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CELIA CRISTINA DE AZEVEDO
CONDUZIR O BANQUETE DA VIDA:
a presença feminina na obra de Muriel Spark.
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – UNESP, para a obtenção do título de Mestre em
Letras – Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social.
Orientadora: Dra. Cleide Antonia Rapucci
Assis
2007
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CELIA CRISTINA DE AZEVEDO
CONDUZIR O BANQUETE DA VIDA:
a presença feminina na obra de Muriel Spark.
Assis
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Azevedo, Célia Cristina
A994c Conduzir o banquete da vida: a presença feminina na obra
de Muriel Spark / Célia Cristina Azevedo. Assis, 2007
151 f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Spark, Muriel, 1918-2006. 2. Crítica feminista. 3. Litera-
tura inglesa. I. Título.
CDD 820.9
823
4
Aos meus pais e irmãos, pelo apoio e compreensão nos momentos de ausência,
e aos queridos amigos que me acompanharam nesta jornada
dedico todo meu carinho
.
5
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho não seria possível sem a colaboração de algumas
pessoas; seja com conselhos, sugestões, empréstimo de material, uma palavra amiga, ou
simplesmente a compreensão de que, para ter os olhos voltados para uma única direção é
necessário, muitas vezes, que o foco se estreite sobre o microcosmo das idéias e dos papéis.
Por isso, em primeiro lugar, agradeço a Cleide, minha orientadora, minha
amiga. Não sei com quais palavras é possível falar da satisfação que tive de ter sido guiada
pela zona selvagem por uma pessoa tão companheira. Sempre presente, foi a “guiding star
deste trabalho, quem me mostrou a riqueza do mundo das mulheres numa incursãothrough
the looking glass”.
Também agradeço ao professor Jorge, quem me apresentou à Muriel Spark, e
oportunizou a realização deste trabalho. Pelos livros emprestados, pelo interesse demonstrado,
pelo apoio e pelas contribuições ao texto e à minha leitura. À professora Ana Maria que, com
questionamentos, sugestões, esclarecimentos, me permitiu enxergar as limitações de minha
leitura e as arestas a serem aparadas no texto, meus sinceros agradecimentos.
Aos professores, funcionários da Seção de Pós-Graduação e da Biblioteca da
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, cuja contribuição se verifica na disposição para
ajudar e prestar esclarecimentos; sem este apoio, teria sido muito difícil. Também à Direção e
Coordenação da minha escola, aos professores, colegas de trabalho, que me apoiaram,
incentivaram e compreenderam quando eu parecia estar “em outro mundo”. Obrigada a todos.
Meus agradecimentos, também, aos queridos amigos e amigas, que me deram
apoio e palavras de incentivo, compreenderam minhas auncias, mas sempre mantiveram um
contato. À minha comunidade, São João Batista, agradeço pelo apoio e orações,
principalmente por aceitar meu trabalho em horários tão limitados.
Finalmente mas, acima de tudo, agradeço à minha família, principalmente aos
meus pais. Vocês caminharam comigo, abriram mão de minha companhia e fizeram coisas
cujo único sentido era de ser feito por mim, para o meu sucesso. Por todos os momentos,
obrigada. Acredito que todos vocês têm consciência do quanto um conselho, um pequeno
favor, ou o simples fato de estar ao meu lado foram primordiais para a concretização deste
sonho. Aos vocês, que eu amo, muito obrigada.
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this one took me. She made me go. She was driving. I didn’t want to
go. It was only by chance that I met her… I was afraid.
The Driver’s Seat, p. 105
“I’m tired of being the passive carrier of disaster. I feel frustrated. I
almost think it’s time for me to take my life and destiny in my own
hands, and actively make disasters come about. I would like to do
something like that.”
Symposium, p. 149
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AZEVEDO, C. C. Conduzir o banquete da vida: a presença feminina na obra de Muriel
Spark. 2007. Dissertação (Mestre em Letras – Literatura e Vida Social) – Universidade
Estadual Paulista – UNESP, 2007.
RESUMO
Constitui objetivo principal deste trabalho a observação da presença feminina
nos romances The Driver’s Seat e Symposium, da escritora escocesa Muriel Spark, como fator
que possibilite traduzir a realidade das mulheres que buscam autonomia e que,
conseqüentemente, ofereça uma relação entre esta atitude e as reações sociais que causam.
Com base nos estudos que tratam de questões identitárias (dentro dos estudos de gênero,
especificamente, a crítica feminista) será averiguada a recorrência de alguns temas. Dentre
eles, destacam-se a morte, a loucura e o aparente controle da situação que, de alguma forma,
revelam problemas, conflitos e aflições das personagens estudadas.
No primeiro capítulo, situamos a autora com relação ao movimento das
mulheres, com o objetivo de, ao contextualizá-la, ter uma melhor compreensão de sua obra.
Assim, observam-se as características mais evidentes de seu trabalho com relação às práticas
das mulheres em um plano global.
Dentre as questões que marcam os estudos da escrita das mulheres, no segundo
capítulo serão abordadas algumas linhas críticas que por ela se interessam e a diferenciam da
escrita dos homens. A proposta da crítica centrada na mulher (ginocrítica) trata da diferença a
partir da ênfase no corpo, na linguagem, na psique e na cultura das mulheres. À luz destas
críticas, será realizada uma análise preliminar dos romances sparkianos.
No terceiro capítulo, as questões de gênero passam a ser discutidas como fator
de análise que prevêem diferenças internas ao grupo das mulheres, bem como semelhanças
com trabalhos masculinos. Este aspecto do gênero ocasiona uma leitura não mais binária e
hierarquizada de textos, mas que permita às diferenças tornarem-se fator de liberdade e
autonomia.
Finalmente, a contribuição da autora para a literatura e sua relação com o
movimento das mulheres constitui objeto de breves comentários.
Palavras-chave:
Muriel Spark, The Driver’s Seat, Symposium, crítica feminista, figura feminina.
8
AZEVEDO, C. C. Driving life’s symposium: the female presence in Muriel Spark’s work.
2007. Dissertation (Master’s in Languages – Literature and Social Life) – São Paulo State
University – UNESP, 2007.
ABSTRACT
The main aim of this work is to observe the female presence in Muriel Spark’s
novels The Driver’s Seat and Symposium as a factor that can translate the reality of women
who look for autonomy and that also offers, as a result, a relation between this attitude and the
social reactions they cause. Based on studies that deal with identity matters (within gender
studies, specifically, the feminist criticism) the recurring use of certain themes will be
verified. Among them we can point out death, madness and an apparent control on the
situation which in some way reveal problems, conflicts and afflictions of the observed
characters.
In the first chapter, the author is placed within the womens movement as a
way to have a better comprehension of her work by putting her in a specific context. Then, her
work’s most evident characteristics are observed in relation to women’s practices as a whole.
Among those questions that mark women’s writing studies, in the second
chapter will be mentioned some critical trends interested in those writings and which
differentiate them from men’s writing. The proposal of the criticism centered in the woman
(gynocritics) deals with the difference emphasizing the women’s body, language, psyche and
culture. Based on these critics it will be made a preliminary analysis of Spark’s novels.
In the third chapter, gender matters begin to be discussed as an analytic factor
which foresees internal differences in women’s group as well as similarities to men’s works.
This gender aspect causes a reading no longer binary and based on hierarchies, but one that
allows the differences to become a factor of freedom and autonomy.
Finally, the author’s contribution to Literature and her relation to the women’s
movement will be subject to brief comments.
Key-words:
Muriel Spark, The Driver’s Seat, Symposium, feminist criticism, female figures.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09
CAPÍTULO 1 - Muriel Spark: Inscrição no Movimento das Mulheres............................16
1.1 – O particular da mulher: Curriculum Vitae de Muriel Spark...............................22
1.2 – Rebeldia em público: a escrita das mulheres.......................................................35
CAPÍTULO 2 - Em Busca da Diferença: a Escrita e a Leitura das Mulheres..................47
2.1 – Encontro com a diferença: o corpo e a linguagem das mulheres.........................53
2.2 – O outro e a selvagem: diferença na psicanálise e nos estudos culturais..............70
CAPÍTULO 3 – Condutoras do Banquete............................................................................93
3.1 – Mulheres diversas: o gênero como construção teórica.........................................97
3.2 – Além das fronteiras: fim da discriminação, início da liberdade.........................109
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................120
REFERÊNCIAS....................................................................................................................132
APÊNDICES..........................................................................................................................140
APÊNDICE A – Resumo do romance The Driver’s seat...........................................140
APÊNDICE B – Resumo do romance Symposium.....................................................143
ANEXOS ...............................................................................................................................146
ANEXO A – Foto de Spark em idade escolar ............................................................146
ANEXO B – Foto de Muriel Spark em 2004..............................................................147
ANEXO C – Carta de Grahan Greene........................................................................148
ANEXO D – Carta de Elizabeth Taylor......................................................................149
ANEXO E – Capa de uma edição de The Driver’s Seat.............................................150
ANEXO F - Capa da versão francesa de Symposium.................................................151
ANEXO G – The Driver’s Seat – versão francesa…………………………..………152
ANEXO H – Trabalho crítico de Spark sobre Mary Shelley......................................153
10
______________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
________________________________________________________________________
11
Virginia Woolf (1985) diz que se surpreendeu, em pleno século XX, ao iniciar
seus estudos acadêmicos, com o montante de trabalhos relacionados às mulheres realizados
por homens. Também a surpreendeu a escassez de trabalhos realizados por mulheres. As
leituras de Woolf denotam que as figuras femininas sempre estiveram presentes na Literatura
Mundial, embora esta presença significasse quase exclusivamente um estudo da “alma
feminina” realizado por homens que colocavam as mulheres como personagens em seus
textos. Desta forma, os textos revelavam a visão masculina do chamado sexo frágil enquanto
divulgavam e ditavam o modelo de mulher a ser seguido e perpetuado.
A partir do século XVIII, com o surgimento do gênero romance, a Literatura e
a própria sociedade passaram por mudanças e as mulheres começaram a se movimentar com o
intuito de serem vistas e reconhecidas. Os questionamentos com relação à importância da
mulher na sociedade e na cultura resultaram em várias reflexões sobre o assunto e as
mulheres, ofuscadas pela presença e vontade masculinas, passaram a ter uma atuação mais
significativa como ser humano e “ser de papel”.
Como conseqüência da modernização das sociedades, como a Revolução
Industrial noculo XVIII, quando se tornou necessário que as mulheres trabalhassem para
atender à demanda de mão-de-obra nas fábricas, as mulheres passaram a se organizar para
exigir seus direitos. Surgiu, assim, a oportunidade para este grupo assumir sua voz para falar
com autonomia e autoridade.
Um dos acontecimentos importantes para que a ação das mulheres adquirisse
um caráter público foi a publicação do livro A Vindication of the Rights of Woman ("Em
defesa dos direitos da mulher"), de Mary Wollstonecraft, em 1792, o qual defendia o uso da
razão pelas mulheres no lugar da emotividade para não serem escravizadas pelos homens. No
século XIX, livros como Uncle Tom's Cabin (1853) de Harriet Beecher Stowe representam o
engajamento político que traça o paralelo entre a escravidão africana e a condição feminina.
No início do século XX, as principais reivindicações feministas haviam sido
conquistadas na maior parte dos países ocidentais (direito ao voto e escolarização e acesso ao
mercado de trabalho). Porém, por volta dos anos 60 publicações como O Segundo Sexo
(1949) de Simone de Beauvoir (que deu origem à “segunda onda” do movimento das
mulheres), chama a atenção para uma visão da hierarquia entre os sexos como construção
social, não apenas como fator biológico. Passou-se a questionar, ainda, as raízes culturais das
desigualdades e, como conseqüência, os questionamentos levaram a uma nova atitude ante a
sociedade – o que resultou em uma busca por autonomia.
12
Esta busca por autonomia reflete-se, principalmente, nas obras produzidas por
mulheres e, de forma particular, naquelas em que são as figuras centrais. Desta forma, a
literatura focalizada na figura feminina permitiu a esta uma atuação que revelasse a realidade
em que viviam as mulheres, não mais da forma como os homens as viam, mas de forma a
revelar seus desejos, sonhos e destino, além das pressões e restrições a que eram sujeitas e que
passavam a recusar.
Descobrir a mulher na literatura, observá-la neste meio e ouvir sua voz e
mensagem, não são tarefas simples ao se analisar seu papel na e para a literatura. Isto porque
há uma profusão de vozes femininas buscando serem ouvidas e, para ouvi-las, necessita-se de
um ouvido sensível e apto a decodificar esta mensagem. Da mesma forma como notamos
várias vozes fazendo-se ouvir na literatura, há uma voz relativamente nova que busca
estabelecer a relação entre esta arte e a mulher: os estudos que tratam de questões identitárias,
de uma forma mais específica as da figura feminina, conhecida como estudos de gênero.
Sob este prisma, os estudos acadêmicos passaram a direcionar sua atenção para
personagens históricos e literários que até então ficavam à margem das manifestações teóricas
e artísticas. A esta iia pode-se associar a afirmação de Vera Queiroz (1997, p. 13), de que os
estudos literários passaram a focalizar as chamadas “minorias (étnicas, raciais e sexuais)”, as
quais procuram ser ouvidas “como vozes interessadas e como sujeitos de práticas poticas e
discursivas ativas”. Dentre estas vozes, destaca-se a figura feminina como agente discursivo
de sua própria realidade e prática.
O encontro com os estudos de gênero tornou-se a motivação para o início da
busca de obras e autores que fossem significativos na caracterização da mulher a partir da arte
literária. De um encontro quase por acaso com Muriel Spark, especificamente com The
driver´s seat (1970), cuja figura central revela-se intensa e enigmática ao leitor, iniciamos a
busca de informações relacionadas à autora e sua obra. Inicialmente, a internet, por ser mais
prática e acessível, foi a primeira fonte, seguida de uma pesquisa nos trabalhos apresentados
na MLA (Modern Language Association).
O resultado foi o despertar do interesse pela escritora escocesa nascida Muriel
Sarah Camberg no ano de 1918 e falecida aos oitenta e oito anos em abril de 2006, a qual
recebeu da rainha Elizabeth o título de “Dame” do império britânico em 1993 em
reconhecimento pela contribuição da autora à cultura daquele país. Spark figura entre as
principais personalidades do Reino Unido, colecionando best sellers desde a estia na
literatura, em 1958, até as últimas publicações. Sua dedicação à escrita se declara na
afirmação da necessidade de escrever ao menos três horas por dia, além de estar sempre
13
pensando na próxima história a ser criada. Esta característica da autora permite compreender a
extensa e variada literatura que produziu, assim como os prêmios e homenagens recebidos.
A produção literária de Dame Spark teve início em sua inncia com poemas e,
mais tarde, englobou contos, biografias e coletâneas de cartas (de Wordsworth, Emily Brönte,
Mary Shelley). A autora tornou-se realmente conhecida, no entanto, com a publicação do
romance The Prime of Miss Jean Brodie em 1961. Seus romances têm como características
marcantes a relencia das personagens femininas, a recorrência de questões existenciais e
sociais. Ironia e humor também são recursos recorrentes que dão um tom leve a obras que se
propõem a discussões muitas vezes polêmicas.
Neste trabalho, as obras The Driver´s Seat (publicado originalmente em 1970,
sem tradução no Brasil) e Symposium (publicado em 1990 e traduzido para o português por
Waldea Barcelos em 1994), constituem o objeto de estudo. Com a finalidade de elucidar as
relações de poder em um âmbito social por meio da leitura dos romances, o título da
dissertação (Conduzir o banquete da vida) foi elaborado referindo-se às relações de poder ao
aludir ao verbo conduzir (em inglês, to drive) do título de The driver’s seat, bem como
tomando-se de empréstimo o termo “banquete” de Symposium, o qual alude a uma reunião
informal (aspecto social).
Ao privilegiar estas obras, tem-se por objetivo trabalhar a mulher como
protagonista no romance contemporâneo e, devido ao período que as distancia, observar a
manutenção ou mudaa na forma de apresentá-la em momentos hisricos distintos.
Enfatiza-se, ainda, o fato de ser o primeiro romance aquele considerado pela escritora seu
favorito e por ocasionar o exame de uma personagem aparentemente isolada socialmente,
enquanto o último permite observar a mulher inserida em um grupo social específico (a
sociedade burguesa escocesa).
Embora a autora não seja muito conhecida no Brasil, nem haja um mero
considerável de produções acadêmicas
1
a seu respeito, a leitura e análise de suas obras podem
contribuir para uma visão abrangente do universo feminino. Em seus escritos são encontradas
personagens cuja complexidade torna-se o enigma que se busca desvendar não somente na
mulher, mas em todo ser humano.
Mesmo que não seja facilmente identificável no texto, a constituição das
personagens nas obras de Spark ocorre de forma cuidadosamente elaborada. Neste sentido, é
1
Uma pesquisa na plataforma Lattes detectou uma única dissertação de Mestrado, datada de 1980, de autoria de
Suely Maria de Paula e Silva Lobo: Places of the mind: a study of places imagery in Muriel Spark’s novel, além
de alguns artigos publicados pela mesma autora em revistas especializadas.
14
importante mencionar que suas obras são permeadas por uma linguagem simbólica a qual, sob
uma seleção lexical simples, clara e direta, lhes dá um caráter sintético e, ao mesmo tempo,
enigmático. Por meio de pequenos detalhes as personagens se revelam, assim como suas
motivações, pensamentos e sentimentos. Há também a recorrência de sub-plots, enredos
secundários nos quais as informações se entrecruzam e complementam, enquanto a ação
principal se desenvolve, formando uma teia de significações que aos poucos vão revelando ao
leitor detalhes necessários para o esclarecimento de fatos ainda não perceptíveis.
Pode-se observar, ainda, que a recorrência de alguns temas – como a morte, a
loucura e o aparente controle da situação – é significativa para que se compreenda a realidade
das mulheres que o texto quer revelar. Ao envolver questões relevantes para as mulheres,
notam-se certas ações que problematizam a realidade que elas desejam retratar ou combater.
Assim, a impressão que se tem é que a obra de Muriel Spark procura desafiar o leitor, levá-lo
ao questionamento de sua atitude ante o texto, fazê-lo desejar participar da narrativa e buscar
respostas às queses propostas como forma de pensar sobre a própria realidade.
É importante mencionar que somente os aspectos formais e estilísticos,
isoladamente, não justificam por completo a escolha do tema, das obras e da autora. Devem-
se mencionar, ainda, os motivos pessoais, como o interesse pela literatura e pelos estudos
relacionadas à figura feminina, além do encontro prazeroso com obras complexas, nas quais o
leitor se vê diante de um mundo novo e intrigante.
Desta forma, este estudo tem por objetivo realizar uma leitura dos romances
sparkianos com maior atenção para as figuras femininas, a fim de relacioná-las com a
realidade experimentada pelas mulheres. Ao apresentar universos que segundo a autora são
inspirados por sua observação da realidade, Muriel Spark permite o estabelecimento de uma
relação entre o universo textual e o extra-textual no qual se ampara. Conseqüentemente, um
melhor entendimento das obras é possibilitado ao se relacionar a vida da autora, sua obra e o
movimento das mulheres. Por meio de uma leitura que insira a escrita de Spark neste
movimento, com a finalidade de utilizar os “instrumentos” empregados pela crítica feminista,
a observação de suas personagens poderá revelar as questões que interessam às mulheres, bem
como as problemáticas que envolvem a escrita e a leitura realizadas por elas.
Sendo este, possivelmente, o primeiro trabalho realizado em língua portuguesa
a respeito da obra de Muriel Spark, pretende-se, ainda, contribuir para a divulgação desta
autora cujas produções tornaram-se objeto de estudo em vários países e foram traduzidas para
vários idiomas. Apesar de haver traduções de alguns romances da autora em português, como
15
veremos posteriormente, trabalhos críticos na língua não foram encontrados até o momento
em que se realiza o presente estudo.
Assim, em virtude deste trabalho estudar os romances em sua língua original
(Inglês), tornou-se necessária a opção por uma padronização previamente definida para que as
citações fossem inseridas no texto da forma mais clara possível. Optou-se, então, pela
inserção das citações mais longas dos textos em sua língua original, salvo exceções de trechos
incorporados ao discurso da análise – aqueles realmente curtos – em que houve uma tradução
livre para o português (no caso de The Driver’s seat) ou a citação do texto traduzido (no caso
de Symposium / O Banquete).
Quanto à disposição dos capítulos, definiu-se por realizar, no primeiro capítulo,
a inserção da escritora escocesa e de sua obra no movimento das mulheres. Num primeiro
momento, a trajetória de Muriel Spark – enquanto mulher em formão e em busca de seus
ideais – constitui o principal interesse deste trabalho. O exame de uma carreira artística que se
iniciou na infância e cujas experiências pessoais foram notadamente determinantes em sua
escrita permite observar como algumas mulheres tiveram que desafiar os limites a elas
impostos para poderem realizar seu trabalho. Conseqüentemente aos aspectos pessoais, a arte
de Spark passa a configurar o foco deste trabalho. A partir do início de sua carreira
profissional, em que se analisam as características mais marcantes e a recepção de seu
trabalho, verificam-se os pontos de convergência entre o trabalho da autora e, de maneira
geral, das mulheres.
O segundo capítulo objetiva a apresentar as principais tendências críticas que
se preocupam em realizar uma leitura de obras de autoria feminina e em encontrar, nestas
obras, elementos que possam ser considerados diferenciadores entre estes escritos e aqueles
produzidos por homens. Centradas especificamente nos escritos das mulheres, estas linhas
críticas estão subdivididas em quatro “modelos” principais que buscam diferenciações
biológicas, lingüísticas, psicológicas ou culturais expressas nos textos femininos.
Relacionados ao trabalho de Muriel Spark, estes modelos permitem abordar questões formais
e temáticas dos romances, com maior ênfase na apresentação das personagens femininas.
Objetiva-se, finalmente, questionar a funcionalidade destes modelos enquanto categorias de
leitura e crítica que permitem uma leitura em favor das mulheres, falando de seu universo de
experiências e vivências, bem como elencar as possíveis limitações da leitura baseada nestes
modelos.
O terceiro capítulo aborda as questões de gênero não somente como fator de
diferenciação entre homens e mulheres, mas como categoria que busca averiguar a relação
16
entre as mulheres e as outras diferenças” dentro deste grupo (étnicas, de orientação sexual,
entre outras). Estes grupos encontram-se representados pelas personagens de Spark,
principalmente pela especificidade de cada obra, que apresenta personagens diferentes entre
si, distanciadas temporal e situacionalmente. Observa-se, ainda, que as personagens femininas
são consideradas mais fortes, enquanto os homens são descritos como fracos e dependentes.
Também se propõe a discutir neste capítulo o “futuro” das mulheres e da crítica feminista, o
que para algumas estudiosaso significa o fim das diferenças, mas o direito de falar
livremente a partir das diferenças.
As considerações finais caracterizam-se pela exposição da contribuição de
Muriel Spark à literatura, especialmente para a compreensão das práticas de escrita com os
quais a autora apresenta o mundo das mulheres. Tecemos também, neste momento do
trabalho, alguns comentários sobre a relação da obra sparkiana com o movimento das
mulheres.
Logo em seguida, encontram-se os apêndices, cujo conteúdo são os resumos
dos romances que constituem o corpus deste trabalho. Julgou-se necessário o acréscimo desta
seção pelo fato de as referências às obras estudadas ocorrerem de forma a deixar que as
narrativas ficassem fragmentadas, o que dificulta a visão total de cada obra. Também tem o
propósito de apresentá-las aos brasileiros, para quem a autora ainda não é uma referência de
leitura.
A parte denominada anexos contém reproduções de fotos da autora, assim
como cópias de cartas (de Graham Greene e de Elizabeth Taylor) e da capa dos dvds das
adaptações de The driver’s seat e de The Prime of Miss Jean Brodie. Os anexos têm o
propósito de familiarizar o público brasileiro com a autora e, de certa forma, com sua obra e
recepção.
17
________________________________________________________________________
CAPÍTULO 1
MURIEL SPARK: INSCRIÇÃO NO MOVIMENTO DAS MULHERES
________________________________________________________________________
18
Este capítulo visa a estabelecer uma relação entre as reações causadas pelo
movimento das mulheres e as produções literárias posteriores. Assim, será observada a forma
como se deu, desde o início, este movimento que buscou (e ainda busca) inserir as mulheres
num espaço proibido a elas, cujas normas as caracterizam como ooutro” daqueles que detêm
o poder. As diversas pressões que levaram as mulheres a desejarem mudar a situação em que
se encontravam, a fim de deterem o controle de suas próprias vidas, se explicam pela
observação da história da humanidade. É importante, neste ponto, observar os fatores que
contribuíram, ou foram manipulados, para que as mulheres fossem consideradas inferiores aos
homens.
Outro fator a ser cuidadosamente estudado são os desejos e ansiedades que
levaram as mulheres a lutarem pelo direito de construir sua própria história, de assumirem
uma posição contra a autoridade a elas impostas, bem como se fazerem ouvir – uma voz
destoante, irritante e desconhecida. A busca pela conquista de direitos há muito tempo
negados faz com que o dominado enfrente o dominante a fim de mudar as regras que até então
não lhe eram favoráveis; uma mudança necessária e urgente.
Oliveira (1999) afirma que o movimento das mulheres se originou a partir do
questionamento das relações de poder entre homens e mulheres. Aqueles, ao notarem as
difereas entre os sexos, a existência dos territórios masculino e feminino, que se opunham
devido a traços a partir da especializaçãoem uma determinada relão com o meio
ambiente”, de uma forma “obscura” impôs uma hierarquia entre os sexos. As mulheres,
isoladas no espaço privado/do lar não podiam participar do espaço público (do trabalho),
exclusivo aos homens.
Com o passar de um tempo quase impossível de determinar, o grupo dominado
decidiu questionar a hierarquia sexual e, progressivamente, buscou sua inclusão no espaço
onde lhe era proibido movimentar-se. A autora aponta o século XVIII como essencial para
estas conquistas das mulheres. Ainda em sua fase inicial, a Revolão Industrial, que
determinou a necessidade de mão-de-obra para suprir as necessidades de produção, permitiu o
acesso das mulheres ao mundo do trabalho. Embora inicialmente fossem tratadas como
inferiores, a busca por elas depreendida por melhores condições de trabalho e salários justos,
início à
19
primeira ruptura no paradigma de diferenciação de mundos, na medida em que
separa a casa do lugar de trabalho e confronta homens e mulheres às mesmas
máquinas, ritmos e exigências da produção fabril. (OLIVEIRA, 1999, p. 43)
De forma análoga, o pensamento feminista passou a ser divulgado e defendido
por meio de publicações como o livro A Vindication of the Rights of Woman ("Em defesa dos
direitos da mulher"), de Mary Wollstonecraft, de 1792. Ao defender a igualdade social entre
os sexos, a autora pretendia garantir a criação e preservação de direitos e oportunidades para
as mulheres. Para a autora, a razão deveria sobrepor a emotividade e as mulheres não
deveriam se preocupar demais com o amor rontico nem com o desejo físico. Afirmava
ainda que, por não serem condições naturais da existência feminina, estas preocupações eram
impostas socialmente para que fossem escravizadas pelos homens. Embora ainda apresente
algumas limitações (pois também culpa as mulheres por sua situação e por correrem risco de
preguiça intelectual e moral), é um dos poucos trabalhos escritos antes do século XIX que
podem ser classificados como feminista.
No século XIX, o movimento das mulheres passou a defender outras reformas
sociais paralelas (abolição, sistema legal igualitário) como forma de dar visibilidade aos ideais
feministas. Para Ellen Moers (1985), o livro Uncle Tom's Cabin de Harriet Beecher Stowe é
representativo deste engajamento potico, pois a publicação do romance ajudou a disseminar
a causa abolicionista nos anos 1850 nos Estados Unidos, bem como servia aos propósitos
feministas, pois as mulheres consideravam-se na mesma posição (mercadoria/escrava). Esta
atitude reflete a crescente consciência das mulheres da necessidade de reformas sociais
amplas para que pudessem ter suas iias inseridas e defendidas em um contexto de
mudanças.
No século XIX, ainda no contexto da Revolução Industrial, o número de
mulheres empregadas aumentou significativamente, o que não representou uma potica
salarial igualitária para ambos os sexos. A desigualdade gerou, então, questionamentos quanto
à exploração da mão-de-obra feminina e determinou a concomitância dos movimentos
feminista e operário e a organização das mulheres, em especial com a formação de sindicatos.
Como movimento organizado, data da primeira convenção dos direitos da mulher em Seneca
Falls, Nova Iorque em 1848. Mesmo com a movimentação social e potica, algumas
conquistas demoraram a serem efetivadas. No entanto, o período de espera aos poucos se
encurtou: a Nova Zelândia foi o primeiro país a conceder o direito de voto às mulheres
20
(1893), seguido da Alemanha e do Reino Unido (1918) e, mais tarde (1945) França, Itália e
Japão.
Nas primeiras décadas do século XX, as sufragettes, que exigiam o direito de
voto às mulheres avançam mais um passo em direção à conquista do lugar social das
mulheres. A realização de um movimento em busca de mudanças radicais num conjunto de
normas e costumes estabelecidos e impostos por um grupo restrito e autoritário, teria que
enfrentar a resistência deste grupo dominante, surpreso e irado ante tamanha “ousadia” do
“sexo frágil”.
É importante ressaltar que nas décadas de 1930 e 1940 as reivindicações do
movimento haviam sido formalmente conquistadas na maior parte dos países ocidentais
(direito ao voto e escolarização, assim como acesso ao mercado de trabalho). Estas conquistas
foram especialmente possíveis no contexto das duas grandes guerras; períodos em que surgiu
a oportunidade de as mulheres ocuparem os cargos vagos dos homens. Tal situação manteve-
se apenas até o retorno destes ao seu espaço social e a seus postos de trabalho anteriores, pois
a legislação vigente lhes dava preferência. Em suma, a implementação de condições
favoráveis ao trabalho e atuação socioeconômica das mulheres não significou
necessariamente a garantia de que esta mudança se efetuaria sem transtornos para as
interessadas: seriam necessárias muitas mudanças, a começar pelo pensamento dominante.
Já na década de 1960, publicações como O Segundo Sexo (1949), de Beauvoir,
influenciam a defesa de novas maneiras de se ver a hierarquia sexual. Por conseguinte, esta
hierarquia deixa de ser considerada uma fatalidade biológica, mas uma construção social. Esta
nova posição crítica desencadeia questionamentos quanto às raízes das desigualdades, isto é,
busca-se descobrir em que ponto da história fatores diversos conjugaram de forma a
originarem as diferenciações.
A partir destes questionamentos, um fator ganhou destaque em meio às
discussões. Se o conceito de mulher que vigorava naquele momento histórico estava
amplamente ligado às funções biológico-reprodutivas, a invenção e comercialização da pílula
anticoncepcional resultaram na invalidação deste conceito. O impacto do novo método
contraceptivo pode ser avaliado com base nas questões morais levantadas, em especial sobre
virgindade e promiscuidade. Nem mesmo a oposição da Igreja, que defendia métodos naturais
que não deturpassem a natureza e o propósito do sexo, pôde conter a popularização da pílula.
Para as mulheres, a contracepção oral lhes dava a liberdade sexual tradicionalmente masculina
21
e desenhava uma nova relação entre os gêneros, além de lhes abrir o espaço público ao
permitir que conciliassem a vida privada e o trabalho.
Nesta mesma década, a luta pela igualdade com os homens e conseqüente
direito de acesso ao espaço público faz com que as mulheres esbarrem em alguns obstáculos.
Destaca-se, principalmente, a dificuldade de compatibilizar dois estilos de vida que se opõem:
“as mulheres descobrem que o acesso às funções masculinas não basta para assentar a
igualdade e que a igualdade, compreendida como integração unilateral no mundo dos homens,
não é liberdade” (OLIVEIRA, 1999, p. 43).
Nos anos 70, a igualdade (acesso ao mundo dos homens) passa a ser contestada
pelas mulheres, as quais se em ante uma crise psicossocial. As mulheres falavam dentro do
mundo dos homens sobre seu mundo, pois “guardavam sua identidade própria”, assimétrica à
identidade dos homens. As mudanças no papel feminino, representadas pelo trabalho
assalariado, não repercutiram em mudanças no papel masculino. Este equívoco foi
questionado e posto em discussão pelas mulheres.
Também se deve enfatizar que especulações quanto à validade da pílula
contraceptiva, não como método, mas enquanto fator de risco à saúde da mulher – por ser ela
um dos fatores causadores de câncer de mama – foram amplamente divulgadas e exploradas
pela igreja. Some-se a este argumento a idéia de que ao criarem um método contraceptivo
eficiente, os homens estariam garantindo liberdade sexual com/às mulheres ao custo de sua
saúde. Juntos, os argumentos originaram uma reação à pílula em meados dos anos 70, assim
como colaboraram para embaraçar as práticas sexuais adotadas e defendidas pelas mulheres.
Novamente em busca de mudanças, “as mulheres abriram debates consigo
mesmas”, desejando, nos anos 80, a diferença devido à inadaptação no espaço público:
a contestação feminina anuncia que as mulheres não são inferiores aos homens mas
também não são iguais a eles e que esta diferença, longe de representar uma
desvantagem, contém um potencial enriquecedor de crítica da cultura. (OLIVEIRA,
1999, p. 71)
A diferença, entretanto, passa a ser o direito das mulheres. É um projeto que
busca examinar as normas sociais que ainda as separam hierarquicamente dos homens. Elas
ainda se dividem entre os dois mundos, mas buscam em si mesmas as respostas para suas
22
próprias perguntas, em que o feminismo se revela “a procura da identidade feminina substitui
a da igualdade com os homens. É, sobretudo, o desejo de dar voz a essa identidade, de fazer
existir o Feminino como presença na cultura, que se insinua na literatura” (OLIVEIRA, 1999,
p. 43)
Este enfrentamento de grupos distintos inspirou, ao longo de sua história, a
participação de outras mulheres, de forma mais declaradamente comprometida com o
movimento ou apenas sob a influência de ideais que passaram a compor o cotidiano das
mulheres. Desta forma, ainda que as obras de autoria feminina não explicitem um “contrato
com as “revolucionárias”, é possível observar um tratamento diferenciado à história das
mulheres, suas personagens, que denotam como a literatura pode refletir as mudanças
ocorridas a partir deste movimento.
Devido ao movimento das mulheres ter enfraquecido a hierarquia sexual – a
qual mantinha as mulheres fora do espaço público e as impedia de atuarem como membros da
sociedade –, conseqüentemente ele permitiu às mesmas liberdade de se expressarem e
tomarem decisões de forma a não mais ceder aos desejos de outras pessoas. Desta forma, a
literatura produzida por este grupo insurgente passou a expressar os mesmos desejos que
influenciaram o rompimento das barreiras sócio-culturais, ao apresentar questionamentos aos
padrões vigentes na vida e na arte retratando-os em suas produções.
Histórias particulares podem ser consideradas exemplo deste aspecto, como no
caso de Muriel Spark que, apesar de não se considerar feminista, apresenta em sua obra uma
contribuição significativa à construção da história das mulheres, ao apresentar personagens
cujas histórias/narrativas levam à observação de situações experimentadas por aquelas que
viram as mudanças ocorridas no mundo. Na busca de sua identidade, ou por apenas um
espaço mais significativo na sociedade, essas mulheres de papel são retratos inspirados pela
observação da realidade de um olhar-mulher cujas próprias experiências têm o foco ajustado
por aquele movimento que causou o despertar a novas possibilidades. Sob este ponto de vista,
ao serem observadas a vida e a obra de Muriel Spark identificam-se aspectos semelhantes ao
movimento que possibilitou às mulheres contemporâneas viverem com maior autonomia, de
acordo com os próprios desejos e necessidades.
Neste capítulo, julgou-se necessário recorrer a fontes o mais autênticas
possível, o que representou, em um primeiro momento, a leitura da autobiografia da autora,
Curriculum Vitae, publicada em 1992. A escrita deste volume tornou-se necessária em
decorrência de informações, consideradas por Spark inexatas, a respeito de sua vida anterior
23
ao período em que se tornou conhecida pelo público. Segundo ela, as “mentiras” foram
rebatidas por documentos (cartas e depoimentos) arquivados durante anos. Assim, a própria
autora divide sua vida em dois períodos distintos que, curiosamente, eso relacionados a
práticas textuais também distintas. Segundo Spark, sua obra autobiográfica dá conta apenas
do primeiro período, uma vez que após se estabelecer na carreira literária seus leitores e a
crítica tiveram o acesso às informações facilitado pela imprensa. Este segundo período, por
conseguinte, será abordado com a finalidade de apresentar as características mais evidentes da
obra sparkiana, bem como de sua recepção crítica.
1.1 - O particular da mulher: Curriculum Vitae de Muriel Spark
Ao se examinar o percurso de uma autora, nota-se que toda a riqueza de sua
vida não pode ser contida em uma obra de cunho biográfico, nem avaliada pela extensão das
informações armazenadas em arquivos pessoais, ainda que o montante de documentos seja
extenso e se caracterize pela variedade e abrangência da história de vida da qual pretende dar
conta. Desta forma, tanto as vivências quanto as produções literárias podem manifestar,
conjuntamente, o complexo substrato que compõe o ser humano como um todo e, em
especial, uma artista que busca através de seu trabalho expressar sua visão do mundo.
Muriel Spark ainda não era uma personalidade que chamasse a atenção do
público quando decidiu, nos anos 40, que seria interessante manter todo e qualquer
documento de ordem pessoal e profissional registrado e arquivado. Como resultado desta
decisão, seu fascínio por documentos resultou em um dos arquivos mais extensos e ricos sob
os cuidados da Biblioteca Nacional da Escócia (National Library of Scotland), o qual constitui
uma fonte de dados importante para pesquisadores e leitores desta escritora. A própria autora,
em sua autobiografia escrita em 1992 (Curriculum Vitae), compara o gosto de reunir
documentos ao prazer de fazer amigos ao afirmar que o valor do primeiro está na quantidade,
enquanto o último supera o valor do primeiro em qualidade.
Embora ainda haja documentos de acesso restrito ao público, entre eles a
correspondência entre a autora e seu filho, deve-se ressaltar a importância da Biblioteca como
24
fonte de referência a informações que para serem reunidas necessitaria de um trabalho
dispendioso. Evidentemente, o material disponível on-line oferece apenas uma visão prévia do
tipo de informação e o montante arquivado na Biblioteca. Deve-se levar em conta o fato de
aos leitores parecer mais interessante a leitura de seus vinte e dois romances, as biografias,
antologias e correspondências de personalidades (Wordsworth, Mary Shelley, Irmãs Brontë,
John Masefield, Henry Newman), os quatro volumes de poemas e os cinco de contos, sua
autobiografia, bem como a crítica relativa à obra sparkiana, para conhecerem a autora de
forma mais profunda e completa.
Ao leitor ou pesquisador interessado em conhecer a vida pessoal e profissional
de Muriel Spark, documentos que contêm evidências de um trajeto marcado por dificuldades
e sucessos constituem um recurso importante, pois revelam sua versatilidade. De acordo com
a própria autora, as experiências que marcaram sua vida foram “celebradas, ou usadas como
pano de fundo em um conto ou romance” (SPARK, 1992, p. 120), não obstante seja
necessário observar que a forma escolhida para “celebrá-las” seja remotamente a mimese. No
entanto, é importante mencionar que o montante de documentos não pode ser considerado
uma fonte inquestionável de informações, uma vez que pode significar uma seleção prévia da
interessada (Spark), assim como pode representar um recorte e/ou exclusão de arquivos cujas
informações possam comprometer a imagem que a autora construiu de se si mesma.
Assim, deve-se ter em mente, conforme Sheila Dias Maciel aponta em seu
artigoA literatura e os gêneros confessionais” (2005), que todo discurso é entrecortado de
ficção e que “não há literatura que não contenha elementos da realidade, assim como a
chamada literatura intimista ou confessional não está isenta de desvios de linguagem, posto
que é impossível transpor qualquer realidade fielmente retratada para a página escrita”. Esta
afirmação de Maciel chama a atenção para que o leitor, ao realizar a leitura de uma
autobiografia, não tome as informações como dogmas, mas as considere relativamente
suspeitas.
As informações contidas na autobiografia desta escritora escocesa, nascida
Muriel Sarah Camberg em Edimburgo em 1918 e falecida em 13 de abril de 2006, formam
um texto cuja necessidade de escrita surgiu após a escritora indignar-se com a publicação de
informações sobre sua vida, as quais foram consideradas por ela inexatas e absurdas. Segundo
Muriel Spark, a fim de distanciar-se da ficção e de esclarecer os fatos com maior exatidão, foi
preciso basear o livro em “nada além” de documentos ou depoimentos (do irmão Philip e de
25
amigos de confiança) ainda que a realidade ali retratada fosse “menos agradável, menos
romântica, mas mais interessante que a falsa história” contada a seu respeito.
Quando suas atividades literárias tiveram início, na inncia, seus versos eram
regularmente publicados na revista de sua escola em Edimburgo, a Escola Secundária James
Gillespie Para Meninas. Aos catorze anos, atentaram pela primeira vez a seu talento, quando
foi coroada “Rainha da Poesia” em um concurso comemorativo ao centenário da morte de Sir
Walter Scott promovido pelo Clube Heather. Em entrevista a John Tusa, da BBC, em 2002,
Spark afirma que nos poemas por ela escritos na infância estavam presentes as pessoas que
conhecia e situações cotidianas que lhe eram importantes: os pais, o irmão, a escola e
professores – em especial Miss Kay, que daria vida a Jean Brodie:
The first things I wrote about were the things... my brother and my mother, and my
father… I wrote about them, made up poems, made up stories. Then I wrote about
the school, and my first writing about the teacher who later became Miss Brodie… I
wrote about her. (TUSA, 2002)
Entende-se melhor a produção artística de Muriel ao observar sua formação
familiar e as relações mantidas em falia nos primeiros anos de vida, consideradas pela
autora relevantes para seus textos. Na Edimburgo dos anos 20/30, a família pobre dos
Camberg tinha uma vida social agitada, com visitas de amigos quase diariamente. Em
decorrência deste fato, os membros da família viam as mulheres de forma mais livre de
estereótipos e lhes davam mais liberdade. Uma das figuras marcantes da infância de Spark foi
a irmã mais nova de seu pai, Gertie, que parece ser uma das primeiras inflncias no que viria
a ser o estilo da autora. Por usar roupas chamativas (um conjunto composto por saia curta e
chapéu cereja) e a seu comportamento, pois seus namorados viravam piadas para as crianças:
She regarded most of her boyfriends as objects of amusement, regaling us, on her turn, with
pointed, merry anecdotes” (SPARK, 1992, p. 22).
Em geral, a maioria das pessoas era definida pela família de acordo com seus
traços mais marcantes:
26
We often laughed at others in our house, and I picked up the craft of being polite
while people were present and laugh later if there was anything to laugh about, or
criticizing later if there was anything to deplore… Sometimes people got nicknames
for use amongst ourselves (SPARK, 1992, p. 23).
Este comportamento, mais tarde definido como hipócrita pela autora, denotava
o quanto se podia dissimular ante as pessoas – usando de polidez ao estar perto de seus
interlocutores – e ter a verdadeira personalidade revelada longe dos visitantes. Este é o tipo de
hipocrisia que pode ser observada no romance Symposium, no qual os convidados mal se
conhecem mas se reúnem para discorrem sobre assuntos corriqueiros e fúteis somente com o
propósito de congregar a elite intelectual londrina. Os discursos tornam-se, então, ridículos
por perderem o sentido em razão da forma fragmentada em que são apresentados e dos
assuntos abordados.
Quanto à carreira de Spark, deve-se mencionar que, embora a família fosse o
grupo que mais demonstrasse interesse e influenciasse seus escritos, não é possível falar do
início de sua carreira como escritora sem falar da professora Miss Kay, a “personagem em
busca de uma autora”, imortalizada na personagem Jean Brodie em The prime of Miss Jean
Brodie, publicado em 1960. Miss Kay fascinava suas alunas ao lhes contar suas viagens, bem
como as incentivava a uma vida cultural intensa, especialmente Spark e sua amiga Frances,
que a acompanhavam “clandestinamente” ao teatro, a shows, ao cinema e a saraus de poesia
moderna. Para a professora, a cultura à qual as meninas tinham acesso era “marginal” e, sendo
assim, elas deveriam se beneficiar de tudo que Edimburgo tinha a lhes oferecer: Miss Kay
realized that our parents’ interest in our welfare was only marginally cultural. She was
determined that Frances and I should benefit from all that Edinburgh had to offer. (SPARK,
1992, p. 64)
Desde a mais tenra idade, Spark gostava de observar os adultos e, em especial,
examinar os professores (a aparência, as roupas, os gestos) era mais interessante que os livros.
Miss Kay consistia, segundo ela, na “instrutora dramática ideal”. O interesse das alunas pela
professora era desperto pela intensidade e vivacidade das histórias contadas, as quais
enriqueciam” a vida das meninas, que a viam como uma intelectual completa (pois dava
palestra sobre vários assuntos) e uma mulher independente e livre.
Enquanto “feministas principiantes”, as alunas viam na figura da professora a
oportunidade da construção de seu caráter. Por tomar conta das finanças da família, Miss Kay
podia usar suas experiências para despertar a simpatia das meninas e prepará-las para as
27
mudanças que se desenhavam socialmente. Assim, citava eventos que poderiam ensi-las a
serem firmes e persistentes em situações que apresentassem problemas difíceis de resolver.
Eventos exemplares na vida da professora davam indícios às alunas de como deveriam agir.
Spark expressa sua admiração por Miss Kay ao citar o episódio em que a professora pede a
revisão de uma conta de gás:
She had to go and query a bill at the Edinburgh gas office. Our class of girls,
incipient feminists, was totally enthralled by miss Kay’s account of how the clerks
tittered and nudged each other: a female desiring to discuss the details of a gas bill!...
That’, said Miss Kay, with her sweet, wise smile, ‘taught them to sneer at a
businesslike young woman’ (SPARK, 1992, p. 66-7, grifo da autora)
Curioso é observar que este episódio remete a Lise, em The driver’s seat que,
ao procurar ovestido necessário” para ela, inevitavelmente com cores berrantes, perde a
paciência com a vendedora que tenta vender uma roupa que não a agrada porque o tecido
“não mancha”. Apesar da situação do romance ser absurda, a posição assumida por ambas as
personagens – em seus contextos específicos – certamente apresenta semelhanças: ambas
querem mostrar seu domínio “sobre a situação”.
Igualmente como a influência da professora foi observada sutilmente em
personagens de obras posteriores, o incentivo, as conversas e as aulas resultavam em leituras
ávidas de poemas e, conseqüentemente, na escrita de textos a serem publicados na revista da
escola e até em uma antologia de poemas juvenis publicada em 1930, The Door of Youth, a
qual chamou a atenção pelo número de poemas (cinco) e por uma certa qualidade rica”
(SPARK, 1992, p. 65-6).
Conquanto a escrita de versos tenha marcado o início de sua carreira literária,
as experiências de Spark resultaram em um novo rumo no caminho pessoal e profissional.
Após terminar o curso secundário, inscreveu-se em um curso de prosa (“précis-writing”) e
logo foi contratada para dar aulas em um colégio particular. Em 1936, começou a trabalhar na
loja de departamentos para mulheres (Willian Small & Son) na Rua Princess, considerada
uma das cinco melhores lojas do setor em Edimburgo.
É importante observar que, apesar das mulheres exigirem da sociedade uma
maior liberdade para tomarem as decisões em suas próprias vidas, ainda no início do século
28
XX (década de 30), várias regras sociais permaneciam imutáveis. Para algumas famílias a
definição de casamento havia mudado de uma “distribuição social do bem raro que são as
mulheres, estabelecendo – através de uma troca entre homens, em que as mulheres só entram
como objeto de partilha – as condições de uma aliança entre eles, fundada no pátrio poder”
(OLIVEIRA, 1999, p. 32) para uma oportunidade de uma escolha autônoma e individual. No
entanto, algumas restrições legais ainda existiam a fim de garantir ao casamento sua definição
como instituição imutável e duradoura, a qual constituía a base da sociedade enquanto
garantia de que as funções sociais de cada indivíduo se mantivessem inabaladas.
Sob este prisma, é interessante observar que quando conheceu o “interessante”
Sydney Oswald Spark (SOS), treze anos mais velho, com quem freqüentava um clube
juntamente com outros amigos e que logo a pediria em casamento e a convidaria para morar
na África do Sul, a oposição da falia de Muriel Spark, especialmente de seu pai, não a
impediu de aceitar a proposta de seu futuro marido. Embora a própria autora afirme
desconhecer os motivos que a levaram ao casamento, ela alega que na época vários amigos já
estavam se casando, enquanto ela esperava a oportunidade de “ver o mundo”.
O casamento também representava o único meio de uma moça “decente” ter
sexo, além de oferecer a oportunidade da aventura de conhecer um continente estranho, onde
poderia se dedicar à escrita, sem se preocupar com o trabalho doméstico. Em agosto de 1937,
ela deixou seu país para se casar na Rodésia (hoje Zimbue), onde suas experiências lhe
ensinaram a “compreender a vida”, ainda que acreditasse no caráter temporário de sua estadia.
It was in Africa that I learned to cope with life. It was there that I learned to keep in
mind – in the front of the mind – the essentials of our human destiny, our
responsibilities, and to put in a peripheral place the personal sorrows, frights and
horrors that came my way. (SPARK, 1992, p. 119)
Em 1938, após o nascimento de seu filho Robin, Sydney Spark já mostrava
sinais da desordem nervosa da qual sofreria a vida inteira. Para Muriel a convincia com o
marido era dicil, pois seu temperamento era instável e freqüentemente discutia com as
pessoas sem motivo aparente e demonstrava ser violento. Na África eram comuns os casos em
que maridos se sentiam no direito de agir de forma violenta, contra suas esposas e nativos,
29
caso suspeitassem de algo errado. Presenciar situações em que os colonizadores resolviam o
problema dos negros” e os corrigiam era sempre constrangedor para ela, ainda que
consideradas naturais no círculo social a que pertencia. Episódios violentos sempre a
assustavam.
Dois anos após o casamento, Muriel percebe que cometera um equívoco e
pensa em se separar do marido, devido às suas mostras cada vez mais recorrentes de
violência. Sua decisão pareceu-lhe mais urgente após receber a notícia de que uma amiga de
escola havia sido assassinada pelo próprio marido no saguão do hotel onde estavam – o que a
deixou assustada a ponto de esconder a arma de seu marido, Sydney.
Decidida a se separar, ainda havia barreiras legais a serem quebradas, pois a
condição psicológica do marido não constituía motivo para o dircio, o qual só poderia
ocorrer em caso de infidelidade (da mulher) e abandono. Assim, a opção pelo abandono
pareceu mais razoável e um acordo entre ela e o marido (cujas custas foram pagas pelo pai de
Muriel) garantiu a expedição do documento.
Uma mulher divorciada não era comum para a sociedade e, mesmo após
muitos anos de separação, o estado civil da autora lhe traria problemas. Manter o sobrenome
de casada foi uma decisão tomada levando-se em consideração que seria importante para seu
filho, como referencial familiar, e porque em sua carreira literária Spark tinha algum
ingrediente de vida e divertimento(SPARK, 1992, p. 132), pois significa, em português,
fagulha.
Livres para voltarem para Edimburgo, Spark e seu filho tiveram dificuldades
para realizarem seu projeto, pois com o início da guerra, foram tomadas medidas restritivas à
locomoção de civis, principalmente o acesso à Cidade do Cabo, onde havia um porto. Foi
necessário que a autora deixasse o filho em um colégio interno até encontrar meios para
retornar ao seu país e leva-lo consigo em segurança. Pouco tempo depois, ela foi trabalhar na
Inglaterra e Robin ficou com os avós maternos e não se juntou mais à mãe.
Muriel Spark afirma que ao concluir que não poderia morar com seus pais nem
depender deles para sustentar a si e a seu filho, percebeu ser indispenvel ter um emprego.
De volta à Europa, a oportunidade de trabalho mais imediata estava no Ministério do Exterior
em Londres, onde as mulheres com idade abaixo de quarenta e cinco anos e sem laços
familiares eram obrigadas a prestar serviços. Por ser um emprego de caráter temporário,
30
dependente dos eventos da guerra, tornou-se mister procurar empregos que lhe dessem maior
segurança econômica.
Os padrões de comportamento das mulheres haviam mudado precariamente
nos anos 40, mas o desejo de garantir a este grupo direitos que eram exclusivos dos homens,
os quais se constituíam em autonomia intelectual e financeira, exigia um tour de force contra
a sociedade, pois o tradicional papel secundário não mais satisfazia as mulheres. Vistas em
público na companhia de homens eram consideradas dignas de desconfiança e qualquer
relação com o sexo oposto deveria ser controlada por pessoas “confiáveis”. Divorciadas, a
situação complicava-se por subentender, tradicionalmente, o não-enquadramento aos modelos
de mulher que deveriam ser. Cansadas de seguir regras ditadas por uma sociedade injusta e
sexista, bem como desejosas de criar suas próprias regras individuais, aquelas que ousaram
ser independentes ideológica e financeiramente muitas vezes pagavam um preço alto pelo
estilo de vida por que optavam.
No período em que trabalhava no interior, em um “serviço secreto” para o
Ministério do Exterior
2
, quando ia a Londres Spark ficava no Helena Club, local onde jovens
de baixa renda podiam morar por um preço razoável e trocavam informações sobre temas
diferentes; entre eles, empregos disponíveis. Desta maneira, foi possível sua contratação na
revista Argentor, mantida pela Sociedade Nacional de Joalheiros, seu primeiro emprego
“literário”, cuja função principal consistia em pesquisar em museus, bibliotecas e galerias de
arte as informações contidas em artigos publicados na revista e revisá-los. Aos poucos, lhe foi
dada a liberdade de publicar seus próprios artigos, nos quais nota-se um valor literário
merecedor da atenção dada pela Evening Standard e validado, segundo a mesma, por não
mostrar sinais de imaturidade (SPARK, 1992, p. 163-4).
Em 1947, aos 29 anos, Muriel Spark recebeu um prêmio na competição “Love
Lyric” do jornal da Sociedade de Poesia (Poetry Review), da qual fazia parte como membro
desde 1946 e para a qual trabalharia até 1949 como secretária geral, assim como editora. As
mudanças estabelecidas pela nova editora (aumento do preço das edões e da anuidade,
pagamento aos contribuintes) resultaram na melhoria da qualidade das publicações, também
resultaram em inimizades (pessoais) e diminuição de sócios – compensada pelo aumento dos
preços. Também se tornou fator de descontentamento da autora o não-cumprimento do
acordo, por parte do jornal, de lhe ser oferecido um flat para morar enquanto lhe prestava
2
Seu trabalho consistia em divulgar informações em falsas emissoras de rádio alemãs para desbancar e
enfraquecer os nazistas.
31
serviços, o que resultou na percepção de ser necessário estar no banco do motorista para
dirigir a própria vida: I took up the position that if you are in the driver’s seat, you drive”
(SPARK, 1992, p. 169, grifo nosso).
Em uma época em que mulheres jovens, bonitas e sem marido consistiam em
algo fora do comum, as amizades de Spark (com homens casados, especialmente) e sua
preocupação em publicar somente trabalhos de qualidade, originaram inimizades de sócios e
contribuintes insatisfeitos, como a Dra. Marie Stopes, especialista em controle de natalidade e
companheira de Lord Alfred Douglas, “fatal lover” de Oscar Wilde. Por causa dos
contratempos e inimizades, a editora considerou ser imperativa sua saída da Sociedade,
justificada pela recusa de seus membros em obedecer a ordens de uma mulher jovem, assim
como pela dificuldade em atender a todos os sócios que desejavam “editar o jornal”.
De personalidade forte e impaciente com aqueles cujos trabalhos não
demonstravam preocupação com a exatidão de informações, não raramente Spark entrava em
conflito com pessoas próximas, entre elas namorados e colaboradores em trabalhos editoriais.
Seu desejo de liberdade não lhe permitia aceitar imposições nem restrições a suas amizades
como no caso de seu ex-namorado Howard Sergeant, cujas críticas e reclamações quanto a
serem desnecessárias tantas companhias masculinas constituía em algo imposvel de ser
levado a sério pela autora: “I was unable to take this as seriously as he evidently meant it. I
agreed heartily that I liked male company, especially as I lived in a club with at least sixty
girls” (SPARK, 1992, p. 180).
No âmbito profissional também havia contratempos. Seu amigo e parceiro
literário em várias biografias e antologias, Derek Stanford, com quem trocava
correspondência quase diariamente, pareceu a Spark um crítico impreciso, inclusive ao
publicar anos mais tarde uma biografia a seu respeito de forma displicente (cujas informações
foram elucidadas por ela na autobiografia). Contudo, ela ficou horrorizada com seu antigo
amigo ao saber, quando já começava a obter certa fama, da venda de alguns exemplares de
sua correspondência particular.
Em 1951, ano em que Spark publicou um estudo sobre Mary Shelley (Child of
Light), a primeira oportunidade de trabalho literário significativa concretizou-se com uma
competição de contos inéditos sobre o Natal, no Observer. Ao vencer a competição com o
conto “The Seraph and the Zambesi”, o nome de Muriel Spark, que já havia obtido destaque
por trabalhos anteriores, passou a ser conhecido publicamente e associado à ficção. Ao
escolherem o texto ao qual seria dado o prêmio, os juízes da competição pensaram que “havia
32
sido escrito por um homem” e se surpreenderam ao descobrir tratar-se de autoria feminina. A
afirmação dos juízes, entretanto, deixou a autora emvida se deveria se sentir lisonjeada.
Após um período difícil, entre 1952/1953, em que Muriel adoecera em razão de
um racionamento de comida que estipulava uma “dieta mínima” com reduzidas porções
semanais de alguns alimentos (queijo, bacon, ovos, manteiga e carne), um evento em especial
seria definitivo para sua carreira. Em 1953, um almoço para escritores sobre os Shelley, no
Ritz, ofereceu-lhe a oportunidade de conhecer personalidades importantes; entre elas, o padre
jesuíta Philip Caraman, editor do jornal The Month. Tal encontro teve como conseência
uma mudança pessoal e profissional: sua conversão ao catolicismo.
Este fato, que viria a marcar sua posterior produção artística e a crítica a ela
referente é explicado por ela de forma breve, em apenas um parágrafo. Os escritos teológicos
de Henry Newman (cardeal cujas cartas seriam publicadas mais tarde por Spark e seu amigo
Derek Stanford) a influenciaram a buscar uma fé que correspondia ao que “sempre havia
sentido, sabido e acreditado”, afirma. Embora a autora reconheça que não explica muito,
conclui que “a qualidade existencial de uma experiência religiosa não pode simplesmente ser
resumida em termos gerais” (SPARK, 1992, p. 202). Seu círculo de amizades, nesta época,
correspondia a escritores católicos e não-católicos – estes, por sua vez, “sempre queriam
discutir teologia”.
No ano seguinte, 1954, seguidamente a esta experiência pessoal, aconteceria
uma experiência responsável pelo novo rumo que sua carreira artística tomaria. O uso de um
inibidor de apetite, dexedrina, causou-lhe alucinações e, enquanto lia cartas de T. S. Eliot, as
palavras começaram a formar “anagramas e palavras cruzadas”. Ao parar com o
medicamento, as ilusões tiveram fim, embora o estado de Spark tenha piorado. Com a ajuda
de amigos como Padre Frank O’Malley (que lhe deu suporte psicológico) e Grahan Greene
(que lhe ajudou financeiramente), sua recuperação foi garantida, somada à determinação de
“pôr em ação” a iia de escrever um romance sobre sua experiência.
Dentre correspondências de editoras e revistas, a carta de Alan Maclean, editor
da Macmillan, lhe chamou a atenção por ser ele o editor preferido pelos escritores londrinos,
bem como pela oferta da publicação de um romance – o que seria algo realmente novo para
ela. Apesar de em princípio a autora não se sentir à vontade com o gênero sugerido pela
editora, a insistência de Maclean a incentivou a considerar a possibilidade de uma poetisa
escrever prosa. O processo ante o desafio de mudar a forma de escrita à qual havia se
dedicado há tanto tempo (poesia) para algo novo (prosa) denota a proximidade de ambas:
33
I had to work out a novel-writing process peculiar to myself, and moreover, perform
this act within the very novel I proposed to write. I felt, too, that the novel as an art
form was essentially a variation of a poem. I was convinced that any good novel, or
indeed any composition which called for a constructional sense, was essentially an
extension of poetry”. (SPARK, 1992, p. 206).
Assim, seu primeiro romance, The Comforters, concluído em 1955 foi
publicado somente em 1957 devido a um atraso na edição, mas foi beneficiado pela
publicação de The Ordeal of Gilbert Pinfold, de Evelyn Waugh, devido a tratarem de
experiências semelhantes e serem divulgados no mesmo ano. Waugh leu o texto de Spark, a
pedido de um amigo, antes de sua publicação e o considerou “muito perspicaz” e na resenha
que escreveu na Spectator, afirmou ser o texto da autora melhor que o seu: maisambicioso
e “melhor realizado”. Embora a editora Macmillan tivesse um pé atrás” com o romance por
considerá-lo difícil e não ter um público formado para recebê-lo, a resposta de Waugh, entre
outros, incentivou a publicação. Spark sabia que seu público seria construído com o passar do
tempo: “That novel was brought to be difficult, especially in those days – for it is true that one
forms and ‘educates’ one’s own public. Readers of novels were not yet used to the likes of
me, and some will never be” (SPARK, 1992, p. 208).
Durante o período em que esperava pela distribuição e por comentários sobre
seu primeiro romance, Spark trabalhava para o editor Peter Owen como secretária, revisora e
editora, enquanto escrevia histórias e seu segundo romance, Robinson. O sucesso obtido com
o primeiro romance, entretanto, era irritante para seu amigo Derek Stanford que teve um
colapso nervoso e, após ser tratado por um psiquiatra, foi aconselhado a afastar-se de sua
amiga. Mais tarde, seu (ex)amigo casou-se com uma americana e os dois perderam contato até
1985, quando Stanford publicou uma biografia não-autorizada de sua antiga amiga. A
escritora considera o livro um relato de “memórias duvidosas” e rebate informações contidas
no texto que (afirma na autobiografia) não conferem com a realidade.
Não obstante a agitação na vida pessoal, a carreira sparkiana apresentava
resultados satisfatórios. Publicado também nos Estados Unidos, The Comforters teve boa
recepção e a situação financeira da autora lhe permitia escrever criativamente” em tempo
integral. Aconselhada a mudar-se para um bom endereço” após tornar-se conhecida, Muriel
Spark preferiu ficar em Baldwin Crescent, onde poderia “olhar os calmos jardins de fundo e
trabalhar tão bem”, além de permanecer na companhia de sua amiga Tiny Lazzari. Deste
34
período, fica na memória de Spark o dia após a publicação de The Comforters em que Alan
Maclean lhe mostrou as resenhas sobre seu trabalho e lhe disse que seria “o tipo de coisas por
vir” (SPARK, 1992, p. 213). Spark alega que tomou estas palavras com o coração aberto e
seguiu seu caminho regozijando-se.
Disposta a viver de seu trabalho literário, o que lhe era plenamente possível,
em 1962 Spark mudou-se para Nova York, onde lhe foi concedido um escritório na revista
The New Yorker pelo editor, Willian Shawn. Entretanto, após viajar várias vezes a Roma no
período entre 1967-68, a escritora decide afastar-se da efervescência literária nova-iorquina,
principalmente visto que sua popularidade não lhe permitia mais a privacidade necessária para
escrever e ter uma vida social sem interferências nem especulações. Mudar-se para Roma lhe
proporcionou um certo isolamento e a cidade foi usada por ela como paisagem de fundo para
textos como, possivelmente, The Driver’s Seat, em que a protagonista (Lise) vai “para o sul”
em busca de seu destino.
Em Roma, Spark conheceu a pintora e escultora Penelope Jardine, que se
tornou sua secretária e companheira até o falecimento da escritora, em abril de 2006, na
Toscana onde moravam há mais de trinta anos. Jardine continuou cuidando dos negócios da
amiga e digitando seus trabalhos de forma a lhe permitir escrever seus livros, à mão, com suas
canetas e cadernos exclusivos. A história de Spark pode ser vista como paralela à história do
movimento das mulheres se for considerada esta preferência por morar com amigas,
principalmente após o divórcio – no Helena Club, com Tiny Lazzari e com Penelope Jardine.
Críticas feministas afirmam que por estarem “entre pares”, as mulheres sentem-se à vontade
para partilhar idéias e vivências. Forma-se, desta forma, uma comunidade de mulheres, um
vínculo baseado na cumplicidade que permite que experiências compartilhadas sejam a base
do comportamento e dos questionamentos das mulheres.
Tem-se a impressão, desta forma, que Muriel compartilhava os sentimentos de
inadaptação expresso pelas mulheres ao entrarem no mundo dos homens através do mercado
de trabalho. Apesar de sentir-se à vontade entre seus “pares”, pode-se afirmar que a relação
com o sexo oposto às vezes era mais conturbada. Mas nenhum relacionamento foi mais
conturbado do que entre Spark e seu único filho, Robin, que foi criado pelos avós maternos e
tornou-se pintor aos quarenta anos. A briga entre mãe e filho tornou-se notória pela troca de
ofensas que resultou até mesmo em cartas amargas a jornais. Robin, além de ressentir-se por
ter sido abandonado pela mãe, frequentemente a acusava de “inventar” informações sobre a
35
família (levadas a público principalmente na autobiografia), como o fato de sua mãe afirmar
que sua avó ser cristã, não judia.
Muriel Spark defende-se afirmando que sua mãe era protestante e que havia se
casado em uma igreja (fato comprovado). Ela também afirma que, apesar do filho morar em
Edimburgo com seus pais, eram freqüentes seus telefonemas e visitas, assim se preocupava
com o bem-estar dele. Anos mais tarde, a situação entre os dois se tornaria insustentável e
resultaria em um rompimento definitivo: Robin Spark e sua mãe não se viram mais desde
1998, quando tiveram uma discussão sobre a religião da família ante a negação pública
daquela quanto às suas raízes judaicas. Furioso com as afirmações de Muriel, principalmente
depois de serem levadas a público e suas cartas serem doadas à Biblioteca Nacional da
Escócia (mantenedora de arquivos pessoais e profissionais da autora), não compareceu ao
funeral da mãe e não lhe poupou críticas mesmo depois do falecimento.
Antagônicos em quase todos os aspectos, as formas artísticas escolhidas por
ambos também geraram controvérsias e troca de duras críticas públicas: Muriel considerava
os quadros do filho “terríveis” a ponto de não saber o que fazer com eles (“Não posso colocá-
los na minha parede”). Famosa por sua “falta de sentimento”, em entrevistas expressou sua
frustração com o relacionamento entre os dois ao afirmar que se preocupava com a situação
financeira do filho, pois o considerava um pintor não muito bom. Para ela, Robin tornou-se
umgrande aborrecimento.
Seus comentários rudes sobre assuntos polêmicos e as críticas com relação aos
trabalhos do filho colaboraram para criar a imagem de uma mulher “wicked, wayward, and all
knowing” (má, geniosa e onisciente), conforme afirma Margaret Reynolds, do New York
Times. Talvez seja possível afirmar que, ao desejar ser uma mulher independente (como
afirmava ser), Muriel Spark tenha sentido a necessidade de abrir mão de todas as ferramentas
à sua disposição para conseguir um “algo mais” em sua vida.
Esta atitude remete à introdução da antologia de contos Wayward Girls and
Wicked Women (1986), em que Angela Carter define as mulheres apresentadas no título como
detentoras de um “senso de auto-estima”, mulheres que sabem se valorizar e são capazes de
tramar e conspirar”, de lutar para conseguir um “algo mais” – amor, dinheiro, vingança,
prazer ou respeito. Ser vista como uma “wicked woman”, uma mulher revoltada, amarga,
agressiva, que não aceita imposições e busca autonomia e auto-conhecimento é muito
importante para a mulher que rompe com padrões de comportamento impostos, mesmo que
36
isto signifique a ratificação de uma imagem negativa e até mesmo o rompimento com pessoas
próximas.
De maior relevância, contudo, para a leitura da arte sparkiana, torna-se a
presença do sobrenatural, expressa por personagens católicas, fantasmagóricas ou diabólicas –
que alguns críticos consideram representar, essencialmente, sua fé católica por meio da luta
entre o bem e o mal. A conjunção destes elementos, no entanto, não pareceu enfraquecer sua
obra nem dificultar o sucesso da autora e o reconhecimento de sua relencia para a literatura
e cultura contemporâneas. Sua arte tornou-se digna de ser lida e estudada como expressão da
cultura do capitalismo que McQuillan define comotecno-mídio-militar-econômica”.
1.2 - Rebeldia em público: a escrita das mulheres
As palavras de Virginia Woolf, em Um Teto Todo Seu (1985), sempre ecoaram
no trabalho das mulheres que vieram posteriormente a produzir literatura com o intuito de
conquistar um espaço que durante muito tempo lhes foi negado. Trata-se de uma demanda
pela autonomia, pelo direito de se expressar e de viver conforme os próprios desejos,
caracterizada pelo quarto exclusivo da mulher a fim de poder ter maior liberdade sem
controles e trabalhar em sua realização profissional sem atender a necessidades que não as
suas.
A pesquisa realizada por Woolf na biblioteca da universidade, o templo da
crítica, concluiu que a presença feminina é objeto de estudo em um montante significativo de
textos escritos por homens, mas poucos escritos pelas próprias mulheres constavam nos
registros. O movimento das mulheres, que buscou resgatar autoras esquecidas pelo sistema e
oferecer novas possibilidades interpretativas para estes textos, de forma a valorizá-los
artisticamente, possibilitou que a literatura produzida pelo grupo dominado ganhasse espaço
onde lhe era proibido entrar.
Adentrar o mundo dos homens consiste em um projeto ambíguo, até mesmo
paradoxal, pois ao se levar em conta o trabalho de Woolf, no qual a entrada neste espaço
parece ser difícil, a probabilidade de nele ser trancada e impedida de sair parece ser mais
37
terrível. Desta forma, as mulheres encontram-se ante o impasse de desejar ou não serem
aceitas pelo público, pela crítica e pela história tradicionais, pois desta forma teriam que ceder
às exigências de um público que considera sua arte inferior em relação aos escritos
masculinos. Além disso, o conceito tradicional de mulher que este público espera ser
apresentado na literatura não é exatamente o conceito que as próprias mulheres têm. Queiroz
afirma que a leitura das mulheres contrapõe aos modelos de interpretações masculinos
outras interpretações naqueles pontos em que elas dizem respeito a valorações, a
juízos de valor sobre conduta de personagens, a partir dos quais se inferem conceitos
gerais retirados das experiências e dos comportamentos dos personagens nas tramas
dos romances. (QUEIROZ, 1997, p. 32 – grifo da autora).
No outro extremo deste impasse encontra-se a aceitação do público e da crítica
feministas, pois práticas discursivas evidentemente feministas concorrem para uma
marginalização literária, uma vez que este discurso costuma romper com os padrões
patriarcais. Ante este fato, torna-se inevitável a oposição entre leituras e críticas baseadas no
ponto de vista do leitor-crítico homem e da leitora-crítica mulher. Segundo Queiroz, as
posições tomadas pelos leitores diferenciam-se por circunscreverem “as perguntas a que o
texto pôde responder, quanto as respostas críticas desse modo geradas” de forma a que o
interesse de cada grupo se declare.
Tratando-se da obra de Spark, contudo, é interessante observar que uma autora
que conseguiu realizar aquilo considerado essencial para as mulheres – independência
intelectual e financeira – tenha chamado a atenção de apenas poucas feministas. É possível
que a explicação mais convincente e plausível seja a conversão de Spark ao catolicismo, a
qual sempre serviu de referência à sua obra devido à admiso da autora de que a liberdade a
ela permitida pela nova fé lhe permitiu um novo enfoque do mundo e uma auto-descoberta.
O rótulo de escritora católica parece classificar depreciativamente sua obra,
pois se refere à primeira (e muitas vezes única) leitura que a crítica efetua nestes textos,
tornando-o fator primordial a qualquer referência a Spark. Para McQuillan, ao dar ênfase a
apenas um aspecto da escrita, a crítica deixa de lado outros aspectos mais relevantes para a
compreensão da estética empregada pela autora. Para o crítico, uma categorização como esta
38
implica em uma “crítica doutrinal”, cuja leitura vê os livros da autora como mero catecismo e
não como construções ficcionais:
Such divisive and rigid categorization (which takes little account of Spark’s Scottish
Presbyterian upbringing and entirely overlooks her avowed Jewish cultural history)
leads to doctrinal criticism, which reads Spark’s novels for moral and theological
content, reading her texts like the penny catechism
(MCQUILLAN, 2002, p. 2)
Para que fique clara esta interdepenncia entre vida pessoal e produção
literária, à qual a crítica recorrentemente se refere, pode-se levar em consideração afirmações
como as de Lemaire (1994), a qual busca explicar a relação real/ficcional. A autora afirma que
a história da literatura tem despendido grande parte de seu tempo nas “eternas discussões
sobre os autores e suas vidas, sobre as origens, gêneros e períodos literários”. De forma
semelhante, Brandão (1989) afirma que realidade e texto estão ligados, pois “Falar da mulher
ou da figura feminina, onde quer que ela resplandeça, é de alguma forma falar de mim
mesma, do meu desejo e do meu inconsciente, pois o texto sempre fala de seu autor”.
É importante observar que Spark sempre afirmou haver em suas produções
literárias uma leitura particular das “experiências” vividas, embora ao celebrar alguns eventos
de sua vida em contos, romances e personagens esta correspondência seja clara. Episódios que
foram realmente transportados para a ficção são empregados para a construção de uma
realidade outra que se desliga de sua fonte. A título de exemplo, cita-se Miss Kay que, ao dar
forma a Jean Brodie no romance, desvincula-se do conceito original e, apesar de algumas
referências à professora original, passa a descrever uma mulher proscua, autoritária e
egoísta – características que Spark insiste em afirmar que não descrevem aquela.
A respeito desta relação real/ficcional na obra sparkiana, Mcquillan apela para
que as leituras tomem como base o texto e sua pluralidade e enfatiza, conseqüentemente, a
necessidade de um distanciamento da fonte de referência. Também a crítica aos escritos de
Spark deve ater-se mais ao texto que à vida da autora, pois este tratamento é o mais adequado
a ser dado à obra ficcional. Mcquillan argumenta que trabalhos semelhantes ao de Bradbury
(1973) e de Kermode (1990) insistem na leitura como um evento teológico, a qual geralmente
encontra significados fixos e autoritários nos textos.
39
Aplicado à obra sparkiana, esta conduta leitora que restringe a leitura a um
fator extra-textual tolhe a indicação dos limites delineados no texto. Deve-se levar em conta
que as próprias afirmações de Spark, assim como referências declaradas a textos bíblicos em
sua obra, serviram de pretexto para o direcionamento das leituras realizadas até então. Por
conseguinte, a predominância da observação de fatores exteriores ao texto restringiu as
possibilidades de leitura a comentários que enfatizam a luta entre bem e mal que a
religiosidade subentende.
É possível afirmar, ainda, que a conjugação das afirmações da autora à crítica
comumente realizada de seus trabalhos contribuiu para desviar o interesse das feministas da
escrita de Spark. Some-se a este fator a posição “não-feminista” da escritora, que se diz contra
a oposição extrema aos homens. Por isso, em entrevista concedida a Victoria Glendinning
(1979), Spark afirma que castrar os homens é uma má idéia” e que “o forte deve carregar as
bagagens para o fraco independente do sexo”, o que revela para a entrevistadora que o
conceito de feminismo da autora é “uma questão de igualdade em emprego e pagamento”
apenas.
A afirmação da autora deixa claro que seu conceito de feminismo subentende a
impossibilidade de entendimento e convivência entre os sexos – ao qual ela evidentemente se
opõe. Esta posição denota que o conceito evidenciado pela autora refere-se ao momento em
que o movimentos das mulheres era marcado pela recusa ao lugar inferior em que eram
colocadas pelos homens (décadas de 60/70). Neste período, as mulheres recusavam a
diferenciação entre os sexos que reforçava a hierarquia entre homens e mulheres, sendo
aqueles a figura dominante na sociedade, e como resultado elas promoveram uma luta por um
espaço sócio-político maior e se posicionaram contra o grupo masculino.
Tomando-se esta afirmação por base, depreende-se daí que ao negar-se a
permitir uma conexão entre seu trabalho e esta posição potico-ideológica, Spark está
expressando que a oposição entre os sexos não condiz com a posição política que considera
melhor para as mulheres. No entanto, evidenciam-se em suas histórias questões de poder,
autoridade, dominação e “do próprio” que compõem também a teoria feminista, as quais
evidenciam a luta das mulheres por uma posição social melhor e, conseqüentemente, um
contraste entre estas e os homens. De forma semelhante ao que ocorre com na sociedade, para
Spark não é evidente que o movimento das mulheres sofreu mudanças no intuito de acomodar
os objetivos delas, sem se preocupar com comparações entre textos escritos por homens, nem
entre estilos de vida distintos que pudessem se evidenciar nestes textos.
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Deve-se enfatizar, contudo, que a própria autora afirma que suas personagens
femininas são geralmente mais fortes, dominadoras e independentes, enquanto os homens –
salvo raras exceções – são mais frágeis e inseguros. Sob a ótica feminista, esta descrição que a
autora faz de suas personagens seria suficiente para inseri-la em seu grupo, pois ao evidenciar
de que as mulheres não são fracas e frágeis, como eram tradicionalmente rotuladas, mas
dotadas de força suficiente para construir seu mundo conforme seus desejos, Spark deixa
manifesta sua posição político/ideológica. Em entrevista a John Tusa (2002), a escritora
afirma ser “natural que uma mulher escreva melhor sobre mulheres do que sobre homens
porque não [pode] conceber o que é ser homem” e qualquer tentativa neste sentido não
resultaria em um personagem forte, o que reafirma sua posição, assim como denota que,
apesar de afirmações contrárias, é possível notar o apelo feminista nas obras da autora.
Judy Sproxton (1992), em seu trabalho sobre as personagens femininas
apresentadas pela romancista afirma que o feminismo presente nas obras de Spark não
defende direitos específicos das mulheres, nem critica a sociedade que as reprime, mas as
desenha em busca de dignidade e posse de mente que exige sua integridade espiritual. Essas
mulheres não são figuras exemplares, algumas são claramente imperfeitas e deliberadamente
manipulam suas relações, outras atingem sua identidade pela busca do auto-respeito:
Spark is not a feminist in the sense that she asserts specific rights for women, nor is
she interested in decrying a society which might seek to repress women. However
she has, in several of her novels, depicted women in a search for dignity and
possession of mind which, in its own way, vindicates a woman’s spiritual
integrity She does not intend them to stand as exemplary figures; indeed, some are
clearly flawed and willfully contrive their own malevolent relationships. Some
though, achieve their identity through their quest for self-respect, which involves an
appreciation of all they cannot understand
(SPROXTON, 1992, p. 18)
Tomando-se por base a afirmação de McQuillan, de que a escrita da romancista
sempre foi marginal, é posvel entender porque seus textos não foram plenamente
compreendidos pela crítica em geral. Segundo o crítico, uma das características marcantes de
Spark é a indefinição em praticamente todos os âmbitos de sua existência, a qual a coloca
nesta posição marginal e gera uma relação de alteridade principalmente com a tradição da
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literatura inglesa. O não-pertencimento que (in)define a ela e à sua obra conjuga uma série de
fatores.
Em princípio, o fator geográfico a coloca fora do eixo dominante da produção e
da crítica literária (anglo-americana), em razão da autora escrever na Itália e na França. Este
fator se conjuga a outros fatores, como nacionalidade (escocesa, parte judia), gênero e religião
(um misto de judia, presbiteriana e, na fase adulta, católica), que acentuam diferenças mais
amplas e complexas. Ao alegar que a crítica não está pronta para os textos sparkianos,
McQuillan pressupõe a predominância da leitura biográfico-psicológica, na qual a vida da
autora se reflete na obra.
Ainda que algumas características da produção literária de Spark não tenham
sido estudadas, nota-se, entretanto, que suas obras despertaram o interesse público e, em
conseqüência, chamaram a atenção de outras mídias que realizaram adaptações de algumas de
suas obras. Para o cinema, foram adaptados os romances The driver’s seat (com Elisabeth
Taylor), The Prime of Miss Jean Brodie (que rendeu um Oscar a Maggie Smith) e The Abess
of Crew. O meio televisivo também se interessou pelos textos sparkianos, como Memento
Mori, The Prime of Miss Jean Brodie e The Girls of Slender Means, que foram adaptados para
este meio de comunicação.
The Ballad of Peckham Rye, numa versão dramatizada para rádio, recebeu o
Italia Prize em 1962, enquanto Memento Mori foi adaptado para o teatro. Interessada pela arte
de Spark, a BBC pediu quatro peças para rádio a serem transmitidas no “Terceiro Programa”.
Em 1962 a peça Doctors of Philosophy foi representada em Londres e na Escandinávia
(dirigida por Ingmar Bergman) com sucesso de crítica e foi publicada na Inglaterra e nos
Estados Unidos. Quando foi adaptada para o teatro, Jean Brodie foi representada por grandes
atrizes como Vanessa Redgrave, Anna Massey, Patricia Hodge e Fiona Shaw na West End,
em Londres, e por Zöe Caldwell na Broadway.
A aprovação crítica obtida com seus trabalhos pode ser averiguada pelas
resenhas de seus trabalhos – uma delas, sobre sua colão de contos no jornal The Scotsman,
em 2001, a considera “uma das melhores coleções de contos em inglês”. Menciona-se, ainda,
a importância de haver registrados na Bibliografia de Literatura Escocesa em Tradução,
mantida pela Biblioteca Nacional da Escócia, mais de 300 registros de traduções de trabalhos
de Muriel Spark (em especial The Prime of Miss Jean Brodie, seu romance mais conhecido).
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As traduções indicam como a autora comunica-se bem além das diferenças
culturais, pois ao se observar que publicações suas em quase todas as línguas da Europa e
Ásia, fica evidente o quanto seu trabalho é importante: por ser considerada uma escritora
significante “em inglês”, Spark foi inclda até mesmo em uma antologia de contos sços em
1966. Leitores brasileiros também tiveram a oportunidade de ler textos sparkianos traduzidos
para o português, como os romances: A Primavera da Senhorita Jean Brodie (The Prime of
Miss Jean Brodie), O Banquete (Symposium), Um Eco Muito Distante (A Far Cry from
Kensington), Realidade e Sonhos (Reality and Dreams), Memento Mori e Uma Escola para a
Vida (The Finishing School). Um dos fatores que podem ter contribuído para que os romances
de Spark fossem traduzidos para outras línguas pode ter sido a realização de uma versão
cinematográfica do romance The Prime of Miss Jean Brodie por Ronald Neame, em 1969,
cuja protagonista fora representada por Maggie Smith, vencedora do Oscar de melhor atriz
naquele ano.
Nota-se que, de forma semelhante, a arte de Spark não passou despercebida
pela academia, pois o montante de publicações como teses, dissertações, artigos e livros em
língua inglesa é significativo e dá uma idéia da importância que seu trabalho adquiriu.
Embora estes estudos frequentemente abordem, como McQuillan expôs, o aspecto teológico
destes escritos, eles também denotam a importância conferida ao que Spark se propôs a
realizar – escrever sobre a vida. Esta importância se verifica, ainda, com prêmios como o
Prêmio David Cohen de Literatura (1997) em reconhecimento à importância e ao conjunto de
sua obra, e o Italia Prize em 1962, o James Tait Black Memorial Prize, o F.N.A.C. Prix
Etranger e o Premio Ingersoll T.S. Eliot, além de várias indicações a outros prêmios. A autora
também recebeu o grau honorário de Doutora em Letras pela Universidade de Strathclyde, em
1971, e pela Universidade de Edimburgo, em 1989, além do título de Dame do império
britânico, em 1993.
Quanto à estética empregada por Muriel Spark, deve-se levar em conta que, ao
trabalhar no jornal Poetry Review durante dois anos, o contato com escritores – famosos ou
não – lhe propiciou a chance de conhecer o tipo de literatura produzida por seus
contemporâneos. A autora afirma que a poesia publicada pelo jornal diferia muito daquela que
constituía o conteúdo das publicações anteriores, pois se caracterizava por “rimas irregulares,
idéias estranhas e modos livres de expressão”, a qual não agradava alguns leitores por a
considerarem extravagante.
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A Sociedade, contudo, permitia a Spark e jovens artistas, escritores e cantores
trocarem informações sempre que convidados a jantares na casa de um dos sócios do jornal,
Brigadeiro General Sir George Cockerell. Estes jantares assemelham-se ao “banquete”
descrito pela autora em Symposium, uma reunião de pessoas consideradas de nível intelectual
elevado para travar conversas interessantes enquanto comem e bebem. No romance,
entretanto, os ilustres comensais são desconhecidos entre si, apenas tendo como
particularidade o fato de serem pessoas públicas reconhecidas pela atividade que realizam ou
pela posição que ocupam na sociedade, ou por serem simples referênciais à fama.
McQuillan observa que, ao discorrer sobre a formação de seu estilo, Spark
afirma que a arte “realista” necessitava de uma “redistribuição das possibilidades
romanescas”, cujo resultado foi a defesa da sátira e do ridículo (este mais comprometido com
a verdade que a ironia e mais “cortante” que a sátira) como forma de entendimento do político
e resposta “à barulhenta pseudo-realidade” (MCQUILLAN, 2002, p. 12-13).
Bottum (2001) acrescenta que linguagem e estrutura são os principais
elementos da ficção da autora, pois não há confises pessoais, nem “pregações” moralistas
em defesa do catolicismo e, curiosamente, há poucas incursões à psicologia de suas
personagens. Para o crítico, as personagens geralmente pertencem a um grupo específico da
humanidade (ricos, pobres, idosos), embora longe de serem simplesmente consideradas
símbolos, “tipos” ou representantes destes grupos, cuja humanidade desaparece no texto por
serem entes ficcionais. Alguns deles, afirma, tornam-se únicos ao final da narrativa por
aceitarem o auto-sacrifício, por hesitarem ante um amor abnegado, ou por tornarem-se
altruístas.
Pontua Bottum que, enquanto indivíduos, as personagens devem recusar a
individualidade e reconhecerem-se participantes de uma humanidade em queda. Esta aparente
falha das personagens revela pequenos sucessos de pessoas que participam de uma nova
história. Esta nova história, segundo Spark, representa um mundo em que a violência deve ser
“implacavelmente zombada”, devido a serem as pessoas “cercadas por todos os lados e
oprimidas pelo absurdo. O absurdo do mundo requer da literatura uma forma nova de
entender a realidade e, para a autora, a nova inteligibilidade está em uma narração distante,
fria e inica para falar do universal e, assim, ilustrar vidas humanas particulares. Inseridos
em grupos específicos, os indivíduos têm seu destino traçado de forma paralela à estrutura
narrativa.
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Esta constituição paralela das personagens e da narrativa é visivelmente
remetida no início dos romances, no qual é comum a presença de afirmações que vão se
repetir no final. Ao utilizar a repetição, a autora, de um lado, apresenta o desenvolvimento da
narrativa e, de outro, o desenvolvimento das personagens e dos próprios leitores. Assim, as
mudanças expressas no corpo do texto permitem uma “troca de experiência” entre leitores e
personagens e, ao final, ambos estão preparados para os eventos subseqüentes.
Bottum afirma, ainda, que a prosa da autora caracteriza-se por ser sempre clara,
utilizando-se de frases declarativas” curtas, elegantes e incisivas que, ao invés de facilitar a
leitura, tornam-na mais dicil, pois os complicados enredos sparkianoso apresentados em
uma prosa simples.
Muriel Spark's prose has always been clean. Small, straightforward, declarative
sentences propel her novels, like the short, quick steps of a fast walker. So much so
that to read her is to want to write like her. Like this. One small straightforward
sentence after another. One simple statement after another. Clean, elegant, sharp…
One of the curious things about Spark's fiction is how complicated are the plots she
manages to present in that simple prose. (BOTTUM, 2001)
Esta relação entre palavra e ação, que será abordada de forma mais profunda
nos capítulos seguintes, denota a proposta da escrita de histórias em que a narrativa define
personagens que, no texto, buscam definir-se e realizar-se. Porém, o leitor regularmente tem a
impressão de que a verdade destes indivíduos é suprimida, uma vez que a estes é dada
somente a oportunidade de agir, seguindo as direções textualmente indicadas, mas não a
liberdade de se expressar. No contexto da narrativa sparkiana, este recurso expressa, de
acordo com McQuillan, as novas possibilidades novelísticas que tornem o leitor consciente
desta construção, pois a cultura capitalista – que conjuga tecnologia, mídia, poder militar e
economia – não permite um engajamento político pleno no texto.
She recognizes the need to question the forms of intelligibility open to the writer and
reader in “Realistic” art and offers a redistribution of novelistic possibilities with a
view to bringing the reader to an awareness of their own “construction” (…) For
Spark this need to rework the forms of the novel – to dare language and create a new
space of intelligibility – is connected to the difficulty of providing an effective
political commitment in the techno-medio-military-economic culture of late
capitalism (MCQUILLAN, 2002, p. 12)
45
Spark sugere que, para o leitor compreender um texto mais facilmente, a escrita
deve utilizar-se do “potencial subversivo do ridículo. Desta forma, o exagero, a zombaria e a
crítica (implícitos no termo), permitem ao leitor reconhecer as possibilidades de leitura e o
aspecto político da obra. Ante o reconhecimento da realidade, a leitura pode promover uma
forma de pensar sobre o momento histórico e suas implicâncias sócio-culturais, bem como
expor o absurdo em que vivem as pessoas e oferecer uma resposta à realidade tecno-midiática
(MCQUILLAN, 2002, p. 12).
Isto se observa em The Driver’s Seat, no qual Lise é apresentada e definida por
suas ações enquanto maneja os eventos que possam garantir o cumprimento de seu destino ao
encontrar o “homem certo”. Ainda que pareça (e o narrador afirma) que a personagem busque
o controle da situação para decidir seu destino, o discurso apresenta uma incongruência ao se
observar que o destino traçado textualmente não corresponde a um simples desejo de Lise,
mas a uma necessidade de romper com as pressões responveis por sua desumanização.
Assim, o leitor, apesar de reconhecer a violência da morte da personagem, percebe também os
mecanismos sociais que condicionam o ser humano a uma marginalização e conseqüente não-
pertencimento à sociedade.
Da mesma forma, em Symposium, Margaret é apresentada por um discurso
incongruente, o qual, concomitantemente à apresentação da personagem, lhe nega a definição
de sua real personalidade, pois sua história é contada por um narrador em terceira pessoa ou
por outras personagens do romance. Quando lhe é permitido expressar o desejo de assumir o
controle de sua vida e participar “ativamente na provocação de desastres”, a personagem (e o
leitor) comprova sua falta de autonomia.
No conjunto do estabelecimento das relações causais no texto, as situações
apresentadas implicam a verificação de que as personagens falham ao perseguirem seus
objetivos. As construções narrativas de Spark chamam a atenção para o abandono de uma
representação positivista (segura, tranqüila e inocente) que “se tornou impossível” ante o
absurdo da realidade. Os conflitos advindos da sociedade capitalista e individualista se
expressam nos indivíduos, cujas relações não raramente geram o esmagamento de uma das
partes envolvidas em detrimento do sucesso da outra.
Esta situação remete, particularmente, à realidade descrita pelo grupo das
mulheres e combatida pelo engajamento político do movimento por elas realizado. As
pressões sociais que pesaram sobre elas e que as mantiveram silenciadas durante muito tempo
podem ser observadas nos romances sparkianos. As personagens femininas que comem o
46
universo romanesco da autora, não obstante ganhem maior destaque, são as que se vêem ante
a necessidade de lutar por um espaço e, por isso, sofrem mais pressões e enfrentam situações
conflitantes.
Se a autoridade do texto de Muriel Spark representa a autoridade da sociedade,
não é de se admirar que a estas personagens seja negado o poder da palavra. A mulher calada
pelas imposições que sobre ela pairam deve buscar meios para se fazer entender e, nos
romances em questão, ela encontra esta possibilidade em atitudes que possam expô-la
socialmente de forma a que seu discurso possa ser entendido por seu receptor. As personagens
enunciam uma impossibilidade que se expressa não somente na supressão de sua liberdade de
expressão verbal, como também pela insuficiência de armas para combater as forças que
ainda detêm o poder de comandar a vida das mulheres.
É interessante ressaltar que nos estudos feministas a visão das mulheres
silenciadas por séculos de repressão é significativa. A partir do momento em que passam a ser
portadoras de sua própria voz, momento em que exteriorizam seus pensamentos e
sentimentos, tornam-se agentes de discurso. Há, porém, pressões sociais que muitas vezes
calam a mulher ou que até mesmo fazem as palavras pronunciadas soarem incoerentes e
irreconhecíveis, deixando clara a impossibilidade de uma fala feminina quando não há
condições favoráveis a ela.
Na ficção sparkiana, a enunciação dá forma a esta ambiidade que se constitui
pela exteriorização de desejos e pensamentos e pela impossibilidade de lhe garantir
independência. Ante a hipótese de se obter êxito ou fracassar, as mulheres ficam em dúvida
quanto a usar a palavra como ferramenta de inserção sócio-cultural. Todavia, a observação da
vida da própria Muriel Spark permite afirmar que a palavra, seu instrumento, foi utilizada de
modo a lhe garantir a independência por ela expressamente prezada. Conquanto muitas de
suas personagens preferem outras formas discursivas, é comum observarmos outras que se
utilizam da palavra de forma semelhante à de Spark: de forma cortante e mordaz ou elegante e
educada quando as situações lhe permitiram ou exigiram. No universo sparkiano, observam-se
personagens femininas agressivas, egoístas e manipuladoras enquanto alguns personagens
masculinos são frágeis e inseguros.
Ouvir atentamente possíveis silêncios ou as palavras enunciadas requer de
leitores e estudiosos não apenas ouvidos atentos, mas uma série de procedimentos que lhes
permitam compreender o universo que se abre no momento da leitura. Ao se observar que a
escrita de Spark procura ampliar as possibilidades de entendimento, torna-se importante
47
mencionar a necessidade de um direcionamento da leitura. Delimitado o grupo cujos
interesses se quer verificar no textoo qual, neste trabalho, diz respeito às personagens
femininas – pode-se, então, definir os elementos textuais que contribuem para a apresentação
deste grupo.
No capítulo que se segue, serão destacadas algumas linhas de estudos literários
cujos interesses, métodos e pontos de vista marcaram o movimento das mulheres. Uma leitura
rescindida da tradição (masculina) permite examinar os escritos das mulheres enquanto
instrumentos de expressão das diferenças entre homens e mulheres, assim como da identidade
resultante de um processo de auto-descoberta empreendido por elas.
O estudo das teorias e a aplicação dos conceitos por elas propostos, torna-se,
neste trabalho, instrumento de verificação da maneira como os textos produzidos por
mulheres passaram a adquirir significado nos contextos da história da literatura e das
mulheres. Também são relevantes por dar sentido à leitura de obras como as produzidas por
Muriel Spark, nas quais o complexo universo das mulheres apresenta-se por meio de situações
e personagens significativas. Desta forma, a teoria literária feminista será norteadora da
leitura dos romances The Driver’s Seat e Symposium, nos quais serão destacadas as
personagens Lise e Margaret, respectivamente.
48
_______________________________________________________________________
CAPÍTULO 2
EM BUSCA DA DIFERENÇA:
a escrita e a leitura das mulheres
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49
Se a literatura produzida por mulheres, conforme se viu no capítulo anterior,
teve que empreender uma luta significativa para garantir seu direito de inserir-se no mercado
literário, de maneira semelhante o estabelecimento de uma crítica literária para trabalhar
especificamente com essa literatura passou por um longo processo de definição. Embora se
tenha a impressão de ser este um processo ainda em andamento, a teoria que sucedeu à ação
das mulheres pelo espaço literário conseguiu com que novas práticas leitoras fossem aplicadas
de modo a garantir que os pressupostos teóricos se tornassem capazes de lidar com as práticas
de escrita empregadas por elas.
O caminho percorrido pelas mulheres até chegar a esta crítica caracteriza-se
pela preocupação em sistematizar uma metodologia que comportasse as construções presentes
em seus textos e que fosse diversa daquela que até então estavam dispoveis à crítica
literária. Ao produzirem textos nos quais os significados fossem reconfigurados em favor de
um novo sistema simbólico, as mulheres perceberam que os conceitos até aquele momento
aplicados à literatura não mais funcionavam quando se tratava de textos de autoria feminina.
Esperava-se, desta forma, que a crítica feminista pudesse oferecer uma análise/leitura disposta
a levar em consideração que as mulheres escritoras não desejavam mais escrever como os
homens.
Humm (1994) aponta que a crítica literária feminista, ainda que tenha
acompanhado o movimento das mulheres no século XIX, tornou-se representativa do esforço
intelectual da mulher somente por volta dos anos 80, do século XX. Mesmo assim, Um teto
todo seu, de Virginia Woolf, publicado originalmente em 1929, pode ser considerado o
primeiro trabalho moderno da crítica feminista, pois esclarece que a representação da mulher
na literatura é gendrada (moldada pelo gênero), bem como propõe que esta representação
rompa com a ordem simbólica (ou sistema de linguagem) patriarcal. Assim, a proposta das
feministas é ocasionar uma crítica que seja contrária à tradicional cujas características mais
marcantes estão na atitude de denegrir a imagem das mulheres enquanto críticas, assim como
considerar que toda linguagem é “violada” pelos homens.
Observa-se, com relação à estética feminista, a preocupação em identificar a
construção do gênero na linguagem, a qual se reflete no estilo da escrita (articulação de
ideologias). Em decorrência desta posição, a crítica feminista aborda questões de poder e
divisões sexuais na análise literária, pois algumas feministas defendem a idéia de que homens
e mulheres usam uma linguagem diferente, empregando vocabulário cujas construções
50
significativas são diferenciadas. A crítica feminista questiona, igualmente, a predominância
das normas masculinas na crítica tradicional que ainda emprega, na contemporaneidade, o
sistema de referências masculino, assim como exclui e subestima a escrita e a erudição das
mulheres.
A contribuição da crítica feminista para a crítica literária se expressa,
primeiramente, no re-exame dos textos masculinos, a partir do qual são observadas as
hipóteses patriarcais e a representação das mulheres – análise que contribui para o surgimento
da tematização da opressão feminina. Mais significativa, entretanto, deve ser considerada a
revalorização da cultura oral das mulheres e o resgate de trabalhos de escritoras ignoradas
pela história literária. Ao tratar destes textos, a crítica feminista oferece novos métodos e
práticas críticas enfocando técnicas de significação que valorizam a “leitora feminista” e
vêem a escrita e a leitura sob uma perspectiva coletiva.
Com o início do estudo das escritoras, nos anos 70, inicia-se a chamada
ginocrítica, quando se publica a primeira antologia de crítica literária feminista e se
descobrem escritoras ignoradas pela crítica tradicional. Dentre outras críticas feministas, Ellen
Moers (1977) se destacou por formar uma tradição literária de mulheres ao dar às escritoras
uma história, descrever sua expressão literária e celebrar o poder das mulheres. Feminist
Literary Criticism (1975), de Josephine Donovan, reformula os valores machistas e lhes dá
uma nova forma de crítica feminista, mostra a diversidade das abordagens feministas, ordena
bibliografias, pesquisas lingüísticas e recupera “mães literárias feministas”, como Woolf.
Neste período, a questão da comunicação é um tema constante na escrita
feminista que buscou uma linguagem distintiva das mulheres e estabelecer um corpo de crítica
literária. Showalter foi uma estudiosa importante para o movimento das mulheres: analisou a
exclusão das mulheres da academia, relevou escritoras subestimadas do século XIX e
identificou uma subcultura feminina; dividiu a história literária em três estágios de tomada de
consciência – feminino, feminista e da mulher (1977).
A inflncia de Adrienne Rich e do feminismo cultural também é relevante
para determinar a aceitação da ginocrítica, entretanto foram Gilbert e Gubar (1979 e 1988)
que criaram uma estética feminista na tradição literária feminista. Seus trabalhos enfocam
questões relacionadas a controle e cultura; ansiedades representadas na literatura que
permeiam as relações homem/mulher. Para elas, a escrita das mulheres é sempre oposicional e
o conceito de “homem” e “mulher” é moldado pela cultura.
51
A leitura psicanalítica de Gilbert e Gubar influenciou a crítica feminista
americana que conseguiu identificar e conduzir uma variada crítica literária gendrada. A
crítica literária provou que a literatura se estrutura em ideologias sócio-sexuais e que a escrita
da mulher privilegia certas preocupações e técnicas. Atribui-se a elas, do mesmo modo, a
aproximação da crítica feminista à escrita das mulheres observáveis em autobiografias,
narrativas ficcionais e histórias poéticas. No entanto, algumas feministas alegam que nos
trabalhos da dupla verifica-se a preservação de ideais heterossexistas e racistas.
Na década de 80, contudo, a crítica feminista foi desconstruída por Toril Moi
em Sexual/Textual Politics (1985), que se opunha à iia da identidade monotica da escrita
das mulheres e por se auto-intitular a mais completa introdução aos princípios da teoria
literária feminista, além de resumir e analisar as críticas anglo-americana e francesa. Moi se
opõe à crítica feminista anglo-americana e privilegia críticas francesas como Kristeva, Cixous
e Irigaray por não efetuarem divisões de gênero e por darem ênfase à linguagem como
ferramenta apta a reconfigurar as poderosas e sexualmente expressivas relações entre
linguagem, formas literárias e a psique do homem e da mulher.
Vale lembrar que os trabalhos das feministas abriram espaço para outras vozes,
antes esquecidas e caladas, para que também tivessem a oportunidade de se expressar e de se
fazerem ouvir. Ao se ter por base a idéia de que as mulheres se tornam mulheres, algumas
feministas procuraram provar que elas lutam por uma identidade e, ao atacarem o binário
homem/mulher, a teoria crítica e a desconstrução permitiram que fossem deixadas de lado as
diferenças entre feministas negras e brancas, assim como entre feministas lésbicas e
heterossexuais. Nota-se que as feministas negras e lésbicas foram geralmente excluídas da
academia, mesmo após o movimento das mulheres ter garantido um espaço para que as
práticas de escrita e leitura das mulheres se manifestassem, o que resultou em uma ação destes
grupo excluídos para também terem liberdade de falar de seu lugar social e cultural.
Para Showalter (1994), a crítica literária feminista proporcionou o
questionamento dos padrões de valorização e inclusão dos textos produzidos pelas mulheres
na história literária. Verifica-se, entretanto, a necessidade de passar por vários obstáculos para
definir uma teoria capaz de explicar as transformações temáticas e estruturais conferidas aos
textos de autoria feminina após o período caracterizado pelo movimento das mulheres em
busca de mudanças nas formas de expressão/ significação.
Essa mesma teoria teve que enfrentar a oposição por parte do sistema
dominante, por considerar este paradigma que surgia e beneficiava as mulheres incoerente e
52
desviante, principalmente pelo fato das teóricas darem ênfase à “experiência” como fator de
comparação entre suas leituras e a dos homens. A este respeito, Jonathan Culler (1985) afirma
que as críticas feministas têm consciência de que a experiência das mulheres é vista de forma
diferente por elas, que a consideram valiosa, enquanto críticos tradicionais a vêem como um
“interesse limitado”.
No entanto, as teóricas não se deixaram intimidar ante as críticas de seus
opositores. O projeto de uma teoria crítica apta a trabalhar pelo interesse das mulheres foi
desenvolvido apesar de todos os problemas que elas tiveram que enfrentar; dentre os quais,
segundo algumas estudiosas, a falta de contato entre as mulheres talvez seja mais
considerável. O isolamento acadêmico conferiu aos trabalhos delas a característica de se
desenvolveram segundo a experiência das autoras e, por conseguinte, os escritos assumiram a
perspectiva que à leitora tivesse maior relevância em seu contexto, realidade ou interesse.
Por conferir autoridade à leitora, a crítica feminista apresentou dois momentos
distintos no estudo da literatura de mulheres. Afirma Showalter que, em um primeiro
momento, procurou-se buscar respostas às questões levantadas pelas mulheres através da
análise de textos produzidos principalmente por homens. Esta análise, cujo objetivo era
interpretar e re-interpretar as produções literárias, tem sua posição definida pela estudiosa
como uma leitura (ou crítica) ideológica na qual a feminista se apresenta como leitora e
oferece “leituras feministas de textos que levam em consideração as imagens e estereótipos de
mulheres na literatura, as omissões e falsos juízos sobre as mulheres na crítica, e a mulher-
signo nos sistemas semióticos” (SHOWALTER, 1994, p. 26).
Ao oferecer uma leitura diversa àquela amparada na teoria crítica dominante
masculina, a crítica feminista procurava evitar seu aprisionamento pelos conceitos tradicionais
e o protelamento da solução de seus problemas teóricos. Para Showalter, esta posição dá
oportunidade a que se inicie o segundo momento, marcado pela crítica que “tem mais a
aprender a partir dos estudos da mulher” e que representa um estudo especificamente da
mulher como escritora (a que deu o nome de ginocrítica) e que aborda
a hisria, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres; a
psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual
ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres
(SHOWALTER, 1994, p. 12)
53
Ainda que possa ser considerada unilateral, esta proposta aproxima-se mais do
desejo expresso pelas mulheres de constituir “uma crítica feminista que seja genuinamente
centrada na mulher, independente, e intelectualmente coerente” (SHOWALTER, 1994, p. 28).
O desejo de diferenciar a escrita das mulheres e a dos homens, contudo, durante muito tempo
significou vincular o trabalho delas à idéia de inferioridade, por causa dos padrões literários
tradicionais, que se amparavam em (pré)conceitos que as definiam como outro” – inferior e
irracional – dos homens. Este paradigma, após ser questionado e recusado como autoridade
sobre os escritos das mulheres, passou a representar algo particular delas. Conquanto a
diferença tenha deixado de ser uma força hierarquizante, tornou-se um fator de incentivo à
mulher em sua busca da descoberta de si, das possibilidades e impossibilidades de sua escrita
e teoria.
Afirmada a diferença, os escritos femininos tornaram-se objeto de estudo da
crítica feminista. Como resultado, a escrita e a leitura dos trabalhos de autoria feminina
permitiram o surgimento dos procedimentos metodogicos há tanto tempo desejados. Estes
procedimentos ocasionaram a distinção de várias linhas teóricas, as quais representam a
versatilidade das leituras realizadas pelas mulheres e, igualmente, destacam a recorrência de
determinadas questões. As categorias corpo, linguagem, psicanálise e cultura, ao tornarem-se
os pontos a partir dos quais se traça um contraponto ao sistema dominante, permitem observar
a forma pela qual a crítica tem (re)valorizado os escritos de autoras durante muito tempo
ignoradas pela tradição.
Considerando-se que ambas as linhas teóricas, tanto a tradicional quanto a
feminista, procuram na distinção sexual a resposta para a diferenciação das produções
literárias, pode-se afirmar que este é o ponto mais evidente que têm em comum. Porém, a
ginocrítica deseja dar voz àquelas que ficaram muito tempo silenciadas; quer ver na mulher as
respostas para suas próprias verdades. Ao observar a literatura, admitindo como ponto de
partida a escrita das mulheres, responsável pela construção de significados, a crítica feminista
vê na mulher autora a possibilidade de expressão o mais fiel possível da realidade vivenciada
por seu grupo sexual/ideológico.
Desta forma, a realização de uma leitura na qual se observam procedimentos
diversos leva, ainda, a um melhor entendimento dos processos de criação ficcional dentro do
conjunto de obras de uma autora. Neste sentido, seria plausível afirmar que os modelos de
diferença que orientam a ginocrítica poderiam oferecer uma leitura dos romances de Muriel
54
Spark, fornecendo recursos orientadores da observação das relações pessoais e sociais
construídas pela figura feminina.
Deve-se enfatizar, ainda, que inventariar os pontos por meio dos quais se
verifica a aplicabilidade dos modelos mencionados não é suficiente. A leitura dos textos deve
proporcionar, em contrapartida, discussões quanto à funcionalidade destes modelos e apontar
as possíveis limitões por eles apresentadas.
2.1 – Encontro com a diferença: o corpo e a linguagem das mulheres
Ao se fazer referência à obra de uma escritora como Muriel Spark, cujos
romances comem o corpus deste trabalho, deve-se ter em mente que para a crítica feminista
a escrita das mulheres sofre influências variadas e, por conseguinte, caracteriza-se pela
diversidade de temas abordados. Realizar uma leitura em que se tenha por objetivo verificar
de que maneira a presença feminina marca um texto e revela uma ideologia possibilita dar
uma maior atenção a determinados aspectos, aqueles considerados relevantes ao
estabelecimento de relações entre a literatura e a realidade por ela representada.
Os romances sparkianos que são objeto de estudo deste trabalho separam-se
cronologicamente por duas décadas – The Driver’s seat foi publicado em 1970 e Symposium
em 1990 – e apresentam momentos históricos distintos, da mesma forma como se distinguem
neles a estrutura e as personagens. Estes aspectos merecem menção não somente por
representarem práticas de escrita mas, principalmente, por exemplificarem a manifestação de
momentos distintos da literatura produzida pelas mulheres, nos quais se podem observar a
realidade feminina e sua posição ante as situações que experimenta. Assim sendo, é de maior
interesse deste trabalho observar as vivências das mulheres, as relações que estabelecem em
sua sociedade e como respondem aos estímulos externos.
Ao se observar que a distinção sexual separa os mundos dos homens e das
mulheres, tornando-os paradigmas de vincias e práticas, tanto no campo social como
cultural, a teoria crítica a qual serve de base para este trabalho (feminista) também procura
distinguir estes mundos. Como conseqüência, esta crítica se encontra em um local definido
55
por Showalter como “território selvagem” – lugar onde a cultura das mulheres encontra-se
isolada da cultura dos homens. Ao se colocar neste lugar, a crítica feminista procura voltar sua
atenção a este território diferenciado e identificar, nas práticas de escrita e leitura das
mulheres, as relações que se estabelecem entre os dois territórios: masculino e feminino.
Deve-se entrever que, para as mulheres, defender seus interesses e emitir seu
discurso sem serem repreendidas ou silenciadas sempre significou enfrentar a imposição de
preconceitos e limitações. Ao mesmo tempo em que a presença das mulheres ganhou
visibilidade no terririo masculino, a crítica feminista se viu ante a tarefa de questionar e
opor-se ao sistema de significados vigente, ao mesmo tempo em que teve que oferecer um
outro sistema que fosse funcional e defendesse os interesses e práticas das mulheres. Isto
decorre de que as mulheres, ao adquirirem o direito de utilizar a palavra como instrumento de
expressão, viram que a tradição masculina não lhes daria o tratamento que desejavam.
Vera Queiroz (1997) afirma que definir o valor e delimitar o conceito de
literatura, obra clássica, autor e obra canônica, tradição e evolução (dos gêneros, das formas,
dos estilos) implica observar os pólos produtivo e recepcional. A autora defende que este
olhar historicizado”, habilitado a apresentar a noção de valor e o caráter estético de uma
obra, leva à iia de que
A hisria da literatura é também a história dos valores que cada época confere aos
objetos de representação, considerados esses valores em relação aos paradigmas
pelos quais tal época relaciona e hierarquiza a arte, a sociedade, a linguagem
(QUEIROZ, 1997, p. 22).
A oposição que se verifica entre a crítica literária tradicional e a feminista
torna-se evidente ao se observar que esta última preocupa-se, inicialmente, em reler a
tradição masculina”, apontando nesta os limites teóricos que colocam as mulheres em uma
posição inferior, desvalorizada. Ironicamente, a tradição deixa os escritos das mulheres fora
de seu campo de estudo, ao passo que as feministas ocupam-se de estudar os textos dos
homens, não para reafirmar o valor já obtido por eles, mas para
56
dar-lhes novos parâmetros interpretativos a partir de novos horizontes de
expectações, definidos por mulheres críticas cujas experiências, na série social e na
rie literária, não são compatíveis com as experiências definidas e interpretadas por
homens críticos na série literária e por leitores homens na série social (QUEIROZ,
1997, p. 32)
O narcisismo acadêmico da tradição viu-se ante a resistência e os
questionamentos de uma crítica definida por seu desejo ser reconhecida como um ato de
resistência ao sistema simbólico, uma confrontação com o cânone e os julgamentos existentes.
O intuito das leituras de textos de autoria masculina realizadas pelas mulheres era observar o
modo como a figura feminina era representada. Nestes textos, ecoam as idéias imutáveis de
mulherinferior, rebelde, instintiva, alheia à Razão assim classificada pelo determinismo e
pelas limitações biológicas do patriarcado que dividiam os seres humanos em fortes e fracos:
homens e mulheres.
A crítica literária feminista, ao perceber que estava presa à tradição, utilizando-
se de conceitos de criatividade, história literária e interpretação baseados na experiência
masculina/universal, decidiu estudar a mulher com o objetivo deencontrar seu próprio
assunto, seu próprio sistema, sua própria teoria, e sua própria voz. O estudo de Showalter, que
destaca a mulher escritora na teoria feminista (ginocrítica) permitiu unificar o foco da análise
na questão da diferença, saber quais os pontos da literatura produzida pelas mulheres diferiam
da literatura dos homens, cujos tópicos principais são “a história, os estilos, os temas, os
gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a
trajetória da carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição
literária de mulheres” (SHOWALTER, 1994, p. 29).
A crítica feminista, em busca de diferenciação, procurou definir os fatores que
marcam a escrita das mulheres e representam aspectos particulares de seu mundo, os quais se
apresentam como fatores designadores de força a esta prática. Notou-se ser necessário, para
definir os procedimentos teóricos que fossem significativos para a leitura de obras femininas,
promover um arrolamento dos aspectos que realmente legitimavam a diferenciação dos textos
de autoria masculina e feminina. Verificou-se, em primeiro lugar, que a distinção entre os
sexos se dá “essencialmente” no corpo, por suas funções fisiológicas e pelas características
físicas (aparência) distintas, que implicam nas vivências de homens e mulheres serem
diferentes.
O modelo “biológico” chama a atenção para o aspecto mais visível de
diferença entre os sexos e passa a designar a “escrita do corpo”. Este modelo pode ser
57
definido, de acordo com Nicholson (2000), como fundacionalismo biológico cuja noção de
relacionamento entre corpo, personalidade e comportamento se expressa na afirmação de que
as constantes da natureza são responsáveis por certas constantes sociais. A autora faz uso da
idéia de que nesta categoria o corpo é visto como um “porta-casacos” da identidade: a
personalidade e o comportamento são determinados pelos padrões pré-estabelecidos por uma
cultura que diferencia homens e mulheres a partir de atributos físicos e não lhes permite
protestar contra o que foi determinado há muito tempo pelo grupo dominante.
Esta perspectiva sugerida por Nicholson permite a averiguação de como o
corpo torna-se significativo na obra de Spark, pois nela vemos personagens em situações em
que há um discurso” emitido a partir do corpo, o qual possibilita a construção de conceitos
sobre a personalidade das personagens ante a observação externa.
A título de exemplo, em The driver’s seat, verifica-se que o corpo da
protagonista, Lise, tem a função de reafirmar o que as pessoas pensam a seu respeito quando a
encontram. Vestida em cores vibrantes, incongruentes, as demais personagens reconhecem
nela algo ilógico, um espetáculo de loucura no qual o contato visual lhes permite definir o
outro” que não possui voz ou que, quando decide usá-la, emite mensagens ilógicas. Pode-se
ponderar que, ao chamar atenção para si, Lise tenta mostrar sua realidade, na qual seu espaço
de atuação é limitado, evidenciando que suas limitações obedecem a uma “ordem” superior à
sua vontade. No intuito de poder proferir seu discurso, a mulher sente a necessidade de agir
fora do padrão, ser diferente.
Igualmente em Symposium, se vê que o corpo assume a função de canal de
comunicação para atingir um observador e lhe transmitir uma mensagem. Assim, Margaret, ao
se vestir em cores “outonais” e compor um cenário onde possa se apresentar para futuros
amigos, transmite uma mensagem igualmente sem lógica. A personalidade que constrói para
si através da imagem da bela mulher do campo em situação diária, despreocupada, não condiz
com a aparência assustadora que nela vêem - ferozes dentes protuberantes e cabelos
vermelhos como fogo.
Afirmações como a de Flügel (1966), de que as roupas que um indivíduo usa
“nos dizem imediatamente algo de seu sexo, ocupação, nacionalidade e posição social” (p. 10-
11), permite que se estabeleça a hipótese de que o ato de vestir pode ser usado para comunicar
uma idéia ou sentimento. Apesar do risco de uma identificação superficial e equivocada das
mulheres, por imprimir uma espécie de padronização nas sociedades e culturas, adotando-se
uma perspectiva que caracterize o corpo como uma “ferramenta”, um recurso por meio do
58
qual a análise rompe com os sentidos a ele atribuíveis, é possível desconstruir os sentidos
validados e ajustá-los à posição crítica que se quer defender.
Desta forma, ao se abordar uma determinada particularidade do corpo, ela terá
um sentido “novo” a partir do ponto de vista que as autoras que a usam pretendem denotar. O
corpo como portador de conotões, em que a imagem externa da mulher (não somente a
fisiologia) pode atribuir novos sentidos ao registro que a visão do interlocutor efetua, cria a
possibilidade de oferecer significados ao discurso da mulher.
É plausível considerar que nos romances de Spark as personagens Lise e
Margaret, ao escolherem as roupas para se apresentarem às pessoas, optando por chamar a
atenção, desejam ser “descobertas”, vistas e valorizadas pela sociedade que as marginaliza.
Em The driver’s seat, vê-se que a procura pelo “vestido necessário” serve ao propósito de
esconder a opacidade da vida e a solidão da personagem por meio de roupas coloridas e fora
de moda, paradoxalmente chamando atenção sobre si enquanto se afasta das pessoas. Em
Symposium, Margaret aproveita-se das oportunidades de exibição pública para representar um
papel conveniente para atingir seu objetivo.
Desta maneira, é interessante observar o efeito obtido pelas personagens
quando de suas performances sociais. Lise é vista como uma mulher de meia-idade
excêntrica, sem gosto e histérica; isto se deve às roupas escolhidas para serem usadas em sua
viagem de férias: um vestido com corpo amarelo e saia com padrões em laranja, roxo e verde
brilhante em forma de “v”, além de um casaco com listras vermelhas e brancas – cores
consideradas “muito naturais” e “absolutamente certas” para ela. Apesar dessa combinação de
cores parecer “inacreditável” e a imagem de Lise ser reforçada por seu comportamento ilógico
(sendo agressiva e gritando com atendentes e companheiros de viagem), por meio destes atos
garante-se a recordação de sua passagem ao mesmo tempo em que deixa pistas a serem
mencionadas após sua iminente morte violenta.
Margaret, por sua vez, deseja uma posição social melhor e, para isso, cria a
imagem de uma jovem altruísta e ingênua cuja tendência moralista e sua recusa em falar mal
de qualquer pessoa” chamava a atenção das pessoas, principalmente por não condizer com o
conceito de jovem e por destoar com o discurso da elite – grupo ao qual desejava pertencer.
Essa imagem é reafirmada quando se apresenta ao casal de amigos de sua sogra (um pintor e
uma “rica viúva australiana”) e se envolve “em veludo verde com um pano de fundo com
paisagens outonais”.
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Com a intenção de dar um tom de “exaltão” à sua beleza e ganhar a empatia
de pessoas que poderiam servir-lhe de referência, a estranha cena composta remete às figuras
dos quadros de autores pré-rafaelitas, em que belas mulheres (loiras ou ruivas) eram retratadas
em cenários outonais de predominância dos tons de verde, marrom, vermelho. Tal
comportamento parece excêntrico e incomum entre os jovens, visto que as pessoas reagiam da
mesma forma que o pintor, Hurley, que se perguntava “o que havia de errado com ela” para se
exibir “neste estilo”.
Qualquer que seja a aparência das duas personagens, a impressão que deixam
registrada nas pessoas é de que algo está errado, há um ruído na mensagem que desejam
transmitir, pois para os receptores a mensagem não faz nenhum sentido, não tem lógica. Lise,
com suas roupas extravagantes, relaciona-se com as pessoas apenas por um curto período de
tempo e de forma utilitarista, a fim de registrar sua passagem e suas ações como cúmplice de
sua própria morte. Margaret age continuamente como se desempenhasse um papel numa peça
de horror como uma personagem esquizofnica que não soubesse definir sua própria
personalidade, se ativa ou passiva “portadora da tragédia”.
Ainda que ambas busquem estar no comando de suas vidas, a realidade que
vivenciam deixa para elas a única opção de colaborar com a própria morte ou fracasso. Em se
tratando de evidenciar ideais e posições políticas contrárias às vigentes e defendidas pelo
sistema patriarcal, as mulheres se vêem ante à extrema dificuldade de serem compreendidas,
visto que os homens reconhecem somente as vivências a que estão acostumados. Assim
sendo, as vivências específicas do mundo das mulheres não são reconhecidas pela tradição, o
que resulta na impossibilidade de seus desejos e anseios fazerem sentido para aqueles que não
compartilham de um mesmo corpo/mundo.
Por esta razão, embora aos olhos de seus espectadores essas mulheres pareçam
figuras absurdas por não se enquadrarem ao padrão estético a elas estipulado, por escolherem
roupas chamativas e fora de moda, elas representam mulheres que seguem um caminho
oposto ao das regras e convenções. Mulheres como Lise e Margaret não querem se enquadrar
em modelos de mulher, querem ter o poder de definir sua própria personalidade, de descrever
seu destino conforme seus pprios desejos e mostrar ao mundo sua recusa aos padrões
comportamentais impostos.
Enquanto o corpo constitui fator de explicação da peculiaridade das vivências
femininas, ele torna-se um significante da diferenciação e significado do discurso feminino,
isto é, expressa as pressões pelas quais as mulheres passam, bem como a atitude tomada por
60
elas ante estas pressões. Nos dois romances sparkianos nota-se que o corpo informa o lugar e
o papel social das mulheres amparado na tradição patriarcal para dar sentido à vida delas,
mostrar-lhes até onde podem agir e como devem agir, do mesmo modo que se revela uma
força destruidora que leva as mulheres à morte ou ao fracasso.
Pode-se dizer que o aspectosico contribui para a inferiorização da mulher
quando associado à fraqueza e fragilidade física e, por conseguinte, emocional, além das
particularidades como menstruação, gestação e amamentação. Congregados em um único
indivíduo, estes pontos de diferenciação das mulheres justificaram o porquê de serem
restringidas ao lar, onde realizam as tarefas menos pesadas, geram e cuidam da família. O
homem, por sua vez, mais forte, realiza as tarefas que exigem maior esforçosico e mental e,
por isso, é responsável pelo sustento da família.
Ainda que Lise e Margaret representem o rompimento desta restrição, não se
observa uma total liberdade no espaço por elas conquistado, pois os padrões não foram
completamente rompidos. Ambas as personagens fogem à regra da mulher dependente de um
marido e preocupada em formar uma família, mas ainda não estão à vontade para falarem em
público, como Lise, nem conseguem ascensão social por seus próprios esforços, no caso de
Margaret.
Como fator de pertencimento social, o qual define o lugar de cada indivíduo na
sociedade e as limitações que sobre ele se impõem, é no corpo que as vivências das mulheres
assumem uma significação mais expressiva. É através do corpo que Lise vai sentir as
conseqüências de sua ação pública: o rompimento definitivo com o mundo, a expulsão
violenta do espaço público – o assassinato. É Lise quem vai denunciar a violência
estabelecida por uma força hierarquizante que coloca os valores masculinos acima dos valores
femininos, que delega atitudes às mulheres e não aceita questionamentos. Margaret, por sua
vez, busca pertencer a um lugar, a um grupo, mas falha ao acreditar que a inserção
momentânea numa sociedade possa garantir-lhe permanência. O espaço público, conquistado
por algumas mulheres, ainda restringe a entrada daquelas que são inseguras e que falham ante
as pressões do mundo masculino.
Não obstante o corpo seja uma ferramenta de valor considerável para defender
a causa das mulheres, funcionando como um veículo de seu discurso ou evidenciando sua
movimentação dentro do restrito espaço público, ele também denota suas próprias limitações
enquanto projeto crítico. Isto porque a mulher não se comunica apenas através de seu
comportamento e de seus gestos; ela lutou muito para poder usar as palavras publicamente em
61
defesa de seus ideais. Além disso, o fato de localizar-se em um espaço ou em outro nada diz
sobre as mulheres se for avaliado isoladamente de outros aspectos que possam mostrar mais
nitidamente a realidade das mulheres e as relações estabelecidas em outros setores de suas
vidas.
Estudiosas como Nicholson afirmam que a diferença entre mulheres e homens
está em um “nível mais profundo”, pois “não há aspectos comuns emanando da biologia”.
Quanto à utilização teórica deste modelo, a autora afirma que a crítica feminista deve
abandonar o fundacionalismo biológico, pois “a população humana difere, dentro de si
mesma, não em termos das expectativas sociais sobre como pensamos, sentimos e agimos;
também diferenças nos modos como entendemos o corpo” (NICHOLSON, 2000, p. 14).
Ante o exposto, pode-se concluir que o corpo pode assumir uma simbologia na
apresentação das mulheres, a qual se relaciona à constituição de indivíduos que se inserem e
agem em um meio social. Deve-se observar, entretanto, a existência de um conjunto de fatores
que denotam que diferenciar homens e mulheres sob a ênfase de características biológicas ou
físicas é um ato suscetível ao questionamento da legitimidade dos valores empregados. As
limitações do corpo como categoria, em razão de restringir a leitura das mulheres e de seus
textos a um único aspecto, apontam para a necessidade de que se considerem outros aspectos.
Uma proposta de modelo de análise textual diversa contribuiu para a
verificação de outras possibilidades de leitura dos textos produzidos por mulheres, como o
modelo lingüístico/textual, cuja característica mais evidente é a preocupação em esclarecer se
homens e mulheres usam línguas diferentes. Este modelo procura analisar os aspectos
filoficos, lingüísticos e práticos da língua, cujo interesse primordial está em averiguar
se as diferenças sexuais no uso da língua podem ser teorizadas em termos da
biologia, da socialização ou da cultura; se as mulheres podem criar novas linguagens
próprias; e se a fala, a leitura e a escrita são todas marcadas por gênero
(SHOWALTER, 1994. p. 35)
Feministas francesas (notadamente Julia Kristeva) encontraram na lingüística
de Saussure e na psicanálise de Lacan a base teórica para seus estudos. Millard (1989), exe
62
os conceitos lacanianos de Ordem Simbólica (a língua como fator de acesso de um indivíduo
às trocas sociais) e da Lei do Pai (lei da estruturação de significados). O Imaginário, onde se
localiza o feminino, não se expressa plenamente pelo simlico, o que deixa alguns de seus
elementos fora, reprimidos e silenciados na inconsciência.
Segundo a autora, a teoria lacaniana defende o falo (órgão sexual masculino)
como significante supremo, símbolo do poder que hierarquiza os sexos: sempre ereto, como a
pena” do escritor, ou a espada do guerreiro – emblema do poder intelectual e social do
homem. O feminino, por sua vez, se define pela ausência de falo e, conseqüentemente, de
poder. Deste modo, a mulher que se recusa a entrar na ordem simbólica, ou seja, repudia as
regras de significação estipuladas pela Lei do Pai, é considerada não socializada, psicótica e
alienada, pois sua linguagem dá nova significação a termos usados e conceitualizados pela
tradição patriarca.
Este conceito de leitura que busca diferenciar as formas de expressão
lingüística nos textos de mulheres tem como ponto de partida a noção de que antes das
mulheres buscarem conquistar seu espaço na literatura um dos fatores que as mantinham fora
do cânone seria sua escrita. Qualquer tentativa de se definir a linguagem feminina recaía nas
mesmas afirmações, de que ela “não se codifica nos moldes da masculina” e, por ser anterior
à Lei do Pai – pré-discursiva, “consistiria num projeto impossível, enquanto registro verbal de
processo averbal” (BRANCO, 1989, p. 112).
A linguagem “do opressor”, do patriarca, pontua sua diferença no fato de ser
sexista, tanto na linguagem literária (usada para “construir” a mulher) quanto na teórica
(usada para excluí-la). O discurso patriarcal impôs, através da linguagem, os padrões de
pensamento, os (p)conceitos sobre as mulheres que resultaram num posicionamento delas
em um patamar de inferioridade.
Branco faz referência aos vocábulos recorrentemente dirigidos à linguagem
textual empregada pelas mulheres. A autora afirma que a escrita das mulheres busca
apresentar um ritmo/tempo “jubilatório, ininteligível”, muito semelhante à linguagem infantil,
marcada mais por “gritos e balbucios do que precisamente por palavras” em razão do texto
o ser “portador de um sentido, mas de sensações” (1989, 114-5).
Os rompimentos que propõem as mulheres quanto à relação
significante/significado vai de encontro à ordem simbólica por oferecer aos signos lingüísticos
um significado diverso àquele tradicionalmente em funcionamento. Muriel Spark apresenta,
63
em seu romance da década de 70, a exemplo de re-configuração de sentidos, a imagem do
motorista (à qual o título faz referência). Conquanto esta figura represente a hegemonia
masculina, a carga semântica predominante está no ato de “conduzir”, comandar: o motorista
domina a situação.
Conduzir, sob este aspecto, é uma tarefa simbólica do patriarcado: ao indicar a
direção, afirma-se a autoridade e o donio de um sujeito sobre o outro. Em The Driver’s
seat, é interessante mencionar que a figura do motorista torna-se significativa por apresentar
momentos distintos da relação homem/mulher que se constrói por meio da hierarquia sexual,
nos quais Lise estabelece o rompimento com padrões.
Em um primeiro momento, o texto apresenta a personagem principal como
uma mulher sem domínio (tem crises nervosas, é solitária). No entanto, conforme a
personagem vai desenhando sua trajetória/narrativa, é possível observar que esta perspectiva
muda. De início, ao conversar com a Sra. Fiedke, a respeito de trânsito, as mulheres
descobrem que ambas sentem medo de dirigir: Lise afirma que nunca se sabe quem pode estar
na direção do outro carro. Ainda que as mulheres saibam dirigir, no romance de Spark estar
no lugar do motorista, na posiçãoativa” de dar a direção, orientar, se opõe à posição
passiva” do carona, que é orientado/dirigido.
Num momento seguinte, uma manifestação de estudantes a obriga a se separar
da senhora idosa (e de toda sua carga semântica de tradição/costumes) e a entrar em uma
oficina onde conhece o mecânico Carlo. Após um equívoco, Lise se apresenta a ele como
professora e turista; do flerte entre os dois cria-se a oportunidade para o mecânico oferecer-se
para levá-la ao hotel. A caminho do hotel, entretanto, a situação torna-se complicada: ele a
beija à força e tenta estuprá-la, porque ela recusa uma relação sexual que considera sem
sentido.
Instantes antes, porém, Carlo tenta persuadi-la ao tentar ganhar sua empatia
dizendo que sua mulher tem um amante. Lise percebe que se trata de uma manobra “inútil”,
pois ele tenta convencê-la de que é uma vítima. Ela, porém, sabe que esta situação não traduz
a real posição em que ele se encontra: “‘If you imagine,’ says Lise, ‘that you are justifying
any anticipations you may have with regards to me, you’re mistaken’”.
A fuga de uma eminente situação de violência sexual denota que Lise detém
controle da situação, não tem mais medo de estar no controle. A recusa do ato sexual, no qual
a mulher, fisicamente inferior, representa um objeto de satisfação do desejo do homem, revela
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uma tomada de poder, a consciência de que os objetivos da mulher são diferentes e têm
prioridade: “I don’t want sex with you. I’m not interested in sex. I’ve got other interests and
as a matter of fact Ive got something on my mind that’s got to be done” (SPARK, 1994, p.
80).
Ao fugir com o carro de Carlo, Lise mostra novamente seu domínio, assim
como ao encontrar Bill, o macrobiótico, o qual tenta foar a mesma situação, pois pretende
equilibrar seu saldo de “orgasmos diários” para não acumular para o dia seguinte. A recusa de
Lise, para quem sexo não tem utilidade, chama a atenção das pessoas e da polícia, que o leva
preso. A prisão o deixa “fora das suspeitas e da dieta”: ele não será acusado de tê-la matado.
Finalmente, a mulher tem o donio da situação. De volta ao hotel, Lise
encontra Richard, o sobrinho da Sra. Fiedke e seu companheiro de viagem que, no avião,
fugiu ao vê-la. Uma nova fuga, no hotel, é impedida pela voz de Lise, cuja autoridade
(“You’re coming with me”) o obriga a obedecer. Apesar dos protestos, ela o leva até o carro
(“She leads her man towards the door”) e dirige até o local por ela escolhido para ser morta
(“Then she drives off with him at her side”) e lhe dá os objetos que vão compor a cena do
crime. A reação dele, aos poucos, muda da histeria para a mais calma sujeição. Aceita (ainda
que proteste) ser definido como maníaco sexual, assassino de mulheres. Richard percebe que,
quando os homens perdem o controle, as mulheres têm a chance de dominar: É o que elas
querem”, “elas procuram por isso”.
Deve-se mencionar que o parque é o cenário onde as mulheres morrem uma
manifestação iia tradicional de que as mulheres estão mais próximas da natureza e, por isso
são inferiores aos homens. A ação de Lise é um sinal de que a ruptura com o controle dos
homens leva as mulheres ao seu “lugar”: o parque/santuário da natureza, lugar do feminino
ignorado e silenciado. Elas “queremvoltar ao seu lugar,procuram” escapar às pressões e
imposições do sistema dominante, ainda que isto signifique um rompimento definitivo com a
vida.
A morte adquire o sentido de uma volta ao lugar de pertencimento, de um
destino que, se não pode ser evitado, deve ser conduzido pelas mulheres. O trabalho
depreendido por Lise, de reunir os artefatos a serem usados em sua morte, assim como de
afiançar que haja testemunhas, aponta para seu poder sobre a situação, mas não sobre seu
destino. Ele é inevitável. A tomada de poder se dá por meio de uma nuance quase
imperceptível: através da atividade” (e não passividade) de mulheres que “sabem o caminho”
e que, senão isenta o homem da culpa de sua morte, o faz se sentir confuso ao “perder o
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controle de si mesmo” ao não mais conduzir a mulher, mas ser por ela ser conduzido:this
one took me. She made me go. She was driving”.
A aproprião do vocábulo “motorista” pela mulher, por sua vez, enfatiza uma
linguagem em fase de inovação que permite a verificação das formas utilizadas pelas
mulheres para se expressarem e, ao mesmo tempo, as mudanças em outros setores de atuação
humana. Isto se observa na afirmação de Branco (1989), de que “o leitor é sempre colocado
em estado de perda, em estado de desconforto em sua relação de crise com a linguagem” e
propõe o gozo na linguagem, no qual o sentido do discurso
nunca se localiza exatamente ali, mas que aponta sempre para mais am, ainda
mais, um pouco mais. Um discurso que não obedece àgica do preenchimento, da
certeza, da verdade, mas que se revela sempre incompleto, sempre faltoso e,
portanto, sempre deslizante, sempre em movimento (BRANCO, 1989, p. 48, grifo
da autora)
Segundo a mesma, loucura e morte encontram-se no território do gozo e da
paixão, “essa outra margem que pode ser apontada, assinalada pela linguagem, mas jamais
encerrada numa linguagem”. A loucura é uma “tentativa de saída radical da linguagem”,
enquanto a morte é uma saída definitiva” (BRANCO, 1989, p. 52).
Em The Driver’s seat, vemos a linguagem adquirir esta expressividade a favor
da personagem principal ao lhe dar a chance de, por meio de uma re-significação lingüística,
poder exteriorar seu discurso, ainda que não articule as palavras. A enunciação,
marcadamente símbolo do poder masculino no espaço público, fica contida em seu
receptáculo – a boca. Ainda que em um primeiro momento se tenha a impressão de que esta
contenção seja a aceitação do silenciamento das mulheres, como um “instrumento de
precisão” (e agressão) a boca fechada de Lise também expressa a recusa das mulheres em
utilizar um sistema lingüístico instituído, que “vem de fora” e, mesmo silenciada, a boca não
deixa de ter funcionalidade – agride ainda que não enuncie:
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Her lips, when she does not speak or eat, are normally pressed together like the ruled
line of a balance sheet, marked straight with her old-fashioned lipstick, a final and a
judging mouth, a precision instrument, a detail-warden of a mouth (SPARK, 1994,
p. 9)
Em busca de poder expressar sua própria personalidade, sem as amarras da
sociedade, há um prazer de poder agir, mais do que dizer. Ainda que vista de forma negativa,
a liberdade que confere o donio sobre a situação e põe o indivíduo à frente do próprio
destino (ainda que rumo à morte inevivel), dá uma sensação única, em que as mudanças
imperceptíveis delineiam rupturas significativas:
She walks along the street after leaving the shop, her lips are slightly parted as if to
receive a secret flavour. In fact her nostrils and eyes are a fragment more open than
the usual, imperceptibly but thoroughly they accompany her parted lips in one
mission, the sensing of the dress that she must get (SPARK, 1994, p. 10)
Esta mesma sensação prazerosa de romper com as imposições se nota em
Margaret, que em princípio usa um discurso incompreensível, destoante com a realidade que a
cerca, mas que, afinal, consegue exprimir-se com a autonomia desejada. Vale mencionar que,
no primeiro momento da trajetória de Margaret, as impressões sobre sua personalidade são
dadas por meio de comentários de outros personagens e de fatos (trágicos) que marcam sua
vida. Desta forma, semelhantemente a Lise, o direto à palavra lhe é negado e sua enunciação
sempre se adia. No entanto, após buscar maneiras de se inserir no espaço restrito da sociedade
burguesa, a personagem se vê ante a oportunidade de fazer uso da palavra e, por conseguinte,
decidir os rumos a serem tomados por ela: “I will bide my time ... what I have in mind is just
healthy crimilatity” (SPARK, 1991, p. 165).
Para as mulheres, o discurso enunciado conforme propõe o modelo feminista,
por meio de inovadoras construções simbólicas, o entendimento desta linguagem aproxima a
realidade delas e suas práticas textuais, pois fala de um modo em que as experiências
femininas dão às construções uma significação muito mais clara e expressiva. Esta afirmação
remete à já mencionada declaração de Bottum, de que a linguagem e a estrutura narrativa são
responveis pela construção de sentidos em Spark – é o texto, por meio das relações causais
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que vai explicar os sentidos que se devem depreender e as conclusões a que o leitor deve
chegar.
Por isso, observa-se que em The Driver’s seat não são revelados ao leitor os
motivos que levam Lise a agir de forma a facilitar o trabalho de seu executor. Apenas revela-
se que sua viagem significa o momento mais importante de sua vida, embora não se tenha
informações quanto ao destino, nem se saiba o que a impele a procurar seu assassino e as
provas circunstanciais a serem deixadas em seu caminho e no local de sua morte. No entanto,
são as atitudes de Lise, os raros momentos em que tem liberdade para falar, que vão construir
os significados e falar sobre a realidade das mulheres, em que as informações, apresentadas
em pequenos detalhes, revelam as relações entre texto e discurso.
Identificar o discurso feminino neste texto de Spark requer o reconhecimento
das experiências sociais das mulheres, tão particulares para este grupo, de modo a
compreender as motivações de Lise. Mediante uma análise dos atos da personagem, torna-se
mais perceptível as pressões que sobre ela pesam, pois sua decisão de sair de uma situação
moda, equilibrada (no trabalho e em casa), denota que para ela esta situação não lhe era
satisfatória e que, apesar de todos os problemas advindos de sua movimentação pública, a
necessidade de mudanças era muito mais urgente.
Por se tratar de situações comuns somente às mulheres, principalmente para
aquelas que desejam mudar a realidade social e conseguir maior espaço e liberdade, nem
todos os leitores podem compreender suas motivações, pois a autora espera que estas estejam
implícitas no texto, de forma a que a leitura possa revelá-las, bem como esclarecê-las.
McQuillan afirma que Spark não exe a realidade de forma evidentemente realista”, mas de
uma maneira em que aqueles que a lêem devem reconhecer essa realidade lida, pois se trata de
algo vivido.
No entanto, a estrutura narrativa não é nada amigável com os leitores, como se
nota também em Symposium, ao se levar em consideração que a apresentação de Margaret
ocorre de forma fragmentada, pela alternância de episódios do passado e do presente, a qual
exige uma leitura mais atenta, com atenção aos comentários das personagens, em especial
àqueles que parecem fora de propósito, pois dessa forma se constrói a realidade.
Assim sendo, o comentário de Brian Suzy com relação aos assaltantes que o
roubaram – ‘These thieves actively want us to sit round our dinner tables discussing them ...
They’re a gang; they generally go where the people are absent’ (SPARK, 1991, p. 194) – não
68
somente explica o que aconteceu com ele, como antecipa o que vai acontecer no apartamento
de Margaret, quando sua sogra for assassinada. Além disso, é irônico pensar que discussões
como esta se realizam na presença dos integrantes da gangue: os garçons. Portanto, de um
comentário corriqueiro e comum aparentemente sem importância, como o lamento de alguém
recém-assaltado, pode-se construir os sentidos e as relações significativas no texto.
Para algumas críticas feministas, a importância de se expor uma linguagem
diferenciada para as mulheres está em ser esta prática de escrita um gesto político, de apelo
unificador que contribua para que os textos das mulheres sejam colocados em um mesmo
patamar que os textos dos homens. No entanto, reconhecem que também constitui um gesto
cheio de dificuldades, principalmente porque alguns lingüistas se opõem a esta diferenciação
ao afirmarem que não há uma predisposição dos sexos a terem uma linguagem distinta. Para
aquelas que defendem o modelo lingüístico, as diferenças não devem ser observadas somente
no texto, isto é, restringir a leitura a construções semânticas, as deve-se, sobretudo, atentar
para as estratégias e contextos de desempenho lingüístico que construirão as significações que
se deseja exprimir. Desta forma, expõe-se que as experiências de vida das mulheres lhes
permitem mostrar que, ainda que o mundo das mulheres seja diferente do mundo dos homens,
não é inferior a ele.
Millard (1989) afirma que a posição defendida pelas feministas francesas passa
a ser questionada pelas demais feministas por denotar que o conceito referente a esta escrita
reduz as mulheres a crianças, por defenderem a noção de que a linguagem das mulheres é
inarticulada, não pode ser entendida. Assim, os escritos femininos ficam relegados ao espaço
da marginalidade e da alteridade, espaços classificados como “femininos” pela tradição:
These French women and their texts have themselves become signs in the encoding
of theoretical positions and they have come to occupy the space reserved for the
marginality and otherness that their work suggests is the location of the ‘feminine’
language (MILLARD, 1989, p. 155)
De forma semelhante, Showalter aponta para o risco de deixarem de ser
considerados fatores importantes referentes à escrita como “gênero, tradição, memória e
contexto” ao se dar atenção exclusiva à linguagem que, no caso das mulheres, é reprimida
pelo sistema patriarcal que lhe impõe construções de significados cuja referência localiza-se
69
no mundo dos homens, e não no das mulheres. Para a autora, deve-selutar para abrir e
ampliar o campo lingüístico das mulheres mais do que desejar limitá-lo”, bem como considera
que “os buracos no discurso, os espaços vazios e as lacunas e os silêncios” o correspondem
aos espaços que as mulheres desejam conquistar e, por isso, não é onde “devemos basear
nossa diferença” (SHOWALTER, 1994, p. 39).
Deste modo, as feministas que se opõem ao modelo lingüístico de leitura
reconhecessem que os significados podem ser constrdos de forma diferente, pois seu
referente está no aspecto extra-textual – nas vivências e experiências das mulheres -, que dá
visibilidade a seu mundo. No entanto, elas ressaltam que o texto deve denotar este diferencial
de forma mais evidente, com a finalidade de promover a realização do projeto feminista:
valorização da sua realidade e de suas experiências, durante muito tempo ignoradas. Ao
utilizarem construções lingüísticas que exigem o acesso às significações que são peculiares
somente a seu gripo, as mulheres correm o risco de serem mais excluídas.
Vale mencionar que a partir dos movimentos vanguardistas, no século XX,
romperam com as tradicionais práticas de escrita, oferecendo novas significações, novas
perspectivas de escrita e leitura, assim como uma visão do ser humano capaz de compreender
as pressões sociais e os problemas advindos delas, introduzindo a idéia de desconstrução e
fragmentação do indivíduo e do meio social em que ele se insere. Esta proposta possibilitou
uma escrita que refletisse estas perspectivas vanguardistas, tanto em obras de autoria
masculina, como feminina. Assim sendo, a fronteira literia entre os textos, antes responvel
pela hierarquização, tornou-se tênue e limitou a aplicação das propostas feministas.
Apesar de se notar que há pontos de convergência entre as aplicações propostas
pelo modelo lingüístico e as práticas presentes nos textos de autoria feminina, deve-se
observar que, assim como ocorre com o modelo biológico, realizar uma leitura na qual se
verifica apenas um aspecto do texto produzido isoladamente, como a linguagem e o corpo,
nota-se que esta leitura revela-se limitadora por levar em consideração formas de exteriorizar
aquilo que se quer expressar.
Também é importante enfatizar que, se uma categoria preocupada em efetuar
uma leitura de obras femininas com o intuito de questionar os paradigmas de valoração
aplicados pela tradição patriarcal, bem como de oferecer significações diversas para estas
práticas textuais, utilizar-se de mais uma forma de reafirmar a hierarquia sexual e, por
conseguinte, contribuir para colocar as mulheres em uma posição inferior, sua funcionalidade
70
deve ser questionada e, quando aplicada, deve-se ter o cuidado de não cair em nenhuma
armadilha hierarquizante.
A insistência em aplicar o modelo lingüístico aos escritos das mulheres pode
acarretar numa duplicidade discursiva cujo resultado pode comprometer a valorização destes
escritos. Ao descrever a linguagem empregada pelas mulheres como algo incompreensível,
semelhante ao balbucio infantil, as feministas arriscam-se a negar a eficácia comunicativa dos
textos das mulheres, assim como elas mesmas podem desprestigiar a crítica feminista.
Algumas críticas feministas afirmam que a ruptura linguística proposta pelas
mulheres muitas vezes utiliza-se de um vocabulário que remete ao prazer físico, em que a expreso
linguística torna-se o lugar onde a mulher entrega-se "ao caos, à desarticulação, à fragmentação,
a estilhos de palavras que não se reconstroem, já que é impossível reconstruir um discurso que
não diz, não vai a lugar nenhum" (BRANCO, 1989, p. 115). Num jogo de sedução que envolve
o texto e o leitor, a escrita "caótica e ofegante" caracteriza-se por mostrar que "a respiração, o
ritmo e o tempo são outros" (BRANCO, 1989, p. 121).
Um texto marcadamente sonoro, como proe o modelo linguístico, em que os
recursos linguísticos ajudam a reforçar sentimentos e sensações, pode ser observado em Muriel
Spark, que faz uso da linguagem para revelar as personagens de uma forma que as palavras por si
o podem. Em textos corno The driver's seat, observam-se, por exemplo, sequências em que os
sons de [r], [s] e [k] se destacam - "the high, hacking cough-like ancestral laughter of the
streets, holding her breasts in her hands to spare them the shake-up" (SPARK, 1994, p. 17) -
fazem alusão ao som da risada e ao balanço do corpo por ela causado, cujo seqüenciamento dá
iia de sua duração. O ritmo também come um dos recursos usados por Spark para dar uma
musicalidade e marcar o tempo: seja concomitância de gestos (heaves a sigh, / purses his lips, /
closes his eyes, / places his chin / in his hands / and his elbow / on the desk) (SPARK, 1994, p. 19)
ou paralelismo (the red in her coat and the purple in her dress).
Branco aponta de que não é incomum encontrar leitores de textos em que há maior
desconstrução linguística "desapontados" com o estilo de escrita que "jamais revela de todo, que
jamais se permite desvendar, que jamais esclarece o obscuro, confessa as verdades inconfessáveis,
entrega os segredos" (BRANCO, 1989, p. 56). Perante tal afirmação, é possível entender porque
estes textos representam uma leitura "difícil" para leitores acostumados à ordem simlica
patriarcal, conhecida e propagada pela historia literia. Dado este fato, outros aspectos da
realidade vivenciada pelas mulheres devem ser considerados de modo a possibilitar uma
apreensão mais ampla da literatura produzida pelas mulheres e os significados nela
71
construídos. Assim, as mulheres novamente se vêem frente à necessidade de buscar outras
categorias que avaliem manifestações de diferença na literatura.
A busca por categorias que não sejam exclusivistas, consideradas isoladamente
de outros fatores, passa a oferecer probabilidades de um melhor entendimento dos recursos
expressivos que comunicam a realidade do mundo das mulheres. A psicanálise e os estudos
culturais tornam-se, então, significativos para que a escrita e a leitura das mulheres pudessem
ser efetuadas ao relacionar um conjunto de fatores concomitantes nestas práticas que
constroem e permitem entender os sentidos de um texto.
2.2 – O outro e a selvagem: diferença na psicanálise e nos estudos culturais
Em se tratando de averiguar as teorias vigentes com a finalidade de estabelecer
os paradigmas de diferenciação entre a literatura produzida por homens e mulheres e,
levando-se em consideração as limitações dos modelos biológico e lingüístico, algumas
feministas trabalharam com a proposta de examinar a realidade das mulheres a partir de níveis
mais profundos de significação e de expressão. As complexas relações estabelecidas entre
linguagem, biologia e a construção do indivíduo implicam em observar este indivíduo em um
determinado meio social, dando origem ao modelo psicanalítico. Este modelo é apresentado
como um projeto que
incorpora os modelos biológico e lingüístico da diferença de gênero numa teoria da
psique ou do eu femininos, moldada pelo corpo, pelo desenvolvimento da linguagem
e pela socialização do papel sexual (SHOWALTER, 1994, p. 40).
O modelo de diferença de orientação psicanalítica ampara-se, primordialmente,
numa proposta cuja distinção entre os sexos coloca as mulheres em extrema oposição aos
homens, pois as vê como o negativo dos homens: fala sobre a ausência do falo, a inveja do
pênis, o complexo de castração e sobre a fase edipiana como formação da identidade sexual,
em que o falo predomina como significante. Por estarem os homens em uma posição de
72
domínio, as mulheres se tornam o “outro”, inferior e ignorado. Em um jogo especular, o outro
se revela para a imagem “original” (masculina) e reflete uma realidade também outra, em que
as identidades opostas falam de mundos diferentes e incompreensíveis entre si.
Em The Driver’s seat, a voz narradora denota essa incompreensão ao expor
que os motivos de Lise são inatingíveis: “Lise is lifting the corners of her carefully packed
things, as if in absent-minded accompaniment to some thought, who knows what?”, seus
pensamentos uma incógnita: “Who knows her thoughts? Who can tell?”. O que passa
despercebido por esta voz (considerada a voz da tradição patriarcal) é a demanda de Lise por
sua visibilidade e para que lhe seja dado o espaço desejado. Com o propósito de chamar a
atenção, seu comportamento estranho causa desconforto em quem a observa: “he [the clerk]
looking meanwhile as if he bears the whole of the eccentricities of humankind upon his
slender shoulders” (SPARK, 1970, p. 49-50). Mas ela deixa as pistas” a serem seguidas:
pede “em voz alta” aquilo que deseja, faz exigências de forma a que todos a vejam e
testemunhem sua existência.
De forma semelhante, o desconforto causado por Margaret de um lado resulta
em ser ela considerada suspeita de um crime que ninguém consegue supor qual seja, como
comprova a produtora de televisão Annabel, ao compará-la à famosa figura literária: “A
female Jekyll and Hyde, she thinks. And she wonders, What were precisely the crimes of Mr
Hyde? One is never told” (SPARK, 1995, p. 194). Por outro lado, o inmodo inexplicável
resulta na análise de situações suspeitas vividas pela personagem, resultando na confirmação
de sua inocência. O que permanece, a despeito de sua inoncia confirmada (até onde se
alcança), é a sensação de que dela emanam “vibrações malignas”.
Nota-se, desta forma, que as realidades sociais distintas colaboram para que o
discurso do outro/mulher, que é emitido com a intenção de ser ouvido, não se efetive sem que
pareça ilógico. Tem-se a impressão de tratar-se de um discurso que, ainda que confirmada sua
existência, mais parece um ruído incômodo e incompreensível. Sob a ótica psicanatica, esta
falha na comunicação entre os dois mundos explica-se ao se levar em conta que o
desenvolvimento da personalidade de homens e mulheres se realiza diferentemente.
Ao tratar da formação da personalidade, Oliveira (1999) aponta que, para os
meninos, este processo assemelha-se aos ritos de passagem e iniciação cujo objetivo constitui
inserir a criança do sexo masculino no mundo dos homens num segundo nascimento (social),
separando-a da mãe, do tempo da infância. Numa morte simbólica dolorosa e violenta, o
73
menino terá que passar por provas e renascer homem e adulto reafirmando, assim, a
superioridade dos homens e a separação dos mundos masculino e feminino.
Separar homens e mulheres em pólos opostos, segundo psicanalistas, é um ato
que pode ser entendido mediante a verificação de como se desenvolve a personalidade, cujo
desenvolvimento ocorre de forma concomitante ao da identidade sexual, pois a passagem para
a idade adulta é marcada pela descoberta das diferenças sexuais e, conseqüentemente, das
“funções sexuais” delegadas aos sexos. Para os meninos, não há grandes mudanças, pois o
objeto de desejo continua sendo a mulher, enquanto as meninas experimentam uma
“involução”. O ato sexual oportuniza a descarga de produtos sexuais dos homens e, por visar
a reprodução humana, é um gesto altruísta:
Since the new sexual aim assigns very different functions to the two sexes, their
sexual development now diverges greatly. That of the males is the more
straightforward and the more understandable, while that of the females actually
enters upon a kind of involutionThe new sexual aim in men consists in the
discharge of the sexual products … The sexual instinct is now subordinated to the
reproductive function; it becomes, so to say, altruist (FREUD, 1957, p. 207)
Tornar-se homem significa renunciar ao mundo feminino em que a memória do
corpo materno é uma ameaça à maturação. Sob este prisma, para o menino a maturidade
designa um processo descrito em termos negativos, como sendo “não-feminino”. Para a
menina, entretanto, a construção da identidade – segundo Freud – se dá quando ela descobre
que não tem pênis. Ela se ressente de “seu equipamento anatômico inferior” e culpa sua mãe e
passa, a seguir, a desejar um filho como substituto do pênis. Esta possibilidade se realiza
primeiramente com seu próprio pai e, mais tarde, com outros homens, embora não supere a
ligação erótica com a mãe. Como resultado, as mulheres têm superegos fracos e deficiente
senso de moral, são tipicamente masoquistas, narcisistas, competitivas com outras mulheres e
têm inveja dos homens.
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The assumption that all human beings have the same (male) form of genital is the
first of the many remarkable and momentous sexual theories for children … Little
girls do not resort to denial of this kind when they see that boy’s genitals are formed
differently from their own. They are ready to recognize them immediately and are
overcome by envy for the penis – an envy culminating in the wish, which is so
important in its consequences, to be boys themselves (FREUD, 1957, p. 195)
Assim, a iniciação que constrói a identidade sexual dos meninos, baseada no
medo do outro, busca recusar a feminilidade, o materno e o mundo feminino e aterrível
ameaça” da confusão, indiferenciação e apagamento das fronteiras entre os sexos. Após a fase
edipiana, o poder e hegemonia masculina contribuem para a construção da “percepção de
diferença sexual, identidade de gênero e preferência sexual” (SHOWALTER, 1994, p. 43).
Desta forma, as leituras de iniciação reafirmam “a polaridade fundamental”:
feminino/infantil/privado e masculino/adulto/público; as quais colocam as mulheres em uma
parte obscura da sociedade, próximas à Natureza (selvagens e irracionais) e devem ficar
confinadas, excluídas do mundo adulto. Esta forma de pensamento, denominada cultura
humana (masculina), tradicionalmente representou a mulher como rebelde, instintiva, alheia à
Razão, que gerou desigualdade e hierarquização sustentadas por representações mitológicas e
ideológicas, em que a mulher representa o pólo dominado.
Freud (1957) afirma que é possível entender como uma menina se torna mulher
quando se leva em consideração que, para elas, a puberdade é marcada pela repressão.
Impossibilitadas de se separarem do próprio corpo, para as mulheres resta a exclusão do
mundo adulto, principalmente quando considerada a maternidade como sua função
sexual/social primordial. Enquanto os homens procuram romper com a Natureza através da
cultura, com o objetivo de desvendar os mistérios naturais de forma a manipularem e
transformarem o meio ambiente, o feminino constitui uma sombra, um território sagrado,
imutável, confundido com a Natureza.
A maioria das psicanalistas feministas refuta várias afirmações de Freud,
principalmente aquelas que parecem mais miginas, dentre as quais aquela em que o
psicanalista sustenta que as mulheres invejam o pênis dos homens. As feministas, por sua vez,
defendem o desejo delas de ter o poder conferido ao sexo oposto, assim como a liberdade de
não associar sua realização pessoal e sexual unicamente à vontade dos homens.
75
As feministas também asseguram que as crianças efetuam as distinções entre
os sexos a partir da observação isolada dos pais e de esquematizações cognitivas. Outro
argumento apresentado pelas feministas é que as meninas desejam ter filhos desde cedo e que
as mulheres gostam das crianças por serem o que são e não como pênis substitutos. Mediante
estas afirmações, torna-se mais claro porque as feministas ocuparam-se de outras teorias da
sexualidade em detrimento da teoria freudiana, uma vez que as teorias posteriores procuraram
não evidenciar demais a primazia do objeto fálico na construção e desenvolvimento da
identidade e da personalidade sexual.
Quanto à funcionalidade do modelo psicanalítico enquanto categoria analítica
dos textos das mulheres, alguns conceitos podem ser de grande valia como, por exemplo, a
idéia da passagem das mulheres para a fase adulta ser marcada pela repressão. A perspectiva
de leitura amparada na psicanálise estabelece uma analogia entre a psique e a escrita das
mulheres, utilizando-se de imagens que geralmente revelam as ansiedades delas. Assim
sendo, a repressão que marca as mulheres e as exclui dos meios sociais passa a ser construtora
de sentidos em seus escritos ao se observar a recorrência, nestes textos, de mulheres
trancadas, por motivo de doença ou loucura, as quais se tornam símbolo desta exclusão social.
Dentre as figuras que marcadamente representaram a rescisão entre os mundos
dos homens e das mulheres, para este trabalho considera-se mais pertinente falar sobre a
mulher louca. A loucura, que simboliza o desligamento com o mundo real – das normas,
convenções e exincias sociais –, ao mesmo tempo fala como ooutro” é visto pelo grupo
dominante. Gilbert e Gubar (1979) estudaram a representatividade das mulheres através da
personagem louca presente nos textos femininos, convertendo-a em símbolo do isolamento de
um mundo que não vê as mulheres como indivíduos, humanamente, mas como transgressoras
da ordem, irracionais e agressivas.
Para as estudiosas, os paradigmas referentes à loucura se evidenciam,
significativamente, no romance Jane Eyre, de Charlotte Brontë (1847). As personagens Jane
Eyre e Bertha Mason contrastam a situação em que viviam as mulheres, assim como ilustram
momentos históricos distintos do movimento por elas iniciado: enquanto a primeira deseja ser
independente e racional, a última representa a mulher totalmente isolada da sociedade, cuja
participação no espaço público é proibida. Ante ao exposto, é pertinente afirmar que as
personagens sparkianas, Margaret e Lise, de maneira análoga podem confrontar diferentes
vivências das mulheres em momentos distintos. As relações construídas nos romances podem
76
oferecer uma incursão ao mundo das mulheres, onde se encontram suas motivações e os
conflitos que lhes impõem um posicionamento.
A fim de proporcionar o estabelecimento das relões entre o texto e o
discurso, nos quais a subjetividade da mulher pode se evidenciar, entende-se ser imperativo
dar ênfase às metáforas e imagens que circundam o discurso presente nos textos estudados.
Segundo Humm, a psicanálise fornece uma contribuição valiosa à crítica feminista ao oferecer
uma leitura do feminino baseada não somente na construção social da feminilidade ou na
biologia, mas na linguagem e na subjetividade, revelando no “subtexto escondido” as
ltiplas realidades de um indivíduo.
Desta forma, pode-se considerar que a loucura de Lise apresenta uma carga
discursiva significativa ao denotar as incongruências de suas vivências. A idéia de
aprisionamento, recorrentemente associada à loucura, simboliza a repressão da mulher e sua
exclusão do espaço público – onde as regras são estabelecidas –, assim como a manutenção
do equilíbrio. Este conceito aplica-se em The driver’s seat quando a situação inicial da
personagem é examinada, pois o equilíbrio no qual a personagem se encontra, aos poucos se
revela ser apenas aparente.
Deve-se expor que, inicialmente, o equilíbrio na vida de Lise é representado,
no espaço público, pelo emprego no escritório de contabilidade e, no espaço privado, por sua
casa, sempre organizada e limpa. No trabalho, o equilíbrio está no fato de ser ela chefe de
cinco mulheres e dois homens, enquanto é subordinada de duas mulheres e cinco homens
(“she has five girls under her and two men. Over her are two women and five men”). Todavia,
Lise desequilibra este meio por ser ímpar (sem par), encontrando-se isolada no jogo lógico do
equilíbrio tradicional, segundo o qual os sexos se complementam. Localizada no meio-termo
da separação hierárquica dos dois grupos, pois abaixo dela há mais mulheres enquanto acima
há mais homens, ela representa uma ameaça à manutenção das desiguais oportunidades de
trabalho entre os grupos.
No espaço privado (casa), o equilíbrio se traduz pela disposição dos móveis e
pela organização: o apartamento pequeno, cujos móveis são fixos, adaptáveis a vários usos e
destacáveis, dobráveis, parece inabitado, tamanha organização e limpeza. Acrescenta-se a este
conjunto descritivo, a existência de regras determinadas por um “designer” desconhecido, de
gosto austero e princípios rígidos, que moldou a casa e tudo que há nela antes mesmo da
aquisição do imóvel. A vida regrada e metódica imposta pelo espaço restrito parece definir a
personalidade de Lise. Tem-se a impressão, no entanto, que sua presença desequilibra o
77
ambiente, uma vez que ao chegar determina o desdobramento dos móveis, bem como uma
intervenção subjetiva às regras impostas em contrato. Sob este ponto de vista, revelam-se duas
personalidades “desdobráveis”: de dia e, em público, Lise é uma mulher histérica, excêntrica
e incompreensível; à noite, em sua casa, as aparências não mais constroem sua realidade e
pode-se entrever uma mulher solitária.
As pressões de uma vida esquizofrênica a fazem fugir da situação inmoda
em que se encontra para buscar um destino que lhe permita alguma mudança e realização.
Para estabelecer as mudanças significativas para seu grupo, as mulheres necessitam da
visibilidade dos rompimentos que causam e das decisões tomadas por elas. Daí a razão da
movimentação de Lise em cenários diversos para que várias pessoas a vejam e testemunhem
sua ações como símbolo das inovações que as mulheres propõem à sociedade.
Neste ponto, verifica-se a contribuição do modelo psicanalítico para a
compreensão da psicodinâmica das mulheres (ficcionais e reais), pois traduz o enredo
narrativo em forma de história de vida psicanalítica cujo enfoque nos relacionamentos, nas
metáforas e nas imagens especulares pode explicar as relações simbólicas responsáveis pela
constituição de uma identidade. Ao realizar uma leitura cuja perspectiva considera a narrativa
como símbolo do desenvolvimento da personagem, é necessário prestar atenção nos
elementos que funcionam como instrumentos de significação.
Portanto, a proposta de que a jornada de Lise seja a metáfora mais marcante do
romance é possível ante a observação de que na narrativa há um predonio de descrições de
situações e conseqüente relação causal (como em um estudo de caso), assim como a
concomitância entre o desenvolvimento textual e da personagem. É necessário pontuar que as
ações são as portadoras dos significados mais complexos do texto, pois por meio delas é
possível evidenciar o discurso que se quer comunicar.
O discurso feminista se evidencia por meio do envolvimento do leitor, que se
vê na posição de testemunha das ações da personagem, ao mesmo tempo em que reconhece os
objetivos implícitos destas ações. O descontentamento das mulheres torna-se expressivo com
o rompimento inicial delas com uma situação insustentável: a obediências a normas impostas
e o desequilíbrio nas relações sócio/sexuais. Desta forma, as mudanças se materializam na
fuga do norte (superior, racional, normatizado, masculino) rumo ao sul (exótico, selvagem,
irracional, feminino). Fugindo dodesigner” de suas vidas, as mulheres têm que encontrar os
elementos que lhe restaurarão o equilíbrio, bem como promoverão o rompimento com as
imposições sociais que parecem destr-las. Todavia, tudo conjuga para o fracasso do projeto
78
feminista: mesmo que a mulher consiga visibilidade, ela acaba anulada pelo poder masculino
ainda dominante.
Em Symposium, a construção narrativa também se realiza de forma paralela ao
desenvolvimento da personagem. No entanto, o discurso feminista é responsável por
fragmentar o texto ao alternar referências a fatos ocorridos ao mesmo tempo em que apresenta
os fatos em andamento e antecipa o que ocorrerá em seguida. Esta forma fragmentária de
organizar o texto, ainda que possa comprometer a leitura, dificultando a relação entre os fatos
apresentados, é empregada como um recurso para evidenciar a visão que os demais
personagens têm da protagonista, Margaret. Durante a realização do banquete, cada
convidado é apresentado, por meio de flash backs, assim como suas opiniões e as informações
de que disem com relação à estranha figura feminina que se encontra entre eles.
Em se tratando de uma representante do pensamento feminista, Margaret
sintetiza o desejo de poder e liberdade das mulheres, o que causa um desconforto para aqueles
cuja posição social é satisfatória e que se beneficiam das desigualdades sociais/sexuais. O
conservadorismo que se expressa nos membros burgueses do jantar entra em conflito com as
novas proposta das mulheres. No entanto, mesmo que seja possível depreender esta luta de
forma mais aberta, as mulheres ainda não conseguem realizar seu projeto por completo e têm
que vislumbrar o fracasso como conseqüência de sua luta.
Diversos estudiosos e estudiosas têm contribuído para a descrição e divisão das
perspectivas crítico/teóricas, segundo os quais a psicanálise é considerada uma categoria
viável para o estudo dos escritos das mulheres. Alguns têm chamado a atenção das feministas
por apontarem teorias críticas que vêem no masculino e no feminino forças criadoras na
composição de personagens. Jung, por exemplo, tornou-se interessante para as mulheres por
afirmar que o indivíduo atinge a completude ao ser capaz de incorporar aspectos do sexo
oposto, em que o animus (masculino) complementa o feminino e a anima (feminina) o
masculino.
Conseqüentemente, as transformações no indivíduo podem apresentar aspectos
distintos, de acordo com as influências sofridas, ao que Jung chama possessão. Segundo o
psicanalista, a anima relaciona-se às emoções e afetos, o que resulta em que uma possessão
provocada por ela torna o indivíduo volúvel, desmedido, caprichoso, descontrolado,
emocional, às vezes demoniacamente intuitivo, indelicado, perverso, mentiroso, em bruxa e
mística. Como resultado, ela “intensifica, exagera, falseia e mitologiza todas as relações
emocionais com a profissão e pessoas de ambos os sexos” (JUNG, 2000, p. 82). É pertinente,
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ante estas afirmações, dizer que Lise e Margaret apresentam as características da possessão
anímica, pois apresentam os aspectos contrastantes dela. Enquanto Lise se caracteriza pelo
capricho, descontrole e volubilidade, Margaret remete à figura da bruxa e a suas implicâncias
negativas, como se nota na exposão de Jung.
A possessão, que passa a determinar o comportamento, enfatiza pensamentos
ou partes da personalidade que dominam o indivíduo e passa a se expressar por meio de
convicções singulares, idiossincrasias, planos obstinados” que não são suscetíveis de
correção. Notadamente, o plano obstinado de Lise é encontrar o “seu tipo” de homem e
garantir o melhor momento de sua vida, assim como o de Margaret é encontrar um marido
rico, que lhe garanta inclusão na sociedade burguesa.
Para a psicanálise, outra conseqüência da possessão anímica é a revelação do
lado obscuro da personalidade humana, designado como “a porta de entrada para o
inconsciente, o pórtico dos sonhos”. As personagens sparkianas revelam o lado considerado
obscuro pela tradição ao demandarem o fim da hierarquização, ou seja, desejarem o fim das
desigualdades para terem melhores condições de vida, como a liberdade de expressarem seus
sentimentos e pensamentos sem ter que ceder às imposições repressoras. No entanto, é
relevante pontuar que a atenção dada ao lado obscuro concorre para o risco de se cair em
armadilhas, pois é comum que o indivíduo nesta situação exerça “uma impressão desfavorável
sobre os outros”, cujo resultado é alcançar “o que não lhe convém”: a morte (Lise) ou o
fracasso (Margaret).
Showalter considera que a importância da psicalise feminista também está no
fato das relações entre personagens representar o vínculo entre as mulheres por meio da
configuração mãe/filha como fonte de criatividade feminina” (SHOWALTER, 1994, p. 43).
Esta categoria, representada pelas figuras míticas Deméter e Core, estabelece uma relação em
que há uma polarização responsável por totalizar uma consciência feminina que congrega o
mais velho e o mais novo, o mais forte e o mais fraco e ampliam assim a conscncia
individual estrita, limitada e presa a tempo e espaço rumo a um pressentimento de uma
personalidade maior e mais abrangente” (JUNG, 2000, p. 188).
A personalidade a que se refere Jung conjuga mãe e filha e efetua uma relação
temporal: como mãe, vive-se antes; como filha depois”. Este tipo de relação tem por
conseqüência a tipificação do indivíduo de acordo com o grupo ao qual pertence que, no caso
das mulheres, refere-se “ao arquétipo do destino feminino em geral”. Por se preocupar com os
relacionamentos e as imagens/metáforas a eles relacionadas, a psicanálise torna possível que
80
se observe como as personagens são constituídas nos romances. Neste sentido, a amizade
caracteriza um relacionamento importante para se entender a psicodinâmica das mulheres
enquanto veículo de auto-definição.
Deste modo, nota-se que no romance de Spark, Lise conhece a Sra. Fiedke ao
sair do hotel e, após dividirem o táxi, decidem fazer compras juntas, pois nenhuma delas tem
planos estabelecidos. A amizade entre as duas mulheres tem como função primordial explicar
as relações que comem a realidade de seu grupo. Num momento inicial, elas não se
distinguem, pois a idosa parece não ver nada estranho em Lise, “tão confiante ela se
aproxima”. Entretanto, supõe-se que a distinção não se efetiva em razão de uma falha na
percepção da primeira: “the woman’s eyesight is sufficiently dim, her hearing faint enough, to
eliminate, for her, the garish effect of Lise in normal perceptions” (SPARK, 1994, p. 51).
Contudo, a diferença entre as duas logo se torna evidente: o constrangimento
público da Sra. Fiedke, causado pelas gargalhadas da companheira, que a assustam a ponto de
se sentir em outro lugar, fora de si, denota que a concepção de mulher pode apresentar
definições distintas. Lise, que não se preocupa com as convenções e, por isso, não se sente
obrigada a comportar conforme se espera de uma mulher, simboliza algo “novo” para a
senhora idosa que, por sua vez, representa as mulheres ainda aprisionadas pelas regras
patriarcais. Ainda que Lise inspire confiança à sua companheira, que vê nela novas
possibilidades para as mulheres, elas falam de locais diferentes e, muitas vezes, não se
entendem, pois os novos papéis sociais que se configuram após o movimento das mulheres
podem se estender também aos homens, o que seria uma ameaça aos papéis em
funcionamento, conforme a Sra. Fiedke expõe: “If we don’t look lively’, she says, ‘they will
be taking over the homes and the children, and sitting about having chats while we go and
fight to defend them and work to keep them. They wont be content with equal rights only…”
(SPARK, 1994, p. 72).
Da relação temporal que a psicanálise procura estabelecer, a fim de evidenciar
as mudanças ou manutenção de práticas tradicionais, as duas mulheres delineiam diferentes
momentos históricos e psíquicos. A relação entre as duas personagens, que parte do
estranhamento entre as realidades e comportamentos, torna possível a elucidação de aspectos
mais complexos do vínculo estabelecido entra elas. A menção feita por Lise, de estar em
busca de um provável namorado, gera uma cooperação entusiasmada por parte da amiga. No
entanto, este namorado é uma incógnita, definido apenas por meio de hipóteses: ele poderia
81
dirigir um carro, mas certamente a reconheceria pela mulher que é:The one I’m looking for
will recognize me right away for the woman I am, have no fear of that”.
Ao se descobrir que o homem certo para Lise é Richard, sobrinho da Sra.
Fiedke, nota-se que o destino delas está ligado por esta figura, cujo poder de decisão quanto à
vida ou à morte parece evidenciar-se, pois sua função de executor é revelada e mencionada ao
repetidas vezes. A figura masculina, ao mesmo tempo em que une as mulheres representa
momentos diferentes de suas vincias, pois constitui o paradoxo do objetivo que se quer
alcançar, assim como o destino que se quer evitar.
Esta implicação paradoxal da cooperação feminina fica mais evidente ao se
observar a integração entre presente e futuro, a qual define as relações causais das ações das
mulheres. No presente, a movimentação de Lise parece sem sentido, pois representa a recusa
aos tradicionais papéis sexuais e sociais delegados às mulheres e exige, assim, a construção
inicial de uma nova sociedade. Nota-se, contudo, que a menção dos acontecimentos futuros
representa a intromissão do narrador que, ao antecipar a morte de Lise, comunica a
impossibilidade de sucesso do projeto feminista.
Atribuído ao narrador o poder da tradição patriarcal, o empecilho que este
representa ao desenvolvimento da personagem torna-se uma analogia às dificuldades sociais a
serem enfrentadas pelas mulheres. Segundo este narrador, a morte de Lise – e sua colaboração
– é incompreensível, pois se observa que ao narrar os fatos há um questionamento das atitudes
da personagem e uma afirmação do quanto eles lhe são estranhos e irreconhecíveis (“Who
knows her toughts? Who can tell?”). Como testemunha ou como investigador que tenta
explicar a morte de Lise, ao arrolar as evidências ele propicia o acompanhamento do percurso
e da evolução que ela terá no romance. Caberá, porém, ao leitor, identificar as motivações da
personagem, assim como interpretá-las à luz das vivências peculiares desta personagem.
A figura da Sra. Fiedke, contudo, mais do que um elo latente entre as
personagens, representa as mulheres que colaboram para a opressão de seu sexo e vêem na
hierarquia sexual uma relação sem conflitos. Ao aludir que seu sobrinho (Richard) é o par que
falta a Lise, a senhora se apropria da voz do opressor, já que um homem com histórico de
violência contra mulheres parece ser o complemento à amiga de modos estranhos.
Estabelecendo um elo entre a companheira e o sobrinho, a Sra. Fiedke tentar aproximar um
maníaco sexual – cujo apelido é Dick (termo vulgar para pênis) – de uma mulher que tenta
encontrar homem certo: ‘it’s in my mind and I can’t think of anything else but that you and
82
my nephew are meant to each other. As sure as anything, my dear, you are the person for my
nephew’ (SPARK, 1994, p. 70).
Ao reafirmar a complementaridade necessária entre os sexos, a senhora idosa
consolida a iia, apresentada pela psicanálise, de que as vincias coletivas compartilhadas
levam ao destino estereotipado das mulheres. Lise, no entanto, embora pareça seguir em
direção a este destino, ao ouvir a voz de outra mulher e seguir o caminho indicado,
igualmente vê neste momento a possibilidade de rompimento com as velhas tradições. A
separação das duas mulheres é necessária, desta forma, para que Lise alcance seu objetivo: a
tomada da direção de sua vida, representada pelo roubo do carro do mecânico Carlo e a
condução de Richard até o local onde será morta por ele. A Sra. Fiedke cria, por conseguinte,
a oportunidade para que Lise abandone os ideais que ela representa e parta em busca de um
destino onde ela possa tomar suas próprias atitudes e, livre de questionamentos, possa criar
seu próprio destino.
Deve-se considerar, ainda, que embora possa ser empregado de forma
satisfatória em leituras de escritos de mulheres, este modelo apresenta alguns limites, pois se
tem observado a utilização da teoria psicanalítica de mãe-filha de forma recorrente, o que
revela uma tendência de lidar somente com trabalhos de e sobre a mulher. A sexualidade das
mulheres, quando considerada fator de construção de sentidos em um texto, tem sua função
depreendida por completo caso seja inserida em um contexto, da mesma forma como a auto-
representação apenas se realiza efetivamente fora de comparações com homens.
A psicalise, cujas hipóteseso revistas pelas feministas, trabalha com a
interpretação de imagens e metáforas que contribuem para a elucidação destes recursos
enquanto significações textuais e expressão do eu. Assim sendo, a recorrência de
determinadas figuras no texto, como o motorista, em The driver’s seat, proporciona a
apreensão das conotações deste vocábulo em funcionamento: evoca a iia de uma figura
essencialmente masculina (e máscula), que se encontra em situação de controle e donio.
Aplicadas à personagem feminina, a acepção dos sentidos da figura do
motorista pode explicar a tomada de controle desejada por aquela que só pode se realizar por
meio da demanda da visibilidade e escuta. Inicialmente sentindo-se presa nos mundos público
(do trabalho) e privado (no apartamento), Lise rejeita esta delimitação espacial, numa
representação da necessidade de liberdade das mulheres. A saída destes lugares onde a mulher
sente-se pressionada e destitda de poder – com sua personalidade fragmenta de modo a
83
evitar a exposição pública –, acomoda a iia de uma jornada rumo ao desconhecido, ao
novo” feminino.
Lise reconhece que a única chance de se revelar está na mudança, que
pressupõe ação. Deste modo, dos compartimentos de seu inconsciente (como os móveis
camuflados e dobráveis de seu apartamento) emerge a necessidade de transgressão das
normas patriarcais, que pode significar a exposição das mulheres por meio de recursos muitas
vezes inexplicáveis, como as roupas chamativas, as risadas escandalosas e as atitudes sem
nexo testemunhadas pelos observadores de Lise. Conseqüentemente, ao assumir o lugar do
motorista, o que exigia livrar-se do mecânico Carlo e do guru macrobiótico Bill, a mulher
pode então comandar seu opressor, mostrando-lhe o caminho que deseja percorrer.
Todavia, é importante considerar que a teoria psicanalítica também propõe que
o equilíbrio entre os sexos é possível e, para isso, o indivíduo precisa ser capaz de incorporar
aspectos do sexo oposto, em que o animus (masculino) e a anima (feminino) se conjugam.
Esta complementaridade pode ser observada no romance Symposium, no qual a protagonista,
Margaret, tem uma ligação intensa com seu tio, Magnus. Ao se estudar as relações de poder
que a figura feminina procura estabelecer, nota-se que elas se realizam mediante a cooperação
da figura masculina mais marcante, a qual se evidencia por meio da aliaa entre Margaret e
Magnus: “Certainly she had an affinity with Magnus; it was an old alliance” (SPARK, 1994,
p. 148).
Em se tratando da personagem feminina, a proximidade da figura masculina
que a aconselha e coordena suas ações, assemelha-se a uma “possessão” do animus, conforme
descreve a psicanálise. Propõe-se que esta possessão seja determinante de um comportamento
rígido, cheio de princípios, polêmico e despótico. É possível afirmar que para entender a
forma como este “duplose consti no texto, deve-se levar em consideração que é comum a
menção a uma personagem pressupor a “presença” da outra, o que evidencia a integração
entre feminino e masculino.
Se a anima estabelece um comportamento impulsivo, movido pela emoção e
pelo instinto, o animus gera a preocupação com um método e as regras como fatores atuantes
na ação humana. Constata-se, então, que o aspecto masculino que se vê em Margaret se refere
ao poder de dominação e controle, isto é, pela elaboração de um plano a ser executado em
etapas: escolha do marido (pelo sistema do alfinete fincado no nome escrito em uma folha de
papel), pesquisa e espionagem sutis e aproximação deliberadamente “ocasional”. Embora apta
a competir por um lugar social, a mulher enfrenta as limitações causadas pelo estranhamento
84
advindo do sucesso obtido por meios que não podem ser apreendidos pelas demais pessoas.
Assim, a manipulação dos fatos para atingir suas metas resulta na insistente limitação
espacial, pois a simples coincidência não parece explicar de forma satisfatória tal conquista.
No entanto, é a figura masculina que chama a atenção para as forças que
tradicionalmente hierarquizam os mundos feminino e masculino. Configuradas como
destino” por Magnus, elas discordam dos desejos e necessidades das mulheres e concorrem
para o fracasso do projeto feminino quando a intervenção se dá de forma declarada. Portanto,
as ações conjuntas dos sexos é a condição para que as mulheres se beneficiem do resultado de
práticas estigmatizadas como masculinas (controle, manipulação e racionalização).
O processo de possessão é passível de ocasionar a complementaridade entre os
sexos, da mesma forma como conjuga conceitos antes atribuídos separadamente a eles. Desta
forma, pode-se atribuir a Magnus a idéia da possessão pela anima (feminina) que reflete um
comportamento perverso, intuitivo e mentiroso: transfere para Margaret as conquistas que
deseja alcançar mas são impedidas pelas convenções sociais. Nota-se a presença de Margaret
em Magnus pelas figuras da louca e da bruxa, consideradas caracteristicamente femininas, as
quais concorrem para afiançar não somente a proximidade com o mundo das mulheres como a
recusa, por parte do tio, ao comportamento (e mundo) masculino com suas regras.
Por conseguir caminhar na fronteira destes dois mundos, ele cria uma
atmosfera mística em torno de si e se torna um ser superior, descrito por adjetivos como
inspirado, sagaz e “divinamente iluminado”; que justificam o costume de seus familiares de o
consultarem quanto a questões familiares complicadas. Além disso, essa condição de loucura
e de localização fronteiriça apóia a associação da figura da bruxa, que remete ao discurso
ilógico (louco) e à exclusão social (representada pelo hospital psiquiátrico).
Único fator imaginativo” dos Murchie, Magnus pode realizar suas
maquinações em favor da sobrinha como um bruxo que exerce influência sobre a vontade das
outras pessoas, sem deixar pistas sobre sua intervenção, visto que pertença a um local que,
segundo Margaret, ninguém gosta de adentrar. O poder do tio, ao mesmo tempo óbvio e
improvável por causa de sua condição mental, faz referência à proximidade das mulheres com
a natureza que, por serem capazes de controlá-la, usam seus instintos e uma lógica diversa
daquela apregoada pela tradição patriarcal. Assim sendo, somente Magnus é capaz de
compreender este poder advindo das mulheres pois, ao se utilizar dele, tem a confirmação de
sua funcionalidade, embora tenha que esconder seu conhecimento para não chamar a tenção
para um projeto que se quer realizar.
85
Em vista das considerações apresentadas, é importante apontar que Gardiner
(1991) afirma que o modelo de experiência das mulheres em que se verifica a dominação
masculina, assim como expõe laços maternais, também é uma crítica que pode esclarecer
como o gênero funciona em trabalhos de ambos os sexos, em livros sobre identidade, trabalho
e política, bem como sobre amor, casamento e família.
Contudo, ainda que desta leitura seja possível à psicanálise constituir uma
categoria de diferença plausível, ela não pode ser a única leitura, pois para que haja uma
investigação do gênero na escrita das mulheres, deve-se considerar que a literatura transcende
o isolamento de categorias rígidas. Inversamente, não se pode negar que as escritas diferem,
conforme afirmam algumas teóricas, porque as convenções literias refletem as ideologias
tanto quanto a realidade social.
O modelo psicanatico, apesar de oportunizar leituras que investiguem
determinadas situações que dêem uma visão das motivações e características constitutivas das
mulheres, o é suficiente para tratar das questões abordadas pelas mulheres. Neste ponto, é
importante enfatizar a menção de Showalter sobre a falha deste modelo para “explicar a
mudança histórica, a diferença étnica, ou a força formadora dos fatores genéticos e
econômicos” relacionadas a estas questões. Daí surge a necessidade de ir além da
psicanálise, para um modelo de escrita feminina mais flexível e abrangente que a coloque no
contexto máximo da cultura” (SHOWALTER, 1994, p. 44).
Em virtude dos modelos de diferença não poderem abarcar toda a variedade de
aspectos que podem influenciar a escrita e a leitura dos escritos femininos, a crítica feminista
percebeu haver a necessidade de procurar um modelo mais abrangente para tratar dos
interesses das mulheres. O modelo cultural tem um maior aproveitamento por ser “uma
maneira de falar sobre a especificidade e a diferença dos escritos femininos mais completa e
satisfatória que as teorias baseadas na biologia, na lingüística ou na psicanálise”.
Estudiosas feministas têm trabalhado para livrar-se dos sistemas, hierarquias e
valores masculinos para chegar a uma definição da cultural das mulheres na qual se observem
os papéis sociais que, conquanto sejam desempenhados por elas, foram definidos pelo grupo
dominante. A “esfera feminina” encontra-se subordinada às regras externas, contra as quais a
cultura das mulheres se opõe com a finalidade de propor questionamentos relevantes que
contribuam para uma redefinição desta esfera.
86
No momento em que as mulheres focalizam em suas vivências o que há de
comum entre os membros de seu grupo, chega-se à conclusão de que há uma consciência de
fraternidade e igualdade que unifica suas experiências em uma cultura geral, tornando sua
existência baseada na dualidade. O que se pode considerar uma descrição dual desta categoria
reside no fato de ser permitido por ela a percepção de como o sistema dominante vê as
mulheres e como elas vêem a si mesmas e aos outros.
Ao estudar as experiências femininas, o modelo androcêntrico revelou-se
insuficiente, uma vez que considera que as mulheres o puderam caber dentro dos limites
por ele estabelecidos. Por colocar o homem como referencial para a construção dos sentidos
do texto, estabelecendo normas rígidas de significação a serem obedecidas, a distinção e
oposição entre os mundos masculino e feminino se evidencia. A preeminência dos homens
trabalha em favor da manutenção de uma prática coletiva que tem acompanhado o
desenvolvimento das sociedades humanas. Praticamente toda a cultura ocidental se baseia no
“homem como centro”, cuja capacidade incomparável de racionalizar, dominar e instituir
mudanças dá-lhe a primazia do poder de instituir regras sociais e sexuais.
No momento em que as mulheres passam a questionar esta supremacia
masculina que as põe em um plano inferior, verifica-se, contudo, um movimento até então
inconcebível, pois os homens vêem as exigências como algo absurdo: a liberdade sobre suas
próprias vidas, o poder de decisão sobre seus corpos. Deste momento em diante, as mulheres
são vistas por aqueles que seguem o modelo tradicional como um desvio do padrão e, por
isso, muitas vezes são ignoradas ou isoladas em um patamar de inferioridade. Mas foram as
experiências das mulheres que as levaram à ruptura com o sistema patriarcal, que se
manifestaram como algo que somente elas poderiam entender e como ponto inicial de saberes
unicamente delas.
O movimento das mulheres, com a demanda de inserção no espaço público
(dos homens), ao atingir seu objetivo se viu ante a impossibilidade de equilibrar sua conquista
com as vivências no espaço privado (das mulheres), provocada pela pressão dos dois espaços
sobre as mulheres ao mesmo tempo. Este fato se deve à conseqüente dificuldade apresentada
pelas mulheres em conciliar a vida profissional com a vida familiar. O trabalho fora de casa,
que representava igualdade de direitos entre os sexos, revelou-se uma armadilha para as
mulheres ao terem que desempenhar papéis diferentes em espaços também diferentes ao
mesmo tempo em que se mantinham as mesmas.
87
Spark evidenciou este aspecto ambíguo das mulheres em sua personagem Lise,
que retrata a concomitância destas pressões que vieram junto com a inserção das mulheres no
espaço público. Primeiramente, deve-se observar que Lise encontra-se em desequilíbrio no
espaço público ao revelar que no escririo de contabilidade (espaço do lógico/ racional/
masculino) ela é o contraponto da homogeneidade: há cinco mulheres e dois homens
subordinados a ela, enquanto ela é subordinada de cinco homens e duas mulheres. Ímpar em
meio aos pares, ainda que destoantes pela predomincia dos homens em cargos mais
elevados, a mulher sente a necessidade de mudar, buscar novas possibilidades.
Inclui-se, neste sentido, a observação de que no espaço privado as vivências
das mulheres já não diferiam muito, pois a mulher se sente o próprio desequibrio de seu
mundo. Esta afirmação pode ser confirmada ante a relevância da menção de que Lise não
encontrava em sua casa a completude que poderia lhe dar o conforto ao final de um dia de
trabalho. Pelo contrário, em sua casa fragmentada pelos compartimentos que acomodavam os
móveis, a mulher se reconhece deslocada no lugar ao qual deveria pertencer. Surge, desta
forma, a necessidade de instituir mudanças, mesmo que isto signifique ir ao encontro do
desconhecido. Esta vivência ambígua das mulheres, que não as agrada, gera um desconforto
que motiva a busca por uma saída.
Dizer que a participação das mulheres na sociedade, baseada no desejo
expresso por elas de ter autonomia e liberdade, produz os resultados esperados, não condiz
com a realidade vivida por elas. Nas relações sócio/sexuais que constituem há sempre uma
tensão que apela para conceitos e, conseqüentemente, para termos suscetíveis de traduzir os
rumos tomados por estas relações. Recorrentes são os termos “silêncio” e “silenciado”,
atribuídos às mulheres, os quais relacionam linguagem e poder: o sistema dominante detém o
poder até mesmo sobre as formas de expressão e a visão que se tem de sociedade, pois ele as
estrutura e controla. A linguagem da mulher, assim, é a linguagem do dominado que, para ser
entendida, deve passar por “filtros” que a livrem do peso simbólico tradicional.
Uma forma de filtrar os significados presentes nos textos se refere a localizar o
lugar das mulheres no contexto social. As práticas gendradas nos textos revelam a distinção
entre os mundos dos homens e das mulheres por meio de esferas. Inicialmente, para a crítica
feminista estas esferas estavam separadas e opunham-se ao extremo. No entanto, os estudos
de gênero localizam a esfera feminina quase toda dentro da esfera masculina, pois é dominada
por esta.
88
Mas há uma parte da esfera das mulheres que se encontra fora do domínio
masculino – é a zona selvagem, uma área da cultura proibida para os homens, na qual as
experiências das mulheres referem-se somente a elas, assim como se define como um espaço
sem influência masculina, é o lugar do imaginário, do inconsciente. Na zona selvagem a
linguagem é revolucionária, a escrita é livre, ainda que sejam recorrentes as imagens da
jornada da mulher acompanhada por outra mulher, cujo sinal de passagem é a travessia pelo
espelho.
Deste modo, a viagem de férias para outro país, realizada por Lise, simboliza o
distanciamento de uma situação insustentável – que até lhe causara crises nervosas – e de uma
sociedade cujos preceitos não lhe agradam: “People here in the North are ignorant of colours.
Conservative, old-fashioned” (SPARK, 1994, p. 12). Mudar de espaço, ir rumo ao sul, parece
permitir que Lise trace suas próprias regras (na escolha das roupas, do “seu homem”, da sua
vida).
Identificado com o que é inferior, menos elevado e a região dos instintos, o sul
também constitui o lugar onde se encontra o novo. Por isso, neste lugar, tentativas de
convencer Lise à adesão a práticas filoficas que exijam o seguimento de normas – como o
regime macrobiótico de Bill – são imediatamente recusadas. Desnorteada, sem rumo, sem as
limitações que durante muito tempo a prenderam em um modelo de mulher que não condizia
à imagem que tinha de si mesma, ela se sente livre para buscar sua própria verdade e viver o
grande momento de sua vida (the time of my life).
O lugar da realização das mulheres se revela, contudo, o lugar onde se
problematizam as implicações de suas ações, como se observa em The driver’s seat.mbolo
da comunhão e unidade feminina, a jornada empreendida por estes agentes sociais comumente
denota, paradoxalmente, a disparidade do movimento das mulheres. O encontro de mulheres
como Lise e a Sra. Fiedke apresenta, inicialmente, uma identificação apta a colocá-las em
uma mesma direção mas, ao mesmo tempo, torna claro como as realidades e as necessidades
de ambas as mulheres se contrastam.
Enquanto a senhora idosa procura um presente para o sobrinho, Lise procura os
itens que vão ajudar “seu tipo de homem a reconhecê-la. Se aparentemente as duas têm o
objetivo de encontrar um (mesmo) homem, divisam-se neste as semelhanças e diferenças
entre seus objetivos, visto que a Sra. Fiedke deseja presenteá-lo, enquanto Lise quer encontrá-
lo para descobrir e concretizar seu destino. Richard, que peculiarmente é o homem que ambas
procuram, é o representante do grupo promotor da divisão da comunidade feminina, o qual
89
remete à convencional relação entre os sexos e, de maneira semelhante, ao comportamento
dos homens ante a ação das mulheres.
Também se torna necessário atentar para o fato de que a divisão dos mundos
estabelece uma relação especular entre eles. As mulheres – consideradas o reflexo da imagem
masculina no espelho e, por conseguinte, o oposto e até mesmo a distorção da imagem “real”
–, devem atravessar os limites que separam os mundos para abandonar a idéia de
correspondência tranqüila entre eles: imagem e reflexo são distintos. Com a intenção de
mudar e mostrar sua realidade, as mulheres oem-se à condição de reflexo mudo para
mostraro outro lado”, além da superfície, com práticas e discursos próprios. No reflexo das
velhas tradições, os mundos não são mais análogos. Conseqüentemente, uma nova situação se
impõe: a necessidade de romper com comportamentos e práticas que não mais condizem com
a realidade das mulheres.
Porém, a relação especular também funciona quando trata da integração de
mulheres, conforme se verifica na “amizade” entre as personagens Lise e a Sra. Fiedke no
romance sparkiano. Concomitante ao fato da senhora idosa defender as antigas tradições,
constata-se que Lise traduz a nova situação das mulheres ao denotar seu deslocamento e não
pertencimento ao mesmo espaço. Afastar-se da mulher idosa representa, do mesmo modo, a
recusa aos padrões patriarcais, bem como o contraste existente dentro do próprio grupo das
mulheres.
Assim, a travessia no espelho exige a coragem de romper com instâncias a que
estavam acostumadas – que podem ser prejudiciais e limitadoras – para ir em busca de sua
própria vivência. Os riscos que se corre são vários, especialmente a quebra do espelho e o
conseqüente corte entre as relações estáveis” com o mundo masculino. Apesar das
conotações negativas, o corte é um sinal de poder para as mulheres porque expressa uma
caminhada rumo à autonomia e ao auto-conhecimento tão necessários para possibilitar
conquistas futuras para as mulheres.
Esta situação pode corresponder ao contato entre Lise e a Sra. Fiedke: a
primeira é um possível reflexo de sua companheira, como algo incompreendido e misterioso.
Se, por um lado, Lise representa a instituição de mudanças significativas para a vida das
mulheres, como a oportunidade conquistada de poder agir e falar publicamente, a Sra. Fiedke
resume as limitações do projeto feminista, por não compreender plenamente as mudanças
demandadas pelas mulheres.
90
Vale lembrar que em um primeiro momento a relação homem/mulher se
caracteriza pela colaboração das mulheres ao projeto de subordinação impetrado pelos
homens. As as mulheres lutarem pelas mudanças sociais, tornando sua voz ativa e
autônoma, a ameaça que significaram aos homens causa uma reação de oposição extrema ao
projeto feminino ou um sentimento de impotência. Em The Driver’s seat, estas posições se
evidenciam no mecânico Carlo e em Richard.
Carlo reage à presença feminina de forma a reforçar o papel a ela atribuído
tradicionalmente: um complemento ao sexo masculino em que o ato sexual efetiva a
supremacia deste. Richard, por sua vez, apesar dos problemas de violência sexual contra as
mulheres, sente a ameaça que provém delas – reconhece que a situação “é diferente” e acaba
cedendo ao comando dado por elas. Conquanto sejam representantes da reação masculina, é
necessário apontar que, no entanto, Carlo aproxima-se mais da realidade masculina que
Richard, por procurar manter os papéis sociais tradicionais.
Neste contexto, seria ilusório pensar que as mulheres tiveram êxito a ponto de
mudar radicalmente grande parcela da sociedade onde atua: a hierarquia entre os sexos ainda
é uma realidade. Todavia, este aspecto da vivência das mulheres deve ser levado em
consideração nas leituras realizadas pelas feministas. Uma estudiosa que defende esta idéia é
Showalter, a qual afirma que não há escrita nem crítica feminista fora do espaço dominante
(masculino), cujas suas pressões econômicas e políticas se concretizam na vida e na arte das
mulheres.
Assim, a escrita das mulheres se articula através de duas vozes: “personifica
sempre as heraas social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante”. O
estudo dos escritos das mulheres leva à compreensão de seu grupo, enquanto “cada avaliação
de uma cultura literária e de uma tradição literária femininas tem uma significação paralela
para nosso lugar na história e na tradição crítica”. Inseridas também na tradição masculina, as
mulheres devem estar atentas às construções simbólicas em que o complexo cultural se
evidencia por meio das transformações (sociais e culturais) registradas historicamente.
Dentro de duas tradições simultâneas que colocam as mulheres numa posição
fronteiriça no mundo dos homens, a distinção entre as esferas sociais perde o caráter radical e
passa a considerar as influências mútuas. Contudo, por se ocupar do estudo de textos de
autoria feminina, a ginocrítica tem por objetivo definir o local cultural onde se origina a
escrita das mulheres, da mesma forma como busca evidenciar as forças culturas que sobre ela
agem e as variáveis de produção e recepção que se estabelecem nestes locais. Ao defender os
91
interesses das mulheres, a teoria cultural reconhece igualmente as diferenças de classe, raça,
nacionalidade e história deste grupo, de forma a averiguar a construção de uma experiência
coletiva dentro do todo cultural.
Em Symposium, por sua vez, a relão de Margaret com Tio Magnus (seu
duplo) estabelece um novo patamar uma nova situação das mulheres. Tem-se a impressão de
que a travessia do espelho foi realizada e, por ter sido mantido intacto o espelho, o acesso
entre os mundos (masculino e feminino) encontra-se sempre disponível para ambos: a
distinção entre os mundos perde a antiga estabilidade. Isto se nota, em primeira instância, pela
facilidade de comunicação entre Margaret e Magnus, bem como pelo trabalho colaborativo
em favor da realização de seus projetos pessoais.
A busca empreendida pela sobrinha é realizada concomitantemente ao projeto
do tio, pois ambos pretendem conquistar seu lugar na sociedade. Os objetivos são alcançados
mediante a cooperação: Magnus ajuda Margaret a encontrar um homem que possa ser
dominado por ela, enquanto a sobrinha ajuda o tio a escapar ao estereótipo de louco, ligando-o
ao mundo fora da cnica psiquiátrica. Utilizando-se de seus instintos para perpetrar a
violência e a mentira, eles revelam a contigüidade de mundos antes dissociados. Esta
cooperação entre os sexos, que causa estranhamento por conciliar os conceitos atribuídos às
mulheres (selvagens e intuitivas) e aos homens (“civilizados” e racionais), parece ser uma
ameaça ao sistema dominante e comporta, ainda, a possibilidade de levar as mulheres
novamente à armadilha da dominação. A coexistência pacífica e equilibrada dos sexos só é
possível, entretanto, quando ambos se beneficiam do desempenho conjunto.
Também constitui objetivo da ginocrítica oferecer outra perspectiva à
periodização literária tradicional que tem excluído os textos das mulheres, ao se propor a
recuperar estes textos cuja influência “familiar” enfatiza os precursores paterno e materno que
devem ser considerados linhas de herança válidas. Ao se realizar estas leituras, deve-se
abandonar, primeiramente, a idéia de que as mulheres imitam ou revisam os trabalhos dos
homens; ao contrário, é necessário que se a cultura das mulheres tem como vantagem mostrar
que a tradição feminina é fonte positiva de força e solidariedade, ainda que às vezes seja fonte
negativa de impotência.
Congrega-se aos comentários apresentados anteriormente, referentes à relação
que as mulheres estabelecem com homens e mulheres, a idéia de que as conquistas obtidas
por elas são dignas de menção por quebrarem os elos que as prendiam aos conceitos impostos
92
pelo grupo dominante. Donas de sua voz e providas do direito de decisão sobre suas vidas,
verifica-se nos textos femininos que as mulheres, contudo, não alcançaram a autonomia plena.
Deste modo, as relações entre texto e história passíveis de serem estabelecidas
em obras de escritoras como Muriel Spark remetem à iia de que as pressões sociais
exercidas sobre as mulheres concorrem para que elas falhem ao tentar mudar os padrões. No
entanto, a presença de personagens cujos planos estão fadados ao malogro, nestes escritos,
pode ser entendida como uma forma de denúncia das práticas sócio-sexuais que marcaram as
experiências das mulheres.
Ressalta-se que, na escrita sparkiana, a busca de autonomia marcada pela
colaboração entre figuras femininas, ou de um membro do sexo oposto, não impede a
frustração dos planos das mulheres. Por isso, a Sra. Fiedke, em vez de acompanhar Lise em
direção à nova realidade das mulheres, perde-se no caminho e se desliga dela, enquanto o
percurso solitário de Lise leva-a rumo à rescisão definitiva com o mundo: a morte. Margaret
que, por sua vez, localiza-se temporalmente em um outro momento das vivências das
mulheres, também enfrenta o fracasso ao desligar-se de Magnus e tentar agir sozinha. É
interessante observar que se chega à conclusão, ante a alusão a esta realidade das mulheres,
que o isolamento do indivíduo é um dos fatores determinantes para a não realização de
mudanças sociais significativas.
Também é necessário ter em mente a expressividade do contexto nas várias
camadas textuais, as quais, entretanto, não podem ser compreendidas de forma satisfatória por
um único modelo. Como recurso crítico, a análise contextual pode realizar uma descrição
“densa” da escrita feminina com o intuito de identificar a força do significado em um texto a
partir da focalização nonero e numa tradição literária feminina. O modelo cultural,
entretanto, oferece a leitura de um grupo interessado com objetivos específicos (o das
mulheres). Este ato seletivo, que se ocupa apenas dos fatores influentes na constituição
significativa do texto em razão do interesse declarado, ignora a existência de vários fatores de
influência concomitantes na literatura. Estreitam-se, assim, os significados da leitura.
Spaul (1989) afirma que a ginocrítica preenche a necessidade de uma teoria
baseada na experiência da mulher na sociedade patriarcal e na análise de sua percepção da
realidade. A autora exe, contudo, que esta teoria falha ao defender uma estética imutável,
pois a experiência se estrutura através da relação entre ngua e os discursos disponíveis em
qualquer período histórico. A ginocrítica também não aponta o papel da língua na construção
da experiência e dos significados, bem como não questiona do patriarcalismo (base do poder
93
organizada pelo “sexo biológico”). Uma vez que Showalter aceita a diferença biológica como
“natural” e considera a feminilidade como base dos textos das mulheres (estratégias de leitura
e significados), Spaul aponta que a ginocrítica é uma teoria extra-textual”.
Embora a abrangência do trabalho de Showalter se ampare nas diferenças
biológicas e efetue uma leitura mais preocupada com a vida das escritoras, o valor de sua
teoria que estuda o corpo, a ngua e a psique da mulher juntos, assim como reconhece
diversos discursos em funcionamento ao mesmo tempo, deve ser reconhecido. Vale
mencionar que a crítica literária da diferença buscou nos paradigmas masculinos e femininos
uma forma de leitura capaz de revelar o modo através do qual estes escritos diferenciaram-se
e, conseqüentemente, foram separados dentro de um sistema literário cujos conceitos de valor
aceitaram as produções do primeiro e excluíram de sua história as do segundo.
A ginocrítica, a qual não aprofunda os estudos de diferenças de classe, raça e
sexualidade, gerou alguns conflitos entre teóricas que buscavam na teoria feminista um modo
de abranger todas as diferenças e estudar a mulher não mais como o outro” do homem –
silenciado, oprimidomas como indivíduo que tem uma identidade e sua própria forma de
ver e se relacionar na sociedade.
Outros estudos referentes às relações de gênero abriram caminho para novas
possibilidades às minorias que desejavam usar sua voz autêntica e livremente com autoridade,
como forma de expressão de vincias múltiplas, após abandonar uma categoria de escrita e
leitura cujos conceitos estavam ligados à diferenciação sexual biológica. Em decorrência
dessa atitude, o enfoque no gênero como construção cultural tornou possível aos grupos
minoritários, distribuídos em conjuntos heterogêneos de “diferenças”, a oportunidade de se
expressarem e se constituírem como indivíduos interessados em falar de sua realidade e a
partir dela.
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CAPÍTULO 3
CONDUTORAS DO BANQUETE
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Conquanto a crítica feminista tenha proposto os estudos da mulher (ginocrítica)
como forma mais viável para encontrar os significados das influências que pesaram sobre sua
produção literária, a preocupação em estudar exclusivamente os textos das mulheres, ainda
que consciente da inflncia concomitante do mundo dos homens, revelou-se uma categoria
de leitura que restringia a compreensão mais ampla das interferências extra-textuais. Como
conseqüência, encontravam-se lacunas no lugar da identificação de determinados elementos
significativos do texto, os quais deveriam evidenciar a existência de realidades além daquela
que servia de base para as feministas que defendiam a leitura ginocrítica como modelo.
A consciência da existência de grupo étnicos, sociais e culturais diferentes não
foi suficiente para garantir uma leitura efetiva da realidade das mulheres por este modelo. Isto
porque para algumas feministas havia uma restrição das implicações significativas propostas
pelo modelo em questão ao contexto de onde as leituras se realizavam: a ginocrítica era a
expressão da leitura interessada de mulheres na maioria brancas, heterossexuais e de classe
média. Aos poucos, as teorias feministas passaram a ouvir os grupos minoririos como vozes
articuladas conjuntamente à procura de uma forma de fazerem valer seus direitos de
participação na sociedade e na cultura.
A preocupação que a crítica feminista teve em dar às minorias a visibilidade
que procuravam desde que os movimentos sociais e culturais do século XX se organizaram
para tentar mudar a sociedade através da demanda por liberdade (como as feministas e os
hippies) resultou na busca de propostas que pudessem colaborar para a realização deste
projeto. Por haver uma diversidade de vozes querendo ser ouvidas, as categorias de análise
literária foram se modificando, numa espécie de “ajuste” às mudanças que a
contemporaneidade exigiu. Destacam-se, nestes estudos, os fatores culturais que, por serem
mais abrangentes, exerciam um papel fundamental.
Os estudos de gênero ocuparam-se, então, de ver as diferenças não somente
entre os sexos, mas aquelas existentes dentro do grupo das mulheres que, por motivos
diversos, foram excluídas das análises realizadas até aquele momento. É importante apontar
que, se os textos produzidos pelas mulheres expunham as vivências peculiares a este grupo, as
quais eram consideradas o grande diferencial na construção de significados, também a crítica
feminista deveria evidenciar estas vivências como um todo, ou seja, revelá-las com a
finalidade de não fragmentar o mundo das mulheres.
96
Por isso, a ginocrítica, considerada por algumas feministas uma leitura
preocupada com a forma como as experiências vivenciadas pelas mulheres se evidenciam em
suas práticas de escrita e leitura. Ainda que esta linha crítica tenha oferecido leituras capazes
de falar do mundo das mulheres e de reconhecer sua representação nos textos, deixou de lado
outras mulheres”, também portadoras de experiências relevantes e importantes, mas que por
falarem de lugares sociais (classe baixa), étnicos (negras) nacionais (de terceiro mundo,
orientais) e sexuais (homossexual) diferentes, deixaram de ser ouvidas. Deve-se esta exclusão,
ao fato de que uma minoria heterossexual, branca e de classe média tenha sido responsável
pelo acesso das mulheres à academia, o que não promoveu uma abertura aos demais grupos
de mulheres concomitantemente. Como resultado, os grupos que se viram excluídos da
academia sentiram a necessidade de tamm exigirem seu espaço.
A proposta de categorias anaticas cada vez mais propícias a acomodar
diferenças exigiu mudanças nos conceitos existentes a fim de que seus sentidos pudessem
elucidar a forma como as diferenças estavam conjugadas, ao mesmo tempo, em um único
vocábulo. O termo “gênero”, usado para tratar das diferenças entre homens e mulheres
(designadas gramaticalmente por masculino e feminino) passou a fazer referência às
distinções dentro de um mesmo sexo e entre os sexos, cuja mudança de significado tornou-se
indicativa do
significado social, cultural e psicológico imposto sobre a identidade sexual
biológica. É diferente de sexo (entendida como identidade biológica: macho/fêmea)
e é diferente de sexualidade (entendida como a totalidade de orientação, preferência
ou comportamento sexual de uma pessoa) (FUNCK, 1999, p. 20).
Visto como uma categoria que permite uma abertura aos estudos de textos de
homens e mulheres e as respectivas construções culturais de sexualidade – masculinidade,
feminilidade, homossexualidade –, assim como aceita trabalhos críticos realizados por
homens, o gênero passa a configurar uma categoria democrática cuja preocupação primordial
são as construções identitárias a partir das confluências sociais e culturais. Assim, o gênero
procura identificar a maneira em que a atividade literária está marcada pelas diferentes
identidades sexuais.
97
Assim sendo, propõe-se que o gênero não abandona seu enfoque na diferença,
apenas a reorganiza com o intuito de oferecer possibilidades de uma leitura não mais
direcionada, mas preocupada com as diversidades expressas no texto, de forma a compreender
as relações que nele se observam e examinar de modo mais profundo as constrões de
significados.
Deve-se atentar para o fato de que o gênero teve que se submeter a algumas
mudanças conceituais para atender às necessidades significativas decorrentes da incursão das
mulheres pelo mundo dos homens. Deste modo, a distinção sexual passa a limitar-se ao
aspecto externo do indivíduo (o corpo), pois o caráter cultural e sociológico que o gênero
adquire permite atentar-se mormente para a construção das identidades sexuais.
Colocados em um mesmo patamar referencial, mulheres e homens passam por
uma reconfiguração conceitual em que as relações de poder tornam-se mais complexas por
tomar por base as experiências individuais de cada membro destes grupos. Pode-se dizer que,
com isso, a ctica feminista se viu ante novos desafios, pois os paradigmas de diferenciação a
que estava acostumada forma quebrados.
A comunicação direta entre os mundos das mulheres e dos homens promoveu,
de certa forma, uma indiferenciação sexual que poderia significar, para o patriarcado, a
derrocada do sistema sócio-cultural e significativo que havia instituído. Por outro lado, para as
mulheres seria a conquista de um lugar na sociedade e na cultura, bem como a oportunidade
de agir e falar nos espaços proibidos.
Deste modo, as feministas viram no equilíbrio entre os sexos, ao qual
denominaram “androginia”, como a fronteira definitiva – e possível – para as mulheres
ultrapassarem. Escapando às limitações que decorriam da separação entre os mundos, a
intersecção deles contribui para que a literatura possa expressar esta nova vincia, da mesma
maneira como a crítica pode remanejar as categorias significativas em funcionamento na
leitura. A harmonia de atitudes femininas e masculinas em que um único indivíduo,
comportando a concomitância de características peculiares de ambos os sexos, retoma a idéia
de complementaridade.
Entretanto, o projeto de androginia também apresenta limitações e
incongruências, uma vez que as mulheres, ao aceitarem as vivências masculinas, podem
permitir que suas próprias vincias sejam mitigadas e, como conseqüência, tornam-se
semelhantes aos homens. É provável que as experiências caractesticas da realidade das
mulheres sejam ignoradas ou anuladas.
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Reconsiderar e reconfigurar a relação homem/mulher pode ser uma saída para
as feministas, ao se atentar ao fato de que a diferença entre homens e mulheres, sempre terá a
base material do corpo. A aceitação das diferenças, porém, pode (e deve) se caracterizar pela
renúncia da subordinação dos mecanismos significativos que permita às mulheres falar de um
espaço seu, com uma voz própria.
3.1 – Mulheres diversas: o gênero como construção teórica
Quando se estuda uma língua, principalmente de origem ou influência latina,
o se escapa do conceito essencial que separa o masculino do feminino: o gênero. Enquanto
categoria gramatical, sua relevância está em designar a separação de dois grupos que se
opõem e se complementam. Opõem-se e (ironicamente) complementam-se por apresentarem
características físicas diferenciadas, cuja importância se revela mediante a atribuição de
funções sociais baseadas neste aspecto.
Em termos gerais, as diferenças originaram a hierarquia sexual que colocou os
homens como referência da existência humana, tornando-se responsável por realizar o
trabalho (fora de casa) no espaço doméstico, gerando e cuidando dos filhos. Por ter se
estabelecido como prática estável e aceita por ambos os grupos, a diferenciação por meio da
categoria “gênero” passou a representar o contrate entre o mundo dos homens e o mundo das
mulheres em praticamente todas as atividades humanas: das práticas sociais até as
representações artísticas.
Após muito tempo de dominação, as mulheres resolveram se opor às práticas,
aos estereótipos e às limitações que lhes eram impostas. Passaram a questionar a
hierarquização e, por conseguinte, buscaram nas diferenças o poder que lhes havia sido
destituído. Os estudos sobre as mulheres, realizados pelo grupo feminista, permitiram o
reconhecimento de práticas textuais e leitoras características deste grupo. Em decorrência
deste fato, o campo da crítica literária tornou-se amplo para acomodar a iia de que a
categoria gênero deva ser vista, principalmente, como “uma construção social que tenha a ver
com a distinção masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos
‘femininos’ de corpos ‘masculinos’” (NICHOLSON, 2000, p. 9).
Nicholson afirma que o fato mais relevante a respeito donero está em ter
suas raízes em dois princípios importantes: a base material da identidade e a construção social
99
do caráter. Esta conjunção de fatores pessoais e sociais permite falar das mulheres de forma a
englobar as demais diferenças entre elas, que “leva a pensar as dificuldades entre as mulheres
numa coexistência, mais do que numa interseção, com as diferenças de raça, classe, etc.”
(NICHOLSON, 2000, p. 13).
A identidade, que se origina do pertencimento a um grupo, determinado pelo
reconhecimento inicial de características externas do indivíduo, impõe determinadas pticas
sociais a cada grupo. Reconhecidos e identificados, os indivíduos passam a carregar em si os
conceitos e estereótipos advindos de seu grupo de pertencimento. Assim sendo, a identidade
pode obedecer às práticas de uma cultura nacional, em que os conceitos construídos a respeito
do grupo a ser estudado podem ser determinantes de associações quanto ao caráter.
No caso das mulheres, os estereótipos carregados de concepções
inferiorizantes, que as relegam à margem do mundo dos homens, atrelam-se a outros
significados e denotam que os sentidos de um texto podem estar fora do sistema de
entendimento dos homens. Associando-se gênero e nacionalidade à identidade, por exemplo,
é possível verificar de que maneira se constrói o caráter individual. Deste modo, a
personagem sparkiana, Margaret, torna-se relevante por expor estas construções, pois nota-se
que ao deixar a Escócia em busca de melhores oportunidades (de casamento) na Inglaterra, a
personagem se vê ante as limitações preconceituosas pelas quais deve passar.
Freeman (2002) afirma que no romance Margaret é construída pelos
convidados de acordo com o que compreendem porescocês”, em que se brinca com
expressões literárias e culturais de sua posição periférica”:
Scottish have traditionally been defined in opposition to the civilized and moderate
centre, but so too have they enjoyed the terns of opposition to the putative material
comfort and narrow consciousness of that centre, and Spark’s characters play out
this interdependence (FREEMAN, 2002, p. 135)
Constrda sob estes termos, a personagem é relegada a uma posição marginal
por reconhecer-se nela uma dupla ameaça à ordem a que estão acostumados: à ordem social e
à cultura. Venda de uma região (Escócia) que, por definição se opõe ao “centro civilizado
(Londres) e, por isso, é “selvagem”, Margaret desperta a apreensão de seus companheiros por
representar o desconhecido em função de sua condição de mulher, que por si já é uma ameaça
ao sistema dominante, a qual conjuga o referencial significativo da nacionalidade, em que a
100
condição de estrangeira reforça o estereotipo da invasora. Da mesma forma como uma mulher
rebelde pode ser perigosa soma-se, à alteridade que representa, a posição de estrangeira em
mundos que devem ser inacessíveis para ela:
Margaret certainly presents as a Scot of gothic splendor, attractive, striking, odd and
discomfiting … Scottishness becomes the source and explanation of her other-
worldliness and her apparent potential mendacity. Projected outwit the rational
realm the guests imagine they inhabit, Margaret constitutes an active threat to the
material trappings on which their social status is founded. She embodies for them
the return of that which their culture represses (FREEMAN, 2002, p. 134)
A ameaça que Margaret representa para os convidados do jantar se expressa no
retorno” às práticas pagãs e primitivas escocesas, ao contato e intimidade com a natureza,
que foram excluídos do mundo civilizado (masculino). Movimentando-se entre os dois
mundos, a mulher torna-se ambivalente ao assumir a condição da sociedade à qual deseja
pertencer (burguesia londrina) sem, no entanto, abandonar as características distintivas da
cultura de origem (da fronteira escocesa).
Esta ambivalência revela-se uma fonte de poder da mulher, pois denota uma
consciência dos recursos que é necessárior em funcionamento para atingir um objetivo.
Contudo, este posicionamento ambivalente não se realiza de forma tranqüila, pois adverte
quanto à predomincia de algumas características de categorias distintas e influentes sobre a
construção do caráter. Deste modo, é provável que Lise não realize a viagem do norte para o
sul sem problemas porque não consegue conjugar os comportamentos conferidos à mulher
nestes lugares que representariam, respectivamente, o espaço público e o privado.
Por ter dificuldade em conciliar os dois espaços, ao apresentar um
comportamento que não é entendido nem efetivo em ambos os lugares, Lise age de forma
incompreensível e, desta forma, falha ao tentar conquistar um lugar seu. Desprovida de um
espaço no qual possa não somente falar, como se relacionar com outras pessoas, a mulher
perde sua identidade, que resulta no não-pertencimento, no desligamento, de ambos os
espaços.
Deve-se relevar, no entanto, que a proposta de constituição da personalidade
está sujeita às construções significativas do gênero, o qual se atrela à manipulação social a
que estão sujeitos os indivíduos. É provável que a proposta feita por De Lauretis (1994), de
que se possa definir o gênero como produto de diferentes tecnologias sociais (cinema /
101
televisão) conjugadas a vários outros elementos construtores de sentido no texto, seja
funcional ao oferecer uma leitura que identifique os limites da influência destas tecnologias.
O trabalho de Spark, neste sentido, tem mostrado sua preocupação quanto á
crescente interferência dos meios de comunicação na formação da sociedade e dos
significados do texto. Em The Driver’s Seat, por exemplo, eles são responsáveis por divulgar
a morte de Lise em vários países e possibilita uma reflexão do público a respeito do caráter
peculiar do assassinato, envolvendo atitudes da vítima que não somente antecipava seu
destino, como agia de forma a garantir sua realização. Em Symposium, a fuão da mídia é
apresentar Margaret aos leitores e aos personagens que com ela vão dividir a mesa de jantar
comprovando, ao mesmo tempo, a inocência e a suspeição que sobre ela pairam.
Lloreti (1998) tem um posicionamento semelhante ao de De Lauretis
relativamente à inflncia dos meios de comunicação, por considerar que eles podem
manipular os conceitos de realidade e de memória coletiva e gerar “atributos” ou desvios sem
levar em conta a complexidade existencial e as relações sociais envolvidas. Assim sendo, a
veiculação midiática pode oferecer à sociedade as informações sobre as ações das mulheres e
elucidar os possíveis rumos a serem tomados, seja para apóiá-las ou se opor a elas.
O levantamento “imparcial” dos fatos que giram em torno do evento, para se
verificar sua veracidade e amplitude, seria o tratamento ideal a ser dado à investigação
veiculada para o público. A mídia, contudo, revela ser uma voz parcial ao tratar das diferenças
sexuais, uma vez que é controlada por um grupo social específicos (homens ricos), geralmente
responsabilizado pela definição e manutenção de papéis sociais, e que deve ser vista com
receio. Conseqüentemente, as vozes masculina e feminina disputam a primazia de
significação nos escritos de ambos os sexos, falando a partir de seus respectivos mundos.
Estas vozes, que na obra de Muriel Spark falam de sua realidade a partir de
uma sociedade onde as pessoas não se entendem, as convenções ideológicas, aliadas aos
conceitos da dia, tornam-se responsáveis por construções que segmentam cada vez mais os
grupos sócio-culturais. Enquanto reforça estereótipos, a dia realiza um projeto que de
encontro ao trabalho de grupos minoritários que buscam visibilidade. Isto se nota mediante a
observação da importância dada aos meios de comunicação nos romances estudados.
Em The Driver’s Seat, oabsurdo” para o qual se vai dar destaque com relação
à morte de Lise refere-se somente à confusão que se dá entre as pistas deixadas por ela:
enquanto comprometem os homens, ao mesmo tempo os livra da suspeição. As pistas,
coletadas pelos jornalistas da Europa, constituem a base “concreta” a partir da qual a
identidade da vítima é construída. Por contar com os relatos das testemunhas acrescidos a
102
estas evidencias, a descrição da personagem reforça a imagem da mulher louca, que se exibe
publicamente esperando (pedindo) a violência do homem contra ela – que na voz de Lise
exprime a visão masculina na frase “elas procuram por isso”. Estereotipada em sua condição
(de mulher instintiva e objeto de prazer masculino), ela se encontra presa à imagem da
deusa” que desperta o desejo dos homens e da “bruxa” que os leva a “perder o controle”.
A invasão midtica ocorre de forma mais evidente em Symposium: todos os
atos de violência são registrados pela mídia. Coletar as informações que expõem os detalhes
dos crimes é uma tarefa que agrada aos editores de notícias, uma vez que podem cortar as
entrevistas, alterando o sentido de uma frase ou reforçando uma idéia – é a maneira de
demonstrarem seu poder. O poder delegado à mídia evidencia-se, primeiramente, no epiódio
da morte da Sra. Murchie, avó de Margaret, que mudara seu testamento três dias antes de ser
assassinada.
Com a ajuda da neta, a velha doente altera o documento em favor de seu filho
mais velho, pai de Margaret. As netas chamam a atenção, então, para que se tenha o cuidado
de impedir que a mídia tome conhecimento da influência de Magnus na decisão: “If the press
gets hold of this, there’s going to be trouble”. Este epidio, ainda que denote que a função
primordial da dia, de divulgar a verdade, mostra como os fatos poder ser manipulados e as
evidencias mantidas em segredo em favor dos interesses de um grupo.
No convento “Maria da Boa Esperança”, entretanto, a mídia televisiva não
somente reafirma sua função de transmitir informações, como evidencia a influência que pode
exercer sobre o público. Seu poder seletivo, que se efetiva por meio da edição (cortes) de
textos e imagens, colabora para que a imagem das freiras seja mantida fora da realidade
construída. O que se nota, na realidade, é um grupo nada convencional de freiras: a ir
Lorne é casada e fuma, Irmã Marrow diz palavrões, Irmã Rooke é encanadora e a Madre
Superiora morre após confessar o assassinato de uma das freiras.
A presença de uma equipe técnica de televisão, nesta comunidade, deveria
facilitar a divulgação da resistência das freiras aos “dogmas antiquados” e ao “sistema
missionário repressivo e colonial das elites”. Todavia, a edição modificou as falas da Ir
Marrow, refoou o “sotaque do Norte” da Irmã Rooke (“de alto valor televisivo”) e expôs a
defesa dos ideais marxistas por elas (os telespectadores indignados por esta afirmação ter sido
feita por uma freira). A Madre Superiora, no entanto, que se preocupou em afirmar ser um
membroatuante e em pleno vigor”, teve sua imagem estereotipada: “Na realidade, nenhuma
das falas da Madre Superiora foi ao ar, e ela parecia sublime ali sentada, enfeitando o
programa com sua simpatia” (SPARK, 1994, p. 105).
103
Ante o exposto, deve-se entrever que mesmo que as freiras tenham
comportamento “individualistas”, contrários ao que seria típico a grupo, a redação da
emissora de televisão faz os recortes nas histórias para que os conceitos habituais
permaneçam imutáveis, nas entrelinhas desta manipulação de informações. O discurso em
favor das mudanças sociais (amparadas na defesa do marxismo) passa a ser sufocado e
silenciado em favor de um discurso que pode manter as construções significativas, assim
como os papéis sociais, da forma como sempre foram.
Ao apresentar um conjunto de discursos que podem ser identificados no texto,
as possibilidades discursivas verificadas nos escritos das mulheres podem estabelecer o
vínculo de diversos grupos sociais e culturais. Como resultado, há a possibilidade de se
observar os mecanismos e instrumentos por meio dos quais os sentidos se constroem e, por
conseguinte, enunciam os ideais de grupos minoritários e/ou os influencia.
Nota-se, na obra sparkiana, que os discursos podem enunciar os interesses de
grupos específicos, além dos que se encontram distinguidos pelo sexo remetendo, assim, a
divisões mais amplas em que se verificam divergências até mesmo dentro do grupo das
mulheres. Em The Driver’s Seat, reconhece-se no discurso implícito de Lise a busca pela
liberdade e a oposição ao sistema dominante. Reconhece-se, também, o discurso da tradição,
por meio do qual se exprimem inclusive algumas mulheres que defendem a manutenção da
hierarquia.
Este contraste entre discursos que se exprime, em primeira instância, pelas
atitudes tomadas por Lise – a recusa a uma condição que lhe oprime, impedindo a plena
realização pessoal – revela, em contrapartida, relações mais complexas que podem demarcar
um encadeamento de divisões. A distinção entre a protagonista e a Sra. Fiedke parece mais
precisa em razão desta última exprimir sua posição pela enunciação de argumentos que
remetem ao resultado obtido pelo movimento das mulheres, que levaria à indistinção ente os
sexos: “They don’t want to be all dressed alike any more. Which is only a move against us” e,
conseqüentemente, à invasão do mundo das mulheres pelos homens:the male sex is getting
out of hand ... they will be taking the homes and the children, and sitting about having chats
while we go and fight to defend them and work to keep them” (SPARK, 1994, p. 72).
Mais que um alerta às mulheres, este discurso parece se impor como a
exigência de que as mulheres não deixem de lado o que lhes é mais característico: cuidar da
casa, dos filhos, passivamente sentadas e batendo papo, sem grandes preocupações.
Assumindo esta posição e afirmando a hierarquia entre os sexos, a idosa antecipa as
limitações a serem enfrentadas pelas mulheres, embora se engane ao pensar que os homens
104
possam deixar sua posição de donio, trocando suas funções sociais por aquelas
desempenhadas por elas. De acordo com as experiências das mulheres, sabe-se que elas
tiveram que assumir funções em ambos os espaços (blico e privado) e, por isso, foi
necessário arcarem sozinhas com as conseqüências, principalmente com a dupla jornada de
trabalho.
A incursão das mulheres no espaço público também resultou numa divisão de
seu mundo em doislos: um grupo de mulheres que se mantinha nas funções domésticas e
outro, que executava atividades antes permitidas somente aos homens. Em decorrência desta
divisão, o mundo das mulheres, que se definia como uma comunidade, passa a conceber
diferenças que reestruturam as relações entre as mulheres e destas com os homens. Os
discursos passam, então, a serem múltiplos, como forma de expressão de vários grupos
convivendo em um mesmo espaço, mas com objetivos diferentes.
Em Symposium, evidencia-se uma profusão de discursos, cujas referências
discursivas mais evidentes realizam-se no âmbito social, em que Margaret representa os
desejos das classes mais baixas, enquanto sua sogra (Hilda) simboliza o poder das classes
mais altas. A filosofia divulgada pela jovem escocesa (Les Autres) é lembrada em vários
momentos do texto – “After all, we should sometimes think of les autres, don’t you agree?
e chama a atenção para o “outro”, à necessidade de lhe dar atenção e de pôr um fim em
qualquer tipo de hierarquia.
O comprometimento com os outros associa-se, ainda, à presença de Margaret
na instituição religiosa (convento), pois ao entrar em contato com as freiras (marxistas), ela
passa a ser parte de um grupo que defende a necessidade de mudanças sociais. O discurso
deste outro evidencia, entretanto, que a inserção no grupo social dominante não garante que a
aceitação seja tranqüila: deve-se esperar por limitações e preconceitos, como ocorre com a
protagonista.
Confirmam-se estas limitações e preconceitos ao se notar que a classe mais alta
olha para as camadas mais baixas com desconfiaa e medo. Hilda aproveita-se da influência
de seus amigos ricos para obter informações sobre a nora: as relações interpessoais reduzem-
se às relações socioeconômicas. É uma luta de classes que as divies sexuais representam
uma forma de reforçar as diferenças, pois em questão de manutenção do status social, aqueles
que se beneficiam da conservação da “ordem” se unem independentemente de qualquer outra
diferenciação.
Vale lembrar que, enquanto Greta, mãe de Margaret, e suas filhas assumem
uma atitude passiva com relação aos fatos (fofocam e fazem acusações), a sogra da jovem,
105
aliada a suas amigas e amigos burgueses, procura nela algo capaz de dar respaldo às suas
desconfianças (questionam e investigam). O desconforto causado por Margaret não pode ser
entendido por nenhum dos grupos por se localizar precisamente entre eles, pois busca
encontrar seu lugar numa sociedade onde os mundos dos homens e das mulheres não se
distinguem mais de forma tão evidente.
Nota-se, deste modo, que o discurso dominante em The Driver’s Seat
problematiza questões sociais, isto é, é apresentado por Lise, que defende a liberdade das
mulheres, contra as limitações e hierarquias sociais. Em Symposium, o problema está na
manutenção do paradigma masculino/burguês se efetua com a participação feminina no grupo
dominante que, evidentemente, controla as relações ecomicas das sociedades. Desta forma,
o movimento das mulheres representa uma dupla ameaça por propiciar a este grupo a
ascensão social enquanto possibilita o logro da concentração de renda nas mãos de quem
tradicionalmente a detem.
Ao se notar que a colaboração entre os sexos é possível quando assuntos e
interesses em comum são defendidos, torna-se inegável a manifestação de conceitos
gendrados, expressos em trabalhos de algumas feministas, como Nicholson, que acreditam
que as formas de distinção masculinas e femininas existentes me todas as sociedades podem
assumir o se exprimir mediante sentidos diferentes. Embora não abandonem o corpo como
noção de distinção (ele é variável, não constante), para este grupo de feministas, o feminino
da diferença não pode responder às diferenças entre as mulheres. Mesmo o termo “mulher” é
redefinido nos estudos atuais para atender às necessidades e interesses daqueles inclusos em
grupos étnicos, de orientação sexual e de classe diferentes daqueles a que pertenciam as
mulheres/tricas que criaram o gênero como categoria leitora.
Segundo Nicholson, os estudos da diferença tendiam a ser um “feminismo da
uniformidade”, pois denotavam a “predisposição” da carga significativa do trabalho refletir a
ideologia de um grupo de feministas brancas, heterossexuais e profissionais de classe média
alta. A indicação de uma direção possível a este impasse no estudo das “quebras e fissuras” do
feminismo da diferença propõe, para fins de discussão, a reflexão sobre por que em algumas
mulheres a “identidade masculina” é mais forte ou em alguns homens há o desejo de se
apropriar simbolicamente do poder reprodutivo das mulheres. É interessante notar que Spark
chamou a atenção para o fato de que seus personagens masculinos são, geralmente, mais
“fracos”, dependentes e inseguros, o que nota nas personagens presentes nas obras estudadas
neste trabalho.
106
Em The Driver’s Seat, Richard se assusta com a presença da mulher e foge
dela, enquanto Bill o consegue conquistar uma mulher por preocupar-se em demasia com a
dieta macrobiótica (e o orgasmo diário), assim como Carlo vê em todas as mulheres (como na
esposa e em Lise) a chance de exercer a hegemonia de seu sexo, reduzindo a relação humana
unicamente ao ato sexual.
A mulher que demanda uma atitude diferente dos homens, que não aceita as
imposições e exigências deles, que não o prazer sexual como um privilégio masculino,
torna-se ameaçadora. O poder que emana destas mulheres assusta aqueles que estão
acostumados a dar as ordens; como Richard, eles perdem o controle” e se vêem dominados
pelo medo, paralisados. Fugir desta mulher não é possível, pois ela o persegue até aproximar-
se dele: quando se encontram, ela comanda (“You come with me”) e, embora ele não a
conheça, ela sabe tudo sobre ele. As olhar o mundo dos homens “de fora” e estudar seus
conceitos, a mulher busca o fim da hierarquia.
Em Symposium, os homens mais evidentemente dominados são William e Dan
(marido e pai de Margaret, respectivamente). William é dominado primeiro pela mãe, que o
considera infantil (pegado aos ursinhos de pelúcia) também o reconhece como um ingênuo
por acreditar cegamente em sua esposa. A necessidade expressa por ele de apegar-se a uma
figura feminina dominadora se configura na busca de uma mulher que, como Margaret, o trata
como a uma criança, dando-lhe atenção, incentivando e mostrando interesse por seu trabalho e
suas manias. De um lado, ela o conquista com suas perguntas sobre a pesquisa em inteligência
artificial e, de outro, como ato de colocar suas bonecas junto aos ursos dele.
Dan, pai de Margaret, é totalmente dominado pela filha, por quem sentia uma
paixão que ele controlava em silêncio”, a ponto de deixar as outras três filhas à margem das
relações familiares e sociais ao dar preferência somente para uma delas. Dan Murchie, ao
contrário de William, parece reconhecer o donio exercido pela filha, pois ao mesmo tempo
em que a observa maravilhado, sente medo por reconhecer nela a emanação de uma força que
não consegue identificar nem explicar.
Quanto às mulheres sparkianas, elas dominam o cenário narrativo, demonstram
saber o que querem, assim como usam todos os meios disponíveis para atingir seus objetivos.
Lise procura a todo momento o controle sobre a situação, grita, exige e age como bem
entende para encontrar o “seu homem”. Margaret, por sua vez, encobre sua verdadeira
identidade sob uma máscara de bondade e altruísmo conseguindo, assim, conquistar as
pessoas à sua volta sem revelar seus verdadeiros objetivos.
107
Margaret, no entanto, deve enfrentar a oposição de Hilda que, mesmo sem
conhecer a nora, reconhece nela o poder das mulheres, de dominar e conquistar um espaço.
Num embate silencioso, as duas figuras procuram fazer prevalecer suas vontades e, por isso,
agem de forma a pôr um fim nas oposições: Hilda procura descobrir a verdadeira
personalidade de Margaret. Esta, por sua vez, planeja livrar-se da sogra e conta com a ajuda
do Tio Magnus.
As diferenças que as mulheres acima citadas apresentam entre si remetem a
uma reflexão proposta por Nicholson, de que termo “mulher” não pode ter um único
entendimento, pois as questões referentes a gênero compreendem uma “complexa rede de
características”, dentre as quais algumas são dominantes – o que não significa verdadeiras e
absolutas. Falar da “mulher” muitas vezes pode levar a que se imagine uma definição
uniforme” de uma identidade que, por ser social e culturalmente construída, depende de e
acomoda diversos fatores, internos ou externos. Desta forma, a identidade formulada tendo
por base escolhas pessoais que conjugam gostos, costumes, entre outros fatores desta ordem,
permite que se fale em diferença entre indivíduos de uma mesma classe social, de um mesmo
sexo, de uma mesma etnia.
O que se torna importante, neste caso, são as relações interpessoais
estabelecidas, cuja significação para construções sociais se expressa por meio de um caráter.
Por ser uma força da expressão humana, a literatura permite que as construções sociais e
culturais sejam trazidas para a margem do texto para que a leitura perceba a diversidade de
influências que atuam sobre a formação de um indivíduo.
Enquanto formulações originadas pelas relações entre grupos sociais diversos,
os sentidos que podem ser identificados em um texto exigem que a leitura passe a procurar
formas de entendimento e de significação que possam dar sentido para as vozes enunciarem
um discurso libertário em favor das mulheres.
Em The Driver’s Seat, a Sra. Fiedke chama a atenção para a invasão do espaço
feminino pelos homens, o que levaria ao fim das peculiaridades do mundo das mulheres e a
um apagamento definitivo de experiências que são únicas para elas. Ainda seria necessário
observar que as mulheres, ao buscarem inserção no mundo dos homens, contribuem para a
desvalorização de suas vivências. Desta forma, a probabilidade de as mulheres terem que
buscar outras formas de valorização se expressa mediante as palavras desta personagem: a
inserção no espaço público nem sempre significa, para as mulheres, um reconhecimento de
sua importância; às vezes significa mais uma forma de exploração.
108
Tio Magnus também denota que a mulher, ao procurar exercer seu poder no
espaço público sozinha, arrisca-se a fracassar. O apoio que ele oferece à sobrinha é importante
por esclarecer que, assim como entre os membros do grupo das mulheres há “identidades
distintas, também no grupo dos homens é possível haver discrepância entre objetivos e
interesses a serem defendidos pelos integrantes do grupo. Ao trabalharem juntos, ambos agem
contra a as relações hierarquizantes promovidas pela sociedade.
Desta forma, vivem alguns homens à margem também. Magnus é
marginalizado porque seu discurso e seus ideais não correspondem àqueles defendidos por
seu grupo; ele se identifica com o projeto das mulheres. Trama e mentira, as armas a seu
dispor, são muito melhores que a simples dominação ou a repressão de um grupo apenas.
Falando de um não-lugar, entre os dois mundos, como sua sobrinha, ele pode agir tanto contra
homens quanto contra mulheres que possam restringir seu direito à visibilidade.
Deve-se entrever, no entanto, que ao se contextualizar um texto, observando o
momento histórico em que foi produzido e lido, as relações podem ser estabelecidas de forma
mais clara ou podem encontrar limitações. Segundo Nicholson, no momento em que se
contextualiza uma produção literária, as categorias analíticas tornam-se varveis
historicamente específicas, “cujo sentido e importância são reconhecidos como
potencialmente diferentes em contextos históricos variáveis” e indicam “diferentes
necessidades psíquicas e metas políticas” (NICHOLSON, 2000, p. 36-7).
Uma leitura preocupada em situar o trabalho das mulheres, com a finalidade de
averiguar o quanto as conquistas por elas alcançadas influenciaram as produções posteriores,
tem condições de reconhecer nestes contextos as metas pelas quais as mulheres lutaram. Neste
sentido, Showalter (1999) localiza momentos distintos na história do movimento das
mulheres, ao fazer referência a um posicionamento crítico ante a realidade em que se
encontravam e ao donio masculino. Desta forma, a conscientização das mulheres quanto às
suas vivências instituiu as metas políticas que desejavam alcançar. Assim, marcaram
momentos que por ela foram designados de feminine (de imitação das produções masculinas),
feminist (de oposição extrema às práticas dos homens) e female (em busca de uma
identidade).
Tomando-se por base esta situação, é provável que os romances de Spark
possam elucidar uma distinção contextual no movimento das mulheres. A forma como a
mulher é apresentada em The Driver’s Seat, tentando escapar às imposições sociais que a
silenciam e instituem regras comportamentais, ao mesmo tempo em que procura realizar seu
destino ao encontrar seu assassino: um homem condenado por violentar mulheres. Este
109
homem, que se assusta ao ver a mulher, sente-se ameaçado, pois ela não é igual às outras: é
autoritária e exigente.
Ainda que a mulher tenha ciência de que sua ação pode não lhe trazer sucesso
imediato, as mudanças que procura fundar têm a função de abrir caminho para outras
mulheres, tornar possível para elas, num período posterior, atingir todas as metas que
originaram o movimento. Esta atitude das mulheres, que se apresenta em um romance
publicado em 1970, reflete o momento caracterizado por Showalter de “feminist” – prática de
escrita e leitura empregada pelas mulheres na luta contra o patriarcado e o sexismo.
No romance publicado em 1990, Symposium, observa-se uma posição das
mulheres que é diferente: elas procuram falar de sua realidade sem grande preocupação com o
mundo dos homens, interessam-se mais com a construção da identidade, que se realiza por
meio de uma busca por autonomia. Este posicionamento das mulheres prevê, ao mesmo
tempo, uma relação conturbada com as mulheres (como Hilda), assim como uma ação
conjunta com os homens (como Magnus). Desta forma, tem-se a consciência de que a mulher
deve ser o assunto principal da crítica feminista, a qual deve dar atenção às posições
defendidas pelas mulheres, bem como às significações que constroem ao falar de seu mundo.
Um momento que, por ser mais livre de comparações hierarquizantes, pode ser qualificado
por “female” – em que a mulher preocupa-se mais com suas experiências e vivências como
construtoras de significados na escrita e na leitura de textos de mulheres.
A crítica feminista parece reconhecer, desta forma, a existência de grupos que
representam as mulheres e se interessam em trabalhar em torno das necessidades delas, os
quais expressam, segundo Oliveira, a “experiência da indefinição de uma desordem que ... é
paradoxalmente organizadora”. Para a autora, a “maturidade” do movimento das mulheres
pressupõe “o entendimento da ambiidade que aflige as mulheres em sua travessia dos
territórios masculinos”, bem como a resistência “a formular uma receita de mulher”
(OLIVEIRA, 1999, p. 94-5).
Nesta fase “madura”, as diferenças sexuais entre homens e mulheres apagam-
se por causa das experiências de ambos os sexos. As mulheres, principalmente, “estariam se
adaptando, sem maiores problemas, a uma multiplicidade de papéis e registros, o que levaria
ao advento do andrógino, símbolo da unidade perdida” (OLIVEIRA, 1999, p. 95). Entretanto,
o projeto das mulheres expressa o retorno a um ponto ao qual não lhes é posvel voltar. O
andrógino, condição anterior ao corte entre os mundos masculino e feminino, simboliza a
indiferenciação entre os sexos, uma harmonia entre metades indissociáveis e complementares.
110
Ao se pensar no percurso realizado pelas mulheres, em que se construiu um
sistema de significações peculiares, bem como se realizaram práticas que definiram uma
identidade, para a qual as experiências psíquicas e as conquistas políticas foram definitivas,
questiona-se a funcionalidade da categoria “andrógino” para descrever o mundo em que as
mulheres se situam atualmente.
Também é importante que a crítica feminista re-avalie as construções
significativas das quais faz uso para que a teoria crítica possa (re)pensar a escrita das
mulheres como uma expressão de desejos e necessidades que não se extinguiram, ainda, pois
tem-se a impressão que nem todos os objetivos foram alcançados. Esta afirmação é possível
dentro de um contexto em que a realidade das mulheres expressa a manutenção de práticas
ainda hierarquizantes. Para elas, os desafios não se extinguiram, apenas foram reconfigurados
e constituem o redirecionamento político/conceitual a que devem responder.
3.2 – Além das fronteiras: fim da discriminação, início da liberdade
Conquanto o movimento das mulheres tenha sido marcado pela busca de um
lugar social e da construção de significados que melhor atendessem aos propósitos e realidade
em que elas viviam, a relação que estabeleceram com os homens foi, em geral, marcada pelo
desconforto, pela oposição perturbadora e conturbada. A inserção das mulheres no espaço
público, antes considerado lugar de ação exclusiva dos homens, aos poucos estabeleceu uma
sucessão de atitudes a serem tomadas por ambos os sexos, uma vez que se percebia que seria
impossível de novamente excluir as mulheres do espaço por elas conquistado.
Inicialmente, os homens se opuseram à ação das mulheres e tentaram limitar
ainda mais o espaço social para elas. No entanto, gradativamente aprenderam a conviver com
elas e até mesmo, em alguns casos, trabalharam juntos para defender interesses em comum.
Como resultado desta inserção das mulheres no mundo dos homens, passou-se a considerar
que havia um equilíbrio entre os sexos, pois a diferenciação externa (do corpo) não mais era
fator de separação entre os dois mundos. Cogitou-se, então, que as relações sócio-sexuais
caracterizavam-se por uma recuperação da característica “andgina” da humanidade.
111
Considerado a concomincia de características masculinas e femininas em um
mesmo indiduo, o andrógino torna-se representativo da indiferencião entre os sexos. No
contexto das práticas de escrita, define-se como uma categoria que considera que homens e
mulheres, ao atuarem em um mesmo espaço social, dividem determinadas experiências que
podem determinar oportunidades e dificuldades semelhantes de inclusão ou exclusão social.
Em decorrência desta realidade compartilhada pelos sexos, os textos
produzidos pelas mulheres puderam falar de homens e mulheres cuja individualização passava
por processos semelhantes. Desta forma, seria possível afirmar que, de maneira geral, os
textos continham conceitos e significados muitos próximos ao tratar de personagens femininas
e masculinas. Por conseguinte, nas realidades onde se inserem Lise e Margaret, os homens
poderiam sofrer o mesmo tipo de limitações e realizariam as mesmas ações que elas realizam,
além de apresentarem características de ambos os sexos de forma concomitante.
Enquanto expressão da percepção que um indivíduo tem da sociedade onde
atua, nota-se que uma leitura preocupada em observar a relação homem/mulher de forma a
depreender os significados que se constroem no texto. Em Spark, nota-se a possibilidade de
impressão do andrógino na configuração masculino/feminino por meio da verificação de que
as mulheres têm personalidade marcante e apresentam características geralmente atribuídas
aos homens.
O espírito crítico que demonstram ter e a autoridade com que agem e falam,
associam-se à impulsividade, características consideradas masculinas e femininas,
respectivamente. As mulheres sparkianas criticam pessoas e situações que acreditam não estar
de acordo com sua idéia de correto”, não têm vergonha de se expor (gritam, xingam e riem
em voz alta, em público),o mal-educadas e mentem sempre que necessário, roubam e
manipulam. Este caráter destemido e desafiador, o qual durante muito tempo definiu a figura
masculina, passa a delinear também a figura feminina.
De forma semelhante, os homens apresentam-se como figuras instáveis e
voteis que raramente sabem o que querem, como Dan, em Symposium, e Bill, em The
driver’s Seat. Também é comum eles terem algum problema de ordem psicológica, como
Richard e Magnus (violentos e loucos), ou como William, infantilizado pela depenncia de
uma figura feminina marcante e controladora (a mãe e a esposa). Instabilidade, loucura e
dependência, durante muito tempo caracterizadas como femininas, aplicam-se também aos
homens. Eles, no entanto, ainda são responsáveis pelo planejamento racional (como Magnus)
e dominam a área das ciências exatas (como William) e muitas vezes têm tratamento
112
preferencial quando se trata de dinheiro (Dan se beneficia completamente da herança da mãe,
sem dividir com as irmãs).
O equilíbrio entre as forças masculinas e femininas, apesar de ser o ideal
almejado durante muito tempo pelas mulheres, revelou-se, no entanto, um projeto árduo de
ser realizado por ambos os sexos. Segundo Showalter, que estuda o aspecto andrógino da obra
de Woolf, a escritora pode ser considerada um símbolo de androginia por apresentar
personagens e situações que parecem equilibradas que encerram elementos masculinos e
femininos. Entretanto, a escrita woolfiana também delineia o andrógino como uma fuga da
feminilidade, assim como a repressão da raiva e da ambição das mulheres.
A androginia poderia, desta forma, ser associada à iia de que as fronteiras
entre masculino e feminino deveriam ser apagadas, fazendo com que as mulheres deixassem
de lado o comportamento “instintivo” e passassem a agir de forma mais controlada, como os
homens. É possível ilustrar esta proposta por meio das personagens Lise e Margaret, se
atentarmos para o fato de que Lise age por impulso e canaliza a raiva que sente de ter que se
conformar com a marginalização no ato de ofender a todos com quem mantém contato. Desta
forma, situada em um contexto histórico que apresenta as mulheres em oposição mais
evidente ao mundo dos homens (feminist), Lise exemplificaria o comportamento feminino a
ser evitado.
Margaret, por sua vez, procura atingir seus objetivos por meio do
planejamento, da ação discreta e da manipulação de informações. Assim, ao invés de
demonstrar uma fragilidade psíquica, como se nota em Lise, esta mulher tem a firme
convicção de pertencer a um lugar que não a margem e a consciência de seu poder para
perpetrar o mal”. É provável que Margaret, inserida em um momento histórico (female)
diverso ao de Lise, represente as mulheres em busca de uma identidade, sem preocupar-se
com comparações com os homens, mas com a liberdade.
Mas a estética andrógina apresenta limitações, principalmente por polarizar a
identidade sexual, o que significa que as características peculiares de um sexo são transferidas
para o sexo oposto. Desta forma, os aspectos “perturbadores, obscuros e poderosos” da
feminilidade se expressam através de personagens masculinos, enquanto as mulheres
observam o mundo masculino do lado de fora, tomando-o como o ideal, e tentam anular o
mundo das mulheres.
Atribuir particularidades das mulheres aos homens, como a intuição, que pode
ser uma fonte obscura de poder, torna-se aceitável ao se constatar que o contato entre
masculino e feminino permitiu uma percepção maior das diferenças e o reconhecimento das
113
potencialidades de cada sexo. Homens intuitivos, como Richard e Magnus, apropriam-se do
saber feminino que permite a antecipação de fatos desprovidos de qualquer indicação prévia
de sua realização: o primeirosente” que há algo errado em Lise, uma ameaça não declarada,
enquanto Magnus prevê o suicídio de um dos “candidatos a marido” de sua sobrinha, da
mesma forma como antecipa a falha dela ao tentar agir sozinha contra a sogra.
Na tentativa de conquistar seu espaço, por outro lado, as mulheres em o
mundo dos homens como o ideal a ser buscado, o que exige, no entanto, a saída delas do local
onde se encontram. Recusando uma vivência que as coloca em um nível abaixo do desejado,
elas procuram se adaptar à realidade que sobre elas se ime. A raiva e a vioncia típicas dos
homens passam a compor o vocabulário das mulheres, assim como, explica as ações por elas
realizadas. Deve-se mencionar, contudo, que Lise direciona sentimentos e desejos como estes
contra si mesma, numa incursão que demanda sua auto-destruição. Margaret, no entanto,
propõe que raiva e violência possam ser aplicados sobre outras pessoas defendendo, assim, o
princípio de auto-preservação. Explica-se, sob este aspecto, que homens e mulheres são alvos
seus conquanto representem ameaça à realização de seu projeto.
Algumas feministas apontam, no entanto, que uma feminilidade em crise não
pode se configurar como o objetivo das mulheres, uma vez que toma por referência um grupo
que não partilha da sua realidade e, por conseguinte, ignora experiências e vivências
peculiares às mulheres. Por isso, uma identidade sexual que se constrói de forma problemática
deve ser vista como uma deficiência de um projeto que se propõe, ao contrário, a valorização
e o reconhecimento daqueles indivíduos que haviam sido esquecidos.
Conseqüentemente, a androginia, em vez de propiciar a liberdade das mulheres
dentro do espaço masculino, colaborou para que a condição de alienação e a raiva das
mulheres fossem substituídas por um estado de serenidade e passividade que evitou a
manifestação do sexo na escrita. Além disso, o direito de igualdade com os homens, exigido
pelas mulheres, revelou-se desfavorável a elas, por reforçar a hegemonia masculina que as
coloca, novamente, no isolamento do “quarto”.
O quarto, entretanto, permite a comunicação entre os mundos: há uma
passagem livre que pode ser aberta ou fechada de acordo com a vontade das mulheres. Assim
sendo, a volta ao quarto, antes lugar de aprisionamento e contenção feminina, permite um
isolamento voluntário num lugar onde as mulheres podem escapar às exigências das pessoas
que desejam regulamentar sua vida, como a família, o público e a classe social à qual
pertencem, como propõe Showalter.
114
O andrógino, desta forma, não comporta as mudanças (e permanências) que
ainda marcam a realidade das mulheres, pois elas vivenciam as experiências de um corpo
feminino diferentes das vivências de um corpo masculino, um psiquismo marcado pelo
feminino e um lugar social indefinido, entre o público (masculino, do trabalho) e o privado
(feminino, do afeto). Esta consciência de um corpo que encerra as vincias específicas de um
grupo poder ser considerada o “impulso” que leva Lise a ir em busca de mudanças. Esmagada
entre o público (seu trabalho) e o privado (sua casa), nota-se que nenhum deles é um espaço
realmente seu.
Da mesma forma, Margaret tenta se desvincular de seu mundo – onde o medo
que causa não lhe permite permanecer – enquanto luta por pertencer a um grupo socialmente
dominante – onde representa uma ameaça à manutenção do podero que não lhe garante
sucesso. É necessário, para ambas as mulheres, essa busca da identidade, do seu lugar, ainda
que as leve a uma indefinição ou ao isolamento.
Decorre, deste ponto de vista, a proposição de que a busca por uma literatura
sem distinções sexuais revela a impossibilidade de ignorar a experiência feminina, bem como
de expressá-la na escrita que as mulheres produzem. Assim, o andrógino perde sua força por
não conseguir isolar-se de uma experiência pessoal que se quer expressar na produção literária
e crítica. Showalter reafirma esta posição ao denotar que o andrógino perde sua validade na
escrita das mulheres devido a ser visto como uma literatura que não define uma posição
(sexual e potica) e assemelha-se mais a uma fuga da confrontação entre feminilidade e
masculinidade. Assim, uma literatura “indefinida” é outra forma de repressão.
Do impasse entre conceitos e termos que possam definir o lugar da mulher e da
sua crítica, as mulheres “não mais recorrem a analogias para se fazerem ouvir e compreender,
e começam a articular, pela primeira vez, um discurso autônomo” que autorizou, então, a
possibilidade das mulheres ousarem “falar em valores femininos, em cultura feminina, própria
e diferente” (OLIVEIRA, 1999, p. 103). Novamente, o termo diferença toma lugar nas teorias
feministas, porém o momento histórico é precedido de um longo percurso pelo mundo dos
homens.
Oliveira faz referência a uma identidade “que provém da interação com outros”
em cuja bagagem estão os problemas advindos do acesso incondicional a experiências que a
sociedade considerava superiores às das mulheres. Por tentarem conciliar em si mesmas as
experiências masculinas e femininas, as mulheres voltaram ao ponto de partida depois da
dúvida, da angústia e da divisão:
115
Porque fizemos a travessia do mundo dos homens, porque conhecemos suas normas
e seus valores, estamos melhor situadas para revalorizar nosso mundo, nossos
valores, não para nos refugiarmos neles, mas para repensar sua contribuição para um
novo desenho da convivência entre os sexos e, por exteno, para um novo perfil
civilizatório (OLIVEIRA, 1999, p. 95, grifo da autora)
Em busca da igualdade, sugere a autora, as mulheres correram o risco de se
parecerem com os homens, assim como a diversidade de experiências e vivências se
apagariam. A sociedade, conseqüentemente, se unifomizaria de modo a se extinguir os traços
da cultura feminina. Contudo, esta visão de futuro estabelece o projeto da diferença enquanto
reivindicação da diferença” que deve redefinir a igualdade e revalorizar a vida privada
(mundo das mulheres).
Este (novo) projeto da diferença se propõe a corrigir as distorções da igualdade
e valorizar o feminismo como possibilitador das mudanças, apesar dos impasses e
questionamentos. É um projeto que quer mostrar que o universo feminino existe (“é fruto de
um corpo que se faz experiência histórica e social, de um psiquismo que se fez cultura”) e
reivindica a presença e impacto femininos em todas as esferas e dimensões da vida social.
Tomar os discursos presentes nas obras de Spark como o discurso “das
mulheres” é considerar que este grupo divide-se em vários “subgrupos”, o que denota que elas
conseguiram autonomia para proferir um discurso seu, livre de limitações. O que se observa,
no entanto,o as linhas críticas rígidas que não parecem estar prontas para esta literatura –
como a cômoda preferência por uma leitura teológica da obra de Spark, conforme McQuillan
expõe. A crítica feminista, porém, em sua busca de respostas para os trabalhos das mulheres,
nos quais as relações entre personagens permitem a emergência de uma identidade pronta a
questionar os valores da sociedade e agir conforme seus próprios princípios, difere daqueles
que regiam os sistemas significativos e de valores.
Ao subverter os valores que regem a vidablica, o projeto da diferença torna-
se inédito, pois as mulheres não mais associam poder a rencia de valores, nem a mimetismo
com os homens, bem como assumem a responsabilidade de definirem seu papel. Oliveira
afirma que o projeto constitui
Uma experiência queo é feita de superposição de experiências femininas e
masculinas, mas de uma gama infinita, na sua variedade, de mistura desses
elementos, segundo o tempo de cada uma. Em outros termos, a liberdade.
(OLIVEIRA, 1999, p. 130)
116
Livres para agirem, as mulheres sparkianas passam pelas pressões e limitações
características das vincias de seu grupo. No entanto, algumas delas se erguem para
contrariar o sistema patriarcal.
Uma leitura tradicional delas poderia ser limitada a estereótipos e a conceitos
amparados pela visão da mulher/ilógica. Lise, por exemplo, seria considerada uma vítima; o
que revela a ênfase no momento único de sua morte, excluindo-se as ações que ela realiza
anteriormente a este momento. Mais ilógica poderia ser considerada a reação de Margaret,
ente a notícia da morte da sogra, que poderia colaborar por defini-la como irracional, ao
confessar seu plano de matá-la em breve.
Deve-se, porém, considerar que se trata de um texto cuja preocupação
primordial está em mostrar como as personagens agem, deixando ao leitor a função de, ao
recolher as pistas deixadas pelo texto, tentar reconhecer as motivações delas. Este
esclarecimento, impcito no texto, encontra-se fora dele, numa realidade que as mulheres
conhecem e experimentam cotidianamente e que Sproxton vê na figura da vítima:
In no case is the portrayal of the ‘victim’ established for the purpose of the
consideration of a particular psychology. The victim is often a necessary character,
whose problems highlight the web of persecution established by another agent
(SPROXTON, 1992, p. 114)
Esta “rede” de referências que o texto sparkiano pressupõe remete à
necessidade de serem apresentados os “recursos pessoais” das personagens ao lidar com os
problemas e desafios. Estas necessidades podem ser vistas como as pressões de um sistema
que, por não compreender as mulheres, deseja restringir as oportunidades delas ao espaço
privado (inferior) para retirá-las de seu espaço (superior).
Mas as mulheres não aceitam esta exclusão do espaço público, uma vez que já
pertencem a ele. Contudo, elas têm consciência de que ante sua ação se tornam plausíveis
mudanças que criem novos caminhos, atuações e identidades para as mulheres. Falando sobre
e a partir de seu mundo, as mulheres têm a oportunidade de conviver com indivíduos que as
possam compreender e acompanha-las na incursão pelo mundo dos homens, onde enunciam
seu discurso de forma livre e autônoma.
Ao trazerem seu discurso para o espaço público, as mulheres não querem a
autorização dos homens, querem que as práticas e experiências vivenciadas em seu espaço
117
sejam igualmente valorizadas. Exigem seu direito de ser diferentes, pois a diversidade de
experiências pode ser inserida em um a sociedade constituída por grupos tão variados entre si
que mesmo internamente apresentam valores cambiantes. Assim sendo, o mundo das
mulheres se expressa em Lise por sua fala insistente, repetitiva, sua compulsão por encontrar
o homem certo que a leva a seu destino nada romântico. Ela é a mulher cujo comportamento
histérico e excêntrico – fala da mulher cuja liberdade é urgente. Esta insistência da
personagem sparkiana reflete o quanto se espera pela realização do projeto feminista, pois
sem um rompimento com a ordem opressora em vigência na sociedade de domínio patriarcal,
as mulheres não poderão ser livres.
Oliveira afirma que esta liberdade será alcaada quando as mulheres
escreverem sem medo de interlocutores ou críticos para corrigirem seus textos e muda-los.
Elas devem, ainda, não se sentirem na obrigação de “escrever como mulher”, uma escrita
estigmatizada pelo patriarcado como impregnada de significados e estereótipos que as
colocavam em uma posição inferior quando comparada à literatura “elevada” dos homens.
Ante ao exposto, observa-se que não somente os críticos/homens, como as próprias mulheres
exercem pressão sobre os escritos por elas produzidos; o que revela, de acordo com Showalter
(1994), a perspectiva de que os textos das mulheres são bitextuais (sofrem influências
“patrilíneas” e “matrilíneas”).
Para entender os significados e as construções gendradas nos textos das
mulheres, a crítica feminista precisa definir como o gênero se realiza em determinado
contexto, seja ele histórico, nacional, racial ou sexual. No entanto, é imprescindível notar que
as mulheres podem falar de um lugar específico (negras, lésbicas, africanas, trabalhadoras),
mas não podem afirmar categoricamente que não são afetadas pelo gênero em sua condição
de mulher. Esta condição não lhes dá a liberdade para renunciar ou transcender o gênero
totalmente.
Esta renúncia às significações gendrada pode significar um retorno ao quarto,
local símbolo do isolamento, da inércia e do desconhecido da mulher, que pode ser também
seu túmulo. É plausível que ele possa ser assim configurado quando se considerar que a
escrita das experiências femininas significa um ato de negação do desenvolvimento pessoal e
artístico, ao mesmo tempo em que aceitar a cultura dominante compromete a autenticidade
dos textos.
Por outro lado, o quarto pode ser um lugar de vida: “if a room of one’s own is a
place to gather strength and conviction to act in the world, it is a place of birth
(SHOWALTER, 1999, p. 331). Esta conclusão de Showalter denota que a história da escrita e
118
da crítica das mulheres teve que passar pela blody chamber
3
, edificada pela tradição patriarcal
e que constitui um lugar de dor e morte. Mas esta travessia é necessária para a história das
mulheres, que “nunca terá fim”, pois as experiências delas continuarão a ser reimaginadas,
reescritas e revistas em cada contexto”.
Após as conquistas das mulheres, as significações que foram construídas por
elas tornaram-se paradigmas textuais nos quais antigas simbologias e estereótipos foram
desconstruídos e reconfigurados de forma a re-considerar os escritos femininos e re-valorizá-
los. A figura da Medusa que, por sua maldade, paralisava os homens, como resultado destas
contribuições das mulheres deixou de ser o monstro criado pela imaginação masculina para
representá-las. Passou a ser, então, dotada de beleza e alegria, como símbolo das mulheres
que são livres para se movimentarem onde e como desejam.
Com a conquista de um espaço onde pudessem se expressar, a próxima questão
que se coloca para o grupo das mulheres diz respeito ao futuro crítico dos estudos históricos.
Para as feministas, segundo Humm, o futuro da crítica literária envolve uma dinâmica
gendrada de raça e academicismo a fim de atender a todas as mulheres como sujeitos de
literatura, a subjetividade de uma pessoa crítica, como parte do ato crítico, tornou-se
importante por exigir uma crítica literária feminista que fosse, também, literária; ao declarar-
se “local político” (de raça, idade, sexualidade e classe), dirige-se a uma audiência maior e,
por gerar novos paradigmas e pontos de vista, sugere idéias para novas “agências sociais”.
Isto se deve ao fato de que os textos da crítica feminista tornam-se lugar onde
são questionadas as representações por meio do gênero e da subjetividade, além de oferecer
aos leitores respostas aos textos literários por negociar as diferenças entre sistemas
significativos e políticos. Humm afirma que a crítica feminista é moldada por um
entendimento “muito mais rico” da diferença – nem totalitário, nem universal. Aliadas às
políticas feministas, diversidade e desconstrução produzem um conhecimento mais amplo
sobre as mulheres, definido pela autora como uma “potica de identificação” e não apenas
identidade.
A crítica feminista resiste a separar teoria e prática, assim como procura
favorecer o pluralismo de práticas de leitura e escrita, bem comore-vê” o significado de
leitura e como ela se relaciona ao entendimento crítico. Define-se, então, uma critica “muito
mais plural e aberta, potencialmente mais criativa, que qualquer outra que tenhamos
conhecido” depois de ter confrontado os mais diversos interesses feministas: teoria, racismo,
3
O termo faz referência ao livro homônimo de coletânea de contos de Angela Carter, publicado em 1979.
119
homofobia, o lugar na academia e, principalmente, a construção estereotipada da
subjetividade:
Feminist literary critics have confronted many issues in the last decades: how to
celebrate the Mrs. Browns as well as difficult theory; how to address racism and
homophobia; how to gain a place in academy without loosing a place in women’s
world … how is women’s literary subjectivity stereotypically as well as positively
and how can be deconstructed and reconstituted? (HUMM, 1999, p. 296)
As feministas estão cientes de que os estudos históricos, ainda que definidos
por uma maior abertura às várias possibilidades identitárias a analíticas, encontram-se em
movimento. Isto significa neste período de deslocamento, o destino da crítica por elas
realizada deve acompanhar este movimento como prática de adequação teórica. As vozes
interessadas se expressam por meio de uma teoria crítica preocupada em encontrar na
literatura as representações do mundo das mulheres e verificar as relações que se estabelecem
entre este mundo e o mundo dos homens. Enquanto ferramenta de interpretação, a crítica
feminista possibilita que escritos de mulheres, dentre os quais os de Muriel Spark, que
constituem objeto deste estudo, revelem estas relações e ofereçam, através da leitura, um
encontro com as possibilidades discursivas disponíveis ao grupo interessado das mulheres.
Ao rejeitar o paradigma masculino, as mulheres evitam comparações entre
mundos distintos, assim como a hierarquização que as colocam em um patamar de
inferioridade. Ignorando estereótipos e assumindo a diferença como algo característico e fonte
de poder e realização pessoal, é possível que gerem, tanto em mulheres como em homens, a
conscientização das riquezas de cada vivência, de um mundo constitdo com uma cultura e
práticas que não podem ser de mais ninguém, somente das mulheres.
120
________________________________________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS
________________________________________________
121
Ao examinar o percurso realizado pelas mulheres dentro de um espaço que lhes
era negado, é evidente que elas perceberam, depois de muito tempo de dominação pelo grupo
masculino, que as práticas sociais não lhes eram favoráveis, uma vez que as colocavam em
uma posição inferior aos homens. Marginalizadas, eram ignoradas e isoladas por seus
“superiores” em um espaço onde viam serem limitadas sua liberdade de tomar decisões em
questões de seu interesse, assim como seu direito de se expressar publicamente quantos às
necessidades de desejos de seu grupo.
Os poderes “de fora” que definiam suas vidas, uma voz de comando vinda de
um “outro mundo”, estranho a elas, foram questionados, no entanto. Iniciou-se, assim, uma
fuga aos conceitos e significações que lhes definiam, bem como uma invasão do espaço que
lhes era negado. Apesar de terem que enfrentar a oposição do sistema dominante, as mulheres
levaram seu projeto adiante e, após árduas batalhas, conseguiram conquistar um espaço no
mundo dos homens.
A possibilidade de movimentação neste espaço, entretanto, não resultou em
mudanças radicais na sociedade, pois as mulheres ainda se encontravam em uma posição
inferior e tinham que enfrentar os preconceitos e estereótipos que atribuíam à sua figura. No
entanto, as mulheres permaneceram firmes no propósito de garantir sua participação também
no espaço público/masculino.
A realidade que se apresentou às mulheres, a vida ambígua em dois espaços
que se opunham, despertou nas mulheres a consciência de que seu mundo diferia do mundo
dos homens. Assim, sentindo-se inadaptadas ao novo espaço de movimentação, que gerou
conflitos nos conceitos simbólicos representativos das vivências por elas experimentadas, o
grupo feminino passou a dar atenção às diferenças verificadas entre homens e mulheres.
Decorre daí, a preocupação em estudar as formas como as representações da
figura feminina foram construídas. Assim, a literatura significou um meio pelo qual se
expunham ideologias e, conseqüentemente, as mudanças realizadas pelas mulheres poderiam
ter uma significação mais evidente ao serem estudados textos por elas produzidos.
A teoria crítica feminista foi um produto da conscientização das mulheres
quanto a sistemas de valores diferentes aplicados a obras masculinas e femininas. Desta
forma, uma leitura preocupada em observar como homens e mulheres se relacionam e falam
de seus mundos concluiu que as produções de ambos eram moldadas pelo gênero. Surgiram,
122
desta forma, algumas linhas de estudo que procuraram sistematizar estas diferenças a fim de
promoverem uma leitura interessada, isto é, que verificasse as construções simlicas e
estruturais que pudessem distinguir os trabalhos de homens e mulheres. Desta forma, este
trabalho procurou, a partir da análise da obra de Muriel Spark, os paradigmas que pudessem
colaborar para o reconhecimento e verificação das construções de significados propostas pelas
feministas.
Inicialmente, pôde-se observar que o envolvimento da autora com o
movimento feminista se dá de forma o declarada, uma vez que a autora identifica o termo
“feminista” como uma oposição extrema aos homens e do conceito de “feminilidade”
atribuído às mulheres. No entanto, verifica-se em seus romances a presença recorrente de
personagens femininas que se encontram em busca de melhores condições de vida (como a
própria autora o fez) e de ganhar visibilidade em uma sociedade nada amigável à ação das
mulheres.
Assim como Spark teve que lutar para conseguir um lugar numa sociedade
tradicional que limitava o espaço das mulheres, suas personagens encontram-se ente o desafio
de contrariar as regras sociais que dão primazia aos homens. A busca por uma identidade que
seja construtora de significações se concretiza, para as personagens, através do auto-
conhecimento. Para Spark o auto-conhecimento se efetivou por meio de uma experiência
espiritual, enquanto para suas personagens significa a identificação das forças que sobre elas
pesam como geradoras de comportamentos e conceitos.
Posto que as situações em que as mulheres se encontram são determinantes da
visão que elas têm da realidade, bem como das práticas por meio das quais expressam seus
desejos, conflitos e questionamentos, a literatura produzida pelas mulheres torno-se o objeto
de estudo mais importante para a crítica feminista. Desta forma, ao reconhecer as diferenças
entre os mundos dos homens e das mulheres, as feministas procuraram identificar os pontos
de divergência e convergência apresentados por eles.
Verificar até que ponto a escrita de Spark pode ser gendrada requer que se leve
em consideração, primeiramente, que a autora procurou enfatizar, sempre que possível, que
sua escrita baseia-se em suas experiências, naquilo que viveu e viu acontecer à sua volta.
Desta forma, o mundo das mulheres presente em suas obras muito se assemelha à realidade
oferecendo, ainda, uma contextualização da realidade das mulheres na contemporaneidade.
Assim sendo, ao se estudar as diferenças expressas na literatura de autoria feminina, é
possível afirmar que os modelos de análise propostos e aplicados pelas feministas em
123
diferentes momentos da história das mulheres, foram aplicados à escrita sparkiana e
permitiram averiguar sua funcionalidade e limitações.
Tomando-se o corpo com base construtora de significados, verificou-se que
algumas teóricas feministas defendem o corpo como fator essencial de diferenciação entre os
sexos. Esta posição se justifica ao se observar que este aspecto é o mais evidente, por ser de
reconhecimento (quase) imediato da identidade sexual da pessoa observada. A observação dos
aspectos físicos permitem, assim associar os conceitos de identidade e personalidade às
características externas de uma pessoa. No entanto, deve-se entrever que não lhe é destitda a
carga simbólica ao falar da realidade das mulheres.
Conforme se viu, ao ser realizada uma análise dos romance sparkianos The
Driver’s seat e Symposium, o corpo das mulheres podem conduzir uma carga simbólica, desde
que se note que há um prosito, evidente ou não, para que a “presença” feminina seja canal
para comunicar uma mensagem que de outra forma não lhe seria possível. Isto exposto, as
roupas chamativas de Lise, sua movimentação (aparentemente aleatória), as risadas
escandalosas, falam de sua necessidade de pôr-se em evidência, de conquistar seu espaço e
escapar aos limites impostos a ela.
De forma semelhante, o corpo de Margaret veicula uma mensagem, também
incompreendida pelos receptores. A construção de uma imagem por meio de roupas que
remetem a conceitos (artísticos) implícitos, permite ocultar a verdadeira identidade por trás da
aparência: a ameaça ao sistema dominante deve ser disfarçada pela inocência e bondade
construídas esteticamente.
Todavia, o discurso emitido por ambas as mulheres não é compreendido pelas
demais pessoas, presas que estão ao conjunto de configurações simbólicas constitdas pelo
patriarcado. Por ser um discurso marginal, fora dos limites de entendimento do grupo
dominante, ele demanda um novo sistema de significações que possam facilitar o
entendimento pelo grupo receptor que não partilha as vivências do grupo emissor e, por isso,
desconhece ou ignora o discurso da mulher.
Embora se tenha notado que o modelo biológico permite que uma leitura
amparada em um fator externo possa ser realizada, como se viu nos romances mencionados, a
limitação da realidade e das vivências das mulheres a apenas este fator pode prejudicar uma
compreensão mais ampla do mundo que se quer exprimir.
124
Enquanto um fator de pertencimento, de localização de um indivíduo na
sociedade, a expressividade do corpo pode ficar condicionada apenas à leitura interessada do
grupo das mulheres. Contudo, algumas feministas percebem que as relações estabelecidas
pelas diferenças biológicas são mais amplas e complexas, elas limitam as leituras das
mulheres, o que resulta no questionamento quanto aos valores empregados por esta categoria
analítica.
Assim, como afirmam as feministas, as difereas se revelam mais amplas e
complexas, enquanto no modelo biológico elas limitam as leituras das mulheres, o que resulta
no questionamento quanto aos valores empregados por esta categoria analítica. Com uma
leitura amparada na psicanálise, entretanto, foi possível estabelecer as diferenças a partir de
uma categoria preocupada em relacionar a formação da identidade ao processo de exclusão e
marginalização das mulheres, bem como fator de significação nas leituras a serem realizadas.
De acordo com o modelo psicanalítico, as mulheres são “o negativo dos
homens”: falta-lhes o falo, que origina a inveja delas, passam por um complexo de castração
que as coloca na posição do “outro” dos homens (inferior/ignorado) e dificulta a comunicação
entre os dois mundos, masculino e feminino.
Em The Driver’s seat, uma voz narradora (da tradão patriarcal) questiona os
incompreensíveis atos de Lise e não percebe a autonomia que a personagem demanda ao
apresentar um comportamento fora dos padrões. As relações significativas estabelecidas pelo
modelo psicanalítico permitem que o discurso da mulher seja visto como um ruído incômodo,
que se explica pelo desenvolvimento da personalidade, que ocorre de forma diferente para os
sexos. Para os meninos, tornar-se adulto significa desligar-se da mãe (inferior) para entrar no
mundo do pai (superior); momento em que se descobrem as diferenças sexuais.
A realidade repressiva das mulheres se expressa em seus escritos por remeter a
imagens como da mulher doente ou louca que deve ser separada (trancada) do mundo
exterior, por não reconhecer (e obedecer) suas normas, convenções e exigências sociais. O
estudo Gilbert e Gubar (1979), a respeito de Jane Eyre (1847), amparou a análise da figura da
“louca” como símbolo do isolamento feminino, a qual possibilitou a averiguação da
construção da personalidade em Lise (como Bertha Mason, louca) e Margaret (como Jane,
independente e racional).
A loucura de Lise, que se expressa por seu aprisionamento entre os mundos
público (do trabalho) e privado (da vida pessoal), simboliza a repressão da mulher e sua
125
exclusão de um espaço onde ela representa o desequilíbrio (ímpar). No entanto, nem mesmo
em seu espaço “natural” consegue se sentir completa, pois sua vida é organizada por alguém
(designer) do lado de fora. Uma vivência esquizofrênica a obriga a buscar outra realidade,
onde possa realizar mudanças sociais.
Como o desenvolvimento paralelo ao enredo, os relacionamentos, as imagens e
metáforas contribuem para o entendimento do desenvolvimento da personalidade (como um
estudo de caso) e das motivações que leva a mulher a exigir mudanças sociais. Estas
mudanças, porém, pode levar o projeto feminista ao fracasso, como ocorre com Lise.
Também Margaret enfrenta a incompreensão: causa um desconforto
inexplicável nas pessoas que vêem nela algo “maligno” (“uma Jekyll e Hyde feminina”). A
apresentação da personagem por meio de fragmentos de textos, permite que se verifique a
fragmentação de sua identidade, expressa pelas imagens construídas a seu respeito pelos
convidados. Margaret evidencia os desejos de inserção social e liberdade das mulheres, o que
causa um desconforto ante a sociedade.
A teoria psicanalítica (Jung) também propõe um equilíbrio entre os sexos
quando o indiduo apresenta aspectos do sexo oposto (masculino – animus / feminino
anima). Em Lise, a possessão se expressa no descontrole e volubilidade com que age, de
forma a atingir seu objetivo de encontrar “seu homem”. Em Margaret, remete à figura da
bruxa (imagem negativa), que tenta se infiltrar num espo onde não lhe é permitido
(burguesia).
Segundo Showalter, a psicanálise feminista permite falar em um “vínculo entre
mulheres”, que se exprime na relação mãe/filha explorada nos textos das mulheres: remete às
polarizações de velho/novo, forte/fraco, passado/presente. Esta relação pode ser apresentada,
nos romances sparkianos, pela amizade entre Lise e a Sra. Fiedke.
A amizade das duas mulheres denota dois momentos distintos do movimento
das mulheres: do reconhecimento inicial entre as duas, surge o estranhamento ao
aprofundarem o relacionamento. Assim sendo, a mulher idosa representa as mulheres presas
às tradições, enquanto Lise dá voz às mulheres que querem liberdade e autonomia, livre de
convenções.
No entanto, a relação entre elas revela o paradoxo da vida das mulheres:
enquanto mulheres que buscam o “novo”, sair de sua condição de repressão, há aquelas
que cooperam com a manutenção das tradições repressoras. Portanto, a mulher que
126
acompanha a travessia pelo mundo dos homens também age contra o projeto feminista:
aproxima o homem da mulher “nova”, adiando suas conquistas.
Daí a necessidade de separação entre as figuras femininas distintas: para que
Lise assuma o controle e a direção de sua vida. Ao rejeitar as limitações espaciais, ela busca
adentrar no mundo dos homens e evidenciar sua autonomia, fazendo-se notar por meio de
risadas altas, ordens absurdas.
Todavia, observou-se, ainda, que pode haver um equilíbrio entre os sexos,
quando colaboram para realização de um mesmo projeto, como o fazem Margaret e seu tio,
Magnus. Esta aliança, representativa de uma possessão pelo animus, determina um
comportamento rígido, polêmico e despótico. Em busca de inserção social, há uma
transferência dos desejos de um no outro: a sobrinha quer fazer parte da burguesia londrina; o
tio quer ser aceito na sociedade e escapar ao limite imposto pela loucura. No entanto, o
sucesso de ambos só pode se realizar se for mantida a cooperação entre os sexos.
Se, de um lado, procedimentos como este oferecem uma leitura que permita
analisar textos masculinos e femininos, chamou-se a atenção para a exclusão de influências de
etnia, classe social, assim como fatores históricos, genéticos e econômicos, conforma aponta
Showalter. Prefere-se, assim, um modelo “mais abrangente”, como o modelo cultural, que
permite averiguar as relações entre os sexos, assim como entre as mulheres, que
experimentam uma vivência em grupo (relações de fraternidade) baseada na dualidade (no
mundo dos homens e das mulheres).
Vivendo entre o mundo dos homens (público) e das mulheres (privado), como
ocorre com Lise, elas perceberam que em ambos espaços havia uma sensação de inadaptação,
de não pertencimento, pois não conseguiam conciliar as exigências dos dois espaços.
Enquanto fator de desequilíbrio, as mulheres se viram ante a necessidade de procurar seu
lugar, de instituir mudanças, as quais não ocorreram de forma equilibrada, pois o sucesso
muitas vezes é impedido ou adiado. Silenciadas pelo poder dominante, as mulheres
demandam a oportunidade de falaram em espaços restritos a partir da “zona selvagem”, uma
região fora da intersecção dos mundos masculino e feminino, onde sua escrita e fala são
revoluciorias e livres.
No entanto, para garantir que sejam ouvidas e aceitas, as mulheres devem
realizar uma travessia pelo mundo dos homens, passando pelos limites representados pelo
espelho. Saindo do lugar mais racional e lógico (o norte dos homens) rumo ao lugar menos
127
elevado, mais instintivo (o sul de das mulheres/Lise), onde a companhia feminina pode levar à
liberdade e autonomia, tanto quanto de volta à repressão e aprisionamento, as mulheres
recusam ser apenas reflexo do mundo ordenado pelos homens e desejam fazer valer suas
práticas e conceitos.
Contudo, a colaboração entre mulheres pode representar esta relação especular:
como a Sra. Fiedke, as antigas tradições ainda prendem as novas práticas e desejos das
mulheres (como Lise) aos estereótipos constrdos pelos homens, o que exige das mulheres a
“coragem” de romper com as relações “estáveis” da sociedade. A reação dos homens (Carlo e
Richard) tentam fazer as mulheres voltarem à sua condição tradicional (inferior,
principalmente física e sexualmente).
O modelo cultural também contribui, contudo, para a verificação de influências
patri e matrilíneas (Showalter) na cultura e escrita das mulheres, apresentando pontos em
comum com os homens. Interessado pelas mulheres, este modelo busca evidenciar, ainda, as
diferenças que se constroem pela experiência coletiva.
Por conseguinte, as personagens sparkianas, Margaret e Magnus, oferecem a
percepção de um momento após a travessia do espelho, em que a distinção não se realiza de
forma estável: a comunicação entre os dois mundos pode ser efetivada, levando à realização
de um projeto em comum (inserção social). Por meio de mentiras, maquinações e violência,
conciliam-se as vivências masculinas e femininas e atinge-se o objetivo que os uniu. As
mulheres devem, entretanto, atentar para a possibilidade de falhar ao permitir sua dominação
(expressa em Magnus), ou ficar aprisionada a práticas tradicionais (expressa na Sra. Fiedke).
Também com relação a este modelo, ainda que seja mais abrangente, as
feministas apresentam limitações, principalmente por preocupar-se apenas com os objetivos
específicos das mulheres (heterossexuais, de classe média, brancas). Algumas (como Spaul),
afirmam que não há um questionamento do patriarcalismo, por considerar as diferenças
biológicas “naturais” e se preocupar com relações extra-textuais.
No entanto, os modelos de diferença expõem como as mulheres buscaram, na
prática escritora, assim como na leitora, falar da realidade das mulheres, dos problemas que
tiveram que enfrentar para conquistar seu espaço no mundo. Por meio destes modelos,
independente da ênfase que dêem aos textos produzidos e às leituras realizadas, verifica-se o
que talvez se possa chamar de processo de amadurecimento da crítica feminista, em que se
realizaram mudanças que as próprias práticas exigiram, ao mostrar suas limitações e buscar
128
formas de expor a mulher e sua realidade, sem as amarras dos (pré)conceitos, construções
significativas impostas a elas por um sistema que não as entendia, sequer reconhecia sua
existência, seu valor.
Apesar das falhas da ênfase na diferenciação, foram estes estudos que
possibilitaram que o gênero, de distinção biológica entre os sexos, passasse a representar as
construções culturais decorrentes deste fator: de base para a identificação entre os sexos, para
influência na construção do caráter. Também se atribui à categorização do gênero como
principio anatico por admitir diferenças dentro dos grupos sexuais: étnicos, de classe,
nacionalidade, opção sexual.
A questão da nacionalidade se evidencia em Spark pela forma como uma
mulher de outra nacionalidade (escocesa) pode representar uma dupla ameaça em um espaço
tradicional (metrópole/Londres). Ao mesmo tempo estrangeira e “outra” no meio social ao
qual procura pertencer, Margaret veicula, para seus observadores, a iia de volta ao passado
primitivo, instintivo e inferior encerrados em sua nacionalidade e gênero, considerados
inferiores, fracos. No entanto, ela consegue uma ambivalência (movimento nos dois mundos)
que se torna fonte de poder para ser ouvida, aceita e ativa no espaço que lhe era restrito.
Lise, entretanto, não atinge esse novo patamar para as mulheres, pois não
consegue equilibrar características e funções masculinas e femininas em uma única vivência.
Por isso, ela fica deslocada entre os dois mundos e sente a necessidade de romper com as
pressões que exercem sobre ela e decide romper definitivamente com ambos os espaços
buscando sua morte.
Os estudos de gênero tamm preocupam-se em verificar os fatores que
influenciam a construção de estereótipos e a instituição de comportamentos aos grupos sócio-
culturais. Desta forma, os meios de comunicação em massa podem ser importantes para
reforçar ou combater construções simbólicas hierarquizantes. Como se nota em Spark, a mídia
pode manter sua função primordial de veiculação de informações (levantamento dos fatos
relacionados à morte de Lise), como podem, ainda, deturpar a imagem da mulher ao “editar
as informações para construir uma personalidade feminina que agrade mais ao senso comum
da massa.
Desta forma, como ocorre com as freiras, cujas falas foram editadas para gerar
polêmica (Irmã Marrow) ou ganhar a simpatia do público (Irmã Rooke). Há, no entanto,
ocasiões em que as informações se conjugam para comprovar uma idéia: Margaret tem suas
129
participações na televisão recolhidas como prova de sua maldade e ameaça. Verifica-se,
conseqüentemente, que os sentidos são construídos e/ou influenciam de acordo com os grupos
que conseguem fazer-se ouvir.
A receptividade dos ideais femininos, disseminados pelas mulheres mediante
sua ação social, influencia, assim, as divisões verifiveis até mesmo dentro do grupo das
mulheres: há os conflitos de classe (Margaret/Hilda), ideológicos (Lise/ Sra. Fiedke). Estes
conflitos, que mostram como as possibilidades de identidade e personalidade podem gerar
figuras heterogêneas em um mesmo grupo, colaboram para evidenciar, por outro lado, a
possibilidade de cooperação entre grupos distintos, como se observa no trabalho conjunto de
Magnus e Margaret.
Ante o exposto, apresenta-se a probabilidade de que mesmo os conceitos e
significações atribuídos aos sexos possam perder sua força ou serem identificados em ambos
os grupos. Como ocorre na obra sparkiana, estas constrões permitem averiguar
características atribuídas às mulheres (instintividade, dependência e fraqueza), nos homens
(como William e Dan, em Symposium, e Richard em The Driver’s Seat). Da mesma forma, as
mulheres podem ser violentas, dominadoras (como Margaret, Hilda e Lise); demonstra-se
desta forma, que não há uma identidade uniforme, nem para homens nem para mulheres
ambos podem estar no centro ou às margens da sociedade.
Estas afirmações, no entanto,o possíveis somente em razão das mulheres
terem questionado as práticas sociais terem forçado sua inserção no mundo de significações
dos homens. Como resultado, verifica-se que as mulheres foram, aos poucos, se
conscientizando e refletindo sobre sua ação no espaço que desejaram conquistar: de imitação
das pticas masculinas (feminine), elas passaram a se opor e discutir as práticas deles
(feminist) e logo sentiram a necessidade de abandonar as comparações com os homens e falar
de seu mundo, de sua liberdade e autonomia (female). O trabalho de Spark apresenta mulheres
em momentos feminist, de embate entre os sexos (The Driver’s Seat), bem como no momento
em que buscam identificar e construir uma identidade distinta e livre (Symposium).
Esta fase mais consciente da mulher (female) é considerada por algumas
feministas como a fase madura, em que se reconhece a ambigüidade das mulheres e a
impossibilidade de definição de uma “receita de mulher”. A relação entre os sexos, vista
como equilibrada, remete à complementaridade possível entre eles, em que o ideal andrógino
é resgatado e posto em funcionamento e características masculinas e femininas são
reconhecidas em um mesmo indiduo.
130
Em algumas autoras, segundo a crítica feminista, o andrógino pode ser
expresso pelo equilíbrio das características masculinas em mulheres (como em Lise, Margaret
e Hilda), assim como de características femininas em homens (Magnus, William e Dan, em
Symposium e Bill em The Driver’s Seat). Entretanto, a androginia atribui poder aos homens,
ao lhes delegar aspectos da feminilidade, as mulheres também correm o risco de excluir-se do
mundo andrógino.
Como ideal do apagamento das fronteiras que separam os sexos, a androginia
pode representar, ainda, a recusa do comportamento feminino – inferior, instável – em favor
do comportamento masculino – ideal, superior e racional. Desta forma, a androginia não
resulta em igualdade nem em liberdade para as mulheres por reforçar e resgatar a hegemonia
masculina que as leva, novamente, ao isolamento do quarto.
Reconhecendo-se as diferenças entre masculino e feminino, associados às
diversas construções de personalidade sexual que acarretam, a mulheres podem isolar-se no
quarto das pressões exteriores à sua realidade e a seus desejos, assim como podem garantir a
comunicação entre os dois mundos, onde suas vivências peculiares lhe permitem uma atitude
mais consciente e livre.
Margaret e Lise descobrem que não pertencem a nenhum dos espaços onde se
movimentam, pois não são entendidas neles. Elas precisam realizar uma viagem em busca de
sua identidade através do auto-conhecimento. Nesta jornada, tornam-se conscientes de que o
andrógino não reconhece distinções e, por isso, não define posições políticas e sexuais.
Novamente, as feministas precisam falar das diferenças e das divies. Desta forma, procuram
um mundo com valores próprios, longe da uniformidade da indiferencião, que as coloquem
em uma posição mais próxima da almejada identidade que comporte personalidades diversas.
Falando dentro do espaço público e do privado, as mulheres podem, enfim
proferir um discurso autônomo e livre no espaço que estiverem, reconhecendo-se diferentes e
valorizando-se por esta diferença. Não mais temendo críticas, nem cedendo a pressões, as
mulheres podem, finalmente criar seus próprios significados e conceitos, de acordo com seu
contexto histórico, nacional, racial ou sexual, o que resulta na liberdade de transcender o
gênero.
Saindo e entrando no quarto quando bem entendem, as mulheres se permitem
decidir se, após a passagem pelo caminho das pedras, é melhor movimentar-se no espaço
público ou privado sem ter que se justificar. As novas configurações propostas pelas mulheres
131
e sua crítica, interessam-se mais pela criatividade e liberdade. Aceitando o dialogismo com o
mundo dos homens, as mulheres tecem os paradigmas de uma crítica, de uma sociedade e
uma cultura que não é nem única, nem uniforme, mas diversa, heterogênea.
Como a Medusa torna-se um símbolo da alegria feminina em reconhecer-se
diferente e por ter consciência de seu potencial enquanto agente social, as mulheres
sparkianas, loucas ou bruxas, não têm medo de agir em um mundo onde as pressões parecem
nunca acabar. Atrevidas e audaciosas, elas não querem ser apenas convidadas ao banquete da
vida e, mesmo que sentar-se à mesa signifique ter que lutar por seu lugar, elas sabem que têm
força suficiente para não se deixar abater; não precisam de cavalheiro algum para lhes abrir a
porta do carro, nem de homens que indiquem o caminho. Elas querem estar no assento
principal, de destaque, seja na cabeceira da mesa, ou no assento do motorista, o importante é
serem donas de suas vidas.
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APÊNDICES
APÊNDICE A – Resumo do romance The Driver´s Seat
Em The Driver´s Sea, a personagem principal – Lise – viaja em férias para o sul
(possivelmente Roma) e busca afastar-se da rotina do escritório e de sua casa aparentemente
inabitada, na qual os móveis são “todos fixos, adaptáveis a vários usos e empilháveis” podendo
ser deixados à mostra ou dobrados e escondidos conforme a necessidade. Ao preparar-se para a
viagem, Lise sai na tentativa de “perceber” o vestido que deve adquirir. O primeiro é um
vestido de cores brilhantes com fundo branco e quadrados verdes (com manchas azuis) e
púrpura (com manchas de cor roxo ciclâmen), o qual é recusado pela compradora por ser
“resistente a manchas”. O escolhido por ela é um vestido com corpo amarelo e saia com
padrões em laranja, roxo e verde brilhante em forma de “v”, além de um casaco com listras
vermelhas e brancas – cores consideradas “muito naturais” e “absolutamente certas”.
Lise, com suas roupas extravagantes, relaciona-se com as pessoas apenas por
um curto peodo de tempo e de forma a lhe serem úteis a fim de registrar sua passagem e suas
ações. Elas são testemunhas de sua morte. Durante a viagem, Lise perturba as pessoas por
onde passa: no avião, segue um dos passageiros que até muda de lugar por causa do
comportamento dela (fica “encarando” os homens, rindo incontrolavelmente), mas chama a
atenção de Bill, líder ideológico da macrobiótica, o qual se sente atrdo por Lise e se auto-
intitula o “tipo” dela. Para ela, entretanto, aquele que procura parece ser o jovem que ela foge.
No hotel, parece confusa “como se ela não estivesse muito certa de onde
estava”, perde a paciência com os funcionários, fala alto para que a percebam. Ao sair do
hotel, Lese divide o táxi com uma senhora idosa, Sra. Fiedke, a qual “parece não ver nada
estranho na Lise, tão confiantemente ela se aproxima dela”. Juntas, na loja de departamentos,
as duas mulheres tornam-se alvo da atenção dos demais clientes devido à risada exagerada de
Lise que cauda “desordemno lugar e deixa a idosa “apavorada”,sem saber o que fazer”.
Na loja de presentes, a Sra. Fiedke compra chinelos para seu sobrinho e Lise
compra um cachecol laranja e duas gravatas pretas. A primeira compra, também, uma faca de
cortar papel (paper-knife), parecida com uma cimitarra, guardada na bolsa de Lise. As
conversas giram em torno do sobrinho da Sra. Fiedke, Richard, cuja chegada está prevista para
aquela noite. Aos vinte e quatro anos, já esteve internado em uma clinica devido a um
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problema que “vem do lado da mãe”. A tia o considera o “melhor” do tipo de Lise, bem como
nada lhe tira da mente de que os dois são feitos um pro outro:
it is in my mind and I can´t think of anything else but that you and my nephew are
meant for each other. As sure as anything, my dear, you are the person for my
nephew. Somebody hás got to take him on, anyhow, that´s plain (p. 70)
Em seguida, a conversa é direcionada à definição do homem que ela “está à
procura”: Lise acredita que ele está depois de uma esquina, em algum lugar, agora, qualquer
tempo”, em “qualquer velha esquina”. Ele não é uma presença, é “a falta de uma ausência”
(the lack of an absence, that´s qhat it is). Os erros que ela comete ao tentar encontra-lo se deve
a que os homens têm muito autocontrole, devido ao medo e timidez, à covardia: “Tôo much
self-control, which raises from and timidity, that´s wrong with them. They´re cowards, mosto f
them” (p; 71).
O discurso proferido pela Sra. Fiedke, a seguir, revela os problemas advinhados
da liberação sexual, principalmente por parte dos “outros” homens (I´m not talking about the
ones who were born like that... it´s the others I´m talking about) que querem direitos iguais”,
cabelos nos ombros”, não se vestem igual (alike) e não agem como antes: quando abriam
portas, tiravam o chapéu. Para ela, por causa deste movimento “contra” as mulheres, que quer
igualdade, “o sexo masculino está ficando fora de controle”, não mais se distingue das
mulheres a olho nu: “if God had intended them to be as good ad us he wouldn´t have made
them different from us to the naked eye”.
‘If we don´t look livery’, she says,they will be taking over the homes and the
children, and sitting about having chats while w ego and fight to defend them and work to keep
them. They won´t be content with equal rights only... p. 72.
No entanto, entre as duas mulheres não há um dialogo, pois enquanto a Sra.
Fiedke faz seu discurso, Lese está preocupada em conseguir um táxi, porque “está ficando
tarde”. No entanto, quando conseguem chegar ao ponto de táxi, o último veículo acabara de
sair. Ao mesmo tempo, sentem o cheiro de algo queimando e uma multidão de estudantes
dobra a esquina e ouve-se grito de “gás lacrimoneo”.
Ao tentar fugir da confusão, Lise se perde da Sra. Fiedke e entra em uma
oficina. O dono da oficina, Carlo, acreditando ser ela uma estudante, vocifera sua fúria com
histeria. Somente após um momento de transe ante este “ataque”, Lise afirma ser uma turista,
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uma professora de Iowa, e que machucou seu pé. Carlo então pede desculpas e dá atenção ao
ferimento enquanto conversam. Quando Lese decide procurar um táxi, ele se oferece para leva-
la em seu carro. No caminho, Carlo tenta abraça-la, mas ela resiste, dizendo que não se
interessa por sexo e tem outros interesses, algo a ser feito. Ela sai do carro, seguida por ele.
Finalmente, ela entra no carro antes que ele consiga alcança-la e grita “Você não é meu tipo
der forma alguma”, liga o carro e foge.
No caminho, ela encontra um policial, para quem pergunta onde fica o Hotel
Hilton (ela mentira para Carlo que estava neste hotel) e quem, no dia seguinte, lembrará de a
ter visto e, achando estranha sua atitude, resolvera anotar a placa. No Hilton, ela procura pelo
homem de aparência doente que vira no avião. Ao conversar com ele, percebe que não é ele
quem ela procura.
Decide, então, falar com Bill, que a espera para jantar. Lisa pede que ele a leve
até o pavilhão. O macrobiótico tenta agarra-la e convence-la de que deve cumprir a regra de
seu regime – um orgasmo por dia, para não ficar saldo para o seguinte. Mas Lise não tem
interesse em sexo e, notando a presença de outras pessoas, faz um escândalo o qual resulta na
prisão de Bill.
Lise foge com o carro, novamente, e retorna ao hotel onde estivera hospedada.
Logo ao chegar, ela vê Richard que, ao perceber sua chegada tenta fugir. Mas a voz dela é de
comando (Você vem comigo) e o faz entrar no carro e o leva até o pavilhão. Neste local, ela
lhe dá as instruções de sua morte: o lugar de cada item, o local do corpo a ser perfurado. Mas
ela exige que não haja sexo, somente depois. Ele a mata como ela havia pedido e foge.
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APÊNDICE B – Resumo do romance Symposium.
Dez londrinos de estilo se rnem para um jantar. Enquanto eles de alimentam ,
o leitor é convidado a conhecê-los. Os anfitriões são Hurley Reed, um pintor (anti - tudo) e
Chris Donovan, uma viúva australiana muito rica; seus convidados, pessoas da sociendade e
altamente inteligentes”. Lord e Lady Suzy: ele é um lord de titulo hereditário, por volta dos
50 anos, casado há um ano com Helen, de vinte e dois anos, que conheceu o marido através de
uma amiga – a filha de Brian. Roland Sykes (o gay melancólico, perito em genealogia) a
Anabel Treece (assistente de produção de um canal de televisão) são primos. Ernst Untzinger
trabalha em uma comissão internacional de economia da Comunidade Euroia e Ella é
professora universitária (geógrafa e cartógrafa). O ultimo casal, recém-casado, é composto por
Willian Damien (filho de uma rica viúva australiana) e Margaret (“uma moça de aparência
romântica, com cabelo comprido e de um ruivo muito escuro”). À mesa, são discutidos
diversos assuntos corriqueiros: filosofias (Les autres – de Margaret, casamento, roubo). Após
dar ao leitor uma idéia de como são os convidados, a narrativa muda para o passado.
O casal Untzinger têm uma afeição/atração pelo jovem formado em história,
Luke que fica com eles quando em Londres. Ele presta serviços de garçom em jantares de
pessoas ricas e começa a levantar suspeitas dos amigos ao aparecer com roupas e acessórios
caros, bem como quando suas visitas diminuem a freqüência. Willian e Margaret, após a lua-
de-mel em Veneza, retornam para Londres e recebem o convite para o jantar. Logo que
aceitam o convite, Hurley vai visitá-los e dá sua primeira impressão sobre Margaret: “hurley se
perguntava por que lea se exibia neste estilo pré-rafaelita... Ela teria uma aparência fantástico
em qualquer traje comum. Por que não corrige os dentes?” e dá sua opinião sobre a união do
jovem casal: Não dou um ano”.
A narrativa, porém, preocupa-se em falar da vida de Margaret, que dentro os
convidados é a que mais difere dos demais membros. A família de Margaret, Murchie, é grupo,
no entanto, tem algo de estranho para a sogra de Margaret, embora ela não possa explicar o
que é. É revelado, entretanto, que a família se envolveu em algumas situações confusas, que
sempre tinha Margaret no centro das suspeitas. A mãe de Dan, antes de morrer estrangulada
por uma mulher louca que, coincidentemente morava no mesmo hospital que Magnus, alterou
seu testamento beneficiando somente este filho. Esta mudança no testamento foi realizada com
a ajuda de Margaret e o advogado de sua avó. As filhas de Sra. Murchie reclamaram, mas não
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conseguiram mudar a situação. O escândalo das brigas entre os irmãos foi acompanhado de
perto pela mídia.
Embora a presença de Margaret no local do assassinato não fosse confirmada,
as irmãs suspeitavam que ela tivesse alguma relação do assassinato não fosse confirmada, as
irs suspeitavam que ela tivesse alguma relação com o crime (mesmo as a prisão da
assassina). Inconformada com a “injustiça” das irmãs, Margaret vai para um convento, onde
pode pensar “nos outros”. O convento revelou-se um lugar nada convencional. Era uma ordem
moderna, com freiras marxistas – uma ir fumava demais (Irmã Lorne), outra falava
palavrões (Irmã Marrow), outra era encanadora (Irmã Rooke) e tinha uma ajudante. Criticadas
pelo bispo quanto ao uso dos palavrões, a justificativa das freiras vai marxista/cortês da Irmã
Lorne (“é a vida das freiras e mercadores, voz e afrodisíaco do Povo”) ao mais rude da Irmã
Marrow (Vá de foder, bispo. Você não passa de um merda).
Pouco após Margaret entrar no convento, a BBC resolveu fazer um
documentário sobre o serviço das freiras nos hospitais e seu modo de vida. O trabalho da
emissora tumultuou o convento e revelou aspectos “interessantes” das irmãs: declarações
controversas, conflitos entre as irmãs e até um assassino – tudo foi acompanhado pela equipe
(embora nem tudo tenha sido revelado na edição final). Ante várias suspeitas de ter
assassinado a Irmã, a confissão da madre Superiora surpreendeu a todos, já que suspeitava-se
de alguém com mão forte e grande, enquanto a madre estava doente há tempos. O escândalo,
contudo, obrigou as irmãs a fecharem o convento e cada uma a seguir seu rumo. Margaret
voltou para casa.
Após esta experiência, Magnus, que sempre orientava Margaret, sugeriu que ela
se casasse, mas com alguém rico. Fizeram, então, uma lista de solteiros ricos e, após contar, no
entanto com o apoio de Hilda, mãe de Willian, a qual suspeitava que o casamento havia sido
tramado pela noiva e sentia um receio grande quanto à natureza de sua nora: desconfiava que
ela pudesse lhe fazer algum mal.
Entretanto, antes que Hilda seja assassinada (momento final do romance), os
convidados do jantar devem tomar conhecimento dos fatos que permeiam a vida de Margaret.
Por terem sido veiculados pela televisão, os escândalos envolvendo os Murchie chegaram ao
conhecimento de quase todos. Mas o clímax, que deveria ser a tomada de poder de Margaret
(que ela havia planejado, com a morte da sogra), torna-se o assassinato pelas mãos de uma
quadrilha de ladrões sofisticados, entre eles Luke e o mordomo dos anfitriões do jantar.
Margaret, desesperada com a antecipação dos fatos, tem uma crise e grita: Não podia ter
acontecido antes de domingo”.
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ANEXOS
ANEXO A – Foto de Spark em idade escolar
Foto da turma de 1930 da Escola James Gillespie para Meninas. A seta vermelha indica
Muriel Spark e a seta amarela indica a professora Miss Christina Key, que deu vida a Jean
Brodie.
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ANEXO B – Foto de Muriel Spark em 2004
Dame Muriel Spark no Festival Internacional do Livro de Edimburgo em 2004.
Foto: Bill Henry
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ANEXO C – Carta de Grahan Greene
Carta em que Grahan Greene oferee ajuda para Spark encontrar alguém que publique seus
trabalhos. Ele também a ajudou em momentos diceis e incentivou sua produção.
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ANEXO D – Carta de Elizabeth Taylor
Carta de Eizabeth Taylor a Muriel Spark, na qual a atriz comenta sobre sua participação na
versão cinematográfica do romance The Driver’s Seat.
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ANEXO E – Capa de uma edição de The Driver’s Seat.
The Driver’s Seat, publicado em 1970, é ambientado em Roma. É um dos romances
preferidos de Spark. Esta capa da edição pela Penguim Books traz imagem referente à versão
cinematográfica de 1975, estrelada por Elizabeth Taylor.
150
ANEXO F – Capa da versão francesa de Symposium
Em 2002, o romance O Banquete foi traduzido para o francês.
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ANEXO G – The Driver’s Seat – versão francesa
152
ANEXO H – Trabalho crítico de Spark
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