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VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA
A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES
ASSIS
2007
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VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA
A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP para a obtenção do título
de Mestre em Letras (Área de conhecimento:
Literatura e vida social)
ORIENTADOR: Dr. José Carlos Zamboni
ASSIS
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Pereira, Viviane Araujo Alves da Costa
P436i A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues /
Viviane Araujo Alves da Costa Pereira. Assis, 2007
117 f.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Incomunicabilidade. 2. Rodrigues, Nelson, 1912-
1980. 3. Teatro brasileiro. I. Título.
CDD 869.92
VIVIANE ARAUJO ALVES DA COSTA PEREIRA
A INCOMUNICABILIDADE NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES
Banca examinadora:
Presidente: Dr. José Carlos Zamboni
Membros: Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
Dr. Sérgio Augusto Zanoto
ASSIS
2007
Para Luiza, meu momento de eternidade.
Agradecimentos
Agradecer a todos que, de alguma forma, participaram deste trabalho é um prazer,
experimentado com dupla satisfação: concluir um ciclo de quatro anos de estudo sobre a
incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues para, em seguida, descobrir a
comunicação verdadeira com pessoas queridas que tanto colaboraram para que este
momento fosse possível.
Agradeço ao Dr. José Carlos Zamboni, orientador desta dissertação de Mestrado.
Sua orientação, ao mesmo tempo segura e livre, foi para mim uma prova de confiança, pois
mesmo diante das metamorfoses pelas quais passou a pesquisa (e a pesquisadora!), seu
incentivo se manteve constante, sem contudo interferir na essência do trabalho. Sou grata
pelo profissionalismo que norteou o trabalho conjunto, e pela liberdade, permitida e
incentivada no que diz respeito à autoria deste estudo.
Quero agradecer imensamente ao Dr. Sérgio Augusto Zanoto pelas sugestões
apresentadas durante o exame de qualificação. Também pela orientação da pesquisa
realizada em Iniciação Científica, a respeito da obra de Eugène Ionesco. Pelos livros
emprestados, pelo tempo dispensado, pelo acolhimento de sempre e aqui aproveito para
agradecer à família deliciosa do Sérgio. Enfim, pela amizade desses anos todos, da qual
muito me orgulho.
Agradeço à Dra. Maria do Carmo Savietto, cujas sugestões durante o exame de
qualificação em muito colaboraram para o resultado final desta dissertação, sobretudo a
indicação de Octavio Paz, grata descoberta. Também por ter aberto as portas de sua casa e
me orientado, com muita atenção, em momentos de escolhas difíceis. Profissional exemplar
para mim, e uma amiga já muito querida.
Devo agradecimentos aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, responsáveis
eficientes pela infra-estrutura que possibilitou a realização deste estudo.
Às professoras de Língua Francesa Daniela Callipo, Brigitte Hervot, Lídia
Maretti, Léa Valese —, agradeço por acompanharem minha trajetória durante a graduação e
por participarem, em francês ou não, de meu desenvolvimento como pesquisadora. De certa
maneira, aprender francês me levou a Ionesco, que me levou a Nelson Rodrigues, que me
trouxe até aqui.
Agradeço aos demais professores da Faculdade de Ciências e Letras Assis/SP,
pela sólida base que possibilitaram durante a graduação. Também àqueles cujas disciplinas
cursei na Pós, muito obrigada.
Walquíria é uma amiga querida, e parte do êxito deste trabalho vem de seu incentivo
constante e azul. Agradeço à Wal pelas conversas, trocas de idéias, hospedagem, enfim,
pelo carinho de sempre. Quero agradecer à Jacicarla, exemplo de determinação, é uma
amiga muito especial que participa de minha trajetória desde a graduação. Também à Tati
que, apesar da distância, está sempre presente pois faz parte da minha história lemos
juntas O Estrangeiro. Agradeço à Linda, pessoa admirável e amiga querida. Tânia, agora
mais próxima, é a amiga de infância, de adolescência, de toda a vida. A Clara e Maria
Luísa, obrigada pelo carinho e pelo acolhimento com que sempre me brindaram.
A minha irmã Veridiana, fogem as palavras exatas para agradecer tudo o que tem
feito por mim. Mais que irmã, é a amiga de todas as horas, extremamente participativa em
todos os meus projetos, digna de toda a minha admiração. Deu-nos Luiza, além do mais,
minha sobrinha amada, resgate do sentido da própria existência. Agradeço também ao
Leandro, parte dessa família maravilhosa de onde provém tanta alegria.
Agradeço aos meus pais Lourdes e Francisco. A eles, devo curvar-me para
agradecer o empenho, a dedicação e o amor com que criaram as filhas. Ao meu pai,
agradeço pelo exemplo do estudo, do gosto pela leitura. À minha mãe, pelo exemplo de
vida, de compreensão, de justiça e verdade. Meu amor eterno a vocês.
Alexandre é parte da minha vida, meu momento supremo de comunhão. Agradeço
profundamente por todo o respeito, o amor e a atenção do nosso relacionamento. Meu
amigo, meu amor, ensina-me todos os dias a alegria e a paciência de viver, uma felicidade
sem começo nem fim.
Quem não se comunica, se estrumbica.
Chacrinha
Os deuses tinham condenado sifo a rolar um rochedo
incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de
novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões,
que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem
esperança.
Albert Camus
PEREIRA, V. A. A. C. A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues. Assis, 2007.
117 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual
Paulista.
RESUMO
A obra dramática de Nelson Rodrigues representa o início da modernidade no teatro
brasileiro, inclusive no que diz respeito à incomunicabilidade, tema recorrente da literatura
do século XX. O objetivo deste estudo é verificar, a partir de autores modernos escolhidos,
como a literatura e, em particular o teatro de Nelson Rodrigues, retrataram o tema. Na
primeira parte, o assunto é abordado em seus aspectos histórico, social, filosófico e,
especialmente, artístico. Depois, na segunda parte, dedica-se um capítulo ao dramaturgo e a
suas obras, refletindo sobre elas, para demonstrar como a peça O beijo no asfalto se
inscreve em uma tradição literária que representa o homem moderno, sua solidão e a
dificuldade de comunicação entre ele e o mundo.
Palavras-chave: Nelson Rodrigues Incomunicabilidade O beijo no asfalto Literatura
brasileira.
PEREIRA, V. A. A. C. A incomunicabilidade no teatro de Nelson Rodrigues. Assis, 2007.
117 p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras. Universidade Estadual
Paulista.
RÉSUMÉ
L’oeuvre dramatique de Nelson Rodrigues représente la modernité du théâtre brésilien,
surtout en ce qui concerne l’incommunicabilité, thème toujours présent dans la littérature
du XX
ème
siècle. Cette étude a essayé de vérifier, à partir des auteurs modernes choisis,
comment la littérature, et, en particulier, le théâtre de Nelson Rodrigues, ont abordé ce
thème-là. Dans la première partie, le sujet de l’incommunicabilité est envisagé dans ses
aspects historique, social, philosophique et, spécialement, artistique. Aprés, dans la
deuxième partie, on consacre un chapitre au dramaturge et à ses oeuvres, en y réfléchissant,
pour démontrer comment la pièce O beijo no asfalto s’inscrit dans une tradition littéraire
qui représente l’homme moderne, sa solitude et la difficulté de communication entre lui et
le monde.
Mots-clé: Nelson Rodrigues Incommunicabilité O beijo no asfalto Littérature
brésilienne.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................... 10
CAPÍTULO I — INCOMUNICABILIDADE: UMA OBSESSÃO MODERNA
Introdução à incomunicabilidade ..................................................... 12
A incomunicabilidade na literatura: de Baudelaire a Saramago ...... 19
A incomunicabilidade em obras da literatura brasileira moderna .... 38
CAPÍTULO II — NELSON RODRIGUES
O autor .............................................................................................. 51
Panorama do teatro de Nelson Rodrigues sob a ótica da incomunicabilidade
A mulher sem pecado ................................................... 55
Vestido de noiva ........................................................... 59
Álbum de família .......................................................... 62
Anjo negro .................................................................... 64
Senhora dos Afogados ................................................... 66
Dorotéia ......................................................................... 68
Valsa n.6 ........................................................................ 70
A falecida ....................................................................... 72
Perdoa-me por me traíres .............................................. 75
Viúva, porém honesta .................................................... 78
Os sete gatinhos ............................................................. 80
Boca de Ouro ................................................................. 81
Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária ............ 84
Toda nudez será castigada ............................................. 87
Anti-Nelson Rodrigues .................................................... 90
A serpente ....................................................................... 93
O beijo no asfalto, “tragédia da incomunicabilidade” ......................... 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................. 115
10
INTRODUÇÃO
Nelson Rodrigues (1912-1980), quando começou a escrever para teatro, tinha a
intenção de produzir uma chanchada, em razão de um maior retorno financeiro propiciado
pela comédia com relação à tragédia. Sua primeira peça, A mulher sem pecado, no entanto,
configura-se uma autêntica tragédia. Sem adentrar, por enquanto, o universo criado pelo
dramaturgo em sua estréia no gênero, o que desejo ressaltar aqui é a autonomia da
literatura, ficcional ou não: pré-concebida como chanchada, a peça, quase por si só,
transformou-se na tragédia que apresenta, em germe, as principais características do
autor.
Também este trabalho foi imaginado em determinada direção, modificada no
decorrer da pesquisa devido a uma certa independência desta. A idéia inicial era identificar
na obra teatral de Nelson Rodrigues algumas características da incomunicabilidade
presentes na dramaturgia do autor romeno-francês Eugène Ionesco, ponto de partida
assumido durante o período de iniciação científica.
O universo teatral de Nelson Rodrigues mostrou-se, no entanto, cada vez mais
atraente, concentrando em si tal complexidade no nível das relações humanas que o projeto
de um estudo comparativo, tal como fora concebido, não era suficiente. Desejava
observar como o autor, em sua dramaturgia, representava o homem, ser social e individual
que busca transcender o absurdo de sua existência. A incomunicabilidade veio integrar a
pesquisa não como um aspecto conciliador entre homem e mundo, o que pareceria
contraditório pela própria essência do termo, mas como parte da própria condição humana.
Nas relações que o homem estabelece consigo e com o mundo, um abismo
chamado linguagem, impossível avesso da plena compreensão. Comunicar-se com o outro
é apenas um hábito, motivado pelo desejo do outro, mas incapaz de transcender a solidão
individual. No teatro de Nelson, as personagens tendem a buscar no outro e no mundo o
sentido de sua existência, mas acabam encontrando apenas absurdo e frustração. Um
pessimismo existencial marca a produção do autor, que raras vezes se permite criar uma
realidade menos crua do que “a vida como ela é...”.
11
Tomando a incomunicabilidade como um dos temas mais caros à modernidade,
procurei identificar o teatro de Nelson Rodrigues em confluência com sua época, por
reconhecer o homem moderno, representado em suas angústias e incompreensões.
Assim, o presente estudo se divide em duas partes: incomunicabilidade e Nelson
Rodrigues.
No primeiro capítulo, dedicado à abordagem da incomunicabilidade, a disposição
das idéias segue um percurso que procura atender às suas dimensões histórica, social e
filosófica. Histórica, retomando Babel, Revolução Industrial, Guerras Mundiais; social,
uma tentativa de apreensão do modo de vida interpessoal naqueles períodos, o que inclui a
psicanálise; e filosófica, com várias das correntes de pensamento que cuidaram do tema.
Por fim, as artes e a incomunicabilidade, com ênfase nas obras escolhidas por serem
representativas do assunto na literatura moderna, estrangeira e brasileira.
Nelson Rodrigues tem uma produção dramática bastante ampla. Suas dezessete
peças foram organizadas pelo crítico Sábato Magaldi em três grupos: peças psicológicas,
míticas e tragédias cariocas, mas é importante ressaltar a unidade do teatro de Nelson, seus
temas recorrentes, suas obsessões. Ainda de acordo com o crítico, “a incomunicabilidade,
que será um dos temas básicos do teatro do absurdo, permeia toda a obra rodriguiana”
(Magaldi, 1992, p. 74). Daí o segundo capítulo, que pretende realizar a leitura panorâmica
da produção teatral de Nelson Rodrigues. Sem aprofundar a análise, minhas impressões de
leitura dessas peças partem do tema que rege este estudo, a incomunicabilidade. Assim,
traça-se um perfil do dramaturgo, amparado na fortuna crítica de sua obra.
Escolhida como representativa da incomunicabilidade, destacando-se no todo de sua
produção, a peça O beijo no asfalto merece atenção especial na terceira parte do capítulo
dedicado a Nelson Rodrigues. Nela, o assunto não é tangencial, mas é a própria intriga, e se
faz também forma, na medida em que o autor combina brilhantemente dificuldades de
diálogo (base do texto teatral) com a dificuldade maior de se fazer entender. Arandir, o
personagem central, vê-se enredado — ou enreda-se — em situação limite e acaba por levar
consigo a família; o não-entendimento, o não-querer entender entre os personagens, mais a
manipulação dos fatos por meio da palavra selam o destino trágico do protagonista. As
implicações da incomunicabilidade no drama, bem como os meios de sua representação,
são a matéria da abordagem.
12
Por fim, algumas considerações que procuram retomar os pontos centrais da
dissertação. Adianto: o que deveriam ser resultados de pesquisa são, para mim, revelações
do pensamento de Nelson Rodrigues, enquanto homem e autor moderno que encontrou no
teatro o meio de comunicar-se com o mundo.
INCOMUNICABILIDADE: UMA OBSESSÃO MODERNA
Introdução à Incomunicabilidade
E primeiro o homem criou a linguagem para poder melhor se entender com o outro;
e a linguagem, quase um ser autônomo, encarregou-se de separar os homens entre si. Esta
dificuldade não impediu que se formassem sociedades ao longo dos séculos, e estas
envolvem homens que, mesmo não se compreendendo completamente, mesmo divergindo
quanto a objetivos ou crenças pessoais, puderam operar construções em conjunto. O
objetivo comum, mais do que fruto das necessidades concretas de determinada sociedade, é
o reflexo da superposição do ser social em relação ao indivíduo. Assim, escamoteia-se a
incomunicabilidade e inicia-se o longo reinado do decoro, do bem-estar social, de uma
linguagem que prima pela razão para que se alcance o ideal comum.
É a metáfora da torre de Babel: enquanto os homens se podiam compreender, havia
o estatuto do poder coletivo que almejava o absoluto para todos e para cada um – uma torre
que chegaria até o céu. Fazendo valer sua onipotência, Deus castigou aqueles homens por
sua audácia — o desejo de serem deuses — e fez com que cada pessoa falasse numa língua;
assim dissolveu-se o poder de realização do conjunto. Separados pela linguagem, os
homens, então solitários e incompreendidos, não tiveram escolha, a não ser abandonar a
ambição conjunta e buscar cada um seu ideal.
Como ensinamento religioso, Babel simboliza o poder de Deus e sua ira quando
afrontado, castigo que deve servir de exemplo e alerta para a vigília constante do princípio
Temor a Deus. O mito, porém, fora do contexto religioso, tem servido amplamente como
um dos arquétipos da sociedade. O ideal do conjunto é ilusório ou antes, real apenas na
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medida em que serve a ambições pessoais. Aqueles homens que construíram a torre
falavam línguas diferentes; a Deus coube denunciar e verter em concreto o que era intenção
camuflada sob a bandeira do social. O mito da Torre de Babel conjuga, de maneira concisa,
universos paralelos, quais sejam o indivíduo e a sociedade, que se integram plenamente
para, em seguida, chocarem-se, se afastarem e tornarem a se encontrar, numa relação de
interdependência.
A sociedade é primordialmente uma instituição formada por indivíduos, logo,
diferentes, mas com algo que os une. Assim, o objetivo comum existe de fato, mas,
intrínseco a ele, o desejo pessoal, nem sempre em primeiro plano. Imposições históricas
ora privilegiam, ora afastam o eu individual e dessa alternância resultam modelos sociais
próprios a cada época.
É evidente que o ser humano é individual desde sempre e a incomunicabilidade lhe
é inata, visto nascer justamente do que de mais pessoal e único no homem: seu
pensamento. Entendo por incomunicabilidade o abismo existente entre o que um pensa e
transmite e o que o outro entende, sendo tanto a mensagem emitida quanto a interpretação
do interlocutor regidas por um conjunto de fatores (crenças, desejos, conhecimentos) tão
pessoais quanto os próprios indivíduos.
Por necessidades de organização e construção, a idéia de conjunto parece ter
predominado no Ocidente durante mais de dez séculos contados d. C. até que o
Renascimento artístico-filosófico iluminou a idéia de indivíduo. O homem pôde enfim ver-
se em sua porção individual, de um lado, e como ser social, do outro, o que lhe concedeu o
poder da escolha, logo pessoal, para unir-se aos que lhe eram afins, multiplicando
sociedades.
Se ssemos adentrar a história do Renascimento de maneira profunda, a
incompletude da abordagem seria mais do que um risco, uma miserável verdade. Mas nada
impede que se trace uma linha temática que o ligue à Modernidade, a partir da idéia de
indivíduo, que nos longínquos anos de 1500 passa a ser apreendida como uma necessidade
orgânica e torna, no século XIX, a aparecer sob nova ótica, num novo modelo social e
abrindo novos caminhos.
Descobertas científicas e possibilidades de viagem foram fatores que revelaram o
potencial humano até então exclusivamente intrínseco, obscurecido pelo teocentrismo e
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seus limites. O homem, capaz e livre, vê-se na natural obrigação de se desenvolver, de
escolher seus caminhos, o que é positivo, mas, por outro lado, descobre-se também sozinho,
pois todos os indivíduos têm as mesmas possibilidades que cada um. Reconhecer sua
porção única fez com que o homem descobrisse que o outro também é único e, tão próximo
ainda da Idade Média, o período da Renascença não permitiu o pleno desenvolvimento do
que poderia ser chamado de liberdade individual.
O esboço dessa distinção entre o ser individual e o ser social, contidos no mesmo
eu, teve enorme influência sobre a posteridade, mas no momento histórico em que se
delineou, estava condenada ao fracasso. Numa época pouco posterior à Inquisição
Católica, nada pode ser mais contraditório, ofensivo e suicida do que a ostentação de uma
bandeira que prima pela liberdade individual de pensamento. Imposto como necessidade
vital, o ser social superpõe-se ao eu único que, por sua vez, abdica da liberdade e do
potencial criativo inatos ou, por outra, dissimula seu eu individual, burla regras e sustenta a
aparência do ser social como sendo sua própria essência.
O âmbito da aparência se relaciona ao fator incomunicabilidade de forma intensa;
são quase indissociáveis por antinomia. É que o verbo parecer se liga ao ser social,
enquanto ser, ao individual. A máscara social implica a aceitação do eu pelo outro, então o
eu, por vezes contrariando suas crenças mais íntimas, deixa de dizer o que pensa. A
impossibilidade de compreensão do eu pelo outro resulta na negação da individualidade,
prova máxima de adesão à determinada sociedade, o que apresenta como conseqüência
fanatismos de toda espécie, sempre baseados na divergência de posturas e valores, gerando
intolerância.
Impossível desviar, nesse ponto, do parâmetro filosófico que é Platão. A distinção
entre essência e aparência se inscreve em sua filosofia por meio da metáfora do mito da
caverna, em que a realidade dentro da caverna só é única enquanto ninguém pode ver o que
está fora da mesma. A partir do momento em que um indivíduo sai da caverna, toca uma
outra realidade, luminosa e impensável quando havia escuridão. O mundo das idéias é o
verdadeiro, dos sentimentos puros, feito de ideais, enquanto que a realidade imediata,
sensível, é um esboço, universo de sombras e aparências onde não há verdade.
Durante a Idade Média, e além vários séculos, a perfeição do mundo das idéias de
Platão se concentrava para os homens de maneira exclusiva e excludente em Deus. A vida
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na terra seria apenas o ensaio, ainda na escuridão da ignorância, que qualificaria o homem a
entrar no céu, e sim, ter a si revelada a luz da verdade; poder, enfim, ser. No
Renascimento, não é a verdade de Deus que se questiona, mas a importância de cada um na
conquista desse paraíso, perdido e prometido, que depende do trabalho individual possível
dentro da caverna.
Esse primeiro sopro do indivíduo enquanto tal se intensificaria a partir da
Revolução Industrial por diversos fatores de origem única: o desenvolvimento. Este, em
pluralidade de facetas o desenvolvimento urbano, científico, econômico, cultural foi
responsável por uma série de transformações que culminaram na formação de um
pensamento voltado para a modernidade.
A saída do homem do campo para as cidades em formação e ebulição acabou
por determinar a consolidação das metrópoles e esta mudança geográfica alterou os meios
de comércio entre as pessoas, então em muito maior número do que antes, quando os
negócios eram feitos entre pequenas sociedades agrárias. Grandes cidades, muitas pessoas e
uma infinidade de subjetividades, assim poderia ser grosseiramente sintetizada a moderna
disposição social.
Outra conseqüência inegável da nova mentalidade foi o surgimento da Psicanálise
que, mais que princípio, pode ser considerada como mediadora, uma explicação científica
para fatos existentes. O mérito de Freud é, sobretudo, o de ter apreendido sensivelmente
uma série de mudanças de comportamento e pensamento que se anunciavam, pelo menos,
desde a metade do século XVIII e de tê-las sistematizado num método científico, visto
como revolucionário e, aliado a outros fatores, determinante da história de todo o século
XX.
É evidente que a Psicanálise pode também elucidar o aspecto da incomunicabilidade
intersubjetiva, partindo sobretudo da dimensão inconsciente de cada ser humano. Assim, os
desejos ou crenças que se encontram nessa porção de nossa percepção não são acessíveis ao
outro que, por sua vez, tem toda uma bagagem psicológica que estimula um tipo de leitura
para o que lhe é enunciado. Surge daí um descompasso entre o que o eu diz e o que o outro
entende. Porém, o fato de a incomunicabilidade residir em áreas não alcançadas pelo
consciente (o subconsciente e o inconsciente) transfere o fenômeno para uma dimensão
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que, de tão intrínseca, ainda que se justifique, acaba por isolar cada indivíduo em seu eu
subjetivo.
Ainda que oriundas de um mesmo ponto, duas incomunicabilidades se apresentam,
sendo uma explicável pela psicanálise e a outra, pelo fenômeno da existência conjunta. A
distinção que proponho consiste em que a primeira centre-se no eu, emissor ou receptor, em
todos os níveis de sua consciência, e a segunda, no próprio fenômeno da
incomunicabilidade que implica, portanto, o eu e o outro. Enquanto a primeira explica pelo
conhecimento, a outra o faz pela ignorância.
A incomunicabilidade que busco não se resolve, tem a carga do pessimismo da
existência mesma do ser. Trata-se de uma situação que, por emergir da realidade mais
cotidiana, não oferece uma margem de erro ou um tempo para analisar, que exige reação
imediata diante do outro, ser existente que se deixa conhecer na medida em que revela
pela linguagem, verbal ou não, sua subjetividade. Mas, enquanto ser social, tanto o eu
quanto o outro se revelam por meio de máscaras adequadas a cada situação a que o
expostos. Então o que não é revelação, e sim, ocultação e, desta forma, nada que
garanta a compreensão plena pois, ainda que se investiguem as razões psicológicas para tal
ou tal atitude, também estas serão máscaras de leitura.
Numa belíssima síntese, Pirandello exprime, por meio do personagem Pai da peça
Seis personagens à procura de um autor, a essência da incomunicabilidade enquanto
fenômeno interpessoal:
Pai Mas todo o mal está nisso! Nas palavras. Todos trazemos dentro de nós um
mundo de coisas: cada qual tem seu mundo de coisas! E como podemos entender-
nos, senhor, se, nas palavras que eu digo, coloco o sentido e o valor das coisas como
são dentro de mim, enquanto quem as ouve lhes dá, inevitavelmente, o sentido e o
valor que elas têm para ele, no mundo que traz consigo? Achamos que nos
entendemos... e nunca nos entendemos! (...). (Pirandello, 1977, p. 57)
A diferença entre esta abordagem da incomunicabilidade em relação àquela feita
pela psicanálise consiste, basicamente, no relevo dado aqui aos conceitos de sentido e valor
das coisas, numa visão presente e consciente do pensamento do indivíduo, sem a prioridade
de lhes investigar causas passadas armazenadas pelo subconsciente ou inconsciente. E não
se trata apenas de sentido, este explicável por meio de dados objetivos, mas também de
valor, como resultado íntimo da (re)construção permanente da subjetividade de cada um.
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A incomunicabilidade e a solidão do indivíduo são características inatas do ser
humano, mas na modernidade elas apareceram problematizadas no âmbito artístico-
filosófico. Usufruindo da decorrente liberdade de um novo tempo em ascensão, e da
necessidade de refletir acerca de sua condição no mundo, o homem retomou idéias do
Renascimento e pôde, novamente e enfim, alçá-las aos parâmetros de (falta de) sentido da
vida que, juntamente com a origem do mundo, formaram os pilares da filosofia clássica.
Grandes questões, como a existência ou não de Deus, voltaram ao cenário filosófico
com ainda mais vigor. A consciência de estar num mundo povoado de outros eus sós
germinou uma filosofia do pessimismo, da descrença, e uma das motivações de tais
conjecturas nada reconfortantes foi justamente a incompreensão entre os homens e a
intolerância resultante. O antropocentrismo não chega a ser uma opção consciente entre o
homem ou Deus, mas a conseqüência de uma filosofia que matou Deus, e, portanto, não há
escolha: só resta o homem.
No Renascimento, se Deus não tinha morrido, ao menos uma dúvida se instalou no
espírito dos homens que se viram como centro de um universo, ainda que particular. Com a
Modernidade, a figura divina foi banida, e isso é conseqüência e causa de outras
transformações: resulta de uma descrença provocada por guerras e todo tipo de sofrimento
que o homem experimentou; e deságua numa falta de escrúpulos bastante difundida a partir
do capitalismo.
Nas palavras de Kirílov, personagem suicida do romance Os Demônios, de
Dostoievski, “se Deus não existe, eu sou deus” (Dostoievski, 2004) — a obra será abordada
adiante. A filosofia do niilismo mostra o homem órfão de Deus, ignorante quanto a seu
objetivo de vida e agnóstico em relação ao futuro pós-morte, que não transcendência
possível e o que resta é a realidade da caverna. Cada ser humano deve ser, portanto,
responsável por seus atos; o livre arbítrio não é apenas um direito, mas também um
compromisso do homem consigo. Se Deus não existe neste novo tempo, também não
pecado ou punição que não parta do próprio homem, ou do agrupamento destes, chamado
sociedade.
Para Schaeffer (1985), a modernidade traz à tona o que chamou “linha do
desespero”, ruptura bastante abrangente que determina os níveis de relações do ser humano
consigo, com o outro e com o mundo circundante. As possibilidades de transcendência do
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absurdo para os existencialistas, nota, encontrar-se-iam na experiência. Para Jaspers, uma
“experiência final”, distanciada de tal maneira da realidade que não pode ser comunicada.
De acordo com o pensamento de Sartre e Camus, ainda segundo Schaeffer, basta “um ato
de vontade” para legitimar, autenticar a existência do ser humano.
Dois caminhos parecem se delinear para o homem que deseja permanecer vivo no
mundo da modernidade. O primeiro aponta para a negação da individualidade e a aceitação
da aparência, de ser um ser social, o que implica certo anonimato, certo suicídio filosófico
(Camus, 1989, p. 47). Nega-se a possibilidade da experiência e continua-se, portanto,
abaixo da “linha de desespero”. Quanto ao segundo caminho, enfatiza-se a subordinada “eu
sou deus” da formulação de Dostoievski, no desejo de identificar-se individualmente por
meio da experiência. Não há a unidade de Deus que organize o caos existente e latejante em
que se encontra a humanidade, então cada um deve cuidar de sua vida, única e concreta,
como melhor lhe aprouver, por vezes conhecendo, outras ignorando, as conseqüências de
suas ações.
De um lado, o pessimismo de Schopenhauer; do outro, o de Nietzsche:
Em sua visão trágica da vida’, Nietzsche estava seguindo Schopenhauer, mas
chegou à conclusões exatamente contrárias. Schopenhauer enfatizava a necessidade
de negar a vida – ou a Vontade –, por ser ela uma força terrível e absurda, enquanto a
tendência geral do pensamento de Nietzsche inclinava-se de fato para a afirmação da
vida (...). (Kuna, 1989, p. 364)
A influência que a filosofia de Nietzsche exerceu sobre toda a modernidade é, com
efeito, muito grande e sensível ainda hoje. Impossível pensar os movimentos de vanguarda
artísticos e o existencialismo filosófico sem a presença quase palpável de Nietzsche, uma
aura de niilismo que envolveu o século XX e foi reforçada sobretudo pelas duas Guerras
Mundiais, além da Guerra Civil espanhola e a Guerra Fria e, mais atualmente, a Guerra do
Vietnã, a do Golfo, as Guerras santas na região da Palestina...
A “filosofia da tragédia” de Nietzsche, assim nomeada por Chestov (1926), pode
não estar ligada diretamente às guerras, mas é por elas ilustrada, na medida em que não
existem soluções de convivência entre os indivíduos e seu destino natural é a solidão. O
bem estar da sociedade aparece mais como argumento falseado para declarações de guerra
do que como sua própria causa, o egoísmo oriundo do “tudo é permitido”,
metamorfoseando-se freneticamente em vários tipos de intolerância. No caos, ou o homem
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adere a totalitarismos, seguindo a postura social, ou faz uso de sua incomunicabilidade,
mantendo-se à margem de disputas sociais.
Vivendo sob o clima de lutas, intolerância, o homem do século XX que a arte
moderna deverá retratar não acredita mais no poder da comunicação, pois esta fora
transformada em meio de manipulação da realidade. Artistas das vanguardas, sobretudo
dadaístas e o surrealistas, mostraram-se sensíveis às mudanças que se operaram na
sociedade e iniciaram o que o teatro do Absurdo, alguns anos mais tarde, traduziria por uma
tragédia da linguagem. A “destruição completa dos meios de expressão” desejava denunciar
o quanto a linguagem deixara de ter sentido, servindo apenas como convenção social; sua
negação, contudo, “corresponderia ao silêncio absoluto, ao suicídio intelectual” (Hauser,
1972).
A “desumanização da arte” (Ortega y Gasset, 2003) pode ser verificada sobretudo
nos artistas que compõem os chamados “ismos” do início do século. Ali, separam-se
radicalmente homem e arte; mundo e arte. O figurativo não interessa, ao menos não no
modelo romântico que se estende até o impressionismo, bem como seus padrões de beleza,
refutados com veemência.
(...) o novo estilo, tomado em sua mais ampla generalidade, consiste em eliminar os
ingredientes ‘humanos, demasiado humanos’, e reter a matéria puramente
artística.
(...)
A primeira conseqüência que traz consigo esse retraimento da arte sobre si mesma é
tirar desta todo o patetismo. Na arte carregada de ‘humanidade’ repercutia o caráter
grave anexo à vida. Era uma coisa muito séria a arte, quase hierática. Às vezes
pretendia nada menos que salvar a espécie humana — em Schopenhauer e em
Wagner. (Ortega y Gasset, 2003, p. 75-76)
Na nova arte, comunicar é menos importante do que a idéia de radicalização dos
meios por si mesmos, de modo que o homem é banido da concepção de arte. Picasso, em
muitos de seus quadros, desfigura o homem. Ao destituir também o ambiente de sua
qualidade figurativa, o pintor harmoniza homem e mundo numa realidade absurda, mas a
única possível para abrigá-los assim como se mostram: fragmentados. O elemento
dissonante não está dentro de sua obra, que nela desfez-se a tensão entre homem e
mundo, mas na relação entre ela e certo padrão universal de normalidade, de modo que
torna, não o homem retratado, e sim o artista, à solidão de sua obra incomunicável.
20
Após esse primeiro momento de ruptura, a figura humana volta a fazer parte da
cena, sendo objeto retratado artisticamente, e a tônica passa a ser, então, a relação entre o
ser e a realidade, num todo fragmentado que não mais exclui o homem. A ‘humanidade’ é
retomada, mesmo que para demonstrar seu avesso, a nostalgia de uma humanidade mítica,
ausência que já nasce com o homem.
É com base na dualidade homem/mundo, e em tudo o que ela implica, que a arte
moderna e, em especial, a literatura, se estrutura. Temática que perpassa a literatura
moderna, a tensão entre o homem e o mundo pode se dar em diferentes níveis (Bosi, 1994),
chegando mesmo a ora excluir uma, ora outra de suas partes, mas, ainda que incompleto o
conjunto, a tensão continuará ali, pulsante, pela ausência da parte amputada. O homem
busca comunicar-se com o mundo, onde o indivíduo é necessariamente solitário, e acaba
encontrando sua consciência (e sua existência) em meio ao absurdo.
A Incomunicabilidade na Literatura:
de Baudelaire a Saramago
Um breve panorama da literatura moderna demonstra, por um lado, a profunda
sintonia entre as transformações ocorridas na história do pensamento desde a Revolução
industrial e sua representação artística e, por outro, a força de influência dessa literatura nos
tempos atuais. Até que aconteça uma nova revolução, continua-se a sentir os ecos daquela
que, embora longínqua, determinou tudo o que se chama de modernidade e além, a
contemporaneidade.
O poeta Charles Baudelaire é considerado o inaugurador da literatura moderna,
tendo sido o termo “modernidade” utilizado e defendido por ele. no começo do século
XX é que a prosa parece ter assimilado e produzido uma literatura inserida na modernidade,
podendo ser ilustrada pela brilhante obra de Kafka, que trata tão de perto o tema da
incomunicabilidade. A ficção ensaística de Camus dialoga com os perturbadores romances
de Kafka e deve colaborar para a elucidação do conceito ainda rarefeito de
incomunicabilidade. Por fim, o teatro moderno, que precisou de mais tempo para a
assimilação das inovações artísticas, por se tratar de uma arte que envolve, além da
21
literatura, a representação. Eugène Ionesco, dramaturgo mais coerente ao absurdo do Teatro
do Absurdo, revela potencializadas essas inovações.
A seguir, veremos como alguns autores da literatura moderna retrataram o
fenômeno da incomunicabilidade. Em obras de Baudelaire, Camus, Dostoievski, Saramago,
Kafka, Beckett e Ionesco, procuro reter a imagem de um conceito; os autores e obras
citados constam de meu repertório pessoal, não se pretendendo, pois, estabelecer um
“cânone” da incomunicabilidade, mas sim impressões a respeito de textos representativos.
As dificuldades de comunicação do ser humano mostradas artisticamente constituem a base
para este estudo e norteará a análise do teatro de Nelson Rodrigues.
Na modernidade, o ser humano individual, ou inexiste por ter se amalgamado à
massa uniforme que pensa em conjunto (trata-se da inexistência do eu não-pensante, do eu
individual ao se tornar multidão), ou cala e, à margem, transita entre a solidão e a
incomunicabilidade, transformado assim no anti-herói moderno. Ambas possibilidades
foram bastante retratadas na literatura do século XX; de um lado, personagens nada
extraordinários que levam uma vida medíocre geralmente ilustrada pelo emprego
público a quem, um dia, um acontecimento altera a ordem natural das coisas. De outro
lado, personagens anti-heróicos em sua essência que, desde o início, são apresentados como
marginais para a sociedade.
Quanto aos primeiros, um cotidiano banal é interrompido por algo extraordinário.
Obrigado a lidar com o problema, o personagem questiona então sua vida e hábitos, e, mais
profundamente, o próprio sentido da vida. Antes de acontecer a ruptura, no entanto, a
incomunicabilidade não incomoda esse tipo de falso herói, por ter se tornado parte natural
de sua vida: o casamento reduzido às conversas banais, ao bom-dia todos os dias; no
emprego, as informações essenciais para se desempenhar um bom trabalho; em reuniões de
amigos, generalidades da vida cotidiana. Alterada a ordem da vida do personagem por um
acontecimento imprevisto, ele logo questiona o invólucro em que vivia e a falta de verdade
em suas relações, com as quais deve romper a fim de se encontrar.
O qualificativo falso empregado acima para designar esse tipo de herói é apenas o
eco da falsa epopéia do personagem que, acreditando em seus pequenos ideais de
felicidade, fecha-se para o mundo e não vive, portanto, mais do que a saga de todo ser vivo:
nascer, crescer, frutificar e morrer. O imprevisto, que não precisa ser fantástico, aparece
22
para desmascarar o falso herói diante de si mesmo, tal um espelho que vem lhe mostrar sua
verdadeira face, e é então que começa sua saga como herói.
Meursault, personagem do romance O Estrangeiro, de Albert Camus, é, no início da
narrativa, o homem absurdo que ainda não sabe disso. Um funcionário médio que cumpre
com suas obrigações e não demonstra grande entusiasmo pela vida; para ele, tudo “tanto
faz”: a morte de sua mãe, o namoro com Marie, a promoção oferecida. O protagonista é
retratado como um ser neutro em sua banalidade, em seu automatismo; não possui uma
marca pessoal ou, por outra, sua marca é a indiferença.
Quando preso por assassinato, na segunda metade do romance, a ausência de tudo,
principalmente da liberdade, faz com que ele considere o nonsense em que havia vivido até
então. É a consciência de existir que faz a existência real (Campbell), tal como em
Descartes: “Penso, logo existo”. Para Meursault, refletir é o melhor emprego a fazer de um
tempo longo e obscuro passado dentro da cadeia e, mais, uma necessidade, um impulso.
É a partir daí que chega a algumas conclusões interessantes e começa a modificar-
se, construir-se. O hábito de fumar, por exemplo, vira o hábito de não fumar: tudo são
hábitos, convenções, aos quais o ser humano tende a se prender para que haja algum
sentido em estar no mundo. Avalia o poder da retórica durante seu julgamento e reconhece
o valor das aparências.
O personagem é, por fim, condenado, não pelo assassinato em si, mas por não
corresponder às exigências da sociedade, por sua indiferença para com valores
estabelecidos como bons e verdadeiros. Condenado dentro da história, Meursault pode
representar o julgamento de Camus em relação ao homem que, negando convenções, nada
propõe que as substitua. Falta ao personagem uma vontade qualquer, algo mais verdadeiro
do que as ações automáticas executadas dia após dia. Assim, o promotor brilhantemente
acusa o réu, afirmando que ali se trata de um demônio que nada leva na alma e que deve
responder por essa acusação; o assassinato seria apenas circunstancial. Meursault reconhece
que a atuação do promotor foi melhor do que a do advogado de defesa.
A incomunicabilidade presente no romance O Estrangeiro traduz os conflitos
existentes entre o protagonista e o que o cerca, tanto personagens secundários quanto a
própria sociedade, em seu tempo e espaço. A relação de Meursault com a mãe, por
exemplo, aparece como algo vago, quase nulo; Marie perturba-se com a personalidade do
23
namorado, tenta pressioná-lo mas não encontra senão desapego, o mesmo demonstrado na
prisão.
Ora, como haveria de se fazer compreender quando o auto-conhecimento ainda
andava distante? O momento da tomada de consciência é precedido por inventário
minucioso do que teria sido a vida de Meursault até então e a falta de comunicação coincide
com a falta do quê comunicar, uma vez que poucas coisas lhe importavam de fato. Já na
segunda metade do romance, o protagonista revela uma mudança capital, mas não
repentina; é antes construção que se aos poucos. O fato de ser narrador de sua história
permite-lhe mostrar, sem contar, a mudança que a falta de liberdade provocou em seu ser. É
então que a narração flui de maneira mais contínua, do ponto de vista de um narrador
envolvido com sua história, que outrora era apenas um observador de suas próprias ações.
Entre as reflexões que este narrador em construção apresenta, ao menos uma está
diretamente relacionada ao tema da incomunicabilidade. Trata-se de uma notícia de jornal,
que funciona no romance como um misto de anedota e parábola. Anedota pelo tom irônico
empregado pelo narrador diante de uma tragédia; parábola na medida em que expõe um
ensinamento, resultado este de um novo modo de pensar. Bem como o personagem da
notícia, transcrita abaixo, também Meursault é condenado por sua incomunicabilidade.
Entre a esteira e o estrado, encontrara, com efeito, um velho pedaço de jornal,
amarelecido e transparente, quase colado ao tecido. Relatava um acontecimento, cujo
início faltava, mas que devia ter sucedido na Tcheco-Eslováquia. Um homem partira
de uma aldeia tcheca para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico,
regressara, casado e com um filho. A mãe dele e a irtinham um hotel na aldeia.
Para fazer-lhes uma surpresa, deixara a mulher e o filho em outro estabelecimento e
fora visitar a mãe, que não o reconheceu quando ele entrou. Por brincadeira, tivera a
idéia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o seu dinheiro. De noite, a
mãe e a irmã assassinaram-no a marteladas e atiraram o corpo no rio. Na manhã
seguinte, a mulher viera ao hotel e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A
mãe se enforcara. A irmã atirara-se num poço. Devo ter lido esta história milhares de
vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural. De qualquer forma,
achava que o viajante o merecera até certo ponto, e que nunca se deve brincar assim.
(Camus, 1995, p. 83)
Meursault sabe que a omissão acabará por condená-lo e, mesmo assim, mantém sua
postura, que consiste justamente em não se posicionar, uma espécie de não-postura; de
certa maneira, ele se suicida. O personagem encarna parte do pensamento de Camus
exposto no ensaio filosófico O Mito de Sísifo.
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A vida sem sentido e absurda da modernidade, em que nenhum caminho é
satisfatório, remete ao mito de Sísifo, condenado pelos deuses a rolar uma pedra montanha
acima, mesmo sabendo que ela cairá e tudo deverá recomeçar, num esforço inútil e eterno.
Albert Camus, no ensaio mencionado, trata da questão básica do absurdo e a relação deste
com o suicídio; recorre, pois, à mitologia para refletir um arquétipo da condição humana, a
saber, a falta de sentido da existência. Após considerar possíveis motivos para que alguém
chegue ao extremo de pôr fim à própria vida, Camus acaba por negar tanto o suicídio físico
quanto o ontológico, por não representarem, nem um nem outro, saída digna ou mesmo
eficiente. Assim como viver é inútil, morrer também o é.
Quanto ao suicídio físico, parece bastante claro o que significa: na atitude
extremada de negar a vida, o homem se mata. Mas essa não é a única maneira de suicidar-
se; anular a individualidade e continuar a viver, sem convicções ou vontades, está em
acordo com o que se chamou suicídio ontológico. O homem deixa de ser sujeito de sua vida
e não age sobre ela, mas permite que fatores tais que tempo, espaço e sociedade se
combinem para moldar sua essência.
“A existência precede a essência”, afirmou Sartre, que também disse que “o homem
está condenado a ser livre”, reflexões que fundaram o Existencialismo, presentes na obra O
Existencialismo é um humanismo. A existência seria, então, resultado de escolhas
conscientes, constantes e obrigatórias. Suicidar-se no âmbito ontológico pode ser entendido
como o ato de negar o livre-arbítrio e, ao invés de escolher, resta ao homem apenas aceitar
o que lhe é imposto, tal um ser vazio que se preenche aos poucos.
Reside justamente no princípio do livre-arbítrio o humanismo da filosofia de Sartre,
pois que Deus não existe, o homem deve decidir por si e pelos outros homens, de modo
que cada um é responsável por sua existência e pela humanidade. Assim, o escolher
individual funcionaria como espelho para que outros pudessem também optar livremente; o
homem é o modelo para o homem e cada um é, portanto, deus.
A partir da idéia de que possibilidades várias a todo momento, cada ação ganha
em expressividade no sentido de formar a essência do ser humano; todos os movimentos
são fundamentais no processo de construção do eu. Valores vão se formando de acordo
com a experiência de praticá-los no dia a dia, e não devem ser simplesmente aceitos
25
enquanto padrões de bondade ou justiça, numa falaciosa essência. Esse aceitar sem refletir,
sem experimentar, faz parte da constituição do ser vazio, não do verdadeiro homem.
Quando Meursault atira no árabe, ele o faz sem pensar, movido sobretudo pelo calor
que o incomoda, uma circunstância. A transformação que a falta de liberdade opera faz com
que ele se perceba como homem, um indivíduo completo. Isso não quer dizer, no entanto,
que se tornar melhor para os padrões morais da sociedade; Meursault continua sendo o
homem absurdo, cujas escolhas e a incomunicabilidade é uma delas o libertam e
condenam. Libertam, na medida em que o personagem não se corrompe nem assume idéias
alheias para se salvar; acaba condenado por manter sua postura.
No poema O Estrangeiro, de Charles Baudelaire (tradução nossa), que tão bem
dialoga com a obra de Camus, um exemplo de homem absurdo, alheio a valores morais
estabelecidos pela sociedade e a incomunicabilidade entre ele e seu interlocutor,
responsável este por chamar estrangeiro ao homem que não pode compreender:
O ESTRANGEIRO
— Quem amas mais, homem enigmático, diga lá. teu pai, tua mãe, tua
irmã ou teu irmão?
— Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
— Teus amigos?
— Vós vos servis de uma palavra cujo sentido me é até hoje
desconhecido.
— Tua pátria?
— Ignoro sob qual latitude ela está situada.
— A beleza?
— Amá-la-ia prontamente, deusa e imortal.
— O ouro?
— Odeio-o tanto quanto vós a Deus.
— Então que amas tu, singular estrangeiro?
— Amo as nuvens... as nuvens que passam... ao longe... ao longe... as
maravilhosas nuvens!
No poema em prosa de Baudelaire temos, antes de qualquer outra coisa, o duplo
significado de l´étranger, que é tanto estranho quanto estrangeiro. Não é necessário optar:
estranho e estrangeiro, o personagem do poema é um ser sozinho diante de um
interrogatório a respeito de valores que não são seus.
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Família, pátria, dinheiro, nada disso parece importar a este homem singular e
(in)diferente. O único valor que lhe atrai é a beleza, a qual “amaria prontamente”, mas o
próprio tempo do verbo indica suposição, distância: a beleza não está ali, junto dele e,
portanto, não pode amá-la. Por fim, eis que se descobre o verdadeiro objeto de amor do
estrangeiro: as nuvens que passam além.
Um poema que remete ao mundo das idéias de Platão, sem dúvidas, mas também
marcado pela incomunicabilidade, na medida em que não há entendimento possível entre o
inquiridor e o estrangeiro. Este, aos olhos daquele, é “singular”, “enigmático”, porque não
compartilha dos valores mais caros à humanidade enquanto multidão. A diferença se
encontra justamente na indiferença demonstrada pelo estrangeiro em relação às coisas do
mundo sensível, preferindo a beleza e as nuvens que se encontram além.
Baudelaire marca o início da literatura moderna e isso se deve a vários fatores; a
distinção entre o ser social e o indivíduo, mostrada acima, é um deles. Há, além disso,
inovações de forma, como a estrutura da prosa servindo ao lirismo e às sonoridades da
poesia e, nos temas, o sentimento profundo de solidão do homem em meio ao surgimento
de multidões e a representação das metrópoles — produtos da Revolução Industrial.
O poema O cisne traz a representação artística da nova Paris, cidade de concreto e
asfalto onde o cisne agoniza. A tradução é do poeta Ivan Junqueira:
O CISNE
A Victor Hugo
I
Andrômaca, só penso em ti! O curso de água,
Espelho pobre e triste onde já resplendeu,
De teu rosto de viúva a majestosa mágoa,
O Simoente falaz que ao teu pranto cresceu,
Agora fecundou minha fértil saudade,
Como eu atravessasse o novo Carrossel.
Morto é o velho Paris (a forma da cidade
Muda bem mais que o coração de uma infiel);
Só em pensamento vejo os campos de barracas,
Os fustes aos montões, as cornijas rachadas,
Os muros de um verniz verde, as ervas opacas,
O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas.
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No outro tempo existiu neste ponto um aviário;
Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão
Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário
Manda ao ar silencioso obscuro furacão,
Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas
Dos seus pés atritando o pavimento iníquo,
Arrastava no chão as grandes plumas claras.
Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico,
Suas asas banhou na poeira, num desmaio,
E dizia a sonhar com seu lago natal:
“Água, não choverás?” Não trovejarás, raio?
Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal,
Às vezes para o céu, como um homem ovidiano,
Para o céu de um azul cruel e tão irônico,
Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano,
Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!
II
Paris mudou! Porém minha melancolia
É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,
Minhas lembranças são mais pesadas que socos.
Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz,
Exilado que ele é, ridículo e sublime,
Roído de um desejo infindo! Como em vós
Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo,
Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno,
Junto a tumba vazia, em langor doloroso
Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno!
Vou pensando na negra a fanar cor de terra:
Busca de pés na lama e de olhar tão bravio
Ausentes coqueirais que sua África encerra
Atrás do muro imenso, o da bruma e do frio;
Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba
Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor,
Onde soem mamar, como de boa loba,
Nos órfãos a mirrar mais secos de que a flor!
E na floresta, que meu pobre corpo trilha,
Soa como buzina uma velha lembrança.
Penso no marinheiro esquecido numa ilha...
Nos vencidos de sempre e nos sem esperança!
A primeira parte do poema mostra a mudança operada pela Revolução Industrial,
que transformou Paris numa cidade de asfalto e poeira, onde o eu-lírico o cisne se
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debater em busca de água; na segunda parte, a seqüência de reflexões e lembranças que a
visão do cisne desencadeou no espírito do poeta.
A imagem do cisne, evocada pelo poeta, é triste: “seus pés atritando o pavimento
iníquo” enquanto as “plumas claras” se sujavam ao arrastarem no chão; o animal, com sede,
não encontra água. É a este animal que o poeta chama “mito estranho e fatal”,
representativo – daí ser mito – do homem moderno, condenado a viver no mundo sem Deus
(“enquanto envia a Deus seu riso sardônico!”). A ironia desse questionamento reflete a
angústia do indivíduo que não tem a quem dirigir suas preces; reflete, enfim, a absoluta
solidão do ser humano.
Na segunda parte, as lembranças do eu-lírico se mesclam às reflexões que a imagem
do cisne despertou. “Ridículo e sublime”, o cisne é um “exilado” em meio à multidão, com
o qual o poeta tende a se identificar, pois mostra-se também oprimido, batido por
lembranças de algo que não existe. A obra de Baudelaire está repleta de estrangeiros,
seres sozinhos que não têm com quem se comunicar, e nesse poema, em especial, além da
imagem do cisne, temos a da negra, “atrás do muro imenso, o da bruma e do frio”, barreira
que a separa de seu lugar, seu povo. Na cidade, que o poeta chama de “floresta” na última
estrofe, seu ser mostra-se incompleto (“meu pobre corpo trilha”), pois seu pensamento não
está ali, e sim “no marinheiro esquecido numa ilha.../ nos vencidos de sempre e nos sem
esperança!”.
O cisne, a negra, o marinheiro, personagens que têm em comum a sina de serem
exilados, condenados ao silêncio por estarem fora de lugar; a incomunicabilidade, para eles,
se dá pela existência do “muro” que separa o homem do meio. Já para o eu-lírico, o próprio
poema é o exercício da comunicação e outra é a barreira que o separa do mundo: o tempo.
As lembranças que constróem o poema são de uma época de completude e simplicidade;
porém, “morto é o velho Paris”, e a constatação de que o tempo passou faz de recordar um
ato inevitável — pois as imagens simplesmente vêm e, ao mesmo tempo, doloroso —
que surgem revestidas de melancolia.
Na literatura contemporânea, pode-se pensar em alguns personagens de romances de
José Saramago que, como os estrangeiros de Baudelaire e mais próximos ainda de
Meursault, do romance de Camus, eram seres vazios (falsos heróis) até o momento da
ruptura, quando começa a saga do herói. O romancista português, contudo, reveste os
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dramas de seus personagens com uma roupagem mais humanista e menos racionalizante,
talvez porque distanciado temporalmente do sentimento do entre e pós-guerras e do
existencialismo que dominava o pensamento na época de Camus e Sartre. Talvez, ainda, em
decorrência de se tratar aqui de literatura, e não propriamente de filosofia.
No romance História do cerco de Lisboa, a ruptura se quando o personagem
central, um revisor, acrescenta um não significativo à obra com a qual trabalha no
momento. Este lampejo de insubordinação transforma a vida do protagonista, que se
envolvido em uma história nova: a que ele acabou por criar. Como conseqüência de seu ato
aparentemente irresponsável, surgem emoções às quais não estava habituado, tais como o
amor e a insatisfação.
Ao afirmar que “os cruzados não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa”,
Raimundo nega a história e opta por construir uma outra, de acordo com a sua recém
formulada verdade. É então que principia a saga do herói, na medida em que existe a
consciência de se arriscar por algo em que acredita, mesmo sabendo não ser essa a verdade
histórica. Em passeios por Lisboa, imagina a nova versão desenrolando-se diante de seus
olhos e passa a reconstruir a cidade, bem como a si mesmo, por meio da literatura.
Ao mesmo tempo, sofre com as cobranças do grupo que representaria o poder da
sociedade, circunscrito no romance ao ambiente de trabalho. Individualizado por escolha
própria, o personagem não mais se adapta às exigências de auto-anulação que a sociedade
lhe imputara e que vinha aceitando até então. Contudo, a figura feminina que aparece como
um castigo na personagem de chefe, logo superior na hierarquia e representativa da
sociedade, é a mesma que provoca em José o despertar do sentimento afetivo. Em processo
aparentemente paradoxal, a mesma ruptura que lhe permitiu apaixonar-se também instaura
um novo tipo de incomunicabilidade: a do relacionamento amoroso.
Mais uma vez, o protagonista é levado a adotar máscaras sociais, a fim de
aproximar-se da mulher amada. O comportamento forçado e estratégico, que o obriga a
pintar os cabelos, por exemplo, aos poucos se naturaliza e vem a constituir um
desdobramento da personalidade de Raimundo, algo que ficara obscurecido por
determinada postura vigente até então, mas que não satisfaz, tendo que ser reformulada.
Assim, a transformação do personagem se por motivações antagônicas: de um lado, a
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negação de certas verdades comuns para substitui-las pela verdade pessoal; do outro, a
aceitação de parâmetros sociais necessários para se chegar a um objetivo maior.
No romance de Saramago, primeiro existe o despertar de uma consciência para
depois haver a possibilidade do livre-arbítrio. Raimundo descobre que a vida em sociedade
é necessária, e pode ser benéfica, mas para isso o indivíduo deve se permitir uma
reconstrução constante, que demanda coragem para escolher sempre. Afirmar sua
existência e chegar, enfim, a trilhar o caminho do herói foram atitudes que exigiram do
protagonista mais do que seu talento de revisor; em vez disso, Raimundo passou a ser autor
de sua história.
Há, porém, personagens apresentados logo como anti-heróis, na medida em que não
se identificam com ideais de subserviência e bondade e que são, por opção, marginais em
relação à sociedade. São loucos, bêbados, ou tão somente diferentes do grupo social que os
cerca, e que os considera loucos, bêbados... Vivem, em geral, no submundo impessoal das
pensões ou então não moram, mas transitam por espaços vários; não se importam com a
família, ou simplesmente não têm uma, nem sólida relação amorosa; são seres sozinhos e,
se há angústia, há também o orgulho de ser assim, de não se render.
Desta maneira, a incomunicabilidade se liga ao anti-heroísmo como quase uma
condição, mais do que como sua conseqüência: o anti-herói é, antes de tudo, o
incompreendido pela sociedade e que não quer se fazer compreender, dificulta suas
relações, pois sua postura e sua filosofia de vida necessitam de solidão. É então que, dentro
da narrativa, sua presença repele os outros personagens, despertando neles sentimentos tais
que compaixão, ódio, mágoa.
No romance Os Demônios, de Dostoievski, existem, pelo menos, três anti-heróis
importantes: Stépan Trofímovitch, Nikolái Vsevolódovitch e Kirílov, três suicidas. Relato
de uma época de revolução, a obra traça um panorama dos níveis de relações que se usava
estabelecer e do caráter/pensamento humano em transformação.
A começar por Stépan Trofímovitch, este se apresenta como um professor, homem
de idéias revolucionárias, sim, mas nem bárbaro, nem entusiasta de ações extremadas, o
que se justifica devido à idade um tanto avançada e a sua condição de agregado. Com o
auxílio da amiga Varvára Petrovna, o personagem tem tudo de que precisa para sobreviver
e poderia, assim, levar uma vida tranqüila junto aos livros e aos raros amigos. Entretanto,
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sua profunda inquietação não se resolve materialmente e lida com culpas das quais não é
capaz de se livrar: em relação ao filho, que abandonou e cujas terras vendeu; para com a
amiga, a quem ama sinceramente, mas não consegue confessar-lhe e que, além disso, paga
suas contas.
Onde residiria o heroísmo de personagem aparentemente tão acovardado? Ora, é na
solidão ou na companhia do narrador-ouvinte que Stépan Trofímovitch revela a nobreza de
seus sentimentos e a crença em determinados valores. Escolhera a incomunicabilidade
como opção de vida por não se identificar com convenções; como resultado, tratou de
censurar-lhe a sociedade como alienado e ultrapassado. Por fim, numa atitude entre débil e
corajosa, foge de casa e das pessoas que o cercam.
Tal como um suicídio, a fuga do personagem é movida por extremas coragem e
covardia. Tendo escolhido a incompreensão, vai embora sem falar com ninguém, numa
espécie de vingança silenciosa contra as humilhações que sofrera, mas não parece haver
uma intenção má, e sim a supremacia da vontade de ser livre por completo. Sim, pois a
liberdade de pensamento do personagem não condizia com a prisão material e afetiva em
que Varvára Petrovna o havia posto, a qual ele aceitava gritando baixo para que a amiga
não o ouvisse.
Lampejo tardio de auto-suficiência, a fuga revela a infantilidade do personagem,
numa relação temporal circular, em que o velho volta a ser criança. A irresponsabilidade
acaba por levá-lo à morte. Mas não teria sido de fato esta a intenção de Stépan
Trofímovitch? Sob a aparente inconseqüência, poder-se-ia esconder uma escolha consciente
do personagem, guiado pelo livre-arbítrio tanto buscado, que lhe permite, entre outras
coisas, aceitar a idéia de Deus. A incomunicabilidade em que se encerrou Stépan
Trofímovitch, e na qual o encerraram, leva-o ao suicídio físico, mas não ao filosófico; ao
contrário, é justamente na fuga que o personagem parece exercer o pleno domínio de seu
pensamento.
Quanto a Nikolái Vsevolódovitch, trata-se aqui de um anti-herói que se apresenta
como tal desde o início da história, com desvios de caráter os mais variados, mas que
possui uma qualidade nebulosa e cativante. Sabe-se que é violento, inconstante, arredio a
valores tradicionais, como família, amor, mas algo há nele que aproxima as pessoas e chega
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mesmo a criar uma dependência, como se ele fosse o centro e os demais personagens
orbitassem ao seu redor.
Escondido sob o clã de entusiastas, Nikolái demonstra intimamente a solidão em
que se encontra, sobretudo no polêmico capítulo em que se confessa (capítulo que chegou a
ser suprimido pelo autor), entre a auto-piedade e o orgulho de sua individualidade. Quando
revela suas baixezas mais profundas é que o personagem faz surgir a coragem dos heróis, o
que não o exime de suas características anti-heróicas e, portanto, das expectativas em
relação ao seu comportamento.
A confissão, por princípio um ato de comunicabilidade, emerge justamente de seu
oposto: a incomunicabilidade sufocante que até então dominava as relações de Nikolái com
o mundo e consigo próprio e que, após a confissão, voltará à posição em que estava. Assim,
o momento de compreensão plena do personagem dura um capítulo para, logo em seguida,
desfazer-se novamente em máscaras sociais mais ou menos descartáveis.
Na derradeira afirmação de sua individualidade, Nikolái Vsevolódovitch se suicida,
mas aqui não parece tratar-se de irresponsabilidade ou fuga pura e simples, mas sim de um
ato de convicção. Tendo se exilado ao máximo, nem assim o personagem pôde evitar que
crimes fossem cometidos por sua causa; culpa irremediável em vida, encontrou saída no
suicídio, e o fato de decidir por esta opção diminui o peso do castigo para substituí-lo pela
idéia de alívio, numa relação causa-conseqüência menos lógica, mais pessoal.
Quando decide se matar, Kirílov o faz para afirmar a vida e é, portanto, sua
consciência de existir que o leva ao suicídio, mesmo sabendo que sua morte servirá a
objetivos que não são seus, mas, para ele, não importa. O terceiro suicida do romance de
Dostoievski difere-se dos outros por ser, talvez, o mais próximo do herói trágico, pois,
segundo Camus (1989, p. 130), “não é, assim, o desespero que o impele à morte, mas o
amor ao próximo como a si mesmo”. Enquanto os outros se mataram por razões pessoais,
Kirílov buscava sua libertação e a da humanidade.
Kirílov não crê na existência de Deus e afirma que Jesus teria vivido e morrido por
uma mentira; o personagem que diz “se Deus não existe, eu sou deus”, em certa medida,
também é Cristo.
A divindade de que se trata é, portanto completamente terrena. ‘Procurei durante três
anos’, diz Kirílov, ‘o atributo da minha divindade e o encontrei. O atributo da minha
33
divindade é a minha independência’. Percebe-se, daí em diante, o sentido da
premissa kiriloviana: ‘Se Deus não existe, eu sou deus’. Tornar-se deus é apenas ser
livre sobre esta terra, não servir um ser imortal. É sobretudo, indiscutivelmente,
extrair todas as conseqüências dessa dolorosa independência. Se Deus existe, tudo
depende dele e nós nada podemos contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende
de nós. Para Kirílov, como para Nietzsche, matar Deus é converter-se a si próprio em
deus é realizar nesta terra a vida eterna de que falam os Evangelhos. (Camus,
1989, p. 129)
A vida sem Deus da modernidade é refletida pelo caos para o qual não há solução;
a ação é tão inútil quanto a espera por algo ou alguém que não virá. Na peça Esperando
Godot, de Samuel Beckett, o que se pode ver é a representação desse estado de espírito do
homem moderno que aguarda inutilmente, em angústia inerte, a salvação personalizada no
Mestre que nunca aparece. Vladimir e Estragon, incapazes de agir sozinhos, param suas
vidas em função de uma esperança pouco delineada; não sabem quem é o mestre, nem ao
certo por que anseiam tanto por ele, mas o fazem resignados e absurdos.
O absurdo da existência é demonstrado nesta peça carregada da aura niilista do
período que compreende a Segunda Guerra Mundial. Godot, protagonista invisível do
drama, cujo nome remete a Deus (god, em inglês) mas que, na verdade, era o nome de
um amigo de Beckett , encarna no imaginário das personagens a esperança de uma
transformação e o retorno a um centro, de modo a restituir o sentido do mundo. Vladimir e
Estragon, os mendigos que esperam Godot, no entanto, não parecem ter consciência de sua
situação; representativos da ótica pessimista do autor, os personagens são ainda mais
emblemáticos do absurdo dados o otimismo e a ignorância com que aguardam o Mestre.
Firmes no objetivo a que se propuseram, os personagens não se deslocam
espacialmente, permanecendo atados ao lugar do esperado encontro; o tempo, por sua vez,
não é estático e continua a passar, o que pode ser observado pelas folhas que brotam na
árvore, parte do cenário. A combinação entre a unidade de espaço e a passagem do tempo
colabora para o efeito de nonsense do drama, na medida em que isola os personagens e os
condena eternamente à existência absurda.
Beckett é um dos expoentes do chamado Teatro do Absurdo, do qual também
participa Eugène Ionesco. A idéia de um movimento de vanguarda, entretanto, o partiu
dos autores, mas do crítico Martin Esslin que deu o nome a um novo tipo de dramaturgia,
exercitada sobretudo na França nos anos 50. Parentescos de pensamento e forma foram os
34
critérios utilizados pelo estudioso para agrupar os dramaturgos do absurdo, sistematizando
assim o gênero.
Considerada um marco inicial do Teatro do Absurdo, a peça A cantora careca, de
Ionesco, apresenta, com efeito, alguns pontos de contato com Esperando Godot, de
Beckett. A personagem que título à obra, por exemplo, não está presente no drama e é
apenas mencionada, de passagem, em determinado momento. Porém, não se trata aqui de
representar a espera inútil do salvador, mas de nonsense mesmo, a demonstrar que o título
nada tem a ver com a matéria do drama.
Trata-se da decrepitude da linguagem, referida acima, que demonstra a descrença do
autor em relação ao ser humano e seu poder de comunicação com o outro. O resultado, ao
invés de trágico, configura-se mico, uma vez que representará a afirmação de uma arte
não-comunicativa, contrária, portanto, à seriedade. Para elucidar a questão no teatro de
Ionesco, cito as palavras de Ortega y Gasset a respeito da comicidade na arte moderna: “E
não é que o conteúdo da obra [de arte moderna] seja cômico isto seria recair num modo
ou categoria de estilo ‘humano’ —, mas sim que, seja qual for o conteúdo, a própria arte se
torna chiste.” (Ortega y Gasset, 2003, p. 76). Dessa maneira, o que se em cena em A
cantora careca são autômatos, no lugar de homens, cuja linguagem demonstra a própria
inutilidade.
E qual seria, então, a matéria, o assunto em torno do qual gira a ação? Na peça de
Ionesco, não propriamente uma intriga, mas sim uma sucessão de diálogos desprovidos
de sentido que formam, contudo, um ritmo indicativo da mecanicidade nas relações
humanas. É assim que o casal Smith dá seu lugar ao casal Martin no final da peça, e este
retoma o início, demonstrando o quanto o ser humano, desprovido de consciência, é
substituível, e cai no vazio do círculo vicioso.
Logo na primeira cena, percebe-se claramente a incomunicabilidade que se mostrará
a tônica nos demais diálogos. No início, ainda não muito absurdo, Sr. e Sra. Smith
conversam em sua casa; embora haja falas, a comunicação inexiste, pois a mulher
monologa sobre assuntos corriqueiros, como a comida e a vizinhança, enquanto o Sr. Smith
estala a língua, lendo seu jornal. A instituição família aparece, portanto, ridicularizada
nos papéis convencionais de marido e esposa que, embora vivam juntos, estão longe de se
compreender.
35
Assim também o revelador e extenso diálogo entre Sr. e Sra. Martin, uma
tentativa de se reconhecerem, mesmo sendo casados. Segue trecho do diálogo que forma a
cena 4:
SR. MARTIN Desde que cheguei a Londres, moro na rua
Bromfield, minha cara senhora.
SRA. MARTIN Que curioso, que estranho! Eu também, desde a
minha chegada a Londres, moro na rua Bromfield, meu caro senhor.
SR. MARTIN Que curioso, mas então, mas então, talvez nós
tenhamos nos encontrado na rua Bromfield, minha cara senhora.
SRA. MARTIN — Que curioso; que estranho! É bem possível, afinal!
Mas eu não me lembro, meu caro senhor.
SR. MARTIN — Eu moro no número 19, minha cara senhora.
SRA. MARTIN Que curioso, eu também moro no número 19, meu
caro senhor.
SR. MARTIN Mas então, mas então, mas então, mas então, talvez
nós tenhamos nos visto naquela casa, minha cara senhora?
SRA. MARTIN É bem possível, mas eu não me lembro, meu caro
senhor. (IONESCO, 1993, p. 45-47).
A cada novo dado que indica o relacionamento do casal, soam como refrão as frases
de espanto proferidas por um e outro: “Que coincidência!”, “Que curioso!”. Inicialmente
desconhecidos, aos poucos descobrem que moram na mesma rua, na mesma casa, dormem
no mesmo quarto... mas, depois de revelado o laço que os une, permanecem
desconhecidos.
Trata-se de uma impressão inicial do mundo, marcada pela constatação da
superficialidade que rege as relações do ser humano, consigo próprio e com o outro. Em A
Cantora careca, as personagens, desprovidas de consistência interior, são as máscaras, ou
autômatos, que simplesmente continuam a atuar segundo regras mais ou menos habituais de
convivência. O absurdo das relações no teatro de Ionesco ainda não apresenta nesta
primeira peça o tom engajado que terá em O Rinoceronte, quando o universo de máscaras
que separa o ser social de sua essência individual é abordado pelo dramaturgo.
Na peça O Rinoceronte, de 1958, Ionesco leva à cena um homem em conflito, mas
não são as questões pessoais do personagem que sobressaem à leitura/encenação da peça, e
sim o conflito geral que opera não uma simples transformação, mas a metamorfose de toda
uma sociedade. Enquanto Bérenger, o homem em questão, busca uma evolução individual
36
que vai do menos para o mais civilizado, a sociedade à sua volta faz o caminho contrário e,
como conseqüência inconsciente, nasce uma civilização irracional. Para Pronko (1963, p.
133), “a significação de O Rinoceronte é bastante clara. Ionesco deplora aí a falta de
independência, de livre pensamento, de individualidade que levam inevitavelmente ao
totalitarismo, sob qualquer forma.”
Bérenger se encontra em situação complicada, pois está apaixonado por uma colega
de trabalho que, por sua vez, encanta-se pelo advogado do escritório. Bérenger, desleixado
e constantemente alcoolizado, poucas chances tem de conquistar Daisy. Seu dilema
consiste em modificar-se para, talvez, vir a aproximar-se da garota e poder, enfim, declarar-
lhe seus sentimentos.
Cabe ao amigo Jean ensinar ao protagonista como se transformar em um ser social:
é preciso pentear-se adequadamente, usar gravata, ir ao museu. O próprio Jean se considera
parâmetro de homem: “Valho tanto quanto você; e até, sem falsa modéstia, valho mais que
você. O homem superior é aquele que cumpre seu dever”, ao que Bérenger retruca: “Que
dever?”
Mas o que deveria ser uma aula de civilização é interrompida bruscamente devido a
fato nada banal: um rinoceronte aparece, torna a aparecer e mata o gato de uma senhora. A
discussão, no entanto, toma direção inesperada e centra-se não no fato em si, mas na
nacionalidade do rinoceronte e sua “cornidade”: seria asiático ou africano? uni ou bicórnio?
O absurdo do debate é realçado pela presença do Lógico, que busca explicar, por meio de
sua especialidade, as particularidades do animal.
Ao primeiro rinoceronte que surge, seguem outros, e logo se descobre que estes são
pessoas transformadas em animais, fato sem explicação. Um a um, todos os personagens se
rendem à rinocerite, uma peste contagiosa e, ao mesmo tempo, atraente. Todos, menos
Bérenger. Se, por um lado, a sociedade passa a considerar normal o fato de alguém virar
rinoceronte, o mesmo não se pode afirmar a respeito do protagonista, que permanece firme
em sua posição de homem, não partidário dos rinocerontes. A questão beira o domínio da
política, mais precisamente do tipo de regime político totalitário: uma ideologia começa a
se alastrar e, por diferente que seja, ganha adeptos, defensores, enquanto as vozes
dissonantes vão sendo encurraladas ao limite de suas forças.
37
Dessa maneira, Dudard, o jurista por quem Daisy nutria admiração, acaba por aderir
à rinocerite, espontaneamente, por mais que afirmasse a intenção de manter a lucidez.
Restam Daisy e Bérenger, no idílio amoroso que remete à criação do mundo; são, assim, os
únicos seres humanos e então a confissão de Bérenger é possível. No entanto, a
convivência faz-se mais e mais difícil; em vez do paraíso, é a peste que os rodeia e acaba
por separá-los. Daisy também quer ser rinoceronte.
Único homem numa sociedade formada por rinocerontes, Bérenger, no final da
peça, encontra-se mais sozinho do que o estivera antes. No monólogo final, questiona a
validade da linguagem, da normalidade, da própria existência, mas nega a febre
irracionalizante para afirmar sua condição de humano, demasiado humano. E, no entanto,
ele é o monstro, por não urrar ou gemer como um rinoceronte, por não ter com quem se
comunicar.
A incomunicabilidade entre os homens é denunciada desde o início da peça, quando
o ainda falso herói Bérenger busca aderir à sociedade, tomando Jean como modelo de
indivíduo, mas nem mesmo este acredita na essência do que prega. Assim, insiste para que
o protagonista vá ao museu, mas nega o convite para ir junto, pois fará a sesta, ou
encontrará os amigos na brasserie. A zoomorfização universal revela, de maneira menos
sutil, algo inerente à sociedade e que, portanto, existia desde o início da peça, a saber, a
necessidade de se igualar ao outro.
Os personagens deste drama podem (...) se transformar em
rinocerontes impossíveis de se distinguir um do outro, pois eles eram
indiscerníveis desde o começo, incapazes de pensar ou se exprimir
individualmente. (Pronko, 1963, p. 137).
Antes da rinocerite, ainda no primeiro ato, o personagem central é o homem absurdo
que, sem motivos, continua a viver: “A solidão me pesa. A sociedade me pesa.”, diz ele a
Jean. Contudo, ao se defrontar com a irracionalidade coletiva, que agrega todos num
mesmo tipo, adquire uma razão para sua existência, que é lutar pela liberdade de ser um
indivíduo. Bérenger passa então a herói, não no modelo trágico, pois se trata aqui de teatro
do Absurdo, mas como anti-herói moderno, que não se adapta, é marginal em relação à
sociedade, e, contudo, defende um ideal para toda a humanidade. Nas palavras de Bérenger,
sobre as quais cai o pano, “Je ne capitule pas!”.
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Em ensaio sobre o absurdo, o crítico Léo Gilson Ribeiro apresenta algumas
características marcantes que permeiam as obras de Beckett e Ionesco:
(...) Beckett e Ionesco se entregam à constatação da existência do beco
sem saída, do protesto ético ineficaz e da impotência do teatro como
meio de transformação social da comunidade humana. Presos ao
degredo interior da solidão do ser humano, da sua incomunicabilidade
e da carência de valores espirituais que o mantenham vivo (fora da
acepção puramente biológica deste termo), estes sombrios dramaturgos
são os documentadores da angústia de uma humanidade sobre a qual se
ergue o cogumelo negro da explosão atômica. Mas, como afirmam os
próprios críticos marxistas, principalmente Lefebvre, seria uma
injustiça atribuir-lhes o mérito de ter somente renovado a cnica do
teatro, a sua linguagem e a sua concepção cênica, cabe-lhes maior
valor ainda: é preciso reconhecer sua realização artística de alto nível e
até mesmo o valor ideológico da própria negação, do próprio niilismo
e do seu vazio. (Ribeiro, 1964, p. 133-134).
Solidão, absurdo, vazio, negação: é especialmente necessário pensar na obra de
Kafka a fim de formar um juízo acerca da incomunicabilidade. Em O Processo, Kafka nos
apresenta Joseph K..., protagonista de um drama que não se explica, sujeito a várias
interpretações por mecanismos diferentes. Pode-se ler a obra pelo viés psicanalítico e
encontrar em K... o alter-ego de Kafka, sua relação com família e sociedade, seus ideais a
respeito de justiça e verdade; ainda, ressaltar os símbolos que participam da narrativa, de
modo a decodificá-los e apreender o sentido pretendido pelo autor. A obra de Kafka,
entretanto, é território do absurdo, tanto mais na medida em que o próprio herói age com
naturalidade diante das estranhas situações que se lhe apresentam, sem procurar desvendar-
lhes sentidos obscuros ou mesmo buscar dentro de si respostas que possam elucidar o
mistério de seu processo: apenas vive o processo.
Joseph K... acorda um dia e é surpreendido pela intimação a responder um processo,
mas não sabe do que se trata. Ninguém responde às perguntas que faz, apenas os guardas
passam a vigiá-lo e disso K... tem consciência: não é mais um homem livre. Durante o
processo, o personagem procura advogados, tenta defender-se, sem saber de quê; no
entanto, é preciso, pois se trata de um julgamento. Ao final, K... é condenado e morre,
“como um cão” (Kafka, 2003, p. 211). O estilo sutil, o silêncio, as omissões, tudo isso
colabora para que também o leitor permaneça na ignorância, acabado o romance, o que não
39
o impede de angustiar-se em lugar do personagem, que continuou impassível ao longo de
sua trajetória.
A incomunicabilidade nessa obra é estridente, é o próprio grito de terror, silenciado
pelo herói. O processo absurdo em que nada é enunciado, os silêncios como respostas, a
incompreensão do personagem por parte da sociedade: elementos que denunciam a
incomunicabilidade e fazem aumentar a tensão da narrativa, pois espera-se que o suspense
se resolva e o enigma seja esclarecido, mas nada disso acontece. Apenas a busca incessante
de K... por repostas, percebendo, cada vez mais nitidamente, que não as terá. A lei (o
sentido de sua existência?) constitui um domínio cuja entrada lhe é negada. Contudo, o
herói não deixa de procurá-la; durante o julgamento, defende-se diante da assembléia,
mesmo sabendo que qualquer tentativa nesse sentido é inútil.
Inocente, K... é julgado e condenado à morte, pois a sociedade não o compreendeu;
mais que isso, não o quis compreender, nem permitiu que ele se defendesse. Não se trata da
incomunicabilidade como conseqüência; em O Processo, ela parece ser o objetivo, a regra
geral do mundo que primeiro exclui, depois aniquila o indivíduo, sobretudo aquele que se
mostra consciente de sua não-culpa. A liberdade, princípio fundamental da existência, se
transforma em prisão sem grades, pois vigiada a todo momento pela sociedade. A
comunicação, como meio de compreender o outro, é substituída por silêncios, mal-
entendidos, reticências que acabam por isolar o herói em sua busca solitária, até a morte.
Joseph K... não se suicida, mas aceita o final imposto como natural dentro das
circunstâncias. Durante a defesa, o herói desmascara a sociedade, acusando a corrupção e a
hipocrisia de um mundo que deseja julgar a ele, que é inocente. Ao afirmar seu eu
individual, K... tem decretado o trágico destino, resultado de um processo absurdo que não
admite verdades fora de seus padrões convencionais. Ao invés de se corromper também,
acompanhando a sociedade, o herói mantém suas convicções, mesmo que deva dar a vida
pela liberdade de pensamento. A morte do herói representa a confirmação da superioridade
de seus valores, sua verdade que, se não serviram para salvá-lo da condenação (ao
contrário, precipitaram-no rumo a ela), ao menos fundamentaram a crença do homem em si
mesmo, em seu ser individual sobre as tentações do mundo.
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A Incomunicabilidade em Obras da Literatura Brasileira Moderna
No Brasil, a Semana de 22 foi, de fato, o marco da modernidade, mas a questão da
incomunicabilidade não se relaciona intimamente com os experimentalismos de então,
podendo ser encontrada com enfoque mais nítido em obras de autores da chamada segunda
fase do modernismo, entre os quais Murilo Mendes na lírica e Clarice Lispector na prosa.
Quanto ao teatro, e chega-se ao ponto central que me levou até aqui: Nelson Rodrigues,
inaugurador do teatro brasileiro moderno, talvez mesmo do próprio teatro brasileiro.
A escolha do conto Tentação” de Clarice Lispector, como representativo da
incomunicabilidade, deu-se pelo avesso. Em muitos de seus textos, a autora explora o tema,
mas o que atraiu minha atenção para este conto foi o relevo dado à incomunicabilidade a
partir da perfeita comunicação comunhão mesmo entre uma menina e um cachorro.
Duas solidões se encontram e compreendem muito além da racionalidade (Paz, 1992, p.
175).
O que primeiro aproxima os personagens é o fato de serem ambos ruivos, espécie
geneticamente minoritária em terras brasileiras. Ao vermelho dos cabelos da menina e dos
pêlos do basset, junta-se a claridade do sol das duas horas que os torna ainda mais ruivos, e
mais cúmplices. Além de realçar o ponto comum entre os dois, o sol afugenta quem
porventura pudesse atrapalhar o momento mágico de identificação.
Logo no início do conto, somos informados de que a rua estava vazia. A dona do
cachorro é quase inexistente; mas é a sua presença, e mais uma vez o sol, que obrigam
basset e menina a se separarem. Do contrário, continuariam sendo um do outro. O mesmo
sol que os uniu os afastava indefinidamente.
A identificação, além de imediata, é mútua. E sem proferir palavras, nem um nem o
outro, deu-se o perfeito entendimento entre ambos. Nem mesmo o narrador sabe o que foi
dito ali, mas está certo de que houve compreensão. O ato de plena comunicação muda entre
os personagens desorienta o leitor que, ao mesmo tempo, compreende e não compreende o
que se passou.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram
rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam.
Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
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No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a
solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem
trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos estava
uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam
profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o
suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se
abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza
aprisionada. (Lispector, 1964, p. 68).
A incomunicabilidade se esconde no passado e no futuro das personagens. No
momento em que são flagrados, o presente da narrativa, não estão sozinhos; nas palavras
de Nelson Rodrigues, “o amigo é um momento de eternidade”. Mas o final do conto
anuncia a continuação de uma realidade que os isola do mundo, cada um em seu lugar e
posto. Tanto antes quanto depois do encontro, basset e menina serão apenas basset e
menina, sós, incomunicáveis.
Tal a menina e o cachorro do conto de Clarice, no poema “O rato e a comunidade”,
de Murilo Mendes, percebe-se a incomunicabilidade entre pessoas próximas, enquanto o
eu-lírico se une, na quarta parte, a um desconhecido por meio da solidão que os isola, sim,
mas é o ponto comum de suas existências e, portanto, os aproxima.
O RATO E A COMUNIDADE
1
O rato apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E depois foram-se embora.
? Que sabe esse rato de mim.
E esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.
2
42
Passam-se meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecem nossas lágrimas
? Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa
comunicabilidade.
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes.
... Subúrbios longínquos, esses homens.
3
Entretanto cada um deve beber no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro deve nos ajudar a reconstruir nossa forma.
O homem que não viu seu amigo chorar
Ainda não chegou ao centro da experiência do amor.
Para o amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo o sofrimento é pressentido, trocado, comunicado.
? Quem sabe conviver com o outro, quem sabe transferir o coração.
Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.
4
Desconhecido que atravessas a rua,
? Que há de comum entre mim e ti.
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas deste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo,
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.
5
A mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só pessoa.
43
Esta é a que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os homens pela mão da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram.
Um mundo povoado de existências dispersas e a dificuldade de se construir uma
relação verdadeira com o outro, diante dos obstáculos que o tempo e o espaço representam,
assim me parece o poema de Murilo Mendes. ?Há uma solução para a incomunicabilidade,
ao menos um vestígio de otimismo. O eu-lírico apresenta no amor a possível comunhão,
livre de desentendimentos e máscaras.
Na primeira parte do poema, a figura intrusa do rato é igualada ao homem e à
mulher, estes que tentaram estabelecer uma conversação com o eu-lírico, mas que o
conhecem tanto quanto o animal. Assim, não há comunicação, mas apenas a troca de
palavras e gestos, desprovidos de significado verdadeiro, pois que baseados em
convenções. O caráter superficial da comunicação é condenado na segunda parte, quando o
eu-lírico enumera uma série de possibilidades de diálogo tão comuns quanto previsíveis,
como os assuntos políticos e econômicos que formam tradicional matéria de debates. No
entanto, denunciando certa mágoa, o poeta questiona a verdade dessas relações, que não se
interessam pelos sentimentos mais profundos experimentados pelo eu interior (“?Que
sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade.”)
Existencialista, em certa medida, o eu-lírico aponta a importância do espelhamento
na construção da subjetividade, o que faz pensar na função humanista do pensamento de
Sartre; construindo-se a si próprio por meio da experiência e exercendo seu livre-arbítrio, o
indivíduo, ao mesmo tempo que chega à sua essência, colabora para a construção pessoal
de outros indivíduos, e, mais geral, da humanidade.
Frente a um desconhecido, o poeta se pergunta o que os une e chega à conclusão: “a
mesma solidão e a mesma roupa”. Na modernidade, regida pelo “tempo” e pela “máquina”,
o homem se iguala a todos os outros na submissão a regras e necessidades imperativas,
formando a “massa-leviatã”; por outro lado, pode buscar sua verdade — que o torna
individual, logo diferente dos outros — no retorno ao que é “mínimo”, essencial.
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A essência, aqui, se apresenta com a forma da mulher, mas não a mulher moderna,
que também é máquina, e sim por aquela de um outro tempo, “submissa e doce”, encarnada
melhor no papel tradicional de mãe que de amante. A reconstrução da individualidade se
assemelha a um novo nascimento, e este parto exige a presença da mulher, esperança de
entendimento pleno entre um e outro ser, não especificamente pelo laço familiar, mas por
meio de uma ligação espiritual anterior à superficialidade do mundo.
Ensaio em versos, o poema apresenta uma série de questionamentos a respeito da
existência e aponta na dualidade homem/mundo o centro de convergência das perguntas
para as quais não respostas. Assim, tanto o rato quanto o homem participam da
sociedade, numa relação de complementaridade, mas são sozinhos, enquanto seres
individuais, e nesse nível não há possibilidade de comunicação verdadeira, em parte
devido ao duo tempo-espaço (im)próprios da modernidade, mas também à ausente
consciência de ser além dos limites impostos pela comunidade. Da dualidade formada
pelas instâncias complementares corpo e alma, Manuel Bandeira constrói seu poema “Arte
de amar”:
ARTE DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
O mundo das idéias de Platão toma aqui a forma de Deus, ou lugar “fora do
mundo”, único ambiente possível para a satisfação da alma. No esboço representado pelo
mundo sensível, “as almas são incomunicáveis” e os corpos podem se entender. AArte
de amar” de Bandeira não deve ser uma receita, uma lição a seguir; é antes a constatação
dos níveis de intensidade do homem.
Fugindo dos simplismos qualitativos que poderiam classificar como melhor ou pior
cada tipo de entendimento, o poema mostra que corpo e alma são diferentes e têm desejos
45
também diferentes. A realização da alma exige outros meios que não os desta dimensão, o
que não quer dizer superior; subvertendo um pensamento convencional, a alma aparece
como empecilho para a “felicidade de amar”. O eu-lírico transfere o amor para o plano
material, o que faz do sentimento algo tangível e, mesmo, concreto, de modo que a
incomunicabilidade atributo exclusivo das almas deixa de existir na relação entre
corpos que fundamenta o amor.
A angústia da separação entre corpo e alma encontra equivalência na dimensão
tempo-espacial na obra O sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. É como
se aqui o tempo fosse o responsável por quebrar a unidade primeira, existente num tempo
mítico, perdido, de comunhão entre corpo e alma, ser e mundo. No poema “Os ombros
suportam o mundo”, o presente é a única possibilidade da existência, pois os valores
humanos, artefatos de um remoto passado, perderam o sentido e a função de sustentar a
humanidade.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada espera de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
46
A vida apenas, sem mistificação.
Em igual medida, tudo é inútil: Deus, o amor, vida, morte. O homem, no presente de
sua existência, está irremediavelmente e o eu-lírico tem consciência de que sua palavra,
chamando por Deus ou pelo amor, de nada adiantará, pois não se trata apenas da ineficácia
da linguagem, da porção racional do ser; é que “O coração está seco.” O tempo esvaziou a
alma do homem de seus valores mais caros e nada propôs que os pudesse substituir.
Usando a segunda pessoa, o eu-lírico fala consigo como se dialogasse com o outro.
Esse “tu” assim como o personagem José, do poema “José” traduz a solidão máxima
do poeta que, incomunicável, não abre a porta de seu mundo; parece acostumado a ser
sozinho, pois não sofre nem espera. As esperanças se esvaíram junto com a luz, o que
não o impede, no entanto, de ver (“mas na sombra teus olhos resplandecem enormes”), ou
por outra, de continuar a viver, no escuro e só.
Poderia o homem optar pela morte, ante o absurdo de uma existência que implica
falta de esperança, de sentido, de comunhão. Justificar-se-ia ainda a escolha por meio da
inevitabilidade da morte, fato básico inerente à toda forma de vida, que pode funcionar
como argumento do suicida. Para o eu-lírico, constituiria o suicídio uma fuga dos
“delicados” (seriam covardes?) aos horrores do mundo, sem em nada modificá-los: “as
guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/ provam apenas que a vida prossegue”.
Como para Camus, em seu ensaio sobre o suicídio, “não adianta morrer”, pois a morte não
constitui solução satisfatória para o absurdo de existir.
A passagem do tempo não pesa mais do que o mundo que, por sua vez, “não pesa
mais do que a mão de uma criança”. Assim, o problema de viver no escuro, na solidão,
na desesperança é algo que se pode suportar, desde que seu tempo seja o presente. Do
mesmo modo que os valores do passado deixaram de fazer sentido, também o futuro (a
velhice ou a morte) não serve como parâmetro em relação ao momento presente. A
realidade é neste tempo e neste espaço; “a vida é uma ordem”, e nenhuma fuga ou
“mistificação” pode salvar o homem de sua condição. Condenado a viver no mundo sem
Deus, o ser humano deve encontrar no aqui e agora de sua existência motivos que a façam
valer, mas é preciso ter consciência da inutilidade de quaisquer valores. Para o poeta, a
única certeza está na própria vida.
47
No poema “Mundo grande”, continua a reflexão do poeta em sua busca pelo
“sentimento do mundo”:
MUNDO GRANDE
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos — voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
48
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao
suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
— Ó vida futura! nós te criaremos.
Se o tempo dita os parâmetros da condição humana em “Os ombros suportam o
mundo”, no poema “Mundo grande”, a ênfase está no espaço. Saindo do microcosmo que é
o coração, o poeta transita por lugares, ruas, atravessa os mares, apreende a grandeza do
mundo até ultrapassar seus limites, indo a países imaginários, até que torna a si, fazendo
explodir seu próprio coração. Nem este é capaz de abarcar toda a amplitude do mundo, nem
o mundo, “vasto mundo”, pode abrigar todas as possibilidades de seu ser.
Contar-se é extravasar os limites de seu ser reduzido, de sua existência individual,
tão pequena quanto as demais, isoladas que estão dentro de outros eus sós; ao entrar em
contato com o mundo, por meio da arte, o poeta busca a comunhão impossível com os
homens, de “diferentes cores”, “diferentes dores”. A busca pelo universal reflete o vazio de
uma realidade que separou os homens, condenando-os à solidão. Na arte, uma possibilidade
de transcendência, negada desde sua origem: “na solidão de indivíduo/ desaprendi a
linguagem/ com que os homens se comunicam.”
Mais uma vez, a incomunicabilidade e a solidão como características inatas do ser
humano... No poema de Drummond, a incomunicabilidade nasce e finda na solidão, de
modo que a linguagem como instrumento de aproximação entre pessoas e mundos é uma
49
falácia não aplicável aos seres individuais. Falaciosa também é a fuga para os “países
imaginários, fáceis de habitar/ ilhas sem problemas” que “convocam ao suicídio”.
Conclusivo, diz o eu-lírico: “Ilhas perdem o homem.” Paraísos artificiais, as ilhas são os
espaços do irreal, fabricados pela linguagem como no “Convite à viagem”, de Baudelaire,
ou em “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira. A distância segura em
relação ao absurdo da realidade, esta sim existente, não garante a salvação pretendida. Tal
distância, no entanto, pode mostrar-se útil, por um lado, deflagrando a consciência do
indivíduo em sua relação com o mundo; mas, por outro lado, pode fazer o homem sentir-se
auto-suficiente a ponto de negar o mundo, numa atitude suicida, refutada pelo poeta.
possibilidade de salvação? Ainda uma vez, apenas a vida tem o poder de impor-
se ao absurdo da vida, vencendo suas dicotomias por meio da recriação permanente da
realidade. O mundo, a vida, a linguagem, o homem todos resultados de um processo de
criação que nunca finda. Por meio da arte, pode o homem, em certa medida, transcender a
solidão individual: o artista se conta para alguém, para “todos” e, ao contar-se, conta
também sua relação com o outro. Cria espaços, tempos, realidades, e é então que seu
sentimento e seu mundo deixam de ser apenas seus.
É interessante notar como a metalinguagem se faz presente na arte moderna; numa
tentativa, talvez, de vencer a incomunicabilidade, o artista, por meio da ficção, desvenda o
processo criativo que o levou a ela. Assim, ao enfatizar a criação como necessidade
constante da própria vida, o poeta se autentica, por assim dizer, enquanto artista e homem.
Ainda quando versa sobre a solidão de seu ser, essa arte já será menos solitária, pois
exprime o desejo de dialogar com o outro, fundir-se a ele na angústia comum que emerge
da necessidade de serem ambos criadores da realidade.
No romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, o narrador em primeira pessoa
busca vencer a solidão por meio da escrita. Criador e criatura de sua história, Paulo
Honório busca no isolamento do mundo o meio de voltar a comunicar-se com ele,
vencendo a “tensão crítica” (Bosi, 1994, p. 392) que os separa através da literatura. O
passado, e toda a história dos dissabores pelos quais passou o personagem, é recriado no
presente da narrativa, também este contado como a aventura do ato expiatório de escrever.
Da luta travada entre o personagem e si mesmo, transcrevo abaixo fragmentos do
capítulo 19:
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Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela
se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou
antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me
escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa?
Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo
café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito
numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na
véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena
tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido
de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os
dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso
enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram
apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela
tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor,
eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos
dois vultos na escuridão.
(...)
agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e
enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a
toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com
o punho. Esquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências.
Maria das Dores, na cozinha, lições ao papagaio. Tubarão rosna
acolá no jardim, O gado muge no estábulo.
O salão fica longe: para irmos temos de atravessar um corredor
comprido. Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d. Glória é bastante
clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem . É preciso
admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha?
Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão... Se lhe
explicasse melhor que é necessário vivermos em paz... Não me
entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito
diferente do que esperamos. Absurdo.
um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os
sapos dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e
acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não
posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui,
ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria
51
conveniente dar corda no relógio, mas não consigo mexer-me. (Ramos,
1984, p. 101-104)
Madalena, relações, conversas, amigos, corujas tudo isso faz parte do passado de
Paulo Honório. No presente, a solidão e o silêncio total, nem mesmo quebrado pelos sapos,
ou pelo vento, ou o relógio. A existência do narrador se divide entre as lembranças,
mescladas a sentimentos contraditórios, e a recriação das mesmas pela escritura. Assim,
não existe Madalena, mas a imagem construída de Madalena, fugidia, claro está, pois
embora casados, Paulo Honório não chegou a conhecer a esposa.
A incomunicabilidade do personagem consigo e com o mundo, tal como apresenta-
se no presente da escritura, tem suas origens na “alma agreste” do homem que, incapaz de
compreender a mulher, acabou por perdê-la, irremediavelmente. Vivendo em mundos
isolados, Paulo Honório e Madalena apenas continuavam, arcando com as conseqüências
das escolhas que fizeram, mas estavam longe de vencer a solidão individual pelo amor.
Da mesma forma que os ideais humanitários da mulher escapavam à compreensão
do homem, a ambição deste não tinha sentido para ela. No entanto, havia uma realidade,
uma “normalidade” que tornou-se habitual para eles; acostumaram-se à convivência que
não exigia mais do que o silêncio e o escuro do quarto para, cada um em seu isolamento,
buscar o outro dentro de si mesmo.
Cruel como o fora para Bentinho em Dom Casmurro, a incomunicabilidade
germinou em Paulo Honório um ciúme doentio, de modo que o silêncio, confortável antes
pela aparência de normalidade, acabou por vitimar o casal com o suicídio de Madalena.
Antes de morrer, na última conversa (ou seria a primeira?) com o marido, Madalena revela
sua angústia: “Há três anos vivemos uma vida horrível. Quando procuramos entender-nos,
temos a certeza de que acabamos brigando.” (p. 160). Adiante, despede-se: “Adeus,
Paulo. Vou descansar.” (p. 163).
O personagem estendeu à mulher o sentimento de posse que o fez conquistar a
fazenda S. Bernardo, tornando a relação entre o casal o avesso do amor. Tendo perdido
Madalena por sua própria culpa, Paulo Honório passa a questionar o que deveria ser então o
sentido da vida, porque as respostas que tinha não eram suficientes diante do total
absurdo em que transformou sua existência. Da reflexão, alimentada pela memória, surge o
processo expiatório da escritura, tempo-espaço que ameniza a incomunicabilidade, por
52
buscar restabelecer a comunhão do homem consigo, num ato voluntário (“forçado”, nas
palavras do personagem) de auto-conhecimento.
O final da saga de Madalena é o começo da de Paulo Honório, por representar o
momento de total ruptura entre homem e mundo. Sem crenças ou esperanças, aniquilado
pelo destino, resta ao personagem recriar-se a partir da consciência recém despertada do
que havia feito de seu existir até então. “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que
hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.” (p. 188).
Condenado por si e pelo mundo, Paulo Honório deverá, como Sísifo, recomeçar
incessantemente.
do Burro, o herói de O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, também é
condenado, mas sem ter culpa. Queria apenas pagar uma promessa a Santa Bárbara,
levando uma grande cruz de madeira nas costas de sua casa até o interior da igreja. Não
pôde. Aos olhos da sociedade cristã, representada aqui nas figuras do padre e do sacristão,
as intenções inocentes do herói configuram-se atos de extremo pecado. Em primeiro lugar,
a promessa foi feita a Iansã, a Santa Bárbara da mitologia negra, num terreiro de
candomblé; além disso, a graça pedida (e alcançada) consistia em salvar o burro enfermo,
Nicolau — ainda por cima, “um burro com nome cristão!” (p. 68).
Mas o pecado maior era outro... A via crucis empreendida por do Burro,
carregando uma cruz “tão pesada como a de Cristo”, pareceu à igreja, mais que simples
promessa, uma ambição de igualar-se a Jesus; à sociedade, representada pela figura do
Repórter, golpe eleitoreiro de auto-promoção. As aparências regem o mundo que,
acostumado à dissimulação por parte dos homens no geral, é incapaz de ver a essência do
indivíduo, preferindo leituras fáceis e generalizantes, com base em valores conhecidos (e
deturpados) à verdadeira reflexão acerca do indivíduo cuja complexidade lhe escapa.
O herói da peça é o matuto, interiorano, mas é justamente em sua simplicidade que
se pode encontrar aquilo que o diferencia dos outros. No desejo de comunhão entre o divino
e o terreno, do Burro não considera estranho pôr nome cristão no burro, pois, questiona:
“Não foi Deus quem também fez os burros?”. Para ele, igreja e candomblé se equivalem,
por serem ambos espaços de culto a Deus, assim como também não diferença entre
Santa Bárbara e Iansã, nomes diferentes para um mesmo símbolo religioso.
53
Para uma sociedade de valores arraigados, do Burro, em sua obstinação, parece
insolente, mesmo herege. Na fazenda, lugar de origem, ele podia manter em unidade o que
na cidade se mostra excludente. Assim, a cidade configura espaço de intolerância em
relação à fé particular do herói, da tensão que se estabelece entre homem e mundo. A
civilização, com valores morais tão arbitrários quanto contestáveis, é capaz de corromper o
ser humano, ou matá-lo. se mantém firme em sua crença, e morre; Rosa, a esposa,
deixa-se impregnar pelo ambiente e acaba por trair o marido.
Mais do que uma simples crítica ao sistema religioso, bem entendido, a peça O
Pagador de Promessas leva à cena a história do homem aniquilado pela sociedade, como
aponta o autor em nota:
O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social
que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em
defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo
concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de
Promessas é a estória de um homem que não quis conceder e foi destruído. Seu
tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da
liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios
necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há
também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos
inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma
linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade
humana. São peças da engrenagem homicida. (Gomes, 2001, p. 15)
A incomunicabilidade do herói resulta da “falta de uma linguagem comum entre os
homens”, nas palavras do autor. A morte de do Burro, vitimado pela incompreensão do
outro, simboliza a morte da própria liberdade. Há forte viés político na dramaturgia de Dias
Gomes, que faz parte do que se conheceu como “teatro engajado” nos palcos brasileiros. O
Pagador de Promessas, no entanto, vai além de abordar a realidade sob esta ótica, embora
o herói, “entre o idiota e o santo” (Prado, 1988, p. 90), seja um personagem “de esquerda”;
mais universal, porém, o drama conta a incomunicabilidade e a solidão do indivíduo contra
as maldades de que é feito o mundo. A engrenagem social política, religiosa, moral,
familiar —, com sua linguagem artificialmente maquinada, define o martírio do herói, mas
não o impede de ser carregado para dentro da igreja sobre a mesma cruz que simbolizou o
absurdo de sua vida e, também, de sua morte.
54
NELSON RODRIGUES
O Autor
Nelson Falcão Rodrigues se popularizou como, simplesmente, Nelson Rodrigues e
colecionou algumas alcunhas ao longo de sua vida, como “o anjo pornográfico” e “flor de
obsessão”. Nasceu em Recife, Pernambuco, em 1912, mas logo em 1916 a família mudou-
se para o Rio de Janeiro, onde Nelson viveu, casou-se por duas vezes, amou muitas vezes,
teve três filhos, legítimos e reconhecidos, e outros três fora do casamento, que Nelson
aceitou, depois não aceitou; escreveu crônicas e contos em jornais, modernizou o teatro
brasileiro, escreveu ainda romances, novelas, foi censurado pela direita, igualmente pela
esquerda e, em 1980, morreu, deixando um legado de dezessete peças teatrais, nove
romances (inclusos os publicados sob os pseudônimos Suzana Flag e Myrna), contos em
jornais que foram enfeixados em dois livros, outros quatro de crônicas/memórias e muita
inspiração para os admiradores de sua obra.
O início da atividade jornalística de Nelson data de 1926, quando estreou como
repórter policial do jornal A Manhã, de propriedade de seu pai, Mário Rodrigues. No
âmbito jornalístico, Nelson fez de tudo, de resenhas de óperas às famosas crônicas sobre
futebol, além da ficção exercitada quase diariamente em contos e novelas, estas publicadas
como folhetins nos principais periódicos do Rio de Janeiro. Ao todo, mais de cinqüenta
anos de jornalismo. Embora mais extensa e contínua, contudo, não foi esta parte de sua
produção que lhe rendeu o ingresso na história da literatura brasileira.
Nelson Rodrigues consagrou-se, de fato, como homem de teatro, atividade dos mais
intensos sucessos e fracassos do autor, desde a estréia como dramaturgo em 1941, com a
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peça A mulher sem pecado até A serpente, seu último texto no gênero, escrito em 1978.
Nelson afirmou repetidas vezes que, antes de começar a escrever para o teatro, só tinha lido
a peça Maria Cachucha, de Joracy Camargo; gostava mesmo era de ler, e sobretudo reler,
romances, em especial Dostoievski e Machado de Assis. A motivação para a dramaturgia
teria sido puramente financeira, já que passava por dificuldades e via comédias de costumes
fazerem pequenas fortunas a seus autores.
Exceto pelas influências literárias, nada anunciava a inclinação de Nelson para o
trabalho com o diálogo, tampouco sua obsessão pela tragédia, mas logo na primeira peça o
autor já demonstra, ainda que de maneira contida, um potencial teatral “inato”. Em A
mulher sem pecado (1941), os diálogos são construídos sobre um alicerce de repetições, de
modo a ampliar a tensão que rege o drama; assim, Olegário não compreende o que Lídia,
sua esposa, diz, e vice-versa. A abundância de repetições não retarda o ritmo da peça, e sim
conflui para a apreensão de toda uma atmosfera de incompreensão e insanidade.
O que deveria ser uma lucrativa comédia de costumes vê-se transformada em
tragédia folhetinesca com reviravolta final. Da pretendida chanchada, “gênero que está para
a comédia assim como o melodrama está para o drama” (Lins, 1979, p. 52), Nelson
preservou o tom exagerado e a caracterização do protagonista, por exemplo, cuja morbidez
beira à caricatura. No mais, uma tragédia: Olegário forjara uma paralisia para testar a
fidelidade da esposa; quando decide revelar a farsa, seguro de não ser traído, descobre-se
abandonado por Lídia, que, exausta da desconfiança do marido, fugiu com o chofer. O
enfoque nos níveis da consciência assinalados nesta peça será aprofundado no texto
imediatamente posterior, a obra-prima do autor, Vestido de noiva (1943).
Sem ser modernista, Nelson Rodrigues modernizou o teatro brasileiro. O furor da
Semana de 22 já se havia amortecido quando Nelson escreveu Vestido de Noiva e pouco há
nesta peça das experimentações artísticas que marcaram os movimentos de vanguarda. Mas
o conjunto cênico servindo aos níveis de consciência da protagonista aliado a uma
linguagem popular, entrecortada pelas hesitações próprias da fala cotidiana, real, são os
principais fatores de originalidade e modernidade deste drama, que deixa a sala de visitas
típica das comédias de costumes para focalizar a trajetória de Alaíde pelo labirinto de sua
mente em decomposição e, exceto pelo plano da realidade, o espaço e o tempo em que se
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desenrola a história são subjetivos, dependentes exclusivamente do ponto de vista da
protagonista. Mesmo os demais personagens são construídos a partir de e por Alaíde.
A repercussão que esta peça alcançou não se compara à de nenhuma outra peça
brasileira, nem antes, nem depois. Unanimidade entre a crítica, Vestido de noiva foi um
verdadeiro marco na história da dramaturgia nacional, não pelo texto, que é brilhante,
mas também pela encenação em 1943, dirigida por Ziembinski e realizada pelo grupo
carioca “Os Comediantes”. Houve mesmo um burburinho sobre uma possível co-autoria do
diretor, boato desmentido por, entre outros, Décio de Almeida Prado, crítico teatral, em sua
obra Teatro brasileiro moderno. O fato é que, original e genialmente arquitetada, a peça
Vestido de noiva comprovou que Nelson Rodrigues era dramaturgo.
Após a incursão pelos níveis de consciência do ser humano, retomado ainda no
monólogo Valsa n. 6 (1951), Nelson se aventurou num passeio por arquétipos da mitologia
em peças que formaram o que chamou de “teatro desagradável”. Édipos e Electras se
multiplicam em textos como Álbum de família (1946), Anjo Negro (1947) e Senhora dos
Afogados (1947), e nesta fase de sua produção, o dramaturgo enfrenta as maiores
dificuldades, tanto em relação à crítica quanto à censura, que vetou a encenação de Álbum
de família por mais de vinte anos. Álvaro Lins, crítico literário dos mais respeitados na
época e ainda hoje, embora se manifestasse publicamente contra a censura, não poderia, no
entanto, oferecer apoio artístico ao autor, por considerar Álbum fora da literatura:
Sem estilo, sem técnica teatral, sem imaginação e sem poesia
dramática, eis que Álbum de família soçobra num mar de enganos,
equívocos, erros, atrapalhações e insuficiências. Sob o ponto de vista
artístico, é uma obra para ser esquecida, enquanto esperamos do Sr.
Nelson Rodrigues uma nova peça à altura do seu indiscutível talento
criador. (apud Magaldi, 1992, p. 12)
Em defesa de sua obra, Nelson partiu para o ataque contra os que criticaram suas
peças e, numa espécie de manifesto-desabafo, definiu como segue o “Teatro
Desagradável”:
Com Vestido de Noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes,
perdi-o, e para sempre. Não nesta observação nenhum amargor,
nenhuma dramaticidade. simplesmente o reconhecimento de um
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fato e sua aceitação. Pois a partir de Álbum de família drama que se
seguiu a Vestido de noiva enveredei por um caminho que pode me
levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este?
Respondo: de um teatro que se poderia chamar assim
“desagradável”. Numa palavra, estou fazendo um “teatro
desagradável”, “peças desagradáveis”. No gênero destas, inclui, desde
logo, Álbum de família, Anjo negro e a recente Senhora dos Afogados.
E por que “peças desagradáveis”? Segundo disse, porque são obras
pestilentas, fétidas, capazes de, por si s, produzir o tifo e a malária
na platéia. (apud Magaldi, 1992, p. 12)
A repercussão do “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, como apontado,
não foi das melhores. Um novo caminho deveria ser traçado, e foi um tipo de drama mais
ligado ao cotidiano, sobretudo da periferia carioca, que reconciliou o dramaturgo com
público e crítica. A peça A falecida (1953) marca esta nova fase em sua obra, retratando a
obsessão pela morte de uma mulher suburbana que sonha realizar seu desejo de ascensão ao
menos com um caixão de luxo, desejo frustrado pelo marido que se descobriu traído e se
vinga da mulher, dando-lhe o enterro mais vagabundo que a empresa funerária poderia
oferecer.
A temática da traição, sempre ligada à morte, é como uma constante na dramaturgia
de Nelson Rodrigues, mas a partir desta peça, o contexto em que o tema se desenvolve
torna-se mais palpável, identificável nas páginas policiais dos jornais da época. O autor
parece aproximar-se mais da realidade, da “vida como ela é”, sem a preocupação de
sondagens míticas ou psicológicas que alicerçavam suas peças anteriores. Com efeito, o
próprio Nelson designou A falecida como “tragédia carioca”, por tratar de uma realidade
bastante específica, a periferia do Rio de Janeiro, mas de conteúdo universal, a partir do
drama em que se vêem enredados os personagens.
Também são “tragédias cariocas”, segundo o autor, as peças Boca de Ouro (1959) e
O beijo no asfalto (1960). É interessante ressaltar que esta é a fase mais prolífica de Nelson
Rodrigues no teatro brasileiro. A repercussão dos contos publicados em jornais, que
dialogam em boa sintonia com a produção teatral do autor, confluem para a formação de
uma atmosfera positiva e de melhores resultados para Nelson.
Efetivamente, o dramaturgo fazia bastante sucesso entre as décadas de 50 e 60 com
os folhetins O Homem proibido (1951), sob o pseudônimo Suzana Flag, e Asfalto selvagem
(1959-60), assinado por Nelson Rodrigues, e os contos da coluna A vida como ela é...,
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publicados diariamente no jornal Última Hora de 1951 a 1961, posteriormente reunidos em
livro. A proximidade estabelecida entre literatura e vida parecia atrair os leitores, seduzidos
pelo realismo combinado com as cores e formas expressionistas, num paradoxo irônico em
relação ao título que tais contos levavam.
Também são dessa fase as peças Perdoa-me por me traíres (1957), Os sete gatinhos
(1958), Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962) e Toda nudez será
castigada (1965), para citar alguns dos textos a que se pode estender a classificação
“tragédia carioca”, tal como fez o crítico Sábato Magaldi, organizador do Teatro Completo
de Nelson Rodrigues (1981).
Escritas após um intervalo de oito anos longe da dramaturgia, as últimas peças do
dramaturgo não demonstram o mesmo vigor artístico que o consagrou, mas também
merecem atenção por motivos diversos: Anti-Nelson Rodrigues (1973), peça psicológica na
classificação de Sábato Magaldi, anuncia o desejo do autor de fazer uma autobiografia
teatral; A Serpente (1978), texto curto e de fôlego, sintetiza as maiores obsessões de Nelson
numa peça em ato único.
Com o curioso título Anti-Nelson Rodrigues, a peça que seria o esboço de uma
autobiografia teatral planejada pelo dramaturgo é mais do que isso; pode-se mesmo afirmar
que Nelson realiza sim, ainda que de maneira contida, seu projeto. Não se trata de
autobiografia no sentido estrito do termo, definido por Philippe Lejeune: “relato
retrospectivo que uma pessoa faz de sua própria vida”; no entanto, este texto revela
algumas convicções do autor ocultas nas peças que escrevera até então. Idéias a respeito de
amor, família, trabalho — relações, de maneira geral — se inserem no texto e ajudam a ver,
por trás dos rótulos, quem foi Nelson Rodrigues.
Quanto à peça A serpente, temos a dramaturgia rodrigueana resumida, num texto
rápido e conciso, com poucos personagens e uma trama simples: a disputa de duas irmãs
pelo mesmo homem. O tema, coadjuvante recorrente na obra de Nelson, ganha aqui o papel
principal, representando parte da família, instituição falida na concepção demonstrada em
outros textos do autor. Também aparecem nesta peça outras obsessões do dramaturgo, tais
que morbidez, sexo, morte, traição. Última obra para o palco, A serpente traz de volta
Nelson Rodrigues, um tanto cansado, mas com as mesmas características que o tornaram
um respeitado escritor brasileiro.
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Panorama do Teatro de Nelson Rodrigues sob a Ótica da Incomunicabilidade
A mulher sem pecado (1941)
OLEGÁRIO Mas eu quero te dizer ainda uma coisa. E vou dizer.
(num transporte) Sabes o que eu acharia bonito, lindo, num
casamento? Sabes? Que o marido e a mulher, ambos, se conservassem
castos castos um para o outro sempre, de dia e de noite.
imaginaste? Sob o mesmo teto, no mesmo leito, lado a lado, sem uma
carícia? Conhecer o amor, mesmo do próprio marido, é uma maldição.
E aquela que tem a experiência do amor devia ser arrastada pelos
cabelos... (Rodrigues, 1981a, p. 71)
Primeira peça de Nelson Rodrigues, A mulher sem pecado apresenta algumas
características de seu autor que mais tarde revelar-se-iam as da própria dramaturgia
moderna. No entanto, sua repercussão foi pequena, mesmo junto à crítica que, somente
após Vestido de Noiva, peça seguinte à Mulher, dedicou a esta maior atenção.
Uma primeira impressão do texto é capaz de sugerir a incomunicabilidade
presente, uma vez que a desconfiança do personagem principal revela a falta de
entendimento entre ele e sua mulher, como veremos a seguir.
A história da peça é simples: Olegário, paralítico, desconfia de que a esposa Lídia o
trai e a idéia acaba por tornar-se um pensamento obsessivo. Atormentada pelo ciúme do
marido, Lídia se mantém fiel quase até o final quando, ao revelar que a paralisia não
passava de uma farsa, um estratagema para testar a fidelidade da esposa, Olegário descobre
que Lídia fugira com Umberto, o motorista.
A peça reúne as estratégias tradicionais do folhetim: “a pista falsa, o suspense, a
surpresa final” (Magaldi, 1981, p. 10). Um homem coxo é mencionado por Umberto, e isso
nada tem a ver com a história, a não ser na medida em que despista as suspeitas do leitor; o
suspense cresce proporcionalmente à tensão, a cada intervalo entre-atos; a revelação de que
a paralisia não passava de uma farsa, feita no último ato, é surpresa também para o
leitor/espectador.
Como apontado por Fraga (1998), a peça “obedece até mesmo às rigorosas unidades
aristotélicas (...): desenrola-se em cenário único (um espaço cênico mais ou menos neutro,
60
com fundo de cortinas cinzentas), sua duração não excede um dia e a ão, claro, é una.”
Toda a ação se desenrola no mesmo espaço, a casa onde moram as personagens, e gira em
redor do mesmo ponto, a desconfiança de Olegário.
Vê-se, portanto, o quanto é linear esse primeiro texto dramático de Nelson
Rodrigues, ainda preso a convenções e seguindo um esquema do gênero. A modernidade de
seu teatro aparecerá de maneira mais contundente no texto seguinte, mas não se pode
ignorar aqui os indícios que já apontam para o caminho que o autor deverá seguir.
Logo nos primeiros diálogos, é possível constatar o ciúme obsessivo de Olegário e o
nível de relações entre ele e os demais personagens. Trata-se, portanto, da história de
Olegário e seu trágico desfecho, por mais que o título indique outra direção. A julgar pelo
título, A mulher sem pecado parece contar a história de Lídia, mas o que se pode ler/ver na
peça é o drama do marido, Olegário, que conduz a mulher ao adultério. Mais do que a
representação de um casal ou de uma família, ou ainda de uma situação, como era hábito
nas comédias de costumes, o texto inaugural de Nelson Rodrigues trata do limite na vida de
um homem.
Listada entre as peças psicológicas, na classificação do crítico Sábato Magaldi, a
peça apresenta os dois tipos de incomunicabilidade aos quais nos referimos anteriormente.
De um lado, a incomunicabilidade que se pode explicar pela psicologia, presente na relação
de Olegário consigo, com as lembranças do passado e com sua imaginação. Mas ainda
as dificuldades de entendimento entre ele e Lídia, marcadas sobretudo por repetições,
também uma marca no estilo do autor.
Em relação à incomunicabilidade psicológica, recorremos a Magaldi (1981), que
aponta algumas características do estilo de Nelson, aplicadas sobretudo à personalidade de
Olegário. “Em primeiro lugar, o procedimento obsessivo, paroxístico do protagonista”,
referindo-se às contradições do marido que paga para saber que a mulher o trai e deseja não
ser traído. De fato, não parece haver sentido na relação entre o que o personagem faz e o
que pensa; Lídia, em determinado momento, diz para Olegário: “Você me obriga a pensar
em homens, até em meninos de quatorze, quinze anos!”.
O fato é que Olegário “está na iminência de perder totalmente a noção de realidade,
prestes a rasgar a fronteira que o desligará em definitivo do mundo.” (Magaldi, 1981, p.
10). E o protagonista tem alguma consciência disso. Quando ouve sua “voz interior” pelo
61
microfone; quando a menina, “figura que só existe na imaginação doentia do paralítico”
(grifo nosso), segundo a rubrica; ou ainda nos momentos em que conversa com uma
“mulher vestida de grená”, sua primeira esposa, falecida; nesses momentos Olegário se
pergunta se está louco e busca reafirmar sua sanidade.
Perdido entre os níveis de consciência tal como acontecerá com Alaíde em
Vestido de Noiva —, Olegário não é capaz de perceber o quão contraditório é seu modo de
agir, pois enquanto sua voz interior o chama de “canalha” por desconfiar da esposa, no
presente da ão e em estado consciente, ele a humilha e oprime. Nasce de sua
incomunicabilidade pessoal a crise que acabará com seu casamento e o levará ao suicídio,
como indica o final da peça.
A incomunicabilidade entre Olegário e Lídia é, portanto, resultado da mente doentia
do protagonista. Para Magaldi, “Olegário e Lídia se perdem por incapacidade de
comunicar-se” (p. 74). Ignorando a paralisia psicológica do marido, Lídia não compreende
o comportamento agressivo de Olegário, e sua revolta cresce ao ponto limite de abandonar
a casa e fugir com Umberto. Não parece, contudo, que tenha se apaixonado, mas a questão
era libertar-se da prisão em que Olegário a havia posto e o motorista foi o primeiro e mais
ousado meio de concretizar a fuga.
É interessante observar como a incomunicabilidade entre o casal cresce, juntamente
com a tensão. A incidência de diálogos repetitivos pode ser notada principalmente no
primeiro e no segundo atos, sendo o procedimento abandonado no último, quando
desaparecem maiores tentativas de comunicação entre Olegário e Lídia, bastante
distantes um do outro. No lugar dos diálogos, surgem o monólogo-desabafo da esposa e a
revelação da farsa de Olegário, que, ironicamente, busca a comunicabilidade quando esta
não é mais possível.
O primeiro diálogo do casal na peça é todo marcado por repetições. Se Olegário diz
algo com o que Lídia não concorda, a mesma frase é retomada, ora em tom irônico, ora
agressivo. O mesmo ocorre com as palavras proferidas pela mulher, repetidas pelo marido a
fim de desvendar segundas intenções. Não se trata propriamente de incompreensão dos
sentidos que as palavras têm, mas do tom que cada personagem confere a elas. Aqui, as
discordâncias estão mais ligadas a valores, de modo que o que é verdade para um, o é
para o outro.
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LÍDIA — Mas que foi que eu fiz, meu Deus? Aponte uma coisa
qualquer, ao menos isso. (enérgica) Você não tem nada, nada, contra
mim. Você não vê que isso até fica feio para você — feio?
OLEGÁRIO (irritado) — ‘Feio’! O que é que é ‘feio’? Como é
imbecil a gente dizer ‘fica feio’! (Rodrigues, 1981a, p. 55)
Olegário aproveita as palavras de Lídia para iniciar o assunto que lhe interessa: a
traição. Assim, quando a esposa afirma “minha vida não tem mistérios”, o protagonista
retoma a afirmação para lançar suas suspeitas sobre o passado, a imaginação, o pensamento
da mulher, repetindo, não para Lídia, mas também para si mesmo, como uma máxima,
“minha vida o tem mistérios”. Entre maquinal e delirante, Olegário repete e transforma
as palavras, dando-lhes sentidos próprios de acordo com suas idéias. Quando Lídia
qualifica o procedimento do marido como ‘infame’, o personagem responde que infame ‘é
um adjetivo, um reles adjetivo’. As palavras só significam na medida em que fazem sentido
dentro do que Olegário pensa ou sente.
‘Infame’ não tem significado para Olegário; em compensação, ‘V-8’, cujo sentido é
obscuro, foi o “adjetivo” que encontrou para melhor ofender a esposa. Em Fraga (1998),
encontramos que “Vê-oito era modelo de calça, cuja cava muito acentuada ia quase até a
cintura e que se tornava evidente se a mulher usasse vestido justo ou de tecido muito fino.
Aliás, o tipo de peça íntima que as mulheres atualmente usam, sem maiores problemas”. De
maneira cruel e insistente, Olegário acusa sua mulher de ser V-8 e isso parece deixá-lo, ao
mesmo tempo, em estado de angústia e êxtase.
No início do segundo ato, a continuação do diálogo mostra uma Lídia mais áspera, e
a fala de Olegário explica a mudança no relacionamento do casal até aquele momento. De
acordo com a indicação, Olegário, “sombrio”, diz para sua mulher: “Você nunca falou
tanto.” Antes da falsa paralisia, era Olegário o homem que falava só sobre negócios,
mandava na casa e em todos, machista cuja esposa deveria ser pura ou, em outras palavras,
“exemplar típico do velho machismo brasileiro, ele a tratava como ‘esposa’, para a qual
existe um limite, só ultrapassado com a amante” (Magaldi, 1981, p. 13).
Assim, a paralisia forjada por Olegário aumentou a distância entre ele e a mulher,
revelando a incomunicabilidade que já existia antes do falso acidente, mas que ficava
escondida sob a máscara da família tradicional patriarcal. Deste modo, Lídia cuidava da
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sogra, exercendo o papel de nora que lhe fora imposto por Olegário e pela sociedade de
uma época. Quando, no terceiro ato, ela desabafa, é para D. Aninha que o faz, numa espécie
de delírio, ou confissão; diz desejar a morte do marido, conta que Umberto a beijou e “[me]
disse um nome, uma palavra que [me] arrepiou”. No final, dá-se conta de que “[minhas]
palavras estão loucas, [minhas] palavras enlouqueceram” e pede perdão. Ao fugir, Lídia
busca libertar-se da loucura de seu marido, como algo que a estivesse contagiando também.
Diante do monólogo de Lídia, a mãe de Olegário, D. Aninha, continua enrolando
seu paninho. Aliás, está assim desde o início da peça. Descrita como “doida pacífica” na
rubrica inicial, D. Aninha é uma personagem emblemática do silêncio, e de como o silêncio
pode funcionar no texto dramático. Isolada em seu mundo, a personagem é o contraponto
da ão, em seu mutismo e inércia, enquanto o drama se intensifica. Ela exemplifica “o
absurdo da existência”, segundo Magaldi (p. 28); enrolando seu paninho continuamente,
não deixa, contudo, de viver.
Vestido de noiva (1943)
ALAÍDE (evocativa) — Você foi apunhalada por um colegial.
CLESSI (admirada) Quer dizer que Lúcia e a mulher de véu são a
mesma pessoa!
ALAÍDE (sempre evocativa) — ... um menino de 17 anos matou você.
(abstrata) 27 de novembro de 1905. Até a data eu guardei!
CLESSI (doce) — Irmãs se odiando tanto! Engraçado – eu acho bonito
duas irmãs amando o mesmo homem! Não sei – mas acho!...
ALAÍDE — Você acha?
CLESSI (a sério) — Acho. (Rodrigues, 1981a, p. 146)
Considerada o marco do moderno teatro brasileiro, a peça Vestido de noiva foi
também a entrada definitiva de Nelson Rodrigues para a dramaturgia, tendo sido aclamada
pelos principais críticos literários e teatrais da época. O palco serve aos níveis de
consciência da mente em decomposição da protagonista e três planos são criados:
alucinação, memória e realidade. a principal inovação do texto que, aliado à montagem
feita pelo grupo Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, aproximou enfim a cena
teatral brasileira da modernidade experimentada na literatura e em outras artes desde a
Semana de 22.
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Após acidente, a personagem central do drama, Alaíde, se encontra em um centro
cirúrgico, situado no plano da realidade. Sua mente, entretanto, vagueia entre as lembranças
do passado recente, época de seu casamento, e as memórias lidas no diário de Clessi, uma
mulher do mundo que ganha vida na imaginação de Alaíde. A realidade, deste modo, tem a
função de situar o leitor/espectador, mas a ação se desenrola, de fato, nos planos da
memória e da alucinação.
Confusa, Alaíde não consegue lembrar-se com exatidão de seu passado: há uma
Mulher de véu, cuja identidade lhe é desconhecida; não sabe se matou ou não Pedro, seu
marido, nem os motivos para ter brigado com ele; existe o registro de uma certa Lúcia, mas
Alaíde não sabe de quem se trata. O passado da protagonista é para ela uma série de
interrogações, cujas respostas busca descobrir com a ajuda de Madame Clessi, personagem
criada pela própria Alaíde, como um alter-ego que lhe permite fantasiar uma vida
incompatível com os papéis de moça de família e, posteriormente, esposa, os quais
desempenhava antes do acidente.
Alaíde se divide entre duas influências poderosas, oscilando ora para
um lado, ora para o outro inclusive quando sofre suas crises mais
profundas. Um desses alicerces no qual se ampara e de onde retira a
sua concepção da vida e as noções de certo e do errado é a família,
representada predominante pela figura da mãe. (...) [Da ruptuta] em
diante, uma nova figura surgirá em cena, a da Madame Clessi (...)
(Lins, 1979, p. 66)
Assim como aponta o crítico, a partir do acidente a protagonista terá não mais
apenas um padrão de comportamento a seguir, mas dois. O primeiro, exclusivo até então,
era representado pelos valores familiares, condicionaram Alaíde a reprimir seus desejos,
suas paixões mais violentas. Libertada do puramente consciente, a personagem transita por
outras dimensões de sua mente, onde encontra em Madame Clessi um novo modelo de
plena afirmação individual em tudo o que se refere ao prazer e à vaidade.
No plano da alucinação, o cenário é sugerido como uma espécie de cabaré, um
ambiente de música, dança, cores fortes, que em nada combina com a aparente sobriedade
da personagem principal. As mulheres estão “escandalosamente pintadas”, enquanto Alaíde
aparece em cena usando um “vestido cinzento e uma bolsa vermelha”. Existe ainda um
intervalo temporal que a separa do ambiente, uma vez que Madame Clessi, a mulher que
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procura no lugar representado pelo cabaré, morreu em 1905, e o presente da ação na peça –
o plano da realidade – está situado no presente da escritura.
Sem poder recorrer às suas próprias memórias para reconstruir o drama que envolve
o casamento e o acidente, Alaíde o faz por meio do inconsciente, entrelaçando seu drama
com o da cocote. Dessa fusão entre os níveis de consciência que determina o desenrolar de
histórias paralelas surgem diálogos que apontam para um tipo de incomunicabilidade, mais
ligada à psicologia da personagem e à fragmentação de sua consciência.
Enquanto Clessi busca relembrar o romance que viveu com um adolescente, por
quem foi assassinada, Alaíde descobre aos poucos que Lúcia, sua irmã, é a Mulher de véu,
cunhada e amante de Pedro; no início do terceiro ato, Alaíde concede ao apaixonado de
Clessi o rosto do marido. Embora as histórias sejam paralelas, “os diálogos e as situações
de Vestido de noiva resumem-se, quase sempre, à projeção exterior da mente descomposta
de Alaíde, dividida entre o delírio e o esforço ordenador da memória” (Magaldi, 1981, p.
16).
A incomunicabilidade psicológica de Alaíde, ligada à fragmentação dos níveis de
sua consciência, tem raízes no que deve ter sido o passado da personagem, mais
precisamente em seu relacionamento com o marido. O plano da memória apresenta os
contornos dessa relação e tem-se, daí, a impressão de um casamento de aparências, sem real
envolvimento das partes. Tanto é assim que, apaixonado por Lúcia, sua cunhada, Pedro, tão
logo fica viúvo, casa-se com ela. Segundo Lins (1979, p. 64), “que Alaíde vive com o
marido numa harmonia falsa, é algo que sentimos desde o início e que (...) a força de suas
obsessões envolvendo Madame Clessi bastaria para revelar e salientar”.
Ao projetar seus desejos reprimidos na figura da cortesã, Alaíde parece lutar por sua
realização pessoal, não alcançada no casamento. Nos últimos momentos de vida, a
personagem desvenda, inconsciente, a briga particular, interiorizada entre seus próprios
instintos e razão; “seus conflitos envolvem basicamente: amor (sexo) e repressão social,
autoconservação e autodestruição.” Ainda de acordo com Fraga (1998, p. 67-68), a morte
é vista como forma suprema de evasão do eu social, este sim que a enoja.”
Os desencontros de Alaíde com o marido e a irsão facilitados pelas máscaras
usadas, como a restringir as relações apenas ao que é aparente. Assim, Pedro é marido;
Lúcia, tão somente irmã; Lúcia e Pedro, cunhados. Além dos rótulos familiares, no entanto,
66
a verdadeira dimensão dos sentimentos envolvidos os aproxima ou distancia, de modo que,
desfeita a incomunicabilidade na morte, podem os personagens assumir a face individual de
suas obsessões.
Álbum de família (1946)
D. SENHORINHA (serena) — Não vivo mais com você, Jonas!”
JONAS — Nunca mais poderei desejar mulher nenhuma!
D. SENHORINHA (áspera) — Você quer me ouvir ou não?
JONAS (sem dar atenção a nada) Desde que Glória começou a
crescer, deu-se uma coisa interessante: quando eu beijava uma mulher,
fechava os olhos, via o rosto dela!
D. SENHORINHA (agressiva) — Jonas!
JONAS (despertando) — Que foi?
D. SENHORINHA (seca) — Vou deixar você. (Rodrigues, 1981b, p. 115)
Álbum de família, listada entre as peças míticas de Nelson Rodrigues, marca seu
rompimento com a até então elogiosa crítica. Além disso, é o início de sua dura relação
com a censura, que vetou a peça por mais de vinte anos. A peça inaugura o que o próprio
autor chamou de “Teatro desagradável”, defendido em artigo-manifesto do qual
transcrevemos um trecho anteriormente. Nelson acreditava no poder de catarse de seu
teatro ao colocar em cena “monstruosidades” que atacavam os valores morais.
Carregado com a aura de maldito, o texto apresenta uma série de relações doentias
dentro de uma mesma família. O incesto, aqui, não é raro; o pai, Jonas, ama e é
correspondido pela filha Glória, que também é objeto do amor de seu irmão Guilherme. Os
outros irmãos, Edmundo e Nonô, são apaixonados pela mãe, D. Senhorinha, que retribui o
amor dos filhos. Há ainda Tia Rute, irmã de Senhorinha, apaixonada pelo cunhado.
Contando a história dessa família, encontra-se a figura do speaker, cujos
comentários são classificados na rubrica inicial como sendo de um “mau gosto hediondo,
(...) prima por oferecer informações erradas sobre a família”, ao que o autor acrescenta: O
speaker é uma espécie de Opinião Pública.” Esse “narrador” oferece sua visão sobre as
aparências do que seria uma família tradicional, sem adentrar o universo particular
representado pelas personagens e, ao mesmo tempo, indica a concepção do autor a respeito
da opinião pública, considerando-a de mau gosto e equivocada.
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A história se passa no início do século, entre 1900 e 1924, na fazenda da família em
Minas Gerais, lugar afastado que isola as personagens e reduz seu contato com o mundo,
“universo fechado, asfixiante” (Fraga, 1998, p. 71), o que faz as relações amorosas
brotarem dentro do núcleo familiar. Tempo e espaço colaboram para o efeito de contraste
entre a família particular e o que era a sociedade e seu conceito de moral, que Minas é
um estado conhecido por manter as tradições e o início do século XX, vivido numa fazenda
em Minas, ainda estava distante da modernidade. Existe, sim, um padrão de moral e valores
conhecido pelas personagens que as faz omitir seus sentimentos, até determinado momento,
conscientes de que são perversões, mas a peça principia com a ruptura no comportamento
das personagens, fazendo ruir padrão, aparência e, por fim, a própria família.
Quando chega ao seu limite, cada personagem a seu modo acaba por revelar o
desejo escondido para, em seguida, romper com o mundo. Sábato Magaldi, que colocou
Álbum entre as peças míticas do autor, expõe assim questão:
Como em Vestido de Noiva e várias outras obras, a realidade tem um
papel meramente situativo, importando o desnudamento do universo
interior. Na vida social, todos se amoldam a uma máscara, que revela e
ao mesmo tempo esconde a verdadeira personalidade. Desinteressado
de manter qualquer tipo de disfarce, Nelson propôs, em Álbum de
família, um exercício de autenticidade absoluta. As personagens
decidiram abolir a censura engodo da convivência que lhes permite
o convívio —, para vomitar a sua natureza profunda, avessa a
quaisquer padrões. (Magaldi, 1981, p. 15)
Nonô enlouqueceu; Glória é assassinada por Guilherme, que se mata; Edmundo
também se suicida; D. Senhorinha mata Jonas e foge para viver junto com Nonô. Todas as
possibilidades indicam o trágico, sem esperanças de realização. A convivência era possível
sob a máscara da família, realçada pelas fotografias que compõem o álbum e pelos
comentários do speaker, mas isso antes da ruptura que a volta de Glória para casa ocasiona.
Estando todos presentes no ambiente reduzido, os desejos ressurgem e ganham força, até o
momento de confessá-los e, uma vez expressos, é preciso, de alguma forma, fugir.
Tanto o suicídio quanto o assassinato representam na obra modos de fuga das
personagens. Assim também a loucura, caminho seguido por Nonô, a quem a mãe deve
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juntar-se. Interessante notar que “esse é o único incesto envolvendo pais e filhos
consangüíneos que se concretiza na dramaturgia rodriguiana” (Facina, 2004, p. 124). O
pessimismo do autor, que se mostra nos desfechos das personagens, pode ser percebido
igualmente na fala em latim do coro que encerra o texto. Para Fraga (1998), ali “revela-se a
falácia da religião. Pior ainda: existe o mundo divino e o mundo humano. A tentativa de
comunicação entre eles situa-se num plano de fórmulas destituídas de qualquer substância
espiritual.”
Pilares da sociedade, a família e a religião são apresentadas em Álbum de Família
como instituições falidas, universos de máscaras que servem apenas para camuflar os
instintos. Entretanto, para Nelson, “o homem só começa a ser homem depois dos instintos e
contra os instintos”, máxima que faz lembrar Schopenhauer e a negação da vontade. Teatro
Desagradável, reconheceu Nelson Rodrigues, mas um mal necessário.
Anjo negro (1947)
VIRGÍNIA (mecânica) — Respondi: ‘Eu queria estar num lugar assim,
mas viva. Um lugar em que ninguém entrasse. Para esconder minha
vergonha’.
ISMAEL Era isso que eu queria, também. E quero esse lugar, essa
vida. Por isso criei todos esses muros, para que ninguém entrasse.
Muros de pedra e altos.
VIRGÍNIA (com espanto, virando-se para o marido) — O mundo
reduzido a mim e a você, e um filho no meio um filho que sempre
morre.
ISMAEL — Sempre. (Rodrigues, 1981b, p. 133)
Anjo negro é, talvez, a peça mais triste de Nelson Rodrigues. Na época da
montagem, houve uma discussão a propósito do texto, entre os que condenavam Nelson por
racismo e os que o defendiam (Facina, 2004, p. 112), mas a questão racial é tangencial, e
não o ponto central. Trata-se nesta obra da solidão mais profunda do homem que não pode
contar nem consigo, que não se aceita, nem com os outros, os quais repele mesmo nas
tentativas de aproximação.
Ismael forçou Virgínia a casar-se com ele, ajudado pela tia da moça que desejava
vingança. Assim, o negro possui a branca, tendo com ela filhos negros que sempre morrem,
assassinados pela mãe que não quer filho negro. Virgínia aproveita a furtiva entrada de
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Elias, seu cunhado, cego e branco, e dele tem uma filha. Ana Maria é branca, como o pai,
mas este fora morto por Ismael, que assume a menina, mas não deseja que ela saiba que ele
é negro e cega a filha ainda criança. Disputando o amor de Ismael com a mãe, Ana Maria
acaba traída pelo pai que, com o incentivo de Virgínia, encerra a filha num túmulo de vidro
e vai recomeçar no círculo vicioso, mais um filho negro que morrerá.
Como é possível observar no resumo da história, existe evidentemente a forte
questão racial, pois Virgínia encarna o preconceito frente a Ismael e aos filhos que teve
com ele; mas Ismael é ainda mais contundente na discriminação contra sua raça e cor.
Deseja que a mulher esqueça que os outros homens são brancos; a filha deve imaginar que
ele é branco e que todos os outros homens são negros. Enfim, Ismael quer esquecer sua
identidade e construir uma nova, de homem branco e respeitável, ex-médico que abdica da
profissão para viver na fortaleza que construiu para ele e a esposa.
O drama se desenrola num espaço que potencializa a solidão das personagens, pois
não se trata de uma casa convencional, e sim de uma construção sem teto, “para que a noite
possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que
aumenta a solidão do negro” (p. 125), conforme indica a primeira rubrica. Assim como o
espaço não é real, mas simbólico, o tempo também acompanha o drama das personagens,
não cronológico, mas pessoal, de modo que, no final da peça, “não há dia para Ismael e sua
família. Pesa sobre a casa uma noite incessante. Parece uma maldição.” (p. 169)
As indicações de cena tendem a ser objetivas em teatro, uma vez que sua função é
orientar o diretor/ator no momento da montagem do espetáculo. Em Anjo negro, as rubricas
aparecem como a voz do narrador, que comenta a solidão de Ismael, sua crueldade, o
isolamento de Virgínia, e fogem, portanto, à objetividade característica desse tipo de
indicação. A poeticidade presente nos diálogos se estende às rubricas, destinadas ao leitor,
mais do que ao espectador desta obra.
Nas peças anteriores, chamava a atenção a linguagem enxuta, direta de Nelson
Rodrigues, que transpôs para o palco a fala cotidiana, com suas hesitações e repetições, e o
talento para esse diálogo objetivo foi bastante elogiado, sobretudo por ser inovador no
teatro brasileiro. Quanto às peças míticas, ou “Teatro desagradável”, a linguagem muda,
talvez por aqui se tratar de arquétipos, mitos da humanidade e merecessem tom mais solene
e poético.
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Fato é que a linguagem é mais um elemento que isola as personagens, além das
dualidade branco/negro, ódio/amor. Separados do mundo pelas paredes da casa, Ismael e
Virgínia também estão separados um do outro no sentimento não correspondido, na
distinção de raça, na solidão individual. Assim, “é impossível estabelecer-se qualquer
diálogo entre as duas personagens: monologam apenas” (Fraga, 1998, p. 98).
Se não sociedade para ver as aparências, não porquê mantê-las; Ismael e
Virgínia poderiam tirar a máscara, mas não o fazem porque falta auto-aceitação. A imagem
criada por Ismael serve antes para ele mesmo, que deseja outra identidade; Virgínia afirma
ter vergonha e prefere continuar em sua prisão, imposta e aceita, a enfrentar a sociedade.
Quanto a Ana Maria, teve seu destino mutilado por Ismael e aceitava, portanto, o mundo de
aparências que não podia ver.
Peça considerada “hermética” por Sábato Magaldi, Anjo negro não permite
conclusões simplistas como racista/não-racista, condenação/absolvição das personagens.
Antagonistas, Ismael e Virgínia se complementam, ainda que sua relação se construa sobre
uma base de desentendimentos e negação, tanto da individualidade que os separa quanto do
sentimento que une o casal em seu eterno retorno.
Senhora dos afogados (1947)
MISAEL (com ar de louco) Quero paz... Quero que minha carne
fique tranqüila... E eu que pensei que nossa família fosse casta...
MOEMA — E é, pai.
MISAEL Se eu não sou, por que seriam meus antepassados?... Se
tua mãe foi infiel, as outras mulheres da família, também...
MOEMA (triunfante) — Mas minha mãe era uma estrangeira... (cruel)
Não tinha o rosto duro das Drummond...
MISAEL (maravilhado) — Não tinha... (Rodrigues, 1981b, p. 301).
Fechando a tríade chamada pelo próprio autor de “teatro desagradável”, Senhora
dos afogados encerra também o período de plena incomunicabilidade do dramaturgo com a
platéia. Haverá, depois desta peça, pontos ora mais altos, ora mais baixos na recepção de
suas obras, mas não tão baixos quanto se configura o repúdio de crítica e blico em
relação a estas que, classificadas por Sábato Magaldi como peças míticas, quase deram por
encerrada a carreira de Nelson Rodrigues.
71
Retoma-se aqui, em essência, a temática da antecessora Álbum de família. A história
gira em torno das estreitas relações entre Misael e sua esposa, D. Eduarda, mais os filhos do
casal, Paulo e Moema e o Noivo desta. O espaço, como em Álbum..., está delimitado à casa
da família, ambiente claustrofóbico onde se passa quase a totalidade da ação (Fraga, 1998,
p. 123), sendo que apenas o ajuste de contas final acontece fora dali.
Também os sentimentos incestuosos estão aqui presentes: Moema e o pai; Paulo e a
mãe. Adiante sabe-se que o Noivo é filho bastardo de Misael, e configuram-se novas
formas de incesto: Noivo e a irmã Moema; Noivo e D. Eduarda; Noivo e a própria mãe. E a
tragédia que marca a primeira peça deste ciclo torna a aparecer, matando em Senhora dos
afogados todos os personagens, exceto Moema. Tomados por intensos sentimentos de
paixão e ódio, os membros da família carregam o peso de seus pecados, passíveis de
purificação apenas na morte.
A paixão que Moema sente pelo pai a faz odiar as outras mulheres da família, de
modo que mata as irmãs e a mãe por ciúme de Misael; deseja ser “a única mulher desta
casa”. Para livrar-se da mãe, conta com a intenção comum do Noivo que, após seduzir D.
Eduarda, e, assim, vingar-se do pai, assassino de sua mãe, pode enfim morrer. Quem o mata
é Paulo, por ciúme da mãe, mas à morte do Noivo segue-se a morte de D. Eduarda, cujas
mãos foram decepadas pelo marido. Arrependido, sentido pairar sobre si o ódio da mãe por
matar o objeto de seu amor, Paulo lança-se ao mar para o suicídio. Enfim sozinha com o
pai, Moema está em êxtase, mas sua felicidade se esvai juntamente com sua imagem.
Restaram-lhe o corpo morto do pai e o seu próprio, mas sua imagem se perdeu, bem como a
vida de Misael. Moema não morre mas, no final, é condenada a viver sozinha com suas
mãos, tão parecidas com as de sua mãe, uma maldição que parece eterna.
Sobre as violentas paixões de Moema e seu desfecho trágico, Fraga (1998) afirma o
seguinte:
Destruindo Eduarda, ela se perde de si mesma, porque era seu próprio
outro. Na verdade, Moema não existia com características
psicológicas, humanas, construíra-se apenas a partir de dois instintos
básicos: amor (pelo pai) e ódio (pela mãe). Desaparecendo uma parte
de seu ser, perde a essencialidade, torna-se nada. (Fraga, 1998, p. 123-
124)
72
Os sofrimentos desta tragédia que não poupa nenhum personagem têm sua origem
além das relações e da convivência cotidianas; trata-se de representação do mito de Electra,
e suas raízes, portanto, encontram-se em dimensões arquetípicas que formam o
inconsciente coletivo, fora dos parâmetros da realidade. Daí a força dos instintos mais
selvagens do ser humano suplantar qualquer possibilidade consciente de reflexão. Na peça,
uma correnteza que precipitará toda a família em queda livre rumo à tragédia; mesmo
conhecendo instintivamente o destino a eles reservado, entre os personagens não se mostra
nenhum esforço em sentido contrário, talvez por julgarem-no inútil, ou simplesmente por
aceitarem as implicações da vida.
Ainda que encerrado o ciclo mítico, Nelson voltará aos temas então abordados, mas
transferindo sua apreensão para o âmbito próximo do cotidiano, sobretudo carioca. Outras
obsessões arquetípicas surgirão, mas sob o véu da normalidade, em personagens
reconhecíveis e com linguagem coloquial, distante dos lapsos poéticos presentes no teatro
desagradável. Temas tais que o incesto e a purificação pela morte, presentes nas peças
míticas, tornam a aparecer posteriormente, como em Perdoa-me por me traíres, porque,
ainda que explorados amplamente, não foram esgotados e ajudam a dimensionar a “face
hedionda” do ser humano, matéria-prima da dramaturgia de Nelson Rodrigues.
Dorotéia (1949)
DOROTÉIA (ofegante) Então eu pensei na minha família... Em
vós... Jurei que havia de ser uma senhora de bom conceito... E aqui
estou...
(As viúvas unem-se em grupo. Estão na defensiva contra a intrusa.)
D. FLÁVIA Esta casa não te interessa... Aqui não entra homem
vinte anos...
DOROTÉIA Sempre sonhei com um lugar assim... Quantas vezes
em meu quarto...
D. FLÁVIA (num crescendo) falas em quarto! Em sala nunca!
(aproxima-se de Dorotéia que recua) Aqui não temos quartos!
(Rodrigues, 1981b, p. 206)
Nelson Rodrigues classificou a peça Dorotéia como “farsa irresponsável em três
atos”; terminada a leitura/encenação da obra, no entanto, ela não parece tão “farsa”,
tampouco “irresponsável”. Existem elementos, é verdade, que poderiam vinculá-la a um
73
estilo surrealista, mesmo “premonitória” do Absurdo de Ionesco, como nota Décio de
Almeida Prado, em tom de reprovação:
A dramaturgia do absurdo, ao criar no palco um espaço com leis
próprias, diferentes das nossas, justificava em retrospecção os piores
excessos imaginativos cometidos por Nelson Rodrigues, nessa e
noutras peças. (Prado, 1988, p. 109).
O texto se vale de símbolos e irrealidades, rompe com a verossimilhança, transita
entre o fantástico e o fantasmagórico, mas o objetivo parece ser mais do que a ruptura em si
mesma. Esta seria apenas o meio empregado a fim de denunciar conteúdo trágico, e não
farsesco, a saber, o aniquilamento do indivíduo pelas mãos da sociedade, ou, como exposto
por Fraga (1998, p. 131), “a fragmentação dos seres divididos entre o apelo sexual, o
instinto em sua força primitiva e as convenções de todo tipo, que impossibilitam sua
realização”. A partir da compreensão dos símbolos cujos significados encontram-se
expostos no texto sem grande sutileza, logo acessíveis ao leitor/espectador pode-se ler a
peça além do aparente hermetismo da forma, para descobrir, enfim, o drama de figuras
humanas, com características que as aproximam da realidade.
Dorotéia, personagem-título do drama, é uma prostituta que busca regenerar-se de
sua vida desregrada, recorrendo, para tal, à instituição familiar, representada aqui pelas tias
Flávia, Maura e Carmelita, todas viúvas, além da prima Das Dores, filha de Flávia. A figura
masculina, expulsa da vida dessas mulheres, também inexiste na peça ou, por outra, o
noivo de Das Dores, simbolizado por um par de botinas.
Evidente, a ausência do masculino não se por acaso; trata-se, antes, da náusea,
experimentada por todas as mulheres da família na noite de núpcias, uma maldição que as
impede de ver os homens, exceto por Dorotéia que, não tendo o defeito de visão desde
pequena, viu aflorar em si o desejo sexual. Diferente das que a cercavam, a personagem
decidira fugir e assim começava sua vida libertina; a morte do filho, contudo, germinou
nela o desejo de redimir-se, a partir do ódio pela vida que levava, e a fez retornar ao
ambiente familiar.
Longe de traduzir apoio e aconchego, a família representa aqui a voz da sociedade,
em seu viés de preconceito e intolerância. Para as tias, viúvas e de bom conceito, Dorotéia é
o pecado, a degradação à qual elas nunca chegaram, não porque simplesmente não
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quisessem, mas pelo castigo que trazem consigo. Em vigília anos para nunca sonhar,
pois “sabem que, no sonho, rompem volúpias secretas e abomináveis”, segundo a primeira
rubrica do texto (p. 197), Flávia e as irmãs sabem também que a presença da prostituta em
sua casa põe em risco o esmerado pudor em que se conservam.
É assim que, no segundo ato, a presença de Dorotéia, combinada ao par de botinas
que deverá se casar com Das Dores, começa a alterar o comportamento das viúvas. Maura é
a primeira a morrer pelas mãos de Flávia; em seguida, é a vez de Carmelita. A visão das
botinas “desabotoadas”, deve-se ressaltar provocou nas tias o despertar do desejo
sexual, e é essa quebra de pudor que as condena à morte. Paralelamente, Dorotéia segue seu
caminho rumo à purificação. Enquanto acontecem os “estrangulamentos ‘simbólicos’” de
Maura e Carmelita, a protagonista não está em cena: fora procurar Nepomuceno, que lhe
daria as chagas necessárias para, aos poucos, consumir sua beleza, condição esta para que
sua família a aceitasse.
Em busca de aceitação por parte da sociedade, Dorotéia renuncia à saúde e à beleza,
que a identificavam como pecadora (Fraga, 1998, p. 132). Tendo deixado seu quarto, as
combinações, as toalhas, o jarro, tudo o que lhe pertencia individualmente, a protagonista
se transfere para um mundo sem quartos nem sonhos, onde as mulheres têm chagas e se
vestem num luto perpétuo. Dentre os símbolos, destacam-se ainda o jarro e as botinas,
representativos do sexo, de um lado, e a náusea, que se opõe àqueles, numa atitude de
negação da vida.
Neste drama, a sociedade prevalece sobre o indivíduo e sua não-aceitação implica
em morte, embora não seja propriamente vida a vigília em que se mantêm as personagens.
Quanto às irmãs Maura e Carmelita, sua morte voluntária as salvou do suplício eterno;
puderam, afinal, sentir um lapso de vida antes do estrangulamento. Das Dores também
procura escapar aos desígnios da náusea, afirmando seu desejo de viver representado
pela retirada da máscara —, mas a mãe a coloca de volta em seu útero; a morte e a vida,
assim, misturam-se indissociavelmente.
Dorotéia, na tentativa de se salvar, mata em si tudo o que havia de vida, e seu final,
já com a “máscara hedionda”, resultado das chagas (p. 251), prenuncia a morte descrita por
D. Flávia na última fala da peça: “Vamos apodrecer juntas.” (p. 253). Todas as
possibilidades de aniquilamento do ser apresentam, como ponto comum, a problemática tão
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constante no teatro de Nelson Rodrigues: razão contra os instintos (Fraga, 1998, p. 131).
Em Dorotéia, sai vencedora a razão; a sociedade prevalece; a morte é a escolha que se faz
voluntariamente em vida.
Valsa n.º 6 (1951)
Eu não me lembro de nada, a não ser de nomes...
(para si mesma)
Por isso, muitos têm medo de mim... E ninguém me contraria... Porque
estou num mundo... Sim, num mundo em que tudo que resta das
pessoas são os nomes... (Rodrigues, 1981a, p. 187)
O monólogo Valsa 6 retoma a abordagem empregada em Vestido de Noiva e
busca reconstruir, sobre a base de uma mente fragmentada, a história da morte de Sônia.
Talvez prestes a morrer ou mesmo já morta, essa adolescente procura resgatar, nos desvãos
do inconsciente e da memória, indícios que possam esclarecer o que lhe teria ocorrido. Para
Nelson Rodrigues, tratava-se de “uma morta em cena”; segundo Sábato Magaldi (1981, p.
23), “a ação se passa entre o golpe assassino sofrido por Sônia e a sua morte. A heroína (...)
não sai do estado de choque e, no delírio, recompõe o mundo à volta.”
De uma ou outra maneira, interessa ressaltar que a história de Sônia é contada em
progresso, de modo que as descobertas feitas pela personagem se dão ao mesmo tempo para
o leitor. Morta ou em choque, a heroína reconstrói aos poucos sua trajetória, valendo-se de
fragmentos de memória e reflexões que buscam organizar o caos inconsciente. Assim,
Sônia monta um quebra-cabeça de diálogos e situações e, a fim de dar sentido às
experiências evocadas, ela traz ao palco de sua semiconsciência personagens que podem
ajudá-la a se reorganizar.
Por se tratar de monólogo, ela própria assume a identidade de outras personagens e
as faz evoluir em cena, mudando a voz e a postura para assim encarnar a mãe ou o médico.
Com a memória fragmentada, Sônia pode revelar alguns traços dessas outras
personagens, que não se recorda nem de si mesma, nem dos outros; o processo
empreendido pela jovem consiste em recolher fragmentos de outras personalidades a fim de
formar a sua própria identidade.
76
No início da peça, Sônia é apenas um nome evocado pela jovem que ainda não sabe
de quem se trata; no decorrer da ação, um esboço de personalidade começa a se formar e a
idéia “Sônia”, bem como a personagem em cena, ganham contornos e, sucinto, um passado.
Somente no final ambas se encontram num mesmo eu, encerrando assim a distância entre o
nome e o ser.
É possível imaginar que a morte iminente — ou já acabada — seja responsável pela
distinção entre Sônia e ela própria; o estado semiconsciente em que se encontra a
personagem revela, contudo, a existência de duas Sônias mesmo antes do golpe que acabará
por matar a jovem. Trata-se da transição entre a infância e a juventude, marcada sobretudo
pela descoberta da sexualidade, daí a alternância em cena de uma Sônia menina e outra,
mulher.
Nos momentos em que se apresenta menina, a personagem usa um tom infantil,
cantarola canções próprias de brincadeiras e repudia o comportamento de Sônia, esta que
aparece, na reconstituição das lembranças, como amante de um homem casado. A
incomunicabilidade se instala na relação da adolescente consigo que, por um lado, parece
ceder aos impulsos sexuais próprios da idade, mas cuja aceitação implica romper com
valores, seus e da sociedade familiar, que a definem como criança, logo ingênua.
Sônia mulher nasce, provavelmente, do encontro amoroso com Paulo, que
permanece como apenas um nome na memória da jovem. A ruptura, no entanto, não se
de maneira tranqüila no espírito de Sônia, a menina; gravaram-se em seu subconsciente as
palavras da mãe ao médico, dizendo que a jovem “anda triste. Chora sem motivo... Ou ri
demais! (...) Deu para ter vergonha de tudo. De tudo, doutor!”. Tímida por causa da
sexualidade que começava a aflorar, Sônia tinha vergonha dos pés, “frios e nus, sem meias
e sem sapatos”, dos “móveis descobertos, sem nenhum pano, nenhuma toalha”, e de
mostrar as amígdalas ao médico, ou seja, de tudo que, em sua mente, pudesse aludir ao ato
sexual.
A Valsa n º 6, de Chopin, tulo e tensão a esta peça de Nelson Rodrigues; ela é
responsável por manter uma unidade tanto na peça quanto no espírito de Sônia que, quando
se sente confusa, perdida em suas lembranças, corre ao piano único objeto de cena e
executa um trecho da música, que marca os momentos de maior tensão. Assim, o médico,
ao matar Sônia, também é movido pela música: pede para a jovem não parar de tocar,
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enquanto crava o punhal em suas costas. O assassinato configura também a realização do
ato sexual, “com a excitação que cresce até o orgasmo final com o fálico punhal
penetrando-a” (Fraga, 1998, p. 113).
Mais do que descobrir a história de seu assassinato, Sônia resgata, por meio do
inconsciente e da memória, questões que não foram resolvidas enquanto vivia; não se trata,
pois, da transição entre a vida e a morte, mas entre a menina e a mulher. Na morte, nome e
personagem se encontram e se reconhecem; as duas identidades antagônicas e, mesmo,
rivais, podem enfim conviver, pois já não há sociedade e imposição de padrões, e só então a
incomunicabilidade se desfaz.
A falecida (1953)
ZULMIRA Mais sangue... Não respondo... Uma morta não precisa
responder... Prometeste que eu teria esse enterro bonito, lindo... de
penacho... 36 mil cruzeiros... Jura outra vez, jura! (Rodrigues, 1985, p.
97)
A peça A falecida marca um novo começo na carreira teatral de Nelson Rodrigues,
pois volta sua ótica para os pequenos dramas do cotidiano carioca, após sua incursão por
estudos de psicologia e mitologia. “Tragédia carioca”, como a classificou o autor, a obra
apresenta uma trama menos desagradável em relação às peças míticas, mas nem por isso a
visão que o dramaturgo expõe aí é mais otimista.
Zulmira, a protagonista, sabia que ia morrer e tratou de encomendar seu caixão;
queria o enterro mais caro e luxuoso que a agência funerária pudesse oferecer. Nas últimas,
pede para o marido, vascaíno e desempregado, procurar um certo senhor que lhe dará a
soma necessária para atender ao seu último capricho. Dizendo-se primo de Zulmira, o
viúvo Tuninho vai à casa de Pimentel, um tipo canalha, dono de uma frota de lotações, e
este lhe confidencia o caso extraconjugal que manteve com a falecida durante algum tempo.
Ferido em seu orgulho, Tuninho se revela o marido traído e, após extorquir Pimentel,
compra para a esposa o caixão mais barato. Com o muito dinheiro que lhe sobrou, vai ao
Maracanã apostar contra o restante do público do estádio na vitória do Vasco.
A realização acalentada em vida, Zulmira transferiu para o momento de sua morte,
representada pelo enterro luxuoso, de maneira que “perde a morte o seu aspecto terrível e
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apavorante, e ganha as cores ao mesmo tempo mórbidas e fascinantes de um momento de
glória” (Lins, 1979, p. 81). Seu desejo é frustrado. Tuninho, o marido traído, mesmo após
conseguir o dinheiro para a aposta grandiosa com a qual sonhara, não pode ser considerado
um homem feliz; no final, “soluça como o mais solitário dos homens”. Pimentel,
conquistador sem escrúpulos, acaba vítima de extorsão, com a promessa de Tuninho voltar
para tirar-lhe ainda mais dinheiro. Os destinos das personagens desta peça têm, como ponto
comum, a frustração de seus desejos, o aniquilamento de qualquer possibilidade de
realização.
O pessimismo do dramaturgo se estende também às personagens secundárias, dentre
as quais cabe destacar Timbira, funcionário da agência funerária. De um lado, o
personagem tenta conquistar Zulmira; do outro, quer vender um caixão caro para uma
amiga (inexistente) que a personagem diz estar nas últimas. Ao descobrir que o caixão
barato que vendeu era para a própria Zulmira, o funcionário afirma, num juízo final
Que vigarista!”. Nem Timbira, “Don Juan suburbano” (Lins, 1979, p. 83), é poupado da
decepção.
O absurdo da existência, tal como se mostra nesta peça de Nelson, não encontra
compensação nem mesmo na morte. Zulmira, em sua monótona vida suburbana, tenta
encontrar primeiro na traição algo que, alterando a rotina, venha a lhe proporcionar uma
felicidade. Flagrada pela prima Glorinha, a protagonista é levada a abandonar o caso
extraconjugal e agarra-se, então, à doença, voluntariamente, numa atitude suicida que busca
a redenção. A fraqueza sica e, consequentemente, a morte, resultam da combinação entre
a desesperança da personagem e sua miséria moral, denunciada pelo flagrante da prima,
mas motivada intimamente pelos preconceitos e valores da própria Zulmira; adúltera,
ressente-se por ter sido descoberta e procura no comportamento de Glorinha falhas de
caráter que possam comprometê-la, dividindo, assim, sua própria culpa (Lins, 1979, p. 79).
Quanto a Tuninho, este não parece se angustiar diante da precariedade de sua vida:
está desempregado, mas sobrou-lhe algum dinheiro para a cerveja e a sinuca; mais que isso,
sobrou-lhe tempo para se preocupar com o futebol, sua motivação maior. A alienação de
Tuninho torna-o cego e surdo em relação à esposa, não sendo capaz de desconfiar nem da
infidelidade, nem da doença. Da reação vingativa ao descobrir, de maneira brusca, uma
verdade insuspeitada: a tranqüilidade de seu casamento com Zulmira era apenas aparente.
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Na primeira cena da peça, Zulmira vai consultar uma cartomante que, de acordo
com a rubrica, está “de chinelos, desgrenhada, um aspecto inconfundível de miséria e
desleixo”; todas as referências à cartomante traduzem, por um lado, seu charlatanismo e,
por outro, a credulidade da protagonista, que se apega a qualquer verdade, sem pestanejar.
É desse modo que ao conselho de Madame Crisálida bastante genérico, aliás para
tomar cuidado com uma mulher loura, Zulmira logo identifica a mulher como sendo
Glorinha; a culpa pelo delito cometido aflora e começa, então, a germinar na personagem o
desejo da morte purificadora.
O primeiro passo para a morte é a negação da vida. Decidida a transformar-se e
substituir a prima-algoz no título de “o maior pudor do Rio de Janeiro”, Zulmira opta por
não ir mais à praia, joga fora o maiô, não beija o marido na boca... preconceitos morais
adotados repentinamente, usados como justificativa para afastar-se ainda mais de Tuninho e
que trazem à tona uma incomunicabilidade existente entre o casal, mas encoberta sob a
aparência de uma relação normal.
Ainda no primeiro ato, um diálogo evidencia a incomunicabilidade do casal; trata-se
mais propriamente do monólogo de Zulmira a respeito da prima:
ZULMIRA — Tu acreditas que ela seja tão séria como diz? Hem?
(Tuninho, dormindo, responde com seus roncos.)
ZULMIRA Pois sim! Não é mais séria do que ninguém. Tão cínica
que diz apenas o seguinte vê se pode que a mulher que beija de
boca aberta é uma sem-vergonha. Pode ser o marido, pode ser o raio
que o parta, mas é uma sem-vergonha.
(Interpela o marido, que continua roncando.)
ZULMIRA — Que é que você diz a isso? Hem?
ZULMIRA (falando como se o marido, que continua dormindo,
tivesse respondido) Deixa de ser trouxa! Não logo que é
falsidade? (Rodrigues, 1985, p. 65-66).
Enquanto a mulher fala de suas suposições, angústias, o marido dorme e ronca, mas,
o que realmente chama a atenção: nem mesmo Zulmira se importa com isso, pois continua
a falar, como se o marido (...) tivesse respondido, ou numa interpretação mais crua, como
se ele, interlocutor e marido, fosse absolutamente dispensável.
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No segundo ato, outro diálogo revelador. Dessa vez, é Tuninho quem deseja expor
suas preocupações, a respeito de um desfalque no time do Vasco para o jogo seguinte;
enquanto o marido fala, Zulmira se contorce em crises de tosse:
TUNINHO — Imagina tu — talvez o Ademir não jogue.
ZULMIRA (atônita) — Que Ademir?
TUNINHO Ora, não aborrece você também! Que Ademir? Ou tu
nunca ouviste falar em Ademir? Parece que vive no mundo da lua?
(Tuninho, enfurecido, anda de um lado para outro. Tem um sapato em
cada mão.)
ZULMIRA — Ai!
TUNINHO — Machucou-se no treino. Estupidamente!
(Zulmira dobra-se, na cama, tossindo com todas as forças. Sob a
obsessão futebolística, Tuninho nem liga para a tosse da mulher.)
TUNINHO E se ele não jogar, não sei, não. Vai ser uma tragédia
em 35 atos! Porque o Ademir, sozinho, vale meio time. Ah, vale!...
(Tuninho vem se debruçar sobre a mulher, que continua tossindo.)
TUNINHO (feroz) Sabe quem deu o supercampeonato ao
Fluminense? Ademir! Decidiu todas as partidas!
(Larga os sapatos. Deita-se, numa melancolia medonha. Ao lado,
sentada, no meio da cama, Zulmira se torce, em acessos tremendos.)
TUNINHO — Às vezes, eu tenho inveja de ti. Tu não te interessas por
futebol, não sabes quem é o Ademir, Não ficas de cabeça inchada, quer
dizer, não tens esses aborrecimentos... Benza-te Deus!
(Tuninho vira-se para o lado. Acesso de Zulmira.)
ZULMIRA Ai, meu Deus, ai meu Deus! (Rodrigues, 1985, p. 92-
93)
Vivendo em mundos isolados, sem comunicação realmente significativa, Zulmira e
Tuninho são estranhos um para o outro. Daí a gratuidade do adultério da mulher que, ao ver
Pimentel entrar por engano no banheiro feminino de uma sorveteria, entrega-se a ele sem
resistência. O motivo? Tuninho lavara as mãos na noite de núpcias, fato interpretado pela
mulher como se o marido tivesse nojo dela. Não há, no entanto, diálogo entre os dois,
nenhuma tentativa de compreender o outro e participar de seu mundo de coisas. “Salta[-se]
da solidão de um para a solidão do outro”, (Lins, 1979, p. 84). Sozinhos, resta aos
personagens o conformismo de suas pequenas esperanças, e até mesmo estas são frustradas
pelo amargo pessimismo que nega qualquer possibilidade de realização nesta peça de
Nelson Rodrigues.
81
Perdoa-me por me traíres (1957)
GILBERTO (num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
JUDITE (desprendendo-se num repelão selvagem) (apontando)
Está louco!
GILBERTO (sem ouvi-la) — Perdoa-me!
JUDITE (para a família) — Não está em si! Eu não traí ninguém!
TIO RAUL (para a família que se agita) Ninguém se meta!
Ninguém diga nada! (para a cunhada, caricioso e hediondo) Pode
falar, Judite! Quer dizer que você concorda conosco? Acha também
que seu marido recaiu, digamos assim?
GILBERTO — Não responda, Judite!
JUDITE — Mas é evidente que está alterado... E depois, não tem
cabimento: diz ‘Perdoa-me por me traíres’, ora veja! (Rodrigues, 1985,
p. 164)
De beleza ímpar na dramaturgia rodrigueana, o título Perdoa-me por me traíres
anuncia a incomunicabilidade essencial que determinará, em igual medida, o destino de
todas as personagens. A frase, proferida por Gilberto, começa por traçar o destino deste e,
em seguida, o de sua mulher, Judite, ambos no passado recontado em flash-back. Adiante,
no presente da história, Glorinha, filha do casal e tio Raul, irmão de seu pai, também terão
seus caminhos marcados pela frase incomum.
Glorinha é apenas uma adolescente que, tendo ficado órfã de mãe e cujo pai foi
internado num hospício, vive sob os cuidados do tio, extremamente severo. Diante das
castrações impostas, a jovem busca a liberdade na prostituição, e a peça começa com sua
chegada à casa de Madame Luba, uma cafetina lituana, no que deverá ser a primeira
“gazeta” que fará. Com medo, Glorinha tenta escapar, mas não há tempo: o cliente, Dr.
Jubileu, chegou e está ansioso para “dizer um ponto de Física ou não [é] homem” (p.
135). Tendo atingido o ápice discursando a respeito do átomo, o deputado combina novo
encontro. Mesmo tipo de relação sexual por meio da obsessão científica pode ser
encontrado na peça A Lição, de Eugène Ionesco, na qual o professor dá aulas a uma aluna e
acaba por matá-la no ponto máximo de excitação. Em Perdoa-me..., a protagonista não é
assassinada, mas tem estabelecido o compromisso de voltar no dia seguinte.
Ao sair da casa de Madame Luba, Glorinha vai parar em uma clínica clandestina,
onde Nair, sua amiga, fará um aborto. É interessante notar que os espaços em que se divide
o primeiro ato traduzem a atmosfera negativa ligada à prostituição, numa espécie de
82
apresentação ao leitor/espectador, e também à protagonista, do tipo de ambiente que a
espera, caso decida continuar na atividade recém iniciada. Na clínica, Glorinha vê o
começo da agonia de Nair: Madame não autorizou anestesia, o médico é bruto, falta água...
Sabe-se, portanto, que Nair morrerá, contudo Glorinha não estará junto para ver o que
poderia ser uma lição ou um aviso.
Os dois atos seguintes passam-se na casa de Tio Raul, ou seja, no que deveria ser o
contraponto dos sórdidos espaços por onde a personagem transitou no primeiro ato. Porém,
o ambiente familiar representado na peça mostra-se tão ou mais nocivo do que o prostíbulo.
A chegada de tio Raul com a notícia da morte de Nair provoca a seqüência de lembranças
do passado que trará, em flash-back, os pais de Glorinha à cena e a revelação do real
motivo da morte de Judite, até então vista como suicídio pela garota.
No passado, toma-se conhecimento do ciúme de Gilberto, que acabou por levá-lo à
internação, intermediada por Raul. Tendo voltado para casa depois de algum tempo, ele não
é mais o homem ciumento de outrora, mas é então que Judite se mostra descaradamente
infiel. Raul descobre o adultério da cunhada e a desmascara perante toda a família;
Gilberto, porém, sai em defesa da esposa, alegando que “a adúltera é mais pura porque está
salva do desejo que apodrecia nela” (p. 163) e arremata seu pensamento, dirigindo-se a
Judite: “Perdoa-me por me traíres”. Incompreendido por todos, inclusive pela esposa,
Gilberto deve voltar ao hospício, enquanto Judite é levada ao suicídio por Raul. Não se
trata, no entanto, de preservar a honra do irmão traído, e sim de crime passional, pois
gostaria de ser ele, Raul, o amante de Judite. Revelada a história, o personagem, no
presente, deixa claro que transferiu para a sobrinha a paixão doentia que sentia pela
cunhada e propõe que ambos morram juntos, da mesma maneira que ele matou o objeto de
seu amor.
A heróica frase de Gilberto traduz a superioridade do espírito sobre a carne, mas
esse desprendimento faz com que seja julgado como louco, pois a sociedade a que pertence
não o compreende. Negada a formulação, todos estão condenados por seus pecados,
inclusive Gilberto, cujo pecado consiste em defender seu pensamento. Assim, a morte de
Judite e a prisão de Gilberto colocam Glorinha aos cuidados do responsável pela
fragmentação de sua família; a personagem também é, portanto, castigada pelos crimes de
seus pais. Fingindo-se seduzida pelo tio, Glorinha o leva ao suicídio, tal como ele fizera
83
com sua mãe, e, enquanto Raul agoniza, a garota telefona para a casa de Madame Luba,
confirmando o encontro marcado no dia anterior.
Sobre a aura de incompreensão nesta peça, cito Sábato Magaldi:
O mundo de Nelson é, ainda uma vez, o da incompreensão, do
desgarramento, da incomunicabilidade. Meninas de família, talvez não
apenas pela paga, mas pela falta de rumo, freqüentam um bordel em
que se tropeça em imunidades. Judite, ao invés de sensibilizar-se com
a inédita delicadeza moral do marido (‘Amar é ser fiel a quem nos
trai!’, ‘Não se abandona uma mulher adúltera!’), acha que ele precisa
ser internado de novo. (Magaldi, 1992, p. 29)
A miséria a que chegou a existência de Glorinha faz-lhe romper de vez com
qualquer tipo de pudor, pois os valores morais perderam o sentido diante das abjeções
expostas cruamente dentro do ambiente familiar. Órfã e livre, a protagonista pode escolher
por si a direção que dará a sua vida, mas não pureza, ingenuidade na garota e suas
esperanças foram castradas antes mesmo que começasse a viver. Sem horizonte, resta-lhe
recorrer ao prostíbulo, ambiente pútrido, mas ao menos conhecido.
Viúva, porém honesta (1957)
IVONETE — Papai, eu vou dormir com quem?
DR. J. B. — Com teu marido!
IVONETE — Deus me livre!
DR. J. B. — Mas é o normal, o direito!
IVONETE — Não quero marido, quero amante!
DR. J. B. — Explica a ela, psicanalista, explica!
PSICANALISTA D. Ivonete, o senhor seu pai tem toda razão. Na
primeira noite, é costume que se conceda ao marido certa prioridade...
MADAME CRI-CRI O amante vem depois, vem com o tempo!
(Rodrigues, 1981a, p. 255-256).
O meio jornalístico consagrou o Nelson Rodrigues cronista, transformando-o em
autor popular graças ao sucesso da coluna “A vida como ela é...”, sucesso que ajudou a
alavancar sua carreira como dramaturgo quando parecia que a empatia do blico andava
distante. Conhecedor do meio, Nelson, contudo, não poupou a imprensa em suas peças.
Assim, a figura de Caveirinha em Boca de Ouro e, sobretudo Amado Ribeiro, o jornalista
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vilão de O Beijo no asfalto são personagens que levam para o palco o juízo ácido do autor a
respeito dos colegas de profissão.
Em Viúva, porém honesta, a imprensa é alvo do sarcasmo de Nelson, em especial os
críticos teatrais, que tantas vezes atacaram suas peças e mesmo o próprio autor. A obra
configura, portanto, um misto de brincadeira e vingança, a qual o dramaturgo sub-titulou
“farsa irresponsável”. Com efeito, não se deve considerar seriamente a trama central do
texto; interessa antes verificar o processo de construção — e destruição — das personagens,
sua postura e seu caráter.
A viúva do título é Ivonete, adolescente grávida que precisa se casar mas, como não
se sabe quem é o pai da criança (a menina teria brincado com Luci), resta à jovem
escolher um marido qualquer. Seu pai, Dr. J. B., é dono do jornal A Marreta e acabara de
contratar um foragido do SAM (Sistema de Assistência aos Menores), Dorothy Dalton, para
ser o crítico teatral da nova geração. Eis o eleito por Ivonete. Na noite de núpcias, contudo,
o rapaz recusa-se a dormir com a esposa e sai da casa, mas logo chega a notícia de que teria
morrido, “atropelado, segundo uns, por um papa-fila, segundo outros, por uma carrocinha
de chica-bom”, segundo informa o Repórter Esso (p. 264). Até então dada à libertinagem,
Ivonete torna-se uma viúva honesta que se recusa a sentar. Desesperado para curar a filha,
Dr. J. B. convoca especialistas de diversas áreas e a história resumida acima é contada em
flash-back.
A “irresponsabilidade” da farsa permite a quebra total da verossimilhança, de modo
que os especialistas, contratados depois da morte do crítico, participem de seu casamento
com Ivonete, por exemplo. É possível, ainda, o fato de Diabo da Fonseca ressuscitar o
morto, a fim de conquistar Ivonete, que é honesta por ser viúva. Ressuscitado o marido,
Ivonete está novamente livre para trair.
As brincadeiras que o gênero farsa admite não deixam de apresentar, contudo, um
panorama da sociedade. Os personagens são caricaturais, mas nem por isso é menos
reconhecível seu substrato de realidade. O Dr. J. B., sem os excessos intencionais do texto,
é uma figura até bastante típica do cotidiano, cuja autoridade ilimitada no âmbito
profissional se desfaz ante os caprichos da filha única. Do mesmo modo, a Tia Assembléia
é a solteirona com desejos reprimidos, que, embora pareça uma senhora de moral e boa
conduta, diz palavrões e fuma escondida no banheiro.
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Quanto aos especialistas, também estes denunciam a falsa verdade que os rótulos
lhes dão. Dr. Lupicínio, psicanalista, quando chamado a opinar a respeito da doença de
Ivonete, exime-se da responsabilidade, alegando: “o doente fala, eu calo. O doente paga, eu
nem pio. Aliás, cobro meu silêncio pelo taxímetro (exibe o taxímetro)” (p. 226). O otorrino,
Dr. Sanatório, usa uma falsa barriga para dar “maior dignidade ao [seu] pronunciamento”.
Dr. Lambreta é o médico que constatou a gravidez inexistente de Ivonete. Os profissionais
da saúde, assim representados, são incompetentes, mas sua incompetência é legitimada pelo
diploma que têm.
Há ainda os marginais Diabo da Fonseca e Madame Cri-Cri, personagens cujas falas
apresentam os pontos mais altos, e ácidos, em que se revela a hipocrisia da sociedade.
Madame Cri-Cri, na sabedoria da própria experiência, declara, assertiva: “Oh, mulher
sempre escolhe mal o marido... Mulher escolhe bem o amante...”. No final da peça,
Diabo da Fonseca afirma, em tom apocalíptico, o juízo que faz dos valores da sociedade:
DIABO DA FONSECA (...) E vou provar o seguinte, querem ver?
Que é falsa a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o
patriotismo, falsos os pudores, tudo falso! (põe-se no meio do palco e
berra) Olha o rapa! (Rodrigues, 1981a, p. 268)
Do “rapa”, salvam-se o Diabo, Ivonete, Madame Cri-Cri e Dorothy Dalton, ou seja,
apenas os marginais por convicção, que não se valem de máscaras para serem aceitos pela
sociedade. Trata-se, no entanto, do julgamento do Diabo, e é natural que os parâmetros de
moral seguidos sejam outros. Cada um que admite seu pecado está livre do juízo; quanto
aos falso-moralistas, a incomunicabilidade de seus desejos os condena.
Os sete gatinhos (1958)
D. ARACY — Eu.
‘SEU’ NORONHA (radiante) — A Gorda!
D. ARACY (quase chorando) — Eu!
‘SEU’ NORONHA (eufórico, para o médico) Tem varizes e um
suor azedo! (para a mulher) Mas, explica, oh, Gorda: por que tu fazes
desenhos obscenos no banheiro?
D. ARACY (confusa e chorando) — Não sei... Talvez porque eu quase
não vou a um cinema, a um teatro, vivo tão só! E também porque
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(mais agressiva) eu não tenho marido! (para ‘seu’ Noronha)
quanto tempo você não me procura como mulher? (para o médico) Até
perdi a conta! (com certa dignidade) Então eu ia para o banheiro,
rabiscava e, depois, apagava. Ontem, é que eu me esqueci de apagar
e... (Rodrigues, 1985, p. 230)
Uma família, seus desentendimentos, as revelações, a morte e uma promessa de
recomeço. Os sete gatinhos põe em cena o desnudamento das baixezas a que pode chegar
essa instituição, tida como base de todos os valores morais necessários para o ser humano
viver e, sobretudo, conviver. Aqui, valores como respeito, amor, compaixão são, a partir do
momento que marca a ruptura, negados com veemência, ao ponto de se ver seu avesso:
desrespeito, ódio, intolerância.
Seu Noronha é casado com D. Aracy, a quem tem o prazer de chamar apenas por
Gorda, pai de cinco filhas e trabalha como contínuo na Câmara. No início da peça,
conhecemos Aurora, uma das filhas, responsável por dar o panorama da família a Bibelot,
um caso amoroso, e, indiretamente, ao leitor/espectador. Fica-se sabendo, então, o que virá
a ser um dos pontos centrais da história: as irmãs mais velhas se prostituem para, com o
dinheiro, garantir o casamento de Silene, a mais nova, com direito a “igreja, de véu,
grinalda e tudo o mais” (p. 195). Contam, para tal, com a cumplicidade da mãe, mas tentam
esconder do pai a vida que levam.
Silene aparece no segundo ato, tendo chegado do colégio interno acompanhada do
Dr. Portela, assessor da direção. O motivo para a volta repentina? A agressividade da
garota, cujo exemplo foi o assassinato a pauladas de uma gata grávida. Na seqüência, sabe-
se que a caçula está grávida. Eis o momento de ruptura; a estrutura familiar apresentava
problemas, mas ainda se mantinha, apoiando-se na esperança que o casamento da jovem
representava. Não sendo mais virgem e pura a menina, a família pode ruir, pondo a nu as
abjeções antes mascaradas a fim de preservar a felicidade de Silene.
O pai preocupado com a imagem das filhas que não se casam lugar ao Seu
Noronha cafetão, que passará a orquestrar um bordel de filhas. D. Aracy confessa que ela é
quem escreve palavrões no banheiro. Arlete admite sua homossexualidade, meio
encontrado “para me sentir menos prostituta” (p. 252). Sem pudores, um a um os membros
da família revelam sua outra face, marcada por desejos outrora inconfessáveis e obsessões
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que funcionariam como fuga da realidade opressora estabelecida pelo meio (Facina, 2004,
p. 131).
Ao descobrir que o pai da criança que Silene espera é seu amante, Bibelot, Aurora
atrai o objeto de seu legítimo amor para uma armadilha. Não deseja entrar em disputa com
a irmã por ele, mas também não quer perdê-lo: a solução é matá-lo. Ainda, mostra-se
superior, acima das paixões mundanas, preparando o ato que deve purificar a todos, mas
quem suja as mãos no sangue de Bibelot não é a moça, e sim Seu Noronha. Descobre-se,
nesse momento, que não era Bibelot o responsável pela destruição da família; ainda era
preciso encontrar “o homem que chora por um olho só”. A revelação de que o pai mandava
homens procurarem suas filhas denuncia-o e o faz chorar... uma única grima. Estava ali a
origem de todo o mal que se abateu sobre a família e o corruptor deve ser morto.
O patriarca construiu e destruiu seu próprio mundo (Magaldi, 1992, p. 36); acaba
sacrificado pelas filhas, numa tentativa de extirpar o mal, mas este está feito. Resta,
contudo, uma esperança em meio à tragédia que envolve as personagens. Lembre-se que
Silene está grávida, o que deve marcar um novo começo na trajetória dessas mulheres. D.
Aracy, por exemplo, não precisará ser chamada novamente de Gorda. As filhas talvez
possam, enfim, optar por continuar ou não na prostituição. O destino reservado para elas
parece ainda incerto, mas ao menos uma certeza: a continuidade da existência,
representada antes por Silene, agora por seu filho.
Boca de Ouro (1959)
BOCA DE OUROMas doutor, eu pago, disse que pago! Não faz
assim comigo! (muda de tom e na sua euforia de criança) Sonhei que
morria e que me enterravam num caixão de ouro. Doutor, quanto custa
um caixão de ouro?
DENTISTA — Todo de ouro?
BOCA DE OURO — Todo!
DENTISTA — Uns vinte milhões de cruzeiros!
BOCA DE OURO Vinte milhões de cruzeiros! Dinheiro pra
chuchu! Doutor, sabe por que é que gosto de leão? Porque leão parece
de ouro... (recosta-se na cadeira) doutor, vou juntar os vinte milhões e
quando eu fechar o paletó, vou meter um caixão de ouro... (Rodrigues,
1985, p. 264)
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Em Boca de Ouro, Nelson Rodrigues não apresenta a história de um herói,
tampouco a de um anti-herói. O personagem que tulo à peça tem consistência menos
classificável nessas categorias, pois trata-se antes de um ser da “mitologia suburbana”
(rubrica inicial, p. 261), que tanto pode ser herói quanto anti-herói. Depende, pois, do ponto
de vista do narrador e de seu estado emocional. A figura do narrador pode parecer estranha
numa peça teatral moderna, mas é justamente por ser moderna que o autor se permite
colocar em cena a tentativa de apreensão do caráter do protagonista, morto, a partir do
olhar de sua ex-amante.
Morto Boca de Ouro no início da peça, a tessitura de sua personalidade será dada de
maneira fragmentada e contraditória por Guigui, cujo relato oscila de acordo com os
sentimentos que a movem em cada ato. O protagonista em si, sem as mistificações que
formarão seu caráter, aparece apenas na primeira cena, o prólogo, quando se a
transformação do homem comum em Boca de Ouro. No consultório do dentista, após
exame que indica a perfeição de seus dentes, o personagem manda arrancar todos para
substitui-los por uma dentadura de ouro. Nasce, então, o mito.
Em cada ato, Boca de Ouro e os personagens que participam da narrativa de Guigui
aparecem na cena por meio de flash-back, cnica empregada pelo dramaturgo em outras
peças. Se a protagonista de A Falecida morre no segundo ato e volta à cena no terceiro pelo
resgate das lembranças do ex-amante, em Boca de Ouro o personagem está morto desde o
início da peça e, no entanto, encontra-se presente no palco através da reconstituição de que
é objeto.
Toma-se conhecimento da morte do personagem por meio dos repórteres do jornal
O Sol, que decidem procurar a ex-amante de Boca para tentar um furo de reportagem. Sem
saber da morte do protagonista, Guigui pergunta a Caveirinha, o repórter, se pode
“espinafrar”, e sua primeira versão mostra um Boca de Ouro cruel, impiedoso, assassino.
Ao saber da morte do amante, Guigui se desespera e muda totalmente a primeira versão, de
modo que Boca de Ouro ganha humanidade e torna-se mesmo vítima de um casal de
usurpadores, que eram as vítimas na primeira versão. A reconciliação com o marido
Agenor, promovida pelos repórteres, origina uma terceira visão de Boca, novamente cruel e
assassino, mas movido pela fealdade do mundo.
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Ponto comum aos três relatos sobre o protagonista, sabe-se que era banqueiro do
jogo do bicho em Madureira, onde também moram Leleco e Celeste. O casal tem pontos de
contato com Tuninho e Zulmira, de A Falecida. O marido está desempregado e gosta de
jogo; a mulher leva uma vida medíocre e em duas das versões contadas por Guigui, mostra-
se infiel. É interessante notar a suposta onisciência da narradora: sem poder estar presente
em algumas cenas ambientadas na casa de Leleco, ainda assim ela reconstitui para os
repórteres o que lá acontecia, o que comprova o caráter ficcionalizante de seu relato.
Na primeira versão, Guigui não poupa o ex-amante, mesmo carrega nas tintas com
que fará seu retrato para a sociedade. Boca “não é flor que se cheire” (p. 269); quando
procurado por Leleco, cuja sogra morreu e não dinheiro para o enterro, o bicheiro se
mostra solícito, oferece mais do que a soma necessária, mas impõe a condição de ir Celeste
sozinha apanhar o dinheiro. Não é difícil captar o plano de Boca de Ouro; quando a jovem
chega, é logo assediada, primeiro sutilmente, depois de maneira bruta, pelo homem
bêbado que tenta agarrá-la. Defende-se, apelando para a hombridade do marido, mas este se
recusa a atirar em Boca de Ouro e é morto por ele a coronhadas de revólver, enquanto
Celeste está no quarto do assassino, a quem será obrigada a se entregar. O que motivou
crime tão violento? A menção que Leleco fez ao nascimento não muito honroso do
bicheiro, “numa pia de gafieira”. Mesmo o mal caráter não admite que se questione a
honestidade da mãe, daí a crueza final.
Informada da morte de Boca, a ex-amante se desespera e pede para recontar a
história; alega que “mulher com dor de cotovelo é um caso sério” (p. 290). Assume, pois,
que seu relato desfigura o bicheiro e parte, então, para a defesa do protagonista,
divinizando-o a ponto de não ser ele o assassino de Leleco, mas sim a esposa deste.
Leleco agora é o marido que deseja prostituir a esposa, vendendo-a a Boca de Ouro. Celeste
perde a ingenuidade que portava antes e transforma-se na mulher desinibida que não tem
pudor de mostrar seus seios no estranho concurso que Boca de Ouro promove para
humilhar as grã-finas, em atitude de pura auto-defesa. As mulheres representativas da alta-
sociedade são inescrupulosas: aproximam-se do bicheiro unicamente por este ser exótico e
sua curiosidade é maledicente. Por fim arrependido, Leleco tenta retomar a mulher, ameaça
Boca e é morto por Celeste, a fim de salvar o amante. Como se pode notar, Boca de Ouro
passa de vilão a herói, situando-se acima das maldades do mundo. Se é cruel com as grã-
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finas, é tão somente para desmascarar a hipocrisia da sociedade, e nem mesmo a morte de
Leleco abala a superioridade do protagonista, que pensa apenas em juntar ouro para seu
caixão, alheio ao mundo ao redor.
O terceiro relato de Guigui é motivado pela reconciliação com Agenor; o marido,
inconformado com as declarações de amor da esposa a Boca de Ouro, havia decidido ir
embora, deixar a casa, mas os jornalistas procuram amenizar a situação e, por fim, Guigui e
Agenor fazem as pazes. Voltam à cena Leleco, Celeste, Boca e uma das grã-finas, Maria
Luísa. Leleco descobre que o amante de Celeste é Boca de Ouro e tenta conseguir dinheiro,
mas é morto pelo casal. Agora Celeste pode ser do bicheiro, mas surge então Maria
Luísa, que a humilhava quando ambas eram colegas de escola. Na ânsia de vingar-se da
grã-fina, e também por medo de perder Boca, Celeste desmascara o protagonista, revelando
o crime recém cometido; a denúncia, porém, acaba por condená-la. Após matar Celeste,
Boca se dirige para o quarto onde Maria Luísa o espera. Sabe-se adiante que foi ela quem
matou Boca.
Terminado o flash-back deste último relato de Guigui, surge a voz do Locutor: “(...)
Mataram o ‘Boca de Ouro’, o Al Capone, o Drácula de Madureira, o D. Quixote do jogo do
bicho, o homem que matava com uma mão e dava esmola com a outra!”. Boca de Ouro não
se adequava à sociedade, nem mesmo fazia parte dela. Vivia no seu mundo particular, feito
de ouro e ambições de ouro, onde valores da civilização tinham pouco ou nenhum
significado. Assim, matar alguém e ser generoso não são atitudes excludentes; daí também
a pluralidade de interpretações possíveis para o mesmo homem. Malogro maior para o
bicheiro, seu sonho de um caixão de ouro é frustrado; ainda, sua dentadura de ouro foi
roubada. Como Zulmira de A Falecida, a idéia de realização após a morte não se cumpre.
O mito Boca de Ouro se desfaz, e, na morte, o homem volta a ser apenas homem. O
absurdo de sua existência pautada pelo desejo de poder, que poderia incorporá-lo à
sociedade, é realçado pelo final pessimista do personagem, de modo que a razão de sua
vida, o objetivo maior que o fez continuar a “rolar o rochedo”, tal um Sísifo enfim, a
recompensa de seu esforço é veementemente negada. Boca de Ouro já não tem sua
dentadura de ouro, nem seus dentes, que eram perfeitos.
Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962)
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EDGARD O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que
eu considero o fino! O fino! Disse. Ouve que essa que é. Disse: ‘O
mineiro só é solidário no câncer’. Que tal?
PEIXOTO (repetindo) ‘O mineiro é solidário no câncer’. Uma
piada.
EDGARD (inflamado) é que está: não é piada. Escuta, Dr.
Peixoto. A princípio eu também achei graça. Ri. Mas depois veio a
reação. Aquilo ficou dentro de mim. E eu não penso noutra coisa.
Palavra de honra!
PEIXOTO — Uma frase!
EDGARD Mas uma frase que se enfiou em mim. Que está me
comendo por dentro. Uma frase roedora. E o que por trás? Sim, por
trás da frase? O mineiro é solidário no câncer. Mas olha a sutileza.
Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser
humano. Eu, o senhor ou qualquer um, só é solidário no câncer.
Compreendeu?
PEIXOTO — E daí?
EDGARD Daí eu posso ser um mau-caráter. E pra que pudores ou
escrúpulos se o homem só é solidário no câncer? A frase do Otto
mudou a minha vida. Quero subir, sim, quero vencer. (Rodrigues,
1989, p. 249-250)
Protagonista da peça Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, a frase “O
mineiro é solidário no câncer” traduz um pessimismo tão amargo quanto o câncer.
Atribuída ao escritor Otto Lara Resende, a formulação é, na verdade, de autoria de Nelson
Rodrigues, com base na idéia “Se Deus não existe, tudo é permitido”, proferida por Kirílov
em Os Demônios, de Dostoievski, escritor admirado pelo dramaturgo.
Na obra, a frase roedora germina em Edgard a falta de escrúpulos que pode dar-lhe
um futuro e uma morte melhores que os de seu pai, cujo enterro foi pago pela subscrição
dos vizinhos. Na tentativa de escapar da vida miserável que leva, o personagem aceita
casar-se com Maria Cecília, filha de seu chefe, que fora estuprada. Werneck, o pai, procura
comprar Edgard com um cheque de quantia fabulosa que, se descontado, selará o acordo. O
rapaz, no entanto, acaba se apaixonando por Ritinha, moça pobre que afirma trabalhar para
sustentar a casa e ajudar a mãe, louca, e as irmãs. Edgard se portanto dividido entre o
casamento por interesse, mas sem amor, e o amor sem dinheiro.
Na balança dos sentimentos de Edgard, pesam valores e apelos de ambos lados. A
favor de Maria Cecília, além do dinheiro e do emprego garantidos, a pressão materna, as
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lembranças da miséria do pai, o apoio do amigo Peixoto, além, é claro, da frase do Otto;
quanto a Ritinha, a ingenuidade e a pureza do amor verdadeiro, a simplicidade de hábitos, a
afirmação de valores morais/espirituais sobre o que é meramente material. A escolha de
Edgard não lida apenas com a substituição de uma figura feminina por outra, ou seja, não se
trata de escolher entre Maria Cecília e Ritinha; maior é o desafio de decidir entre ceder aos
impulsos baixos do ser humano estimulados pela sociedade ou, ao contrário, afirmar-se
individualmente, capaz de pensar e escolher por si os caminhos a seguir, ainda que isso o
torne marginal.
Como em Boca de Ouro, a alta sociedade é aqui representada por figuras, um tanto
caricaturais, emblemáticas da hipocrisia que as corrompe. Werneck, personagem central do
grupo, é o pai de família, preocupado com as aparências em relação à filha que, no final,
promove em sua casa a orgia que desvirginará as irmãs de Ritinha. O dinheiro tem o poder
de tudo comprar: marido para a filha, virgindade para as garotas... Na intimidade do quarto,
entretanto, mostra-se infantil diante da esposa que lhe perdoa as falhas de caráter.
Peixoto, amigo de Edgard, assume-se canalha. Foi corrompido pelo ambiente do
qual passou a fazer parte ao casar-se com Tereza, irmã de Maria Cecília. Sabe que é traído,
conhece de dentro o lado podre da sociedade, mas a falta de escrúpulos já está naturalizada
em sua personalidade, de modo que incentiva Edgard a juntar-se ao seu mundo. É Peixoto a
serpente que oferece ao amigo a possibilidade de entrar para a família de Werneck, usando
como argumento a frase do Otto, que o próprio Edgard lhe ensinara. Seu nome passa a ser
parâmetro de cafajeste; quando Edgard diz a Werneck que “não é Peixoto”, ouve, como
resposta: “Engano. No Brasil, todo mundo é Peixoto.” (p. 282).
Quanto a Maria Cecília, sua posição de vítima parece distingui-la do ambiente que a
cerca. O estupro, o casamento forçado, sua fragilidade aparente não permitem ver antes do
terceiro ato que a bonitinha, mas ordinária do título é ela mesma. Em primeiro momento, o
leitor/espectador pensará em Ritinha, por ela ser prostituta. Mas a revelação de Peixoto no
final desmascara Maria Cecília, responsável por armar a própria curra, fantasia alimentada
após a leitura de caso semelhante no jornal. Além de denunciar a amante sabe-se então
que Peixoto e Maria Cecília mantinham um caso —, o personagem se redime aqui dos
pecados cometidos, salvando Edgard do casamento nada promissor. Ainda, mata a jovem e
em seguida se mata, extirpando parte da maldade do mundo.
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Ao queimar o cheque, Edgard queima também a frase do Otto e está, enfim, liberto
para seguir sua vida ao lado de Ritinha, que não tem obrigações para com a família. O
desfalque na agência dos correios, fato do qual a mãe foi acusada e que precipita a jovem
na prostituição, já foi resolvido, bem como a reconstituição da virgindade das irmãs,
bancada por Werneck. O romantismo no relacionamento do casal ganha relevo com a
afirmação de Ritinha de que “nunca teve prazer com homem nenhum” (p. 325); trata-se,
portanto, de um novo começo na vida de ambos.
Bonitinha, mas ordinária é a primeira peça de Nelson a ter um final feliz (a outra
será Anti-Nelson Rodrigues). Não se pode, no entanto, ler de maneira innua o desfecho
de Edgard e Ritinha, sem cavalo branco ou castelo. A felicidade reservada para o casal está
longe de um conto de fadas, pois não exclui o aspecto realista e, talvez cruel, da vida
cotidiana, repleta de necessidades que não se satisfazem com amor. Assim, Edgard diz a
Ritinha: “Vamos começar sem um tostão. Sem um tostão. E se for preciso, um dia, você
beberá água da sarjeta. Comigo. Nós apanharemos água com as duas mãos. Assim. E
beberemos água da sarjeta.” (p. 326). Na dramaturgia de Nelson, o espaço para ilusões é
bastante reduzido, grandes desejos são constantemente frustrados pelos desígnios da vida,
mas há, como nesta peça, a possibilidade de ser, além de modelos ou convenções, algo
mais do que a sociedade espera do indivíduo.
Toda nudez será castigada (1965)
HERCULANO (desesperado) Mas é falso! Rigorosamente falso!
Todos os meus amigos sabem que eu tenho horror, horror de prostituta.
Nunca entrei numa casa de mulheres. entrei uma vez. Em solteiro.
Eu era rapazinho. Entrei e fugi logo, nunca mais. Entenda! Esse
assunto, aliás. Mas compreendeu? Simplesmente, eu não acho a
prostituta mulher. Não é mulher! (Rodrigues, 1990, p. 195)
A prostituta Geni não é a única a ser castigada nesta peça de Nelson Rodrigues, cujo
título apresenta o vigor de um mandamento universal. Ainda uma vez, a eterna luta entre
instintos e razão, tão comum em sua dramaturgia, volta à cena e faz suas vítimas, julgadas e
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condenadas pela sociedade e, sobretudo, pelos preconceitos que cada personagem absorveu
do meio em que vive.
Em síntese, a peça conta a viuvez de Herculano, curada, após insistência do irmão
Patrício, pela redescoberta do sexo com uma prostituta. Porém, o que deveria ser apenas
uma aventura ganha intensidade tal que o viúvo se envolvido por Geni. A família de
Herculano, suas tias e Serginho, o filho, não aceitam as mudanças no comportamento
daquele que deveria representar a autoridade moral da família. Serginho descobre o caso do
pai, perde o controle, bebe pela primeira vez na vida e acaba arrumando briga num bar.
Como conseqüência, vai preso e, na cadeia, é estuprado por um ladrão boliviano. A
compaixão de Geni pelo rapaz transforma-se em paixão doentia; Patrício, por sua vez,
estimula Serginho a exigir o casamento de Herculano com a prostituta, pois realizada a
união, poderá obter contra o pai a máxima vingança: a traição. Então casada, Geni torna-se
amante do enteado, mas é por ele logo abandonada. Ao final, sabe-se que Serginho fugiu
para o exterior com o ladrão boliviano. Ao tomar conhecimento do fato, Geni, numa atitude
desesperada, se suicida, não sem antes deixar uma fita gravada em que conta para
Herculano toda a história.
No início da peça, Geni está morta. O marido chega em casa e, ao perguntar pela
esposa, recebe a fita que trará à cena todo o drama em flash-back. Sabendo morta a
protagonista, restam ao leitor/espectador as mesmas dúvidas que assolam Herculano: por
quê? como? o que teria acontecido? Em primeira instância, a gravação se destina ao
personagem, mas não só, pois também o público tomará conhecimento do desenrolar dos
fatos a partir dela. Como em Vestido de Noiva e Valsa n º 6, encontra-se morta a
responsável pela reconstituição da trama mas, diferentemente das peças citadas, em Toda
nudez será castigada a reconstituição se no nível consciente da mente de Geni, pois a
fita, dado material, comprova não se tratar aqui de resgate após a morte, e sim enquanto a
prostituta ainda estava viva.
Herculano está novamente viúvo. Interessa contar, no entanto, a trajetória percorrida
de sua primeira viuvez à segunda, especialmente a partir do encontro com Geni, momento
de ruptura que começa a gerar transformações, primeiro sutis, logo decisivas, não para
este personagem, mas para todos aqueles que constituem o núcleo familiar. De luto
fechado, em profunda depressão, Herculano não via motivos para viver, quando o
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mefistofélico Patrício coloca sobre sua mesa uma foto de Geni nua e uma garrafa de uísque.
De ressaca alcoólica e moral, Herculano acorda na casa da prostituta após três dias de
prazer sexual, fato renegado, depois relutantemente aceito, enfim desejado.
A descoberta do sexo gera um processo de auto-conhecimento no personagem que,
até então, seguia de maneira estrita o código moral imposto e defendido pela família.
“Caricatura do amor, vítima do amor, a prostituta é mbolo dos poderes que humilham
nosso mundo” (Paz, 1992, p. 180). A quebra por meio da embriaguez e da luxúria,
acentuada pelo peso da prostituição, opõe, então, dois Herculanos: um que deseja manter a
aparência de chefe de família e outro que quer libertar-se, mas assim fragmentado, nem
uma porção, nem outra de seu ser são capazes de satisfazer as exigências que dele se
espera. As tias e, em especial, Serginho, de um lado, querem de volta o viúvo recatado, e
Geni, do outro, pede Herculano inteiro, homem de família e amante; indigna-se por servir
apenas ao amante, sendo claramente escondida pelo Herculano-chefe-de-família:
GENI — Bonito papel!
HERCULANO (sôfrego) — Desculpe. Perdão, meu anjo!
GENI — Você me deixa aqui, 40 minutos debaixo de chuva!
HERCULANO (atarantado) — Vamos sair daqui, vamos sair daqui.
GENI — E teu carro?
HERCULANO — Deixei do outro lado. E vim a pé, pra não chamar
atenção.
GENI — Tem medo de tudo!
HERCULANO (doce) — Não podemos ser vistos.
GENI (furiosa) — Claro! Eu sou uma vagabunda! (Rodrigues, 1989, p.
191)
As tias representam, por sua vez, o estreito código moral da sociedade, numa
postura que pode ser considerada antiquada mesmo na época em que a peça foi escrita.
Reprimidas sexualmente, abominam tudo o que tenha relação com o prazer e, nesse sentido,
transferem para Serginho o repúdio ao sexo. Orgulha-se a tia ao dizer para Geni, após o
estupro na prisão: “Meu menino não conhecia mulher, nunca teve um desejo. As cuecas
vinham limpinhas, nada de sexo. (...) Meu menino era impotente como um santo” (p. 209).
Impotência é santidade, enquanto sexo é pecado, demoníaco.
Para Serginho, a possibilidade do prazer sexual, mais do que negada, simplesmente
não existia, até descobrir que o pai mantinha o caso com Geni. Feita a revelação de um
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novo padrão de comportamento, antagônico ao seu, o personagem tenta uma primeira fuga
no álcool; o estupro justificaria a inclinação homossexual e, nova fuga, o rapaz vai embora
com o ladrão boliviano. Ao seduzir Geni, Serginho tem como objetivo vingar-se do pai, a
quem culpa não pelo estupro mas, intimamente, pela descoberta de sua própria
homossexualidade.
Prostituta sentimental, Geni apresenta personalidade complexa. Aproxima-se de
Herculano por insistência de Patrício, mas logo apaixona-se por ele; o amante vai, aos
poucos, perdendo espaço para o filho, novo alvo da paixão desenfreada de Geni; a fuga de
Serginho leva-a ao suicídio. Amor? É Geni quem melhor explica o que a move: “O meu
amor é pena.” (p. 216). Mais do que pena, talvez, auto-piedade. A personagem, em vários
momentos, demonstra inclinação para a morte, dentranhar-se na família de Herculano,
pela qual a vida é constantemente negada (Lins, 1979, p. 146). Matar-se, no final, é o
extremo de todo um processo auto-destrutivo, iniciado com a prostituição, depois a idéia de
que morreria de câncer, adiante o envolvimento com pai e filho, em curva descendente
rumo ao nada.
Quem melhor representa a atmosfera abjeta que opõe, de maneira radical, instintos e
razão é Patrício. Degradado financeira e moralmente, não tem escrúpulos em manipular os
demais personagens, fazendo-os mentir e confabular intrigas. Sua existência absurda
consiste na espera por uma vingança em relação às pessoas que o cercam, de modo que
possa sentir-se menos miserável, por saber que não é o único. Inteligente, estimula os
mais baixos instintos de Herculano e Serginho, sem jamais envolver-se emocionalmente em
suas dores e frustrações. O suicídio de Geni, em certa medida, coroa o plano de destruição
de Herculano, cuidadosamente elaborado por Patrício. Sábato Magaldi, a respeito desse
personagem, nota seu “poder excepcional, normalmente associado às figuras demoníacas”
e, em relação à raiva que nutre pelo irmão, “insinua-se a imagem de Caim e Abel, modelo
ancestral dos ódios fraternos” (Magaldi, 1992, p. 34).
Castigados todos pela nudez, não do corpo, mas da alma, os personagens de Toda
nudez... traduzem um pessimismo que, vendo apenas a escuridão da vida, buscam
esperanças na morte, purificadora, sagrada.
Anti-Nelson Rodrigues (1973)
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OSWALDINHO Você iria amanhã a um apartamento. Eu estaria a
sua espera. Você passaria, lá, uma hora, só. E te dou, por uma hora,
cinco mil cruzeiros. Um cheque.
JOICE — O que é que o senhor está dizendo?
OSWALDINHO — Cinco mil cruzeiros, por uma hora.
JOICE O senhor me pagaria como se eu fosse uma prostituta? Eu
iria por dinheiro?
OSWALDINHO (no seu desespero) Dez mil cruzeiros! Te dou o
cheque, lá.
JOICE Dr. Oswaldo, desde menina, que eu espero por um amor.
Quero que o senhor compreenda. Um amor que continuasse para além
da vida e para além da morte. (Rodrigues, 1981a, p. 329)
A peça Anti-Nelson Rodrigues incita a curiosidade já a partir do título, que
pressupõe uma anti–autobiografia, mas que, na opinião de Sábato Magaldi, “é até mais
Nelson Rodrigues que as demais”. O próprio Nelson admitiu que a peça teimava em ser ele,
e não anti–ele e acabou por considerar o título um “charme irônico”. Texto repleto de
referências diretas à obra do autor, Anti-Nelson Rodrigues pode ter sido, de fato e citando
ainda uma vez o crítico Sábato Magaldi (1981, p. 32), “um preparo para a anunciada
autobiografia em nove atos o projeto ambicioso que o dramaturgo melancolicamente, não
chegou a realizar.”
Anti-Nelson Rodrigues conta a história de um amor puro que deve vencer os
obstáculos e enfrentar toda a sorte de perigos para chegar ao “E foram felizes para
sempre...”. Não é preciso conhecer a fundo a produção de Nelson Rodrigues para concordar
que o título se relaciona de forma coerente com a trama principal da peça. O universo
sinistro, mal habitado, altamente pervertido é, mais do que conhecido do público brasileiro,
a principal característica do próprio dramaturgo. O final, geralmente trágico, dá lugar aqui à
esperança e ao otimismo, concedendo ao amor a chave para transformar o sombrio e a
crueldade em beleza.
A história desse amor não é, contudo, exatamente romântica, como também não era
a de Bonitinha, mas ordinária; Oswaldinho, personagem do casal principal, pouco ou nada
tem de herói, como este é geralmente concebido. Leva uma vida de prazeres: mulheres e
bebida; rouba as jóias da própria mãe; escreve ao pai chamando-lhe “chifrudo”
semanalmente há dez anos. É, em suma, um mau-caráter. Eis que um dia apaixona-se por
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Joice, religiosa, suburbana, noiva e virgem. Sem escrúpulos, o rapaz, após várias tentativas
menos diretas, tenta comprar a moça e surpreende-se ao vê-la rasgar e atirar-lhe no rosto o
cheque de trezentos mil cruzeiros; para surpresa final do leitor/espectador, e também do
próprio Oswaldinho, Joice o beija e então desce o pano.
O final mais otimista do que em outras peças a Anti-Nelson Rodrigues a medida
que a torna diferente do conjunto teatral do autor; ao mesmo tempo, é seu principal
elemento “autobiográfico”, não no estrito sentido de “vida”, mas sim de “filosofia de vida”.
Embora suas outras obras não evidenciem, Nelson acreditava no amor “eterno, porque
se acaba não era amor” —, mas sem idealizações; o romantismo é possível dentro dos
limites da realidade. Ainda que seu comportamento sofra uma transformação, Oswaldinho
não se torna herói apenas por estar apaixonado, o que seria inverossímil, assim como a
aparentemente súbita mudança na personalidade de Joice foi, na verdade, o desnudamento
de emoções antes subliminares no espírito da jovem.
Percebe-se em Joice, desde o início, a indiferença em relação ao noivo, de maneira
que tanto faz casar-se ou não; por Oswaldinho, ela se mostra mais interessada, voltando ao
trabalho mesmo após o assédio que poderia distanciá-los definitivamente. Com o dinheiro e
o poder que a posição de chefe lhe confere, Oswaldinho acredita que pode facilmente
conquistar tudo o que deseja, sem esforço, pois foi criado neste tipo de ambiente. Joice, por
sua vez, tem como parâmetro Salim Simão, homem trabalhador que, sendo pai esmerado,
preocupa-se ao extremo em preservar a dignidade da filha.
É forte o contraste entre as famílias dos protagonistas: Joice e o pai, mais a
empregada Hele Nice, têm relacionamento de carinho e preocupação mútuos, enquanto
Oswaldinho nutre por seus pais apenas raiva e ressentimentos. Tereza, sua mãe, adora-o de
maneira doentia, a ponto de humilhar-se constantemente por uma mínima demonstração de
afeto; Gastão demonstra sentir pelo filho um misto de medo e mágoa. Mais uma vez, na
obra de Nelson, a alta sociedade é mostrada em seu lado podre, em que as relações são
pautadas pelo dinheiro, as aparências importam mais do que a verdade dos sentimentos e
apenas na intimidade mostra-se aquilo que a hipocrisia faz questão de esconder. No núcleo
suburbano, mesmo a revelação mais terrível é passível de perdão. Assim, quando Salim
Simão conta à filha que, na juventude, obrigou as garotas que engravidara a abortar,
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somando dezoito abortos, Joice não se incomoda e lhe responde: “Ainda acho o senhor
formidável, papai. Mais formidável do que nunca.” (p. 303).
A perfeita comunicabilidade entre Joice e o pai tem seu contraponto, pois, na
incomunicabilidade reinante no espaço representado pela casa de Oswaldinho; como
apontado acima, o rapaz não se entende bem nem com o pai, nem com a mãe, mas é
precisamente no relacionamento entre o casal Tereza e Gastão que se encontram os pontos
mais altos e reveladores da falta de comunicação que acaba por isolá-los. Sendo
Oswaldinho a única preocupação de Tereza, sua vida perde o sentido quando ele se
apaixona. A personagem, no decorrer da peça, vai se distanciando mais e mais de Gastão
que, por sua vez, está obcecado por idéias de morte. As conversas entre os dois, na
intimidade do quarto, traduzem a solidão individual que os faz submergir na atmosfera
doente, estéril do próprio ambiente familiar.
GASTÃO — A pior forma de solidão é a companhia da minha mulher.
A pior forma de solidão é a companhia do meu filho.
TEREZA (na embriaguez do sono) — Gastão?
GASTÃO — Eu.
(Tereza vira-se para o outro lado.)
GASTÃO Fui ao Dr. Stans Murad. Fez novo eletro. Está ouvindo?
Tereza?
TEREZA — (resmunga)
GASTÃO O novo eletro tem as mesmas alteraçõezinhas do
anterior.
(...)
GASTÃO E continua a dor no peito, com irradiação para o braço
esquerdo. Tereza, acorda, Tereza!
TEREZA (perdida de sono) — Que horas são?
GASTÃO Três da manhã. O Dr. Stans Murad quer que eu faça
coronariografia. Eu é que não quero. Se eu tenho que morrer, prefiro
morrer sem saber que morro. Quero morrer de repente, tão de repente,
no meio de uma frase, de um gesto. Você vai me chorar Tereza, hem,
Tereza? (sacode a mulher) Tereza!
TEREZA — Fecha essa luz! (Rodrigues, 1981a, p. 304-305)
Única esperança de Gastão: “dinheiro compra até amor verdadeiro. (...) E você e
Oswaldo terão pena de mim, porque dinheiro também compra misericórdia”. O pai quer
comprar a misericórdia do filho; Tereza, seu amor. Oswaldinho, cuja personalidade é
resultado nítido da combinação Gastão/Tereza, também no dinheiro a onipotência capaz
100
de possuir aquilo que deseja, e é então que Joice não se vende, mas a ele se entrega por
amor. Vale citar o comentário de Sábato Magaldi:
As personagens Tereza e Gastão testemunham a visão trágica da existência. Para o
casal de velhos, não mais saída. O feroz pessimismo foi dominado, porém, dessa
vez, pela promessa de felicidade eterna do casal de jovens. (...) Despida da
inverossimilhança das narrativas românticas, a peça Anti-Nelson Rodrigues é uma
convincente história de amor nacional. (Magaldi, 1992, p. 38)
O “anjo pornográfico” lugar ao Cupido nesta peça, em que Nelson se permite
fazer várias auto-referências, sendo a mais importante delas a crença pessoal no amor como
transgressão máxima do indivíduo a fim de afirmar sua existência.
A serpente (1978)
GUIDA — E o amor?
LÍGIA — Que amor?
GUIDA O amor de vocês. Nunca, até este dia, você se queixou do
seu casamento. Até agora, você não disse uma palavra contra o Décio.
LÍGIA — Um canalha.
GUIDA — Só hoje você descobriu que é um canalha?
LÍGIA — Você fala do nosso amor. Quero que saiba o seguinte. Décio
disse, antes de ir embora, que papai é uma múmia, com todos os
achaques de múmia. (violenta) E, então, eu descobri tudo. Papai é a
múmia. Por isso ele podia achar que eu e Décio éramos felicíssimos.
Mas você, que não é uma mia, votinha obrigação de enxergar a
verdade, Guida!
GUIDA Mas criatura, nós moramos no mesmo apartamento. Uma
parede separa as tuas intimidades e as minhas.
LÍGIA Por isso mesmo. Ouve-se no meu quarto tudo o que
acontece no teu. Chega a ser indecente. Ouço os teus gemidos e os de
Paulo. Mas você nunca ouviu os meus. Simplesmente porque no meu
quarto não há isso. Esse mistério nunca te impressionou? (Rodrigues,
1989, p. 59)
A última peça de Nelson Rodrigues não tem o mesmo vigor das demais, é inclusive
mais curta, mas nem por isso menos Nelson Rodrigues. A serpente apresenta as marcas do
autor, tanto na temática quanto na linguagem. Assim, o tema de duas irmãs apaixonadas
pelo mesmo homem, que aparece em segundo plano em Vestido de Noiva e Os sete
101
gatinhos, entre outras, constitui aqui a matéria principal. A linguagem sucinta, entrecortada,
repleta de hesitações é empregada também nesta obra, de modo a aumentar a tensão
existente. outros fatores, aliás, que colaboram para o efeito de tensão: a unidade de
espaço, a delimitação da trama em torno de apenas três personagens, a unidade de ação.
Concentração talvez seja a palavra mais adequada para definir a peça A Serpente.
Guida e Lígia são irmãs muito próximas, que sempre dividiram tudo. Os casamentos
das duas foram realizados conjuntamente e foram morar, cada uma com seu marido, no
mesmo apartamento. Aparentemente, todos viviam felizes, até que a peça começa com uma
briga entre Lígia e Décio, que denuncia a falta de entendimento sexual entre o casal. Guida,
ao saber que a irmã continua virgem, oferece-lhe uma noite com seu marido, Paulo. A
proposta é, de início, recusada tanto por Lígia quanto por Paulo, mas a fatídica noite de
amor acontece e principia, então, a disputa das irmãs. Guida passa a sentir ciúmes do
relacionamento do marido com sua irmã que, por sua vez, envolve-se mais e mais pelo
cunhado. Paulo, resolvido a ficar com Lígia, mata a esposa, atirando-a do apartamento no
12º andar; atormentada pela culpa, a irmã grita, acusando-o pelo assassinato.
O casamento feito de aparências, sem comunicação real entre marido e mulher é
denunciado logo nas primeiras cenas. Também a incomunicabilidade entre as irmãs: porque
Lígia não reclamava, Guida acreditava que a irmã era feliz com Décio; mais que isso,
Guida acreditava que também era feliz com Paulo. Estabelecido o pacto entre as irmãs,
porém, as máscaras se esfacelam, e vem à tona desejos reprimidos, separando aquelas que
antes formavam um mesmo ser; na verdade, o fato de dividirem tudo que as unia de
maneira tão intensa é também o que provocará a rivalidade e, no final, a morte de Guida.
O ambiente claustrofóbico do apartamento torna ainda mais tenso o drama, pois as
irmãs são obrigadas a conviver ali, compartilhando o espaço que servira outrora para
aproximá-las, transformado repentinamente na arena da disputa. Há algumas cenas que
acontecem fora do apartamento, como os furtivos encontros entre Lígia e Paulo e a
realização sexual de Décio com a Crioula; contudo, o apartamento é o espaço primordial
nesta peça e elemento decisivo no desenrolar da história.
Diferente de outras peças, A Serpente não apresenta diálogos a respeito de outros
temas que não o essencial. Assim, tudo gira em torno do triângulo formado por Paulo e as
duas irmãs; mais especificamente, sobre as relações de desejo que o microcosmo propicia.
102
Sexo, e não amor, como bem nota o crítico Sábato Magaldi. Em sua última peça, Nelson
retrata a fundo o paradoxo realização/frustração sexual, e a supremacia do puramente carnal
sobre o amor é condenada. Guida morre; Lígia deverá remoer sua culpa; Paulo é acusado
pela amante aos gritos, de assassinato; Décio supera a impotência sexual, mas não consegue
reconquistar Lígia.
Separados por desejos que, negados, poderiam manter as aparências, os personagens
de A Serpente optam pela precipitação no abismo ao confessar, sem pudores, suas
obsessões mais íntimas. O desfecho de Guida, empurrada pela janela do apartamento,
representa simbolicamente o desfecho dos demais: sua queda até a mais profunda
degradação moral.
Última peça do dramaturgo, A Serpente não consta entre as melhores, mas encerra
dignamente a carreira de Nelson Rodrigues. Estão presentes seus temas habituais, as
obsessões, o desnudamento do ser humano, o retrato de uma sociedade; também a concisão,
a linguagem, enfim, todos os elementos fizeram dele o autor do teatro brasileiro moderno.
sem forças, com a saúde debilitada, recém saído do trauma de ver o filho preso, não se
podia exigir que Nelson tivesse o fôlego que desprendeu em Vestido de Noiva, por
exemplo. Mesmo, o era necessário. Sua contribuição estava dada e um novo tipo de
dramaturgia começava a se firmar: o teatro de vanguarda, mais harmonizado com as
circunstâncias políticas e sociais da época. Se à Serpente falta o brilho do autor, por outro
lado é a reafirmação da passagem marcante de sua estrela pelo território literário brasileiro.
O beijo no asfalto (1960), “tragédia da incomunicabilidade”
No trânsito caótico do Rio de Janeiro, uma cena atípica: um homem beija outro,
vítima de um atropelamento. Este é o mote da peça, e o motivo pelo qual Arandir,
protagonista do drama, vê sua vida transformada em pesadelo. O leitor ou espectador
acompanha sua saga, pode mesmo se indignar com o comportamento indigno das
personagens, mas, peça terminada, não pode afirmar nem que sim, “Arandir é culpado”,
nem que não, “Arandir é uma vítima inocente”. Isto porque o beijo no asfalto aconteceu
antes do início da peça e não é facultado ao leitor observar com seus próprios olhos o que,
de fato, ocorreu.
103
Quando a peça começa, o que se pode ler/ver é um flagrante da falta de escrúpulos
das instituições “polícia” e “jornalismo”. Como uma espécie de prólogo, a cena inicial
apresenta os antagonistas de Arandir, o delegado Cunha e o repórter Amado Ribeiro que,
após uma discussão, decidem unir-se para se promover a partir do beijo no asfalto, do qual
Amado foi testemunha. O motivo da discussão entre os futuros comparsas, mencionado tão
de passagem, é que Amado Ribeiro havia divulgado em seu jornal que Cunha era o
responsável pelo aborto de uma mulher, causado por um suposto chute na barriga que,
como alega o delegado, não passara de um tabefe. O superior de Cunha chamara-lhe a
atenção e, por isso, o delegado estava furioso com o repórter. Ao saber da possibilidade de
se redimir diante da população e, sobretudo diante do chefe, Cunha se interessa pela
repercussão do beijo no asfalto e se une a Amado, que quer “vender jornal pra burro”, numa
risada única, significativa do intento comum.
Na seqüência, tem-se a primeira transição espacial da peça. Os personagens se
encontram na casa em que Arandir mora com a esposa Selminha e a cunhada Dália. Em
cena, Selminha e seu pai Aprígio, que afirma e reafirma estar com pressa, pois o táxi o
aguarda. No entanto, a conversa se estende por seis páginas e um dos motivos para a
demora é o descompasso de interesses que rege os diálogos. Aprígio diz logo no início que
está ali para dar um recado de Arandir, mas Selminha parece não ouvir o que o pai lhe
diz, estando mais preocupada em fazê-lo entrar ou em servir algo para ele comer. Por fim,
Aprígio consegue avisar que Arandir está na delegacia e conta à filha sobre o beijo no
asfalto, ao que ela protesta veemente.
De volta à delegacia, enfim encontramos Arandir, mas sua situação não é das
melhores: trata-se do interrogatório feito por Cunha e Amado sobre o beijo, que envolve
uma pressão psicológica não suportada por Arandir, nervoso e com medo, “nem ele sabe de
quê”, segundo indica a rubrica.
Na casa de Selminha, ela e a irmã conversam sobre o possível amor incestuoso de
Aprígio pela filha mais velha quando, exausto, Arandir chega e segue mais uma rodada de
perguntas e explicações. Alternando seu humor entre a ira e a cólera, Arandir, por fim, está
prestes a contar o que aconteceu, mas a cena, e com ela o primeiro ato, termina em
reticências: “Toda a cidade estava ali, espiando. E viu quando eu ...”. A ambigüidade
deverá durar pelo menos o tempo do intervalo até que se inicie o segundo ato...
104
Selminha e Dália discutem porque esta quer ir embora da casa da irmã, mas a
conversa é interrompida por D. Matilde, personagem que faz única aparição nesta cena,
para revelar a manchete do jornal Última Hora. O título, sugestivo, é “O beijo no asfalto”.
D. Matilde, entre concordar com o que leu no jornal e, por outro lado, falsamente consolar
Selminha, instaura a dúvida no espírito desta, enquanto Dália se mostra mais enfática na
defesa de Arandir.
A cena seguinte sai do ambiente familiar para focalizar Arandir no que deveria ser
um dia normal de trabalho no escritório, não fosse pela matéria do jornal. Os colegas o
interpelam com piadas e comentários jocosos, ao que Arandir, primeiro, parece não
compreender, mas depois tenta defender-se, chegando mesmo à ameaça de “partir a cara”
de Werneck, seu chefe. A cena é cortada justamente no momento em que ambos partiriam
para a briga.
Novamente na casa de Selminha, ela e o pai conversam sobre o jornal e Aprígio
reafirma a história do beijo. Como para preservar a honra de seu marido, e também a sua,
Selminha lança a dúvida a respeito da natureza verdadeira dos sentimentos do pai para com
ela própria, afirmando que a calúnia contra Arandir se funda em ciúme amoroso do pai. A
cena termina com Aprígio a esboçar uma carícia na cabeça de Selminha, gesto
acompanhado das palavras: “eu amo alguém”.
O quadro seguinte mostra mais uma vez Amado Ribeiro em ação, desta vez no
velório do atropelado. Em conversa particular com a viúva, tenta convencê-la de que o
marido era mesmo homossexual, que mantinha um caso com Arandir, usando para tal um
argumento bastante forte: a viúva teria um amante. Além da evidente chantagem com a
viúva, o repórter demonstra a todo tempo o quão grosseiro é, ameaçando mesmo bater na
mulher e, numa total falta de respeito ao morto e aos demais, atrasa o enterro, sendo que o
morto “já tem mau cheiro”.
De volta à casa de Selminha, marido e mulher estão no quarto, em conversa tensa a
respeito da mudança que a reportagem do jornal operou em suas vidas em apenas um dia.
Selminha conta que passou por apuros com telefonemas, trotes ofensivos. Arandir conta a
Selminha os fatos ocorridos no escritório, a briga com Werneck, que, fica-se sabendo então,
acabou na falta de reação de Arandir e sua demissão. A esposa fica furiosa, tenta esclarecer
a história do beijo. O mal-estar da situação começa a afetar o relacionamento do casal.
105
Arandir confirma, enfim, que beijou o atropelado, porque este, morrendo, pediu-
lhe o beijo. Selminha foge então do marido; não deseja beijá-lo, nem mesmo consegue
dizer que o ama. Dália chega, avisando que não vai mais embora. Quando toca a campainha
e ela vai atender, o pânico toma conta do casal: é a polícia. E assim termina o segundo ato,
mantendo o suspense para a terceira e última parte.
Abre-se a continuação da peça com uma cena de forte carga dramática: numa casa,
que não é a delegacia, Amado e Cunha interrogam Selminha, com requintes de tortura,
tanto física quanto moral. Apresentam-lhe a viúva do atropelado, que confirma o caso
homossexual entre Arandir e o morto e chega mesmo a afirmar que viu os dois tomando
banho juntos. Selminha resiste, reage, chega a proclamar em altíssima voz a masculinidade
do marido, mesmo a freqüência sexual do casal (“Eu conheço muitas que é uma vez por
semana, duas, e até de 15 em 15 dias. Mas meu marido é todo dia! Todo dia! Todo dia!”).
A violência de Amado e Cunha, após a reação de Selminha, torna-se ainda mais evidente;
esse quadro termina com uma ameaça, a promessa de uma tortura sexual: “AMADO
(interpondo-se) Espera! Calma! (para Selminha, feroz) Tira a roupa! Fica nua. Tira
tudo!”.
Logo na seqüência, descobre-se no diálogo entre Dália e Aprígio que Selminha foi
presa. De um lado, Dália quer defender Arandir; o pai, no entanto, reafirma a culpa do
genro. Então a filha o acusa de amar Selminha, com “amor de homem para mulher”.
Aprígio reage de maneira estranha que, como indica a rubrica, “ninguém entende”. Sua
postura em relação à acusação que lhe foi feita é, realmente, atípica, pois, ao invés de
defender-se, começa a rir, e fica entre o riso e a ferocidade, enquanto Dália chora.
Em mais uma transição, o foco está, em seguida, no quarto de Amado Ribeiro; este
encontra-se bêbado e ainda mais boçal do que em suas aparições anteriores, veja-se a
menção ao aborto da arrumadeira com talo de mamona. Não se sabe o que Aprígio foi fazer
lá, e, ao final de um diálogo tenso e obscuro, permanece a incógnita. Amado, por sua vez,
assume a falta de honestidade e se envaidece mesmo da canalhice que é sua marca mais
forte. Aprígio vai embora, deixando o repórter falando sozinho.
Na casa de Selminha, Dália tenta convencer a irmã a encontrar Arandir, que se
refugiou num quarto de hotel “ordinário” e espera que a esposa ter com ele. Selminha
começa a dar mostras de cansaço, alude à humilhação que sofreu e já não parece acreditar
106
tanto em Arandir, tem mesmo nojo da idéia de beijá-lo, pois “o beijo do meu marido ainda
tem a saliva de outro homem!”.
Arandir está no quarto de hotel, mas em lugar de Selminha, é lia quem aparece
para juntar-se ao cunhado. “Entre o desespero e a esperança”, como indica a rubrica,
Arandir parece o acreditar que foi abandonado pela esposa. Por sua vez, Dália mostra-se
muito solidária e apaixonada, oferece-se ao cunhado e diz estar disposta a ficar com ele,
pois não tem nojo de beijá-lo. Arandir, semiconsciente, reafirma acreditar na pureza de seu
gesto para com o atropelado. Dália diz que o ama e aceita o beijo, mas, quando Arandir
quase cedia, vem a pergunta que mostra o quão sozinho ele está: “DÁLIA (macia,
insidiosa, com uma leve, muito leve malignidade) Diz pra mim. Eu não te julgo. Não te
condeno. Responde: — Você o amava?”.
Arandir expulsa Dália, enquanto Aprígio entra e também manda a filha sair.
Prepara-se o desfecho com uma conversa entre os dois. Aprígio acusa, enquanto Arandir se
defende, quanto ao homossexualismo. Arandir ataca, por sua vez, o sogro, voltando ao tema
do amor incestuoso que Aprígio sentiria por Selminha, ao que Aprígio, por fim, desvenda
seu grande mistério: na verdade, sentia ciúme era de Arandir, por quem nutria um amor
homossexual. Ao mesmo tempo em que declara seu amor, Aprígio mata Arandir, e só então
pronuncia seu nome:
APRÍGIO Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto)
Arandir!
Cai a luz, em resistência, sobre o cadáver de Arandir. Trevas.
Fim do terceiro e último ato.
Catarse ou pessimismo? Esta é uma das muitas dualidades que parecem rondar a
obra de Nelson Rodrigues. Em O beijo no asfalto não seria diferente. De um lado, um
desfile de comportamentos monstruosos que, vistos em cena ou lidos, poderiam concentrar
em si possíveis arroubos de natureza semelhante por parte do público. Por outro lado, e este
parece mais provável, Nelson utiliza-se do aniquilamento de um ser, retratado em sua peça,
para representar a descrença na humanidade como um todo.
Outras oposições se apresentam ainda: de um lado, Arandir, um herói massacrado
pelo outro lado, uma conspiração sórdida entre todos os demais personagens da peça. A
favor de Arandir, sua porção emocional, sua vontade; contra, o racional, o calculado. Se
107
Arandir é ingênuo, seus companheiros de cena devem ser maliciosos; se Arandir é inocente,
todo o resto do mundo é culpado.
A descrença no ser humano é latejante nesta “tragédia carioca”, como assim a
qualificou seu autor. Passa-se no Rio de Janeiro, demonstrando sintonia com seu ambiente
(e sua época), daí carioca; quanto à tragédia, pode-se pensar na árdua trajetória do herói em
busca de um ideal, aniquilado por forças opostas. Mas é preciso atentar para o fato de que
tanto o herói quanto o ideal por ele perseguido na modernidade sofreram modificações
determinantes em relação à tragédia clássica. O herói da modernidade é o anti-herói; seu
ideal elevado é mais pessoal do que coletivo. a partir dessas transformações é que se
torna possível identificar Arandir como herói desta tragédia.
Arandir se distancia do modelo de herói na medida em que seu ideal é defender a
pureza do beijo que deu na boca de outro homem, objetivo bastante pessoal e contraventor,
numa época em que o homossexualismo era mais discriminado do que ainda é nos tempos
atuais. Quando viu o atropelado e deu o beijo, estava indo ao banco pegar dinheiro para o
aborto de Selminha, o que não é propriamente uma atitude digna, pensando nos valores
tradicionais que regem a humanidade. Junte-se a isso a motivação para o aborto, “Meu
marido acha que gravidez estraga a lua-de-mel”, diz Selminha. Não se trata aqui da questão
polêmica acerca do aborto, mas do indício de anti-heroísmo de Arandir. No Rio de Janeiro
de 1960, tanto o aborto quanto o homossexualismo não se identificam com a nobreza que se
espera do herói.
A partir do caso do beijo, Arandir é o protagonista que concentra todas as
características de perfeita vítima: cometeu um ato com aparente ingenuidade e sua melhor e
mais pura intenção foi manipulada de modo a fazer dele o réu condenado de antemão.
Tem apoio de apenas duas pessoas, a esposa e a cunhada, mas, no final, vê-se abandonado
mesmo por elas. Sofre gozações, perseguição, é humilhado pela polícia, pela imprensa; a
vizinha sintetiza o coro no âmbito popular; no escritório, pelos colegas de trabalho e
Werneck, seu chefe. Perde o emprego e o lar, tendo que refugiar-se num hotel ordinário.
Morre abandonado, assassinado pelo próprio sogro, enrolado no jornal que arruinou sua
vida.
O processo de isolamento de Arandir se dá aos poucos, o que pode ser demonstrado
pela alternância dos espaços onde se desenrola a ação. A casa do protagonista é o espaço
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primordial da peça e o primeiro ato se divide entre ele e a delegacia. No segundo ato, surge
o escritório onde Arandir trabalha; no terceiro, a casa onde se dá o interrogatório de
Selminha e, por fim, o hotel ordinário. É significativo que o desfecho de Arandir aconteça
num quarto de hotel; após o beijo, seu trânsito pelos espaços sociais da normalidade lhe é
veladamente proibido. Primeiro no escritório, depois na própria casa, sua presença causa
incômodo, estranheza, pois não é aceito pela sociedade. Resta-lhe a impessoalidade, ou
falta de personalidade?, do hotel, onde, embrulhado no fatídico jornal, terminará sua saga.
Para Octávio Paz (1992), a solidão se relaciona à nostalgia de um tempo-espaço
particular, simbólico da felicidade e da cumplicidade perdida pelo ser humano ao
nascer. Sob esta ótica, o caminho percorrido por Arandir desde o beijo, saltando de um
espaço para o outro até chegar aonde se dará seu fim, retoma a solidão primeira que
constitui seu próprio nascimento. Perdido o nculo com a mãe e, com o passar dos anos,
com a sociedade em geral, é chegado o momento da ruptura espacial maior que o fará
encontrar, então, a solidão da morte. O “tempo mítico” a que alude Paz, vivido por pelo
protagonista da peça, consiste na exaustiva presentificação do beijo no asfalto, de modo que
o fato, ocorrido no passado, transforma-se em eterno presente para o herói. Mesmo o jornal,
que segue, por princípio, o “tempo cronométrico”, trata de evocar o fato passado a fim de
vencer (e vender) sua efemeridade.
Terá sido de fato o jornal o responsável pela tragédia de Arandir? Se ele tivesse
reagido, fazendo valer sua verdade, se tivesse brigado contra os que o humilharam, não
poderia ser diferente seu destino? Mas Nelson inicia a peça com uma lacuna: o que, de
fato, aconteceu. A reação defensiva de Arandir não é defesa: é fuga; sua falta de atitude
o condena mais do que a opinião dos outros; o fato de calar faz de Arandir um réu confesso.
Em parte, Arandir não pode se defender por não saber ao certo do que é acusado; por outro
lado, sentindo a tensão de ser pressionado, dá mostras de um desequilíbrio que não condiz
com isenção de culpa.
A ambigüidade de interpretações possíveis não se resolve. Nelson, altamente
moderno em sua dramaturgia, incorporou também nesta peça a dúvida como fio condutor.
dúvidas que se resolvem, como em relação à homossexualidade de Aprígio, mas a
lacuna no ponto central do drama, o “beijo no asfalto”, torna-o um drama aberto, que pode
condenar Arandir ou absolvê-lo em seu julgamento.
109
O caso do beijo é, com efeito, o desencadeador da tragédia, mas não o elemento
trágico em si. Mote tanto da peça quanto do drama de Arandir, o beijo é o estopim para a
revelação da verdadeira condição do homem, a de ser solitário. Serve como artifício ou
justificativa para Nelson explorar o conchavo sórdido entre instituições que deveriam ser
idôneas, além de demonstrar a voz solitária emergente da massa manipulada. No drama, o
caso do beijo tanto impulsiona a ambição de Amado Ribeiro quanto deflagra o
homossexualismo de Aprígio, a alienação de Selminha e a paixão semi-incestuosa de Dália.
Ao mesmo tempo ponto central e tangencial, o beijo no asfalto é o protagonista
oculto da peça, no tempo antes e no espaço fora da mesma. Justamente sua lacuna mantém
a dúvida, ao passo que sua existência no âmbito ficcional preenche as certezas e verdades
defendidas pelos personagens. Deflagrador de imoralidade no olhar de Amado, e
consequentemente de todos por ele manipulados, ou de pureza para Arandir, o beijo dado
ao atropelado é metafórico da condição humana e desencadeador de interpretações
distintas, mesmo opostas, acerca do fato, o que dá a medida de sua ambivalência.
As hesitações, os subentendidos próprios da linguagem cotidiana são elementos que
marcam outras produções de Nelson, e que nesta peça têm importância fundamental. É pela
palavra que se dá a tragédia de Arandir, especialmente de como ela foi manipulada por seus
antagonistas. Assim, o beijo no asfalto, em si, importa muito pouco; mais valem as
interpretações que dele se faz. Fatos incriminatórios de um passado inexistente podem ser
fabricados por meio da linguagem e ficcionaliza-se, desse modo, o banho que Arandir teria
tomado junto com o morto, segundo a viúva.
Sem fugir ao seu estilo, Nelson lança mão de alguns recursos a fim de aumentar a
tensão entre o herói e o mundo, denunciada pela inutilidade da linguagem daquele frente à
crueza deste, que não deseja compreendê-lo. Na conversa com a esposa, ainda no primeiro
ato, Arandir sabe que não adiantaria explicar a Selminha, tampouco a Dália, o real estado
de suas emoções; sem clareza em suas convicções, emite um emaranhado de frases
entrecortadas que, ao invés de esclarecer a situação, acabam por acentuar-lhe a culpa:
ARANDIR (fremente) Dália, a Polícia pensa. Ainda está pensando.
E não se convence, Dália. Pensa que eu conhecia o rapaz. (...) O rapaz
estava morrendo. Morrendo junto ao meio-fio. Mas ainda teve voz para
pedir um beijo. Agonizava pedindo um beijo. Na polícia, o repórter
110
disse que era hora de muito movimento. Toda a cidade estava ali,
espiando. E viu quando eu... (Rodrigues, 1990, p. 109-110)
Arandir hesita, exalta-se, repete e intensifica o pedido do beijo. Sua atitude, as
voltas que até chegar ao beijo, ou seja, o próprio modo de se expressar acentua a culpa
que sente pela transgressão. Do mesmo modo, incerta em relação à inocência do marido,
Selminha também revela por meio da linguagem cortada as dúvidas que começam a romper
em seu espírito: “Aliás, Arandir tem certas coisas. Certas delicadezas! E outra que eu nunca
disse a ninguém. Não disse por vergonha. (...) [Arandir] casou-se tão virgem como eu (...)”.
É no avesso da comunicação, forjada ou espontaneamente, que a dúvida central da peça tem
sua maior força, o eixo mesmo que sustentará a oposição entre o indivíduo e a sociedade.
A tendência que melhor se delineia no drama é a da absolvição de Arandir. Isto
porque a construção das personalidades dos antagonistas é tão expressiva de seu mau-
caratismo que eles passam por nossos olhos sob um véu de asco e repulsa. A primeira
menção que se faz ao beijo já está impregnada pelo ambiente desagradável da delegacia e
da discussão entre o repórter e o delegado. Os diálogos aqui, mais do que estabelecer a
comunicação entre os personagens, funcionam como elementos de caricatura dos mesmos.
Como se a quarta parede tivesse sido quebrada, o leitor/espectador tem acesso à
confabulação dos antagonistas, à sua sordidez, e os objetivos de cada um com a repercussão
do beijo, segredados no drama, não o são na cena, que está é aberta à observação do
público.
Personagem de extrema importância na peça, Amado Ribeiro tem consistência de
“mandante” do acordo para manipular o caso do beijo. O repórter é quem primeiro propõe o
acordo ao delegado Cunha, ressaltando as possibilidades, para cada um, do sucesso
resultante da empreitada. Também nos interrogatórios, que costumam caber à polícia, é
Amado quem toma a palavra, no geral de modo violento, às vezes insidioso, sempre
demonstrando como seus objetivos pessoais são bem definidos. Na cena com Aprígio em
seu quarto, o repórter revela, com honestidade e embriaguez, justamente sua falta de
honestidade.
É dos vilões mais contundentes da dramaturgia de Nelson Rodrigues. Sua falta de
escrúpulos faz pensar em outra formulação do autor, “O mineiro é solidário no câncer”.
Assim como o Peixoto de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, Amado Ribeiro
111
parece desde o início demonstrar sua falta de caráter. A frase, atribuída a Otto na peça que
leva seu nome é a própria essência da peça —, pode definir a filosofia de ambos
personagens, em (con)textos diferentes. Variante de “Se Deus não existe, eu sou deus”, de
Dostoievski em Os Demônios, como ressalta Magaldi no prefácio ao teatro completo de
Nelson Rodrigues (1990), a máxima também poderia justificar o comportamento do
repórter sem escrúpulos que, em seu egoísmo, idealiza uma farsa para alcançar um objetivo
não só material, mas ligado diretamente a sua vaidade.
Consciente de sua miséria moral, Amado Ribeiro parece não ter ilusões com relação
à vida, nem ideais de felicidade, exceto pelo desejo de ser reconhecido a partir do caso de
Arandir. A ambição de seu orgulho enquanto jornalista, no entanto, é frustrada desde o
início, pois a profissão está ligada de maneira fatal à efemeridade. Enquanto é possível, no
entanto, manter a notícia em efervescência, Amado Ribeiro tem um objetivo; sozinho em
sua casa, refugia-se em sua insignificância e no álcool, para recomeçar incessantemente a
cada novo dia, ou novo “furo”.
A consciência é o fator que diferencia Amado dos demais personagens da peça.
Não só acredita, mas sabe que a vida não tem sentido, que existe um caos, mas que é
preciso, e pode ser prazeroso, continuar a viver. Duas ausências se unem em Amado: a de
sentido e a de escrúpulo; assim o personagem se constrói pela consciência do inexistente.
Não código moral para reprimi-lo (por exemplo, não é casado, nem tem família) e sua
marginalidade é não apenas justificada, mas incentivada pela profissão que exerce.
Ao esbravejar sua falta de honestidade, Amado traduz a prisão a que está
condenado, a saber, uma vida sem sentido, mas real. No avesso da impossível
transcendência, está o homem que vive de acordo ou contra as leis dos homens,
potencializando a vontade, pessoal e imediata, acima da contenção que promete felicidade
vindoura. A satisfação que o repórter deseja para si é menos efêmera, mas tão imediata
quanto uma manchete de jornal; trabalhou — a seu modo, é verdade para conquistar seu
objetivo, e aguarda, embriagado de álcool e auto-valorização (tanto positiva quanto
negativa), receber o prêmio devido.
Quanto a Cunha, percebe-se desde o início sua instabilidade emocional. Toda a
raiva que sentia por Amado no início da peça se desfaz diante da proposta de reabilitação
que este lhe apresenta. Um tipo bastante caricatural, mas que se assemelha à realidade dos
112
espaços policiais, o delegado é um coronel no Rio de Janeiro. Sua postura, sempre
prezando por mostrar sua virilidade, garantida e reforçada pelo posto de delegado, é de
violência e desleixo. Não tem a malícia de Amado, nem sua esperteza, mas cumpre o papel
de coadjuvante na dupla, tendo como principal qualidade a força do distintivo de delegado.
Representativo do homem de sua época, Cunha encarna também a figura do pai,
cuja autoridade se confunde com violência na sociedade machista de então. A função que
Aprígio cumpre mal, Cunha desempenha com a firmeza do típico patriarca do início do
século.
A união dos antagonistas se dá, pois, por complementaridade: Cunha tem a seu
favor, a força e a autoridade da polícia, enquanto Amado, a esperteza e a manipulação de
fatos por meio de palavras, condizentes com a profissão de jornalista. Traça-se assim a
caricatura das instituições “polícia” e “jornalismo”, ressaltando o lado negativo da força e
da inteligência.
Selminha, por sua vez, é descrita, na rubrica que antecede a primeira aparição em
cena, como “a imagem fina, frágil de uma moça, de intensa feminilidade”; Selminha seria
mais uma Bovary suburbana, não fosse por sua falta de desejos pessoais. Ao menos, não
demonstra querer mais do que ser boa dona de casa, como quando implora ao pai que coma
do jantar que fez. Defende, inclusive, a honra de ser suburbana, não admitindo a
humilhação de Arandir pelo chefe; furiosa, pede ao marido que ao escritório no dia
seguinte para lhe “quebrar a cara”.
O ponto em que demonstra mais personalidade é no interrogatório feito por Cunha e
Amado, que a humilha, ofende, ameaça. A reação de Selminha espanta pela ruptura com
relação à linearidade demonstrada até então; quando atacada, reage como animal, gritando a
plenos pulmões que é feliz e realizada sexualmente. Além da polêmica do tema, existe a
“imagem fina, frágil de uma moça”, tal como descrita no início, que contrasta com a
selvageria da atitude.
Quanto à Dália, “cuja graça leve parece esconder uma alma profunda”, esta se
apresenta sempre com os arroubos próprios da adolescência: primeiro, decide ir embora da
casa da irmã, mas ao saber do drama de Arandir, resolve ficar; sua paixão pelo cunhado é
bastante explícita, tendo chegado mesmo a confessá-la indiretamente a Selminha:
“SELMINHA (radiante) (Dália) disse que se eu morresse, ela se casaria com Arandir!”
113
Dália, no entanto nega, chora, envergonha-se, mas quando, no último ato, a
possibilidade de conquistar Arandir, não se priva de dizer que Selminha não o ama e ainda
dá-lhe um beijo.
A disputa de duas irmãs pelo mesmo homem não é inédita na dramaturgia de
Nelson, tendo sido enfocada pela primeira vez em Vestido de noiva; depois em Os sete
gatinhos e, por fim, com maior intensidade, em A serpente. Mas em O beijo no asfalto, não
propriamente uma disputa, que Selminha acha graça da idéia de Dália (de se casar
com Arandir), ao passo que Dália só se declara ao cunhado quando a irmã já o abandonou.
Por outro lado, mais determinante no desenrolar dos fatos, está o amor de Aprígio
por Arandir. Além das filhas desejarem o mesmo homem, também o pai nutre
inconfessável sentimento por ele, revelado no desfecho do drama. Até então, todos os
indícios apontam para um possível amor incestuoso de Aprígio por Selminha, ao qual alude
Dália em conversa com a irmã ainda no primeiro ato. Depois, a própria Selminha insinua
em diálogo com Aprígio que ele tem ciúmes de seu casamento com Arandir. No terceiro
ato, é Dália quem, de maneira direta desta vez, pergunta ao pai sobre a natureza de seus
sentimentos por Selminha, afirmando, “lenta e má”, que “o senhor não gosta de Selminha
como pai”.
A sucessão de pistas falsas, essa insistência de Nelson em reforçar a suspeita em
alvo errado para, numa reviravolta, revelar a verdade, é um procedimento que pode ser
considerado melodramático. De fato, nada em Aprígio indica sua orientação homossexual e
a reação ao caso do beijo no asfalto está mais próxima da defesa da honra da filha,
exercendo o papel de pai zeloso. Ao revelar sua homossexualidade e a paixão pelo genro,
Aprígio pode enfim se libertar do segredo que parecia sufocar-lhe, mas é-lhe necessário
matar o objeto de seu amor, já que não poderia realizar-se com ele.
Arandir, alvo dos amores e ódios das demais personagens, não demonstra sentir, ele
próprio, tais paixões. Gosta da esposa, sim; sente atração por Dália quando a tomando
banho; enfrenta o chefe para se defender. Contudo, tem a convicção de que o beijo dado ao
moribundo é o único ato verdadeiro em toda a sua vida.
ARANDIR (numa alucinação) Dália, faz o seguinte. Olha, o
seguinte: — diz a Selminha. (Violento) Diz que, em toda minha vida, a
única coisa que se salva é o beijo no asfalto. Pela primeira vez. Dália,
114
escuta! Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom!
(Furioso) Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi
no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele
momento, você devia ser a irmã nua. E eu desejei. S logo, mas
desejei a cunhada. Na Praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom. É lindo!
É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (Grita)
Eu não me arrependo! Eu não me arrependo! (Rodrigues, 1990, p. 149)
Antes, tudo eram aparências, falsidades sem conteúdo real, pessoal, mas a
consciência do absurdo da existência que levava até então só aparece em contraponto com a
verdade fatal que o beijo revela. O momento de ruptura, motivado por uma circunstância,
logo não intencional, liberta no personagem a essência do ser individual.
No romance O Estrangeiro, de Albert Camus, o assassinato na praia, motivado pelo
calor, marca a ruptura na vida de Meursault e o início de seu processo autoconstrutivo. Na
peça de Nelson, Arandir não mata: ao contrário, consola com o beijo quem está prestes a
morrer. O que os aproxima, portanto, não é o ato cometido, mas as conseqüências do
mesmo na construção de suas individualidades. Tanto Meursault quanto Arandir são
condenados por suas transgressões, mas entre o momento de ruptura e o juízo final,
desperta-se-lhes a consciência de existir que, embora não possa salvá-los da morte,
modifica a concepção do que foi e, sobretudo, deveria ser a vida.
Aliás, a consciência despertada em Arandir do absurdo da existência transforma sua
morte final em fato de menor importância, por ser igualmente absurdo (Fraga, 1998, p.
161). Se a vida não tem sentido, tampouco a morte terá. De um dia para o outro, o herói
passou a conhecer a essência vil do ser humano, o lado torpe até mesmo das pessoas que o
cercavam; abandonado por todos, sozinho no mundo caótico onde só há aparências, a morte
perde para ele a conotação de tragédia final. Trata-se, antes, de sacrifício a que, por
covardia ou coragem, Arandir se entrega, representativo do mártir em busca da
transcendência maior.
Suas reflexões remetem ao ato cometido, e não ao que está prestes a cometer
quando, na conversa com Dália, o personagem afirma que, no momento do beijo, “foi
bom”. Ignora, talvez, o quanto essa afirmação o aproxima da morte, uma vez que sua
bondade não sobreviverá ao mundo; Arandir deverá purgar, por assim dizer, a morte
desonrosa, embrulhado no jornal infame pelas mãos do sogro pederasta: então estará
livre para ser bom. Tal possibilidade lhe foi negada na terra e é preciso encontrar o tempo-
115
espaço propício que acolha Arandir, sem mistificações. Mais uma vez acusado, agora pelo
sogro, de homossexualismo e assassinato, o protagonista defende-se, alegando que Deus
sabe.” Arandir existe e Deus existe, partes de uma mesma força de bondade e amor num
universo de incompreensão, eis sua verdade; quando Arandir diz me senti quase.”, e não
complementa o raciocínio, pode-se pensar que gostaria de dizer: “me senti quase Deus”.
Retoma-se, subliminarmente, o conceito dostoievskiano “Se Deus não existe, eu sou deus”,
tão apreciado por Nelson Rodrigues.
Os instintos mais nobres de que fora capaz em toda a sua vida não o impediram, no
entanto, de calar, aceitando as injustiças, as acusações a ele dirigidas. Arandir também não
foi capaz de salvar a esposa do estupro e da humilhação impostos por seus algozes, pois
estava, naquele momento, escondido, enquanto Selminha ainda tentava defendê-lo. Falta a
Arandir a coragem dos heróis, bem como a firmeza de suas convicções. Proclama a beleza
do beijo no asfalto apenas para Dália, pois sabe contar com seu apoio, motivado pelo amor
da jovem. Aos outros, nega ou omite, ao invés de afirmar, porque ele próprio chega a
duvidar da essência de seu ato.
“Eu não me arrependo!”, Arandir repete para Dália e para si mesmo, como o
Bérenger de O Rinoceronte, quando este diz, no final da peça, “Eu não capitulo!”. Tanto
um quanto o outro provaram a solidão à qual foram condenados por não se adequarem ao
que a sociedade exigia deles, e é verossímil (e aceitável) que tenham duvidado de suas
convicções, pois a solidão configura-se-lhes a prova amarga da verdade denunciada por seu
heroísmo. Em O beijo no asfalto, a rinocerite (Magaldi, 1992, p. 17) consiste na
massificação de idéias que contamina até mesmo as pessoas mais próximas de Arandir; na
hipocrisia de um universo regido por aparências de normalidade; na negação, enfim, do ser
individual.
No momento do primeiro interrogatório, Arandir ainda não sabe do que é acusado e,
mesmo depois, no final da peça, o caráter do crime pelo qual é condenado permanece
nebuloso, artificial. Joseph K..., personagem de O Processo de Kafka, também é submetido
a estranho julgamento, sem conhecer as razões para tal. Reage, no entanto, conforme
códigos pessoais de justiça e, no final, morre, sem saber, e sem que o leitor saiba, os
motivos de sua condenação. Como ponto comum entre os personagens está o absurdo que
os envolve, de modo a criar entre o ser e o mundo um abismo de incompreensão,
116
transponível em O Beijo... apenas pela possibilidade de transcendência anunciada pela
morte. Na obra de Kafka, nem mesmo essa mínima chance é oferecida ao herói.
Na fortuna crítica a respeito da peça, ressalta-se o estudo de Bárbara Heliodora, que
aproxima O beijo no asfalto, em alguns pontos, da obra de Kafka:
(...) semelhanças entre Joseph K... e Arandir, pois em ambos se
preserva a consciência da inocência, em ambos há a revolta impotente
contra a força que os destrói ou contra a qual não se pode lutar porque
não se pode sequer chegar a identificar os responsáveis últimos pela
situação, sendo que os julgadores e condenadores de um e outro heróis
são, em si mesmos, vítimas, instrumentos condicionados por sua
própria situação de servidores abjetos de poderes superiores que não
identificam e nem querem identificar: querem, apenas, servi-los, por
adquirirem certa importância aparente no exercício de determinadas
funções.
(...) Tanto Joseph K... quanto Arandir têm amplo direito a esse fugidio
título que é o de herói trágico, porque ambos sofrem e morrem
tentando defender seu direito a viver de acordo com suas convicções, a
despeito de todas as pressões feitas para que as abandonem, e
defendendo a dignidade do homem, preferindo morrer com dignidade a
viver sem ela. (in: Rodrigues, 2003, p. 222-223.)
A incomunicabilidade é denunciada em vários níveis na peça O beijo no asfalto: nas
relações amorosas, na manipulação da palavra, na intolerância ao que é diferente. A maior
manifestação, entretanto, de seu poder destrutivo está no progressivo isolamento do ser,
solidão absoluta que o leva à morte. Para Sábato Magaldi,
O beijo no asfalto pode ser encarada (...) como a tradia da
incomunicabilidade. Arandir é incapaz de provar aos outros que o
beijo que deu no moribundo representou gesto puro de solidariedade, e
não manifestação de homossexualismo. A mulher deixa-se vencer pela
onda de preconceitos. E a cunhada está disposta a aceitá-lo, mas por
equívoco, achando que ele é homossexual. A incomunicabilidade vota
o homem, irremediavelmente, à solidão. (Magaldi, 1992, p. 74-75)
“Herói trágico”, Arandir representa o grito solitário abafado pela multidão; é o
“homem absurdo” de que fala Camus, assim como Meursault, Kirílov, Bérenger, Joseph
K... e do Burro, mártires que buscam afirmar o direito à individualidade. Na luta contra
117
a incomunicabilidade dominante, instituída e aceita por seres sociais com suas máscaras
de valores e pudores universais que, na verdade, são meras convenções —, Arandir se
reunifica, pois preenche corpo e existência outrora vazios com a plenitude emocional e
racional da alma. Superior às vilezas do mundo, onde se encontrava absolutamente só,
Arandir caminha para a morte, negaçãoxima do absurdo da vida.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A solidão de morrer é mais grave apenas do que a solidão de nascer, segundo
Octavio Paz. Em verdade, “a solidão é a profundeza última da condição humana” e a vida
não passa, ainda de acordo com o autor, da busca incessante por uma comunhão que
preencha a ausência mais profunda do ser. Trata-se de um processo dialético que envolve,
por um lado, a “consciência de si; por outro, [o] desejo de sair de si” (Paz, 1992, p. 176).
Assim, buscar o outro é, incessante e paradoxalmente, o desejo de se encontrar e se perder.
Tema de predileção da literatura moderna, a incomunicabilidade revela essa
profunda solidão do ser humano, ao mesmo tempo angustiante e necessária. A partir do
momento de ruptura, o homem desperta a consciência de estar em meio a um mundo
caótico, absurdo, onde a liberdade individual é uma fraude entre outras o amor, Deus,
sociedade. Revelado o caráter artificial das relações e dos próprios valores que deveriam
reger o mundo, resta ao homem aceitar o pacto que o mantém parte do todo ou, em direção
oposta, refugiar-se em sua existência individual, universo particular que só torna a conjugar
homem e mundo, eliminando rasuras de incompreensão, na medida em que o ser transcende
o absurdo de sua condição por meio da reconstrução da realidade.
O homem é tão mais absurdo na medida em que tem consciência de sua condição;
mais que isso: quando a aceita voluntariamente, embora sem abdicar do direito à liberdade
individual. Sabe que está condenado a viver num mundo sem sentido, onde mesmo
esperanças de consolo após a morte são inúteis, porém insiste em continuar. Aceita a
inexorabilidade do tempo, mas procura reter os bons momentos; conhece a vastidão do
mundo que seu espaço interior não consegue abranger; dialoga com o outro, sem contar
com sua compreensão. Reconhece-se livre para escolher dentro de possibilidades limitadas
pelo real, e então será capaz de expandir esses limites ao ponto de chegar à criação do
universo, ainda que particular.
119
É então que surge o artista, cuja obra reflete a busca de sentido para o que sabe não
ter sentido algum; esperança de comunicação que surge da incomunicabilidade; desejo do
outro em meio à solidão. Consciente do absurdo de sua existência, ele concede à obra o
caráter de necessidade, uma vez que a mesma condição de isolamento será o meio de
transcendê-la; assim, o artista precisa da solidão para buscar, em si, a própria fuga, através
da criação de outros mundos, povoados por outros seres, por vezes tão solitários quanto
aquele que os criou.
Que faria Marcel, o herói de Em busca do tempo perdido, de Proust, se não
encontrasse na literatura o meio de transcender o absurdo? Tentara caminhos vários (o de
Swann e o de Guermantes, entre outros), e voltou para dentro de seu universo,
transformando a experiência vivida em relato narrativo. Assim como Paulo Honório, de São
Bernardo, que busca reencontrar Madalena no universo que cria para ambos na literatura. A
solidão é necessária, pois o homem se descobre e ao outro dentro de seu mundo; a
incomunicabilidade na existência cotidiana é motivação para sua transcendência pela arte.
As almas são incomunicáveis, como escreveram Proust e Bandeira; a obra de arte,
entretanto, ao tratar dessa incomunicabilidade, faz dialogarem almas dispersas, espalhadas
no tempo e no espaço, que se identificam e aproximam.
A incomunicabilidade não se apenas na relação entre o artista e o mundo,
como nos movimentos de vanguarda do início do século XX, mas entre as personagens e
sociedades criadas pela obra de arte, de modo que as dificuldades de compreensão entre os
homens passam a figurar entre os temas da arte moderna. O herói trágico da modernidade é
representado pelo grau de individualidade com que se manifesta diante da vida ou pelo
quanto de tensão há entre ele e o mundo. Maior a tensão, mais aguda deverá ser a
consciência do herói a respeito de sua condição, reconhecendo-se solitário, e será ainda
mais heróico se optar por seu ser individual, apesar do mundo.
Estrangeiros são Meursault, Joseph K..., do Burro, a menina ruiva, e todos os
outros personagens que buscam em si mesmos transcender a solidão da existência.
Descobrem o sentido de viver na própria vida, sabendo-a o absurdo território da
incomunicabilidade, mas sua postura revela, mais do que simples aceitação, a
transfiguração da realidade por meio da liberdade individual. O que parecia não ter
significado, já que os valores universais foram deflagrados em sua artificialidade, adquire o
120
sentido pessoal que cada ato de existir lhe concede; assim, o ato de desejar é real,
significativo, enquanto que a posse constitui apenas uma aparência de verdade.
Os personagens da dramaturgia rodriguiana são seres que desejam fugir de si
mesmos, da realidade que os diminui diante de suas ambições. A falecida Zulmira aspira a
um enterro fantástico; Boca de Ouro, a um caixão todo feito de ouro. O malogro final
nessas peças ironiza os sonhos de realização, condenado-os à existência permanente na
esfera de desejos, jamais realizações. Mas que teriam feito de suas vidas esses seres caso
soubessem que o destino lhes negaria o que almejavam? As histórias de Zulmira e Boca
representam ainda certa esperança, pois esses heróis não cessam de tentar atingir seus
objetivos em vida, de modo que transformam a existência cotidiana em busca e auto-
construção, a despeito da condição absurda do próprio homem.
Também em Vestido de noiva e Valsa n.º 6, a morte aparece com reunificadora do
eu, por mais disperso que se possa mostrar esse processo de comunhão do indivíduo
consigo, seu mundo de coisas e suas lembranças. No limite da existência, Alaíde e Sônia
vivem o momento da mais intensa solidão, mas são capazes de criar (ou recriar) a imagem
que têm de si e fazê-la dialogar com outras possibilidades do eu, outrora escondidas ou
camufladas pela necessidade do ser social. Geni, a prostituta de Toda nudez será castigada,
não reconstitui simplesmente a história com Herculano na fita que deixa para ele antes de
suicidar-se; mais que isso, ela assume o ponto de vista de narradora de sua própria vida,
refaz o percurso que a levou até ali e, não encontrando saída para o absurdo, opta pelo
suicídio.
Edgard, de Bonitinha, mas ordinária, nega a frase do Otto, “o mineiro só é solidário
no câncer” e decide reconstruir sua vida, não mais se pautando pelas ambições de outros
que não ele próprio. Oswaldinho, em Anti-Nelson Rodrigues, renega a família, os exemplos
aprendidos ao longo de sua formação, para se render ao desconhecido, representado pela
figura de Joice. Os personagens dessas peças são salvos pelo amor, e por ele tornam-se
criadores de suas vidas, pois descobriram, à sua maneira, a possibilidade de transcender o
vazio, outrora naturalizado, de sua condição. Não é a arte que os faz individuais, mas a
criação de uma nova realidade para si mesmos. Se achavam normal a corrupção do ser
humano pelo dinheiro, não havia motivos para tentar fugir a tal destino; contudo, o
despertar da consciência, que se pelo relacionamento amoroso em ambos casos, anuncia
121
a necessidade de buscar a salvação de seu eu individual e os faz descobrir o caráter aparente
dos valores sociais, numa “normalidade” contestável e hipócrita.
Tal é o destino do herói da dramaturgia de Nelson Rodrigues: conhecedor do vazio
que domina as relações entre os homens, busca valores individuais e verdadeiros dentro de
seu universo para humanizar-se e, de alguma forma, humanizar também o mundo. Arandir,
herói de O beijo no asfalto, ao atender o desejo de alguém que estava para morrer, acabou
por fazer daquele momento o despertar da própria vida; poderia ter protestado diante das
acusações que lhe foram feitas, afirmando-se senhor de sua vontade, mas não o fez. Sabia
que era inútil o esforço, teve medo das reações contrárias, foi fraco; no momento do beijo,
entretanto, Arandir é herói, pois atendeu ao apelo instintivo de confortar o outro e, em certa
medida, de ser o outro. O eu individual entra em comunhão com o mundo, representado
pelo atropelado e, em seguida, é violentamente excluído, devendo voltar à solidão de sua
existência, cada vez mais condenado à incomunicabilidade.
É interessante notar como o crítico Sábato Magaldi avalia o tema na peça O beijo no
asfalto:
O Beijo no Asfalto pode ser encarada (...) como a tragédia da incomunicabilidade.
Arandir é incapaz de provar aos outros que o beijo que deu no moribundo
representou gesto puro de solidariedade, e o manifestação de homossexualismo. A
mulher deixa-se vencer pela onda de preconceitos. E a cunhada está disposta a aceitá-
lo, mas por equívoco, achando que ele é homossexual. A incomunicabilidade vota o
homem, irremediavelmente, à solidão. (Magaldi, 1992, p. 74-75)
Condenado e incompreendido dentro da história, Arandir é absolvido fora dela, pelo
leitor/espectador que se solidariza com ele, tal como este o fizera com o atropelado, pois
também o herói foi, de certa forma, “atropelado” pela sociedade. O pessimismo de Nelson
Rodrigues, ao mostrar o aniquilamento do ser verdadeiro pelas mãos do mundo hipócrita, é
também catarse da solidão de cada um, leitores e espectadores que reconhecem no drama
de Arandir sua própria condição de estrangeiros em permanente tensão com uma realidade
feita de aparências, que nega ao indivíduo a liberdade de existir, escolher, enfim, a
liberdade de ser.
Nelson Rodrigues foi chamado pessimista, reacionário, pornográfico... A obra de
Nelson mostra, por meio do pessimismo, uma esperança legítima de salvação, seja pelo
122
amor ou pela arte. Reacionário, em termos políticos, quando tão próximo estão seus heróis
daqueles de uma arte que se diz engajada? Não se trata da instituição política, mas de
liberdade individual, num mundo em que as instituições família, religião e sociedade, no
geral, estão falidas; seus valores não fazem mais sentido, vivem na aparência da verdade,
longe de sua essência primeira e última: a verdade de cada um. É pornográfico na medida
em que seus personagens revelam, por meio de desvios sexuais, muitas vezes, o vazio de
sua existência, a falta de amor. Contudo, os bons instintos podem se vestir de prostituta, por
exemplo, para humanizar o que a sociedade tratou de excluir, por considerar superiores
seus hábitos já desgastados e sem significado real.
A modernidade da obra de Nelson Rodrigues, em confluência com escritores
estrangeiros e brasileiros da época, além da parte formal, mostra-se nesta concepção do
homem, como ser social e individual, em tensão com o mundo do qual (não) participa.
Nelson Rodrigues acreditava no ser humano, e fez dele a matéria de sua obra. Na
sociedade, nem tanto; tampouco nas convenções de normalidade que regem as relações.
Mas transformou o ser único, individual, no herói que busca transcender o absurdo da
existência ou simplesmente fugir dele —, enquanto que os grupos sociais são
desmascarados pelo autor.
Ser solitário é a condição da existência humana, e tão clara é a percepção de Nelson
Rodrigues a esse respeito que seus personagens, envolvidos em relações do mais obsessivo
desejo de posse do outro, não deixam de ser solitários, devendo voltar-se para si, a fim de
consumar a comunhão almejada dentro de seu universo particular. Os desejos íntimos, bem
como as crenças pessoais, são incomunicáveis e devem permanecer assim para continuar a
existir. Revelados, não encontrarão mais do que incompreensão, repúdio, negativas;
guardados conscientemente, numa opção pela incomunicabilidade, deflagram a
superioridade do homem que se reconhece parte integrante do mundo, sem abdicar de seu
direito à solidão.
123
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