descreve o seu detetive como um indivíduo que ainda vive os últimos dias desta
aristocracia agonizante. Seu relato retrata as transformações que os grandes
centros urbanos estavam sofrendo no período. De família ilustre, Dupin perdeu
todo o dinheiro, mas seus credores, piedosos, deixaram que ele mantivesse uma
pequena parte do patrimônio e os rendimentos são suficientes para que sobreviva
sem trabalho. Ele divide o aluguel com o seu amigo, narrador da história. E os
dois vivem numa mansão decadente, quase em ruínas, assim como a aristocracia
da época, situada numa parte desolada do Fauburg Saint-Germain, em Paris.
Dupin virou detetive por hobby. Exercitar sua habilidade analítica é um
divertimento e é apenas por isso que ele se ocupa em desvendar assassinatos e
mistérios. Os casos são solucionados quase sem que ele precise sair de casa.
Sentado em sua poltrona, raciocinando e acompanhando as notícias pelos jornais,
Dupin desvenda crimes que nem os mais competentes policiais conseguem.
E o detetive de Poe ainda é praticante da flânerie. Um de seus grandes
prazeres é esperar o anoitecer e vagar com o seu amigo, o narrador, pelas ruas em
busca da excitação mental proporcionada pela observação dos fatos. Vivendo dos
resquícios da herança, ele não trabalha e pode se entregar aos prazeres da cidade:
Com essa ajuda, ocupávamos nossas mentes em sonhar – ler, escrever ou
conversar, até que o relógio nos avisasse da chegada da verdadeira escuridão.
Então saíamos pelas ruas, de braços dados, continuando os assuntos do dia, ou
indo bem longe até bem tarde, procurando, entre as luzes e sombras da populosa
cidade, uma infinidade de excitações mentais que a observação tranqüila pode
proporcionar. (Poe, 1996, p. 14)
Os dois esperam o dia anoitecer para observar o movimento dos pedestres
nas ruas da cidade. A dupla ainda é adepta do vagar sem compromisso, apesar da
prática estar fadada à extinção numa sociedade que obriga a sua população a
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trabalhar para conseguir sobreviver. É preciso produzir para ganhar dinheiro e se
manter no mundo moderno. Não há mais como viver do ócio. A violência e a
insegurança presentes nas grandes cidades também impossibilitam que um
indivíduo ande a esmo por ruas, dobrando esquinas sem pensar. No texto é
possível observar justamente este período de transição, em que a aristocracia
decadente tenta manter antigos hábitos. E Dupin está justamente nesta fronteira,
vivendo de herança, exercendo uma atividade como um simples hobby e se
entregando ao ócio em suas noites de caminhada e conversas despreocupadas. O
flâneur, como o primeiro conto policial de Poe deixa transparecer, pode se
transformar, mesmo sem querer, num detetive, observando os demais habitantes
da cidade, mas incógnito na multidão.
E, em suas andanças, o detetive procura analisar o outro, desvendando sua
personalidade pela fisionomia. Para Dupin os indivíduos parecem ter janelas em
seus peitos. É possível descobrir tudo o que passa dentro das pessoas, apenas com
a observação de seus atos e fisionomias. O protagonista do conto “O homem da
multidão” faz o mesmo, define personalidades mesmo olhando da distância de sua
janela. O método é característico da época. Acreditava-se que traços de caráter
podiam ser desvendados pela análise do físico de homens e mulheres. Na década
de 40 do século XIX eram comuns as fisiologias, que procuravam mapear os
diferentes tipos de indivíduos existentes numa cidade (quando eles se esgotaram,
elas passaram a definir as próprias cidades espalhadas pelo mundo), como
constata Walter Benjamin (1989). As fisiologias procuravam dar conta de todos os
tipos humanos, a ponto de, com uma rápida observação, já ser possível definir um
habitante e sua ocupação.
Havia uma explicação lógica para tudo, dos processos químicos do corpo
aos mecanismos da mente. Não havia enigma que não pudesse ser descoberto. É
por isso que Poe já começa a história com a seguinte citação de sir Thomas
Browne: “Que canção as sereias cantavam, ou que nome Aquiles assumiu, quando
se escondeu entre as mulheres, embora questões intrigantes, não estão além de
toda conjectura (Poe, 1996, pg 7).” Tudo podia ser explicado.
A narrativa de enigma é baseada nas crenças do Positivismo. Desta forma,
tanto a imprevisibilidade do homem, quanto a das cidades, não são levadas em
conta. Há uma explicação racional para qualquer coisa. É por isso que, neste tipo
de policial, muitas vezes se elaborava o fim primeiro, para que toda a história
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pudesse chegar a este de forma lógica. Existe uma essência e uma verdade a ser
desvendada. E a solução sempre aparece, inequívoca.
Dupin não foge à regra e, com seus métodos de raciocínio, é sempre
invencível. Em Assassinatos na rua Morgue, desvenda o mistério da morte de
duas mulheres, mãe e filha, assassinadas de forma brutal. O corpo da mãe estava
completamente mutilado e mal guardava aparência humana, enquanto que o da
filha estava preso, de cabeça para baixo, na chaminé da lareira da casa.
Aparentemente, era impossível entrar na residência, já que todos os cômodos
estavam trancados por dentro. Mas, mesmo assim, algo devastador acabou com a
paz do lar e matou as duas mulheres de forma absolutamente violenta. Os que
escutaram os gritos e as frases ditas na hora do crime não conseguiram identificar
as palavras. Para todas as testemunhas, cada um de uma nacionalidade diferente, o
assassino só podia ser estrangeiro para soltar aqueles estranhos ruídos.
As pistas parecem, à primeira vista, desconexas e o crime insolúvel. Mas
não existe mistério impossível de ser desvendado na narrativa de enigma.
Segundo a estudiosa Sandra Reimão, no livro O que é romance policial (1987),
esta característica invencível do detetive se baseia numa idéia que vigorava no
século XIX, do homem como uma máquina, que raciocina segundo alguns
princípios universais, como semelhança, contigüidade e contraste. Quem
dominasse estas leis poderia então deduzir os pensamentos e sentimentos alheios.
Desta forma, Dupin chega à verdade e, para isso, utiliza apenas o seu
raciocínio dedutivo e as notícias que lê nos jornais. Ele vai uma única vez ao local
dos assassinatos. Depois de realizar a sua investigação particular, entrega a
solução pronta para a polícia, que estava completamente perdida num emaranhado
de acontecimentos aparentemente sem sentido.
Sua forma de investigação retrata outra transformação vivida pelos
habitantes das metrópoles no século XIX. No período em que Poe cria sua trama,
grandes jornais surgem e passam a circular nas cidades. Em suas folhas, notícias
diárias sobre os acontecimentos e os crimes que começavam a ocorrer dentro dos
centros urbanos, cada vez maiores e mais populosos. A vida na cidade deixava de
ser tranqüila. Com o crescimento das metrópoles, chegava a violência, e a
imprensa tirava proveito das histórias sangrentas para atrair leitores.
Segundo Georg Simmel (1987), com o fenômeno da multidão nas ruas das
metrópoles, o outro deixa de ser o vizinho próximo e conhecido para virar um
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mistério. Não havia mais os rostos e as aparências familiares, tão comuns à vida
nas cidades pequenas, onde todos se conhecem e sabem do passado e da história
de cada um. Os homens passam a se fechar em suas casas, adotando uma postura
de indiferença perante o outro. Morar próximo não significa mais um constante
contato físico ou visual.
Conforme as cidades crescem há um cultivo ao individualismo, até como
medida de proteção, já que seria impossível estar aberto a tantos estímulos, a
tantas pessoas, a tantas aparências novas. No conto de Poe, os depoimentos dos
vizinhos das duas mulheres mostram como elas eram pouco conhecidas na
comunidade. Ninguém sabe muitos detalhes de suas vidas. Vivem de forma
discreta, quase reclusa, como revela o narrador:
Muitas outras pessoas, vizinhos, deram o mesmo depoimento. Ninguém declarou
que freqüentava a casa. Não se sabia se havia qualquer parente vivo de Madame
L. e sua filha. As trancas das janelas da frente eram raramente abertas. As dos
fundos estavam sempre fechadas, com exceção das do grande quarto no fundo, no
quarto andar. (Poe, 1996, p. 23)
O próprio Dupin e o narrador vivem dentro de casa, sem amigos para fazer
visitas ou compromissos que os levem à rua. Só à noite eles saem e participam da
vida na cidade. A rotina dos personagens retrata este momento, em que o outro
aparece como um enigma.
A insegurança, o crescimento da metrópole, o aumento da violência
trazem ainda mais mudanças. Por causa do crescimento cada vez maior das
cidades, após a Revolução Industrial surgem mecanismos para vigiar e punir os
cidadãos. A população das cidades começa a ser catalogada. Imóveis passaram a
ser numerados, as partidas e chegadas dos trens controladas, as cartas contadas e
seladas e as pessoas cadastradas por suas assinaturas. A invenção da fotografia
ainda chega para registrar, de forma inequívoca, os vestígios do ser humano.
Walter Benjamin, em Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo (1989), registra a fala de um policial parisiense em 1798. Para a
autoridade, era impossível manter os bons costumes numa população amontoada,
onde todos são desconhecidos e, por isso mesmo, não há razão para enrubescer
diante dos olhos de ninguém. No meio de uma multidão de passantes, um homem
poderia encontrar o esconderijo perfeito. O autor cita ainda o exemplo do poeta
Charles Baudelaire, que possuía vários endereços diferentes e fugia dos credores
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flanando por esquinas, ruas e casas. Só entre os anos de 1842 e 1858 foram
achados quatorze registros de endereços em seu nome. Benjamin afirma: “O
conteúdo social primitivo do romance policial é a supressão dos vestígios do
indivíduo na multidão da cidade grande.” (Benjamin, 1989, p. 41)
Era esta idéia da multidão como esconderijo, dos mistérios guardados atrás
de cada porta, que impulsionou as primeiras histórias de suspense. O crime mais
hediondo podia acontecer na casa contígua, sem que ninguém suspeitasse. E o
assassino poderia sumir facilmente, sem ser notado, pelas ruas da cidade. “O
romance policial se forma no momento em que estava garantida essa conquista – a
mais decisiva de todas – sobre o incógnito do ser humano.” (Benjamin, 1989, p.
45)
Segundo Carl Schorske, em “A idéia de cidade no pensamento europeu de
Voltaire a Spengler” (1987), os centros urbanos, que eram vistos pelos iluministas
como locais da virtude, onde o homem podia se desenvolver e conquistar a sua
autonomia, aparecem sob o estigma dos vícios sociais depois da Revolução
Industrial. As metrópoles passam a ser classificadas como ambientes doentes. O
romance policial vai tratar justamente daquilo que foge ao controle, daquilo que
fugiu à racionalidade e ao planejamento. E, no gênero, o detetive aparece como
um remédio, capaz de acabar com os males desta cidade do vício. No policial
existe este contraponto: o submundo retratado, a cidade doente, e o policial, a
ordem que chega para, teoricamente, acabar com o caos e restabelecer o
equilíbrio. O criminoso é um inimigo social, aquele que vai contra as leis que
ordenam racionalmente a cidade.
Segundo Ernest Mandell, em Delícias do crime (1988), em 1882 a
população parisiense, por exemplo, se sentia tão apreensiva que os cafés eram
proibidos de permanecer abertos depois de meia-noite. A quantidade de crimes
cometidos aumentava gradativamente no século XIX. O número de condenados
subiu de 237 para cada cem mil habitantes, em 1835; para 375, em 1847, e 444,
em 1868. O sentimento de insegurança só crescia e, se antes a sociedade podia dar
conta de seus próprios criminosos, à medida que as cidades cresciam, era preciso
mais técnicas e uma polícia organizada para isso. E é só a partir do século XIX
que a corporação começa a existir. Mas, no início, a polícia é formada por ex-
infratores, o que faz com que, de certa forma, já exista, desde o princípio, um
sentimento de desconfiança da população em relação aos seus profissionais.
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Em Assassinatos na rua Morgue, Dupin não desconfia do caráter dos
policiais. Ele, inclusive, é amigo do chefe de polícia e é a ele que entrega a
solução do crime. Os integrantes da corporação, para ele, simplesmente não têm o
raciocínio dedutivo tão trabalhado quanto o do detetive, parecem incompetentes,
e, em vez de chegarem à solução, acabam deixando passar pistas importantes e se
prendendo em fatos irrelevantes. A solução lhes parece impossível, por mais que
os indícios sejam claros.
Já para Dupin toda a investigação é como um jogo. O detetive sente uma
grande satisfação em ver que venceu, mesmo não passando de um amador. No seu
encontro com o chefe de polícia, afirma:
Estou satisfeito por tê-lo vencido em seu próprio campo. De qualquer maneira,
não nos deve surpreender o fato de que ele não conseguiu solucionar este
mistério. Isso se deve a seu modo de pensar: na verdade, nosso amigo chefe de
polícia é astuto demais para ser profundo. Em sua ciência não há stamen. Ele é
toda cabeça e nenhum corpo, como as pinturas da deusa Laverna – ou, na melhor
das hipóteses, toda cabeça e ombros, como um bacalhau. Mas ele é uma boa
pessoa, acima de tudo. Gosto dele, especialmente pelo jargão que usa e a que se
deve a sua reputação de homem sagaz. Refiro-me à maneira que ele tem ‘ de nier
ce qui est, et d´expliquer ce qui n´est pás’ (de negar o que é e explicar o que não
é). (Poe, 1996, p. 62)
Dupin vence por causa de seu método elaborado, que busca a solução do
problema, chegar ao fim, usando a razão pura. A solução, apesar de improvável, é
contada com clareza e segurança. Na história o detetive descobre que um
orangotango raro se soltou pelas ruas da cidade e assassinou as duas mulheres.
Para chegar à conclusão, junta notícias que leu no jornal (como a matéria sobre a
fuga do macaco e o relato com o depoimento das testemunhas), com a atrocidade
do crime, os pêlos encontrados no local e as marcas roxas deixadas no pescoço de
uma das vítimas (fatos averiguados numa única visita à casa). Não há uma
preocupação com a realidade na narrativa de enigma. O improvável de um
orangotango se transformar num assassino não tem a menor importância. Tudo
está explicado em detalhes de forma lógica. O que importa é que a verdade foi
revelada e a ordem restabelecida.
No policial dedutivo o leitor sempre descobre o criminoso, a verdade é
encontrada e a história conta o processo investigativo para provar como, de forma
racional, as peças vão sendo articuladas, chegando a um fim inequívoco. A dúvida
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acabaria com a fórmula. Não importa se os fatos narrados podem encontrar
paralelo na realidade, apenas que a explicação seja sustentada pela razão.
Desta forma, Dupin consegue localizar o dono do orangotango, um
marinheiro, publicando um anúncio no jornal. E, depois de confirmar a história
com o proprietário do animal, convence-o a procurar a polícia. Isto porque a
verdade, nas narrativas do gênero, parece baseada em conceitos de certo e errado
muito definidos. A justiça precisa ser feita. O bem tem que vencer.
Você não tem nada a esconder. Você não tem motivos para isso. Por outro lado,
você deve, por princípio de honra, confessar tudo o que sabe. Um homem
inocente está agora preso, acusado de um crime que você sabe quem cometeu. O
marinheiro recobrou sua presença de espírito, assim que Dupin pronunciou estas
palavras; mas sua antiga audácia desaparecera.
- Que Deus então me ajude! (Poe, 1996, p. 57)
Segundo Sandra Reimão (1987), Edgard Allan Poe, com seu conto
investigativo, inventou o exemplo mais expressivo da narrativa de enigma e criou
uma base para os desdobramentos do gênero. Em seus textos, conhecidos também
como o policial clássico ou dedutivo, seguindo uma linha lógica de raciocínio, um
detetive amador, que exerce a atividade por puro prazer, desvenda um mistério.
Não importa a sua personalidade ou os seus sentimentos. O leitor pouco sabe
sobre eles. O texto de enigma trata do desenrolar de uma investigação. As pistas
são recolhidas e a lógica resolve o mistério quase que de forma matemática, dando
uma explicação racional para cada um dos acontecimentos. Não há espaço para o
acaso.
É por isso que Lonnrott não poderia sobreviver no fim do conto “A morte
e a bússola”, de Jorge Luís Borges. Em suas páginas a realidade da metrópole
aparece retratada, com todos os seus imprevistos e habitantes, agindo sem roteiro
pré-definido. Até o assassino se aproveita de uma coincidência para armar uma
armadilha contra o detetive (já que o assassinato do rabino ocorrera por acaso,
mas, como o detetive desenterrava histórias e procurava explicações, o assassino
plantou pistas que alimentassem a tese do profissional). E o personagem principal
deixa o lugar confortável do investigador de enigma e sai para as ruas. Ele usa os
métodos de um detetive dedutivo numa realidade que não é mais a desse tipo de
investigação.
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Lonnrott investiga por causa de sua profissão; precisa trabalhar, não vive
de herança. Não pode ficar em casa, raciocinando em cima de notícias de jornal.
Precisa percorrer becos e avenidas e ir à caça de pistas. A segurança dos
raciocínios lógicos, das verdades inequívocas e dos fins inquestionáveis, cede
lugar à insegurança, aos imprevistos da vida de uma metrópole. A cidade onde ele
vive está em constante transformação.
É como na cena final do conto. Ele chega a uma casa matematicamente
projetada. A residência está completamente abandonada, fora de uso. Cada canto
reflete exatamente o oposto, como se ele estivesse num labirinto de espelhos.
Como se este se referisse ao labirinto de deduções no qual o detetive se perde.
Métodos lógicos que não cabem mais no tempo da história, que estão fora de uso,
assim como a casa visitada, e precisam ser abandonados.
Da mesma forma, o detetive dedutivo não conseguiria sobreviver na
metrópole de hoje. Ele vence no jogo do raciocínio, mas não na realidade das ruas.
É só sentado em sua poltrona, brincando de exercitar suas faculdades mentais, que
desvenda mistérios cartesianos. O investigador que vai para as vias, que é
empurrado para a ação, precisa se deparar com os acasos da cidade e os
imprevistos do dia-a-dia a todo momento.
Rubem Fonseca trata desta mesma mudança que o policial apresenta, ao
acompanhar as transformações do mundo, quando escreve o conto “Romance
negro” (1992). As histórias policiais, que sempre tiveram os centros urbanos
como pano de fundo, acompanharam e retrataram as mudanças na vida das
metrópoles. Num mundo onde não existiam mais certezas, o detetive não podia
mais sair em busca de verdades inequívocas; precisava se deparar com as dúvidas
do homem urbano. Um detetive dedutivo, que vivia num mundo regido por uma
série de certezas e explicações lógicas, precisava morrer para dar lugar a outro,
morador de um centro onde as dúvidas e a insegurança são constantes, onde o
indivíduo deixou de ter uma essência una e passou a apresentar inúmeras facetas.
No conto de Fonseca, um escritor de romances policiais famoso, Peter
Winner, revela, durante um encontro do gênero, que matou o verdadeiro Winner e
assumiu a sua identidade. É por isso que sua obra, já decadente e ultrapassada,
sofre uma mudança brusca, a partir de determinado momento de sua carreira, e
aparece revigorada para os leitores. Ele mata o escritor do texto de enigma e faz
nascer o de romances negros ou noir, simplesmente porque era preciso
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acompanhar as mudanças do mundo. A partir deste momento, como nas tramas do
noir, a história é recheada de imprevistos, uma morte puxa outras e o final aparece
imprevisível e sem punições para o criminoso.
Peter Winner é o próprio enigma em pessoa. Suas características batem
com as do romance dedutivo criado por Poe. Sua personalidade, assim como nos
romances clássicos, é apenas esboçada. Ninguém conhecia o seu rosto ou sabia
quem ele era. A única coisa que aparecia era o seu trabalho, as tramas de suspense
que escrevia. No romance de enigma o leitor acompanha uma investigação, sem
se deter nas características do detetive ou dos personagens. Segundo a própria
editora, Clotilde, Winner só escrevia seguindo fórmulas, assim como os textos do
gênero dedutivo, que seguem sempre os mesmos procedimentos.
Naquele encontro no trem, diz Clotilde, você me deu seu livro e eu o li durante a
viagem. Fiquei maravilhada. Era um novo Winner, pensei, sim, um novo Winner,
os críticos tinham razão, você havia conseguido a façanha de escrever um
romance diferente dos outros. Aos quarenta anos, depois de um romance
fracassado, deixava para trás as fórmulas que manipulava com grande mestria e
criava uma coisa inteiramente nova. Eu devia ter desconfiado de que o homem
não era o mesmo. (Fonseca, 1992, p. 172)
Clotilde deixa claro que a carreira de Winner estava nas últimas, seus
livros não vendiam mais e ele precisava se reciclar. Isso acontece quando John
Landers assassina o escritor e assume a sua identidade. Depois do incidente, o
leitor passa a conhecer os pensamentos do novo autor, o seu passado, sua origem,
suas dúvidas, sua história e mergulha num clima de luxúria, sexo, dinheiro, fama e
bebidas. Ele se casa com a editora, mas o que sente por ela é apenas desejo por
sua aparência física.
Segundo Ernest Mandell, em Delícias do crime (1988), o noir se
desenvolve num contexto onde a corrupção, a violência e as mortes se encontram.
O mal aparece generalizado e nem mesmo o detetive ou a vítima escapam. Todos
têm um lado negro. A violência está presente em toda a sociedade. O gênero surge
nos Estados Unidos, em 1925, no período entre as duas guerras mundiais,
inaugurado pelo escritor Dashiell Hammett. Sua trama se concentra mais no crime
do que na investigação.
A narrativa nasce à beira da Segunda Grande Guerra e às vésperas da
quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, que desestruturou a economia
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32
mundial. O clima cultural segue a insegurança e o pessimismo dos
acontecimentos. Segundo Sandra Reimão (1987), há uma oposição generalizada
ao otimismo racionalista do positivismo. É a época das incertezas, do
desenvolvimento da filosofia de Nietzsche, do nascimento da psicanálise e do
surgimento das primeiras sementes do existencialismo.
Neste ambiente, surgem as narrativas negras, sem muitas regras. Um
detetive profissional passeia por uma cidade onde a angústia e a violência
aparecem em toda parte. Ninguém está imune, nem mesmo o protagonista. Os
mistérios acabam muitas vezes sem solução e há policiais mais corruptos e
violentos do que os próprios assassinos.
Ricardo Piglia acrescenta, em O laboratório do escritor (1994), que há
vários documentos sobre a situação social dos Estados Unidos nos anos 20 que
permitem ver surgir o detetive particular, presente nas histórias negras. Segundo o
autor, eles aparecem primeiramente nas grandes cidades industriais, como uma
polícia contratada por empresários para controlar possíveis grevistas. Para ele, o
tipo de narrativa trata de uma realidade capitalista e regida pelo dinheiro. Seus
detetives deixam de ser aristocratas decadentes que investigam por prazer,
vivendo de restos de heranças. E viram profissionais, pagos para fazer um
trabalho, que saem à rua a cata de pistas e suspeitos.
Assim, o modelo de detetive muda, seguindo as transformações do mundo.
Ele deixa de ser o gênio infalível e passa a mostrar fraquezas e dúvidas. Além de
buscar solucionar os casos pela experiência, é um profissional pago para
investigar e sofre efeitos da vida na metrópole. O gênio absoluto, que se baseia em
métodos analíticos para desvendar o mundo, dá lugar ao detetive mais humano e
cheio de incertezas. O personagem espelha uma crise da razão. Ele se lança à
ação, à experiência, embora perceba a falta de alicerces, de caminhos que apontem
para soluções definitivas. Segundo Valéria Medeiros, em Estudos em vermelho:
caminhos do enigma (2002), num mundo que assiste à crise das certezas, não
cabem mais métodos inquestionáveis e mistérios desvendados de forma
inequívoca.
Mas, apesar de todas as transformações e diferenças, noir e romance de
enigma têm a mesma origem e o mesmo pano de fundo: a cidade. É por isso que
Winner e Landers, personagens do conto “Romance negro”, de Rubem Fonseca,
aparecem no fim como irmãos gêmeos. Além de fazer uma referência à própria
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33
história de Edgard Allan Poe, que tinha um irmão gêmeo, criado por outra família,
a ligação dos personagens se refere também à história do gênero. No conto, apesar
das diferenças na personalidade, Winner e Landers têm a mesma origem. Da
mesma forma, o romance de enigma e o negro. Como o noir se desenvolveu a
partir das tramas dedutivas, os dois estilos têm um pai em comum: Poe.
2.2
A cidade das incertezas e a narrativa policial no Brasil
Edgard Allan Poe fez do seu detetive, Auguste Dupin, um homem culto,
que gosta de exercitar o seu raciocínio jogando xadrez, de demonstrar suas
qualidades analíticas para o amigo em passeios noturnos. Mas, para desvendar
seus casos, ele recorre aos jornais, à entrevistas e depoimentos. A verdade que
Dupin procura, não está escondida em nenhum lugar inacessível. Ela está na
superfície, pronta para ser descoberta, mas, para olhos não treinados, passa
despercebida. As pistas estavam ao alcance de todos, mas ninguém viu. Desta
forma, o autor vai construindo sua verdade através de um discurso lógico. Para
desvendar o mistério de “Assassinatos na Rua Morgue, por exemplo, só precisou
visitar o local do crime, observando o ambiente e colhendo objetos, e acompanhar
o noticiário que era publicado diariamente nos jornais. Sua solução não aparece
como um passe de mágica, tudo estava lá, Dupin só montou o quebra-cabeça.
Mas a verdade final dos textos de enigma, como os contos protagonizados
pelo detetive Dupin, não está mais presentes na maioria das narrativas policiais
contemporâneas. Andando pela Copacabana dos dias de hoje, o delegado
Espinosa, criado pelo escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, investiga uma série de
assassinatos. Ao longo dos seis livros que protagoniza, ele passa mais tempo
tentando proteger suas testemunhas e entrevistando possíveis suspeitos e
informantes do que tirando conclusões. Ao final das histórias, invariavelmente,
premia o leitor com uma série de suposições. Na última página de Uma janela em
Copacabana, por exemplo, seu quarto romance, depois de contar sua versão para
a namorada, ele afirma: “- É exatamente o que tenho: certeza íntima. Por isso
estou conversando com você. Toda certeza, como você disse, é íntima.” (Garcia-
Roza, 2001, p. 208). O leitor que esperava um desfecho conclusivo, precisa se
contentar com suposições.
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Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em Os crimes do texto (2003), lembra
que, no final do século 20, houve uma retomada dos gêneros literários em toda
parte. Mas eles chegam nas prateleiras das livrarias repaginados. Isto porque o
movimento ocorre num momento em que a sociedade perde as crenças que lhe
serviam de alicerce. Num mundo onde o homem perdeu a sua essência imutável e
todas as certezas caíram por terra, a verdade de Dupin só poderia dar lugar às
dúvidas de Espinosa. Para a autora, optar hoje por gêneros como o romance
policial, que trabalha com a busca de uma verdade absoluta, seria, de certa forma,
minar e discutir o que funcionava como base para os homens de séculos passados.
Alguns autores passam a adotar, então, um modelo palatável e conhecido do
público para atrair um número maior de leitores e refletir e discutir um tempo sem
esperanças, como sublinha Vera Follain de Figueiredo:
As pertinências genéricas, então, já não serão rejeitadas de maneira radical, mas
serão minadas por dentro, num movimento que remete para a erosão gradativa do
edifício das certezas modernas, para a minorização das categorias através das
quais essas certezas se expressavam. Não é à toa que se retomam hoje subgêneros
que afirmavam a verdade (o romance policial), o indivíduo (a autobiografia) e a
história (o romance histórico) – instâncias fundamentais para a construção das
narrativas modernas de emancipação, que o século 20 se encarregou de
descentrar, de redimensionar (Figueiredo, 2003, p.86).
Desta forma, a escolha de determinado gênero literário diz muito sobre o
tempo e o mundo em que vive o escritor que o adotou. Para Vera, muitas vezes,
eles são retomados para que sejam apontadas como eram ilusórias as certezas
sobre as quais se sustentavam: “(...) a de um mundo ordenado e transparente, de
uma unidade coerente do eu e a do sentido teleológico da trajetória do homem”
(Figueiredo, 2003, p. 86). O estudioso Nelson Brissac, por exemplo, defende, em
Cenários em ruínas (1987), que o detetive pós-moderno marca a busca do homem
nos dias de hoje. No livro, ele explica que a cidade descrita nas páginas do gênero
influencia as características do personagem. O protagonista sofre os efeitos da
vida numa metrópole. O detetive é descrito normalmente como um ser solitário,
caminhando pelo emaranhado de ruas, sempre em busca de uma explicação para
os fatos, de uma verdade que nunca encontra. É como se, em suas investigações,
ele procurasse respostas para a sua própria existência. Ressalta Brissac:
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O detetive vive num mundo onde a frustração tomou conta das pessoas, onde o
cinismo e a frieza se tornaram táticas de sobrevivência. Povoado por gente
desiludida e endurecida, bandidos, tiras e prostitutas, obrigados a viver de
expedientes e pequenos crimes, do que puderem arrancar dos outros. Gente que
teve que aprender a levar a sua própria vida, a não ligar para nada, a se distanciar
de tudo. Nestes tempos difíceis, onde cada um tem que se virar por si mesmo,
acaba-se tendo de passar, contra a vontade, por detetive. Qualquer pista que se
siga conduz a um crime (Brissac, 1987, p. 14).
Nada estaria tão em oposição ao mundo pós-moderno do que o romance de
enigma, onde um detetive com métodos racionais desvenda a verdade e
restabelece a ordem. Numa sociedade onde tudo passou a ser relativo, o que
poderia ser classificado como verdade? Numa época onde as certezas não existem
mais, com que autoridade o detetive pode desenvolver os seus métodos? O
romance noir já começou a desconstruir e questionar o modelo clássico. Para Vera
Lúcia Follain de Figueiredo, a troca do pensamento pela ação trouxe uma
mudança radical ao gênero policial, mas alguns escritores contemporâneos
acrescentaram mais um elemento transformador: a imaginação, que apresenta
apenas versões e suposições para fatos e acontecimentos.
A retomada dos gêneros é, ainda, característica da pós-modernidade.
Depois de uma época de rupturas sucessivas, típicas do modernismo, o homem se
depara com um esgotamento dos procedimentos de corte com a tradição. No conto
“A biblioteca de Babel” (1941), o escritor argentino Jorge Luís Borges apresenta
no seu labirinto de prateleiras uma problemática da pós-modernidade. Na sua
biblioteca estão todos os livros, dispostos em salas com o formato de hexágonos.
Os compartimentos se repetem ao longo do prédio. Não há um único livro
idêntico a outro no ambiente, mas, apesar disso, todos possuem elementos iguais.
O narrador registra:
Ouso insinuar esta solução do antigo problema: a Biblioteca é ilimitada e
periódica. Se um eterno viajor a atravessasse em qualquer direção, comprovaria
ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que,
reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante
esperança (Borges, 1975, p. 89).
O viajante que percorresse os corredores da biblioteca ao longo dos
séculos notaria que os livros se repetem, mesmo que não haja um único exemplar
idêntico a outro. Eles se sucedem em releituras. Tudo já foi escrito, cabe, então,
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reler o que foi feito. E, em vez de angústia, a constatação é reconfortante. Em vez
de projetar seus feitos para o futuro, o que importa é o aqui e o agora. Em vez de
criar novas formas de negação do passado, há uma retomada dos clássicos e dos
gêneros, apresentando novas versões e contribuições, a partir de releituras. O
policial passa, então, a ser adotado por muitos escritores, que se utilizam de um
modelo já aceito pelo público para discutir uma série de questões da atualidade.
Para a pesquisadora Sandra Reimão, por exemplo, o mundo do crime é
uma metáfora da própria cidade. Em Romance policial (1987), ela defende que,
através dele, podemos ler as transformações e as características da vida nos
centros urbanos. O teórico Ernest Mandell, autor de Delícias do crimes (1988),
acredita que, mais do que sinônimo de diversão o gênero é uma forma de fazer
uma crítica social. O detetive sofre os efeitos da vida numa metrópole, com a
velocidade dos acontecimentos, o dinheiro regendo as atividades, a violência e um
aglomerado de pessoas dividindo o mesmo espaço. Resgatando o gênero, autores
podem, portanto, proporcionar dois tipos diferentes de leitura: uma superficial,
que acompanha a trama como um mero entretenimento, e outra mais complexa,
analisando os elementos da história, refletindo sobre o tempo em que vive.
No Brasil, o gênero ganha força nos últimos anos. Apesar do sucesso
mundial, a narrativa policial não emplacava na produção brasileira. Mas, a partir
da década de 90, o país assistiu ao lançamento de uma série de coleções policiais,
ao surgimento de novos autores e ao nascimento de detetives marcantes, capazes
de conquistar centenas de fãs. É o caso do escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, que
publicou seu primeiro livro em 1996 e, de lá para cá, já fez o seu delegado
Espinosa circular por seis tramas de suspense. Num artigo publicado em 2005, na
edição número seis da revista EntreLivros (que dedica a sua matéria de capa ao
gênero), a jornalista Denise Góes afirma que o autor é o mais bem-sucedido
escritor de ficção policial brasileira da atualidade. São mais de 100 mil
exemplares vendidos e livros traduzido para sete idiomas, como o inglês, o
francês, o russo e o grego. Nos últimos anos, as livrarias passaram a dedicar
estantes e espaços nobres para as edições policiais e, no início de 2006, surgiu,
pela primeira vez, uma inteiramente dedicada aos livros de mistério: a Livraria do
Crime, por enquanto, com endereço virtual (www.livrariadocrime.com.br).
As especulações para o crescimento tardio do gênero no Brasil são muitas.
Para a escritora Denise Reis, a explicação pode ser encontrada dentro das próprias
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37
editoras. Numa entrevista para o site da Livraria do Crime ela arrisca dizer que
foi o mercado brasileiro que estimulou o aumento da produção nacional.
O número de leitores desses gêneros tem crescido em todo o mundo. Como a
produção brasileira é pequena, a saída era recorrer à literatura estrangeira. Os
editores, para atender a essa demanda, acabavam comprando os direitos de obras
estrangeiras para traduzir, pagando caro por isso. Talvez tenham avaliado que
compensaria mais incentivar a criação de um mercado nacional. Simplificando a
coisa, acho que é como na abolição da escravatura: o mercado conseguindo o que
a ideologia não conseguiu. (www.livrariadocrime.com.br - acesso em maio de
2006).
As principais editoras do país investiram nos últimos anos no lançamento
de coleções dedicadas ao gênero. A medida já é uma estratégia para atrair um
número maior de leitores. A idéia é que, quem gosta de um exemplar, pode levar a
coleção inteira. A Companhia das Letras, por exemplo, lançou em 1995 a Série
Policial, que conta com títulos nacionais e estrangeiros, todos agrupados em capas
padronizadas, marcadas por fotos em preto-e-branco e clima de mistério nas
imagens, dela fazem parte os livros assinados por Luiz Alfredo Garcia-Roza e
pelo músico e escritor Tony Bellotto. Já para compor Literatura ou Morte (2000)
a editora convidou autores nacionais consagrados para assinar livros de suspense,
como Luis Fernando Veríssimo, Leandro Konder, Ruy Castro e Rubem Fonseca.
O mote para a escrita do policial é sempre um grande nome da literatura universal,
como Rimbaud, marquês de Sade, Molière, Borges. Um exemplo perfeito de
como o gênero vem borrando as fronteiras entre a alta cultura e a de massa.
A Record lançou a Coleção Negra (2000) e grandes coletâneas com
histórias do gênero, como Crime feito em casa (2005), organizada por Flávio
Moreira da Costa e reunindo os primeiros contos policiais brasileiros. A Nova
Fronteira batizou a sua de Primeira Página (2001). Nela, os narradores das
histórias são jornalistas, os crimes são baseados em fatos reais e, verdadeiramente,
estamparam as páginas dos jornais. A série foi organizada pelo escritor José
Louzeiro, que tem dezenas de livros publicados e foi repórter de policia por vinte
anos. Ele promovia periódicas reuniões de pauta, assim como é feito nos jornais,
com os autores dos livros, para definir as temáticas. A coleção trabalha com uma
idéia já desenvolvida por Walter Benjamin (1989). Para o autor, duas matrizes
derivam do flâneur: o repórter e o detetive. Os dois investigam andando pela
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cidade, mas não podem mais viver do ócio. Eles têm uma profissão que passa a
justificar a atividade.
Em 2003, a Rocco criou Elas são de Morte. A série apostava num
diferencial: apenas escritoras assinando os livros de mistério. E as protagonistas
das histórias também são do sexo feminino. Para comemorar a sua série, a editora
Rocco lançou ainda, no mesmo ano, um catálogo, distribuído para livreiros, com a
história do gênero no país e no mundo. Nele, o editor Pedro Karp Vasquez (2004)
afirma que, quando o policial começou a florescer no Brasil, no fim do século XX,
grandes escritores nacionais criaram tramas de suspense e conseguiram, assim,
trazer prestígio a um gênero que fazia os rostos de autores e leitores brasileiros se
contorcerem de desprezo. Um estilo classificado desde sempre como baixa
literatura.
Mais para o final do século XX, alguns escritores consagrados tentaram alçar o
romance policial tupiniquim a um nível mais elevado, lhe conferindo suas lettres
de noblesse. Quem deflagrou esse movimento foi Rubem Fonseca, que, amparado
em sua experiência pregressa como delegado de polícia, já havia trazido para a
literatura a linguagem crua e a violência das ruas (Vasquez, 2004, p. 65).
Vasquez justifica a sua tese analisando a história do policial no Brasil. O
primeiro romance policial nacional que se tem notícia é O Mystério, publicado em
formato de folhetim, em 1920, no jornal A Folha, do Rio de Janeiro. A trama,
escrita por quatro autores (Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e
Albuquerque e Viriato Corrêa), que se revezavam ao longo dos capítulos, conta a
vingança do jovem Pedro Albergaria. O banqueiro Sanches Lobo acabou com a
honra de sua família e levou o pai do rapaz à ruína. Desde então, Pedro passa os
dias arquitetando um plano para assassinar o banqueiro e retomar parte de suas
riquezas. A história se passa num grande centro urbano, o crime é noticiado com
todos os seus detalhes pelo jornal da cidade, e a trama é cheia de viradas
melodramáticas. Pedro descobre, por exemplo, ao fim do folhetim, que o
banqueiro era o seu verdadeiro pai e a moça, pela qual estava apaixonado, sua
irmã. Mas o que mais chama atenção é a ironia com que o gênero policial é
tratado.
Os autores deixam claro que as histórias de enigma não merecem
seriedade, são pura literatura de entretenimento, e brincam com os elementos do
romance policial a todo momento. Os próprios personagens reforçam, em suas
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falas, o desprezo ao gênero. Logo no primeiro capítulo o narrador descreve a
personalidade do assassino como um homem que lê romances policiais, com o
intuito de se preparar para o crime que pretende realizar. E faz questão de frisar
que os livros não passam de baixa literatura.
Ele tinha ruminado durante anos aquela vingança. Calculara tudo, previra tudo.
Lera centenas de romances e contos policiais, não pelo prazer que lhe pudesse
fazer essa baixa literatura, mas pelo desejo de estudar todos os meios de levar a
cabo o crime que projetava e de escapar à punição (org. Costa, 2005, p. 69).
As características do policial clássico são levadas ao extremo (justamente
com o intuito de ironizar estes elementos), até criarem situações cômicas. O
detetive de O mystério faz uma paródia aos investigadores dedutivos, verdadeiras
máquinas de raciocinar. O personagem procura seguir linhas de raciocínio lógicas,
aplicando métodos científicos em suas buscas, mas acaba sempre fracassando e se
metendo em acontecimentos constrangedores. Num dos trechos, por exemplo,
tenta usar métodos dedutivos similares aos de Sherlock Holmes. Ele faz com que
cães sintam o cheiro do criminoso em alguns objetos encontrados e saiam atrás do
suspeito. Mas acaba esquecendo peças da roupa do assassino dentro dos bolsos e
vira o alvo dos cachorros.
O romance é tratado como uma grande brincadeira pelos seus autores,
tanto que um inclui o nome do outro em partes da trama. Dois dos escritores
aparecem citados, por exemplo, como personagens do julgamento de Pedro
Albergaria. E a história é claramente escrita sem nenhum planejamento prévio. No
final, um dos autores brinca com a grande quantidade de personagens com o nome
Rosa, que acabariam por transformar o crime num incidente de mercado de flores.
No policial de enigma a trama é tão racional e explicada pela lógica que uma
coincidência como esta nunca existiria em vão. No livro, porém, ela aparece como
uma mera casualidade e vira motivo de chacota. Sandra Reimão, em Literatura
policial brasileira (2005), ressalta que o texto aproveita cada detalhe para ironizar
e criticar o romance dedutivo, como um modelo que não deveria ser levado a
sério:
O mysterio ironiza a literatura policial enigma clássica. E auto-ironiza-se
perfilando-se a ela ou utilizando exacerbadamente seus recursos. Seu desfecho é
uma grande ironia: temos uma crítica ao sistema judiciário, que é elaborada
pondo em cena um júri impressionável, a decidir sobre a culpa de um assassinato
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sem vítima, de certa forma metaforizando o próprio papel do leitor nesse tipo de
narrativa (Reimão, 2005, p. 19).
Nesse estudo, Sandra Reimão conta a história do gênero no país. Para ela,
se os textos nacionais têm algum traço característico, este é o cômico. Isto porque
os primeiros romances dedutivos publicados por escritores brasileiros seguem, em
sua maioria, a linha de O mystério, fazem uma paródia e tratam com ironia o
próprio gênero que escolhem seguir.
Muitos destes textos paródicos acabaram alcançando sucesso entre os
leitores. É o caso de Ed Mort e outras histórias (1979), de Luis Fernando
Veríssimo. No fim da década de 70, o escritor criou o detetive Ed Mort, que
ironizava os investigadores durões, comuns nas narrativas negras americanas. O
personagem foi tão bem recebido pelo público que acabou virando tira diária de
quadrinhos, tema de contos e protagonista de um longa-metragem.
O detetive só comia em botequins, dividia o seu escritório (o ambiente é
tão minúsculo que ele chama de escri, porque o tório não cabe lá dentro) com um
grupo de baratas (que se reúnem constantemente num canto para rir dele) e um
rato albino chamado Voltaire. Apesar de ter morrido mais de uma vez, ressuscitou
sem maiores problemas. Os jornais que ele consulta são antigos, porque não há
dinheiro para comprar novos, o telefone está cortado por falta de pagamento e no
ambiente de trabalho há apenas uma mesa e uma cadeira. O movimento por ali é
enorme, só que não é de pessoas e, sim, de baratas. O que atrai a clientela,
composta principalmente de mulheres, é muito mais o charme do detetive do que
os casos que possa desvendar. O personagem de Veríssimo está sempre sem
dinheiro e levando calote dos clientes. Mesmo assim, não perde a pose. Numa
plaqueta, pendurada na porta do escri, ele estampa o seu nome com orgulho: Mort,
Ed Mort.
Era uma pista. Empenhei minha coleção de Bic e comprei um jornal do dia.
Comecei com "Tânia, faço de tudo" e terminei com "Jussimar, banhos de óleo e
fricção musical". Duas semanas de investigação diária. Me fingia de cliente.
Pagava tudo. Como Linda - minha cliente se chamava Linda - não me deu
nenhum adiantamento, tive que vender tudo. A mesa. A cadeira. Tudo.
Finalmente assaltei a pastelaria. Eu sou assim. Quando pego um caso vou até o
fim.(...)
Devolvi o marido para Linda. Na despedida ainda lhe dei um tapa na
orelha. Linda me olhou feio. As baratas apontam para mim e rolam de tanto rir.
Linda não me pagou. Na minha sala agora só tem o telefone e o jornal de 73, no
chão. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta. E roubaram a plaqueta. (Veríssimo,
www.portalliteral.terra.com.br – acessado em maio de 2006)
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O texto de Veríssimo trata o estilo narrativo com ironia, brincando com
seus elementos característicos. Mas ao criar um detetive sem trabalho e
endividado ele acaba refletindo a situação do gênero no país. O espaço do
escritório de Ed Mort, por exemplo, é o mesmo que as editoras brasileiras
dedicavam aos autores nacionais de policial na época: bem pequeno.
Nas décadas de 70 e 80 não eram publicados mais do que quatro romances
policiais brasileiros (muitos apenas com traços do gênero) por ano. A partir de
1995, a produção no Brasil ganhou novo fôlego e, no fim dos anos 90, as editoras
nacionais passaram a quase dobrar a produção. Sandra Reimão (2005) lista em seu
livro o lançamento de onze romances policiais brasileiros no ano de 2000 e, entre
os autores que assinavam os exemplares de mistério, estavam Luis Fernando
Veríssimo, Leandro Konder, Rubem Fonseca e Ruy Castro. Os quatro foram
convidados pela Companhia das Letras para integrar a coleção Literatura ou
Morte. No mesmo ano o autor Mario Prata inovava ao escrever uma comédia
policial com a interferência dos leitores na Internet. Para o editor Pedro Karp
Vasquez o boom coincidiu com o momento em que escritores nacionais com o
currículo recheado adotaram o gênero.
No fim do século XX o estilo passou também a ser visto como um modelo
usado, entre outras coisas, para fazer uma crítica à sociedade. Em entrevistas para
jornais e publicações, escritores de todo o mundo costumam reforçar a teoria de
que escrever sobre crimes e mistérios é atualmente uma forma de fazer uma
crônica da vida na metrópole. Na edição número 713 de Babelia, suplemento
literário do jornal espanhol El País, publicado em 23 de julho de 2005, o escritor
Andreu Martín, autor de Com as mortes não se brinca, declara num artigo que o
romance negro faz uma análise do passado e um estudo de como o que vivemos
anteriormente influi no que presenciamos hoje. O presente seria um segredo e é
atrás deste que está, segundo o escritor, o leitor de policiais. Como se, ao ler as
histórias de mistério passadas em grandes centros urbanos, este esperasse por uma
revelação, a análise de elementos, que permitisse entender um pouco melhor o
mundo contemporâneo. E ele complementa: “A satisfação do aficionado está,
então, nas vertentes que supõem a reflexão sobre o entorno e a vida cotidiana”.
No mesmo suplemento o autor sul-africano, James McClure, diz, numa
entrevista publicada na página 4 do caderno, que “O crime sempre dirá mais sobre
a sociedade, porque reflete melhor os valores que a regem. Se aprende muito
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sobre uma sociedade através de seus crimes”. Os textos policiais, segundo ele,
retratam, desta forma, as angústias, ambições e paixões que movem os homens
das metrópoles. O escritor norte-americano Michael Connely, numa entrevista
concedida em dezembro de 2004 para o suplemento literário Prosa & Verso, do
jornal O Globo, afirma que o policial é usado hoje como um pretexto. Para ele,
um formato conhecido e palatável para tratar de questões que afetam o homem
urbano na atualidade.
Para o escritor José Louzeiro, autor de livros policiais como Mito em
chamas (1987) e M-20 (1982), o crescimento do gênero no Brasil coincide
também com o momento em que este deixa de ser classificado apenas como baixa
literatura e passa a ser visto como um estilo capaz de refletir a sociedade. Numa
entrevista para o jornal Folha de São Paulo, no dia 13 de janeiro de 1980,
Louzeiro afirma que os romances brasileiros passaram a refletir os problemas da
vida urbana. Para o autor, estas características são vistas como uma evolução, e a
transformação fez com que o gênero deixasse de ser classificado como um
simples sinônimo de uma obra sem qualidade literária.
Para o escritor, a rejeição do estilo narrativo no país e a retomada do
policial no fim do século XX, quando este passou a ser usado como um formato
palatável, parece estar associada ao fato do intelectual brasileiro não se permitir
abraçar um gênero classificado como baixa-literatura. Impossível escrever um
texto com o único intuito de entreter, quando é preciso, com urgência, deixar sua
marcar no mercado editorial mundial. Louzeiro acrescenta que o autor brasileiro
de policiais conseguiu atingir um estilo próprio. O autor defende que, num país
tão cheio de mazelas sociais, os textos de enigma não poderiam simplesmente
reproduzir um mistério para mentes curiosas tentarem desvendar. Foi preciso
deixar transparecer uma preocupação social, refletir a realidade da sociedade.
O romance policial no Brasil e na América Latina não poderia ser um romance no
estilo Agatha Cristie. O gênero policial tem, talvez, mais do que qualquer outro
gênero literário, se aprimorado através dos anos e tem vindo ao encontro
exatamente dos interesses da população e com acentuada preocupação social. (...)
Tudo faz crer que a literatura de Agatha Cristie é muito mais desumana do que
qualquer outra, porque o fator vítima não pesa muito, o que interessa é como a
vítima cai num círculo de ferro e não pode escapar. O nosso romance, que está
tomando características de romance policial, na verdade é uma coisa
completamente aberta, pois está se formando como um corpo agregado numa
estrutura tradicional de literatura. E como os autores que estão envolvidos nisso
têm preocupações sociais profundas, como é o meu caso, obviamente esse
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romance, antes de refletir uma peripécia meramente para o encantamento do
leitor, antes de ser uma literatura de entretenimento, é uma literatura realmente
pra valer, uma literatura que reflete os problemas da sociedade em geral.
(Louzeiro, Vasquez, 2004, p. 64)
Para Louzeiro, as características dos textos de enigma nunca se
encaixaram na realidade político-social do Brasil. O crime não podia ser visto
como uma exceção numa sociedade onde a desigualdade social, a flexibilidade
das leis, dos valores éticos e a corrupção da polícia eram a regra. Era difícil
acreditar nos valores que regem os textos de enigma. Estes só faziam sentido,
portanto, quando usados de forma irônica. Para ele, o retardo da industrialização
brasileira foi uma justificativa também para o atraso do sucesso do gênero por
aqui.
Exemplos não faltam de livros publicados no fim do século XX que seguem
a tendência do romance policial no mundo, questionando a vida urbana e os
problemas do homem moderno. Em 1999 o escritor Georges Lamazière publicou
Bala perdida, que usa uma narrativa de mistério para fazer uma série de críticas
ao intelectual nos dias de hoje e atrelar o gênero à vida numa metrópole. Quem
pode seguir duas leituras: uma superficial, que procura desvendar um enigma, e
outra cheia de análises e reflexões. Elementos básicos de um policial clássico
estão presentes: a apresentação de um mistério; o início da investigação, com o
surgimento de pistas; e a conclusão, com uma apresentação de fatos lógicos, que
explicam e comprovam a solução. Mas o livro é cheio de críticas à sociedade, à
burguesia, à falta de segurança, à falsidade dos relacionamentos. O dinheiro rege o
mundo, em Bala perdida.
Na trama, um professor universitário tem o seu romance policial rejeitado
por uma editora e vai afogar as mágoas numa mesa de bar. O manuscrito é
devolvido juntamente com um parecer, que critica inúmeros aspectos do romance.
Depois de uma noite de bebedeira com um grupo de amigos, o protagonista
acorda no dia seguinte em seu apartamento com a blusa empapada de sangue e um
revólver ao lado. Uma dúvida paira no ar: seria ele um assassino com amnésia?
Em busca da resposta, o professor-escritor vai para as ruas investigar cada
uma das pessoas que esteve com ele na noite anterior. O que encontra são relações
superficiais, declínio moral, cultura de fachada, falta de segurança. O protagonista
entra numa galeria de arte e quase tropeça num vômito, que descobre mais tarde
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ser uma obra caríssima. Vai jantar na casa de amigos e encontra no cardápio uma
série de pratos incrementados com tendências da culinária estrangeira. A
universidade onde trabalha é definida como um local onde as pessoas estudam
com o único objetivo de conseguir um diploma. “Infelizmente, nem eles estavam
ali para aprender, nem eu – suponho que soubesse – para ensinar. Nem muito
menos a escola se destinava a isso. A única situação de enriquecimento era a dos
donos” (Lamazière, 1999, p. 54).
A sociedade em que o protagonista vive está em ruína. A moral e a ética
cedem lugar a interesses e aspirações pessoais, e a cidade aparece como um local
onde qualquer um, de uma hora para outra, pode ser atingido por uma bala
perdida, ou seja, envolvido num crime que não lhe dizia respeito. A denúncia de
uma sociedade que almeja valores superficiais e cultua o que vem de fora aparece
explícita numa das cenas, em que o protagonista entra num restaurante para
entrevistar um de seus suspeitos. “O ar-condicionado no máximo, o silêncio quase
impermeável às conversas dos presentes, as toalhas imaculadamente brancas. O
Brasil havia ficado lá fora, realização do desejo não muito inconsciente da maioria
dos que ali estavam” (Lamazière, 1999, p. 84).
Na pós-modernidade a tradição é revisitada e os gêneros ultrapassam a
simples forma. É um jogo de recortes, onde um único texto apresenta uma série de
referências. É o que Georges Lamazière procura realizar em seu livro. Seguindo
uma trama policial, faz uma crítica profunda da sociedade nos dias de hoje e da
vida da classe média numa grande metrópole. Utiliza um formato palatável e
conhecido da massa, com o intuito de criticar os valores que regem a sociedade.
A atitude é comum aos escritores nacionais que adotaram o gênero no fim
da década de 90. Em seus romances policiais, o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza
toca em temas que atingem o homem nos dias de hoje. O leitor que acompanhar
suas histórias superficialmente seguirá os passos de uma trama de mistério. Quem
escarafunchar suas páginas encontrará um personagem que reflete crenças,
dúvidas, hábitos e anseios comuns ao habitante de uma metrópole. Na hora de
compor o seu detetive, Garcia-Roza procura aproximá-lo do homem comum e,
neste momento, acaba refletindo dramas e anseios dos habitantes de uma cidade
grande. O próprio escritor afirmou, numa entrevista para o site “Com Ciência”
(http://www.comciencia.br/entrevistas/roza/roza01.htm), em 2000, que quis fazer
de seu delegado Espinosa um homem como tantos outros, que procura realizar o
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seu trabalho e lidar com os problemas da sua vida: a solidão, os relacionamentos
amorosos, os avanços tecnológicos que ele não consegue acompanhar, o culto a
um passado que lembra, a todo momento, quem verdadeiramente é. O
protagonista foi criado para ser um homem padrão, que poderia estar realmente
caminhando pelas ruas de Copacabana.
Ele não se impõe pela força física, ele nem é um grande atirador, nem exímio
perito em vinhos ou rosas, como os detetives ingleses. Não é um gênio como o
Nero Wolf, nem é aquela máquina institucional do Sam Spade. Ele é um
investigador, que procura fazer da melhor maneira possível seu trabalho, e, de
preferência, evitando socos e tiros.
(http://www.comciencia.br/entrevistas/roza/roza01.htm - acesso em junho de
2005)
Como seria, então, este homem comum que Espinosa procura refletir?
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3
A cidade de Espinosa
3.1
O andar do detetive
Em três dos seis livros que publicou com o delegado Espinosa como
protagonista – O silêncio da chuva (1996), Vento sudoeste (1999) e Perseguido
(2004) Luiz Alfredo Garcia-Roza brinda o seu leitor com um mapa de
Copacabana, abrindo a história, logo na primeira página das publicações. Nele é
possível observar o nome das principais ruas, os morros que circundam o bairro e
os túneis que o ligam às outras regiões da cidade. Uma seta ainda destaca o Bairro
Peixoto, local onde mora Espinosa. As ruas desenhadas no papel servem para que
o leitor vá acompanhando os passos do delegado, um andarilho inveterado, que
tenta desvendar crimes refletindo e investigando pelas ruas de Copacabana, e
também para estabelecer uma ligação entre a realidade e a ficção, já que os
endereços estampados na página existem de verdade no Rio de Janeiro.
Mas, conforme a folha é virada e a história começa a ser contada, o leitor
nota que existe uma grande distância entre a geografia do desenho e a cidade
retratada pelas palavras do escritor. As existências humanas complementam e dão
vida à cidade, antes só esboçada pelas linhas do mapa. Como Italo Calvino afirma
em uma de suas Seis propostas para o próximo milênio (1990), as representações
de uma metrópole não são a metrópole. A cidade aparece como um símbolo, que
representa “a tensão existente entre racionalidade geométrica e o emaranhado de
existências humanas” (Calvino, 1990, p. 85).
Em entrevistas para jornais e sites, como a descrita no fim do último
capítulo, Garcia-Roza afirma que procurou fazer de seu delegado um homem
comum, como tantos outros que circulam hoje pelas metrópoles do mundo. O
cenário que escolheu para Espinosa caminhar também encontra paralelo na
realidade. O mapa comprova que as ruas que o protagonista percorre existem de
verdade. Elas compõem um cenário verídico, o bairro de Copacabana, no Rio de
Janeiro. Que cidade seria esta, então, retratada pelo autor? E quais as
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características deste homem, que Garcia-Roza define como um indivíduo comum,
um simples “investigador, que procura fazer da melhor maneira possível seu trabalho”
(http://www.comciencia.br/entrevistas/roza/roza01.htm)?
Neste capítulo, procuro analisar como o romance policial contemporâneo
pode refletir os anseios, conflitos e preocupações dos indivíduos de uma
metrópole. Para isso, analisarei a obra do escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, um
dos autores brasileiros de romances policiais mais bem-sucedidos da atualidade,
seguindo os passos do detetive criado por ele: o delegado Espinosa. Serão
analisados: a forma como Espinosa se desloca pela cidade, o cenário de suas
histórias, a solidão do personagem e a ética do detetive. Trançando um paralelo, é
claro, com estudos que pretendem pensar a forma de viver e reagir dos indivíduos
nas metrópoles contemporâneas.
O caminhar de Espinosa não é o mesmo andar sem destino do flâneur,
personagem que nasceu na França, no século XIX, e caracteriza um determinado
momento da história, em que as multidões tomam conta das ruas e a aristocracia
precisa dar lugar à burguesia. O flâneur é a transição, a representação de uma
aristocracia decadente: o indivíduo que, vivendo dos resquícios de uma herança
ou fortuna, não precisa trabalhar e pode se entregar ao ócio, aos estímulos da
cidade. O andar de Espinosa, ao contrário, tem sempre um propósito.
Empregado do 12º Departamento de Polícia, Espinosa precisa trabalhar
para sobreviver. Como a casa e a delegacia ficam no mesmo bairro, o policial vai
para o emprego a pé, seguindo sempre os mesmos caminhos. É nas ruas de
Copacabana também que ele investiga os crimes, entrevista suspeitos ou,
simplesmente, busca refúgios, pausas para pensar melhor e tentar juntar as pistas
desconexas de um enigma.
Com cerca de 40 anos, o delegado viveu quase que a vida inteira em
Copacabana. No primeiro livro em que aparece, O silêncio da chuva, Espinosa
conta como aportou no bairro. Durante a infância, viveu com a família no Bairro
de Fátima, no Centro do Rio, mas os pais se mudaram para um apartamento no
Bairro Peixoto, quando ele tinha cerca de quatorze anos, e, de lá, o delegado
nunca saiu. Morou no local com a avó, quando os pais faleceram, depois, com a
esposa e o filho. Mas, como se separou há dez anos e a família foi viver nos
Estados Unidos, permanece sozinho no apartamento.
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Sua família fora a primeira moradora do prédio recém-construído, que, com suas
paredes brancas cheirando a tinta fresca, assemelhava-se a um caderno novo. O
velho, repleto de histórias da infância, ficara no bairro de Fátima, no centro da
cidade. (Garcia-Roza, 1996, p. 48)
O apartamento, antes como um caderno novo, em branco, foi se enchendo
de histórias e memórias. O caminhar do detetive pelo bairro também é
constantemente invadido pelas lembranças. Ele cultiva sempre os mesmos
hábitos, como se, assim, pudesse reforçar o seu passado e a sua existência. São os
mesmos trajetos da casa para o trabalho, o mesmo restaurante para os almoços de
fim de semana, as paradas sempre nos mesmos locais para comprar comida
congelada e esfihas e as visitas a um sebo, lugar de velhos livros. O sebo lembra
toda a etapa em que viveu com a avó (uma revisora por profissão, que empilhava
os exemplares na sala, formando uma estante sem estrutura), e reforça sua vontade
de, no futuro, deixar a corporação e ter o seu próprio negócio. Ele tem uma paixão
confessa por sebos e acalenta o sonho de um dia se aposentar e abrir o seu
estabelecimento, colocando sua coleção de livros à venda numa loja localizada
numa das ruas do bairro.
Num dos trechos de Uma janela em Copacabana (2001), o policial
descreve os seus hábitos. São sempre dois caminhos a percorrer, um longo e outro
curto, e escolher entre um dos dois significa optar por um conjunto de
estabelecimentos limitados e conhecidos. Alternar, neste caso, não é sinônimo de
inovar, mas continuar cultivando os mesmos hábitos.
Da delegacia até a sua casa, a pé, eram dez minutos. Quando escolhia o caminho
mais longo, pela Avenida Copacabana, passando por dentro da galeria Menescal
para abastecer-se de quibe ou de esfiha, demorava alguns minutos mais. Apesar
de abarcarem três nacionalidades, suas opções gastronômicas eram limitadas: a
árabe, na galeria Menescal; a alemã, na pequena loja de frios perto de sua casa; e
a italiana, no seu congelador, onde mantinha uma reserva de espaguete e lasanha
à bolonhesa. Naquele final de tarde, como escolhera o caminho mais curto, estava
destinado ao espaguete. Não se queixava. Quando queria comer bem, ia a um
restaurante (Garcia-Roza, 2001, p. 19).
É como se, cultivando sempre os mesmos hábitos, o personagem lutasse
por manter viva a sua memória e a sua permanência no mundo. Andreas Hyussen,
em Seduzidos pela memória (2001), defende que a característica é comum ao
homem pós-moderno e pode ser observada num grande movimento de volta ao
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49
passado que se espalhou por todo o mundo. É como se os encontros efêmeros, a
rapidez da vida, marcada por uma rotina corrida, notícias que pipocam em tempo
real na tela de televisores e computadores, e um mercado que está sempre
evoluindo e fazendo com que produtos se tornem obsoletos quase que ao mesmo
tempo em que chegam às prateleiras das lojas, fizessem com que os homens se
voltassem ao passado, à procura de uma segurança que o futuro não pode mais
proporcionar.
Segundo o autor, desde 1970 há um processo de musealização na Europa e
nos Estados Unidos. Locais antigos dos centros urbanos passaram a ser
valorizados; a moda retrô entrou em vigor, com a multiplicação dos antiquários e
dos brechós, e as biografias e os relatos confessionais mais e mais procurados pelo
público. Isto porque a rapidez e a quantidade de informações mudou até a vida útil
das mercadorias. Tudo passou a ser efêmero e a ficar rapidamente obsoleto.
Ao homem pós-moderno restou um culto à memória, uma tentativa de
armazenar os dados do passado, até para que ele mesmo não tenha a sensação de
estar prestes a desaparecer no espaço. Outro aspecto é que, com a falência das
grandes narrativas, das ciências humanas que procuraram explicar a vida e o
mundo, o homem ficou com uma sensação de vazio e passou a pinçar momentos
do passado, trazendo-os para o presente e criando, assim, um sentido para a sua
existência. O objetivo parece ser criar registros, uma memória cada vez mais
completa, que não deixe nada de fora. A volta ao passado parece uma
preocupação em produzir referências e identidades que dêem sentido e significado
às trajetórias de vida.
Como afirmam Micael Herschmann e Carlos Messeder Pereira, num artigo
da coletânea Literatura e mídia (2002), a globalização acabou por trazer aos dias
de hoje um estreitamento de tempo e espaço. O indivíduo é bombardeado
diariamente por informações, nas ruas, nos jornais, nas televisões. E a velocidade
é tão grande que as mercadorias tendem a ter uma vida curta. As novidades já
nascem obsoletas, como os artigos para computador que, no momento em que
chegam às prateleiras das lojas, outras peças mais modernas já estão sendo
produzidas. Há também uma perda das fronteiras culturais. As culturas se
misturam e a internet e as transmissões ao vivo tornam as informações comuns.
Não há mais a segurança de uma origem e uma personalidade definida e
estabelecida.
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O mundo como Dupin conhecia, não existe mais. Espinosa convive com
uma realidade que parece sem consistência, onde nada é certo e tudo parece
transitório e descartável. Portanto, é como se o culto à memória garantisse a sua
permanência no tempo. Como o futuro é incerto e sem esperança, o passado é uma
fonte de conforto.
Tudo parece substituível. Por isso, da mesma forma em que reforça os seus
hábitos e memórias, percorrendo sempre os mesmos trajetos pelo bairro, parando
em determinadas paisagens para lembrar do passado, Espinosa tem dificuldade em
aceitar os avanços tecnológicos. Assim, no livro Perseguido (2004), as
modernizações na delegacia e até a chegada de novos computadores não são vistas
pelo delegado com bons olhos. Ele sente falta do barulho que as máquinas de
escrever faziam. Como se temesse que, ele próprio, acabasse obsoleto, como as
máquinas que foram substituídas pelos computadores.
Com a reforma da delegacia, o delegado perdera os antigos referências de seu
dia-a-dia, e não apenas as referências geográficas (o visual pesado da antiga
delegacia fora substituído por outro high-tech) mas também os funcionais, já que
com a informatização houvera uma incrível redução na quantidade de pastas,
processos, ofícios, memorandos e que tais. De vez em quando sentia saudade do
matraquear das velhas máquinas de escrever, substituído pelo som quase
inaudível dos teclados dos computadores (Garcia-Roza, 2004, p. 80).
O silêncio dos teclados dos computadores denuncia uma falta: a das
máquinas de escrever, substituídas por artigos mais modernos, reforçando o fim
de um tempo que não existe mais. As antigas referências do seu dia-a-dia
deixaram de existir, pelo menos no trabalho. Na vida profissional os avanços são
inevitáveis, fogem à sua vontade, não há como lutar contra eles. Mas, na pessoal,
ele pode continuar cultivando a sua antiga rotina, como se isso garantisse a sua
existência no mundo, lembrasse a sua história e desse, assim, sentido à sua vida.
Espinosa implica até com o ar-condicionado, que tomou conta dos
ambientes fechados dos grandes centros urbanos. Ele gosta de sentir a cidade sem
artifícios, para que, assim, ela conserve as características presentes na sua
memória, os cheiros guardados na lembrança. Num dos trechos de Uma janela em
Copacabana (2001), o delegado declara sua antipatia em relação ao aparelho, que
tira as características marcantes dos lugares, deixando todos os ambientes
artificialmente parecidos.
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Achava que o ar-condicionado punha a cidade entre parênteses; podia ser Rio de
Janeiro, Paris ou Nova York: todas ficavam com a mesma temperatura, o mesmo
cheiro e o mesmo ruído opaco que neutralizava os ruídos externos típicos
(Garcia-Roza, 2001. p. 32).
Um passeio por Copacabana também é um constante pretexto para que ele
lembre de alguma cena da infância, da presença de algum parente que não existe
mais, que não faz parte de seu presente. A paisagem que ele avista, parece sempre
repleta de nostalgia. Caminha por uma cidade sem aura, mas é acometido pela
nostalgia da aura.
Na avenida Atlântica, o mar com ondas muito altas comera metade da areia da
praia. As ondas davam medo mesmo quando apreciadas à distância, e não havia
ninguém em toda a extensão da praia andando na pequena faixa de areia que
restara. Aqueles eram dias odiados pelos turistas, mas muito do agrado de
Espinosa. Ele achava o espetáculo do mar enfurecido uma das coisas mais belas
da natureza. Caminhou pelo calçadão admirando aquele mesmo mar onde trinta
anos antes, em dias de águas bem calmas, aprendera a nadar com a ajuda do pai.
Nem a violência do mar nem o vento que levantava as ondas o incomodavam;
eram ambos velhos conhecidos, mas alguma coisa que não era da natureza o
incomodava. (Garcia-Roza, 2001, p. 183)
O cenário, velho conhecido, é sempre reconfortante. O que incomoda
Espinosa é o que foge ao seu controle, um mistério que não consegue desvendar,
uma mudança que parece acabar com a segurança do presente.
Sua rotina é marcada pelo hábito. Apesar de estar sempre caminhando
pelas ruas do bairro, os traçados que o delegado segue são sempre os mesmos. São
dois trajetos que ele alterna para ir do lar ao trabalho e os programas se repetem.
Ele freqüenta os lugares de sempre, sem questionar, como quem já encontrou os
seus pontos favoritos e não precisa mais sair em busca de novidades.
Os percursos limitados que Espinosa desenha pelas ruas de Copacabana
exemplificam a tese defendida por Nelson Brissac no artigo “As cidades habitam
os homens ou são eles que moram nelas?”, publicado na Revista USP, em 1992.
Segundo o teórico, com a correria do dia-a-dia o homem pós-moderno passou a
freqüentar um pequeno trecho da cidade. Não há tempo para se aventurar em
novas descobertas. É o mesmo trajeto que liga o trabalho a casa. E os
estabelecimentos que busca para resolver seus problemas, os lugares que procura
para se divertir, costumam se repetir.
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Desta forma, os homens seguem seus caminhos comandados pelo hábito,
percorrendo traçados preestabelecidos, ocupando apenas um pequeno trecho do
centro urbano que habitam. Para o autor, o costume faz com que os indivíduos
percam o distanciamento e o olhar se acomode com o ambiente. Não há mais a
distância, característica tão comum ao turista, que observa com atenção onde
passa, destacando encantos e peculiaridades e olhando não apenas os aspectos
arquitetônicos, mas as pessoas que freqüentam os espaços. Seguindo
mecanicamente, o homem pós-moderno deixa de ver as nuances e particularidades
da metrópole que percorre diariamente. Brissac acredita que, por esta
característica, a alma dos lugares esteja se perdendo, a “alma encantadora das
ruas” (1997), como João do Rio detectou no início do século XX.
A tendência no mundo moderno, da reprodução técnica, da cópia, é se apropriar
das coisas. Aproximar-se de tudo. Não há mais a tensão entre perto e longe que
compunha a paisagem. Tudo é uma só superfície. Aqui a experiência da aura não
nos é permitida. Teriam então a magia e o sentido das coisas se esvaído em
definitivo? (Brissac, 1992, p. 74)
Para o autor o que compõem a alma de uma cidade são os seus habitantes
e, se estes percorrem os locais apressadamente e mecanicamente, deixam de
interagir com o espaço e passam a tocar apenas a superfície dos lugares que
freqüentam. É como se as cidades se transformassem num número reduzido de
trajetos, meros caminhos, locais de passagem que ligam pontos, destinos. O
homem passa a dominar as linhas do mapa, o caminho que precisa seguir para
chegar aos lugares, mas ignorar as muitas existências humanas que compõem e
enriquecem a cidade, passando absorto em seus pensamentos e preocupações, sem
prestar atenção ao que acontece ao redor. Cada indivíduo preso em seu universo
particular.
O caminhar de Espinosa leva o leitor a refletir sobre a forma como o
homem pós-moderno passou a ocupar suas cidades. O delegado busca em seus
trajetos elementos que reforcem a sua própria história e a sua personalidade. Os
seus hábitos revelam seus gostos e o seu passado, lembram os familiares que se
foram e os desejos e anseios do policial para o futuro. Pelas ruas, ele normalmente
caminha absorto em seus pensamentos, deixando-se levar pelo hábito. Mas há
uma característica no mundo contemporâneo que faz com que o personagem
precise reservar pelo menos um pouco de atenção aonde anda: a segurança. A
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violência dos grandes centros urbanos obriga o homem a ficar alerta em relação ao
que se passa ao seu redor.
Em Uma janela em Copacabana (2001), por exemplo, Espinosa entra na
conhecida galeria Menescal, onde quase diariamente vai comprar esfihas numa
lanchonete árabe, e é surpreendido com uma mão que toca o seu braço. Celeste,
testemunha de um crime que investiga, estava escondida na multidão de passantes,
e aparece para um depoimento.
A galeria é ampla, com lojas nos dois lados, e intensamente movimentada. Era
este último aspecto que preocupava Espinosa no momento. Passou o braço pelos
ombros de Celeste como se fossem amigos e os dois se encaminharam para o
pequeno restaurante árabe onde costumava comprar alguma coisa para
incrementar o jantar (Garcia-Roza, 2001, p. 98).
A movimentação da galeria parece perigosa para Espinosa. Assim como a
testemunha apareceu sem avisar, o criminoso poderia estar escondido entre os
passantes. A preocupação com a segurança de Celeste obrigou o delegado a
prestar atenção nos pedestres e no espaço físico que ele tão bem conhecia. Como
Edgard Allan Poe já havia demonstrado, no conto “O homem da multidão, no
aglomerado de pedestres, um gênio do crime pode estar escondido. Um
acontecimento inesperado pode surpreender o passante ao dobrar uma esquina.
Mesmo com passos marcados, é preciso se proteger de possíveis perigos
escondidos no ambiente.
E as ameaças que o policial encontra nas ruas que caminha são muitas. Os
trajetos do delegado revelam que a cidade é composta por uma rica teia de
convivências. Um mesmo local pode ser habitado por diferentes grupos, que
coexistem, ocupando de formas distintas um espaço comum. Espinosa demonstra
isso no dia-a-dia. Mesmo sem sair do bairro, cruza as fronteiras de diferentes
classes sociais, que dividem o mesmo cenário.
É como Antonio Arantes, que, no texto “A guerra dos lugares” (1994),
convida o leitor para uma caminhada em São Paulo, passando pela Praça da Sé. A
localidade aparece como um lugar compartilhado por executivos, meninos de rua,
mendigos, prostitutas, donas de casa. Quem percorre o local precisa prestar
atenção por onde anda. Os diferentes grupos que dividem o espaço, porém, não se
misturam. Eles são pequenos lados que, juntos, formam o complexo todo
multifacetado da Praça da Sé. Há fronteiras imaginárias que delimitam o espaço
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de moradores de rua, assaltantes, traficantes e executivos caminhando para o
trabalho.
São práticas sociais e visões de mundo completamente antagônicas, mas
que convivem. E esta tensão faz com que o pedestre crie uma distância no
caminho que percorre. Tudo é conhecido, o trajeto é o mesmo de todo dia, mas ele
precisa estar atento. Conforme o indivíduo avança na paisagem, ele cruza
fronteiras e territórios. Mas nem por isso se contamina, não se mistura. Ao
contrário, a presença do outro marca a sua posição, suas diferenças e o seu papel
na cidade. Arantes define:
Ao caminhar pela cidade, cruzam-se constantemente fronteiras, atravessam-se
territórios interpenetrados. O trajeto efetivamente percorrido (com afetividade) no
chão é diverso daquele que se percebe num sobrevôo ou que se pode varrer com o
olhar estrategicamente colocado, quando se mira do alto de algum ponto seguro.
Os passos do caminhante atento não costuram simplesmente uns aos outros
pontos desconexos e aleatórios da paisagem. Ele se arrisca, cruzando umbrais, e
assim fazendo ordena diferenças, constrói sentidos, posiciona-se (Arantes, 1994,
p.197).
Em sua literatura, Garcia-Roza parece retratar Copacabana como uma
enorme Praça da Sé, criando uma imagem paralela à de Arantes para o Rio de
Janeiro. Se a localidade é usada pelo autor do texto como um lugar símbolo de
São Paulo, onde grupos tão antagônicos convivem e erguem suas trincheiras, o
bairro de Copacabana aparece reproduzindo, nos textos de Garcia-Roza, as
mesmas tensões.
Espinosa muitas vezes é abordado por um menino de rua enquanto almoça
um sanduíche, vagando pela Avenida Atlântica, e precisa dividir o lanche com o
outro. Os moradores de rua estão sempre presentes, aparecem pedindo um pedaço
da refeição do delegado, como vítimas de um crime ou testemunhas de um
assassinato. Prostitutas circulam nas histórias, pisando as mesmas pedras
portuguesas que policiais corruptos, executivos, donas de casa, artistas, mulheres
ricas e comerciantes.
Espinosa passeia pelas fronteiras destes mundos, respeitando os territórios
ocupados por cada grupo: a hierarquia dos meninos de rua, a organização das
prostitutas, dos travestis. Mas não se deixa contaminar, guarda suas
características. Continua um indivíduo de classe média, ético e lutando para
manter a sua história. A convivência com diferentes grupos, muitas vezes com
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interesses antagônicos, pode ser observada em muitas das situações descritas em
seus livros.
Em uma das cenas do romance Achados e perdidos (1998), por exemplo, o
delegado precisa proteger a testemunha de um crime, um menino de rua, amigo de
uma jovem artista plástica, que expõe seus quadros no calçadão de Copacabana. O
garoto é testemunha chave para desvendar um crime que envolve uma prostituta e
um policial aposentado.
Numa noite a prostituta aparece morta, amarrada na cama de seu quarto. O
principal suspeito é o seu namorado, o policial aposentado, que, atacado por uma
amnésia alcoólica, não consegue se lembrar dos acontecimentos da noite do crime.
O menino foi o último a ver os dois juntos. Ele dormia numa calçada quando o
policial saiu de um restaurante carregado pela namorada. No trajeto até o carro,
perde a carteira, que o garoto recolhe discretamente. Horas depois, a mulher era
assassinada.
O menino de rua, testemunha do crime, sofre ameaças, e Espinosa é
encarregado de protegê-lo. Numa das cenas do livro, percorre o calçadão de
Copacabana com a artista plástica e o garoto. No local estão o investigador, o
menino e a artista, mas, ao mesmo tempo, turistas endinheirados, prostitutas,
homens e mulheres de classe média circulando com roupas de verão. Cada um
ocupando um espaço dentro de uma mesma região.
Atravessaram a pista, Kika carregando os quadros, Espinosa carregando a
armação desmontada, que era guardada na garagem de um prédio mediante uma
gratificação semanal ao porteiro. Era meia-noite e meia, fazia calor e os bares
na calçada estavam lotados. Homens de bermuda e mulheres vestindo quase
nada caminhavam nos dois sentidos da avenida, desfrutando a brisa leve do mar.
(...) Quando foram atravessar a rua, quase em frente ao ponto onde estava o
carro, Espinosa fez o movimento de segurar o braço de Kika ao mesmo tempo
que olhava para o menino. Mas ele não estava lá (Garcia-Roza, 1998, p. 72-73).
Todos os personagens desta cena estão andando pelo calçadão da Avenida
Atlântica, em Copacabana. Mas cada um pertence a um grupo diferente e tem um
objetivo específico. A artista está no local para vender os seus quadros numa feira
montada diariamente, o menino de rua busca proteção e esconderijo junto às
pessoas, o policial está protegendo a testemunha e de olho num possível
criminoso, as prostitutas quase sem roupa esperam clientes e as pessoas nos bares
estão atrás de diversão. O fato de estarem juntos não faz com que se misturem,
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56
mas reforça as diferenças e a posição que cada um ocupa dentro da cidade. As
fronteiras se esbarram, mas eles seguem em frente, cada um o seu caminho.
Ao escolher um cenário verídico, as ruas de Copacabana, reforçadas pelo
mapa que abre muitos de seus livros, e procurar fazer de seu protagonista um
profissional de classe média, um indivíduo comum, Garcia-Roza acaba revelando
anseios e questões do homem contemporâneo. A forma como os habitantes da
cidade ocupam o seu espaço, a preocupação em marcar a sua identidade num
mundo que parece ter perdido consistência, o culto ao passado. Caminhando pelas
ruas ou organizando sua residência, Espinosa deixa transparecer questões que
atingem os habitantes de um grande centro urbano contemporâneo.
3.2
Espinosa e Copacabana: Da diversidade dos habitantes à solidão
dos apartamentos
Garcia-Roza não foi o único escritor nacional de policiais a ambientar suas
histórias em Copacabana. A partir de 1990, o bairro é constantemente cenário de
romances do gênero. Em Bala perdida (1999), de Georges Lamazière, é a morada
do protagonista. Em Modelo para morrer (1999), romance escrito por Flávio
Moreira da Costa, Copa está ilustrando a capa e é onde vive o escritor,
personagem principal da história. Em Bellini e o demônio (1997), romance escrito
pelo músico e escritor Tony Bellotto, Copacabana é vista pelos olhos de um
paulista, que conhece pouco as ruas cariocas. É observando as vias e
estabelecimentos da região que ele reforça suas idéias e clichês em relação ao Rio
de Janeiro. É através do olhar de um turista que o leitor é apresentado à paisagem
local, como, se, ao analisar o bairro, fosse possível entender toda a cidade:
Ao pisar em solo carioca, senti o cheiro do mar. Pegamos um táxi para o
Copacabana Palace, hotel mítico, ainda hoje freqüentado por remanescentes da
antiga aristocracia carioca. (...) Passei o resto do dia na piscina azul do
Copacabana Palace, lendo jornais, ouvindo blues, bebendo daikiris e sorrindo
para uma nórdica roliça. (...) Terminamos o desjejum, pegamos um táxi amarelo-
limão e percorremos a orla ensolarada. Era dia de semana, mas havia muita gente
na praia. Acho que é isso que chamam de um dia útil. Para meu espanto, Irwin,
que carregava o inseparável computador, abriu-o e começou a digitar as teclas,
concentrado. Será que ele não tinha curiosidade de olhar a praia? “Fica esperto,
fecha o vidro”, avisei, “senão acabam roubando o teu brinquedo. Estamos no
Rio” (Belloto, 1997, p. 27-p.33)
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Bellini, o detetive da história, vem para o Rio de Janeiro desvendar o
sumiço de um manuscrito desconhecido do escritor de romances negros Dashiell
Hammett e se hospeda no Copacabana Palace, junto com um investigador
americano. Seus olhos lêem a cidade através de uma série de clichês e
preconceitos. Ele olha pela janela do avião e vê a estátua do Cristo Redentor de
braços abertos, sorrindo. O Copacabana Palace, onde se hospeda, é hotel famoso,
cartão-postal da cidade e símbolo de uma aristocracia que tomou conta da região
no passado. Lá ele tem um dia de rei. Passa a tarde bebendo na piscina e ouvindo
blues. Paquera uma nórdica e descobre que ela veio ao Rio interessada em turismo
sexual. Quando sai de manhã, se impressiona com a beleza da praia e com a
quantidade de pessoas que freqüentam o local num dia de semana, reforçando os
estereótipos que procuram caracterizar os cariocas como uma população que
trabalha pouco e gasta grande parte do tempo curtindo as belezas naturais do local
onde vive. E Bellini não esquece de avisar ao colega de viagem dos perigos da
metrópole violenta.
O personagem viaja e, quando chega, só encontra lugares-comuns. O Rio
que estampa as páginas policiais, ou o que vende pacotes de viagem para os
turistas. Mas todas estas características (cidade de opostos, onde a classe alta
convive com uma parcela miserável da população; violenta; sensual; com belas
paisagens e habitantes preguiçosos) estão num único lugar: Copacabana. O bairro
é usado para definir toda uma cidade.
O olhar de Espinosa não é estrangeiro. Ele vive na região desde pequeno.
Mais do que apresentar ao leitor um cenário concreto, que encontra paralelo na
realidade, Garcia-Roza faz com que todas as tensões, as alegrias e as mazelas de
uma metrópole se concentrem neste único espaço. Por isso, o detetive quase nem
precisa sair de Copacabana para se confrontar com as características de uma vida
num centro urbano. De uma forma diferente de Bellotto, sob um outro ponto de
vista, o escritor também usa a região como uma síntese da cidade.
No primeiro romance policial que escreve, O silêncio da chuva (1996),
Garcia-Roza coloca o seu investigador-protagonista trabalhando numa delegacia
na Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro, investigando o assassinato de um
executivo no edifício-garagem Menezes Côrtes. Em sua segunda trama, Achados e
perdidos (1998), Espinosa havia sido transferido para um departamento de polícia
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58
dentro de Copacabana. Como se o centro da cidade, antes na Praça Mauá, tivesse
sido deslocado para o bairro da Zona Sul.
A região passou a ser o centro da vida do detetive, onde ele circula e
trabalha. Mas também o local através do qual ele enxerga toda a cidade. Muito por
causa da diversidade de tipos humanos que circulam por ali, diferentes classes
sociais dividem o mesmo espaço; de construções, desde prédios com conjugados
até hotéis de luxo, e de paisagens, no mesmo local há a praia, que atrai os turistas,
e os morros, que abrigam as favelas. E o escritor não se preocupa apenas em
descrever e analisar o movimento das ruas, mas olha além das janelas dos
edifícios, para dentro da casa dos indivíduos, analisando como se sentem, como
lidam com a solidão e a passagem do tempo.
Durante o XIII Seminário Internacional da Cátedra Padre Antonio Vieira
de Estudos Portugueses da PUC-Rio: Espécies de Espaços, realizado em 2005, a
pesquisadora Beatriz Rezende afirmou que, em Copacabana, todos os amores e
violências são possíveis. O bairro ficou conhecido como o lugar dos contrastes,
onde os efeitos da vida na metrópole estão caracterizados. Região de extremos,
onde beatas convivem com prostitutas, que passam ao lado de velhos solitários,
crianças vendendo pó, mendigos, turistas endinheirados, donas de casa de classe
média. Lá o submundo não se esconde. Tudo pode existir.
Na visão de Beatriz Rezende, em Copacabana os escândalos já não são
mais possíveis. Atingido pela especulação imobiliária, o bairro conheceu a
decadência. De endereço nobre passou a abrigar a classe média e, cercado por
favelas, presencia as tensões entre morro e asfalto. Famoso internacionalmente,
ainda é procurado por centenas de turistas, que se hospedam nas dezenas de hotéis
localizados na orla. Para atendê-los, o turismo sexual proliferou e prostitutas
adotaram a região como residência. Os olhos que ali vivem já se acostumaram a
presenciar de tudo. Em suas ruas, seres de sexualidade ambígua, violência
exacerbada, vítimas do capitalismo e da desigualdade social. Cenário perfeito para
uma história policial, cercada de crime e mistério, e ambiente rico para uma
análise dos efeitos da vida numa cidade.
A história da formação do bairro explica o fascínio que exerce. Nela há
contrastes sociais, especulação imobiliária, crescimento de favelas, decadência da
aristocracia: os efeitos de uma cidade que cresce desordenada. Ali, a desigualdade
social, a solidão, a busca de dinheiro e os diferentes tipos humanos lutando por
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uma permanência são nítidos e, toda essa mistura, acaba por resumir a cidade e
atrair o olhar de quem pretende analisar as metrópoles.
Em 1998 a editora Fraiha publicou a coleção Bairros do Rio. Num dos
volumes a história de Copacabana e Leme aparece descrita em detalhes. Copa
nasceu oficialmente em 1892, quando se integrou à cidade, com a inauguração do
Túnel Velho, batizado com o nome de Túnel Alaor Prata. Em 1906, se
desenvolveu ainda mais com a inauguração do Túnel Novo, que ligou a região à
Botafogo e ao Aterro do Flamengo. A inauguração do Copacabana Palace, em
1923, foi um marco para o bairro. O hotel era suntuoso, cheio de pompa, e
impulsionou a construção dos primeiros edifícios na Avenida Atlântica e Avenida
Nossa Senhora de Copacabana, próximos à Praça do Lido. Foi a época áurea de
Copa, quando as famílias da elite carioca passaram a residir no local, assim como
muitos políticos renomados, com importante papel na história do país.
Mas o bairro conheceu o boom imobiliário e, entre 1945 e 1965, o número
de habitantes da região praticamente dobrou. Em 1930, já havia favelas nos
morros da Babilônia, Leme e Cantagalo. E o escritor Rubem Braga já previa um
futuro negro para a região em 1958, quando escreveu a crônica “Ai de ti,
Copacabana”. No texto ele afirma que, apesar das belezas naturais, a especulação
imobiliária ia fazer com que o bairro perdesse o título de Princesinha do Mar. Não
demorou para a mera divagação virar realidade concreta.
A partir da década de 70, o gabarito das construções foi liberado e os
arranha-céus tomaram conta do local. Os automóveis passaram a cruzar as ruas
aos montes e as favelas se desenvolveram. De endereço preferido da elite carioca,
passou a abrigar uma aristocracia decadente e quem buscava a combinação de
ótima localização com bom preço. Mas, ao mesmo tempo, o bairro passou a
representar uma região completa, que reunia não apenas todas as classes sociais,
mas também os estabelecimentos e negócios necessários para a subsistência. O
texto da coleção, assinado pelo jornalista Paulo Thiago de Mello, afirma que, na
década de 60, Copacabana se tornou auto-suficiente. Uma cidade dentro da
cidade. Já era possível nascer, viver e morrer sem sair do bairro.
É esta “cidade” de contrastes e auto-suficiente que o escritor Luiz Alfredo
Garcia-Roza retrata em seus livros. No traçado firme do mapa que exibe na
primeira página das publicações, há as principais ruas da região, seus morros e
túneis. Ao retratar os seus personagens, o escritor segue o mesmo movimento:
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descreve o passo de turistas, moradores de classe média e idosos, mas desce
também ao submundo e não esquece de mendigos, prostitutas, meninos de rua e
traficantes. Em Perseguido (2004), por exemplo, o autor conta a história de um
psiquiatra que se sente vigiado e ameaçado por um de seus pacientes, um rapaz
que se envolve com a filha mais velha do médico. O leitor não sabe até que ponto
o que o médico relata para Espinosa, procurado para investigar a situação, é
realidade ou paranóia. Mas, estimulada pelo rapaz, a menina foge e se esconde
numa casa no alto do Morro do Cantagalo. Ela, uma garota rica. Ele, pobre e sem
posses.
Em Espinosa sem saída (2006), o delegado investiga o assassinato de um
morador de rua perneta, encontrado morto no alto da ladeira Marechal
Mascarenhas de Moraes, em Copacabana. O endereço faz parte das lembranças de
adolescência do delegado, apesar de a especulação imobiliária ter mudado a
aparência do lugar.
A ladeira tem início na rua Toneleiros e termina num pequeno largo de onde,
tempos antes, era possível descortinar grande parte de Copacabana e o mar. Esta
vista foi bloqueada por um prédio construído na face externa da ladeira, o que
reduziu o cul-de-sac a um retorno sombrio e sem graça (Garcia-Roza, 2006, p.
14).
Na noite do assassinato, na mesma rua onde ocorreu a morte, um casal
jovem dava a festa de inauguração de sua mansão recém-reformada. Os
convidados da noite são as principais testemunhas do caso. Mas, quando os
policiais pedem ao dono da casa o telefone dos presentes, precisam ouvir como
resposta que a morte de um sem-teto não é motivo suficiente para incomodar
quem estava na comemoração. O caso obrigou representantes da classe alta a
olhar para aqueles que a sociedade finge não ver: os excluídos.
O desprezo em relação ao morto é reforçado na história, quando um dos
suspeitos compra uma pilha de jornais atrás de notícias. O caso é desprezado por
todos os jornais da cidade, mesmo os populares. Não há uma única linha sobre a
morte do mendigo. Na hora de definir a vítima, Espinosa afirma:
A vítima não tinha existência civil, seu nome era apenas um apelido, não tinha
documento, moradia, família, amigos, conhecidos, não havia nenhuma rede de
relações, por menor e mais tênue que fosse, na qual pudesse ser inserido. Era um
sem-teto, sem-identidade, sem-família... Sua carência era de tal ordem que o
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61
único traço distintivo que possuía era negativo: a falta de uma perna (Garcia-
Roza, 2006, p. 67).
Morro e asfalto estão, como nos romances citados, inseridos na literatura
de Garcia-Roza, convivendo, mas com tensões e diferenças. Mas os livros do
escritor não se limitam a retratar as tensões que uma metrópole deixa transparecer
em suas ruas. O autor não explora apenas os tipos humanos que cruzam pelo
detetive em seus passeios diários. Mas olha por janelas e portas entreabertas, para
o interior das residências, observando como o indivíduo reage ao viver numa
metrópole de extremos. Neste momento, observar a história e o desenvolvimento
de Copacabana explica também porque o bairro é rico para a análise das lutas
individuais e da solidão do homem numa grande cidade.
Numa pesquisa divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísticas), em março de 2005, Copacabana aparece como o bairro com a maior
concentração de idosos do Rio de Janeiro e de mulheres vivendo sozinhas. Apesar
do trânsito caótico e barulhento, das pessoas circulando aos bolos pelas principais
ruas do bairro, segundo as pesquisas, a solidão reina dentro dos edifícios. Além
disso, a especulação imobiliária trouxe para a região inúmeros arranha-céus
lotados de mínimos apartamentos, onde indivíduos sozinhos lutam para ganhar
dinheiro.
A imagem tão característica do bairro aparece retratada em Achados e
perdidos (1998). É num destes prédios lotados de minúsculos conjugados que
mora a prostituta Magali, assassinada na cama de seu apartamento-quarto,
convivendo com inúmeros vizinhos que ela nem conhece, cada um com um
mundo diferente atrás de suas portas, mesclando histórias de solidão e luta pela
sobrevivência. Magali trabalha numa boate e vê no namorado, um policial
aposentado, garantia de segurança e proteção contra clientes violentos, gigolôs
ambiciosos e colegas de profissão ciumentas. Ele, ao eleger a prostituta como
namorada, procura aplacar a solidão que tomou conta da sua vida após a morte da
esposa. Tudo na vida de Espinosa também remete à solidão.
No artigo “Á procura de um novo realismo – Teses sobre a realidade em
texto e imagem hoje” (2002), publicado na coletânea Literatura e Mídia, Karl
Erik Schollhammer discorre sobre como o homem contemporâneo é bombardeado
por um excesso de realidade nos dias de hoje, nos meios de comunicação, na
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literatura, no cinema, na música. O real parece estar em toda a parte e, no
momento em que isto acontece, é como se ele desaparecesse. A realidade é
confundida com a sua própria representação. Baudrillard chama este processo de
“assassinato do real”. Ele está tão presente - em imagens, textos e sons - que
parece uma simples ficção. Deixa de tocar o receptor.
Nos meios de comunicação, os conflitos mundiais aparecem ilustrados em
tempo-real. Os reality shows fazem com que o telespectador vivencie as
aventuras. E os programas investigativos não cansam de mostrar crimes e
mistérios insolúveis. Na música, a partir do fim do século XX, houve um boom de
vozes que nascem da periferia, excluídos da sociedade compõem raps e hip hops
mostrando uma realidade marginalizada. Na literatura, há a publicação de uma
série de biografias e testemunhos, relatos de pessoas que viveram situações
catastróficas ou que sempre estiveram à margem, como prostitutas, presidiários ou
traficantes.
A literatura se apropria de elementos da cultura de massa, criando produtos
híbridos, cuja finalidade parece ser causar uma sensação de realidade, provocar o
leitor com um choque similar ao da vivência. Mas o excesso de real, a exposição
maciça de imagens violentas, por exemplo, causam, em vez de mobilização ética,
insensibilidade no receptor. Produções cinematográficas e literárias imitam a
realidade. A realidade ganha roupagem e aparência de ficção. Tudo se mistura e
parece simulacro. Diante de imagens de guerra e fome, por exemplo, temos
sempre a impressão de assistir a um filme.
Garcia-Roza se aproxima deste movimento, tão presente no cenário
cultural contemporâneo. Seja ao escolher um cenário real e comprovar a sua
existência com um mapa verídico abrindo os livros. Ao ambientar as histórias em
Copacabana e contar, no meio de suas tramas, relatos que realmente fizeram parte
da história do bairro, detalhes como a especulação imobiliária e as modificações,
por exemplo, sofridas na ladeira Marechal Mascarenhas de Moraes. Ou ao relatar
a situação de exclusão e desprezo sofrida pela população de rua e os personagens
marginalizados da cidade: prostitutas, mendigos, sem-teto. Ele cria, assim, uma
história ficcional, mas pintada com tintas de realidade, para fazer com que o leitor
se mobilize eticamente e pense sobre os muitos contrastes e características da vida
numa metrópole. Mas também para fazer com que este se identifique com as
páginas escritas. A cidade de Espinosa é também a do leitor.
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63
3.3
Espinosa e a solidão
Nas histórias de enigma, nos romances negros, nos policiais
contemporâneos, o detetive é sempre um personagem solitário. O leitor não
conhece a sua família, seus casos amorosos não se transformam em romances
duradouros e suas refeições são rápidas e, normalmente, reforçam a falta de
companhia. São comidas congeladas e sobras de outros dias, sanduíches em
balcões de bar ou almoços em restaurantes rotineiros. Nada de especial ou novo.
Nelson Brissac, em Cenários em ruínas (1987), reforça a solidão como um traço
da personalidade do detetive. O investigador trabalha e vive sozinho, não tem
amigos e nem esposa. Sua solidão é duplicada por uma sensação de abandono,
pelas recordações e vestígios de parentes e amigos do passado, que não fazem
mais parte da vida do detetive, mas deixaram suas marcas. Os becos e caminhos
escuros que costuma freqüentar ainda ressaltam toda a sua exclusão. Mas Brissac
arrisca uma justificativa. Para ele, é como se o personagem se condenasse ao
isolamento por se recusar a fazer parte de um mundo corrompido e cheio de
tramóias. Como se a falta de pessoas ao seu redor fosse uma condição necessária
para que consiga manter a sua integridade.
O delegado Espinosa não foge à regra. Ele se sente isolado no
Departamento de Polícia onde trabalha. Apesar de contar com a ajuda do inspetor
Ramiro e do detetive Welber, a corrupção que domina a corporação faz com que
não divulgue os seus procedimentos e não envolva outros policiais na
investigação. Sua casa, suas andanças pelo bairro e até mesmos os casos que
trabalha lembram de pessoas que já fizeram parte da sua vida, como os pais, que
faleceram quando ainda era criança, ou a avó, que terminou de cuidar do neto
órfão. Há ainda a ex-esposa e o filho, que há dez anos deixaram o Rio e se
instalaram nos Estados Unidos. Todos eles povoam a casa e as recordações do
investigador, mas não fazem mais parte de sua rotina. Ele vive sozinho, em casa,
na rua, no trabalho.
Mas a solidão de Espinosa e dos detetives dos romances policias
contemporâneos de uma forma geral não está relacionada apenas a uma busca de
integridade. Suas vidas estão de acordo com idéias discutidas por uma série de
estudos atuais, sobre as mudanças nas esferas pública e privada devido,
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principalmente, ao crescimento das grandes cidades, que acarretaram num
individualismo exacerbado e numa freqüente solidão. Richard Sennett descreve
(2001), em O declínio do homem público – As tiranias da intimidade, como o
surgimento das metrópoles fez o homem se isolar, em busca de proteção,
valorizando, assim, cada vez mais a esfera privada.
A partir do século XVIII as cidades passaram a assumir um caráter
cosmopolita e a platéia de observadores, o outro com poder para comentar a vida
de cada indivíduo, foi aumentando, até se transformar numa multidão de
desconhecidos. Ao seu redor, o homem não tinha mais uma vizinhança amiga,
mas um conjunto formado por estranhos. Nas ruas os indivíduos eram vistos por
outros passantes, pelas pessoas nas janelas dos edifícios. Dezenas, centenas,
milhares de olhos vigiando o comportamento alheio.
O aumento da visibilidade, segundo Sennett, levou ao isolamento. A
reação foi a criação de uma espécie de muro invisível, separando as pessoas. Elas
passaram a circular em vias e espaços públicos, sem se olhar, presas em seus
mundos. Assim, no século XIX, o privado já era considerado mais importante do
que o público. Para enfrentar o olhar do outro, se proteger da grande exposição, o
homem se fechou no silêncio.A intimidade, então, passou a ser cultivada e
preservada, ocorrendo uma importante cisão entre estas duas esferas. Para o autor,
a tendência para a superexposição é a diminuição da sociabilidade, as pessoas
passam a se proteger, se fechar no silêncio e preservar sua vida íntima.
O outro passou a ser olhado com desconfiança e o homem se voltou para o
seu núcleo familiar. Os assuntos íntimos deixaram de fazer parte das conversas
diárias e passaram a ser discutidos apenas dentro de uma esfera limitada de
pessoas. Fora de suas residências os indivíduos adotaram comportamentos
socialmente aceitos, numa espécie de encenação da vida pública. Dentro das
casas, o espaço de cada membro da família, a sua intimidade, passou a ser, cada
vez mais, valorizado.
Jürgen Habermas, em 1984, já analisava como a arquitetura das
residências passou a espelhar estas transformações, em Mudança estrutural na
esfera pública – Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. A
burguesia limitou todos aqueles considerados estranhos para a sala-de-estar, cada
componente da família ganhou o seu quarto e os avanços da tecnologia
proporcionaram que cada um tivesse o seu televisor e o seu computador,
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aumentando o cultivo ao espaço privado. Cresceu, desta forma, a esfera individual
em detrimento do convívio público. Com o aumento das horas de trabalho,
estimulado pela sociedade de consumo, o indivíduo passou ainda a prolongar seus
momentos privados em locais considerados públicos, como a rua, os transportes e
o escritório. No trabalho, por exemplo, cada um dos funcionários de uma empresa,
mesmo próximos fisicamente, tem o seu computador e, navegando em sites, faz a
sua viagem individual. Cada um na sua.
O desejo de preservação da identidade, somado à independência financeira
e afetiva criaram ainda novos lares, compostos por apenas uma pessoa. Foi neste
momento, segundo Antoine Prost (2001), que a vida privada individual se
sobrepôs à vida privada doméstica. A valorização exacerbada do individualismo
trouxe, para muitas pessoas, a solidão.
O lar, a intimidade e o individualismo passaram a ser valorizados e
protegidos, até como uma forma de afirmação do homem e de sua personalidade.
Dentro de casa o indivíduo passou a se proteger contra a velocidade do mundo, a
transitoriedade da vida e a impessoalidade da metrópole. É o local onde ele sabe
quem é, marca os seus gostos e enaltece o seu passado. Como afirma Willie
Bolle, em “A metrópole: palco do flâneur” (1994), a moradia guarda o homem da
cidade grande e conserva todos os seus vestígios e pertences, sem deixar que estes
se percam. É dentro de casa que o indivíduo reforça os seus hábitos e cultiva o seu
passado. A rua é o lugar impessoal, da multidão, onde o homem precisa lutar para
se diferenciar e não se tornar obsoleto, como os muitos artigos produzidos num
mundo em constante transformação. O lar é o local onde ele reforça sua
identidade, agrupando pertences que marcam a sua personalidade e objetos que
contam a sua história, como fotos, lembranças trazidas de viagens, utilitários
doados por parentes.
No início do século XX, o alemão Georg Simmel já afirma no texto “A
metrópole e a vida mental” (1902) que o morador da cidade grande precisa lutar
para manter a sua individualidade e ressaltar a sua diferença. Um esforço para que
não perca os contornos de sua personalidade numa massa de indivíduos anônimos.
O século XVIII encontrou o indivíduo preso a vínculos opressivos que se haviam
tornado destituídos de significação – vínculos de caráter político, agrário,
corporativo e religioso. (...) A liberdade permitiria de imediato que a substância
nobre comum a todos viesse à tona, uma substância que a natureza depositara em
todo homem e que a sociedade e a história não haviam feito mais do que
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deformar. Ao lado desse ideal de liberalismo do século XVIII, no século XIX,
através de Goethe e do romantismo, por um lado, e através da divisão econômica
do trabalho, por outro, outro ideal se levantou: os indivíduos liberados de
vínculos históricos agora desejam distinguir-se um do outro. A escala dos valores
humanos já não é constituída pelo ser humano geral em cada indivíduo, mas antes
pela unicidade e insubstituibilidade qualitativas do homem (Simmel, 1902, p. 27).
Na vida profissional esta busca pela diferença trouxe uma enorme
especialização. Num mundo onde tudo parece descartável e substituível, investir
no detalhe é aumentar as chances de garantir o seu lugar no mercado de trabalho.
Na vida pessoal, se diferenciar significou cultivar gostos específicos, decorar o
ambiente com objetos que afirmem as características do indivíduo, que contem a
sua história e ressaltem sua personalidade. Para Simmel, é preciso exacerbar o
lado pessoal até para que o homem permaneça perceptível para si próprio. Assim,
ele consegue se descolar da massa e enxerga os contornos de sua personalidade.
Na residência o homem, assim como o detetive, sabe quem é, mesmo num mundo
onde não há mais discursos sólidos que expliquem a origem, a nacionalidade e a
identidade. Por isso, a importância de proteger e valorizar este ambiente.
Espinosa é o retrato do indivíduo solitário. Vive sozinho, num apartamento
que herdou no Bairro Peixoto, cheio de recordações e marcas que remetem ao
passado. Os cômodos da casa guardam apenas a memória dos parentes que ali
viveram. Da avó, que criou o menino órfão, restaram os livros. Da ex-esposa e do
filho, constantes lembranças. Até a descrição da geladeira do delegado, com seus
restos de comida, marca a sua falta de convívio. Sem ter com quem dividir uma
refeição, seu congelador está sempre abastecido de comida congelada, que ele
incrementa, vez ou outra, com quibes e esfihas comprados na mesma lanchonete
do bairro. No primeiro livro do personagem, O Silêncio da chuva (1997),
Espinosa define a sua condição:
A história com a primeira mulher entornara antes mesmo de se casarem. (...) Ela
apontara pelo menos uma dúzia de razões para ele não entrar para a polícia.
Mesmo assim, fez o concurso e foi aprovado. Casaram-se. Um ano depois, nascia
o filho. O casamento terminou ao mesmo tempo em que ela terminava o curso de
direto. Durara quatro anos. Enquanto pensava em tudo isso, acendia as luzes do
apartamento, sem nenhuma razão aparente além da necessidade de esclarecer a si
mesmo. (...) Tomou um banho demorado, desembrulhou um sanduíche dito
natural, que estava na geladeira, abriu uma cerveja, esticou-se no sofá da sala e
começou a pensar na morte, não na idéia abstrata da morte, mas em quanto tempo
ainda teria de vida. Isso aos quarenta e dois anos, numa noite de sábado, num
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apartamento de solteiro em Copacabana. Concluiu que estava morto. Foi dormir.
(Garcia-Roza, 1997, p. 119)
Tudo na descrição acima remete à atual solidão: a lembrança do casamento
perdido no passado; a noite de sábado, dia em que as pessoas costumam
aproveitar para se divertir, passada dentro de casa, jantando um sanduíche natural
com cerveja; o apartamento de solteiro; Copacabana. O contexto induz o leitor a
achar que cada um destes tópicos pode ser visto como um sinônimo de solidão.
A casa é ainda o local onde Espinosa cultiva os seus hábitos, reforça a sua
personalidade, a sua história e o seu passado. E ele resiste a mudanças no
ambiente, como se, assim, lutasse por sua própria permanência. Nem mesmo os
eletrodomésticos quebrados e os defeitos do apartamento são eliminados. Durante
os fins de semana solitários, ele acorda e planeja os pequenos consertos que
pretende fazer na residência, como os tacos descolados e a torradeira quebrada,
que só doura um lado do pão de cada vez. Mas nada sai do lugar. O delegado se
apega aos objetos, como se eles marcassem a sua própria história e personalidade.
Em todos os livros o narrador descreve a casa de Espinosa como se,
assim, definisse o perfil deste. O objeto de decoração mais marcante em seu
apartamento é uma estante, que guarda os livros da avó e todos os outros que o
delegado comprou em sebos ao longo da vida. Mas não é um móvel comum. A
estante de Espinosa é cheia de peculiaridades. Ela não tem estrutura, os
exemplares se apóiam, uns nos outros. Não existe nenhuma armação de madeira
ou ferro segurando a pilha. É como se estivesse viva, sempre aumentando, sempre
ameaçando tombar, em constante movimento. O hábito de arrumar os exemplares
desta forma foi herdado da avó.
E, apesar dos muitos avisos da faxineira, o delegado não pára de admirar
seu móvel-escultura e contribuir para que continue crescendo. A queda é iminente.
A fragilidade parece remeter para a inconstância da própria vida do detetive. Além
de cultivar um hábito e reforçar sua história, propagando a arrumação do parente
querido, Espinosa denuncia em seu “móvel” a própria fragilidade de seu mundo e
a impotência diante das transformações. O medo de ver a estante cair é o mesmo
que o protagonista sente ao se deparar com as mudanças e progressos da vida, os
computadores que invadiram o escritório, a Copacabana em constante mudança.
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E, se desfazer da arrumação, significaria também eliminar um passado e apagar
um traço da sua história. Em Espinosa sem saída, ela é descrita mais uma vez:
Havia a estante, alvo permanente da preocupação de sua faxineira – e também
dele próprio, desde que decidira, havia anos, erigir uma estante para livros feita
exclusivamente de livros. Bem entendido, não era uma estante destinada
exclusivamente a conter livros, mas uma estante feita de livros. O que ele
chamava de “estante em estado puro”, e que consistia em dispor uma fileira de
livros no chão da parede maior da sala, como se estivessem arrumados numa
prateleira; em seguida, sobre essa fileira de livro em pé, arrumar livros deitados
de modo a formar uma prateleira com os próprios livros, e depois dispor sobre
eles outra fileira de livros em pé em toda a extensão da parede, e assim
sucessivamente. A estante já atingira a altura das portas, o que formava uma
massa compacta de livros de três metros de comprimento por dois de altura, seis
metros quadrados de estante sem um único montante e sem nenhuma prateleira.
Era uma magnífica obra de engenharia, que ele pretendia conservar na posição
em que estava, adiando, se possível definitivamente, vê-la desabada e amontoada
no chão. O outro problema era a torradeira que torrava apenas um dos lados do
pão, o que tornava o café-da-manhã um pouco mais trabalhoso. Comprara, havia
meses, uma torradeira nova, mas não se adaptara a ela (Garcia-Roza, 2006, p.
122).
Dentro de casa, Espinosa sabe quem é, assim como afirmou Willie Bolle
em seu texto sobre os indivíduos nas grandes metrópoles contemporâneas. Há a
estante que ele luta para manter, deixando vivo o passado e a sua personalidade.
Mas também a vontade de um dia largar a corporação e abrir um sebo (sonho que
acalenta em cada uma das publicações que protagoniza), um negócio próprio para
preencher seus dias, já que o investigador está constantemente cogitando a
hipótese de se aposentar. Em todos os romances ele se sente deslocado no
ambiente de trabalho, sozinho, lutando para manter a ética num lugar dominado
pela corrupção. A fragilidade da estante ressalta esta luta para manter suas
características intactas. Ela está em constante movimento, crescendo a cada
compra, e frágil, ameaçando cair a todo momento, assim como o mundo em que o
delegado vive.
A solidão de Espinosa também não é aplacada pelos seus relacionamentos
amorosos. Há dez anos ele mora sozinho e todos os seus namoros são fugazes. Em
O Silêncio da chuva (1996), o delegado se envolve com uma testemunha. Uma
professora de ginástica apaixonada pelo namorado e que não quer compromisso
com o policial. Em Achados e perdidos (1998), tenta namorar uma jovem artista
plástica, mas a moça se assusta com a violência de sua vida e o caso não tem
continuidade. Em Vento sudoeste (1999), conhece a sua parceira mais constante,
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Irene, que vai acompanhá-lo também ao longo de Uma janela em Copacabana
(2001) e Espinosa sem saída (2006). Mas o relacionamento dos dois carece de
definição e não aponta para um destino comum. Os encontros são esporádicos,
marcados pelas constantes interrupções das viagens a negócios da moça.
As separações deixam espaço para breves encontros com outras mulheres.
Desta forma, em Uma janela para Copacabana, Espinosa acaba se envolvendo
também com Serena. Ele investiga uma complexa trama que envolve a morte de
policiais responsáveis pela organização da propina dentro da corporação. Serena é
a sensual esposa de um executivo. Ele trabalha em Brasília e deixa a mulher
constantemente sozinha em casa. Em seus muitos momentos de solidão, ela
assiste a um homicídio da janela do apartamento, no Leme, e procura o detetive
para contar o incidente.
O primeiro encontro de Espinosa e Serena acontece de forma ocasional, no
centro do Rio, antes mesmo de ela pensar em procurar a polícia para relatar o
crime que assistiu. O delegado está sentado num bar e vê Serena passar, sensual e
fugaz. A rápida passagem sugere que eles nunca mais vão se ver, o que acaba não
se comprovando nas páginas seguintes.
O detalhe da saia não lhe conferia nenhum traço vulgar; o que ela deixava
transparecer era ousadia, e não vulgaridade. Acompanhou com o olhar o leve
ondular de quadris e o aparecer e ocultar da coxa, até ela cruzar a extensão da
frente do café e sair do seu campo de visão (Garcia-Roza, 2001, p. 10).
Serena some na multidão e deixa o policial com uma sensação de
frustração e vazio. A imagem da mulher aparece como uma promessa, mas some
rapidamente, deixando no ar a sensação de que nada irá se concretizar. O encontro
de Serena e Espinosa lembra o poema “A uma passante” (1980), de Charles
Baudelaire, escrito no século XIX. No texto, extasiado, o sujeito poético observa
uma mulher passando no meio de uma multidão e lamenta a brevidade do
momento.
A rua ensurdecedora ao redor de mim agoniza / Longa, delgada, em grande luto,
dor majestosa, / Uma mulher passa, de uma mão faustosa, / Soerguendo-se,
balançando o festão e a bainha; / Ágil e nobre, com sua perna de estátua. / Eu,
embevecido, inquieto com um extravagante, / Em seus olhos, o céu lívido onde se
oculta o furacão, / A doçura que fascina e o prazer que destrói. / Um clarão...
depois a noite! – Beleza fugidia / Cujo olhar me faz subitamente renascer, / Não
te verei senão na eternidade? / Alhures; bem longe daqui! Muito tarde! Jamais
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talvez! / Pois ignoro onde tu foste, tu não sabes onde vou, / Ah se eu a amasse, ah
se eu a conhecesse! (Baudelaires, 1980, p. 68-69)
A promessa de um romance nunca se concretiza, já que os dois não
tiveram a chance de se conhecer. Ela se perde na multidão de passantes, rápida
como a vida numa cidade moderna, substituível, como a multidão de pedestres
que se revezam no campo de visão do narrador. A imagem da efêmera passante
pode servir também para resumir a vida afetiva de Espinosa. Sua história é cheia
de encontros que parecem promessas não concretizadas, já que a relação não
desenvolve e ele nunca deixa de ser um solitário. As mulheres se perdem no
turbilhão de acontecimentos, deixam de fazer parte da sua vida da mesma maneira
repentina com que apareceram. Ou, como no caso de Irene, o namoro parece estar
sempre próximo do fim e não remete a idéia de um casamento.
A união de Espinosa e Irene reflete questões comuns aos relacionamentos
amorosos contemporâneos. Irene é uma mulher bem-sucedida, independente
financeiramente, que mora em Ipanema, vive fazendo viagens a trabalho em São
Paulo e que parece não pensar em casamento. Enquanto está fora da cidade ela
não se preocupa com a rotina de Espinosa e vice-versa. Não há cobranças ou
crises de ciúmes. Fidelidade não é uma preocupação no relacionamento da dupla.
Ela já se envolveu com mulheres no passado e o namoro parece refletir as tensões
e questões que cercam relacionamentos contemporâneos.
Espinosa não tinha a clareza de Irene para falar dos seus próprios afetos e
emoções; tinha dificuldade até para pensar neles, quanto mais expô-los.
Atrapalhava-se quando tinha que apresentar Irene a alguém – amiga, era pouco;
namorada não era bem o caso; amante... ninguém apresenta ninguém como
amante. Um novo vocábulo procurava dar conta dos encontros e desencontros
entre as pessoas. Até mesmo a nova família, com seus casamentos múltiplos,
ainda não inventara nomes para as novas formas de parentesco (Garcia-Roza,
2001, p. 50)
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman procurou definir os
relacionamentos amorosos na sociedade contemporânea associando-os à palavra
líquido (na verdade, o estudioso criou toda uma teoria líquida, para definir os
diferentes setores da vida contemporânea). A intenção era denunciar a fluidez, o
constante movimento, a falta de rigor e permanência das uniões. Em Amor
líquido, publicado em 2003, Bauman defende que os relacionamentos amorosos
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passaram a seguir as leis do mercado de consumo, que regem toda a sociedade.
Para o estudioso, o impulso de atender a um desejo momentâneo, sem maturação,
foi incutido em nossa sociedade pelo consumo. Assim os relacionamentos
amorosos podem começar como um desejo de consumir algo. E é possível trocar
de parceiro como quem troca uma peça defeituosa.
Para Bauman o amor virou a solução contra o individualismo exacerbado e
a sua conseqüente solidão. A procura pelo parceiro amoroso passou, para o
sociólogo, a ter um sentido similar ao que Benedict Anderson perseguiu ao cunhar
o termo “comunidade imaginada”, associações feitas por interesses e afinidades.
Elas serviriam para trazer um sentido e uma idéia de pertencimento ao homem e,
também, para protegê-lo da solidão. Bauman acredita que a relação amorosa virou
uma busca similar à das comunidades imaginadas: a procura de um outro com
afinidades e semelhanças, que reforce as características individuais, proteja o
homem de uma vida vazia e da insegurança do mundo.
Só que, junto com a ânsia por um pertencimento, há um impulso por
liberdade. Os sentimentos contraditórios criaram, portanto, uniões transitórias, que
atendessem às duas demandas. Os casamentos selados com a tradicional frase “até
que a morte os separe” passaram a ser considerados obsoletos. Com isso,
diminuíram as exigências e padrões para que um relacionamento pudesse ser
considerado amor. A palavra passou a ser associada a uma série de experiências
sucessivas, com grande intensidade, rápidas e movidas pela fragilidade do
encontro. As fugazes e numerosas uniões seriam uma defesa contra os sofrimentos
do amor, toda a incerteza e a fragilidade associadas ao sentimento e à sensação de
aprisionamento, de imobilidade, dos relacionamentos duradouros.
Segundo Bauman, há uma crença de que é preciso sempre estar disponível
para possíveis futuros parceiros. Relacionar-se, segundo esta visão, seria o mesmo
que fechar portas, desperdiçar oportunidades. A solução seria, portanto, investir
apenas em amores leves, prontos para serem substituídos, que não se transformem
numa prisão pesada. As pessoas precisam estar sempre prontas para sair de um
relacionamento e entrar em outro, sem encargos ou sofrimentos. Um marco, deste
novo tipo de mentalidade, seria o viver junto, substituindo o tradicional
casamento. Uma relação sem contrato, juramentos ou benções divinas. Um
vínculo leve, que pode ser desfeito a qualquer momento e que já nasce prevendo a
inevitável separação. Tudo é informal e fácil de ser dissolvido.
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Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é
sólido e durável, tudo que não se ajuste ao uso instantâneo nem permite que se
ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser mais do que estamos dispostos a
exigir numa barganha. (...) Assim, viver junto (...) ganha o atrativo de que
carecem os laços de afinidade. Suas intenções são modestas, não se prestam
juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem
fios que prendam ou mãos atadas. (Bauman, 2003, p. 46).
Casar e construir laços duradouros parecia o caminho natural para o
homem. Mas, para o indivíduo da cultura do consumo, este modelo de vida vai de
encontro aos seus instintos naturais. Afinal, o objetivo do consumo não é
acumular bens, mas usá-los e descartá-los para, assim, abrir espaço para a
aquisição de outros bens, tão passageiros quanto os primeiros. É a rotatividade e
não o volume das compras que mede o sucesso do homem consumidor. Os bem-
sucedidos não ficam com um objeto tempo suficiente para que o tédio se instale.
A rotatividade, teoricamente, então, livraria o homem do tédio, das crises, das
incertezas e do sofrimento dos relacionamentos amorosos.
A vida afetiva de Espinosa reflete a rapidez e a transitoriedade dos
relacionamentos denunciadas por Bauman. Seus casos são todos passageiros e
procuram aplacar momentaneamente a sua solidão. É o desejo que impulsiona o
delegado e não a vontade de estabelecer laços. Até mesmo o relacionamento com
Irene, mais duradouro, perpassando três livros, parece buscar leveza,
transitoriedade e falta de compromisso.
Espinosa não sabe se ela pode ser considerada uma namorada. Não há
compromissos. Eles se vêem de quando em quando, movidos pela vontade.
Quando passa o fim de semana no Rio, Irene telefona para o policial e os dois
marcam de se ver. Ela aparece na casa do delegado com sacolas recheadas de
vinhos, pães e frios e desaparece quando a segunda-feira chega, sem deixar
promessas ou cobranças. A solidão volta a reinar na vida e no apartamento do
detetive, quando Irene deixa o Bairro Peixoto. O relacionamento dos dois está
preocupado apenas em atender ao agora, sem pensar no futuro. A união é frágil e
o fim está sempre iminente.
Mais de dez anos separavam Espinosa e Irene. Enquanto ele já entrara havia
quase três anos na faixa dos quarenta, ela acabara de entrar nos trinta; e ele
achava que uma década era o suficiente para produzir uma descontinuidade, se
não uma ruptura, nos códigos amorosos. Claro que as décadas não eram faixas
estanques, impermeáveis a qualquer tipo de troca, mas ele cismava que havia uma
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73
perda notável na permeabilidade amorosa. O próprio fato de fazer aquela reflexão
– empreendida a caminho de casa e esmiuçada durante o banho – funcionou como
sinal irrefutável de que estava envelhecendo. A distância entre as idades não
permanecia aritmeticamente constante, mas aumentava a cada ano. (...) Mas não
dizia nada disso a ela. Ele era o seu cavaleiro andante. Só não sabia por quanto
tempo. (Garcia-Roza, 2006, p. 33)
Assim, analisar a maneira como Espinosa se relaciona com o outro, os
seus flertes amorosos, o seu isolamento, a forma como protege a sua privacidade,
é pensar também como o homem contemporâneo lida com estas mesmas questões.
É refletir sobre os encargos da vida numa metrópole e como os indivíduos reagem
à superexposição, à transitoriedade do mundo, aos apelos da sociedade de
consumo, à concorrência do mercado. Ao tentar fazer de seu delegado um homem
comum, simples habitante de uma metrópole do mundo, Garcia-Roza permitiu
que este discutisse uma gama de questões que afetam o indivíduo atualmente. Os
seus romances, embalados por uma trama policial leve e de fácil consumo, fazem
com que o leitor possa refletir sobre como ele próprio vem reagindo à sociedade
contemporânea.
3.4
A ética do detetive
Em 1996, o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, formado em psicologia e
filosofia, lançava o seu primeiro romance policial, O silêncio da chuva. Nas
páginas, descreve o delegado Espinosa, um policial ético, incorruptível, que
passeia pelas ruas de Copacabana enquanto investiga mistérios e assassinatos. O
detetive é um pensador, sempre refletindo sobre a vida e a sua existência. Não por
acaso, Espinosa foi batizado em homenagem ao filósofo de mesmo nome, autor de
obras como A Ethica e O breve tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade.
Num debate promovido na Livraria da Travessa, no dia 24 de novembro de 2005,
o escritor afirmou que, mesmo sem querer, o personagem o levou a falar sobre o
tema: “Não tenho nenhuma intenção em discutir a ética na minha literatura. Mas,
da mesma forma, não tenho como fugir da questão. O policial é, sim, um
personagem ético. E ele se chama Espinosa, não é? O que, se não for uma ironia, é
uma rememoração.”
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Mas, enquanto o filósofo era adepto da razão, o delegado age, na maioria
das vezes, movido pela emoção. Numa entrevista para o site Trópico
(http://pphp.uol.com.br/tropico - acesso em janeiro de 2007), na Internet, o
escritor afirma que teve a preocupação de fazer do seu personagem principal um
homem comum, como tantos outros, mas o nome que escolheu revela a
preocupação de transformá-lo também num profissional e num indivíduo ético.
Ele foi um pensador com uma cabeça brilhante, uma racionalidade incrível, um
pensamento profundamente ético e, ao mesmo tempo, um homem do desejo e do
afeto. Pensei: Quem sabe com esse nome a gente não cria uma outra imagem para
o policial, que não seja a de um troglodita, de um torturador?
(http://pphp.uol.com.br/tropico - acesso em janeiro de 2007)
A idéia era fazer o leitor acreditar que podia encontrar uma pessoa
exatamente como Espinosa cruzando uma rua e, ao mesmo tempo, mostrar que
este homem, este policial padrão, podia ser ético também. Mas assim como os
indivíduos que circulam hoje pelas grandes cidades, o delegado, constantemente,
se depara com dilemas éticos e dúvidas morais. E, na hora de resolver, em várias
situações, opta pela emoção em vez da razão. São os sentimentos que nascem no
embate com o outro que, muitas vezes, guiam os seus atos.
Os questionamentos de Espinosa são adequados ao tempo em que ele vive.
A complexidade da vida moderna acabou por sofisticar também os problemas
morais. No texto “Ethics and intellectuals” (1999), os autores Domenic Rainsford
e Tim Woods, afirmam que a ética nada mais é do que a investigação dos sistemas
morais que guiam a rotina das pessoas. E todos os questionamentos que os
homens precisaram enfrentar na vida moderna, acabaram influenciando na
transformação destes fatores.
A perda de uma personalidade com uma essência imutável, como
acreditavam os iluministas, a falência das grandes narrativas, que justificavam a
vida e o mundo. Fatos como estes contribuíram para a relativização de conceitos.
Para que tudo passasse por revisões e questionamentos, inclusive a ética.
A partir da década de 90, houve uma retomada dos estudos éticos, que
passaram os anos 70 e 80 negligenciados. A ética desenvolvida por Kant, baseada
na razão e em conceitos de certo e errado universais, passa a ser questionada e
rechaçada por muitos estudiosos da área. Para este filósofo, o que era bom ou mau
estava definido, como leis, regendo a vida na sociedade.
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75
David Parker, no texto “The turn to ethics in the 1990s” (1998), afirma que
Kant defende uma ética de todos, ligada ao racional, sem espaço para sentimentos
morais, como virtude e caráter, por exemplo. Mas, segundo Domenic Rainsford e
Tim Woods, os últimos anos assistiram ao surgimento de novas teorias no setor, e
os filósofos passaram a ter que considerar e pensar a existência de conceitos de
bem ou mal individuais. Em vez de leis universais, que definiriam o que é certo ou
errado para os homens, julgamentos pessoais, que poderiam variar de um
indivíduo para outro.
A ética que surge na segunda metade do século XX reforça este tipo de
questionamento, já que chega impregnada por problemas pontuais, movimentos
políticos que tratam dos direitos de minorias, preocupados com questões como
raça, classe ou sexualidade. O feminismo é um destes exemplos, que vêm incutir
uma nova consciência ética, baseada na justiça social, e ressalta a necessidade de
debates específicos.
Conceitos desenvolvidos por filósofos como Foucault, Lacan e Derrida
passam a ser aplicados em projetos relacionados a pequenos grupos, que lutam
contra fatores como a opressão e a marginalização. O surgimento de movimentos
como estes levanta dúvidas, portanto, sobre a existência de um sistema ético
único, já que parece falar de alguns, em detrimento de outros.
Simon Haines, em “Deepening the self – The language of ethics and the
language of literature” (1998), ressalta, ainda, que muitos filósofos hoje se
preocupam em produzir uma ruptura com o pensamento ético do passado, mas,
para ele, o ideal seria apenas iluminar regiões que permaneciam escuras. Desta
forma, separar o tema entre certo e errado seria achatá-lo, deixando de lado toda
uma série de emoções e desejos que precisam ser levados em conta numa análise
ética. Nuances como a vergonha, a modéstia, a arrogância e a integridade podem
afetar os padrões éticos até então vigentes.
A figura do detetive acompanhou, ao longo dos anos, as mudanças na
rotina urbana e os problemas presenciados pelos moradores das grandes cidades.
Assim como aconteceu com o homem comum, a vida moderna trouxe uma gama
maior de preocupações e condutas morais para este personagem. Questionamentos
éticos não existiam nos primeiros investigadores da história, os detetives dos
romances de enigma, adeptos da razão e sem nenhum espaço para sentimentos ou
dúvidas.
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Nas páginas do primeiro conto policial, Assassinatos na rua Morgue, de
Edgard Allan Poe, o protagonista Dupin imortalizava a figura do detetive clássico
dos textos de enigma. Sem ter a personalidade descrita com detalhes, ele aparecia
como uma figura absolutamente racional, cujas faculdades mentais analíticas eram
tão desenvolvidas, que conseguia desvendar um assassinato sem sair da poltrona
de sua casa, por puro hobby. E, no fim da história, a solução chegava sempre,
consoladora. A identidade do criminoso era revelada e, o equilíbrio da vida,
restabelecido.
Dupin não parece ocupado com sua conduta ética. Ele é extremamente
racional e só está preocupado em desvendar um enigma. Na sua cabeça, tudo está
claro: o criminoso é um mal que precisa ser detido. O detetive, portanto, aparecia
nas narrativas do gênero como um remédio, capaz de acabar com os males desta
cidade doente. Suas características, preocupações morais e gostos eram apenas
esboçados, até porque tudo estava definido, com rígidos conceitos de certo e
errado, como leis que regiam a sociedade. O importante era que, no fim da
história, o bem prevalecesse.
Os detetives das narrativas contemporâneas estão mais próximos ao
homem comum, com personalidade fragmentada e discutindo questões recorrentes
da vida numa metrópole. Em todo momento, ele se depara com situações onde
precisa decidir o que é certo ou errado e suas escolhas são, muitas vezes,
questionáveis.
Sua personalidade se aproxima da do investigador do romance negro,
inaugurado por Dashiell Hammett, nos Estados Unidos, em 1925, num momento
de depressão mundial e em que o país estava à beira de uma grande crise
econômica. Não existem fronteiras delimitadas e definidas que estabeleçam o que
é certo ou errado. Os conceitos se misturam e variam de acordo com a situação.
Os detetives dos romances policiais contemporâneos, portanto, costumam
apresentar uma ética própria, que questiona princípios comuns e está baseada no
confronto com o outro. Os conceitos de certo e errado passaram a não ser tão
rígidos, como nos textos policiais de enigma, e variam de acordo com a situação.
No filme A costureirinha de Balzac (2002), dois jovens passam a ler livros
proibidos pelo governo para uma adolescente, neta do alfaiate de uma aldeia
isolada e humilde durante a Revolução Chinesa. As histórias de Balzac encantam
a moça, que resolve, no fim da película, arrumar as malas e partir para a cidade,
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em busca de conhecimento e experiências. Numa das cenas, o avô da menina,
preocupado com as novas idéias da neta, suplica aos dois rapazes: “Às vezes um
livro pode mudar sua vida inteira. Pare de ler para ela, romances não dizem a
verdade.”
A opinião do alfaiate encontra eco em pensadores clássicos, que viam a
arte com desconfiança. Aristóteles, por exemplo, só aceita a arte desvinculando-a
da verdade. Sua função seria terapêutica, proporcionando uma catarse no receptor,
sem o lastro do real.
Mas, nas últimas décadas, a literatura se transformou num rico e complexo
meio de se pensar questões que afetam a vida dos homens, como os conceitos
éticos. Segundo David Parker, no texto “The turn to ethics in the 1990s” (1998),
isto acontece porque a literatura é capaz de apresentar as questões morais de
forma que o discurso filosófico nunca conseguiria.
Autores renomados fizeram uso de textos literários para justificar suas
teorias éticas. Marx, por exemplo, usou o personagem Fausto, de Goethe, como
exemplo para falar do poder alienante do dinheiro. E Freud costumava citar
aspectos dos romances policiais para justificar suas teorias psicanalíticas. Simon
Haines, no texto “Deepening the self – The language of ethics and the language of
literature” (1998), defende que a crítica literária na década de 90 passou a utilizar
a literatura como uma forma de analisar a condição humana.
O filósofo Jacques Rancière, em A partilha do sensível (2005), diz que o
real precisa ser ficcionado para ser pensado. Segundo Rancière, a escrita moderna
derruba a hierarquia em relação a temas dignos e indignos, reivindicando uma
igualdade. As artes mecânicas, como a fotografia e o cinema, por exemplo, vêm
reforçar o que a literatura já havia começado: uma revolução estética. Passava-se
dos grandes personagens e heróis para os anônimos. Os filmes, as fotos e a
literatura passaram a falar do homem comum, promovendo, antes de tudo, a glória
de qualquer um.
Há uma busca de igualdade tanto nos temas, quanto nas personagens
representadas. O homem passa a contar coisas pequenas e indignas, que não
entrariam na narrativa aristotélica. Apareceu uma busca ética e política, ao mesmo
tempo, no terreno literário, de igualdade e de reivindicação de espaço, de inclusão.
A escrita adquiria autonomia diante do objeto, libertando-se de
julgamentos e preconceitos existentes na sociedade. Para Rancière, foi justamente
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no momento em que a literatura se reconheceu como ficção, que ela pôde se
aproximar do real, ganhar liberdade, falando da vida e do mundo.
Desta forma, os questionamentos éticos presentes nas obras de Poe e
Garcia-Roza, vivenciados por Dupin e Espinosa, respectivamente, se aproximam
de dúvidas e situações vividas pelos homens ao longo da história. Analisar tais
personagens seria uma forma também de pensar o desenvolvimento dos estudos
éticos e a sofisticação das questões morais nos dias de hoje.
Sandra Reimão, em O que é romance policial (1987), define os textos
policiais clássicos como uma narrativa onde há sempre um mistério a ser
desvendado e, no fim, a solução aparece, indiscutível. Para ela, a narrativa de
enigma atua na esfera do raciocínio quase matemático, enquanto o noir lida com o
viver, percebendo criticamente o mundo. A história da investigação é o que
importa para o leitor dos textos clássicos, que se depara com um verdadeiro jogo
de dedução. O criminoso é visto como alguém que cometeu um mal. Ele acabou
com a ordem, com o equilíbrio, e precisa ser desmascarado. Ao detetive, cabe a
boa atitude de desvendar o mistério e restabelecer a tranqüilidade. Sandra afirma
que o criminoso é como um doente mental. Sua razão é, às vezes, quase tão
perfeita quanto a normal. Sua falha está nos sentimentos éticos e morais que, nele,
estão deteriorados.
Como a trama dedutiva está baseada no raciocínio matemático, não há
espaço para o acaso e as emoções, tudo é racionalmente estabelecido e previsto. O
detetive desvenda a verdade da história e o papel de cada um dos personagens está
estipulado. No policial clássico não há como o protagonista deixar de ser visto
como o mocinho e o criminoso como o vilão, que precisa ser punido.
Em “A carta roubada”, de Edgard Allan Poe, Dupin é procurado pelo chefe
de polícia de Paris, que quer sua ajuda para desvendar o sumiço de um
documento. O ministro D. teria roubado uma carta da casa de G., que presenciou
a cena, mas nada pôde fazer para evitar, já que estava recebendo ainda outro
convidado.
Adivinhando o conteúdo do envelope que estava em cima da mesa, D. tira
uma carta do bolso, finge lê-la, a coloca exatamente em cima da outra e, depois de
alguns minutos de conversa, apanha a que não lhe pertence. O ministro usa a
informação contida no documento para fins políticos e, G., desesperada, pede
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ajuda ao chefe de polícia, que, depois de muitas buscas à casa do ministro, nada
encontra e recorre a Dupin.
O detetive ouve toda a história da poltrona de sua casa e deduz que o
documento deve estar num local óbvio, bem à vista de todos e, por isso mesmo,
passa despercebido no emaranhado de objetos que compõe a paisagem. Ele
resolve, então, visitar o ladrão. Dupin localiza o documento em cima de uma
escrivaninha, coloca o envelope dentro do bolso, enquanto D. se distrai, e deixa
outra carta parecida no lugar.
A atitude de Dupin é exatamente igual a do ministro. O detetive repete
passo a passo os atos do criminoso. Por que, então, um seria visto como um
monstro sem moral, enquanto o outro, cumprimentado por sua atitude? Em
momento algum da história, os envolvidos questionam os motivos que levaram o
ministro a roubar a carta. Ninguém se preocupa com o caráter ou a inocência da
senhora, que, mesmo assistindo ao roubo, nada fez, para não chamar atenção de
mais uma pessoa para o objeto em questão. Se houve um crime, não há
justificativa possível que inocente o responsável. Descobrir que o ministro pegou
a carta para proteger alguém ou fazer o bem, seria um imprevisto, um espaço para
o acaso dentro do texto e a trama de enigma é estipulada pela razão,
matematicamente calculada. A partir do momento em que a identidade do
criminoso é revelada, sua culpa está estabelecida e não há mais volta.
D. é um criminoso, que acabou com a harmonia de um ambiente. Dupin,
em contra-partida, teria devolvido a carta ao seu verdadeiro dono, punindo quem
agiu errado e aplicado a justiça. O detetive faz o que devia ser feito, restabeleceu a
ordem e ganhou uma recompensa por isso. O seu roubo não é visto como uma
manobra não ética. E ele explica o porquê:
Na situação atual, não tenho qualquer simpatia – ou, pelo menos, nenhuma pena –
de quem desce. Ele é aquele monstrum horrendum, um homem de gênio, mas
sem princípios. Confesso, no entanto, que gostaria muito de conhecer o caráter
preciso de seus pensamentos, quando, desafiado por ela a quem o chefe de polícia
se refere como “uma certa personagem”, ele for reduzido ao ato de abrir a carta
que deixei para ele no porta-cartões.(Poe, Edgard, p. 93)
Dupin, cuja personalidade é apenas esboçada, descrita de forma
superficial, ainda sente prazer em imaginar que a senhora não cederá mais à
chantagem e, quando o ministro quiser usar o seu poder, vai ver que foi enganado
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e que o documento não está mais em sua casa. Em momento algum o detetive tem
dúvidas morais. Está tudo bem definido entre o que é certo e o que é errado.
Simon Haines, em “Deepening the self – The language of ethics and the
language of literature” (1998), afirma que a ética desenvolvida por Kant defende
que o pensamento moral começa com princípios normativos universais. O mundo
é descrito através da razão, com uma linguagem científica, deixando de lado
qualquer resquício de emoção, desejos ou sentimentos.
Segundo Haines, a ética de Kant resumiria tudo em duas leis básicas: o que
é bom e o que é mau. E estes princípios valeriam para todos os homens. O texto
de enigma trabalha também com a razão pura, sem espaço para sentimentos e
emoções que tragam reviravoltas à história. E a ética de Dupin se relaciona com
os princípios kantianos, já que ele nem perde tempo questionando os seus atos.
Está tudo muito claro: o criminoso quebrou a ordem, enquanto, ao detetive, resta
restabelecê-la. Conceitos de bem e mal muito bem estipulados e universais regem
o mundo do detetive de Poe.
Numa entrevista para o jornal O Globo, publicada em 12 de dezembro de
2003, no caderno Prosa & Verso, o escritor Garcia-Roza reforça que, na hora de
criar o delegado Espinosa, sua intenção foi fazer com que sua personalidade se
aproximasse da do indivíduo comum, um funcionário público simples e ético.
A criação do Espinosa foi no sentido de mostrar que é possível um policial ser
ético. Mas sem fazer dele um super-homem, um indivíduo excepcional. Ele é
absolutamente normal, é tipicamente um funcionário público, pouco à vontade no
que faz. Não é necessariamente honesto, mas é ético. Certas aventuras amorosas
dele, de um ponto de vista da moral vigente, poderiam ser consideradas
desonestas. (Garcia-Roza, 2003)
Espinosa acostumou-se a conviver com uma polícia corrupta. Tiras
desonestos, propinas e interesses escusos fazem parte do seu dia-a-dia. Mas ele se
mostra sempre pouco à vontade com este clima e são freqüentes os momentos em
que o policial aparece pensando em largar a profissão, se aposentar. Em quase
todos os cinco livros que protagoniza, vive momentos em que pensa que não vai
mais agüentar, que seu fim profissional está próximo.
Em Uma janela em Copacabana (2001), o contraste entre o seu caráter
incorruptível e a corporação em que trabalha aparece claro. No livro, o
investigador é responsável por desvendar a morte de três policiais em locais
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públicos de Copacabana. Ele descobre que os tiras morreram porque comandavam
um esquema de propinas e estavam sendo desonestos na distribuição. Durante a
investigação, Espinosa e seus dois fiéis funcionários, Welber e Ramiro, encontram
dificuldades em apurar os fatos e entrevistar testemunhas, pois nenhum policial
quer ajudar na investigação, com medo de perder os benefícios que recebe. Já que
é impossível ir contra todo um sistema estabelecido, Espinosa decide
simplesmente fazer o seu trabalho da melhor maneira possível. Sua tarefa é
desvendar as mortes e não prender profissionais desonestos. Welber interroga
Espinosa:
- Delegado, é quase impossível listar os que recebem propina. Os caras se sentem
como se estivessem cortando o salário deles, encaram a propina como um
complemento legítimo que pode significar o dobro do salário, às vezes até mais.
A dificuldade não é saber quem recebe. Todo mundo sabe, até porque muita gente
recebe. O problema está em fazer alguém falar, ainda mais sabendo que estamos
investigando. O senhor mesmo é capaz de dizer quem, na delegacia, recebe
dinheiro. Mas e daí? O que vai fazer com eles? Mandar embora? (Garcia-Roza,
2001, p. 124)
O delegado decide que não. Investigar os corruptos, segundo Espinosa, é
função da Corregedoria, não dele. Mas a explicação de Welber bate com as idéias
do delegado e demonstra as dificuldades de conduta de profissionais éticos dentro
de uma corporação corrompida.
Mas, apesar de incorruptível, Espinosa é um homem comum, como os
muitos que circulam pelas ruas das grandes cidades. E, constantemente, ele se
depara com dilemas éticos e, muitas vezes, sua atitude pode ser interpretada como
moralmente duvidosa. Mas costuma parar para pensar nos seus atos, analisando se
o que fez estava certo ou errado, o que mostra que, para ele, os conceitos não
aparecem como fatores universais e pré-estabelecidos. O delegado decide qual a
melhor atitude a tomar quando a situação se apresenta.
O relacionamento de Espinosa com Irene, por exemplo, deixa espaço para
que o delegado tenha casos com outras mulheres. Mas o policial não se sente
culpado com a atitude, porque o relacionamento dos dois não exige exclusividade.
Eles têm uma relação aberta. Para ele, a fidelidade não faz necessariamente parte
da ética dos relacionamentos amorosos. Os casais decidem entre si a melhor forma
de agir.
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82
E, no livro, o delegado é chamado para conversar com Serena, uma
testemunha chave para a investigação dos crimes. Moradora do Leme, solitária,
com um marido diplomata que está sempre viajando, Serena procura o delegado
para dar o seu depoimento sobre um assassinato e, mais do que ajudar o caso a ser
desvendado, a moça quer aplacar com o investigador os seus momentos de
solidão. Ela se entrega ao delegado, que nem pensa em resistir. Depois do
encontro amoroso, porém, ele se confronta com suas dúvidas.
Enquanto andava pela calçada repleta de gente – escolhera o novo caminho que
passava pelo sebo -, pensava nas dificuldades de uma ética do comportamento
sexual. Como se comportar numa situação como aquela em que uma linda
mulher, sozinha com você num apartamento, tira toda a roupa e fica te olhando,
como um sorvete olharia um menino num dia de verão? Claro que estava
procurando uma justificativa. Não era mais um menino e Serena não era um
sorvete. De qualquer maneira, não se tratava mais de tomar uma decisão ética. O
que estava feito, estava feito. (Garcia-Roza, 2001, p. 42)
Simon Haines,em “Deepening the self – The language of ethics and the
language of literature” (1998), afirma que, durante a retomada dos estudos da
ética na década de 90, muitos filósofos quiseram promover uma ruptura radical
com o passado, classificando como ultrapassada a visão de outrora. Haines,
porém, afirma que é preciso analisar a forma como os homens agiam no mundo,
seus valores morais e sua ética. Para ele, todas as vezes em que pensamos no que
é certo e moralmente aceito, acabamos nos deixando influenciar por resquícios do
passado, traços culturais que compõe nossa personalidade. Seria, portanto, preciso
rever o passado para entender as questões de hoje.
Da mesma forma, Espinosa revela, através de seus pensamentos, que se
deixou levar pelo instinto quando cedeu à tentação de dormir com Serena. Por um
momento, ele tenta se convencer de que é impossível resistir a uma bela mulher se
oferecendo ostensivamente. Usa uma idéia machista, de que o homem não
consegue e nem deve resistir a um apelo feminino, para justificar o seu ato. Desta
forma, deixa transparecer traços da cultura em que vive presentes na sua
personalidade, que acabam por influenciar a sua forma de agir. Sabe que isso não
é desculpa para a atitude que teve, mas admite que seu comportamento encontra
eco numa idéia vigente na sua sociedade.
Mas, ao mesmo tempo, Espinosa pensa sobre uma ética das relações
sexuais, que, para ele, não é formada por conceitos definidos e rígidos e depende
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de uma série de nuances emocionais que interferem nas atitudes humanas. As
dúvidas se justificam, afinal, ela era testemunha de um crime.
A ética de Espinosa aparece refletida também na forma como os livros
terminam. Os finais aparecem sempre em aberto, sem uma solução definitiva. Em
Uma janela em Copacabana (2001), por exemplo, o delegado suspeita, no fim,
que Celeste, a principal testemunha, é a assassina dos policiais. Mas ele admite
que suas idéias são apenas suposições. Num restaurante, Espinosa revela suas
opiniões para a namorada Irene:
- Vou resumir a história para você. Nada é definitivo, muitos pontos precisam ser
esclarecidos e as lacunas da história, que são muitas, foram preenchidas pela
minha imaginação, o que torna este relato uma obra de ficção. Minha esperança é
que algum dia essa ficção possa ser substituída pela versão verdadeira (Garcia-
Roza, 2001, p. 214).
Na afirmação, Espinosa questiona a existência da verdade. Sem poder
comprovar um fato, tudo parece apenas ficção. Ele espera, algum dia, chegar à
versão verdadeira. Mas, em suas histórias, a verdade nunca chega. O leitor precisa
se contentar com um ponto de vista, uma versão plausível para os acontecimentos.
Em Perseguido (2004), o delegado descobre a identidade do assassino do
médico, mas também não desvenda todos os mistérios que aparecem na trama. O
leitor termina o livro sem saber se as perseguições que o psiquiatra relatava eram
simplesmente fruto da sua mente perturbada ou se realmente existiam.
O filósofo Hillis Miller (2001) defende que uma ética da leitura teria a ver
com uma relação do texto com algo que está fora deste. Ao leitor cabe uma atitude
de humildade na hora de ler o que está escrito. Ele precisa ter em mente que nunca
atingirá a verdade, já que é impossível chegar ao texto original, descobrir as reais
intenções do escritor na hora de escrevê-lo. O autor também. No ato da escrita, ele
pode imaginar e prever a presença de um leitor, mas nunca terá certeza da forma
como este interpretará o que está sendo dito. Isso marca uma lacuna de
ilegibilidade presente em todo texto. E, é bom frisar, ao falar em texto o filósofo
se refere não apenas a um livro ou o trecho de alguma obra, mas a qualquer coisa,
como os atos de outra pessoa, por exemplo.
Desta forma, Espinosa procura adotar uma atitude ética na hora de
interpretar os atos dos criminosos e os acontecimentos. Como ele tem consciência
da impossibilidade de se chegar a uma verdade, apresenta apenas as suposições,
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deixa claro que tudo não passa de uma interpretação. Ele deixa dúvidas no ar, um
espaço para que o leitor também tenha as suas próprias idéias em relação ao que
foi contado.
No fim de Perseguido, o delegado se depara com outro dilema ético. O
livro conta a história de um psiquiatra, que entra em contato com Espinosa para
denunciar um paciente que o está perseguindo. No decorrer da história, o leitor é
levado a suspeitar que tudo não passava de paranóia do médico. O desequilíbrio
do doutor se agrava e acaba por desestruturar a família inteira e resulta na morte
de quase todos os seus componentes. No fim, a filha mais velha, Letícia, mata o
próprio pai e acaba a narrativa numa clínica. Ela ficará no hospital até melhorar do
choque e, depois, estará livre, sob os cuidados de algum familiar. Espinosa
descobre a identidade do assassino do médico, acha a arma do crime, mas prefere
esconder o revólver, por acreditar que a menina foi apenas uma vítima das
circunstâncias.
Letícia estendeu a mochila e continuou olhando para baixo e esfregando o tênis
na superfície rugosa da raiz. No fundo da mochila, embrulhado num suéter,
Espinosa encontrou o revólver. Envolveu-o com o lenço e o guardou no bolso do
casaco (Garcia-Roza, 2004, p. 200).
Quando um de seus ajudantes pergunta o que acontecerá com a assassina,
o delegado não tem dúvidas: declara que não tomará atitude alguma. Para ele, a
vida já se encarregou de punir a garota de todos os seus erros.
Segundo o filósofo Emmanuel Levinas, em Entre nós: ensaios sobre a
alteridade (1997), a base da ética pode ser caracterizada pela figura de dois rostos,
que se reconhecem como estranhos ou semelhantes. Essa diferença gera respeito
entre os dois e é justamente ela que funda a ética. Porque quando você vê apenas o
semelhante, acaba por excluir o outro, como se apenas se visse, um olhar diante de
um espelho. Para Levinas, o indivíduo só pode se identificar e se comunicar com
o outro abrindo mão de si mesmo.
Esta visão do filósofo se relaciona com a idéia de Blanchot sobre a
amizade. Para este, ser amigo significa abrir mão do que você é, morrer um pouco
na presença do outro. E é isso o que acontece com Espinosa. Ao longo da história,
ele se encontra várias vezes com Letícia, se comove com o drama da menina e,
muitas vezes, ultrapassa o mero trato profissional. O delegado se preocupa com
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ela, a trata como amiga. Na hora em que ele toma a decisão de esconder a arma do
crime e isentar Letícia da punição pelo assassinato do pai, abre mão do seu papel,
de seguir uma conduta correta de policial em nome do outro.
Segundo os princípios de Dupin, Espinosa teria deixado de cumprir seu
dever, não restabeleceria a ordem, de acordo com uma das importantes premissas
do romance policial de enigma. Mas o delegado não se deixou levar pela razão,
foram as emoções que guiaram os seus atos. Ele se deparou com um dilema ético:
denunciar Letícia ou não? E resolve poupar a assassina, analisa o caso e se deixa
levar pelas emoções, negando qualquer princípio de certo ou errado
preestabelecido. A ética de Espinosa é definida pela alteridade, pela diferença e o
choque com o outro. É a preocupação com o outro que guia suas atitudes morais.
Quando fez de Espinosa a imagem e semelhança de um morador das
grandes cidades nos dias de hoje, Garcia-Roza se deparou com uma complexa
gama de questionamentos morais fazendo parte da personalidade do seu detetive.
Classificá-lo como um indivíduo ético não é uma tarefa simples, já que a ética do
delegado não é baseada em conceitos rígidos e definidos de certo e errado.
Uma sofisticada gama de nuances emocionais interferem nas atitudes
éticas do policial. Dominic Rainsford e Tim Woods, no texto “Ethics and
intellectuals” (1999), definem que esta está estritamente relacionada com uma
preocupação com o outro. Espinosa está em constante confronto com o outro e é
este reconhecimento da diferença que gera o respeito e guia os relacionamentos
que constrói. É baseado nas emoções que emergem do contato com o outro que
ele decide, por exemplo, como agir em relação a Letícia. E é admitindo uma
lacuna intransponível entre o eu e o outro, que torna impossível o estabelecimento
de uma verdade, a descoberta das intenções originais do criminoso, que ele deixa
a maioria dos seus casos em aberto. Nunca é possível reunir provas suficientes
para se chegar à verdade absoluta dos fatos. Simplesmente porque, para o policial,
não existe uma verdade absoluta.
Ao longo dos livros, Uma janela em Copacabana e Perseguido, é comum
Espinosa falar da ética profissional, a ética dos relacionamentos amorosos, a ética
das relações sexuais. Para ele, não há uma única ética, ela é fragmentada. Assim
como o indivíduo pós-moderno possui uma personalidade diferente para cada
situação do dia-a-dia, ele procura analisar os comportamentos éticos apropriados
para cada setor da vida.
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A personalidade de Espinosa exemplifica a sofisticação de
questionamentos morais que atingiram os homens na vida moderna. Os conceitos
de certo e errado universais, que regem a filosofia racional desenvolvida por Kant,
não dão conta de toda a gama de sentimentos que passaram a ser considerados nos
estudos do tema.
O detetive Dupin, de Edgard Allan Poe, serve de contraponto, para
ressaltar a personalidade complexa de Espinosa. A estrutura baseada na razão do
romance de enigma, faz com que a ética do detetive se limite a conceitos de bem e
mal pré-estabelecidos. Os sentimentos e razões do criminoso não são levados em
conta, apenas a sua atitude. Roubar uma carta é classificado um ato amoral e, por
isso, ele é definido como um monstro horrendo, que, apesar da posição social, é
completamente sem ética. O detetive é encarregado de restabelecer a ordem e,
mesmo que tenha que repetir os mesmos atos do ladrão, seu desempenho não é
considerado antiético, já que se baseia em conceitos de justiça.
Os livros protagonizados por Espinosa só poderiam terminar sem
conclusões, com finais em aberto. Não poderia ser diferente. Nesta cidade em que
não há mais certezas de nada, o enigma nunca é desvendado por completo. Resta
sempre a dúvida. Remetendo à epígrafe que inicia esta tese, não há verdades e
nem mentiras nas atitudes de Espinosa, é tudo música urbana. Faz parte do
cotidiano da vida de uma cidade grande.
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4
Mistérios em cidades virtuais
4.1
Uma cidade localizada no mapa?
Logo na primeira página de seu livro Mandrake – A Bíblia e a bengala
(2005), Rubem Fonseca descreve a rotina de seu advogado criminalista: “Cheguei
ao escritório por volta das oito, acessei a Internet e comecei a ler, seletivamente,
como de costume, cinco jornais de cidades espalhadas pelo mundo, além de um do
meu país, algo que tomava, aproximadamente, quarenta minutos” (Fonseca, 2005,
pg. 7). Mandrake circula pelo Rio de Janeiro na trama descrita por Fonseca, mas
os mistérios que procura desvendar estão além das fronteiras do seu país. São
suspeitos que viajam com facilidade para o exterior, personagens estrangeiros que
vivem na cidade, crimes que interessam não apenas à polícia local, mas a
organizações internacionais também, como a Interpol.
O cenário do livro, aliás, é internacional. E o advogado de Fonseca
recorrer à Internet toda a vez que inicia uma nova investigação. E o próprio
protagonista justifica a escolha ao longo da história: “Pesquisei na Internet o nome
Aquilino Altolaguirre, achei logo um site, não existe mais ninguém no mundo que
não tenha o nome na Internet” (Fonseca, 2005 p. 14).
Fonseca nos apresenta um mundo onde as fronteiras são elásticas. Seu
Mandrake aparece conectado a diferentes países pelo computador, numa rotina
que inclui a leitura de cinco jornais internacionais por dia através de um monitor e
da investigação da vida de clientes em sites de busca. O advogado conhece uma
italiana que trocou sua terra natal pelo Brasil, adotando aqui uma nova identidade,
e investiga pessoas de diferentes personalidades que se unem por uma causa
comum: a paixão por livros raros. Indivíduos capazes de matar por exemplares
únicos e cruzar os mais diferentes países atrás de novas aquisições.
A sociedade em que Mandrake vive parece cosmopolita. E, apesar de ter o
Rio de Janeiro como cenário da trama, são os personagens e suas histórias que
aparecem descritos e não as paisagens da cidade. Mas a vida num centro urbano
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dos dias de hoje está representada. O protagonista da história explica por quê:
Respondi que a cidade para mim eram as pessoas, se me pedisse para descrever a
minha cidade eu falaria das pessoas. Nem praias, nem montanhas, nem árvores,
nem ruas, nem casas, falaria das pessoas.” (Fonseca, 2005, p.129)
O autor, em seu livro, trata da vida de indivíduos numa sociedade
globalizada. Desde a publicação da primeira narrativa policial, inaugurada por
Edgard Allan Poe, os romances do gênero têm a cidade como pano de fundo e
revelam, em suas histórias, as características da vida nos grandes centros urbanos.
Ainda hoje, em entrevistas para jornais e revistas, autores de suspense costumam
ligar o gênero policial a uma crônica da vida na metrópole. O escritor Michael
Connelly, por exemplo, criador do detetive Hieronymus Bosch, afirmou que o
romance criminal é o romance social. Numa entrevista para o caderno Prosa &
Verso, do jornal O Globo, publicada em dezembro de 2004, o autor diz que o
gênero tornou-se o instrumento por meio do qual é possível investigar, explicar,
espelhar qualquer aspecto ou doença de nossa sociedade. Segundo ele, escritores
de policiais têm aproveitado a narrativa criminal para falar de males das cidades
grandes e de como a vida na metrópole vem afetando a forma de sentir e viver dos
homens.
E as narrativas de mistérios, nascidas na Inglaterra, com a criação do
policial clássico, ou de enigma, ganharam o mundo. A partir da década de 90, a
população dos mais diferentes países assistiu a um boom de livros do gênero.
Segundo Denise Góes, num artigo publicado na edição número seis da revista
EntreLivros, de cada cinco volumes vendidos na França, um é policial. No Brasil,
a Companhia das Letras estima que sejam vendidos cerca de 150 publicações do
gênero todos os meses. “O romance policial é um universo em expansão. Cada
vez mais globalizado, o gênero deixou de ser exclusividade da língua inglesa.
Novidades pipocam em várias partes do mundo: Suécia, Rússia, Cuba, Espanha,
Itália e Brasil” (Góes, 2005, p. 30).
Uma rápida pesquisa na Internet revela ainda uma série de sites dedicados
ao policial, livrarias virtuais, associações de apaixonados por tramas de mistério,
com notícias, críticas e lançamentos. No início de 2006, surgiu a primeira livraria
brasileira especializada num único assunto: romances policiais. O endereço do
estabelecimento? Virtual. O policial chegou também ao mundo sem fronteiras da
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89
Internet, à rede internacional de informação, que, pelo menos teoricamente, está
aberta a todos, independentemente da nacionalidade.
Neste capítulo procuro analisar se as narrativas policiais de hoje refletem
as tensões entre nacional e cosmopolita, o local e o global, presentes no mundo
contemporâneo, levando em conta que, segundo os seus próprios escritores, o
gênero vem servido de pretexto para tratar da vida nas metrópoles. Nos grandes
centros urbanos, descritos nos livros, a preocupação em retratar uma realidade
nacional cederia o lugar para a defesa de comunidades, pequenos grupos,
formados por afinidades, causas e interesses comuns? Por isso, analisarei sites
dedicados ao policial. A intenção é perceber se, mesmo no terreno democrático da
rede, onde, teoricamente, todos têm acesso, as cidades e sociedades retratadas nas
tramas têm características nacionais ou se, num mundo de fronteiras elásticas,
como na trama de Fonseca, grupos estariam representados e não uma nação. Na
história o advogado investiga crimes com conexões no mundo inteiro, que
envolvem colecionadores de livros raros. Para investigar a trama, autoridades
internacionais se juntam aos tiras locais.
O delegado da Roubos e Furtos, acompanhado de Raul, um escrivão e vários
tiras, entre eles, Walter, inspetor da Interpol, invadiu a Livraria Antique. A
Interpol estava procurando uma quadrilha de receptores com ramificações
internacionais que comprava livros roubados em várias partes do mundo, obras
que pela notoriedade eram muito difíceis de colocar no mercado europeu e por
isso agora estavam sendo vendidas na Ásia, principalmente, e também na
América do Sul.(Fonseca, 2005, p. 48)
Na entrevista, já citada neste trabalho, para o site Com Ciência
(http://www.comciencia.br/entrevistas/roza/roza01.htm), publicada em maio de
2000, o escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza complementa a personalidade de seu
delegado com as seguintes características: Eu tentei fazer do inspetor Espinosa
um personagem bastante brasileiro, e bastante carioca. Ele tem uma certa
preguiça, não tem este sufoco do paulistano, por exemplo. Ele tem características
muito próprias.” (http://www.comciencia.br/entrevistas/roza/roza01.htm - acesso em
junho de 2005)
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Em suas declarações em relação à Espinosa, Garcia-Roza sempre procura
deixar clara a preocupação em humanizar o seu personagem no momento da
criação. O leitor poderia encontrar Espinosa ao virar uma esquina qualquer da
cidade. Mas, segundo o autor, esta esquina não poderia estar em qualquer
metrópole. Para o escritor, o modo de ser de seu delegado está profundamente
ligado ao grande centro urbano em que vive: o Rio de Janeiro. Ser carioca, para
ele, significa portar um determinado número de características, ser mais tranqüilo
e relaxado e não viver na ansiedade e no sufoco. Conviver com o sufoco, segundo
o trecho acima, é coisa de paulistano.
O fato de ser preguiçoso associaria o protagonista ao discurso que dita
características para a personalidade dos brasileiros. Garcia-Roza, com sua
afirmação, deixa claro que, pelo menos para ele, existe uma idéia pré-concebida
de brasileiro e carioca, com traços bem definidos, uma espécie de essência.
Segundo Benedict Anderson, em Nação e consciência nacional (1989), a
idéia de nação, com marcas bem definidas e habitantes que possuem origem e
traços comuns, é criada. A noção de povo, como uma massa que compartilha uma
série de características, como raízes, cultura, interesses e modos de agir, é ilusória,
artificialmente formada. Criada pelas obras que esta nação produziu, pelas
histórias contadas pelos historiadores, pela forma como o povo aparece retratado
nos livros e até pelos mitos que falam de sua origem. As nações seriam, portanto,
narrativas artificialmente desenvolvidas: artefatos históricos construídos.
E a literatura nacional está repleta de exemplos que procuram fazer com
que esta idéia de totalidade exista. A questão do nacionalismo foi abordada pelos
românticos, como José de Alencar, pela primeira vez. Na época, não existia uma
tradição e era preciso criar uma, mostrar o início, uma espécie de essência
presente em todos os habitantes do país, que ligasse os indivíduos, formando uma
totalidade homogênea. Era necessário desenvolver a identidade de um país, uma
história que explicasse a origem de um povo. Estas narrativas de fundação surgem
no século XIX, junto com o conceito de nação, construindo uma identidade
nacional que não existia até então. Segundo Benedict Anderson, o nacionalismo
está presente na nossa imaginação, enraizado em nosso subconsciente, formado
por um conjunto de narrativas que estamos acostumados a ouvir. A idéia de povo
estaria, desta forma, criada. Uma comunidade imaginada, limitada e soberana, um
conjunto de indivíduos que acreditam estar ligados por características comuns.
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Os modernistas chegam para mostrar que não existe uma única civilização,
verdadeira e soberana, que dita as regras para o resto do mundo e precisa ser
copiada, mas civilizações, como disse Mário de Andrade, um dos fundadores do
movimento. Era a hora de tentar se soltar dos moldes ditados pela Europa e criar
algo novo, digerindo o que vinha de fora e mesclando a isto elementos da cultura
local. A idéia defendida era a da antropofagia. Como Mario de Andrade afirmou
numa carta ao poeta Carlos Drummond de Andrade:
Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo
Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há
civilizações. Cada um se orienta conforme as necessidades e ideais duma raça,
dum meio e dum tempo. (...) Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa,
ou alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo.
Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são
inteiramente outras (Carlos & Mario, 2000, p. 71).
Para os modernistas, a saída para a produção de simples cópias era mesclar
ao que vinha de fora à vivência do indivíduo comum, do brasileiro de classe
média, espalhado pelos mais diferentes e escondidos recantos do país. Em outra
carta a Carlos Drummond de Andrade, Mario afirma que os brasileiros
precisavam redescobrir o seu país, aprender com a experiência, analisar a arte
feita pelo povo, as tradições da terra, e misturar a estas às técnicas e influências
que vinham de fora. Só assim seria possível criar algo original.
Foi esta posição que Mario de Andrade adotou ao escrever Macunaíma
(1928). Na hora de retratar o povo brasileiro, o autor criou um anti-herói:
Macunaíma. Nada de um protagonista forte, corajoso e bom, como os índios das
narrativas românticas. Seu personagem não tem nenhum caráter, já que sua
origem não é pura, e é desprovido de uma essência. Sua personalidade é uma
mistura de traços bons e maus.
As idéias dos modernistas, porém, surgem num momento em que os meios
de comunicação ainda não tinham atingido as dimensões e a velocidade dos dias
de hoje. Em pleno século XXI, a Internet e a mundialização cultural fazem do
híbrido a regra. A facilidade de circulação entre os países, com as viagens, as
migrações, as diásporas; os avanços na comunicação, que possibilitam que
acontecimentos em lugares distantes e isolados sejam divulgados quase em tempo
real, e a Internet têm feito com que as culturas deixem de ser puras e recebam
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influências de fora. A mistura prevalece. E os marginalizados encontram espaço
para expressar a sua voz, além das fronteiras do seu país, nem que este tenha que
ser virtual.
Silviano Santiago, no texto “O cosmopolitismo do pobre” (2005), lembra
que nunca as culturas se misturaram tanto quanto hoje. No passado, eram os filhos
da aristocracia ou da burguesia ascendente que viajavam para o exterior, em busca
de um banho de cultura, do contato com as novidades que surgiam. Atualmente,
eles não são os únicos. Indivíduos de baixa renda migram para outros países em
busca de melhores oportunidades de vida e empregos. E estes grupos que vivem à
margem ganham voz em meios de comunicação como a Internet. O Movimento
dos Sem Terra (MST), no Brasil, por exemplo, que defende a reforma agrária, tem
um site na rede explicando todas as suas diretrizes. E os textos estão traduzidos
em seis línguas diferentes. Desta forma, eles podem se associar a movimentos
com causas similares existentes em diferentes países.
As fronteiras parecem elásticas, mas isto não significa que todos sejam
tratados como iguais. Que a idéia de centro e margem deixe de existir. Ocorre,
porém, uma movimentação, um deslocamento. Os conceitos deixam de ser rígidos
e estagnados. O centro e a margem mudam de lugar, de acordo com o ponto de
vista de quem fala. E a idéia de nação como um todo, incentivada pela elite ao
longo da história, divide espaço com o surgimento de comunidades imaginadas,
grupos pequenos, minorias que se unem, independentemente de fronteiras, por
afinidades.
Em vez da defesa única de um todo, as sociedades precisam se adaptar ao
surgimento destas pequenas associações, com indivíduos que se juntam buscando
interesses comuns, independentemente dos limites impostos pelas fronteiras de
seus países.
Ao perder a condição utópica de nação – imaginada apenas pela sua elite
intelectual, política e empresarial, repitamos – o estado nacional passa a exigir
uma reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto os seus novos moradores
quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico.
(Santiago, 2005, p. 60).
Segundo Renato Ortiz, no texto “Globalização, modernidade e cultura”
(2002), o surgimento de fronteiras elásticas e o aumento da troca entre diferentes
países não significam que o conceito de nação tenha deixado de existir, assim
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como a idéia de povo ou a de pertencimento a uma determinada cultura. Porém,
sua força não é tão grande e norteadora como no passado. Para os indivíduos de
hoje, há identidades e não uma única e soberana. A nação, segundo o autor, era a
fonte privilegiada da produção de sentido coletivo. Atualmente, ao seu lado,
caminham outras (etnias, minorias, culturas populares etc). Cada uma destas
concorre ou complementa a identidade nacional.
O conceito de comunidades imaginadas é elástico e o sentido de nação
passa a ser repensado. Há um desabrochar de identidades locais. Os termos
nacional e universal estariam, atualmente, sendo desconstruídos, repensados,
revistos a partir de seus antigos alicerces.
A nação se apresentava assim como um espaço dotado de autonomia capaz de
ordenar a sociedade nacional de acordo com sua historicidade, suas forças
econômico-sociais, enfim, suas contradições internas. O processo de globalização
redefine este quadro de equilíbrio. A modernidade-mundo é uma tendência que
extrapola as fronteiras nacionais. Isso não significa que o Estado-nação esteja
prestes a desaparecer. Apenas uma visão ideológica pode alimentar este tipo de
ilusão. Entretanto, a globalização retira muito de sua autonomia anterior. (Ortiz,
2002)
Segundo Ortiz, o declínio do Estado-nação teria inaugurado uma era de
fragmentação. O mundo contemporâneo seria, para o autor, constituído por
espaços desconexos, fragmentos distintos e, na maioria das vezes, independentes
uns dos outros.
Estas teorias podem ser observadas na afirmação de Garcia-Roza, citada
acima. Quando delineou a personalidade de seu delegado, o escritor se utilizou de
conceitos definidos pelas narrativas criadas ao longo da história, que unem os
brasileiros num único grupo: um povo, com origem, traços culturais e
comportamentais comuns. Mas isto não quer dizer que nos romances que criou
Garcia-Roza não tenha feito Espinosa passear por uma sociedade com fronteiras
elásticas ou se deparar com a existência de pequenos grupos, unidos por interesses
comuns. Seu delegado não tem uma identidade. Ele tem identidades. Assim,
Espinosa é também um morador de Copacabana, mais especificamente do Bairro
Peixoto, que cultua o seu bairro, recordando o passado e as transformações. É, só
para citar outro exemplo, um tira ético, que se associa aos poucos policiais
corretos que conhece na corporação. Enquanto os corruptos se unem para
defender interesses comuns e propinas.
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4.2
A narrativa policial no mundo sem fronteiras da Internet
Numa das cenas de Mandrake – A bíblia e a bengala (2005), de Rubem
Fonseca, o protagonista é entrevistado sobre o crime que investiga. A repórter
escreve para um periódico publicado na Internet.
Doutor Mandrake, ela falou com voz blandiciosa, o Tabloidepontocom é o jornal
mais lido da Internet, não somos uma reprodução de jornal de papel, essa coisa
lenta que já nasce defunta, esse caranguejo atarantado num mundo cibernético,
somos mais ágeis do que a televisão e com uma grande vantagem, não
precisamos mostrar novelinhas, biguebróderes e outros programas ordinários para
vender cerveja ou eletrodomésticos. Nosso lema é informar educando. (...) Ela
abriu a bolsa e tirou uma câmera digital. Posso fazer uma foto sua? Daqui a
pouco estará no nosso site. Sob a foto, um texto curto, aspas o Doutor Mandrake
não sabe quem é Carlos Waise ponto estará dizendo a verdade ponto de
interrogação envie sua opinião para o Tabloidepontocom fecha aspas. Só isso.
Gostamos de interagir com nossos leitores internautas. Uma foto só, da minha
câmera digital? (Fonseca, 2005, p. 74)
No trecho do livro, Rubem Fonseca retrata com ironia as peculiaridades da
mídia nos dias de hoje, ressaltando a velocidade da informação na rede e a ilusão
de que o leitor pode contribuir e interferir na produção da notícia. A comunidade
dos leitores internautas, defendida pela repórter, não tem fronteiras e compartilha
a preocupação de estar conectada, quase que em tempo real, com os mais
diferentes acontecimentos do mundo. A foto de Mandrake vai ser tirada e,
minutos, segundos depois, já pode estar acessível a milhares de leitores dos mais
diferentes países.
Segundo André Lemos, no ensaio “Cibercidade – As cidades na
cibercultura” (2004), a revolução tecnológica dos meios de comunicação trouxe
modificações na vida dos indivíduos. Hoje existe um espaço social virtual, uma
nova área de navegação e perambulação. E estar integrado à sociedade significa,
como no trecho transcrito acima, estar conectado. Não que as redes estejam
substituindo o contato no espaço físico, mas existe uma relação entre o real e o
virtual. O espaço virtual serve, portanto, para dinamizar a comunicação ou tornar
mais visível o que já existia. É sinal também, segundo o autor, de que as cidades,
atualmente, não se limitam aos seus espaços físicos, vão além de suas fronteiras.
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Estas características podem ser observadas na análise do romance policial
na Internet. O gênero, que, para muitos escritores, vem servindo para pensar a
sociedade em que vivemos, com temática urbana e ambientado em grandes
metrópoles, vem se disseminando pela rede mundial de informação. O boom do
policial pelo mundo chegou também ao espaço virtual. É onde os aficionados se
encontram, em páginas especializadas, para discutir o assunto, e onde as nuances
do gênero aparecem representadas.
O suplemento literário do jornal El País, Babelia, publicou no dia 23 de
julho de 2005 uma edição especial só com matérias sobre o romance policial.
Numa delas aparecem endereços e mais endereços de sites dedicados ao tema. Um
passeio por estes sites (ver lista de sites em referências bibliográficas) revela ainda
mais listas com endereços virtuais, nas mais diferentes línguas. Todos dedicados
ao assunto. Visitar estes ambientes é entrar em associações de apaixonados por
romances policiais, que se procuram, se unem, em prol de um interesse comum,
produzindo, assim, uma comunidade imaginada.
Nestas páginas há trocas de livros, críticas, entrevistas, discussões,
anúncios de encontros e seminários e ainda análises do gênero. É comum
encontrar leitores defendendo que o policial não pode ser considerado baixa-
literatura e que promove uma reflexão sobre a vida na sociedade de hoje.
Assim, logo na entrada do site Negra y Criminal
(www.negraycriminal.com), livraria especializada em romances policiais com
endereço real, em Barcelona, na Espanha, e virtual, encontramos uma definição
para o romance noir:
Nós ficamos com a definição de Paco Ignácio Taibo II: ‘um romance negro é
aquele que tem no seu coração um eixo criminal e que gera uma investigação. O
que acontece é que um bom romance negro investiga algo mais do que quem
matou ou cometeu o delito, investiga a sociedade onde os feitos acontecem.
Começa contando um crime e termina contando como é esta sociedade.
(
www.negraycriminal.com – acesso em maio de 2006)
A página apresenta ainda um mural de fotos de eventos promovidos na
livraria real. Nelas, escritores e apaixonados pelo tema posam, vestindo uma blusa
negra com o nome do espaço, dando a impressão, ao internauta, de estar vendo os
integrantes de uma seita. Eles formam a imagem de uma comunidade, unidos por
uma paixão comum.
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O site apresenta também uma gama de filmes e livros com temáticas afins,
como clássicos do noir imortalizados pelo cinema, seriados sobre espiões,
crônicas, dicionários e até ensaios e publicações sobre crimes reais. Segundo a
justificativa do próprio espaço:
Para nós, romance negro, romance policial e romance de intriga (dedutivo) não
são suficientes para descrever todas as especialidades que gostamos e que o leitor
poderá encontrar em nossa livraria. (...) Acreditamos que aqui convivem
tendências, escolas e gostos diferentes. Só temos um único limite: o
aborrecimento. (www.negraycriminal.com – acesso em maio de 2006)
A definição acima mostra uma tendência comum aos sites dedicados ao
gênero: a apresentação de uma série de subdivisões para o romance policial. Os
teóricos do tema costumam apresentar duas: o negro e o dedutivo, também
chamado como de enigma ou clássico. Alguns defendem ainda uma terceira: o
romance de suspense, que mesclaria características dos dois primeiros. Mas na
Internet aparecem listas de livros policiais com advogados como protagonistas,
com personagens negros, temática gay etc. É o policial das minorias, que encontra
o seu espaço de representação na rede.
O gènerenegre.net
(http://es.geocities.com/biblioteca_bobila/generenegre.html), por exemplo,
proporciona ao leitor um passeio, como escrito na página, pela biblioteca La
Bòbila de L’Hospitalet (Barcelona). Por lá é possível encontrar uma série de
autores divididos por ordem alfabética e uma seleção das, segundo o espaço,
“melhores páginas” dedicadas ao policial na Internet. Numa lista, aparecem 71
links para sites dedicados ao gênero, em diferentes línguas. Eles são separados em
subdivisões de acordo com o tema. Há, por exemplo, a indicação de sites sobre
policiais com temática histórica, femininos (com detetives do sexo feminino ou
escritos por mulheres), dedicados ao policial de humor e destinados a cultuar
romances negros de minorias (com temática lésbica, escritos por autores negros,
judeus etc).
Em MystNoir (http://mystnoir0.tripod.com/MystNoirDir/), presente na tal
lista de romances negros de minorias da gènerenegre.net, o leitor encontra uma
página dedicada a novelas de suspense escritas por afro-americanos. O objetivo é
atualizar o internauta sobre recentes lançamentos. Na parte destinada à
apresentação, a fundadora, Angela Henry, justifica a existência da página dizendo
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que sempre foi uma amante da literatura noir, mas ficava intrigada por só
encontrar alguns personagens negros, como ela, nas histórias. No início dos anos
90, numa de suas muitas incursões a bibliotecas, ela descobriu uma grande autora
negra de policiais e, nos anos seguintes, que mais e mais americanos afro-
descendentes se aventuravam em escrever livros sobre o assunto. O espaço,
portanto, divulga esta produção.
O internauta pode encontrar também uma lista de detetives gays em
http://www.wright.edu/~martin.kich/DetbyProf/Gay.htm, com o nome de seus
respectivos criadores. O endereço está interligado à página do professor de inglês
Martin Kich, da Wright State University. Além da lista de detetives gays, ele
mantém uma relação com diferentes tipos de investigadores, divididos em
classificações como profissionais, amadores, femininos e animais (clicar neste
link significa encontrar uma relação de animais detetives presentes na literatura de
mistério).
Observar estes endereços é como comprovar as teorias defendidas por
Renato Ortiz, no texto “Globalização, modernidade e cultura” (2002). Os sites
mostram um movimento no gênero policial de buscar um maior número de
subdivisões e especializações. O fato parece refletir uma necessidade existente na
sociedade de hoje. A personalidade dos indivíduos passou a ser composta por uma
série de identidades. Muito mais do que pertencer a um grupo macro, que abarca
as características e os traços de uma nação, ganha importância a identificação com
pequenos grupos, minorias que se juntam em prol de interesses comuns. É o caso,
por exemplo, de Angela Henry, fundadora do site MystNoir. Sua página defende
sua personalidade e identidade.
A preocupação com o nacionalismo parece perder força. E, a ela, se agrega
a existência de uma série de pequenos grupos com interesses comuns. Não é só
fazer parte de uma nação, de uma cultura, mas também (e às vezes é até mais
importante) pertencer a um grupo específico, se identificar com uma causa.
No início de 2006 foi criada a primeira livraria especializada em
publicações policiais, de mistério e suspense no Brasil: a Livraria do Crime,
sediada em São Paulo, mas com endereço virtual (www.livrariadocrime.com.br).
No site é possível encontrar um local dedicado a notícias relacionadas ao tema,
atualizadas sempre e colhidas em jornais do Rio e de São Paulo. Além de
entrevistas com escritores, há uma relação de detetives famosos, anti-heróis,
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biografias, lançamentos e livros à venda. O internauta encontra ainda um sebo e
um espaço batizado de cemitério vivo (“livros usados, com textos em bom estado
e capas nem tanto”).
A página está escrita em português, com a indicação de sua cidade-sede na
apresentação, mas o conteúdo não difere muito do Negra y Criminal, por exemplo,
livraria sediada em Barcelona. Nem o visual do site, nem o conteúdo de suas
muitas seções parece apresentar uma particularidade, um traço que marque a sua
nacionalidade. A lista de detetives abarca investigadores das mais diferentes
nacionalidades, como o delegado brasileiro Espinosa, de Garcia-Roza; o francês
Auguste Dupin, de Poe; o americano Nero Wolfe, de Rex Stout; o espanhol Pepe
Carvalho, de Manuel Vázquez Montalban, e o belga Hercule Poirot, criado por
Agatha Christie. Entre os escritores entrevistados pelo próprio site, estão nomes
como o do músico e escritor Tony Bellotto, criador do detetive Remo Bellini, e do
americano Lawrence Block.
Mas, ao entrevistar autores nacionais, a repórter da livraria toca no tema.
Tony Bellotto, por exemplo, perguntado sobre a repercussão do policial no país,
afirma: O gênero policial tem se disseminado lentamente no Brasil. Nos últimos
anos ganhou força, com livros que criam um romance policial
‘brasileiro’”(www.livrariadocrime.com.br – acesso em maio de 2006). O escritor
Robinson dos Santos, autor de Souvenir Iraquiano, complementa:
O brasileiro não se enquadra no enredo fim do mundo, que é típico do romance
anglo-saxão, tampouco nas narrativas sobre guerras nucleares. Isso não nos afeta.
Em Souvenir Iraquiano, por exemplo, o brasileiro é a personagem que tem seu
caminho cruzado com ações desenvolvidas por um agente da CIA. Isso pode ser
real. Nós, brasileiros, fazemos parte deste mundo e nossas ações também
interferem na história. (www.livrariadocrime.com.br – acesso em maio de 2006)
Como Silviano Santiago defende no texto O cosmopolitismo do pobre
(2005), o estado nacional hoje passa por uma reestruturação e os habitantes
marginalizados reivindicam sua incorporação no mundo. É o que Robinson parece
dizer com sua afirmação. Os brasileiros, vindos da margem, podem apresentar
peculiaridades, não se interessar por ameaças nucleares, por exemplo, que estão
longe de sua realidade. Mas estão incorporados ao mundo e fazem parte de sua
história. As fronteiras, segundo sua visão, são elásticas e um detetive nacional
pode ter seu caminho cruzado com um agente da CIA. A margem, no dias de hoje,
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tem voz, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, citado por Santiago, e
participa mais ativamente do mundo. Não que o conceito deixe de existir. Mas sua
posição ganha movimentação. Centro e margem passam a ser repensados e,
atualmente, mudam de lugar, de acordo com o discurso.
A afirmação de Robinson classifica ainda o brasileiro como um indivíduo
cosmopolita, já que participa do mundo, circula por ele, e cujas ações podem
modificar e interferir na história internacional. No site, a preocupação com a
identidade nacional está representada em entrevistas como as de Tony Belloto e
Robinson dos Santos. Mas o interesse pelo policial vem em primeiro lugar. Na
associação dos amantes do gênero não há fronteiras, publicações nacionais e
estrangeiras dividem o espaço de igual para igual. Quem acessa a livraria virtual
está interessado em obter informações sobre as tramas de mistério e não apenas
sobre o mercado policial no país ou as nuances que este pode adquirir em terras
brasileiras.
Em alguns livros do gênero, podemos encontrar as mesmas preocupações
refletidas. Para Mandrake, o advogado de Rubem Fonseca, a cidade são os seus
habitantes. No momento em que visita uma amiga italiana na companhia do
delegado Raul, o protagonista afirma:
Você não gostaria de morar num apartamento igual ao dessa puta velha italiana,
ter diariamente à sua frente aquela paisagem deslumbrante? Respondi que
Caterina não era uma puttana, era uma condessa das mais ilustres, e que a tal
paisagem fascinantes era para desfrute das visitas, mero exibicionismo, ninguém
agüentava ver aquela coisa monótona. Eu gosto das paisagens da nossa cidade
disse Raul. Respondi que a cidade para mim eram as pessoas, se me pedisse para
descrever a minha cidade eu falaria das pessoas. (Fonseca, 2005, p. 129)
No livro, Mandrake circula por uma cidade internacional. Para ele, as
metrópoles são as pessoas, e, na trama descrita, circulam italianos, ricos
colecionadores de livros que pulam de país em país atrás de novidades e
esportistas que escalam picos internacionais com freqüência. Mas na história, há
também Mandrake, que trabalha por dinheiro, freqüenta o submundo e tem uma
empregada cujo único sonho é comprar uma casinha com uma mangueira no
quintal. Ele recebe cartões-postais de uma das colecionadoras de livros raros,
cada um de um país diferente; convive com uma elite cosmopolita, mas, ao ser
convidado para uma excursão num pico uruguaio, escuta o comentário: “Você
está louca, Bárbara, disse Mariza, irritada, aquela excursão não é para amadores,
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já morreu muita gente lá, se o Mandrake quer subir algum pico que suba o da
Tijuca” (Fonseca, 2005, p. 149). Mandrake lê cinco jornais internacionais
diariamente, mas, na hora de cruzar fisicamente as fronteiras, precisa ouvir que
tem competência para, no máximo, subir o pico da Tijuca. Os personagens
mostram, portanto, diferentes tipos de cosmopolitismo. E, na história, as nuances
entre local e global parecem regidas pelo dinheiro.
Garcia-Roza já afirmou que quis reforçar os traços nacionais de seu
delegado Espinosa e, nos romances que escreve, faz questão de detalhar a cidade
ao máximo, especialmente o bairro de Copacabana, onde mora. O delegado odeia
computadores, não viaja e faz questão de percorrer seus trajetos a pé. O autor
descreve seu personagem como um romântico saudosista, que freqüentemente
aparece lembrando os bons tempos do bairro onde mora. Seu nacionalismo, a
ligação com o país em que vive e o cultivo de características que, segundo o
próprio autor, seriam típicas de um brasileiro, parece ligado a uma recusa em
aceitar as mudanças na sociedade e os avanços tecnológicos.
Mas em sua rotina passeiam pessoas como a ex-mulher e o filho, que
vivem no exterior; a namorada Irene, viajada, rica, independente, e os sem-tetos,
as prostitutas e os meninos de rua, além de uma série de indivíduos agrupados em
pequenas comunidades, que, por exemplo, se unem pelo dinheiro, defendendo uns
aos outros em nome de propinas e interesses comuns. Para estes, a preocupação
com a comunidade imaginada da nação parece esvaziada, ocupada por uma série
de outras identidades que se sobrepõem.
Todos os dois personagens, Mandrake e Espinosa, apesar de parecerem
opostos na descrição, vivem numa sociedade regida pelo dinheiro, de fronteiras
elásticas, onde a preocupação com a nação, com os interesses comuns de seu país,
parece enfraquecida. Espinosa é um romântico saudosista, que cultiva seus hábitos
cariocas, mas precisa se deparar diariamente com uma realidade dura. Mandrake
aceita as fronteiras elásticas da sociedade em que vive, composta por pessoas, não
importa de que nacionalidade. Mas, em alguns momentos, se depara com
discursos e situações que o ligam ao país onde mora.
Em “Dez anos desinventando a nação” (2005), Vera Lúcia Follain de
Figueiredo analisa que a idéia de nação como um projeto comum perdeu a força
nos dias de hoje. Há ainda, a figura do passaporte, é lógico, lembrando uma
identidade nacional em certas ocasiões. Enquanto a elite mundial cosmopolita
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circula pelo mundo sem problemas, emigrantes que se mudam em busca de
melhores condições de vida são constantemente lembrados de seus limites.
Compõem, na maioria das vezes, uma classe de excluídos nos países que
escolheram habitar, encontrando fronteiras rígidas. Não que estas tracem os
limites de uma nação, mas territórios, reforçam diferenças e, principalmente,
recordam que estes indivíduos não são iguais aos habitantes nativos. Na condição
de estrangeiros, porém, não lutam por uma causa comum à sua nação, defendem
os interesses de um grupo. “No caso da nação de origem, o movimento migratório
aponta para o afrouxamento dos laços internos, para a descrença no ideal de
construção de um projeto coletivo, que implicaria, em princípio, o compromisso
de todos.” (Figueiredo, 2006, p. 88)
Para a autora, o que rege este desequilíbrio – a extraterritorialidade do
poder e a territorialidade da vida do homem comum – é a cultura do dinheiro. Os
valores flutuam, soltos, sem a regência de governos nacionais. Vera Follain fala
de um mundo em que a preocupação com o nacional se esvaziou, enquanto que a
idéia de cosmopolitismo parece passar por revisões.
Há o cosmopolitismo da elite, que circula pelo mundo, aproveitando as
facilidades de locomoção dos meios de transporte modernos, que participa dos
avanços da globalização e das novas tecnologias. E há o cosmopolitismo do
pobre, tão bem definido por Silviano Santiago, que pode migrar para outros países
em busca de melhores oportunidades, mas que encontra em terras estrangeiras
subempregos. Esta margem, porém, pode soltar sua voz, exigir seus direitos, em
meios como a Internet. Os conceitos de local e global, nacional e cosmopolita,
portanto, sofrem revisões, assim como a idéia de centro e margem.
Em ambos os casos, a idéia de nação, como uma comunidade imaginada,
que une diferentes indivíduos – com origem, cultura e traços comuns – em prol de
uma causa coletiva parece esvaziada. As identidades nacionais precisam conviver
com uma série de outras, que completam a identidade de um indivíduo.
Nos sites analisados, dedicados ao romance policial, é possível notar que o
gênero reflete estas mudanças na sociedade. A preocupação em noticiar este tipo
de narrativa, independentemente da nacionalidade do autor e do local em que se
desenvolve a trama, prevalece sobre a análise da produção nacional na página da
Livraria do Crime, a primeira brasileira dedicada ao policial. No espaço as
fronteiras elásticas aparecem retratadas e a defesa da comunidade dos
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apaixonados pelo gênero se sobrepõem à preocupação com a identidade nacional.
O site não difere muito da página na Internet da livraria espanhola Negra y
Criminal, de Barcelona.
As muitas subdivisões do gênero, que aparecem espalhada numa série de
sites especializados, comprovam a necessidade de pertencer a pequenos grupos,
que defendam interesses específicos. É o caso das páginas especializadas em
tramas policiais escritas por afro-descendentes, mulheres, judeus ou
homossexuais. Ao lado da idéia de nação, de uma ligação local, passaram a
caminhar outras identidades (etnias, minorias, culturas populares etc), que
produzem uma noção de sentido ao indivíduo. Cada uma destas concorre ou
complementa a identidade nacional.
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Conclusão
A edição número 21 da revista EntreLivros, publicada em janeiro de 2007,
traz uma entrevista com o argentino Ricardo Piglia. Entre os muitos temas
abordados Piglia fala sobre as vezes em que adotou gêneros populares em seus
escritos. O único texto policial do escritor é o conto “A louca e o relato do crime”
(1989), mas em muitas obras, alguns dos recursos e elementos do policial estão
presentes, como em Respiração artificial (1987) e Dinheiro queimado (1998).
Para ele, a justificativa para a incorporação do gênero é clara: “O mundo das
transgressões diz mais sobre a verdade da sociedade do que o mundo da lei
estabelecida” (EntreLivros, número 21, 2007, p. 17).
Além de ser um formato atraente e consagrado, que agrada a um grande
número de leitores, a opção pelo policial tem um objetivo claro para Piglia: pensar
a sociedade. Para ele, ao lidar com as transgressões o gênero deixa transparecer as
motivações que levam um indivíduo a burlar a lei e, desta forma, acaba por
revelar também valores, aspirações, medos e desejos que movem toda uma
sociedade. Atrás de um crime enxergamos também a forma como o homem reage
ao dia-a-dia de uma metrópole.
Só para citar alguns exemplos, recorrendo aos textos de Garcia-Roza
analisados nesta dissertação, há a ameaça do outro que pode atacar, de repente,
saído de uma multidão de pedestres e rostos desconhecidos, como no caso do
arquiteto de Espinosa sem saída (2006), que mata um sem-teto como quem busca
proteger o seu mundo privado. Há a personagem Celeste, de Uma janela em
Copacabana (2001), que assassina seis pessoas em busca de dinheiro.
O outro, o desconhecido, a violência repentina e sem defesa não
amedrontam apenas o arquiteto da história de Garcia-Roza. O dinheiro também
move toda a sociedade contemporânea e não apenas as ações de Celeste. Como
defende Piglia, portanto, além de retratar a paisagem urbana em suas histórias, de
falar da vida numa metrópole, as narrativas refletem valores, motivações e anseios
que acabam por mover a sociedade contemporânea.
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Mas, se nos romances dedutivos, onde o detetive resolve um mistério
usando métodos analíticos de investigação, a transgressão revelava uma cidade
regida por rígidos padrões de certo e errado, nos policiais contemporâneos as
verdades caíram por terra e, muitas vezes, ao final de uma história, o detetive tem
dúvidas em relação à identidade do criminoso. O assassino pode até acabar o
relato sendo visto como uma vítima das circunstâncias, como a personagem
Letícia, de Perseguido (2004), que mata o pai para dar fim à onda de crimes que
ele cometeu dentro da família. O assassino deixa de ser o inimigo público, que
acaba com a ordem de toda uma sociedade, e passa a ser um homem comum, que
cometeu um delito, num mundo onde a ordem parece ser precária.
Como foi visto ao longo do trabalho, o gênero policial pode servir como
mediação para a leitura da cidade e das transformações vividas pelo mundo
urbano. Os primeiros contos de Edgard Allan Poe já refletiam formas de vida e
anseios dos homens da época. Os romances negros acabaram com a vitória do
bem contra o mal e levaram o detetive para a ação, para dentro das ruas da cidade,
investigando crimes em razão da profissão que abraça, e não como um simples
hobby. O mal passou a estar em toda parte, todos podiam ser corruptíveis e eram
suspeitos dos crimes cometidos. Tudo isso num momento em que o mundo
afundava na desesperança. Em O que é romance policial (1987), Sandra Reimão
afirma:
É importante notar que esta reviravolta proposta pelo romance ‘Série negra’ é
feita numa época em que o mundo está em ‘reviravolta’. Estamos (nos inícios dos
romances americanos) às vésperas da Segunda Grande Guerra, às vésperas o
crack da Bolsa de 1929. E, ao nível das idéias, estamos presenciando uma
importância crescente da filosofia de Nietzsche, do vitalismo de Bergson, da
psicanálise e os primórdios de Existencialismo, que engendram um clima cultural
que se opõe ao otimismo racionalista oriundo do Positivismo. (Reimão, 1983, p.
54/55)
Como assegura Sandra Reimão, de um mundo onde tudo pode ser
explicado pela razão passamos, no século XX, para uma sociedade onde nenhuma
explicação parece suficiente. A dúvida está sempre presente. Na frase que abre
esta conclusão, Piglia cita a verdade da sociedade. Mas num mundo onde as
certezas passaram a ser individuais, subjetivas, é possível defender a existência de
uma verdade única? Os finais em aberto, presentes em muitos dos textos policias
contemporâneos, parecem levantar esta questão. O fim da história chega e a
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identidade do assassino, muitas vezes, continua sendo um mistério. É o caso de
Uma janela em Copacabana. O delegado Espinosa (como já foi descrito neste
texto) explica para a namorada Irene que, apesar de ter certeza de conhecer o
assassino, não pode garantir que tenha descoberto a verdade. Para o delegado,
toda certeza é íntima e, portanto, subjetiva. “Certeza não é verdade” (Garcia-Roza,
2001, p. 218), defende o policial.
No mundo dos detetives dedutivos as certezas eram absolutas. Pouco
importa a personalidade do investigador e seus anseios, só o que interessa é que o
mal seja extirpado e a ordem da sociedade, restabelecida. Nas histórias de Edgard
Allan Poe, escritas no século XIX, Dupin sempre descobre a verdade. Tudo estava
definido por rígidos padrões e o leitor assiste à descoberta do culpado e à sua
condenação. No mundo de Espinosa isso não acontece, porque não há uma ordem,
assim como não há uma verdade definida e concreta. Tudo parece relativo e o
indivíduo vaga em busca de sentido.
No fim de Espinosa sem saída (2006), por exemplo, o delegado interroga o
principal suspeito dos crimes cometidos, o arquiteto Aldo Bruno. Num relato sem
interrupções, derrama sua versão da história, acusando Bruno de ter matado o
sem-teto e a própria esposa. Ouvindo tudo calado, o arquiteto tem um colapso
nervoso e é internado numa clínica.
O assassinato de Camila estava fora de sua alçada, mas o de Elias fora cometido
debaixo do seu nariz. Espinosa achava provável que Aldo algum dia viesse a
saber o que realmente acontecera naquela rua sem saída. Mas Espinosa não era
psiquiatra, seu interesse não era o distúrbio emocional de Aldo Bruno, e sim o
fato de ele ter matado duas pessoas. Uma semana mais tarde telefonaram do
hospital avisando que o arquiteto Aldo Bruno teria alta na manhã do dia seguinte.
Ás oito horas de uma bela manhã de final de verão, Espinosa e Welber estavam
na recepção do hospital para receber Aldo, mas ele se enforcara durante a noite.
(Garcia-Roza, 2006, p. 210)
Mais uma vez, a única coisa que o delegado tem é certeza íntima. Mas a
verdade não chega a ser descoberta. Não há uma confissão do assassino, nada
ficou comprovado. Apesar da história amarrada, com começo, meio e fim, contada
por Espinosa, não há provas. A dúvida está sempre presente. O próprio título do
livro faz o leitor pensar sobre o assunto: Espinosa está sempre sem saída. Em
todos os seus romances, ele termina sem conseguir provar suas suposições e
teorias. Os enigmas nunca chegam ao fim.
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O detetive não pode mais ser o dono de uma verdade absoluta, como os da
narrativa de enigma. Isto porque, numa cidade que muda a todo momento, que é
impossível de ser captada de uma forma totalizadora, só resta a dúvida, um ponto
de vista parcial. Nesta sociedade em que não há mais certezas de nada, o enigma
nunca é desvendado por completo.
O leitor encontra nas tramas policiais contemporâneas um formato
familiar, atraente e prazeroso. Mas uma leitura mais refinada pode revelar
questionamentos sobre a vida nas metrópoles e os seus efeitos nos indivíduos. A
identidade do assassino pode perder a importância, se a intenção é, por exemplo,
refletir a falta de narrativas, certezas ou explicações que justifiquem e dêem
sentido à vida dos homens, num tempo onde tudo parece passar rapidamente e
todos parecem substituíveis.
Duas imagens podem servir para retratar as transformações que
encontramos ao analisar a cidade que transparece em dois momentos do gênero
policial: nos textos dedutivos e no policial contemporâneo. São a figura da linha
reta e a do labirinto, com caminhos que se bifurcam, aparentemente sem saída. As
duas são usadas por Jorge Luís Borges em “A morte e a bússola”, como foi
demonstrado num dos capítulos desta dissertação. O detetive da história rechaça o
acaso e o turbilhão de habitantes de uma cidade, para seguir as pistas que levam a
um enigma descrito como uma linha reta. Mas ao fim da trama se vê perdido, sem
escapatória, numa casa que é como um labirinto. Da certeza absoluta dos
primeiros contos policiais, passamos para a dúvida constante que transparece nas
narrativas contemporâneas.
E o detetive, em vez de a imagem da ordem, que caminha para afastar o
mal e restabelecer a tranqüilidade da sociedade, passa a refletir a incerteza, a
busca constante e a luta individual pela permanência, num mundo onde tudo
parece transitório. Como Nelson Brissac afirma em Cenários em ruínas (Brissac,
1987), ao seguir as pistas de um crime o detetive busca a sua própria identidade;
ao cultivar a solidão, se proteger da corrupção que se espalha por toda parte; ao
circular por becos escuros e ruas, ler a própria cidade.
Os romances contemporâneos, portanto, continuam refletindo e levando o
leitor a pensar numa série de questões da atualidade, como a ética nos dias de
hoje; a forma como o homem luta por sua permanência no tempo, cultivando o
passado e a história; a valorização do mundo privado; os relacionamentos
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humanos; a solidão e a ocupação do espaço urbano. Os elementos presentes nas
histórias encontram, portanto, paralelo na realidade.
No livro Formas breves (2004), Ricardo Piglia afirma que o gênero,
inventado por Poe, inundou o mundo contemporâneo. Segundo ele, encaramos a
vida nas metrópoles segundo suas premissas. Isto porque as narrativas de mistério
tratam, ao longo da história, da relação entre lei e verdade. A única certeza que o
leitor tem ao final destas é a de que não há verdades e nem mentiras nas tramas
policiais. É tudo música urbana, como na letra escrita por Renato Russo, Música
urbana 2, cujo trecho serve de epígrafe para este estudo.
Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,/ Nas ruas os
mendigos com esparadrapos podres/ Cantam música urbana,/ Motocicletas
querendo atenção às três da manhã./ É só música urbana./ Os PMs armados e as
tropas de choque vomitam música urbana./ E nas escolas as crianças aprendem a
repetir a música urbana./ Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música
urbana./ O vento forte seco e sujo em cantos de concreto/ Parece música urbana./
E a matilha de crianças sujas no meio da rua./ Música urbana./ E nos pontos de
ônibus estão todos ali: música urbana./ Os uniformes/ Os cartazes/ Os cinemas/ E
os lares/ Nas favelas/ Coberturas/ Quase todos os lugares./ E mais uma criança
nasceu./ Não há mentiras nem verdades aqui/ Só há música urbana. (Russo, 1982)
Renato Russo procura fazer, na letra de sua música, fotografias da cidade
contemporânea. Ele vai captando imagens e o conjunto destes fragmentos procura
dar conta do cotidiano de um centro urbano. Ao fundo, quem escuta a canção,
pode perceber a sua harmonia e que a letra não encaixa perfeitamente com o
instrumental. O cantor ainda desafina em alguns trechos. É como se a intenção
fosse demonstrar que a ordem racional e perfeita da cidade é quebrada por uma
série de ruídos, dissonâncias e desafinações da sociedade contemporânea. Todas
estas quebras fazem parte do dia-a-dia da metrópole e precisam estar incorporadas
à melodia.
A letra procura dar conta, em pequenos recortes, numa sucessão de
imagens espocadas, da diversidade e das contradições de uma cidade. Há favelas e
coberturas, crianças nas escolas e PMs armados em tropas de choque, viciados
procurando satisfação e vidas surgindo, mendigos com esparadrapos podres. E o
som das TVs, das motocicletas, dos bebês, do vento e dos cinemas fazem, juntos,
um panorama dos ruídos da metrópole.
Onde está a ordem nesta cidade contemporânea? A razão deixa de explicar
e reger a sociedade e não há mais uma verdade absoluta, não há mais uma
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profundidade a ser atingida. A significação parece estar no conjunto de superfícies
que se cruzam. Como faz Renato Russo em sua música. O cotidiano da metrópole
está retratado na soma de imagens que são apresentadas. E o conjunto de seus
fragmentos compõe este dia-a-dia. Não há verdades ou mentiras, só música
urbana, os elementos desta cidade.
Da mesma forma, os textos de Garcia-Roza deixam transparecer imagens
que retratam a vida na sociedade contemporânea. O escritor e sua obra foram
usados neste estudo como um exemplo, para demonstrar que os elementos
característicos do gênero vêm sendo ultrapassados e as tramas acabam por refletir
uma série de questões.
Nas narrativas de Garcia-Roza, encontramos um detetive, uma
investigação, um crime, um assassino. Mas a solução dos casos nunca acontece. E,
em suas andanças pela cidade, o investigador não está buscando apenas as pistas
que o levariam à identidade do assassino, mas também as peças que compõem o
seu próprio passado e as paisagens e estabelecimentos que podem reforçar e
ressaltar sua personalidade. Estas quebras nos padrões do gênero são propositais e
acabam por levar o leitor a refletir sobre a cidade e a sociedade onde vive. O
autor, portanto, vai além das fórmulas policiais. E, como afirma Martin-Barbero,
em Dos meios às mediações (2003), ao propor uma série de reflexões, borra as
fronteiras do gênero, mesclando elementos da cultura de massa com
características da alta literatura.
Assim como faz a música de Renato Russo, os textos de Garcia-Roza
também apresentam flashes que procuram dar conta da paisagem urbana. O leitor
se depara com imagens fragmentadas, que remetem, na combinação de seus
elementos, ao todo da cidade. Espinosa circula principalmente pelo bairro de
Copacabana. É lá que ele se depara com policiais corruptos cotidianamente, mas
procura não se deixar contaminar e se manter ético. Mas a ética do detetive
também não é definida por rígidos conceitos de certo e errado. O investigador é
tocado pela emoção, leva em conta a presença do outro e decide qual decisão
tomar analisando cada caso separadamente. Sua ética deixou de seguir valores
absolutos para adotar padrões relativos. É por ali também, nas ruas do bairro, que
Espinosa se depara com mendigos, prostitutas, turistas e representantes da alta
sociedade, diferentes tipos humanos que dividem o espaço urbano.
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Este pequeno trecho da cidade, o bairro de Copacabana, procura, portanto,
servir de exemplo para falar do Rio de Janeiro como um todo. E, por sua vez, o
Rio serve de exemplo para pensar a vida num centro urbano contemporâneo.
Este cenário urbano, que transparece nas páginas dos romances policiais,
estaria em ruínas, como sugere Nelson Brissac no título de seu livro, Cenários em
ruínas (1987)? Nos textos analisados Copacabana é um bairro em ruínas? Os
valores estão em ruínas? As certezas? Os sentidos? Garcia-Roza apresenta um
mundo que a razão não dá conta de explicar. Portanto, as verdades absolutas, os
rígidos valores de certo e errado, as certezas inquestionáveis e as explicações
totalizadoras ruíram, corroídas pela dúvida e pelos os questionamentos.
No livro, Brissac usa o detetive como um personagem pop, para falar da
busca dos próprios indivíduos, perdidos num labirinto que parece sem saída.
Como Espinosa ao fim de seus romances, só com certezas subjetivas, que se
enquadram num mundo de dúvidas.
Assim, como em Música urbana 2, todos estes elementos e fragmentos da
cidade, que transparecem nos romances policiais, compõem, juntos, o cotidiano de
uma metrópole e propõe uma reflexão sobre os mesmos. Ao longo deste estudo,
acompanhamos os passos do detetive pela cidade, sua solidão, o esforço em
marcar sua história e sua origem, o culto ao passado, a violência que toma conta
da metrópole, os relacionamentos afetivos sem consistência, a sua ética. É tudo
música urbana, como a letra do grupo Legião Urbana. Buscou-se aqui, captar
alguns acordes, dissonâncias, silêncios, ritmos, que se articulam à vida da cidade.
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