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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
MESTRADO
ABORTO, BEM JURÍDICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
ANELISE TESSARO
PORTO ALEGRE
2006
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2
ANELISE TESSARO
ABORTO, BEM JURÍDICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Dissertação apresentada à banca
examinadora do curso de Mestrado em
Ciências Criminais da Faculdade de
Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Ciências Criminais.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Vinícius
Sporleder de Souza
PORTO ALEGRE
2006
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3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
T338a Tessaro, Anelise
Aborto, bem jurídico e direitos fundamentais / Anelise
Tessaro. – Porto Alegre, 2006.
127 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) –
Faculdade de Direito, PUCRS.
Orientação: Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de
Souza.
1. Direito Penal. 2. Aborto (Direito). 3. Reprodução
Humana – Aspectos Legais. 4. Descriminalização.
I. Título.
CDD 341.55621
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437
4
TERMO DE APROVAÇÃO
ANELISE TESSARO
ABORTO, BEM JURÍDICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Porto Alegre, 21 de dezembro de 2006.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de Souza
__________________________________________
Prof. Dr. Cézar Roberto Bitencourt
__________________________________________
Prof. Dr. Miguel Abib Adad (FFFCMPA/CEJBF)
5
À meus pais, por tudo;
com amor.
6
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Mara e Nelcir, o meu eterno agradecimento pelo apoio
incondicional;
À minha família, em especial, minha irmã, Annye Cristiny e cunhado,
Victor Carlson, pelo constante estímulo na redação deste trabalho;
À Prof. Dra. Ruth C. Gauer, coordenadora do Programa de Mestrado em
Ciências Criminais, que com sua exigência e busca pela excelência do programa,
instigou-me a buscar e apreciar novas áreas de conhecimento;
Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de Souza, que com
suas sugestões e otimismo, estimulou-me a trabalhar com autonomia e ultrapassar
os obstáculos que se apresentaram no decorrer deste trabalho;
Às amigas Luciana Hammes, Kelli Karloh, Grasiela Garret, Patrícia Pires,
Viviane Cunha, Clarissa Coutinho e Maria Gabriela Picarelli, pelo incentivo
constante, lembrando-me o verdadeiro significado da amizade,
À equipe da secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Criminais, em especial, Caren e Patrícia, pelo auxílio incontinente,
Aos colegas de mestrado, em especial, Laura Swiderek, Mari Oni Andres
e Gustavo Noronha de Ávila, com quem muito aprendi nesta jornada.
7
A tolerância é o preço que temos de
pagar por nossa aventura de liberdade.
Por nosso amor pela liberdade e pela
dignidade, estamos comprometidos a
viver em comunidades nas quais não se
considera que nenhum grupo é
inteligente, religioso ou numeroso o
bastante para decidir questões
essencialmente religiosas que dizem
respeito a todos os demais. Se tivermos
uma preocupação verdadeira com as
vidas que os outros levam, admitiremos
também que nenhuma vida é boa quando
vivida contra as próprias convicções e que
em nada estaremos ajudando a vida de
outra pessoa, mas apenas estragando-a,
se a forçarmos a aceitar valores que não
pode aceitar, mas aos quais só se
submete por medo ou por prudência.
Ronald Dworkin
8
RESUMO
Este trabalho identifica-se com a linha de pesquisa política criminal,
Estado e limitação do poder punitivo, uma vez que objetiva restringir a incidência do
direito penal, descriminalizando o aborto durante os três primeiros meses de
gestação. Partindo do pressuposto que o direito à vida não possui caráter absoluto e
axiológico superior aos demais direitos fundamentais, e considerando ser o princípio
da dignidade humana o vetor de interpretação na otimização destes direitos,
legitima-se a realização do aborto, desde que fundamentado num sistema que
combine prazo e indicações. Desse modo, a conduta não seria punível durante as
doze primeiras semanas de gestação, sendo que, após esse período, a licitude do
aborto estaria condicionada a presença das causas específicas de justificação, ou
melhor, indicações.
Palavras-chave: Aborto. Direito à vida. Bem jurídico-penal. Direitos reprodutivos.
Descriminalização.
9
ABSTRACT
This work identifies with the research line criminal politics, State and
limitation of the punitive power, because it aims at restricting the incidence of the
criminal law, legalizing the abortion during the first three months of gestation.
Assuming that the right to the life does not possess an absolute character and its not
the highest value among the other human rights, and considering that the principle of
human dignity should be the path of interpretation of these rights, the abortion should
be legalized as long as based on a system that combines deadline and
recomendations. In that way, the conduct wouldn´t be punished during the first twelve
weeks of pregnancy. After this, the legality of the abortion would be conditional to the
presence of specific recommendation.
Key-words: Abortion. Right to the life. Criminal Goods. Reproductive Rights.
Legalization.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO p. 10
CAPÍTULO 01 ABORTO E INÍCIO DA VIDA HUMANA
1.1 Principais teorias sobre o inicio da vida humana p. 13
1.1.1 Perspectiva concepcional p. 14
1.1.2 Perspectiva biológico-evolutiva p. 17
1.1.3 Perspectiva relacional p. 20
1.2 Algumas questões sobre o debate religioso p. 26
1.3 Tutela jurídica da vida humana dependente p. 31
CAPÍTULO 02 ABORTO LEGAL E CRIMINOSO
2.1 Referência histórica p. 40
2.2 O aborto e suas classificações p. 46
2.3 As causas de justificação previstas na legislação brasileira p. 48
2.4 O aborto na legislação comparada p. 56
CAPÍTULO 03 ABORTO E BEM JURÍDICO-PENAL
3.1 Evolução histórica da teoria do bem jurídico-penal p. 62
3.2 Conceito e função do bem jurídico-penal p. 68
3.3 Titularidade do bem jurídico-penal na interrupção voluntária da gravidez p. 75
CAPÍTULO 04 ABORTO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
4.1 Direitos fundamentais em conflito e regras de harmonização p. 85
4.2 Sistema de prazo e indicações como alternativa para
descriminalizar o aborto p.100
4.3 Análise do substitutivo do projeto de Lei nº 1.135/91, que estabelece o
direito à interrupção voluntária da gravidez e assegura a realização do
procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde p.110
CONCLUSÃO p.115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p.121
ANEXO - Substitutivo do Projeto de Lei nº 1.135/91
11
INTRODUÇÃO
Com o presente trabalho, objetivou-se realizar um estudo sobre os
diversos aspectos que permeiam o debate sobre a interrupção voluntária da
gravidez. Percebe-se, atualmente, que o aborto é responsável por 13% das mortes
maternas no mundo, representando no Brasil a terceira causa de morte materna.
Destarte, por integrar o grupo de países que possuem uma legislação restritiva ao
aborto e que na sua totalidade representam 40% dos países do mundo, estimativas
sugerem a realização de 238.000 à 1.008.000 abortos
1
, no período de 1999 à 2002.
Em escala mundial, segundo dados da Organização Mundial de Saúde, a legislação
punitiva não impede que sejam realizados anualmente entre 42 e 50 milhões de
abortos, metade deles ilegais e de risco.
Dentre os principais problemas decorrentes do aborto clandestino e
inseguro, destacam-se a perfuração de útero, hemorragia e infecção (septicemia),
que podem acarretar diferentes graus de lesão à saúde, seqüelas e morte. Nesse
sentido, urge uma adequação da lei penal à situação social apresentada, permitindo
que o problema da interrupção da gravidez, incluindo-se a gestação de feto com
malformação grave e incurável, seja tratado pela mulher de forma consciente e
esclarecida, sendo conferido à ela o direito ao livre exercício da maternidade,
optando entre interromper ou levar a termo a gravidez.
Por conseguinte, estes dados revelam que a punição do aborto não
impede que as mulheres o realizem. A manutenção da sua criminalização significa
fechar os olhos à realidade, à discriminação, ao sofrimento e violação dos direitos
fundamentais destas mulheres. Note-se que as conseqüências desastrosas dos
1
Rede Feminista de Saúde, 2005, p.03.
12
abortos clandestinos deságuam no sistema público de saúde e já representam
gastos significativos, os quais poderiam ser menores, na hipótese da legalização
deste procedimento, se realizado por profissional habilitado e em ambiente
hospitalar adequado.
Do ponto de vista de sua estrutura, a presente dissertação está composta
de quatro capítulos.
No capítulo primeiro estão elencadas as principais teorias sobre o início
da vida humana, abordando-se as perspectivas concepcional, biológico-evolutiva e,
por fim, relacional. Ao lado disso, apresentam-se algumas questões suscitadas pelo
aborto no debate religioso, finalizando o capítulo com a indicação dos meios de
tutela jurídica do nascituro.
Por sua vez, o capítulo segundo entra na discussão sobre o aborto legal e
criminoso. Além de fazer uma breve referência do tratamento conferido ao aborto no
decorrer da história, indicam-se as principais classificações deste procedimento,
bem como as causas de justificação previstas na legislação brasileira em vigor. Por
fim, faz-se uma breve alusão à regulamentação do aborto na legislação estrangeira.
No capítulo terceiro, ao seu turno, a questão do aborto é enfrentada sob o
prisma do bem jurídico-penal ofendido. Após ser traçada uma breve evolução
histórica da teoria do bem jurídico-penal, discorre-se sobre o conceito e função
legitimadora que exerce no Direito Penal. Nesse contexto, o capítulo encerra
abordando o tema da titularidade do bem jurídico-penal na interrupção voluntária da
gravidez.
Por derradeiro, o capítulo quarto acrescenta o debate constitucional ao
trabalho, tratando especificamente do tema aborto e direitos fundamentais. No tópico
inicial estão elencados os direitos fundamentais em conflito na manutenção de uma
gestação não desejada, ao mesmo tempo que traz à colação a principal teoria
constitucional para harmonização dos direitos fundamentais em oposição. Destarte,
com fundamento nos argumentos criminais e constitucionais levantados no decorrer
deste trabalho, propõe-se no tópico seguinte um sistema combinando prazo e
13
indicações como alternativa para descriminalizar o aborto. Finalmente, procede-se à
análise do substitutivo do projeto de Lei nº 1.135/91, que estabelece o direito à
interrupção voluntária da gravidez e assegura a realização do procedimento no
âmbito do Sistema Único de Saúde.
Em suma, justifica-se a escolha do tema por se tratar de uma questão
social e de saúde pública, a qual afeta muitas mulheres em idade fértil, implicando
em graves lesões aos seus direitos fundamentais, mormente os direitos à liberdade,
autonomia, igualdade, saúde e dignidade. Destarte, na medida em que pretende
demonstrar a licitude da descriminalização do aborto durante os três primeiros
meses de gestação, o presente trabalho identifica-se com a linha de pesquisa
política criminal, Estado e limitação do poder punitivo. Assim, é a partir destes
enfoques que se espera estar colaborando para o desenvolvimento das pesquisas
sobre este tema, servindo a mesma de subsídio para uma reforma na legislação
penal, por meio de argumentos jurídico-constitucionais que viabilizem a
descriminalização do aborto segundo o modelo de prazo e indicações, nos termos a
seguir referidos.
14
CAPÍTULO 1 ABORTO E INÍCIO DA VIDA HUMANA
1.1 Principais teorias sobre o inicio da vida humana
Os novos recursos de diagnóstico pré-natal e o advento das técnicas de
reprodução assistida trouxeram novo fôlego para as discussões sobre o momento
em que se deve considerar existente a vida humana, inclusive no que se refere a
sua proteção jurídico-penal. Isso porque, no que concerne ao diagnóstico pré-natal,
atualmente é possível conhecer detalhadamente as etapas do desenvolvimento
embrionário e fetal, inclusive com a detecção de anomalias que comprometam sua
viabilidade extra-uterina. No tocante as técnicas de reprodução assistida, a sua
principal contribuição para a discussão é o fato de ter desvinculado a fecundação da
gestação, porquanto aquela pode ser realizada em laboratório e o embrião
permanecer criopreservado por tempo indeterminado, até que seja implantado no
organismo materno.
Nesse contexto, surgem muitos questionamentos de ordem biológica, os
quais tampouco a ciência possui resposta satisfatória. Seria a vida um processo
puramente biológico? Já existe um novo ser humano no zigoto? O embrião não
implantado, produzido em laboratório, possui vida? Ou a vida humana tem seu início
com a atividade cerebral? Ou, ao invés disso, afastando-se dos critérios puramente
biológicos, a vida humana só seria reconhecível quando a mulher, por ato de
vontade, confere ao embrião a qualidade de pessoa?
Até o momento, não existe consenso na ciência, filosofia ou religião,
sobre qual o momento em que se inicia a vida. Destacam-se algumas posições
majoritárias, tais como a fecundação, nidação ou o início da atividade cerebral,
entretanto, todas elas são passíveis de questionamentos, traduzindo-se, não raras
15
vezes, num debate apaixonado baseado mais num ato de fé do que na razão. Em
verdade, conforme afirma Romeo Casabona, “tratam-se mais de critérios valorativos
do que resultado de comprovações biológicas; ou, dito de outra forma, são
valorações da realidade biológica que são extrapoladas e transformadas em
categorias ontológicas.”
2
Entretanto, como observa Franco, para que “não se permaneça numa
perplexidade imobilista, torna-se imprescindível que se separem, no processo de
gravidez, algumas das mais significativas etapas de desenvolvimento biológico
graduadas como início da atividade humana, submetendo-as a uma perspectiva
crítica.”
3
Ademais, nesta análise “não se pode perder de vista o conceito de vida
humana, não-biológico, mas cultural e ético, estabelecido a partir do compromisso
relacional que a mulher estabelece para com o filho.”
4
Estas devem ser as
premissas para um debate qualificado sobre o tema, sem a pretensão de conduzir a
um consenso.
Vale assinalar que, em se tratando de um conceito essencialmente moral,
de fato não existe possibilidade de acordo ou consenso, mas apenas de tolerância
recíproca. Ferrajoli assevera que, neste caso, essa tolerância consiste em
“reconhecer a ambas as concepções o caráter de legítimas posições morais,
nenhuma das quais é desqualificável como ‘imoral’ só porque não compartilhada.”
Para tanto, “isto equivale a não brandir contra nenhuma delas o Código Penal, como
gostam de fazer, pretendendo impor a todos a sua moral, os defensores da punição
do aborto.”
5
Com este propósito, nos tópicos seguintes, destacam-se as principais
teorias sobre o início da vida humana.
1.1.1 Perspectiva concepcional
Os adeptos desta teoria acreditam que a vida humana é um processo
instantâneo, a qual se inicia no momento da fecundação do óvulo pelo
2
Romeo Casabona, 1994, p.148.
3
Franco, 2006, p.27.
4
Franco, idem, ibidem.
5
Ferrajoli, 2003, p.17.
16
espermatozóide, dando origem a uma realidade genética autônoma e diversa, qual
seja, o zigoto. Esta perspectiva possui como principal argumento a potencialidade,
ou seja, o fato do zigoto (ovo) trazer consigo a “capacidade de realizar seu destino
humano”
6
, que se desenvolverá em fases sucessivas. Segundo este entendimento,
“não é a forma semelhante à de um adulto, ou o fato de já haver ocorrido ou não a
instalação de órgãos e funções, que deve prevalecer na decisão de humanidade de
um indivíduo, mas sim a constatação de sua capacidade de produzir-se a si
mesmo.”
7
De outro lado, outro argumento corrente entre os que defendem ser a
fecundação o marco inicial da pessoa humana, é que o zigoto está vivo e possui
patrimônio genético próprio da espécie humana. Sendo assim, por via de
conseqüência, “o óvulo, fecundado pelo espermatozóide, seria, sob tal ângulo, uma
pessoa.”
8
Entretanto, não faltam críticas a este posicionamento. De acordo com
Singer e Kushe, citados por Minahim, “ao se considerar a potência como motivo para
uma tutela jurídica do jovem embrião, também os gametas mereceriam a mesma
proteção, porque têm essa mesma potencialidade.”
9
Da mesma forma, com relação a presença do código genético humano,
isso não é uma particularidade exclusiva do zigoto, uma vez que qualquer célula do
ser humano contém o patrimônio genético completo e individualizado de seu
portador, sem que isso torne tal célula valiosa por si mesma. Ou seja, a única coisa
que o argumento do código genético pode demonstrar é apenas a capacidade do
embrião para ser pessoa no futuro. E sob esse ângulo, o zigoto não possui toda a
informação genética para desencadear a embriogênese e vir a se tornar um ser
humano, visto que seu potencial de capacidade informativa é adquirido com o tempo
por interação de outras moléculas e sobretudo, com o intercâmbio de informações
com a própria mãe.
10
6
Minahim, 2005, p.86.
7
Minahim, idem, ibidem.
8
Franco, op.cit., p.29.
9
Singer; Kushe apud Minahim, idem, ibidem.
10
Romeo Casabona, 1994, p.149.
17
Outrossim, o embrião pode se dividir em dois ou mais embriões (gêmeos
monozigóticos) até sua implantação na parede uterina, colocando em xeque esta
teoria, uma vez que não é admissível que uma vida humana se divida em outras
vidas igualmente humanas. Isso sem levar em consideração o fato da grande
probabilidade deste embrião não passar de um amontoado de células, não
conseguindo sequer alcançar a parede uterina. Estudos sobre o desenvolvimento
embrionário revelam que 50% dos óvulos fecundados são abortados
espontaneamente, antes da sua implantação na parede uterina, o que demonstra a
instabilidade do embrião e o caráter seletivo destes abortos, uma vez que
comprovado que grande parte desses embriões eram portadores de graves
patologias cromossômicas ou congênitas.
11
Em outras palavras, afirmar que na simples união dos gametas reside a
potencialidade para o novo ser ignora o fato de grande parte dos zigotos estão
destinados ao fracasso, porquanto o diagnóstico da gravidez é sempre retroativo.
Não há como saber se houve uma concepção frutífera no momento da fecundação,
só podendo “ser reconhecido a posteriori quando se detecta os sinais de uma
gravidez viável, de modo que o começo concepcional da vida somente ocorre por
inferência post factum e é, sempre, um começo virtual.”
12
Ao lado disso, sob o argumento de que o ente potencial não tem valor em
si, porquanto alberga a promessa de vir a ser valioso, Kottow faz um comparativo
entre a idéia de potencialidade e a arte, concluindo que referido argumento “não tem
solidez a menos que seja contextualizada, pois um pigmento, uma porção de argila
ou um bloco de mármore podem chegar a ser uma obra de arte única, mas isso não
converte esses materiais em arte potencial”, concluindo que tanto o zigoto como
esses materiais possuem “valor porque potencialmente podem chegar a ser algo
valioso, mas esse valor potencial não possui o mesmo status axiológico que aquilo
que eventualmente será.”
13
De fato, defender que a vida se inicia com a concepção equivale a um ato
11
Gafo Fernández apud Romeo Casabona, op.cit., p.150.
12
Kottow, 2001, p.27.
13
Kottow, op.cit., p.28.
18
de fé, que não possui amparo no conhecimento científico atual. Isso porque “a vida
não começa num momento determinado, por assim dizer mágico, pois, em verdade,
é um processo contínuo que provém da noite dos tempos e se dirige para o futuro.”
14
1.1.2 Perspectiva biológico-evolutiva
A segunda teoria sobre o início da vida defende que esta se inicia com o
aparecimento de sinais morfológicos do embrião ou a partir de um momento
determinado do processo de gestação. Desse modo, foram propostos os seguintes
critérios para o início da vida humana: nidação/individualização, surgimento da crista
neural, mobilidade fetal, viabilidade extra-uterina, nascimento e, por fim, a aquisição
de capacidade racional na infância.
15
A nidação ocorre no décimo quarto dia após a fecundação, com a
implantação do embrião na parede uterina. Este é o momento em que o embrião se
individualiza. Segundo Lacadena, referido por Romeo Casabona, o momento da
individualização confere categoria biológica ao indivíduo, o qual requer unicidade
(ser único, visto que até a nidação existe a possibilidade de se formar gêmeos
monozigóticos) e unidade (realidade positiva que se distingue de qualquer outra).
16
Da mesma forma, “com a nidação, a formação celular também ‘adquire
transcendência, ou seja, entra em contato com outro indivíduo da espécie,
estabelecendo com o mesmo – sua mãe – uma relação de alteridade’.”
17
Contudo, não se pode concluir que, em razão de se tratar de um
organismo dotado de unidade e unicidade, este já exista possua vida humana. Isso
porque a nidação é um estágio obrigatório e não suficiente de per si no processo
biológico para o desenvolvimento humano. Logo, os que assim pensam, “confundem
vida humana com o processo biológico animal e vêem, em qualquer fenômeno
biológico, a própria vida humana.”
18
14
Franco, op.cit., p.28.
15
Kottow, op.cit., p.31.
16
Romeo Casabona, op.cit., p.149
17
Martinez, S. M. apud Franco, op.cit., p.40.
18
Garcia-Velasco, J. L. apud Franco, op.cit. p.41.
19
Do mesmo modo, entender que a formação do tubo neural corresponde
ao marco inicial da vida humana reproduz a mesma falácia. De acordo com Minahim,
conferir humanidade ao embrião a partir da formação do tubo neural é questionado
pelos humanistas, os quais indagam o motivo da escolha deste limite para definir a
existência do ser humano. Qual a razão da escolha, ao invés de outro critério, como
no “décimo terceiro ou décimo quarto dia, quando aparece a linha primitiva que se
cava para formar o canal, ou o décimo oitavo dia, quando começam os movimentos
celulares que resultam na placa neural?”
19
Acredita-se que a definição do décimo
quinto dia, ou seja, quando ocorre a formação do tubo neural, é devido a adoção do
critério morfológico, uma vez que “a partir do décimo quinto dia, associa-se, àquele
fenômeno do canal primitivo, um primeiro esboçamento dos principais órgãos. O
embrião inicia, então, sua trajetória para tornar-se feto, assemelhando-se a um
bebê.” Dessa forma, “o embrião só integraria a espécie humana a partir do momento
em que seu aspecto estrutural apresentasse caracteres morfológicos e anatômicos
de seu fenótipo.”
20
Entretanto, a definição da individualidade humana com base em
critérios morfológicos representa um recurso ultrapassado, visto que são ignorados
quaisquer conceitos da genética moderna.
Por fim, outro momento que é destacado dentre os que defendem a
humanização a partir de uma perspectiva biológico evolutiva, é o início da atividade
cerebral. Segundo esta teoria, no terceiro mês de gravidez, com a constituição dos
hemisférios cerebrais, já é possível fazer a distinção entre um organismo vivo
humano dos demais primatas. O início da atividade cerebral, ao nível cortical
superior, seria o sinal distintivo do puramente animal, sendo a partir deste momento
considerado um processo biológico que pode vir a se tornar uma vida humana
independente.
21
Destarte, a atividade elétrica do encéfalo, ao estabelecer os primeiros
níveis de comunicação que dão identidade à pessoa, provoca uma mudança
qualitativa no processo puramente biológico da vida. Assim, o registro desses sinais
revelaria o aparecimento da pessoa.
19
Minahim, 2005, p.84.
20
Minahim, idem, ibidem.
21
Garcia-Velasco, J. L. apud Franco, 2006, p.42.
20
Neste contexto, fazendo um paralelo com o critério de morte, fala-se em
‘pólos do fluir vital’, ou seja, de um lado, o despertar cerebral e, de outro, o silêncio
cerebral. Se o momento de cessação da atividade cortical superior marca o findar da
vida humana, “‘não parece haver razão suficiente para não adotar igual
posicionamento para considerar que, embora em formação, a vida humana já
começou.
Deste modo, em sentido inverso, o início da atividade cerebral teria o
significado do principiar da ‘humanidade’ de um ser vivo”.
22
Entretanto, a questão toma novos rumos se colocada em xeque a
validade do critério da morte cerebral, adotando-se, em substituição, o critério da
morte neo-cortical. Isso porque, neste caso, privilegiam-se outros aspectos da vida
(v.g. relacionais) como expressão da identidade da pessoa, em detrimento do fator
estritamente biológico. Assim, a vida humana somente deve ser objeto de proteção
se ela contém, ao menos, ‘potencialidade para as relações humanas’, ou seja, a
partir do momento em que “o embrião tiver capacidade de intercambiar
comunicações com sua própria mãe e ser por ela aceito como filho, o que,
efetivamente, tem condições de ocorrer até doze semanas (três meses) desde a
fecundação.”
23
Criticando a tese defendida pelos adeptos da perspectiva biológico-
evolutiva, Kottow afirma que aqui se comete a mesma falácia naturalista presente na
visão concepcional, porquanto se vale de dados empíricos para fundamentar
valorações éticas. “É evidente que se existem tantos critérios possíveis, nenhum
deles possui mais solidez conceitual que outro e não poderá ser usado para
estabelecer diferenças de status moral entre antes e depois da etapa do
desenvolvimento escolhida.”
24
Em conclusão, a postura evolutiva não sincroniza o começo da vida
humana com o da pessoa, mas ao determinar que a personalidade aparece durante
o desenvolvimento do ser humano, cai na falácia de enfatizar uma diferença de
status moral entre ser humano e pessoa. Ao lado disso, ao atribuir status moral de
22
Franco, 2006, p.42.
23
Franco, 2006, p.43.
24
Kottow, 2001, p.31.
21
acordo com determinada etapa de desenvolvimento por ela escolhida
arbitrariamente, a perspectiva evolutiva não se preocupa em trazer argumentos
convincentes para afirmar que a aparição da crista neural seja um sinal mais valioso
de humanidade que algum outro aspecto do desenvolvimento embrionário ou fetal, e
“sobretudo, não justifica conceder as pessoas um valor moral superior que os seres
humanos de racionalidade deficiente.”
25
1.1.3 Perspectiva relacional
Desvincular o desenvolvimento biológico do embrião, seja a partir da sua
concepção como por meio da eleição de determinada etapa no processo evolutivo é
a premissa básica para estabelecer um conceito de começo da vida humana, tendo
em vista que os achados científicos demonstram ser a mesma um processo
biológico no sentido de vir a ser, agregando-se ao embrião/feto saltos qualitativos a
cada etapa biológica desenvolvida.
Bem por isso, para escapar dessa situação de difícil deslinde, cuja tônica
do discurso são os argumentos carregados de fortes convicções morais, necessário
é que se aparte tanto a visão estritamente concepcional, bem como àquela postura
baseada na eleição de etapas no desenvolvimento embrionário, de modo que assim
se alcance um conceito de começo de vida fundamentado em premissas mais
amplas e que não esteja vinculado à interpretação moral de critérios puramente
biológicos, como os acima mencionados.
Ademais, em se tratando de um Estado Democrático de Direito, cujo
caráter laico constitui um de seus principais pilares, de forma que não deve estar
subordinado a nenhuma religião, é inadmissível que posturas morais ou religiosas
figurem como norte de suas ações e políticas públicas. Não é lícito ao Estado impor
obediência a uma fé religiosa que não corresponda àquela escolhida pelo cidadão.
“Estado e Religião estão, portanto, totalmente apartados por um muro que ‘favorece
a igualdade entre os crentes e os não-crentes, entre santos e libertinos, entre os
redimidos e os condenados: todos são igualmente cidadãos e possuem o mesmo
conjunto de direitos constitucionais’.” De fato, transpor esse muro significa “mesclar
25
Kottow, 2001, p.32.
22
dimensões que não têm um processo tranqüilo de acomodação e correr o risco da
própria tirania na medida em que se objetiva impor aos não-crentes os parâmetros
de conduta religiosa própria dos crentes”
26
.
A conseqüência do ora referido é que a definição de vida humana não
reside nem no zigoto e muito menos pode ser reconhecida na escolha isolada de
determinada etapa do desenvolvimento embrionário. Afirma-se, desse modo, que o
inicio da vida humana somente ocorre com o estabelecimento do vínculo relacional
entre mãe e filho, quando a gravidez passa “a ser um estado desejado pela mãe e
esta se desdobra em seu sentir e reflexão, dando origem em seu ventre a um ser
que tem um nome e um futuro.”
27
Com este propósito, a perspectiva relacional coloca a mulher como figura
determinante no seu processo reprodutivo, retirando-o do âmbito puramente
biológico. Nesse sentido, afirmando que a aceitação do início de uma vida humana
não deve ser um feito biológico radicado exclusivamente no zigoto, Kottow
acrescenta que a mulher deve também constituir uma “potencialidade necessária
para a gestação do ser humano”, sem que dependa da presença deste zigoto, e sim
da “aceitação da mulher em assumir a potencialidade de ser mãe.”
28
Essa teoria é avalizada pelos dados sociológicos, os quais demonstram o
elevado número de abortos realizados mundialmente, somando-se os procedimentos
realizados em países cuja prática é legalizada com os abortos clandestinos, no caso
de países cuja prática é ilegal. Tanto num caso, como noutro, a mulher está
exercendo seu papel no processo reprodutivo, assumindo ou não a potencialidade
de ser mãe, gestando o novo ser, ou procurando a interrupção da gestação, caso
desista.
Segundo Kottow, para a perspectiva relacional, com o fim de conferir vida
humana ao embrião, a relação que se origina a partir da aceitação da mulher como
mãe pressupõe duas condições: a consciência da mulher de estar grávida e
26
Franco, 2006, p.46.
27
Maturana apud Kottow, 2001, p. 34.
28
Kottow, 2001, p.33.
23
posteriormente, a aceitação dessa condição. Afirma o autor que uma mulher, ao
solicitar exames para verificar se está grávida, ou dar inicio aos exames pré-natais,
para investigar a saúde e características do embrião, “não o faz para antecipar
alegremente seu estado reprodutivo, mas sim para ter elementos de juízo que a
levarão a decidir sobre a conduta a seguir.” Agindo assim, “a mulher busca o
diagnóstico biológico e qualitativo da gestação para logo tomar a decisão caso
assuma o status existencial de mãe em potencial.”
29
Em outras palavras, essa teoria pretende afirmar a reprodução humana
como escolha, de forma que a continuidade de uma gravidez não signifique um fato
puramente biológico, respeitando a autonomia da mulher - mãe em potencial - ao
mesmo tempo que garante idêntico respeito ao compromisso ético assumido numa
relação mãe/filho. Assumir a maternidade deve ser um ato decisivo, muito além de
um simples evento natural, de contingência, inconsciente, inquestionado e
eventualmente indesejado. Em síntese, deve representar a gestação amorosa de
uma nova pessoa.
30
Se a diferença entre o homem e as demais espécies reside na sua
consciência de si próprio, racionalidade, liberdade, responsabilidade, capacidade de
expressar sentimentos e palavras, representa um contra-senso considerar o
processo reprodutivo como um ato puramente biológico. Conferir esse tratamento às
mulheres, retirando-lhes por completo o poder de escolha ante a continuidade ou
não de uma gestação, significa desqualificá-las enquanto espécie do gênero
humano, porquanto a reprodução, nesse caso, deixa de ser um ato racional. Em
outras palavras, equivale ao tratamento dispensado aos animais, uma vez que se
torna inquestionável o dever da mulher levar adiante a gestação de um novo ser.
Ao lado disso, para a mulher, a experiência da gestação é muito forte e
nova nos aspectos vincular e biológico. Não podemos separar estes momentos, o
pré e o pós-natal, sem gerar profundas perturbações. Daí a importância, segundo
29
Kottow, 2001, p.33.
30
Kottow, idem, ibidem. Nesse sentido, Maria José Rosado-Nunes (2006 b, p.01/02) afirma que
“trazer à vida um novo ser deve ser um ato plenamente humano, isto é, pensado, refletido. (...) A
gravidez humana é uma experiência sui generis. Supõe reciprocidade, recriação de desejos e não
apenas a satisfação de necessidades, sociais ou biológicas.”
24
Pessini, do que se entende por vida humana: “a vida da espécie humana tem sua
característica mais marcante no relacionamento, na sua vida humanizada e
socializada.”
31
Destarte, nesse momento não há o enfrentamento entre uma vida
humana na etapa inicial com uma mulher que pode destruí-la ou albergá-la, e sim, o
encontro de vidas que se revelam em potencialidades parciais: de uma forma
embriogenética incipiente, de uma mulher que decide ser mãe, e de circunstâncias
que facilitam ou dificultam a gestação. “O plenamente potencial deste momento é a
possibilidade de estabelecer a relação mãe/filho.” Entretanto, apesar de ser uma
potencialidade possível, deve ser confirmada, atualizada. É esse o momento que se
estabelece o vínculo que solicita a mãe assumir o projeto existencial da vida humana
em fase embrionária. “Dito de outro modo, incorpora a vida humana dependente ao
próprio projeto de vida. Esta assunção se traduz no que os interesses da vida
dependente adquiram idêntico valor aos interesses próprios da mãe.”
32
Assim, “o processo incipiente e incerto da vida se converte em um estado
de vida humana no momento que é incorporado a um projeto de vida e continua
sendo até sua conversão na forma específica, individual e racional do ser que é a
condição de pessoa.” Por um viés filosófico, Kottow lembra que, guardadas as
devidas especificidades, a assunção e o reconhecimento do começo da vida
humana assemelha-se “ao encontro que, segundo descreve Levinás, inicia a
interlocução ética; só que a mãe não olha o rosto do outro, como ocorre no encontro
levinasiano, mas sim sente e decide assumir a existência de um outro em potencial
que é seu filho.”
33
No mesmo sentido, Ferrajoli defende que a procriação não é só um fato
biológico, mas também, um ato moral de vontade. Segundo este autor, “é
precisamente este ato de vontade, em virtude do qual a mãe encara o feto como
pessoa, que segundo esta tese, lhe confere o valor de pessoa: que cria a pessoa.”
Para tanto, o nascimento da pessoa é antecipado para antes do parto, desde que
esteja claro que essa pessoa “está de certa forma ligada ao ato com o qual a mulher
31
Pessini; Barchifontaine, 1997, p.264.
32
Kottow, 2001, p.33/34.
33
Kottow, 2001, p.34.
25
se encara e se deseja como mãe e encara e deseja o feto como ‘nascido’.”
Acrescenta que “segundo este ponto de vista moral, a procriação é realmente um ato
criativo, como o fiat lux: fruto não só de um processo biológico, mas também de um
ato de consciência e vontade. Com ela, a mãe não dá só o corpo, mas também
forma de pessoa o nascituro, pensando-o como filho.” Dito de outra forma, “se é
verdade que, para nascer, o embrião precisa da (decisão da) mãe, então essa
decisão muda a sua natureza, fazendo dele uma (futura) pessoa. A sua qualidade de
‘pessoa’ é, em suma, decidida pela mãe, ou seja pelo sujeito que é capaz de o fazer
nascer como tal.”
34
Para reforçar este entendimento, com fundamento em estudos
psicanalíticos, Pessini recorda que a falta de amor e troca de palavras com a
criança, não obstante ser ela bem cuidada e nutrida, traz problemas no seu
desenvolvimento psíquico. “Mais ainda, estudos recentes parecem mostrar que,
desde o útero materno, trocas relacionais existem entre o feto e a mãe e mesmo
com o pai. Assim, durante nove meses, o ser em gestação é modelado pelas trocas
biológicas e relacionais que existem entre ele e a mãe.”
35
Ademais, durante os
primeiros anos de vida, estes cuidados e o ambiente afetivo serão decisivos para a
formação e o equilíbrio da personalidade da pessoa.
Kottow assevera que esse conceito relacional do início da vida humana
não dista muito do adotado em alguns países que despenalizaram a interrupção
voluntária da gravidez. Isso porque, como condição para a realização desse
procedimento, faz-se necessária uma prévia assessoria de esclarecimento e
convencimento para que, então, a mulher decida informadamente se assume a
gravidez ou insiste na decisão de abortar.
36
A crítica sobre esta perspectiva que define o começo da vida humana a
partir do compromisso relacional mãe/filho reside no fato de não estar fixado, no
tempo, o momento em que deve ser exercido o ato de vontade da mãe assumindo o
34
Ferrajoli, 2003, p.16.
35
Pessini; Barchifontaine, 1997, p.264.
36
Kottow, 2001, p.34.
26
projeto existencial do filho.
37
Contudo, como enfatiza Ferrajoli, à exemplo das
legislações que adotaram a solução de prazo para regulamentar a interrupção
voluntária da gravidez, três meses a partir da concepção bastam para que a mãe
atribua ao filho a qualidade de pessoa. Não que esses três meses signifiquem algo
no plano biológico, “mas apenas porque representam o tempo necessário e
suficiente para permitir a mulher tomar uma decisão: para consentir o exercício da
liberdade de consciência, ou seja, a autodeterminação moral da mulher e também a
sua dignidade como pessoa.”
38
Ademais, na esteira do afirmado por Kottow, “uma vez aceita a gravidez e
iniciada a relação mulher-mãe com o embrião-filho, começa também o cuidado dos
interesses do filho e sua proteção por parte da mãe.”Assim, “se esta proteção
pudesse ser arbitrariamente revogada, não seria legítima proteção porque um aborto
procurado posteriormente à aceitação da gravidez constitui uma decisão dificilmente
escusável.” A ressalva, contudo, seria possível se “após assumir a gravidez, a mãe
ou o filho sofram um processo que põe em risco sua capacidade de viver. Nesse
caso, é legítimo desvincular a relação de proteção já que as circunstâncias
determinaram que tal vinculo está destinado a não ser viável.”
39
Em conclusão, a postura relacional não tem a menor intenção de negar as
implicações morais das decisões reprodutivas. Ao contrário, ao descrever o
estabelecimento do vínculo mãe/filho como um processo relacional voluntariamente
assumido, esta sendo privilegiado o mais pleno valor ético que tal decisão merece,
além de reconhecer que o aborto voluntário é sempre uma decisão moral e
psicologicamente dolorosa, a qual ninguém assume gratuitamente, pelo que é
motivada por motivos relevantes e de peso. “O que a perspectiva relacional pretende
é resgatar que a aceitação de gestar um novo ser humano seja produto do desejo e
de uma decisão consciente, e não ocorra por imposição de valores que os afetados
talvez não compartilhem.”
40
37
Franco, 2006, p.47.
38
Ferrajoli, 2003, p.15.
39
Kottow, op. cit., p.35.
40
Kottow, 2001, p.35.
27
1.2 Algumas questões sobre o debate religioso
Partindo do princípio de que o direito à vida é um dom recebido
diretamente de Deus e que os homens são apenas administradores dela, existe um
consenso entre as crenças religiosas no que diz respeito ao caráter sagrado da vida.
Como conseqüência, proíbe-se qualquer intervenção do homem sobre ela. Seguindo
esta premissa, muitas são as religiões que condenam a prática da interrupção
voluntária da gravidez, ainda que o feto seja portador de anomalia que
incompatibilize sua sobrevivência extra-uterina.
A Igreja Católica é a que adota a postura mais radical. Por muito tempo,
nem mesmo a interrupção da gravidez praticada para salvar a vida da gestante foi
vista de maneira favorável pela Igreja. Mammana assevera que o Papa Pio XII, ao
proferir um discurso no Congresso das Parteiras, em 20-10-51, ratificando o
posicionamento da Igreja Católica de que o direito à vida é recebido imediatamente
de Deus e não dos pais, declarou que “não há nenhum homem, nenhuma autoridade
humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, eugênica, social,
econômica, moral, que possa exibir ou conferir um título jurídico válido para dispor,
diretamente e a sabendas, de uma vida humana inocente”
41
. Considerou, assim,
ilegítima qualquer intervenção na vida humana dependente, ainda que realizada
como meio para salvar a vida da gestante.
Entretanto, nem sempre foi esse o posicionamento da Igreja Católica a
respeito do aborto. Isso porque, durante quase 18 séculos não houve consenso a
respeito do momento em que a alma é incorporada ao produto da gestação. Durante
este período, a Igreja sustentou pontos de vistas conflitantes, ao sabor da doutrina
dominante à época. De acordo com Franco, a tese sobre a animação imediata ou
retardada foi objeto de controvérsias durante séculos, sendo que, só a partir de
1869, com a Encíclica Apostolicae Sedis do Papa Pio IX, “é que se eliminou a
referência a fetos inanimados, trazendo como conseqüência a sanção canônica da
excomunhão para o indivíduo que cometa qualquer interrupção da gravidez,
inclusive nos primeiros estágios da gestação.” Finaliza o autor, aproveitando a
41
Mammana, 1969, p.486.
28
oportunidade para rechaçar as atuais críticas da Igreja sobre o relativismo
moderno
42
, que a adoção de pontos de vistas conflitantes na sua história deixa “à
evidência que o relativismo não é apenas um procedimento atual, mas algo que está
nela inserido na noite dos tempos. A intolerância e a intransigência da Igreja
Católica, nessa matéria, datam, portanto, pouco menos de cento e quarenta anos.”
43
A polêmica sobre o momento em que ocorre a animação do feto, seja
imediata ou retardada, perdurou por longo tempo na história da Igreja e, embora
tenha prevalecido, ao final, a tese da animação imediata, segundo a qual “a união
do corpo – como conseqüência da fecundação – com a alma – que se recebe de
Deus – ocorre nesse primeiro momento”, conforme assinalado por Franco, “força é
convir que a tese da animação retardada teve uma vigência cronológica superior e
contou com o apoio, em diferentes épocas históricas, de pensadores religiosos como
São Jerônimo, Teodoreto, Santo Agostinho e, sobretudo, São Tomás de Aquino.”
Acrescenta, ainda, que este último pensador tinha uma postura “muito biológica da
formação do feto: Deus introduz a alma somente quando o feto já adquiriu,
gradativamente, primeiro, alma vegetativa e, depois, alma sensitiva. Apenas depois
disso, em um corpo já formado, é criada a alma racional (Suma Teológica, I, 90) .”
Sendo assim, “ o embrião só tem alma sensitiva (Suma Teológica, I,76,2 e I, ll8,2).
Na Suma contra os Gentios (II,89), diz-se que existe uma gradação na geração ‘por
causa das formas intermediárias das quais vem dotado o feto desde o início até
obter sua forma final’.” Esta é a razão pela qual no Suplemento à Suma Teológica
(80,4), lê-se que: depois, no Juízo Final, quando os corpos dos mortos ressurgirem
para que a nossa carne também participe da glória celeste
44
, dessa ‘ressurreição da
42
Neste sentido, o Papa Bento XVI fez duras críticas ao que chama de relativismo da fé, incitando os
católicos a não serem crianças na fé, que são aqueles que são “batidos pelas ondas e levados ao
sabor de qualquer doutrina”. Para justificar, argumentou sobre “quantos ventos de doutrina
conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de
pensamento” Dessa forma, entende que a atitude em voga nos tempos atuais é uma “ditadura do
relativismo que não reconhece nada como definitivo.” (Ratzinger apud Franco, 2006, p.35.)
43
Franco, 2006, p.33.
44
De acordo com Franco (op.cit., p.36 ), citando Agostinho, na glória celeste os nascidos mortos,
como também os em forma humanamente perfeita, os enganos da natureza, os mutilados, os
concebidos sem braços ou sem olhos, poderão reviver na plenitude de sua beleza e complexidade
adulta.
29
carne’ não participarão os embriões. Neles ainda não havia sido infundida a alma
racional e, portanto, não são seres humanos.
45
Desse modo, a maneira inflexível com que a Igreja Católica defende e
conduz os debates na atualidade, defendendo veementemente a tese da animação
imediata do zigoto, não condiz com o passado de 17 séculos em que a questão do
aborto, do ponto de vista religioso, era objeto de um discurso aberto, não se
tratando, ainda, de uma postura fundamentalista.
46
A partir do momento em que adotou a tese da animação imediata do
zigoto, várias foram as encíclicas nas quais a Igreja consagrou sua posição vigorosa
condenando o aborto, as quais, por sua vez, exerceram forte influência nas
legislações. A título ilustrativo, temos a Casti Conubii (1930), de Pio XI; Mater et
Magistra (1961), de João XXIII; Humanae Vitae (1968), de Paulo VI, a qual
condenava inclusive o aborto por razões terapêuticas e em razão de estupro. O
Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande
severidade: “A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o
primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis”.
Esta posição foi seguida e reforçada na encíclica Evangelium Vitae (1995), de João
Paulo II, que também condenou quaisquer intervenções sobre embriões humanos.
A Igreja Católica, em princípio, condenava o aborto necessário (ou seja, a
interrupção da gestação quando não há outro meio de salvar a vida da gestante),
por acreditar que a morte do nascituro, sem o sacramento do batismo, implicaria na
perdição daquele ser, que ficaria excluído do Reino de Deus. Porém, refez seu
entendimento na Encíclica Casti Connubii, de Pio XI., onde passou a tolerar o aborto
necessário.
47
No século XX, por ocasião da publicação da Encíclica Humanae Vitae
(1968), tornou-se “intensa e pública” a discordância entre os católicos sobre as
45
Franco, op.cit., p.35/36.
46
Segundo Franco (op.cit., p.36), “bem mais perigoso do que uma ditadura do relativismo, é o
fundamentalismo, que põe à mostra o rosto do fanatismo, isto é, a conduta de ‘quem procura a
afirmação de seus próprios princípios morais, deixando que estes ultrapassem os interesses reais das
pessoas de carne e osso e ficando indiferente perante os enormes danos que a sua atuação provoca
a milhões de seres humanos.’”
47
Hungria, 1942, p.234. No mesmo sentido: Nogueira, 1995, p.44.
30
questões relativas à sexualidade e à procriação. Rosado-Nunes refere que diversos
foram os episcopados, acompanhados de teólogos católicos, que reagiram aos
ensinamentos do Papa Paulo VI. Ainda que não esteja diretamente ligada ao aborto,
essa divergência revela “um elemento central do pensamento católico: o recurso à
própria consciência, em questões de moral. Tal recurso, parte da mais lídima
tradição religiosa cristã, é fundamental quando se discute a possibilidade de
mulheres católicas decidirem pela interrupção de uma gravidez.”
48
À título ilustrativo, Rosado-Nunes reproduz trecho do documento emitido
nesta ocasião, por bispos belgas no qual está consignado que a doutrina tradicional
da Igreja remete à “consciência devidamente esclarecida segundo o conjunto de
critérios que se expõem na Gaudium et Spes (n.50, §2; n.51, §3)”, de forma que
entendem que a decisão sobre “a oportunidade de uma nova transmissão da vida
pertence, em última instância, aos esposos, que devem decidir sobre a questão, na
presença de Deus.”
49
No mesmo sentido, porém mais enfática, é a Carta Pastoral dos bispos
nórdicos, datada de outubro de 1968, a qual destaca que “quando uma pessoa, por
razões sérias e bem ponderadas, não se convence pelos argumentos da encíclica
(Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada
em um documento não infalível.” Assevera, ainda, que ninguém deve ser
considerado mau católico pela única razão de discordar. Concluindo que “ninguém,
nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência.”
50
De outra parte, abordando um tema correlato, especificamente sobre o
uso de meios contraceptivos - o que nos dias atuais permanece condenado pela
Igreja católica - muitos sacerdotes individualmente e vários episcopados, dentre
eles, Áustria, Bélgica e França, “orientaram seus fiéis no sentido de que se
considerassem livres para seguir sua consciência, pois não se tratava de dogma de
fé.”
51
48
Rosado-Nunes, 2006 b, p.25.
49
Rosado-Nunes, 2006 b., p.26.
50
Rosado-Nunes, idem, ibidem.
51
Rosado-Nunes, 2006 b., p.29.
31
Outrossim, no tocante a interrupção da gestação por anomalia fetal
incompatível com a vida, a Igreja Católica, por meio de Cartas Pastorais de Bispos,
também mantém seu posicionamento contrário a esta prática, declarando que “a
situação atual dos conhecimentos ainda não permite certeza absoluta no diagnóstico
de deformidades”.
Antônio Vigário, criticando o Movimento Pró-Vida (organização formada
por membros da Igreja Católica que condenam o aborto), declara que ao invocar-se
a titularidade divina sobre a vida, defende-se para o feto direitos que não são
assegurados para a gestante, a saber: o direito à vida, liberdade e dignidade. Ainda,
relaciona a moral sexual católica como causa do aborto, uma vez que considera o
sexo altamente censurável ou pecado, levando muita gente a decidir pelo aborto ao
ser confrontado perante uma gravidez não desejada. Conclui, dessa forma, que “a
Igreja Católica é cúmplice do fundamentalismo desse Movimento Pró-Vida na
medida em que ele é um mero reflexo da sua rígida e desajustada moral sexual.
Poucos são os católicos que se refletem na moral sexual oficialmente defendida pela
Igreja .”
52
Por sua vez, a Doutrina Espirita, só admite o aborto necessário. Allan
Kardec, o codificador do Espiritismo, explica que “a união da alma com o corpo
começa na concepção” e se o corpo escolhido morrer antes do nascimento, “ele
escolhe outro corpo”. E perguntado se haveria crime em sacrificar a criança para
salvar a vida da mãe, quando a vida desta estivesse em perigo, ele responde: “é
preferível sacrificar o ser que não existe ao ser que já existe.”
53
No que diz respeito a interrupção da gravidez por malformação fetal, o
espiritismo já assentou parecer contrário a esta prática. Eliseu F. Mota Jr. ensina que
a malformação do feto, para o espiritismo, está ligada a “débitos pregressos da
entidade reencarnante, com o prévio conhecimento dos pais no período da
erraticidade, ou mesmo durante o sono. Se o aborto eugênico for consagrado, será
impossível a esses espíritos endividados o acerto de suas contas com a lei divina ou
52
Vigário, A. apud Ribeiro, 2000, p.85.
53
Nogueira, 1995, p.20.
32
natural.”
54
De outra parte, o Judaísmo apresenta uma postura mais flexível no que
diz respeito à questão do aborto. Isso porque, além de possuir concepções
teológicas diferentes em relação à alma e ao ‘pecado original’, os judeus acreditam
que o nascimento que confere o status de ser humano, somente se tornando pessoa
um mês após o nascimento. Ademais, como observam Schor e Alvarenga, “o fato de
não existir uma autoridade máxima ditando todas as regras de conduta faz com que
os judeus possam ter liberdade sobre sua própria consciência.”
55
Por seu turno, entre os credos protestantes verifica-se uma postura mais
flexível que a adotada pela Igreja Católica, embora jamais encare o aborto como
método de controle de natalidade. Referindo-se a interrupção da gravidez por
indicação médica, pastores batistas, metodistas, presbiterianos, episcopais,
luteranos e unitários, reportando-se a inquérito norte americano em que se
pronunciaram, “afirmam que a posição protestante é muito menos rígida que a
católica, pois dá maior importância a vida materna, além de afirmar que o problema
do aborto deva ser examinado e resolvido entre médico e paciente”.
56
Dessa forma, verifica-se que apesar do posicionamento radical da
doutrina católica, seguida de forma mais tênue pelos judeus e espíritas, existem
outras religiões nas quais prevalece o entendimento de que há casos em que o
princípio da inviolabilidade da vida humana deve ser ponderado face a outros
valores, como a vida da mãe. Também, considerando-se a baixa qualidade de vida
de uma criança portadora de uma determinada anomalia grave, e principalmente,
quando as chances de sobrevida extra-uterina forem remotas ou nulas, sobrepõe-se
o valor da dignidade humana ao da santidade. Para estes credos, a divindade está
em reconhecer que a vida humana possui um valor especial que a distingue dos
demais seres vivos.
1.3 Tutela jurídica da vida humana dependente
54
Mota Jr., 1995, p.65.
55
Schor; Alvarenga, 2006.
56
Papaleo, 1993, p.81.
33
Não há como discutir o direito à legalização do aborto sem debater o
problema da proteção jurídica da vida humana intra-uterina. Até o momento, os
argumentos trazidos ao trabalho possuem respaldo nas principais correntes
biológicas e antropológicas sobre o inicio da vida humana. Entretanto, para
instrumentalizar a discussão sobre a legitimidade da opção pela interrupção da
gravidez, torna-se imprescindível verificar a partir de quando e até que ponto a vida
intra-uterina recebe proteção do ordenamento jurídico nacional.
Nesse contexto, vale assinalar que por constituir-se num Estado
Democrático de Direito, as políticas públicas e decisões devem ser laicas, visando
sempre a resguardar os direitos e garantias fundamentais.Desse modo, por estar
institucionalmente separado de qualquer igreja ou crença, o Estado deve assegurar
a cada indivíduo ou cidadão a liberdade religiosa, o que importa, em última análise,
no direito a não ser submetido a decisões embasadas em princípios religiosos,
filosóficos ou ideológicos de qualquer espécie.
57
Portanto, deve ser o tema analisado
com fundamento em argumentos jurídicos, científicos e de moralidade laica,
afastando quaisquer dogmas de fé, de forma que em nada acrescenta ao debate
saber, por exemplo, o suposto momento em que ocorre a incorporação da “alma” no
feto.
No ordenamento jurídico brasileiro, a vida humana intra-uterina é
protegida com intensidade substancialmente menor do que a vida de alguém já
nascido. Não é necessário tecer grandes argumentos para comprovar o ora referido,
para tanto, basta observar os artigos 121 (matar alguém – pena de 6 a 20 anos de
reclusão) e 124 (praticar aborto – pena de 1 a 3 anos de detenção), ambos do
Código Penal, para concluir que o tratamento é diverso para os delitos cometidos em
face do homem já nascido e àqueles contra o nascituro. Deste modo, não há como
colocarmos no mesmo patamar os direitos da mãe e do embrião/feto.
57
No mesmo sentido, Ribeiro (2000, p.86) afirma que “num Estado Democrático de Direito,
respeitador e guardião das liberdades e dos direitos fundamentais, e institucionalmente separado de
qualquer igreja, todos são, ou têm o dever de serem laicos. Laicos no sentido de preservar a
separação entre o que é valor pessoal e o efetivo exercício do Direito, em relação ao direito do outro.
Traduzindo, isto significa não deixar que o domínio dos direitos e da comunidade política seja
colonizado pelas ortodoxias religiosas hegemônicas.”
34
Sarmento refere que a noção quanto à diferença entre o valor da vida
intra-uterina e de um ser já nascido é “fortemente arraigada no sentimento social –
mesmo para os segmentos que reprovam a liberalização do aborto.” Para tanto,
justifica seu entendimento trazendo o exemplo do aborto espontâneo, que, no seu
sentir, “por mais que se trate de um fato extremamente doloroso para a maioria das
famílias, o evento não costuma representar sofrimento comparável à perda de um
filho já nascido, pois a percepção geral é a de que a vida vale muito mais depois do
nascimento.” Ao lado disso, aliando fundamentos científicos para embasar seu
argumento, acrescenta que até a formação do córtex cerebral (o que ocorre no
segundo trimestre de gestação) o feto não apresenta “capacidade mínima para a
racionalidade”, sendo que antes de alcançar este estágio, “o nascituro não é capaz
de qualquer tipo de sentimento ou pensamento”
58
, fato este que, segundo o autor,
justifica a diferença na valoração entre a vida humana dependente e o ser já
nascido. Para ele, essas são as razões para afirmar que o nascituro, embora já
possua vida, não é ainda pessoa.
Muito embora o aborto integre o rol de tipos compreendidos entre os
crimes contra a vida, faz-se necessário “que se trace uma linha demarcatória bem
visível entre ele e o homicídio. Não há confundir os dois bens jurídicos tutelados. De
um lado, a vida humana intra-uterina. De outro, a vida humana fora do ventre
materno.” Conforme acima referido, essas diferenças encontram ressonância na
extrema diversidade do quantum punitivo cominado para uma e outra dessas figuras
criminosas e, ainda, no fato de que o aborto não admite a modalidade culposa.”
59
A doutrina penal brasileira diverge com relação ao momento em que se
inicia a proteção jurídico-penal do nascituro. A corrente majoritária entre os
penalistas manifesta-se no sentido de haver vida humana e, portanto, tutelável pelo
direito penal, a partir da concepção. Comungam este entendimento, capitaneado por
Nelson Hungria, os penalistas Aníbal Bruno, Euclides Custódio da Silveira, Cezar
Roberto Bitencourt, José Henrique Pierangeli, Paulo José da Costa Junior e Álvaro
58
Sarmento, 2006, p.146.
59
Franco, 2006, p.47.
35
Mayrink da Costa .
60
Noutro sentido, é a doutrina de Fragoso, para quem “a lei não especifica o
que se deva entender por aborto, que deve ser definido com critérios normativos,
tendo-se presente a valoração social que recai sobre o fato e que conduz a restringir
o crime ao período da gravidez que se segue à nidação.” Desse modo, somente se
trata de aborto a interrupção do processo fisiológico da gravidez no período
compreendido a partir da implantação do ovo no útero materno até o início do parto.
No mesmo diapasão, Prado afirma que “o início da gravidez é marcado pela
fecundação. Todavia, sob o prisma jurídico, a gestação tem início com a implantação
do óvulo fecundado no endométrio, ou seja, com a sua fixação no útero materno.”
Além dos autores ora referidos, compartilham este entendimento os penalistas
Rogério Greco e Celso Delmanto.
61
Outrossim, Franco relembra que por ocasião do Relatório elaborado pela
Primeira Subcomissão para a feitura do Esboço de Projeto da Parte Especial do
Código Penal, restou consignado que “a vida é ‘um acontecer gradual e
segmentado, um processo biológico dinâmico que representa a soma de períodos
relativos’ e que somente ‘a partir do despertar cerebral, surge na sua inteireza a
pessoa humana, como titular do direito individual à vida e merecedora, portanto, de
tutela constitucional penal.’”
62
A par disso, como resultado verifica-se que no direito penal brasileiro o
conceito de aborto não é unívoco, de forma que não se traduz num “círculo fechado,
hermético, no qual nenhuma avaliação metajurídica interfere”. Diferentemente, “trata-
se de tipo que comporta alargamentos ou restrições, conforme a aferição, não
apenas jurídica, que se dá ao momento em que se reconhece a presença, na
gravidez, de vida humana individualizada e personalizada.” Dessa forma, na noção
de aborto, existem “espaços que demandam preenchimento” e para essa tarefa, “a
60
Nesse sentido, Hungria (apud Franco, op.cit., p.48) asseverou que “o código ao incriminar o aborto,
não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez , antes de seu termo
normal, há o crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início
do parto, isto é, até o rompimento da membrana amniótica) provocar sua interrupção é cometer o
crime de aborto.”
61
Franco, op.cit., p.50.
62
Franco, 2006, p.50.
36
doutrina brasileira trouxe à baila os posicionamentos referentes à visão concepcional
e à perspectiva biológico-evolutiva”. De acordo com Franco, “o único posicionamento
até agora não incluído refere-se ao do compromisso relacional mãe/filho.”
63
Ao seu turno, o Código Civil brasileiro enuncia, no seu artigo 2º, que “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direito do nascituro.
64
” Comentando este artigo,
Venosa explica que “o fato do nascituro ter proteção legal não deve levar a imaginar
que tenha ele personalidade. Esta só advém do nascimento com vida. Trata-se de
uma expectativa de direito.”
65
Do ponto de vista constitucional, a Constituição Federal garante a todos o
direito à vida, não fazendo qualquer menção expressa à proteção da vida humana
desde a concepção. Aliás, convém destacar que a proposta do então Deputado
Meira Filho, para que fosse expressamente referida a proteção da vida desde a sua
concepção, foi rejeitada pela Assembléia Nacional Constituinte.
66
Em que pese não haver na Constituição menção ao momento em que se
inicia sua proteção, em razão de se tratar de vida humana, e assim, um projeto de
pessoa, merece o nascituro a proteção constitucional, porém não com o mesmo grau
conferido à pessoa. Neste particular, Canotilho e Moreira afirmam que “enquanto
bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida
humana parece abranger não apenas a vida das pessoas mas também a vida pré-
natal, ainda não investida numa pessoa.” Entretanto, ressalvam que o regime de
proteção dessa vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente protegido,
“não é o mesmo que o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no
que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos (v.g., saúde, dignidade, liberdade da mulher, direitos dos progenitores a
uma paternidade e maternidade consciente).” Acrescentam que “a proteção da vida
intra-uterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento,
desde a formação do zigoto até o nascimento”, e, por fim, “os meios de proteção do
63
Franco, 2006., p.51.
64
Lei n.º 10.406/02, art. 2º.
65
Venosa, 2002. p.160
66
Lorea, 2006, p.174.
37
direito à vida – designadamente os instrumentos penais – podem mostrar-se
inadequados ou excessivos quando se trate de proteção da vida intra-uterina.”
67
No mesmo sentido, destacando que em sede de interpretação de normas
constitucionais deve-se preferir àquela que confira maior eficiência aos direitos
fundamentais, Franco assinala que, não obstante o texto constitucional nada dizer a
respeito do não nascido, “tudo está a indicar que sua vida é um bem relevante que a
Constituição se obriga a tutelar de forma que não sofra violação.” A Constituição ao
declarar a inviolabilidade do direito à vida e sua titularidade universal, torna evidente
“que o conceito de vida, para que possa ser compreendido na sua plenitude, abarca
não somente a vida independente, mas também a vida humana em formação.” E
mais, ao caracterizar a vida humana dependente como bem jurídico constitucional,
vincula-se também “ao princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em
que se exige do Estado o dever de respeitar a vida humana, e, nessa circunstância,
uma vida em formação representará, num momento determinado do processo de
gestação, um valor merecedor de tutela.”
68
Restaria, assim, caracterizada a proteção
constitucional da vida em formação.
Ao seu turno, a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida
como ‘Pacto de São José da Costa Rica’, aprovada pelo Congresso Nacional em
26/05/92, por meio da edição do decreto legislativo n.27, no seu art. 4º, inciso I,
enuncia que “toda pessoa tem direito a que se respeite a sua vida. Esse direito deve
ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode
ser privado da vida arbitrariamente.”
Contudo, uma breve leitura deste dispositivo pode induzir ao falso
entendimento de que a vida humana deve ser juridicamente tutelada a partir da
fecundação, o que se revela numa interpretação equivocada. Isso porque, de acordo
67
Canotilho; Moreira apud Sarmento, 2006, p.146. Em sentido contrário, Vives Antón (apud Franco,
2006, p.23-24) destaca que “o nascituro não é, pelo menos por si mesmo e de modo direto, um bem
jurídico constitucional. E isto porque a Constituição proclama o direito à vida em relação às pessoas,
condição que juridicamente só se alcança com o nascimento. E o mesmo ocorre com a proclamação
da dignidade das pessoas. Por conseguinte, o nascituro não é pessoa a partir da ótica do
ordenamento jurídico e a proclamação do direito à vida e da dignidade, não o atinge diretamente.
Poderá argüir-se a necessidade de outorgar proteção jurídico-penal ao nascituro e isso ninguém põe
em dúvida. Mas, desde logo, técnica e valorativamente falando, não é um direito constitucional. Pode
e deve entender-se como um interesse ou bem jurídico, com certa relevância constitucional enquanto
reflexo dos direitos à vida e à dignidade.”
68
Franco, 2006, p.24.
38
com Franco, o Pacto de San José da Costa Rica “não estabeleceu nenhum dever de
criminalização ao Poder Legislativo dos Estados conveniados, ao dispor que a vida
deve ser protegida desde o momento da concepção.” Acrescenta que “a exigência
dessa tutela não está adstrita, com exclusividade, ao direito penal e, portanto, à
figura típica do aborto.” Isso porque é sabido que o controle repressivo só deve atuar
quando os demais controles sociais formais se revelem ineficazes, porquanto se
trata da ultima ratio do Estado. Sem dúvida, existem outros meios de proteção do
momento da concepção, como uma adequada política social de inclusão dos
necessitados, a criação de aconselhamento psicológico às gestantes, além da
implantação de políticas públicas voltadas ao planejamento familiar que seriam
alternativas à ampla proibição penal do aborto. Em razão disso, criar um estatuto
jurídico próprio, em relação ao embrião ou ao feto, parece ser um procedimento
recomendável nos termos do Pacto de San José da Costa Rica. No entanto,
pretender a tutela penal a partir da concepção é algo que não decorre, de forma
explícita, do texto do referido pacto.
69
De outra parte, a redação do art. 4, inciso 1, do Pacto de San José da
Costa Rica, não atribuiu um caráter absoluto ao direito à vida tomando-se a
concepção como “inflexível ponto de partida da pessoa humana.” Observe-se que a
expressão em geral não foi incluída desavisadamente no seu texto, mas, “constitui,
sem nenhuma margem de dúvida, uma válvula de escape através da qual se admite
que, em situações determináveis, o direito à vida não pode, nem deve ser protegido
desde a fecundação.”
70
Ao mesmo tempo, Sarmento destaca que embora a proteção da vida se
inicia no momento da concepção, “a tutela da vida anterior ao parto tem de ser
menos intensa do que a proporcionada após o nascimento, sujeitando-se, com isso,
a ponderações de interesses envolvendo outros bens constitucionalmente
protegidos, notadamente os direitos fundamentais da gestante.” Essa é a razão para
a adoção da expressão “em geral”, no texto do artigo em discussão, ato que “revela
69
Franco, 2006, p.38.
70
Franco, op.cit., p.39.
39
com nitidez que as partes celebrantes do tratado não quiseram conferir à vida intra-
uterina uma proteção absoluta.”
71
Em outras palavras, o uso da expressão “em geral” evidencia que a
proteção à vida intra-uterina deve ser concebida como um princípio e não como
regra. Ou seja, na esteira de Alexy, “a proteção ao nascituro constitui um “mandado
de otimização” em favor de um interesse constitucionalmente relevante – a vida
embrionária -, sujeito, contudo, a ponderações com outros princípios constitucionais,
e que pode ceder diante deles em determinadas circunstâncias.” Segundo o mesmo
autor, este entendimento é reforçado pela interpretação sistemática da Convenção
Interamericana dos Direitos Humanos, a qual “consagra em seu bojo uma série de
outro direitos, titularizados também pelas gestantes, que podem entrar em colisão
com a proteção à vida embrionária”.Em conclusão, “a atribuição de um peso
absoluto à proteção da vida do nascituro implicaria, necessariamente, na lesão a
estes direitos, razão pela qual torna-se essencial a sua relativização.”
72
Sob outra perspectiva, especificamente questionando-se a validade do
art. 4º, I, do Pacto de San José da Costa Rica frente aos demais Tratados
Internacionais que versam sobre Direitos Humanos (notadamente, a Convenção da
ONU sobre a Eliminação de todas a Formas de Discriminação contra a Mulher –
1979 - e a Convenção de Belém do Pará, elaborada no âmbito da OEA – 1994),
somando-se a isso a tutela constitucional do direito a saúde, privacidade, autonomia
reprodutiva e igualdade de gênero, não há como “conferir peso absoluto à proteção
à vida embrionária, sob pena de criar-se uma contradição insanável na ordem
jurídica.”
73
Em síntese, a posição intermediária que reconhece a tutela constitucional
da vida intra-uterina, mas atribui a ela uma proteção menos intensa do que a
concedida à vida extra-uterina é a que tem prevalecido amplamente no mundo. Para
Sarmento, “as posições radicais, que equiparam esta tutela à conferida à vida de
71
Sarmento, 2006, p.148.
72
Sarmento, 2006, p.149. Nomeadamente, com relação aos direitos em colisão, o autor cita o
respeito da integridade física, psíquica e moral (art. 5º, 1), a liberdade e segurança pessoais (art. 7º,
1), a proteção à vida privada (art. 11, 2), dentre outros.
73
Sarmento, 2006, p.150.
40
pessoas nascidas, ou que negam qualquer proteção jurídica ao nascituro, já não
seduzem quase ninguém.”
74
De todo o exposto, é possível concluir que a ordem jurídica nacional
protege a vida intra-uterina, entretanto, de forma mais débil do que a tutela
assegurada à vida das pessoas nascidas. Outrossim, em situações particulares, é
lícito que esta proteção ceda mediante uma ponderação de interesses, se
configurado um conflito entre os direitos fundamentais da gestante e a vida
dependente. Ademais, por ser um processo gradual, a tutela da vida do nascituro é
mais intensa no final do que no início da gestação, considerando o estágio de
desenvolvimento fetal correspondente, devendo tal fator ter especial relevo na
definição do regime jurídico do aborto.
74
Sarmento, op.cit., p.147.
41
CAPÍTULO 2 ABORTO LEGAL E CRIMINOSO
75
2.1 Referência histórica
Desde a Antigüidade, têm-se notícias de políticas relacionadas ao aborto
ou ao abandono de recém-nascidos portadores de anomalias físicas. Não se tinha
propriamente um aborto eugênico, pois tais atitudes eram tomadas logo após o
nascimento, mas o escopo que norteava tais ações por parte do Estado
assemelhava-se a esta indicação.
Na Grécia Antiga, a prática do aborto era difundida em todas as camadas
sociais, não obstante o juramento de Hipócrates que vedava a administração de
qualquer substância abortiva (a nenhuma mulher darei substância abortiva). Cumpre
destacar que esta restrição era dirigida aos médicos, para quem praticar aborto
representava um dos crimes mais graves a que estavam sujeitos. Pierangeli recorda
que Aristóteles se mostrou contrário ao aborto, mas no livro sétimo de sua Política
admitiu sua prática quando o número de cidadãos se tornava excessivo, desde que
a mulher tivesse sido emprenhada por fato delituoso e houvesse autorização judicial,
75
No rigor etimológico, aborto significa o produto da concepção morto ou expelido e abortamento, o
ato de abortar. Entretanto, essas palavras vêm sendo utilizadas pela doutrina, sem distinção, de
forma que neste trabalho privilegiar-se-á a nomenclatura aborto.
42
posicionamento este que foi seguido por Platão.
76
De outra parte, no tocante aos
nascidos com alguma deformidade física, a recomendação era para que fossem
abandonados no alto de uma montanha logo após o nascimento. Na opinião de
Platão e Aristóteles, a morte dos bebês deformados deveria ser imposta pelo
Estado. Licurgo e Sólon compartilhavam do mesmo entendimento. Segundo Hungria
“acreditavam que era melhor por fim a uma vida que começara inauspiciosamente
do que tentar prolongá-la, com todos os problemas que ela poderia acarretar.”
77
Platão, ao seu turno, adotando uma postura mais radical, aconselhava o aborto para
toda mulher que concebesse após os 40 anos. Na República, declara que
estabelecerá “uma medicina e uma jurisprudência que se limitem ao cuidado dos
que receberam da natureza corpo são e alma famosa; e pelo que toca aos que
receberam corpo mal organizado, deixá-los morrer e que sejam castigados com
pena de morte os de alma incorrigível.”
78
Contudo em Esparta, sob o pretexto de que o povo deveria contar com
maior número de atletas e de guerreiros para a glória e segurança do Estado, a
prática do aborto era proibida. Entretanto, o tratamento era outro se a criança viesse
a apresentar alguma malformação. Motivados pelo forte espírito bélico presente na
mentalidade daquele povo, onde o interesse da coletividade se sobrepunha aos
laços familiares (salus populi, suprema lex), era vexatório para família possuir um
filho que não pudesse servir ao Estado, principalmente, nas guerras. Conforme
Nogueira, estas crianças eram consideradas carga inútil para os seus familiares,
como também para o Estado, que era dispensado de manter uma criança que não
lhe fosse útil. Dessa forma, por serem considerados imprestáveis à comunidade, era
prática comum e até mesmo obrigatória, a precipitação de recém-nascidos
malformados do alto do Monte Tajeito.
79
Por seu turno, no antigo direito romano o feto era considerado parte das
vísceras da mulher, ou seja, mulieris pars vel viscerum. Pierangeli destaca que,
embora a prática do aborto fosse considerada uma grave imoralidade entre os
romanos, sendo permitido tão-somente ao marido em relação à sua mulher, sua
76
Pierangeli ,2005, p.108
77
Hungria, 1942, p.233. No mesmo sentido: Pierangeli, op.cit., p. 108; Prado, 2005, p. 103.
78
Platão apud Nogueira, 1995, p.43.
79
Nogueira, idem, ibidem.
43
incriminação não ocorreu tanto na República, como também nos primeiros tempos
do Império. Nessa época, por considerarem o feto como parte do corpo da gestante,
reconhecia-se à mulher o direito de dispor livremente do próprio corpo (partus
antequam edatur mulieris pars est vel viscerum), de forma que o aborto ficava
impune, salvo quando violasse a vontade do marido. Segundo o mesmo autor, na
Roma Antiga o aborto era considerado “um fato de pouca significação e um delito de
escasso relevo, cujo cometimento afetava mais os interesses individuais do que os
sociais, ou seja, protegiam-se a saúde e a integridade física da gestante e não a
vida do feto.”
80
Entretanto, durante o reinado do imperador Septimus Severus (193 – 211
d.C), o aborto deixou de ser considerado uma lesão à saúde e a integridade física da
gestante, passando a ser considerado lesão ao direito de paternidade, sob a
justificativa de frustração das expectativas paternas quanto a sua descendência.
Assim, o aborto próprio ou consentido seria punível somente quando a gestante
fosse casada, e sem a finalidade de proteger o feto, e sim o direito que possuía o
marido à sua descendência. Pierangeli afirma que esta concepção individualista
decorre da organização social e econômica dos romanos, de seu direito em geral e
do seu sistema penal em particular. Ainda que submetido a algumas modificações,
esta concepção individualista foi remetida aos práticos e às legislações medievais.
81
Não obstante, com relação aos nascidos sem aparência humana e sob o pretexto de
não serem pessoas, eram precipitados de penhascos logo após o nascimento.
82
Similarmente, entre os povos que também consideravam o auto-aborto e
o aborto consentido impunes, figuram os egípcios e os hebreus, cuja interrupção da
gravidez era prática corrente, na sua maioria, com a finalidade de “elidir as dores e
perigos do parto, para evitar os desgostos e as obrigações da mãe no aleitamento,
ou a multiplicação da prole.”
83
Ao lado disso, na Índia, os brahmanes tinham o
costume de matar ou abandonar na selva os recém-nascidos que lhes pareciam de
má índole.
84
80
Pierangeli, 2005, p.108.
81
Pierangeli, 2005, p.108.
82
Matielo, 1994, p.62.
83
Pierangeli, idem, ibidem.
84
Mammana, 1969, p.341.
44
Destarte, essa política em relação aos recém nascidos também foi
adotada por outras culturas. No Brasil, segundo Mammana, “os índios não só
matavam as crianças recém-nascidas com sinais de doença ou que tivessem algum
defeito físico, mas também os gêmeos, os ilegítimos e os adultos portadores de
moléstias incuráveis”
85
No entanto, sob a influência do Cristianismo, as práticas relacionadas ao
aborto e abandono dos recém-nascidos malformados foram desaparecendo, sendo
substituídas por um sentimento de sacralidade e intangibilidade da vida. Prado
assinala que a legislação sobre o aborto, no antigo direito romano, foi reformulada
pelos imperadores Adriano, Constantino e Teodósio, equiparando sua prática ao
homicídio.
86
Consolidou-se o entendimento de que a vida iniciava-se no momento da
concepção, e que não havia distinção entre um feto e um ser já nascido. A vida a ser
tutelada era a mesma, merecendo idêntico tratamento. Portanto, foi o Cristianismo
que identificou a figura do aborto ao homicídio, porquanto considerou o feto criatura
de Deus, uma esperança de vida humana que deveria ser protegida pela religião,
pela moral e pelo direito.
87
Não obstante, Pierangeli refere que já na Idade Média, as
legislações conferiam tratamento diverso e penas diferentes, de acordo com o
período gestacional em que se encontrava o feto.
88
Contudo, estudos realizados nas áreas da História e Teologia revelam
que a punição do aborto durante os primeiros seis séculos do cristianismo visava
punir o adultério que a gestação revelaria, ao invés de resguardar a vida do feto.
Segundo noticia Rosado-Nunes,
A preocupação central – da Igreja como do Estado – era a
constituição do casamento monogâmico como regra para toda a
sociedade. No Império, estabeleceram-se leis que desencorajavam o
concubinato. O primeiro Concílio do Ocidente, realizado no século IV,
antes mesmo da oficialização do cristianismo por Constantino – o
Concílio de Elvira – estabeleceu penas religiosas severíssimas para
85
Mammana, op.cit., p.343.
86
Prado, 2005, p.103.
87
Hungria, 1942, p. 233. Sobre o assunto, veja-se também Mammana, 1969, p.343.
88
Pierangeli, 2005, p.109.
45
as transgressões à fidelidade conjugal. As penas impostas pelo
estado e pela Igreja eram mais duras para os casos de adultério do
que para os de homicídio. Assim, pode-se dizer que, diante das leis
religiosas, como das leis romanas, a afirmação do casamento
monogâmico como única união legítima era mais importante como
fundamento social do que a proteção da vida.
89
Paralelamente, para efeitos de punição, importava distinguir o momento
em que o feto tornava-se pessoa, visto que este seria o marco para configurar um
homicídio, e, por conseguinte, pecado. Para tanto, com arrimo na doutrina
aristotélica de que o feto passava a ter alma a partir de 40 ou 80 dias após a
concepção, caso fosse do sexo masculino ou feminino, respectivamente, o direito
canônico fazia a distinção entre feto animado e inanimado. Conforme é destacado
por Fragoso, referida distinção foi repudiada por S. Basílio (374 DC), porém São
Jerônimo e Santo Agostinho a mantiveram, o que também foi seguindo pelo
Decretum de Graciano (1140) e as Decretais do papa Gregório IX (1234). Por sua
vez, em 1588, o Papa Sixto V estipulou que as mesmas penas, canônicas e
seculares, deveriam ser aplicadas para o aborto e o homicídio, qualquer que fosse a
idade do feto. Entretanto, essa distinção novamente foi retomada com a Constituição
Apostólica Sedes, em 1591, do Papa Gregório XIX, a qual atenuou as penas
eclesiásticas, restringindo-as ao feto animado. Contudo, foi somente no pontifício de
Pio IX (1869) que foi abolida a distinção entre feto animado e inanimado, atribuindo-
se as mesmas penas em qualquer caso.
90
Desse modo, constata-se que, historicamente, durante 18 séculos, não
houve sequer consenso entre os cristãos acerca do momento em que o aborto seria
punível, demonstrando que a delimitação do início da vida se tratava mais de um ato
de fé do que uma constatação científica, conforme tratado no capítulo
anterior.Todavia, no Iluminismo, embora fosse mantida a severidade das penas para
o crime de aborto, afastou-se a equiparação entre sua pena e do homicídio,
atenuando-se a pena da gestante, havendo inclusive a indicação do motivo de
honra.
Especificamente no Brasil, a primeira referência ao aborto na legislação
89
Rosado-Nunes, 2006, p.23.
90
Fragoso, 1976, p.122.
46
específica ocorreu no Código Criminal do Império (1830), inserido no capítulo
referente aos Crimes contra a segurança da pessoa e da vida. Até este momento, a
prática do aborto não era punida ainda que fosse realizada pela própria gestante, a
exemplo do Código Francês de 1791. Dessa forma, o aborto seria punível apenas
quando executado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante.
Outrossim, também era sancionado o fornecimento de meios abortivos, ainda que
não fosse realizado o aborto.
91
Destarte, o Código Penal Republicano (1890) adotou a distinção entre
aborto com e sem a expulsão do feto, cominando àquele pena mais grave. De
acordo com Prado “as penas eram igualmente aumentadas se do aborto ou dos
meios empregados para realizá-lo resultasse a morte da mulher. O auto-aborto,
embora tipificado, tinha sua pena atenuada se praticado com o fim de ocultar
desonra própria.”
92
Ao mesmo tempo, conforme sustenta Paixão, o Código
Republicano foi o precursor das indicações ao aborto legal e necessário, quando
não houvesse outro meio para salvar a vida da gestante.
93
Atualmente, vige o Código Penal datado de 1940, o qual tipifica o delito
de aborto no Título I (Dos Crimes contra a Pessoa), especificamente no capítulo I,
que trata dos crimes contra a vida. Exceto quando se tratar de gestação decorrente
de estupro ou nas hipóteses em que seja o recurso necessário para salvar a vida da
mãe, o aborto é punível com as penas tipificadas nos artigos 124 a 127, do CP.
Note-se que essa postura coloca o Brasil no grupo dos 43%
94
de países que
possuem a legislação mais severa com relação ao aborto.
Não foram poucas as tentativas de adequar a legislação penal aos
tempos contemporâneos. A iniciativa mais recente data de 06/04/2005, com a
instalação pela Secretaria Especial das Políticas para as Mulheres, de uma
Comissão Tripartite formada por 18 representantes dos poderes Executivo,
Legislativo e Sociedade Civil, com o intuito de rever a legislação sobre o aborto no
país. O resultado dos trabalhos dessa Comissão foi a elaboração de um anteprojeto
91
Prado, 2005, p.105.
92
Prado, idem, ibidem.
93
Paixão, 2006, p.205.
94
The World´s Abortion Laws apud Faúndes; Barzelatto, 2004, p. 189.
47
de lei que propôs a descriminalização do aborto no país, cujas sugestões foram
incorporadas ao PL 1.135/91, de relatoria da Deputada Jandira Feghali, o qual está
aguardando parecer da Comissão de Seguridade, Saúde e Família, na Câmara dos
Deputados.
2.2 O aborto e suas classificações
Para configuração do delito de aborto, não se faz necessária a distinção
entre óvulo fecundado, embrião ou feto. Para o legislador penal, suficiente é a
interrupção da gestação, independentemente do estágio em que se encontre.
Entretanto, o abortamento somente será punível em se tratando de uma
gravidez normal. Conforme ensina Costa Jr., seguindo a esteira de outros penalistas
95
refere que “para que se configure o abortamento, a gravidez deverá ser normal. A
interrupção da gravidez extra-uterina (no ovário, fímbria, trompas ou na parede
uterina) ou a da gravidez molar (formação degenerativa do óvulo fecundado) não
configuram o aborto, uma vez que o produto da concepção não atinge vida
própria.”
96
Vale assinalar que para fins de direito penal, somente interessam as
figuras do aborto legal e criminoso, porquanto no aborto natural, a interrupção da
gestação é espontânea, ou seja, decorre de um processo fisiológico. Por outro lado,
o aborto acidental apresenta-se como conseqüência de um acidente (v.g. queda de
cavalo), de forma que ausente condição para provocar a tutela penal.
O Código Penal contempla cinco modalidades de abortamento, quais
sejam: auto-aborto (art.124, primeira parte, CP), consentido (art. 124, segunda
parte), não consentido (art. 125, CP), necessário - ou terapêutico (art. 128, I, CP) e
sentimental (art. 128, II, do CP).
Inicialmente, para configurar o auto-aborto, necessário é que os atos
95
Neste sentido, dentre outros, cita-se: Nelson Hungria (1942, p. 235); Aníbal Bruno (1976, p.162);
Heleno Cláudio Fragoso (1976, p.128); Damásio de Jesus (2004, p.122); Pierangeli (2005, p.112);
Régis Prado (2005, p.110).
96
Costa Jr., 2005, p. 388.
48
executórios do delito sejam realizados pela própria gestante, sem qualquer auxílio
de terceiro. Constitui modalidade de crime próprio, da qual somente a gestante
poderá ser autora. Não obstante, “o terceiro que contribuir para o auto-aborto,
fornecendo o instrumental necessário ou auxiliando diretamente nas práticas
abortivas, responderá pelo mesmo crime.”
97
Por seu turno, no aborto consentido pela gestante, dois são os co-
autores, ou seja, a gestante e o terceiro. Nesta modalidade imprescindível é o
consentimento válido da mulher para que alguém realize o aborto. Costa Jr. (2005,
p.390) lembra que a gestante não se limita a tolerar a prática abortiva, de forma que
também coopera com ela. “A mulher não permanece inerte, pois exercita os
movimentos necessários e se coloca em posição ginecológica.” Outrossim, merece
destaque que o consentimento da mulher é parte integrante do tipo. Entretanto, em
razão de não possuir disponibilidade sobre a vida do feto, torna-se inoperante. Ainda
com relação ao consentimento, não precisa que seja expresso, podendo resultar até
da própria conduta passiva da gestante. Contudo, deverá ser válido para conduzir a
uma adequação típica mais benevolente em relação ao terceiro (at. 126, CP) e não
para uma forma mais grave (art. 125). Se a gestante for menor de catorze anos, ou
débil mental, ou se o consentimento for obtido mediante fraude, o crime a ser punido
é o contido no art. 125, como se provocado sem a anuência da gestante.
98
A terceira modalidade de aborto prevista na legislação brasileira
corresponde à forma não consentida, prevista no art. 125, do Código Penal, cuja
contrariedade da gestante poderá ser deduzida, ou até presumida, quando a ação
vier a ser praticada sem que a vítima tenha dela conhecimento.
Também há previsão da forma qualificada deste delito, descrita no
art.127, CP, que trata do agravamento de um terço da pena se em conseqüência do
aborto ou dos meios empregados, a gestante vier a sofrer lesão corporal grave. A
pena será duplicada se lhe sobrevier a morte. Trata-se da forma preterdolosa desse
crime. Contudo, o evento mais grave (lesão ou morte) não poderá ser cogitado nem
desejado pelo agente, ainda que eventualmente. Na hipótese do agente agir movido
97
Costa Jr., 2005, p.390
98
Costa Jr., op.cit., p.390-391.
49
pelo dolo, responde em concurso material pelos crimes de aborto e lesões, ou de
homicídio.
Finalmente, o legislador penal também contemplou, nos incisos do art.
128, do Código Penal, o aborto necessário (terapêutico) e o aborto sentimental (ético
ou criminológico). Em verdade, estas constituem as duas causas de exclusão de
antijuridicidade tipificadas no nosso ordenamento. Conforme será tratado nos tópicos
seguintes, embora a legislação nacional tenha optado por um sistema restrito de
indicações, existe previsão na legislação comparada para indicação econômico-
social, o qual visa evitar o agravamento da situação social da família numerosa e
desprovida de recursos; indicação eugenésica (quando há riscos comprovados de
que o feto nasça com graves anomalias físicas ou psíquicas), além de uma
interpretação menos restritiva do abortamento terapêutico (que além da vida, tutela a
saúde física e mental da mãe).
2.3 As causas de justificação previstas na legislação brasileira
O legislador penal definiu como crime de aborto a interrupção voluntária
da gestação que implique na morte do produto da concepção, sendo irrelevante,
como já dissemos, o estágio de desenvolvimento em que se encontre a gravidez.
Atualmente, verifica-se a existência de três tendências quanto a
incriminação do aborto, quais sejam: uma bastante restritiva, a exemplo do Código
Penal ora vigente; outra mais permissiva, “que consente o aborto num maior número
de casos (prole numerosa, idade avançada da mulher, morte ou incapacidade do
pai, mulher não casada, possível deformação do feto, incapacidade física ou
psíquica da mulher)”; e finalmente, um terceiro grupo de leis, bastante liberais, as
quais confiam à mulher a decisão de prosseguir ou não a gestação e permitem que
o médico decida quanto ao aborto. Este corresponde ao critério adotado por países
como o Japão, a Suécia, a Hungria e a Rússia, onde o índice de natalidade é baixo
e as taxas de abortos legais são muito grandes.
99
99
Costa Jr., 2005, p.387.
50
Comentando as soluções legislativas com relação ao aborto, Fragoso
observa que “as piores leis são as altamente restritivas, pois conduzem à realização
de abortos ilegais perigosos. Tais leis não podem ser observadas nem impostas pela
autoridade, levando o sistema penal ao descrédito.”
100
Ademais, em se tratando de
uma sociedade pluralista, ofendem a consciência daqueles que não aceitam os
valores invocados para justificar a punição. Ainda, na esteira do comentário de Lyra,
tal política conduz às práticas clandestinas, “aumenta seus perigos, oculta seus
males, desorienta a política social, desmoraliza a ameaça penal, prestigia a moral
pratica que tolera e não considera desonesto o abortamento.”
101
Prado assinala que embora o legislador brasileiro tenha optado pela
incriminação do aborto voluntário, também adotou o sistema de indicações. Segundo
esse sistema, “a vida do nascituro é um bem jurídico digno de proteção penal, o que
justifica a criminalização inclusive do auto-aborto, do aborto consentido e do aborto
provocado por terceiro com o consentimento da gestante.” Entretanto, estando
presente circunstância hábil a ensejar um conflito entre a vida do embrião ou feto e
determinados interesses da mãe, aquela deve ceder em favor destes últimos. “De
acordo com esse sistema, a vida do ser humano em formação não se encontra
desprotegida em nenhuma de suas fases de desenvolvimento; a par disso, é
possível atender certas necessidades ou interesses da mulher grávida (v.g. vida,
saúde, liberdade, intimidade ...).”
102
Neste contexto, o Código Penal de 1940, que continua em vigor nos dias
atuais, adotou uma postura mais restritiva, elencando somente duas hipóteses nas
quais o delito de aborto estaria afastado, isto é, as suas excludentes de
antijuridicidade, in verbis:
Artigo 128: Não se pune o aborto praticado por médico:
I – Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
103
100
Fragoso, 1976, p.125.
101
Lyra, R. apud Fragoso, idem, ibidem.
102
Prado, 2005, p.118.
103
Código Penal. Decreto-lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940.
51
Em conseqüência deste dispositivo legal, não são considerados como
crime o aborto necessário ou terapêutico (aquele motivado pelo risco de vida da
gestante) e o sentimental ou humanitário (aquele em que a gravidez é resultante de
estupro).
Note-se que se trata de uma ‘solução de compromisso’, porquanto
permite a realização do aborto apenas se presentes as hipóteses (indicações,
exceções) preestabelecidas pela lei, e desde que se enquadrem nos requisitos ali
exigidos. Assim, verifica-se que a legislação brasileira adotou tão-somente as
indicações terapêutica (com restrições) e a sentimental.
A primeira das indicações corresponde ao chamado aborto necessário
(art. 128, II, do CP), cujo propósito do abortamento é salvar a vida da gestante, na
ausência de outro meio eficaz. Segundo o magistério de Hungria, o aborto
necessário é definido como “a interrupção artificial da gravidez para conjurar perigo
certo, e inevitável por outro modo, à vida da gestante.” Dessa forma, pode ele ser
terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo). De acordo com o citado autor, a
justificativa para esta indicação ocorre em razão de que durante a gravidez, devido
ao “estado da mulher ou de alguma enfermidade intercorrente”, poderá ocorrer “séria
e grave complicação mórbida, pondo em risco a vida da gestante. Em tal situação. O
médico assistente é o árbitro a quem cabe decidir sobre a continuidade ou não do
processo da penhez.”
104
Esta indicação possui seu fundamento no estado de necessidade,
excludente da ilicitude da conduta prevista na Parte Geral do Código Penal. Isso
porque a conduta do médico visa afastar perigo atual – a morte – e se trata de um
bem jurídico alheio (vida da gestante), cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se. O mal causado (morte do produto da concepção) é menor do que
aquele que se pretende evitar (morte da mãe). E essa assertiva resulta da própria
valoração feita pelo Código Penal brasileiro, que confere maior valor à vida humana
extra-uterina que à intra-uterina: a pena do homicídio simples é de reclusão, de seis
a vinte anos (art. 121, caput, CP), enquanto a pena do aborto praticado por terceiro
104
Hungria, 1942, p.271-2.
52
sem o consentimento da mulher é de reclusão, de três a dez anos (art. 125, CP).
Não há, portanto, conflito entre bens iguais. Finalmente, impende destacar que o
aborto necessário independe do consentimento de familiares ou da gestante, que
poderia não estar em condições de prestá-lo, ou poderia sacrificar-se para salvar o
filho. Basta, para tanto, a constatação do médico de que não existe outro meio para
salvar a vida da gestante.
105
A segunda e última indicação contemplada na legislação brasileira é o
aborto sentimental, também chamado de indicação ética ou humanitária. Segundo
Hungria, “nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma
maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o
horrível episódio da violência sofrida.”
106
Nesse caso, não obstante inexistir perigo
de vida à gestante, o abortamento está autorizado em razão da gravidez resultar de
estupro. À título ilustrativo, a previsão legislativa da indicação sentimental ou
humanitária remonta historicamente à Primeira Guerra Mundial, quando muitas
mulheres ficaram grávidas em decorrência da violência sexual praticada pelos
exércitos invasores. Nesse contexto, conceber um filho nascido de um crime odioso,
além de representar grande sacrifício e humilhação para mulher, aumentava os
riscos de transmissão pela hereditariedade de características do autor do estupro,
considerado como pessoa degenerada e anormal. Costa Jr. recorda que para dar
uma solução legal ao problema, algumas codificações, como a iuguslava, a grega e
a polonesa, acolheram esta indicação, exemplo este que foi seguido por países
como a Suécia, Dinamarca e Islândia, autorizando legalmente o aborto. Este
posicionamento foi acolhido pela doutrina, que defendeu a tese do aborto
sentimental sob o argumento de que “seria desumano constranger uma mulher, que
já sofreu o dano da violência carnal, a suportar também aquele da gravidez, com
vistas a um ser em formação que, não tendo ainda vindo à luz, não é sujeito de
qualquer direito”.
107
Destarte, para realização deste procedimento, indispensável é o
consentimento da gestante, ou de seu representante legal, se incapaz. Outra
105
Prado, 2005, p.118.
106
Hungria, 1942, p.273.
107
Costa Jr., 2005, p.393.
53
condição inafastável é que o aborto seja praticado por médico, entretanto, admite-se
uma relativização dessa interpretação caso a gestante encontre-se em perigo de
vida (estado de necessidade).
Na opinião de Mirabete, estas excludentes de ilicitude estão respaldadas
legalmente por caracterizarem um estado de necessidade (previsto no artigo 24, do
Código Penal) ou inexigibilidade de conduta diversa, o que afastaria a culpabilidade,
pois a mesma não deve estar obrigada a cuidar de um filho gerado por um ato de
violência. O primeiro caso corresponde ao aborto necessário (ou terapêutico) que,
“no entender da doutrina, caracteriza espécie de estado de necessidade, em que se
elimina a vida fetal em favor da vida da gestante. O dispositivo é necessário porque,
na hipótese, é dispensada a necessidade da atualidade do perigo.” Desse modo,
havendo perigo para a vida da gestante, o aborto está autorizado. No tocante a
exigência de autorização da gestante, nos termos legais, dispensa-se o seu
consentimento, o que é exigido na segunda indicação, porquanto “o médico, o único
autorizado a realizar o aborto, pode agir em favor de terceiro, no caso a gestante.”
Ao lado disso, com relação ao aborto sentimental, ou seja, quando a gravidez resulta
de estupro, em verdade se trata de hipótese de inexigibilidade de conduta diversa,
uma vez que a justificativa da norma permissiva reside na ausência do dever da
mulher “ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado,
além do risco de problemas de saúde mental hereditários.”
108
Especificamente com relação ao aborto sentimental, por suas
peculiaridades, cabe tecer alguns comentários, principalmente face as recentes
modificações na normatização administrativa do procedimento.
Em 22 de março de 2005, o Ministério da Saúde reeditou a norma
técnica
109
que orienta os hospitais e médicos sobre a prevenção e tratamento dos
agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. A principal
novidade deste protocolo é a dispensa da apresentação do boletim de ocorrência
(BO) como condição para realização do abortamento legal.
108
Mirabete, 1999, p. 697.
109
Norma técnica sobre Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra
mulheres e adolescentes – 2005.
54
Embora o Código Penal exija tão-somente o consentimento da mulher
para realização do aborto sentimental, referida norma causou controvérsia e
insegurança entre os médicos, que acreditavam que poderiam sofrer conseqüências
jurídicas se induzidos em erro pela gestante. Entretanto, em razão da legislação
penal não condicionar o procedimento a qualquer espécie de autorização ou decisão
judicial, a mulher que sofreu violência sexual não tem o dever legal de noticiar o fato
à polícia. Este fato, inclusive, possui reflexo nos aspectos processuais deste delito,
uma vez que a ação penal somente será iniciada mediante representação da vítima.
Dessa forma, caso a mulher opte por não levar o fato a conhecimento das
autoridades judiciais, não lhe pode ser negado o direito ao aborto legal e seguro.
Conforme assinala S. Nogueira, “o Código Penal afirma que a palavra da mulher que
busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violência deve ter credibilidade,
ética e legalmente, devendo ser recebida como presunção de veracidade. O objetivo
do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde.”
110
Outrossim, a equipe médica não deve temer possíveis conseqüências
jurídicas caso se descubra, posteriormente, que a gravidez não foi decorrente de
violência sexual, porquanto a conduta destes profissionais estaria isenta de pena
ante a configuração do erro de tipo (art. 20, §1º, CP). Logo, se todas as cautelas
procedimentais forem cumpridas pelo serviço de saúde (consentimento da gestante
e verossimilhança das alegações), na hipótese de ser descoberta a falsidade da
alegação, somente a gestante responderia criminalmente.
De outra parte, silenciou a lei no tocante ao aborto por anomalia fetal
grave, provavelmente porque em 1940 os conhecimentos sobre esta área da
medicina eram poucos e restritos, sendo que não se pode legislar a respeito uma
matéria sobre a qual não se conhece. Ainda que a vida do feto não seja considerada
um bem absoluto pelo legislador penal, vez que permitiu a interrupção da gestação
independentemente das suas condições de saúde, a anomalia fetal incompatível
com a vida não se encontra prevista dentre o rol de excludentes de ilicitude do delito
110
Nogueira, S., 2005, p.02.
55
de aborto. A razão para esta omissão legislativa é presumível: na década de 40,
quando da promulgação do Código Penal, o acompanhamento da gestação e saúde
fetal limitava-se ao auscultamento dos batimentos cardíacos.
Seguindo o mesmo raciocínio, P. Franco defende a tese de que se o
perigo de vida para a gestante autorizava o aborto independentemente das
condições do feto, não há motivos para não se admitir a interrupção da gestação
diante da certeza da impossibilidade de vida extra-uterina do feto. Segundo o autor,
rechaçando o argumento de que se pretenderia defender a interrupção da gravidez
decorrente exclusivamente da vontade da mãe, o que se procura, ao contrário, é
buscar uma interpretação da lei penal “de forma mais abrangente e atual,
respeitando sempre o objetivo primeiro do legislador, que permite o aborto
necessário no caso em que não haja condições de vida extra-uterina do feto, em
razão de anomalias sérias, devidamente diagnosticadas.” Ademais, ressalva que
não se pretende que “quaisquer anomalias ou deformidades dêem ensejo à
interrupção da gravidez, liberalidade perigosa.” Em conclusão, afirma que se o
legislador ordinário admitiu o aborto necessário, independentemente das condições
de saúde do feto, e considerando o espírito de seu posicionamento, resta igualmente
autorizada a interrupção da gravidez no caso de impossibilidade de vida do feto
após o nascimento, cujo diagnóstico prévio hoje é possível. E principalmente, “se
permitiu, há mais de cinqüenta anos, com reconhecida e necessária coragem, o
aborto sentimental, independentemente dos riscos de vida à mãe e das condições
do feto”, com mais razão se pode defender que o legislador penal teria admitido
como possível, igualmente, o aborto do feto sem possibilidade de vida autônoma
Essa seria a interpretação “mais condizente com o intuito da lei, não atenta contra o
direito à vida e se reveste, creio, de ponderáveis contornos humanitários.”
111
Devido ao grande avanço tecnológico dos dias atuais e a possibilidade de
se diagnosticar as anomalias fetais ainda no ventre materno, existem movimentos
conduzidos por médicos, feministas, juristas e organizações religiosas de vertente
liberal, para que seja incluída a modalidade do chamado aborto piedoso entre os
tipos permissivos legais do artigo 128, do Código Penal.
111
P. Franco, 1993, p.02.
56
Sensíveis à realidade daqueles que têm o infortúnio de receber o
diagnóstico de uma anomalia fetal incompatível com a vida, muitos juízes têm
deferido autorizações para a interrupção destas gestações baseados nos dogmas
constitucionais de que ninguém deverá ser submetido a tratamento desumano e em
atenção ao princípio da dignidade humana. Também, outro recurso utilizado é a
analogia in bonan partem, uma vez que o legislador penal permitiu o aborto
independentemente das condições físicas do feto, e o prosseguimento de uma
gravidez deste tipo acarreta sérios danos a saúde mental da gestante, comparando-
se com o permissivo legal do estado de necessidade.
Estimativas sugerem mais de três mil autorizações
112
deferidas nos mais
diversos estados brasileiros, excluindo-se deste cálculo os procedimentos
autorizados pela Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários do Sistema
de Saúde – Pró Vida, do Distrito Federal, que desde 1999 desenvolve um trabalho
com pacientes provenientes da Rede Pública de Saúde, assegurando a interrupção
da gestação em ambiente hospitalar adequado, conduzida por médicos capacitados,
após confirmado por equipe multidisciplinar o diagnóstico de inviabilidade extra-
uterina do concepto.
No entanto, embora amparado pelas reiteradas decisões já referidas,
sabe-se de casos cujas autorizações são indeferidas pela singela justificativa de não
haver previsão expressa na legislação penal, negando-se vigência, assim, aos
postulados de igualdade, humanidade e dignidade, acesso à justiça e direito à
saúde, consagrados na Carta Constitucional de 1988. Por outro lado, representa um
contra-senso esperar uma regulamentação dessa matéria numa lei datada de 1940,
época em que sequer existia diagnóstico pré-natal.
Embora a regulamentação desta matéria esteja prevista no anteprojeto de
reforma da parte especial do Código Penal, o qual a contempla dentre as
excludentes de ilicitude do delito de aborto, sabe-se que existem outras matérias,
com maior repercussão política e no meio social, aguardando votação no Congresso
112
Gollop, 2006, p.76.
57
Nacional. Da mesma forma, o substitutivo do PL 1.135/91, o qual inclui as propostas
sugeridas pela Comissão Tripartite designada para revisar a legislação do aborto,
assegura a interrupção voluntária da gravidez até doze semanas de gestação; até
vinte semanas se a gravidez for resultante de crime contra liberdade sexual; a
qualquer tempo se diagnosticada malformação incompatível com a vida ou doença
grave e incurável ou na hipótese da gravidez oferecer grave risco à saúde da
gestante.
É neste contexto de insegurança jurídica que a Confederação Nacional
dos Trabalhadores da Saúde ingressou com a Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 54, perante o Supremo Tribunal Federal, com a alegação
de que a obrigação de levar a termo uma gestação de feto anencéfalo constitui
violação a preceito fundamental, notadamente à dignidade humana e o direito à
saúde. Após vencida a questão de ordem sobre a adequação do meio legal utilizado,
a ação foi admitida em 27 de abril de 2005, estando atualmente aguardando a
realização de audiência pública com setores da sociedade civil.
113
Por conseguinte, nos termos do quadro jurídico e legislativo ora
delineado, não há perspectiva para adequação da legislação penal às situações ora
referidas, cabendo aos juízes e promotores, no caso concreto, fazer esta sintonia da
lei com os conhecimentos tecnológicos e valores da sociedade contemporânea.
2.4 O aborto na legislação comparada
Muitos países adotaram o sistema de indicações, podendo ou não estar
condicionada à um prazo, qual seja, o número de semanas de gestação, para prever
as hipóteses em que é lícito interromper a gravidez.
Estas indicações coincidem com recomendações médicas, psicológicas,
sociais ou econômicas, dependendo das leis vigentes naquele país, que em relação
ao aborto, pode ser menos ou mais restritiva, chegando a ser totalmente liberal (v.g.
113
Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54 –
Questão de Ordem,- Argüente: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS.
Relator: Ministro Marco Aurélio Mello. Brasília, 20 de outubro de 2004. Disponível em:
http://www.stf.gov.br Acesso em: 19/11/2004.
58
Holanda e nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte Americana já assentou o
entendimento em favor do direito de opção da mulher).
Com fundamento na revisão elaborada por Henshaw (1990), que trata das
leis relativas ao aborto no mundo, Gollop afirma que “as leis que norteiam o aborto
induzido têm abrangência variável, desde aquelas que proíbem sem nenhuma
exceção até aquelas que o consideram um direito da mulher grávida.” Nesse
contexto, “cinqüenta e três países com mais de 1 milhão de habitantes,
correspondendo a 25% da população mundial, situam-se na categoria mais restritiva,
em que o aborto é permitido somente quando a gravidez representa um risco para a
vida da mãe.” Ao lado disso, analisando as legislações que autorizam o aborto por
razões médicas em sentido mais amplo - a saber, quando há saúde da mãe está em
perigo, não limitando ao risco de perder sua vida, e, algumas vezes, por risco
genético ou por razões jurídicas como estupro ou incesto -, verifica-se sua incidência
em quarenta e dois países com pelo menos 1 milhão de habitantes, compreendendo
12% da população mundial. Entretanto, nesses países “não é permitido o aborto por
indicações sociais isoladamente ou a pedido unicamente da gestante.” De outra
parte, a população do grupo de 14 países, com mais de um milhão de habitantes,
nos quais o aborto é permitido por razões sociais ou médico-sociais, ou seja,
condições sociais adversas, representa 23% da população mundial. Nesse casos, as
condições sociais adversas “tanto justificam a interrupção da gestação quanto
devem ser consideradas na avaliação do agravo à saúde mental da mulher. Na
maioria desses países, incluindo Austrália, Finlândia, Inglaterra, Japão e Taiwan, o
aborto é virtualmente permitido pela simples decisão da gestante.” E finalmente, as
leis menos restritivas dizem respeito aos 23 países onde o aborto é permitido pela
simples opção da gestante. É o caso de alguns dos países mais populosos do
mundo – China, Rússia, países da antiga União Soviética, Estados Unidos e a
metade dos países da Europa –, correspondendo a 40% da população mundial. Nos
países mulçumanos, de uma maneira geral, além da África e a América Latina,
contam com poucas indicações de abortos legais, excetuados apenas os casos de
estupro e risco de vida materna.
114
114
Gollop, 1999, p. 56.
59
Importante ressaltar que, em muitos destes países, ocorre uma
combinação de indicações e prazos para autorizar a interrupção voluntária da
gravidez.
Constituem exemplos de países cujas legislações conferem a gestante o
poder de decidir sobre a continuidade da gestação, independentemente de uma
indicação, desde que realizada em determinado prazo (na sua maioria, até 12
semanas): Alemanha; Áustria; Bulgária; Dinamarca; Eslováquia; França; Estados
Unidos; Holanda (até 13 semanas); Romênia; Suécia (até 18 semanas), Turquia (até
10 semanas).
Além destes países, outras legislações admitem a interrupção da
gestação, porém se caracterizado o risco de vida ou da saúde mental da gestante,
do feto ou lesão deste: Alemanha, África do Sul, Bélgica, Bulgária, Canadá,
Dinamarca, Espanha, França (porém, condiciona a interrupção nos primeiros três
meses de gestação, quando esta é motivada pelo abalo a saúde mental da mulher),
Gana, Reino Unido, Grécia, Holanda, Índia, Israel, Itália, Luxemburgo, Portugal,
Turquia. Contudo, na Suíça e no Peru, estas indicações são limitadas às hipóteses
em que há perigo para a saúde psíquica da gestante.
115
À titulo exemplificativo, convém destacar o procedimento adotado por
alguns destes países no tocante a interrupção voluntária da gravidez.
Na Alemanha, após a decisão da mãe e do médico, a gestante será
submetida a um acompanhamento psicológico, sendo que a interrupção da gestação
deverá ocorrer num prazo mínimo de três dias após este aconselhamento. Esta
intervenção não deverá ser realizada pelo médico que decidiu, juntamente com a
mãe, pela interrupção da gravidez. Quando a interrupção for motivada pela
malformação do feto, deverá ser realizada nas primeiras 22 semanas. Já, quando for
em razão do dano à saúde física ou mental da mulher, não é condicionada a
nenhum prazo. No entanto, apesar de ser gratuita, muitas alemãs procuram outros
países para realizar esta cirurgia, pois muitos hospitais se recusam a realizá-la por
115
Ribeiro, 2000, p.96.
60
motivos socio-psicológicos.
116
Similarmente, com relação ao procedimento de aconselhamento
psicológico, na Dinamarca a interrupção da gestação será decidida por quatro
profissionais de saúde. Se a gestante for menor de 18 anos, exige-se o
consentimento de seus pais para realização de tal procedimento. Quando for
requerida pela mulher, o prazo para execução é de doze semanas. Os hospitais
ficam obrigados a realizar a interrupção quando procurados nas 12 primeiras
semanas, sendo reembolsados pelo próprio Estado. Entretanto, somente as
residentes no país podem ser beneficiadas por esta intervenção médica.
117
Por sua vez, a legislação da Espanha permite a realização do
abortamento nos casos de grave risco à vida ou a saúde física ou psíquica da
gestante, hipótese em que o procedimento poderá ser realizado a qualquer
momento. Se a gravidez for decorrente de estupro, sua interrupção poderá ocorrer
até as 12 primeiras semanas. Quando se presumir que o feto nascerá com grave
doença física ou psíquica, esta operação deverá ocorrer dentro das vinte e duas
primeiras semanas de gestação, mediante o consentimento expresso mais dois
médicos especialistas. A legislação espanhola exige que a interrupção seja
executada por médico distinto daquele que fez o diagnóstico. Na prática, tem
prevalecido na Espanha um conceito muito abrangente de risco á saúde psíquica da
mulher, o que amplia as possibilidades de aborto legal.
118
Já na França, a primeira legislação que dispôs sobre a interrupção
voluntária da gravidez data de 1975, sendo que em razão da previsão de vigência
por cinco anos, foi ratificada por uma nova lei em 1979, a qual sofreu algumas
modificações em 2001. Nesse sentido, durante as 12 primeiras semanas de
gestação, a pedido da gestante, a gravidez poderá ser interrompida se lhe causar
forte angústia (detresse), ou, a qualquer tempo, quando haja risco à sua vida ou
saúde, ou ainda, exista grande probabilidade de que o feto venha a sofrer, após o
nascimento, de doença grave e incurável no momento do diagnóstico. A recente
116
Ribeiro, idem, ibidem.
117
Ribeiro, 2000, p.97.
118
Ribeiro, op.cit., p.97-98.
61
alteração legislativa tornou facultativa para as gestantes adultas a consulta prévia
para aconselhamento e informação. O Estado custeia 70% das despesas
hospitalares, assegurando ao médico o direito à objeção de consciência.
119
Da mesma forma, na Holanda a interrupção voluntária da gravidez poderá
ser realizada durante as treze primeiras semanas de gestação, independentemente
de uma indicação, e até a 24
ª
semana, no caso da gestação lhe causar forte
angústia. Em ambas as hipóteses um médico deverá assegurar que a decisão foi
tomada livremente. Para as menores de 18 anos, exige-se a autorização dos pais, e
cinco dias de carência entre a decisão e a interrupção. O Estado reembolsa
totalmente os custos da operação.
120
No Reino Unido, o aborto é permitido durante as 24 primeiras semanas,
desde que motivado por razões sociais, sócio-médicas, sócio-econômicas ou, ainda,
no caso de risco de lesões severas para a vida da gestante. Quando realizada em
hospital público, não haverá custo para paciente. Outrossim, se a gestante for menor
de 16 anos, a intervenção deverá ser precedida pelo consentimento de dois médicos
e da autorização dos pais.
De modo semelhante, na Grécia, se a interrupção da gravidez ocorrer em
virtude de razões médico-psicológicas, deverá ser executada nas 20 primeiras
semanas. Se for motivada pela malformação do feto, deverá ocorrer nas primeiras
24 semanas. Exige-se o consentimento dos pais se a mãe for menor.
121
Em Portugal, com a reforma do Código Penal, em 1997, o prazo para
interromper a gestação, quando o nascituro padecer de grave doença ou
malformação congênita, foi alterado para 24 semanas de gestação. Quando for
indicada para preservar a vida ou a saúde física ou psíquica da mãe, deverá ocorrer
nas 12 primeiras semanas de gravidez. Em se tratando de fetos inviáveis, este
procedimento poderá ser praticado a qualquer tempo. O médico que indicar a
interrupção, por meio de prévio atestado, não deverá conduzir a operação. O
119
Sarmento, 2006, p.120.
120
Ribeiro, 2000, p.98.
121
Ribeiro, idem, ibidem.
62
consentimento materno deverá ser obtido com antecedência mínima de três dias da
data da intervenção. Se for menor de 16 anos, exige-se a autorização dos pais. Se
for impossível obter a autorização, e a realização da interrupção for de caráter
urgente, o médico decidirá, e quando possível, auxiliado por parecer de outro
médico.
122
Cumpre destacar que recentemente, foi derrotada, em referendo popular,
a proposta sobre a legalização da interrupção voluntária da gravidez,
independentemente de indicação, durante as dez primeiras semanas. Em que pese
o alto índice de abstenção (somente 31,9% dos eleitores votaram) e o fato de não se
tratar de consulta popular vinculativa, o legislador português seguiu a orientação do
referendo, rejeitando a mudança legislativa pretendida. Assim, atualmente ficam
mantidas somente as indicações aqui especificadas.
123
Por fim, na Itália, após a Corte Constitucional ter declarado em 1975 a
inconstitucionalidade parcial do art. 546 do Código Penal italiano, o qual punia
indistintamente o aborto, em 1978 foi editada uma lei que regulamentou
detalhadamente a interrupção da gravidez. De acordo com o referido diploma,
durante os primeiros noventa dias de gestação, a gestante poderá solicitar a
realização do aborto nas hipóteses em que sua saúde física ou psíquica esteja em
risco; comprometimento das suas condições econômicas, sociais ou familiares; em
razão das circunstâncias em que ocorreu a concepção; ou nas hipóteses de má-
formação fetal. Excetuando-se os casos de urgência, a legislação previu um
intervalo mínimo de sete dias entre a data da solicitação do aborto e sua efetiva
realização, de modo que seja assegurado o tempo mínimo necessário para reflexão
da gestante. Por outro lado, caso a gravidez ou parto importe em grave risco de vida
para a gestante, ou quando se verifiquem processos patológicos ou anomalias fetais
graves que impliquem em grave perigo à saúde física ou psíquica da mulher, a
realização do aborto poderá ocorrer a qualquer tempo.
124
Dessa forma, constata-se que em muitos países a interrupção da
gestação é ponto pacífico, estando legalizada e plenamente regulamentada.
122
Ribeiro, op.cit., p.99.
123
Sarmento, 2006, p.130.
124
Sarmento, op.cit., p.122-123.
63
Como se nota, o que diferencia o procedimento de um país em relação a
outro é o prazo para interromper e as indicações, que podem ser mais abrangentes,
restritivas ou até totalmente liberais, privilegiando-se neste caso, como princípio
fundamental, o direito de escolha da mulher em ter ou não esse filho, garantindo a
estas mães o direito à vida, à saúde e integridade física e moral, direitos estes que
também encontram amparo nas respectivas constituições.
3 ABORTO E BEM JURÍDICO-PENAL
3.1 Evolução histórica da teoria do bem jurídico-penal
A construção da noção de bem jurídico-penal remonta ao tempo do
Iluminismo, cuja idéia de estabelecer limites formais e materiais ao ius puniendi era
reforçada pela valorização do princípio da legalidade, sendo condição necessária
para a existência do crime a lesão a um direito subjetivo e a danosidade social.
Deve-se a Feuerbach a primeira tentativa de formular um conceito
material de crime, transcendente e crítico em relação ao sistema vigente. Segundo o
autor, crime seria a “violação de um direito subjetivo do cidadão ou do próprio
Estado.” Nesse sentido, define como “princípio supremo do direito penal” o fato de
que “toda a pena legalmente cominada e aplicada no Estado é a conseqüência
jurídica duma lei fundada na necessidade de preservação dos direitos alheios e que
ameaça a violação de um direito com um mal sensível.”
125
Segundo Andrade,
Feuerbach contribui para a instauração de um direito penal “assente na
representação precisa da danosidade social a reprimir e prevenir.” Da mesma forma,
parte da premissa que ao Estado cabe assegurar o livre exercício da liberdade de
cada um, no respeito pela liberdade dos outros, de modo que não cabe a ele ser
125
Feuerbach apud Andrade, 1999, p.43.
64
promotor da cultura e da moralidade, defendendo a autonomia do direito face à
moral. Em outras palavras, “na medida em que o direito surge como força coercitiva
(ao serviço da segurança pública). Feuerbach expurga-o de todo o farisaísmo”.
Outrossim, uma vez que “o direito aparece como capacidade jurídica subjetiva,
dispensa-o de ter de fazer a prova da dignidade moral da pessoa juridicamente
capaz. Ao Estado não cabe formular juízos sobre a moral, nem erigir-se em protetor
da religião.” Conseqüentemente, “a moral e a religião convertem-se em assuntos
privados.”
126
Contudo, foi o artigo publicado por Birnbaun que trouxe pela primeira vez
o conceito de bem jurídico, dando inicio a um novo paradigma geral de compreensão
do crime, por meio do objeto e respectiva lesão, além do conteúdo material da
ilicitude. Para o autor, bem jurídico equivale ao “bem material, pertencente a um
particular ou à coletividade, pela sua natureza suscetível de violação, e ao qual o
Estado atribui tutela.”
127
Assim, ao invés de considerar o crime como violação do
direito subjetivo de outrem , “a lesão do bem jurídico aponta antes para o mundo
exterior e o objetivo de que preferentemente relevam as ‘coisas’ valoradas como
bens jurídicos.”
128
Todavia, como refere Souza, na obra de Birnbaum não se
encontra nenhuma referência precisa do significado de ‘bem’ como objeto da ofensa,
razão pela qual tal compreensão foi deduzida de forma tácita. “Classificou como
‘delitos de lesão natural’ aquelas ações que afetavam bens dados aos homens por
natureza; enquanto os chamados ‘delitos de lesão social’ teriam como resultado
bens correlacionados ao desenvolvimento histórico-social da ‘sociedade
burguesa’.”
129
No entanto, é somente “sob o manto positivista” que era o referencial
filosófico dominante na época da publicação do Die Normen de Binding, que a teoria
sobre bem jurídico proposta por Birnbaum “consagra-se e adquire contornos mais
precisos quanto à sua delimitação conceitual e terminológica.”
130
Desse modo,
Binding atribui à lei a competência para definir o bem jurídico-penal e identificar as
126
Andrade, 1999, p.44-45.
127
Birnbaun apud Pelarin, 2002, p.55.
128
Andrade, 1991, p.51.
129
Souza, 2004, p.49-50.
130
Souza, op.cit., p.55.
65
formas de agressão que reclamam a intervenção do direito penal. Segundo o autor,
é bem jurídico tudo o que não constitui em si um direito, mas, apesar
disso, tem, aos olhos do legislador, valor como condição de uma vida
sã da comunidade jurídica, em cuja manutenção íntegra e sem
perturbações ela (a comunidade jurídica) tem, segundo o seu juízo,
interesse e em cuja salvaguarda perante toda a lesão ou perigo
indesejado, o legislador se empenha através das normas.
131
Assim, ao atribuir uma importância excessiva ao juízo do legislador na
escolha dos bens jurídicos, afastou qualquer concepção pré-normativa que
fundamente um conteúdo político-criminal. Ainda que se deva à Binding a afirmação
terminológica da categoria do bem jurídico-penal, sua teoria é carente por defender
uma concepção puramente formal do Estado de Direito, privilegiando-se
“demasiadamente a autonomia e o papel do legislador”, denegando “à intervenção
punitiva qualquer legitimação material, abrindo-se as portas ao alargamento
incontrolável das áreas de criminalização.”
132
Diferentemente do proposto por Binding, que busca os bens jurídicos a
partir do direito (ou melhor, da lei), Liszt confronta o direito penal com a
complexidade da própria vida e das coisas, processos e instituições que nela se
movimentam. Enquanto Binding parecia crer na “plasticidade das ‘coisas’ do mundo
e da vida nas mãos do direito, Liszt confiava mais na plasticidade reflexiva do direito
para responder às exigências duma realidade múltipla e diferente.”
133
Para Liszt,
“todo direito existe por amor dos homens e tem por fim proteger interesses da vida
humana”, de forma que define bem jurídico como sendo o interesse juridicamente
protegido. “Todos os bens jurídicos são interesses humanos, ou do indivíduo, ou da
coletividade. É a vida, e não o direito, que produz o interesse, mas só a proteção
jurídica converte o interesse em bem jurídico.”
134
Desse modo, Liszt foi “o primeiro
autor a construir um sistema político-criminal legislativo-dogmático crítico em torno
da noção de bem jurídico.” Segundo este penalista, esta noção se traduz num
conceito limite da abstrata lógica jurídica.”
135
Assim, “o conteúdo material anti-social
do ilícito é independente da definição considerada pelo legislador. A norma jurídica,
131
Binding apud Andrade, 1991, p.65.
132
Souza, 2004, p.58.
133
Andrade, 1991, p.69.
134
Liszt apud Pelarin, 2002, p.57.
135
Souza, op.cit., p.60-61.
66
ao invés de criar o bem jurídico, o encontra.”
136
De outra parte, a teoria de Liszt
desenvolve o importante critério político-criminal da necessidade de tutela penal.
Para ele, “deve-se recorrer com a pena naqueles casos em que certos bens jurídicos
necessitam proteção contra determinadas perturbações, e recorre-se a ela na forma
e grau necessários para a proteção destes bens jurídicos contra estes
delitos.”
137
Portanto, por meio do conceito de necessidade da pena, atualmente
conhecido como princípio da subsidiariedade, Liszt reduziu o âmbito de atuação da
pena, circunscrevendo-a para os casos nos quais não há outra forma de proteção
suficiente dos bens jurídicos.
Pelarin identifica no positivismo o ponto de contato entre as teorias sobre
o bem jurídico propostas por Binding e Liszt, seja ressaltando a lei como fonte e
matriz do bem jurídico, seja priorizando os dados sociais , respectivamente. “A
contribuição de Liszt para a construção de um conceito de bem jurídico vê da função
‘transistemática e crítica e, assim, limitadora e fundamentadora da intervenção
penal’; em contrapartida, Binding tende a identificar o bem jurídico com as
‘condições para uma vida sã da comunidade’, mas tal como o legislador as
delineou.’”
138
Contudo, o não escalonamento dos bens fundamentais que seriam
objeto da tutela penal, ou ainda, a falta de critérios dessa seleção, constitui a falha
das concepções positivistas.
A publicação da obra de Honig, sob influência do clima normativista e
radicalizador da interpretação legal, marca o início de uma nova etapa na doutrina
sobre o bem jurídico. Para Honig o bem jurídico corresponde ao “fim reconhecido
pelo legislador nas prescrições penais na sua formulação mais breve”. Assim, o
objeto da tutela seria apenas o produto da reflexão especificamente jurídica, de
forma que “não existem como tais, só ganham vida no momento em que nós
consideramos os valores da comunidade como objeto do escopo das disposições
penais.”
139
Nesse sentido, “como o bem jurídico é resultado da reflexão
especificamente jurídica, os objetos da tutela não existem enquanto tais, só ganham
vida no momento em que nós consideramos os valores da comunidade como objeto
136
Liszt apud Souza, op.cit., p.62.
137
Liszt apud Souza, op.cit., p.64.
138
Pelarin, 2002, p.71.
139
Andrade, 1991, p.79.
67
do escopo das disposições.”
140
Sendo assim, é a norma que diz qual o bem jurídico
tutelado, não havendo “qualquer investigação anterior para se saber o que a norma
quis absorver. Valoriza-se o complexo normativo, forçando a realização da lógica-
jurídica.”
141
Após a Segunda Guerra, com o intuito de desenvolver a conceituação
material do crime visando impor limites ao poder punitivo, surgiram algumas teorias
cujo foco estava na proteção de bens jurídicos com apego em construções
sociológicas ou com fundamento em valores constitucionais. O retorno aos aspectos
liberais retirou a moral sexual e a convicção religiosa da área de atuação do direito
penal. Segundo Roxin, “evitar condutas meramente imorais não constitui tarefa do
direito penal. O Estado tem de salvaguardar a ordem externa, mas não possui
qualquer legitimidade para tutelar moralmente o particular.”
142
Com isso, ganhou
força a tese de que o bem jurídico-penal não se situa no âmbito do sentimentalismo,
subjetivismo ou concepção moral do cidadão, mas, antes disso, sua origem “vem de
um objeto fenomênico mais próximo possível da realidade concreta, do mundo das
coisas, aqueles (bens) que podem, de forma efetiva, serem atingidos pela conduta
humana.”
143
Dentre as teorias que surgiram nesse período, Amelung propõe uma
teoria do bem jurídico centrada na danosidade social, advogando a tese da ruptura
entre o “pensamento iluminista de um direito penal circunscrito ás condições
básicas da convivência humana e, por outro lado, a doutrina do bem jurídico.”
Segundo Amelung, ao invés de um “direito penal sobreponível a uma teoria da
sociedade e, por isso, racional e trans-sistemático, a teoria do bem jurídico veio abrir
a porta a um direito penal irracional e restauracionista, á margem de todo ‘controlo
sociológico’.” Acrescenta que enquanto a doutrina iluminista da danosidade social se
orienta para uma reflexão, em ultima análise, “sobre as condições da convivência
humana, a doutrina da proteção de bens jurídicos rompe de forma decisionística com
tal reflexão. O decisivo para a constituição do bem jurídico é um momento volitivo.”
Ou seja, nascem de um ato de valoração cujo objeto é estabelecido pelo legislador,
140
Andrade, op.cit. , p.66.
141
Pelarin, op.cit., p.80.
142
Roxin apud Pelarin, op.cit., p 101.
143
Pelarin, 2002, p.102.
68
em última análise, representa a legitimação do direito penal por ele próprio.
144
Portanto, ao direito penal cabe criminalizar as condutas socialmente danosas,
“correspondentes aos fatos disfuncionais, que dificultassem ou impedissem a
resolução dos problemas de sobrevivência e manutenção da sociedade pelo sistema
social, sendo o crime um caso específico de disfuncionalidade.” Nesse caso, o
direito penal atuaria com a sanção para ‘repor a confiança na funcionalidade do
sistema’.
145
Outrossim, emprestando conteúdo à sua teoria, a Constituição -
principalmente o catálogo de direitos fundamentais - seria o “fundamento do que
Amelung designa por limites ou custos de índole liberal que o sistema tem de
respeitar nas suas respostas às manifestações de danosidade social.”
146
Finalmente, seguindo a mesma esteira, propondo superar o dogma do
bem jurídico pela via da danosidade social, “Jakobs encara o direito penal como um
sistema específico de que se espera a estabilização social, a orientação da ação e a
institucionalização das expectativas, pela via da restauração da confiança na
vigência das normas.” Assim, “ao reagir à infração, o direito penal visa, sobretudo,
‘uma demonstração da validade da norma violada, à custa do agente.’”
147
Em outras
palavras, o crime é disfuncional porque lesiona a confiança institucional do sistema,
representado pelas normas, e não em razão de afetar determinado bem jurídico-
penal.
A crítica desta teoria, assim como em relação as demais teorias
sistêmicas, é que ao erigir o direito penal como garantidor e protetor da
funcionalidade dos sistemas sociais, além de reduzi-lo a uma tecnologia social, vazia
de conteúdo, eleva “a norma como elemento estrutural do sistema social”,
representando essa edificação “o velho positivismo com nova
roupagem.”
148
Ademais, conforme destaca Prado, “em verdade, nenhuma teoria
sociológica conseguiu formular um conceito material de bem jurídico capaz de
expressar não só o que lesiona uma conduta delitiva, como também responder, de
modo convincente, porque uma certa sociedade criminaliza exatamente
144
Andrade, 1991, p.96.
145
Pelarin, 2002, p.111-112.
146
Andrade, op.cit., p.99.
147
Andrade, op.cit., p.114.
148
Pelarin, 2002, p.114.
69
determinados comportamentos e não outros.”
149
De outra parte, as chamadas Teorias Constitucionais do Direito Penal
buscam seu fundamento nos princípios basilares da Constituição, cuja premissa
reside “na idéia de que o Estado de Direito é informado pelo princípio do pluralismo
e da tolerância, do que se deduz que ‘a pena estatal não pode ser legitimamente
infligida para impor o mero respeito a determinadas concepções morais.”
150
Partindo
dessa teoria, Roxin sugere a formulação de um “conceito constitucionalmente
orientado de bem jurídico”. De acordo com o penalista, considerando que “cada
indivíduo participa no poder estatal com igualdade de direitos”, não cabe ao Estado
a função de realizar “fins divinos ou transcendentais”, com o objetivo de “corrigir
moralmente, mediante autoridade, pessoas adultas que sejam consideradas como
não esclarecidas intelectualmente e moralmente imaturas.”
151
Disso decorrem duas
importantes conseqüências relacionadas com a legitimação do poder punitivo:
“sendo o Estado democrático de direito, laico, fundado na soberania popular, não
pode pretender moralizar o cidadão adulto, de modo que o legislador não está
legitimado a criminalizar comportamentos simplesmente imorais”. Da mesma forma,
como segunda conseqüência tem-se que a intervenção penal possui caráter
subsidiário, devendo estar “restrita à tutela dos bens jurídicos essenciais.”
152
Por conseguinte, afastada a tutela de meras finalidade de determinado
sistema social, porquanto se tratam de objetivos de organização política, cabe ao
direito penal resguardar valores sedimentados na Constituição, os quais
representam a história de seu povo e refletem os “resultados das lutas constantes e
contínuas”, residindo no homem o seu referencial absoluto.
153
3.2 Conceito e função do bem jurídico-penal
De acordo com Prado, a doutrina jurídica moderna reconhece na proteção
149
Prado, 1997, p.41.
150
Pelarin, 2002, p.130.
151
Roxin apud Pelarin, op.cit., p.131.
152
Roxin apud Pelarin, op.cit., p.132. Dentre os autores adeptos a teoria constitucional do Direito
Penal, destacam-se Jorge de Figueiredo Dias; Alberto Silva Franco, Maurício Ribeiro Lopes; Luiz
Régis Prado; Luiz Luisi e Nilo Batista.
153
Pelarin, op.cit., p.117.
70
de bens jurídicos o escopo imediato e primordial do Direito Penal. A noção de bem
jurídico implica na realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado
objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser
humano. Estes bens representam valores essenciais ao indivíduo e à comunidade,
os quais são resultado do quadro axiológico constitucional ou decorrente da
concepção de Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, considerando os
princípios da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, a tutela penal
somente é legítima quando “socialmente necessária e imprescindível para assegurar
as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social.”
154
Em razão disso, Figueiredo Dias destaca que o direito penal é um direito
de tutela de bens jurídico-penais, o que representa, em última análise, a
“preservação das condições fundamentais da mais livre realização possível da
personalidade de cada homem na comunidade.”
155
Sob essa perspectiva, Roxin aponta que enquanto no “conceito formal de
delito” a conduta punível corresponde tão-somente à descrição típica objeto de uma
definição positivada no ordenamento jurídico, “o conceito material de delito” é
anterior ao direito penal codificado e questiona os critérios materiais da conduta
punível. Dessa forma, tendo em conta que o conceito material do delito é prévio ao
Código Penal, esse conceito fornece ao legislador um critério político-criminal sobre
o que ele pode punir e o que ele deve deixar impune. A descrição do conceito
material de delito se deriva do próprio dever do direito penal, que aqui se entende
como “proteção subsidiária de bens jurídicos.”
156
154
Prado, 2005 b, p.28. Sobre os valores que informam a noção de bem jurídico-penal, este autor, na
obra “Bem jurídico Penal e Constituição (1997, p.64) “destaca que a noção de dignidade da pessoa
humana aparece, no pensamento democrático, desenvolvida por meio dos princípios da liberdade, da
igualdade e da fraternidade. A liberdade “traduz a autonomia da razão pessoal existente em cada ser
humano e a sua inviolabilidade na regência da própria conduta social. Equivale à autodeterminação
da pessoa na sociedade.” A igualdade reconhece como “inerente a todo ser humano a mesma
dignidade, atribuindo a todos os mesmos direitos essenciais, independentemente do ofício ou função
social que exerçam; negativamente, proíbe a utilização de certos critérios de diferenciação no
tratamento entre as pessoas em qualquer domínio da ordem jurídica.” E finalmente, a “fraternidade –
princípio sistematicamente ignorado pelo individualismo – afirma o sentido essencialmente dialógico e
convivente do ser humano e prescreve a solidariedade de todas as pessoas no gozo das vantagens e
na partilha dos riscos produzidos na vida em comunidade.”
155
Figueiredo Dias, 1999a, p. 74.
156
Roxin, 1999, p.51.
71
Com efeito, pode-se afirmar que o conceito material de bem jurídico-penal
reside na própria realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de
valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Logo, é um conceito
“necessariamente valorado e relativo”, uma vez que possui sua validade circunscrita
a determinado sistema social e a um dado momento histórico-cultural. Isto porque
seus elementos formadores se encontram condicionados por circunstâncias
variáveis inerentes à própria existência humana, de modo que cada sociedade e
cada época têm seus especiais objetos de tutela.
157
Noutras palavras, embora a
concepção de bem jurídico seja normativa, este referencial não é estático, visto que,
desde que corresponda as finalidades constitucionais, “está aberta a mudanças
sociais e aos progressos do conhecimento científico.”
158
Para definir quais bens jurídicos serão tuteláveis pelo direito penal, o
legislador ordinário deve seguir, primeiramente, as diretrizes e valores consagrados
na Constituição, tendo em conta o caráter limitativo da tutela penal. Portanto, é na
norma constitucional que se encontram as “linhas substanciais prioritárias para
incriminação ou não de condutas.” Somente a partir dessa premissa que a noção de
bem jurídico pode desempenhar uma função verdadeiramente restritiva. De outra
parte, não há que se confundir o bem jurídico-penal com o objeto da ação ou
material do delito. Isso porque, este último representa o elemento sobre o qual incide
o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal. Exemplificando: no
delito de furto, a coisa móvel corresponde ao objeto material do delito. Contudo, nem
todos os delitos possuem um objeto material, pois ele “só tem relevância quando a
consumação depende de uma alteração fática ou do mundo exterior.”
159
Ao lado disso, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais (ou seja, o
limite dos limites) representa a fronteira que delimita a área de atuação do legislador
na escolha dos bens jurídicos suscetíveis de tutela penal, bem como no tocante a
espécie e a sanção cominada à sua infração. Em conseqüência, se o legislador for
além da sua esfera de atuação, atingindo direitos constitucionalmente consagrados,
referida lei punitiva poderá ser declarada inconstitucional. Assim, a liberdade, a
157
Prado, 1997, p.82.
158
Roxin, op.cit., p. 57-58.
159
Prado, 2005 b, p. 29.
72
dignidade da pessoa humana e a possibilidade de desenvolver-se livremente
constituem “um limite infranqueável ao Estado”, uma vez que o recurso à privação
de liberdade deve ser a ultima ratio, somente válido quando estritamente necessário
e indispensável, tendo sempre em vista a importância primária da liberdade pessoal.
“Daí ser importante a congruência entre o bem penalmente tutelado e os valores
fundamentais.”
160
Ademais, o respeito à dignidade da pessoa humana constitui “um
princípio material de justiça, de validade a priori”, do contrário, o Direito estaria
reduzido a “mera força, mero terror.” Nesse sentido, este princípio revela um caráter
de limite imanente ao Direito positivo. Contudo, existem preceitos que embora
emanem da autoridade competente e seu cumprimento possa ser imposto pela
força, não possuem obrigatoriedade em razão da consciência. Sendo assim, não
podem ser considerados direitos, uma vez que se constituem numa grave violação
ao respeito devido à dignidade da pessoa humana.
No mesmo sentido, Pelarin aponta que a legalidade não induz,
necessariamente, à legitimidade dessa lei punitiva, pois a legitimação exprime uma
noção mais ampla, agregada a fatores extrínsecos ao ordenamento jurídico. Da
mesma forma, no plano constitucional, uma constituição não se legitima por meio da
legalidade, pois, ainda que a lei constitucional seja produto da vontade de um
‘legislador constituinte’, necessita ela estar de acordo com a ‘justificação’ moral
desse produto.
161
Portanto, se pretende obrigar os cidadãos em sua consciência, o Direito
deve “respeitar a condição do homem como pessoa, como ser responsável, como
um ser capaz de reger-se pelos critérios do sentido, da verdade e do valor (do que
tem sentido ou é o absurdo; do verdadeiro ou do falso; do que é valioso e do que
não o é).” Destarte, o Direito já tem força obrigatória por sua simples positividade,
pela virtude de superar o bellum omnium contra omnes, a guerra civil, mas em caso
de violação grave do princípio material de justiça” carecerá de força obrigatória e
160
Prado, 1997, p. 65.
161
Pelarin, 2002, p.27.
73
dada sua injustiça será necessário negar-lhe o caráter de Direito.”
162
Seguindo a mesma doutrina, Reale Jr. afirma que “o Direito, segundo a
concepção substancial de bem jurídico, protege bens e interesses do homem e da
coletividade. O delito é a lesão destes bens e interesses.” Em conseqüência, um fato
pode ser formalmente antijurídico e não o ser materialmente, se constitui meio
idôneo para um fim que o ordenamento constitucional considere justo.
163
Nesse contexto, Prado conceitua bem jurídico como o ente, representado
por um dado ou valor social, de natureza material ou imaterial, haurido do contexto
social, de titularidade individual ou supra-individual, “reputado como essencial para a
coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente
protegido.” Acrescenta, outrossim, que “deve estar sempre em compasso com o
quadro axiológico contido na Constituição e com o princípio do estado democrático e
social de Direito.”
164
Conclui, desse modo, que cabe a norma penal proteger tão-
somente bens jurídicos, “e não meras funções, motivos ou razões de tutela.” Assim,
face a inseparável dimensão sociocultural do bem jurídico, a orientação do processo
criminalização/descriminalização subordina-se às regras axiológicas vigentes em
cada momento histórico, de modo que a idoneidade do bem jurídico está
diretamente ligada relacionada com o seu valor social, não podendo estar desligada
da “realidade existencial e indiferente ao mundo externo do ser.”
165
Ao seu turno, reconhecendo que a única restrição admissível e
previamente dada ao legislador está representada nos princípios constitucionais,
Roxin afirma que um conceito de bem jurídico somente é vinculante político-
criminalmente se derivar de ordenamentos, plasmados na Lei Fundamental, de
nosso Estado de Direito, fundamentados na liberdade do indivíduo, pelo meio da
qual é delimitado o poder punitivo do Estado. Para o penalista, “os bens jurídicos
são circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre
desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base
162
Prado, 1997, p.65.
163
Reale Jr., 2000, p.248.
164
Prado, 2005a, p.65.
165
Prado, 1997, p. 79.
74
dessa concepção dos fins ou para o funcionamento do próprio sistema.”
166
Por sua vez, Figueiredo Dias define bem jurídico “como a expressão de
um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um
certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso
juridicamente reconhecido como valioso.”
167
Para tanto, um bem jurídico será político-criminalmente vinculante se
refletir “um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema
social total e que, deste modo, se pode afirmar que preexiste ao ordenamento
jurídico-penal.” Disso resulta que existe uma mútua referência entre a ordem
axiológica jurídico-constitucional e a ordem jurídico-penal. No entanto, esta relação
não significa ‘identidade’ ou mesmo ‘recíproca cobertura’ dos bens tutelados, mas
sim, um vínculo de “analogia material, fundada numa essencial correspondência de
sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins.” Dessa correspondência
decorre ser a ordem jurídico constitucional, simultaneamente, o quadro obrigatório
de referência e, também, o critério de regulação da atividade punitiva do Estado.
Somente nesta acepção que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem
ser considerados concretizações dos valores constitucionais, expressa ou
implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. “É por esta via – e só
por ela em definitivo – que os bens jurídicos se transformam em bens jurídicos
dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.”
168
Especificamente, ao afirmar que não é todo bem jurídico que requer
proteção penal, Prado destaca que para ser elevado a categoria de um bem jurídico-
penal, indispensável é a existência do interesse social relevante para o indivíduo.
Para uma “política criminal restritiva da intervenção penal impõe subordinar esta
última a valorações tipicamente jurídico-penais, que permitem selecionar com
critérios próprios os objetos dignos de amparo penal e não só in genere.” Desse
modo, “para que um bem jurídico possa ser considerado, em sentido político
criminal, como bem jurídico penal, insta acrescer ainda o juízo de suficiente
166
Roxin, 1999, p. 55-56.
167
Figueiredo Dias, 1999a, p.63.
168
Figueiredo Dias, op.cit., p.67.
75
importância social.”
169
Outrossim, segundo Figueiredo Dias, atualmente para que a noção de
bem jurídico alcance legitimidade, impõe-se uma concepção teleológico-funcional e
racional, exigindo que obedeça a uma série mínima e irrenunciável de condições.
Essencialmente, o conceito deve traduzir, em primeira linha, “um qualquer conteúdo
material, uma certa ‘corporização’ (deve ser, nesta acepção, ‘substanciável’), para
que se possa arvorar em indicador útil do conceito material de crime.” Para isso, não
é suficiente “que se identifique com os preceitos penais cuja essência pretende
traduzir, ou com qualquer técnica jurídica de interpretação ou de aplicação do
direito.” Da mesma forma, deve ele servir como “padrão crítico de normas
constituídas ou a constituir”, pois é somente assim que pode ter “a pretensão de se
arvorar em critério legitimador do processo de criminalização e de
descriminalização”. Nesta acepção, pois, ele pode surgir como noção transcendente
– e neste sentido trans-sistemática – relativamente ao sistema jurídico-penal.
Finalmente, deve ser “político-criminalmente orientado e nesta medida, também ele,
intra-sistemático relativamente ao sistema social e, mais concretamente, ao sistema
jurídico-constitucional.”
170
Neste particular, para cumprir as funções acima referidas, o bem jurídico
não é - e nem pode ser - “um conceito fechado e apto à subsunção, capaz de
permitir que a partir dele se conclua com segurança absoluta o que deve e o que
não deve ser criminalizado.” Se assim fosse, sua função político-criminal de
orientador da evolução do movimento de criminalização/descriminalização e por
conseguinte, de “instrumento por excelência de descoberta dos caminhos da reforma
penal”, estaria irremediavelmente comprometida. Em suma, “ o bem jurídico-penal é
‘apenas’ o padrão crítico insubstituível e irrenunciável com o qual se deve aferir a
legitimação da função do direito penal no caso concreto”. Ademais, é o guia por
excelência que conduz a evolução do direito penal, respeitando sua função no
sistema jurídico e no sistema social.
171
169
Prado, 1997, p. 89.
170
Figueiredo Dias, 1999a, p.65.
171
Figueiredo Dias, op cit.,.70.
76
No tocante a legitimação do direito de punir do Estado, vale assinalar que
sua legitimidade provém da exigência de que o Estado só deve tomar de cada
pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensável ao
funcionamento, sem entraves, da comunidade. Isso conduz, por outro lado, à regra
do Estado Democrático de Direito, “segundo a qual o Estado só deve intervir nos
direitos e liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao
asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros.” Da mesma
forma, daí resulta o caráter pluralista e laico do Estado de Direito contemporâneo,
que o vincula a que somente “utilize os seus meios punitivos próprios para a tutela
de bens de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para a
instauração ou reforço de ordenações axiológicas, transcendentes de caráter
religioso, moral, político, econômico, social ou cultural.” Dessa forma, violações
puramente morais não conformam lesão de um autêntico bem jurídico e não podem,
por isso, integrar o conceito material de crime. Do mesmo modo, não conformam
autênticos bens jurídicos proposições ou finalidades meramente ideológicas.
172
Com efeito, ao excluir as condutas simplesmente imorais do âmbito da
criminalização, o Estado reafirma o seu fundamento na soberania popular, cuja
premissa fundamental constitui-se no caráter laico das suas políticas e ações,
respeitando as opções de vida de cada pessoa, sendo, portanto, inadmissível a um
grupo de pessoas, ainda que representem a maioria da população, impor a outro
grupo a adoção de determinadas concepções morais.
Numa sociedade aberta e pluralista, as profundas divergências de opinião
acerca das normas sociais devem ser aceitas não só como uma questão inevitável,
mas também como legítima expressão da livre discussão dos problemas sociais.
Nesse sentido, Prado propõe que a criminalização de um comportamento “deve
limitar-se à violação daquelas normas sociais em relação às quais existe um
consenso praticamente ilimitado e com as quais, no mínimo, em geral, é possível as
172
Figueiredo Dias, 1999a, p.70. No mesmo sentido, assinala Roxin (apud Pelarin, 2002, p.132) que o
Estado Democrático de Direito, laico, fundado na soberania popular, valendo-se do seu poder
punitivo, sequer pode pretender moralizar o cidadão adulto, de forma que o legislador não está
legitimado a criminalizar comportamentos simplesmente imorais, dado o caráter subsidiário da
intervenção penal, restrita à tutela dos bens jurídicos essenciais.
77
pessoas se conformarem.”
173
3.3 Titularidade do bem jurídico-penal na interrupção voluntária da gravidez
Considerando sua titularidade, os bens jurídico-penais classificam-se em
individuais ou supra-individuais (metaindividuais). O indivíduo é titular dos bens
jurídicos individuais, de modo que, em razão do seu caráter estritamente pessoal, o
particular detém o controle e poder de disposição do referido bem, conforme sua
vontade.
174
Ao seu turno, por afetarem um grupo de pessoas ou toda a coletividade, a
titularidade dos bens jurídicos supra-individuais está para além do indivíduo. Assim,
a proteção conferida ao bem jurídico “transcende, ultrapassa a esfera individual, sem
deixar, todavia, de envolver a pessoa como membro indistinto de uma comunidade.”
Nesse sentido, Prado classifica os bens jurídicos metaindividuais em institucionais
(públicos ou estatais); coletivos e difusos. Com relação aos bens jurídicos
institucionais, a tutela supra-individual aparece intermediada por uma pessoa jurídica
de Direito Público, por exemplo, como se verifica nos delitos contra a administração
pública ou administração da justiça. Por sua vez, os bens jurídicos coletivos são
aqueles que abrangem um número mais ou menos determinável de pessoas (v.g.
saúde pública, relação de consumo). E finalmente, os bens jurídicos difusos são
aqueles cujo caráter plural e indeterminado, dizem respeito à coletividade como um
todo (v.g. meio ambiente).
175
Conforme Souza, a classificação do titular do bem jurídico teve sua
consagração teórica com Ihering, ainda que o autor não tenha se reportado
propriamente à categoria dos bens jurídicos na sua contribuição científica. Para
Ihering, “o direito adquire uma função instrumental a serviço de fins que têm a
possibilidade de serem executados por um poder coativo organizado (Estado de
Direito).” Noutras palavras, o direito tem “elementos formais (norma e coação) e
materiais (fim)”. Em conseqüência, “o direito, motivado pelo fim de cada indivíduo
173
Prado, 1997, p.80.
174
Prado, 2005b, p. 66.
175
Prado, 2005b, p. 67.
78
(individual) ou pelo fim da sociedade como um todo (social)”, constitui-se,
simultaneamente, “no ‘conjunto das condições de vida da sociedade assegurado
mediante coação externa’” e também, na “‘forma de assegurar as condições de vida
social.”
Ao lado disso, a partir deste conceito geral de sociedade, Ihering distingue
“três sujeitos particulares do fim: o indivíduo (persona certa), o Estado e a sociedade
em sentido estrito (persona incerta).” Segundo o autor, esta sistematização permite a
classificação dos delitos e seus respectivos sujeitos passivos, de modo que os
delitos privados correspondem àqueles dirigidos contra os indivíduos; os delitos
políticos correspondem aos delitos contra o Estado; e, por fim, os delitos sociais
correspondem àqueles cometidos contra a sociedade em sentido estrito. Ademais,
podem ser distinguidos em três classes, conforme esses delitos ameacem “as
condições de vida físicas, econômicas ou ideais dos sujeitos passivos.
176
Na categoria de indivíduo, considera-se o homem na sua existência
individual, seja na acepção material (corpórea ou física) e imaterial (moral).
“Indivíduo, portanto, é o ser humano nascido com vida, juridicamente capaz ou não
(incapaz).” Ao seu turno, Ihering entende por Estado “‘a organização social da
coação’, ou seja, ‘a sociedade que obriga’, ‘a sociedade como detentora da violência
da coação regulada e disciplinada’”, sendo a sociedade em sentido estrito
representada pela coletividade, associada à idéia de ‘totalidade’, ao ‘povo’, à
‘massa’, à ‘soma dos indivíduos’.
177
Posteriormente à contribuição de Ihering, sugeriu-se a inclusão do
nascituro no rol dos sujeitos passivos – titulares ou portadores de bens jurídicos.
Entretanto, segundo a lição de Souza, “por ainda não existir como pessoa, não pode
176
Souza, 2004, p.284-285.
177
Souza, 2004, p.286. Avançando na distinção entre Estado e coletividade, Souza (p.287) afirma
que “Estado é uma entidade jurídica e sociopolítica organizada para servir a sociedade humana”,
cujos atributos residem na sua soberania (poder soberano), povo e território. Ademais, “integram a
concepção do sujeito passivo Estado as entidades jurídicas de direito público (ou pessoas jurídicas
públicas), tais como os Municípios, a União, as autarquias, as empresas públicas, os Estados e o
Distrito Federal, pois estas nada mais são do que instituições representativas da figura do Estado e
inerentes à sua estrutura, organização e funcionamento.” Por outro lado, “coletividade significa a
‘identidade humana’ do Estado, isto é, a pluralidade indeterminada de indivíduos (aglomeração
humana) que vive e está reunida sob um mesmo governo e organização administrativa num certo
território nacional e comum.”
79
o nascituro ser considerado sujeito passivo do delito como acontece com o indivíduo
já nascido”.Ao lado disso, “muito menos será o indivíduo o sujeito passivo dos
crimes cometidos contra o nascituro, ainda que se tenha em mente a idéia romana
de que o mesmo é parte integrante da mãe (portio mlulieris vel viscerum), pois o
sujeito passivo nestas hipóteses, na verdade, é a coletividade”. Assim, o nascituro
representa o objeto material do crime, ao invés de sujeito passivo.
178
No mesmo sentido, Fragoso assinala que no delito de aborto, “o objeto da
tutela jurídica é a vida da pessoa em formação, o que justifica a classificação do fato,
embora a rigor não se trate de crime contra pessoa.” Todavia, consigna que embora
o nascituro não seja pessoa, também não pode ser considerado como “mera
esperança de vida ou simples parte do organismo materno”, porquanto é
reconhecido autonomamente pelo direito para certos efeitos, à exemplo do que
ocorre no direito civil, com relação à salvaguarda de seus direitos patrimoniais. Por
fim, conclui o autor que, independentemente do seu grau de desenvolvimento, o
produto da concepção representa somente o objeto material da ação, não se
confundindo com o sujeito passivo do crime, uma vez que “tal categoria compreende
apenas o titular do bem jurídico tutelado que é, no caso, o Estado ou a comunidade
nacional.”
179
Da mesma forma, Costa Jr. pontua que a objetividade jurídica do delito de
aborto está representada na tutela da vida humana em formação, que corresponde à
vida fetal ou intra-uterina. Nesse diapasão, considera fator de pouca relevância o
fato de que ainda não se trate de pessoa humana, e sim, na sua opinião, de uma
“expectativa de ente humano, uma spes personae.” Seguindo este raciocínio, conclui
que o feto é o objeto material do crime, sobre o qual recai a ação, sendo o Estado ou
a coletividade o sujeito passivo do delito.
180
Similarmente, porém sustentando que o objeto jurídico lesado no aborto é
o interesse demográfico, Jimenez de Ásua defende que o sujeito passivo do delito
178
Souza, op.cit., p.288-289. No mesmo sentido, entendendo ser a coletividade o sujeito passivo no
delito de aborto, ver Ihering (El fin el derecho, p.345)
179
Fragoso, 1976, p. 126-127.
180
Costa Jr., 2005, p. 389.
80
não é o embrião, mas, sim, a comunidade.
181
Entretanto, a doutrina majoritária defende ser o aborto um delito que
lesiona um bem jurídico individual, qual seja, a vida humana em formação,
independentemente do seu estágio evolutivo. Segundo Régis Prado, no crime de
aborto o bem jurídico ofendido é a vida do ser humano em formação. Todavia, é
possível vislumbrar-se, como bens jurídicos secundários, a vida e a incolumidade
física e/ou psíquica da mulher grávida, desde que se trate de aborto não consentido
(art. 125, CP) ou qualificado pelo resultado (art. 127, CP). Assim, entende que o
nascituro é o portador do bem jurídico-penal vida humana dependente. “A mãe
somente figurará como sujeito passivo do delito quando se atente também contra a
sua liberdade (aborto não consentido) ou contra a sua vida ou integridade pessoal
(aborto qualificado pelo resultado), como bens jurídicos mediatos.” De forma oposta,
entende que a coletividade ou o Estado não são sujeitos passivos do delito de
aborto, uma vez que a vida humana, dependente ou independente, não é um bem
jurídico coletivo, mas individual por excelência. Isso porque “o interesse social, que
se manifesta na proteção da vida do produto da concepção, também existe com
relação à grande maioria dos demais bens jurídicos penalmente tutelados, ainda que
de cunho individual.” Assim, não há como justificar que no aborto “pudesse haver um
interesse maior capaz de outorgar ao Estado ou à comunidade sua titularidade.”
182
Perfilhando o mesmo entendimento, Bitencourt assevera que o bem
jurídico-penal protegido é a vida do ser humano em formação, que embora não seja
pessoa e tampouco seja mera esperança de vida ou simples parte do organismo
materno, tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica.
183
Adotando postura semelhante, Pierangeli entende que o bem jurídico
tutelado é a vida intra-uterina, iniciando-se a proteção penal com a fecundação do
óvulo (concepção)
184
, não obstante o Código ser omisso no tocante ao momento do
início dessa tutela. Isso porque, conforme já tratado no capítulo anterior, o vocábulo
181
Jimenez de Ásua apud Costa Jr., idem, ibidem. No mesmo sentido, leia-se também: Franco, Dos
Crimes contra a Pessoa, p.151; Mirabete, Manual de Direito Penal II, p.94; Mestieri, Curso de Direito
Criminal, p. 171.
182
Prado, 2005a, p.107-108.
183
Bitencourt, 2004, p. 158.
184
Pierangeli, 2005, p.111.
81
aborto representa um elemento normativo do tipo, que comporta sempre espaços
livres que permitem alargar ou restringir a área de delimitação do conceito. De
acordo com Franco, ao empregar a palavra aborto, “o legislador penal aludiu à
interrupção da gravidez e à morte do embrião ou do feto, mas não definiu
explicitamente o momento a partir do qual é reconhecível vida humana que pode ser
interrompida por manobra abortiva.”
185
Romeo Casabona, apesar de sustentar que o bem jurídico tutelado no
delito de aborto é a vida humana dependente, aceita que ao lado deste interesse
“primordial e básico” possam existir outros interesses secundários, como por
exemplo, a liberdade da gestante, uma vez que o aborto provocado sem seu
consentimento, ou quando este tenha sido obtido com vícios na formação ou
manifestação da sua vontade, é castigado mais severamente. Da mesma forma,
acredita ser possível cogitar a inclusão da vida e saúde da gestante, que se põe em
perigo ao submeter-se ao aborto. Por sua vez, os interesses de política demográfica
do Estado podem ser o objeto da tutela na hipótese da punição do aborto ser parte
de uma política criminal que vise o favorecimento da natalidade, quando suas taxas
estejam diminuindo perigosamente, com o conseguinte envelhecimento da
população, ou, pelo contrário, o controle de natalidade, se existente problemas de
superpopulação. Destarte, no aborto qualificado pelo resultado, afirma que
certamente se protege a vida e a integridade física da gestante, mas, no entanto,
como fundamento político criminal de agravar a responsabilidade penal em relação
às demais modalidades de aborto. Em conseqüência, finaliza o autor, carece de
fundamento que o bem jurídico-penal tutelado no delito de aborto seja, de modo
exclusivo e prioritário, a esperança de vida, no sentido de um processo de
desenvolvimento que culminará em uma vida humana. Como ainda não é, mas
‘será’, o legislador ao penalizar o aborto protege uma idéia (esperança de vida) e
não uma realidade (vida do feto). Assim, o interesse demográfico do Estado; a saúde
da gestante e, por último, “a perpetuação da espécie imposta pela ética católica do
pós-guerra e aceita pelo estado”, são critérios que, segundo Romeo Casabona,
perderam o sentido na atualidade.
186
185
Franco, 2006, p. 49.
186
Romeo Casabona, 1994, p.285-286.
82
Continua o autor dizendo que, se tivermos em conta o conceito de aborto
e qual o bem jurídico protegido, já se pode deduzir que o objeto material sobre o
qual recai a conduta lesiva é o embrião ou feto humano viável intra-uterino e
implantado no útero da mulher, ou seja, a partir do início da gestação. Por
conseguinte, é indiferente que no momento da ação abortiva o embrião ou feto seja
ou não viável extra-uterinamente. Com efeito, se o sujeito passivo é representado
pelo portador do bem jurídico lesionado, posto em perigo, o sujeito passivo do delito
de aborto será também o nascituro, enquanto portador do bem jurídico vida humana
dependente. Todavia, a mãe poderá ser sujeito passivo do delito somente quando se
atentar, simultaneamente, contra sua liberdade (aborto não consentido) ou contra
sua vida ou integridade física (aborto qualificado pelo resultado), que nesse caso,
representariam bens jurídicos secundários do delito de aborto. De outra parte,
entende que a comunidade não pode ser atribuída a condição de sujeito passivo,
porquanto a vida humana, dependente ou independente, não é um bem coletivo, e
sim um bem individual por excelência. Logo, o interesse social na proteção da vida
do nascituro (ou esperança de vida que ele representa) existe também em relação à
maioria dos demais bens jurídicos protegidos penalmente, incluindo a reconhecida
titularidade individual, pelo que não se explica de modo suficiente porque neste caso
pode existir um interesse maior que permita atribuir-se à coletividade tal titularidade.
Além disso, no tocante as causas de justificação do delito de aborto, restaria difícil
compreender o dever da comunidade em renunciar a proteção da vida do nascituro
quando sua manutenção entra em colisão com outros interesses maternos, uma vez
que a coletividade possui meios alternativos ao aborto, como assumir a
responsabilidade do filho não desejado através de suas instituições ou intensificando
a ajuda econômica e social recebida pela mãe. E finalmente, os interesses da
comunidade podem não coincidir sempre com os de proteção do concepto (como
por exemplo, garantir a qualidade de vida individual ou da espécie humana frente a
possíveis patologias detectadas no exame pré-natal).
187
Em que pese ainda ser o aborto criminalizado em muitas legislações,
vários são os argumentos que se elevam contra sua tipificação, os quais podem ser
sintetizados nas seguintes alegações: “a) o feto é parte da mulher e esta pode dispor
187
Romeo Casabona, 1994, p. 287-289.
83
do produto da concepção; b) a vida do feto não é um bem jurídico individual, mas um
interesse da sociedade a ser protegido em alguns casos; c) a pena não logra evitar
as práticas abortivas; d) o aborto é uma lei de exceção endereçada às classes
sociais mais pobres; e) é necessário proteger a vida e a saúde das numerosas
mulheres que recorrem ao aborto clandestino.”
188
Roxin, reportando-se à polêmica jurídica em torno da legislação sobre o
aborto ocorrida no Tribunal Constitucional da Alemanha, acrescenta que foi
declarada inconstitucional a chamada solução de prazos, que corresponde a sua
total descriminalização se praticado durante os três primeiros meses de gestação.
Segundo o Tribunal Constitucional, “o legislador não pode renunciar por completo a
proteção mediante o Direito penal”, e justificar que isso somente pode ocorrer “em
caso extremo”, significa admitir que “não se pode conseguir de nenhum outro modo
a proteção requerida pela Constituição”, ou seja, “está obrigado a interpor o meio do
Direito penal para proteger a vida que está se desenvolvendo.”
189
De acordo com o penalista, este posicionamento merece aprovação para
o caso de destruição de bens jurídicos fundamentais segundo os critérios
mencionados, pois, no outro caso, o Estado subtrair ao seu dever de assegurar a
coexistência pacífica dos cidadãos, e com isso estaria rompendo a si mesmo. Sem
embargo, a questão de se no caso do aborto, a proteção da vida em formação não
se poderia obter também ou inclusive por outros meios distintos dos do Direito penal,
continua sendo polemica. Entretanto, com a decisão acima referida, o Tribunal
Constitucional concede ao legislador a possibilidade de proteger a vida humana em
formação por outros meios distintos dos jurídico-penais. O direito penal representa a
última dentre todas as medidas protetoras que se deve considerar, ou seja, somente
se pode a ele recorrer quando falharem os outros meios de solução social do
problema – como a ação civil, as regulamentações de policia ou jurídico-técnicas, as
sanções administrativas - por isso que se denomina a pena como ultima ratio da
política social e sua missão é definida como proteção subsidiária de bens
188
Prado, 2005a, p. 105-106.
189
Roxin, 1999, p. 64.
84
jurídicos.
190
Com efeito, dissertando sobre a inexistência de “injunções constitucionais
expressas” no sentido de exigir a criminalização de comportamentos que violem um
direito ou dever fundamental, Figueiredo Dias assevera que não pode ser
ultrapassado a inevitável fronteira entre os critérios da necessidade ou da carência
de pena. Em princípio, caberá ao legislador ordinário avaliar esses critérios e
somente em casos gritantes poderá ele ser sindicado, nomeadamente por violação
eventual do princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
191
Todavia, essa
questão da existência ou não de “imposições jurídico-constitucionais implícitas de
criminalização” tem gerado uma intensa e ainda não terminada controvérsia,
doutrinal e jurisprudencial, sobretudo nos Tribunais Constitucionais de vários países,
geralmente envolvendo a discussão sobre a impunibilidade da interrupção voluntária
da gravidez (suas indicações e prazos) face à incriminação do aborto.
Contudo, afirma o autor que as especificidades das questões envolvidas
na discussão do aborto não possuem o condão de contrariar ou modificar
sensivelmente sua posição, qual seja, de que não existem imposições jurídico-
constitucionais implícitas de criminalização. Isso porque, conforme acima exposto,
sempre será questão da competência do legislador ordinário, nos limites já referidos,
“decidir se uma tal tutela – mesmo que no caso de um bem jurídico como o da vida
190
Roxin, 1999, p.65. Sobre o assunto, segue excertos da decisão BverfGE 203 ( apud Sarmento,
2006, p. 127-128): “Os valores afetados pelo direito á vida do nascituro incluem o direito da mulher à
proteção e respeito à própria dignidade, seu direito à vida e à integridade física e seu direito ao
desenvolvimento da personalidade. (...) Embora o direito á vida do nascituro tenha um valor muito
elevado, ele não se estende a ponto de eliminar todos os direitos fundamentais das mulheres à
autodeterminação. Os direitos das mulheres podem gerar situação em que seja permissível em
alguns casos, e até obrigatório, em outros, que não se imponha a elas o dever legal de levar a
gravidez a termo. (...) Isso não significa que a única exceção constitucional admissível (à proibição do
aborto) seja o caso em que a mulher não possa levar a gravidez até o fim quando isto ameace sua
vida ou saúde. Outras exceções são imagináveis. Esta Corte estabeleceu o standard do ônus
desarrazoado para identificação destas exceções. (...) Mas devido ao seu caráter extremamente
intervencionista, o Direito Penal não precisa ser o meio primário de proteção legal. Sua aplicação está
sujeita aos condicionamentos do princípio da proporcionalidade ... Quando o legislador tiver editado
medidas adequadas não criminais para a proteção do nascituro, a mulher não precisa ser punida por
realizar um aborto injustificado (...), desde que a ordem jurídica estabeleça claramente que o aborto,
como regra geral, é ilegal.
191
À título ilustrativo, o autor vale-se das seguintes situações para exemplificar hipótese de violação
do princípio da proporcionalidade em sentido estrito: “quando o legislador ordinário entendesse
sancionar o homicídio doloso apenas com sanções jurídico-civis; ou quando ele decidisse subverter
por completo a ordenação axiológica constitucional, descriminalizando totalmente a lesão de valores
pessoais e criminalizando de forma maciça a lesão de valores patrimoniais!” (cf. Figueiredo Dias,
1999, p. 80.)
85
intra-uterina ou do produto da concepção – não será melhor lograda através da
restrição do âmbito da criminalização e da sua ‘compensação’ por meios não penais
de política social.”
192
Em suma, independentemente da titularidade do bem jurídico do aborto
ser individual (nascituro) ou supra-individual (coletividade), os valores que informam
a sua criminalização não necessitam ser garantidos por meio do Direito Penal, uma
vez que existem meios mais eficazes e menos lesivos para a efetiva proteção da
vida intra-uterina. Outrossim, na hipótese em que a manutenção da vida humana
dependente entrar em conflito com direitos igualmente fundamentais da gestante,
tais como sua autonomia reprodutiva, dignidade e saúde, a criminalização do aborto
pode ser traduzida na exigência de um “ônus desarrazoado”, importando o sacrifício
de seus valores existenciais.
192
Figueiredo Dias, 1999a, p.81.
86
CAPÍTULO 4 ABORTO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
4.1 Direitos fundamentais em conflito e regras de harmonização
Embora não possua referência expressa no texto constitucional e
conforme tratado no capítulo primeiro, entende-se que a vida do nascituro é um bem
que está protegido pela Constituição. Não obstante, o problema surge quando a
manutenção de uma gravidez não desejada viola os direitos fundamentais da
gestante, resultando num conflito entre seus direitos e os interesses do embrião/feto.
Particularmente, em relação à qualquer discussão na qual envolva, ainda que
indiretamente, os conceitos de início e fim da vida, as opiniões além de serem
divergentes, buscam sua fundamentação na ciência, religião ou filosofia, embora
persista a falta de consenso e um conceito unívoco sobre este tema.
No entanto, é inquestionável que a investigação do conceito de vida
constitui um pressuposto lógico nos debates que envolvem o tema do aborto. Ao
87
mesmo tempo, não se pode isolar e eleger determinada etapa do processo biológico
como se esta correspondesse ao início da vida. Em verdade, vida corresponde a um
“fenômeno em constante evolução caracterizado por mutações e saltos qualitativos,
próprios de todo processo biológico”,
193
cujas valorações das mutações e desses
saltos qualitativos possuem fundamento mais em dados culturais e religiosos do que
científicos, impedindo a “formatação de um unívoco suporte conceitual.” Assim, em
razão de subordinar-se a “um contínuo processo cultural de construção e de
desconstrução”, não se pode falar em conceito de vida, o que só seria evitável
mediante manifestação explícita do legislador constituinte, a respeito dessa
matéria.
194
A proteção constitucional da vida humana em formação não implica na
necessidade de conceder-se um tratamento jurídico igualitário para a vida humana
fora do claustro materno e para a vida humana dependente. Defender que a vida
humana pré-natal possui valoração idêntica a pós-natal constitui “um exagero
indefensável”. Analisando esta tese seja do ponto vista da história, religião ou direito,
observa-se que a valoração diferenciada da vida humana em formação e da vida
dos nascidos foi uma constante durante muitos séculos. Outrossim, conforme
referido no capítulo segundo, ao atribuir-se à vida do nascituro um valor menor do
que à vida do homem já nascido, como faz o Código Penal vigente, não o torna
incompatível com a interpretação constitucional que garante a todos o direito à
vida.
195
Nesse sentido, Roxin acrescenta que “se a vida daquele que nasceu é o
valor mais elevado do ordenamento jurídico, não se pode negar à vida em formação
qualquer proteção”. Entretanto, como ressalva o autor, isso não importa em “igualá-
la por completo ao homem nascido, uma vez que o embrião se encontra somente a
caminho de se tornar homem, e que a simbiose com o corpo da mãe faz surgir
193
Carbonell Mateu, J.C.; González Cussac, J. L.. apud Franco, 2006, p.20.
194
Franco, 2006, p.20.
195
Franco, 2006, p.25. Seguindo a mesma premissa, Reale Jr.(1999,p.257) acrescenta que “a vida da
mãe tem maior valor que a do feto, pois é de interesse social a sua sobrevivência. Sob o aspecto
existencial torna-se o problema indiscutível. A gestante tem autonomia, é um ser que se afirmou no
mundo, estabelecendo com os demais relações que a fazem partícipe da comunidade. É ela um ser
autônomo, que se afirmou pessoal e socialmente, agindo sobre o mundo de modo independente. É
um ‘eu’ que se impôs à consciência alheia, estabelecendo relações intersubjetivas, sendo objeto de
conhecimento alheio, ao mesmo tempo que faz dos outros objetos de sua consciência.” O feto, por
outro lado, “não se fez ao mundo, não possui autonomia, não tem caráter pessoal, não se elevou ao
nível das consciências alheias, não determinou sua própria situação, não alcançando a liberdade, que
é o elemento distintivo do homem. Podemos, assim com Boaventura Santos, concluir que, sob o
aspecto existencial, a vida do feto não constitui uma existência pessoal tal como a da mãe, em razão
do que sua importância social é inferior.”
88
colisões de interesses que terão de ser resolvidas através de ponderações.”
196
Partindo desta premissa, Canotilho e Vital Moreira referem que apesar da
vida pré-natal ser um bem constitucionalmente protegido, ainda que não investida
numa pessoa
197
, não se pode atribuir idêntico regime de proteção ao nascituro,
porquanto se trata desimples bem constitucionalmente protegido”, o que não
significa possuir o mesmo direito à vida, “enquanto direito fundamental das pessoas,
no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos (v.g., saúde, dignidade, liberdade da mulher, direitos dos progenitores a
uma paternidade e maternidade consciente)”. Disso resulta que a “proteção da vida
intra-uterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento,
desde a formação do zigoto até o nascimento”, entretanto, no tocante aos meios de
garantia desse direito, os instrumentos penais “podem mostrar-se inadequados ou
excessivos quando se trate de proteção da vida intra-uterina.”
198
Por conseguinte, a proteção constitucional da vida em formação não
garante ao nascituro o status de pessoa, uma vez que não é sujeito de direitos e
deveres, possuindo tão-somente interesses patrimoniais salvaguardados pela lei
civil. Assim, pode-se afirmar que é pessoa em potência, que só será sujeito de
direito a partir de seu nascimento com vida.
Dworkin assinala que a questão crucial do aborto não está em saber se o
nascituro é ou não uma pessoa de acordo com o significado da Constituição. Ao
contrário, o cerne da controvérsia consiste “em saber se os estados possuem um
poder legítimo para ditar o modo como os cidadãos devem respeitar o valor inerente
à vida.”
199
Para o autor, “se as convicções das pessoas sobre o que o valor inerente
da vida humana requer são convicções religiosas, a exigência de conformidade por
196
Canotilho; Moreira apud Sarmento, 2006, p.147.
197
Conforme Maria do Céu Patrão Neves (apud Minahim, 2005, p.89), “a noção de ser humano é
distinta da de pessoa; esta é essencialmente filosófica e está vinculada a idéia de ser humano capaz
de consciência de si mesmo e, conseqüentemente, do mundo onde se insere. Ser pessoa, nas
palavras da autora, ‘consiste em um processo contínuo e infinito de realização de si, na criação de si
próprio’. O embrião, indivíduo biológico, surge como ‘entidade ontológica que resulta da
individualização embrionária’, enquanto a pessoa é um ser moral, capaz de vida relacional.”
198
Sarmento, 2006, p. 146.
199
Dworkin, 2003, p.235.
89
parte de um governo estaria impondo uma religião coletiva”.
200
Agindo assim,
“qualquer governo que proíbe o aborto se compromete com uma interpretação
polêmica da santidade da vida e, por esse motivo, restringe a liberdade ao impor
uma postura essencialmente religiosa em detrimento de outras”.
201
Outrossim, importa destacar que num Estado Democrático de Direito, as
políticas e decisões judiciais devem ser laicas, visando ao máximo resguardar os
direitos e garantias fundamentais. Portanto, é imprescindível que os argumentos que
fundamentam esses atos estatais “possam ser aceitos por todos os que se
disponham a um debate franco e racional – mesmo pelos que não concordarem
com o resultado substantivo alcançado. Caso contrário, haverá tirania –
eventualmente tirania da maioria sobre a minoria – mas jamais autêntica
democracia.”
202
Ainda que o direito à vida seja o direito fundamental por excelência, a sua
precedência lógica em relação aos demais direitos não lhe confere um valor
axiológico superior. O legislador constituinte não realizou nenhuma hierarquização
desses direitos, com base em eventual valoração axiológica. “Cada um e todos
esses direitos fundamentais situam-se num mesmo patamar, não havendo em nível
constitucional nenhum tipo de superposição ou de graduação de um em relação ao
outro.”
203
Ademais, nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, nem
mesmo o direito à vida, que, em determinadas situações, tem sua proteção afastada
face aos homicídios justificados, ou seja, nas situações de legítima defesa e guerra.
Essa é uma das razões que justifica a constitucionalidade de um “sistema penal em
que a proteção à vida do não nascido cedesse, ante situações conflitivas, em mais
hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana
independente.”
204
Nesse particular, valendo-se da lição de Alexy, pode-se afirmar que a
proteção da vida intra-uterina constitui um mandado de otimização, ou seja, um
200
Dworkin, op.cit., p.226.
201
Dworkin, op.cit., p.231.
202
Sarmento, 2006, p.141.
203
Franco, 2006, p.21.
204
Franco, op.cit., p.25.
90
princípio que pode ser cumprido em diferente grau e na medida necessária para sua
efetivação, de forma que seu cumprimento depende tanto das possibilidades reais
quanto jurídicas - estas últimas, determinadas por princípios e regras opostas.
205
Especificamente, a criminalização do aborto põe em colisão direitos
fundamentais que possuem idêntica valoração axiológica. Ou seja, de um lado figura
o direito à vida do feto, de outro, os direitos fundamentais da gestante, devendo o
princípio da dignidade da pessoa humana ser o vetor de interpretação desse conflito.
Seguindo a fórmula de Alexy, é possível identificar princípios e regras que se opõem
a continuidade de uma gestação não desejada, e assim, a proteção da vida do
nascituro. Não há dúvida que dentre os direitos fundamentais da mulher destacam-
se o direito à liberdade, à igualdade e a saúde, os quais estão intimamente ligados
ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Segundo Dworkin, um princípio representa “um ‘standard’ que deve ser
observado, não porque favoreça ou assegure uma situação econômica política ou
social consierada desejável, mas porque é uma exigência da justiça, da equidade ou
de alguma outra dimensão da moralidade.”
206
Em conseqüência, a presença dos
princípios no Direito impede que a interpretação seja realizada por meio de
raciocínios puramente formais e alheios a valorações substantivas. Em sentido
oposto, as regras aplicáveis sob a forma de tudo ou nada, se os fatos nela previstos
ocorrerem, a regra deve incidir. Do contrário, não estando presente seu suporte
fático, ela não incide. Assim, as regras “estabelecem standards que apontam para
decisões particulares relativas a obrigações jurídicas em determinadas
circunstâncias, mas diferem quanto ao caráter da orientação que estabelecem. As
regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada.” Além disso, “se os fatos que a
regra estipula estão dados, então ou a regra é válida, caso em que a resposta que
fornece deve ser aceita, ou então não é, caso que em nada contribuirá para a
decisão.”
207
Ao desenvolver os critérios propostos por Dworkin, Alexy entende que
205
Alexy, 1997, p.86.
206
Dworkin, apud Pereira, 2005, p.100.
207
Dworkin, apud Pereira, 2005, p.101.
91
“tanto as regras como os princípios são normas porque ambos dizem o que deve
ser. Ambos podem ser formulados com a ajuda das expressões deonticas básicas
do mandado, permissão e proibição.” Da mesma forma, os princípios “são razões
para juízos concretos de dever ser, ainda quando sejam razões de um tipo muito
diferente. A distinção entre regras e princípios é, pois, uma distinção entre dois tipos
de normas.” Desse modo, “os princípios são normas com um grau de generalidade
relativamente alto, e as regras representam normas com um nível relativamente
baixo de generalidade.”
208
E mais, “o ponto decisivo para a distinção entre regras e
princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
melhor medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.”
Por seu turno, continua o autor, “as regras são normas que somente podem ser
cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então se deve fazer exatamente o que ela
exige, nem mais nem menos.” Para tanto, “as regras contém determinações no
âmbito dos fatos e do juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre
regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma é ou bem uma regra ou
um princípio.”
209
Por conseguinte, em razão da estrutura peculiar que os princípios
ostentam, a diferença fundamental entre estes e as regras está na solução exigida
para os casos de conflito. Na hipótese de colisão entre duas regras, ou introduz-se
uma cláusula de exceção que elimina o conflito, ou declara-se inválida uma delas
(por meio dos critérios lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi
generali). Isso ocorre porque o conflito de regras se dá na dimensão da validade, e
“o conceito de validade jurídica não é graduável. Uma norma vale ou não vale
juridicamente.”
210
Diferentemente, com relação aos princípios, quando entram em
colisão, um dos princípios necessariamente terá que ceder ao outro, sem que isso
signifique que o princípio deslocado é inválido ou que necessite de uma cláusula de
exceção. Ocorre que, em determinadas circunstâncias, um dos princípios precede
ao outro. Em outra situação essa questão pode ser solucionada de forma diversa.
“Isso é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os princípios
têm um peso diferente e que prevalece o princípio com maior peso.” Os conflitos de
208
Alexy, 1997, p. 83.
209
Alexy, 1997, p. 86-87.
210
Alexy, op.cit., p.88.
92
regras se resolvem na dimensão da validade; a colisão de princípios, ao seu turno,
são resolvidas na dimensão do peso, porquanto só podem entrar em colisão
princípios válidos. A ponderação é o método de interpretação que viabiliza o
estabelecimento das condições de precedência entre princípios antagônicos, uma
vez que avalia o peso que cada princípio assume no caso concreto.
211
Como resultado, Alexy refere que por meio do que chama de ‘lei da
ponderação’, “a medida permitida de não satisfação ou de afetação de um dos
princípios depende do grau de importância da satisfação do outro.” Assinala que “já
na definição de princípio, com a cláusula ‘relativo as possibilidades jurídicas’, aquilo
que é ordenado pelo respectivo princípio é posto em relação com aquilo que é
ordenado por princípios opostos.” Em outras palavras, “a lei da ponderação diz em
que consiste esta relação. Esclarece que o peso dos princípios não é determinável
em si mesmo ou absolutamente, de forma que se pode falar tão-somente em pesos
relativos.”
212
O resultado da ponderação é a formulação de uma regra que proclama
a relação de preferência entre os princípios, conforme as circunstâncias do caso
concreto. Essa regra possui como parâmetro a ‘lei da colisão”, estabelecendo que
“as condições sob as quais um princípio precede a outro constituem o suposto de
fato de uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio precedente.”
213
Para Alexy, a ‘lei de colisão’ representa um dos fundamentos da sua teoria dos
princípios, uma vez que “reflete o caráter dos princípios como mandados de
otimização entre os quais, primeiro, não existem relações absolutas de precedência
e que, segundo, referem-se a ações e situações que não são quantificáveis.”
Simultaneamente, finaliza o autor, “constitui a base para minimizar a força das
objeções que resultam da proximidade da teoria dos princípios com a teoria dos
valores.”
214
Por esta razão, na hipótese de algo ser permitido por um princípio e
vedado por outro, esse conflito é solucionado na dimensão do valor, devendo, para
tanto, um dos princípios recuar, sem que seja declarada a invalidade do princípio
que teve sua aplicação afastada. Examinando-se a temática do aborto, sob qualquer
211
Alexy, op.cit., p.89.
212
Alexy, 1997, p.161.
213
Alexy, op.cit., p.94.
214
Alexy, op.cit., p.95.
93
das perspectivas a seguir referidas, “não se pode fugir a uma resposta positiva sobre
eventual conflito entre direitos fundamentais. Tais direitos, chamados à colação,
estão em rota de colisão e não se acomodam, à primeira vista, num espaço de
composição.”
215
Na condição de “princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-
valorativa”
216
, a dignidade da pessoa humana deve ser o norte da interpretação e
concretização dos direitos fundamentais, conferindo, assim, unidade à Constituição,
na hipótese de conflito entre direitos fundamentais.
Sobre as dimensões do princípio da dignidade humana, Sarlet constata
que ela é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais, além de todos e
cada um. Enquanto limite “a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode
ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também
o fato de a dignidade gerar direitos fundamentais (negativos) contra atos que a
violem ou a exponham a graves ameaças.”
217
Sendo assim, dignidade da pessoa
humana representa
a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano
que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos.
218
A liberdade pessoal e seus desdobramentos são corolários do princípio
da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, situa-se o reconhecimento e
215
Franco, 2006, p.53.
216
Conforme Sarlet, 2004, p.70. Mais adiante (p.83), o mesmo autor refere que, “precisamente no
âmbito desta função hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana, poder-se-á afirmar a
existência não apenas de um dever de interpretação conforme a Constituição e os direitos
fundamentais, mas acima de tudo, de uma hermenêutica que, para além do conhecido in dubio pro
libertate, tenha sempre presente ‘o imperativo segundo o qual em favor da dignidade não deve haver
duvida’. Vale dizer, nesta linha de pensamento e finalizando este segmento, que os direitos
fundamentais, assim como e acima de tudo, a dignidade da pessoa humana à qual se referem,
apresentam como traço comum o fato de que ambos (dignidade e direitos fundamentais) ‘atuam no
centro do discurso jurídico constitucional, como um DNA, como um código genético, em cuja
unifixidade mínima, convivem, de forma indissociável, os momentos sistemático e heuristico de
qualquer ordem jurídica verdadeiramente democrática.”
217
Sarlet, 2005, p.32.
218
Sarlet, op.cit., p.37.
94
proteção da identidade pessoal, enquanto direito à autonomia e integridade psíquica
e intelectual. Dentre outras dimensões, a concretização desses direitos ocorre por
meio do respeito pela privacidade, intimidade, honra, imagem e nome, dimensões
estas “umbilicalmente vinculadas à dignidade da pessoa, tudo a revelar a já
indiciada conexão da dignidade, não apenas como um direito geral ao livre
desenvolvimento da personalidade, mas também com os direitos de personalidade
em geral.”
219
Por outro lado, embora a dignidade da pessoa humana e o direito
fundamental à vida possuam muitos aspectos em comum, deve-se atentar que se
tratam de bens jurídicos distintos, que não devem, necessariamente, repercutir em
conjunto, de forma paralela, como elemento de reforço da proteção. Ao contrário,
Kloepfer afirma que “eles também podem estar em conflito entre si no sentido de
uma colisão de direitos fundamentais”
220
, tal como ocorre na questão do aborto. Em
especial, deve ser considerado que o direito fundamental à dignidade da pessoa
humana é atingido se a mulher for obrigada a uma condução indesejada da
gravidez, porquanto nessas situações, reproduzindo as palavras de Ferrajoli, retira-
se dela a autonomia sobre o seu próprio corpo, “reduzindo-a a coisa ou a
instrumento de procriação submetida a fins que não os seus.”
221
Tratando propriamente dos direitos fundamentais atingidos pela
criminalização do aborto, inicialmente vem a colação o direito à liberdade,
compreendido aqui no seu sentido positivo, traduzido pela autonomia da mulher em
relação ao seu próprio corpo, não a deixando refém de uma condição biológica que
confere exclusivamente à ela a possibilidade de gestar. Em outras palavras, trata-se
da autodeterminação sexual e reprodutiva, cabendo à mulher a última palavra sobre
o momento em que exercerá a maternidade. Disso decorre o direito à liberdade
sexual, traduzido não apenas na “faculdade de ter ou não relações sexuais e com
quem”, mas, principalmente, na “liberdade de ter relações sexuais desprovidas de
219
Sarlet, 2004, p. 86.
220
Kloepfer, 2005, p.159.
221
Ferrajoli, 2003, p.22.
95
todo propósito procriador”.
222
Nesse sentido, a Constituição Federal enuncia, no
parágrafo 7º, do artigo 226, que, “fundado nos princípios da dignidade da pessoa
humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal.”
223
Com efeito, Sarmento reconhece no princípio da dignidade da pessoa
humana o pressuposto para o respeito à “esfera de autodeterminação de cada
mulher ou homem, que devem ter o poder de tomar as decisões fundamentais sobre
suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas, sem interferências do
Estado ou de terceiros.” Segundo o constitucionalista, a matriz desta idéia está na
concepção de que cada pessoa “é um agente moral dotado de razão, capaz de
decidir o que é bom ou ruim para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas
existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua
vontade.”
224
Nesse contexto, a decisão de ter ou não um filho corresponde a uma das
escolhas mais importantes na vida de uma mulher, sendo desnecessário destacar o
impacto que a gestação e a maternidade acarretam na vida de cada mulher. A
gravidez e a maternidade modificam radicalmente o rumo das suas existências. Se,
por um lado, conferem um novo significado à vida, por outro, implicam em muitas
renúncias, podendo “sepultar projetos e inviabilizar certas escolhas fundamentais.”
Em virtude dos fetos serem gestados no corpo das mulheres, e apesar das
mudanças comportamentais e assunção de novos papéis na sociedade
contemporânea, permanece sobre as mães o maior peso e responsabilidade pela
criação dos seus filhos. Por tudo isto, a opção pela maternidade possui intensa
conexão com a idéia de autonomia reprodutiva, cujo fundamento pode ser
encontrado na própria idéia de dignidade humana da mulher, bem como nos direitos
fundamentais à liberdade e à privacidade (art. 5º, caput e inciso X, CF).
225
222
Vives Anton, T. S. apud Franco, 2006, p.54. Sobre os direitos sexuais e reprodutivos, veja-se,
também, Piovesan, F.(2002, p.61-80);Rosado-Nunes, M. (2006, p. 23-39); Buglione, S.(2002, p.123-
176); Cook, R. (2002, p.13-60) e Villela, W. (2002, p. 81-92).
223
Art. 226, §7º, da CF/88.
224
Sarmento, 2006, p.159.
225
Sarmento, 2006, p.159. No parágrafo seguinte, valendo-se da citação de Dworkin (Freedom’s Law,
p.98), o autor ressalta que “uma mulher que seja forçada pela sua comunidade a carregar um feto
que ela não deseja não tem mais o controle do seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos
que ela não compartilha. Isto é uma escravização parcial, uma privação de liberdade.”
96
No mesmo sentido, defendendo que se o direito à liberdade é o primeiro
valor do ordenamento jurídico, e a fim de que não seja reduzido a um mero discurso,
Vives Antón acrescenta que para o livre desenvolvimento da personalidade e direito
à intimidade da mulher, não se pode negar a ela o direito de “rechaçar uma
maternidade não desejada por quaisquer motivos”, porquanto entende que isso
“pertence ao conteúdo essencial, ao núcleo duro desses direitos”. E mais, assinala
que uma Constituição democrática deve ser neutra diante dos motivos que levaram
a essa decisão, uma vez que o “reconhecimento da liberdade implica na ausência de
qualquer tipo de constrição frente às diversas opções morais.” Assim, “a decisão de
reger-se por uns ou outros princípios morais, por mais desprezíveis e egoístas que
possam parecer seus motivos, não pode ser, por si só, objeto de um juízo jurídico”.
Por conseguinte, o direito da mulher ao livre desenvolvimento de sua personalidade
comporta “que as razões pelas quais pode interromper sua gravidez sejam suas
próprias razões, não as que o legislador considere oportuno impor-lhe.”
226
De outra parte, o direito da mulher à igualdade também pode ser invocado
nas questões relacionadas com a interrupção voluntária da gravidez, uma vez que
sua incriminação “contraria frontalmente o princípio da igualdade. Não só na forma
evidente de desequilíbrio entre ricos e pobres, mas de uma maneira muito mais ínvia
e invisível: entre as mulheres que concebem e os homens que participam nessa
concepção”.
227
Ademais, conforme já referido, o ônus de uma gestação recai apenas
sobre as mulheres posto que somente elas ficam grávidas. No entanto, destaca
Sarmento, “a legislação não requer, em nenhum caso, sacrifício comparável do
homem.”
228
À título ilustrativo, Tribe afirma que a lei não obriga que um pai doe
algum órgão ou mesmo sangue ao filho, ainda que isto seja indispensável para
manutenção da vida deste. Note–se que no exemplo está em questão a vida de uma
pessoa já nascida, protegida mais intensamente pelo ordenamento do que a vida
pré-natal. Conclui, desse modo, que existem dois pesos e duas medidas na
226
Vives Anton, T S. apud Franco, op.cit., p.55.
227
Ribeiro, 2000, p.89.
228
Sarmento, 2006, p.165.
97
discussão sobre o aborto, afirmando que
uma mulher forçada pela lei a submeter-se à dor e à ansiedade de
carregar, manter e alimentar um feto que ela não deseja ter está
legitimada a acreditar que mas que um jogo de palavras liga o seu
trabalho forçado ao conceito de servidão involuntária. Dar à
sociedade – especialmente a uma sociedade dominada pelo sexo
masculino – o poder de condenar a mulher a manter a gestação
contra sua vontade é delegar a alguns uma autoridade ampla e
incontrolável sobre a vida de outros. Qualquer alocação de poder
como esta opera em sério detrimento das mulheres com classe, dada
a miríade de formas pelas quais a gravidez indesejada e a
maternidade indesejada oneram a participação das mulheres como
iguais na sociedade.
229
Ao lado disso, como ofensa ao princípio da igualdade, Franco assinala
que a penalização do aborto reduz a mulher à “condição de instrumento da
procriação, em evidente desigualdade em relação aos demais seres humanos.”
Ademais, de forma reflexa, seu direito à uma existência digna é afetado na medida
em que “perde a soberania sobre si mesma e, como ser humano, ‘não pode ser
tratado por ninguém (isto é, nem por outro, nem por ele próprio) como um simples
meio, antes deve ser tratado como um fim; e precisamente nisto consiste a sua
dignidade (a sua personalidade).’”
230
Num Estado Democrático de Direito e numa sociedade que pretende ser
inclusiva, a idéia de igualdade não se resume à isonomia formal, sendo tarefa
fundamental na construção e aplicação do Direito a busca e promoção de uma
igualdade no plano dos fatos, reduzindo os desníveis sociais e econômicos
existentes. Particularmente, na questão do aborto, além de envolver a igualdade
entre gêneros, o mesmo ocorre com a igualdade social, uma vez que são as
mulheres pobres que representam as maiores vítimas da legislação em vigor. Isso
em virtude de que são elas as que freqüentemente recorrem ao aborto como recurso
diante da falta de condições financeiras para criar futuros filhos, além da maior
dificuldade de acesso à educação sexual e aos meios contraceptivos. As gestantes
que possuem melhores condições econômicas, além de contarem com recursos
para um eficiente planejamento familiar, ainda assim, quando se deparam com uma
gestação não desejada, realizam o aborto em estabelecimentos com melhores
condições de higiene e segurança, sob a supervisão de um médico.
229
Tribe, L. apud Sarmento, 2006, p.166.
230
Franco, 2006, p.54.
98
De maneira oposta, as mulheres que não possuem condições econômicas
acabam se submetendo a expedientes precários e mais perigosos para pôr fim às
suas gestações. Nesse sentido, Faúndes e Barzelatto assinalam que a maneira
popular e ainda em uso “para provocar abortos de risco tem sido a introdução de um
objeto sólido e pontiagudo através da cérvice uterina, causando o rompimento da
membrana que protege o embrião (feto), o que usualmente causa infecção”, fazendo
com que o próprio corpo da mulher rejeite o embrião ou feto infectado. Outro método
tradicional e popular é o uso de uma “variedade de poções e chás de ervas” com
eficácia duvidosa. No entanto, “todos esses métodos comumente resultam em
abortos incompletos e freqüentemente infectados, que requerem hospitalização para
tentar salvar a vida da mulher.”
231
Dessa forma, o direito fundamental à saúde é também atingido pela
criminalização do aborto. Além de sofrerem abalos à sua saúde psíquica em razão
da obrigação legislativa de levar a termo uma gestação indesejada, Sarmento
verifica a existência de uma “lesão coletiva ao direito de saúde das mulheres
brasileiras em idade fértil.” Ocorre que, por não contarem com uma eficácia
preventiva mínima, o principal efeito prático das normas repressivas em vigor é
justamente o seu efeito colateral, qual seja, o aborto clandestino. A legislação
vigente leva “todo ano centenas de milhares de gestantes, sobretudo as mais
pobres, a submeterem-se a procedimentos clandestinos, realizados no mais das
vezes sem as mínimas condições de segurança e higiene, com graves riscos para
suas vidas e saúde.”
232
As estatísticas comprovam que a repressão penal está longe de ser o
meio de proteção mais adequado das vidas intra-uterinas, uma vez que não impede
que as mulheres recorram aos abortos clandestinos. Ao invés de promover uma
legislação restritiva, o Estado deveria implementar medidas que comprovadamente
são mais eficazes e não geram os mesmos efeitos colaterais. Dentre as medidas
231
Faúndes; Barzelatto, 2004, p.55.
232
Sarmento, 2006, p.151. Nesse sentido, conforme Faúndes (2004, p.54), a Organização Mundial da
Saúde define aborto de risco como “um procedimento para interromper uma gravidez indesejada,
realizado por pessoas que não têm as habilidades necessárias ou em um ambiente que não tem os
padrões médicos mínimos, ou ambos.”
99
cabíveis, por exemplo, cite-se a ampliação dos investimentos em planejamento
familiar e educação sexual para redução do número de gestações indesejadas; a
garantia do direito à creche e o combate ao preconceito contra a mulher grávida no
ambiente de trabalho. Reproduzindo as palavras de Sarmento, a adoção de medidas
semelhantes evitaria que as gestantes “sejam confrontadas com uma ‘escolha de
Sofia’ entre a maternidade ou o emprego; e o fortalecimento da rede de segurança
social, para que um novo filho não seja sinônimo de penúria para as já
desassistidas.”
233
Outrossim, não se deve olvidar que o direito à saúde envolve também
uma dimensão prestacional, impondo ao Estado o dever de atuar positivamente,
formulando e implementando políticas públicas visando a promoção da saúde das
pessoas, inclusive com o fornecimento de prestações materiais correlacionadas à
saúde – v.g. atendimento médico e medicamentos - aos cidadãos. Especificamente,
com relação às políticas públicas relacionadas à questão do aborto, o direito à saúde
constitui uma decorrência lógica dos direitos reprodutivos. Piovesan destaca que “o
efetivo exercício dos direitos reprodutivos demanda políticas públicas que
assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Nesta perspectiva, é fundamental o direito
ao acesso a informações, meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis.” Da
mesma forma, igualmente fundamental é o direito a um elevado padrão de saúde
reprodutiva, “tendo em vista a saúde não como mera ausência de enfermidades e
doenças, mas como a capacidade de desfrutar de uma vida sexual segura e
satisfatória, bem como de se reproduzir com a liberdade de escolher fazê-lo ou não,
quando e com que freqüência.” Nesse direito, a autora inclui o devido acesso ao
“progresso científico e o direito de receber educação sexual. Portanto, aqui é
essencial a interferência do estado, no sentido de que implemente políticas públicas
garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva”, enquanto típica dimensão dos
direitos sociais.
234
Com efeito, a privação dos direitos reprodutivos tem implicado na morte
de milhões de mulheres, além de doenças e impedimentos evitáveis. Segundo
informações do Ministério da Saúde (DATASUS), as internações decorrentes de
233
Sarmento, 2006, p.156.
234
Piovesan, 2002, p.77.
100
complicações advindas dos abortamentos correspondem a 238 mil/ ano, a um custo
médio unitário de R$ 125,00, totalizando uma despesa na ordem de R$ 29,7 milhões
de reais. Deve ser ressaltado que este valor é subestimado, pois não estão
computados os custos com internações que ultrapassam o período de 24 horas, os
casos que necessitam de cuidados em Unidade de Tratamento intensivo e as
internações prolongadas para tratar infecções, que são freqüentes, bem como os
recursos adicionais necessários para atender às seqüelas.
235
Ademais, importante ser lembrado que, ainda que a fonte destes dados
seja a própria base de dados do Sistema Único de Saúde, a realidade é muito
superior a estes números. Estimativas sugerem a realização de 705.600 mil a
1.008.000 milhão de abortos clandestinos entre o período de 1999 e 2002, no
país.
236
A disparidade com os dados já referidos justifica-se, em muitos casos, pelo
registro no sistema referir somente a complicação advinda do abortamento (por
exemplo, uma hemorragia). Além disso, a impossibilidade de incluir os
procedimentos realizados por mulheres que gozam de melhores condições sócio-
econômicas e que recorrem à clínicas privadas com todo conforto e segurança,
aumentam, também, a chamada ‘cifra negra’ do Aborto.
Por outro lado, de nada adianta modificar a legislação sobre o aborto,
descriminalizando a sua prática dentro de determinados prazos e indicações, se
paralelamente não sejam adotadas medidas administrativas de suporte para sua
realização. Para que a descriminalizão possua a eficácia esperada, é
imprescindível que os procedimentos médicos sejam oferecidos gratuitamente, no
âmbito do Sistema Único de Saúde. Do contrário, “as mulheres pobres continuariam
fatalmente exposta à mesma via crucis, em detrimento da sua saúde e expostas aos
mesmos riscos de vida.”
237
De fato, se o aborto for tratado como um problema de saúde pública,
seguindo a recomendação das Conferências do Cairo (1994)
238
e de Beijing (1995),
235
Rede Feminista da Saúde, 2005, p.03.
236
Rede Feminista da Saúde, 2005, p.19.
237
Sarmento, 2006, p. 157.
238
Esta conferência tratou além de outros temas, o impacto do aborto inseguro na saúde das
mulheres. O chamado “Cairo Programme os Action” desaprovou as leis repressivas que proíbem as
101
não haverá como escapar desta equânime solução. Ademais, conforme já referido, o
sistema público de saúde já gasta vultuosos recursos para tratar as conseqüências
dos abortos clandestinos na saúde das mulheres. Assim, não haveria a assunção de
desmesurados gastos pelo Poder Público.
239
Nesse sentido, a adoção de um sistema combinando prazos e indicações,
nos moldes do adotado por muitos países europeus, parece uma solução
constitucional e bastante razoável. Destarte, para que não seja banalizado o recurso
ao aborto, a legalização desta prática deve ser acompanhada de medidas
administrativas relacionadas à educação sexual, ao planejamento familiar e ao
fortalecimento da rede de proteção social voltada para a mulher.
4.2 Sistema de prazo e indicações como alternativa para descriminalizar o
aborto
Com fundamento na exposição de motivos do projeto alternativo do
Código Penal alemão, Fragoso assinala que o juízo de desvalor sobre o aborto,
contido nas disposições do Código Penal, não possuem qualquer poder de
convencimento sobre as mulheres, porquanto “as ações proibidas são praticadas por
inumerável quantidade de pessoas e todos sabem que somente uns poucos serão
punidos, por mero acaso.”
240
Partindo da mesma premissa, Romeo Casabona afirma que a mulher que
optou pelo aborto, ponderando na sua decisão todas as circunstâncias, inclusive o
eventual castigo penal, dificilmente modificará sua escolha pela ameaça intimidante
da pena. Acrescenta, ainda, que caso se veja constrangida a voltar a abortar e
presentes as mesmas circunstâncias que a fizeram decidir pelo aborto na ocasião
anterior, entende que ela voltará a inclinar-se pela mesma solução, posto que um
eventual castigo pelo aborto anterior não produziu nenhum efeito sobre ela,
mulheres a realizar o aborto com profissionais qualificados, em condições médicas higiênicas,
adequadas e seguras. O Programa defende o direito de escolha para terminar uma gestação com
base na sua reflexão moral individual das circunstâncias, saúde e bem estar, independentemente da
gravidez ter sido originada de relação sexual consentida ou imposta pela força, coação ou estupro.
Com isso, esse programa de ação reconhece a autonomia de cada mulher na escolha de suas
próprias decisões sobre a sua vida e futuro, incluindo seu futuro reprodutivo. (cf. Cook, 2006, p.17).
239
Sarmento, idem, ibidem.
240
Fragoso, 1976, p.125.
102
sobretudo se as instâncias competentes não adotaram os meios oportunos que
façam com que o aborto já não seja necessário ou inevitável, incluindo-se aí políticas
de planejamento familiar, difusão de meios contraceptivos, atenção às mães com
fortes cargas sociais ou econômicas, entre outras.
241
Nesse sentido, considerando que nenhum direito fundamental possui
caráter absoluto e levando-se em conta os direitos fundamentais em oposição na
manutenção de uma gravidez indesejada, faz-se necessário que se faça a
ponderação dos referidos direitos fundamentais, por meio de concessões mútuas, de
forma a não sacrificar nenhum direito por inteiro.
Nos termos já referidos nos capítulos anteriores, embora o nascituro
possua direito à vida intra-uterina, esse direito não possui a mesma intensidade da
vida pós-natal, não se podendo equiparar a vida humana em formação com a vida
humana independente. Essa inequívoca diferença de valor entre esta e aquela
repercute quando se tem de fazer uma ponderação entre direitos fundamentais. Por
esta razão, em havendo, até o terceiro mês de gravidez, um período de absoluta
incerteza do ponto de vista científico com relação à presença de vida humana em
sua plenitude, força é convir que não se pode maximizar, nessa fase, o direito à vida
do nascituro em detrimento do exercício de direitos fundamentais
constitucionalmente garantidos à gestante, entre os quais se incluem o direito à
liberdade, nas suas várias dimensões, dignidade, saúde e o próprio direito à
igualdade. Entretanto, esgotado o prazo de três meses, permitir à mulher a prática
do aborto, a não ser em situações fáticas determinadas, “seria atribuir-lhe um direito
ilimitado em detrimento do direito à vida humana, nessa altura, já consolidada. A
composição entre os direitos fundamentais em choque conduz, portanto, à aceitação
da chamada solução de prazo, conjugada com a de indicações.”
242
Nesse sentido, Carbonell Mateu e González Cussac destacam a
peculiaridade de que “os interesses fetais somente podem ser desenvolvidos no
interior da grávida, que é a portadora da vida. Trata-se de uma dualidade na
unidade: são dois seres distintos, mas um corpo suporta o outro.” Desse modo,
241
Romeo Casabona, 1994, p.294.
242
Franco, 2006, p.58.
103
“durante um período de tempo, tem de predominar a unidade e, por conseguinte, a
decisão cabe à grávida; transcorrido esse prazo, predomina a dualidade e apenas
em determinados e graves casos poderão ser sacrificados os direitos do
nascituro.”
243
Seguindo este raciocínio, Figueiredo Dias considera constitucional uma
legislação que combinasse equilibradamente o sistema das indicações com o
sistema dos prazos, principalmente se nele houvesse a previsão de um consistente
e adequado aconselhamento médico-social. Destarte, assevera que atualmente a
questão do momento a partir do qual o crime de aborto se torna possível reduz-se “a
declaração meramente simbólica a punibilidade da interrupção voluntária da
gravidez nos primeiros tempos desta, seguramente nas primeiras 4 semanas.” Isso
porque, numa época em que se fabricam e se administram a chamada pílula do dia-
seguinte, dispositivos intra-uterinos destinados a impedir a fixação do óvulo no útero
ou, ainda, os antiprogesterona (RU 486 ou Nifepristona), “a manutenção da
punibilidade durante aquele prazo revela-se de concretização judicial praticamente
impossível, totalmente ineficaz, e portanto absolutamente desnecessária do ponto
de vista da proteção do bem jurídico; e nesta medida sim, porventura
inconstitucional.”
244
Especificamente, sobre os sistemas que fundamentam a licitude do
aborto, o denominado sistema de prazo defende a possibilidade de interrupção da
gravidez consentida nas doze primeiras semanas, independentemente da
declaração de motivos pela gestante, mas desde que realizada por médico. Assim, a
mulher pode decidir com inteira liberdade sobre a continuidade ou interrupção da
gravidez, com a única condição de que seja praticada por um médico ou por ela
mesma, ainda que às vezes possa exigir uma consulta ou assessoramento médico-
social dos profissionais competentes, condição que é freqüente também no sistema
das indicações. O fundamento deste sistema está na existência de um conflito entre
os interesses da mãe, como sua liberdade, mas também sua intimidade, e a vida do
nascituro, que se resolve em caráter geral em favor da mãe enquanto não se esgote
243
Carbonell Mateu, J.C.;González Cussac, J.L apud Franco, idem, ibidem.
244
Figueiredo Dias, 1999b, p.172.
104
o período estabelecido.
245
Destarte, a linha de demarcação entre a permissão e a
proibição do aborto é traçada tendo em vista o momento em que ele venha a ser
realizado.”
246
Dentre os argumentos favoráveis à este sistema, Romeo Casabona
destaca que o prazo usualmente estabelecido de três meses marca a separação
biológica entre embrião e feto, bem como permite que a mulher comprove a certeza
da gravidez e reflita com cuidado sobre a decisão de abortar ou prosseguir a
gravidez quando dela decorrerem inconvenientes. Além disso, nesses primeiros
meses o aborto oferece riscos menores para a mãe. Ademais, este sistema não
implica que o embrião fique privado de qualquer proteção jurídica, porquanto referida
proteção pode ser alcançada por meios não-penais, como por exemplo, por meio do
assessoramento prévio e obrigatório da gestante, de forma que a via penal, até esse
período, não pareça a mais adequada.
247
Por outro lado, Franco assevera que “a objetividade do critério de prazo
tem o condão de igualar todas as mulheres, sem distinção de categorias sociais ou
econômicas.” Portanto, independentemente da sua condição sócio-econômica, ao
ser-lhes facultada a opção ou não pela maternidade, todas as mulheres poderiam
exercitar, no prazo de doze semanas, o direito à liberdade pessoal e à dignidade da
pessoa humana, direitos estes “fundamentais que se vinculam estreitamente ao livre
desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação da própria vida na
específica condição feminina”.
248
No tocante às criticas levantadas contra este sistema, merece destaque a
análise de dois argumentos em especial. De acordo com Franco, a primeira objeção
diz respeito “ao perigo de que o aborto se converta num método habitual de controle
da natalidade, com o abandono do recurso a outros meios preventivos da gravidez.
E, por via de conseqüência, num aumento significativo da taxa de abortos.” Ao
rechaçar esta alegação, o autor afirma que o aborto não deve ser tratado como
forma de controle da natalidade pela simples razão de que para mulher alguma a
245
Romeo Casabona, 1994, p.296.
246
Franco, 2006, p.60.
247
Romeo Casabona, 1994, p.297.
248
Franco, 2006, p.61.
105
conduta de abortar é tida como um ato positivo e desejável. “Provocar o aborto
sempre constituirá um gravoso problema para a mulher e lhe acarretará, via de
regra, a necessidade de valorar sua posição pessoal, máxime em face de questões
familiares, éticas ou religiosas.” Assim, torna-se evidente que a toda mulher é
preferível o emprego de meios contraceptivos do que recorrer ao aborto. De outra
parte, não há como escapar da constatação de que “a atipicidade do aborto
realizado no prazo de doze semanas provocará, de início, um aumento da taxa de
abortos, com o desaparecimento dos abortos clandestinos”. Todavia, a curto prazo,
essa mudança legislativa levará a diminuição do “número de mulheres mortas ou
com conseqüências sérias para sua saúde, e a linha estatística se inflectirá
rapidamente no sentido decrescente.”
249
Por sua vez, o segundo argumento refere-se à afirmação de que durante
esse prazo de doze semanas de gravidez, ocorre uma “desproteção real e absoluta
do embrião.” Não possui qualquer fundamento referida assertiva. Isso porque, em
verdade, a proteção do embrião esta assegurada em nível administrativo, pela
criação de um sistema de assessoramento ou outros métodos dissuasórios para a
mulher grávida, como medidas sócio-econômicas de suporte à grávida e à mãe.
Logo, essa política confere ao embrião “uma tutela bem mais efetiva e se substitui,
com gritante vantagem, a ameaça penal.” Aliás, isso contribui para que “a proibição
penal do aborto não passe a ser, em última instância, uma incompleta, quando não
totalmente hipócrita, declaração de princípios em favor da proteção da vida em
gestação”.
250
Nessa linha de raciocínio, não se pode concluir que a inviolabilidade da
vida humana implique na impossibilidade da sua relativização quando em conflito
com outros direitos fundamentais. Não se pode extrair desse princípio o “argumento
contra a existência de justificações do fato, ou mais latamente contra a consagração
de cláusulas de impunidade de condutas que atentem contra os bens jurídicos vida
ou vida intra-uterina”, de modo que se chegue a conclusão de “uma imposição
(implícita) absoluta de criminalizacão” para o legislador ordinário, uma vez que
249
Franco, 2006, p.62.
250
Eser, A. apud Franco, 2006, p.62. No mesmo sentido, Barreiro (apud Franco, 2006, p.62) acredita
que “o futuro de uma luta eficaz contra o aborto não está no Direito Penal (a resposta aqui é modesta
e muito limitada: a mais idônea é a solução de prazo), mas sim na via preventiva articulada por uma
política social avançada, exigível e inerente ao Estado Social e Democrático de Direito”.
106
possui liberdade para decidir, “de acordo com as concepções político-criminais que o
guiem e com respeito pelos princípios da necessidade, da subsidiariedade e da
adequação da tutela penal, do sentido e da extensão com que deseje consagrar
cláusulas de justificação ou de impunidade do fato.”
251
Por conseguinte, nada obsta que se fixe, em nível de legislação ordinária,
o prazo de doze semanas como marco final para a impunidade da interrupção
voluntária da gravidez, uma vez que neste prazo o embrião completa o processo
biológico que o converte em feto. Ademais, conforme referido por Figueiredo Dias,
estudos realizados demonstram que ao se conferir “razoável extensão a este prazo,
nem por isso se concluirá logo ser tal extensão particularmente lesiva do direito à
vida do feto”, porquanto “o decurso de um certo prazo já de gravidez pode levar a
grávida a um reforço das contramotivações à interrupção e assim a decidir-se a favor
do feto, não contra ele.”
252
Portanto, a acolhida da solução de prazo não implica em
qualquer agravo ao princípio fundamental do direito à vida.
Sobre a questão do aconselhamento, impende destacar que, na hipótese
de sua obrigatoriedade, a eficácia desse sistema estará condicionada a prestação
de um efetivo auxílio médico, espiritual, social e eventualmente econômico-
financeiro, a ponto de, em alguns casos, dissuadir a gestante da idéia de por fim a
gravidez.
De outra parte, no tocante ao denominado sistema de indicações, cumpre
assinalar que nesse modelo a interrupção voluntária da gravidez figura dentro de
limites mais estreitos que no sistema de prazos. De acordo com Franco, o
fundamento do sistema de indicações é a consideração de que, ao contrário do que
ocorre no sistema de prazo, “a vida intra-uterina constitui um interesse dominante
251
Figueiredo Dias, 1999b, p.171.
252
Figueiredo Dias, 1999 b, p.174. No parágrafo seguinte, reportando-se a argumentação constante
do voto de Mahrenholz e Sommer na decisão do TC alemão de 28-5-93, “em toda esta matéria, não é
possível falar-se rigorosamente de um conflito entre o interesse da grávida e o do nascituro, como se
se tratasse neles de realidades completamente distintas. Não pode esquecer-se, na verdade, que os
interesses do nascituro só podem ser satisfeitos no interior e por intermédio da grávida. Trata-se por
isso, acentuaram aqueles juízes constitucionais, de uma ‘dualidade na unidade’: são dois seres
distintos, mas um deles suporta o outro. Assim pois, durante um certo período de tempo deve
predominar a ‘unidade’ e a decisão caber essencialmente à grávida; decorrido aquele prazo, a
‘dualidade’ predomina e só em casos graves e determinados deverá o interesse do nascituro ser
sacrificado.”
107
em todo o processo de gravidez, a não ser que, no decorrer dela, ocorra algum fato
concreto que conceda maior importância à autodeterminação da vontade da mulher
ou à sua dignidade da pessoa humana.” Em suma, vale “o esquema regra-exceção:
a regra é o castigo do aborto; a exceção permite o aborto voluntário em certos casos
expressamente regulados (indicações)”
253
.
Para Romeo Casabona, a vantagem desta solução é que a vida do
nascituro não se encontra desprotegida de modo absoluto em nenhuma de suas
fases de desenvolvimento. Ademais, referido sistema permite também atender
determinadas necessidades e interesses da mãe, tais como seu direito à saúde,
liberdade, intimidade, entre outros. Por isso o sistema de indicações qualifica-se
como uma solução de compromisso, uma vez que somente nas indicações
estabelecidas pela lei, e mediante a satisfação dos requisitos por ela exigidos, o
aborto poderá ser realizado. Desse modo, segundo o autor, dita solução contribui
para uma maior segurança jurídica, porquanto se sabe exatamente quando se é
permitido ou não, e evita subjetivismos ou dúvidas na determinação de qual o
interesse preponderante na situação concreta.
254
Em verdade, conforme referido no capítulo 2.3, as indicações possuem
natureza penal de causa de justificação ou exclusão de ilicitude. Com efeito,
tratando das indicações em espécie, existe previsão para indicação terapêutica;
indicação sentimental – também chamada de ética ou humanitária; indicação
embriopática – também conhecida como eugênica e, por fim, a indicação
econômico-social.
As indicações terapêutica e humanitária foram objeto de extensa análise
no capítulo 2.3, uma vez que são as causas de exclusão de ilicitude consagradas na
legislação brasileira sobre o aborto. Entretanto, no tocante à indicação terapêutica,
deve ser acrescentado que, segundo Figueiredo Dias, “a interrupção deve se revelar
indispensável não simplesmente para evitar, mas para remover o perigo.” Bem por
isso, faz-se necessário “que o perigo seja atual e não meramente potencial, que ele
se encontre já instalado no momento em que a intervenção tem lugar.” Outrossim, o
253
Romeo Casabona, 1994, p.294.
254
Romeo Casabona, 1994, p.295.
108
risco abrange também à saúde psíquica. Por isso entende o autor que “a indicação
estará integrada, nesta parte, se em causa estiver o único meio de remover o perigo,
v.g., de uma alteração psico-neurótica da personalidade, de uma evolução
neurastênica ou depressiva de tendências suicidas.”
255
No mesmo sentido, partindo do pressuposto que os tipos de justificação
dispensam o alto grau de concretude e de determinação exigíveis dos tipos
incriminadores, comportando o recurso à analogia, Franco afirma que “não há razão
lógica para que não se inclua também na indicação terapêutica, além da vida da
gestante, sua saúde física ou psíquica.”
256
Por outro lado, os qualificativos da
gravidade e da irreversibilidade da lesão devem assumir o enquadramento conferido
pela ciência médica, de acordo com o estado dos conhecimentos e da arte da
medicina que deve decidir integralmente sobre a presença desta indicação.”
257
Por conseguinte, verificada a existência de uma indicação médica em
sentido estrito, a interrupção pode ser levada a cabo em qualquer momento da
gravidez. Esta circunstância que confere justificação para que o intérprete seja tão
exigente e estrito na constatação dessa indicação. Essa exigência também é
justificada pelo fato da interrupção ser tanto mais perigosa, suscetível de
complicações e em definitivo pesada para o corpo e a saúde da grávida, quanto
maior for o período em que se encontrar a gravidez. Nesse sentido, o direito penal
reconhece a circunstância de que no mundo das representações pessoais e
comunitárias o ‘valor’ do nascituro é tanto maior quanto mais tardio for o estágio da
gravidez.
258
Em suma, na indicação terapêutica, a interrupção não precisa ser o único
meio de remover o perigo, bastando que, para tanto, seja indicada para evitá-lo.
Nesse contexto, assinala Figueiredo Dias, não se exige a atualidade do perigo,
255
Figueiredo Dias, 1999b, p.180.
256
Franco, 2006, p.73. No mesmo sentido, Reale Jr. (1999, p.253) afirma que o critério legal
representa uma diretriz, “já que as circunstâncias particulares podem determinar uma mutação da
escala legislativamente estatuída. O decisivo é o caso particular. Os bens não podem ser
confrontados apenas em face da fria disposição legal, considerados isoladamente da circunstância
em que se dá o conflito, e independetemente dos seus titulares. A sanção imposta não pode servir
como critério através do qual se valore bens em conflito pois constitui um critério abstrato.”
257
Figueiredo Dias, 1999b, p.181.
258
Figueiredo Dias, op.cit., p.181.
109
bastando que, segundo o estado atual dos conhecimentos da medicina, seja
razoavelmente previsível o seu surgimento. “Não se trata por isso apenas de uma
mera possibilidade do perigo, mas de uma potencialidade razoável ou probabilidade
e da sua ‘conseqüente prevenção.’”
259
Da mesma forma, não se exige o caráter
irreversível da lesão do corpo ou da saúde, mas sim que, cumulativamente ao
requisito anterior, que a lesão seja duradoura.
No mais, com relação às indicações terapêutica e sentimental - também
chamada indicação ética ou humanitária – reporta-se às considerações expendidas
no capítulo 2.3 deste trabalho.
Por sua vez, no tocante à indicação embriopática, inicialmente cumpre
esclarecer que esse termo veio em substituição à chamada indicação eugênica.
Todavia, observando-se o conceito atribuído à palavra eugenia, verifica-se que é
totalmente inadequada a expressão “aborto eugênico” para fazer referência a
situação dos fetos inviáveis, pois, o que se busca com tal procedimento, é evitar um
sofrimento desnecessário para a mãe, uma vez que inafastável a certeza da morte
para o nascituro.
260
De maneira alguma está se perseguindo qualquer melhora na espécie
humana, pelo contrário, esta atitude objetiva minimizar a aflição da família envolvida
neste problema, cuja solução, nitidamente, não é imposta e sim, consiste numa
escolha livre e consciente da gestante, que não possui nenhuma implicação em
nível de população humana. Destarte, o que se busca não é uma interrupção de
gravidez de um feto malformado, que apesar das limitações físicas que possui,
poderá sobreviver, e sim, de um procedimento terapêutico que minimize o sofrimento
259
Figueiredo Dias, op.cit., p.182. Acrescenta, ainda, que apesar da decisão dever ser medicamente
fundada, esta não poderá deixar completamente fora de consideração as condições pessoais de vida,
atuais e futuras, da mulher. O mesmo devendo dizer-se “a propósito do caráter grave da lesão: o que
seja ou não uma lesão grave e duradoura para uma dona de casa pode já o não ser ou sê-lo para
uma cientista, uma atriz, uma desportista ou uma operária; e o mesmo deverá ser dito em função de
uma condição econômico-social boa, média, baixa ou miserável.” (op.cit., p.183)
260
Compartilhando este posicionamento, Figueiredo Dias (op.cit., p.186) declara que “denominar de
eugênica esta indicação é assim completamente infundamentado. Não porque devam temer-se as
palavras ou se queira cobrir a realidade com o manto da hipocrisia, mas porque, segundo a sua
teleologia própria, esta indicação nada tem a ver com preocupações eugênicas e tudo tem a ver com
os interesses da grávida e com o sofrimento que porventura possa causar-lhe a continuação da
gravidez e o nascimento de uma criança pesadamente lesada na sua saúde e (ou) no seu corpo. Se
na teleologia da lei reentra também, em alguma medida, a consideração dos sofrimentos futuros da
criança é coisa que, depois do que ficou dito, pode aqui permanecer em aberto.”
110
da gestante, na medida que comprovada a impossibilidade de vida extra-uterina do
filho que carrega em seu ventre. Nesse sentido, a palavra ‘embriopatia’ é o termo
médico adequado para designar essa indicação, a qual é traduzida pela “alteração
de caráter patológico sofrida pelo embrião ou pelo feto. Assim, leva-se em conta não
apenas um estado de morbidez de que sejam afetados o embrião ou o feto, como
também qualquer tipo de malformacão genética que repercuta no respectivo
desenvolvimento.”
261
De outra parte, apesar de ofender o bem jurídico-penal vida em formação,
a indicação embriopática de feto inviável pode ser considerada como um ato
penalmente atípico. Isso porque a antecipação terapêutica do parto não corresponde
ao elemento teleológico que informa o tipo penal do aborto, uma vez que somente
antecipa um fato natural e certo: o óbito do feto logo após seu nascimento. Destarte,
com a tipificação penal do aborto, quis o legislador resguardar o nascituro de
eventuais agressões por parte da mãe ou terceiros, a fim de que estes não
pudessem dele dispor, possibilitando, desta forma, condições para uma vida
“independente” (no sentido de não estar preso ao útero materno) após o seu
nascimento. Seguindo esta premissa, Ribeiro acrescenta que a proteção civilista
destinada ao embrião constitui numa “mera antecipação de eficácia de interesses
basicamente patrimoniais, não vincula qualquer solução de Direito Penal, que é
autônomo e não se vincula a conceitos de direito provado”. Ademais, a breve
“referência ao nascituro feita pelo Código Civil não tem repercussão do direito Penal,
onde a vida intra-uterina tem proteção jurídica virtual, ou seja, o Direito Penal, ao
punir o aborto, está, efetivamente, punindo a frustração de uma expectativa, a
expectativa potencial de surgimento de uma pessoa”. Por conseguinte, conclui ser o
crime de aborto dirigido à uma futura pessoa (considerando que o status de pessoa
não é atribuído nem civilmente ao feto), visto que “só a conduta que frusta o
261
Franco, 2006, p.78. Em outras palavras, continua o autor, significa “uma lesão do estado de saúde
(em sentido amplo) que ou deixa ao nascituro pequenas possibilidades de sobrevivência (cistinose,
doença de Tay-Sachs, de Nieman-Pick, de Krabbe, de Farber) ou lhe causa danos irreparáveis,
físicos (paralisias, cardiopatias, cegueira, microcefalia, anoftalmia, micromélia ou bebês de
Talidomida) ou psíquicos (psicose, oligofrenia, epilepsia).” É evidente que não se incluem na hipótese
enfocada doenças sem gravidade que podem ser curadas, nem tampouco lesões que, em nível de
cirurgia, possam ser corrigidas, como por exemplo os casos de lábio leporino ou de fenda palatina,
etc . No mesmo sentido, Figueiredo Dias (1999b,p.184) afirma que a indicação embriopática “estará
presente sempre que o grau de probabilidade, posto em conexão com a incurabilidade da doença ou
malformação prevista, por um lado, e com a condição psíquica da mulher, por outro lado, torne a
continuação para esta da gravidez num peso e num sofrimento que não é razoavelmente de lhe
exigir.”
111
surgimento de uma pessoa tipificará o crime de aborto.”
262
Sendo assim, esta
conduta já seria lícita, porquanto para que haja incidência da norma incriminadora do
aborto, imprescindível é possuir o feto expectativa de vida após o nascimento.
Por derradeiro, a indicação econômico-social, que envolve a maior
porcentagem dos abortos clandestinos, corresponde às interrupções de gestação
cujo móvel para decisão foi a precária condição sócio-econômica. Romeo Casabona
afirma que vários os motivos que podem ser enquadrados nessa indicação, desde o
estritamente econômico (como baixa renda, família numerosa que vive numa
situação econômica precária, problemas conjugais, dívidas, etc) à razões de índole
social (v.g, gravidez decorrente de um relacionamento extraconjugal, gestante
solteira, viúva ou jovem demais, incompatibilidade da gestação com o trabalho ou
estudos, doença crônica ou psíquica de algum membro da família ou da própria
mãe, sempre que a doença não seja agravada pela gravidez em si, caso em que
incidiria a indicação terapêutica).
263
Entretanto, a partir do momento em que o sistema de prazo for
compatibilizado com o sistema de indicações, reconhecendo-se que durante as doze
primeiras semanas o aborto é permitido, independentemente dos motivos que
levaram a gestante grávida à fazê-lo, Franco assevera que “a questão da indicação
econômico-social perde o seu relevo”. Isso porque “ultrapassado o referido lapso
temporal, a conduta da gestante passa a ter enquadramento típico e só terá excluída
a sua ilicitude em face de uma das três indicações: aborto necessário, aborto ético
ou aborto embriopático.”
264
262
Ribeiro, 2003, p.97-99. No mesmo sentido, o Min. Joaquim Barboza, do Supremo Tribunal Federal,
por ocasião do julgamento do Habeas Corpus nº 84.025-RJ, consignou que “o feto, desde sua
concepção até o momento em que se constatou clinicamente a irreversibilidade da anencefalia, era
merecedor de tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou a sua inviabilidade,
embora biologicamente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal”. Defendendo
posição semelhante, confira-se Tasse, A. (2004, p.28-41).
263
Romeo Casabona, 1994, p. 360.
264
Franco, 2006, p.71. No mesmo sentido, Figueiredo Dias (1999, p.173) concorda que “um sistema
de prazos, sem explicitar na própria lei os motivos da permissão da interrupção nas primeiras 10-12
semanas, torna supérflua a expressa consagração de uma pura indicação econômico-social. Há
fundadas razões para pensar que um sistema como o descrito seria não só mais honesto face à
realidade da vidas dos nossos dias, mais humano para a grávida que se põe a lamentável hipótese
de interromper uma gravidez ...”
112
No tocante ao procedimento em si, o requisito comum a todas as causas
de justificação do delito de aborto é, sem dúvida, que ele seja realizado por um
médico e, evidentemente, em hospital público, ou privado credenciado pela
Administração Pública. Todavia, a indicação embriopática possui requisitos próprios,
como “a verificação certa ou com alto grau de probabilidade de que o embrião ou o
feto apresente doença grave e incurável, ou malformação congênita”, devendo ser
observado o prazo permitido para a realização do aborto e a necessidade de parecer
emitido por dois especialistas.
265
4.3 Análise do substitutivo do projeto de Lei nº 1.135/91, que estabelece o
direito à interrupção voluntária da gravidez e assegura a realização do
procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde
Conforme referido anteriormente, em cumprimento de uma das ações do
Plano Nacional de Políticas para Mulheres, foi instalada no dia 06 de abril de 2005 a
Comissão para Revisão da Legislação Punitiva sobre o Aborto.
266
O resultado desse
trabalho foi a elaboração de uma justificativa e proposta normativa para legalização
e regulamentação da interrupção voluntária da gravidez. Esse estudo foi apensado
ao Projeto de Lei nº 1.135/91, de autoria dos deputados Eduardo Jorge e Sandra
Starling, resultando no substitutivo apresentado pela relatora, deputada Jandira
Feghali, à Comissão de Seguridade Social e Família – CSSF
267
, cuja proposta
estabelece o direito à interrupção voluntária da gravidez, assegurando a realização
do procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde, além de determinar a sua
cobertura pelos planos privados de assistência à saúde.
O artigo 1º reconhece à “toda mulher o direito à interrupção voluntária de
sua gravidez, realizada por médico e condicionada ao consentimento livre e
265
Franco, 2006, p.79.
266
Conhecida também como ‘Comissão Tripartite”, tendo em vista que na sua composição foram
escolhidos representantes do executivo federal, legislativo e sociedade civil.
267
Por sua vez, foram apensados à proposta inicial, os seguintes projetos de lei: PL 176/95 -Dep.
José Geoníno; PL 3.280/92 – Dep. Luiz Moreira; PL 1.174/91 – Dep. Eduardo Jorge e Sandra
Starling; PL 1.956/96 – Dep. Marta Suplicy; PL 2.929/97 – Dep. Wigberto Tartuce; PL 4.703/98 – Dep.
Francisco Silva; PL 4.917/01 – Dep. Givaldo Garimbão; PL 7.235/02 – Dep. Severino Cavalcanti; PL
3.744/04 – Dep. Coronel Alves; PL 4.303/04- Dep. Eduardo Valverde; PL 4.834/05 – Deps. Luciana
Genro e Dr. Pinotti; PL 5.166/05 – Dep. Takayama e PL 5.364/05 – Deps. Luiz Bassuma e Ângela
Guadagnin.
113
esclarecido da gestante.”
268
Analisando este dispositivo, observa-se a preferência
pelo uso da expressão ‘interrupção voluntária da gravidez’ ao invés da palavra
‘aborto’, o que denota uma clara opção do legislador em evitar o arraigado conteúdo
emocional e religioso que esse termo suscita. Ademais, ao condicionar a realização
do procedimento ao “consentimento livre e esclarecido da gestante”, deixa evidente
a intenção de um aconselhamento prévio à interrupção, em que pese não haver no
projeto outra referência a um sistema de auxílio social, médico ou religioso à mulher.
Por sua vez, o artigo 2º e incisos, enuncia o prazo e causas de
justificação em que o aborto não é punível. In verbis:
Art. 2º Fica assegurada a interrupção voluntária da gravidez em
qualquer das seguintes condições:
I - até doze semanas de gestação;
II - até vinte semanas de gestação, no caso de gravidez resultante de
crime contra a liberdade sexual;
III - no caso de diagnóstico de grave risco à saúde da gestante;
IV - no caso de diagnóstico de malformação congênita incompatível
com a vida ou de doença fetal grave e incurável.
269
Da leitura deste artigo, conclui-se que a solução adotada pelo projeto
combinou o sistema de prazo com o de indicações, na medida em que
descriminalizou o aborto durante as doze primeiras semanas de gestação (art.2º, I),
independentemente da comprovação de qualquer indicação, sendo mantida a sua
punição a partir desse prazo, ressalvando-se os casos previstos nos incisos
seguintes, quais sejam: a indicação sentimental - ética ou humanitária – desde que
realizada até a vigésima semana de gestação (art. 2º, inc. II); a indicação terapêutica
estrita, ou seja, não inclui o risco de lesão à saúde psíquica (art. 2º, inc. III) e, por
fim, a indicação embriopática (art. 2º, inc. IV). No tocante à estas duas últimas
indicações, a interrupção da gestação poderá ser realizada a qualquer tempo, não
havendo limite temporal.
Com efeito, tornando-se o aborto atípico durante as doze primeiras
semanas de gestação, além de uma evidente acolhida do sistema de prazo, tornou-
268
Substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.135/91, Rel. Dep. Jandira Feghali. Disponível no site:
<www.ibccrim.com.br/estudos> Acesso em 11 de novembro de 2005.
269
Substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.135/91, Rel. Dep. Jandira Feghali. Disponível no site:
<www.ibccrim.com.br/estudos> Acesso em 11 de novembro de 2005.
114
se dispensável a remissão de uma indicação econômico-social, que corresponde a
maior causa dos abortos ilegais e de risco. Destarte, a limitação da indicação ética
ou sentimental para as 20 primeiras semanas de gestação, além de minimizar os
riscos para a saúde da gestante, uma vez que após esse período aumentam as
possibilidades de complicações durante o procedimento, também levou em conta o
fato de que, atualmente, não é mais exigida a apresentação do boletim de
ocorrência policial como requisito para o aborto em que a gravidez é decorrente de
violência sexual, sendo a avaliação realizada exclusivamente por uma equipe
interdisciplinar do hospital credenciado.
270
De outra parte, no tocante a indicação terapêutica, não houve nenhuma
inovação com relação à causa de justificação vigente, porquanto não incluiu
expressamente o risco à saúde psíquica da gestante, à exemplo de países como a
França, Itália e Espanha. Não obstante, conforme tratado no tópico antecedente,
nada impede o recurso à interpretação analógica da causa de justificação do estado
de necessidade, prevista na parte geral do Código Penal. E, finalmente, com relação
a indicação embriopática (art. 2º, IV), além de abranger as anomalias incompatíveis
com a vida extra-uterina, também está previsto o diagnóstico de doença grave e
incurável, em compasso com os avanços da medicina, desvinculando a maternidade
da assunção de uma responsabilidade heróica, levando em conta “a sobrecarga
anímica e física que uma criança deficiente pode representar para a mãe”. Nas
palavras de Roxin, “aquela que se decide a dar à luz e criar uma criança que sofra
de severa deficiência realiza um elevado valor ético, merecendo admiração. Mas isto
deve ocorrer voluntária, e não coativamente.” Logo, não cabe ao Direito “exigir o
heroísmo e tem de se contentar com o ‘mínimo ético’.”
271
Nesse particular, deve ser
lembrado que o dispositivo em comento garante a gestante o direito de escolha e
não o dever de interromper à gestação, o que significa dizer que cabe à ela a
decisão acerca de interromper ou levar a termo a gravidez, com fundamento
exclusivamente nas suas convicções pessoais e religiosas.
Destarte, a proposta legislativa em comento, além de prever a
possibilidade de realização da interrupção da gravidez no âmbito do Sistema Único
270
Sobre o assunto, veja-se o capítulo 2.3 deste trabalho.
271
Roxin, 2002, p.03.
115
de Saúde, determina que os planos privados de assistência à saúde também
deverão cobrir a realização deste procedimento. È o que se depreende da leitura
dos artigos 4º e 6º, do substitutivo ao PL 1.1135/91:
Art. 4º O inciso III do art. 12 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998,
que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, passa a
vigorar acrescido da seguinte:
alínea c: cobertura dos procedimentos necessários à interrupção
voluntária da gravidez realizada nos termos da lei.
(omissis)
Art. 6º As normas complementares para a implementação do
disposto nesta Lei no âmbito do Sistema Único de Saúde serão
dispostas em regulamento expedido pelo Ministério da Saúde.
272
Sobre a proposta normativa apresentada pela Comissão Tripartite, Gollop
e Machado, que por sua vez, representaram a Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência - SBPC e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher –
CNDM, respectivamente, afirmam que “o recurso à interrupção voluntária da
gravidez deve ser entendido como uma última etapa, frustradas as estratégias que o
previnam.” Entretanto, não se pode olvidar que a gravidez indesejada ocorre e pelo
fato da sua alta incidência e principalmente, em razão das graves conseqüências
que traz para a saúde materna, deve ser tratada como questão de saúde pública.
Assim, “como pensar que mulheres violentadas, mulheres com graves problemas de
saúde, mulheres que se deparam com malformações congênitas como a anencefalia
devam obrigatoriamente levar adiante a gravidez?” É aceitável que prefiram
enfrentar os riscos do abortamento inseguro, e muitas vezes da sua vida, para não ir
adiante naquela gravidez indesejada?
273
Ao lado disso, a divulgação da proposta de legalização do aborto está
trazendo a tona dois mitos. O primeiro “é o temor de que a legalização faria dele um
evento banal, rotineiro e generalizado. O segundo é que o projeto não estabelece
limites ou regras para o seu acesso legal.” Não obstante, essa proposta está
embasada no conhecimento dos efeitos da legalização do aborto em diversos países
do mundo, os quais demonstram que nos estados em que sua prática foi legalizada
e em conjunto, adotada uma política de acesso a métodos anticoncepcionais, as
272
Substitutivo ao Projeto de Lei nº 1.135/91, Rel. Dep. Jandira Feghali. Disponível no site:
<www.ibccrim.com.br/estudos> Acesso em 11 de novembro de 2005.
273
Gollop,T.; Machado, L. O direito ao aborto. Disponível no site
<http://clipping.planejamento.gov.br> Consultado em 24/10/2005.
116
taxas de mortalidade materna e abortamento caíram drasticamente. Todavia,
naqueles onde não houve a ampliação do acesso aos métodos anticoncepcionais,
as taxas de abortamento se mantiveram, em que pese a mortalidade materna ter
diminuído drasticamente.
Por conseguinte, reproduzindo as palavras de Gollop e Machado, “quando
a interrupção voluntária da gravidez for legalizada nas normas previstas, a decisão
de assumir ou não paternidade e maternidade será uma decisão de afeto e
responsabilidade e não uma imposição do Estado.”
274
CONCLUSÃO
O Brasil integra o grupo de países que possui uma legislação restritiva ao
aborto e que, na sua totalidade, representam 40% dos países do mundo. Entretanto,
esta restrição não impede que, segundo estimativas da Rede Feminista da Saúde ,
tenham sido realizados entre 238.000 e 1.008.000 de abortos ilegais e de risco, no
período de 1999 à 2002. Objetivamente, as complicações decorrentes de um
procedimento de aborto representam a terceira causa de mortalidade materna no
Brasil e o segundo procedimento obstétrico mais realizado em hospitais, somente
cedendo lugar aos partos. Ao lado disso, o país já gasta vultosos recursos com os
abortamentos legais e primeiro atendimento das complicações advindas dos
procedimentos realizados de forma clandestina, uma vez que, segundo informações
274
Gollop, T.; Machado, idem, ibidem.
117
do Ministério da Saúde (DATASUS), são 238 mil internações por ano, a um custo
médio unitário de R$ 125,00, totalizando a cifra de R$ 29,7 milhões de reais.
Importante ser lembrado que, ainda que a fonte destes dados seja a
própria base de dados do Sistema Único de Saúde, a realidade é em muito superior.
Estimativas sugerem a realização de 700 mil a 1 milhão de abortos clandestinos por
ano no país. A disparidade com os dados já referidos justifica-se, em muitos casos,
pelo registro no sistema somente referir a complicação advinda do abortamento (por
exemplo, uma hemorragia). Ademais, a impossibilidade de incluir os procedimentos
realizados por mulheres com melhor condição sócio-econômica e que recorrem à
clínicas privadas com todo conforto e segurança, aumentam, também, a chamada
‘cifra negra’ do aborto.
A dificuldade em debater a questão do aborto reside no fato de que a
discussão sobre o tipo penal remete necessariamente seu enfoque para o conceito
de início da vida, debate este que além de envolver opiniões divergentes,
fundamentadas seja na ciência, religião ou filosofia, caracteriza-se pela falta de
consenso e ausência de um conceito unívoco sobre o tema. E disso não há como
escapar, pois o pressuposto lógico para saber quando se atentaria contra a vida
intra-uterina é estabelecer quando começaria esta vida.
Vale assinalar que, em se tratando o aborto de uma idéia essencialmente
moral, de fato não existe possibilidade de acordo ou consenso, mas apenas de
tolerância recíproca. Em outras palavras, essa tolerância implica no reconhecimento
de que cada concepção é legítima por si mesma, de acordo com a posição moral
que a justifica. Na prática isso significa o compromisso de abster-se de desqualificar
qualquer dessas opiniões como imoral, pela simples razão de não compartilhar com
os seus fundamentos.
No entanto, é inquestionável que a investigação do conceito de vida
constitui um pressuposto lógico nos debates que envolvem o tema do aborto. Ao
mesmo tempo, não se pode isolar e eleger determinada etapa do processo biológico
como se esta correspondesse ao início da vida. Nesse sentido, a busca por um
conceito de vida implica necessariamente numa reflexão sobre o ser humano, sobre
118
a pessoa e os momentos anteriores ao seu nascimento. A vida, por assim dizer,
consistiria num processo biológico em constante evolução, qualificado por mutações
e saltos qualitativos. E a valoração das etapas deste processo é feita muito mais
com base em dados culturais do que científicos. Assim, em razão de subordinar-se a
um processo cultural de construção e de desconstrução, não se pode falar em
conceito de vida, o que só seria evitável mediante manifestação explícita do
legislador constituinte, a respeito dessa matéria.
Todavia, embora não possua referência expressa no texto constitucional,
entende-se que a vida do nascituro é um bem que está protegido pela Constituição.
Não obstante, a proteção da vida intra-uterina ocorre de forma mais débil do que a
tutela assegurada à vida das pessoas nascidas. Isso justifica que, em situações
particulares, esta proteção seja afastada mediante uma ponderação de interesses,
se configurado um conflito entre os direitos fundamentais da gestante e a vida do
nascituro. Ademais, por ser um processo gradual, a tutela da vida do nascituro é
mais intensa no final do que no início da gestação, considerando o estágio de
desenvolvimento fetal correspondente, devendo tal fator ter especial relevo na
definição do regime jurídico do aborto.
A doutrina penal brasileira diverge com relação ao momento em que se
inicia a proteção jurídico-penal do nascituro. A corrente majoritária entre os
penalistas manifesta-se no sentido de haver vida humana e, portanto, tutelável pelo
direito penal, a partir da concepção. Ao lado disso, a objetividade jurídica do delito
de aborto está representada na tutela da vida humana em formação, que
corresponde à vida fetal ou intra-uterina. Nesse diapasão, embora represente
doutrina com pouca aceitação dentre os penalistas, entende-se que pertence à
coletividade a titularidade do bem jurídico vida em formação, porquanto para o
Direito, o nascituro não é pessoa, possuindo tão-somente expectativa de direitos.
Em conseqüência, representa o objeto material do crime, sobre o qual recai a ação
delitiva, sendo o Estado ou a coletividade o sujeito passivo do delito.
Destarte, no tocante a legitimação do direito de punir do Estado, vale
assinalar que sua legitimidade provém da exigência de que o Estado só deve tomar
de cada pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensável
119
ao funcionamento, sem entraves, da comunidade. Da mesma forma, daí resulta o
caráter pluralista e laico do Estado de Direito contemporâneo, impedindo que
violações puramente morais não representam lesão de um autêntico bem jurídico e
não podem, por isso, integrar o conceito material de crime. Do mesmo modo,
proposições ou finalidades meramente ideológicas não podem ser consideradas
como autênticos bens jurídicos.
A partir dessa premissa, conclui-se que os valores que informam a
criminalização do aborto não necessitam ser garantidos por meio do Direito Penal,
uma vez que existem meios mais eficazes e menos lesivos para a efetiva proteção
da vida intra-uterina. Outrossim, na hipótese em que a manutenção da vida humana
dependente entrar em conflito com direitos igualmente fundamentais da gestante,
tais como sua liberdade, autonomia reprodutiva, dignidade e saúde, a criminalização
do aborto pode ser traduzida na exigência de um “ônus desarrazoado”, importando,
assim, no sacrifício de valores existenciais da mulher.
Ainda que o direito à vida seja o direito fundamental por excelência, a sua
precedência lógica em relação aos demais direitos não lhe confere um valor
axiológico superior. O legislador constituinte não realizou nenhuma hierarquização
desses direitos, com base em eventual valoração axiológica. Na Constituição, cada
um e todos os direitos fundamentais situam-se num mesmo patamar, não havendo
nenhuma previsão de superposição ou graduação de direito em relação ao outro.
Ademais, nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, nem mesmo o direito
à vida, que, em determinadas situações, tem sua proteção afastada face aos
homicídios justificados, ou seja, nas situações de legítima defesa e guerra. Essa é
uma das razões que justifica a constitucionalidade de um sistema penal em que a
proteção à vida do não nascido cedesse, ante situações conflitivas, em mais
hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana
independente.
Especificamente, a criminalização do aborto põe em colisão direitos
fundamentais que possuem idêntica valoração axiológica. Ou seja, de um lado figura
o direito à vida do feto, de outro, os direitos fundamentais da gestante, devendo o
princípio da dignidade da pessoa humana ser o vetor de interpretação desse conflito.
120
Seguindo a fórmula de Alexy, é possível identificar princípios e regras que se opõem
a continuidade de uma gestação não desejada, e assim, a proteção da vida do
nascituro. Não há dúvida que dentre os direitos fundamentais da mulher destacam-
se o direito à liberdade, à autonomia reprodutiva, à igualdade e a saúde, os quais
estão intimamente ligados ao princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana.
Seguindo este raciocínio, possui respaldo constitucional uma legislação
sobre o aborto que combine equilibradamente os sistemas de prazo e indicações,
principalmente se nela houver a previsão de um consistente e adequado
aconselhamento médico-social.
No entanto, antes de uma alteração na legislação punitiva sobre o aborto,
é mister que esse debate seja levado às camadas de base da sociedade,
realizando-se um trabalho conjunto com órgãos formadores de opinião. Por se tratar
de um tema permeado por valores de ordem moral e religiosa, não basta que essa
discussão fique restrita ao âmbito acadêmico ou legislativo. Ademais, existe uma
carência de informações de fácil acesso e compreensão, capaz de ajudar a
desmistificar os mal-entendidos que prevalecem em torno do aborto. Faz-se
necessário que a população tenha um mínimo conhecimento sobre o tema e,
principalmente, acerca das implicações sociais do aborto clandestino, demonstrando
a legitimidade de uma legislação que descriminalize e regulamente sua prática. Em
conseqüência, na medida em que a maioria ‘silenciosa’ esteja melhor informada
sobre o tema, melhor será a aceitação da proposta de revisão na legislação punitiva
do aborto.
Ademais, uma discussão séria e ampla da questão do aborto poderá
servir também aos lideres de opinião, além dos próprios legisladores. Em virtude de
que grande parte da informação que recebem sobre o aborto são derivadas dos
argumentos apaixonados e carregados de ideologia, difundidos pelos dois grupos
que se opõem em um debate público e polarizado, a conscientização deste grupo
abre espaço para um debate democrático e qualificado sobre o assunto.
121
De outra parte, deve ser descartada a idéia de realizar uma consulta
popular sobre a revisão da legislação punitiva do aborto. Isso porque, em se
tratando de um debate que remete a uma questão essencialmente moral, de foro
íntimo, não há como fundamentar a sua legalização pelo voto popular, porquanto um
plebiscito analisará a questão sempre sob a perspectiva e valores do outro.
A decisão de ter filhos deve ser uma escolha de compromisso, que dá azo
ao evento de suma importância para afirmar o começo da vida humana, qual seja, o
acolhimento do nascituro pela mulher que deseja e decide ser mãe. Esta decisão
inaugura um processo de consolidação e proteção desta vida intra-uterina,
porquanto reconhece no nascituro um ser humano enquanto tal.
Por outro lado, é certo que a interrupção voluntária da gravidez não deve
e nem será tratada como método anticoncepcional, porquanto, além de ser uma
providência muito mais grave, constitui motivo de profunda tristeza para as mulheres
que o praticam.
De qualquer forma, uma constatação parece inafastável: um sistema tão
repressivo como o ora vigente dá lugar a um número enorme de abortos
clandestinos que põem em risco a vida e a saúde da mulher, sem proteger, na
prática, o interesse contraposto, qual seja, a vida do nascituro. Assim, não só a
Constituição, mas também a moral e a racionalidade indicam-nos que é preciso
reformar a lei, tornando-a mais compatível com os valores de um Estado laico e
pluralista, que, sem negligenciar da proteção da vida pré-natal, assegure os direitos
das mulheres.
Os dados referidos ao longo desse trabalho revelam que a punição do
aborto não impede que as mulheres o realizem. A manutenção da sua criminalização
significa fechar os olhos à realidade, à discriminação, ao sofrimento e violação dos
direitos fundamentais destas mulheres. Note-se que as conseqüências desastrosas
dos abortos clandestinos já deságuam no sistema público de saúde e já
representam gastos significativos, os quais poderiam ser menores, na hipótese da
legalização deste procedimento, se realizado por profissional habilitado e em
ambiente hospitalar adequado.
122
Finalmente, deve ser desmistificada a idéia de que as mulheres abortam
por prazer e não por necessidade absoluta e que as mulheres que abortam devem
ser punidas com o não atendimento adequado nos serviços públicos de saúde, na
tentativa desumana de negar-lhes o acesso universal a este direito. A experiência
dos países que descriminalizaram o abortamento e normatizaram o seu
atendimento, comprovam a redução das mortes maternas, mesmo com a
manutenção das taxas médias de abortamento. A legalidade do abortamento seguro
poderá salvar mais vidas e evitará que as mulheres adoeçam ou fiquem com
seqüelas.
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ANEXO - Substitutivo do Projeto de Lei 1.135/91
COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA
SUBSTITUTIVO DA RELATORA AO PROJETO DE LEI Nº 1.135/91
Estabelece o direito à interrupção voluntária da gravidez, assegura a realização do
procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde, determina a sua cobertura
pelos planos privados de assistência à saúde e dá outras providências.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Toda mulher tem o direito à interrupção voluntária de sua gravidez, realizada
por médico e condicionada ao consentimento livre e esclarecido da gestante.
Art. 2º Fica assegurada a interrupção voluntária da gravidez em qualquer das
seguintes condições:
I - até doze semanas de gestação;
II - até vinte semanas de gestação, no caso de gravidez resultante de crime contra a
liberdade sexual;
130
III - no caso de diagnóstico de grave risco à saúde da gestante;
IV - no caso de diagnóstico de malformação congênita incompatível com a vida ou
de doença fetal grave e incurável.
Art. 3º No caso de gestante relativa ou absolutamente incapaz, o consentimento
deve ser dado ou suprido, conforme o caso, por seu representante ou assistente
legal, resguardado o direito da gestante à manifestação de sua vontade.
Parágrafo único. Na hipótese de colisão entre os interesses do representante ou
assistente legal e a vontade da gestante representada ou assistida, ou no caso de
carência de representante ou assistente legal, o representante do Ministério Público
deve atuar como curador especial e pronunciar-se, extrajudicialmente, no prazo de
cinco dias.
Art. 4º O inciso III do art. 12 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe
sobre os planos privados de assistência à saúde, passa a vigorar acrescido da
seguinte alínea c:
"Art.12.
III - .........................................................................................
c) cobertura dos procedimentos necessários à interrupção voluntária da gravidez
realizada nos termos da lei;
................................................................................................ (NR)"
Art. 5º O artigo 125 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
"Art. 125. .........................................................................
Parágrafo único. A pena cominada neste artigo é aumentada em um terço, se, em
conseqüência do abortamento ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofrer lesão corporal de natureza grave, e é duplicada se, por qualquer
dessas causas, lhe sobrevém a morte. (NR)"
Art. 6º As normas complementares para a implementação do disposto nesta Lei no
âmbito do Sistema Único de Saúde serão dispostas em regulamento expedido pelo
Ministério da Saúde.
Art. 7º - O ato de interrupção da gravidez deverá ser notificado compulsoriamente à
autoridade sanitária da unidade da federação onde o mesmo foi realizado, em
formulário próprio, assinado pelo médico responsável, do qual constarão, no mínimo,
a identificação da paciente, do médico responsável pelo ato, a idade gestacional e o
motivo da interrupção.
131
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 9º Revogam-se os arts. 124, 126, 127 e 128 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal).
Sala da comissão, em 04 de Outubro de 2005.
COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA
PROJETO DE LEI Nº 1135/91
"Suprime o artigo 124 do Código Penal Brasileiro".
Autores: Deputados Eduardo Jorge e Sandra Starling
Relatora: Deputada Jandira Feghali
I – RELATÓRIO
O Projeto de Lei nº 1135/91 de autoria dos Deputados Eduardo Jorge e Sandra
Starling foi apresentado em 1991,
Foram apensados à proposta inicial os seguintes projetos de lei:
1. PL 176/95, do Dep. José Genoíno, que "Dispõe sobre a opção da interrupção da
gravidez", permitindo a livre interrupção até 90 dias de gestação. Para realização
basta reivindicação da gestante, sendo a rede pública é obrigada a realizar o aborto;
2. PL 3.280/92, do Dep. Luiz Moreira, que Autoriza a interrupção da gravidez até a
24ª semana nos casos previstos no projeto. A interrupção é autorizada até a 24ª
semana quando o feto apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas e mentais.
Basta o consentimento da gestante, cônjuge ou representante legal e da autorização
de um médico que não seja o que realizará o aborto;
3. PL 1.174/91, dos Dep. Eduardo Jorge e Sandra Starling, que dá nova redação ao
artigo 128 do Decreto Lei n.º 2848, de 07 de dezembro de 1940 - Código Penal. Este
projeto deixa de punir o aborto quando:
gravidez determinar perigo de vida ou a saúde física e psíquica da gestante.
constatada enfermidade grave e hereditária ou se moléstia ou intoxicação ou
acidente sofrido pela gestante comprometer a saúde do nascituro.
resulta de estupro (antecedido de consentimento da gestante)
comprovado que a mulher estiver contaminada pelo vírus HIV.
realizado mediante diagnóstico por escrito.
O projeto estabelece, ainda, que:
132
em casos de dúvida sobre o parecer, uma comissão multiprofissional da Unidade de
saúde será chamada e deverá apresentar parecer em 05 dias;
deverá ser realizado no máximo 07 dias após a apresentação do diagnóstico ou
parecer da comissão;
será realizada pelo SUS;
fica assegurado ao médico direito de se escusar do abortamento.
4. PL 1.956/96, da Dep. Marta Suplicy, que autoriza a interrupção da gravidez nos
casos que menciona. Pela proposta fica autorizada a interrupção da gravidez
quando o produto da concepção não apresentar condições de sobrevida em
decorrência de malformação incompatível com a vida ou doença degenerativa
incurável, ou quando for constatada por meio científico impossibilidade de vida extra-
uterina. Para realização do procedimento basta o consentimento da gestante ou
representante legal.
5. PL 2.929/97, do Dep. Wigberto Tartuce, que permite às mulheres estupradas por
parentes a interrupção da gravidez.
6. PL 4.703/98, do Dep. Francisco Silva, e o
7. PL 4.917/01, do Dep. Givaldo Garimbão, que procuram tipificar o aborto, como
crime hediondo. O projeto assegura ao médico a possibilidade de se escusar do
abortamento por razões de consciência de acordo com o Código de Ética Médica.
8. PL 7.235/02, do Dep. Severino Cavalcanti, que revoga o art. 128 do Decreto-Lei
n.º 2848, de 07 de dezembro de 1940, Código Penal.
9. PL 1.459/03, do Dep. Severino Cavalcanti, que acrescenta um parágrafo ao artigo
126 do Código Penal.
10. PL 3.744/04, do Dep. Coronel Alves, que dá nova redação ao art. 128 do
Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, Código Penal, incluindo a
possibilidade de se recorrer ao aborto no caso de gravidez resultante de estupro ou
atentado violento ao pudor.
11. PL 4.304/04, do Dep. Eduardo Valverde, que despenaliza a interrupção de
gravidez, em condições específicas:
Quando há risco de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a
saúde física ou psíquica da mulher grávida;
No caso de nascituro virá a sofrer de forma incurável, de grave doença congênita e
for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez;
133
A gravidez seja resultado de violência sexual, podendo ser realizada nas primeiras
16 semanas;
O projeto prevê ainda que os profissionais de saúde têm o direito de invocar objeção
de consciência e se recusar a efetuar o procedimento.
12. PL 4.834/05, dos Deputados Luciana Genro e Dr. Pinotti, acresentando inciso ao
artigo 128 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, autorizando a
realização de aborto na situação da gravidez com feto anencéfalo.
13. PL 5.166/05, do Deputado Takayama, estabece penas para os casos
antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável.
14. PL 5.364/05, dos Deputados Luiz Bassuma e Ângela Guadagnin, pune o aborto
praticado por médico se a gravidez resulta de estupro, independente do
consentimento da gestante, ou quando incapaz, de seu representante legal.
II - VOTO DA RELATORA
A América Latina e o Caribe têm se destacado por ser uma região onde existem as
maiores restrições à interrupção da gravidez. As leis punitivas desses países
acabam levando as mulheres à clandestinidade, a realizar abortos em condições
precárias e cujas complicações e seqüelas se transformam em um grave problema
de saúde pública.
O aborto é responsável por uma em cada 8 mortes maternas, e o acesso a serviços
de aborto seguro poderiam evitar entre 20 e 25% do meio milhão de mortes
maternas que ocorrem anualmente nos países em desenvolvimento.
A taxa de mortalidade materna teve uma redução significativa em alguns países das
Américas, quando o aborto começou a ser legalizado nessa região, no inicio da
década de 1970. Um ano após a sua legalização em Nova Iorque (em 1971), a taxa
de mortalidade materna havia diminuído 45%. Entre 1973 (quando o aborto foi
legalizado em todo os EUA) e 1990, o número de mortes decorrentes do aborto
diminuiu 10 vezes.
No restante das Américas onde a legislação foi flexibilizada os dados se repetem.
Em Cuba houve uma redução de 60%. Lá o Estado assumiu a responsabilidade
pelos serviços. Na Guiana, primeiro país da América do Sul a legalizar o aborto,
ocorreu uma redução de 65% nas complicações decorrentes do aborto, que eram a
terceira causa de hospitalização no país. O relatório final da Comissão tripartite
instalada para revisar a legislação punitiva sobre a interrupção voluntária da gravidez
reforça este argumento ao constatar:
134
"É bom ressaltar que, ao contrário do que acredita o senso comum, a
descriminalização do abortamento e a normatização do atendimento não acarretam,
a médio e longo prazo, um aumento no número desses procedimentos. Nos países
em que a alteração da legislação já ocorreu, observou-se, isto sim, a redução das
mortes maternas, mesmo com a manutenção das taxas médias de abortamento.
Na Suíça, por exemplo, onde o procedimento foi descriminalizado em 2001, os
dados informam a ocorrência de taxas anuais de 8,4 (em 1996), 7,5 (em 2001), e 7,5
(em 2002) abortamentos por mil mulheres em idade fértil.
Se compararmos essas mesmas taxas em todo o mundo, encontraremos um grupo
de países onde elas giram em torno de seis a oito (Holanda, Bélgica e Alemanha),
um outro com índices entre trinta e seis e quarenta (Colômbia, Brasil e Chile) e ainda
um outro com taxas que variam de sessenta e oito a oitenta e quatro (Rússia,
Romênia e Vietnam). No primeiro grupo, as mulheres têm acesso ao abortamento
legal, ao uso de contraceptivos e à educação sexual ampla. No segundo grupo, as
mulheres só têm acesso ao uso de contraceptivos. E no terceiro grupo, elas só têm
acesso ao abortamento legal."
No Brasil a situação é outra. O país está entre os que apresentam as maiores
restrições à interrupção voluntária da gravidez. Como conseqüência os dados são
alarmantes. Segundo o Ministério da Saúde, em média 250 mil mulheres são
internadas anualmente com complicações decorrentes de abortos clandestinos. Em
1991 o número de curetagens pós-abortamento, realizadas na rede pública de
saúde, ultrapassou os 340 mil, sendo aproximadamente 20% desse total em
adolescentes (10-19 anos). Somente em 1997 foram 240 mil internações de
adolescentes para realização deste procedimento.
Texto 1: No México, Brasil e Peru as legislações restringem o direito ao aborto a
poucas condições, como o risco de morte para a mulher e/ou gravidez decorrente de
violência sexual.
Modificado da fonte: The Alan Guttmacher Institute, 1994. (Texto retirado de publicação do
IPAS/Brasil)
Sabemos, através da Organização Mundial de Saúde (OMS), que milhões de
mulheres são submetidas a esta prática cirúrgica e, mesmo nos casos previstos em
lei, as mulheres não recebem o tratamento adequado, tendo todas, salvo raríssimas
exceções, recorrido aos serviços de clínicas clandestinas.
135
Economicamente, a ilegalidade do aborto assegura tão somente a existência de
clínicas particulares clandestinas, o que gera a impossibilidade de fiscalização por
parte das autoridades competentes, além de abusos e corrupção. A ilegalidade
também é responsável pelos altos gastos, por parte dos serviços de saúde pública,
no atendimento às mulheres com doenças e seqüelas provenientes de aborto mal
feito. Encontramos nesses casos, principalmente, as mulheres de baixo poder
aquisitivo, cuja situação financeira não permite acesso a um atendimento adequado,
submetendo-se a auto-abortos ou impelidas a buscarem ajuda de pessoas não
treinadas.
O relatório da CPI da Mortalidade Materna, da Câmara dos Deputados, aponta
alguns aspectos mundiais do fenômeno das mortes maternas sistematizados em
documento da Organização Mundial de Saúde "Redução da Mortalidade Materna",
de 1999.
"Segundo este texto, a causa de morte materna mais comum em todo o mundo é a
hemorragia. Um quarto das mortes são atribuíveis a ela, especialmente quando não
existe estrutura de atendimento, drogas ou transfusões para contê-la, sendo esse
índice agravado em países onde o aborto é ilegal. As infecções causam 15% dos
óbitos, geralmente conseqüentes a más condições de higiene durante o parto ou por
doenças sexualmente transmissíveis não tratadas ou por tentativas de aborto sem
as devidas condições de higiene e sanitárias.
As complicações de abortos chegaram a causar 13% das mortes maternas, embora
em algumas partes do mundo ele chegue a provocar um terço delas. No Brasil, em
1998, provocou 5% delas. A questão do aborto pode, na verdade, ser ainda mais
importante do que esse índice aponta, pois é razoável considerar a existência de
uma subnotificação geral sobre o aborto, devido à ilegalidade da prática em
inúmeros países em desenvolvimento. É provável que os índices de infecções e
hemorragias encubram seqüelas de tentativas de aborto em más-condições, fazendo
com que a questão do aborto não seja considerada a terceira causa, mas algo ainda
mais importante e urgente de ser discutido sobre a mortalidade materna."
Nas tabelas abaixo podemos constatar as internações por aborto provocado.
Tabela 01: Distribuição das Internações por Diagnóstico de
Aborto no SUS, segundo região. Brasil, 1999 a 2002.
REGIÕES 1999 2000 2001 2002 Total
Norte
18970 19140 19680 19102 76892
Nordeste
84704 85950 89634 88473 348761
Sudeste
104405 103170 100350 100316 408241
136
Sul
21144 23863 23559 23260 91826
C.Oeste
15268 15761 16402 16005 63436
Brasil 244491 247884 249625 247156 989156
Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS)
Tabela 02: Distribuição das Internações Hospitalares pelo SUS por diagnósticos de Aborto. Brasil, 1999 a 2002.
REGIÕES 1999 2000 2001 2002 Total
N % N % N % N % N %
Espontâneo 95776 39,2 98282 39,6 97158 39 111828 45,2 403044 40,7
Razões Médicas 1517 0,6 946 0,4 878 0,3 946 0,4 4287 0,4
Outras 147198 60,2 148656 60 151589 60,7 134382 54,4 581825 58,8
Brasil 244491 100 247884 100 249625 100 247156 100 989156* 100
*Nota: O atual inclui todas as faixas etárias, com idade identificada entre 05 e 80 anos, demonstrando a permanência de erro no
preenchimento do SIH/SUS.
Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS)
Taxas de abortamento relação com evolução da mortalidade materna, segundo tipo de legislação (Fonte:
www.ipas.org.br/arquivos/FolderReformalegal_2005.pdf arquivo no formato PDF)
Não podemos descartar os fatores morais que condenam a realização do aborto. A
sua legalização pode ser uma forma de evitar o constrangimento das famílias. Por
ser o aborto um tema que vem provocando sérias discussões religiosas, sociais,
políticas e éticas, as tentativas de mediação do problema no Brasil são ainda muito
precárias. É urgente que o tema do aborto seja discutido de forma democrática e
tolerante na esfera legislativa brasileira, de forma a contemplar não apenas as
posições religiosas ou morais de determinadas parcelas da sociedade mas,
principalmente, a pluralidade de posições e crenças que caracterizam toda a
sociedade brasileira.
Em duas conferências, realizadas nas cidades do Cairo, no Egito, e Beijing, na
China, representantes de 180 países de todo o mundo concordaram com uma
extensa série de recomendações para tratar da problemática do aborto. Na
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo) partiu-se do
reconhecimento de que o aborto "realizado em condições não adequadas" é um
problema de saúde pública e que as mulheres que tenham recorrido a sua prática
devem ser atendidas de maneira pronta e humanitária.
Já a conferência em Beijing alertou que "...Quaisquer medidas ou alterações
relacionadas com o aborto no âmbito do sistema de saúde só podem ser
determinadas em nível nacional ou local, de conformidade com o processo
legislativo nacional...", e que devemos "...Considerar a possibilidade de reformar as
leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que tenham sido submetidas
a abortos...".
137
As recomendações do IX Fórum Interprofissional Abortamento inseguro como forma
de violência contra a mulher são claras ao tratar das mudanças desejáveis em nossa
legislação sobre abortamento:
"É necessário revisar a legislação, para descriminalizar o abortamento, pois a sua
criminalização não é eficaz para evitá-lo, não resolve esse grave problema de saúde
pública e traz um custo social muito elevado. Entre os fundamentos éticos e
constitucionais que justificam mudar a lei atual sobre aborto incluiu-se o de não
poder criminalizar nenhuma conduta social, fazendo-se crer que o problema está
resolvido, em face da mera existência de uma lei repressiva. No caso do Aborto, a
manutenção de sua criminalização não tem tido nenhuma eficácia e representa uma
forma inaceitável de solução meramente formal do problema, apenas para satisfazer
a opinião pública."
Por parte do Executivo a comissão tripartite, que teve em sua composição 18
representantes do Executivo Federal, Legislativo e Sociedade Civil, entregou o
relatório final dos trabalhos à esta Comissão no dia 27 de setembro e dele consta a
justificativa para esta iniciativa:
"Na solenidade de instalação a ministra Nilcéa Freire lembrou que a criação da
Comissão, além de colocar em prática uma ação do PNPM, também cumpre
determinação de acordos e tratados internacionais assinados pelo Governo
brasileiro. Em fevereiro deste ano, em Nova Iorque, durante a realização da 49ª
Sessão da Comissão sobre a situação da Mulher (CSW), da Organização das
Nações Unidas (ONU), o Governo do Brasil reafirmou os princípios da Declaração e
da Plataforma de Ação de Beijing, aprovada em 1995, na China. Pela Plataforma,
revalidada na ocasião, as 200 delegações dos países membros da ONU se
comprometeram, entre outras ações, a de rever as leis que prevêem medidas
punitivas contra as mulheres que tenham se submetido a abortos clandestinos.
A Comissão, composta por Integrantes do Executivo Federal e de representantes da
Sociedade Civil e do Congresso Nacional conclui seu trabalho no prazo estabelecido
na Portaria nº 04 de 6 de abril de 2005 e apresenta o produto do seu trabalho na
forma de uma proposta de "Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção
Voluntária da Gravidez.
A SPM, na Coordenação da Comissão, teve presente ao longo do processo de
discussão que se tratava de uma demanda de amplos setores da sociedade e que o
tema "aborto" é complexo e polêmico, que contém aspectos objetivos e também
138
subjetivos em sua abordagem e além disso envolve várias concepções, inclusive
religiosas.
A Comissão em nenhum momento fechou os olhos para essa complexidade. No
entanto, refletiu com profundidade sobre a necessidade objetiva, a situação das
mulheres e os limites da legislação atual expressos na 1ª Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres e nos compromissos internacionais do Estado brasileiro
de revisão de uma legislação que data de 1940. Sua vigência de quase meio século
não teve eficácia para inibir a realização de abortamentos e foi ao mesmo tempo
geradora de uma situação de clandestinidade responsável pela morte de milhões de
mulheres e por seqüelas em muitos outros milhões."
O relatório ainda apresentava uma minuta de projeto de lei que foi resultado do
entendimento da ampla maioria dos membros da Comissão. Por entender que o
texto representa um avanço e a posição majoritária de todos aqueles que, como, eu
se debruçam sobre o tema há mais de uma década, incorporei as sugestões em
meu relatório. Não deixei, no entanto, de absorver dispositivos de meu parecer
anterior que considerei imprescindíveis. Ressalto que de mérito inquestionável, o
Projeto original mereceu, assim, aperfeiçoamentos na sua redação, para sua plena
efetividade.
Nesses termos, somos pela aprovação dos PLs 1.135/91, 1.174/91, 3.280/92,
176/95, 1.956/96, 2.929/97, 3.744/04, 4.304/04, 4.834/05, na forma do substitutivo
apresentado pela relatora e pela rejeição dos PLs 4.703/98, 4.917/01, 7.235/02,
1.459/03, 5.166/05 e 5.364/05.
É o voto.
Sala da Comissão, em 04 de Outubro de 2005.
Deputada Jandira Feghali
PCdoB/RJ
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