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“inautênticas”, como o palavreado, a tagarelice e a curiosidade (e aí incluiria os
rumores), que são, segundo Heidegger, formas de “corrupção do discurso”, formas do
senso comum de escapar do auto-conhecimento do Dasein. O apego a essas formas
reforça a impessoalidade trivial do modo mundano do ser-entre-os-outros. Quando tudo
se torna acessível a todos, numa faticidade disforme e indiferente, as coisas-à-mão
tornam-se mais e mais instrumentalizadas, o que gera uma opacização na relação
estabelecida entre o ente e suas crenças
18
.
Mas voltaremos a essa questão mais adiante quando investigarmos as relações
possíveis entre as diferentes visões de verdade e a prática das lendas urbanas. Por
enquanto, sigamos buscando entender o que significa, então, para Heidegger, ser
autêntico. Ora, não se trata de buscar um Ser essencial, subjetivizado, isolado do mundo
e frente a frente com sua própria individualidade. Antes, trata-se de compreender a
natureza autenticamente incompleta e fragmentada do Ser em sua totalidade, visto que
este é marcado por uma falha constitutiva do próprio estar-no-mundo. Para ser
autêntico, o ente precisa se abrir para a liberdade de deixar-ser, deixar as coisas se
revelarem como são. Ele precisa se descobrir, paradoxalmente, como irremediavelmente
inautêntico, vivendo imerso num universo de coisas prontas-à-mão. A inautenticidade,
dessa forma, não é um mero erro ou desvio moral, mas parte integrante da existência
autêntica.
É mesmo na abertura à revelação – como descobrimento, desvelamento – que se
coloca a questão da verdade
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. Para Heidegger, a verdade está indissocidada do Ser que
a desvela, não sendo esta, portanto, uma propriedade independente das coisas. Toda a
verdade é relativa ao Ser do Dasein. A verdade existe necessariamente em função do
Dasein, pois à medida em que busca o entendimento de si mesmo, o homem abre
caminho para o desvelamento da verdade.
Heidegger ilustra essa proposição tomando como exemplo as leis de Newton. A
descoberta de tais leis, segundo o autor, só é possível como resultado da projeção da
existência historicamente situada do Dasein, a qual pode nos desvelar um aspecto
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Comentando o conceito de “mundanidade” de Heidegger, o sociólogo Michel Maffesoli coloca a
questão nos seguintes termos: o “ser-aqui” é por constituição paradoxal, “pois o que é próprio do
vivenciado, do saber e da experiência enraizada, o próprio da comunidade orgânica, só permite a
existência individual em relação ao ‘dado’: o que é dado pela natureza, pelo grupo (...) O grupo,
enquanto limite espacial, permitindo pôr em ordem a experiência individual” (2004/2007: 72).
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Heidegger remete ao conceito de aletheia, palavra usada pela tradição mítico-poética dos gregos para se
referir à verdade, e que significa precisamente “não-ocultamento”, “desvelamento”.