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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Luciano da Silva Colares
AS MISSÕES DE PAZ DA ONU E A QUESTÃO DE TIMOR LESTE:
PONTO DE INFLEXÃO?
Porto Alegre
2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Luciano da Silva Colares
AS MISSÕES DE PAZ DA ONU E A QUESTÃO DE TIMOR LESTE:
PONTO DE INFLEXÃO?
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
para a obtenção do título de Mestre em
Relações Internacionais
Orientador: Prof. Dr. Raul Enrique Rojo
Porto Alegre
2006
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Ao povo timorense que, com sua coragem e
determinação, demonstrou ao mundo que vale
a pena lutar pelo maior de todos os bens: a
liberdade.
“A UNTAET é, de fato, umas das operações mais complexas realizadas pelas
Nações Unidas e um teste crucial para a Organização em seu papel inédito de “construtora de
um Estado-nação”. Por primeira vez, exerceu poder soberano sobre um território, imbuída de
todas as funções de governo, na totalidade dos aspectos da governança, nos planos do
executivo, do legislativo e da administração da justiça, o que ultrapassa, em muito, o escopo
das tradicionais missões de manutenção da paz”.
(Sérgio Vieira de Mello, 2002)
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas, em maior ou menor grau, contribuíram para a consecução deste trabalho. Por
essa razão, o eventual esquecimento de alguém deve ser perdoado e considerado como mera
distração. Começo meus agradecimentos a quem mais suportou o ônus de minha ausência e
dedicação aos estudos: minha amada esposa Rosane. A você, dedico o meu maior
reconhecimento. De sua parte, nunca me faltaram apoio, carinho e amor. Agradeço a meus
pais pelo incentivo constante à educação e pela transmissão dos sólidos valores que norteiam
a minha vida. Aos Coronéis do Exército Brasileiro, Armando Rosa Barroso Magno e José
Luiz Lisboa Neiva, pela flexibilidade e apoio demonstrados. Sem o vosso incentivo, esta
jornada jamais teria se iniciado. A todos os integrantes do Mestrado em Relações
Internacionais da UFRGS, sejam docentes, funcionários ou discentes, pela excelência do
trabalho que desenvolvem. Agradeço, em especial, a meu orientador, Prof. Dr. Raul Enrique
Rojo. Sua erudição, paciência e atenção são irretocáveis e muito contribuíram para esta obra.
A todos os meus colegas pelas tardes de convivência sadia no Campus do Vale.
À vida
RESUMO
A Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada com o objetivo precípuo de
assegurar e promover a paz mundial. Em mais de 60 anos de existência, a Organização ainda
não logrou implementar a força militar permanente (ver artigo 47, parágrafo da Carta da
ONU) que seria a principal encarregada pela consecução desse objetivo por intermédio da
coordenação da Comissão de Estado Maior. O fato de não ter constituído a referida força não
significou a paralisação da ONU nos assuntos concernentes à paz. Demonstrando grande
poder de adaptação, a Organização implementou as Missões de Paz, embora estas não existam
oficialmente em seu estatutos. As missões de paz da ONU são a face mais visível do trabalho
da Organização na promoção da paz mundial. Em 58 anos de existência, essas missões têm
evoluído em quantidade e complexidade, exigindo, cada vez mais, recursos materiais e
humanos. Em 1999, o estabelecimento da Missão de Paz no Timor Leste chamou a atenção da
comunidade internacional por diversos motivos. Àquela época, a Instituição passava por uma
crise de credibilidade provocada pela sua inação nos episódios inicias do Kosovo naquele
mesmo ano. Não obstante, logrou desenvolver no Timor Leste a mais bem sucedida missão de
paz jamais estabelecida em qualquer outra época de sua história. No Timor, a ONU assumiu
todas as funções de governo a fim de ali desenvolver as bases necessárias ao nascimento de
um Estado. Este estudo tem por finalidade fazer uma análise de todo esse processo,
ressaltando a importância e o significado que essa missão teve no contexto das operações de
paz das Nações Unidas.
Palavras-chaves: Organização das Nações Unidas – missões de paz – soberania – “peace-
building”
ABSTRACT
The United Nations (UN) was created with the primary purpose of ensuring and
promoting world peace. In over 60 years of existence, the Organization has not yet succeeded
in implementing a permanent military force (see article 47, paragraph 3 of the UN Charter)
that would be the main responsible for the attainment of this goal, acting under the
coordination of the Military Staff Committee. The fact that the UN failed to constitute the
aforesaid force does not mean it is inert when it comes to subjects concerning peace.
Demonstrating a great power of adaptation, the Organization implemented the Peacekeeping
Missions, although these do not officially exist in its statutes. The UN Peacekeeping Missions
are the most visible face of the Organization’s work towards the promotion of world peace. In
58 years of existence, these missions have been evolving in quantity and complexity,
increasingly demanding material and human resources. In 1999, the establishment of the
Peacekeeping Mission in East Timor called the attention of the international community for a
range of reasons. By that time, the Institution was undergoing a crisis of confidence due to its
inaction in the early episodes of Kosovo that very year. Still, it managed to develop in East
Timor the most successful peacekeeping mission ever established in its history. In Timor, the
UN also took over all the government functions in order to develop there the necessary bases
for the birth of a State. This study aims at analyzing this whole process, stressing the
importance and meaning that this mission had within the context of the UN peacekeeping
operations.
Key-words: United Nations – peacekeeping missions – sovereignty – “peace building”
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ADITLA Associação Democrática para a Associação do Timor Leste na
Austrália
APEC Asia Pacific Economic Cooperation (Acordo de Cooperação
Econômica Ásia-Pacífico)
ASDT Associação Social Democrata Timorense
ASEAN A Associação de Nações do Sudeste Asiático
BAKIN Serviço de Inteligência Indonésio
CDH Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas
CEE Comunidade Econômica Européia
CIIR Catholic Institute for Internacional Relations (Instituto Católico
para Relações Internacionais
CNRM Conselho Nacional da Resistência Maubere
DPA Department of Political Affairs (Departamento de Assuntos
Políticos-ONU)
FALINTIL Forças Armadas de Libertação do Timor Leste
FMF Foreign Military Financing Program (Programa de
Financiamento Militar Estrangeiro
FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique
FRETELIN Frente Revolucionária do Timor Leste Independente
IMET International Military Educational and Training (Programa de
Educação e Treinamento Militar Internacional)
INTERFET Internacional Force in East Timor (Força Internacional no Timor
Leste)
JCET Joint Combined Exchange Training (Prograna Combinado de
Intercâmbio de Treinamento)
KOTA Klibur Oan Timur Aswain (Associação Popular Monárquica
Timorense)
MFA Movimento das Forças Armadas
MRA Movimento Revolucionário Anticomunista
NU Organização Muçulmana Tradicionalista Nadhatul Ulama
ONU Organização das Nações Unidas
OPSUS Unidade de Operações Especiais do Serviço de Inteligência
Indonésio
OTAN Organização do Tratado do Atlântico Norte
P-5 Cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da
ONU
PKI Partai Komunis Indonesia (Partido Comunista Indonésio
SOFA Status of Force Agreement (Acordo das Prerrogativas das
Forças
RTP Rádio Televisão Portuguesa
TNI Exército Indonésio
UDT União Democrática Timorense
UNAMET Missão de Assistência das Nações Unidas no Timor Leste
UNEF I Força de Emergência da ONU I
UNMISET United Nations Mission Support in East Timor (Missão de
Apoio da ONU no Timor Leste)
UNIFIL Força Interina das Nações Unidas no Líbano
UNIIMOG Missão do Grupo de Observadores Militares das Nações Unidas
para o Irã/Iraque
UNTAET United Nations Transitional Administration in East Timor
(Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste)
UNTSO Missão da Organização das Nações Unidas para a Supervisão da
Trégua
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11
1.1 A ONU como promotora da paz ............................................................................... 13
1.2 A presença da OTAN no Kosovo. O epicentro de uma crise política .................. 17
1.3 Breve histórico do Timor Leste (1974 a 1999) ....................................................... 19
1.4 1999: a gota d’água ................................................................................................... 31
1.5 Conclusão para a Introdução ................................................................................... 36
2 OS ATORES ENVOLVIDOS ................................................................................... 38
2.1 Portugal como ator ................................................................................................... 38
2.1.1 O fracassado processo de descolonização no Timor Leste
............................... 42
2.1.2 O período pós-anexação e a evolução da questão em Portugal
............................... 50
2.1.3 Conclusão para Portugal como ator ......................................................................... 58
2.2 A Indonésia como ator ............................................................................................... 61
2.2.1 Os anos após a independência e o regime de Suharto ............................................. 62
2.2.2 A anexação do Timor Leste ................................................................................... 65
2.2.3 A Operação Komodo ............................................................................................... 68
2.2.4 Os anos da ocupação ............................................................................................... 78
2.2.5 Do Massacre de Santa Cruz ao fim da Nova Ordem: a redenção timorense ........... 83
2.2.6 Conclusão para o ator Indonésia ............................................................................... 93
2.3 Os Estados Unidos como ator ................................................................................... 97
2.3.1 A política externa dos Estados Unidos no período (um breve comentário) ............. 97
2.3.2 A questão da venda de armas para a Indonésia ....................................................... 107
2.3.3 A perspectiva americana da questão na ONU ......................................................... 111
2.3.4 1999: a verdadeira mudança de atitude em relação ao problema ............................. 112
2.3.5 A atitude americana após a intervenção da ONU
..................................................... 116
2.3.6 Conclusão para o ator Estados Unidos ..................................................................... 117
2.4 Outros atores relevantes ........................................................................................... 119
2.4.1 A Austrália como ator ............................................................................................... 120
2.4.2 A ONU como ator ................................................................................................... 125
3 AS MISÕES DE PAZ DA ONU: A EVOLUÇÃO DA FACE MAIS VISÍVEL DE
ATUAÇÃO DE UM ORGANISMO INTERNACIONAL ........................................... 130
3.1 O sistema de segurança coletiva da Carta das Nações Unidas ............................. 131
3.2 Os capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas ............................................... 132
3.3 Conclusão parcial ....................................................................................................... 141
3.4 O estabelecimento dos principais parâmetros das missões de paz (1948 a 1987)
..... 142
3.5 O fim da bipolaridade, o ressurgimento do paradigma de segurança coletiva e seus
reflexos para a manutenção da paz ............................................................................... 152
3.6 O embasamento jurídico das Missões de Paz ......................................................... 165
3.7 Da Agenda para a Paz ao Relatório Brahimi:
adaptações e perspectivas
......................................................... 168
3.8 Conclusão para o capítulo Três ............................................................................... 179
4 A ONU NO TIMOR LESTE:A ESTRUTURAÇÃO DO “PEACE-BUILDING” EM
SEU MÁXIMO EXPOENTE ......................................................................................... 182
4.1 A perspectiva histórica do conceito de soberania ................................................... 182
4.2 Soberania e poder político: uma diferenciação necessária ................................... 184
4.3 Introdução ................................................................................................................. 187
4.4 Peace-building versus state-building: esclarecendo os termos ............................... 191
4.5 A evolução do conceito de “peace-building” ........................................................... 193
4.6 A estruturação da administração transitória: aspectos legais ............................... 196
4.7 A administração da ONU no Timor Leste: os primeiros passos da gestão ......... 199
4.8 Kosovo e Timor: duas faces da mesma moeda ....................................................... 201
4.9 Conclusão para o capítulo sobre a ONU no Timor Leste ..................................... 204
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 207
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 211
ANEXO A ......................................................................................................................... 217
ANEXO B ................................................................................................................. 225
ANEXO C ................................................................................................................. 233
ANEXO D ................................................................................................................. 251
ANEXO E ................................................................................................................. 264
11
1 INTRODUÇÃO
Em setembro de 1999, o mundo voltou seus olhos para a metade leste da ilha do Timor
no sudeste asiático. Uma onda de violência se instalara naquele território e a comunidade
internacional perguntava-se: por quê? A resposta mais adequada para esse questionamento
merece uma análise histórica e contextualizada, contudo, uma observação mais acurada do
momento vivenciado e dos atores envolvidos nos revela que, por detrás da questão do Timor
Leste, havia uma instituição que amargurava uma crise política: a Organização das Nações
Unidas (ONU), conforme será constatado no decorrer desta dissertação.
Não há como dissociar a questão do Timor Leste da ONU, uma vez que ela se revela
ao mundo, em grande parte, pela atuação desse organismo internacional.
O que liga a ONU ao Timor Leste não são os 24 anos de retórica condenando a
anexação do território pela Indonésia desde 1976, mas sim, a sua atuação firme e decidida, em
setembro de 1999, a fim de permitir àquele povo o exercício do seu direito à
autodeterminação e à preservação dos seus direitos humanos. O que essa intervenção tem de
especial? O fato da ONU ter assumido, mediante um Mandato (Resolução 1272 datada de 25
de outubro de 1999), a soberania do território do Timor Leste, durante a Missão de Paz aí
instalada, com a finalidade política específica de construir ou reconstruir as instituições do
governo, permitindo a criação das bases necessárias ao surgimento de um Estado timorense,
algo que nunca ocorrera antes e que revelara uma mudança de comportamento por parte da
Instituição. A ONU assumiu suas funções no Timor Leste por intermédio de um “Governo
Transitório”. De acordo com Miranda (2000), a administração transitória de territórios não se
encontra prevista explicitamente na Carta das Nações Unidas, porém o seu fundamento retira-
se dos objetivos de manutenção da paz, da segurança internacional e da promoção da
autodeterminação dos povos (artigo 1º da Carta das Nações Unidas).
12
A administração transitória de territórios não é atividade inédita no seio da
Organização. Em oportunidades anteriores, a ONU já desempenhou esse papel, como nos
casos da Nova Guiné (ex-colônia holandesa) ou Irian Jaya, entre 1961 e 1962, da Namíbia
entre 1966 e 1990, do Camboja entre 1992 e 1993 e, mais recentemente, no Kosovo em 1999.
O que a Missão do Timor Leste guarda de peculiar? Dois fatos tornam essa Missão sui
generis. Primeiramente, o exercício soberano de todas (grifo nosso) as funções de governo
durante a sua administração. Em segundo lugar, o fato de, no exercício desse poder soberano,
não ter dividido com nenhum outro órgão ou organismo internacional, a responsabilidade pela
consecução de seus objetivos, como ocorreu na Missão do Kosovo.
Um organismo internacional em crise que assume a soberania de um território, pela
primeira vez na história, a fim de aí implementar uma Missão de Paz. Qual a lógica de tudo
isso? É o que será explicado nos parágrafos e capítulos seguintes. Contudo, ainda a título de
introdução, faz-se necessária uma breve contextualização histórica a respeito das Missões de
Paz da ONU, da crise política vivenciada pela Organização em 1999 e da própria questão do
Timor Leste, para que se possa compreender melhor a dinâmica dos acontecimentos que
levaram à intervenção, em setembro de 1999.
O estudo da questão do Timor Leste possui uma limitação temporal que se inicia em
1974, com o processo de descolonização português desencadeado pela Revolução dos Cravos,
uma vez que esse processo guarda estreita ligação com a anexação do Território pela
Indonésia em 1976. O limite temporal superior é o mês de maio de 2002 que marca o fim do
governo transitório da ONU naquele Território.
O principal objetivo deste trabalho é estudar os fatores que levaram a ONU a intervir,
de maneira inédita e diferenciada, na questão do Timor Leste, assumindo a soberania daquele
território com o fim de ali implementar as bases político-institucionais e legais que levaram à
criação do Estado timorense em maio de 2002. O objetivo geral deste trabalho não abrange o
13
estudo aprofundado (grifo nosso) do governo transitório estabelecido pela ONU no Timor,
mas abrange, principalmente, o estudo dos fatores que tornaram possível a implementação do
referido governo transitório, nos moldes em que ele se deu. Quando for feita a análise do
governo transitório, esta terá como principal objetivo destacar os aspectos que o diferenciam
dos demais, no contexto das missões de paz da ONU.
Este autor acredita que o estudo aprofundado da atuação da ONU após a sua
intervenção (durante o governo transitório) é assunto que merece ser estudado em uma tese de
doutorado, para tanto, faz-se necessário o estudo prévio da situação em uma dissertação de
mestrado, a fim de embasar e dar alicerces a uma futura pretensão.
Este trabalho tem como objetivos específicos: 1) realizar um levantamento das causas
imediatas que levaram a ONU a intervir no Timor Leste em 1999, considerando os atores
envolvidos diretamente na questão; 2) realizar um levantamento das causas mediatas que
formaram o ambiente no qual se deu a intervenção, considerando os atores envolvidos direta e
indiretamente, com o objetivo de contextualizar o episódio; 3) realizar um mapeamento das
formas de intervenção da ONU (em Missões de Paz) antes do episódio do Timor, com o
objetivo de demarcar, precisamente, qual ou quais foram os aspectos que realmente se
diferenciaram das demais missões; 4) Inferir até que ponto essa mudança de atitude foi
influenciada por outras missões predecessoras, concluindo se indica uma tendência ou foi um
fim em si mesma.
1.1 A ONU como promotora da paz
A Organização das Nações Unidas (ONU) tem como um de seus objetivos básicos a
promoção da paz mundial. Nesse mister, desde 1948 a Organização vem se envolvendo em
tarefas denominadas “Missões de Paz”. Até junho de 2006, a ONU terá contabilizado um total
14
de 60 operações desde a sua criação e, apenas no período compreendido entre junho de 2005 a
junho de 2006, 98 países terão contribuído com um efetivo de 84.927 homens. Esses números,
por si só, já revelam a relevância desse tipo de operação. A idéia original dessas missões era a
de ajudar a controlar e resolver conflitos armados entre as partes hostis (Estados). Durante
muitos anos, especialmente durante a Guerra Fria, esse foi o conceito dominante a respeito da
idéia de conflito armado (conflitos entre Estados). Nesse período, a participação da ONU em
Missões de Paz não foi expressiva em termos numéricos se comparada ao período posterior ao
fim da bipolaridade, uma vez que os Estados Unidos e a União Soviética valiam-se de sua
prerrogativa de veto para impedir a presença da ONU em áreas de conflitos, conflitos esses
que eram de natureza ideológica em sua maioria (ou seja: onde a perspectiva ideológica de
uma das partes fosse contrariada, optava-se pelo veto e não ocorria a Missão de Paz).
Com a implosão da União Soviética, na transição da década de 80 para 90, ocorreram
inúmeras e profundas mudanças políticas, econômicas e militares por toda parte. A visão de
um mundo unipolar, capitaneado por uma única potência (Estados Unidos), supunha um
mundo sem conflitos no qual o fortalecimento das instituições internacionais multilaterais
seria a solução para os problemas da humanidade. As Nações Unidas ganharam maior
margem de ação no campo da paz e da segurança internacional, sobretudo, em razão do
crescente entendimento entre Moscou e Washington, que passaram a buscar, nos organismos
multilaterais, maior legitimação para as suas iniciativas, além de alento para poderem
concentrar a aplicação de suas políticas externas em áreas geográficas de maior interesse.
Com efeito, sem os riscos de confrontação estratégica, os Estados Unidos da América (EUA)
e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) passaram a considerar a ONU como
opção de ação para resolver conflitos relacionados à paz e à segurança internacionais,
notadamente na promoção da estabilidade em áreas do mundo em que não desejavam atuar
diretamente. Entretanto, o mundo da era pós-bipolar foi o palco de inúmeras incertezas: o
15
ressurgimento de velhos nacionalismos, a “globalização”, o aumento da distância entre ricos e
pobres, o terrorismo e a proliferação de doenças endêmicas dentre outras situações.
Os conflitos bélicos tornaram-se mais complexos. Os conflitos intra-estados e as
guerras civis multiplicaram-se. Esses conflitos caracterizam-se pelo envolvimento de
múltiplas facções armadas, e com diferentes objetivos políticos, além de linhas de comando
fracionadas, dificilmente identificáveis (ONU, 2002).
Nesse contexto de diminuição do caráter ideológico (não havia mais Leste X Oeste),
do aumento da complexidade dos conflitos bélicos e da crescente universalização do conceito
de democracia e do respeito aos direitos humanos, a ONU começou a aumentar a sua
participação nas Missões de Paz, bem como a se organizar de forma mais completa para isso.
De 1987 em diante, a Organização aumentou o escopo das missões de paz tornando-as
multidisciplinares. As Missões de Paz passaram a ser conhecidas como Missões de Paz de
segunda geração (multidisciplinares). O quadro a seguir ilustra bem a comparação entre as
Operações de Manutenção de Paz clássicas e as multidisciplinares:
Operações clássicas Operações multidisciplinares
Atuam em conflitos interestatais. São iniciadas
após a cessação de hostilidades, mas antes d
a
celebração de um acordo de paz final.Um de
seus objetivos é, justamente, criar condições
necessárias para a celebração de um acordo de
p
az.
Atuam em conflitos intra-estatais. São iniciadas
depois das partes terem alcançado um acordo
de paz e um dos objetivos principais é,
j
ustamente, monitorar a implementação do
acordo celebrado.
Suas atividades envolvem, sobretudo, tarefas
militares como supervisionar cessar-fogos,
tréguas e armistícios, observar separação de
forças e zonas tampão, bem como controla
r
fronteiras para prevenir infiltrações em áreas
geograficamente circunscritas.
Suas atividades, que procuram repercutir sobre
as causas do conflito, incorporam tarefas
militares, além de outras de cunho civil e
humanitário. Além das funções tradicionais,
seus integrantes têm sido chamados a
desempenhar tarefas novas e mais complexas,
como o acantonamento e a desmobilização de
forças, recolhimento e destruição de
armamentos, reintegração de ex-combatentes à
vida civil, concepção e execução de programas
de remoção de minas, auxílio para o retorno de
16
refugiados e deslocados internos, fornecimento
de ajuda humanitária, treinamento de novas
forças policiais, supervisão do respeito aos
direitos humanos e apoio à implementação de
reformas constitucionais, judiciais e eleitorais,
auxílio à retomada das atividades econômicas e
à reconstrução nacional, incluindo a reparação
da infra-estrutura física do país anfitrião.
Sua composição é preponderantemente militar. A composição é variada (civis com experiência
em áreas como eleições, direitos humanos,
administração pública, gerenciamento
econômico e assistência humanitária; policiais
e militares).Os efetivos militares viabilizam o
desdobramento dos componentes não-militares
p
roporcionando um ambiente seguro enquanto
os elementos civis e policiais atuam na
consolidação dos processos de pacificação
p
olítica e de reconciliação nacional.
O Mandato (documento que estipula as
obrigações da ONU e das partes envolvidas)
raramente é modificado e objetiva preservar
a
p
az, enquanto outros instrumentos são
empregados para resolver as disputas
subjacentes.
O Mandato sofre ajustes ao longo de sua
implementação e visa ajudar as partes a
executar um acordo político destinado a supera
r
o conflito. Não se trata meramente de evitar o
agravamento da disputa, mas de implementa
r
metas de maior prazo.
Atores claramente identificáveis: ONU, partes
em conflito (em geral dois países) e países que
contribuem com pessoal.
Atores “atomizados”: entre outros, ONU,
agências especializadas, fundos e programas
das Nações Unidas, partes em conflito, países
contribuintes, ONGs, demais organismos
internacionais ou regionais e Mídia. Nessas
situações, as partes em conflito nem sempre são
identificadas, podendo envolver, por vezes,
milícias, guerrilhas, tribos e clãs, sem
mencionar os problemas de banditismo que
afetam o pessoal das Nações Unidas.
Fonte: Quadro nº 3, pág 100. Fontoura, Paulo Roberto C.T. O Brasil e as Operações de Paz da ONU
A despeito dessas reformas estruturais, a Organização passou a implementar novas
políticas que visam, além da “pacificação” da área de conflito, o desenvolvimento de
instituições de governo, assumindo algumas ou todas as funções de governança, de forma
temporária, a fim de proporcionar o lançamento das bases para que um determinado povo
possa se autogovernar. Essa última concepção de emprego passou a ser conhecida como
17
“State Building” (fora da ONU) ou “Peace-building” (dentro da ONU) e será abordada em um
capítulo específico do nosso trabalho (Capítulo 3, As Missões de Paz da ONU. A evolução da
face mais visível de atuação de um organismo internacional).
1.2 A presença da OTAN no Kosovo. O epicentro de uma crise política
Do ponto de vista da ONU, a onda de violência ocorrida no pós-referendo no Timor
Leste, em setembro de 1999, já seria, por si só, um motivo para a prestação de auxílio
humanitário pela via intervencionista. Contudo, é importante lembrar de um outro aspecto
extremamente relevante no contexto político mundial daquele momento.
Naquele mesmo ano (1999), houve enorme divergência no seio da ONU quanto ao seu
papel como promotora da paz mundial. Em uma interpretação abrangente do capítulo VIII da
Carta das Nações Unidas, os Estados Unidos, por intermédio de um organismo de defesa
regional (a Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN), interveio no Kosovo com a
finalidade de restabelecer a paz naquela região da Europa Oriental, restando à ONU, apenas o
gerenciamento de um governo transitório sem um objetivo político claro (A Administração
Transitória da ONU no Kosovo trabalhava com um Mandato que objetivava obter uma
“substancial autonomia” para aquele território).
A intervenção armada da OTAN, em que pese seu caráter “humanitário”, sofreu duras
críticas, pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, por não ter havido autorização explícita
da ONU, por intermédio de seu Conselho de Segurança, para que aquele organismo (OTAN)
atuasse em seu nome, fato amplamente criticado no seio da ONU, pela Rússia e pela China.
Em segundo lugar, a OTAN é um órgão de defesa regional. Não há, em seus estatutos,
nenhuma menção de atuação em ações de segurança coletiva (em prol de todos os países) por
meio de ações humanitárias (Missões de Paz). Em 1992, o relatório Boutros-Ghali da ONU
18
mencionou a hipótese de utilização de organismos regionais para atuarem em nome da ONU
em Missões de Paz. Todavia, a questão nunca foi regulamentada, ficando aberta a diferentes
interpretações jurídicas.
Sofrendo críticas internas pesadas por parte de importantes Estados-membros e
sofrendo críticas da opinião pública mundial, a qual via na atuação da OTAN uma nova forma
de inserção americana na Europa, e a ocupação de um espaço pertencente à ONU, a
Organização teve a sua imagem bastante abalada pela sua inação no campo militar. Além
disso, uma administração civil da ONU, associada a um comando militar da OTAN, ambos
em uma mesma missão, foram fatores suficientes para causar problemas de competência.
As críticas colocaram em jogo, mais uma vez, a credibilidade da Instituição no que diz
respeito à sua capacidade de atuação. O que tudo isso tem a ver com a questão do Timor
Leste? A proximidade temporal entre os dois fatos e a crise de credibilidade da Organização.
A questão do Kosovo estourou em 15 de janeiro de 1999 com o Massacre de Racak e o ápice
da questão do Timor ocorreu em setembro do mesmo ano. Com a sua imagem abalada pela
questão do Kosovo e tendo no Timor Leste uma oportunidade única de remediar a sua falha, a
Organização empenhou-se ao máximo para provar sua capacidade de atuação. Porém apenas
intervir não bastava. Fazia-se necessário algo mais. Algo que fosse além do tradicional e que
revelasse um novo padrão de atuação capaz de resolver efetivamente uma situação de
conflito. Isso posto, a ONU assumiu, pela primeira vez na história de todas as suas Missões de
Paz, a soberania de um território. Para tanto, teve como fonte de inspiração a própria Missão
no Kosovo (Administração Transitória), porém sem repetir-lhe os principais erros, que foram:
a ausência de um objetivo político definido e o comando da parte militar da Missão confiada a
um organismo de segurança regional. No capítulo 2, “Os diversos atores envolvidos”, essa
questão será abordada com maior profundidade, mostrando as opiniões de diversos autores a
respeito.
19
1.3 Breve histórico do Timor Leste (1974 a 1999)
Embora o foco desta dissertação seja a atuação da ONU em Missões de Paz, o
contexto empírico é o da questão do Timor Leste, portanto, conhecer as nuanças dos aspectos
que geraram a questão é fundamental.
O Timor Leste foi colônia portuguesa do século XVI a 1975. Nesse período, não
logrou nenhum progresso significativo, conhecendo, apenas, as agruras a que foram
submetidos todos os países vítimas de algum tipo de colonialismo, em especial, do
colonialismo atrasado português. A respeito dessa idéia, o Embaixador João Solano Carneiro
da Cunha (2001, p.114), pronunciou-se da seguinte maneira:
A presença portuguesa, durante mais de quatro séculos, poucas alterações introduziu
no modo de vida tradicional da maior parte da população. O abandono a que Timor
foi votado por Portugal e a inexistência de uma efetiva economia colonial e de uma
política de povoamento e penetração levaram a que se mantivesse quase intacta a
estrutura social timorense
Também a esse respeito, Tomás (2000, p.34) manifestou-se nos seguintes termos:
Portanto, no sentido pleno do termo, não existiu em Timor “administração colonial
portuguesa” durante 400 anos, mas apenas nos últimos 60 ou 70 anos, o que é muito
pouco quando comparado a quatro séculos de efetiva presença religiosa e cultural.
O ponto de inflexão de sua história foi o ano de 1975, quando a ilha foi invadida pela
Indonésia, em 7 de dezembro. A questão do Timor tem ligação direta com o turbulento
processo de descolonização iniciado com a Revolução dos Cravos, em Portugal, em 24 de
abril de 1974. Em maio do mesmo ano, o governador do território, Coronel Fernando Alves
Aldeia, solicitou instruções à Junta de Salvação Nacional, prudentemente ressalvando a
conveniência de se conhecer o pensamento do governo indonésio em relação ao Timor Leste,
recebendo em resposta o seguinte texto:
20
Proceder de acordo com os princípios do Programa do Movimento das Forças
Armadas que preconizam a instituição de um esquema destinado à
consciencialização [sic] de todas as populações residentes nos respectivos territórios
para que, mediante um debate livre e franco, possam decidir o seu futuro no respeito
pelo princípio da autodeterminação, sempre em ordem à salvaguarda de uma
harmônica e permanente convivência entre os vários grupos étnicos, religiosos e
culturais (CUNHA, 2001, P.15)
Na verdade, embora na época os indonésios negassem interesse, a porção leste da ilha
do Timor era a continuação natural do arquipélago
1
, uma vez que a Indonésia já ocupava a
porção oeste da referida ilha (a Indonésia julgava-se herdeira natural de todos os domínios
que pertenceram à Holanda, razão pela qual ocupava o território oeste da ilha do Timor). Em
1960, o chanceler indonésio assim se expressava perante a Assembléia Geral das Nações
Unidas:
[...] declaramos o direito do povo indonésio a exercer a soberania e independência
sobre todos os territórios originariamente abrangidos pelas Índias Orientais
Holandesas. Não reivindicamos outros territórios, como em Borneo e Timor, que se
encontram dentro do arquipélago indonésio, mas que não fazem parte das Índia
Orientais Holandesas[...] ( ONU, 1960
2
apud CUNHA, 2001, p.67)
As negociações entre Portugal e Indonésia, a respeito da descolonização do Timor
Leste, iniciaram-se em outubro de 1974. Naquela época, os dois países trilhavam caminhos
politicamente opostos: em Portugal, as Forças Armadas tinham assumido o poder, amparadas
no partido comunista; em contrapartida, na Indonésia, os militares consolidavam um regime
inaugurado na década anterior com o esmagamento do partido comunista. Em março de 1967,
o ditador Sukarno foi destituído de suas funções dando fim ao período conhecido como
“Velha Ordem”. Para o seu lugar foi designado Suharto, que chegou ao poder pelo voto de
uma assembléia provisória que o elegeu por um período de cinco anos. Inaugurava-se, assim,
a “Nova Ordem”, que tinha como uma de suas características principais a seguinte:
1
Princípio do uti possidetis, isto é, a terra deve pertencer a quem de fato a ocupa.
2
UN Doc A/PV.888 (1960)
21
[...] Preeminência da Forças Armadas, cuja atuação estendeu-se ao Legislativo e a
todos os setores da administração direta e indireta. Mais da metade dos mil membros
da Assembléia Consultiva Popular (Majelis Permusyawaratan Rakyat, MPR) –
teoricamente a mais alta autoridade do Estado e cujas competências incluem a
eleição do presidente da República- é designada pelo governo e oriunda , na maior
parte, do estamento militar. O papel proeminente dos militares na política interna
encontra-se formalizado no conceito da “dupla função”, segundo a qual as Forças
Armadas têm não apenas o dever de proteger o país da agressão externa e da
subversão interna mas também o de exercer atividades na direção política do Estado.
(Cunha, 2001, p.69).
Ao contrário do que ocorria em outras colônias portuguesas, não se conhecia
movimentos autonomistas no Timor Leste:
[...] Assim, a ausência de movimentos de libertação que promovam lutas armadas
contra o poder colonial decorre basicamente do fato de Timor Leste ser uma colônia
esquecida, em tudo subdesenvolvida e com elites locais insipientes e politicamente
imaturas; cabe ressaltar ademais, a ausência de setores metropolitanos com
interesses específicos a defender e a preservar (Cunha, 2001, p.116).
Em virtude da falta de objetivos políticos próprios, não havia, por nenhuma das partes,
a real consideração da possibilidade da independência do Timor, restando as hipóteses de
integração à Indonésia ou de continuidade da ligação com Portugal, com certo status de
autonomia.
No seio do próprio Timor Leste, formaram-se três importantes associações políticas
que tiveram papel ativo no processo de anexação. A primeira era a União Democrática
Timorense (UDT). A UDT defendia uma autonomia progressiva, com a manutenção de
vínculos com a metrópole lusitana, tanto que o nome originalmente proposto foi o de “União
Luso-timorense”.
O segundo partido, cujo ponto fulcral de suas aspirações era a independência do Timor
Leste, foi a Associação Social Democrata Timorense (ASDT). No interior do mesmo, logo se
identificaram duas correntes: uma mais moderada, defensora dos ideais da social-democracia
e outra mais radical que veio a transformar o partido, em setembro de 1974, na Frente
Revolucionária do Timor Leste Independente (FRETILIN). O programa de ação da
22
FRETILIN baseava-se na idéia da necessidade de cooptar apoio popular para a luta pela
independência.
O terceiro partido surgiu em maio de 1974 e se chamava Associação Popular
Democrática Timorense (APODETI). Tinha como objetivo a integração com a Indonésia e,
em seu nome original, tinha seus propósitos declarados: Associação para a Integração do
Timor-Díli na Indonésia.
Outros três partidos formaram-se, entretanto, não obtiveram a devida expressão
política. Foram eles: a Associação Popular Monárquica Timorense, conhecida pela
abreviatura de Kota (Klibur Oan Timur Aswain) que em Tétum (dialeto local) quer dizer
“Congregação dos Filhos Heróicos de Timor”. Era um Partido ultraconservador ligado às
tradições monárquicas tribais timorenses. O Partido Trabalhista, que era ideologicamente
indefinido, contava apenas com uma dezena de membros, todos da mesma família. Por fim, a
Associação Democrática para a Integração do Timor Leste na Austrália (ADITLA), partido de
existência efêmera, extinto em março de 1975, pela rejeição do governo australiano à idéia.
Apesar de não terem sequer sido reconhecidos pelas autoridades portuguesas, o Kota e o
Partido Trabalhista merecem registro histórico, por suas lideranças terem multiplicado o leque
integracionista, ao assinarem dois pedidos de anexação dirigidos ao governo indonésio,
reforçando, assim, a argumentação de Jacarta de que a sua intervenção respondeu aos anseios
da maioria do povo timorense.
À falta de consideração da real hipótese de concessão de independência, por parte de
Portugal e da Indonésia, os timorenses reagiram por intermédio de uma coligação entre os
dois partidos, que tinham em comum o repúdio à integração na Indonésia: a UDT e a
FRETILIN. A coligação foi formada em janeiro de 1975 e agradava aos portugueses por
representar a utopia da descolonização pacífica, o que era uma das diretrizes emanada pela
Revolução dos Cravos. De forma contrária, a coligação representava o alijamento da
23
APODETI do processo político e a preponderância do grupo mais radical: a FRETILIN, que
era identificada, vagamente, com o ideário marxista-leninista. O período era de muita
insegurança em relação às reais intenções portuguesas e indonésias e isso gerava inúmeras
brigas internas entre os partidos. Em maio de 1975, a UDT, rejeitando as idéias que a ala mais
radical da FRETILIN impunha às atividades políticas do grupo, rompe com a coligação.
O rompimento dessa coligação, além de demonstrar a falta de união política reinante
no País, acirrou os ânimos entre os partidos, o que veio a gerar ações de intimidação de parte
a parte, culminando em uma breve e sangrenta guerra civil, favorável à FRETILIN. Em
virtude da predominância política que a FRETILIN obtinha pela força, os demais partidos
coligaram-se em um movimento conhecido como “Movimento Revolucionário
Anticomunista” (MAC), o qual solicitou a integração do Timor português à Nação Indonésia.
Em 28 de novembro de 1975, alegando agressões da Indonésia ao território do Timor Leste,
bem como a incapacidade dos portugueses em conduzir o processo da descolonização, a
FRETILIN proclamou, unilateralmente, a independência da República Democrática do Timor
Leste.
Após a guerra civil, a FRETILIN necessitava do beneplácito de Portugal para
legítimar o controle que assumira na capital e em várias regiões do território. Como
“único representante do povo timorense”, aquele movimento esperava receber o
poder das mãos da metrópole (como acontecera com a FRELIMO em Moçambique).
Mas estava consciente de que a Indonésia não aceitaria um governo da FRETILIN
em Timor Leste. Assim, passou a exigir o pronto início das conversações com
Portugal, na expectativa de apressar a independência. No entanto, ante as indecisões
de Lisboa, o avanço militar das forças indonésias e a indiferença da comunidade
internacional, acabaram por proclamar, unilateralmente, a independência de Timor
Leste, em 28 de novembro de 1975 (CUNHA, 2001, p.131)
Em reação, o movimento anticomunista (MAC) proclamou solenemente a integração
de todo o território da antiga colônia portuguesa do Timor à Nação Indonésia, e o texto da
proclamação é concluído com uma solicitação “[...] ao governo e ao povo da República da
Indonésia que leve a efeito medidas imediatas no sentido de proteger as vidas das pessoas que
24
ora se consideram elas próprias vivendo sob o terror e práticas fascistas da FRETILIN
consentidas pelo governo de Portugal" (CUNHA, 2001, p.19)
Na madrugada do dia 7 de dezembro de 1975, após um intenso ataque aéreo e naval,
tropas da Indonésia invadem e tomam o Timor Leste. Portugal rompeu relações com a
Indonésia e protestou formalmente na Organização das Nações Unidas. A ONU, tanto na
Assembléia Geral (Resolução 3485) como no Conselho de Segurança, condenou a invasão e
instou a Indonésia a se retirar do território. Estava internacionalizada a questão. Portugal
manteve-se como potência administradora, embora ausente do seu território. Em 17 de julho
de 1976, a Indonésia formalizou sua ocupação declarando o Timor Leste como sua 27ª
Província, situação essa que não foi reconhecida internacionalmente. Sobre o não-
reconhecimento internacional, a Resolução 31/53 da Assembléia Geral da ONU asseverou
que “rejeita a reivindicação de que o Timor Leste foi integrado à Indonésia, na medida em que
o povo do território não teve possibilidade de exercer livremente seu direito à
autodeterminação e independência” (ONU, Resolução 31/53 da AGNU, de 1º de dezembro de
1976).
Em 1976, os dados fundamentais da questão do Timor estão estabelecidos: processo
de descolonização interrompido, território ocupado pela Indonésia, questão internacionalizada
na ONU e o direito do povo timorense à autodeterminação reafirmado. Paralelamente, o
Timor Leste havia se transformado em uma preocupação para os Estados Unidos e, em
especial, para a Austrália. Ambos os países temiam que o Timor Leste se tornasse comunista
(Teoria do Efeito Dominó), vindo a se configurar na “Cuba” dos australianos. A esse respeito,
Neves (2000, p.41) se pronuncia da seguinte forma:
[...] a posição geoestratégica da Indonésia, [sic] torna-a um elemento fundamental
para a segurança da zona. A desintegração da Indonésia constituiria uma ameaça
grave para uma região fulcral do mundo. A própria anexação tinha aceitação
explícita da Austrália e tácita dos Estados Unidos, bem como, dos principais países
da região.
25
Os países industrializados, incluindo os parceiros europeus de Portugal, tinham
interesses no comércio com a Indonésia que se sobrepunham aos princípios de
solidariedade com a defesa dos direitos dos timorenses.
Dessa forma, tanto os Estados Unidos quanto a Austrália endossaram, de forma não
ostensiva, a invasão indonésia que ocorreu em 1975, uma vez que aquele país (Indonésia)
tinha orientação política anticomunista.
De 1975 a 1999, o Timor Leste foi ocupado, ocorrendo toda a sorte de violações e
desrespeitos ao seu povo. Essa ocupação arbitrária (nunca foi reconhecida pela ONU) gerou
um movimento de resistência armada, levando à morte mais de 200.000 (duzentos mil)
timorenses. Esses dados não são conclusivos e Cunha (2001, p.113), fazendo referência a uma
publicação do Catholic Institute for International Relations e a outros autores, informa-nos
que:
De acordo com publicação do Catholic Institute for International Relations (CIIR),
de abril de 1992, cerca de um terço da população timorense foi eliminado pela
repressão ou pela fome, em decorrência da ocupação indonésia. O acadêmico
indonésio George Aditijondro deduz , com base em dados diversos, que no início de
1979 havia 300 mil timorenses a menos, em relação a 1974. Outros observadores e
estudiosos da questão de Timor Leste têm apontado o número de 200 mil como
equivalente ao de vidas humanas ceifadas pela intervenção militar no território.
Essa elevada mortalidade, alegada principalmente por organismos internacionais, é
contestada pelas autoridades indonésias que, reconhecendo a lamentável perda de vidas
humanas, calculam em 30 mil o número de vítimas fatais provocadas, direta ou indiretamente
pela ocupação.
A ocupação indonésia teve caráter militarizado, violento e arbitrário, fruto de uma
política de transmigração (indonésios javaneses são re-alocados no Timor) e de um baixo
índice de integração da população local (a maioria dos cargos públicos era exercida por
indonésios javaneses) à “nação” Indonésia. Em que pesem todos esses aspectos negativos, em
24 anos a Indonésia investiu no Timor Leste bem mais do que a antiga metrópole lusitana em
460 anos de ocupação. Dom Ximenes Belo, Arcebispo de Dili e Prêmio Nobel da Paz em
26
1996, comentou recentemente que “os timorenses sentem-se estrangeiros em sua própria
pátria”, acrescentando que os imigrantes chegam à ilha e se tornam patrões da economia, da
política e da vida social, enquanto a população local é mantida à margem” (Trechos de
entrevista de Dom Ximenes Belo concedida a uma revista católica em janeiro de 1996 apud
Cunha, 2001, p.98)
Os anos de ocupação foram também os anos de uma luta heróica. Refugiados nas
montanhas e sem contar com nenhum apoio externo, a FRETILIN transformou-se em
FALINTIL (Forças Armadas de Libertação do Timor Leste). As FALINTIL foram lideradas
por Xavier do Amaral até 1977. Ainda no mesmo ano, Amaral foi substituído por Nicolau
Lobato que o acusou de “capitulacionismo”, por tentar negociar em separado com os
indonésios. Em 1978, Nicolau Lobato morre e assume em seu lugar uma figura, até então sem
muita expressão política na FRETILIN: José Alexandre Xanana Gusmão. Sob a liderança de
Xanana Gusmão, atual presidente do país, o Timor resistiu esporadicamente aos ocupantes
indonésios. A resistência foi ferrenha nos primeiros anos e foi se esvaecendo com o passar do
tempo, até tornar-se simbólica. Um dos grandes méritos de Xanana Gusmão foi o de ter
desmilitarizado a resistência timorense, transformando-a em uma resistência mais política.
Xanana estava consciente da impossibilidade de vitória no campo militar e, em dezembro de
1987, desvinculou as FALINTIL das FRETILIN procurando implementar uma política que
trouxesse maior visibilidade da questão em fóruns internacionais. Nas palavras de Cunha
(2001, p.64) “em dezembro de 1987, também por iniciativa de Xanana Gusmão, as
FALINTIL se desvincularam da FRETILIN, dando início ao processo de ‘despartidarização’
da resistência”.
Em outras palavras, Xanana buscava unir os demais partidos pró-independência à
causa das FALINTIL (braço armado da resistência), porém , para que isso se tornasse viável,
27
era necessário desvincular o movimento de resistência de qualquer filiação partidária. A união
de todos os partidos tornaria a resistência mais organizada e forte.
A prisão de Xanana, em 1992, ocorreu em uma ótima oportunidade para os
timorenses, haja vista que os olhos da comunidade internacional ainda se encontravam
voltados para o país, em virtude de um lamentável episódio: o Massacre do Cemitério de
Santa Cruz ocorrido em novembro de 1991 (esse massacre será mais bem abordado no
capítulo referente aos atores envolvidos, quando se fizer referência à Indonésia). O fato é que
o julgamento de Xanana, sob os holofotes da comunidade internacional, transformou-o em
uma espécie de “Nelson Mandela” timorense, conferindo ao líder uma aura carismática que se
mantém até hoje.
Cunha (2001, p.97), nos explica que ao líder Xanana devem ser atribuídas as seguintes
iniciativas fundamentais à estruturação de uma nova resistência “[...] a organização de uma
rede clandestina civil no interior do país, a despartidarização do movimento
antiintegracionista e as tentativas de reconciliação dos timorenses no exterior”.
Com base nessas três vertentes organizou-se a resistência timorense à ocupação
indonésia. A Frente Clandestina era integrada, essencialmente, por jovens, estudantes, que
operavam em centros urbanos, não necessariamente no Timor Leste, mas também em algumas
cidades da Indonésia.
Acredita-se que muitas das manifestações antiintegracionistas ocorridas em Jacarta-
como por exemplo, a invasão da embaixada dos EUA, em 1994, durante a reunião
da APEC- tenham sido inspiradas e organizadas por integrantes da Frente
Clandestina, em geral, bolsistas timorenses em universidades indonésias (CUNHA,
2001, p.141)
Coube ao Movimento Antiintegracionista “despartidarizado” a organização da
resistência clandestina nos centros urbanos em substituição à antiga resistência armada que se
dava nas montanhas. As ações da Frente Clandestina, que eram coordenadas pelos antigos
guerrilheiros desmilitarizados, eram ações políticas que tinham como objetivo maior causar
28
constrangimentos ao governo indonésio. Tais constrangimentos dariam maior visibilidade
internacional ao problema do que a antiga luta armada que acabava por justificar a repressão
indonésia, como uma reação para a manutenção da ordem interna. Em 1989, um repórter da
Far Eastern Economic, durante as manifestações ocorridas com a visita do Papa a Dili,
comentou “A hostilidade contra o Governo, até agora reduzida a uns poucos remanescentes
do movimento guerrilheiro independentista lutando nas montanhas, pode agora estar a
espalhar-se entre a geração mais jovem das áreas urbanas”. (Far Eastern Economic Review,
edição de 28/12/89)
A terceira vertente da resistência timorense era a “Frente Diplomática”, constituída a
partir de três timorenses que deixaram Dili dias antes da invasão indonésia: Mari Alcatiri,
atual Primeiro Ministro do Timor Leste, José Ramos Horta, atual Ministro das Relações
Exteriores e Rogério Lobato. Em sua escala em Maputo, reuniram-se a eles mais dois
timorenses que já se encontravam em Lisboa há mais tempo: Roque Rodrigues, atual Ministro
da Defesa e Abília Araújo. Deve-se observar que era um grupo de pessoas mais
intelectualizadas, que hoje ocupam importantes cargos na administração timorense. Em seus
primeiros anos, a Frente Diplomática era responsável pela defesa dos interesses timorenses
junto a entidades internacionais, de maneira não oficial, pois, até então, não representavam a
nenhum Estado. Ao contrário da Guerrilha e da Frente clandestina, que se despartidarizaram,
esses “intelectuais” em diáspora, mantiveram-se arraigados a antigos conceitos partidários, o
que dificultou a unanimidade de políticas e ações do movimento como um todo. Nas palavras
de Cunha (2001, p.143): “[...] sobreviveram, no exterior, as estruturas políticas da UDT e da
FRETILIN. Com escassa experiência internacional, dispersos por vários países e sujeitos a
influências diversas, as lideranças timorenses na diáspora começaram a manifestar opiniões
divergentes entre si”.
29
Cientes de que essa divisão só favorecia aos indonésios, a Frente Diplomática, sob a
liderança de José Ramos Horta, envidou esforços no sentido de forjar uma união,
principalmente após 1985.
Em março de 1986, atendendo aos apelos de Xanana Gusmão, as lideranças
remanescentes da FRETILIN e da UDT firmaram um acordo em Lisboa, acordo esse que
selou a “Convergência Nacionalista”. É importante lembrar que esse mesmo ano marca uma
mudança radical da política portuguesa, sob a presidência de Mário Soares, em relação à
problemática do Timor. Como será visto em capítulo à parte, Portugal inicia um apoio maciço
à causa timorense, quando, às vésperas, já falava em um acordo “honroso” com a Indonésia
no qual reconheceria sua soberania sobre o território do Timor Oriental.
Em dezembro de 1988, também sob inspiração de Xanana Gusmão, foi criado o
Conselho Nacional da Resistência Maubere (CNRM). A criação desse Conselho procurou
despartidarizar a Frente Diplomática e José Ramos Horta foi indicado como representante
pessoal de Xanana Gusmão, à sua frente. A indicação de José Ramos Horta, apesar de não
contar com o apoio unânime da resistência maubere, foi fundamental para a união da dividida
Frente Diplomática e para aumentar a visibilidade da questão do Timor Leste no exterior, haja
vista o prestígio de que o mesmo gozava. A habilidade diplomática de Ramos Horta em
diversos fóruns internacionais rendeu-lhe um Prêmio Nobel da Paz em 1996, ao lado de Dom
Ximenes Belo. A deferência concedida a esses dois cidadãos timorenses multiplicou,
exponencialmente, as atenções da comunidade internacional para a questão do Timor Leste.
Associada à notoriedade que a questão assumiu a partir de 1996, ocorreu a Crise
Econômica Asiática em 1997.
A Crise Asiática, como ficou conhecida, enfraqueceu por demais a economia da
Indonésia que se viu obrigada a procurar socorro financeiro através de ajuda internacional.
Para azar e infelicidade da Indonésia, a crise econômica deu-se em um momento de enorme
30
efervescência da questão do Timor Leste na comunidade internacional, que passou a
condicionar sua ajuda econômica à tomada de providências pela Indonésia no sentido de
resolver a questão à luz do Direito Internacional. Nas palavras de Carrascalão (2000, p.37):
A crise financeira e econômica que grassa na Indonésia, e que atinge o seu cume em
1998, deita abaixo o presidente Suharto e faz-se a substituição pelo presidente
Habibi a querer reconquistar a economia, a querer recriar umas finanças mais sãs,
que organiza um grupo de estudos para ver o que é preciso fazer para que o mundo
não atire à cara da Indonésia, sempre que a Indonésia estende a mão a pedir auxílios
(empréstimos, ajudas econômicas, etc, etc), a questão de Timor.
Esse grupo de estudos, chefiado pela senhora Dewi Anwar, concluiu que o obstáculo
número um para a obtenção dos meios necessários para a Indonésia reconstruir a sua
economia e as suas finanças era, exactamente, Timor.
Pressionada pela comunidade internacional e necessitada de apoio financeiro, a
Indonésia cede às pressões e, acreditando no fato de que o Timor estivesse suficientemente
integrado, faculta aos timorenses duas opções políticas, por meio de um Referendo
supervisionado pela ONU.
O principal objetivo do Referendo era o de determinar, em última análise, se os
timorenses deveriam tornar-se independentes ou manter uma “autonomia especial” em relação
à Indonésia.
O resultado do “referendo” não deixou dúvidas quanto à intenção dos timorenses em
assumirem, sozinhos, o seu destino (optaram pela independência). Por outro lado, os
indonésios demonstraram não estar realmente dispostos a conceder a independência aos
timorenses, devido às suas reações à votação. Instaurou-se, no Timor Leste, uma onda de
violência e destruição que levou à morte centenas de timorenses, além do deslocamento
forçado de mais de 200.000 de seus cidadãos para o Timor Oeste (Indonésia). Frente à
situação de caos instalada, a ONU interveio no Timor Leste.
O resultado do Referendo e a sua não-aceitação por parte da Indonésia (a não-
aceitação foi “de fato” e se caracterizou pela não-apuração de responsabilidades pelo caos
instaurado em território timorense) foram as causas imediatas de uma onda de violência que
31
se abateu sobre o país, em setembro de 1999. Foram, também, as causas imediatas da
intervenção da ONU naquele território, porém, por si só, não representam as principais
motivações históricas da intervenção, motivações essas que serão abordadas dentro da ótica
dos diferentes atores, em capítulo à parte.
Não obstante a abordagem que será feita em capítulo à parte faz-se necessária uma
descrição histórica dos fatos que, imediatamente, antecederam a intervenção da ONU em
setembro de 1999. É o que será feito no próximo subitem do histórico da questão.
1.4 1999: a gota d’água.
Às 21 horas do dia 3 de setembro de 1999, sexta feira, em Nova Iorque, o Secretário
Geral Kofi Annan informou o Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o
resultado da Consulta Popular em Timor Leste (MARTIN, 2001, p.27)
A consulta popular a que se refere a citação de Ian Martin foi o resultado dos acordos
entre o governo da Indonésia e o governo de Portugal, em um encontro histórico, ocorrido em
Nova Iorque, em 5 de maio de 1999. Nesse encontro, os dois governos confiaram ao
Secretário Geral a tarefa de organizar e levar a cabo uma “consulta popular” para decidir se o
povo do Timor Leste aceitava ou rechaçava a autonomia especial dentro da República unitária
da Indonésia.
Para levar a cabo a consulta, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução 1246
(1999), autorizou a criação da Missão das Nações Unidas no Timor Leste (UNAMET) em 11
de junho de 1999. Os acordos de 5 de maio estipulavam que, depois da votação, a UNAMET
supervisionaria o período de transição à espera da decisão do povo do Timor Leste.
Apesar de um horário excessivamente ajustado, do alto nível de tensão, do terreno
montanhoso, das más condições de estradas e comunicações, a UNAMET registrou, em uma
população de aproximadamente 800.000 timorenses (no Timor Leste e no estrangeiro),
32
451.792 pessoas com direito a voto. No dia das eleições, em 30 de agosto de 1999,
aproximadamente 98% dos eleitores compareceram às urnas e decidiram, com uma margem
de 344.580 (78,5%) a 94.388 (21,5%), rechaçar a autonomia proposta e começar o processo
de transição para a independência. O povo timorense demonstrou enorme coragem em
comparecer às urnas sob total pressão das milícias pró-Indonésia. Nas palavras de Carrascalão
(2001, p.43), “alguns funcionários públicos timorenses eram obrigados a optar entre a assinar
um abaixo-assinado pró-integração ou a deixar seus empregos. Isto quando a opção que lhes
era apresentada não era a morte”.
Após o anúncio dos resultados, as milícias a favor da integração, em ocasiões com o
apoio de parte das forças de segurança da Indonésia (os acordos de 5 de maio previam que a
Indonésia deveria continuar responsável pela segurança durante a consulta popular e, mesmo,
na eventualidade de um voto a favor da independência), empreenderam uma campanha de
saques, incêndios e violência por todo o território. As autoridades indonésias omitiram-se em
uma resposta mais enérgica e eficaz em relação a essa violência, apesar dos claros
compromissos a que se obrigaram nos acordos de 5 de maio de 1999.
Pelos outros acordos firmados em Nova Iorque, em 5 de maio de 1999, a
responsabilidade pela manutenção da lei e da ordem durante o processo eleitoral foi
atribuída às autoridades indonésias[...] (Cunha, 2001, p.228)
Muitos timorenses orientais foram assassinados e aproximadamente 500.000 foram
deslocados de suas residências, e, desse número, a metade teria abandonando o território,
alguns à força. Diante dos fatos, a UNAMET providenciou a evacuação de seu pessoal para a
Austrália, tanto de seus funcionários internacionais quanto de funcionários locais. Uma
pequena equipe do pessoal ficou na sede das Nações Unidas em Dili a fim de prestar
segurança a pessoas não pertencentes à ONU que pudessem aí buscar refúgio.
As instalações da UNAMET foram encerradas em um último e corajoso grupo final
de 12 funcionários, chefiado pelo CMLO Rezaq, e mudou-se para o antigo
33
consulado australiano, cercado por tropas Kostrad: aí aguardaram a chegada das
forças internacionais (MARTIN, 2001, p.212)
O Secretário Geral e o Conselho de Segurança levaram a cabo árduos esforços
diplomáticos para pôr fim à violência, pressionando a Indonésia para que esta assumisse sua
responsabilidade de manter a segurança e a ordem no território. Uma missão do Conselho de
Segurança visitou Jacarta e Dili e o Secretário Geral esforçou-se para conseguir apoio dos
governos para que uma força multinacional, autorizada pelo Conselho de Segurança e pela
Indonésia, controlasse a situação.
Os primeiros esforços diplomáticos continuaram a ter como objectivo [sic] induzir a
Indonésia a agir de forma eficaz, para por cobro à violência em Timor Leste; nem
todos os estados-membros chegaram com a mesma rapidez à conclusão de que isto
não aconteceria. O objectivo [sic] seguinte foi então obter o acordo da Indonésia
para a intervenção internacional. Nem a Austrália nem nenhum outro país entraria
em Timor Leste sem esse acordo, ou sem a autorização do Conselho de Segurança,
dependendo o próprio apoio da China e da Rússia, bem como o de vários membros
não permanentes, da aquiescência da Indonésia [...] O terceiro objectivo era reunir
uma coligação de países dispostos a participar, que fosse militarmente viável e tão
aceitável em termos políticos quanto possível (MARTIN, 2001, p.217)
Quando a missão do Conselho de Segurança concluiu sua visita à Jacarta, em 12 de
setembro de 1999, o governo da Indonésia aceitou a oferta de ajuda da comunidade
internacional. O Conselho de Segurança autorizou, então, a força multinacional INTERFET
(International Force in East Timor), com uma estrutura de comando encabeçada por um
Estado-membro (Austrália), a restabelecer a paz e a segurança no Timor Leste, a proteger e a
prestar apoio à UNAMET no desempenho de suas tarefas e, dentro das possibilidades da
Força, facilitar as operações de ajuda humanitária.
Enquanto isso, as organizações do sistema das Nações Unidas deram início a uma ação
de socorro humanitário urgente e em grande escala, a qual incluía, dentre outras, as seguintes
medidas: lançamento de alimentos pelo ar, comboios de assistência e provisão de serviços
básicos. À medida que a situação de segurança melhorava, mais e mais trabalhadores e
provedores de socorro chegavam ao Timor Leste. Teve início o processo de repatriação de
34
aproximadamente 250.000 timorenses orientais que haviam sido deslocadas para a porção
oeste da ilha (Indonésia). Para o financiamento da ação de socorro, em 27 de outubro de 1999,
foi lançado um chamamento interinstitucional unificado de 199 milhões de dólares.
Após a onda de violência, tanto a polícia quanto as Forças Armadas indonésias
começaram a se retirar do território até deixá-lo completamente. Os funcionários
administrativos indonésios também partiram. Em 28 de setembro, Indonésia e Portugal, em
uma reunião com as Nações Unidas, reiteraram seu acordo de transferência de autoridade
sobre o Timor Leste às Nações Unidas. Também acordaram que eram necessárias medidas ad
hoc para cobrir o vazio criado pela saída precoce das autoridades civis indonésias.
Em 19 de outubro de 1999, a Assembléia Consultiva do Povo Indonésio reconheceu
oficialmente os resultados da consulta. Pouco depois, em 25 de outubro, o Conselho de
Segurança das Nações Unidas, mediante a Resolução 1272 (1999), criou a UNTAET
(United Nations Transitional Administration of East Timor) como uma Missão de
Manutenção da Paz multidimensional e integrada, totalmente (grifo nosso) responsável pela
administração do Timor Leste durante a sua transição até a sua independência. Em relação à
magnitude da UNTAET, Cunha (2000, p.231) faz o seguinte comentário:
[...] Chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello (então subsecretário-geral para
assuntos humanitários da ONU). Com Mandato inicial até 31 de janeiro de 2001, a
UNTAET passou a exercer os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em Timor
Leste, em consulta e cooperação com representantes das lideranças timorenses. A
UNTAET é composta atualmente por 625 funcionários internacionais, 1400
contratados locais, 228 voluntários das Nações Unidas, 1100 policiais, 200
observadores militares e uma tropa de cerca de 8000 homens. Além disso, estão
atuando no terreno 12 agências da ONU e mais uma centena de ONGs. No total,
aproximadamente 12.000 pessoas estão envolvidas nas atividades de assistência
humanitária, reconstrução econômica e física e manutenção da lei e da ordem no
território.
Na análise que está sendo feita, podem ser citadas várias razões que tenham levado aos
acontecimentos de 1999, contudo, cabe-nos destacar duas razões que se mostraram imediatas
ao problema: a primeira delas foi a nomeação, em 1997, de um representante do novo
35
Secretário Geral da ONU, eleito naquele mesmo ano, exclusivamente dedicado à questão do
Timor Leste. A nomeação desse representante alterou o contexto das negociações tripartites
entre a ONU, Portugal e Indonésia uma vez que este último ator aceitou, em primeira mão,
negociar o tema sem a exigência de uma solução definitiva que passasse, necessariamente,
pelo reconhecimento de sua soberania. Esse fato, associado à crise financeira asiática e seus
reflexos para a Indonésia, precipitou os acontecimentos de 1999.
Como já foi mencionado, a crise econômica levou ao enfraquecimento político de um
regime que já se mostrava desgastado. Esse antigo regime estabeleceu suas bases em um
estamento militar que o alimentava e por ele (regime) era retroalimentado. Dessa forma, é
natural que se compreenda que a transição política pela qual a Indonésia passava, ao
transgredir os interesses dos militares, provocaria reações no seio dessa sociedade. A
transgressão a que nos referimos é justamente a opção que foi apresentada ao povo timorense.
Para os militares, era inconcebível que se permitisse um Timor independente, posto que
vários de seus colegas haviam tombado em combate com a guerrilha timorense. Se os
militares não puderam reagir diretamente, agiram, então, “permitindo” toda sorte de abusos
por parte das milícias pró-Indonésia, logo após o resultado desfavorável do Referendo a que a
população do Timor foi submetida. Nas palavras de Carrascalão (2001, p.38)
Aqueles que os chefiaram, aqueles que viram os seus camaradas tombar em Timor,
entenderam que não deveriam dar, de mão beijada, aos timorenses um território
onde os seus irmãos se sacrificaram para que ele estivesse debaixo da soberania
indonésia. E, então, foram criadas, a pressa, as tais célebres milícias. Os timorenses
denunciaram ao mundo essa criação. E o mundo ignorou-a, pura e simplesmente,
pela simples razão de que a Indonésia é um país de 200 milhões de habitantes e
quando os seus administradores falavam, pois, que significado ´poderiam ter as
afirmações feitas pelos timorenses, “ignorantes” e “politicamente imaturos”
(Carrascalão, 2001, p.38)
36
1.5 Conclusão para a Introdução
O passado recente do Timor Leste, considerado aqui o período compreendido entre
1974 e 1999, foi um período de enorme sofrimento para esse povo. Vítimas iniciais de um
colonialismo de “segunda linha” por parte de Portugal, que aí não desenvolveu nenhum tipo
de interesse perceptível, os timorenses foram expostos à necessidade de decidir o seu próprio
futuro de maneira abrupta e inesperada. A Revolução dos Cravos exigia soluções rápidas para
dar um fim ao já tardio colonialismo português. Diante dessa realidade, faltou aos timorenses
a devida maturidade política para dar um rumo viável ao desfecho de anos de colonização.
Agravando o problema, o contexto da Guerra Fria e a coincidência temporal da
questão com o fim da Guerra do Vietnã inspiravam cuidados por parte de dois atores
influentes, mas não dispostos a “sujar as mãos”. Os Estados Unidos e a Austrália
vislumbraram, na Indonésia recém “convertida” ao anticomunismo, uma oportunidade de
resolverem a situação sem o ônus do desgaste político internacional.
Seguiram-se os anos de ocupação sem integração, de usurpação sem compaixão. Os
timorenses foram vítimas de uma República de cariz militarizado que encontrou aí um bom
“campo de treinamento” para as suas ações antiguerrilha.
Os anos se passaram e a nova realidade de um mundo globalizado não encaixava mais
os ditadores de outrora. O golpe de misericórdia veio com a crise econômica asiática em 1997
e, para poder barganhar socorro internacional, a Indonésia teve de ceder politicamente em
relação ao Timor. Acreditando que os timorenses estivessem suficientemente “integrados” ou
“intimidados”, a Indonésia blefou com a comunidade internacional ao autorizar o Referendo
de 1999. O resultado não poderia ter sido pior para os indonésios já desgastados
politicamente. Os acontecimentos de setembro de 1999 expuseram ao mundo os horrores de
24 anos de ocupação.
37
O evento caiu como uma luva para a ONU que aproveitou a chance para remediar o
mal-estar deixado pela questão do Kosovo. A questão do Kosovo mostrou que, quando há
indecisão, ocorre um vácuo de poder que rapidamente é preenchido por quem se apresenta
com oportunidade e interesse.
Os fatos aí estão. Foram expostos de maneira genérica para dar ao leitor uma visão
geral do todo. Contudo, ao longo dos anos, as intervenções da ONU têm se mostrado bastante
seletivas e se faz necessário determinar em que medida os atores envolvidos na questão têm
sua parcela de responsabilidade e interesses outros. É o que será abordado no próximo
capítulo com o estudo mais aprofundado dos atores envolvidos.
38
2 OS ATORES ENVOLVIDOS
Uma dissertação de Relações Internacionais deve abordar qualquer questão que seja
pela ótica dos diversos atores envolvidos. Sem o entendimento da questão, pelo ponto de vista
particular dos atores, dificilmente se compreenderá o todo e qualquer juízo de valor não será
imparcial. Este capítulo destina-se a análise dos principais atores envolvidos na questão do
Timor Leste, desde o seu estabelecimento, em 1974, até a intervenção da ONU em território
timorense, em 1999.
2.1 Portugal como ator
Embora o Timor Leste só venha a ganhar alguma relevância política a partir de 1975 e
o recorte temporal desta dissertação não recomende maiores digressões, seu passado histórico,
do ponto da vista da história do ocidente, é bem mais longínquo e remonta à colonização
portuguesa iniciada em meados do século XVI.
Um questionamento freqüente que se faz em relação ao Timor é o porquê de uma
mesma ilha ter sido colonizada a oeste pelos holandeses e a leste pelos portugueses. A
explicação, certamente, antecede ao período colonial português e holandês e se faz pela
compreensão da composição étnica e lingüística da ilha antes do referido período.
“Quando os europeus abordaram a ilha, segundo tudo leva a crer, a mesma já se
encontrava étnica, lingüística e politicamente dividida em duas” (TOMÁS, 2000, p.29). Isso
não significa, em absoluto, que a fronteira coincidisse com a atual fronteira política. Era uma
fronteira política aparentemente, mas, sobretudo, uma fronteira lingüística. Na metade
ocidental falava-se praticamente uma única língua que, em português, era designada como
“baiqueno” ou “vaiqueno”, embora os holandeses a chamassem de “timoreesch”. Os povos
39
que falavam (e ainda falam) essa língua denominavam-se “atoni”, palavra que quer dizer
“gente”.
Em contrapartida, na metade oriental, falava-se quase uma vintena de línguas
diferentes, com o predomínio de uma língua franca conhecida como “tétum”. O tétum, falado
até hoje no Timor Leste, era a língua do reino dos “Belos”, reino esse que exercia a suserania
quase total sobre toda a zona oriental. Na outra metade da ilha, dita do Servião, era o rei de
Senobai ou imperador do Servião que exercia o poder político.
“Havia, portanto, em Timor duas confederações de reinos, com duas línguas oficiais
distintas[...]” (TOMÁS, 2000, p.30).
O que aconteceu em seguida foi que, com exceção do reino de Oé-Cússi (enclave
timorense na Indonésia), que se cristianizou muito rapidamente, todos os reinos do Servião
(metade ocidental da ilha) acabaram por aceitar a suserania holandesa, inclinando-se para o
calvinismo. Na metade leste da ilha, em contrapartida, a quase totalidade das províncias do
reino dos Belos, gradualmente, optou por abraçar o catolicismo como uma maneira de se
colocar sob o protetorado português, a fim de assegurar proteção contra o reino dos
Macaçares escapando, ao mesmo tempo, à conquista holandesa.
O reino dos Macaçares (ilha de Celebes) tornou-se aliado dos holandeses por
imposição destes últimos. Os macaçares, ao contrário dos povos do Timor, possuíam notória
habilidade para a navegação, como a maioria dos povos do sudeste da grande ilha de Celebes.
Por sua vez, os macaçares converteram-se ao islamismo em 1603 e suas empreitadas
marítimas assumiram, por vezes, uma coloração de Jihad ou guerra santa, levando ao
aprisionamento e à escravidão os povos pagãos das outras ilhas.
A prosperidade desse povo incomodou os holandeses que vieram a atacar o seu reino
em 1660, forçando os macaçares a assinarem, em 1667, o Tratado de Bongaya. O Tratado de
Bongaya estipulava três medidas básicas: demolir as fortificações que possuíam, expulsar de
40
seu território os portugueses refugiados que aí haviam se estabelecido após sua expulsão pelos
holandeses em Malaca e abster-se de todo o comércio de especiarias, garantindo à Holanda o
monopólio de todo e qualquer tráfico. O resultado prático da assinatura desse acordo foi a
transformação dos macaçares em aventureiros e corsários, que rapidamente se enxamearam
pelo arquipélago.
A falta de meios navais para resistir a macaçares e holandeses levou os timorenses
orientais, que já se encontravam sob influência de missionários portugueses desde o último
quarto do século XVI, a se colocarem sob o protetorado da Coroa Portuguesa. Assim, a
divisão lingüística, cultural e política, que já preexistia ao período colonial, consolidou-se
com a ocupação holandesa de Cupão (atual Kuopang no Timor Ocidental – Indonésia) em
1652.
Uma vez em Cupão, os holandeses lograram atrair, sob seu protetorado, a quase
totalidade dos reinos do Servião (Timor Ocidental) com exceção de Oé-Cussi que permaneceu
fiel a Portugal por questões religiosas, como já mencionado anteriormente.
Entre 1851 e 1916, o traçado da fronteira foi detalhado entre Portugal e Holanda por
uma série de negociações, tendo os reinos nativos um enorme peso na escolha por uma ou
outra dependência.
“A partição da ilha reforçou o distanciamento entre as duas metades, já que a veio
dobrar de uma diferenciação religiosa e cultural” (TOMÁS, 2000, p.31). Para os timorenses
orientais, o catolicismo teve um duplo papel: o de conferir unidade interna e o de estabelecer
uma identidade e diferenciação externa.
A compreensão da religiosidade do povo timorense, religiosidade essa trazida por
missionários portugueses, é fundamental para o entendimento do papel da Igreja durante os
anos da ocupação Indonésia (1975 a 1999). A religião católica exerce uma influência
demasiadamente forte sobre a população timorense sendo, ao mesmo tempo, fator de coesão
41
interna e de identidade externa. Esse alto grau de influência decorre, basicamente, de dois
fatores. Em primeiro lugar, a presença da Igreja Católica precedeu em mais de um século a
presença política portuguesa. Os missionários dominicanos estabeleceram-se no Timor Leste
a partir de 1556 e o primeiro governador português só veio a chegar à ilha em 1703. Outro
grande fator de influência da Igreja se dá pela forma com que incutiu no povo timorense a
cultura portuguesa e religiosa. Muito mais por proposição do que por imposição. O mesmo
exemplo não se pode dar em Goa, onde a influência cultural portuguesa foi muito mais um
corolário da dominação política (TOMÁS, 2000).
A presença dominante de religiosos no Timor Leste, em vez de mercadores, tem uma
explicação econômica. Embora o Timor fosse rico em sândalo, o comércio dessa madeira não
era monopólio da Coroa Portuguesa, ao contrário do que ocorria com o comércio de cravo em
Molucas e de noz-moscada em Banda. Dessa forma, o Timor não possuía nenhuma especiaria
que tornasse a ilha sui generis na rota comercial da região. Isso explica, em parte, a
predominância de religiosos em detrimento de um maior número de mercadores. A esse
respeito, Tomás (2000, p.28) nos explica que:
Timor não teve jamais uma grande participação no grande comércio internacional,
talvez porque o único produto rico que tinha a oferecer-lhe, o sândalo, também
existia na Índia, ao contrário do cravo nas Molucas e da noz-moscada de Banda,
que não tinham alhures substituto; parece, para mais, que quem ia procurar o
sândalo a Timor eram sobretudo os chineses, para quem a nossa ilha era uma área
de abastecimento mais próxima do que a Índia. Seja como for, Timor sempre foi
uma ilha isolada, e o seu comércio externo relativamente escasso.
Esclarecida a questão religiosa e sua influência sobre a população timorense, cabem
algumas considerações sobre a administração política portuguesa. Como já foi mencionado, a
religião precedeu a administração em quase um século e meio. Quando o primeiro governador
português, Antônio Coelho Guerreiro, desembarcou no Timor em 1703, os dezessete reis,
chefes, príncipes e principais líderes locais já possuíam nome de batismo em português e já
usavam o prefixo de “Dom” anteposto ao nome. Esse prestígio que era dado às elites locais,
42
por parte da Igreja, manteve-se com a administração política que levou para o Timor não mais
do que 30 homens encarregados da guarda pessoal do governador. A defesa da ilha era
suportada pelos locais sob a liderança de seus próprios chefes. A administração portuguesa
utilizou-se da estratégia de militarizar a estrutura política local pela distribuição de patentes
militares portuguesas às elites.
Esse sistema perdurou até o final do século XIX e início do século XX com as
campanhas de pacificação de Celestino da Silva (1894 a 1908).
As campanhas de pacificação foram ações militares que tinham por objetivo pôr fim
aos freqüentes conflitos entre os reinos fiéis a Portugal e os reinos “alevantados”, armados e
municiados pelos holandeses. A partir dessas campanhas, Portugal iniciou uma ocupação
mais efetiva de sua administração colonial. Até àquele período, o Timor havia se mantido
mais como um protetorado do que como uma colônia propriamente dita. Somente após as
campanhas de pacificação é que a administração portuguesa ganha um cariz colonial e são
criados os primeiros postos militares no interior, uma vez que a antiga administração se
limitava a permanecer em Dili (atual capital do Timor Leste).
Portanto, no sentido pleno do termo, não existiu em Timor “administração colonial
portuguesa” durante 400 anos, mas apenas durante os últimos 60 ou 70 anos, o que
é muito pouco quando comparado a quatro séculos de efetiva presença religiosa e
cultural (TOMÁS, 2000, p.34)
2.1.1 O fracassado processo de descolonização no Timor Leste
Na introdução ao ator Portugal procurou-se demonstrar como nasceram as relações
religiosas, culturais e políticas entre Portugal e o Timor Leste. O que ainda não foi explicado
é que o modelo de administração utilizado pelos portugueses, que consistia na cooptação das
elites sem interferência em seus assuntos internos em troca de sustentação política, foi um
43
modelo adotado muito mais em função da incapacidade administrativa portuguesa do que por
opção política própria. Cunha (2001, p.27) assim se refere à relação de Portugal com sua ex-
colônia:
Distante cerca de 16 mil quilômetros de Lisboa, com uma incipiente economia e
uma escassa presença de pessoal da metrópole, a colônia foi negligenciada pelos
portugueses, nos cerca de 460 anos de sua presença naquele território.
Ramos Horta (1994, p.72), corroborando a opinião de Cunha, salienta que:
Timor Leste sempre foi uma colônia bastarda, a mais remota, rebelde e
negligenciada. Era a antecâmara do inferno. O período que medeia entre 1945 e
1965 não registrou qualquer avanço digno de menção no desenvolvimento da
colônia. Nem um quilômetro de estrada asfaltada, nenhuma ponte sobre as
inúmeras ribeiras que sulcam o território e o tornam intransitável na estação das
chuvas. Dili viu sua primeira central elétrica inaugurada em meados dos anos
60.Apenas um Liceu em todo o território e até 1970 meia dúzia de timorenses tinha
conseguido chegar a uma universidade na Mãe Pátria.
As próprias autoridades portuguesas, em seu Relatório da Comissão de Análise e
Esclarecimento do Processo de Descolonização do Timor, reconhecem o fracasso de sua
administração:
A rede de estradas era práticamente inexistente. As infra-estruturas aéreas eram
insuficientes, e, das dez pistas existentes, apenas uma era asfaltada e permitia a
utilização em todo o tempo (Baucau). Existia um único porto com cais acostável
(Dili), mas o diminuto volume das trocas comercias não proporcionava a visita
freqüente de navios e a ligação com a Metrópole fazia-se apenas três vezes por ano,
demorando a viagem para Lisboa, via Suez, cerca de 30 dias[...] A rede telefônica
interna, que ligava Dili às sedes de conselho era ineficiente e em todo o território
existiam apenas 600 telefones (Portugal, 1981).
Como será visto mais adiante, o descaso de tantos anos, certamente, teve reflexos
diretos no processo de descolonização do Timor Leste que recebeu, por parte da metrópole
portuguesa, uma de suas últimas prioridades.
O processo de descolonização do Timor Leste insere-se no processo de descolonização
português, desencadeado pela Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Para escapar da
política de descolonização gerenciada pela ONU ao início dos anos 60, Portugal considerou
44
suas colônias como territórios ultramarinos desde 1955, não reconhecendo aos povos
coloniais seu direito à autodeterminação e a sua condição de territórios não-autônomos. Essa
recusa em implementar de imediato a Resolução nº 1514 (XV) da ONU, Declaração sobre a
concessão da independência aos países e povos coloniais, de 1960, levou os portugueses a
uma guerra colonial com seus territórios na África, em especial: Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau.
A principal razão para Portugal ter postergado a descolonização em seus territórios
deveu-se ao fato de possuir, nesses países, um elevado contingente metropolitano que
mantinha interesses comerciais locais. “Nas preocupações da metrópole quanto ao destino do
império colonial, o primeiro pensamento fixava-se em Angola, a mais importante colônia sob
todos os aspectos, a jóia da coroa do império português, que abrigava uma população
metropolitana e branca superior a 300 mil pessoas” (CUNHA, 2001, p.26).
Agindo dessa forma, Portugal tomou o sentido inverso da maioria das potências
européias que trataram de preparar, gradualmente, o acesso de elites locais à administração
dos respectivos territórios, enquanto as metrópoles se isolavam nos bastidores, de forma que,
no momento solene da concessão formal da independência, detivessem o controle dos
interesses políticos e econômicos que lhes interessasse preservar.
A opção portuguesa em se manter à frente da administração de suas colônias, sem
preparar as elites locais para assumirem um processo que já era considerado irreversível pela
própria ONU (ONU, 1960), teve um duplo custo para os portugueses. O primeiro foi a guerra
nas colônias para a manutenção do status quo, o que diretamente afetou a economia da
metrópole e indiretamente enfraqueceu o regime salazarista, tanto interna quanto
externamente. O segundo efeito foi o de conferir um caráter abrupto à descolonização, quando
essa veio a se confirmar por conseqüência da Revolução dos Cravos.
45
O Timor Leste não foi causa no primeiro custo, pois lá, a metrópole não travou
nenhuma guerra contra os nativos, haja vista a falta total de interesses a serem preservados,
como já foi comentado anteriormente. Contudo, o segundo efeito veio a ser sentido de uma
maneira muito mais forte do que nas demais colônias. O Timor Leste, no momento do
reconhecimento português quanto ao direito de autodeterminação e independência de suas
colônias (Lei 7/74 de 27 de julho de 1974
3
), não possuía a mínima maturidade política e
econômica para a condução de qualquer processo, pelas elites locais.
Em discurso perante a Assembléia Geral da ONU, em 3 de dezembro de 1974, o
ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, teceu as seguintes considerações:
[...] Timor está longe da auto-suficiência econômica e financeira, sem o que não
pode cogitar-se de independência real [...] Devo dizer que por mais que recue no
tempo, não vislumbro época em que possamos ter retirado da nossa presença em
Timor mais do que satisfação moral. Se com isso conjugarmos o estágio de
subdesenvolvimento em que o território se encontra, logo concluiremos quanto é
fantástico o sonho de uma independência total e imediata (ONU, 1974).
Para Portugal, o único valor a ser preservado na questão do Timor Leste era a sua
própria dignidade. “Trata-se, portanto, de se livrar daquele fardo remoto com um mínimo de
prejuízo para o orgulho e os cofres portugueses” (CUNHA, 2001, p.30).
A hipótese de concessão imediata de independência aos timorenses foi descartada.
Restava, portanto, a hipótese de implementação do cronograma previsto na Lei 7/75 de 17 de
julho de 1975 (Lei constitucional aprovada pelo Conselho da Revolução) que tinha como
conteúdo principal: reserva de definição de futuro político para o Timor a uma assembléia
representativa, eleita por sufrágio universal, direto e secreto (artigos 2º e 4º); cessar de todas
as prerrogativas de soberania e administração de Portugal no terceiro domingo de outubro de
1978 (artigo 5º, nº1); dependência de qualquer alteração de prazo, de acréscimo ou
diminuição de responsabilidades e prerrogativas de Portugal, de acordo entre o Estado
português e a Assembléia Popular do Timor (artigo 5º, nº2) e, por fim, criação, como órgãos
3
Lei 7/74 de 27/7/74: reconhecimento português ao direito de independência de suas colônias
46
transitórios de poder, de um Alto Comissário, um Governo e um Conselho de Governo (artigo
6º), nos termos do estatuto anexo à lei (Portugal, 1975).
As propostas previstas na Lei 7/75 não chegaram a se efetivar. No plano interno
timorense, não houve a colaboração de seus partidos. Do ponto de vista português, a queda do
IV Governo Provisório inviabilizou a nomeação do Alto Comissário previsto na Lei.
Antes mesmo da elaboração da Lei 7/75, Portugal, diante das dificuldades que vinha
enfrentando, chegou a cogitar a hipótese de aceitação da integração do Timor à Indonésia.
Entretanto, tal integração deveria dar-se dentro de um ambiente com uma aparência mínima
de legalidade e legitimidade, a fim de satisfazer a opinião pública interna e internacional,
evitando-se críticas posteriores.
A posição portuguesa, após encontro com uma delegação indonésia, realizado em
Londres, em março de 1975, é assim resumida pela Comissão de Análise e Esclarecimento do
Processo de Descolonização do Timor, citada por Cunha (2001, p.30):
o respeito pela vontade do Povo de Timor é um princípio que não pode ser
contrariado; Portugal nada fará para dificultar a integração de Timor na Indonésia;
esta depende do auxílio de Jacarta à Apodeti, que deve revestir-se de formas muito
discretas e que Portugal não denunciará; do mesmo modo, Lisboa nada fará para que
uma das hipóteses seja a ligação a Portugal”. A delegação portuguesa admitia ainda
a associação discreta e não oficial da Indonésia ao processo de descolonização
(Cunha, 2001, p.30)
Além disso, para que Portugal realmente aceitasse a hipótese de integração pela
Indonésia, deveria ser respeitado o princípio da autodeterminação do povo timorense,
conforme a tardia aquiescência portuguesa à Resolução nº 1514 (XV) da ONU, de 1960. No
conteúdo do Memorando entregue pelos portugueses ao Secretário Geral da ONU, estes se
comprometem a assumir suas obrigações relativas ao capítulo XI da Carta das Nações Unidas,
cooperando com a ONU para assegurar o exercício do direito de autodeterminação e
independência a todos os territórios sob sua administração, em conformidade com a
Resolução nº 1514 (XV) de 1960.
47
Em suma, Portugal, a fim de se livrar do fardo timorense, estava disposto até a aceitar
a integração do Timor Leste à Indonésia, desde que essa integração fosse fruto da
manifestação do direito de autodeterminação dos próprios timorenses. Do ponto de vista
político e legal essa seria uma saída honrosa para Portugal.
O momento não poderia ser pior para os portugueses. De acordo com Cunha (2001),
no período entre o triunfo da Revolução dos Cravos e a intervenção militar Indonésia no
Timor Leste (pouco mais de um ano e sete meses), Portugal conheceu seis Governos
Provisórios, dois Presidentes da República, uma Junta de Salvação Nacional, um Conselho da
Revolução e uma Comissão Coordenadora do MFA (Movimento das Forças Armadas). A
prioridade atribuída ao processo de descolonização das colônias africanas, somada ao
distanciamento geográfico e à marginalização histórica do Timor, dificultava qualquer
hipótese organizada de condução de um processo de descolonização. Como se não bastasse, o
período mais crítico para o Timor, entre o golpe da UDT e a proclamação da independência
pela Fretelin, de agosto a novembro de 1975, coincidiu com os momentos da mais aguda crise
vividos pela revolução portuguesa.
A verdade é que a situação em Portugal estava tão difícil que não havia a mínima
possibilidade de se pensar no Timor Leste. Como se não bastassem as dificuldades políticas
enfrentadas, o surgimento de novos Estados na África provocou um êxodo de meio milhão de
portugueses de regresso ao território europeu. O Timor se fazia, assim, a última das
prioridades.
Para se ter idéia do caos a que o Timor foi relegado, da deflagração da Revolução dos
Cravos, em 25 de abril de 1974, à designação de um governador para a província do Timor,
em novembro do mesmo ano, decorreram sete meses, sendo que o antecessor do governador
designado foi exonerado do cargo em maio. Foram seis meses de vácuo de poder onde o
48
encarregado de implantar o processo de descolonização não se encontrava em território
timorense.
O novo governador, Coronel Lemos Pires, embarcou para o Timor sem orientações
concretas do que fazer. Em encontro com o Presidente Costa Gomes, antes de partir, ouviu
que uma de suas missões seria justamente a de “apalpar o terreno e fazer propostas” (Cunha,
2001, p.28).
O Coronel Lemos Pires era um militar de perfil moderado, não comprometido com a
ala mais radical de esquerda da Revolução dos Cravos. Para alguns analistas, isso era uma
maneira de tranqüilizar os indonésios quanto às reais intenções portuguesas ao descolonizar o
Timor Leste. Entretanto, o que para os indonésios seria um sinal tranqüilizador, para os
partidos timorenses era uma fonte de desconfiança. A recusa do governador em se posicionar
no conflito entre os principais partidos timorenses (UDT e Fretelin) era vista pelas partes
como um apoio tácito ao adversário, no melhor estilo “quem não está comigo está contra
mim”. Sem contar com o apoio externo de Portugal e sem uma definição política viável do
que fazer, o governador passou a ser um mero espectador dos fatos.
Em agosto de 1975, tem início os combates entre a UDT e a Fretelin e o governador
solicita a Portugal a intervenção de uma força internacional. Sem obter respostas, Lemos Pires
se vê diante de três possibilidades: combater a Fretelin (que já despontava como vitoriosa no
conflito com a UDT) sem, contudo, possuir efetivo para tal; sujeitar-se à Fretelin, o que
corresponderia à capitulação da soberania portuguesa sobre o território e, por fim, estabelecer-
se em algum ponto do território, longe da capital Dili. Optou pela última posição, fruto de
uma decisão tomada em 25 de agosto de 1975. Com isso, Dili viu-se entregue a um intenso
conflito entre as partes que se negavam a uma posição de conciliação e ameaçavam o pessoal
metropolitano. A saída de Lemos Pires foi para Ataúro, uma pequena ilha timorense 30
quilômetros ao norte de Dili. Foi uma atitude extrema cuja simbologia supera a eficiência.
49
Para Portugal, a simples presença da bandeira portuguesa em solo timorense seria um fator de
contenção para a eventual e temida iniciativa indonésia de intervir ostensivamente. Essa
atitude teve um caráter paradoxal. Em um primeiro momento, os indonésios respeitaram a
presença portuguesa em território timorense, entretanto, com o passar dos dias, a falta de
competência para lidar com a situação, associada ao distanciamento físico do centro dos
episódios de violência, acabaram por apressar a ação indonésia.
A única opção que se apresentava ao governo instalado em Ataúro era a busca por uma
saída honrosa que passava, necessariamente, pelo estabelecimento de diálogos nos planos
local, bilateral e internacional. Como o resultado da guerra civil parecia evoluir mais
favoravelmente à Fretelin, o governo português, em Ataúro, chegou a cogitar o início de
negociações exclusivas com aquele partido, a exemplo do que ocorrera em Moçambique com
a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). No entanto, dois fatores impediram essas
negociações exclusivas: em primeiro lugar, ainda havia prisioneiros lusos em poder da UDT
e, em segundo lugar, havia o temor de que a Indonésia reagisse mal às negociações em virtude
da orientação “comunista” da Fretelin. Portugal, a essa altura, encontrava-se encurralado no
tabuleiro das negociações.
Em uma última tentativa para compor a situação, Portugal envia para Ataúro uma
delegação chefiada pelo ministro da Coordenação Interterritorial, o senhor Almeida Santos.
Antes de chegar a Ataúro, Almeida Santos estabeleceu contatos com a ONU, com Jacarta e
com a Austrália. Em suas conclusões a respeito desses contatos avaliou que uma invasão
indonésia só se concretizaria com uma plataforma política que legitimasse a intervenção, o
que, de fato, ocorreu (a plataforma foi o apoio tácito americano e australiano para isso). Com
relação à ONU, a maior preocupação portuguesa foi a de alertar para a possibilidade da
invasão indonésia, preparando o caminho para internacionalizar o problema, passando-o à
responsabilidade da comunidade internacional.
50
Dias antes da invasão, o delegado português na IV Comissão da ONU comentou com
seu colega brasileiro que nada teria a opor ao reconhecimento pela ONU da independência do
Timor, o que poria fim à responsabilidade de Portugal como potência administradora;
acrescentou, no entanto, que enquanto perdurasse aquela responsabilidade, Lisboa não poderia
aceitar a proclamação unilateral (Cf. Correspondência oficial do MRE apud Cunha, 2001,
p.39).
2.1.2 O período pós-anexação e a evolução da questão em Portugal
Consumada a anexação do Timor Leste pela Indonésia, em 1976, a questão do Timor
passa por inúmeros avanços e recuos no cenário político português, de acordo com os
diferentes momentos da vida daquele país e da sua procura por uma maior inserção
internacional, após os longos anos de isolamento do período salazarista.
A evolução e as mudanças de atitude dos portugueses em relação ao problema
variaram nitidamente ao longo do tempo e tem, nos anos de 1982, 1986 e 1991, os grandes
marcos limitadores das fases.
Imediatamente após a ação militar indonésia, em dezembro de 1975, Portugal rompe
relações formalmente com aquele país e solicita a intervenção do Conselho de Segurança da
ONU. A questão estava internacionalizada oficialmente. Àquela época, no plano interno, a
Assembléia Constituinte portuguesa encontrava-se reunida para a elaboração do novo texto
constitucional e, em uma das primeiras manifestações de consenso suprapartidário em relação
à questão, aprova um artigo, em suas disposições transitórias, especificamente relativo à
questão do Timor (Constituição de 25 de abril de 1976):
Artigo 307:
1.Portugal continua vinculado às responsabilidades que lhe incumbem, de harmonia
com o Direito Internacional, de promover e garantir o direito à independência de
Timor Leste
51
2. Compete ao Presidente da República, assistido pelo Conselho da Revolução, e ao
Governo práticar todos os actos necessários à realização dos objectivos expressos
no número anterior (Portugal, 1976)
Passados os momentos de maior angústia em relação a sua saída do Timor Leste, os
portugueses voltam-se para a consolidação de sua situação política interna, preocupando-se
em garantir a sua própria estabilidade abalada pelo turbulento período que se seguiu ao 25 de
abril de 1974. Além disso, vale lembrar que a questão do Timor estava devidamente
encaminhada, pela diplomacia portuguesa, junto à ONU.
Os portugueses procuravam agora uma nova identidade após anos de isolamento
causado pelo salazarismo. A partir de 1977, a política externa portuguesa afasta-se de sua
vocação africana, resiste às tentações terceiro-mundistas e faz uma “opção européia”, que
passa a ser o principal vetor de sua reinserção internacional (CUNHA, 2001, P.40). Por que
1977? Convém lembrar que foi o ano em que Portugal solicitou sua adesão à Comunidade
Econômica Européia.
A questão do Timor agora deveria ser resolvida pelo tempo. O apoio nas Nações
Unidas diminuía a cada ano e o reconhecimento da situação “de fato” (anexação indonésia)
era uma tendência natural. Entretanto, no seio das Nações Unidas, havia um fato
extremamente embaraçoso para Portugal como potência administrante do Timor, assim
considerada juridicamente. Portugal ainda possuía a obrigação formal de prestar informações
anuais sobre seu território “não-autônomo”, de acordo com a prescrição contida no artigo 73
da Carta das Nações Unidas:
Como se não bastasse, a Indonésia, além de prestar tais informações ao Secretariado,
procurava enfatizar os avanços de sua curta administração em contraste com os quatro séculos
de administração portuguesa. O embaraço para os portugueses era natural.
Em 1981, subitamente, um fato traz a questão timorense novamente à consideração
dos portugueses. Um documentário sobre o Timor, apresentado pela televisão estatal Rádio
52
Televisão Portuguesa (RTP), provoca um novo surto de interesse pelo assunto. As discussões
sobre o tema, fortemente alimentadas pela imprensa e pela oposição, adquirem um caráter de
julgamento da Revolução dos Cravos, apresentando o problema como o símbolo do fracasso
do processo de descolonização e colocando no banco dos réus o Presidente da República e o
Movimento da Forças Armadas (MFA). Esse evento foi fundamental por dar ao tema uma
grande visibilidade interna em função do debate que gerou. Paralelamente, deu ensejo a um
novo tipo de abordagem da questão pela diplomacia portuguesa que, percebendo a diminuição
do apoio internacional à causa timorense, pela diminuição das margens de aprovação das
Resoluções da Assembléia Geral da ONU condenatórias à Indonésia, veio negociar a tempo a
Resolução 37/30, de 23 de novembro de 1982. Essa Resolução conferia ao Secretário Geral o
mandato de desenvolver os bons ofícios para a busca de uma solução para o problema,
privilegiando as conversações bilaterais entre Portugal e Indonésia. “Evitou-se, assim, o risco
de uma derrota na votação de uma Resolução posterior, que teria tido a conseqüência de
encerrar definitivamente a questão do Timor Leste no plano internacional” (NEVES, 2000,
p.42).
Dessa maneira, a diplomacia portuguesa levou o problema para um foro mais restrito,
no qual acreditava ser mais fácil encontrar uma solução para a questão. Removido da
Assembléia Geral, o tema passou ao Secretário Geral que deveria explorar vias de solução em
consultas com as partes diretamente envolvidas.
A atitude da chancelaria portuguesa marcou uma quebra da inércia por parte de
Portugal, mas ainda não demonstrava um verdadeiro empenho em apoio à resistência
timorense. A esse respeito, comenta Ramos Horta: “De 1983 a 1986, a diplomacia portuguesa
parecia ter-se esquecido da questão do Timor Leste. O mandato do Secretário Geral parecia
servir para mutismo e marasmo[...]” (1994, p.274)
53
Os comentários de Ramos Horta não se fazem sem razão. Portugal estava muito mais
preocupado em encontrar uma saída honrosa para si, do que realmente apoiar a causa
timorense. O grande problema é que uma saída honrosa passava pela consagração da
integração do Timor Leste na Indonésia, conforme comentou Cunha:
As negociações caminhavam para uma solução que, consagrando a integração de
Timor Leste na Indonésia, possibilitaria a Portugal livrar-se da questão com
dignidade. As eleições gerais na Indonésia, previstas para abril de 1987, seriam o
instrumento a ser utilizado para embutir a questão do referendo. A participação
timorense no processo eleitoral indonésio seria aceita por Portugal como equivalente
ao exercício do direito de autodeterminação (2001, p.43).
As negociações entre Portugal e Indonésia teriam sido concluídas não fosse por um
fato extremamente curioso. Ao final de 1985, Dom Ximenes Belo, administrador apostólico
da Diocese de Dili, após uma viagem ao Vaticano, resolve passar por Portugal e procura
Mário Soares, então candidato à presidência da República. Em seu relato ao futuro presidente,
Ximenes Belo teria denunciado as constantes violações dos direitos humanos dos timorenses,
cometidas pelos ocupantes indonésios, fato esse que muito teria impressionado Mário Soares.
Ao assumir a Presidência da República, em março de 1986, Mário Soares, já em seu
discurso de posse, manifestou a disposição de “lutar pelo direito imprescritível do povo do
Timor Leste à autodeterminação e independência”. Utilizando-se de suas prerrogativas como
Presidente da República, Mário Soares ordenou o reexame do acordo que se processava com a
Indonésia sob os auspícios da Resolução 37/30 e desaprovou a sua finalização. Passou a
exigir, no processo eleitoral indonésio, uma consulta explícita aos timorenses a respeito da
integração do território do Timor Leste àquele país (Indonésia).
A mudança de orientação da delegação portuguesa e o conseqüente retrocesso das
negociações acabaram por paralisar o diálogo entre os dois países.
A vontade e o empenho de Mário Soares, a partir de 1986, foram os responsáveis pela
inclusão da questão timorense, de forma definitiva, na agenda da política externa portuguesa.
54
Entre 1982 e 1986, a relevância dada ao tema, pelos portugueses, teve uma natureza
eminentemente doméstica. A oposição ao governo de Ramalho Eanes utilizou o tema como
uma forma de atacar o governo, responsabilizando o Movimento das Forças Armadas pelo
fracasso da descolonização.
Em contrapartida, as ações do governo, tanto internas quanto externas, tinham por
objetivo amealhar essas pressões e procurar uma saída honrosa para o problema, desde que
não ofendesse a dignidade do povo português, praticamente expulso do Timor Leste em 1975.
Mais importante do que atacar a essência da questão (a autodeterminação do povo timorense)
era procurar uma saída juridicamente acertada que apagasse da memória da comunidade
internacional a humilhação sofrida por Portugal ao abandonar o Timor Leste à sua própria
sorte. Tal saída passava, necessariamente, pela inclusão de Portugal no processo de
negociações, ainda que o seu resultado visasse ao reconhecimento da situação de fato, que era
o da anexação do território à Indonésia.
Em suma, faltava para Portugal um desfecho satisfatório para a questão da
descolonização. O Timor Leste era uma ferida remanescente que não havia cicatrizado.
Como já foi referido anteriormente, o ano de 1986 foi decisivo, marcando a real
inclusão da questão timorense na agenda da política externa portuguesa. Nesse mesmo ano,
Portugal ingressa na Comunidade Econômica Européia e dá sinais de querer desempenhar um
papel mais ativo no cenário internacional. O “projeto europeu” foi uma guinada na política
externa portuguesa que desejava se desfazer da imagem de primo pobre da Europa e recuperar
os anos perdidos pelo isolacionismo salazarista.
A partir de então, a estratégia desenvolvida para se lidar com a questão timorense foi a
de combinar o diálogo bilateral, que já vinha sendo feito, com a busca de elementos de
pressão internacional sobre Jacarta. A pressão internacional sobre Jacarta fez-se bastante
contundente com a introdução do tema em instâncias comunitárias, o que culminou com o
55
questionamento das relações CEE-ASEAN (Comunidade Econômica Européia e Association
of South-East Asian Nations respectivamente) no campo econômico comercial,
condicionando as relações comerciais ao respeito indonésio pelos direitos humanos do Timor.
Outra estratégia foi a denúncia enérgica do Tratado assinado entre a Indonésia e a Austrália
em relação à exploração de petróleo, no chamado “Timor Gap” (espaço marítimo situado
entre o Timor Leste e a Austrália com grande concentração de petróleo). Os portugueses,
ainda na condição jurídica de potência administrante do território do Timor Leste,
consideraram a assinatura do tratado como um reconhecimento tácito da Austrália à soberania
indonésia sobre o território.
Ainda em 1986, a chegada de refugiados timorenses a Portugal muito sensibilizou a
opinião pública. Mais tarde, as invasões de embaixadas estrangeiras em Jacarta, realizadas por
jovens timorenses que pediam asilo político, além de terem enorme impacto na mídia
mundial, colocavam Portugal na obrigação moral de acolhimento.
Todos esses episódios contribuíram para o incremento do debate em relação ao
problema que foi elevado de uma questão de chancelaria para uma questão de toda a
sociedade portuguesa.
Contudo, haveria um fato que marcaria de vez a transformação da questão do Timor
Leste em causa verdadeiramente nacional: o “massacre de Santa Cruz” em 1991.
A chancelaria portuguesa já vinha denunciando a questão dos direitos humanos no
Timor, na Comissão de Direitos Humanos da ONU, inclusive com a aprovação de resoluções
condenatórias à Indonésia. A iniciativa portuguesa passou a contar com o apoio de
respeitáveis organizações não-governamentais, como a Anistia Internacional. Portugal soube
aproveitar a relevância ascendente que a questão dos direitos humanos ganhou após a
desestruturação do regime soviético e o conseqüente fim da Guerra Fria.
56
Nesse contexto, planejou-se uma visita de parlamentares portugueses à Indonésia e ao
Timor Leste. A idéia não era nova e remontava a 1983, época em que “Portugal queria ver-se
livre do problema de Timor Leste o mais elegantemente possível” (RAMOS HORTA, 1994,
p. 276). A viagem caiu no esquecimento e veio a figurar novamente na agenda da política
externa portuguesa em 1987. O clima de desconfiança era mútuo, os resultados da visita
imprevisíveis e as negociações arrastaram-se por anos. Basicamente, Portugal temia que a
visita fosse interpretada como um reconhecimento tácito da ocupação indonésia (CUNHA,
2001). Em contrapartida, a Indonésia temia a realização de manifestações e protestos como já
ocorrera com a visita do Papa a Dili, em 1989.
Temerosos dos resultados que a visita poderia causar, as duas delegações acertaram os
seus pormenores: roteiros, pauta das discussões, composição da delegação portuguesa,
presença de repórteres, vistos e contato dos parlamentares com a população do Timor.
Faltando uma semana para a data acordada, que seria em 4 de novembro de 1991, a visita foi
cancelada. Cunha (2001, p.48) assim se refere ao cancelamento:
O motivo imediato do cancelamento foi o veto indonésio a alguns jornalistas
indicados por Portugal, entre os quais a australiana Jill Jolliffe, então presidente da
Associação dos Jornalistas Estrangeiros em Lisboa e considerada uma especialista
na questão de Timor Leste.Em 26 de outubro de 1991, o presidente da Assembléia
da República declarou que, enquanto se mantivesse o veto indonésio, a missão não
se realizaria.
O cancelamento da visita frustrou os timorenses e provocou algumas manifestações em
Dili. Um estudante timorense, Sebastião Gomes, envolvido na organização de protestos que
se realizariam diante da missão parlamentar, foi morto por tropas indonésias enquanto
refugiava-se na Igreja de Motael, em Dili. O clima ficou tenso. O seu enterro é marcado para
o dia 12 de novembro de 1991, no Cemitério de Santa Cruz. Por ocasião do enterro, o
comparecimento de centenas de pessoas foi interpretado, pelas tropas indonésias, como um
ato de rebeldia e desafio à sua autoridade e acabaram abrindo fogo contra as pessoas que ali se
57
encontravam. “Segundo as fontes oficiais, 271 timorenses foram mortos, 382 ficaram feridos
e 250 desaparecidos (presumivelmente mortos pelas forças militares da Indonésia)”
(CAMARGO, 2001, p.149). Para a infelicidade dos indonésios, havia um grupo de jornalistas
estrangeiros no local e a transmissão das imagens do massacre causou comoção mundial e,
em especial, em Portugal. Os timorenses feridos, ao solo, rezavam em português e isso teve
um enorme impacto na opinião pública daquele país. As reações internacionais tamm foram
imediatas e a ONU acabou por elaborar dez resoluções condenando a ocupação indonésia no
Timor Leste ( CAMARGO, 2001, p.149)
O massacre de Santa Cruz foi imediatamente aproveitado pela diplomacia portuguesa que
acabou esforçando-se, ao máximo, para dar ao mundo a maior visibilidade possível a respeito
da questão do Timor. Só para se ter uma idéia, o acordo CEE-ASEAN foi bloqueado naquele
ano por conta das violações dos direitos humanos no Timor Leste. Ao término de 1992,
Portugal também se empenha para influenciar no julgamento do líder guerrilheiro Xanana
Gusmão, capturado em novembro daquele ano. Os portugueses alegavam que em virtude da
situação jurídica do território que reconhecia Portugal como potência administrante, e a
Indonésia como ocupante ilegal, Xanana Gusmão deveria ser julgado de acordo com as
normas do Direito Internacional Humanitário e não de acordo com as leis penais indonésias.
Em suma, o ano de 1991 foi extremamente importante para a política externa
portuguesa em relação à questão do Timor. Ele marca uma mudança de foco dos portugueses,
que abandonam um pouco o tema da autodeterminação e da independência e inserem a
questão dos direitos humanos com toda a intensidade, aproveitando a tendência de
valorização mundial que esse tema ganhava no início dos anos 90.
Quando o massacre de Santa Cruz parecia cair no esquecimento mundial, outro
importante evento foi aproveitado pela diplomacia portuguesa como uma vitória sua: a
concessão do Prêmio Nobel da Paz a duas importantes figuras do cenário timorense, o Bispo
58
Ximenes Belo e o Senhor José Ramos Horta, atual ministro das Relações Exteriores do Timor
Leste. Para Cunha, os portugueses interpretaram essa concessão como um reconhecimento do
empenho de sua diplomacia e da legitimidade de suas posições (2001, p.51).
O coroamento dos esforços da diplomacia portuguesa em ver solucionada a questão do
Timor, ocorreu em 5 de maio de 1999, com a assinatura dos Acordos de Nova York. Os
Acordos de Nova York foram acordos tripartites assinados entre Portugal, Indonésia e a
Organização das Nações Unidas para a verificação do desejo da população timorense em se
emancipar da Indonésia, tornando-se independente, ou manter uma autonomia especial em
relação àquele país. Esse acordo será mais bem esmiuçado quando abordarmos a ONU como
ator envolvido na questão. Entretanto, é importante ressaltar que Portugal, mais uma vez,
soube tirar proveito de uma situação especial, que era o difícil momento político vivido pela
Indonésia em 1998, em virtude da crise econômica pela qual passava e da democratização do
país.
2.1.3 Conclusão para Portugal como ator
As relações entre o Timor Leste e Portugal iniciaram-se, prioritariamente, pela vertente
religiosa. Esse fato não se deu sem razão, uma vez que a ilha do Timor não possuía nenhum
tipo de riqueza que lhe tornasse peculiar.
A falta de uma especiaria exclusiva, associada à ausência de vocação marítima do
povo timorense, originou o predomínio de uma ocupação mais religiosa do que econômica.
Essa ocupação religiosa, ao longo do tempo, tornou-se efetiva e trouxe as suas conseqüências
próprias: uma insignificante evolução política e econômica e um forte traço de coesão interna
e identificação externa.
59
Ambos os fatores são fundamentais para a compreensão do passado recente do Timor
Leste. O fator religião será mais bem explicado quando abordarmos o ator Indonésia,
Entretanto, o fator político e econômico tem relação direta com os rumos que o processo de
descolonização português tomou no Timor Leste.
A falta de interesses econômicos portugueses no Timor levou a uma administração
medíocre do território, onde se procurou privilegiar a manutenção dos poderes políticos locais
em troca do reconhecimento da autoridade portuguesa.
Essa relação pouco dinâmica fez com que o Timor Leste se transformasse na colônia
portuguesa (ou província ultramarina) mais atrasada, não se desenvolvendo, aí, qualquer sinal
de crescimento. Foi justamente essa falta de maturidade política e econômica que veio a
prejudicar o povo timorense no processo de descolonização português.
A Revolução dos Cravos, em 1974, fez com que o processo de descolonização
português se desse de maneira abrupta, em meio ao caos político no próprio seio de Portugal.
Nesse contexto, o Timor Leste torna-se a sua última prioridade, uma vez que o maior
interesse na questão passa a ser o de conduzir o processo de maneira legal, de forma a
salvaguardar a dignidade do antigo “Império Português”.
A incapacidade portuguesa em conduzir a bom termo o processo de descolonização no
Timor, não deixou maiores opções. A concessão imediata da independência ficou fora de
cogitação. A opção lógica passou a ser a aceitação da anexação do Timor pela Indonésia,
desde que respeitado o direito à autodeterminação do povo timorense, o que, em última
análise, se constituiria em uma saída honrosa para os portugueses.
Em meio à paralisia portuguesa e a sua incapacidade em conduzir o processo, ocorre
uma breve guerra civil. A conseqüência imediata dessa guerra é um “vácuo de poder”,
rapidamente aproveitado pelos indonésios, os quais contavam com o suporte político velado
da Austrália e dos Estados Unidos, fortemente fragilizados com o desfecho da Guerra do
60
Vietnã. O medo de um entreposto comunista entre o Pacífico e o Índico levou à anexação do
território do Timor Leste pela Indonésia.
Após a anexação à Indonésia, em 1976, podem ser salientadas três fases distintas da
diplomacia portuguesa em relação à questão: 1) internacionalização do problema e descaso
(até 1981); 2) utilização do caso como meio de confrontação política interna, provocando uma
primeira revisão crítica do processo de descolonização português desencadeado pela
Revolução dos Cravos (de 1982 até 1986) e, por fim, 3) transformação da questão na bandeira
da diplomacia portuguesa para dar maior visibilidade política a Portugal que queria livrar-se
do estigma do isolacionismo salazarista e priorizar uma “agenda européia” para a sua política
externa (de 1986 em diante).
Durante os três períodos, o interesse que a questão suscitava teve avanços e recuos no
seio da política externa portuguesa, entretanto, um fato é inegável: a sobrevivência da questão
na agenda internacional. Esse talvez tenha sido o maior mérito dos portugueses que sempre
souberam perceber os distintos cenários políticos ao longo do tempo, agindo coerentemente a
cada mudança, conforme descrição a seguir.
Em 1982, transferindo a questão aos cuidados do Secretário Geral da ONU, retirando o
tema da Assembléia Geral que, paulatinamente, corroia seu apoio à causa timorense e fadava
a questão à morte. Em 1986, com a radical mudança de atitude do governo de Mário Soares,
no sentido oposto ao do reconhecimento formal da anexação indonésia, procurando
desempenhar um papel (rumo a Europa) mais ativo e menos subserviente no cenário
internacional. Em 1991, com a exploração na mídia do “Massacre de Santa Cruz” e a
mudança de abordagem do tema, passando de uma questão de autodeterminação para uma
questão de direitos humanos. Em 1996, ao considerar a concessão do Nobel da Paz a dois
cidadãos timorenses como uma vitória da diplomacia portuguesa. Por fim, em 1999,
aproveitando a capitulação econômica e as transformações políticas internas indonésias para,
61
juntamente com a ONU, propor os acordos de 5 de maio, que abririam caminho à
concretização do direito do povo timorense à autodeterminação.
Em todos esses anos, Portugal foi a voz do Timor Leste na comunidade internacional,
oscilando sua posição política em torno de um único eixo: obter uma saída honrosa para o
problema que era considerado uma ferida não cicatrizada.
Desde a consideração da hipótese de aceitação formal da anexação indonésia à postura
mais agressiva, que aproveitou o problema para promover a imagem do país no exterior,
houve um denominador comum: a busca de uma saída que enterrasse todo o processo de
descolonização português. Um país que havia sido, ao lado da Espanha, a maior potência
marítima do planeta, não poderia encerrar um ciclo histórico da maneira humilhante como
ocorrera no Timor em 1975.
2.2. A Indonésia como ator
“Um Estado à procura de uma Nação”. O Embaixador Luiz Fernando do Couto
Nazareth, que chefiou a missão diplomática do Brasil em Jacarta entre 1988 e 1993, assim
definiu a Indonésia a seu colega de profissão, o Embaixador João Solano Carneiro da Cunha
(CUNHA, 2001, p.47). Trata-se de uma frase que muito bem define o espírito desse país, em
virtude da grande diversidade étnica, lingüística e cultural dos povos que o compõem.
De fato, a diversidade é a grande característica desse país. Arquipélago mais extenso
do mundo, a Indonésia possui mais de 17.500 ilhas, conta com uma população de 217 milhões
de habitantes, sendo o quinto país mais populoso do mundo, além de abrigar centenas de
grupos étnicos que falam mais de 500 línguas e dialetos (Almanaque Abril, 2003). A imensa
maioria de sua população é muçulmana, mas há importantes minorias cristãs nas Molucas e
62
hinduístas em Bali. A diversidade é algo tão marcante na Indonésia que seu lema, contido no
Brasão da República, é “Unidade na Diversidade”.
Uma diversidade tão grande em um arquipélago tão espalhado só se justifica sob um
aspecto: a colonização holandesa. De fato, o único elo comum entre os milhares de ilhas do
arquipélago é o fato de ter havido um mesmo colonizador. Henry Kissinger, citado por Ramos
Horta, assim define a situação: “A coleção de ilhas chamada Indonésia só tem significado no
contexto da história da colonização holandesa; as suas fronteiras seguem as fronteiras do
império, assim como a sua consciência nacional” (Kissinger
4
, apud Ramos Horta, op.cit.,
p.128).
2.2.1 Os anos após a independência e o regime Suharto
Muito embora o tema central desta dissertação não seja a evolução histórica da
Indonésia, o seu breve estudo faz-se fundamental para que melhor se compreenda a relação
desse país com a questão do Timor Leste, em especial, a organização política indonésia após a
ascensão do Presidente Suharto ao poder. É o que será apresentado a seguir.
O território indonésio foi dominado pela Índia no início da era cristã, sendo islamizado
a partir do século XV, por mercadores hindus convertidos ao islã pelos persas. No século
XVI, os portugueses estabelecem aí entrepostos comerciais e, no século XVII, torna-se
holandesa sob o nome de Índias Orientais Holandesas. Desde essa época até o final da II
Guerra Mundial, o território manteve-se sob o domínio holandês.
Durante a II Guerra Mundial o território é invadido pelos japoneses em 1942. Em 17
de agosto de 1945, três dias após a rendição japonesa, nacionalistas proclamam a
independência sob a liderança de Sukarno.
4
Kissinger,Henry. Nuclear Weapons and Foreign Policy
63
Os primeiros anos após a independência da República Indonésia foram anos de
instabilidade política e decadência econômica, em que uma instituição, em virtude de sua
hierarquização e organização, veio a crescer em importância no cenário político emergente: o
Exército. O grande prestígio do Exército tem suas raízes nos quatro anos de luta contra o
domínio colonial holandês, logo após a II Guerra Mundial.
Uma vez independente, o país é organizado em estados com alto grau de autonomia.
Entretanto, em 1950, Sukarno dissolve a Federação e centraliza o poder, inaugurando o
período da “Democracia Dirigida”.
Em 1955, o país ganha destaque no cenário político mundial por ser um dos
fundadores do Movimento dos países não-alinhados.
Em 1957, Sukarno decreta estado de sítio, dando fim ao período da Democracia
Dirigida e passa a concentrar em suas mãos o controle do país.
A década de 60 marca um período de instabilidade para os indonésios, com altas taxas
de inflação e denúncias de corrupção no governo. Em 1965, a tentativa de um golpe militar é
sufocada pela ala das Forças Armadas sob o comando do General Suharto. O país é, então,
abalado por uma onda de violência contra os comunistas cujo saldo é a morte de milhares de
pessoas (as estimativas variam de 300 mil a 1 milhão de pessoas, não há precisão). Com o
golpe debelado, o Partido Comunista Indonésio (Partai Komunis Indonésia -PKI) é banido do
cenário político indonésio. Inaugura-se uma outra fase na política indonésia que vem a ser
conhecida como “Nova Ordem”.
De acordo com Cunha (2001), as principais características da Nova Ordem são as
seguintes: manutenção da Constituição de 1945 que afirmava os princípios da unidade
indonésia; concentração de poderes para o controle do Estado nas mãos do Presidente
Suharto, eleito pela Assembléia Consultiva Popular para sucessivos mandatos de cinco anos
(1973, 1978, 1983, 1988 e 1993); consolidação, como a mais importante agremiação política
64
de apoio ao governo, do “Sekber Golkar” (Sekretariat Bersama Golongan Karya –
Secretariado Conjunto dos Grupos Funcionais), fundado pelo Exército em 1964; fusão dos
partidos políticos da Velha Ordem, por pressão do governo em 1973, sujeitando-os a uma
série de restrições que não se aplicam ao Golkar, por este não ser considerado um partido
político; proeminência das Forças Armadas, cuja atuação estendeu-se ao Legislativo e a todos
os setores da administração direta e indireta, caracterizando o que ficou conhecido como
“dupla função” (defesa e política); aumento da importância da comunidade islâmica; rápida
expansão da economia que teve extraordinários índices de crescimento (8,2% em 1985) e ,
por fim, um alto grau de corrupção, mormente na elite palaciana presidencial e entre militares,
burocratas e empresários de origem chinesa.
Esse é o quadro geral de como se compunham as forças políticas indonésias por
ocasião do regime de Suharto. Cabe ressaltar que, ao término dos anos 90, período que
coincide com o fim da era Suharto, outras forças começam a despontar no ambiente político
indonésio. Uma nova classe média, fruto da própria modernização e do crescimento
econômico do país, começa a demonstrar o desejo de independência em relação à tutela do
regime. A essa nova classe média associaram-se outras forças de oposição mais dispersas, tais
como: ativistas dos direitos humanos, sindicalistas e estudantes. Essas forças, impulsionadas
pela Crise Econômica Asiática em 1997, foram as grandes responsáveis pela queda do regime
de Suharto em 1998. Esse fato teve enorme importância na questão do Timor Leste, pois
marcou o enfraquecimento de um regime político que, em tudo, foi prejudicial aos timorenses.
Sob o comando do militarizado regime de Suharto, o Timor Leste foi anexado, dominado e
violentado por 24 anos.
65
2.2.2 A anexação do Timor Leste
Os primeiros anos após a independência indonésia foram marcados por diversas
revoltas regionais de cunho étnico e religioso e acabaram consumindo grande parte do tempo
da “Velha Ordem”. Essas revoltas, em grande parte, deram origem à formação do ideal de
“unidade nacional”, tão presente na política indonésia. Em um país tão artificialmente
constituído, era lícito supor o surgimento de inúmeras revoltas de cunho separatista. O novo
governo dissipava as verdadeiras razões do problema afirmando que este tinha suas causas em
conspirações neocolonialistas ou imperialistas norte-americanas.
Em relação à questão do Timor, até 1974, a Indonésia nunca chegou a demonstrar
qualquer desconforto com a presença portuguesa, chegando a alegar que não possuía
pretensões sobre o território timorense do Leste, uma vez que o mesmo não derivava da
origem holandesa. Isso serviu de justificativa para a legitimação de seus anseios
expansionistas sobre a Guiné Ocidental (Irian Jaya), justamente pelo raciocínio oposto, uma
vez que aquele território havia sido colonizado pelos holandeses.
Essa situação perdurou após o estabelecimento da Nova Ordem em 1965. Os
problemas internos enfrentados com a mudança de regime eram suficientes para manter o
Timor Leste fora de qualquer pauta de preocupações. Como se não bastasse, o alinhamento do
regime de Suharto com o regime de Marcelo Caetano em Portugal, ambos de orientação
anticomunista, suscitava uma convergência de posições e apoio mútuos.
A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, mudou radicalmente a percepção
indonésia em relação ao Timor. Dois aspectos eram preocupantes. A tendência esquerdista do
novo poder em Lisboa e a idéia desse país de concessão de independência às suas províncias
de ultramar.
66
A simples presença de um vizinho pequeno, independente e inclinado à esquerda, era
um pesadelo na mente dos indonésios que julgavam catastrófica a influência que essa
presença poderia ter sobre outros movimentos de emancipação. “Subitamente, Timor Leste
galga vários degraus na escala de prioridades de setores governamentais indonésios”
(CUNHA, 2001, p.73).
A primeira atitude de Jacarta foi de cautela. Em junho de 1974, os indonésios recebem
a visita de um representante da ASDT, partido timorense pró-independência. Seu
representante era José Ramos Horta que aí se encontrava para sondar o pensamento político
do poderoso vizinho em relação à questão. A essa altura, os militares, já devidamente
enfronhados na política, faziam a sua avaliação da situação. A independência do Timor era
perigosa na medida em que representava um triplo risco. O primeiro risco era o de atrair a
metade indonésia da ilha do Timor à causa dos independentistas do Leste. O segundo risco era
o de potencializar tendências separatistas em outras regiões periféricas do arquipélago, como
de fato já havia ocorrido em Celebes, Molucas do Sul e Aceh. O terceiro risco era o da
instalação de um governo de tendências comunistas. Esse era o mais grave dos riscos, na
medida em que provocaria desarmonia política na região pela transferência do conflito, que se
havia travado no Vietnã, para o arquipélago indonésio.
A conclusão dos militares indonésios foi óbvia: a integração do Timor Leste à
Indonésia era a única opção viável para o problema. Dois fatos ajudaram a reforçar esse
pensamento em 1974. Em setembro, a Revolução dos Cravos assume sua tendência mais à
esquerda com a queda de Spínola e, no Timor Leste, a ASDT radicaliza seu movimento
transformando-se em Fretelin.
Diante dos fatos, não restaram muitas opções aos “preocupados” militares indonésios
que desenvolveram um plano de ação destinado a assegurar a consecução da opção pela
integração. Esse plano foi denominado “Operação Komodo”. Segundo Cunha (2001, p.75):
67
Apesar do caráter secreto da Operação Komodo, informações sobre sua
implementação foram colhidas e divulgadas por algumas fontes, entre as quais se
destacam: a jornalista australiana Jill jolliffe, que passou vários meses em Timor e
que acompanhou o dia a dia dos acontecimentos em 1975, tendo entrevistado seus
principais atores; José Martins, líder do Partido Kota, cooptado pela Bakin (serviço
secreto indonésio) e que denunciou as ações dos serviços secretos indonésios, em
relatório (affidavit) ao secretário geral das Nações Unidas, em março de 1976;
James Dunn, diplomata australiano, cônsul em Timor de 1962 a 1964 e que esteve
em Timor Leste em junho/julho de 1974, integrando uma missão de avaliação da
chancelaria de seu país, e em outubro/novembro de 1975, chefiando a equipe do
Australian Council for Overseas Aid, de ajuda de emergência após a guerra civil
timorense. Outra fonte importante é Documents on Austrália Defense and Foreign
Policy (1975 a 1978), de Walsh, R. e Munster, G.J., publicado em Sidney, em 1980,
e retirado de circulação por ordem judicial. Embora os autores não tenham tido
acesso direto a essa fonte, os documentos relacionados com a questão de Timor
Leste são citados e reproduzidos por vários estudiosos do tema.
Outros autores também se referem à Operação Komodo. É o caso de James Dunn
(1994), colunista australiano de Relações Internacionais e cônsul australiano no Timor Leste
antes de 1975, que assim se expressa a respeito em seu artigo “The Darkest Page”, de 1994,
obtido na Internet:
[...]The plotters, however, were not insensitive to possible international
complications. Their planning was based on a calculated assumption that East
Timor’s annexation would not be challenged by the international community – if it
were accommodated by Australia and the US. As events unfolded it turned out to be
a shrewd calculation. At the end of 1974 a covert intelligence operation code-named
Operasi Komodo (after the large lizard that lives on the island of Alor), with the aim
of neutralizing the Timorese independence movement, was set up in Jakarta.
Exploiting a weakened Portuguese administration, in 1975 demoralized by a deep
political crisis in Lisbon, Indonesian agents were to succeed in creating divisions,
distrust and eventually conflict between the major Timorese political parties, Fretilin
and UDT, both of which favoured independence. In August a brief civil war
resulted, with Fretilin quickly overpowering its opponents and emerging as a kind of
de facto administration of East Timor, the Portuguese having withdrawn to the
offshore island of Atauro..
John Pilger, repórter australiano que cobriu o Massacre de Santa Cruz, escreveu o
seguinte trecho em um artigo intitulado “East Timor, a land of crosses”:
In October of that year (1974) a clutch of generals close to Suharto launched a secret
intelligence operation, code-named Operasi Komodo, aimed at destroying the
burgeoning independence movement. A coalition formed by Fretilin and the UDT
was undermined by Indonesian provocateurs and collaborators, leading to a civil war
that claimed some 1,500 lives. By September 1975 Indonesian special forces had
infiltrated the country; and their discovery by t. wo Australian television crews, near
the town of Balibo, resulted in the murder of the six newsmen
68
2.2.3 A Operação Komodo
A Operação Komodo tinha duas vertentes de atuação: uma diplomática, que procurava
garantir aos indonésios um mínimo de dano à sua imagem no caso de uma possível anexação
pela força, e outra no interior do Timor Leste, baseada em operações de inteligência militar,
cujo objetivo era o de fomentar as rivalidades internas a fim de justificar uma futura ação
armada.
No campo diplomático, a principal preocupação indonésia era a de ter certeza de que a
condenação a uma anexação não seria mais do que retórica. Os principais atores a serem
cooptados eram os Estados Unidos (maior fornecedor de armas aos indonésios à época, além
de grandes investidores no setor energético), a Austrália (vizinho de maior peso geopolítico e
aliado dos Estados Unidos) e Portugal (país que exercia soberania no Timor Leste)
De acordo com Pilger (1994), em setembro de 1974, Suharto recebeu, em Java, o
Primeiro Ministro Australiano, Gough Whitlam. Ambos concordaram que o melhor e mais
realista futuro para o Timor seria a associação com a Indonésia, e Whitlam, citado por Pilger,
teria acrescentado: “um Timor Independente seria um estado inviável e uma ameaça potencial
para a área”. Essa convergência de opiniões entre Jacarta e Camberra foi um duro golpe para
os timorenses da Fretelin que esperavam uma posição divergente do governo trabalhista
australiano, um dos primeiros a reconhecer a independência de Guiné-Bissau do julgo
português.
Como os indonésios não desconsideraram o fato de Portugal ainda exercer soberania
sobre o território timorense, enviaram uma missão diplomática a Portugal. Em outubro de
1974, o chefe da Unidade de Operações Especiais (OPSUS) do Serviço de Inteligência
indonésio (Bakin), Ali Murtopo, pessoalmente, compareceu a Portugal para conduzir
negociações diplomáticas com esse País. O resultado da visita foi a congruência de opiniões
69
em relação ao Timor Leste: a opção pela independência do Timor era inviável. O único ponto
de divergência era a insistência portuguesa de que a anexação indonésia fosse fruto da livre
opção do povo timorense e não de uma imposição.
Tendo sondado a opinião de dois atores fundamentais para a questão (Austrália e
Portugal), a Indonésia dá “sinal verde” para a execução da Operação Komodo a partir de
outubro de 1974 (Cunha, 2001 e Pilger, 1994)
Ali Murtopo retornou à Jacarta convencido de que os objetivos da Operação Komodo
poderiam ser atingidos de forma pacífica, desde que o ambiente político interno no Timor
Leste favorecesse a opção integracionista.
A partir desse instante, as duas vertentes da Komodo apresentaram-se de forma mais
explícita. A diplomática, com a busca incessante do apoio americano e australiano, e a das
operações de inteligência dentro do território timorense.
Já foram mencionados os contatos feitos com a Austrália e Portugal, no entanto, resta o
papel dos Estados Unidos na questão. A ação americana em relação ao caso do Timor foi
mais dissimulada. O País encontrava-se traumatizado pelo trágico fim da Guerra do Vietnã e
o envolvimento direto com uma questão remanescente da “descolonização” não se
apresentava como ideal. Os Estados Unidos terão capítulo à parte nesta dissertação, porém
algumas colocações da sua relação com a Indonésia são importantes.
Em 1975, a Indonésia era o país que concentrava os maiores investimentos americanos
em energia e matérias primas (Burr e Evans, 2001), além de ser grande beneficiária da
assistência militar daquele país. A Indonésia também se destacava por ser exportadora de
petróleo e por possuir uma posição geográfica estrategicamente localizada, próxima a vitais
linhas marítimas, controlando, em suas águas, o acesso do Pacífico para o Índico. O fim da
Guerra do Vietnã havia abalado a confiança dos americanos e fazia crescer os temores acerca
dos efeitos da Teoria do Dominó. Cientes do papel que a Indonésia representava na região,
70
por possuir um governo de orientação anticomunista, os Estados Unidos apoiaram,
veladamente, a anexação do Timor Leste por temerem que esse pequeno território se tornasse
um entreposto comunista. Em 1975, uma visita realizada à Jacarta, pelo Presidente Gerald
Ford e seu Secretário de Estado, Henry Kissinger, reforça as suspeitas do endosso à ação
indonésia, por ter sido realizada na véspera da anexação do Timor Leste.
A recente “desclassificação” de documentos secretos a respeito do tema demonstra, de
forma inequívoca, as ligações e o apoio de Washington à Jacarta, conforme será explorado no
subcapítulo dos Estados Unidos como ator.
Ao perceberem os sinais positivos dos principais atores envolvidos na questão, os
indonésios sentiram-se suficientemente seguros para pôr em curso a Operação Komodo em
território timorense. Inicialmente, sua principal estratégia foi dar suporte ao Partido
Integracionista (Apodeti) por intermédio de ações desenvolvidas pela Bakin. A Bakin contava
com o grande apoio de dois personagens importantes: o cônsul indonésio em Dili, Elias
Tomodok, e o governador do Timor indonésio, El Tari. Ambos mantinham a chefia da Bakin
informada e atuavam de forma a preservar os interesses indonésios no processo de anexação
(Cunha, 2001). As informações produzidas revelaram um excesso de otimismo por parte
desses agentes e levaram os indonésios a uma avaliação errônea sobre o apoio timorense à
integração. “As informações produzidas pelo cônsul em Dili aparentemente pecaram por
excesso de otimismo quanto à aceitação, pela sociedade timorense, da opção integracionista,
levando os mentores da operação a sobreavaliar o poder de penetração da Apodeti na
sociedade local” (Dunn, 1983, p.107).
À medida que perceberam o esvaziamento do pensamento integracionista, pelo fraco
apoio da população à Apodeti, a UDT e a Fretelin se coligaram em uma frente, em janeiro de
1975. A coligação contou com o predomínio da corrente independentista capitaneada pela
Fretelin, o que acabou por excluir, por completo, a Apodeti do processo de descolonização
71
português. A percepção dessa exclusão provocou uma mudança na concepção da Komodo que
passou a considerar, de maneira mais realista, a possibilidade de atuação militar para impor a
integração. Em meados de 1975, alguns exercícios militares realizados pelas Forças Armadas
indonésias foram interpretados como avisos da sua real possibilidade de emprego. Nas
palavras de Taylor: “uma escalada da Operação Komodo, destinada a convencer os
portugueses e os timorenses da seriedade da opção invasão, se os acontecimentos políticos
não fossem do agrado dos indonésios” (1993, p.94).
Uma nova reunião foi realizada entre portugueses e indonésios em meados de 1975,
desta vez em Londres. Nessa reunião, os portugueses reafirmaram que qualquer solução para
o caso deveria passar, necessariamente, pela consideração explícita da vontade do povo
timorense.
Em 11 de março do mesmo ano, fracassa em Portugal o golpe Spinolista, o que veio a
fortalecer ainda mais a esquerda naquele país. Diante desse cenário, de fortalecimento da
esquerda em Portugal e do aumento do desejo de independência no Timor, os indonésios
passaram a concentrar seus esforços no apoio a UDT que, a essa altura, já dava sinais de
insatisfação com a condução dada à questão pela Fretelin.
A Bakin passou a explorar as desavenças no interior da coligação UDT/Fretelin a fim
de enfraquecer a corrente pró-independência. Os líderes da UDT, ala mais moderada, foram
chamados à Jacarta e “alertados” quanto ao perigo de sua permanência em uma “coligação
comunista”, encabeçada pelos “radicais” da Fretelin. Os indonésios sugeriram aos líderes da
UDT a formação de uma frente anticomunista em coligação com a Apodeti e com os demais
partidos. As sugestões dos agentes da Bakin foram acatadas e a UDT mobilizou apoio
suficiente para o rompimento da coligação, alegando o predomínio da ala extremista da
Fretelin (Cunha, 2001).
72
No campo diplomático, em junho de 1975, o Presidente Suharto realizou uma
importante viagem internacional, na qual visitou diversos países (Canadá, Japão e Estados
Unidos), tendo discutido com esses governos a questão timorense, procurando sensibilizá-los
quanto à importância de não se fechar os olhos para o problema. O conteúdo da viagem aos
Estados Unidos será explorado no subcapítulo “Os Estados Unidos como ator”.
Em julho, foi realizado, em Macau, um encontro entre autoridades portuguesas e os
principais representantes dos partidos timorenses. A Fretelin faltou a esse encontro e, por essa
razão, tornou-se mais marginalizada. Posteriormente, os indonésios aproveitaram esse fato
para justificar a intervenção armada alegando que a Fretelin era um partido radical que se
recusava ao diálogo. O resultado prático do encontro foi a produção da lei portuguesa 7/75
(ver subcapítulo anterior) que regulamentava as fases do processo de descolonização do
Timor Leste.
Os indonésios consideraram a agenda prevista nessa Lei como irreal e aproveitaram o
isolamento político da Fretelin para polarizar o cenário das discussões internas timorenses.
Iniciaram, então, uma campanha de contra-informação veiculando a notícia de que a Fretelin
teria a intenção de dar um golpe de estado com o apoio de militares chineses e norte-
vietnamitas.
O clima de desconfiança aumentou e, em meados de agosto, representantes da UDT
voltaram a ser recebidos em Jacarta. Os indonésios confirmaram a sua versão de que a
Fretelin planejava um golpe e avisaram que não tolerariam um governo comunista no Timor.
Também deram a entender que uma ação da frente anticomunista, para a contenção da
Fretelin, seria vista com bons olhos por seu governo.
Induzidos pela manipulação indonésia, os líderes da UDT retornaram ao Timor com a
certeza da inviabilidade da obtenção da independência sob a liderança da Fretelin e, certos de
que obteriam o apoio de Jacarta, deflagraram um golpe de estado na noite de 10 para 11 de
73
agosto de 1975, declarando o Timor Leste independente. A Fretelin não aceitou essa iniciativa
da UDT e se instaurou uma breve guerra civil no país. Os indonésios não souberam avaliar o
real potencial da Fretelin e a disputa começou a pender para o lado desses últimos. Ao mesmo
tempo, a autoridade política e jurídica portuguesa abandonava o território em direção à ilha de
Ataúro.
O cenário político não poderia ser pior para os interesses indonésios. O Timor estava
tornando-se independente sob o comando de uma ala de tendências “esquerdistas”. Mais uma
vez, a Komodo viu-se obrigada a mudar de estratégia.
A opção militar de intervenção passou a ser considerada de maneira mais realista,
contudo, Suharto ainda se demonstrava hesitante em dar carta branca aos comandantes da
Komodo. Diversos fatores contribuíam para a dúvida de Suharto e sua maior hesitação era em
função dos sinais ambíguos emitidos pelos americanos. Os americanos apoiavam a
integração, porém condenavam a utilização de equipamento americano em caso de uma ação
ofensiva. Ao término de 1974, o Congresso Americano havia aprovado o Foreign Assistence
Act que previa a utilização de equipamentos americanos, fornecidos a outros países, apenas
para defesa. No caso do equipamento ser utilizado para a realização de ações ofensivas, a
sanção prevista era a suspensão do auxílio militar e isso era completamente contrário aos
interesses dos militares indonésios. No subcapítulo “os Estados Unidos como ator” será
abordado como Henry Kissinger tentou manipular a questão da utilização do armamento
americano na anexação.
Com a evolução da guerra civil, a Fretelin passou a consolidar o seu domínio sobre o
território. Entretanto, a fim de ganhar tempo para a invasão e de justificar uma intervenção
armada, os indonésios procuravam passar uma imagem de caos e de prosseguimento dos
combates.
74
Em 7 de setembro, foi elaborado um documento pelos integrantes da UDT, do Kota
(ver item 1.3, Breve histórico do Timor Leste) e do Partido Trabalhista solicitando a
integração do Timor à Indonésia. É provável que esse documento tenha sido elaborado pela
própria Bakin, com a colaboração do presidente da UDT, Lopes da Cruz (Dunn, 1983, p.171).
O documento era apresentado aos membros da UDT, quando estes, em fuga, cruzavam a
fronteira para o Timor indonésio. Durante todo o período da dominação Indonésia no Timor,
essa documento foi utilizado pelo governo para justificar ao mundo que o direito à
autodeterminação dos timorenses havia sido exercido naquela oportunidade.
Paralelamente, o número de refugiados da guerrilha crescia no Timor indonésio (Oeste
da ilha).
Todos esses fatores contribuíam para justificar a intervenção indonésia. “Em fins de
setembro, o Presidente Suharto concordou com a realização de operações militares, em apoio
às forças anti-Fretelin, aparentemente sem saber que essas já vinham ocorrendo” (Dunn,
1983, p.225)
As ações próximas à fronteira começaram a se intensificar, obrigando a Fretelin a se
retirar das localidades de Batugade, Balibo e Maliana. Em uma dessas ações, cinco membros
de uma equipe de televisão australiana foram mortos, supostamente por forças indonésias. Em
Jacarta, houve o temor de uma reação internacional negativa liderada pela Austrália,
condenando a ação militar indonésia no Timor. Surpreendentemente, o governo do trabalhista
Gough Whitlam abafou o caso, fato esse interpretado pelos indonésios como um “sinal verde”
para a sua campanha militar. Esse fato será igualmente abordado no capítulo da Austrália
como ator.
Ao início de novembro, houve um último encontro entre os chanceleres Adam Malik
(Indonésia) e Melo Antunes (Portugal) em Roma. Nas palavras de Lemos Pires (1994, p.307):
A Indonésia pretendia que Portugal legítimasse a sua intervenção armada,
negociasse depois uma fase de transição coberta pela autoridade portuguesa e,
75
finalmente, permitisse a legalização da anexação, tudo isso à margem dos partidos
(timorenses), por entendimento bilateral
Portugal manteve-se discordante quanto à opção de intervenção armada.
Em 28 de novembro, a Indonésia “ganhou” o principal pretexto para a invasão. Nessa
data, a Fretelin proclamou, unilateralmente, a independência do Timor. Temendo que a
comunidade internacional reconhecesse o feito, a exemplo do que havia ocorrido na África e
em outras ex-colônias portuguesas, os indonésios emitiram um comunicado lamentando a
atitude unilateral daquele partido, que consideravam apoiado por Portugal.
A contrapartida indonésia veio em 30 de novembro, quando os membros dos partidos
dissidentes, provavelmente manipulados pela Bakin, proclamaram a integração do Timor
Leste à Indonésia, solicitando àquele país que tomasse providências para o restabelecimento
da ordem.
Diante desses dois fatores, e da busca da recém proclamada República Democrática do
Timor Leste em obter reconhecimento junto à ONU, a necessidade de intervenção militar
direta tornou-se premente.
A visita à Jacarta, do presidente americano Gerald Ford e de seu secretário de estado,
Henry Kissinger, nos dias 5 e 6 de dezembro de 1975, foi o apoio explícito de que os
indonésios necessitavam.
Em 7 de dezembro, após a saída do “Air Force One” do espaço aéreo indonésio, teve
início a operação de ataque a Dili e o começo de 24 anos de ocupação. Essa ação militar teve
duas denominações na Indonésia: operação Lótus ou operação Seroja.
A atitude das forças indonésias, por ocasião da ação militar, foi extremamente cruel e
desumana. Foram cometidos estupros e assassinatos em massa. Estima-se que 60.000
(sessenta mil) timorenses tenham sido mortos de dezembro de 1975 até a metade de fevereiro
de 2006. A respeito dessa onda de violência, Pilger (1994), nos dá a seguinte descrição:
76
The inhabitants of Dili were subjected to what the historian John Taylor has
described as ‘systematic killing, gratuitous violence and primitive plunder’. At 2pm
on 9 December, 59 men were brought on to the wharf at Dili harbour and shot one
by one, with the crowd ordered to count. The victims were ordered to stand on the
edge of the pier facing the sea, so that when they were shot their bodies fell into the
water. Earlier in the day, women and children were executed in a similar way. An
eyewitness reported: ‘The Indonesians tore the crying children from their mothers
and passed them back to the crowd. The women were shot one by one.’
Philip Liechty, citado por Pilger no mesmo artigo, nos revela esse estado, com as
seguintes palavras:
No help came. Tens of thousands of people died just resisting the invasion. ‘I was
the CIA desk officer in Jakarta at that time, ‘I saw the intelligence that came from
firm sources. There were people being herded into school buildings by Indonesian
soldiers and the buildings set on fire; anyone trying to get out was shot. There were
people herded into fields and machine-gunned. We knew the place was a free-fire
zone. None of that got out.
Cunha (2001, p.87 e 88), igualmente, nos revela o quadro de horror da seguinte
maneira:
A extrema violência da intervenção militar Indonésia e o comportamento brutal das
forças de ocupação nos anos que se seguiram à invasão têm sido apontados como
fatores que contribuíram significativamente para gerar, no seio da população
timorense, um sentimento anti-indonésio e, em conseqüência, alimentar simpatias
pela resistência.
Em 12 de dezembro, cinco dias após a invasão, a ONU expediu sua primeira
Resolução condenatória em relação ao caso (Resolução 3485, XXX da Assembléia Geral),
cujo texto dizia:
having heard the statements of the representatives of Portugal, as the Administering
Power, concerning developments in Portuguese Timor...deplores the military
intervention of the armed forces of Indonesia in Portuguese Timor and calls upon
the Government of Indonesia to withdraw without delay its armed forces from the
Territory...and recommends that the Security Council take urgent action to protect
the territorial integrity of Portuguese Timor and the inalienable right of its people to
self-determination" (ONU, 1975)
77
O governo indonésio não só ignorou a Resolução da ONU, como também impediu o
acesso ao Timor do Represente Especial das Nações Unidas para o assunto, o senhor Vittorio
Winspeare Guicciardi.
De dezembro de 1975 a abril de 1976, foram aprovadas mais duas resoluções
condenatórias à ação Indonésia. Essas foram as Resoluções 384 e 389 do Conselho de
Segurança, respectivamente datadas de 22 de dezembro de 1975 e 22 de abril de 1976. A
expedição de três resoluções em um espaço de tempo tão curto chama a atenção de qualquer
analista.
Além das reações negativas no plano internacional, do ponto de vista intratimorense, a
Fretelin implementou uma resistência além da esperada. O controle militar indonésio acabou
por se limitar aos centros urbanos da faixa litorânea (CUNHA, 2001).
Diante das dificuldades encontradas, Jacarta tratou de tentar legitimar um ato de
autodeterminação no mais curto prazo possível. O primeiro passo, adotado em dezembro de
1975, foi a criação de um governo provisório timorense “marionete”, composto por líderes da
Apodeti e da UDT. Todos os questionamentos que eram feitos ao governo indonésio
acabavam sendo remetidos ao governo provisório timorense a fim de lhe conferir
legitimidade.
Em maio de 1976, foi constituída, em Dili, uma Assembléia Popular. Seus membros
foram selecionados pela Bakin e, no dia 31 daquele mês, seus 37 delegados aprovaram, por
unanimidade, o “Ato de Integração”, cujo texto é o seguinte:
Nós, em nome de todo o povo de Timor Leste, havendo testemunhado a decisão da
sessão do plenário aberto da Câmara dos representantes de Timor Leste de 31 de
maio de 1976, em Dili, que em essência constituí a essência da vontade do povo, tal
como foi expressa na proclamação da independência de Timor Leste, feita em 30 de
novembro de 1975, em Balibo, vimos por este meio apelar ao Governo da República
da Indonésia para receber e sancionar a integração do povo da região de Timor Leste
com o Estado Unitário da República da Indonésia, no mais curto espaço de tempo
possível, completamente e sem referendo. Assinam o Chefe do Governo Provisório
de Timor Leste, Arnaldo dos Reis Araújo, e a Câmara dos Representantes de Timor
Leste, por Guilherme Maria Gonçalves (ROCHA, 1987, p.57)
78
Diversas críticas são feitas em relação à legitimidade dessa Assembléia. Muito embora
o governo tenha convidado representantes da ONU para assistirem a reunião, os mesmos não
compareceram por receio de que sua presença pudesse ser usada para legitimar qualquer
decisão.
Outra crítica que se faz é o fato de ter havido uma única opção. Nenhuma outra
proposta, diferente da hipótese de anexação, foi posta em discussão (CLARK, 1980) Em 17
de julho de 1976, a antiga colônia portuguesa torna-se a 27ª Província da República Indonésia
e recebe a denominação de “Timor Timur”.
A anexação formal indonésia nunca foi reconhecida pela ONU como um processo em
que o povo timorense tenha exercido livremente seu direito à autodeterminação. As
Resoluções emanadas deixam isso bem claro. Em contrapartida, o governo indonésio, durante
os 24 anos de ocupação do Timor, sustentou que a anexação formal e suas etapas constituíram
a manifestação do referido direito.
2.2.4) Os anos da ocupação
Os primeiros anos da ocupação indonésia no Timor foram anos atribulados. Os
indonésios não contavam com a resistência oferecida pelas Forças Armadas de Libertação
Nacional do Timor Leste (Falintil), braço armado da Fretelin. Essa Força refugiou-se nas
montanhas, longe dos centros mais urbanizados do litoral, e iniciou uma guerra de guerrilhas
contra o Exército Indonésio (TNI). O aspecto mais interessante e heróico dessa força de
guerrilha é o fato de não haver evidências de que ela tenha contado com algum tipo de apoio
externo, seja material ou financeiro.
79
A guerrilha, além de dificultar a administração indonésia, causava o incômodo de
revelar ao mundo uma anexação que não era pacífica. Fazia-se necessário que a mesma fosse
debelada, pelo menos em um primeiro momento.
Em setembro de 1977, a Indonésia iniciou uma ofensiva militar a fim de aniquilar a
força de guerrilha. Era oferecida anistia àqueles que se entregassem e os resultados positivos
surgiram rapidamente. Nicolau Lobato, líder das Falintil, era morto em dezembro de 1978. A
guerrilha perdia seu ímpeto e parecia não ter condições de reagir tamanha a desproporção de
forças.
Em que pese a enorme superioridade das forças indonésias, é negociado um acordo de
cessar-fogo, em 1983, com o novo líder das Falintil, Xanana Gusmão. Aparentemente, não
havia razão para a Indonésia negociar um cessar fogo com um adversário tão debilitado.
Acredita-se que tal iniciativa tivera o ânimo de demonstrar ao mundo o lado “conciliador” do
governo indonésio frente às críticas que recebia da comunidade internacional, pela natureza
extremamente violenta de sua repressão (Cunha, 2001).
Em 1992, a guerrilha sofre novo revés com a captura de seu líder, Xanana Gusmão. O
ímpeto dos guerrilheiros chega quase a zero, entretanto, na versão indonésia, a guerrilha
estava mais viva do que nunca. Esse fato tem sido igualmente questionado, uma vez que a
manutenção de uma imagem ativa da guerrilha era uma maneira dos indonésios justificarem a
enorme presença militar que tinham no Timor Leste.
Cunha (2001.p.93) cita um trecho de uma correspondência oficial do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil:
A guerrilha não mais representa perigo para a Indonésia, mas ainda não acabou
completamente. O fato de ainda ocorrerem choques entre as forças de segurança e
integrantes da resistência armada reforça a posição da linha dura indonésia, que
advoga a manutenção de uma quantidade excessiva de batalhões do exército
indonésio no Timor.
80
Nos anos de 1979 e 1980, a Indonésia começou a investir no Timor Leste. Eram
investimentos políticos e econômicos que tinham por objetivo reduzir a disparidade de
desenvolvimento da ilha em relação ao restante do país. Os indonésios acreditavam que assim
seria mais fácil a integração do novo território, principalmente se os resultados desses
investimentos fossem contrastados com o atraso do período colonial português. Houve
investimentos em infra-estrutura, como a construção de estradas e escolas e, no campo
político, foram nomeados governadores timorenses “fantoches” para a administração da ilha,
além da inclusão da participação de todos os cidadãos timorenses nas eleições gerais
indonésias.
Esses investimentos eram utilizados para minimizar as críticas sofridas pelos
indonésios nos seguintes termos: se por um lado os governadores eram timorenses, a imensa
maioria dos funcionários públicos era javanesa. Se por um lado ofereciam educação, por outro
lado não davam alocação profissional.
A embaixadora portuguesa, Ana Gomes (2000, p.133), expressa-se a respeito, da
seguinte maneira:
[...] São por sinal as gerações mais educadas, porque foram também aquelas que
atingiram um nível de instrução e escolaridade mais significativo visto que houve
um investimento da Indonésia em educação, com conseqüências dramáticas para a
própria Indonésia. Isto porque Jacarta foi vítima, de alguma maneira, se assim se
pode dizer, do seu próprio sucesso: se por um lado dava educação, por outro não
oferecia saídas profissionais. Com educação, mais afirmativos se tornaram os
timorenses em relação aos seus direitos e aspirações, como sucede com qualquer
povo.
Quanto ao aspecto religioso, embora a grande maioria da população indonésia seja
muçulmana, a unidade religiosa está longe de existir. O quadro abaixo ilustra a distribuição da
população pelas diferentes religiões à época da ocupação:
Religious Affiliation, 1980 and 1985
(in percentages)
Religion 1980 1985
*
Muslim 87.1 86.9
81
Protestant 5.8 6.5
Catholic 3.0 3.1
Hindu 2.0 1.9
Buddhist 0.9 1.0
Other 1.2 0.6
TOTAL 100.0 100.0
*
The last year for which total figures on religious affiliation have been made available by the
Indonesian government. Source: Based on information from Indonesia, Central Bureau of
Statistics, Statistik Indonesia/Statistical Handbook of Indonesia, 1986, Jakarta, January 1987,
168-69.
Fonte: http://www.country-data.com/frd/cs/indonesia/id_appen.html
Esse quadro de grande diversidade, embora não contrarie o tratamento constitucional
que a questão religiosa recebe, tem sido o principal causador de rebeliões regionais.
Com relação ao Timor Leste, país cuja população atual é constituída por 95% de
católicos, os indonésios sempre se comportaram de maneira tolerante como forma de dissipar
as tensões surgidas no campo político. De acordo com os dados estatísticos do instituto
Catholic-hierarchy, divulgados na Internet, o percentual de católicos, pela população total,
aumentou de 28,8% em 1980 (já sob o domínio indonésio) para 84,1% em 1998 (penúltimo
ano da ocupação indonésia).
Cunha (2001), fazendo referência ao documento “Building for the Future, Issues and
Perspectives”, assinala que, em 1974, ao término do domínio português, havia 100 igrejas no
Timor, sendo que, em 1999, ao término da ocupação indonésia, havia 793 igrejas no território.
Esses números são inequívocos em relação à complacência religiosa que existiu no
período da dominação. Dessa forma, a Igreja atendia aos objetivos de indonésios e
timorenses. Para os indonésios, servia para afastar os timorenses da vida política local. Para
os timorenses, representava um reduto inviolável, aonde poderiam conspirar.
A não-integração dos timorenses à cultura e à vida política é outro fator que merece
atenção no estudo do ator Indonésia, em relação à questão timorense.
82
Um dos grandes problemas da “unidade” indonésia é a sua má distribuição
populacional pelo território. De 1920 a 1990, a densidade populacional aumentou de 26 para
93 habitantes por quilômetro quadrado, sendo esses números a média nacional (Indonésia,
1991). Enquanto a média nacional situou-se em 93 habitantes por quilômetro quadrado,
algumas províncias tinham suas médias bem mais elevadas, como é o caso de: Bali (500
habitantes por km2); Jawa Barat (764 habitantes por km2); Jawa Tengah (834 habitantes por
km2) e Yogjakarta (919 habitantes por km2) (Indonésia, 1991). Para se ter uma idéia, em
termos comparativos, Irian Jaya, maior província do território, cento e trinta e três vezes
maior que Yogjakarta, tem uma densidade populacional duzentas e vinte e nove vezes menor
que esta última província (Indonésia, 1991).
Essa discrepância na distribuição populacional levou o governo de Jacarta a programar
uma política de planejamento familiar e de transmigração, política essa que atingiu a ilha do
Timor Leste. O programa de transmigração tem como finalidade precípua a redistribuição
populacional do país, recrutando famílias pobres voluntárias, de áreas densamente povoadas,
para serem levadas às regiões menos povoadas. “O programa cumpre também um objetivo
paralelo: o de diluir culturas e etnias minoritárias” (CUNHA, 2001, p.97).
Para o Timor Leste, estima-se que 150 mil pessoas tenham sido transmigradas em uma
população total de 750 mil habitantes ao final dos anos 90 (CUNHA, 2001). Isso equivale a
20% do total da população. Esse contingente alienígena, além de ser expressivo
numericamente, tinha um certo desprezo pela cultura timorense e ocupava os principais
cargos da administração local. De acordo com Tomás (2000, p.34):
Mesmo em pleno regimen [sic] colonial, sob o Estado Novo, a maior parte do
funcionalismo era, como dissemos já, timorense. Esse nítido predomínio do
elemento local no funcionalismo, explica em certa medida, por um lado, que não
houvesse grandes movimentos contra a presença portuguesa, por outro, que não
tenha sido bem aceite a intervenção indonésia que, naturalmente, acarretou uma
presença maciça senão do funcionalismo civil, pelo menos do exército indonésio,
que na prática manejava todos os cordéis do poder.
83
De fato, os timorenses não se sentiam suficientemente integrados e não participavam
das grandes decisões a respeito de seu futuro e isso fez com que se sentissem estrangeiros em
sua própria terra.
Em resumo, os anos da ocupação indonésia foram anos de investimentos em infra-
estrutura e educação, associados a uma liberdade religiosa tolerada e a uma repressão política
marcante e desumana. A mistura de todos esses fatores conferiu ao povo timorense um forte
senso de nacionalismo e identidade em contraposição ao “invasor” indonésio. A formação e a
manutenção desse espírito foram as grandes responsáveis pelo seu não-perecimento enquanto
nação.
2.2.5) Do Massacre de Santa Cruz ao fim da Nova Ordem: a redenção timorense
A questão do Timor Leste tem um significado muito especial para a Indonésia, pois ela
confrontou esse País com toda a comunidade internacional e não apenas com Portugal e o
próprio Timor.
A condenação da questão pela ONU internacionalizou o problema, mas não foi
suficiente para a tomada de medidas concretas, uma vez que os dois atores mais prejudicados
pela anexação (Portugal e a Nação Timorense) não dispunham de meios militares e nem de
peso político para um enfrentamento direto com os indonésios.
Se considerarmos apenas os dois atores soberanos envolvidos (Portugal e Indonésia), a
desproporção já é enorme na balança de poder. Nas palavras do embaixador português
Fernando Neves:
O aproveitamento das condições susceptíveis de contribuir para os nossos
propósitos, revelou-se a estratégia correcta, tendo em conta a desproporção entre a
projecção mundial da Indonésia ( 4º país mais populoso do mundo, com 13 mil
ilhas, 7 mil habitadas, cobrindo uma extensão igual a que vai de Londres a Bagdad,
colocada numa zona geoestratégica fundamental para a segurança do Pacífico e do
Índico, para a contenção da China e doutras potências asiáticas, e para o comércio
mundial e o desenvolvimento do sueste asiático passam nas suas águas 45% do
84
tráfego marítimo mundial) e a de Portugal, bem como a falta de apoio, senão mesmo
hostilidade, de nossos parceiros tradicionais (NEVES, 2000, p.42)
Por sua vez, Portugal é um país periférico, mesmo no seu contexto regional, não
possuindo o mesmo potencial econômico da Indonésia e, tampouco, o peso de sua localização
estratégica.
A Indonésia consolidou a anexação do Timor Leste baseada em três plataformas. Uma
jurídica, que procurava enfatizar ao mundo que o processo formal da anexação era legítimo
porque foi representativo (três partidos haviam solicitado a anexação); uma política, que
colocava a questão no contexto da Guerra Fria e criava a idéia de uma “ameaça comunista”, e
outra econômica, que fazia com que seus principais parceiros comerciais do Ocidente
fechassem os olhos para os abusos que estavam sendo cometidos. Essa última vertente será
mais bem abordada quando forem estudados os atores Austrália e Estados Unidos e os seus
interesses comerciais em petróleo e armamento, respectivamente.
Em função dessa estratégia desenvolvida pelo governo indonésio, a situação do Timor
Leste parecia estar “resolvida” e “consolidada” perante a comunidade internacional. Prova
disso foi a sucessiva redução do número de votos a favor de Portugal nas Resoluções da
Assembléia Geral da ONU para a questão do Timor, no período de 1975 a 1982. O próprio
governo português deu sinais de aceitação da inevitabilidade do reconhecimento da anexação
e, diante da corrosão do apoio na ONU, transferiu a solução do problema da Assembléia
Geral para o Secretariado, a partir de 1982.
Em 1989, a Austrália e a Indonésia celebraram a assinatura do “Tratado do Timor
Gap” (a ser estudado no ator Austrália), acordo esse que estipulava como seria explorado o
petróleo e o gás natural na área limítrofe entre a Província indonésia do Timor Leste (à época)
e o Norte da Austrália. A assinatura desse acordo significou o reconhecimento australiano, de
fato, da soberania indonésia sobre o território timorense.
85
Portugal, na condição jurídica de potência administrante, contestou a validade do
Tratado na Corte Internacional de Justiça em Haia, contudo, em virtude do não-
reconhecimento indonésio daquela jurisdição, a Corte declarou-se incompetente para julgar o
caso.
Todos esses fatores foram, igualmente, favoráveis à consolidação do status quo
mantido pela Indonésia no Timor e, paralelamente, a comunidade internacional demonstrava
pouco interesse em polemizar a questão, exceção feita a Portugal.
Não obstante todos os fatores serem favoráveis à aceitação tácita da anexação, a
ocupação indonésia, como já foi mencionado, não integrava a população local e estava longe
de ser pacífica. As violações aos direitos humanos no Timor foram constantes e os militares
indonésios não tiveram a sensibilidade de perceber o novo momento político que o mundo
vivia com o sepultamento da Guerra Fria.
Em 1991, o Massacre de Santa Cruz (subcapítulo de Portugal como ator) revelou ao
mundo a realidade sobre a ocupação indonésia no Timor. No raiar de uma era em que as
questões dos direitos humanos surgiam como prioritárias e o poder da mídia se apresentava
em “tempo real” em nossas salas, os indonésios promoveram mais um banho de sangue que se
transformou em um dos principais fatores de contestação de sua presença em solo timorense.
A reação da comunidade internacional concentrou-se mais no campo da retórica e menos no
campo das atitudes, contudo, os prejuízos para a imagem da Indonésia eram irreversíveis. O
país que foi um dos fundadores do “Movimento dos Não-Alinhados” e comungava do
“espírito de Bandung” (local da primeira reunião do Movimento dos Não-Alinhados)
mostrava sua verdadeira face de ditadura militarizada.
O Massacre de Santa Cruz teve dupla conseqüência para os indonésios. A primeira, e
mais óbvia, foi a condenação pela comunidade internacional, conforme já mencionado no
subcapítulo de Portugal como ator e como será melhor explicado no capítulo dos Estados
86
Unidos como ator. A segunda conseqüência, não tão óbvia e bem mais sutil, foi a confirmação
do posicionamento do povo timorense contra a ocupação indonésia. Pode parecer
contraditório, porém até a ocorrência do Massacre de Santa Cruz, a população timorense não
demonstrava unanimidade contra a ocupação indonésia. O fenômeno serviu para dar unidade
de pensamento aos timorenses, aglutinando as diversas opiniões ao redor de um ideário de
libertação, demonstrando, claramente, que a ocupação indonésia fazia-se pela via da opressão.
Nas palavras de Carrascalão (2000, p.39):
O declínio da presença da Indonésia ou a não aceitação da Indonésia nunca parou
desde o Massacre de Santa Cruz. E, nessa altura, se houvesse um referendo, talvez
houvesse dúvidas sobre quem viria a ser o vencedor, isto é, antes do 12 de novembro
de 91. Mas, depois disso, nunca houve um momento em que a Indonésia tivesse a
mínima hipótese de poder ganhar na consulta popular.
É fácil compreender as razões dessa divisão de opiniões até o massacre. Ao mesmo
tempo em que os indonésios oprimiam, desenvolviam a economia e melhoravam a infra-
estrutura local. É evidente que todos esses investimentos acabavam sendo usufruídos pelos
próprios indonésios transmigrados para a ilha, verdadeiros donos do poder. Contudo, uma
população com mais de 50 % de analfabetos (mesmo com os investimentos indonésios em
educação o número de analfabetos permanecia alto) não percebe tais situações com tanta
facilidade, podendo enxergar nos investimentos indonésios verdadeiros sinais de progresso.
Do Massacre de Santa Cruz até aos incidentes de setembro de 1999, os indonésios não
deram motivos de maior relevância para tornar sua presença no Timor Leste impopular aos
olhos do mundo. Muito pelo contrário, os indonésios sentiam-se seguros em relação às
alianças que possuíam e, em virtude dessa segurança, cometeram sérios erros de avaliação.
Nas palavras do Embaixador Fernando Neves:
A Indonésia cometeu, porém, vários erros graves de avaliação. O primeiro terá sido
o de nunca ter feito um esforço sério de integração e de sempre ter tratado Timor
como um território ocupado militarmente, campo livre para o enriquecimento e
progressão dos militares. O segundo, foi o de ter subestimado a capacidade de
resistência dos timorenses e a determinação de Portugal de prosseguir o objectivo da
87
autodeterminação de Timor e a sua capacidade de intervenção na comunidade
internacional. O terceiro, característico de um regime ditatorial e anquilosado como
o de Suharto, foi o de não ter compreendido a acelerada evolução política do mundo
moderno e pensar, assim, que eram imutáveis os apoios internacionais com que
contava. Confiante na firmeza desses apoios, na força de sua dimensão e dos seus
trunfos estratégicos, cometeu ainda a imprudência de aceitar as negociações
tripartidas sob os auspícios do Secretário Geral das Nações Unidas. Ao faze-lo,
atribuindo a essas negociações um carácter meramente ritual, destinado a satisfazer a
consciência das opiniões públicas internacionais, a Indonésia não compreendeu que
estava a por em causa a sua própria política de considerar Timor como parte
integrante de seu território [...] Segura dos apoios que tinha recebido, a Indonésia
não compreendeu que a nova geração de governantes que ascendeu ao poder depois
da Guerra Fria não se sentia comprometida com o fechar de olhos cúmplice à
ocupação de Timor em 1975 (NEVES, 2000, p.41 e 43)
Em 1997, tamanha era a segurança dos indonésios, que os mesmos acabam sendo
envolvidos em uma manobra diplomática portuguesa. Com a assunção do atual Secretário
Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, foi nomeado um representante do Secretário Geral
exclusivamente dedicado à questão do Timor Leste e, em junho do mesmo ano, seguindo as
propostas de negociações feitas por esse representante, as partes diretamente envolvidas na
questão (Portugal e Indonésia) aceitam negociar modelos de solução, sem predefinir a
finalização do problema. Era a primeira vez que os indonésios aceitavam negociar uma saída
para o tema, sem impor a exigência de que qualquer solução passasse necessariamente pelo
reconhecimento da sua soberania sobre o território. Essa foi uma enorme brecha aberta pelos
indonésios que não contavam com outro fator externo que viria a fragilizá-los sobremaneira a
partir de 1997: a Crise Econômica Asiática.
A Crise Econômica Asiática atingiu em cheio a Indonésia, fragilizando sua economia.
Apenas a título de ilustração, de acordo com dados fornecidos pela própria Agência Nacional
do Planejamento do Desenvolvimento Indonésio (www.bappenas.go.id), as conseqüências de
tal evento assim podem ser resumidas: em 1998, o Produto Interno Bruto teve uma queda de
13,7% se comparado a 1997; no período de janeiro a dezembro de 1998, as exportações e as
importações sofreram uma queda de 8,7% e 34,2% respectivamente; o setor de processamento
industrial caiu 12,9% e o setor de construção civil teve a queda mais abrupta de todos os
88
setores com um decréscimo de 40% de suas atividades. O governo decidiu liquidar 38 bancos
e estipulou que nove bancos seguissem um programa de recapitalização.
A Crise Asiática expôs, em parte, a fragilidade do governo de Suharto, pois, ao mesmo
tempo em que a crise se desenvolvia, outra revolução se processava no seio da sociedade
indonésia. Uma revolução política silenciosa que havia sido iniciada há mais tempo por uma
significativa parcela da sociedade a qual, de certa forma, havia se beneficiado do progresso
econômico experimentado pela Indonésia durante a Era de Suharto.
Durante a “Nova Ordem” (período de dominação de Suharto), as principais forças
políticas na Indonésia eram os militares e os diversos grupos sociais, cujos principais
representantes eram os muçulmanos e os nacionalistas (SANTOSO, 2001, p.170).
Dentro dos Muçulmanos, havia uma divisão entre Tradicionalistas e Modernistas. Os
Tradicionalistas tinham como principal pilar escolas religiosas em pequenas cidades e vilas,
enquanto que os Modernistas eram mais urbanos, mais bem educados e, economicamente,
mais bem posicionados.
Ambas as comunidades são historicamente fortes, porém suas diferenças são bastante
relevantes. Os Tradicionalistas costumam ser abertos e moderados em relação ao Estado, sem
se descuidarem do forte apego às tradições locais. Os Modernistas, em contraste, são mais
apegados aos cânones religiosos ao mesmo tempo em que são mais dinâmicos socialmente e
politicamente mais rebeldes e motivados.
Essa estrutura foi apoiada durante o regime colonial holandês e mantida durante a Era
de Sukarno, mas sofreu um grande impacto durante a Nova Ordem de Suharto. O
derramamento de sangue ocorrido em 1965-66 deixou a Indonésia com uma pequena
quantidade de grupos políticos de massa. Sobraram, grosso modo, os Muçulmanos e os
Nacionalistas. O potencial de mobilização da sociedade civil foi enfraquecido e reprimido
durante esse período, e a organização muçulmana Tradicionalista, Nadhatul Ulama (NU),
89
liderada por Abdurrahman Wahid, tornou-se a mais forte organização política de massa.
Contudo, sob o duro regime militar de Suharto, o qual reprimiu todas as organizações
políticas de massa, o apoio baseado na tradicional lealdade tornou-se um grande fardo e
acabou por enfraquecer a organização em vez de fortalecê-la politicamente.
Vítimas de grande repressão pelo regime de Suharto, os Tradicionalistas tiveram de se
acomodar à nova situação a fim de sobreviverem politicamente, oscilando suas ações entre
demonstrações de lealdade e acomodação em relação ao governo.
Essa situação levou seu líder, Abdurrahman Wahid, a tomar uma decisão radical em
1984, colocando sua organização (NU) fora da política. Sua estratégia visava evadir-se do
controle estatal e consistia em se voltar para as massas e para as classes educadas
simultaneamente, construindo contatos internacionais e fortalecendo sua própria base social e
política, por intermédio da reconstrução da sociedade civil.
Em contrapartida, o grupo dos Modernistas, embora também tenha sofrido certo grau
de repressão política, parece ter melhor se adaptado à Nova Ordem. O crescimento econômico
dos anos 70 propiciou a esse grupo, mais urbano e mais bem educado, melhores
oportunidades sociais e políticas. Por sua vez, os Modernistas, anteriormente mais rebeldes,
optaram por uma ação política mais reconciliatória e subserviente ao Estado, em contraste
com os Tradicionalistas que optaram por acomodação e distanciamento (SANTOSO, 2000,
p.172)
Esse padrão de atuação dos Modernistas conferiu aos mesmos uma maior participação
na vida política nacional e, ao início dos anos 90, com o consentimento de Suharto, eles
fundaram uma organização conhecida como a Associação dos Muçulmanos Intelectuais,
tendo escolhido, como seu líder, Bacharuddin Jusuf Habibie. Com a crescente participação
dos Modernistas na vida política indonésia, Habibie viria a se tornar vice-presidente de
Suharto, vindo a sucedê-lo após a crise política de maio de 1998.
90
A Crise de maio de 1998 nada mais foi do que uma conjunção de fatores políticos
agravados pela Crise Econômica Asiática de 1997, o que levou a uma crescente cobrança
popular por abertura política após três décadas de autoritarismo por parte de Suharto (período
da Nova Ordem). Uma série de distúrbios tomou conta do País e Suharto perdeu sua principal
base de sustentação: o apoio dos militares.
Tendo percebido que a situação se tornara insuportável, Suharto renuncia em troca de
certa “imunidade” que não abalasse os investimentos financeiros da família e mantivesse
certos privilégios dos militares.
Dessa forma, os Modernistas chegam ao poder em 1998, por intermédio de Habibie, e
iniciam um período que vivenciam até hoje: a “Reformasi” ou, em bom português, reforma.
O período da Reformasi tem sido caracterizado por uma cuidadosa política de
equilíbrio entre as normas sociopolíticas estabelecidas ao longo do tempo e as diversas forças
emergentes na sociedade indonésia. Essa tentativa de equilibrar forças tem produzido acordos
que visam a obtenção de um meio termo entre o atual governo civil e o ainda poderoso
Exército indonésio; entre a crescente força do islamismo e o desejo de manutenção de um
governo secular; entre as demandas por uma maior autonomia regional e os partidários do
antigo Estado centralizador e, por fim, entre as ideologias econômicas neoliberais e os
defensores do “Welfare State” (Santoso, 2000). Consoante com a ruptura com um passado
ditatorial, o período da Reformasi tem sido um período de grande liberdade de expressão e de
promoção dos direitos humanos.
Foi essa abertura política que permitiu a contestação mais aberta da situação do Timor
Leste na Indonésia. A oposição à manutenção dos indonésios no Timor, que já ganhara
partidários dentro da própria Indonésia a partir de 1991 (Massacre de Santa Cruz), aumentou
sobremaneira. Alguns setores indonésios perceberam que, tanto indonésios como timorenses,
haviam sido vítimas de um mesmo regime: a Nova Ordem. Essa constatação encontra-se
91
presente no comentário de Ana Gomes (2000, p.130), embaixadora portuguesa em Jacarta,
com o seguinte teor:
[...] Isto para um observador externo poderá parecer contraditório mas, de facto, não
há qualquer contradição; é que nunca poderíamos ter chegado a este ponto na
resolução do caso de Timor Leste, não só do ponto de vista diplomático mas
também do ponto de vista da luta política em geral, se não tivéssemos uma
perspectiva correta em lidar com a Indonésia e de perceber que esta própria, e o
povo indonésio em particular, era vítima do mesmo regime que ocupou Timor Leste
e que oprimiu os timorenses durante estes 24 anos; e de perceber também que dentro
da Indonésia e no seu povo havia elementos de grande solidariedade e de apoio à
luta timorense, sem os quais os timorenses não podiam ter chegado onde chegaram.
Dessa maneira, torna-se claro o grande impulso que o desenrolar da questão do Timor
tomou após a renúncia de Suharto em maio de 1998. Para Cunha (2001), diversas foram as
razões que mantiveram o Timor Leste “inegociável” durante a Nova Ordem. Primeiramente, o
autor enuncia o personalismo de Suharto, alegando que qualquer concessão o enfraqueceria
politicamente por contrariar um discurso que já durava mais de 20 anos, tornando-o
incoerente com o seu passado. Outro argumento é o de que o território timorense era uma
zona de influência dos militares indonésios que, além de receberem compensações salariais
por ali estarem, mantinham inúmeros negócios na ilha. Contrariar os militares seria insensatez
da parte de Suharto, pois estaria contrariando sua principal base de sustentação política. Um
terceiro argumento é o da questão do petróleo no Timor Gap. A assinatura do tratado com a
Austrália, em 1989, a ser mais bem abordada no capítulo da Austrália como ator, demonstra
um claro interesse econômico da Indonésia em relação à sua 27ª província. Um quarto
argumento, argumento esse de grande peso, é o de que qualquer concessão ao Timor Leste
poderia incitar outros focos separatistas na Indonésia, notadamente em Aceh, em Irian Jaya e
na província do Kalimantan (Bornéu).
A derrocada do domínio indonésio no Timor Leste teve seu início efetivo com o fim da
Nova Era, em maio de 1998, como já mencionado. Entretanto, as iniciativas políticas internas
a respeito do assunto não foram imediatas. O novo governo de Habibie temia que qualquer
92
concessão ao Timor provocasse reações no seio dos militares, como de fato ocorreram, porém
a magnitude dos acontecimentos no interior da Indonésia não permitiu maiores demonstrações
de descontentamento, haja vista a forte pressão internacional exercida.
A gota d’água viria com uma pesquisa encomendada, por Habibie, a um grupo de
estudos chefiado pela senhora Dewi Anwar, assessora do governo, a fim de verificar qual era
o principal obstáculo à obtenção de auxílio econômico internacional. A conclusão do grupo
foi de que a questão do Timor Leste era o principal empecilho à obtenção de ajuda financeira
internacional.
Diante do quadro de baixo poder de barganha, não restou aos indonésios outra saída.
Habibie acabou indo além das expectativas de toda a comunidade internacional e ofereceu,
ademais da possibilidade de autonomia relativa, a possibilidade de concessão de
independência.
A única condição imposta era a de que, até que o povo timorense se pronunciasse e, no
plano da ordem jurídica interna, o Timor Leste deixasse de fazer parte de seu território, a
Indonésia teria de continuar a exercer plenamente todos os atributos de soberania no Timor.
Essa foi a oferta indonésia que, em última instância, visou resguardar sua dignidade enquanto
potência regional, “enroupando” o acordo no respeito a seu direito interno. É provável que as
forças políticas e militares indonésias não permitissem o prosseguimento do processo sem a
inclusão de tal condição (Neves, 2001).
A conseqüência prática dessa imposição era obviamente a responsabilidade indonésia
pela segurança da população do Timor enquanto durasse todo o processo do referendo. Os
pormenores do referendo foram acertados no Acordo de Nova York, em 5 de maio de 1999,
entre as Nações Unidas, a Indonésia e Portugal. Esse acordo e todos os incidentes ocorridos
entre a assinatura do mesmo e os incidentes no Timor Leste, em agosto e setembro de 1999,
serão abordados no subcapítulo da ONU como ator.
93
É importante ressaltar que, do ponto de vista das obrigações assumidas pela Indonésia,
esta não cumpriu seu papel, permitindo que se instalasse no Timor uma onda de intimidações
pró-integração antes do referendo. Após o referendo, o descaso indonésio foi maior ainda e as
intimidações transformaram-se em violência explícita contra os timorenses, os quais haviam
optado por sua independência. O embaixador português, Fernando Neves (2000, p.45), assim
se pronunciou a respeito:
A reacção dúplice dos indonésios aos resultados do referendo, reconhecendo por um
lado a sua validade, mas permitindo ou instigando por outro uma violenta onda de
vingança em Timor Leste, em desafio a comunidade internacional, virou-se contra
ela. A Indonésia acabou por cumprir integralmente o acordo a que se obrigara,
sofrendo a humilhação de uma intervenção internacional talvez na perspectiva dos
seus governantes por um preço mais baixo do que a guerra civil que poderia resultar
de uma reposição da ordem por um sector das TNI contra outro.
A incapacidade indonésia em lidar com a onda de violência pós-referendo, em
setembro de 1999, dando a comunidade internacional uma resposta satisfatória aos
compromissos a que se havia obrigado, associada à enorme pressão da opinião pública
mundial e dos Estados Unidos em particular, levaram os indonésios a autorizar a presença de
uma força multinacional da ONU no Timor Leste, a fim de pacificar o território. Estava
encerrado o ciclo de 24 anos de ocupação indonésia no Timor Leste.
2.2.6 Conclusão para o ator Indonésia
Até 1974, o Timor Leste não representou nenhum tipo de interesse, oficialmente
declarado, para os indonésios. Muito pelo contrário, a ausência de interesses indonésios sobre
aquela pequena porção de terra foi utilizada pelos mesmos como justificativa para ratificar
pretensões em outras áreas, mormente, áreas que haviam sido colonizadas pelos holandeses
(os indonésios se julgavam herdeiros do império holandês) como é o caso de Irian Jaya.
94
A partir de 1974, o Timor Leste passa a ser uma fonte de preocupação para os
indonésios. O motivo principal é a inserção plena da questão no ambiente da Guerra Fria. O
conturbado processo de descolonização português, desencadeado pela revolução dos Cravos,
antecipou inúmeras etapas necessárias ao amadurecimento político dos timorenses.
Inexperientes politicamente, os timorenses viram-se tentados à radicalização de suas
tendências, como de fato ocorreu. Essa radicalização deu-se muito mais em virtude de
rivalidades domésticas do que de convicções políticas propriamente ditas. Acrescente-se a
isso, a total falta de estrutura econômica que permitisse ao território “caminhar com as
próprias pernas”.
Tal fato não poderia ter ocorrido em época pior da História. O sudeste asiático acabara
de ser palco da mais humilhante derrota militar americana de todos os tempos: a Guerra do
Vietnã.
Na condição de parceira estratégica dos Estados Unidos e desempenhando um papel
proeminente na região (líder dos não-alinhados e fundadora da ASEAN), a Indonésia começa
a temer pelo estabelecimento de um entreposto comunista no arquipélago. Além da
preocupação de cunho ideológico, havia uma preocupação indireta que era a da contaminação
do ideário libertário por outras províncias indonésias formadas pelo enorme mosaico de etnias
que compõem aquele país. O Timor Leste, embora não fosse território indonésio, poderia
servir de exemplo e inspiração a algumas províncias não perfeitamente integradas. Diante dos
fatos, a Indonésia começou a se articular a fim de garantir a anexação do Timor Leste a seu
território. Essa articulação desenvolveu-se em uma operação conhecida como operação
Komodo.
A Operação Komodo baseou-se, inicialmente, em operações de inteligência que
visavam a cooptação pacífica da população timorense à causa integracionista. Sem obter êxito
nesse propósito, a Komodo rumou para uma intervenção armada, não sem antes, contudo,
95
considerar o impacto negativo que tal opção poderia acarretar na comunidade internacional.
Fazia-se necessário sondar os principais atores interessados na questão. De um lado os
Estados Unidos, uma superpotência recém ferida em seu orgulho, temerosa dos efeitos de sua
derrota no Vietnã, na região em questão. De outro lado a Austrália, potência regional aliada
ao Ocidente e distante apenas 480 quilômetros do Timor Leste, cujos interesses econômicos
em relação àquele território já se faziam perceber em relação ao petróleo, conforme será visto
no subcapítulo da Austrália como ator.
Obtido o “sinal verde” desses dois países, a Indonésia empreendeu a ação armada que
garantiu a anexação, procurando “formalizar” a mesma, a fim de garantir-lhe uma roupagem
legal que diminuísse a condenação internacional a seu ato arbitrário, posto que não respeitou
o direito de autodeterminação do povo timorense.
Essa medida não foi suficiente e a Indonésia nunca obteve, na ONU, o reconhecimento
de sua anexação. Ainda que a comunidade internacional tenha se demonstrado indiferente ao
problema por muitos anos, esse foi um fator de peso para que a questão não morresse sob o
ponto de vista legal, causando vários constrangimentos à Indonésia.
Garantida a anexação, seguiram-se os anos de ocupação. Sem se preocupar com as
reais aspirações da população local, os indonésios dotaram o Timor Leste de certo grau de
desenvolvimento que só atendeu aos interesses da minoria javanesa transmigrada para aquela
metade da ilha. Violaram, sistematicamente, os direitos humanos daquela população e
restringiram o acesso às principais funções públicas, ao mesmo tempo em que toleraram a
religião como forma de contenção dos ânimos, além de terem aumentado o acesso à educação
básica. Essa mistura explosiva exacerbou ainda mais as diferenças, colocando os timorenses
totalmente à margem de seu próprio destino.
Essa situação sustentou-se bem até o início dos anos 90 e os indonésios calcavam a
manutenção desse modelo na diminuição do apoio às condenações formais feitas pela ONU e
96
no apoio tácito de seus principais parceiros comerciais do ocidente (Estados Unidos e
Austrália).
O Massacre de Santa Cruz, em 1991, alterou essa percepção aos olhos do mundo, mas
não aos olhos dos indonésios, os quais não souberam avaliar a importância do evento como
um sinal para mudar de atitude. O principal erro da avaliação dos indonésios foi o de não
terem percebido as mudanças ocorridas no mundo com o fim da Guerra Fria, especialmente
no que concerne à crescente valorização das questões relativas aos direitos humanos.
Confiantes nas antigas alianças do passado, os indonésios aceitaram, em 1997, a
intermediação da questão por um representante do Secretário Geral da ONU, especialmente
designado para esse fim. Pela primeira vez, desde o estabelecimento da questão, não
impuseram que o reconhecimento da soberania sobre o seu território era inegociável. Isso se
constituiu em uma enorme brecha aberta pelos indonésios, rumo ao processo de
autodeterminação do Timor Leste.
O golpe de misericórdia viria com a Crise Econômica Asiática em 1997 e a Revolução
de 1998, que abalou a estrutura política dentro da própria Indonésia. Esses foram dois eventos
que pressionaram o País quase que ao mesmo tempo. A Revolução de 1998 tornou o ambiente
político mais aberto à contestação interna, e a Crise Econômica Asiática, em 1997, tornou o
País mais dependente do capital estrangeiro, capital esse que acabou por ser condicionado a
uma revisão da questão que passasse necessariamente pela autodeterminação do povo
timorense. Face às condicionantes surgidas, a Indonésia teve de encerrar seu ciclo de 24 anos
de dominação no Timor Leste.
O caso é emblemático e demonstra a importância da percepção dos cenários em que se
desenvolve a política externa de um país que, por erros sucessivos de avaliação, pode vir a se
surpreender.
97
2.3 Os Estados Unidos como ator
Em 1963, 12 anos antes da invasão indonésia do Timor Leste, assim se referia um
documento produzido pelo Departamento de Estado americano em relação a uma possível
autodeterminação no então Timor português:
In Timor we face the colonial problem in it’s difficult form. To press the Portuguese
to measures to prepare for self-determination may be a useful tatic at some stage, but
both We ando Portuguese would have to recognize that self-determination for
Portuguese Timor is meaningless for the indefinitive future. It’s a territory wich is
almost totally undeveloped politically and economically. For example, according to
one report two native Timorese have graduated from universities during the 450-
year period of Portuguese rule. A modest post-war effort to increase vocational
education soon ran agroud because there is almost no economic activity other than
agriculture in wich trained individuals can be employed. In the last elections to the
Portuguese National Assembly the total vote in a population of 478.000 was 1892.
There is little or no sense of national or territorial identity; the Portuguese have
pursued a policy designed to isolate the population from the outside world.
Portuguese Timor could hardly exist as na independent entity. Realistically, it has
only one possible future – as a part of Indonésia (ROSTOW, 1963)
A avaliação do funcionário do Departamento de Estado era profética e parecia isenta,
pois, àquela época, a Indonésia era governada por Sukarno e não havia desenvolvido os “laços
carnais” com os americanos, característicos da era posterior (Nova Ordem de Suharto)
2.3.1 A política externa dos Estados Unidos no período (um breve comentário)
Do ponto de vista da política externa americana, a questão do Timor Leste eclodiu em
um momento conhecido como Détente.
Détente é um termo francês que significa “relaxamento”. Em geral, o termo pode ser
aplicado a qualquer situação internacional onde nações hostis, não envolvidas em uma guerra
aberta, “amornam” os ânimos entre si e as ameaças se dissipam. No entanto, hoje em dia, o
termo se refere essencialmente à redução geral das tensões ocorridas entre a antiga União
98
Soviética e os Estados Unidos, durante o enfraquecimento da Guerra Fria, entre o final dos
anos 60 e o início dos anos 80.
A Détente tem suas causas tanto nos estados Unidos como na União Soviética. Ambos
os lados possuíam razões que justificavam o relaxamento das tensões. Os soviéticos, sob a
liderança de Leonid Brezhnev, sentiram que a sobrecarga causada pela corrida armamentista
nuclear era insustentável do ponto de vista econômico. Por sua vez, a economia americana
demonstrava sinais de desgaste em virtude dos altos custos de manutenção da Guerra do
Vietnã e da expansão da política do Welfare State (Estado de Bem Estar Social), patrocinadas
pelo governo de Lyndon Johnson, e de Richard Nixon já em menor escala. A esse respeito,
Pecequilo (2003, p.187) nos descreve o seguinte quadro:
Tanto interna quanto externamente, o envolvimento no Vietnam foi um divisor de
águas para os Estados Unidos. No campo doméstico, como destacamos
anteriormente, ele representou a quebra do consenso e o questionamento da política
externa, com amplas indagações a respeito da validade e da continuidade da
contenção. Aos altos custos políticos do envolvimento, somavam-se também os
econômicos, havendo um dispêndio excessivo de recursos, sobrecarregando o país.
Nos anos 70, os Estados Unidos entraram em um crescente (e inédito desde 1945)
processo de perda de terreno econômico, com uma participação rapidamente
declinante na produção mundial, com o aumento do endividamento interno,
favorecido por um excesso de consumo, pela ausência de poupança e pelo peso dos
compromissos estratégicos. Externamente, a impossibilidade da vitória contra uma
nação pequena e pouco importante afetava não somente a credibilidade ante
adversários, como minava a liderança global e de bloco.
Diante da perda da hegemonia americana e da sua transição para a liderança, os
Estados Unidos romperam alguns de seus padrões tradicionais de política externa, migrando
de uma posição de cunho mais idealista para outra mais pragmática e realista a partir de 1969.
Nesse contexto:
[...] the policy meant dealing with other powerful nations in a practical manner
rather than on the basis of political doctrine or ethics for instance, Nixon’s
diplomacy with the People’s Republic of China, despite the US purported opposition
to communism and the previous doctrine of containment. Another example is
Kisinger “green lighting” of dictator Suharto’s invasion of East Timor (DÉTENTE,
wikipedia.org, 2005)
99
O auge da Détente ocorreu sob o domínio de Nixon (como Presidente) e Kissinger
(como seu Secretário de Estado) sobre a política externa americana e durou até 1974
(PECEQUILO, 2003). Nesse período, os americanos procuram imprimir uma política de
inserção internacional mais seletiva e limitada em vez de considerar como prioritários todos
os acontecimentos do sistema internacional. Ao mesmo tempo, atentos à corrente de
multilateralização das Relações Internacionais, os americanos se concentrariam no surgimento
de novas potências procurando investir naquelas que realmente importavam e tinham poder.
Citado por Pecequilo, Nixon assim se refere em seu discurso de posse em 1973:
É importante que entendamos tanto as necessidades como as limitações do papel da
América na manutenção da paz [...] devemos claramente entender a nova natureza
do papel da América, como resultado das novas políticas que adotamos nos últimos
quatro anos [...] Faremos nossa parte em defender a paz e a liberdade no mundo.
Mas esperamos que outros façam sua parte. Passou o tempo em que a América fazia
do conflito de todas as outras nações o seu próprio, ou o futuro de toda nação sua
responsabilidade ou dizia aos outros povos como conduzir seus próprios negócios
[...] Vamos construir uma estrutura de paz no mundo na qual os fracos estão tão
seguros quanto os fortes - na qual aqueles que influenciem outros o façam pela
força de suas idéias e não de suas armas [...] Fora e dentro de casa, chegou a hora de
abandonar as políticas de paternalismo [...] Devemos localizar as responsabilidades
em mais lugares (NIXON, 1973, apud PECEQUILO, 2003, p.196)
Na visão de Nixon e de Kissinger, o mundo estava saindo de uma “bi” para uma
multipolaridade composta por China, Japão, Europa Ocidental, além dos Estados Unidos e da
União Soviética.
A percepção americana dessa nova realidade materializou-se na política externa
implementada por Kissinger. Grande admirador da Realpolitik européia, Kissinger acreditava
que os Estados Unidos deveriam atuar nesse novo sistema como fizera a Inglaterra no século
XIX, de uma posição de liderança, com legitimidade política, mas sem comprometimento
total e incondicional de recursos.
Foi nesse contexto, de maior cautela e seletividade da política externa americana, que
surgiu a questão do Timor Leste.
100
Desde a Revolução dos Cravos ocorrida em Portugal em abril de 1974, os Estados
Unidos demonstraram preocupação com o desenrolar do processo de descolonização
português, em particular o africano, uma vez que, tanto Angola como Moçambique, tornaram-
se independentes sob a égide de movimentos de esquerda. Cunha (2001, p.169) faz o seguinte
comentário sobre o interesse americano no processo de descolonização português e conclui a
respeito da importância da Indonésia na Ásia:
O ano de 1975 não foi certamente dos mais positivos para os interesses globais dos
Estados Unidos da América. Além do malogro de sua intervenção no Vietnã, o
governo norte americano assistiu, naquele período, à condução, sob a égide de um
governo de esquerda, do processo de descolonização portuguesa. Na África, grupos
de orientação pró-soviética assumiam o poder em novos Estados soberanos. Em
Angola (território que abriga empresas petrolíferas norte-americanas), o governo dos
EUA viu o grupo que apoiava ser derrotado por um movimento auto-proclamado
marxista-leninista. Diante desses insucessos, numa fase intensa da Guerra Fria, a
Indonésia cresceu de importância como um aliado estratégico dos Estados Unidos.
Tendo de administrar aqueles sucessivos reveses, a administração norte-americana
não hesitou em emprestar solidariedade aos militares indonésios que apontavam os
perigos de um enclave comunista no interior do arquipélago.
No sudeste asiático, a questão do Timor ocorreu em um momento que não poderia ser
mais impróprio, pois os Estados Unidos ainda se encontravam extremamente fragilizados com
a derrota no Vietnã. Como já foi mencionado nos parágrafos anteriores, a derrota no Vietnã
foi uma das maiores razões de implementação da política da Détente e esta, por sua vez,
recomendava uma inserção americana mais seletiva e limitada. O momento era de
preocupação, mas não aconselhava uma intervenção direta. Em um documento oficial e
confidencial intitulado “Indonesia and Portuguese Timor” (Anexo E), anexado ao
“Memorandum to President Ford from Henry Kissinger, Your visit to Indonésia” (Anexo C),
ambos datados de 21 de novembro de 1975 e desclassificados (perda de classificação sigilosa)
em 2001, o interesse americano na questão do Timor Leste é declarado oficialmente da
seguinte forma:
We have taken the position that the US should eschew involvement in the Timor
situation and leave it’s resolution to the Indonesians, Portuguese, Australians and
101
Timorese themselves. There are no present calls for our involvement, with the
parties concerned in direct touch with each other and none seeking our help
A declaração anterior, embora pareça ter elencado a ordem dos atores de maneira
despretensiosa, assim não o fez. “Desde a queda do regime antiamericano de Sukarno e o
advento da Nova Ordem, em 1966, as relações Washington-Jacarta estreitaram-se
continuamente” (CUNHA, 2001, p.170). Àquela época, a Indonésia representava dois grandes
interesses para os americanos: um estratégico e outro ideológico. Do ponto de vista
estratégico, assim nos descreve o Memorandum to President Ford from Henry Kissinger,
“Your visit to Indonésia” (Anexo C), datado de 21 de novembro de 1975:
In the post-Vietnam enviroment, US interests in Indonésia are based both on it’s
present position in the region and, especially, on it’s anticipated future role.
Indonesia, the fifthmost populous nation in the world, is more than three times the
size of any other Southeast Asian country and includes within it’s border about half
the region’s total population. It is potentially one of the richest. It’s geographic
location and resourses are of major strategic importance in the region. Flanking the
Southeast Asian mainland, Indonesia controls the sea passages between the pacific
and Indian oceans, including Japan’slife line to Middle East Oil; it’s own oil fields
provides a significant portion of Japan’soil consumption and a small but increasing
part of our own oil imports. It’s other major resourses, rubber, tin and tropical
products are also of some significance to the United States
Do ponto de vista ideológico, o mesmo Memorando nos descreve:
On the international scene, Indonesia under Suharto has sought to carve out for itself
a somewhat unique diplomatic position as an anti-communist but non-aligned
country capable of carrying on a dialogue with both radical “Third World states and
the westwhile cautiously pursuing policies generally compatiblewith the later
É importante observar que, embora o território do Timor Leste se mantivesse sob
soberania portuguesa (até 7 de dezembro de 1975), os Estados Unidos não consideraram isso
um obstáculo a seu apoio à causa Indonésia. Burr e Evans (2001, p.4) comentam o ponto de
vista americano em relação a Portugal, da seguinte forma:
While Lisbon still had sovereignty over East Timor, apparently neither Ford nor
Suharto discussed the implications for indonesian policy. Although Washington had
worked closely with the Salazar dictatorship that ruled Portugal for decades, itwas
now deeply suspicious of the new social democratic regime in Lisbon; with its
102
exaggerated concerns about a Communist coup, the Ford administration considered
the possibility of expelling Portugal from NATO and supporting an independence
movement in the Azores (where US had important military facilities)
O apreço americano pelo regime da “Nova Ordem” pode ser aferido pelos dois
convites feitos pela Casa Branca ao presidente Suharto, para que o mesmo visitasse
Washington, em 1970 e 1975, respectivamente nas gestões de Nixon e Ford.
A visita de 1975 tem especial importância para a questão do Timor Leste. Suharto
visitou os Estados Unidos com o principal objetivo de certificar-se da continuidade do apoio
americano à causa anticomunista no sudeste asiático. Em diálogo com o presidente Ford,
Suharto expôs seu ponto de vista contido no “Memorandum of Conversation between
Presidents Suharto and Ford, 5 July 1975, 12:40 pm – 2:00 pm” (Anexo A)
Suharto: May I first convey my appreciation and gratitude, Mr President, for your
invitation to visit the United States. And onbehalf of the government and people of
Indonesia, may I convey our heartfelt congratulations for the 4
th
of July. I would
take this valuable opportunity and discuss the problems affecting not only Indonesia
but all of Southeast Asia in light of recente changes wich have swept the peninsula. I
had already obtained valuable information from Mr Habibie and from you in respect
to furthering American responsability to it’s allies in the Southeast Asia region.
After obtaining that information and valuable assesment, we have no fear that the
United States will abandon it’s responsability toward peace in the Southeast Asia
region. Considering the bitter and sad experience of the american people in Vietnã,
the US has givensuch great help and to have it turn out so it’s necessary to assess
why it happened to came aout so very badly after such american sacrifice
Ao observar-se a data da viagem, 5 de julho de 1975, percebe-se que, a essa altura, a
Operação Komodo já estava em andamento (ver subcapítulo da Indonésia como ator). No
mesmo diálogo da citação anterior, Suharto aproveitou-se da oportunidade para sondar os
Estados Unidos a respeito da questão do Timor Leste especificamente:
Suharto: Talks have been conducted bilaterally between us already. The third point I
want to raise is Portuguese decolonization [...] with respect to Timor, We support
carrying out decolonization through the process of self-determination. In
ascertaining the views of the Timor people, there are three possibilities:
independence, staying with Portugal, or to join Indonesia. With such a small
territory and no resourses, an independent country wouldly hardly be viable. With
Portugal it Would be a big burden with Portugal so far away. If They want to
integrate into Indonesia as an independent nation, that is not possible becouse
Indonesia is one Unitary state. So the only way is to integrate to Indonesia.
103
President Ford: Have the Portuguese set a date yet for allowing the Timor people to
make their choice?
Suharto: There is no set date yet, but is agreed in principal that the wishes of the
people will be sought. The problem is that those who want independence are those
who are communist-influenced. Those wanting Indonesia integration are being
subjected to heavy pressure by those who are almost communists. The communist
elements practically sabotaged the recent meeting in Macau. I want to assert that
Indonesia doesn’t want to insert itself into Timor self-determination, but the problem
is how to manage the self-determination process with a majority wanting unity with
Indonesia. These are some of the problens I wanted to raise on this auspicious
meeting with you.
Nesse encontro a reação americana foi furtiva e se limitou à pergunta de Ford já
inclusa na citação anterior.
Em 12 de agosto de 1975, dois dias após o golpe de Estado realizado pela UDT, Henry
Kissinger volta a reunir-se com seu “staff” para tratar do assunto e determinar qual seria a
posição americana a respeito (Anexo B).
A análise da transcrição dos diálogos da reunião revela alguns aspectos importantes.
Em primeiro lugar, os Estados Unidos demonstraram que não tinham certeza do que
realmente estava ocorrendo no Timor. Outra constatação importante é a clara afirmação que
um dos assessores de Kissinger (Habib) faz em relação à ameaça de dominação de um “grupo
comunista” no Timor, provavelmente referindo-se à Fretelin. Era a primeira vez que os
americanos consideravam, oficialmente, a ameaça comunista no Timor.
O documento também recomenda que os Estados Unidos não devem envolver-se no
assunto naquele momento, pois a Indonésia já estava “mobilizando algumas forças
silenciosamente” e Kissinger concorda que os americanos não deveriam expressar nenhuma
opinião em público.
Os diálogos também revelam outra preocupação importante dos americanos: a opinião
dos australianos, um aliado chave na região. Mais uma vez, na intenção de não causar
nenhuma controvérsia, Kissinger e seus assessores concordaram que o melhor a ser feito era
não emitir comentários, qualquer que fosse a opinião dos australianos: “[...] But in any event,
104
the important thing is that we should not get ourselves sucked into this one by having
opinions, unless you disagree – I mean publicly” (Anexo B)
A análise dos diálogos contidos no “Anexo B” leva à conclusão de que os americanos,
coerentes com a política da Détente, não tinham a intenção de se envolver diretamente na
questão e a Indonésia era o motivo para isso. O documento dá indícios da assunção americana
a respeito da intenção indonésia em invadir o Timor. Burr e Evans (2001, p. 5), partindo da
premissa de que os Estados Unidos já haviam assumido a iminência da invasão, fazem
referência a uma declaração do embaixador americano John Newson, datada de 16 de agosto
de 1975, retransmitida aos indonésios pelo Embaixador australiano em Jacarta, cujo conteúdo
era o seguinte: “[...] If Indonesia were to invade East Timor, it should do so effectvely,
quickly, and not use our equipment”. O conteúdo da mensagem não deixa dúvidas de que o
governo americano reconhecia a proibição imposta pelo seu próprio Congresso (Foreign
Assistence Act) a respeito da utilização de equipamento militar americano, recebido pelos
indonésios por um programa de auxílio militar, em atos de guerra que não fossem
exclusivamente em legítima defesa. Tal proibição encontrava-se no mesmo programa de
auxílio militar, cujo nome era Foreign Military Financing Program (FMF). Kissinger e seus
assessores reconheciam que a utilização de equipamentos americanos, em uma invasão,
poderia causar possíveis embaraços internos ao governo dos Estados Unidos, bem como inibir
a iniciativa indonésia para esse feito.
Em um documento elaborado duas semanas antes da visita de Gerald Ford à Jacarta (6
de dezembro de 1975), intitulado “Indonesia and Portuguese Timor” (Anexo E), Kissinger
assim expressa a posição americana a seu presidente:
A particular concern for us has been the possibility of na overt indonésia military
move into the territory, inevitably using US-supplied weapons in the process. We
have brought the matter quietly to the attention of the indonesian leaders, however,
and this has been a major factor in restraining Jacarta to date.
105
A análise de um outro documento, o “Embassy Jacarta Telegram 1579 to Secretary
State, 6 December 1975 [ Text of Ford-Kissinger-Suharto Discussion], Secret” (Anexo D), no
qual se encontram transcritos os diálogos entre Ford, Suharto e Kissinger, por ocasião da
visita do presidente americano à Jacarta em 6 de dezembro de 1975, demonstra, de maneira
inequívoca, o grau de consciência do governo de Washington de que uma invasão indonésia
ao Timor, com a utilização de equipamentos americanos, provocaria enorme constrangimento
ao futuro das relações entre os dois países. Segue a reprodução dos diálogos, na íntegra, a
partir do momento em que se faz referência ao assunto Timor Leste:
39. I would like to speak to you. Mr President, about another problem, Timor. When
it looked as if the Portuguese rule would end in Timor We sought to encourage the
Portuguese to an orderly decolonization process. We had agreement with them on
such a process and We recognized the authority of Portugal in the carrying out of
decolonization and in giving people the right to express their wishes. Indonésia has
no territorial ambitions. We are concerned only about security , tranquility and peace
of Asia and southern hemisphere. In tha latest Rome Agreement the Portuguese
government wanted to invite all parties to negotiate. Similar efforts were made
before but Fretelin did not attend. After the Fretelin forces occupied certain points
and other forces were unable to consolidate, Fretelin has declared its independence
unilaterally. In consequence, other parties declared their intention of integrating with
Indonesia. Portugal reported the situation to the United Nations but did not extend
recognition to Fretelin. Portugal, however, is unable to control the situation. If this
continues it will prolong the suffering of the refugees and increase the instability in
the area.
40. Ford- The four other parties have asked for integration?
41. Suharto- Yes, after the UDT, Indonesia found itself facing a fate accompli. It’s
now important to determine what we can do to establish peace and order for the
present and the future in the interest of the security of the area near Indonesia. These
are some of the considerations we are now contemplating. We want your
understanding if we deem it necessary to take rapid or drastic action.
42. Ford- We will understand and will not press you on the issue. We understand the
problem you have and the intentions you have.
43. Kissinger- You appreciate that the use of US-made arms could create problems.
44. Ford- We could have technical and legal problems. You are familiar, Mr
President, with the problems we had on Cyprus although this situation is diferrent
45. Kissinger- It depends on how we construe it. Whether it is in self defense or is a
foreign operation. It is important that whatever you do succeeds quickly. We would
be able to influence the reaction in America if whatever happens happens after we
return. This way ther would be less chance of people talking in an unauthorized way.
The president will be back on Monday at 2:00 pm Jacarta time. We understand your
problem and the need to move quickly but I am only saying that it would be better if
it were done after we returned.
46. Ford- It would be more authoritative if we can do it in person
47. Kissinger- Whatever you do, however, we will try to handle in the best way
possible.
48. Ford- We recognize that you have a time factor, we have merely expressed our
view from our particular point of view.
49. Kissinger- If you have made plans, we will do our best to keep every one quiet
until the president returns home.
106
50. Kissinger- Do you anticipate a long guerilla war there?
51. Suharto- There will probably be a small guerilla war. The local kings are
important, however, AND they are on our side. The UDT represents former
governmentofficials and Fretelin represents former soldiers. They are infected the
same as is the Portuguese Army with communist.
Uma apreciação mais acurada a respeito desse diálogo revela alguns detalhes
importantes. Inicialmente, Suharto destaca que a Indonésia não possui ambições territoriais,
que a Fretelin não cooperou com as negociações e que declarou a independência do Timor
unilateralmente. Aqui se observa uma clara tentativa indonésia em “demonizar” a Fretelin. A
continuação, Suharto sustenta que tal situação prolongará o sofrimento dos refugiados e
aumentará a instabilidade na área e que os outros quatro partidos remanescentes eram a favor
da integração do Timor à Indonésia, insinuando que a mera maioria do número de partidos era
suficiente para dispensar um referendo popular e que isso se constituía em um ato de
autodeterminação (ver p. 22). O pedido final de Suharto se faz pela solicitação de
“entendimento” dos americanos, caso os indonésios julguem necessária uma ação rápida e
drástica.
Suharto não ficou sem resposta, contudo, Ford não foi direto: “Nós entendemos e não
iremos pressionar vocês sobre o assunto. Entendemos o problema e as intenções que vocês
têm” (tradução nossa). Kissinger, por sua vez, já admitindo a invasão, assim se pronunciou:
“o uso de armas americanas pode criar problemas [...] depende de como nós construimos isso;
se em defesa própria ou em uma operação externa” (tradução nossa) (operações externas, via
de regra, são ofensivas). As palavras de Kissinger demonstram que ele não estava preocupado
se as armas e os equipamentos americanos seriam utilizados em uma operação ofensiva e, por
conseguinte, ilegal. Sua preocupação estava centrada na interpretação da ação dos indonésios,
um processo que ele claramente sinalizava querer manipular. Kissinger ainda acrescentou: “É
importante que o que quer que vocês façam se suceda rapidamente” (tradução nossa). A
preocupação com a questão da cronologia também era muito importante para os americanos.
107
Embora Kissinger reconhecesse a necessidade de rapidez, a fim de que se evitasse o
reconhecimento da independência do Timor pela ONU, deixa claro que qualquer ação seria
mais bem interpretada se fosse empreendida após o retorno do presidente americano aos
Estados Unidos, uma vez que esse comportamento permitiria aos mesmos um melhor controle
das reações nos Estados Unidos.
Estava dado o sinal verde para invasão indonésia ao Timor Leste. Com o
consentimento e a certeza do apoio americano, os indonésios invadiram o território do Timor
Leste em 7 de dezembro de 1975.
2.3.2 A questão da venda de armas para a Indonésia
A questão, para Washington, agora era dar um “ar” de legalidade à utilização de
equipamentos americanos durante a ação dos indonésios. Para tanto, a resposta inicial foi
atrasar as vendas de novas armas para a Indonésia e instaurar um processo administrativo de
revisão pelo Departamento de Estado. O objetivo desse processo era determinar se a
Indonésia havia realmente violado o acordo bilateral que estipulava a utilização de armas e
equipamentos americanos apenas em caso de propósitos defensivos. Burr e Evans (2001,p.7),
a respeito do período, destacam que:
Military equipment already in the pipeline continued to flow, however, and during
the six month review period the US made four new offers of military equipment
sales to Indonesia including maintenance and spare parts for the Rockwell OV-10
Bronco Aircraft, designed specifically for counterinsurgency operations and
employed during the invasion of East Timor
Igualmente, Berrigan (2001), faz o seguinte comentário:
While the international community protested, the U.S. government doubled military
aid to Indonesia and prevented the United Nations from taking effective action
against Suharto.[3] In 1977, reacting to public pressure, Congress held hearings to
investigate the U.S. role in Indonesia’s military action against its tiny neighbor. The
House International Relations Committee revealed that several major U.S. weapons
108
systems sold to Jakarta during this period-- including sixteen Rockwell OV-10
"Bronco" counter-insurgency aircraft, three Lockheed Martin C-130 transport
aircraft and thirty-six Cadillac-Gage V-150 "Commando" armored cars-- were used
against East Timor. Other U.S. weapons linked to the occupation, and referenced
during the hearing, included: S-61 helicopters, patrol craft, M-16 rifles, pistols,
mortars, machine guns, recoilless rifles, ammunition, and communications
equipment
De 1975 a 1999, os Estados Unidos continuaram a fornecer uma enorme quantidade de
armamento e treinamento militar aos indonésios. Essa assistência foi provida por intermédio
de dois programas básicos: o “International Military Educational and Training” (IMET) e o
“Foreign Military Financing Program” (FMF). O primeiro visava dar treinamento pessoal aos
militares indonésios e o segundo promovia o devido apoio pelo fornecimento de
equipamentos militares.
A assistência militar americana à Indonésia era vista como chave para a manutenção
de boas relações com um aliado que Washington considerava estratégico. Durante os 24 anos
da ocupação indonésia no Timor, os Estados Unidos transferiram mais de um bilhão de
dólares em armas para os indonésios (Berrigan, 2001). O quadro abaixo bem ilustra as vendas
de 1975 a 1995:
Table I presents data on trends in U.S. arms supplies to Indonesia from 1975 to 1995.
Table I:U.S. Arms Transfers to Indonesia, 1975-1995 (in millions of current dollars)
Year FMS Commercial MAP/Excess Total
1975 $51.6 $0.3 $13.1 $65.0
1976 3.7 6.7 26.9 37.3
1977 7.6 5.3 14.1 27.0
1978 109.6 3.0 14.4 127.0
1979 37.9 17.0 1.9 56.8
1980 14.6 6.2 5.4 26.2
1981 45.1 6.6 .9 52.6
1982 52.8 .1 1.9 54.8
1983 32.2 7.8 --- 40.0
1984 9.6 16.6 --- 26.2
1985 19.7 29.3 --- 49.0
1986 295.5 16.0 --- 311.5
1987 3.5 21.5 --- 25.0
1988 5.1 6.9 --- 12.0
1989 1.9 32.1 --- 34.0
1990 18.9 33.1 --- 52.0
1991 27.8 6.7 --- 34.5
109
1992 10.7 18.1 --- 28.8
1993 30.8 4.0 --- 34.8
1994 11.1 .8 --- 11.9
1995 11.3 1.2 --- 12.5*
Total $801.0 $239.3 $78.6 $1,118.9 million
Table I Sources: Data on orders under the Pentagon's Foreign Military Sales (FMS) program, the Commercial
arms sales program, and the Military Assistance Program and Excess Defense Articles (MAP/Excess) are drawn
from U.S. Department of Defense, Defense Security Assistance Agency, Fiscal Year Series as of September
1981 and Foreign Military Sales, Foreign Military Construction Sales, and Military Assistance Facts (annual,
various years, 1982 through 1996).
*Note: Clinton Administration figures on arms sales to Indonesia could jump dramatically if a pending $200
million sale of F-16 fighter aircraft is completed later this year
Fonte:http:// www.worldpolicy.org/projects/arms/reports/indoarms.html acessado em dezembro de 2005)
O fornecimento contínuo de armas aos indonésios certamente fortaleceu o Exército
daquele País no combate aos “insurgentes” em províncias rebeldes, o que inclui o Timor
Leste. A especificidade de alguns equipamentos não deixa dúvidas de que os Estados Unidos
conheciam muito bem os fins a que se destinavam. Esse é o caso do avião Rockwell OV-10
Bronco, especialmente fabricado para contra-insurgência (contraguerrilha).
José Ramos Horta, prêmio Nobel da Paz em 1996, expressou da seguinte forma a sua
dor pessoal a respeito da venda de armas dos Estados Unidos para a Indonésia e as suas
conseqüências sobre a população timorense:
In the summer of 1978, with East Timorese guerillas continuing to resist the
Indonesian military occupation, the war struck my family. My sister Maria Ortensia
was killed by a U.S.-made Bronco aircraft that was being used by Indonesian forces
in East Timor for counterinsurgency operations. The same year I lost two brothers,
Nunu and Guilherme, the first killed by fire from a U.S.-designed M-16 automatic
assault rifle made under license in Indonesia, and the second during a rocket and
strafing attack by a U.S.-supplied helicopter on an East Timorese village ( HORTA
apud Hartung, 1997)
Em 1991, durante o Massacre de Santa Cruz, a exposição de militares indonésios
atirando na população timorense com fuzis M16, de fabricação americana, causou alguns
embaraços no governo deste último país e levou o mesmo a tomar medidas mais enérgicas em
relação à Indonésia. Como conseqüência direta desse incidente, o Congresso americano, em
outubro de 1992, cortou a ajuda militar à Indonésia provida pelo IMET.
110
A atitude pareceu coerente aos olhos da comunidade internacional, contudo, os laços
de assistência não haviam sido completamente cortados. Sem o conhecimento ou a aprovação
do Congresso, os militares indonésios continuaram a receber treinamento americano, desta
vez, incluso em outro programa de assistência chamado “Joint Combined Exchange Training”
(JCET). De 1992 a 1997, as tropas indonésias foram treinadas em assalto aéreo, combate em
localidade e operações psicológicas em um total de 36 vezes (BERRIGAN, 2001). O JCET
foi suspenso pelo Pentágono em maio de 1998, sob forte pressão do Congresso.
Do ponto de vista do fornecimento de armamentos, somente em julho de 1993 os
Estados Unidos impuseram algum óbice à Indonésia, bloqueando uma venda de jatos F5 da
Jordânia para aquele país, alegando preocupações quanto a questões de direitos humanos. No
mesmo ano, foi aprovada uma emenda no Comitê de Relações Internacionais do Senado,
condicionando a maioria das vendas de armas à Indonésia, à melhora das condições dos
direitos humanos no Timor Leste. Em 1994, o Departamento de Estado norte-americano baniu
a venda de armas de pequeno porte e equipamentos de controle de distúrbios aos indonésios.
Em 1995 e 1996, essa medida foi ampliada para a venda de helicópteros e pequenos
blindados.
Em 1999, após a ocorrência dos incidentes que levariam à intervenção da ONU no
Timor Leste, os americanos, finalmente, romperam seus laços militares com os indonésios,
por um ato do Congresso conhecido como “Foreign Operations Appropriations Act of 2000”,
o qual estipulava que as relações militares entre os dois países não seriam restauradas até que
a Indonésia cumprisse as “Leahy Conditions”. O nome foi dado em referência ao Senador
Patrick Leahy e o seu conteúdo é o seguinte: 1) Permitir o retorno dos timorenses do Leste
deslocados à força para o Timor Oeste (Indonésia) e outras partes daquele País; 2) Usar
efetivas medidas para fazer justiça, julgando todos os militares indonésios envolvidos em
“ajuda ou cumplicidade com grupos de milícias”, ou envolvidos eles mesmos em violações
111
dos direitos humanos; 3) Auxiliar em investigações de direitos humanos por militares
indonésios e suas milícias e prevenir futuros ataques de milícias (BERRIGAN, 2001)
A despeito dessas condições não terem sido implementadas pelos indonésios, a
administração Bush, a partir dos efeitos do 11 de setembro de 2001, já sinalizava sua intenção
em restaurar laços militares com a Indonésia.
2.3.3 A perspectiva americana da questão na ONU
No seio das Nações Unidas, os Estados Unidos foram coerentes com a sua política
externa, apoiando, na maioria das vezes, os indonésios. Quando não apoiavam, a resposta
americana se dava por meio de abstenções. Cunha (2001, p.170) faz uma panorâmica do
comportamento americano na ONU no período que vai da eclosão da questão, com a sua
internacionalização em dezembro de 1975 (primeira condenação formal da ONU à invasão), a
1982, quando o problema é transferido da competência da Assembléia Geral da ONU para o
Secretariado:
Perante a reação da comunidade internacional, ecoada na Assembléia Geral, que
então se reunia, os EUA não puderam deixar de juntar o seu voto à resolução
condenatória do Conselho de Segurança, em dezembro de 1975. Já no plenário da
Assembléia Geral, a delegação americana votou pela abstenção. Tamm na
segunda votação do Conselho de Segurança, em abril de 1976, os EUA se
abstiveram de voltar a condenar a Indonésia. E nas subseqüentes resoluções votadas
pela Assembléia Geral, até 1982, os Estados Unidos mantiveram seu voto negativo
(CUNHA, 2001, p.170)
No âmbito da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH), os Estados
Unidos co-patrocinaram duas resoluções sobre o Timor Leste, uma em 1993 e outra em 1997.
É interessante destacar que as decisões tomadas na CDH são decisões tomadas fora do
contexto da Guerra Fria, onde as questões dos direitos humanos avultam em importância. Tais
decisões se dirigem muito mais à comunidade internacional do que à Indonésia propriamente
dita (CUNHA, 2001).
112
2.3.4 1999: a verdadeira mudança de atitude em relação ao problema
Em 1999, retornando à perspectiva bilateral da questão (Estados Unidos e Indonésia),
os Estados Unidos voltam a influenciar sobremaneira as decisões em Jacarta. A onda de
violência promovida pelas milícias indonésias no Timor Leste, logo após o resultado do
referendo de agosto de 1999, provocou diversas reações por parte da comunidade
internacional. Os Estados Unidos deveriam se pronunciar de imediato, sob pena de passarem
uma imagem de condescendência em relação aos abusos cometidos pelos indonésios. Seis
dias após a divulgação oficial do resultado do referendo, em 10 de setembro de 1999, em
viagem para Auckland (Nova Zelândia) a fim de participar da cúpula da APEC (Asia Pacific
Economic Cooperation), ainda a bordo do Air Force One, o Presidente Americano acusou os
militares indonésios de envolvimento direto nos incidentes de violência no Timor Leste. Foi a
primeira vez que o Presidente acusou a Indonésia de envolvimento direto na brutal campanha
patrocinada pelas milícias logo após o resultado do referendo. Clinton declarou que tal
situação era “simplesmente inaceitável”, sustentando que a atitude mantida pelos militares
indonésios era contrastante com os compromissos que esses haviam assumido com a
comunidade internacional.
Em suas palavras, Clinton exortou o governo e os militares indonésios a reverterem o
curso dos acontecimentos e a fazerem todo o possível para conter a violência, permitindo o
acesso de uma força internacional para facilitar a restauração da segurança no Timor Leste.
Reiterando as palavras de Clinton, o Conselheiro de Segurança Nacional da Casa
Branca, Samuel Berger, assim se pronunciou em briefing aos repórteres em Auckland, em 10
de setembro de 1999:
I think there is an enormous amount at stake here for the Indonesians, not only in
honoring their commitments to abide by the results of the Timor vote, but also in
113
terms of their standing in the international community and willingness of the
international community to be of material support (BERGER, 1999)
Na mesma entrevista, fazendo referência à suspensão dos programas militares
americanos na Indonésia, ocorrida na véspera, Berger (1999) afirmou que os Estados Unidos
estavam engajados em rever todos os acordos de cooperação comercial e econômica com a
Indonésia, dando uma clara demonstração do nível de pressão que os americanos estavam
impondo aos indonésios, a fim de que esses aceitassem o envio de uma força internacional da
ONU.
Quando perguntado por um repórter a respeito do envio de tropas da ONU sem a
permissão do governo indonésio, o Conselheiro foi enfático na questão da pressão que se
exercia sobre a Indonésia:
I think it is the view of most members of the international community, including
most of the Asians, that our focus at this stage should be on putting the maximum
amount of pressure on the Government of Indonesia to have created such a force
[…] The focus of the international community at this point, the focus particularly of
the Australians and others who would be in the lead, is putting a maximum degree of
pressure on the Government of Indonesia to agree to such a force coming in (…)
Diante de tamanha pressão patrocinada pelos Estados Unidos, o presidente Habibie
(Indonésia) anunciou, na noite de 12 de setembro de 1999, o “convite” às Nações Unidas para
que enviasse uma força de segurança para o Timor Leste. Em conferência à imprensa
realizada em 13 de setembro do mesmo ano, o presidente Clinton (1999) inicia suas palavras
agradecendo a iniciativa do presidente Habibie.
Let me begin by saying that I welcome the statement of President Habibie last night
inviting the United Nations to send a security force into East Timor. I think that this
is a real tribute to the determination of the friends of the people there, the
Australians, the New Zealanders here, all the people here at APEC who express
solidarity
Na mesma entrevista, Clinton envia um sinal tranqüilizador aos indonésios,
submetidos a enorme pressão nos dias anteriores:
114
I think there are a couple of points I'd like to make about it. Number one, it's
important to get the details worked out and get this force in in a hurry, in a way that
it can be effective. Number two, if that happens, then we can resume our work with
the people of Indonesia, the world's fourth largest country, to help their transition to
democracy and the restoration of prosperity there
Quanto à participação de tropas americanas na força internacional que se desdobraria
no Timor, Clinton deu claros sinais de que os Estados Unidos não teriam envolvimento direto
e que a questão deveria ser delegada aos países asiáticos sem, contudo, descartar o emprego
de suas tropas em missões de apoio logístico, comunicações e inteligência.
In terms of what our role would by in East Timor, we have had extensive
discussions with the Australians through our defense channels and we've been asked
to provide a limited, but important function related to airlift, transportation,
communications, intelligence, and perhaps in engineering work. Exactly what the
details would be have yet to be worked out and require more extensive consultations
with Congress [...]What we have been asked to do so far relates to airlift, what
countries are going to contribute to troops -- someone needs to take them to the
theater -- relates to transportation, communications, intelligence, and the possibility
of some engineering work. All of that would require some presence on the ground in
East Timor, but no one has asked for any combat troops [...]We might be asked to
provide some help on command and control. But keep in mind, a number of these
troops have worked together. There is a group here in this part of the Asia Pacific
region that train together, that work together, that do exercises together. So there is
some experience here. But there will be some work to be done, depending on how
many countries come on the command and control, and if we're asked to provide
some technical assistance there, of course, we'd be willing to help
Em 8 de setembro, quatro dias antes da aceitação indonésia em receber tropas da
ONU, o Conselheiro de Segurança Nacional, Sandy Berger, em uma coletiva de imprensa, foi
alvo de um questionamento interessante. Como não se sabia se a Indonésia iria ceder à
pressão americana e internacional para o emprego de tropas da ONU em seu território, um
repórter perguntou se, a exemplo do Kosovo, os americanos não poderiam fazer uma
intervenção direta no Timor. A seguir, a transcrição do diálogo:
[...]Q Secretary Cohen said that U.S. troops would not be involved in any
international presence, that it's not our role to be the world's policeman. Yet, it's a
role we only seemed too willing to accept in Kosovo. Why then and not now?
MR. BERGER: Well, I think that's a little bit of a -- as I read what Secretary Cohen
said -- a little sharper reading of what he said. It is, as I said earlier, if there is going
to be a security force that is invited in by the Indonesians, it should be led by the
Asians, but we will -- the President has indicated that we would support it. And we
115
are looking at ways in which we could provide material and support to such a force
if that becomes necessary.
Q Sandy, why do you see Indonesia's consent as a necessary? Do you see it as a
necessary condition for an international force being there? And, secondly, in what
venues at APEC do you expect this to be discussed? Will President Clinton raise it
directly with President Habibie?
MR. BERGER: The Australians, for one, have said that they would require -- that
they would want Indonesian consent. Without Indonesian consent, this is a non-
permissive environment, as we like to say in other contexts. And it's obviously a
very different kettle of fish if you're talking about going into East Timor in combat
with the Indonesian military
A resposta do assessor foi furtiva, mas deixou claro que os Estados Unidos não tinham
a intenção de se envolver diretamente e, muito menos, sem a autorização dos indonésios.
Os vínculos do passado com a Indonésia dificilmente permitiriam aos americanos
tomar uma decisão drástica desse nível (intervenção direta), pois a mesma significaria um
choque com as forças armadas indonésias, as quais eram antigas e velhas aliadas. Outro fator
que deve ter sido levado muito em conta, foi a situação política indonésia à época. Havia
pouco mais de um ano que Suharto deixara o poder e o momento era decisivo para a
consolidação da democracia do País. Mesmo sob um governo civil, a influência dos militares
na Indonésia era enorme. A pressão internacional para que a Indonésia autorizasse a presença
da ONU, de certa forma, enfraqueceria o poder militar e fortaleceria a democracia, na medida
em que o maior foco de resistência à presença de tropas estrangeiras eram os militares.
Um terceiro fator era a situação econômica na Indonésia. O País havia sido
severamente atingido pela Crise Econômica Asiática e estava, literalmente, de joelhos. Com
sua economia enfraquecida e necessitando de ajuda econômica estrangeira, a ameaça de
Clinton em impor maiores restrições caiu como uma bomba a agravar ainda mais a situação.
Os Estados Unidos, dessa forma, perceberam muito bem o momento político, pois a
Indonésia demonstrava-se, em tudo, debilitada. A autorização para o emprego da ONU em
solo timorense (ainda indonésio) era apenas uma questão de tempo. De fato, quatro dias após
essa entrevista, os indonésios vieram a ceder.
116
Outros fatores também podem ser apontados para a não-intervenção americana na
questão de forma direta. Um deles diz respeito à ONU e à questão do Kosovo e foi abordado
no estudo dessa Organização Internacional como ator. O outro se refere à Austrália e à sua
“pronta disposição” para comandar uma força multinacional que já foi explorado no estudo
desse país como ator.
Passada a intervenção, já com a situação consolidada em solo timorense, resta saber
qual a atitude dos Estados Unidos perante o mais novo país do mundo. Para tanto, este autor
se valerá da sua experiência in loco, uma vez que foi membro da Missão de Paz das Nações
Unidas no Timor, no período de junho de 2002 a dezembro do mesmo ano.
2.3.5 A atitude americana após a intervenção da ONU
Desconsiderando os aspectos econômicos e levando-se em consideração apenas os
aspectos estratégicos, não deixa de ser curiosa a presença americana no Timor após a
intervenção da ONU. Embora não fizesse parte da Missão de Paz da ONU, os americanos
mantinham no país um pequeno contingente de militares (dois ou três oficiais). Esse
contingente era tratado de forma amistosa pelos integrantes da Força de Paz e demonstrava
grande entrosamento com os australianos de boinas azuis. Tal relacionamento não era bem-
vindo por todos os integrantes da Força de Paz, pois havia uma grande suspeita de que ambos
os países trocavam informações, as quais não eram repassadas a todos os membros da ONU.
Prova disso, foi o vazamento de informações a respeito do atentado terrorista em Bali. Um
mês e meio antes do atentado, os australianos obtiveram dos americanos a informação de que
um atentado terrorista, cujo alvo seria a ONU, estava por acontecer no Timor. Sem dar
maiores explicações aos demais membros da Força Multinacional, os australianos sugeriram o
117
incremento das medidas de segurança à Missão, o que foi plenamente acatado em uma
operação que os portugueses batizaram de “Operação Tenaz”.
Acredita-se que o incremento das medidas de segurança em solo timorense tenha
deslocado o alvo do atentado para Bali. Não há certeza a respeito do fato, mas a proximidade
temporal entre os dois eventos é inequívoca. A Operação Tenaz teve inicio em setembro de
2002 e o atentado em Bali ocorreu no dia 12 de outubro do referido ano.
Em entrevista com este autor, o Coronel do Exército Brasileiro, José Luís Lisboa
Neiva, Observador Militar da ONU no Timor Leste, no período de março de 2002 a março de
2003, relatou que o governo timorense recebia assessoramento militar de um general
americano reformado, membro da pequena equipe de militares citada à página anterior. O
conteúdo dessa relação, de acordo com o entrevistado, não era do conhecimento da ONU.
Outra informação não confirmada dizia respeito a um comentário generalizado que
circulava nos corredores do Quartel General da Força de Paz. Comentava-se que os Estados
Unidos tinham interesse em operar duas futuras bases no Timor Leste. Uma base aérea, que
seria sediada em Baucau, e uma base de submarinos nucleares que seria instalada na ilha de
Ataúro. Nenhuma dessas informações possui suporte documental ou foi confirmada.
2.3.6 Conclusão para o ator Estados Unidos
O Timor Leste era uma fonte de preocupação para os americanos muito antes da
eclosão da Revolução dos Cravos em Portugal em abril de 1974. A maneira pela qual o
território havia sido colonizado, com um baixíssimo nível de investimento, era motivo
suficiente para gerar instabilidade na região, tão logo se tornasse independente, qualquer que
fosse a orientação política assumida.
118
Em 1974, a Revolução dos Cravos em Portugal foi fonte de preocupação para os
Estados Unidos no que diz respeito ao rumo político que seria procurado pelas colônias
portuguesas que recém se tornavam independentes. O Timor Leste incluía-se nesse contexto
político e, geograficamente, encontrava-se em uma região do planeta em que os Estados
Unidos haviam sofrido sua maior derrota militar de todos os tempos (a derrota na Guerra do
Vietnã na Ásia).
A derrota militar no Vietnã fragilizou os americanos e, associada ao declínio
econômico daquele país, foi uma das grandes responsáveis pela mudança de rumos da política
externa de Washington.
A política da Détente, vigente à época em que a questão do Timor eclodiu,
recomendava intervenções internacionais mais seletivas e a busca de parcerias regionais que
fossem capazes de tornar concretos os objetivos estratégicos americanos.
Temerosos de que o Timor Leste viesse a se tornar comunista, os americanos
endossaram os anseios indonésios de anexação do Timor. A Indonésia havia se tornado uma
forte aliada desde o estabelecimento da Nova Ordem de Suharto e seu interesse pela questão
do Timor ia plenamente ao encontro dos objetivos americanos. Tendo encontrado quem
fizesse o “trabalho sujo”, os Estados Unidos deram o sinal verde para a anexação do Timor
pela Indonésia, mesmo desrespeitando a lei que vetava a utilização de armas americanas em
ações que não fossem exclusivamente de autodefesa.
Com o passar dos anos e a consolidação da presença indonésia no Timor, a antiga
identificação ideológica transformou-se em uma sólida parceria econômica refletida no
volume do comércio de armas de Washington para Jacarta. As mesmas armas que geravam
grandes lucros para os americanos eram as responsáveis pela repressão política que os
indonésios impunham às províncias que consideravam rebeldes e o Timor não escapava dessa
realidade.
119
O declínio do regime de Suharto, ao término dos anos 90, e os constantes abusos
indonésios em questões relativas à preservação dos direitos humanos dos timorenses tornaram
insustentável a manutenção do domínio político indonésio no Timor. Os Estados Unidos
precisavam se posicionar a respeito. Mais do que um simples toque de retórica, era necessária
uma postura pragmática, especialmente após os incidentes de agosto de 1999, na onda de
violência do pós-referendo.
Os Estados Unidos tinham de ser prudentes ao lidar com a Indonésia. O país era um
antigo aliado que se encontrava em pleno processo de democratização, além de ter sido
fortemente abalado pela Crise Econômica Asiática de 1997. Qualquer medida que viesse a ser
adotada tinha de ser enérgica, mas não poderia desmoralizar a Indonésia. A solução
encontrada foi a de condicionar ajuda econômica ao “afrouxamento” dos laços políticos que
vinculavam a Indonésia ao Timor. Sem a interferência americana a pressionar os indonésios,
dificilmente a solução para o impasse teria ocorrido da maneira como ocorreu.
2.4 Outros Atores relevantes
Este subcapítulo destina-se ao estudo de outros atores fundamentais à questão do
Timor Leste. Embora sejam muito importantes no estabelecimento das circunstâncias que
forjaram todo o ambiente em que se deu a questão, esses atores não possuem o mesmo peso
dos demais estudados até agora. São eles: a Austrália, a ONU, e o próprio Timor Leste.
A Austrália, embora fosse a potência regional em melhores condições para influenciar
o desfecho da questão em 1975, era e ainda é extremamente direcionada pela posição norte-
americana. A ONU, como já se sabe, atuou, de uma maneira geral, até a década de 90,
fortemente influenciada pelo veto das grandes potências e limitou-se à condenação retórica
dos abusos e desmandos cometidos pela Indonésia, mudando sua maneira de agir somente a
120
partir de 1999. O Timor Leste, a sua vez, foi mais vítima do que condutor de seu próprio
destino, contudo, não se pode menosprezar o peso de sua resistência, verdadeira amostra do
seu desejo em se autodeterminar.
Por esses e outros motivos é importante que se mencionem as contribuições de cada
um desses atores do momento em que se estabeleceu a questão, em 1975, até o início de seu
desfecho, em agosto de 1999. O ator Timor Leste foi mencionado como um ator relevante,
contudo, sua abordagem já foi realizada na Introdução, o que dispensa a sua repetição neste
capítulo. Como se tratam de abordagens menores do que as realizadas nos capítulos
anteriores, não será feita uma conclusão para o capítulo, entretanto, os parágrafos finais de
cada ator encerrarão, em si, as principais idéias a respeito de cada um.
2.4.1 A Austrália como ator
As relações da Austrália com o Timor Leste se dão por duas vias. Uma estratégica e
outra econômica.
Situado a apenas 480 km a noroeste do continente australiano, o Timor Leste sempre
foi uma fonte de preocupação para essa potência regional (Austrália).
Durante a II Guerra Mundial, a ilha do Timor, como um todo, foi invadida por um
efetivo de 20.000 japoneses que ali se estabeleceram com o objetivo de preparar uma ofensiva
para a invasão da Austrália.
De acordo com Camargo (2001), os australianos e os holandeses, antevendo a
estratégia japonesa, invadiram a ilha em dezembro de 1941. Os japoneses iniciaram sua
invasão em fevereiro de 1942. O Timor Leste tornou-se um campo de batalha e a população
local foi forçada a apoiar um dos lados. Camargo (2001) relata que atitude arrogante dos
nipônicos, associada à brutal prática de estupros, confisco de alimentos e execuções sumárias
121
de famílias inteiras, levou os timorenses a se posicionarem contra os japoneses. Nas palavras
do referido autor: “com apenas 400 comandos australianos e com perda de 60.000 vidas
timorenses (13% da população na época), cerca de 20.000 japoneses foram expulsos da ilha”.
(CAMARGO, 2001, p.144).
O episódio ficou conhecido como a “Batalha de Timor” e sua relevância para os
acontecimentos de 1975 reside no fato de que tantas mortes do lado timorense teriam gerado
uma espécie de “dívida moral” para os australianos. Em virtude do apoio dado aos
australianos durante a II Guerra Mundial, os timorenses esperavam a retribuição desses a sua
independência em 1975, ou, na pior das hipóteses, a sua integração ao território australiano.
Além da dívida moral gerada pela II Guerra Mundial, os timorenses viam no governo
trabalhista australiano uma esperança de apoio à sua causa. Nem a dívida moral gerada pela II
Guerra Mundial e nem a presença de um governo trabalhista em Camberra foram capazes de
despertar a simpatia australiana à causa timorense.
O Primeiro Ministro australiano à época, Gough Whitlam, havia desenvolvido relações
políticas muito fortes com o líder indonésio Suharto. Em reunião na cidade javanesa de
Wonosobo, em setembro de 1974, Whitlam teria dito a Suharto que um Timor independente
seria um “estado inviável, e uma potencial ameaça a estabilidade da região” (tradução nossa)
(WIKIPEDIA, The History of East Timor).
A preocupação política de que o Timor Leste se transformasse em um país comunista
(preocupação compartilhada com os Estados Unidos) e a expectativa de novas descobertas de
petróleo em águas timorenses, colocou australianos e timorenses em lados opostos, embora a
retórica oficial do governo australiano fosse diferente.
A atitude dos australianos foi tão pragmática que seu governo teve de colocar “panos
quentes” em um episódio que levou à morte seis repórteres de seu país, mortos por Forças
122
Especiais do Exército Indonésio, após terem descoberto que essas forças haviam se infiltrado
no Timor Leste, em setembro de 1975, na região de Balibo.
As palavras do embaixador australiano em Jacarta, Richard Woolcott, em um
telegrama enviado a Camberra, em julho de 1975, não deixavam dúvidas quanto ao
posicionamento oficial daquele país:
We should leave events to take their course […]and act in a way wich would be
designed to minimize the public impact in Australia and show private understanding
to Indonesia of their problems […] I know I am recommending a pragmatic rather
than a principled stand but that is what national interest and foreign policy is all
about”(Wolcott apud Pilger, 1994)
Em maio de 1971 e outubro de 1972, foram assinados dois tratados entre a Austrália e
o governo indonésio, a vigorar efetivamente em novembro de 1973, estabelecendo as
fronteiras marítimas entre aqueles países. Os referidos tratados foram assinados baseando as
fronteiras marítimas no princípio que considerava a plataforma continental, e não a linha
mediana, como principal fator de divisão. Esses tratados favoreciam claramente a Austrália e,
como Portugal não havia participado das reuniões, tanto a Austrália como a Indonésia ficaram
impossibilitados de estabelecer a linha divisória entre o Timor português e a Austrália,
criando o que viria a ser conhecido “Timor Gap”.
Em 1974, o campo de gás “Sunrise” é descoberto na área do Timor Gap, o que gera
cobiça por parte dos australianos.
Em 17 de agosto de 1975, em telegrama enviado a Camberra, o embaixador
australiano em Jacarta, Richard Woolcott, mais uma vez, deixa clara a real intenção
australiana em relação à questão do Timor e revela o verdadeiro interesse de seu país:
“[...] closing the present gap in the agreeded sea border [...] could be much more
reality negotiated with Indonesia […] than with Portugal independent Portuguese Timor”
(La'O Hamutuk Bulletin, vol3, No.8: December 2002 (2/3)).
123
Em 20 de Janeiro de 1978, a Austrália reconhece, de fato, que o Timor Leste faz parte
da Indonésia e, em fevereiro de 1979, inicia as negociações com aquele país para
estabelecimento de fronteiras marítimas. O reconhecimento australiano ratificou sua posição
pragmática em relação ao Timor Leste, tendo sido o único país do mundo a fazê-lo, o que
gerou manifestações contrárias, principalmente em Portugal (vide subcapítulo de Portugal
como ator).
Em 11 de dezembro de 1989, Austrália e Indonésia assinam o “Timor Gap Treaty”
estabelecendo uma zona de cooperação entre os dois países acima da linha mediana que une o
Timor Leste à Austrália e dividindo os lucros da exploração de petróleo em 50% para cada
país.
A assinatura desse tratado levou Portugal a ingressar com uma ação na Corte
Internacional da Justiça, por considerar que, tanto o direito do povo timorense à
autodeterminação como o direito português como potência administrativa do Timor, haviam
sido violados. Como a Indonésia não reconhece a jurisdição dessa Corte, a Austrália foi o
único país demandado. Em junho de 1995, a Corte se declara incompetente para julgar o caso,
tendo em vista o não-reconhecimento indonésio àquela jurisdição.
A atitude do governo australiano permanece sendo pragmática ao longo da década de
90 até perceber, em 1998, uma grande mudança de rumo na política interna indonésia. A
Crise Asiática havia enfraquecido a economia e o regime de Suharto, antigo aliado dos
australianos. O novo governo indonésio sinalizava, nas atitudes de Habibie, uma nova política
em relação ao Timor Leste e a independência daquele território parecia ser inevitável. Já
tendo investido um considerável capital, por intermédio de empresas privadas da região, a
Austrália tinha o máximo interesse em garantir a continuidade dos acordos que havia firmado
com a Indonésia e coloca suas tropas à disposição da ONU, para encabeçar uma intervenção
armada, caso isso se faça necessário.
124
A participação australiana na missão da ONU no Timor se torna efetiva e o País
comanda a ação militar ocorrida em setembro de 1999. Com essa participação, a Austrália
atinge dois objetivos. Um político e outro econômico. Do ponto de vista político, a Austrália
se redime de sua ingratidão pelo episódio da II Guerra Mundial e do seu apoio, quase que
explícito, à anexação do Timor pela Indonésia em 1975. Do ponto de vista econômico, a
Austrália mantém o Timor Leste sob certo nível de dependência ao barganhar seu apoio à
independência do Timor à devida contrapartida da manutenção de seus interesses na questão
do petróleo.
Atenta a essa realidade, a ONU, enquanto administradora temporária do território
timorense pela United Nations Transitional Administration in East Timor (UNTAET),
promoveu a revisão dos acordos originais entre Austrália e Indonésia e, em 5 de julho de
2001, assina com a Austrália o memorando de entendimento chamado “Timor Sea
Arrangement”, que estabelece a participação dos lucros pela exploração do petróleo em 90%
para os timorenses e 10% para os australianos.
Atualmente, Timor e Austrália seguem negociando diversos acordos bilaterais. Os
episódios do passado ainda são muito fortes na memória do povo timorense e,
freqüentemente, são utilizados como bandeira política à obtenção de apoio econômico da
Austrália. Por parte dos australianos, ocorre o contrário, a liberação de apoio econômico é
que condiciona sua barganha na questão do petróleo. A tendência futura é que haja
entendimento entre ambas as partes na medida em que seus interesses econômicos sejam
satisfeitos.
125
2.4.2 A ONU como ator
Este subitem do capítulo 2 tem como objetivo descrever a atuação da ONU desde a
eclosão da questão do Timor, em 1975, até as vésperas da intervenção desse mesmo
Organismo, em setembro de 1999, diretamente em território timorense por intermédio de uma
força multinacional. Essa delimitação se explica pela existência de um capítulo próprio, em
que será feita uma análise do papel da ONU, já como interventora no Timor Leste (capítulo 4)
Neste subitem, será dada ênfase à atuação política da Organização no trato da questão
do Timor e a variação que essa atuação teve ao longo dos 24 anos de duração da ocupação
indonésia.
Quando Portugal ingressou na ONU, em 1955, foi obrigado a declarar se administrava
algum território não-autônomo de acordo com o previsto no artigo 73 da Carta das Nações
Unidas. Como artifício utilizado a fim de evitar que suas colônias fossem consideradas
territórios não-autônomos, a revisão constitucional de 1951 chamou esses territórios de
“províncias ultramarinas”, as quais deveriam ser consideradas como parte de um território
nacional pluricontinental, unitário e plenamente soberano. A estratégia portuguesa, para
furtar-se à obrigação contida no artigo 73 da Carta das Nações Unidas, foi a de declarar que
não possuía territórios não-autônomos, mas sim, províncias ultramarinas. O esforço português
foi em vão. A ONU considerou todas as províncias ultramarinas portuguesas como territórios
não-autônomos e isso se deu com a Resolução 1542 (XV) da Assembléia Geral, de 14 de
dezembro de 1960. Essa foi a primeira vez que o Timor Leste recebia atenção das Nações
Unidas.
Passados 15 anos, em 1975, o Timor Leste voltaria a ser alvo das atenções das Nações
Unidas com as duas condenações daquele Organismo à anexação indonésia. As Resoluções
3495 (XXX) da Assembléia Geral das Nações Unidas e a 384, do Conselho de Segurança,
126
respectivamente de 12 e 22 de dezembro de 1975, foram os instrumentos formais dessa
condenação pela ONU.
Ato contínuo às duas condenações formais da ONU, aquele Organismo nomeou um
representante especial para o caso, o senhor Vittorio Winspeare Guicciardi, que acabou sendo
impedido de ingressar em território indonésio (ver capítulo três – A Indonésia como ator)
Em 22 de abril de 1976, o Conselho de Segurança produziu nova Resolução
condenatória à invasão: a Resolução 389. Essa Resolução não foi unânime e contou com duas
abstenções: Estados Unidos e Japão. Segundo Cunha (2001), essa Resolução foi o prenúncio
da crescente falta de apoio que todas as Resoluções sobre o Timor Leste experimentariam na
Assembléia Geral até 1982.
O aspecto mais importante das condenações da ONU à anexação indonésia foi a
definição do status jurídico para o território, o que perdurou até 1999, quando a Organização
assumiu as funções de governo daquele país. Para a ONU, o Timor Leste continuou a ser
considerado um território não-autônomo e Portugal sua potência administrante.
A partir de 1982, Portugal percebeu que, se a questão continuasse a ser gerenciada
pela Assembléia Geral, o seu desfecho seria o reconhecimento jurídico da situação de fato
imposta pela Indonésia. A questão do Timor Leste, de acordo com a Resolução 37/30 de 23
de novembro de 1982, passou da responsabilidade da Assembléia Geral para o Secretário
Geral, que deveria encontrar soluções para o problema, consultando as partes diretamente
envolvidas.
A mudança do trato da questão da Assembléia Geral para o Secretário Geral veio
acompanhada de uma mudança de enfoque. A questão do Timor Leste passou a privilegiar
aspectos humanitários em detrimento da questão central que era a autodeterminação. Nas
palavras de Cunha (2001, p.160):
O diálogo sob os auspícios do secretário-geral da ONU teve início em dezembro de
1983, em nível de representantes permanentes junto às Nações Unidas, sendo
127
possível distinguir três fases no desenvolvimento daquelas conversações. Conforme
previamente acordado, foram enfatizadas, num primeiro momento, as questões
humanitárias. Com a colaboração do Comitê Internacional da Cruz Vermelha,
possibilitou-se a saída de alguns timorenses do território, em programas de reunião
familiar, bem como o repatriamento de antigos funcionários da administração
colonial
De 1982 a 1997, a situação pouco se alterou sob os auspícios do Secretário Geral,
entretanto, em 1997, a nomeação de um representante especial exclusivo para dedicar-se à
questão, o paquistanês Jamsheed Marker, deu novo alento ao tema. Pela primeira vez, os
indonésios aceitavam que a discussão do tema não passasse necessariamente pelo
reconhecimento, a priori, da soberania indonésia sobre o território.
Nos anos 80, a crescente valorização da Comissão de Direitos Humanos da ONU
(CDH) muito contribuiu para chamar a atenção da comunidade internacional sobre o Timor
Leste. Como a ênfase da abordagem da questão migrou do aspecto político da
autodeterminação para as questões de cunho humanitário, Portugal aproveitou esse braço da
ONU (CDH) para concentrar suas reivindicações e dar maior visibilidade ao tema.
Dois fatores contribuíram para a valorização do tema na CDH: o Massacre de Santa
Cruz, em 1991, e a universalização da temática dos direitos humanos, consagrada pelo
princípio de que a negação do direito à autodeterminação de um povo constitui uma violação
de seus direitos humanos (artigo 2º da Declaração de Viena de 1993). Os constrangimentos a
que a Indonésia foi submetida nessa Comissão, certamente, contribuíram para o
encaminhamento da questão.
Em 1999, já tendo um representante especial do Secretário Geral designado para
cuidar do caso, a ONU abandona sua postura meramente retórica e, aproveitando-se das
transformações políticas que ocorriam no seio da Indonésia, assume uma postura mais ativa.
Em maio daquele ano, a ONU patrocina os “Acordos de Nova York”, os quais foram acordos
tripartites (ONU, Portugal e Indonésia) que estabeleciam as etapas e as responsabilidades pelo
128
referendo que deveria decidir se o povo timorense se tornaria independente ou se manteria
indonésio, porém gozando de alguma autonomia.
A postura mais ativa da ONU não foi conseqüência exclusiva do momento político
vivenciado pela Indonésia àquela data. A Organização passava por um difícil momento que
foi o da atuação unilateral e não consentida da OTAN na questão do Kosovo. Era preciso
demonstrar capacidade de atuação, uma vez que a inação na questão do Kosovo levara a ONU
a uma crise de credibilidade. França (2004, p. 123), assim se refere à ocupação do espaço
político da ONU pela OTAN:
Assim, o que há de concreto é a OTAN, com seu Novo Conceito Estratégico, e os
EUA com um poder político-militar-estratégico indisputável liderando esta
organização. Se o Kosovo serve de balizamento, não são, portanto, infundadas as
considerações do Governo indiano. Este afirmou que a nova doutrina, que permite
operações além da região euro-atlântica e fora do território da Aliança, é motivo de
preocupação e que qualquer ação dessa natureza ocorreria em contravenção ao
direito internacional e às normas de coexistência pacífica entre as nações e da Carta
das Nações Unidas. Deplorou, ademais, a tendência crescente da OTAN de usurpar
o poder e as funções do Conselho de Segurança da ONU.
A influência do Kosovo na questão do Timor será abordada mais detidamente também
em outros capítulos.
Nessa fase de postura mais ativa da ONU, cabe destacar o trabalho desenvolvido pela
Organização na implementação do referendo no Timor Leste. A Missão de Assistência das
Nações Unidas no Timor Leste (UNAMET), estabelecida pelo Conselho de Segurança em 11
de junho de 1999, recenseou 451.792 eleitores, organizando e levando a efeito todo o
processo de consulta popular realizado em 30 de agosto de 1999, processo esse que culminou
com a manifestação do povo timorense pelo seu desejo em se autodeterminar. Em apenas dois
meses e meio, a Organização tomou todas as medidas necessárias ao referendo e à sua
apuração. Nas palavras de Wimhurst (2000, p. 69)
O problema de tempo era extremamente exigente. A data inicial da votação estava
prevista para o dia 8 de agosto. Tínhamos apenas três meses para organizar a missão,
formar pessoal, transportar todos os materiais logísticos necessários, veículos de
transporte, comunicações, etc. Além disso, era necessário proceder ao
129
recenceamento de toda a população de Timor, organizar a campanha eleitoral,
realizar as eleições, contar os votos e, por último, divulgar os resultados. Tudo isto
em três meses!
Esses foram os principais fatos e eventos que marcaram o relacionamento da ONU
com a questão do Timor Leste até a intervenção da Organização naquele território em 1999.
Durante 24 anos, o posicionamento da Organização variou de acordo com a postura política
assumida pela mesma. De uma abordagem mais jurídico-política, à ênfase na questão dos
direitos humanos, o comportamento da Instituição sempre foi reativo, refletindo o
direcionamento que lhe era dado pelos principais atores envolvidos, em especial, Portugal e
Estados Unidos. Em 1999, essa tendência parece ter sido quebrada e a busca por uma
identidade perdida parece ter feito com que a Organização tenha assumido uma postura mais
pró-ativa, conforme ficou evidenciado nos trabalhos da UNAMET.
130
3 AS MISSÕES DE PAZ DA ONU: A EVOLUÇÃO DA FACE MAIS VISÍVEL DE
ATUAÇÃO DE UM ORGANISMO INTERNACIONAL
O século XX testemunhou as duas maiores guerras pelas quais a humanidade já
passou. O aperfeiçoamento dos armamentos, ocorrido tanto na I como na II Guerra Mundial,
provocou um significativo aumento no número de baixas e a conseqüente banalização dos
conflitos, cujas performances eram contabilizadas em “milhões” de mortes impostas ao
inimigo. A esse respeito, Vizentini (2003, p.38 e 49) nos relata algumas passagens sobre a I
Guerra Mundial:
[...] Para cumprir a primeira tarefa, foram enviados recursos materiais para reforçar
o exército russo, que desencadeou a Ofensiva de Brussilov contra os austro-alemães
na Galícia. A ofensiva russa logrou um avanço de cinqüenta quilômetros, o que não
é muito para a geografia da região, sofrendo meio milhão de baixas. (Vizentini, 2003
[...] Os ingleses, por sua vez, lançaram em julho uma ofensiva em Ypress, tentando
conquistar o litoral de Flandres, onde os alemães possuíam bases de submarinos.
Esses últimos empregaram contra os atacantes gás asfixiante e substituíram a frente
contínua por uma defesa móvel, com o uso intensivo de metralhadoras. Depois de
cem dias de ofensiva, os ingleses ocuparam apenas oito quilômetros a um custo de
quatrocentas mil baixas (os alemães tiveram duzentas e quarenta mil).
O aumento do número de baixas não foi a única conseqüência nefasta dessas duas
guerras. Outro fenômeno, talvez de maior relevância, mereça igual menção: a
“mundialização” dos conflitos. O próprio nome, Guerra Mundial, exprime a idéia central de
um conflito que se alastrara pelos quatro cantos do mundo.
A crueldade e a mundialização desses dois conflitos expôs a humanidade a seus
limites. A reação das lideranças vencedoras foi a criação de organismos internacionais que
visavam, em última instância, evitar a recorrência da guerra.
131
3.1 O sistema de segurança coletiva da Carta das Nações Unidas
De comum entre a Liga das Nações e as Nações Unidas, pode-se dizer que ambas as
organizações criaram aquilo que seria conhecido como o sistema de segurança coletiva
universal. Fontoura (1999, p.35) nos revela que “os organismos internacionais trouxeram, no
século XX, algo de novo em matéria de paz e segurança internacionais: o sistema de
segurança coletiva de alcance universal”.
Tanto a Liga das Nações, em 1919, como as Nações Unidas, em 1945, idealizaram a
promoção da paz mundial de duas formas básicas: a solução pacífica de controvérsias
(soluções diplomáticas) e a busca de instrumentos de sanção (militar ou não) contra aqueles
estados que desafiassem a comunidade internacional.
Na prática, ambos os sistemas de segurança coletiva (Liga das Nações e ONU)
obtiveram êxito limitado, o que levou, principalmente na ONU, ao desenvolvimento de
mecanismos inéditos de atuação que permitiram o emprego dessas organizações no campo da
paz e da segurança internacionais. Nesse contexto, surgiram as Operações de Manutenção da
Paz, cuja evolução histórica será o cerne deste capítulo.
Embora a experiência da Liga das Nações seja relevante na área da manutenção da paz
e da segurança internacionais, essa organização não será abordada na presente dissertação,
uma vez que o estudo em questão se restringe à Organização das Nações Unidas. Entretanto, é
importante que se ressalte que algumas idéias atribuídas originalmente à ONU, surgiram, na
verdade, à época da Liga das Nações.
Fontoura (1999, p.37), descreve em sua obra este breve resumo a respeito das
contribuições da Liga das Nações para a manutenção da paz e da segurança internacionais:
Embora destituída de resultados significativos no campo da paz e da segurança, a
Liga deu ensejo à aparição de idéias concretas, respaldadas em nível governamental,
sobre a criação de uma força militar internacional permanente ou de um sistema de
pronto emprego de contingentes nacionais; ajudou a desenvolver uma consciência
132
jurídica contrária ao recurso à guerra nas relações internacionais e criou precedentes
em matéria de técnicas de manejo de conflitos. Tais técnicas envolviam, entre outros
aspectos, a administração temporária de territórios ou cidades por representantes
especiais e o envio de observadores ou de forças militares para cumprirem mandatos
que iam desde a manutenção da lei e da ordem e a supervisão de referendos até o
monitoramento da separação das forças beligerantes, a observância de armistícios e
cessar-fogos, a preservação de regiões desmilitarizadas ou zonas de separação de
forças e a adoção de medidas de fortalecimento de confiança para reduzir tensões.
Essas tarefas se assemelhavam aos mandatos das operações de manutenção da paz
da ONU depois da II Guerra Mundial.
3.2 Os capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas
A criação da Liga das Nações não foi suficiente para evitar a II Guerra Mundial e isso
levou as grandes potências vencedoras desse conflito a considerar a hipótese de criação de
uma nova organização internacional, ainda ao término da guerra.
A Carta das Nações Unidas decorre de um processo de negociação que começou a
ganhar corpo na Conferência de Dumbarton Oaks, de agosto a outubro de 1944, quando
China, Estados Unidos (EUA), Reino Unido e União Soviética (URSS) se reuniram para
discutir o assunto.
Em Dumbarton Oaks, foi delineado o esqueleto jurídico básico da ONU, atribuindo-se
a um órgão reduzido, no qual as grandes potências gozariam de privilégios especiais, a
responsabilidade primordial pelo gerenciamento dos assuntos referentes à paz e à segurança
internacionais. Esse órgão, conhecido originalmente como “Executive Council” (PATRIOTA,
1998, p.18), viria a ser denominado, anos mais tarde, Conselho de Segurança das Nações
Unidas (CSNU).
As negociações em Dumbarton Oaks não foram definitivas para a redação final da
Carta das Nações Unidas, uma vez que se concentraram na exploração do tema da segurança
coletiva. Outras conferências complementariam as discussões realizadas em Dumbarton Oaks,
133
como foi o caso da Conferência de Ialta, em 11 de fevereiro de 1945, e a Conferência das
Nações Unidas, realizada em São Francisco entre 25 de abril e 25 de junho de 1945.
Em Dumbarton Oaks, segundo Patriota (1998, p.18), “os pontos que maior
controvérsia geraram foram o da composição do órgão responsável pelas questões de
segurança e o da opção entre uma força internacional permanente ou forças ‘ad hoc’, a serem
convocadas em caso de necessidade”. Em relação ao primeiro ponto de controvérsia, as
principais delegações a debaterem o tema da segurança coletiva foram as delegações dos
EUA, do Reino Unido e da URSS, as quais negociaram o texto básico, posteriormente
submetido à China. A esses quatro membros, acrescentou-se a França, por insistência
britânica e sob protesto da URSS. Esses cinco países viriam a constituir os cinco membros
permanentes (P-5) do Conselho de Segurança e seriam dotados do poder de veto. O segundo
tema de maior controvérsia, que diz respeito ao tipo de força a ser empregada em caso de
necessidade, será abordado posteriormente.
O delineamento da Carta das Nações Unidas, feito pelas grandes potências
vencedoras, estabeleceu o sistema de segurança coletiva baseado, essencialmente, em dois
capítulos. O capítulo VI da Carta estabelece as medidas não-coercitivas (diplomáticas) para a
obtenção e manutenção da paz e da segurança internacionais. O capítulo VII, por sua vez,
estipula as ferramentas coercitivas à disposição da Organização para impor (Enforcememt) a
paz em termos predominantemente militares. De acordo com Fontoura (1999, p.50):
[...] cumpre salientar, antes de mais nada, que o modelo de segurança coletiva
constante da Carta das Nações Unidas é reforçado por um conjunto de propósitos e
princípios, capitulados nos artigos 1 e 2 daquele instrumento, que deve nortear o
relacionamento dos Estados no cenário internacional.
Ainda segundo o mesmo autor, em termos gerais, a Carta das Nações Unidas ressalta:
[...] a Carta das Nações Unidas ressalta que seus membros devem resolver
controvérsias por meios pacíficos de modo que não se perturbe a paz, a segurança e
a justiça internacionais (artigo 2, §3; artigo 33). Eles devem também evitar a ameaça
ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de
134
outros Estados, ou qualquer outra ação incompatível com os propósitos da
Organização (artigo2, §4). Devem, ainda, dar às Nações Unidas toda assistência, em
qualquer ação adotada consoante a Carta, abstendo-se de prestar auxilio a qualquer
Estado contra o qual a Organização aja, de modo preventivo ou coercitivo (artigo 2,
§5). No tocante à segurança internacional, os membros assumem o compromisso de:
acatar as sanções decididas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU), cujas modalidades podem variar (artigo 41); proporcionar ao Conselho, a
seu pedido e de conformidade com acordos especiais, forças armadas, assistência e
facilidades (artigo 43); manter em prontidão contingentes de forças aéreas nacionais,
para a combinação de uma ação coercitiva internacional (artigo 45); aceitar e
implementar as decisões do CSNU (artigos 25 e 48), ao qual conferem a principal
responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais (artigo 24,
§1). O CSNU, cujo sistema de votação implica o direito de veto para os seus
Membros permanentes (artigo 27), pode deliberar sobre qualquer ameaça à paz,
ruptura da paz ou ato de agressão (artigo 39), sendo-lhe permitido, até mesmo,
imiscuir-se em assuntos afetos à jurisdição interna dos Estados, desde que as
medidas estejam amparadas pelo capítulo VII (artigo 2, §7). OS membros da ONU
prestar-se-ão, ademais, assistência mútua para a execução das medidas determinadas
pelo CSNU (artigo 49). Constitui também obrigação dos mesmos comunicar
imediatamente ao CSNU as medidas adotadas no exercício do direito de legítima
defesa individual ou coletiva (artigo 51), e toda ação empreendida ou projetada por
acordos ou entidades regionais, desde que devidamente autorizada pelo CSNU no
caso de ações coercitivas, para manutenção da paz e da segurança internacionais
(artigo 53, §1 e 54). Finalmente, a Carta das Nações Unidas estabelece que a
Organização deverá fazer com que mesmo os Estados que não sejam membro da
ONU procedam de acordo com seus princípios, na medida necessária à manutenção
da paz e da segurança internacionais (artigo 2, §6).
Essas são as principais deliberações que a Carta estabelece em relação à segurança
internacional. O capítulo VI abrange os artigos de números 33 ao 38 e o capítulo VII os
artigos de número 39 ao 51.
Como se pode observar, o capítulo VII da Carta da ONU atribui ao CSNU o
monopólio sobre a autorização da coerção militar e não-militar, excetuando-se o direito
individual ou coletivo à legítima defesa, de acordo com o artigo 51. Fontoura (1999, p.52),
referindo-se à Carta da ONU em comparação à Liga das Nações, teceu o seguinte comentário:
No tocante ao uso da força, a mudança foi radical. A guerra tornou-se um ilícito
internacional com a proibição do recurso “à ameaça ou uso da força”, dispondo o
CSNU da responsabilidade principal para tomar as providencias necessárias para
obrigar o Estado faltoso a mudar seu comportamento, obedecidos os requisitos do
artigo 39 (caracterização da violação: ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de
agressão) e 41 (aplicação de sanções não militares antes de se recorrer a força)
As decisões tomadas sob os auspícios do capitulo VII são decisões mandatárias e não
requerem o consentimento das partes às quais elas se aplicam (PATRIOTA, 1998). O espectro
135
dessas sanções coercitivas pode variar desde medidas brandas de isolamento diplomático
(artigo 41) até intervenções militares de grande escala (artigo 42 da Carta da ONU).
Conforme mencionado na citação de Patriota na página 134, o segundo ponto de maior
controvérsia da Conferência de Dumbarton Oaks foi em relação ao sistema de arregimentação
de forças a serem convocadas em caso de necessidade. O capítulo VII parecia ter resolvido a
questão estipulando, de acordo com o artigo 43 e 45 da Carta da ONU, em que medida os
Estados membros deveriam contribuir. Além disso, o §3º do artigo 47 determinava que a
Comissão de Estado Maior fosse responsável pela direção estratégica de quaisquer Forças
Armadas colocadas à disposição do Conselho de Segurança. Divergências entre os EUA e
URSS, em relação à distribuição dos aportes àquela força e a sua dimensão final,
inviabilizariam a composição de uma força internacional permanente sob a coordenação da
Comissão de Estado-Maior.
Paralelamente ao fracasso da Comissão de Estado Maior em coordenar a composição
de uma força da ONU em base permanente, vivia-se um momento de grande divisão entre os
membros permanentes do CSNU os quais, por intermédio do veto (artigo 27, §3º da Carta),
refletiam suas dissensões em virtude da Guerra Fria, paralisando as decisões daquele
colegiado. Fontoura (1999, p.58) refere-se a essa situação da seguinte maneira: “Enquanto a
aplicação do veto tinha paralisado o processo decisório no CSNU, os insucessos da Comissão
do Estado Maior acabaram por inviabilizar, no plano operacional, qualquer possibilidade de
implementação do mecanismo de segurança coletiva nos moldes previstos na Carta da ONU”.
Mesmo sem ter obtido o sucesso almejado, o sistema de segurança coletiva, idealizado
no capitulo VII da Carta, logrou realizar algumas ações de “Enforcement”. Patriota (1998,
p.28) refere-se a essas ações da seguinte forma:
Não obstante, esses constrangimentos, pode-se identificar alguns casos de imposição
de medidas coercitivas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas durante a
Guerra Fria: dois casos de intervenção (Coréia e Congo) e dois de sanções (África
do Sul e Rodésia do Sul). O CSNU também procuraria impor a cessação de
136
hostilidades no Oriente Médio e no conflito Irã-Iraque por intermédio de resoluções
que se referiam ao capitulo VII. Em outros casos, ainda, como no das Malvinas em
1982, o cessar-fogo seria exigido sem alusão a dispositivo especifico do capitulo
VII, embora a referência da resolução 502 (1982) à ruptura da paz a situar-se
naquele âmbito.
Igualmente, Cardoso (1998, p.46) comenta:
Seria enganador não distinguir entre as operações de paz e as ações de
“enforcement” já sacramentadas pelas Nações Unidas. N. D. White, em “The United
Nations and Maintenance of International Peace and Security" identifica três casos
de “enforcement”: a Guerra da Coréia, o bloqueio da Rodésia, e a intervenção no
Golfo.
Com o sistema de segurança coletiva emperrado desde a sua criação, outras formas de
atuação em prol da paz acabaram por se desenvolver dentro e fora da ONU. Fora da ONU
ocorreu o desenvolvimento de sistemas não universais de segurança que se formaram em
torno das superpotências que dominariam o cenário internacional até a extinção da URSS.
Esses sistemas foram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), criada em 4 de
abril de 1949, e o Pacto de Varsóvia, de 14 de maio de 1955.
Dentro da ONU, dois eventos merecem destaque na preservação e promoção da paz: a
resolução “Unidos para a Paz” e a implementação das missões de paz (Peacekeeping). Para
entendimento do leitor serão adotadas como sinônimas as expressões: “operações de
manutenção da paz”, “operações de paz” e “missões de paz”.
A resolução “Unidos para a Paz” (Resolução 377, V, de 3 de novembro de 1950)
ocorreu durante a questão da Coréia. A questão da Coréia possui relevância sob dois aspectos.
Primeiramente, foi na Coréia que se estabeleceu o precedente inédito de uma intervenção de
caráter coercitivo baseada na mobilização de um contingente “ad hoc”, não permanente. Sem
dúvida, isso ocorreu em virtude da ausência da URSS nas votações das resoluções no CSNU.
O segundo aspecto de relevância foi a ampliação da chamada “competência residual” da
Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU) ao se atribuir a esse órgão a possibilidade de
se incumbir das responsabilidades originais do CSNU em relação à manutenção da paz e da
137
segurança internacionais, quando este último se achasse impedido de fazê-lo pelo veto de
algum dos P-5 (Fontoura, 1999).
Na verdade, três artigos da Carta já atribuíam à AGNU competência para discutir,
considerar e recomendar assuntos relativos à conservação da paz e segurança internacionais.
São eles, os artigos 10, 11 e 14 da Carta da ONU:
Artículo 10
La Asamblea General podrá discutir cualesquier asuntos o cuestiones dentro de los
límites de esta Carta o que se refieran a los poderes y funciones de cualquiera de los
órganos creados por esta Carta, y salvo lo dispuesto en el Artículo 12 podrá hacer
recomendaciones sobre tales asuntos o cuestiones a los Miembros de las Naciones
Unidas o al Consejo de Seguridad o a éste y a aquellos.
Artículo 11
La Asamblea General podrá considerar los principios generales de la cooperación en
el mantenimiento de la paz y la seguridad internacionales, incluso los principios que
rigen el desarme y la regulación de los armamentos, y podrá también hacer
recomendaciones respecto de tales principios a los Miembros o al Consejo de
Seguridad o a éste y a aquellos.
1. La Asamblea General podrá discutir toda cuestión relativa al mantenimiento
de la paz y la seguridad internacionales que presente a su consideración cualquier
Miembro de las Naciones Unidas o el Consejo de Seguridad, o que un Estado que no
es Miembro de las Naciones Unidas presente de conformidad con el Artículo 35,
párrafo 2, y salvo lo dispuesto en el Artículo 12, podrá hacer recomendaciones
acerca de tales cuestiones al Estado o Estados interesados o al Consejo de Seguridad
o a éste y a aquellos. Toda cuestión de esta naturaleza con respecto a la cual se
requiera acción será referida al Consejo de Seguridad por la Asamblea General antes
o después de discutirla.
2. La Asamblea General podrá llamar la atención del Consejo de Seguridad
hacia situaciones susceptibles de poner en peligro la paz y la seguridad
internacionales.
3. Los poderes de la Asamblea General enumerados en este Artículo no
limitarán el alcance general del Artículo 10.
Artículo 14
Salvo lo dispuesto en el Artículo 12, la Asamblea General podrá recomendar
medidas para el arreglo pacífico de cualesquiera situaciones, sea cual fuere su
origen, que a juicio de la Asamblea puedan perjudicar el bienestar general o las
relaciones amistosas entre naciones, incluso las situaciones resultantes de una
violación de las disposiciones de esta Carta que enuncian los Propósitos y Principios
de las Naciones Unidas.
O conteúdo da resolução “Unidos para a Paz” apenas ampliava essa competência
residual. Contudo, tratou-se de uma importante medida em uma época em que o CSNU se
encontrava literalmente “travado” pelos constantes vetos de seus membros permanentes. A
resolução “Unidos para a Paz” foi patrocinada pelos EUA que tinham, de acordo com
138
Fontoura, além de interesse direto na questão da Coréia, o objetivo de “contornar” os
freqüentes vetos da URSS no CSNU em outros assuntos de interesse do governo norte-
americano (o quadro parlamentar da AGNU estava dominado, à época, pelos países
ocidentais). Fontoura assim comenta a situação (1999, p.60):
[...] a resolução número 377 (V) esvaziou-se com o tempo, devido às mudanças
verificadas no quadro parlamentar das Nações Unidas nos anos 50 e 60, reflexo,
mormente, do movimento de descolonização, das cismas no bloco comunista e da
revitalização da Europa, que levaram os EUA e a URSS a preferir reservar para o
CSNU as decisões mais relevantes referentes à paz mundial.
Outra crítica que se faz em relação ao conteúdo da resolução diz respeito ao tipo de
poder da AGNU. Na verdade, a competência residual ficou aumentada, entretanto, os artigos
que regulam a referida competência não atribuem à AGNU nenhum poder mandatário,
limitando-se a conferir àquele colegiado poderes para “recomendar”, “discutir” e
“considerar”. Logo, a eficácia das decisões da AGNU, em substituição ao CSNU, sujeita-se,
em última instância, à aceitação voluntária dos demais Estados membros da Organização.
Não obstante essa dificuldade, a resolução “Unidos para Paz” foi muito importante
para as operações de manutenção da paz. De acordo com Fontoura (1999, p.61):
[...] a resolução “Unidos para a Paz” teve grande relevância para as operações de
manutenção da paz, já que foi com base nela que a Assembléia Geral criou a I Força
de Emergência das Nações Unidas em 1956, após os vetos de França e Reino Unido
no CSNU. Além disso, a resolução foi também utilizada para legitimar a condução
das ações de operação de paz das Nações Unidas no Congo em 1960, quando o veto
soviético impediu a adoção de decisões sobre o assunto no CSNU.
Conforme já foi mencionado, a impossibilidade de estabelecimento de um sistema
efetivo de “enforcement” (capitulo VII) contribuiu indiretamente para o surgimento de outras
formas de atuação em prol da paz, dentro e fora da ONU. Dentro da ONU, já foi abordada a
iniciativa da resolução “Unidos para a Paz”, e a sua conseqüente ampliação da competência
residual da AGNU para assuntos relativos à paz e segurança internacionais.
139
Outra iniciativa surgida no seio da organização, bem mais importante do que a resolução
“Unidos para a Paz” ocorreu de maneira não-sistemática e foi a implementação das Missões
de Paz.
As chamadas “Missões de Paz” surgiram como uma alternativa às soluções de
conflitos, as quais foram estipuladas no capítulo VI (não-coercitivas) e VII (coercitivas) da
Carta da ONU. Trata-se de missões de caráter militar, mas que não atuam como instrumento
coercitivo e atentatório à soberania de um Estado. Por essa razão, encontram-se excluídas do
escopo do capítulo VII da Carta da ONU, embora alguns autores as classifiquem como
derivadas do artigo 40 (capítulo VII), que trata das medidas provisórias que devem ser
desencadeadas antes das medidas obrigatórias (mandatárias) inclusas no artigo 41 e 42 da
Carta.
Artículo 40
A fin de evitar que la situación se agrave, el Consejo de Seguridad, antes de hacer
las recomendaciones o decidir las medidas de que trata el Artículo 39, podrá instar a
las partes interesadas a que cumplan con las medidas provisionales que juzgue
necesarias o aconsejables. Dichas medidas provisionales no perjudicarán los
derechos, las reclamaciones o la posición de las partes interesadas. El Consejo de
Seguridad tomará debida nota del incumplimiento de dichas medidas provisionales..
A consideração não deixa de ter peso se levarmos em conta que autores de respeito,
como o Embaixador Afonso José Sena Cardoso e outros, como Cameron Hume, a defendem.
Cabe ressaltar, entretanto, que não há nenhuma referência explícita às Missões de Paz na
Carta da ONU.
Dag Hammarskjöld, ex-secretário geral da ONU e idealizador das Missões de Paz,
situou-as em um imaginário “capítulo VI e meio” entre o das medidas não-coercitivas
(negociação, mediação, arbitragem e procedimentos judiciais) e o das medidas coercitivas
(atentatórias à soberania).
140
Considerações jurídicas à parte, o fato é que as missões de paz adquiriram um vulto
inesperado, principalmente, após o fim da bipolaridade. Consumindo grande parte da atenção
do CSNU, e com recursos financeiros superiores ao orçamento regular da ONU, as missões de
paz “foram sendo concebidas de forma não-sistemática com base em parâmetros doutrinários
destinados a assegurar seu caráter imparcial, tais como a obtenção prévia do consentimento
das partes e a admissão do uso da força em último caso e em autodefesa, apenas”
(PATRIOTA, 1998, p.36).
Algumas definições, extraídas do próprio site das Nações Unidas, assim descrevem as
missões de paz:
El mantenimiento de la paz es una forma de ayudar a los países asolados por los
conflictos a crear condiciones favorables para la paz sostenible. Los integrantes de
las fuerzas de mantenimiento de la paz -soldados y oficiales militares, oficiales de
policía civil y personal civil procedentes de muchos países-supervisan y observan
los procesos de paz que surgen con posterioridad a las situaciones de conflicto y
prestan asistencia a los excombatientes en la aplicación de los acuerdos de paz que
se han firmado. Esa asistencia se presenta de diversas formas, incluidas las medidas
de fomento de la confianza, las disposiciones para compartir el poder, el apoyo
electoral, el fortalecimiento del imperio de la ley, y el desarrollo económico y social
(ONU, 2004, Operaciones de Mantenimiento de la Paz, Enfrentando nuevos retos,
Qué és el mantenimiento de la paz?),
Por mantenimiento de la paz (Peace-keeping) se entiende el despliegue de una
presencia de las Naciones Unidas en el terreno (normalmente con la participación de
personal militar y civil), con el consentimiento de las partes en conflicto, para
aplicar acuerdos relativos al control de conflictos (cesaciones del fuego,
separaciones de fuerzas, etc.) o para supervisar su aplicación, así como para resolver
(parcial o totalmente) esos conflictos o para garantizar la entrega segura de ayuda
humanitaria (ONU, 1995, Directrices Generales para las Operaciones de
Mantenimiento de la Paz )
As definições clássicas não esgotam o escopo das Missões de Paz da ONU e,
tampouco, as diferentes situações inéditas com as quais as missões se defrontam. A
constatação dessa afirmação pode ser feita pela constante evolução doutrinária das Missões de
Paz as quais, segundo Thakur e Schnabel, já atingiram seis diferentes níveis de classificação,
a serem abordados logo mais. Do ponto de vista operacional, o surgimento de situações
inusitadas, como o agravamento das hostilidades entre as partes, pode levar à quebra de
141
determinados princípios, como a utilização da força, além do limite da autodefesa. Patriota
(1998, p.31) faz a seguintes considerações em relação a essa última observação:
[...]Entretanto, em 1961, no Congo, a ONUC ultrapassaria claramente o marco
conceitual do capitulo VI para enveredar pelo do capitulo VII. Com adoção da
resolução 161 [...] o Conselho autorizaria pela primeira vez o uso da força por uma
operação de paz. [...] o Conselho só voltaria a permitir que uma operação de paz
usasse a força, sob justificativa outra que a autodefesa, na Somália e na Bósnia, na
década de 90, quando o fenômeno da transformação de uma operação de paz de
capitulo VI em uma intervenção com aspectos coercitivos passou a ser apelidada,
algo pejorativamente, de “mission creep” .
3.3 Conclusão parcial
A Carta das Nações Unidas, surgida logo após o término da II Guerra Mundial, refletiu
o espírito pacifista-idealista que tomou conta de uma geração fragilizada por duas guerras
mundiais, ocorridas em um intervalo de tempo inferior a trinta anos. Grande parte da
população, tanto dos vencidos quanto dos vencedores, participou efetivamente dos dois
conflitos e encontrava-se extremamente traumatizada com tanta destruição. O
dimensionamento dos prejuízos humanos e econômicos é incomensurável. Vizentini (2003,
p.163), referindo-se à II Guerra Mundial, comentou:
O custo social e econômico da Segunda Guerra Mundial foi elevadíssimo e, embora
razoavelmente quantificado, é bastante difícil qualificá-lo. Além da destruição
propriamente dita, foram gastos um trilhão e meio de dólares ao valor de 1939
durante o conflito que envolveu diretamente 72 países e mobilizou 110 milhões de
soldados. Houve 55 milhões de mortos, 35 milhões de mutilados e três milhões de
desaparecidos. A maioria das vítimas era constituída de civis.
A paz nunca fora tão almejada, seja pelos “idealistas” ou pelos “realistas”. As
deficiências do sistema, geradas pelo sistema das Liga das Nações, foram identificadas e
tentou-se, ao máximo, evitá-las. A Carta da ONU tornou a guerra proscrita e procurou dar
peso proporcional à importância dos principais atores do pós-guerra, por intermédio da
142
criação dos membros permanentes do CSNU e do seu respectivo direito a veto nas
considerações concernentes à paz e à segurança internacionais.
Para que a paz prevalecesse, fazia-se necessária a criação de um sistema de segurança
coletiva capaz de manter o mundo sem conflitos. Os capítulos VI e VII da Carta da ONU
foram as respostas teóricas para essa tarefa que parece ser impossível. O sistema de segurança
coletiva, idealizado pela Carta, não suportou a falta de consenso dos vencedores da II Grande
Guerra em relação à composição de uma força internacional, capaz de dotar a ONU de um
poder militar supranacional efetivo (permanente). Somem-se a esse aspecto os constantes
vetos dos membros permanentes do CSNU em relação aos assuntos de segurança
internacional, que fugissem ou contrariassem seus interesses diretos.
Mais do que ineficiente, o sistema idealizado pela Carta era natimorto. Não obstante, a
ONU não deixou de tomar iniciativas em prol da paz. Nesse mister, as Missões de Paz
assumiram, de forma não-sistemática, um papel extremamente relevante, tornando-se a
“forma mais visível e identificável de ação da organização em prol da paz mundial” (ONU,
Relatório Brahimi, 2000).
Agindo de uma maneira “low-profile” (militarmente, não-coercitiva e com o
consentimento das partes), a organização acabou por consolidar determinados princípios de
emprego, que surgiram da prática nesse tipo de operação. O próximo subitem abordará em
que parâmetros as missões de manutenção da paz se consolidaram, principalmente entre os
anos de 1948 e 1987.
3.4 O estabelecimento dos principais parâmetros das missões de paz (1948 a 1987)
A delimitação temporal do título não é sem razão. O ano de 1948 marca o “batismo de
fogo” das missões de manutenção de paz da ONU, ocorrido pelo estabelecimento da missão
143
da “Organização das Nações Unidas para a Supervisão da Trégua” entre árabes e israelenses
(UNTSO). Já o ano de 1987, marca o último ano da vigência das operações de manutenção da
paz nos moldes tradicionais (ver quadro da página 15), haja vista que, a partir de 1988, com
resolução aprovada em 20 de julho de 1987, tem início a “Missão do Grupo de Observadores
Militares das Nações Unidas para o Irã-Iraque” (UNIIMOG), missão essa, marcada por um
consenso sem precedentes entre os membros do CSNU, conforme assinala Patriota (1998,
p.34):
A resolução 598 de 20 de julho de 1987, que impôs um cessar-fogo imediato no
conflito entre o Irã e o Iraque (adotada por consenso), foi concebida com base nos
artigos 39 e 40 do capitulo VII citados em seu último parágrafo preambular. O
desejo unânime dos membros permanentes de por fim oito anos de lutas sangrentas,
viabilizado pela distensão leste-oeste da era Gorbatchev marcou o aparecimento de
uma modalidade de consultas entre os P-5 que, como observa Edmundo Fujita,
“evoluiu gradualmente para a consolidação de fato de uma instancia de escrutinio
prévio dos termos mais relevantes da agenda do Conselho pelos membros
permanentes”. A mobilização dos esforços diplomáticos conjuntos de Moscou e
Washington para por fim à guerra Irã-Iraque, prepararia o terreno para a busca
consensual de encaminhamento no Conselho de Segurança de vários contenciosos
da Guerra Fria, na América Central, Camboja, Afeganistão, Angola, abrindo
caminho para a cooperação durante a crise do Golfo de 1990, que inauguraria, por
sua vez, uma nova fase na tentativa de operacionalização do conceito de segurança
coletiva nas Nações Unidas.
De 1948 a 1987, foram criadas 13 missões de manutenção da paz. Essas missões
foram tanto de observação, com pessoal desarmado, como de forças de paz, com pessoal
armado.
A última missão ainda considerada como “tradicional” foi a Força Interina das Nações
Unidas no Líbano (UNIFIL), posta em atividade a partir de março de 1978.
A experiência acumulada nessas missões (de 1948 a 1987) foi responsável pela
formação de uma base doutrinária a qual, até hoje, norteia diversos princípios básicos de uma
missão de paz. De acordo com Fontoura (1999, p.63 e 64), os mais importantes princípios
estabelecidos foram:
[...] a importância da manutenção do comando e controle das operações na
Organização; a necessidade de celebração de acordos ou de memorandos de
entendimento entre a ONU e os Estados anfitriões, bem como entre a ONU e os
144
países que contribuem com recursos humanos e materiais, de modo a regular o
relacionamento entre os interlocutores envolvidos; o requisito indispensável do
consentimento a ser outorgado por governos legítimos para a presença da operação
no terreno; o caráter voluntário da participação dos Estados membros nessas
operações; a conveniência de se observar o conceito da universalidade na
composição das operações, para reforçar o caráter multilateral da missão; a
obediência ao princípio da imparcialidade no cumprimento do mandato, de modo a
evitar o envolvimento da missão no conflito; o uso da força em ultima instancia e
apenas em caso de legítima defesa; e a posse restrita de armamento, para as
operações não serem vistas como ameaças potenciais por alguma das partes em
conflito.
Por sua vez, compilando autores como Alan James, James Boyd e Kjell Skjelsback,
Cardoso (1998, p.19) sustenta que:
Tem-se, portanto, que as operações de paz são simplesmente uma técnica ou um
instrumento de administração por terceiros de conflitos entre Estados ou no território
de um determinado Estado, por meio da intervenção internacional não violenta,
voluntária, organizada e preferivelmente de caráter multinacional, pautada pela
imparcialidade, consentida pelo Estado ou Estados anfitriões, e desejada e apoiada
pelas partes no conflito.
Como se pode observar, as opiniões são bastante concordantes e, a despeito das
diversas teorias sobre quais sejam os princípios básicos que norteiam uma missão de paz,
quatro aspectos devem ser destacados: o consentimento das partes em conflito e seus
desdobramentos, o não-uso da força, a imparcialidade e o voluntariado dos países que
contribuem com pessoal.
Esses parecem ser, na opinião deste autor, os aspectos essenciais que compõem uma
missão de paz, de acordo com as explicações a seguir:
O “Guidelines for Peacekeeping Operations”, editado pela ONU em 1995, enumera
mais dois princípios que são: a “legitimidade” e o “apoio contínuo e ativo do conselho de
segurança”. Entretanto, este autor os entende como implícitos às missões e não os abordará
neste subitem, mas sim, no subitem 3.6 (o embasamento jurídico das missões de paz).
Fontoura (1999) assevera que, embora as missões de paz ocorram desde 1948, o
princípio do consentimento das partes somente viria a ser consagrado com os desdobramentos
da Força de Emergência da ONU (UNEF I) em 1956, durante a crise do Suez. O referido
145
autor comenta que Dag Hammarskjöld, secretário geral da ONU à época, incluiu o princípio
como um elemento chave das missões de paz em seu relatório datado de 9 de outubro de
1958, dirigido à Assembléia Geral, a respeito das experiências adquiridas com a UNEF I
(ONU, 1958, doc. A/3943). O consentimento das partes em conflito ou do anfitrião (no caso
de apenas uma parte) coaduna-se com o respeito ao princípio da “não-intervenção em
assuntos internos” dos Estados membros, em conformidade com o artigo 2º §7 da Carta da
ONU. Trata-se do principal argumento daqueles que corroboram com o entendimento de que
as missões de paz se dariam ao abrigo do artigo 40 (ver p.140) da Carta (medidas provisórias),
uma vez que esse artigo estipula que [...] “Dichas medidas provisionales no perjudicarán los
derechos, las reclamaciones o la posición de las partes interesadas”.
Um dos desdobramentos do princípio do consentimento das partes ou do anfitrião é a
questão da jurisdição a que serão submetidas as tropas da ONU quando em emprego. Cardoso
(1998, p.20), nos relata que:
Na verdade, ainda que animada de disposição pacífica, a presença de força de paz ou
de missão de observação multinacional exigira, por exemplo, exceções de jurisdição
que terão por contrapartida necessária concessões no exercício da soberania ou,
simplesmente, do poder.
A questão da jurisdição é fundamental na medida em que determina em que grau as
tropas da ONU gozarão de determinadas imunidades em relação à jurisdição do país anfitrião.
Ela terá influência direta em outro princípio, que é o do voluntariado dos países que
contribuem com o pessoal.
Sem o gozo de determinadas prerrogativas de imunidade é provável que haja um
esvaziamento do número de voluntários para uma determinada missão. A regra geral é a de
que a ONU insista na “noção de imunidade absoluta de jurisdição e penal mediante a
conclusão de um acordo ou memorando de entendimento com o governo anfitrião
denominado ‘acordo das prerrogativas das forças’ (Status of Forces Agreement – SOFA)”
146
(FONTOURA, 1999, p. 88). Nessas situações, caberá aos países de origem julgar os delitos
ou crimes cometidos por seus nacionais no decurso de uma missão de paz.
Outro desdobramento do princípio do consentimento das partes em conflito, ou do
anfitrião, é a questão da consulta feita a esses, por ocasião da escolha da composição das
forças que farão parte da missão de paz.
O apêndice I do documento A/32/394 (1965), “Relatório do Comitê Especial das
Operações de Paz”, em seu artigo 10, prevê que a composição das operações deva ser definida
pelo Secretario Geral, com o concorde do Conselho de Segurança e do país anfitrião.
Essa tem sido a regra respeitada, mas que, nem sempre, foi fruto de um entendimento
pacifico. A consulta ao anfitrião firmou-se com o tempo (Cardoso, 1998) como condição ao
consentimento e à liberdade de movimentos dos integrantes de uma missão de paz (artigo 9º
do relatório citado).
A questão mais controversa em relação ao consentimento diz respeito à legitimidade
de quem consente e surgiu fora do contexto temporal em estudo (1948 a 1987). Normalmente,
quando os conflitos são interestatais, a identificação das partes é mais clara e nítida, posto que
se trata, via de regra, de Estados dotados de interlocutores legitimados a negociar e a buscar
soluções para problemas específicos (casos ocorridos em sua maioria antes de 1987). Em
contrapartida, quando os conflitos são intra-estatais costuma haver grande dificuldade em se
identificar interlocutores que sejam legítimos representantes de todos os seguimentos
contrapostos, ou, até mesmo, de se identificar os próprios seguimentos que estão a lutar (casos
ocorridos, em sua maioria, após 1987). Nesse último ambiente o consentimento torna-se
bastante volátil, na medida em que determinada “parte” pode, além de não reconhecer como
legítima a presença da ONU, desrespeitar tratados e convenções internacionais, colocando em
risco os “capacetes azuis” dispostos no terreno. Com relação a esse problema, Fontoura
(1999, p.89) nos relata:
147
Pode-se questionar, portanto a validade do SOFA em regiões controladas por uma
facção rebelde. Na antiga Iugoslávia (Força de Proteção das Nações Unidas -
UNPROFOR), no sul do Líbano (UNIFIL), na Somália (Operações das Nações
Unidas na Somália (UNOSOM I e II) e no Camboja (Autoridade Transitória das
Nações Unidas no Camboja - UNTAC), por exemplo, as Nações Unidas buscaram
sempre obter o consentimento de todas as partes envolvidas para o desenvolvimento
de suas ações, mas os acordos alcançados eram constantemente violados ou
renegados por milícias ou partes insatisfeitas. No caso do Camboja, as eleições
monitoradas pela ONU não puderam sequer ser realizadas nos territórios controlados
pelo Khmer Vermelho (cerca de 1/3 do país), à luz das ameaças de uso da força
contra os integrantes da força de paz e os eleitores.
O mesmo autor reitera que:
Esse tipo de conflito, que se desenvolve algumas vezes em ambiente de contestação
à própria presença da ONU, com o envolvimento de atores não representativos, que
não respeitam as diretrizes da ONU nem respondem à pressão internacional, motiva
discussões sobre a possibilidade real de transformação de uma operação de
manutenção da paz em uma operação de imposição da paz (FONTOURA, 1999, p.
90).
As conseqüências desse ambiente mais volátil serão mais bem abordadas no subitem
3.5 (o fim da bipolaridade, a Guerra do Golfo e o surgimento do paradigma de segurança
coletivo).
O segundo grande princípio de uma missão de paz, também consagrado no período das
Missões de Paz tradicionais, é o princípio da não-utilização da força pelas tropas da ONU
além dos limites da autodefesa.
O princípio do “não-uso da força,” como ficou conhecido, também deriva da primeira
grande experiência da ONU em termos de operações de manutenção da paz, que foi o
estabelecimento da UNEF I (Primeira Força de Emergência das Nações Unidas) em 1956.
Naquela ocasião, foram estabelecidas as primeiras “regras de engajamento” (Rules of
Engagement) as quais definem todos os passos que uma determinada tropa dará quando
“incitada” a ser empregada. A determinação do Secretario Geral Dag Hammarskjöld foi a de
que o uso da força deveria se limitar aos casos de legítima defesa, uma vez que a presença das
148
tropas da ONU teria sido consentida pelas partes, o que pressupunha uma solução pacífica das
diferenças eventualmente surgidas.
Em 1973, o então Secretário Geral Kurt Waldhein, ampliou o alcance de legítima
defesa (FONTOURA, 1999) ao indicar que:
The force will be provided with weapons of a defensive character only. It shall not
use force except in self-defense. Self-defense would include resistance to attempts
by forceful means to prevent (UNEF II) from discharging its duties under the
Security Council’s Mandate (ONU, 1973, doc. S/11052/Rev. 1, parágrafo 4 d).
Essa ampliação dilatava o conceito de autodefesa e, incluindo nele “o cumprimento do
mandato”, a ONU dava mostras de que estava disposta a tomar medidas mais efetivas contra
as partes que desrespeitassem aquilo que fora acordado em mandato. Tal fato, por suposto,
“aumenta as possibilidades de confronto no terreno, o que pode comprometer a imagem de
imparcialidade da força, perante a população local e as partes antagônicas” (FONTOURA,
1999, p. 95).
Na página 142 desta dissertação, faz-se referência à utilização da força além dos
limites da autodefesa. A citação de Patriota demonstra que a interpretação mais flexível sobre
o uso da força pode levar uma missão a incluir-se sob os auspícios do capitulo VII
(enforcement).
Na realidade, há uma tendência em se dotar as missões de paz de mandatos mais
“robustos”, que sejam capazes de fazer com que a ONU seja respeitada no terreno. No
subitem 3.7 deste capítulo (Da Agenda para a Paz ao Relatório Brahimi: adaptações e
perspectivas), esse tema será mais bem abordado. Por enquanto, cabe ressaltar que o
cumprimento do mandato de uma força de paz só poderá ser implementado se houver a
devida cooperação das partes, que, por sua vez, restringirá a adoção do uso da força pela
ONU.
149
O terceiro princípio de uma missão de paz é o da imparcialidade. Por esse princípio, os
integrantes de uma força de paz devem manter uma atitude que não denote apoio ou rejeição a
qualquer uma das partes envolvida no conflito.
De acordo com Tharoor (1995, 96, p.58):
Impartiality is the oxygen of peacekeeping: the only way peacekeepers can work is
by being trusted by both sides, being clear and transparent in their dealings, and
keeping lines of communication open. The moment they loose this trust, the moment
they are seen by one side as the enemy, the become part of the problem they were
sent to solve.
Para o referido autor, a imparcialidade de uma força de paz deve ser considerada
essencial para manter a confiança das partes ou do governo anfitrião. Secundária e
indiretamente, a imparcialidade contribui para que as forças de paz se mantenham incólumes
no terreno, pois, agindo dessa forma, diminuem as chances de serem molestadas.
Alguns autores, como Fontoura e Cardoso, ressaltam a importância de se distinguir o
termo imparcialidade de neutralidade. Fontoura, fazendo referência a Henry Wiseman e
Steven Ratner, revela que:
Segundo eles, as forças de paz seriam imparciais apenas no cumprimento do
mandato, mas não necessariamente neutras, uma vez que o mandato do CSNU é
baseado em uma decisão política, por vezes desfavorável a uma das partes
(Fontoura, 1999, p. 97).
Por essa ótica, o CSNU estaria autorizado a impor sanções ou a obrigar a força de paz
a adotar medidas contra uma das partes que não cumprisse o estabelecido no mandato
(documento que estipula as obrigações da ONU e das partes envolvidas). A ação do CSNU
não seria neutra, pois estaria claramente contrapondo-se a um dos elementos envolvidos. No
entanto, essa medida, considerada de cunho político, não afetaria per se a imparcialidade dos
integrantes da força de paz, os quais estariam agindo taticamente (de forma executória).
Cardoso, ao abordar igualmente Henry Wiseman e Kjell Skjelsbaek, relata que esses
autores distinguem imparcialidade de neutralidade e o faz nos seguintes termos:
150
Henry Wiseman
5
e Kjell Skjelsbaek
6
, dentre outros, distinguem entre imparcialidade
que reputam essencial – e neutralidade que seria função da decisão adotada pelo
Conselho, em nome das Nações Unidas, sobre cada caso em particular. Se a Carta
condena a agressão, não caberia a neutralidade em relação à vítima e ao agressor.
Identificado este último, a operação que se autorize, deveria procurar pautar-se pela
imparcialidade na execução, mas não seria, nem poderia ser neutra (Cardoso, 1998,
p.31).
Ainda que a discussão tenha grande mérito do ponto de vista acadêmico, este autor
duvida da relevância prática de seu conteúdo, em virtude de sua experiência em seis meses de
operação de paz no Timor Leste (junho a dezembro de 2002). A prática demonstra que
qualquer ação realizada pela ONU no terreno, independentemente do contexto político de sua
decisão no CSNU, tem impacto direto no “humor” da população (partes), podendo colocar
uma ou todas as partes envolvidas contra a Organização, se mal concebida, provocando uma
escalada de violência local.
Os grandes trunfos para se obter uma ação imparcial decorrem de algumas ações
preventivas que devem ser tomadas pela força de paz. Primeiramente, o emprego de uma
força que seja verdadeiramente multinacional, onde os possíveis focos de parcialidade se
anulem mutuamente (no caso do Timor, Portugal e Austrália se anulavam). Outra medida
fundamental é a abertura de canais de comunicação que permitam às partes, ou ao anfitrião,
obterem todas as informações relativas à missão da força de paz e ao conceito da operação.
O quarto e último princípio que deve nortear uma missão de paz é o do “voluntariado
dos países que contribuem com o pessoal”. De acordo com Fontoura (1999), durante a Guerra
Fria, o Secretariado procurou imprimir um caráter multinacional às forças de paz, evitando
incluir em suas composições os membros permanentes do CSNU, além de limitar a um terço
o efetivo máximo de um mesmo país em determinado contingente. No entanto, com o fim da
bipolaridade, foi cobrado um maior engajamento dos P-5 a fim de sinalizar a disposição das
5
Henry Wiseman, “Peacekeeping in the Internal Political Context : Historical analysis and Future
Directions”
151
grandes potências em respaldar as missões de paz e motivar outros países a ceder pessoal e
recursos. Tal fato não se verificou e, ao contrário, os anos 90 testemunharam um aumento
vertiginoso da participação de países pequenos nas missões de paz, conforme será abordado
no item 3.5.
O princípio do “voluntariado dos países que contribuem com pessoal” também guarda
correspondência com o princípio do consentimento das partes, ou do anfitrião. Da mesma
maneira que as partes devem dar permissão à entrada das tropas da ONU em seu território,
cedendo parte de sua soberania àquele Organismo, os países que integram uma força de paz
deverão fazê-lo em caráter voluntário. Da mesma forma que o país é livre para integrar a
missão, é livre para dela se retirar. O item 23 do capitulo 3 do “Directrices Generales para las
Operaciones de Mantenimiento de la Paz” faz menção ao voluntariado dos países que
contribuem com pessoal como “Compromiso Continuo de los Paises Contribuyentes de
Tropas” e utiliza os seguintes termos:
La capacidad de una operación de mantenimiento de la paz para cumplir su mandato depende
de la participación continua y activa de todos los contingentes nacionales que intervengan en
la operación. Eso es particularmente importante con respecto a las operaciones que se
desarrollen en condiciones volátiles y en las que el riesgo del personal que interviene sea
considerable. Es esencial que los países que aportan tropas tengan en cuenta, antes de
comprometerse en tales operaciones, la posibilidad de que haya bajas entre su personal. La
retirada de un contingente cuando una operación tropieza con dificultades puede provocar
graves perturbaciones y menoscabar seriamente los esfuerzos de la Organización.
O trecho em questão denota não apenas a importância de os países membros manterem
tropas disponíveis para a ONU, mas enfatiza também que, uma vez envolvidos em uma
operação, os países deverão se esforçar ao máximo para não se retirarem da mesma, sob pena
de comprometerem os esforços da Organização.
Esses foram, em suma, os principais aspectos norteadores de uma missão de paz, no
período de 1948 a 1987 (Missões Tradicionais – ver p. 15). Cardoso (1998, p.71), compilando
6
Kjell Skjelsbaek: “UN Peacekeeping : Expectations, Limitations and Results. Forty years of mixed
experience”
152
o pensamento de Marrack Goulding, ex-subsecretário geral de Assuntos Políticos da ONU,
explica que:
Durante a Guerra Fria as missões de paz foram bastante homogêneas. Não havia
delegação, as missões eram executadas pelas Nações Unidas e somente eram
empreendidas com o consentimento das partes no conflito. Os “boinas azuis” e os
“capacetes azuis” procuravam pautar sua atuação por rigorosa imparcialidade. Os
efetivos das operações eram cedidos voluntariamente pelos Estados membros, e
tinham autorização para usar a força somente em defesa própria. Por fim
praticamente todas as operações eram arranjos interinos para impedir a retomada das
hostilidades e ganhar tempo para as negociações com vistas à solução pacífica das
controvérsias.
Tais princípios foram se consolidando na prática, antecedendo à formulação de sua
teoria, haja vista que a Carta da ONU não faz menção explícita às operações de manutenção
da paz.
O fim da bipolaridade e o surgimento de novos e indefinidos cenários trouxeram
consigo a necessidade de algumas adaptações a esses princípios, conforme será abordado a
seguir.
3.5 O fim da bipolaridade, o ressurgimento do paradigma de segurança coletiva e seus
reflexos para a manutenção da paz.
De 1988 até 2005 foram realizadas 47 operações de manutenção da paz sob a égide da
ONU. Entre o período de 1º de julho de 2005 a 30 de junho de 2006, a ONU terá empregado
um efetivo de 84.927 (oitenta e quatro mil novecentos e vinte e sete homens) e terá gasto em
torno de U$ 5,03 bilhões de dólares (ONU, 2005, United Nations Peacekeeping Operations –
Background Note) O fim da bipolaridade não marca apenas um salto quantitativo em relação
ao número de missões de paz, marca, sobretudo, um grande número de adaptações
qualitativas, fruto da complexidade do cenário político, econômico e militar que se formou no
pós-Guerra Fria.
153
De acordo com Fontoura (1999, p.76), em linhas gerais, três fatores concorreram para
o incremento das missões de paz:
[...] a) distensão política entre os EUA e A União Soviética e seu impacto sobre o
papel das Nações Unidas no campo da paz e segurança internacionais; b) o
afloramento de antagonismos étnicos e religiosos; e c) a crescente universalização
dos valores da democracia e do respeito aos direitos humanos.
O primeiro desses fatores tem suas raízes na derrocada econômica soviética, fruto da
sua tentativa de se manter em “pé de igualdade” com os EUA na corrida armamentista da
Guerra Fria. À derrocada econômica, seguiu-se um movimento de abertura política que
objetivava, entre outros, evitar a implosão do sistema soviético de forma violenta. A abertura
política soviética não ocorreria sem prejuízos para os mesmos. Além da forte oposição interna
feita pelos integrantes da “velha guarda” do Kremlin, os soviéticos percebiam que não haveria
como manter o equilíbrio estratégico-militar engendrado pela Guerra Fria. Uma das soluções
para o problema passava pelo apoio soviético ao fortalecimento da ONU como órgão
encarregado da manutenção e da promoção da paz mundial. Na impossibilidade de concorrer
diretamente com os EUA, a URSS tentou equilibrar-se (pelo menos formalmente) com o
poderio americano, por intermédio de suas atividades no CSNU. Para tanto, fazia-se
necessário que a ONU se encontrasse fortalecida.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, desde a época da Détente (ver subcapítulo dos
Estados Unidos como ator), já vinham sentindo o peso da superextensão de seu poder e
anteviam, no fortalecimento da ONU, uma maneira de mitigar seus gastos militares.
Ronald Regan, citado por Fontoura (1999, p.78), em seu discurso no Debate Geral da
43
ª
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 26 de setembro de 1988, revela que: “[...] today
the United Nations has the opportunity to live and breathe and work as never before (...) We
are determined that the United Nations shall succeed and serve the cause of peace for
humankind”.
154
É bem verdade que a postura americana em relação às Nações Unidas não limitava sua
maneira unilateral de agir, como ficou comprovado em sua intervenção no Panamá, em 1989,
mas, ao mesmo tempo, não deixava de ser um sinal de mudança.
Com a diminuição do risco de uma confrontação estratégica direta, tanto a URSS
como os EUA empenhavam-se em assegurar que não fossem perdidos os avanços obtidos
pela distensão Leste-Oeste. São exemplos da distensão: os Acordos de Genebra, de abril de
1988, sobre o Afeganistão, a conclusão do cessar-fogo entre o Irã e o Iraque, o início dos
entendimentos para resolver a questão do Camboja, a retomada dos contatos para a solução de
problemas na península da Coréia, as reações positivas à iniciativa do Secretário-Geral das
Nações Unidas sobre o Saara Ocidental, o renovado diálogo entre os líderes das comunidades
grega e turca em Chipre e a assinatura, em dezembro de 1988, dos Acordos entre Angola,
Cuba e a África do Sul, sobre a repatriação de tropas cubanas presentes nesses países e na
Namíbia (Fontoura, 1999).
O auge desse “entendimento” entre a única superpotência restante (EUA) e sua antiga
detratora (URSS) se daria com o apoio soviético, na ONU, à intervenção americana no Golfo,
por ocasião da guerra travada entre as Forças da Coalizão e o Iraque, em 1990.
Segundo Patriota (1998), a URSS, na figura do Chanceler Eduard Shevardnadze,
removeu vários obstáculos à intenção americana em ir à guerra, embora Gorbatchev tenha
logrado adiar a tomada de várias decisões do CSNU em busca de uma solução política para o
problema, tendo sido responsável pelas sete semanas de trégua entre o ultimato da Resolução
678
7
e o início da operação “Desert Storm”.
É fácil compreender o apoio soviético quando se entende que a guerra, tendo sido
ratificada pela ONU, atendeu aos objetivos de ambos os países. Por um lado, serviu para
legitimar uma intervenção concebida unilateralmente pelos Estados Unidos e, por outro lado,
7
A Resolução 678 foi a que autorizou o emprego da força pelas Forças da Coalizão contra o Iraque em
1990
155
serviu para “mascarar” o decadente poder soviético, por intermédio de seu papel na tomada de
decisões do CSNU.
A percepção geral era a de que se inaugurava uma “nova era”, baseada no
multilateralismo e na cooperação internacional, os quais deveriam ser implementados pelas
Nações Unidas. Pecequilo (2003, p.298) tece o seguinte comentário ao fazer referência ao
sucesso da operação “Desert Storm”:
O sucesso, a rapidez e a credibilidade da coalizão e da operação foram alardeados
como o início de uma nova era de parceria e cooperação nas relações internacionais.
Nessa nova era não mais teriam espaço posturas que se afastassem das normas e da
legitimidade das organizações e regimes internacionais [...] De qualquer forma, o
que predominou em 1991 foi a percepção de uma nova ordem mundial, orientada
segundo os valores e princípios simbolizados pelos Estados Unidos – a cooperação,
os direitos humanos, a paz e a liberdade -, cujo núcleo seriam a s Nações Unidas.
Com a valorização da ONU, tanto os Estados Unidos como a URSS passaram a
considerar esse Organismo como uma opção de ação para a solução de conflitos relacionados
à paz e à segurança internacionais, “notadamente na promoção da estabilidade em áreas do
mundo em que não deixavam atuar diretamente” (FONTOURA, 1999, p.80). Esse foi o
primeiro dos grandes fatores a ter contribuído para o incremento das Missões de Paz das
Nações Unidas, a partir do fim da bipolaridade.
Seguindo o raciocínio de Fontoura, exposto na citação da página 154, o segundo fator
que mais contribuiu para o aumento e para a diversificação das Missões de Paz da ONU, foi
“o ressurgimento de velhas tensões” que se supunham superadas. O fim da Guerra Fria fez
ressurgir diversos conflitos de cunho étnico, religioso ou nacionalista que se encontravam
“contidos” pela rigidez bipolar. Nas palavras de Pecequilo (2003, p.299):
[...] em outras localidades do sistema, pendências territoriais, étnicas e religiosas
semelhantes continuavam existindo e, em algum momento, também iriam começar a
manifestar-se. Como haviam alertado os mais prudentes estrategistas, a história não
havia chegado ao fim, estava renascendo liberta dos constrangimentos da
bipolaridade. Na própria Europa, isso ficou patente em 1992, com a eclosão da
Guerra da Bósnia, e, depois, em todos os acontecimentos na África que levaram o
sistema ao outro extremo: em vez da nova ordem, o mundo vivia o caos e a
desordem, sendo permeado por um pessimismo generalizado.
156
Esses conflitos acabaram por se concentrar no continente africano, na região dos
Bálcãs, na Europa Oriental e na antiga União Soviética. Das 39 Missões de Paz catalogadas
pela ONU, de 1988 a 1999, oito se deram nos Bálcãs, 16 na África, três na Europa Oriental e
ex-União Soviética. As 12 missões remanescentes se distribuíram pela Ásia e América
Central. Com efeito, 69% das missões de paz ocorreram nos territórios das regiões citadas,
sendo que 20,5% nos Bálcãs, 41% na África e 7,5% no Leste Europeu.
Nos Bálcãs, o cerne dos conflitos se deu em torno da desagregação da antiga
Iugoslávia, após a morte de Tito em 1980, o que levou à intensificação dos reclamos de
diversas minorias, culminando com o violento processo da guerra civil da Bósnia-
Herzegovina, e na irrupção dos atos de violência no Kosovo, em 1998 (FONTOURA, 1999).
Na África, muitas das tensões ainda eram heranças do processo de colonização, o qual
costumava grupar, artificialmente, em um mesmo território, povos e tribos diferentes e, via de
regra, rivais.
Na Europa Oriental, as reformas político-econômicas da Perestroika abalaram os
países da esfera de influência direta da Rússia, alimentando processos separatistas dentro de
alguns novos países recém criados com a implosão da União Soviética.
Considerações políticas à parte, não restam dúvidas: os números falam por si.
O terceiro e último fator, citado por Fontoura como responsável pelo incremento das
missões de paz, é o empenho mais efetivo dos países ocidentais em favor de um ideário
democrático baseado no respeito aos direitos humanos, no pluralismo político e na liberdade
de expressão.
A concretização desses valores foi fortemente influenciada pela Conferência Mundial
sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993. A declaração de Viena, como ficou
conhecida, contou com a participação de 171 países e 813 organizações não-governamentais
(ONU, 2006), e teve como resultado principal o endosso à idéia de que a democracia é a
157
forma de governo mais favorável para o respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais. Fontoura (1999, P.86), assinala ainda que esse pensamento teve conseqüências
diretas nas Operações de Manutenção da Paz. Em suas palavras:
Na vertente das operações de manutenção de paz, os mandatos aprovados pelo
CSNU ou pela AGNU passariam a contemplar a reconciliação política e a
reconstrução nacional, fazendo do respeito aos direitos humanos e da realização de
eleições por voto universal e secreto, fatores primordiais na busca de soluções para
conflitos tratados pela Organização. A importância atribuída à promoção desses
valores passou a ser uma das principais diferenças das novas operações de
manutenção da paz com relação às operações clássicas.
A referência de Fontoura realmente é verdadeira quanto à maioria dos mandatos que
foram aprovados a partir de meados dos anos 90, em especial, após 1993. Entretanto, o
referido autor não faz menção à seletividade das grandes potências na escolha de quais casos
devem ser contemplados com uma missão de paz.
A esse respeito, comenta o Almirante Mário César Flores, ex-ministro da Marinha do
governo do Presidente José Sarney (1985 a 1990):
Por ora, o desrespeito aos direitos humanos e os chamados crimes contra a
cidadania, caracterizados pelo afastamento dos princípios democráticos, só estão na
vanguarda das razões capazes de justificar intervenções quando comprometem
interesses importantes das grandes potências ou atingem níveis intoleráveis no que
concerne à ameaça generalizada à vida humana, como foi o caso recente da Somália
(FLORES, 1993, p.60).
O comentário de Flores não é sem razão devido às críticas que, por vezes, a ONU tem
sofrido em relação à seletividade de suas missões, seja pela discricionariedade que possui para
decidir onde irá trabalhar, ou pelo empenho que dedica à efetiva consecução de uma
determinada Missão já em curso. A recente intervenção no Haiti (2004) é emblemática, pois a
Organização tem sido duramente criticada por não alocar os devidos meios financeiros,
materiais e pessoais, capazes de dar um mínimo de direcionamento à solução da questão. Não
é por acaso que o Haiti é considerado um “failed state”, sem nenhum atrativo econômico para
qualquer grande potência.
158
Em resumo, esses são os três fatores que mais influenciaram no incremento das
missões de paz a partir do final da década de 80 e início da década de 90.
Ao mesmo tempo em que ocorria o aumento da demanda pelas missões de paz, em
virtude da valorização da ONU como fórum multilateral, o ambiente em que essas missões se
desenvolviam já se mostrava totalmente diferente em relação ao das décadas anteriores a 90.
Se por um lado cresceu a demanda pelas operações de paz em virtude da diversificação de
fatores ocorrida após o início dos anos 90, por outro lado, a própria complexidade desses
novos fatores teve influência direta no aspecto qualitativo dessas operações.
A promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos (3
º
fator), por exemplo,
acabou por provocar um alargamento no conceito de ameaça à paz e à segurança
internacionais, previstos no Art. 39, da Carta da ONU. Com uma interpretação cada vez mais
política daquilo que poderia ser considerado como “ameaça à paz”, os membros do CSNU já
sinalizavam, na Reunião de Cúpula de Conselho, em janeiro de 1992, que passariam a
interpretar o conceito de maneira mais flexível. O Documento S/23500 da ONU, de 31 de
janeiro de 1992, descrevia:
The absence of war and military conflicts amongst States does not in itself ensure
international peace and security. The non-military sources of instability in the
economic, social, humanitarian and ecological fields have become threats to
international peace and security' (ONU)
O maior entendimento entre as duas superpotências da Guerra Fria (1
º
fator) e a
valorização do multilateralismo, por sua vez, provocaram um ambiente de contestação e
questionamento em relação à manutenção e à própria necessidade da existência de Forças
Armadas em países do Terceiro Mundo. Por que esses países deveriam gastar uma valiosa
parte de seu PIB para cuidar de sua segurança se as principais potências poderiam fazê-lo? A
reação de suas Forças Armadas, em sentido contrário, e oposto ao ambiente que se formou,
foi a busca de um novo papel que desse sentido à sua existência e, ao mesmo tempo, fosse
159
“imune” a contestações. Esses países encontraram, nas Missões de Paz da ONU, a “razão” da
qual necessitavam. Em dezembro de 2005, o “Monthly Summary of Contributions” (Mlilitary
Observers, Police and Trops) (ONU, 2005), fornecia uma radiografia dessa realidade. Em um
total de 108 (cento e oito) países com um efetivo de 69.838 (sessenta e nove mil, oitocentos e
trinta e oito) homens, apenas 2.589 (dois mil quinhentos e oitenta e nove) eram membros dos
P-5. Outros 67.249 (sessenta e sete mil, duzentos e quarenta e nove), correspondentes a 96.3%
do total, eram membros de Forças Armadas menos expressivas e, em sua maioria,
pertencentes ao Terceiro Mundo. A título de curiosidade, Bangladesh foi o país que mais
contribuiu, com um total de 8.999 (oito mil novecentos e noventa e nove) homens. Na
América Latina, o Uruguai é o país que mais investe nesse tipo de operação,
proporcionalmente a seu efetivo (10 vezes menor do que o do Brasil), e contribuiu com 2.428
homens contra 2.167 do Brasil (1.270) e Argentina (897), somados.
Esses dois fatores (ampliação do conceito de ameaça ou ruptura da paz e aumento da
participação de países do Terceiro Mundo) são exemplos de como a complexidade do
contexto pós-Guerra Fria influenciou no “ambiente” de funcionamento das Missões de Paz,
contudo, algumas transformações seriam mais profundas, atuando em nível operacional.
O ressurgimento das velhas tensões adormecidas pela Guerra Fria (1º fator) provocou
uma série de conflitos, em especial os de caráter intra-estatal, cuja volatilidade dos cenários
recomendava mandatos cada vez mais abrangentes e complexos.
Os mandatos das operações “clássicas”, ou tradicionais, cujas tarefas se resumiam às
de uma força interposta entre “partes” (supervisionavam cessar-fogo, controle de fronteiras,
etc.) foram substituídos por mandatos mais abrangentes (ver quadro da p. 15), os quais tinham
como principal diferencial o “ataque” às reais causas dos conflitos, englobando, em si, tarefas
que iam do emprego militar a trabalhos de cunho civil e humanitário.
160
As missões desenvolvidas sob esses mandatos são denominadas, pela maioria dos
autores, “Missões de Paz de Segunda Geração” ou “Multidisciplinares”.
Este autor considera essa classificação muito genérica, se for levada em conta a
diversidade e a evolução dessas operações ao longo da década de 90.
Para efeito deste estudo, será adotada a classificação de Thakur e Schnabel (2001), que
divide as operações em seis gerações distintas, a partir de seu início em 1948.
A primeira geração seria a da “Traditional Peacekeeping–pending peace” (operações
de paz “Tradicionais”, executadas em um período de “paz pendente”). Essas operações
surgiram, em parte, devido ao insucesso da Organização (ONU) em estabelecer um sistema de
segurança coletiva nos moldes do Art.43 da Carta da ONU, o qual preconiza a criação de uma
força internacional em base permanente. Essa geração de missões conviveu com outra
articulação de segurança coletiva que foram as alianças regionais (configuradas pela OTAN e
pelo Pacto de Varsóvia). A primeira geração das missões de paz também ocorreu em um
período em que as partes, via de regra, não haviam chegado a um acordo prévio de paz. A
principal tarefa dessas missões era a de supervisionar zonas de beligerância em um ambiente
de distensão (cessar-fogo), até que as partes viessem a assinar o referido acordo. Por essa
razão, são chamadas de operações ocorridas em um período de “paz pendente”. As demais
características dessas operações encontram-se no quadro da página 15, desta dissertação, na
coluna das missões de paz tradicionais.
Thakur e Schnabel (2001) descrevem que havia uma percepção generalizada de que
essa geração de missões (1
ª
geração) era fortemente influenciada pela rivalidade da Guerra
Fria e, freqüentemente, conduziam a um “tédio diplomático” em vez de resultados práticos. A
reação do sistema internacional foi a implementação das “verdadeiras missões de segunda
geração”, uma vez que, segundo esses autores, o termo havia sido indevidamente apropriado
às missões ocorridas somente após a década de 90.
161
Em sua classificação, Thakur e Schnabel referem-se à segunda geração das missões de
paz como sendo as “non-UN Peacekeeping” (operações de paz organizadas “fora do sistema
das Nações Unidas), e cita, como exemplos, a Operação de Paz do Commonwealth para a
conversão da Rodésia em Zimbábue, a Força Multinacional e Observadores no Sinai, a Força
Multinacional, em Beirute, e a Força de Manutenção da Paz Indiana, no Sri Lanka, todas
ocorridas antes da década de 90. Para os autores, é importante que se faça distinção entre
essas operações e as de primeira geração, pois, ao mesmo tempo em que incorporaram
diversos princípios da geração precedente (1
ª
geração), as missões de segunda geração
expandiram a gama de tarefas e funções além da mera interposição militar entre as duas
“partes”. A maioria dos autores costuma traçar uma linha direta de 1948 a 1987, sem fazer
maiores distinções entre o que ocorreu nesse interregno.
A terceira geração das missões de paz foi chamada de “Expanded Peacekeeping-
Peace reinforcement” (Manutenção da Paz Expandida-reimposição da paz). Essas missões
eram um dos componentes do pacote de negociações para a obtenção de um acordo final de
paz. A missão seria uma “terceira parte” envolvida como condição para obtenção do acordo
final. Em suma, as partes já teriam chegado a um acordo prévio (o que não ocorria na 1
ª
geração) e a missão de paz ali estaria para “reimpor” a paz. São exemplos (peace
reinforcement) dessas missões as ocorridas no Camboja e na Namíbia, ao início da década de
90.
O termo “manutenção da paz expandida” faz referência ao aumento, quantitativo e
qualitativo, que ocorre com as missões após o início da década de 90, conforme já foi
mencionado em outras partes do nosso estudo.
A quarta geração foi chamada pelos autores de “Peace enforcement” (imposição da
paz). Teve como seu grande marco a segunda missão da Somália (UNOSOM II). A essa
162
altura, a Organização já mostrava o desgaste decorrente de sua participação em diversas
missões. Fontoura (1999, p.130) tece um importante comentário a esse respeito:
O CSNU reavaliou o uso das operações de paz a partir de 1994, verificando-se certo
esgotamento da ânsia em fazer proliferar essas iniciativas, em decorrência seja de
seus altos custos – o orçamento geral chegou a U$ 3,6 bilhões em 1994, cerca de três
vezes o valor anual do orçamento regular -, seja, em diversos casos, de seus
resultados questionáveis. A reavaliação por parte do CSNU da utilidade de criação
de novas operações de manutenção da paz decorreu da concorrência de diversos
fatores. De um lado, os acontecimentos na Somália, em Ruanda e na antiga
Iugoslávia tinham repercutido negativamente junto à opinião pública e aos círculos
políticos e governamentais dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido.
Ademais, a China mantinha sua tradicional postura discreta na matéria e a Rússia
centrava suas preocupações em assegurar, especialmente, a legitimação do
envolvimento das tropas da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) no seu
entorno [...]
A quarta geração de missões recebeu o nome de Peace enforcement porque,
literalmente, as missões ocorreram em ambientes onde não havia paz a ser mantida, mas sim,
a ser imposta. Algumas missões, como a da Bósnia e a da Somália, foram concebidas como
missões baseadas no capítulo VI da Carta da ONU e, no seu decorrer, transformaram-se em
missões do capítulo VII, devido ao incremento da violência pelas partes. A ONU demonstrava
grande dificuldade em conduzir essas operações coordenando contingentes multinacionais,
basicamente, por falta de uma doutrina desenvolvida. O nascimento e o fim da quarta geração
de missões de paz têm seu maior símbolo no fracasso da ONU na Somália, no episódio que
viria a ser conhecido como “Mogadishu Line
8
”. Nas palavras de Akashi (2001, p.150):
In the euphoria after the end of the Cold War, as reflected in An Agenda for Peace
issued by Secretary General Boutros Boutros-Ghali in 1992, the United Nations
embarked on limited peace enforcement in Somalia in 1993. This phase may be
called “third generation” peace-keeping. However, the Second UN Operation in
Somalia (UNOSOM II) ended in a tragic debacle due to the lack of coordination in
the multinational force, insufficient intelligence, and inadequate equipment and
training of its troops. It became clear that a real fight force under Chapter VII of the
UN Charter could not be organized by the United Nations in the present
circumstances, and that such a task could best be entrusted to a multinational force
sanctioned by the Security Council but organized and financed by a group of
8
Mogadishu Line: termo utilizado para representar o fracasso americano na missão da Somália, onde os
corpos de dois pilotos foram arrastados pelas ruas de Mogadishu, capital daquele país, durante uma operação
militar, após terem sido abatidos. Marca a retirada americana do seu envolvimento direto em Missões de Paz da
ONU.
163
countries with political will and military competence and with a unified command
structure outside the UN Secretariat
A quinta geração foi denominada, por Thakur e Schnabel, como: “Peace restoration by
partnership” (Restauração da paz por parceria). Surgiu como conseqüência dos resultados
desastrosos da coordenação, pela ONU, de missões em que a paz ainda não se fizera concreta
e nas quais a Organização ainda não gozava de suficiente experiência. A quinta geração
englobou as missões empreendidas por uma única potência, ou por uma coalizão
multinacional ad hoc, porém autorizadas pelo Conselho de Segurança. Eram missões de
“enforcement” destinados à estabilização de determinados conflitos. Tão logo o conflito se
tornasse estável, a ONU deveria assumir o controle da situação, com base em uma missão de
paz consentida pelas partes. Esse foi o padrão de ação militar, legitimada pela ONU,
encampada pelos Estados Unidos no Haiti, pela França em Ruanda, pela Rússia na Geórgia e
pela OTAN na Bósnia. Duas críticas se fazem a esse tipo de ação. A primeira diz respeito à
questão da seletividade referida na p 159. A segunda diz respeito ao monopólio da
autorização pela ONU para o emprego da força a priori (enforcement). Recentemente,
ocorreu um perigoso precedente. A Missão das Nações Unidas, para a Administração Interina
do Kosovo (UNMIK), foi estabelecida, em 1999, na esteira de uma intervenção unilateral da
OTAN (não autorizada pelo CSNU) naquele território (ver subcapítulo da ONU como ator).
Como se não bastasse, a autoridade da ONU, uma vez estabelecida a missão
9
, manteve-se de
maneira mitigada, uma vez que a OTAN não abriu mão do comando e controle do
componente militar da operação. A ONU sofreu fortes críticas a respeito desse episódio, pois
temia-se a inauguração de uma nova fase de intervenções unilaterais, sem o consentimento do
CSNU.
A sexta e última geração foi denominada de: “Multinational peace restoration, UN
state creation” (Restauração da paz multinacional e criação de Estado pela ONU). Surgiu
164
como uma espécie de reação à controvérsia estabelecida pela intervenção unilateral da OTAN
no Kosovo e foi a Missão de Paz no Timor Leste. De fato, as duas missões são muito
semelhantes e serão abordadas de forma comparativa no capítulo seguinte, entretanto, é no
campo da “restauração da paz” que residem as maiores diferenças entre as duas missões. Ao
passo que a UNMIK derivou de uma intervenção da OTAN não autorizada pelo CSNU e
manteve no comando de seu braço militar esse mesmo Organismo, a INTERFET
10
, a seu
termo, interveio no Timor Leste, com uma força multinacional consentida pela ONU, e
manteve a mesma força no comando de seu braço militar. A diferença dessa intervenção
multinacional para as de quinta geração reside, essencialmente, na natureza do mandato, o
qual incluía autorização para a efetivação de ações de combate (se necessárias) e regras de
engajamento “robustas”.
A missão no Timor contou com outro grande diferencial. Após a ação militar ter sido
empreendida, a Organização engajou-se plenamente em uma missão de “peace-building”
(construção da paz). O Estado timorense teve de ser, literalmente, criado em um rascunho,
pois não havia aí estruturas mínimas, haja vista que o território era uma província indonésia e
não um Estado em si. Além disso, a rudimentar estrutura das instituições que aí existiam
havia sido destruída pela onda de violência pós-referendo. Nas próprias palavras de Thakur e
Schnabel (2001, p.14):
The United Nations has finally confronted and addressed, in East Timor, the
dilemma that haunted it in the Congo in the 1960s and Somalia in the 1990s, namely
that peace restoration is not possible without the establishment of law and order. But
in a country where the writ of government has either collapsed or is non-existent, the
law that is made and enforced so as to provide order can only be that of the United
Nations or another foreign power (or coalition).
Essa é, em resumo, a classificação das Missões de Paz da ONU, por Thakur e
Schnabel. Trata-se de uma classificação que, em linhas gerais, leva em consideração dois
9
A UNMIK só veio a ser estabelecida após a ação militar da OTAN.
165
critérios. O cronológico e o do papel desempenhado pela Organização. Outras classificações
são encontradas na literatura. A primeira distinção feita entre as operações de paz foi entre
“missões de observação” (somente observadores militares) e “forças de paz” (somente
tropas).
Henry Wiseman, em obra já citada, classificou as Missões de Paz por tipo de ator:
ONU, organizações regionais ou missões ad hoc independentes. O mesmo autor sugeriu uma
outra divisão meramente cronológica: período nascente (1946-1956), período assertivo (1956
a 1967) e período ressurgente (1973- 1978). A nomenclatura do último período é claramente
prematura, haja vista que a real “ressurgência” das missões ocorreu após o fim da Guerra Fria.
Outros autores, como Paul Diehl, Daniel Druckman e James Wall, classificam as missões
meramente por tarefas e funções: observação, supervisão eleitoral, assistência humanitária,
interposição preventiva, participação e imposição coletiva, entre outros. Um grande problema
ocorre quando uma missão desempenha duas, ou várias dessas tarefas, o que não é incomum
hoje em dia.
3.6 O embasamento jurídico das Missões de Paz
Não existe referência explícita às Missões de Paz na Carta das Nações Unidas. Diante
dessa “lacuna”, qualquer embasamento jurídico que coloque as Missões de Paz sob o amparo
legal da Carta, será feito pela interpretação de outros artigos. Certamente, toda interpretação
jurídica dá margem à formulação de teorias, as quais serão exploradas a seguir.
Não são muitas as teorias a respeito do embasamento jurídico das Missões de Paz.
Neste estudo, são destacadas duas correntes, o que não quer dizer que não possam existir
outras mais, ou que o assunto esteja esgotado.
10
A INTERFET (International Force in East Timor) foi a força de intervenção da ONU no Timor Leste
em setembro de 1999. Foi capitaneada pela Austrália e tinha uma composição aproximada de 9.000 homens.
166
A primeira corrente, mencionada por Fontoura (1999) em sua obra, é a “doutrina dos
poderes implícitos”. Essa doutrina reconhece a inexistência de dispositivo material que regule
o tema, entretanto, entende “que não é absolutamente imprescindível buscar um dispositivo
específico na Carta das Nações Unidas para o emprego de determinados meios que se
destinem a realizar os propósitos da Organização” (FONTOURA, 1999, p. 66), desde que não
haja qualquer dispositivo na Carta, ou regra internacional geral, que impeça ou proíba a
utilização dos meios pretendidos. O próprio autor reitera:
Essa doutrina, sem atribuir poderes extraordinários à ONU, permite à organização
operar com eficácia, no entendimento de que “os direitos e deveres de uma entidade
como a ONU devem depender de seus propósitos e funções, especificados ou
implícitos em seus documentos constitutivos e desenvolvidos na prática” e de que “à
luz do direito internacional”, deve-se considerar a Organização como possuidora de
poderes que, embora não expressamente constantes da Carta, são-lhe atribuídos pela
necessária implicação de que são essenciais ao desempenho de suas tarefas
(FONTOURA, 1999, p.66)
A segunda teoria, referida por Cardoso (1999) em seu estudo, reconhece, igualmente,
que não há menção explícita às Missões de Paz da ONU em sua Carta. No entanto, tais
operações se dariam sob o amparo do Art. 40 o qual, sem citar explicitamente as Missões de
Paz, refere-se a “medidas provisórias” que devem ser adotadas sem o prejuízo das partes,
antes de se adotarem as medidas obrigatórias referidas no Art 41 (obrigatórias que não
envolvem o uso da força) e o Art. 42 (obrigatórias que envolvem o uso da força). A seguir,
transcrição do Artigo:
Artículo 40
A fin de evitar que la situación se agrave, el Consejo de Seguridad, antes de hacer
las recomendaciones o decidir las medidas de que trata el Artículo 39, podrá instar a
las partes interesadas a que cumplan con las medidas provisionales que juzgue
necesarias o aconsejables. Dichas medidas provisionales no perjudicarán los
derechos, las reclamaciones o la posición de las partes interesadas. El Consejo de
Seguridad tomará debida nota del incumplimiento de dichas medidas provisionales.
167
Alguns autores, Cameron Hume
11
, por exemplo, defendem essa corrente porque
entendem que o conteúdo do Artigo 40, ao preservar “os direitos, reivindicações ou posição
das partes interessadas”, não se imiscuiu no caráter de imposição característico do capítulo
VII da Carta da ONU. Por exclusão, se as missões de paz não são impostas, estas não se
dariam propriamente ao abrigo do capítulo VII. A única incongruência desse pensamento, na
opinião deste autor, é que o fato de “não prejudicarem direitos, reivindicações e posições das
partes” não significa, necessariamente, o consentimento das partes, condição sine qua non
para o estabelecimento das missões de paz.
Transportando a questão para o plano operacional, a seqüência do raciocínio para o
estabelecimento de uma Operação de Paz é a seguinte: a ONU tem a responsabilidade
primordial, de acordo com os artigos 1º e 55 de sua Carta, de promover a paz e o bem estar
humano. Para a consecução dessa tarefa, a Organização conta com diversos órgãos
deliberativos, dentre os quais, o CSNU. O artigo 24 da Carta confere ao CSNU a
responsabilidade primária pela manutenção da paz e da segurança internacionais, cabendo a
esse órgão decidir os casos de “ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão” de acordo
com o artigo 39. A AGNU poderá intervir quando o CSNU se encontre impedido de fazê-lo,
em função de algum veto (Resolução “Unidos para a Paz”, Doc. A/377). Nessa situação, as
missões são consideradas como órgãos subsidiários da AGNU, conforme o artigo. 22 da
Carta.
O delineamento jurídico da implementação das missões, se feito de acordo com essa
seqüência, será um dos componentes da “Legitimidade” a que se fez referência na página 100
desta dissertação. Nos termos do “Directrices Generales para las Operaciones de
Mantenimiento de la Paz” (ONU, 1995), em seu Art.20:
La legitimidad es el bien más importante de una operación de mantenimiento de la
paz. Se basa en la consideración de que la operación es justa y representativa de la
11
Cameron Hume : Negotiations Before Peacekeeping
168
voluntad de la comunidad internacional en su conjunto y no de algún interés parcial.
Al más alto nivel, la legitimidad de una operación procede del hecho de que la ha
establecido y le ha confiado su mandato el Consejo de Seguridad, el cual, por
acuerdo de todos los Estados Miembros de las Naciones Unidas consagrado en la
carta, tiene la responsabilidad de mantener la paz y la seguridad internacionales. Esa
legitimidad la refuerza la composición de una operación de mantenimiento de la paz,
que incluye típicamente a personal procedente de una gran variedad de Estados. Por
último, la ejecución de la propia operación constituye un elemento esencial de su
legitimidad. En todos los niveles, la operación debe mostrar una firme adhesión al
mandato que le ha encomendado la comunidad internacional, unida al entendimiento
por las partes en conflicto, cuyos intereses vitales están en juego. El porte y la
conducta de todo el personal debe ser de la máxima categoría, proporcionado a las
importantes tareas encomendadas a la operación de mantenimiento de la paz.
3.7 Da Agenda para a Paz ao Relatório Brahimi: adaptações e perspectivas
Quando a Organização das Nações Unidas foi criada, em 1945, os princípios da “não-
intervenção” e da “inviolabilidade” da soberania estatal foram consagrados como os
principais garantidores da ordem e da estabilidade internacionais. O artigo 2
º
, parágrafo 7º,
que prevê a regra geral da não-intervenção da ONU em assuntos internos, deveria ser
interpretado de maneira restritiva à luz do capítulo VII da Carta, o qual previa a possibilidade
de intervenção não-consentida (pelos Estados Membros que a receberem), nos casos de
ameaça e quebra da paz, ou atos de agressão.
Articulo Segundo
Para la realización de los Propósitos consignados en el Artículo 1, la Organización y
sus Miembros procederán de acuerdo con los siguientes principios:
Número 7:
Ninguna disposición de esta Carta autorizará a las Naciones Unidas a intervenir en
los asuntos que son esencialmente de la jurisdicción interna de los Estados, ni
obligará; a los Miembros a someter dichos asuntos a procedimientos de arreglo
conforme a la presente Carta; pero este principio no se opone a la aplicación de las
medidas coercitivas prescritas en el Capítulo VII.
Essa deveria ter sido a tônica dos trabalhos do Conselho de Segurança no imediato
pós-II Guerra Mundial. Entretanto, o antagonismo generalizado entre os P-5, no emergente
conflito Leste-Oeste, tornou o capítulo da segurança coletiva praticamente sem função. Não
169
obstante, o surgimento das missões de manutenção da paz configurou-se como uma das
alternativas na prevenção de conflitos de baixa escala.
Embora o capítulo VI (medidas diplomáticas não-coercitivas) da Carta da ONU
permita o envolvimento da Organização na solução pacífica de conflitos, esses acabaram por
se tornar mais numerosos e complexos a partir da própria criação da ONU. Conflitos mais
complexos requerem medidas mais elaboradas para combatê-los, mormente, fora da esfera
diplomática. Durante a Guerra Fria, as operações de paz se desenvolveram de maneira
bastante limitada, não despertando maiores interesses. Por outro lado, ao início dos anos 90,
elas se tornaram “a maior fonte de esperança para uma nova era de cooperação internacional
em defesa da humanidade e da segurança global” (THAKUR e SCHNABEL, 2001, p. 239).
As Missões de Paz ganharam mais do que apoio moral da comunidade internacional.
Ganharam, também, significante suporte financeiro e político. Ao mesmo tempo, eram
inúmeras as transformações pelas quais o mundo passava e a um ritmo cada vez mais
acelerado.
Fazia-se necessário que essas operações fossem sistematizadas e modernizadas, a fim
de não serem literalmente “atropeladas” pela velocidade dos acontecimentos.
Reagindo a esse dilema, foi produzido um relatório, em 17 de junho de 1992, cujo
título era “Uma Agenda para a Paz: Diplomacia preventiva, estabelecimento da paz e
manutenção da paz”. Esse relatório foi produzido em resposta à solicitação formulada pelos
Chefes de Estado e Governo dos países membros do Conselho de Segurança, durante a
“Reunião de Cúpula do Conselho de Segurança” em 31 de janeiro de 1992. Patriota (1998,
p.48) refere-se a esse encontro de cúpula da seguinte maneira:
O fim da Guerra Fria não teve o seu Congresso de Viena, nem seu Versalhes, nem
seu Dumbarton Oaks ou São Francisco. Mas a Reunião de Cúpula do Conselho de
Segurança de janeiro de 1992 pode ser vista como o grande encontro multilateral
celebratório de uma nova era, tornada possível pela dupla vitória norte-americana
contra a União Soviética e contra a agressão iraquiana.
170
A Reunião de cúpula do Conselho de Segurança, de 1992, foi realizada na esteira da
vitória da coalizão na Guerra do Golfo.
A vitória da coalizão, na Guerra do Golfo, havia contribuído para ratificar o espírito de
cooperação surgido entre os P-5, ao final da década de 80 e início da década de 90. Ao mesmo
tempo, ressurgia o interesse pela temática da segurança coletiva, em um ambiente de grande
euforia, capitaneado pelo recém eleito secretario geral da ONU, o Senhor Boutros-Ghali. Os
cinco anos da administração de Boutros Ghali, nas palavras de Patriota (1998, p.48):
[...] coincidiram com um período de adaptação da ONU às novas circunstâncias
mundiais, marcado por uma intensificação da atividade do Conselho de Segurança,
em que as distinções jurídicas e práticas entre a filosofia coercitiva do capítulo VII e
não-coercitiva do capítulo VI seriam submetidas a múltiplas interpretações.
As bases dessas transformações foram estabelecidas no documento “Uma Agenda para
a Paz”, e os seus principais pressupostos foram estabelecidos em um novo papel do Conselho
de Segurança que deveria:
15. Con el fin de la guerra fría no han vuelto a registrarse vetos de ese tipo desde el
31 de mayo de 1990 pero, a la vez, han aumentado enormemente las exigencias que
se hacen a las Naciones Unidas. El mecanismo de seguridad de la Organización, que
no había sido creado ni equipado para luchar contra las circunstancias que lo habían
neutralizado, ha pasado a ser un instrumento central para prevenir y resolver los
conflictos y para preservar la paz. Nuestros objetivos deben ser los siguientes:
- Tratar de determinar, en sus comienzos mismos, las situaciones que pudieren
ocasionar conflictos y, por conducto de la diplomacia, tratar de eliminar las fuentes
de peligro antes de que estalle la violencia;
- &n los casos en que se desencadene un conflicto, tomar medidas de
establecimiento de 'la paz para resolver los problemas que hayan ocasionado el
conflicto;
- Mediante actividades de mantenimiento de la paz, tratar de preservar la paz, por
frágil que sea, en los casos en que se haya puesto fin a la lucha y ayudar a aplicar los
acuerdos a que hayan Plegado los encargados de establecer la paz:
- Estar dispuestos a ayudar a consolidar la paz en sus distintos contextos
restableciendo las instituciones y la infraestructura de las naciones devastadas por la
guerra y los conflictos civiles, y creando vínculos de beneficios mutuos en tiempo de
paz entre las naciones antes en guerra:
- En la perspectiva más global, tratar de poner fin a las causas más hondas de los
conflictos: la desesperación económica, la injusticia social y la opresión política. En
la actualidad se discierne una percepción moral cada vez más generalizada que une a
las naciones y a los pueblos del mundo y que encuentra expresión en normas
internacionales de derecho, muchas de las cuales deben su génesis a la labor de esta
Organización. (ONU, 1992, artigo 15 do relatório “An Agenda for Peace”)
171
Alguns outros pontos do relatório merecem ser mencionados. Boutros Ghali sugeriu o
ressurgimento da idéia de uma força da ONU em base permanente, nos moldes do artigo 43
da Carta. Essa idéia havia fracassado logo após a criação da ONU com o insucesso dos P-5
em constituir a Comissão de Estado Maior.
Outra idealização de Boutros Ghali foi a criação de uma força de “imposição da paz”,
autorizada a funcionar com base no artigo 40 da Carta (medidas provisórias) e sob o comando
do Secretário Geral. Essa medida causou grande controvérsia ao ter sido inserida no artigo 45
de seu relatório, em uma seção do documento denominada “peacemaking”. Ao fazê-lo,
Boutros Ghali ignorou a tradicional distinção que se faz entre os termos “peacemaking”,
“peacekeeping” e “peace-enforcement”. A transcrição dos artigos se fará do original do
documento em Inglês, haja vista que a confusão causada pelos termos, em parte, se deve ao
idioma. De acordo com o “Directrices Generales para las Operaciones de Mantenimiento de la
Paz” (General Guidelines of peacekeeping Operations) (ONU, 1995).
9. Peace-making is diplomatic action to bring hostile parties to a negotiated
agreement through such peaceful means as those foreseen under Chapter VI of the
United Nations Charter.
10. Peace-keeping is a United Nations presence in the field (normally involving
military and civilian personnel), with the consent of the conflicting parties, to
implement or monitor the implementation of arrangements relating to the control of
conflicts (cease-fires, separation of forces, etc.) and their resolution (partial or
comprehensive settlements) or to ensure the safe delivery of humanitarian relief.
11. Peace-enforcement may be needed when all other efforts fail. The authority for
enforcement is provided by Chapter VII of the Charter, and includes the use of
armed force to maintain or restore international peace and security in situations in
which the Security Council has determined the existence of a threat to the peace,
breach of the peace or act of aggression (ONU, 1995, artigos 9, 10 e 11 do
General
Guidelines for Peace-keeping Operations)
No caso em questão, parece ter havido uma confusão entre o conceito de
“peacemaking”, tradicionalmente afeto à solução pacífica de controvérsias do Capítulo VI, e o
conceito de “peace-enforcement”, relacionado às respostas coercitivas do Capítulo VII.
172
O relatório também mencionava a possibilidade de “descarte” do princípio do
consentimento das partes para a atuação das Missões de Paz. O artigo 20 do relatório, situado
no item II (definições), utiliza a expressão “hasta ahora” (até agora) para definir as missões de
manutenção de paz com a possibilidade de não condicioná-las mais ao princípio do
consentimento no futuro.
20. Las expresiones diplomacia preventiva, establecimiento de la paz y
mantenimiento de la paz están vinculadas de manera integral. A los fines de su
utilización en el presente informe se definen de la ,siguiente manera:[…]
Por mantenimiento de la paz se entiende el despliegue de una presencia de las
Naciones Unidas en el terreno, hasta ahora (grifo nosso)con el consentimiento de
todas las partes interesadas y, como norma, con la participación de personal militar o
policial de las Naciones Unidas y, frecuentemente, también de personal civil. Las
actividades de mantenimiento de la paz constituyen una técnica que aumenta las
posibilidades de prevenir los conflictos y establecer la paz. (ONU, 1992, artigo 20
do relatório “An Agenda for Peace”).
O caráter multidimensional das operações de paz, que veio a consagrar o termo
“Missões de Paz de Segunda Geração”, advém da longa enumeração de tarefas previstas no
artigo 52 do relatório.
52. El mantenimiento de la paz exige, cada ves en mayor medida, que los oficiales
políticos civiles, los observadores de derechos humanos, los observadores de
elecciones, los especialistas en refugiados y en asistencia humanitaria y los agentes
de policía desempeñen un papel tan importante como el de las fuerzas militares,
Cada ves es más difícil conseguir el número necesario de agentes de policía.
Recomiendo que se vuelvan a examinar y perfeccionar los acuerdos de
adiestramiento y capacitación del personal de mantenimiento de la paz, sea civil,
policial o militar, recurriendo a la variada capacidad de los gobiernos de los Estados
Miembros, a las organizaciones no gubernamentales y a los servicios de la
Secretaría. En los momentos en que se trata de conseguir que aumente el numero de
Estados que aporten contingentes, algunos Estados de considerable potencial
deberían concentrarse en la enseñanza de idiomas a los contingentes policías que
pudieran prestar servicios en la Organización. En cuanto a las propias Naciones
Unidas, deberían instituirse procedimientos especiales de personal, incluidos
incentivos, para trasladar rápidamente a los funcionarios de la Secretaría a las
operaciones de mantenimiento de la paz. Se debería incrementar el número y la
capacidad de acción del personal militar que presta servicios en la Secretaría para
que pudiera hacer frente a necesidades nuevas y más difíciles (ONU, 1992, artigo 52
do relatório “An Agenda for Peace”)
173
Outro ponto de grande controvérsia, este com conseqüências futuras, tinha fulcro
no subcapítulo do relatório sobre organismos e arranjos regionais. O Artigo 61 do relatório
alargou o conceito de organismo ou arranjo regional.
61. La Carta evita deliberadamente toda definición precisa de los acuerdos y
organismos regionales, lo cual permite que distintos grupos de Estados actúen con
suficiente flexibilidad para tratar los asuntos susceptibles de acción regional; ello
también podría contribuir al mantenimiento de la paz y la seguridad internacionales.
Esas asociaciones o entidades pueden incluir organizaciones creadas en virtud de
tratados, antes o después de la fundación de las Naciones Unidas, organizaciones
regionales de seguridad y defensa mutuas, organizaciones para promover el
desarrollo regional en general o la cooperación respecto de alguna cuestión o
función económica en particular, y agrupaciones creadas para tratar alguna cuestión
concreta de actualidad de carácter politice, económico 0 social. (ONU, 1992, artigo
61 do relatório “An Agenda for Peace)
Nas palavras de Patriota (1998, p.59): “estava aberta a brecha para que alianças, como
a OTAN, viessem a ser tratadas como um organismo sob o capítulo VIII (enquanto a OTAN,
como já se viu, foi criada com base no direito à auto-defesa, do artigo 51 do capítulo VII)”
Essa interpretação extensiva do conceito de organismo, ou arranjo regional, teve
conseqüências teóricas e de conteúdo prático.
Ao considerar a OTAN como um organismo do capítulo VIII, a ONU retirou dessa
organização uma de suas características essenciais, qual seja: a de ser um órgão de defesa que
só deve ser acionado em caso de ataque a um de seus membros.
Estava dado o sinal verde de que a OTAN necessitava para a redefinição de sua
identidade, redefinição essa que ocorreu ao longo da década de 90. Se a ONU já não via mais
a OTAN como um mero órgão de defesa coletiva, por que a própria OTAN não poderia
arrogar-se destinação mais nobre?
O ápice dessa tendência foi justamente o emprego da OTAN nos bombardeios do
Kosovo em 1999. Era a primeira vez que esse organismo atuava sem (grifo nosso) o
consentimento da ONU em uma operação que deveria ter sido realizada sob os auspícios do
174
capítulo VII da Carta. Tal fato gerou grande desconforto na comunidade internacional que via
com desconfiança o surto de “humanitarismo” daquela organização.
Completando o tripé constituído pela “diplomacia preventiva”, pelo “estabelecimento
da paz” e pela “manutenção da mesma”, foi inserido no relatório o subcapítulo “post-conflict
peace-building” (PCPB).
A construção da paz pós-conflito, em bom português, representou um avanço na
concepção das operações de paz. Com essa medida, a ONU procurava “atacar” as causa mais
profundas dos problemas políticos, econômicos e sociais que, com freqüência, levavam países
menos desenvolvidos à guerra ou a conflitos civis internos. O PCPB, como ficou conhecido
no seio da ONU, objetivava, sobretudo, evitar a recorrência dos conflitos, pois todas as
medidas que preconizava deveriam se dar após a cessação das hostilidades, já em um
ambiente mínimo de segurança.
Os artigos 55 e 56 do relatório apresentam as linhas mestras da concepção do PCPB.
55. Para que las operaciones de establecimiento y mantenimiento de la paz tengan
verdadero éxito, deben comprender intensas actividades encaminadas a
individualizar y apoyar las estructuras tendientes a consolidar la paz y crear una
sensación de confianza y bienestar en el pueblo. En el marco de los acuerdos
encaminados a poner fin a contiendas civiles, esas actividades pueden abarcar el
desarme de las partes anteriormente en conflicto y el restablecimiento del orden, la
custodia y posible destrucción de armas, la repatriación de refugiados, el apoyo en
materia de preparación y adiestramiento de personal de seguridad, la observación de
elecciones, la adopción de medidas para proteger los derechos humanos, la reforma
0 el fortalecimiento de las instituciones gubernamentales y la promoción de procesos
tradicionales y no tradicionales de participación política.
56. Una vez concluida una guerra internacional, la consolidación de la paz después
de los conflictos puede asumir la forma de proyectos de cooperación que asocien
dos o más países en una empresa de beneficio mutuo que podrá no sólo contribuir al
desarrollo económico y social sino también a aumentar la confianza, elemento
fundamental de la paz. Cabe mencionar, por ejemplo, proyectos en que los Estados
trabajen aunadamente para desarrollar la agricultura, mejorar el transporte o
aprovechar recursos que necesiten compartir, como el agua o la electricidad, 0
programas conjuntos para eliminar barreras entre las naciones promoviendo las
facilidades de viaje y los intercambios culturales, así como los proyectos
educacionales y para 1a juventud que sean de beneficio mutuo. La reducción de las
percepciones hostiles mediante intercambios educacionales y la reforma de los
programas de estudios puede ser indispensable para evitar que resurjan las tensiones
culturales y nacionales que pueden dar lugar a una reanudación de las hostilidades.
(ONU, 1992, artigos 55 e 56 do relatório “An Agenda for Peace”)
175
O PCPB, na ótica deste autor, tem grande importância sob um aspecto: foi um ponto
de equilíbrio a contrabalançar o excesso de ingerência pretendido pela ONU com as propostas
de caráter coercitivo e as reinterpretações de conceitos como soberania e consentimento,
idéias essas que formavam o núcleo do relatório “Uma Agenda para a Paz”.
Em resumo, esses foram os principais conceitos produzidos pelo relatório “Uma
Agenda para a Paz”. O relatório sofreu críticas pelo seu caráter inovador que procurava
fortalecer o multilateralismo por intermédio do fortalecimento da ONU. O cerne das críticas
residia na maneira pela qual se dava o fortalecimento da Organização. Ao “relativizar”
conceitos como o de soberania e o de consentimento, a ONU despertou a desconfiança dos
Estados membros menos desenvolvidos. Esses, por sua vez, viam com muitas reservas a
sobrepujança da solução de controvérsias por meios coercitivos (Capítulo VII – enforcement),
em detrimento da solução de controvérsias por meios pacíficos (capítulo VI).
Ilações filosóficas à parte, do ponto de vista operacional, a Organização começou a se
ressentir pela superextensão de suas atribuições (motivada pelo “Agenda para a Paz”) sem o
devido preparo para isso.
A falta de preparo operacional da ONU resultou em alguns reveses para a
Organização, notadamente, os reveses das missões de quarta geração.
Os fracassos das missões de quarta geração fizeram com que a ONU procurasse
“parcerias” para a consecução de seus objetivos. As referidas parcerias se deram de acordo
com a descrição das missões de quinta geração. Importante se faz relembrar a crítica feita, por
este autor, em relação a dois aspectos das missões de quinta
geração: a questão da seletividade
e a questão do monopólio da CSNU para a autorização do emprego da força para o
restabelecimento da paz. Vale lembrar que esse último aspecto levou a Organização a ser
extremamente criticada pela sua inação perante a iniciativa unilateral da OTAN na questão do
Kosovo. Esse episódio levou a Instituição a uma crise de credibilidade.
176
Era preciso que fossem tomadas medidas imediatas, especialmente no campo da
sistematização do emprego militar, para que a Organização não perdesse sua identidade, pela
perda do monopólio da legitimidade para agir.
Em março de 2000, o Secretário Geral Kofi Annan asseverava:
El 7 de marzo de 2000 convoqué a un Grupo de alto nivel para que realizara un
examen a fondo de las actividades de las Naciones Unidas relativas a la paz y la
seguridad y formulara un conjunto claro de recomendaciones específicas, concretas
y prácticas para ayudar a las Naciones Unidas a llevar a cabo esas actividades en el
futuro. (ONU,2000, palavras iniciais do relatório Brahimi)
Para que esses objetivos fossem atingidos, foi realizado o “Painel das Nações Unidas
para as Operações de Paz”. Esse painel foi conduzido pelo senhor Lakhdar Brahimi, ex-
ministro das relações exteriores da Argélia – e “Subsecretário Geral para Tarefas Especiais
em apoio aos Esforços Preventivos e de Implementação da Paz do Secretário Geral”. Os
demais membros do painel eram os renomados militares e civis, especialistas em Missões de
Paz, pertencentes a vários países do mundo.
Ao término do painel, em 21 de agosto de 2000, foi produzido um relatório que ficou
conhecido como “The Brahimi Report”.
O relatório Brahimi se diferenciava pela franqueza de suas análises e recomendações,
as quais não pouparam a própria Organização. Schnabel e Thakur (2001, p.243), o descrevem
como “unnusual in the candour of its analysis recommendations”. Segundo esses autores, o
relatório foi produzido pela ONU, “in order to reoccupy its niche as a major actor in
international security”.
A gama de recomendações produzidas variava desde a estratégia para a manutenção da
paz até assuntos de logística e administração, tanto em tarefas “de campo” como em tarefas
administrativas no “Quartel General” da ONU em Nova York. A ênfase das recomendações
era a da necessidade de se dotar a Organização de meios efetivos para a consecução de seus
177
objetivos. O parágrafo 5 do item I do relatório, “Um cambio necesario”, descreve esse
espírito:
5. Estos cambios, aunque fundamentales, no tendrán un efecto duradero a menos que
los Estados Miembros de la Organización asuman seriamente su responsabilidad de
entrenar y equipar a sus propias fuerzas y de dar a su instrumento colectivo
mandato y los recursos necesarios para poder hacer frente juntos a las amenazas a la
paz. Una vez que hayan decidido actuar como las Naciones Unidas, deben armarse
de la voluntad política para apoyarlas política, financiera y operacionalmente de
modo que la Organización resulte convincente como fuerza de paz.
Para Schnabel e Thakur (2001), o Relatório Brahimi fez parte de uma série de passos
corajosos, empreendidos por Kofi Annan, para forçar as Nações Unidas, por intermédio de
painéis internos e externos, a avaliar sua própria memória, submetendo suas conclusões e
recomendações à consideração dos Estados membros.
Os mesmos autores descrevem que as principais recomendações contidas no relatório
foram, em linhas gerais, as seguintes:
1) A comunidade internacional deveria estar profundamente comprometida com a
“prevenção de conflitos” e com a construção da paz (peace building). As Nações
Unidas, os governos, as organizações regionais e a sociedade civil, deveriam
trabalhar juntos, em tarefas de verificações, gerenciamento de conflitos e
reconstrução pós-conflito (parágrafo 34). A ênfase das tarefas de “peace-building”
deveria centrar-se na proteção dos direitos humanos, na desmobilização de forças e
na reintegração de refugiados (parágrafo 47).
2) As operações de manutenção da paz deveriam ser muito mais efetivas. Os
“capacetes azuis” deveriam ser bem treinados e possuir recursos para defenderem a
si mesmos, os demais componentes da missão e o mandato (parágrafo 55).
3) O trabalho de uma missão deveria ser apoiado e melhorado por análises
estratégicas e de inteligência do Secretariado, e de uma equipe de peritos legais, os
178
quais tinham como principal tarefa aconselhar e assistir a administrações civis
transitórias (parágrafos 75 e 83).
A seu termo, as operações de manutenção da paz deveriam ter condições de estar
desdobradas no terreno em 30 dias, no caso de missões tradicionais, e em 90 dias,
no caso de missões complexas (multidimensionais) (parágrafo 91).
O relatório também enfatiza a necessidade de se manter pessoal qualificado, em
particular líderes de missões, em listas prévias, com potenciais candidatos aptos ao
desempenho de suas tarefas (parágrafo 101).
4) O pessoal militar deveria estar igualmente bem preparado e prontamente
disponível para seu pronto desdobramento. Os Estados membros deveriam manter
forças multilaterais dentro do sistema da ONU de pronta arregimentação (UN -
standby arrangements system). O Secretário Geral deveria antecipar-se na criação
de planos para as operações de paz antes da sinalização de um acordo de cessar-
fogo pelas partes. O Secretário deveria se recusar a empregar tropas de países
contribuintes que não atingissem uma mínima capacitação operacional e logística
(parágrafo 117)
O mesmo alto nível de exigência deveria ser aplicado ao contingente de policiais e
outros especialistas (parágrafos 126 e 145)
5) Maior atenção deveria ser dada para o financiamento das relações públicas (Public
Information) das missões, para o apoio logístico e para o gerenciamento de gastos.
O Secretariado deveria possuir fundos provisórios para iniciar o planejamento das
Missões de Paz, antes da aprovação, pelo CSNU, do emprego de forças no terreno.
As “missões de campo” (em contraposição ao conceito de missões burocráticas)
deveriam ter maior controle sobre o gerenciamento de seus orçamentos (parágrafo
169)
179
Deveria ser criada uma unidade de Peace-Building (PCPB) dentro do
Departamento de Assuntos Políticos da ONU (como de fato aconteceu). Esse
departamento teria como razão de ser a melhoria do planejamento de peace-
building no pós-conflito.
Essas foram, de maneira bastante resumida, as principais idéias extraídas dos 280
(duzentos e oitenta) parágrafos produzidos pelo relatório, contemplado com seis diferentes
capítulos: “I - Un cambio necesario, II - Doctrina, estrategia y adopción de decisiones de las
operaciones de paz , III - Capacidad de las Naciones Unidas para desplegar operaciones
rápida y eficazmente, IV - Los recursos de la Sede y la estructura de planificación y apoyo de
las operaciones de mantenimiento de la paz, V - Operaciones de la paz y la era de la
información e VI - Dificultades para la aplicación de las recomendaciones”.
O relatório Brahimi (2000) representou o mais completo e detalhado documento já
produzido sobre operações de paz desde a “Agenda para a Paz” (1992).
Enquanto esse último respondeu às transformações recém surgidas com a radical
mudança de cenário do emergente pós-Guerra Fria, o primeiro (Relatório Brahimi)
representou uma reação da ONU à crise gerada pela superextensão de suas atribuições e
emprego (de 1994 em diante), culminadas com o episódio do Kosovo em 1999, cuja
autoridade do CSNU foi frontalmente ignorada pela OTAN.
3.8 Conclusão para o capítulo Três
A ONU, assim como a Liga das Nações, foi uma reação da Humanidade ao total
descabimento da guerra. Ainda que essa seja uma visão demasiadamente idealista, a criação
da Organização representou um novo conceito na manutenção e na promoção da paz mundial.
A fim de não repetir os erros cometidos pela Liga das Nações, a ONU montou uma estrutura
180
de poder que atribuiu peso proporcional aos principais atores da época (P-5 do CSNU). A
criação dos P-5 com direito ao veto, ao mesmo tempo em que evitou o desmoronamento da
Organização (como ocorreu com a Liga das Nações) paralisou o seu funcionamento nos
estertores da bipolaridade.
A paralisação da Organização, no campo da manutenção e da preservação da paz,
gerou reações dentro e fora do sistema. Fora do sistema, foram criados pactos militares de
defesa mútua (OTAN e Pacto de Varsóvia) à imagem e semelhança de seus criadores (EUA e
URSS). Dentro do sistema, surgiram as operações de manutenção da paz.
As primeiras operações de manutenção da paz nasceram sofrendo das limitações
impostas pela bipolaridade, em contrapartida, lançaram as "pedras angulares" que norteiam as
referidas operações até os dias de hoje. Sua maior importância decorre desse fato.
O fim da bipolaridade trouxe consigo uma perspectiva propícia ao incremento das
operações de paz pelo maior entendimento entre os P-5. Por outro lado, os mesmos fatores
que levaram os membros permanentes do CSNU à convergência de opiniões aumentaram,
sobremaneira, a complexidade das questões de fundo no cenário intra e interestatal.
Era preciso responder a esse dilema de maneira organizada e sistematizada. Os velhos
princípios estabelecidos no contexto da Guerra Fria não respondiam mais à crescente
demanda quantitativa e qualitativa das Missões de Paz. O primeiro grande exercício de
adaptação da ONU foi a produção do documento "Uma Agenda para a Paz", em junho de
1992. A ONU estabeleceu aí o que "tinha de ser feito", mas não disse de que maneira.
Sem embasamento doutrinário, experiência de campo e sofrendo dos males da
superextensão de suas atribuições, a ONU, literalmente, "naufragou em diversas Missões de
Paz". A segunda missão na Somália (UNOSOM II) foi seu caso mais emblemático.
Mais uma vez, era preciso "reinventar a roda", pois a Organização começava a perder
sua proeminência e, acima de tudo, a sua exclusividade para a condução e o gerenciamento
181
dos assuntos atinentes à paz. No Kosovo, a ONU foi entestada pela OTAN. O relatório
Brahimi foi a reação necessária à revitalização da Organização, porém, dessa vez, foi
estabelecido não apenas o que deveria ser feito, mas principalmente “como” deveria ser feito.
O relatório Brahimi é datado de agosto de 2000, entretanto, a idealização do painel que
o desenvolveu, é de 1999.
In 1999, having decided that a reform of UN peacekeeping was imperative,
Secretary-General Kofi Annan undertook a comprehensive assessment of events
leading to the fall of Srebrenica and also commissioned an independent inquiry into
the actions of the United Nations during the Rwanda genocide of 1994. These
assessments highlighted the need to improve the capacity of the UN to conduct
peacekeeping operations and in particular to ensure rapid deployment and mandates
that met the needs on the ground. UN peacekeeping operations needed clear rules of
engagement; better coordination between the UN Secretariat in New York and UN
agencies in the planning and deployment of peacekeeping operations; and improved
cooperation between the UN and regional organizations. The UN also needed to
bolster efforts to protect civilians in conflicts (ONU, 1999, Meeting New
Challenges)
Naquele ano (1999), a ONU estabeleceu duas operações de paz (Kosovo e Timor) que
já se moldavam, sob vários aspectos, às premissas estabelecidas no Brahimi. Certamente,
alguns dos ensinamentos colhidos in loco tiveram influência direta na redação final do
relatório.
Como se pode constatar, essas duas operações ocorreram em um momento crucial para
a ONU. Um momento de transição entre o “ápice da decadência gerada pela superextensão de
missões” e o de um “engajamento mais efetivo” como preconizava o relatório Brahimi.
No próximo capítulo, serão abordadas as circunstâncias que envolveram a Missão de
Paz no Timor Leste, a partir do seu estabelecimento, haja vista que, até a ocorrência desse
evento, já haviam sido tecidas as devidas considerações.
182
4 A ONU NO TIMOR LESTE: A ESTRUTURAÇÃO DO “PEACE-
BUILDING” EM SEU MÁXIMO EXPOENTE
Neste capítulo, por diversas vezes, será empregado o termo soberania. Embora esta
dissertação não seja afeta às Ciências Jurídicas, mas sim às Relações Internacionais, é
importante que o leitor compreenda o ponto de vista deste autor quando faz referência ao
termo, ainda que a explicação a seguir tenha sido, propositalmente, simplificada.
A correta compreensão do termo tem dupla finalidade. Primeiramente, é necessário
que se tenha uma breve noção de como o conceito de soberania variou, ao longo do tempo,
até a transformação da ordem jurídica mundial de “estado de natureza” em “estado civil”,
transformação essa consubstanciada, do ponto de vista formal, pela assinatura da Carta da
ONU, em 1945, e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Somente pelo
conhecimento desse processo, ainda que de forma bastante elementar, é que se pode justificar
a ação daquele Organismo Internacional como legítima.
Um segundo aspecto, não menos importante, é o entendimento do termo sob a
perspectiva interna da relação estabelecida entre a ONU e o Timor Leste. Quando se fala em
atuação soberana da ONU no Timor, o que realmente se quer dizer? Os esclarecimentos para
ambas as idéias são os que seguem.
4.1 A perspectiva histórica do conceito de soberania: um breve resumo
As teorias que embasam o conceito de soberania datam de antes da paz de Westfália, a
qual inaugurou uma nova ordem legal internacional para a Europa. O regime de Westfália,
que surgiu de um rompimento com a ordem religiosa anterior, é mais lembrado por ter feito
do “Estado-territorial” a base do moderno sistema internacional.
183
A soberania “Westfaliana” residia na figura dos líderes políticos e nos governos de
então. Sob esse sistema, a defesa da soberania dava aos governos uma desculpa para a
imposição de normas ditatoriais. Essa forma de soberania autocrática conheceu seus primeiros
limites com a Revolução Americana, em 1776, e sua ênfase na soberania popular e,
posteriormente, com a Revolução Francesa, em 1789, e seus princípios de igualdade,
fraternidade e liberdade. Após as Guerras Napoleônicas, o Congresso de Viena de 1815,
retrocede essa tendência e reedita a soberania “Westfaliana” baseada no controle monárquico.
Esse quadro só viria a mudar após a I Guerra Mundial quando, em 1919, a Conferência de
Versalhes confirmou o conceito de soberania nacional, muito embora essa confirmação não
tenha sido aplicada às entidades políticas da África e da Ásia, sujeitas ao colonialismo
europeu. Dessa forma, em sua evolução, o conceito de soberania oscilou entre “propriedade
governamental” e “possessão popular”.
Soberania e território seguiram identificados por mais de 350 anos, porém, a
inviolabilidade da integridade territorial e a regra da não-intervenção, foram mais enfatizadas
ao término da II Guerra Mundial, embora a criação da ONU, pelo menos formalmente, tenha
representado a esperança de reversão dessa tendência. Essa ênfase privilegiou o Estado em
detrimento do povo. A Guerra Fria assegurou que essa noção Estado-centrista reinasse de
forma absoluta durante a sua vigência. Nesse período, o reconhecimento de novos Estados era
determinado pela capacidade dos mesmos em respeitar, ou não, a regra geral da não-
intervenção e de preservarem a sua soberania externa (Estado não reconhece nenhuma outra
autoridade acima de si no sistema internacional). A soberania popular (quando o poder emana
do povo e em seu nome é exercido) era desconsiderada nesse esquema, em grande parte
porque as duas superpotências (EUA e URSS) poderiam não concordar em relação à
orientação política escolhida por um determinado governo.
184
Com o final da Guerra Fria, as potências ocidentais voltaram a enfatizar valores
normativos e a soberania interna (governos têm a legitimidade para controlar todas as
atividades dentro de um determinado território se agirem de acordo com a lei) e isso deu a
impressão de que o conceito de soberania estava sendo associado à norma democrática.
Não obstante, a Declaração de Viena, em 1993, elege a Democracia como o melhor
regime político para a promoção dos direitos humanos. Dessa maneira, a Democracia passava
a ser reconhecida como a forma mais legítima de governo. O respeito aos princípios
democráticos passava a ser exigido de fora para dentro, retirando do Estado essa liberdade de
escolha que lhe era facultada pelo modelo Estado-centrista.
Ruía, assim, a velha noção de soberania externa absoluta. O idealismo contido na
Carta da ONU (1945) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), encontrava
o ambiente político favorável à sua exploração. Foi esse ambiente que permitiu o incremento
das ações da ONU após o término da Guerra Fria e, no caso em estudo, a atuação desse
Organismo na questão do Timor Leste.
4.2 Soberania e poder político: uma diferenciação necessária
É comum encontrarmos na literatura, e em textos leigos, a menção ao termo soberania
para designar o grau de poder assumido pela ONU em relação ao Timor Leste. Porém, antes
de qualquer consideração, é preciso entender o que se quer dizer quando se afirma que a ONU
assumiu a soberania desse território e aí exerceu funções típicas de Estado.
Achar as causas e os fundamentos do poder da autoridade faz parte de uma tendência
natural do homem que é a de procurar uma explicação eficiente para os fenômenos e fatos que
o rodeiam. Não há uma sociedade sem poder e todas as formas de sociedade são organizadas
hierarquicamente, obedecendo a direito social próprio. Segundo Villeneuve (1929), a forma
185
política da sociedade, o Estado, mais do que qualquer outra, é, essencialmente, ordem e
hierarquia, porque, englobando inúmeras sociedades, tem de conciliar-lhes as atividades e
disciplinar os indivíduos que as compõem. Apesar de menores e englobadas no Estado, as
demais sociedades são, da mesma forma que ele, naturais e necessárias à existência completa
do homem e, por isso, o Estado, sem sacrificar-lhes os objetivos, deve traçar regras que as
acomodem na organização política.
O poder estatal se distingue do poder dos demais grupos sociais. Por um lado, ele se
apresenta natural em virtude de nossa necessidade de viver em sociedade. Por outro lado,
artificial porque as sociedades não poderiam subsistir se a razão e a inteligência do homem
não as aperfeiçoassem, adaptando-as às exigências de cada época, defendendo-as dos fatores
de dissolução.
Para a consecução do seu objetivo (Estado) que, em última análise, é a promoção do
bem comum e a própria subsistência, o poder estatal se distingue pelo fato de ser supremo,
dotado de coação irresistível em relação aos indivíduos e grupos que formam a sua população
e independente em relação ao governo de outros Estados. A esse poder, que é supremo, os
escritores clássicos denominam soberania. No entanto, veremos que soberania e poder estatal
não são a mesma coisa.
A doutrina clássica da soberania é de origem francesa e, segundo ela, o caráter
distintivo do Estado é ser soberano. O conceito da soberania do Estado foi se formando em
conseqüência da longa luta travada pelos reis da França, internamente, para impor sua
autoridade aos barões feudais e, externamente, para se emanciparem do Santo Império
Romano e do Papado. Conforme os costumes da época, os barões feudais eram soberanos em
seus feudos e o rei somente era soberano em terras de sua propriedade. A soberania
significava o que hoje se denomina soberania interna: cada barão, em sua baronia, era o poder
supremo, o soberano. Assim, foi a soberania interna o primeiro aspecto da soberania que se
186
constituiu com a vitória do trono sobre os altivos e insubordinados barões feudais, com a
consolidação e extensão da autoridade real sobre todo o território.
Externamente, os reis da França travavam uma luta semelhante para emancipar-se da
tutela dos imperadores alemães que se supunham herdeiros do império romano e com
supremacia sobre todos os reis da Europa. Havia também uma luta de igual teor contra o
Papado, pois a Santa Sé, durante muito tempo, arrogava-se no direito de confirmar os reis no
trono ou de depô-los, por meio da excomunhão, que desligava os súditos do juramento de
fidelidade.
Vitoriosos também nessa contenda, os reis da França adquiriram externamente esse
grau de poder que não reconhece a outro superior. A doutrina política elaborada habilmente
pelos legistas franceses estendeu às relações internacionais o conceito de soberano que o rei
internamente já possuía. Como tal, a soberania passou a ser uma qualidade do poder real e não
um poder em si mesmo. Essa noção foi logo deturpada pelos legistas que queriam fortalecer a
monarquia e a soberania passou a identificar-se com a totalidade do poder dos monarcas ou
do Estado. Dessa forma, a soberania passou a ser característica, em si, do poder e da
autoridade política, fato esse que a distinguia de todos os outros poderes e autoridades.
Uma outra confusão, ainda mais deplorável, veio juntar-se a essa. Como o poder
supremo fora conquistado pelos reis e por eles era exercido, a soberania fundiu-se com a
qualidade de rei. O Rei, e não o Estado, é que era o soberano.
Uma terceira desfiguração viria a atingir o conceito de soberania. A soberania passou a
ser uma prerrogativa do rei, um direito patrimonial do herdeiro de certas famílias. Esse
conceito que se tornou plenamente vitorioso nas monarquias absolutas de direito divino, nas
quais o príncipe é proprietário da soberania, reina por vontade de Deus que, expressamente,
teria escolhido certas famílias para governar.
187
Esses três conceitos diferentes, em maior ou menor grau, mantiveram-se até hoje. Muitos
autores confundem a soberania com o próprio poder do Estado, com a sua competência
jurídica. Nessa acepção, todo Estado é soberano. Por outro lado, assim como a teoria
medieval confundia a soberania com a pessoa do rei, a doutrina vitoriosa com a Revolução
Francesa veio para confundir a soberania com o órgão mais poderoso nos Estados
representativos modernos, o Povo, ou a Nação.
O equívoco desse pensamento, segundo Villeneuve (1929), é identificar, em um
conceito, a Soberania, o Poder e o Estado. Na verdade, a soberania é o grau máximo do poder
político e não o próprio poder político. O poder político, por sua vez, não é o Estado, mas um
dos elementos do Estado. Tal distinção torna-se fundamental à luz do conhecimento empírico
da questão do Timor Leste, uma vez que a Organização das Nações Unidas não se configurou
como um Estado (em seu sentido mais amplo). A ONU assumiu o papel mais visível
executado por um estado que é o exercício do poder político. Por sua vez, o exercício desse
poder político não conheceu nenhum outro poder interno ou externo que o limitasse (exceção
feita à autolimitação do estado que se dá pelo respeito a normas e leis que ele mesmo
estipula).
4.3 Introdução
O presente capítulo destina-se ao estudo da estruturação das medidas de “Post
Conflict Peace Building” (PCPB) no Timor Leste, logo após a intervenção da ONU nesse
país, em setembro de 1999. Trata-se do projeto mais ambicioso já realizado pela Organização,
desde a sua criação, em termos de operações de paz. Nas palavras de Sérgio Vieira de Mello,
em discurso proferido no Itamaraty em 5 de fevereiro de 2002:
O 20 de maio marcará, também, o fim de um empreendimento único na história da
ONU: a UNTAET – Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste.
188
Partimos do nada, ou melhor, de um passivo marcado pela trágica herança da
devastação, tendo nas mãos o desafio e o compromisso de implementar um amplo e
ambicioso mandato, uma missão quase impossível a que nos atribuiu o Conselho de
Segurança, em sua Resolução 1272 (1999) [...] A UNTAET é, de fato, umas das
operações mais complexas já realizadas pelas Nações Unidas e um teste crucial para
a Organização em seu papel inédito de “construtora de um Estado-nação”. Por
primeira vez, exerceu poder soberano sobre um território, imbuída de todas as
funções de governo, na totalidade dos aspectos da governança, nos planos do
executivo, do legislativo e da administração da justiça, o que ultrapassa, em muito, o
escopo das tradicionais missões de manutenção da paz.
No Timor, a ONU estabeleceu um forte mandato exercido por uma administração
transitória sobre esse território (United Nations Transitional Administration in East Timor-
UNTAET).
A referida administração chamou a atenção da comunidade internacional por um
aspecto: a gama de responsabilidades assumida pela Organização. A seguir, a transcrição da
Resolução 1272 do Conselho de Segurança, datada de 25 de outubro de 1999, em que são
enumeradas as atribuições da Organização para essa missão:
El Consejo de Seguridad […]
Habiendo determinado que la situación actual en Timor Oriental constituye una
continua amenaza para la paz y la seguridad, Actuando en virtud del Capítulo VII de
la Carta de las Naciones Unidas,
1. Decide establecer, de conformidad con el informe del Secretario General, la
Administración de Transición de las Naciones Unidas para Timor Oriental
(UNTAET), que tendrá la responsabilidad general de la administración de Timor
Oriental y poseerá facultades para ejercer la total autoridad legislativa y ejecutiva,
incluida la administración de justicia;
2. Decide también que el mandato de la UNTAET constará de los siguientes
componentes:
a) Proporcionar seguridad y mantener el orden público en todo el
territorio de Timor Oriental;
b) Establecer una administración eficaz;
c) Contribuir al desarrollo de los servicios civiles y sociales;
d) Encargarse de la coordinación y la prestación de asistencia
humanitaria, la rehabilitación y la asistencia para el desarrollo;
e) Apoyar el fomento de la capacidad para el autogobierno;
f) Ayudar al establecimiento de las condiciones necesarias para el
desarrollo sostenible;
O teor dos comentários de diversos autores não deixa dúvidas quanto ao caráter
especial que teve essa missão:
Como características da administração transitória em Timor apontam-se:
189
a) Administração no sentido latíssimo de conjunto de poderes relativos a todas as
funções de Estado, e não só a administrativa (como se faz no nº 1 da Resolução nº
1272 do Conselho de Segurança e como era a administração portuguesa em Macau
antes de 1999);
b) Administração como mandato, e não como exercício de poderes próprios e
originários (como sucede em Estados soberanos) – as Nações Unidas como gestora
de negócios (não propriamente representante) do povo de Timor
c) Administração funcionalizada à garantia de segurança das pessoas, ao
estabelecimento ou restabelecimento de serviços públicos essenciais, e à preparação
do autogoverno (nº 2 da Resolução nº 1272);
d) Administração da gestão, sem legitimidade para tomar decisões que, criando
factos consumados, diminuam ou neguem na prática as livres opções do futuro
Estado independente (MIRANDA, 2000, p.216)
East Timor represents the evolution into the most recent, sixth generation of
peacekeeping. A UN-authorized multinational force is prepared for combat action if
necessary, and is given the mandate, troops, equipment, and robust rules of
engagement that are required for such a mission. However, the military operation is
but the prelude to a de facto UN administration that engages in state-making for a
transitional period. That is, a “nationis granted independence as a result of UN-
organized elections. But the nation concerned has no structures of “state” to speak
of. It is not even like Somalia, a case of failed state; in East Timor a state has to be
created from scratch (THAKUR e SCHNABEL, 2001, p.13)
[...] a Resolução 1272, de 25 de outubro de 1999, cria – como já disse – a
Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste (doravante, a
UNTAET). Esta resolução legitima um poder que, sob a alçada directa das Nações
Unidas, é muito próximo do poder estadual, ainda que, neste caso, vocacionado para
a construção de um Estado(LOPES, 2000, p.200).
Em 25 de outubro de 1999, o Conselho de Segurança estabeleceu, pela Resolução nº
1272, a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET).
Chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello (então subsecretário geral para
assuntos humanitários da ONU). Com mandato inicial até 31 de janeiro de 2001, a
UNTAET passou a exercer os poderes executivo, legislativo e judiciário em Timor
Leste, em consulta e cooperação com representantes das lideranças timorenses. A
UNTAET é composta atualmente por 625 funcionários internacionais, 1400
contratados locais, 200 observadores militares e uma tropa de cerca de 8000
homens. Além disso, estão atuando no terreno 12 agências da ONU e mais de uma
centena de ONGs. No total, aproximadamente 12000 pessoas estão envolvidas nas
atividades de assistência humanitária, reconstrução econômica e física e manutenção
da lei e da ordem no território (CUNHA, 2001, p.231)
Para tanto, fazia-se necessário que a ONU exercesse poderes soberanos no Timor,
como de fato o fez. Os artigos 1º, 4º e 6º da Resolução 1272 refletem a preocupação da ONU
em dotar a Organização de plenos poderes para a consecução de seus objetivos e concentram
esses poderes nas mãos do administrador, conforme abaixo:
1. Decide establecer, de conformidad con el informe del Secretario General, la
Administración de Transición de las Naciones Unidas para Timor Oriental
(UNTAET), que tendrá la responsabilidad general de la administración de
Timor Oriental y poseerá facultades para ejercer la total autoridad legislativa y
ejecutiva, incluida la administración de justicia (grifo nosso)
190
4.Autoriza a la UNTAET a adoptar todas las medidas necesarias (grifo nosso)
para cumplir su mandato;
6. Acoge con beneplácito la intención del Secretario General de nombrar a un
Representante Especial que, en su calidad de Administrador de Transición, será
responsable de todos los aspectos de la labor de las Naciones Unidas en Timor
Oriental y estará facultado para promulgar nuevas leyes y reglamentos y
enmendar, suspender o derogar los existentes (grifo nosso);
O exercício da administração de um território pela ONU não era tarefa inédita. A
missão da ONU no Congo (ONUC), entre 1960 e 1964, foi uma das precursoras. Na mesma
época, a ONU empreendeu uma missão com poderes executivos e legislativos (limitados) em
Irian Jaya (West Papua), antes do resultado do “act of free choise
12
” ter passado o território às
mãos dos indonésios. Outros exemplos encontrados na literatura são as missões na Namíbia,
entre 1966 e 1990, e a do Camboja entre 1992 e 1993. Em nenhum desses casos a ONU
encampou um mandato tão abrangente como o do Timor Leste. Sérgio Vieira de Mello, em
discurso mencionado anteriormente, comentou:
O mandato, obviamente, deve ser adequado à situação concreta a ser enfrentada.
Nem todas as missões da ONU – nem aquelas com funções de governança – têm que
ser tão extensivas e abrangentes quanto à da UNTAET. Entretanto, onde essa
autoridade é exigida, ela deve ser claramente explicitada.
Já nos anos 90, quase concomitantemente com a missão no Timor (ambas foram
estabelecidas no segundo semestre de 1999), ocorreu a missão da ONU no Kosovo (United
Nations Interin Mission in Kosovo-UNMIK). Essa missão foi empreendida logo após a ação
da OTAN naquele território, o que pode ter parecido um ato de legitimação por parte da
ONU.
Considerações políticas à parte, ambas as administrações são vistas como únicas na
história das Nações Unidas (CHESTERMAN, 2005). A complexidade dessas missões
excedeu, sobremaneira, a complexidade das suas precursoras. No Kosovo, a ONU possuía
todos os poderes inerentes a um Estado de Direito (Legislativo, Executivo e Judiciário) a
191
exceção da responsabilidade pela defesa externa do território (a cargo da OTAN). No Timor,
o espectro de atribuições foi o mais amplo de todos os tempos, englobando, a título
exemplificativo, da defesa externa à celebração de tratados comerciais (Timor Gap, ver o
capítulo 2, subitem da ONU como ator), além das tradicionais funções de Estado (Legislativo,
Executivo e Judiciário)
O emprego da ONU nessas duas missões, por ter sido prioritariamente realizado na
área da revitalização ou da criação de instituições de governo, leva à confusão de dois
conceitos: “state-building” e “peace-building”. A abordagem é a que segue.
4.4 Peace-building versus State-building: esclarecendo os termos
O termo “state-building” (construção de estados) não é um termo utilizado
oficialmente pela ONU. Nos Estados Unidos, o termo é conhecido como “nation-building”
(construção de Nações) e, provavelmente, recebe essa denominação porque “a identidade
cultural e histórica foi fortemente influenciada por instituições políticas como o
constitucionalismo e a democracia” (FUKUYAMA, 2005, p. 131). As Nações Unidas
entendem que o conceito de “nation-building” é bem mais complexo do que isso, englobando
aspectos sociológicos e políticos, e, por essa razão, evitam a utilização do termo para não
causar confusão. Trata-se, portanto, de um termo acadêmico que não é aproveitado pela ONU.
Fukuyama (2005) define state-building: (construção de Estados) como a criação de
novas instituições governamentais e o fortalecimento daquelas já existentes. O mesmo autor
enumera três aspectos distintos, ou fases, na construção de Estados.
Há três aspectos distintos, ou fases, na construção de nações. O primeiro diz respeito
ao que veio a ser chamado de reconstrução pós-conflito e se aplica a países que
saem de conflitos violentos, como o Afeganistão, a Somália e o Kosovo, onde a
12
Act of free choise: Referendo organizado pela ONU em Irian Jaya (Guiné Ocidental) em 1969, a fim de
determinar se a população local optaria pela sua independência ou passaria a ser integrada ao Estado indonésio
192
autoridade do Estado ruiu completamente e precisa ser reconstruída a partir do zero.
Aqui o papel das potências estrangeiras está na provisão a curto prazo de
estabilidade, por meio de infusões de forças de segurança, policiamento, ajuda
humanitária e assistência técnica para a restauração dos sistemas de eletricidade,
água, bancário e assim por diante.
Se o Estado destruído tem a sorte de alcançar um pouco de estabilidade com ajuda
internacional (como no caso da Bósnia), entra em cena a segunda fase. Aqui, o
principal objetivo é a criação de instituições estatais auto-sustentadas que possam
sobreviver à retirada da intervenção externa. Esta fase é muito mais difícil de atingir
do que a primeira, mas é crítica para que as potências estrangeiras possam fazer uma
retirada elegante do país em questão.
O terceiro aspecto coincide em parte com o segundo. Ele está ligado ao
fortalecimento de Estados fracos, onde a autoridade existe de forma razoavelmente
estável, mas não consegue executar determinadas funções, como a proteção dos
direitos de propriedade ou a provisão do ensino básico (FUKUYAMA, 2005, p. 132
e 133)
Samuel Chesterman, em artigo denominado “Kosovo in Limbo: state-building and
substantial Autonomy” define state-building: da seguinte forma:
In this project, the term “state-building” is used to refer to extended international
involvement (primarily, though not exclusively, through the United Nations) that
goes beyond traditional peace-keeping and peace-building mandates, and is directed
at developing the institutions of government by assuming some or all of those
sovereign powers on a temporary basis. This highlights the linkage between recent
events and earlier activities by the United Nations and its predecessor, the League of
Nations, in exercising or supervising various forms of trusteeship over territory.
O mesmo autor menciona que a ONU utiliza o termo peace-building e que esse seria
mais abrangente do que state-building, uma vez que este último teria ênfase apenas na criação
e no fortalecimento de instituições de governo.
É certo que, tanto nas atividades de peace-building quanto nas de state-building, o
objetivo final é praticamente o mesmo: prover o Estado beneficiário de uma estrutura mínima,
sustentável e que, em última instância, evite a recorrência da guerra.
Para efeito deste estudo, este autor entende que o termo peace-building seja mais
adequado do que o termo state-building. Primeiramente, deve ser reconhecido que a
intervenção da ONU no Timor teve como ênfase a reformulação e a criação de instituições
governamentais (Judiciário e Ministério Publico, por exemplo), o que ficaria caracterizado
como state-building, entretanto, seu alcance transcendeu, em muito, a apenas essa prática.
193
Um bom exemplo foi o trabalho da Organização no repatriamento de aproximadamente
200.000 (duzentos mil) refugiados timorenses que se encontravam na Indonésia, fato este que
nada tem a ver com a mera reformulação e criação de novas instituições governamentais.
Outro aspecto fundamental é o da exatidão conceitual. Se este estudo se refere em
grande parte à ONU, deve, em princípio, adotar classificações que se aproximem ao máximo
daquelas utilizadas pela Organização. Como a Organização não menciona a expressão state-
building, por considerá-la conexa ao conceito de nation-building dos americanos, a
classificação a ser utilizada para descrever a ação da ONU no Timor Leste será a de peace-
building.
4.5 A evolução do conceito de “peace-building”
A primeira menção ao conceito de “peace-building” surgiu no relatório “Uma Agenda
para a Paz” (ONU, 1992). O conceito visava à implantação de medidas no pós-conflito de
uma guerra a fim de se evitar a recorrência das hostilidades. O artigo 21 do referido relatório
trazia a definição nos seguintes termos:
21. The present report in addition will address the critically related concept of post-
conflict peace-building - action to identify and support structures which will tend to
strengthen and solidify peace in order to avoid a relapse into conflict. Preventive
diplomacy seeks to resolve disputes before violence breaks out; peacemaking and
peace-keeping are required to halt conflicts and preserve peace once it is attained. If
successful, they strengthen the opportunity for post-conflict peace-building, which
can prevent the recurrence of violence among nations and people (Original em
Inglês).
21 En el presente informe se tratará, asimismo, el concepto críticamente vinculado a
los anteriores de consolidación de la naz después de los conflictos, vale decir las
medidas destinadas a individualizar y fortalecer estructuras que tiendan a reforzar y
consolidar la paz a fin de evitar una reanudación del conflicto. La diplomacia
preventiva tiene por objeto resolver las controversias antes de que estalle la
violencia: las actividades de establecimiento y de mantenimiento, de la paz atienden
a la necesidad de detener los conflictos y preservar la paz una vez que ésta se ha
logrado., Si tienen éxito, acrecientan las posibilidades de consolidar la paz después
de los conflictos, lo que puede evitar que vuelva a estallar la violencia entre las
naciones y los pueblos (Versão em Espanhol)
194
No documento “Uma Agenda para a Paz” a idéia era tão vaga que Boutros Ghali
procura enumerar exemplos daquilo que podia ser considerado como “peace-building”. O
artigo 56 revela essa carência de conteúdo:
56. In the aftermath of international war, post-conflict peace-building may take the
form of concrete cooperative projects which link two or more countries in a
mutually beneficial undertaking that can not only contribute to economic and social
development but also enhance the confidence that is so fundamental to peace. I have
in mind, for example (grifo nosso), projects that bring States together to develop
agriculture, improve transportation or utilize resources such as water or electricity
that they need to share, or joint programmes through which barriers between nations
are brought down by means of freer travel, cultural exchanges and mutually
beneficial youth and educational projects. Reducing hostile perceptions through
educational exchanges and curriculum reform may be essential to forestall a re-
emergence of cultural and national tensions which could spark renewed hostilities
(Original em Inglês).
56 después de los conflictos puede asumir la forma de proyectos de cooperación que
asocien a dos o más países en una empresa de beneficio mutuo que podrá no sólo
contribuir al desarrollo económico y social sino también a aumentar 13 confianza,
elemento fundamental de la paz. Cabe mencionar, por ejemplo, proyectos en que los
Estados trabajen aunadamente para desarrollar la agricultura, mejorar el transporte o
aprovechar recursos que necesiten compartir, como el agua o la electricidad, 0
programas conjuntos para eliminar barreras entre las naciones promoviendo las
facilidades de viaje y los intercambios culturales, así como los proyectos
educacionales y para 1a juventud que sean de beneficio mutuo. La reducción de las
percepciones hostiles mediante intercambios educacionales y la reforma de los
programas de estudios puede ser indispensable para evitar que resurjan las tensiones
culturales y nacionales que pueden dar lugar a una reanudación de las hostilidades
(Versão em Espanhol).
O relatório Brahimi (ONU, 2000), a seu termo, enumera uma relação que mistura
princípios de emprego com medidas concretas a serem desenvolvidas. Os artigos 13 e 14 do
relatório são os que seguem:
13. Peace-building is a term of more recent origin that, as used in the present report,
defines activities undertaken on the far side of conflict to reassemble the foundations
of peace and provide the tools for building on those foundations something that is
more than just the absence of war. Thus, peace-building includes but is not limited
to reintegrating former combatants into civilian society, strengthening the rule of
law (for example, through training and restructuring of local police, and judicial and
penal reform); improving respect for human rights through the monitoring,
education and investigation of past and existing abuses; providing technical
assistance for democratic development (including electoral assistance and support
for free media); and promoting conflict resolution and reconciliation techniques.
strategies are a necessary complement to short-term initiatives (Original em Inglês).
14. Essential complements to effective peace building include support for the fight
against corruption, the implementation of humanitarian demining programmes,
195
emphasis on human immunodeficiency virus/acquired immunodeficiency syndrome
(HIV/AIDS) education and control, and action against other infectious
diseases(Original em Inglês).
13. La consolidación de la paz es un término más reciente que, como se usa en este
informe, se refiere a las actividades realizadas al final del conflicto para restablecer
las bases de la paz y ofrecer los instrumentos para construir sobre ellas algo más que
la mera ausencia de la guerra. Por lo tanto, la consolidación de la paz incluye, entre
otras cosas, la reincorporación de los excombatientes a la sociedad civil, el
fortalecimiento del imperio de la ley (por ejemplo, mediante el adiestramiento y la
reestructuración de la policía local y la reforma judicial y penal); el fortalecimiento
del respeto de los derechos humanos mediante la vigilancia, la educación y la
investigación de los atropellos pasados y presentes; la prestación de asistencia
técnica para el desarrollo democrático (incluida la asistencia electoral y el apoyo a la
libertad de prensa); y la promoción del empleo de técnicas de solución de conflictos
y reconciliación. el momento de crisis suelen ser insuficientes o llegan muy tarde.
Sin embargo, si se intentan más temprano, las iniciativas diplomáticas pueden ser
rechazadas por un gobierno que no ve o no quiere reconocer el problema en ciernes,
o que puede ser él mismo parte del problema. Por lo tanto, las estrategias
preventivas a largo plazo son un complemento necesario de las iniciativas a corto
plazo (Versão em Espanhol).
14. Complementos esenciales de una efectiva consolidación de la paz son el apoyo a
la lucha contra la corrupción, la ejecución de programas humanitarios de remoción
de minas, los programas de lucha contra el virus de inmunodeficiencia
humana/síndrome de inmunodeficiencia adquirida (VIH/SIDA), incluidos los de
información y la lucha contra otras enfermedades o unidades militares para hacerlo,
mientras seguían las tratativas para llegar a una solución política. Las necesidades en
materia de inteligencia eran también bastante simples y los riesgos para los
contingentes, relativamente bajos. Sin embargo, el mantenimiento de la paz en su
forma tradicional, que apunta más a tratar (Versão em Espanhol).
Uma importante inovação, trazida pelo relatório Brahimi, foi a inclusão das atividades
de peace-building no “Department of Political Affairs” (DPA-ONU). A inclusão do tema em
um órgão externo ao Conselho de Segurança revela a sua valorização no contexto da
Organização. O tema passa a fazer parte, também, das medidas de peacemaking previstas no
capítulo VI da Carta, não se restringindo somente ao contexto “pós-conflito”. A missão da
unidade de peace-building do DPA é a de providenciar análises politico-estratégicas e
periciais obtidas por intermédio desse órgão na elaboração de acordos de paz e no
gerenciamento de operações pós-conflito.
Analisando os dois documentos oficiais da ONU a respeito do assunto (Agenda para a
Paz e Relatório Brahimi), conclui-se que a definição de peace-building se faz,
prioritariamente, em termos de princípios. A enumeração das atividades previstas nos dois
196
documentos não é absoluta, mas sim, exemplificativa, o que explica o caráter inédito de
algumas medidas adotadas no Timor conforme será abordado no subcapítulo 4.7 (O state-
building na prática).
4.6 A estruturação da administração transitória: aspectos legais
No momento em que o povo timorense exerceu o seu direito à autodeterminação,
caducou o direito constitucional indonésio sobre seu território, no sentido de considerá-lo
parte integrante da Indonésia. Contudo, o direito ordinário vigente no Timor, por
determinação implícita da Resolução 1272 da ONU, não caducou, uma vez que a referida
Resolução atribui ao administrador das Nações Unidas o direito de alterar a legislação aí
existente à data da autodeterminação, podendo, ainda, revogar, interpretar ou suspender
qualquer norma aí existente (ver transcrição do n. 6 da Resolução 1272 ).
A Resolução 1272/99 estabeleceu os termos do Mandato que deveria ser levado a cabo
pela UNTAET. Ao fazê-lo, conferiu ao administrador do território os poderes legislativo,
executivo e judiciário. Por essa razão, alguns autores, como o Professor Doutor Vital Moreira,
da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
13
, criticam seu conteúdo
demasiadamente centralizador que lhe confere características ditatoriais.
Ainda que a observação tenha seu fundo de verdade, deve ser lembrado que o poder do
administrador não era absoluto, pois estava sujeito a limites externos. Esses limites são
basicamente dois: a própria Resolução 1272 que, expressa ou implicitamente, já impõe termos
ao administrador, e os de natureza material, traduzidos pelo conjunto de regras e princípios
que regem as Nações Unidas. São, portanto, limites explícitos (a Resolução) e implícitos (os
13
Timor, um país para o século XXI. Diversos Autores Portugal, 2001.
197
que regem a ONU em nível internacional). Esses limites sejam explícitos ou implícitos, atuam
em três ordens.
Primeiramente, existem os limites de ordem procedimental. Segundo esses, o
administrador estava inteiramente obrigado aos termos da Resolução 1272/99. Dentre as
determinações contidas na Resolução encontrava-se uma que determinava que o
administrador deveria consultar e cooperar intimamente com o povo do Timor Leste, de
maneira a exercer seu mandato de forma efetiva, procurando desenvolver as instituições locais
de maneira democrática, incluindo aí o estabelecimento de uma instituição timorense
dedicada aos direitos do homem.
A consecução dessa determinação se deu com a criação de uma Comissão Consultiva
denominada Conselho Nacional Timorense. Esse Conselho foi instituído pelo administrador,
o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, e teve sua composição formada de maneira ampla, a fim
de representar os anseios de todos os segmentos da sociedade timorense. Cunha (2001, p.231)
refere-se a esse conselho da seguinte forma:
Em dezembro de 1999, foi criado o mecanismo que constitui elemento fundamental
do atual processo político de Timor Leste: o Conselho Consultivo Nacional (CCN),
órgão de coordenação política entre a UNTAET e o Conselho Nacional da
Resistência Timorense (CNRT), tendo em vista garantir a participação do povo
timorense no processo de tomada de decisões durante o período de administração
transitória. É composto por 15 membros: o administrador transitório (que preside o
conselho), três elementos da UNTAET e 11 timorenses. Procurando refletir em larga
medida o resultado da consulta popular em 30 de agosto, o grupo timorense no CCN
é integrado por sete representantes do CNRT, três de grupos políticos independentes
do CNRT e um da Igreja Católica de Timor Leste.
A crítica que alguns membros da comunidade internacional fazem é em relação ao
processo de escolha dos membros do Conselho. Como não foram eleitos, mas sim escolhidos
dentre os principais líderes comunitários, questionara-se a sua legitimidade. Este autor
entende que essa crítica não contribuiu em nada para a solução da questão. Não havia, no
Timor, facções políticas concorrentes que justificassem o retardo que seria provocado por
198
mais um processo eleitoral, além do custo que tal medida agregaria. Não obstante, não se
registraram no Timor manifestações contestatórias à escolha dos membros do conselho.
O segundo tipo de limitação é de ordem funcional. O exercício dos poderes do
administrador estava adstrito à finalidade do mandato, qual seja: a de implementar as medidas
estabelecidas no seu conteúdo de maneira a tornar o Timor independente. Desta forma, os
poderes do Administrador foram os necessários, e somente esses, para levar a cabo a sua
missão. Tudo de acordo com a incumbência que lhe foi dada pela Resolução das Nações
Unidas.
A terceira limitação é material e implícita. Ela se traduz no conjunto de princípios que
regem a ONU nessa área, sobretudo, na garantia dos direitos que são considerados universais
e inalienáveis ao homem. Nesse rol de leis, devem ser destacados: a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, o Pacto das Liberdades Civis e Políticas (1966) e a declaração de Viena
14
(1993).
Esse último tipo de limitação foi operacionalizado pelo regulamento
UNTAET/reg/1999/1, de 27 de novembro de 1999.
De acordo com esse documento, Sérgio Vieira de Mello impôs limites à autoridade da
ONU no Timor, por intermédio de um vasto conjunto de princípios, cartas, acordos e tratados
internacionais. O Administrador também destacava que a ordem jurídica indonésia (legislação
ordinária) seria mantida em vigor à exceção do conjunto de leis expressamente revogadas: lei
sobre a subversão, leis de proteção nacional e defesa, lei de mobilização e desmobilização
militar e, por fim, a lei de defesa e segurança, abolindo a pena de morte.
No mesmo documento, Sérgio Vieira informa que assumira o poder legislativo, o qual
já lhe fora atribuído pela Resolução 1272, e que iria legislar por intermédio de regulamentos.
14
Declaração de Viena: assinada como resultado da Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos,
realizada em Viena em 1993. Estipulou a democracia como forma de governo mais favorável aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais.
199
Essa foi, em suma, a estrutura jurídica estabelecida pela ONU a fim de dar
legitimidade ao processo que viria conduzir o Timor Leste à independência.
4.7 A administração da ONU no Timor Leste: os primeiros passos da gestão
Do ponto de vista administrativo, os percalços foram maiores. O Timor Leste se
ressentiu da falta de mão-de-obra especializada para o exercício da administração pública. É
importante lembrar que os indonésios haviam alijado os timorenses da administração pública
por intermédio do processo de transmigração da população javanesa para a ilha. Associada à
falta de experiência, havia um outro fator: o baixo nível de escolaridade que prejudicava,
sobremaneira, a rapidez do processo de transferência de responsabilidades.
A solução encontrada pela ONU foi a utilização de um sistema denominado “Dual
desk”. Por esse sistema, nos cargos diretórios e executivos de maior escalão, para cada
funcionário da ONU, deveria haver um timorense. Sérgio Vieira de Mello chamou esse
processo de “timorização” (transferência gradual de responsabilidades).
O processo de timorização teve início com a composição mista do gabinete de
governo. De acordo com Cunha (2001, p.232):
Em julho de 2000, o administrador do território, Sérgio Vieira de Mello, deu início a
nova etapa do processo de “timorização” gradual da administração do território. Foi
nomeado um gabinete misto, com quatro “ministros” timorenses e quatro dos
quadros da UNTAET. Aos timorenses foram entregues as “pastas” de
Administração Interna, Infra-estrutura, Assuntos Econômicos e Assuntos Sociais.
A UNTAET permaneceu responsável por questões de justiça, defesa, segurança,
assuntos políticos, constitucionais e eleitorais.
Para implantação do Judiciário, a principal dificuldade enfrentada foi a falta de
homogeneidade nos quadros disponíveis de advogados timorenses. Além de serem poucos,
alguns haviam se formado na Austrália e outros em Portugal e Indonésia. Haviam estudado
200
não só legislações distintas, como também, em “sistemas” jurídicos diferentes (como se sabe,
a Austrália adota a Commom Law). A fim de nivelar conhecimentos e procedimentos, a ONU
criou uma escola de formação judiciária.
Para a estruturação do sistema de defesa foi criado um centro de formação militar em
Metinaro. Esse centro contava com instrutores de diversos países, em especial, Austrália e
Portugal. Aí eram formados recrutas que deveriam compor as “Forças de Defesa de Timor
Leste” (FDTL). Como a ONU ficou encarregada inicialmente da defesa territorial, essa
Organização dividiu a ilha em três setores de responsabilidade. À medida que os efetivos
timorenses iam sendo formados, a ONU se desincumbia dessa finalidade especifica, passando
a responsabilidade desses setores (apenas para a defesa externa) aos próprios timorenses. O
projeto inicial da ONU previa a criação de três batalhões de Infantaria no Timor.
Internamente, o processo de formação das Forças de Defesa do Timor Leste sofreu
duras críticas pelos ex-membros das Forças Armadas de Libertação do Timor Leste (Falintil).
Apenas uma parcela de seus membros foi designada para compor essa força, e diversos
recrutas foram selecionados entre os mais jovens, normalmente sem experiência em combate.
Os ex-integrantes da guerrilha sentiam-se desprestigiados e “traídos” pelo governo. Como já
se encontravam mais velhos para ingressarem nas Forças Armadas, iniciaram um movimento
em prol do pagamento de reformas. A questão do recrutamento pode significar um ponto de
atrito político no futuro do Timor Leste.
A segurança pública foi tratada pela ONU de maneira semelhante à defesa.
No âmbito dos assuntos políticos, as questões mais importantes eram a de criação de
uma nova constituição (20/3/2002) e do estabelecimento das eleições, seja para a formação da
Assembléia legislativa (30/8/2002) seja para a escolha do futuro presidente (14/4/2002). Em
ambos os casos, a ONU saiu-se muito bem. Para o estabelecimento da Constituição foi eleita
201
a Assembléia Legislativa e convocada uma equipe internacional de jurisconsultos que tinham
por tarefa prestar auxílio na redação do texto constitucional.
As eleições presidenciais foram realizadas em 14 de abril de 2002. Seu vencedor foi o
antigo líder guerrilheiro, o Sr. Xanana Gusmão. Em 20 de maio de 2002, no mesmo dia em
que empossava seu primeiro Presidente, o País tornava-se independente (pelo menos
juridicamente) vindo a ser o primeiro Estado do século XXI.
Outras iniciativas foram tomadas pela ONU no campo político. A assinatura do
Tratado do Timor Gap com a Austrália representa um marco no Direito Público Internacional.
O “treaty making power” (pode celebrar tratados), típico das estruturas soberanas de poder,
havia sido posto em prática pela ONU, em nome do povo do Timor Leste e no interesse deste.
A fim de não prejudicar o andamento das transformações que se processavam no
Timor, a ONU não abandonou o território assim que esse País se tornou independente.
Manteve-se aí “mimetizada” em uma missão de apoio (United Nations Mission of Support in
East Timor- UNMISET).
4.8 Kosovo e Timor: duas faces da mesma moeda.
A missão da ONU no Kosovo (UNMIK) e a missão da ONU no Timor (UNTAET) são
exemplos de administrações transitórias e não foram atividades propriamente inéditas. O que
guardam de especial, então? Guardam de especial a abrangência de seus mandatos. Esse é,
sem dúvida, o maior ponto de convergência entre as duas missões.
Nos demais aspectos, essa duas missões guardam mais diferenças do que semelhanças.
Este autor julga importante colocar as duas missões em uma perspectiva comparativa, para
que não se incorra na “tentação da generalização” a qual, freqüentemente, distorce a verdade.
202
O primeiro termo de comparação diz respeito aos antecedentes de ambas as missões. A
UNMIK foi estabelecida em 10 de junho de 1999 (Resolução 1244) no desenrolar de uma
ação militar da OTAN não consentida pelo Conselho de Segurança da ONU. Essa situação
gerou um duplo impasse para a ONU. Primeiramente, por não ter se manifestado
publicamente contra a implementação da Operação “Allied Force
15
” que durou 78 dias (de 24
de março a 10 de junho de 1999). França (2004, p.137) comenta o episódio da seguinte
maneira: “[...] A conclusão a que se pode chegar é que a campanha aérea, se bem não teve
uma condenação explícita, não teve nem autorização expressa do Conselho de Segurança,
nem tampouco recebeu legitimação a posterior”.
Em segundo lugar, cessados os bombardeios, a ONU viveria um dilema. Se não
estabelecesse uma operação de paz estaria “pecando” pela omissão total em relação ao caso e,
provavelmente, a OTAN ou a União Européia assumiriam esse “vácuo de poder”. Se ali
estabelecesse uma missão de paz, como de fato o fez, tal atitude poderia ser vista como um
“concorde” aos bombardeios o que, em última análise, estaria a legitimar a ação prévia da
OTAN. Entre a “cruz e a espada”, a ONU optou por estabelecer a UNMIK, que coordenou o
componente civil presente no Kosovo.
Transpondo o caso para a questão do Timor Leste, constata-se uma grande diferença.
A UNTAET foi estabelecida em 25 de outubro de 1999, na esteira de uma intervenção
multinacional, capitaneada pela Austrália e consentida pelo Conselho de Segurança: a
“International Force in East Timor” (INTERFET). O observador mais desavisado poderia
questionar: dois pesos, duas medidas? A questão não se resume a esse simples
questionamento. É preciso, a priori, entender o contexto da tomada de decisão pela ONU no
Kosovo. A Organização encontrava-se “constrangida” pela ação da OTAN. A Ásia,
diferentemente da Europa, não é uma zona de influência usual para a OTAN. A Indonésia
15
Operação Allied Force: nome dado à campanha aérea da OTAN contra a República Federal da
Iugoslávia (RFI) durante o conflito do Kosovo. Contou com a participação de treze países e 1.100 aviões
203
(parte envolvida no problema) encontrava-se em pleno processo de democratização, além de
ser grande aliada dos americanos. Finalmente, a Austrália havia colocado suas forças a
disposição desde 30 de julho de 1999.
Torna-se óbvio que a Organização aproveitou o episódio para se redimir em relação ao
Kosovo, mas é inegável que as condições eram, em tudo, favoráveis.
Deixando de lado os antecedentes e concentrando as atenções nos mandatos, algumas
diferenças são inquestionáveis.
O mandato da UNMIK não possuía o objetivo político claro. O artigo 10 da Resolução
1244 falava em “substancial autonomia” para o território do Kosovo, contudo, não definia o
termo. O mandato da UNTAET era claro ao expressar que o objetivo final da missão era a
independência do Timor Leste (observação contida nas considerações iniciais).
O mandato da UNMIK não estipulava prazo para o seu final. O mandato da UNTAET
era claro ao estabelecer que o período inicial da Missão fosse até 31 de janeiro de 2001 (artigo
17).
Na UNMIK, a ONU compartilhou poderes com outras organizações intencionais. A
OTAN era a responsável pelo comando das Forças de Segurança, a “construção de
instituições” era de responsabilidade da Organização para a Segurança e Cooperação na
Europa (OSCE) e a “reconstrução” era de responsabilidade da União Européia (UE).
Na UNTAET, a ONU não delegou poderes a nenhuma outra instituição, assumindo
todas as tarefas estipuladas no mandato.
Na UNMIK, a criação e a reformulação das instituições, em especial do quadro de
funcionários, não ocorreu em todos os níveis, haja vista a preexistência de várias dessas
instituições. Na UNTAET, como as instituições muitas vezes não existiam, tratava-se de
começar do zero.
204
Na UNMIK, a percepção de ameaça era interna. A ONU deveria garantir a
convivência entre diferentes comunidades. Na UNTAET, a ameaça à segurança era muito
mais externa do que interna, haja vista que o antigo Estado ocupante do território (Indonésia),
ainda fazia fronteira com o Timor Leste.
Finalmente, a UNMIK trabalhou em um contexto em que a ONU retirou de um Estado
(infrator) a jurisdição sobre uma parcela de seu território, enquanto que a UNTAET trabalhou
em um contexto no qual não havia mais um Estado, e a lógica da administração era a de
preparar o território para que fosse devolvido ao seu povo na forma de Estado (Lopes, 2000).
Em decorrência dessa comparação percebe-se que não se pode incluir as duas
operações em um mesmo rol. Por certo, a UNTAET deve ter aproveitado diversas
experiências obtidas na UNMIK, mas isso não significa, em absoluto, que essas missões
façam parte de um mesmo padrão de atuação. Não é por acaso que o brasileiro Sérgio Vieira
de Mello esteve presente nas duas missões. No Kosovo, como Representante Especial Interino
do Secretário Geral e, no Timor, como Representante Especial do Secretário Geral.
Nota-se, igualmente, que as condições para a atuação no Timor eram bem mais
favoráveis que no Kosovo. O grande mérito da Organização foi perceber esse contexto e dele
tirar proveito logo em seguida ao constrangimento sofrido no Leste Europeu.
4.9 Conclusão para o capítulo sobre a ONU no Timor Leste
O Timor Leste representou para a ONU um desfio e uma oportunidade ao mesmo
tempo. Um desafio à Organização pela magnitude do mandato que encampou, experiência
inédita e nunca antes tentada. Uma oportunidade, pela reunião ímpar de condições favoráveis
à sua consecução.
205
A Organização percebeu esse ambiente e o aproveitou para se redimir de um erro que
havia cometido há pouco tempo: a sua omissão no Kosovo.
Alguns estudiosos englobam as duas participações em um mesmo rol. De fato, as duas
foram administrações transitórias, com um grande número de atribuições, e suas similitudes
se encerram por aí.
A UNTAET, se contraposta à UNMIK, apresentou diversos traços de
aperfeiçoamento, traços esses que a tornaram incomum. Em primeiro lugar, a ONU percebeu
que a chave para o sucesso da operação passava por um mandato robusto que lhe permitisse
grande poder de manobra. Mesmo tendo sido contemplada com tal poder, a Organização não
se descuidou e, atenta à questão da legitimidade de seu trabalho, dividiu a responsabilidade de
suas decisões com o povo timorense, desde o estabelecimento da missão. O mandato não
apenas dotou a Organização de plenos poderes como também estabeleceu objetivos concretos,
estipulados em prazos viáveis.
Do ponto de vista da gestão da administração, o Timor Leste pode ser considerado um
grande laboratório. A quantidade de agências da Organização no terreno (12) reflete bem esse
espírito. A ênfase de atuação se deu na recuperação e na criação de instituições capazes de
permitir a sobrevida do Estado timorense após a saída da ONU desse país. No entanto, a
Organização abraçou outros afazeres, fora da conceituação estrita de state building. A gama
de tarefas, exercida pela ONU no Timor extrapolou, em tudo, a qualquer experiência anterior
da ONU em termos de Missões de Paz.
Por essas e por outras razões, o Timor Leste pode ser considerado um ponto de
inflexão. Os anos 90 fizeram com que o mundo conhecesse as Missões de Paz. A euforia do
início da década foi substituída pela crise de “superextensão de atribuições” que se abateu
após 1994 e culminou com a questão do Kosovo em 1999. O Timor representou o
renascimento da Instituição enquanto promotora da paz. Os princípios aí empregados
206
aparecem quase todos no relatório Brahimi, produzido posteriormente ao estabelecimento da
missão. Se as idéias expressas no Brahimi precedem à missão no Timor, isso é uma incógnita,
entretanto, é inegável que houve interação entre os dois eventos.
Ser um ponto de inflexão não significa, necessariamente, apontar uma tendência. Não
se deve esquecer que o Timor Leste, além do apelo humanitário, se destaca no cenário
internacional pelo interesse econômico que suas reservas de petróleo representam. Quando a
vontade política dos Estados membros da ONU não mais depender de tais “estímulos”, aí sim,
a inflexão terá se transformado em tendência.
207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da análise dos estudos realizados nesta dissertação, pode-se inferir que a história do
Timor Leste se divide em cinco partes distintas quando a relacionamos com a Organização
das Nações Unidas. A primeira fase inicia-se com a admissão de Portugal nas Nações Unidas,
em 1955, e vai até 1975 quando o Timor Leste é anexado pela Indonésia. A segunda fase vai
de 1975 a 1991, quando ocorre o Massacre de Santa Cruz, em novembro desse último ano. A
terceira fase vai de 1991 à intervenção da ONU no território em setembro de 1999. A quarta
fase corresponde ao período da administração transitória da ONU e teve início em outubro de
1999, culminando na quinta e última fase que é a do Timor Leste independente desde o dia 20
de maio de 2002, tendo se tornado o primeiro Estado-nação do século XXI.
Em virtude do recorte temporal adotado, a primeira e a última fase não serão
abordadas nesta conclusão. Os parágrafos que se seguem destinam-se à reflexão crítica dos
respectivos períodos e suas influências na dinâmica da questão.
A segunda fase, que tem como marcos a anexação do território pela Indonésia em
1975 e o Massacre de Santa Cruz em 1991, marcou o início do último episódio do tardio
processo de descolonização português. O baixo nível de desenvolvimento político e
econômico do território, legado de uma administração portuguesa incompetente tirou, de
qualquer uma das partes envolvidas, a real consideração da hipótese de um futuro
independente para o povo Maubere.
Para a Indonésia, o Timor Leste se apresentava como uma extensão natural de seu
arquipélago e uma ameaça a fomentar tendências separatistas em outras províncias, caso
viesse a se consolidar como uma entidade independente. Para que pudessem agir e assegurar
seus interesses, os indonésios necessitavam legitimar sua ação, tanto em nível internacional
como em nível regional. Em nível internacional, obtiveram o aval dos Estados Unidos, cuja
208
política externa para o período recomendava uma ação de bastidores (Détente), a fim de evitar
qualquer outro foco comunista na Ásia. Regionalmente, contaram com a condescendência da
Austrália, país que colocou seus interesses econômicos (petróleo) acima de seu discurso
político oficial (os trabalhistas estavam no poder).
Passado o período inicial de considerações políticas e ideológicas de parte a parte, a
dominação indonésia assumiu seu real matiz, qual seja: política colonial excludente dos
interesses da população local e fortalecimento dos laços comerciais e estratégicos com os
aliados de outrora. Os laços estratégicos e políticos com os Estados Unidos se consolidaram
com um grande fluxo comercial de armamentos o qual, indiretamente, contribuiu para o
aumento da repreensão política de dissidências locais. Por sua vez, o aumento do intercâmbio
comercial com a Austrália levou esse último país ao reconhecimento de facto e de jure da
soberania indonésia sobre o Timor, quando da assinatura do tratado para exploração
petrolífera do “Timor Gap” em 1989.
Tudo parecia concorrer para a aceitação passiva da situação pela comunidade
internacional e a única oposição ao status quo estabelecido era a atuação de Portugal por
intermédio da ONU, ação essa que visava mais a resguardar a dignidade portuguesa do que
aos reais interesses do povo timorense. A ONU, a seu termo, limitou-se à condenação retórica
da anexação e tratava o tema de maneira estritamente formal e reativa, não postulando
nenhuma proposta própria para o encaminhamento da questão. Internamente, a incipiente
guerrilha estabelecida pelas Falintil era o último traço concreto da vontade política de um
povo em tornar-se livre.
Em novembro de 1991, a ampla divulgação do Massacre de Santa Cruz pela mídia,
expôs ao mundo a brutalidade da ocupação indonésia no Timor e marca o início da terceira
fase, fase essa caracterizada pela exposição da questão em nível mundial e pela migração de
seu contexto de uma questão de autodeterminação para uma questão de direitos humanos.
209
Embora possa parecer um contra-senso, a época em que ocorreu o massacre não poderia ser
mais propícia aos interesses timorenses. A comunidade internacional passava por grandes
transformações e a questão dos direitos humanos estava no centro dessas transformações.
Essa tendência culminou com a Declaração de Viena de 1993, que veio a associar o direito à
autodeterminação com os direitos humanos.
A concessão do Prêmio Nobel da Paz a dois cidadãos timorenses, em 1996,
demonstrou o reconhecimento da comunidade internacional à “especificidade” da situação do
Timor que, a partir de então, não poderia mais ser tratado de forma leviana.
A Crise Econômica Asiática, em 1997, e as reformas políticas no interior da
Indonésia, em 1998, viriam a enfraquecer esse país sobremaneira, gerando um momento ideal
à contestação de sua presença no Timor Leste. Ao nomear um representante especial do
Secretário Geral para o gerenciamento da questão em 1997, a ONU age desvinculada da
orientação portuguesa pela primeira vez. A pressão sobre a Indonésia começa a ser exercida
sobre esses três pilares, no sentido de se dotar o território timorense de uma autonomia
progressiva. Não bastasse a pressão externa, a causa timorense ganhava cada vez mais adeptos
dentro da Indonésia, cujo povo se dava conta de que sofrera do mesmo mal por três décadas.
Pressionada interna e externamente e confiante no nível de integração da população
timorense, a Indonésia cede ao permitir um referendo no Timor que abria a possibilidade de
independência a esse povo.
A ONU passa a engajar-se mais diretamente na questão, especialmente após a
assinatura dos Acordos de Nova York, em 5 de maio de 1999. Como conseqüência desse
acordo, a Organização comprometeu-se em levar a cabo o processo eleitoral do referendo em
um prazo extremamente exíguo. É importante que seja enfatizado que nessa mesma época a
Organização já lidava com o embaraço gerado pelo papel secundário que assumira na questão
do Kosovo, embaraço esse que representa o ápice de uma tendência de decadência em
210
participação de operações de paz e que vinha ocorrendo desde 1994 com o desastre da
Somália.
Ao término da apuração dos resultados do referendo, e ao início da onda de violência
das milícias pró-Indonésia em solo timorense, a ONU já havia estabelecido a Missão de Paz
no Kosovo (UNMIK), onde exercia sua autoridade de maneira mitigada com outras
Organizações Internacionais. O exercício dessa autoridade mitigada também foi alvo de
críticas, e a possibilidade de redimir-se do Kosovo no Timor, levou à intervenção da
Organização nesse território, em setembro de 1999.
Inaugurava-se, assim, a quarta fase da história do Timor Leste associada à
Organização das Nações Unidas. Dessa vez, o vínculo da Organização seria estabelecido
primeiramente por uma intervenção armada (INTERFET), seguida imediatamente por uma
Missão de Paz que alterou paradigmas.
A Missão da ONU no Timor Leste representou um esforço sem precedentes por parte
da Organização. A gama de responsabilidades assumidas demandava o exercício de poderes
soberanos para a consecução dos objetivos estabelecidos, o que, de fato, ocorreu.
A Organização contou com uma série de facilitadores para a sua empreitada. O apoio
político norte-americano, a pressionar a Indonésia, conjugou-se com o interesse português em
fechar uma ferida que já durava 24 anos, e o interesse australiano em se desculpar por um
passado de ingratidão, ainda que os reais interesses econômicos e políticos desses atores se
apresentassem claramente nos bastidores. Se a Missão de Paz no Timor Leste representa uma
tendência, somente o tempo irá revelar, contudo, não restam dúvidas de que ela tenha
representado um ponto de inflexão pela magnitude de seu Mandato, e pela vontade política a
ela dedicada pela Organização das Nações Unidas.
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XXI, 2003 173 p.
216
ANEXO A – The White House, Memorandum of Conversation, July 5
th
, 1975
217
218
219
220
221
222
223
224
ANEXO B – Department of State, The Secretary’s Principal’s and Regional Staff Meeting,
August 12
th
, 1975
225
211
226
227
228
229
230
231
232
ANEXO C – The Secretary of State, Memorandum for the President from Henry Kissinger,
your visit to Indonesia
233
234
235
236
237
238
239
240
241
242
243
244
245
246
247
248
249
250
ANEXO D – Department of State, Telegram 1579, December 6
th
, 1975
251
252
253
254
255
256
257
258
259
260
261
262
263
ANEXO E – Department of State, Indonesia and Portuguese Timor
264
265
266
267
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