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um bem comum a todos (eique communi non proprio), assim como é a verdade, então o ho-
mem, neste estado, está de posse da vida feliz (beata uita), que é um bem privativo (proprium
et primum est hominis bonum). No entanto, nesse bem primordial, a vida feliz, operam todas
as virtudes, bens grandes, dos quais ninguém pode usar mal. Estas virtudes, conquanto exce-
lentes, são privativas no homem, e não comuns; ao passo que a verdade e a sabedoria são bens
comuns. Quando os homens aderem a elas, tornam-se sábios. Ajustando seu espírito a estas
regras da virtude, prudentia, fortitudo, temperantia et iustitia, que subsistem na verdade e na
sabedoria, os homens tornam-se felizes, prudentes, fortes, justos e temperantes. E esse alcan-
çar bens tão nobres dá-se pela vontade (uoluntas), bem médio, quando esta se aproxima da
verdade imutável. Quando, por outro lado, a vontade afasta-se da verdade imutável, aproxi-
mando-se dos bens inferiores, conquanto sejam bens, leva o homem à infelicidade. Essa outra
vida, longe da verdade, que é uma espécie de morte (quae in comparatione superioris uitae
mors est) (Dla, II.19.53), é regida por aquela lei suprema, dentro dos princípios da ordem já
vistos. Deste modo, cada um recebe o que lhe cabe, seja o prêmio, por aderir ao bem supremo,
seja a expiação, por preferir os bens inferiores, os quais, como já se viu, têm a sua beleza e a
sua utilidade na ordem universal, porque oriundos de Deus. E esta expiação é justa, uma vez
que o mal consiste em afastar-se a vontade do bem imutável e dirigi-la aos bens temporais
(II.19.53),
c) Em II.3.7, diz Agostinho, referindo-se ao “livre arbítrio”, se devia ter sido dado por Deus, “Se te
parece bem, investiguemos, então, por esta ordem: em primeiro lugar, de que modo é evidente que Deus existe.
Em seguida, se todas as coisas, na medida em que são boas, provêm de Deus. Por último, se a vontade livre
(uoluntas libera) deve ser contada entre os bens.” Ainda uma vez Agostinho não faz diferença entre liberum
arbitrium e libera uoluntas. Vejamos outro exemplo.
d) Em II.18.47, Evódio questiona acerca do terceiro objetivo da demonstração proposta por Agostinho,
conforme o exemplo acima (II.3.7), em que o mestre de Hipona usa o termo uoluntas libera, “Vejamos agora se
a terceira questão já pode ser resolvida, a saber, se a vontade livre (liberam uoluntatem) deve ser contada entre
os bens. Quando já a tivermos demonstrado, hei-de conceder, sem hesitação, que Deus nos deu a livre vontade
(eam), e que era necessário que no-la tivesse dado”. Com efeito, o mesmo Evódio, que preferira antes o termo
liberum uoluntatis arbitrium, agora utiliza-se, sem qualquer diferenciação, do termo “vontade livre”, para referir
sempre à mesma faculdade. A esta interpelação de seu interlocutor responde Agostinho, “[...] Mas devias ter
visto que também esta terceira já está solucionada, pois é conseqüência daquilo que tinhas dito: que te parecia
que não nos devia ter sido dado o livre arbítrio da vontade (liberum uoluntatis arbitrium), porque é por causa
dele que cada um de nós peca. Como eu contrapus a esta tua afirmação o fato de que nada se poderia fazer com
retidão a não ser por esse mesmo livre arbítrio da vontade (libero uoluntatis arbitrio), e afirmei que, antes de
mais, foi para isso que Deus no-lo deu, tu respondeste que a livre vontade (liberam uoluntatem) nos deveria ter
sido dada com nos foi dada a justiça, pois desta última ninguém pode usar a não ser com retidão. [...] E assim
estas duas afirmações ― ou seja, que Deus existe e que todos os bens Dele provêm ―, embora já antes as sus-
tentássemos com fé inconcussa, também ficaram tratadas, de modo que este terceiro problema ― se a livre von-
tade (liberam uoluntatem) deve ser contada entre os bens ― já se torna absolutamente evidente.” Enfim, por esta
passagem fica absolutamente evidente que para Agostinho “livre arbítrio”, ou “livre arbítrio da vontade”, e “von-
tade livre”, constituem sinônimos, uma vez que o próprio autor, nesta última passagem, utiliza, de modo indis-
criminado, ora uma, ora outra expressão.