114
escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom!
(Furioso) Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi
no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele
momento, você devia ser a irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas
desejei a cunhada. Na Praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom. É lindo!
É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (Grita)
Eu não me arrependo! Eu não me arrependo! (Rodrigues, 1990, p. 149)
Antes, tudo eram aparências, falsidades sem conteúdo real, pessoal, mas a
consciência do absurdo da existência que levava até então só aparece em contraponto com a
verdade fatal que o beijo revela. O momento de ruptura, motivado por uma circunstância,
logo não intencional, liberta no personagem a essência do ser individual.
No romance O Estrangeiro, de Albert Camus, o assassinato na praia, motivado pelo
calor, marca a ruptura na vida de Meursault e o início de seu processo autoconstrutivo. Na
peça de Nelson, Arandir não mata: ao contrário, consola com o beijo quem está prestes a
morrer. O que os aproxima, portanto, não é o ato cometido, mas as conseqüências do
mesmo na construção de suas individualidades. Tanto Meursault quanto Arandir são
condenados por suas transgressões, mas entre o momento de ruptura e o juízo final,
desperta-se-lhes a consciência de existir que, embora não possa salvá-los da morte,
modifica a concepção do que foi e, sobretudo, deveria ser a vida.
Aliás, a consciência despertada em Arandir do absurdo da existência transforma sua
morte final em fato de menor importância, por ser igualmente absurdo (Fraga, 1998, p.
161). Se a vida não tem sentido, tampouco a morte terá. De um dia para o outro, o herói
passou a conhecer a essência vil do ser humano, o lado torpe até mesmo das pessoas que o
cercavam; abandonado por todos, sozinho no mundo caótico onde só há aparências, a morte
perde para ele a conotação de tragédia final. Trata-se, antes, de sacrifício a que, por
covardia ou coragem, Arandir se entrega, representativo do mártir em busca da
transcendência maior.
Suas reflexões remetem ao ato cometido, e não ao que está prestes a cometer
quando, na conversa com Dália, o personagem afirma que, no momento do beijo, “foi
bom”. Ignora, talvez, o quanto essa afirmação o aproxima da morte, uma vez que sua
bondade não sobreviverá ao mundo; Arandir deverá purgar, por assim dizer, a morte
desonrosa, embrulhado no jornal infame pelas mãos do sogro pederasta: só então estará
livre para ser bom. Tal possibilidade lhe foi negada na terra e é preciso encontrar o tempo-