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deformar. Ao lado desse ideal de liberalismo do século XVIII, no século XIX,
através de Goethe e do romantismo, por um lado, e através da divisão econômica
do trabalho, por outro, outro ideal se levantou: os indivíduos liberados de
vínculos históricos agora desejam distinguir-se um do outro. A escala dos valores
humanos já não é constituída pelo ser humano geral em cada indivíduo, mas antes
pela unicidade e insubstituibilidade qualitativas do homem (Simmel, 1902, p. 27).
Na vida profissional esta busca pela diferença trouxe uma enorme
especialização. Num mundo onde tudo parece descartável e substituível, investir
no detalhe é aumentar as chances de garantir o seu lugar no mercado de trabalho.
Na vida pessoal, se diferenciar significou cultivar gostos específicos, decorar o
ambiente com objetos que afirmem as características do indivíduo, que contem a
sua história e ressaltem sua personalidade. Para Simmel, é preciso exacerbar o
lado pessoal até para que o homem permaneça perceptível para si próprio. Assim,
ele consegue se descolar da massa e enxerga os contornos de sua personalidade.
Na residência o homem, assim como o detetive, sabe quem é, mesmo num mundo
onde não há mais discursos sólidos que expliquem a origem, a nacionalidade e a
identidade. Por isso, a importância de proteger e valorizar este ambiente.
Espinosa é o retrato do indivíduo solitário. Vive sozinho, num apartamento
que herdou no Bairro Peixoto, cheio de recordações e marcas que remetem ao
passado. Os cômodos da casa guardam apenas a memória dos parentes que ali
viveram. Da avó, que criou o menino órfão, restaram os livros. Da ex-esposa e do
filho, constantes lembranças. Até a descrição da geladeira do delegado, com seus
restos de comida, marca a sua falta de convívio. Sem ter com quem dividir uma
refeição, seu congelador está sempre abastecido de comida congelada, que ele
incrementa, vez ou outra, com quibes e esfihas comprados na mesma lanchonete
do bairro. No primeiro livro do personagem, O Silêncio da chuva (1997),
Espinosa define a sua condição:
A história com a primeira mulher entornara antes mesmo de se casarem. (...) Ela
apontara pelo menos uma dúzia de razões para ele não entrar para a polícia.
Mesmo assim, fez o concurso e foi aprovado. Casaram-se. Um ano depois, nascia
o filho. O casamento terminou ao mesmo tempo em que ela terminava o curso de
direto. Durara quatro anos. Enquanto pensava em tudo isso, acendia as luzes do
apartamento, sem nenhuma razão aparente além da necessidade de esclarecer a si
mesmo. (...) Tomou um banho demorado, desembrulhou um sanduíche dito
natural, que estava na geladeira, abriu uma cerveja, esticou-se no sofá da sala e
começou a pensar na morte, não na idéia abstrata da morte, mas em quanto tempo
ainda teria de vida. Isso aos quarenta e dois anos, numa noite de sábado, num
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