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WANDER DE LARA PROENÇA
SINDICATO DE MÁGICOS:
Uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus (1977-2006)
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP Universidade
Estadual Paulista para a obtenção do título
de Doutor em História (Área: História e
Sociedade)
Orientador: Prof. Dr. Milton Carlos Costa
ASSIS
2006
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Proença, Wander de Lara
Sindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal do Reino
de Deus (1977-2006). Wander de Lara Proença. Assis, 2006.
374p.
Tese Doutorado Faculdade de Ciências e Letras de Assis
Universidade Estadual Paulista.
1. Brasil – Religiosidade 2. Igreja Universal do Reino de Deus 3. História
Cultural 4. Sindicato de Mágicos 5. Roger Chartier - Representações 6.
Sociologia – Pierre Bourdieu.
CDD 289.94
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WANDER DE LARA PROENÇA
SINDICATO DE MÁGICOS: UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA
UNIVERSAL DO REINO DE DEUS (1977-2006)
COMISSÃO JULGADORA
TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP / ASSIS – SP
Presidente e orientador: Dr. Milton Carlos Costa – UNESP
2º Examinadora: Drª. Maria Lucia Montes - USP
3º Examinadora: Drª. Silvia Cristina Martins de Souza - UEL
4º Examinador: Dr. Eduardo Basto de Albuquerque – UNESP
5º Examinador: Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho – UNESP
Assis, 02 de março de 2007.
4
Ao meu avô, Bino Lara,
o qual, durante o período em
que eram redigidas as últimas páginas
deste trabalho, também concluiu sua história
terrena...
Partiu, mas deixou memórias de alguém
fascinado por assuntos religiosos...
O mistério do sagrado, que tanto
o encantou, também seduz a
ciência e busca explicações
nas páginas desta pesquisa.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Milton Carlos Costa, que sempre soube conjugar sua notável
erudição no conhecimento historiográfico com a dedicação e o zelo no trabalho de orientação
de cada etapa desta pesquisa.Tornou-se para mim um grande amigo, um grande mestre, sendo
um referencial seguro de rumos, delineamentos e correções a que a tese foi submetida.
Sempre solícito e prestativo na disponibilização de horários para os procedimentos de
orientação, muitos dos quais em finais de semanas e feriados. Quando estabeleci os primeiros
contatos com a Unesp, prontamente aceitou-me como aluno especial da disciplina que
ministrava. Em seguida, acreditou no projeto ainda em fase de elaboração, reprogramando,
inclusive, seus compromissos de orientação a fim de disponibilizar mais uma vaga ao
processo seletivo para que fosse possível meu ingresso no Programa de Doutorado. Lembro-
me das desafiadoras palavras que dele ouvi após a primeira leitura que fez do meu projeto de
pesquisa: “Ainda uma lacuna na historiografia brasileira sobre a abordagem de temas
relacionados ao neopentecostalismo”. Se este trabalho, agora concluído, vier a contribuir para
o alcance daquele objetivo, os méritos advém das imprescindíveis orientações acadêmicas
recebidas do Prof. Milton.
Ao Programa de Pós-Graduação em História da Unesp, por contemplar em suas linhas de
pesquisa espaço para abordagem de temas pelo viés da História Cultural. Este trabalho é,
certamente, resultado de um longo processo que envolveu diferentes contribuições do
Programa de Doutorado: oferta de disciplinas voltadas à História Cultural na integralização
dos créditos; avaliação e críticas ao projeto originalmente elaborado, em disciplinas
especialmente ofertadas para esse fim; segura fundamentação teórico-metodológica
propiciada nas aulas de Teoria e Metodologia; oportunidades de apresentações parciais da
pequisa durante as Semanas de História, realizadas anualmente, ocasião em que o tema
investigado pôde ser exposto para debate e reações de outros pesquisadores, sob a mediação
do meu orientador; e, por fim, a participação dos membros da Banca de Qualificação, que
desempenharam leitura cuidadosa do texto até àquele momento elaborado, apresentando
importantes contribuições para os procedimentos finais de redação da pesquisa.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História, da Unesp, pela dedicação,
capacidade e esmero na tarefa de formar novos pesquisadores.
Aos professores Dr. Eduardo Basto de Albuquerque e Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho,
pelas relevantes observações e recomendações feitas à tese quando participaram do Exame de
Qualificação. A presença desses docentes também na Banca de Defesa enobrece o nível que
essa investigação se propôs a alcançar.
Aos professores titulares e suplentes que compõem a Banca de Defesa, cuidadosamente
escolhidos e convidados, por emprestarem o seu nome e o seu prestígio acadêmico na
avaliação do trabalho aqui elaborado.
Aos funcionários da Unesp/Assis, pelo modo sempre prestativo e atencioso dedicado aos
alunos do Programa de Pós-Graduação. Profissionais que, além da competência, demonstram
satisfação e zelo no desempenho de suas funções.
Ao Prof. André Luiz Joanilho, pelo auxílio e direcionamento na elaboração das primeiras
pesquisas historiográficas que desenvolvi sobre o pentecostalismo brasileiro, ainda durante o
6
Mestrado, e também por ter intermediado os primeiros contatos com o Prof. Milton para que
pudesse ser meu orientador.
À Fabiana Rondon, pelo auxílio nas pesquisas de campo e no acesso às fontes documentais
próprias da Igreja Universal do Reino de Deus.
À prof.ª Selma Almeida, pela revisão de língua portuguesa realizada no texto.
À prof.ª Rosalee Ewell, pela tradução do resumo desta tese para o inglês.
À Daniela Selmini, bibliotecária da Faculdade Teológica Sul Americana, pelo auxílio nas
constantes pesquisas realizadas naquele local.
Ao Alfredo Oliva, pela amizade e companheirismo na travessia dos cinco anos em que fomos
colegas de curso no Programa de Doutorado em História da Unesp, compartilhando os
desafios e a fascinação que o estudo do campo religioso brasileiro proporciona.
À Faculdade Teológica Sul Americana, com especial menção ao Prof. Jorge Henrique Barro,
pelo auxílio e apoio na disponibilização da estrutura da FTSA para o desenvolvimento de
minhas pesquisas. O acervo documental sobre o pentecostalismo brasileiro, existente na
Biblioteca dessa Instituição, foi de significativa importância para o aprofundamento do tema
aqui abordado.
À CAPES, com especial registro, pela bolsa de estudos que subsidiou recursos
imprescindíveis ao desenvolvimento deste projeto, especialmente por propiciar condições
para as viagens do trabalho de campo e os constantes deslocamentos que se fizeram
necessários aos acervos documentais.
7
“A HISTÓRIA DOS DEUSES SEGUE AS FLUTUAÇÕES
HISTÓRICAS DE SEUS SEGUIDORES”.
Pierre Bourdieu
8
PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal
do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em História
Social) Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2006.
RESUMO
Em 1977, com o nome de Igreja Universal do Reino de Deus, surgiu o mais instigante
movimento religioso no cenário brasileiro contemporâneo, não apenas pelo explosivo
crescimento numérico, mas principalmente pela inauguração de práticas que transpõem as
categorias conceituais explicativas classicamente utilizadas para a análise das manifestações
de fé. Abordagens jornalísticas, religiosas e sociológicas não deram conta de compreender a
abrangência e os impactos promovidos por esse segmento. O desafio foi então lançado à
historiografia. Com o propósito de contribuir para o preenchimento dessa lacuna, esse
trabalho se propôs a pesquisar, com profundidade, as práticas e as representações que
notabilizaram o fenômeno iurdiano. Para isso, a partir de parâmetros teórico-metodológicos
da História Cultural - articulados com os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu -
realizaram-se incursões investigativas nos documentos próprios da igreja, conjugando-as com
observações participantes nos cultos e ritos, cruzando-se ainda tais fontes com depoimentos
de líderes e fiéis, além de gravações sistematizadas de programas midiáticos, transcritos e
catalogados para análise. Constatou-se que o fenômeno iurdiano: não é dissidência e nem
continuidade de outras expressões religiosas, mas é criador de algo novo a partir de
apropriação e resignificação de compósitos culturais arraigados na longa duração histórica;
estabeleceu um marco divisor no campo religioso quando chegou às massas e atingiu a matriz
cultural brasileira, recuperando elementos liminares de crenças folclóricas, que perpassam
todos os veis sociais, tornando-os prioritários; surgiu e cresceu no contexto de uma
explosão urbana, marcada por instabilidade, crise e violência, tornando-se um espaço de
salvação, de socorro e ajuda. Sindicato de mágicos configura-se, pois, como um título
plausível para classificar a operacionalidade da alquimia do conjunto observada nas práticas
desse movimento, capaz de combinar elementos aparentemente contraditórios: denomina-se
igreja, mas caracteriza-se por magia e profetismo; possui líderes carismáticos, pelas regras
coletivas do campo e o pela excepcionalidade individual; desenvolve um tipo de
messianismo, de configurações rurais, mas vivenciado com encanto no mundo urbano; as
crenças que necessita combater são decisivas para o seu funcionamento; as benesses do
paraíso apocalíptico já são antecipadas para o tempo presente, alterando inclusive a geografia
do além-pós-morte; elementos encantados são habilmente conjugados com recursos
ultramodernos; o biblicismo da leitura é substituído pelo emblema do rito; polêmicas
estratégias de arrecadação financeira são denegadas pela economia da oferenda; no lugar da
abstenção de bens materiais como preparação para a salvação, a prosperidade e o usufruto de
valores do tempo presente como sinais de alcance do reino idílico; sendo instituição, possui a
capacidade mágica de não permitir a magia institucionalizar-se; deu certo no contexto
brasileiro por recuperar um elemento essencial e identitário do cristianismo: o mistério.
Palavras-chave: Igreja Universal do Reino de Deus; História Cultural; sindicato de mágicos;
carisma; campo religioso brasileiro.
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PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato de Mágicos: uma história cultural da Igreja Universal
do Reino de Deus (1977-2006). Assis: Unesp, 2006. 356 fl. Tese (Doutorado em História
Social) Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Assis, da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2006.
ABSTRACT
In 1977 was inaugurated, with the name Universal Church of the Kingdom of God - Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) - the most provocative religious movement in
contemporary Brazil, not simply due to its explosive numerical growth, but mainly because
of its practices that went beyond classical conceptual categories employed in analyses of faith
manifestations. Journalistic, religious, and sociological approaches were not sufficient to
account for the range and impact of this segment. The challenge was then submitted to
historiography. With the purpose of answering some of these lacunae, the present work
proposes to research in depth the practices and representations that most mark the IURD
phenomenon. For that, using theoretical-methodological parameters from cultural history,
articulated in the works of Roger Chartier and Pierre Bourdieu, we shall make incursive
investigations into the documents of the church, placing these alongside the observations
made by participants in the church’s rites and practices, then comparing these with additional
statements from the church’s leadership and faithful followers. We will also examine
Transcripted and catalogued information gathered from various media programs. It was
found that the IURD phenomenon was not due to dissidence nor continuity with other
religious expressions, but was instead the creation of something new based on an
appropriation and resignification of long-standing historical and cultural composites. It
established a dividing mark in the religious field when it reached the level of the masses and
hit a Brazilian cultural matrix, recovering hidden elements of popular folklore, that reach all
social strata, thus making them priorities. It started and grew in a context of urban explosion,
marked by instability, crises and violence, making it a place of salvation and help.
“Magicians´ Union”, therefore, is a plausible title under which to classify the functionality of
the group alchemy observed in the practices of this movement, capable of combining
apparently contradictory elements: calling itself “church”, but characterized by magic and
prophecy; having charismatic leaders determined by the collective rules of the field and not
according to individual gifts; developing a type of messianism of rural configurations, but
living in a charmed urban world. The beliefs against which it must fight are decisive for its
functioning; the blessings of apocalyptic paradise are anticipated to the present time, altering
the geography of post-beyond-death. Elements of enchantment are ably paired with
ultramodern technology; literal biblicism is substituted by an emblem of rite; polemical
strategies for financial gain are disallowed by an economy of offering; instead of abstaining
from material goods in preparation for salvation, prosperity and the enjoyment of this present
day are signs of reaching the idyllic kingdom. As an institution, it has the magical capacity of
not allowing magic to institutionalize itself. It has been successful in the Brazilian context
because it recovered an essential element of Christian identity: mystery.
Keywords: Universal Church of the Kingdom of God; cultural history, magicians´ union;
charisma; Brazilian religious field.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................12
1 - PARÂMETROS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA HISTÓRIA
CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS ........................................37
1.1 - O lugar do sagrado na História Cultural .........................................................................37
1.2 - Um caminho metodológico a partir de Chartier e Bourdieu ...........................................49
1.2.1 - Representação, prática, habitus ...................................................................................52
1.2.2 - Campo, capital simbólico ............................................................................................60
1.3 - Fontes para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus...........64
1.3.1 - Documentos próprios da Igreja Universal....................................................................65
1.3.2 – Fontes produzidas pela pesquisa de campo .................................................................71
2 O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL EM QUE SE DESENVOLVEU O
PENTECOSTALISMO BRASILEIRO ..................................................................................88
2.1 – O contexto de movimentos precursores .........................................................................89
2.2 – O contexto do surgimento do pentecostalismo ... ..........................................................94
2.3 – O contexto de projeção do pentecostalismo .................................................................110
2.4 – O contexto de desenvolvimento do neopentecostalismo ............................................126
2.5 – Um contexto de esforços do catolicismo pelo controle do campo religioso.................136
2.6 – Um contexto histórico de magia no campo religioso brasileiro ...................................141
2.7 – Um contexto de pressão folclórica camponesa no mundo urbano ...............................147
3 UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS:
PRÁTICAS ...........................................................................................................................152
3.1 – A consagração do herético: o nascimento de um sindicato de mágicos ......................152
3.2 – A universalização do reino: o explosivo crescimento da Igreja Universal ..................156
3.3 – A multiplicação da palavra: os recursos midiáticos da Igreja Universal .....................161
3.4 – Milagres do dinheiro e dinheiro dos milagres nas práticas iurdianas ..........................163
3.5 – Interesses do gesto desinteressado: a economia de oferenda nas práticas iurdianas.....168
3.6 – O poder simbólico do carisma nas práticas iurdianas ..................................................173
11
3.6.1 – O carisma do profeta .................................................................................................183
3.6.2 - O carisma do mago ....................................................................................................215
3.6.3 – O carisma messiânico-milenarista .............................................................................224
3.7 – O palimpsesto cultural das práticas iurdianas ..............................................................251
4 - UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS:
REPRESENTAÇÕES ...........................................................................................................267
4.1 – Da funerária à catedral: representações do espaço sagrado iurdiano ...........................267
4.2 - Representações mágicas dos objetos litúrgicos ............................................................271
4.3 – O universo representacional dos ritos ..........................................................................278
4.3.1 - Corrente da prosperidade: o dinheiro e suas representações .................................... 284
4.3.2 - Corrente do descarrego: representações do mal nas práticas iurdianas .....................399
4.3.3 - “Pare de sofrer”: corrente de cura divina e milagres .................................................310
4.4 - O papel das práticas de leitura nas representações iurdianas ........................................316
4.5 - Representações da morte: mudanças na geografia do “Além” .....................................325
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................332
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................353
12
INTRODUÇÃO
O ano é 1977. O lugar: subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. O endereço:
Av. Suburbana, 7.702, Bairro da Abolição. O local: um modesto salão alugado, anteriormente
ocupado por uma funerária. À porta, afixada uma placa com aspirações um tanto ambiciosas:
Igreja Universal do Reino de Deus. Ao púlpito: um jovem pastor sem nenhum preparo formal
em teologia ou treinamento especializado para o exercício daquela função. Os recursos de
comunicação: a voz solitária, de sotaque inconfundível, de um pregador com microfone em
mãos, auxiliado por duas caixas de som amplificadas. O público: pouco mais de uma dezena
de ouvintes.
O ano é 2006. O lugar: todas as médias e grandes cidades espalhadas em
todos os Estados brasileiros. O local: mais de cinco mil templos que, pela imponência e
extensão física, são orgulhosamente chamados de “Catedrais da Fé”, com capacidade para
abrigar milhares de pessoas. As ambições do nome: a presença em mais de cem países do
mundo. Ao púlpito: a voz de mais de dezesseis mil pastores e bispos que multiplicam o
sotaque e o estilo de seu líder-fundador. Os recursos: dezenas de emissoras de rádio, um
canal exclusivo de televisão, com mais de noventa emissoras filiadas em rede nacional. O
público: aproximadamente três milhões de adeptos.
Quem passasse em frente ao primeiro endereço da Igreja Universal, quando
do início de seu trabalho, certamente seria levado a imaginar que o destino mais provável
daquele pequeno ajuntamento de pessoas, como o de tantos outros grupos pentecostais
cismáticos, seria a obscuridade da periferia ou dos entrincheirados morros e favelas do Rio de
Janeiro. Contrariando essa perspectiva, porém, a história emblematicamente reservava, ali, na
aparição daquele movimento, a escrita de um capítulo absolutamente novo no campo
religioso brasileiro: o cenário da crença no país passaria a se dividir em antes e depois da
IURD. Diante desses aspectos, surgem inevitáveis questões: quais elementos, internos e
externos, propiciaram esse fenômeno em tão pouco espaço de tempo? Por que o movimento
iurdiano obteve êxito enquanto tantos outros, surgidos na mesma época, fracassaram? Onde
estão fincadas as raízes desse segmento religioso que lhe dão tanta sustentação diante das
inúmeras polêmicas e perseguições que sofreu em sua trajetória? Como essa igreja responde
aos anseios e às crenças de seus seguidores? Estaria-se diante de um caso que envolve a
genialidade de líderes ou de um processo de produção coletiva do campo religioso a partir de
regras que lhe são próprias?
13
O fato é que, em relação à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), não
como ignorar ou ficar indiferente à sua presença. Desde o seu surgimento, tem estado no
centro de intensas controvérsias. Métodos heterodoxos de arrecadação, vilipêndio a cultos
religiosos, agressão física contra adeptos de crenças afro-brasileiras e investimentos
empresariais milionários, são alguns dos motivos responsáveis por desencadear uma série de
críticas e acusações por parte da grande imprensa e de outros segmentos religiosos, inquéritos
policiais e processos judiciais contra a Igreja e seus líderes. Mais recentemente, um novo
episódio ganhou as páginas de jornais e revistas de circulação nacional, tornando-se também
assunto diário nos principais telejornais do país: João Batista Ramos, bispo e presidente das
organizações de comunicação da Igreja Universal, foi detido pela Polícia Federal, no
aeroporto de Brasília, quando se preparava para viajar para a cidade de São Paulo, portando
sete malas cheias de dinheiro, num montante que somava mais de dez milhões de reais. Ao
ser indagado pelas autoridades federais acerca da origem daquele valor, explicou que se
tratava de zimos e ofertas doados pelos fiéis numa das recentes campanhas religiosas
denominadas “fogueira santa de Israel”, realizadas pela IURD, e que a quantia estava sendo
levada à administração central da Igreja, localizada na capital paulista. Mais tarde, constatou-
se que em outras regiões do país foram arrecadados, de igual modo, valores suntuosos nos
milhares de templos iurdianos e também remetidos à sede da referida Igreja.
É notória a capacidade iurdiana de operar a multiplicação de números. Em
pouco mais de duas décadas conseguiu atrair para si um grande número de seguidores que a
faz ostentar hoje o quarto lugar em membros, em relação às demais igrejas evangélicas
atuantes no país.
1
Viu rapidamente seus templos se espalharem em todos os recantos do país,
ocupando imóveis anteriormente usados como lojas e tantos outros estabelecimentos
comerciais de grande porte, que fecharam as suas portas para dar lugar aos cultos iurdianos.
Nesse sentido, aliás, a IURD nasceu num contexto marcado por crises e parece encontrar
neste elemento um dos componentes externos que contribuem para a sua propagação. Sua
dinâmica e impactante atuação no campo religioso se deve não apenas ao seu rápido
crescimento, visibilidade e capacidade de arregimentação de fiéis, mas também às inovações
que promoveu: ao invés de templos convencionais para os seus cultos ou reuniões, a
transformação de locais normalmente tidos pelos evangélicos como profanos em espaços
sagrados - a exemplo de casas de shows e cinemas - inseridos em meio às aglomerações; o
uso intenso dos meios de comunicação de massa, mediante compra de horários nodio e na
1
DOSSIÊ: Religiões no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, USP, n. 52, p. 15, 2004.
14
TV, ou mesmo pela aquisição desses meios de comunicação para o anúncio de sua
mensagem; grande ênfase no dinheiro como parte da vida religiosa, promovendo enorme
visibilidade social e projeção econômica da Igreja, com altas taxas de arrecadação financeira,
posse de milhares de templos, além de diversos empreendimentos paralelos tais como,
gravadoras, editoras, livrarias, instituições bancárias e do ramo da construção civil.
A Igreja Universal, evidentemente, não consiste em um movimento isolado,
mas participa de um processo de transformação do campo religioso brasileiro ocorrido
sobretudo nas três últimas décadas. Nessas mutações, as expressões de genericamente
identificadas como “evangélicas”,
2
têm obtido os melhores resultados em termos de
crescimento. Dados catalogados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
relativos aos censos demográficos realizados em tal período, constatam essa afirmativa. Em
1940, os evangélicos representavam 2,6% da população; em 1950, 3,4%. Em 1970, de uma
população composta de pouco mais de 90 milhões, os evangélicos somavam 5,17%; em
1980, eram cerca de 120 milhões de brasileiros, e os evangélicos totalizavam 6,62%. Os
dados relativos ao Censo Demográfico realizado em 1991, indicaram uma população de mais
de 146 milhões e um total de 8,98% de fiéis. No início da década de 1990, a revista Veja -
exibindo como manchete de capa “A que move multidões avança no país” - também
apontava para esta projeção:
Cerca de 16 mi lhões de pessoas no país, espe cialmente a imensa
massa de descamisados coloc ados à margem da modernidade e
progresso, já rezam pela cartilha de ssas igrejas barulhentas que em
seus cultos che ios de cânticos e emoções prometem curas, milagres
e prosperidade instantâ nea na t er ra.
3
Em 2000, próximos dos 170 milhões de habitantes, os evangélicos
superaram as cifras dos 26 milhões, perfazendo 15,5% dessa população.
4
Em números
absolutos, o crescimento desse grupo, na última cada, é da ordem de 100/%, pois eles
passaram de 13 milhões em 1991 para os mais de 26 milhões atuais.
5
Também se destaca
2
No campo religioso brasileiro torna-se cada vez mais difícil delimitar ou conceituar com maior precisão a
categoria “evangélico”, já que engloba um número importante de igrejas com grande diversidade
organizacional, teológica e litúrgica. Em geral, remete a um conjunto de características que traçam um perfil
relativamente definido de um grupo que engloba um número cada vez mais significativo de pessoas, mas com
muitas fragmentações e divergências internas. Assim, gozando de extraordinária autonomia, cada uma se projeta
no espaço social segundo iniciativa dos pastores ou de suas comunidades locais, por não possuir um órgão
institucional que as normatize ou as regularize. Cf MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o
público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil 4. Contrastes da
intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia da Letras, 2002, p. 87.
3
Revista Veja, São Paulo, n. 19, p. 40-44, 16 maio 1990.
4
Estudos Avançados. Op. cit., p. 15, 16.
5
Ver SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. O Sagrado num mundo em transformação. São Paulo: Edições ABHR, 2003,
p. 26, 27.
15
que, dos números anteriormente apresentados pelas pesquisas nas duas últimas décadas, “de
cada dez crentes sete se declaram pentecostais ou neopentecostais”.
6
O censo realizado pelo
ISER, em 1991, revelava que se abria naquele momento um templo evangélico a cada dia
útil no Rio de Janeiro. Segundo dados atuais do IBGE, cerca de 600 mil brasileiros se
convertem a cada ano a alguma denominação com esse perfil religioso.
Em decorrência de tal projeção, inclusive hoje uma assimilação cultural
da liturgia e do vocabulário evangélico, fazendo que cada vez mais nas ruas e locais públicos,
por exemplo, pessoas exibam camisetas e estampem adesivos nos seus automóveis com
dizeres que representam essa nova tendência religiosa.
Em meio a essas remodelações do campo religioso brasileiro, o fenômeno
iurdiano se apresenta, pois, um instigante desafio aos que se dedicam a compreendê-lo,
especialmente por atuar em fronteiras da liminaridade, estabelecida como flexibilidade do
que se convenciona classificar como sagrado e profano, ortodoxo e herético, erudito e
folclórico, sacerdócio e magia. E é justamente pelos aspectos emblemáticos que envolvem tal
segmento religioso que advém o título dado a essa pesquisa: “Sindicato de Mágicos”. Ainda
que à guisa de introdução, vale justificar o emprego desses termos para intitular o presente
trabalho. Em relação à “magia”, pode-se conceituá-la como tudo aquilo que, baseado na
“lógica do natural e do sobrenatural”, tenta inverter as formas naturais das coisas, ou seja, a
crença de que determinadas pessoas são capazes de controlar forças ocultas (pessoais ou
impessoais) e intervir nas leis da natureza por intermédio de procedimentos rituais. Os
adeptos da magia acreditam que por palavras ou encantamentos podem alterar o curso dos
acontecimentos. Conectados com os mitos”,
7
os ritos mágicos permitem que os seus
adeptos, através da manipulação de forças imaginárias da natureza ou apelos a espíritos
imaginários, obtenham forças para buscar seus objetivos. Essa força tem sido entendida
normalmente como “uma atividade de substituição nas situações em que faltam meios
práticos para conseguir um objetivo; e uma de suas funções é dar ao ser humano coragem,
alívio, esperança, tenacidade”:
Daí a forma mimética dos ritos, a conversão de atos sugeridos pelos
fins visados. Assim, a magia produz o mesmo resultado subjetivo
que a ação e mpír ic a teria conseguido, resta ura-se a confiança, e seja
qual for o programa em que esteja engaja da, ele pode ser levado
avante.
8
6
Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 46, abr. 2000.
7
PIERUCCI, Antônio Flávio. Magia. São Paulo: PubliFolha, 2001, p. 78.
8
EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia social da religião. Rio de Janeiro: Campus, 1978, p. 53, 61.
16
Essa recorrência a forças supra-sensíveis ganha normalmente maior
evidência quando os problemas concretos que se enfrenta não encontram outras soluções
mais rotineiras, mais ordinariamente “humanas”. Na experiência com o cotidiano existencial,
o ser humano se depara com o desconhecido, com o “mistério”, que se manifesta, por
exemplo, na doença, na morte, nas calamidades. Para superar essa ameaça de caos que o
mistério pode provocar é que se recorre à magia.
9
Onde quer que o ser humano chegue a uma
lacuna intransponível, a um hiato em seu conhecimento e em seus poderes de controle
prático, surge o espaço de operação da magia:
O pensamento mágico imagina que neste mundo existem forças
ocultas portadoras de infortúnios e adversidade s, provocadores de
baques e acidentes imprevisíveis (...) incêndio, seca, pragas na
lavoura , doe nças e epidemias que se abatem sobre ser es hum anos e
animais (...) forças supra-sensíve is que produzem acont ec imentos
inesperávei s, interferindo negativamente em sua vida e
ultrapassando as explicações armazenadas no conhecimento técnico
que seu grupo partilha. É para se controlar essas interferências que
se re corre à magia.
1 0
Levando a efeito seus ritos, portanto, os magos se propõem a ajudar aos
que a eles recorrem a “lidar com seus problemas e seus contra-tempos, eliminando o
desespero que inibe a ação do indivíduo, fornecendo-lhe um sentido renovado do valor da
vida e das atividades que a compõem”.
11
Na Igreja Universal isto é o que também ocorre.
Com plasticidade, em seus rituais e procedimentos, estabelece uma relação de apropriação
resignificadora do mundo mágico das religiões afro-brasileiras e do catolicismo de devoção
folclórica, realizando, ali, práticas de magia que cruzam as fronteiras normalmente
estabelecidas pelo que se convencionou entender por religião. Para a satisfação das
necessidades e desejos dos que procuram os seus templos, líderes iurdianos disponibilizam
aos fiéis objetos simbólicos ou talismãs carregados de “energias benéficas”, direcionados à
solução dos casos mais difíceis, como a falta de saúde, de prosperidade e sucesso na vida.
Acredita-se que tais objetos têm eficácia gica e, portanto, capacidade para proteger de
todos os males atribuídos e personalizados na figura do demônio. Nos discursos, nas
literaturas e nas reuniões ritualísticas, pastores e bispos falam de forças espirituais e más que
constantemente interferem na vida cotidiana das pessoas; também praticam-se curas - tal
como os antigos taumaturgos, curandeiros ou xamãs - usando-se, para isso, ritos mágicos e
exorcistas.
9
Cf. BRONOWSKI, J. Magia, ciência e civilização. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 49, 50.
10
MALINOWSKI, Bronislaw. Magic, science, and religion. Em: James Needham (Ed.), Science, religion and
reality. London: Free Prees, 1925. Apud PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 56.
11
EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 68.
17
o emprego do termo “sindicato”, no título desta pesquisa, dá-se pelo fato
do movimento iurdiano ter surgido e obtido projeção sob o comando de líderes atuantes na
liminaridade, os quais podem ser identificados como “empresários autônomos” de salvação.
Utilizando-se da conceituação empregada por Max Weber, e retomada por Bourdieu,
12
pode-
se identificar o mago como agente religioso independente que se utiliza dos bens simbólicos
produzidos no campo religioso para atender a interesses imediatos daqueles que recorrem aos
seus serviços. Os agentes mágicos normalmente exercem uma profissão sem vínculo
institucional e, por essa razão, tendem a ser combatidos ou desqualificados pelos sacerdotes
representantes da instituição oficial - que em na magia uma apropriação indevida ou
manipulação de bens religiosos para finalidades “interesseiras”. À liderança de um líder
carismático de maior projeção juntam-se outros mágicos, sendo por aquele credenciados com
legitimidade para o exercício de suas funções. Forma-se, desta maneira, um “sindicato”
composto por agentes autônomos que independem, portanto, das sanções institucionais, cuja
autoridade provém diretamente do carisma que ostentam perante os adeptos. Nas práticas da
IURD, a força de organização da magia e do carisma, enquanto poder simbólico, tem origem
coletiva em formas de delegações geradas pelo próprio grupo. Com isso, a magia se organiza,
sindicaliza-se e se fortalece em uma espécie de confraria, mantendo, assim, o seu caráter de
ruptura com normas ou padrões ritualísticos estabelecidos por expressões religiosas
dominantes.
O termo “sindicato” também é plausível para representar a força
mobilizadora de um movimento de massas, que confronta, no âmbito religioso, as instuições
tradicionalmente estabelecidas, reivindicando direitos de proclamar a sua mensagem aos
moldes de uma invenção puramente nacional em termos de doutrina e rito, viabilizando
oportunidades a um contingente que tem ficado às margens para que seja sujeito de sua
própria experiência com o sagrado.
Magos, xamãs ou feiticeiros, não importa como sejam chamados, sempre
existiram nas sociedades, atuando no anonimato ou às margens de religiões oficiais. Porém,
no movimento iurdiano, sob a titulação de “bispos” ou “pastores”, tais funções se conjugam
eficazmente numa pastoral-mágica e ganham a luz do dia, assumindo identidades. Mesmo
com certos mecanismos de organização, os líderes iurdianos não se prendem jamais à rotina
religiosa que configura o papel sacerdotal no âmbito de uma igreja. É um movimento que se
institucionalizou sem perder os elementos mágicos, não se permitiu tornar-se uma religião.
12
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2000.
18
Por isso mesmo, o culto é novidade todo dia, sem cair no formalismo litúrgico da tipologia
eclesiástica institucional ou sacerdotal. Cada reunião se torna um novo espetáculo, com
plenitude de sentido, de emoção compartilhada, comungada na mesma paixão, “ligando os
homens às potências sagradas que o animam”.
13
Os ritos são criativamente renovados, numa
atualização permanente, propiciando um leque de novas opções a serem trilhadas a qualquer
momento, sem o “engessamento” cerceador encontrado nas grandes instituições religiosas.
Não estando preso à instituição, o bispo Macedo, por exemplo, tem autonomia de
mobilidade. É bispo sem deixar de ser profeta, de ser mago ou xamã. Este fator contribui para
que a história da IURD seja construída na vividez do inesperado e do desconhecido, envolta
pelo elemento do mistério que emblematicamente configura a crença em suas expressões
mais encantadas.
Outro aspecto relacionado ao tulo “Sindicato de Mágicos” se refere ao
poder de alquimia o qual magicamente faz que o grupo iurdiano o apenas rompa em suas
práticas coletivas com alguns conceitos ou tipologias - que classicamente têm sido utilizados
por teóricos ou pesquisadores de temas religiosos - mas também requeira novas abordagens
para a compreensão de um novo tipo de experiência envolvendo o sagrado no cenário
religioso brasileiro. Essa Igreja consegue eficazmente aglutinar vários outros elementos
configurados no campo e que aparentemente seriam opostos ou concorrentes entre si. Assim,
são vivenciados, ali, aparentes paradoxos ou contradições, mas que emblematicamente
ganham sentido e coerência a partir de regras que o campo religioso é capaz de promover:
denominando-se “igreja”, esse segmento possui práticas notadamente caracterizadas por
magia, por messianismo ou profetismo; as representações messiânicas nela configuradas
ocorrem não mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos
com tais perfis fazendo que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que é
rural e urbano sejam rompidas, tornando assim a cidade, teoricamente definida como lugar de
“desencantamento”, local de magificação do sagrado em suas expressões mais “primitivas”.
Ao mesmo tempo em que combate as crenças afro-brasileiras, a IURD diretamente delas
depende para a constituição de suas práticas, reeditando-as, inclusive, com outros nomes. Os
líderes, denominados pastores ou bispos como dito anteriormente - assumem para os fiéis
diferentes representações: mago, messias, profeta, fato que caracteriza um movimento
surgido com proposta profética, passando a se aproximar de uma instituição, sem permitir,
contudo, a institucionalização de suas práticas. Ao mesmo tempo em que se denomina
13
SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário temático
do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2002, p. 416.
19
evangélica, mantendo vínculos com o protestantismo histórico
14
ou com o pentecostalismo
clássico,
15
na verdade, reinventa-os, configurando uma nova tipologia, a qual
provocativamente desafia os pesquisadores quanto à sua definição pelas novas figuras de
sagrado apresentadas. Ao contrário do que protestantes e católicos sempre prezaram em
relação ao cuidado de se preparar para a vida futura pós-morte, na IURD se observa a ênfase
de suas práticas recaindo exclusivamente no aqui e agora. Se por um lado acena para as
benesses de consumo da sociedade capitalista, por outro sua mensagem acaba se colocando
como uma espécie de resistência a tal sistema, quando propõe caminhos intra-históricos para
se obter a superação das mazelas geradas por esse modelo de sociedade. A IURD, para a
veiculação de sua mensagem, combina eficazmente o uso dos mais sofisticados meios de
comunicação com antigas práticas de leitura, as quais se reportam a modelos caracterizados
nos séculos XVI e XVII, numa conjugação perfeita do ultramoderno com elementos de longa
duração. Em tempos de novos e agressivos recursos de comunicação e expressão, antigas
práticas de leitura resistem e continuam desempenhando o papel de promover a sedução do
sagrado e a retradução de um fertilíssimo passado cultural no mundo contemporâneo. Uma
igreja que investe no imediato mas que, no entanto, mantém suas raízes fincadas na longa
duração”.
16
Ou ainda, o enigma de possuir a capacidade de obter os maiores êxitos de
projeção e recrutamento de novos fiéis nos momentos em que sofre grandes ataques por parte
de movimentos religiosos concorrentes ou de outros setores da sociedade. Em síntese, o
emprego do títuloSindicato de Mágicos” não significa que a IURD seja apenas magia, mas
sim, que ela opera magicamente em outros níveis que o capital cultural do campo religioso
brasileiro lhe disponibiliza; e mais: ela reinventa-o, redescobrindo a magia nele existente e
criando algo absolutamente novo.
Outra dimensão da pesquisa pressuposto no subtítulo “uma história
cultural da Igreja Universal do Reino de Deus” refere-se ao aspecto teórico-metodológico,
14
Segmento cristão representado por diferentes denominações religiosas que surgiram a partir da Reforma
Protestante liderada por Martinho Lutero, na Alemanha, no século XVI, como por exemplo, as igrejas Luterana,
Presbiteriana, Batista, Anglicana e Metodista.
15
Movimento surgido nos Estados Unidos da América, no início do século XX, a partir da Igreja Metodista e
que ganhou notoriedade por enfatizar a prática da glossolalia vocábulo da língua grega que significa “falar
outras línguas”, cujo balbuciar de sons inarticulados, em êxtase, passou a ser compreendido, por tal segmento
religioso, como evidência do que se chama de “batismo com Espírito Santo”. O nome “pentecostalismo” é uma
alusão ao que se entende ter sido um episódio semelhante, registrado na Bíblia, em Atos 2:1-4, ocorrido com os
primeiros cristãos, no primeiro século, no dia da festa judaica denominada “pentecostes”. No Brasil,
convencionou-se identificar como representantes dopentecostalismo clássico” as primeiras igrejas que aqui se
desenvolveram com tal tipologia: Assembléia de Deus e Congregação Cristã no Brasil.
16
A longa duração”, segundo Fernand Braudel, refere-se às chamadas “permanências” na história, não
necessariamente um longo período cronológico: “é aquela parte da história, a das estruturas, que evolui e muda
o mais lentamente (...) é um ritmo lento”. Cf. LE GOFF, Jacques. In: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 17.
20
enquanto viés de análise a ser utilizado e, por conseguinte, propósito maior da tese ora
desenvolvida: compreender o fenômeno iurdiano a partir da historiografia, proporcionando
com isso uma nova abordagem, que além das análises e explicações até agora
apresentadas quase sempre sob outras perspectivas. Vale dizer que, não só pelo crescimento e
projeção, mas também pelo aspecto emblemático que a envolve desde o seu surgimento, a
IURD tem se tornado objeto de várias “explicações”, suscitando diferentes esforços por
compreendê-la enquanto expressão do sagrado produzido pelo campo religioso brasileiro, em
suas remodelações mais recentes. Podem ser destacados três setores que têm se empenhado
em descrever ou interpretar o movimento iurdiano: a mídia, outros segmentos religiosos e a
academia.
Por parte da mídia, amesmo por perceber o crescimento da concorrência
pelo controle dos meios de comunicação, a religiosidade iurdiana quase sempre tem sido
classificada em tom de estigmatização, sob acusação de charlatanismo, mercantilização da
ou curandeirismo, como se fosse apenas uma forma “maquiavélica” de explorar
financeiramente a “boa de pessoas humildes ou desavisadas, conforme se pode observar
no exemplo abaixo:
Sur gem em meio a e sta questão, falsos líderes que usam essas
técnicas de pregação em be nefício do próprio bolso. Exatamente por
essa razão são raras as capitais brasileiras onde pelo menos um
pastor não esteja se ndo alvo de um processo criminal por
charlatanismo, enriquecimento ilícito e atentado à e conomia
popular.
1 7
À medida que o movimento continuou se propagando, a postura da
imprensa foi a de também aumentar o número de reportagens sobre o que considera “táticas
mercantilistas” dessa Igreja: “Que o bispo Edir Macedo mercadeja a fé, incitando os fiéis a
fazer apostas em dinheiro com Deus nas quais sua igreja sempre ganha, se tornou lugar-
comum”.
18
Em outra matéria jornalística recente, com manchete de capa intitulada “A nação
evangélica, o maior país católico do mundo está se tornando cada vez mais evangélico”, a
revista Veja também publicou:
(...) o dinheiro, na forma de dízimo, ao se transferir para a mão de
pastores que vêem a religião como negócio, tem ger ado tanto o
crescimento de muitas denominaç ões quanto maracuta ia s, denúncias,
investiga ções. (...) Um dos ramos evangélic os criou a té um dízimo
superfatura do: o fiel deve dar antecipadamente 10% do valor que
pretende alcançar como uma graça do Senhor, e não daquilo que
efetiva mente recebe (...) As acusações mais freqüentes contra
pastores eva ngélicos tr atam de estelionat o e crimes fiscais. O pastor
17
Revista Veja, São Paulo, p. 40, 16 maio 1990.
18
Revista Veja, São Paulo, 03 jan. 1996.
21
Davi Miranda, fundador da Deus É Amor, por evasão de divisas. A
Igreja Re nascer em Cristo enfrenta mais de cinqüenta proc essos
movidos por ex-fié is. Seus fundadores, o apóstolo Estevam
Her nandes e a bispa Sonia Hernandes, são acusados de dar um
calote de 12 milhõe s de reais.
1 9
Outra tendência da mídia tem sido a de genericamente atribuir o êxito
dessas práticas religiosas aos problemas econômicos do país: “Pôr um terno para freqüentar o
culto, levar uma Bíblia embaixo do braço e ser visto como um modelo de honestidade, para
esses crentes pobres, é alcançar pelo menos um pedaçõ do paraíso da cidadania”.
2 0
Um segundo esforço explicativo provém de outros segmentos religiosos
atuantes no contexto brasileiro. O crescente surgimento de inúmeros pequenos templos que
passaram a ganhar visibilidade social, sobretudo nas grandes cidades do país, despertou
pesquisadores pertencentes a outras tradições cristãs. Nas décadas de 1960 e 1970, por
exemplo, a Igreja Católica encomendou várias pesquisas sobre as razões da conversão de
católicos às igrejas evangélicas. Alertava-se para os perigos das “heresias modernas”,
incluindo, juntamente com o espiritismo e a maçonaria, o pentecostalismo. Por outro lado, os
“protestantes históricos” ou “clássicos” também demonstraram interesse em compreender as
razões do sucesso pentecostal. Inquietava-lhes o fato de estarem já estabelecidos no Brasil
desde o século XIX e não terem ultrapassado a condição de “minoria religiosa”, não
conseguindo constituir-se em opção de massas no país, como ocorria com esses novos
segmentos religiosos. O depoimento de um pastor presbiteriano
21
retrata e ilustra bem a
interpretação feita pelo protestantismo diante das repercussões e impactos causados pela
atuação da IURD:
O Brasil é uma terra f ormidável. Dá de tudo (...) De u para dar
milagre, agora, nesta terra. Alguém, a njo ou de mônio, andou
semeando sobre as cabeças, a estapafúrdia idéia do milagre (...)
formas aberrantes do protesta ntismo, num completo repúdio à
tradiçã o de crítica e de equilíbrio que caracterizou a Reforma,
produzem tam bém os seus taumaturgos (...) O pão, o remédio, a
instituiç ão e a dignidade do poder público são, positivamente, o
maior antídoto para a milagreirice (sic) dese nfreada, que arra sta e
explora nosso pobre povo.
2 2
19
Revista Veja, São Paulo, p. 93, 03 jul. 2002.
20
Ibid.
21
O presbiterianismo consiste numa das ramificações do calvinismo, surgido em Genebra, na Suíça, sob a
liderança de João Calvino, no período da Reforma Protestante, no século XVI. Tal segmento protestante tem
como um dos seus pressupostos teológicos a acumulação de lucro pela ética do trabalho como um sinal da
eleição e bênção divinas.
22
BOAVENTURA, Luís Pereira. Jornal O Paraná Evangélico, Londrina PR, p. 02, jun. 1980. Exemplar
disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa em História - Faculdade Teológica Sul Americana,
em Londrina – PR.
22
Entre os próprios segmentos pentecostais não tem sido diferente a
inquietação acerca da IURD. Diante do episódio envolvendo as malas de dinheiro”,
anteriormente citado, o influente pastor e escritor Ricardo Gondim, líder da Igreja
Assembléia de Deus – maior igreja evangélica em número de membros no Brasil - em tom de
denúncia e protesto proferiu as seguintes palavras:
As sete malas c heias de dinheiro apreendidas em Brasília provocam
minha indigna ção. Não, não estou zangado só com a Igreja
Universal do Reino de Deus e seu presidente, o deputado João
Batista Ramos. Ta mbém estou com raiva de mim mesmo. Eu
precisava ter afirmado, com todas a s letras, que essa i greja é uma
empulhação medonha; seus bispos, picaretas e seu f undador, um
maquiavélico estrategista. P or que tive receios de denunc iar suas
intermináveis campanhas de li bertação? Eu não notava que eram
meros a rtif ícios para extorquir o povo? Lamento não haver nomeado
essa falsa igreja em a rt igos. Há muito, percebia que o dinheiro dos
crentes era insuficiente pa ra bancar suas mega catedra is, rede s de
televisão, inúmeras estações de rádio, aviões, helicópt eros e
financiamento de eleições. A maioria do povo brasileiro ganha
salário mínimo e por mais que c ompare cesse a seus vá rios cultos e
fosse espoliado, não havia como f inanciar tanta megalomania. Não
entendo porque não alarde ei que e sse clero da U niversal é composto
de lobos, que já nem se preocupam de fantasiar-se de cordeiros.
Eles representam a e sc ória nacional. Por que me embaracei com a
pecha que a impr ensa l hes dava de charlatões vigaristas e
estelionatários? Eu sabia que pastores obcecados pelo poder,
terminam como Lúc ifer. Eu devia ter apontado que o suce sso da
Universal é re sultado da sua fa lta de escrúpulos. Essa empresa
religiosa explora o povo que mendiga esperança. Che gou a hora de
outras igrejas se unire m e af irmare m, como fizeram os portugueses
há vá ri os anos, que a Universal não é evangélica. Ela precisa ser
apontada como um movimento apóstata, que não prega os valor es do
Evangelho. Lá, ensina-se a amar o que Jesus proibiu: dinheiro,
ganância e glór ia humana. Seus cultos não buscam gerar uma
espiritualidade livr e. As pessoas sã o induzidas ao medo. Eles
incutem sentimentos de culpa e ger am neuróticos religiosos, que
precisam aplacar se us traum as c om dinhe ir o.
2 3
Uma terceira dimensão explicativa engloba propriamente o campo
acadêmico. Têm-se avolumado as tentativas de compreensão dessas novas expressões
religiosas, especialmente pelo seu grande apelo às massas e pelo novo perfil por elas criado
em relação às tipologias que demarcavam a configuração do cenário religioso do país.
Inicialmente, empenharam-se nessa tarefa alguns cientistas sociais, com destaque para o
trabalho pioneiro de Beatriz Muniz de Souza, publicado em 1969, com o título “A
experiência da salvação: Pentecostais em São Paulo”. Porém, nos anos 70 ainda eram poucos
os estudos que se propunham a explicar o significado e o crescimento de grupos pentecostais
no Brasil. E, mesmo em 1984, Rubem César Fernandez ainda afirmava: “os crentes são
23
http: // www.ricardogondim.com.br/artigos. Acesso em: 27 jul. 2005.
23
minoria no país e também nos estudos sobre religião”.
24
Mas foi a partir de 1980, com mais
de 13 milhões de adeptos e 80 anos no Brasil, englobando centenas de denominações de
pequeno, médio ou grande porte, que as novas expressões evangélicas se tornaram finalmente
objeto de grande interesse das pesquisas acadêmicas, rendendo a publicação de vários artigos
e livros. A seguir, são apresentados alguns desses principais trabalhos que representam
diferentes olhares ou interpretações de autores brasileiros sobre a Igreja Universal. O
propósito é observar algumas de suas contribuições, mas, principalmente, os seus limites
explicativos, para que melhor se perceba a necessidade de se avançar no alcance de análise a
partir de um outro parâmetro de investigação: o viés historiográfico.
Um detalhado mapeamento da configuração do campo religioso brasileiro,
referente ao período que delineia o advento iurdiano, é feito por Maria Lucia Montes, na obra
História da Vida Privada no Brasil, volume 4. Nesse texto , a autora aponta para um
deslocamento do público para o privado que a “economia do simbólico” tem sofrido no
contexto brasileiro. São sinais dessas mudanças e da ascensão de “novos” fenômenos
religiosos os seguintes aspectos:
A evidente ampliação e diversificação do “mercado dos bens da
salvação. Igrejas enfim gerenciadas como verdadeiras e mpresas. Os
modernos meios de comunicação de massa postos a serviço da
conquista das almas. Instituiçõe s religiosas que, do ponto de vista
organiz aciona l, doutrinário e litúrgico, pareciam fragilizar-se ao
extremo, mais ou menos ent regues à i mprovisação ad hoc sobre
sistemas de crenças fluídos, deixando ao enc argo dos f ié is
complementarem à sua ma neira a ritualização das práticas religiosas
e o conjunto de valores espirituais que elas supõe m. Uma maior
autonomia reconhecida aos indivíduos que, um passo adiante, seriam
julga dos em condição de escolher livremente sua própria religi ão,
diante de um merc ado em expansão. (...) P roliferação de seita s,
fra gmentação de crenças e práticas devocionais, seu a rranjo
constante ao sabor de crenças e práticas pessoais ou das vicissitudes
da vida ínt ima de c ada um.
2 5
Montes registra “transformações profundas” observadas nas últimas
décadas no campo religioso brasileiro e que nos anos 90 “emergiram escancaradamente à
superfície”.
26
Essa autora aponta algumas das características dessas mutações. Primeiro,
um novo poder de dimensões inéditas do protestantismo no Brasil, país tradicionalmente
considerado católico. Segundo, uma transformação importante no próprio campo protestante,
evidenciada pelo crescimento no interior do protestantismo histórico e muitas vezes em
24
FERNANDES, R. C. Religiões populares: uma visão parcial da literatura recente. Boletim Informativo de
Ciências Sociais, ANPOCS/ USP, São Paulo, p. 84, 1984.
25
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 63-171.
26
Id., ibid., p. 68.
24
oposição a ele. E, por fim, a transformação em curso significava mutação interna,
demonstrada pela proximidade com os compósitos das crenças afro-brasileiras. Tais
remodelações envolveram maior fluidez, baixo grau de institucionalização das igrejas e o uso
dos modernos meios de comunicação de massa a serviço da conquista das almas.
As análises feitas por Maria Lucia Montes são de grande relevância,
especialmente por identificar um elemento decisivo: a fragmentação de crenças e práticas
devocionais e seu rearranjo ao sabor das inclinações pessoais ou das vicissitudes da vida
íntima de cada um”.
27
Porém, trata-se de um trabalho de mapeamento amplo do campo, sem
uma concentração mais específica no caso da Igreja Universal, que é o propósito do trabalho
que ora desenvolvemos. Mas a própria autora faz uma observação instigante ao lembrar a
necessidade de um aprofundamento na investigação das raízes mais profundas do recente
rearranjo global do cenário religioso do país, quando diz que seus “efeitos ainda deveriam ser
melhor explorados para que pudessem ser devidamente avaliados”. Menciona ainda dois
aspectos que justificam a importância de se trabalhar com conceitos empregados por Pierre
Bourdieu no empreendimento dessas novas pesquisas: a “economia do simbólico” e a
“gênese do campo religioso”. Argumenta Montes: “nunca a economia política do simbólico
havia parecido mais adequada à explicação do fenômeno religioso no Brasil”;
28
e ainda,
“supõe-se que se compreenda em primeiro lugar (...) a gênese das transformações que
resultaram na atual configuração do campo religioso brasileiro”.
29
O sociólogo Ricardo Mariano é autor de uma dissertação de Mestrado,
apresentada na Universidade de São Paulo, publicada com título Neopentecostais: sociologia
do novo pentecostalismo no Brasil.
30
Esse trabalho se tornou referência na abordagem dessa
temática. A partir de exaustiva pesquisa de campo, tendo como universo teórico a sociologia
compreensiva de origem weberiana, descreve as mudanças ocorridas no pentecostalismo
brasileiro, apresentando a Igreja Universal como a principal representante desse novo perfil.
Mariano discute as tipologias das formações pentecostais, faz relato da história e da
organização das denominações que classifica como representantes do neopentecostalismo:
Universal do Reino de Deus, Internacional a Graça de Deus, Renascer em Cristo e
Comunidade Evangélica Sara a Nossa Terra; e, por fim, analisa as características distintivas
desse novo segmento evangélico, a saber: a guerra contra o Diabo, a liberação dos usos e
27
Id., ibid., p. 69.
28
Id., ibid.
29
Id., ibid., p. 71.
30
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
1999.
25
costumes e, principalmente, a “Teologia da Prosperidade”. Analisa o papel de sedução que
esse modelo de teologia exerce sobre os adeptos ao propor que os cristãos se tornam sócios
de Deus à medida que financiam a obra divina, o que lhes outorga o direito de usufruírem os
melhores produtos oferecidos pelo mercado, serem felizes, saudáveis e vitoriosos em todos os
seus empreendimentos – aspectos esses que põem em xeque o velho ascetismo pentecostal.
Não obstante a relevância do trabalho de Mariano, especialmente pelo
pioneirismo da abordagem de um fenômeno religioso que cada vez mais marcava presença
no país, a pesquisa apresenta limites: fica restrita à abordagem de cunho sociológico, não
trabalhando por isso com os elementos históricos mais profundos de longa duração que
propiciaram o surgimento das práticas como as que se observam no movimento iurdiano;
enfatiza-se bastante o “estrangeirismo” de algumas práticas, como a Teologia da
Prosperidade, como se o campo religioso brasileiro fosse mais um receptáculo de reprodução
de experiências externas, sem que seja diretamente produtor desses bens simbólicos; essas
novas expressões se projetam por um processo de adaptação ou acomodação aos novos
valores da sociedade, como uma “religião de mercado”, em que “produtores” e
“consumidores”.
O trabalho do sociólogo Leonildo Silveira Campos, intitulado Teatro,
Templo e Mercado,
31
originalmente uma tese de doutorado, posteriormente publicado,
consiste numa análise minuciosa da Igreja Universal do Reino de Deus em que se destacam
a partir das figuras empregadas no título a maneira como o sagrado é ritualisticamente
vivenciado nas práticas desse segmento religioso e, principalmente, as estratégicas de
mercado empregadas por essa igreja. Não obstante os valores da pesquisa, sobretudo pelo
trabalho de campo realizado, a IURD é descrita mais como um empreendimento que lança
mão de estratégias de propaganda e marketing, gerenciamento empresarial e investimento
pesado no uso dos meios de comunicação de massa para obtenção de seus resultados,
principalmente em relação às camadas mais periféricas da sociedade brasileira. A Universal,
inserida num mercado de bens simbólicos, é apresentada como tendo seu foco voltado às
necessidades do cliente, demonstrando agilidade no lançamento de novos produtos. O
trabalho de Campos, portanto, não se propõe a investigar os elementos culturais de longa
duração que configuram as expressões religiosas do país e que possibilitaram o êxito e a
sustentação das práticas que hoje se observam no movimento iurdiano.
31
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal. Petrópolis: Vozes, 1997.
26
O trabalho Igreja Universal do Reino de Deus, os novos conquistadores da
,
32
apresenta uma coletânea de artigos sobre a expansão internacional da IURD, hoje
presente em mais de 100 países. Destaca que essa expansão “efetuou-se graças a um
verdadeiro império financeiro, midiático e, às vezes, político”, mas também graças à sua
grande capacidade de adaptação às diversidades locais. Rapidamente ela superou
numericamente outras igrejas multinacionais, mantendo brasileiros nos postos de comando na
maioria dos países. Destaca-se, na presente obra, que a IURD procura mobilizar um
imaginário globalizado em diferentes lugares, porém, flexível para encontrar outras
representações do Diabo e seus demônios visando a obtenção de ressonância de sua
mensagem. Assim, internacionalmente, a fórmula “made in Brazil” iurdiana se apresenta sob
cores de mestiçagem, fazendo que os pastores se adaptem às condições locais de cultos
carismáticos. Naturalmente, analisar como a IURD consegue êxito em outros contextos
culturais, diferentes daquele que lhe deu origem em solo brasileiro, apresenta-se uma
temática instigante para pesquisas. Porém, no trabalho aqui proposto, a meta é investigar o
espaço e as circunstâncias que lhe propiciaram originalmente surgimento e projeção, ou seja,
estabelecer como recorte ao campo religioso-cultural brasileiro.
Hélide Maria S. Campos, em dissertação de mestrado de Comunicação
Social, posteriormente publicada com o título Catedral Eletrônica, analisa a Igreja Universal
do Reino de Deus como “igreja eletrônica”, ou seja, a nova tendência de mudança da igreja
para o interior dos lares. A autora se propõe a compreender como interagem comunicadores e
destinatários frente às câmeras de TV, “pois muitas pessoas trocaram os bancos das igrejas
pelo confortável aconchego de seus sofás”.
33
Entretanto, não obstante ao recorrente uso da
TV para a veiculação de sua mensagem, a IURD não deve ser classificada como “igreja
eletrônica”, pois o próprio bispo Edir Macedo faz questão de posicionar-se contrário a essa
idéia. Em entrevista concedida à revista Veja, o bispo afirmou que os “televangelistas
eletrônicos” oferecem espetáculos, que geram pessoas acomodadas em casa e por comodismo
deixam de ir aos templos: “Sou contra a igreja eletrônica do tipo das existentes nos Estados
Unidos, em que o pastor fica no vídeo e as pessoas o assistem em casa, distraindo-se com a
campainha da porta ou com o gato que mia. Na minha igreja preferimos o contato direto com
o povo”.
34
32
CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre; ORO, Ari Pedro (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os
novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 23.
33
CAMPOS, Hélide Maria Santos. Catedral eletrônica. Itu – SP: Ottoni Editora, 2002, p. 14.
34
Revista Veja, São Paulo, p. 30, 14 nov. 1990.
27
Outra obra publicada, Conversão ou Adesão: uma reflexão sobre o
neopentecostalismo no Brasil, de Estevam Fernandes de Oliveira,
35
consiste numa dissertação
de mestrado em Sociologia, que se propõe a mostrar como o neopentecostalismo,
especialmente a IURD, caracteriza-se pela identificação com a cultura religiosa brasileira a
qual combina elementos do catolicismo, religiões dos escravos africanos e crenças indígenas,
que formaram um “sincretismo”, dando origem a uma matriz simbólica, um núcleo comum.
Nesse caso, segundo o autor, não haveria nas propostas da IURD uma conversão”, e sim,
uma “adesão” continuada, sem rupturas com aquele universo cultural matriz, facilitada pelo
sincretismo. Dois principais limites podem ser observados nessa perspectiva adotada pelo
autor: primeiro, o emprego do termo “sincretismo”; segundo, a idéia de uma “continuidade”
das práticas iurdianas. É preciso ir além destes aspectos, pois a IURD, mesmo sendo
combinação de elementos, não é “continuidade”, não é simples cisão, ela se apropria de
elementos do campo e cria algo absolutamente novo. De igual modo é preciso haver cuidado
com o emprego do termo “sincretismo”, pois, no caso do campo religioso brasileiro,
“aculturação” ou “hibridismo” se tornam conceitos mais plausíveis para análise, como o
veremos mais adiante nesta pesquisa.
Ronaldo Almeida, em artigo intitulado A Universalização do Reino de
Deus,
36
analisa o discurso religioso elaborado pela IURD assim como o seu expressivo
crescimento. Destaca os conflitos com a Rede Globo de televisão e com a Igreja Católica
durante o segundo semestre de 1995; a partir do que são apresentados os elementos internos
da IURD e de que maneira rege sua relação com a sociedade. Falando mais especificamente
sobre o perfil dessa igreja, afirma-se que
Sobre o tripé c ura, exorcismo e prosperidade financei ra, e tendo o
diabo c omo a origem de todos os male s, a Igreja Universal
demarcou o seu espa ço no cenário da religiosidade popular
brasileira. Sem maiores elaborações teológicas, esta igreja, mais do
que qualquer outra denominação evangélica, elaborou uma
mensagem pa ra atender às de ma ndas mundana s imediatas.
3 7
Esse autor comete um equívoco ao afirmar que a IURD não “elabora
teologia”. Pois há, sim, em suas práticas, uma formulação teológica – diferente, é verdade, do
modelo clássico mas que se caracteriza pelo “vivido”, pela teologia “prática”, que nasce de
35
OLIVEIRA, Estevam Fernandes. Conversão ou adesão. Uma reflexão sobre o neopentecostalismo no Brasil.
João Pessoa: Proclama Editora, 2004.
36
ALMEIDA, Ronaldo R. M. A Universalização do Reino de Deus. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 44,
p. 12-23, 1996.
37
Id., ibid, p.16.
28
um imaginário filtrado pela leitura bíblica sem os crivos exegéticos dos dogmas
institucionais.
Anders Ruuth, em tese de doutorado sobre da Igreja Universal do Reino de
Deus, destaca que, dentre outros fatores, a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759, gerou
grande falta de sacerdotes e religiosos oficiais a serviço da Igreja Católica, fato este que
contribuiu ainda mais para o desenvolvimento de expressões de crenças sem maior controle
institucional, as quais teriam estabelecido o solo no qual movimentos contemporâneos, como
a Igreja Universal, fincam suas raízes. As práticas vivenciadas pela IURD poderiam ser assim
descritas revitalizações do modo
(...) como uma pessoa, livre das regras e rituais das igrejas ofic ia is,
particularmente da instituição religiosa dominante, expressa e
realiza os seus anseios religiosos, aproveitando di ferentes modelos,
antigos ou contemporâneos, cristãos e não-cristãos para buscar a
Deus. A pessoa é livre para solicitar ajuda de representantes
religiosos, preferencialmente, para presentear seus deuses como
também para ofe recer algo em troc a.
3 8
O limite de abordagem desse trabalho reside, principalmente, na
perspectiva quase apologética adotado pelo autor em determinados momentos da pesquisa:
submete as práticas iurdianas a dogmas preconizados pelo protestantismo clássico, deixando
transparecer certa defesa pessoal em relação aos mesmos. Soma-se a essa dificuldade
metodológica, o distanciamento que o autor mantém de seu objeto de análise, o que dificulta
uma observação mais “densa”, isto é, maior inserção no universo vivenciado pelo próprio
grupo, com o propósito de melhor se perceber os elementos que são plausíveis para os seus
agentes.
O trabalho de Clara Mafra, Os Evangélicos, também relaciona o
neopentecostalismo às transformações ocorridas na configuração religiosa do Brasil nas
últimas décadas, afirmando que quando do surgimento da IURD,
O Rio de Janeiro já era um celeiro de pr odução de novas
religiosida des. Entre as camadas populares, as vastas ondas
migratórias que chegaram à cidade, especialmente do nordeste ,
intensificaram o conjunto de experimentos culturais, seja com o
catolicismo popular que se misturava à umbanda e ao candomblé
cariocas; seja com o pentecost alismo clássico que se tornava mais
digerível para uma classe média a tr avés de uma maior aceitação dos
referentes do mundo (...). Profetas de todas as ordens circulavam
nos mais dive rsos m eios (...).
3 9
38
RUUTH, Anders. Igreja Universal do Reino de Deus. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, UMESP,
ano XV, n. 20, p. 85, jun. 2001. Artigo extraído da tese de doutorado em Teologia sobre a Igreja Universal do
Reino de Deus, defendida no ISEDT, Buenos Aires, maio 1995.
39
MAFRA, Clara. Os evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 37.
29
Mafra desenvolve, em seu texto, mais propriamente um mapeamento geral
do campo religioso, sem maior aprofundamento em casos específicos, como o da Igreja
Universal do Reino de Deus.
Outra análise da configuração religiosa brasileira atual é apresentada pelos
Novos Estudos CEBRAP. Nesses trabalhos, Pierucci e Prandi, afirmam que no Brasil do
último triênio, a vida religiosa mudou e tem mudado em um grau, uma extensão e uma
velocidade nunca vistos em nossa história”. Ressaltam ainda que este processo, do qual
participam o pentecostalismo, o kardecismo e a umbanda, “é a contraface do declínio e da
erosão da religião dominante tradicional, o catolicismo”, e acrescentam:
O panorama r eligioso br asileiro tem mudado não só porque há
pessoas que desertam de seus deuses tradicionais laicizando suas
vidas e se us valor es, mas também porque há outr as que em número
crescente aderem a novos deuses, ou então redescobrem seus
velhos deuses em novas mane iras.
4 0
O antropólogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, na obra Avanço Pentecostal e Reação Católica, considera três ordens de fatores
responsáveis pelo crescimento evangélico no Brasil, nos últimos anos. O primeiro fato se
deve à ação evangelizadora das próprias igrejas evangélicas que “se atualizaram, tornaram-se
empreendedoras, aproveitando os recursos da técnica e da modernidade para uso evangélico.
Na seqüência vem o momento histórico favorável, e o que o que Oro descreve como
“esgotamento de modelo religioso”. “Num país historicamente católico a existência de um
ambiente social de tolerância religiosa favoreceu a expansão dos evangélicos, bem como de
outras expressões religiosas” declara. E, em terceiro lugar, “um certo esgotamento de um
modelo religioso histórico implantado no Brasil que abriu espaços para outras possibilidades
de modos de ser religioso que as igrejas evangélicas souberam ocupar.
41
O trabalho de Oro
contribui para análise do crescimento do pentecostalismo, sobretudo pelo viés antropológico
adotado o qual valoriza a apropriação pelas novas expressões evangélicas do que chama de
“repertório simbólico”. Porém, a obra não apresenta uma observação mais ampla do
movimento iurdiano, pois prioriza um estudo de caso: o Estado do Rio Grande do Sul.
Outras abordagens de cunho mais acadêmico, que primam bastante pelo
viés sociológico, tendem a associar o advento de tal religiosidade a questões de ordem mais
econômica ou social, apontando para a miséria, a falta de educação, saúde e o não
atendimento satisfatório por parte do Estado das necessidades do ser humano crises que se
40
PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. Religião popular e ruptura na obra de Procópio Camargo.
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 17, p. 30, 1987.
41
ORO, Ari Pedro. O avanço pentecostal e reação católica. Petrópolis: Vozes, 1996.
30
agravaram sobre o país nas últimas décadas - como responsáveis pela recorrência a tais
práticas. Assim, a antinomia “riqueza-pobreza” continua a ser recorrentemente utilizada para
análise do pentecostalismo em suas diferentes tipologias como forma de se conviver ou se
combater a pobreza, como o demonstram os trabalhos de Cecília Loreto Mariz e de Maria das
Dores Campos Machado. Afirmam essas autoras que a extrema privação gera uma sensação
de baixa estima, exclusão, insegurança e que as religiões pentecostais oferecem experiências
que ajudam a superar esses sentimentos e a restabelecer a dignidade do pobre de diferentes
maneiras.
42
Os sociólogos Richard Shaull e Waldo César igualmente representam bem
tal perspectiva, quando afirmam que o neopentecostalismo se apresentou como uma forma
encontrada pela grande massa populacional para superar suas contingências do dia-a-dia:
O aglomerado humano pr esente nos t empl os, sejam membr os ou
simples a gregados, é constituído de homens e mulheres partícipes da
grande multidão que circ ula nas ruas da cidade, dos pobres que
formam o gr osso da população brasileira.
4 3
Segundo o antropólogo Otávio Velho, “o crescimento tanto do poder de
influência como de prestígio da IURD” são provenientes da forma como ela conseguiu estar
presente no dia-a-dia das pessoas além de ajudá-las a organizar suas vidas em família. Outro
fator determinante é que a igreja deixou de ser, para a sociedade, local apenas para os pobres
ou problemáticos, tendo alcançado também outras camadas sociais. Ela consegue auxiliar a
população na resolução de seus problemas, principalmente nesses anos de tantas mudanças
no país. Esses locais têm servido de referência para o indivíduo não apenas na vida espiritual,
mas também na área social.
44
Em entrevista ao jornal Folha Universal, o autor afirma que,
“no momento, as pessoas não estão mais dispostas a dar jeitinhos através da dependência de
santos e promessas. Querem é ser respondidas por Deus”.
45
Contudo, de se ressaltar que o neopentecostalismo representado pela
IURD agrega hoje entre seus adeptos pessoas dos mais variados níveis econômicos e sociais:
desde um contingente que se concentra nas grandes periferias até artistas famosos e
empresários bem sucedidos. Isso deixa evidente que nas práticas ali desenvolvidas a
42
MACHADO, Maria das Dores Campos; MARIZ, Cecília Loreto. Sincretismo e trânsito religioso:
comparando carismáticos e pentecostais. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, n. 45, ano 13, 1994.
43
SHAULL, Richard; CESAR, Waldo. O pentecostalismo e o futuro das igrejas cristãs. Petrópolis: Vozes: São
Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 45.
44
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 106, p. 70, 2004.
45
Folha Universal, Rio de Janeiro, n. 631, 09 maio 2004.
31
clivagem cultural não coincide com a estratificação social”.
46
Nesse sentido, Paulo Bonfatti,
psicólogo, acredita que um dos pontos favoráveis ao crescimento da aceitação da Universal
na sociedade foi sua facilidade de adaptação com a linguagem e os costumes do país. Além
disso, afirma que a presença dela na mídia também pode ser apontada como de grande
organização, pois gera um efeito positivo. A igreja mudou sua própria linguagem e ficou
mais sintonizada com a classe média. A própria estética da programação em suas mídias
passou a abordar discussões mais elaboradas, com a presença de especialistas. Acredita que
esteja ocorrendo um fenômeno bilateral em relação a Universal. As classes mais altas estão
tendo maior simpatia pela Igreja Universal porque ela está mudando seu discurso e por sua
vez, o discurso da IURD está mudando pela demanda das classes mais altas.
47
As incursões feitas por diferentes autores, anteriormente destacadas,
apontam elementos importantes que marcam a atual configuração do sagrado no campo
religioso brasileiro. Porém, não obstante as contribuições de análise para os propósitos mais
específicos de suas respectivas áreas de conhecimento, esses trabalhos apresentam dois
principais limites: primeiro, não avançam no âmbito cultural, e isso impossibilita uma
compreensão mais profunda do que ocorre nas práticas da Igreja Universal do Reino de
Deus;
48
segundo, não utilizam parâmetros teórico-metodológicos mais propriamente
historiográficos para investigação das fontes disponíveis para análise deste objeto. Em outras
palavras, uma lacuna de pesquisas com perspectivas mais propriamente historiográficas,
sobretudo pelo viés da cultura, na abordagem de tal temática. Nesse sentido, vale citar
Ronaldo Vainfas quando observa que “nossos historiadores” quase não se dedicaram ao
estudo das “religiosidades”, “traço essencial da história e da vida do Brasil”, deixando assim
uma “lacuna que prejudica a compreensão histórica de nossa sociedade”:
Não deixa de ser intrigante essa lacuna, sendo o Brasil até hoje
embebido de religião, país católico onde se multiplicam se itas
protestantes e onde o sincretismo religioso está em toda parte, como
na Umbanda carioca. Isso sem falar nas africa nidades, como o
candomblé baiano, e noutros ri tos de mor fologia comple xa, como os
catimbós tradicionais ou o moderno Sa nto Daime. É evidente o
46
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente. Lisboa:
Editorial Estampa, 1980, p. 210.
47
BONFATTI, Paulo. A expressão popular do sagrado. São Paulo: Paulinas, 2000.
48
Algumas abordagens que têm acenado, neste sentido, para um viés mais antropológico, podem ser observadas
nos seguintes trabalhos: no levantamento feito por Luiz Eduardo Soares, no artigo A guerra dos pentecostais
contra o afro-brasileiro; dimensões democráticas de conflitos religiosos no Brasil”. Cadernos do ISER, Rio de
Janeiro, n. 44, ano 12, 1992; na análise feita por Pierre Sanchis “O repto pentecostal à cultura católico-
brasileira”. In: ANTONIAZZI, A. et al. Nem anjos nem demônios. Interpretações sociológicas do
pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1996; no artigo de Otávio VELHO, “Globalização: antropologia e religião”.
Mana, vol. 3, n. 1, 1997. Nesses trabalhos pode-se observar um processo de “pentecostalização” do campo
religioso brasileiro.
32
contraste entr e a força de nossa religiosidade e a de satenção de
nossa historiografia.
4 9
É preponderante, portanto, uma investigação de âmbito histórico-cultural
50
em relação às práticas e representações que são vivenciadas pelo segmento iurdiano a partir
do compósito de tradições configuradas em capital simbólico, no campo, para compreender
os elementos culturais que dão sustentação a tais práticas e que orientam o comportamento
coletivo; analisar o universo da crença que possibilita tais representações e entender como se
acredita nas práticas ali vivenciadas; compreender o campo social dos objetos simbólicos
utilizados pela IURD, estabelecendo os referentes sociais dos símbolos presentes, a fim de
perceber a sua eficácia no âmbito do grupo e a coesão dada às práticas que ali ocorrem.
51
Pensando-se então em avançar nesse alcance explicativo, através de
criterioso exame da documentação disponível, é imprescindível estar atento às manifestações
que tornam a IURD distintiva: sua relação profunda com a matriz cultural-religiosa brasileira,
com práticas que demonstram coerência com as regras do campo, em um processo de
apropriação com criativa resignificação de fertilíssimos elementos de um passado de longa
duração. Em outras palavras, suas práticas estão fincadas nos substratos de elementos
trazidos pelo catolicismo português, pelas religiões dos escravos africanos e pelas crenças
indígenas estabelecidos no campo desde os tempos do Brasil colonial. Essa combinação deu
origem a um pluralismo com intercâmbios, formando uma matriz simbólica, um núcleo
comum. O eixo principal consiste, portanto, no fato de que existe uma matriz simbólica
representativa da religiosidade folclórica brasileira, que foi historicamente formada a partir
das interpenetrações dessas três grandes culturas responsáveis pela formação do ethos
brasileiro. Dessa forma, em sua fluidez de reelaborações, a IURD assume positivamente as
religiosidades folclóricas, ao contrário do catolicismo institucional desenvolvido no país, que
trabalhou tais expressões como um fundo rebelde; diferentemente do protestantismo clássico,
que optou pelo combate ou rejeição de tais elementos; e, até mesmo, do próprio
pentecostalismo tradicional que, não obstante apresentar algumas aproximações com a
49
Folha de S. Paulo, São Paulo, 02 abr. 2000.
50
Um exemplo disto pode ser observado no trabalho de Natalie Z. Davis, quando analisa os ritos religiosos de
violência praticados na França no século XVI e supera a compreensão de âmbito econômico-social que havia
sido predominante a os anos de 1960, ao considerar tais fenômenos pelo viés da cultura, afirmando que os
mesmos estavam relacionados a um “estoque de tradições” que configurava o imaginário daquele período. Eram
ações carregadas de simbolismo e de representação. Cf. DAVIS, Natalie Z. Ritos de violência. In: Culturas do
povo: sociedade e cultura no início da França noturna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 129-172.
51
Evitando aqui o longo debate sobre as possíveis diferenças entre os conceitos de símbolo, signo e sinal, ao
empregarmos aqui os termos “ritos e símbolos” referindo-se a todo objeto usado, todo gesto realizado, todo
canto ou prece, toda unidade de espaço e de tempo que representa alguma coisa diferente de si mesma. Cf.
TURNER, Victor W. O processo ritual. Estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 29.
33
experiência de possessão existente no campo, mediante “batismo com o Espírito Santo”,
ainda assim busca assegurar “o fim da dispersão identitária” quanto às expressões culturais
de religiosidades presentes no referido do campo.
52
Em conformidade com as palavras de Jacques Le Goff, de que “o
historiador tem o dever de colocar questões como eixo do seu trabalho e, em seguida, ver
como respondê-las - apoiando-se naquilo que é e continua sendo o seu material específico,
que são os documentos”
53
- cabe, então, perguntar: Que elementos culturais, relacionados ao
imaginário social, têm possibilitado a construção e a recepção das práticas e das
representações desse modelo religioso, tornando-o um mecanismo tão eficiente? Em que
contexto histórico se deu o surgimento e a projeção dessa Igreja? De que maneira e em quais
dimensões as práticas e representações vivenciadas pela IURD têm poder de orientar o
comportamento coletivo e atribuir sentido ao grupo? Ou ainda, como as práticas da IURD
promovem mutações no campo religioso brasileiro?
Buscando compreender mais profundamente algumas dessas questões, o
conteúdo da pesquisa aqui desenvolvida está distribuído em quatro capítulos. O primeiro tem
um caráter teórico-metodológico, no qual se procura estabelecer o lugar e a importância do
sagrado como objeto da Nova História Cultural. Depois de terem sido localizados os núcleos
explicativos de trabalhos que também discutem e analisam o fenômeno iurdiano, são
apontados novos parâmetros conceituais, de viés historiográfico, para a abordagem desse
tema. Os pensamentos de Roger Chartier e Pierre Bourdieu se constituem âncora do caminho
metodológico que se procura seguir. Porém, são estabelecidas interfaces com outros autores à
medida que apresentam contribuições para a investigação do tema proposto, havendo para
isto o devido cuidado acadêmico de se manter, ao longo de todo o trabalho, os parâmetros
teórico-metodológicos norteadores propostos pelos dois autores referenciais. Além disso,
nesse capítulo é feita a identificação das fontes que fundamentam a pesquisa, sendo
apresentados os procedimentos metodológicos de como serão utilizados tais documentos,
procurando-se perceber seus limites, possibilidades e problematizações para a investigação
do tema proposto.
O segundo capítulo está voltado à análise do contexto histórico-social
brasileiro, no período correspondente ao desenvolvimento do pentecostalismo. Pesquisa-se a
cultura e a sociedade brasileira, procurando mostrar quais ambientes e elementos contribuem
52
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à cultura católico-brasileira. In: ANTONIAZZI, A. et al. Op. cit., p.
47.
53
CASTRO, Celso; FERREIRA, Marieta de M.; OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Conversando com Jacques Le Goff.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 115.
34
para a “explosão” do pentecostalismo ocorrida no movimento iurdiano. Com isso, pretende-
se perceber melhor as dimensões de tempo, lugar e circunstâncias em que a IURD estabelece
suas raízes e seu alicerce histórico; compreender-se mais profundamente as latências sociais
que possibilitaram a configuração das práticas e representações vivenciadas com tanta
fertilidade no âmbito dessa Igreja. Nota-se a eficiente capacidade iurdiana, em articular o
universo simbólico, com condições objetivas de um período profundamente marcado por
crises, que se expressam, por exemplo, na urbanização e formação de grandes periferias,
globalização promotora de individualismo e dura competitividade, acelerado processo de
violência e desagregação social. Será observado que tal contexto contribuiu como um
componente externo para o surgimento e a operosidade das práticas iurdianas. Nesse capítulo,
ainda, apresenta-se um mapeamento histórico de expressões do sagrado que marcadamente
configuram o campo religioso brasileiro. Busca-se fazer um “trabalho de classificação e
delimitação” através do qual a realidade do campo foi “contraditoriamente construída pelos
diferentes grupos” que o compõem e que, de modo direto ou direto, preparam o caminho para
o advento iurdiano.
54
Com isso se pode também melhor compreender o processo de
apropriação e resignificação feito pela IURD desses compósitos culturais em relação ao
universo simbólico-ritualístico que marca as suas práticas e representações.
O terceiro capítulo investiga propriamente o surgimento da IURD e seu
impacto no país. Busca analisar as práticas que lhe deram origem, possibilitaram-lhe
desenvolvimento, projeção e grande visibilidade social. Seguindo uma das formulações
postuladas por Chartier para a História Cultural, quer-se observar as “formas
institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns ‘representantes’ (instâncias coletivas ou
pessoas singulares) marcaram de forma visível e perpetuadas a existência do grupo ou da
comunidade”
55
iurdiana. Serão procuradas respostas a perguntas como: que “sistemas de
disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita, que funcionam como um
sistema de esquemas geradores de comportamento...”,
56
promoveram transformações na
configuração religiosa do Brasil? Quais dinamismos da história possibilitaram tais mutações?
Procura-se mostrar ainda o lado objetivo da IURD: sua estrutura, organização, crescimento;
sua força no campo: impactos, mutações, conflitos, novidades, modificações; a sua
originalidade, sua teologia inovadora e promotora de disputas; as dimensões de rompimento
com o protestantismo e mesmo com pentecostalismo clássico. O fato é que, ao se apropriar
54
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Difel: Lisboa, 1990, p. 22.
55
Ibid.
56
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 94.
35
de elementos de uma matriz cultural-religiosa, a IURD realiza um eficaz rearranjo do campo
religioso brasileiro, ao passo que também promove uma evolução interna do protestantismo,
através da formação de um habitus pentecostal específico.
O quarto capítulo é dedicado ao elemento das “representações” vivenciadas
por esse segmento religioso. Quer-se compreender o seu dinamismo interno, os mecanismos
representacionais e o universo simbólico que orientam o comportamento coletivo no âmbito
da IURD. Busca-se entender o conjunto de “disposições adquiridas” o qual faz que “os
agentes que as possuam, comportem-se de uma determinada maneira, em determinadas
circunstâncias”,
57
e como esse foi interiorizado pelos adeptos da IURD, tornando-se gerador
de suas ações. A partir de densa pesquisa de campo, quer se aprofundar nos bastidores desse
movimento, as vivências internas do seu funcionamento: suas especificidades, crenças e
comportamentos; seu universo simbólico, a resignificação dos ritos e símbolos, magia, a
teatralização, os exorcismos, os dízimos. Assim, o capítulo investiga os mecanismos culturais
de produção, consagração e circulação dos bens simbólicos no âmbito dessa Igreja; os ritos e
os símbolos como linguagem incorporada na vivência diária de líderes e fiéis. Destaca-se
ainda, em tal processo, que o carisma, por exemplo, transforma-se ali em poder simbólico,
ganhando projeção nas representações que envolvem os líderes.
Em síntese, a pesquisa desenvolvida percorre o seguinte caminho
metodológico na composição de seus capítulos: no primeiro, são construídos os referenciais
teórico-metodológicos para análise do objeto em estudo; no segundo, a localização do objeto
no seu devido tempo e espaço social, com o mapeamento do campo religioso em que se
constituiu todo o compósito cultural em que a IURD finca suas raízes e do qual se apropria
para desenvolver suas práticas; no terceiro capítulo, a descrição e análise do surgimento da
IURD, sua organização, crescimento, originalidade e impactos modificadores no campo
religioso; e, por fim, a investigações das vivências e especificidades internas, os carismas, as
crenças e o universo simbólico resignificado que orienta o comportamento coletivo de seus
adeptos. Em linhas gerais, mediante intensivo trabalho de campo, com observações
participantes nos cultos e reuniões promovidos pela Igreja, além de uso de outras fontes
primárias, analisa-se o eficiente processo de apropriação e resignificação, ou até mesmo de
desnaturação, que a IURD faz em suas práticas de elementos simbólicos culturalmente
dispostos no campo religioso. Tornando-se linguagem, tais sistemas simbólicos são capazes
de orientar comportamento, atribuir sentido e coletivamente conferir identidade aos que
57
Id., Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 21, 98.
36
integram esse segmento religioso, ou seja, investigam-se “as práticas que visam fazer
conhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar
simbolicamente um estatuto e uma posição”.
58
Observa-se que a investigação aqui desenvolvida procura manter o devido
cuidado quanto a um possível juízo de valor, a partir de qualquer referencial de ortodoxia ou
concepção teológica, em relação às práticas e representações vivenciadas pela Igreja
Universal do Reino de Deus. Até porque, segundo Durkheim, não religiões que sejam
falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira. Todas respondem, ainda que de maneiras
diferentes, a determinadas condições da vida humana”.
59
O que se objetiva, portanto, é
compreender como na IURD, através de uma história cultural, “o presente pode adquirir
sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço, decifrado”.
60
Assim, ao pesquisador de temas
religiosos cabe não a preocupação com a “verdade” ou “falsidade” dos elementos que
envolvem seu objeto de pesquisa, mas, ao contrário, a compreensão de que as crenças e as
experiências com o sagrado consistem em práticas culturais e sociais, devendo ser, por isso
mesmo, historicamente investigadas.
58
CHARTIER, R. Op. cit., p. 22.
59
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 31.
60
Id., ibid., p. 17.
37
1 PARÂMETROS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA UMA HISTÓRIA
CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS
1.1 - O lugar do sagrado na História Cultural
O desenvolvimento da Igreja Universal do Reino de Deus coincide com um
período de significativas transformações no campo da pesquisa historiográfica. Assim, a
localização desse objeto em tal contexto se torna oportuna, pois, devido a seu alcance social e
cultural, representa oportunidade do emprego de novas perspectivas conceituais e
metodológicas conquistadas pela historiografia para a abordagem do sagrado.
Foi mais especificamente a partir dos anos 1960 e 1970 que a História
Social adquiriu grande projeção, levando historiadores a optativamente recorrer ou então
estabelecer interfaces com conceitos e métodos de outras áreas do conhecimento, como a
Sociologia e a Antropologia. Esses novos rumos da História, tributários de trocas
interdisciplinares, vieram a se consolidar na década de 1980, com o surgimento da Nova
História Cultural, fazendo que abordagens de temas voltados à religiosidade com maior
alcance popular ganhassem evidência nessa área de conhecimento, com estreitas
aproximações dos elementos da cultura.
61
Essa dimensão simbólica e suas interpretações
passaram a constituir, portanto, um terreno comum sobre o qual se debruçam historiadores,
multiplicando-se assim os possíveis objetos de estudo:
O terreno comum dos historiadores da c ultura pode ser descrito
como a preocupação com o simbólico e suas interpretações.
Símbolos, conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os
lugares, da arte à vida cotidia na (...).
6 2
Roger Chartier, ao se referir às mudanças temáticas na historiografia, nesse
período, destaca que a religião ganhou evidência para pesquisa nesse campo do
conhecimento:
O desafio lançado à história pelas novas disc ipli nas (de um forte
capital social) assumiu diversas f ormas (...) desviando a atenç ão das
hierarquias para as relações, das posições par a as representações
(...). Daí a emergência de novos objectos no seio das questõe s
históricas: (...) as crenças e os comportamentos re ligiosos (...). O
que representou a constituição de novos territórios do historiador
(...) fato este que representou um retorno a uma das inspi ra ções
fundadoras dos primeiros Annales dos anos 30.
6 3
61
Peter Burke afirma que desde o “final do século XIX alguns historiadores profissionais estavam descontentes
com o domínio do político”. Cf. BURKE, Peter. Sociologia e História. Porto: Edições Afrontamento, 1980, p.
19.
62
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR Editor, 2004, p. 10.
63
CHARTIER, R. Op. cit., p. 14.
38
Definindo ainda mais detalhadamente esses novos alcances temáticos da
historiografia, a partir de uma “história cultural ancorada em uma sociologia histórica da
cultura (...)”,
64
Chartier apresenta como parte de suas proposições “compreender as práticas,
complexas, múltiplas, diferenciadas, que constroem o mundo como representação”:
Por um lado é pre ciso pensá-la como a análise do tra balho de
representação, isto é, das classifica ções e das exclusões que
constitue m, na sua diferença r adical, as configurações soc ia is e
conceituais própr ias de um tempo e de um espaço. (...) Por outro
lado, esta história de ve ser entendida como estudo dos processos
com os quais se constr ói um sentido. (...) Dirige-se às prátic as que,
pluralmente, c ontradit oriamente, dão significado ao mundo. (...)
Compreender estes enraizamentos tendo em conta as especificidades
do espaço própr io das práticas culturais. (...).
6 5
A investigação historiográfica também passou a enfocar dimensões mais
amplas de poder:
Poder e política passam assim ao domínio das representações
sociais, coloca-se como prioritária a problemática do simbólic o
simbolismo, f ormas simbólicas, mas sobretudo o poder simbólico,
(...). O estudo do político vai compreender a partir da í não mais
apenas a polític a em seu se ntido tradicional, mas e m nível da s
representações sociais ou coletivas, as mentalidades, bem como as
diversas práticas discursivas assoc iadas ao poder.
6 6
[grifo nosso]
Comentando essas novas dimensões de poder, presente nos novos temas e
abordagens investigativas suscitadas pela Nova História, Francisco Falcon comenta:
Restaria, por último, tentar perceber a presença do poder em obras
sobre bruxaria, magia, se xualidade, cotidiano e outros tópicos
pertencentes a esse c onjunto genericamente rotulado de história das
mentalidades.
6 7
Observa ainda Chartier que os mecanismos reguladores do funcionamento
social e as práticas que promovem as relações e tecem os vínculos entre os indivíduos, “são
todos ao mesmo tempo ‘culturais’”, que traduzem em atos as maneiras plurais como os
homens dão significação ao mundo que é o seu. Portanto, “toda história, quer se diga
econômica, social ou religiosa, exige o estudo dos sistemas de representação e dos atos que
eles geram. Por isso ela é cultural”.
68
Destaca-se, também, como vocação desse campo do
saber:
64
FALCON, Francisco. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História.
Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 76.
65
Id., ibid, p. 27, 28.
66
CHARTIER, R. Op. cit., p. 14.
67
FALCON, F. Op. cit., p. 89.
68
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Edunesp, 2003, p. 18.
39
A história cultura l é a que fixa o estudo das formas de
representação do mundo no seio de um grupo humano cuja natureza
pode varia r nac ional ou regional, social ou política e de que
analisa a gestação, a expressão e a tra nsmissão. Como é que os
grupos humanos representam ou imaginam o mundo que os rodeia?
Um mundo figurado, codificado, contornado, explicado e
parcialmente dominado, dotado de sentido (pelas crenças e os
sistemas religiosos ou profanos, e me smo mitos), um mundo legado,
finalmente, pel as transmissões devidas ao meio, à educaç ão, à
instrução.
6 9
Em sua obra Variedades de História Cultural,
70
Peter Burke ressalta que,
mesmo não havendo “concordância sobre o que se constitui história cultural, menos ainda
sobre o que constitui cultura”, tem ocorrido atualmente uma ascensão dos “estudos culturais”
em diferentes abordagens que envolvem as áreas de humanidade e sociedade, com
abrangência hoje de um “enorme campo”.
71
Esse mesmo autor chama de “virada cultural” a
emergência dos aspectos culturais do comportamento humano como centro privilegiado do
conhecimento histórico: uma guinada sofrida pelos estudos históricos, abandonando um
esquema teórico generalizante e movendo-se em direção aos valores de grupos particulares,
em locais e períodos específicos. Observa ele que esse modo de compreender a história
resultou em um certo abandono dos esquemas teóricos generalizantes com valorização de
grupos particulares, em locais e períodos específicos: “assim, surgiram trabalhos sobre
gênero, minorias étnicas e religiosas, hábitos e costumes, incorporando metodologias e
conceitos de outras disciplinas”.
72
Afirma ainda que o termo “cultura” continua sendo de difícil definição ou
conceituação, tanto quanto o é, também, prescindi-lo. Comenta que em meados do século
XIX, ou ainda na segunda década do XX, a idéia de cultura parecia dispensar maiores
explicações, era entendida como arte, literatura, figuras, motivos, temas, sentimentos,
elementos esses encontrados na tradição ocidental a partir dos gregos. Assim a definiam
historiadores como Mattheu Arnold, Jacob Burkchardt e Johan Huizinga. Em suma, cultura
era algo que alguns grupos em algumas sociedades tinham, embora faltasse a outros.
Para Burke, a conceituação cultural clássica não deve ser o modelo para a
História Cultural de hoje pelo fato de não lidar de maneira satisfatória com algumas
dificuldades, sendo possível apontar-lhe pelo menos cinco objeções. Primeiro, tende a ignorar
69
RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Orgs.) Para uma História Cultural. Rio de Janeiro: Editorial
Estampa, 1998, p. 20.
70
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.11-37; 231-
267.
71
Id., ibid., p. 234.
72
BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 10.
40
a sociedade ou dar pouca ênfase a ela, demonstrando uma ausência de fundamentos quanto à
infra-estrutura econômica, estrutura política e social na maneira como é postulada. Segundo,
apresenta dependência do conceito de unidade ou consenso cultural. Argumenta-se que não é
possível falar em consenso e homogeneidade culturais, pois tanto no que se convencionou
chamar de cultura elitizada como na chamada cultura popular, variações e divisões, como
por exemplo, de uma região para outra, entre homens e mulheres, entre ricos e pobres etc.
Terceiro, havia a idéia de herança ou legado cultural pela tradição, pressupondo que a
recepção do que fora dado não sofria variações. Pondera-se que a cultura é marcada por
variações, transformações, modificações. Quarto, adota a idéia de cultura implícita,
convencionando-se estabelecer como cultura a “alta cultura”; por isso, atualmente, os
historiadores devem, segundo ele, buscar recuperar a história da cultura das pessoas
chamadas comuns. E por último, a História Cultural clássica foi escrita pelas elites européias
a respeito de si mesmas. Não pode haver uma única grande tradição, um monopólio de
legitimidade cultural. Ressalta ainda que é preciso que os historiadores reconheçam cada vez
mais o valor de outras tradições culturais em vez de encará-las como barbarismo ou ausência
de cultura. Hoje, o apelo da História Cultural é mais amplo e diversificado em termos
geográficos e sociais. A história precisa ser reescrita a cada geração a fim de que o passado
continue a ser inteligível para um presente modificado.
Peter Burke considera cinco aspectos que marcam este novo viés
historiográfico da cultura. Primeiro, ao se tornar bastante tributária da Antropologia, a Nova
História Cultural promove uma redescoberta da importância dos símbolos na história, o que
costuma ser chamado de “antropologia simbólica”. Assim, a história pode se tornar uma
tradução da linguagem cultural do passado para o presente, dos conceitos da época estudada
para os de historiadores e seus leitores contemporâneos. Segundo, possibilita uma redefinição
de cultura em relação ao modelo clássico, ampliando o seu sentido: não apenas o escrito, mas
o oral; não apenas o drama, mas o ritual; não apenas a filosofia, mas as mentalidades das
pessoas chamadas comuns. Burke cita Pierre Bourdieu ao ressaltar que “A vida cotidiana ou
a ‘cultura cotidiana’ é fundamental para essa abordagem, sobretudo as ‘regras’ ou
convenções subjacentes à vida cotidiana”, e acrescenta: “Como sugere Bourdieu, o processo
de aprendizagem inclui um padrão mais flexível de respostas a situações que ele chama de
‘habitus’”.
73
Em terceiro lugar, compreende que as tradições não persistem automaticamente.
Citando o conceito de “reprodução cultural”, empregado por Pierre Bourdieu, Burke destaca
73
BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 247.
41
que as tradições não persistem automaticamente, havendo, pois, necessidade de um grande
esforço para transmiti-la. A recepção se de forma criativa: tudo o que se transmite, muda.
Assim, é melhor falar em apropriação criativa, ao invés de transmissão. Com isso, a ênfase
deve estar no receptor, mais do que no doador. Os receptores, de maneira consciente ou
inconsciente, interpretam ou adaptam idéias, costumes, imagens e tudo o que lhes é
oferecido. Um quarto aspecto é que passa a haver um interesse cada vez maior pela história
das “representações”, da construção, invenção e imaginação coletiva, desenvolvida a partir da
história das mentalidades. E, finalmente, aponta para o fato de que é preciso que se tenha o
devido cuidado no emprego do termo “sincretismo”, o qual tem sido bastante utilizado por
especialistas da religião, pressupondo hibridismo ou fusão cultural, em mão dupla. No caso
do Brasil, por exemplo, “pluralismo” ou hibridismo” talvez seja melhor que sincretismo,
pois “as mesmas pessoas podem participar das práticas de mais de um culto religioso”
lembra esse autor. Ressalta ainda Peter Burke
74
ser uma das vocações da História Cultural
voltar-se para a investigação das crenças e práticas religiosas cotidianas, dos rituais e das
orações dos “leigos”, dos desvios à ortodoxia, dos aspectos não-oficiais e informais.
Ronaldo Vainfas reconhece esse novo espaço ocupado pelo sagrado,
afirmando que a Nova História Cultural “revela especial apreço, tal como a história das
mentalidades, pelas manifestações das massas anônimas (...) e sobretudo pelo popular (...) as
crenças heterodoxas”.
75
Acrescenta esse autor:
Múltipla, densa e instigante, a te ia que liga a s dive rsas religiões às
diferentes e possíveis formas de religiosidades tem demonstrado ser
um campo fértil para continuadas reflexões teóric o-metodológicas e
investiga ções historiográfica s.
7 6
Rioux e Sirinelli também destacam esse “recomeço dos trabalhos no âmbito
cultural” com interfaces do religioso na história contemporânea:
Latências e hiatos do presente passaram a aspirar pe lo cultural. Sã o
contribuições que se confluíram em prol da história cul tural: a
história reli giosa passou a viver mais intensamente a t ensão que a
liga a o c ultura l; a história dos signos, das marca s e dos símbolos, a
das sensibi lida des e dos desvios ganhou impulso (...).
7 7
Esse novo viés investigativo passou a contemplar a “história das práticas culturais”, que
apresenta a densidade de um sócio-cultural firmemente fixado no
horizonte da investiga çã o, revisitando a religião vivida, as
74
Id., ibid., p. 109 - 128.
75
Id., ibid., p. 148, 149.
76
Id., ibid., p. 352.
77
RIOUX, J. - P. ; SIRINELLI, J. - F. (Orgs.). Op. cit., p. 19, 20.
42
sociabilidades, as memórias particulares, as promoções identitárias
ou os usos e costumes dos grupos humanos.
7 8
[grifo nosso]
O fenômeno religioso passou a ganhar, assim, espaço privilegiado para a
investigação historiográfica pelo viés cultural. Parafraseando o título de uma obra organizada
por Jacques Le Goff, pode-se dizer que tais historiadores se voltam a “novos objetos, novos
problemas e novas abordagens”.
79
Em capítulo produzido nessa mesma obra, Dominique
Julia observa que todo objeto histórico é construído pelo historiador e que por isso o mais
se atribui um domínio diferente e específico para o objeto “religião”, entre os historiadores.
80
E, ainda em relação às conexões e proximidades dos elementos cultural e religioso, é possível
afirmar que o historiador
deve c ompreender o significado, quer dizer que deve identificar e
iluminar as situações e as posiç ões que induziram ou tornaram
possíve l o aparecimento ou o tr iunfo desta forma religiosa num
momento pa rticular da histór ia. Isso constitui a verdadeira função
cultural do histori ador das religiões.
8 1
Utilizando como exemplo de análise o que chama de “o modelo de
encontro”, Burke afirma que nos últimos anos os historiadores culturais têm se interessado
cada vez mais por encontros e também por choques, conflitos, competições e “invasões”
culturais, sem minimizar os aspectos destrutivos desses contatos. O que se tem enfatizado é a
maneira como as partes envolvidas em um determinado encontro cultural percebem,
entendem, ou não, umas às outras. Desse modo, torna-se necessário considerar o processo de
assimilação em via de mão dupla, mediante conflitos, circularidades e empréstimos culturais.
O emprego do termo “cultural”, pois, em seu viés historiográfico, dever
abarcar de forma ampla e abrangente o contexto de uma determinada sociedade, como afirma
L. Hunt:
As relações econômicas e sociais não são anteriores às cultura is,
nem as determinam; elas próprias são os campos de prática c ultural
e produção cultur al o que não pode ser dedutivamente explic ado
por referência a uma dimensão extra cultural da experiência.
8 2
Conforme Roger Chartier propõe, as configurações culturais e produções
sociais – que têm dimensão histórica - devem ser concretamente investigadas, sem que haja a
78
Id., ibid., p. 21, 22.
79
LE GOFF, Jacques (Org.) História, novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
80
Id., ibid., p. 106 - 136.
81
ELIADE, Mircea. La nostalgie es origines: méthodologie et histoire des religions. Paris: Gallimard, 1978, p.
18.
82
HUNT, Lynn (Org.) A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 9.
43
designação do cultural como um domínio particular de produções e de práticas, supostamente
distinto de outros níveis, do econômico do social ou político:
A cul tura não est á acima ou ao lado das relações econômicas e
sociais, e nã o existe prá tica que não se articule sobre as
representações pelas quais os indivíduos constroem o sentido de sua
existênci a um se ntido inscr ito nas palavras, nos gestos, nos
ritos.
8 3
A cultura, ressalta Chartier, “não está acima nem ao lado das relações
econômicas e sociais”, e o existe prática que não se articule sobre as representações pelas
quais “os indivíduos constroem o sentido de sua existência”:
Todas as relações e perc epções do mundo social são ao mesmo
tempo culturais, já que traduzem em atos as maneiras plurais
como os homens dão significação ao mundo que é o seu. Portanto,
toda história, quer se diga econômica, soc ia l ou religiosa, exige o
estudo dos sistemas de representação e dos atos que eles geram. Por
isso ela é cultur al.
8 4
Peter Burke destaca que, de 30 anos para cá, ocorreu um deslocamento
gradual no uso do termo cultura pelos historiadores. Antes empregado para se referir à alta
cultura, ele agora inclui também a cultura cotidiana, ou seja, costumes, valores, modo de
vida. Em outras palavras, os historiadores se aproximaram da visão de cultura dos
antropólogos.
85
Lembra que o antropólogo inspirador da maioria dos historiadores culturais
da última geração foi Clifford Geertz, com a “teoria interpretativa da cultura”. Nesse aspecto,
é importante estudar a cultura interrogando-se o sistema social no qual ela se desenrola, sem
se ver o conjunto em que os diferentes elementos se transformam. Segundo Geertz, o
comportamento humano precisa ser visto como uma ação simbólica e, por isso, o que se deve
indagar não é o seu status ontológico e sim o que está sendo transmitido com a sua
ocorrência. Afirma esse autor que “a cultura é pública porque o significado o é”.
86
Entende-a
como “sistema entrelaçado de signos (símbolos) interpretáveis (...) um contexto, algo dentro
do qual eles podem ser descritos de forma inteligível isto é, descritos com densidade”,
87
e
especifica ainda mais o seu conceito ao afirmar que ela
denota um pa drão de signific ados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de c oncepções herdadas
expressas em form as simbólic as por meio dos quais os homens
comunicam, perpetuam e de senvolvem se u conhec imento e suas
ativida des em r elaç ão à vida.
8 8
83
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 18.
84
Id., ibid.
85
BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 48.
86
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 22.
87
Id., ibid., p. 24.
88
Id., ibid., p. 22.
44
Assim, percebe-se que - inscrevendo-se profundamente na cultura
brasileira, e apoiando-se nos signos e na simbologia dos objetos - a IURD descobriu maneiras
de puxar os fios invisíveis da memória, tornando-se um “sistema simbólico”. Isso também
está em consonância com as considerações ainda feitas por Geertz:
os símbolos sagra dos funcionam pa ra sintet izar o ethos de um povo
e sua visã o de mundo (...) Demonstram representar um ti po de vida
idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo
descreve, enquanto e sta visão de mundo t orna -se emocionalmente
convincente por se r apresentada como uma imagem de um estado de
coisas verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal
tipo de vida (...) A religião ajusta as aç ões humanas a uma ordem
cósmica ima ginada, e projeta imagens desta ordem no plano da
experiência humana.
8 9
Isso se constitui importante objeto da História Cultural, pois, há, como
afirma Peter Burke:
(...) o desenvolvimento de uma consciência cada vez maior entr e os
historiadores, da forma c omo aquilo a que chamam realidade se
encontr ar mediatizado por construções ou re presentações cultur ais,
ou seja, uma c onsciênc ia cada vez maior da importância e da
difusão do simbolismo.
9 0
Descrever uma cultura seria então compreender as relações que nela se
encontram entrelaçadas, o conjunto das práticas que nela exprimem as representações do
mundo, do social ou do sagrado. Daniel Roche afirma que o conceito de cultura continua a
ser um vocábulo bastante ambíguo e ressalta que o emprego desse termo nada resolve se não
for relacionado com os grupos sociais, com as dinâmicas identitárias das sociedades, em
territórios e conjuntos geográficos historicamente construídos”. E que, para uns, a cultura
molda-se imediatamente nas perspectivas da antropologia, enquanto que para outros é a
“aposta-meio para medir exclusões ou traçar fronteiras, trajetórias, hábitos adquiridos,
transmitidos, divulgados, objetos de luta e de imitação”.
91
É preciso então conceder atenção às condições e aos processos que muito
concretamente orientam as operações de construção do sentido”, ressaltando que as
inteligências não são desencarnadas, e que as categorias aparentemente mais invariáveis
devem ser “constituídas na descontinuidade das trajetórias históricas”:
A história cultural tal como a entendemos, tem por princi pal objeto
identif icar o modo com o em diferentes lugares e momentos uma
determi nada realidade soc ial é constr uída , pensada, dada a ler. A
89
Id., ibid., p. 104.
90
BURKE, Peter. O mundo como teatro. Estudos de Antropologia Histórica. Lisboa: DIFEL, 1992, p. 26.
91
ROCHE, Daniel. Uma declinação da luzes. In: RIOUX, J. - P. ; SIRINELLI, J. - F. (Orgs.). Op. cit., p. 2.
45
apropriação como a entendem os, tem por objetivo uma história
social das interpretações, remetidas para as suas determina ções
fundame ntais (que são sociais, institucionais, culturais) e inseri das
nas prá ticas espe cí fi cas que as produze m.
9 2
Evidentemente, o Brasil é um país multicultural e, como tal, não possui
uma, mas várias culturas, realidade essa decorrente de um processo histórico ainda em
permanente movimento, o qual será analisado na abordagem do tema proposto neste trabalho.
“O melhor é seguir o exemplo de vários historiadores e teóricos recentes e pensar culturas
populares no plural”.
93
Porém, entendendo que essa cultura “é plural, mas não caótica”,
94
cabe então investigar o papel que o fenômeno religioso desempenha nesse processo de
atribuição de sentido e promoção de coerência às práticas e comportamento através de
organizações religiosas. Uma história cultural em busca de crenças e gestos aptos a
caracterizar suas expressões em um período temporal que se recorta, sobretudo, nas três
últimas décadas no Brasil. Tal delimitação é necessária para o desenvolvimento de “uma
história cultural que esteja preocupada antes de tudo em compreender usos e práticas. (...) que
esteja sensível à análise de funcionamentos culturais concretos e localizados”, como observa
Chartier, o qual também acrescenta:
É tarefa impossível descrever uma cult ura na totalidade de
relações que nela se encontram entrelaç adas, no conjunto das
prática s que nela exprimem a s representações do mundo, do social
ou do sagrado. Por isso, abordá-las supõe uma atitude diferente, que
focaliz e a atenção sobre as prátic as particulares, obje tos
específicos, usos determina dos.
9 5
Em suas pesquisas sobre a leitura na França, esse autor argumenta que era
praticamente impossível rotular objetos ou práticas culturais como “populares”. As elites da
Europa Ocidental, no começo dos tempos modernos, eram “biculturais”. Afirma que o
popular era ali normalmente definido por sua diferença com aquilo que ele não era: a
literatura erudita de um lado, catolicismo dos clérigos do outro. Mas “é justamente esse
postulado, e a distinção popular/erudito que o fundamenta, que parece ser necessário
questionar” ressalta Chartier, pois, “onde se acreditava descobrir correspondências estritas
entre clivagens culturais e oposições sociais, existem antes circulações fluídas, práticas
compartilhadas, diferenças indistintas”.
96
Logo, não se deve “sobrepor clivagens sociais e
diferenças culturais”:
92
Id., ibid., p. 16, 17.
93
BURKE, P. Variedades de História Cultural, p. 41.
94
BOSI, Alfredo (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987, p. 7.
95
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 18, 19.
96
Id., ibid., p. 8.
46
Todas as formas e práticas nas quais os historiadores julgaram
detectar a cultura do povo, na sua radical originalidade, aparecem
como liga ndo el ementos di versos, compósitos, misturados. É o que
ocorre com a religião popular. Por um lado, é bem cl aro que a
cultura folclórica que lhe serve de base foi profundamente
trabalhada pela insti tuição ec le siástica, que não apenas
regulamentou, depurou, censurou, m as também tentou impor à
sociedade inteira a maneira como os clérigos pensavam e viviam a
fé comum. A religião da maioria foi, portanto, moldada por esse
intenso esforço pedagógico visando fazer cada um interiorizar as
definiçõe s e as normas produzidas pela instituição eclesiástica.
9 7
Assim, é necessário superar o postulado que pressupõe “detectar a cultura
do povo, na sua radical originalidade”, para que se percebam práticas que ligam elementos
diversos, compósitos, misturados”.
98
A religião “popular” ressalta Chartier, é, ao mesmo
tempo, aculturada e aculturante: ela não é nem radicalmente distinta da religião dos clérigos
nem totalmente modelada por ela.
99
E, nesse sentido, configura o campo religioso brasileiro
uma complexa interação de crenças e idéias religiosas que se
amalgamaram num processo que teve, como de sdobramento, a
gestação de uma mentalidade religiosa média dos brasile ir os em
geral, independentemente da situação soc ia l em que se e ncontrem
(...) Essa mentalidade expandiu sua base social num determinado
momento histórico, sendo incorporada ao inconsciente e ao
consciente coletivos.
1 0 0
Por isso, uma compreensão da circulação dos objetos e dos modelos
culturais “não se reduz a uma simples difusão, geralmente pensada como descendo de cima
para baixo no corpo social”.
101
Robert Darnton, por exemplo, em sua obra O Grande
Massacre de Gatos, aponta para o fato de que é preciso superar as fronteiras estanques que
convencionalmente se estabeleceram entre cultura erudita e cultura popular, uma vez que
ambas lidam com “o mesmo tipo de problema”, aproximando “intelectuais e pessoas do
povo”.
102
Roger Chartier, no comentário feito a esse trabalho de Darnton, destaca de maneira
bastante elucidativa as contribuições da Antropologia para a História Cultural, apontando tal
abordagem como um “modo antropológico da história”:
A antropol ogia te m muito a oferece r ao historiador: uma abordagem
(ganhar a entrada em outra c ultura a partir de um rito, texto ou ato,
aparentemente incompreensível ou opaco); um programa (tentar ver
as coisas a partir do ponto de vista do nativo, entender o que ele
quer dizer e buscar dime nsões sociais do significado); e um
conceito de cultura (como o mundo simbólico no qual símbolos
compartilhados servem ao pensamento e à ação, moldam
97
Id., ibid., p. 9.
98
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 9.
99
Id., ibid.
100
BITTENCOURT FILHO, José. Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: PUC, 1998, p. 99.
101
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 17.
102
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural Francesa. Rio de
Janeiro: Graal, 1986, p. XVIII.
47
classificação e julgamento, e fornecem avisos e acusações).
Entender uma cultura, entã o, é acima de tudo rede scobrir as
significações investidas nas formas simbólicas das quais a c ultura
se utiliza.
1 0 3
Não se deve, por conseguinte, estabelecer uma correlação simples e
imediata entre cultura e classe social, como se todos os que são pertencentes a uma
determinada categoria social tivessem uma mesma apreensão ou atribuição de sentido a um
bem cultural. É preciso salientar que “as clivagens culturais nem sempre coincidem com as
clivagens de classe”,
104
como também o observa Chartier:
Antes de ma is, deixou de se r sustentá vel pretender estabe le ce r
correspondê ncias estritas entre clivagens culturais e hie ra rqui as
sociais (...) Pelo contrário, o que é necessár io reconhecer são as
circulações fluídas, as prática s partilhadas que atravessam os
hor izontes sociais.
1 0 5
[grifo nosso]
Essa “travessia” dos horizontes sociais pode ser exemplificada nas palavras
de Victor Turner: “As pessoas da floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos
processos como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados”.
106
A essa compreensão se
aplicam ainda as palavras de Chartier, quando destaca os desafios que se apresentam ao
trabalho historiográfico:
Enfim, ao renunci ar ao pr imado tirânico do recorte social par a dar
conta dos desvios c ulturais, a história em seus últimos
desenvolvimentos mostrou, de vez, que é impossível qualificar os
motivos, os objetos, ou as prática s culturais em termos
imediatamente sociológicos e que sua distribuiçã o e seus usos numa
dada sociedade não se organizam nece ssariamente segundo divisões
sociais pr évias, identificadas a partir de diferenças de estado e de
fortuna . Donde as novas perspectivas abertas para pensar outros
modos de articulação entre as obras ou as práticas e o mundo social,
sensíveis ao mesmo tempo à pluralida de das clivagens que
atravessam uma sociedade e à diversidade dos empregos de
materiais ou de códigos par tilhados.
1 0 7
Outro aspecto a ser considerado é que as instituições eclesiásticas se
propõem, normalmente, o apenas a regulamentar, depurar, censurar, mas também impor à
sociedade inteira a maneira como os clérigos pensam e vivem a comum. Propondo sempre
ser a religião da maioria, tais instituições dedicam “intenso esforço pedagógico visando fazer
cada um interiorizar as definições e as normas” por elas produzidas.
108
Mas as tentativas de
103
CHARTIER, Roger. Textos, símbolos e o espírito francês. História: questões e debates. Curitiba, Associação
Paranaense de História – APAH, p. 7, jul./dez., 1996.
104
Afirmação do Prof. Dr. Milton Carlos Costa, em aula da disciplina História e Cultura, ministrada em 29 de
novembro de 2002 – UNESP/campus de Assis – SP.
105
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 134.
106
TURNER, V. W. Op. cit., p. 6.
107
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, USP, n. 11, p. 177, 1991.
108
Id. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 9.
48
controle a partir de exigências reguladoras se deparam com hábitos arraigados, com
interpretações próprias por parte do povo que recebe tais prescrições. Por isso, como ressalta
Chartier, é preciso substituir uma caracterização global, unitária, das formas culturais por
uma apreensão mais complexa que busca descobrir os cruzamentos e tensões que a
constituem, buscando-se investigar o inventário de modalidades múltiplas bem como a
pluralidade das práticas culturais que atravessam o corpo social.
109
A História Cultural
possibilita instrumentais e parâmetros para se investigar tal articulação:
Esta históri a (História Cultura l) de ve ser entendida como o estudo
dos proce ssos com os quais se constr ói um sentido (...) dirige-se às
prática s que, pluralme nte, contraditoriamente , dão significado ao
mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como
produtora s de ordenamento, de afirmação de distâncias, de
divisõe s.
1 1 0
Isso significa, no caso do campo religioso brasileiro, desenvolver uma
investigação sobre o inventário constituído em “capital simbólico” que possibilitou as
representações e práticas vivenciadas pela IURD, levando em consideração o pluralismo
religioso que evidencia, por exemplo, a ineficácia dos esforços empreendidos pelas
instituições sacerdotais no sentido de moldar os pensamentos e as condutas da maioria. Tal
aspecto está em consonância com o pensamento de Roger Chartier, quando afirma que “o
destino historiográfico da cultura popular, portanto, é ser sempre sufocada, reprimida,
destruída, e ao mesmo tempo sempre renascer de suas cinzas”.
111
Por isso, essas práticas são
“criadoras de usos ou de representações que não são absolutamente redutíveis às vontades
dos produtores de discursos e de normas”, fazendo que a aceitação dos modelos e das
mensagens propostas “opere-se por meio dos arranjos, dos desvios, às vezes das resistências,
que manifestam a singularidade de cada apropriação”.
112
Daí o surgimento de um caminho
metodologicamente plausível que focalize “a atenção sobre práticas particulares, objetos
específicos, usos determinados”,
113
como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus,
objeto de investigação desse trabalho. Em dado momento e circunstâncias históricas, essa
Igreja surgiu tecendo a sua teia de sentidos, configurada por discursos, ritos e práticas,
fazendo convergir eficazmente para si a diversidade cultural e religiosa do contexto
brasileiro.
109
Id., ibid., p. 10.
110
Id., ibid., 28.
111
CHARTIER, Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 15.
112
Id., ibid., p. 13.
113
Id. Ibid., p. 18.
49
Finalizando esse item, há de se observar que, tendo como ponto de partida o
princípio de que os elementos culturais perpassam a todas as categorizações sociais como
descrito anteriormente serão empregados nessa pesquisa os termos “cultura folclórica” e
“cultura clerical” como referência ao que às vezes se convenciona chamar de “cultura
popular” e “cultura erudita”. Esse é o procedimento adotado por Jacques Le Goff,
quando
analisa, no contexto medieval, tradições culturais bastante populares em oposições e conflitos
com práticas adotadas pelas instituições mais clericalizadas. Le Goff observa em tal processo
um dinamismo cultural de influências eficazmente mútuas, sem unilateralidades, com
permeabilidades, “não havendo restrição à estratificação social”.
114
1.2 - Um caminho metodológico a partir de Chartier e Bourdieu
Considerando as estreitas aproximações que a Nova História Cultural faz da
Antropologia e Sociologia, como dito anteriormente, a análise aqui desenvolvida é bastante
tributária de conceitos empregados por Pierre Bourdieu. As contribuições desse autor para a
História Cultural têm sido destacadas por pesquisadores desse viés historiográfico:
Os conceitos e te orias que [Bourdieu] produziu em seus estudos,
primeiro sobre os berberes e depois sobre os franceses, são de
grande relevâ ncia para os historiadores cultura is. Incluem o
conceito de “c am po, a teoria da prátic a, a idéia de re produç ão
cultural e a noção de dist inção .(...) Suas e xpressões capi tal
cultural e capital simbólico entraram na linguage m c otidiana de
sociólogos, ant ropólogos e de pelo menos alguns histor ia dore s.
1 1 5
Tem-se considerado Bourdieu como um dos teóricos que “levaram os
historiadores culturais a se preocuparem com as representações e as práticas, os dois aspectos
característicos da Nova História Cultural segundo um de seus líderes, Roger Chartier”.
116
Destaca-se a referência feita por esse autor às contribuições de Bourdieu para essa
perspectiva historiográfica: “Gostaria de sublinhar a importância do trabalho de Bourdieu (...)
para a prática da história cultural. (...) Para a definição de uma dimensão histórica de todas as
ciências sociais (...)”.
117
Acrescenta também esse autor:
Bourdieu ajudou os historiadores a se distanciarem da herança da
história das mentalidades para refleti rem de uma maneira mais
complexa, ou mais sutil, sobre a relação entre a s determinações
externas, a incorporação destas determinações e, finalmente, as
ações.
1 1 8
114
LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214-216.
115
BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 76, 77.
116
Ibid., p. 78.
117
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história. Topoi, Rio de Janeiro, URFJ, n. 4, p. 139, 2002.
118
Id., ibid., p. 152.
50
Chartier comenta ainda detalhes sobre o percurso de um caminho
metodológico a partir do pensamento de Bourdieu:
Mas o m ais importante é trabalhar com Bourdieu (...) Trabalhar os
seus conce itos, mas ir além, trabalhar com as suas perspectivas,
com a idéia de um pensamento relac ional e a repulsa à projeção
universal de categorias histori camente def inidas. (...) Existe a
possibilidade de um trabalho com Bourdieu que não é simplesmente
a reprodução de sua t eoria, mas a capa cidade de uma inovaçã o
proposta por seus i nstrumentos teóricos, analíticos e críticos.
1 1 9
Chartier destaca, por exemplo, a contribuição da obra As Regras de Arte, de
Bourdieu, para a transformação das práticas de historiadores culturais. Primeiramente, porque
esse trabalho se contrapõe aos postulados clássicos da literatura e da arte calcados na “figura
do criador incriado ou seja, na idéia de que cada obra possui uma singularidade irredutível
(...) na idéia de que uma disposição universal ao juízo estético”.
120
Sublinha a necessidade
de se reintroduzir a dimensão histórica às categorias que, muitas vezes, são tomadas como
universais e invariáveis. É preciso situar as expressões culturais em cada momento histórico
particular, definindo o seu contexto, “por quais razões foram estabelecidas e marcar a
impossibilidade de utilizá-las retrospectivamente sem precaução e sem risco de
anacronismo”.
121
Outra contribuição, nesta obra, reside na inserção dos agentes culturais em
uma rede de relações visíveis ou invisíveis presentes nos respectivos campos em que estão
inseridos. Essas relações se manifestam em formas de coexistência, de sociabilidade, ou de
relações entre indivíduos ou de relações mais abstratas ou estruturais que organizam o
campo. A idéia do pensamento relacional permite, assim, “repelir a idéia do indivíduo
isolado, do gênio singular e também a idéia de uma universalidade das categorias” de
atribuição de sentido.
122
Bourdieu não tem como metodologia pensar a teoria de forma separada de
sua pesquisa empírica. Os conceitos empregados por esse autor não são construídos para
depois serem testados na prática, como se a teoria precedesse a prática de uma forma
mecânica. Os conceitos são construídos na medida em que a análise empírica vai criando
necessidade desses. Nessa proposição, em sua obra Esboço de Auto-Análise,
123
apresenta a
sua própria experiência como objeto de análise e procura entender sua inserção e trajetória no
campo intelectual. Procurando deixar claro que não elabora uma autobiografia, busca refletir
119
Id., ibid., p. 146, 147.
120
Id., ibid.
121
Id., ibid., p. 140.
122
Id., ibid.
123
BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
51
sobre o passado “por meio do inquérito que ele mesmo fora refinando como método de
trabalho”.
124
Ao analisar sua carreira acadêmica, o autor descreve um método de trabalho
tendo como referenciais os conceitos que nortearam as suas pesquisas. Primeiro, a formação
de seu habitus, marcada pela origem social humilde, pela vivência familiar e pelos ritos de
passagem na adolescência; segundo, a sua inserção no campo acadêmico e a relação com as
respectivas regras nele existentes, marcadas pelo êxito escolar, pela experiência como
sociólogo na Argélia e, principalmente, pelos conflitos causados no campo, tanto pelo espaço
que conquista, quanto pela forma com que o modifica; terceiro, a disputa pela consagração e
pela constituição de um capital simbólico envolvendo as disciplinas e os pensadores nas
ciências humanas no campo intelectual de que faz parte.
Vale dizer que elementos da Antropologia
125
consistem em fonte de
reflexão eminente para Bourdieu, principalmente em relação à importância dos sistemas de
relação entre indivíduos e grupos sociais para compreender os fenômenos sociais. Em tal
perspectiva, postula-se que é fundamental considerar dois elementos: primeiro, o sentido que
os agentes conferem às suas ações; segundo, a noção de estratégia, segundo a qual os agentes
sociais têm a capacidade de enfrentar situações imprevistas e constantemente renovadas,
sabendo estabelecer, nos diversos campos sociais, relações entre os meios e os fins para
adquirir bens raros. Nesse sentido, cabe ainda observar que, em termos de filiação teórica,
Bourdieu tem como uma de suas importantes matizes Max Weber, de quem adota
principalmente o papel das representações na análise da sociedade assim como o conceito de
legitimidade. Postulando que o conhecimento da ação social passa pelo sentido que o
indivíduo lhe confere, a posição de Weber se opõe à explicação puramente naturalista,
objetivista, fundando assim a sociologia compreensiva. Em tal perspectiva, a ação humana se
orienta de acordo com um sentido que se deve compreender, para torná-la inteligível. Os
comportamentos humanos têm a especificidade de se deixarem interpretar de modo
compreensivo.
Outra importante contribuição do pensamento de Bourdieu para a pesquisa
historiográfica e, de modo particular, para a investigação do objeto aqui em análise - reside
na aproximação que consegue promover de aspectos conceituais-metodológicos normalmente
conflitivos na elaboração da pesquisa científica. Segundo ele, essas oposições artificiais não
124
Id., ibid., contra-capa.
125
Pierre Bourdieu desenvolveu trabalho de campo na Argélia. Em 1972, publicou Esquisse d’une théorie de la
pratique, obra em que analisa refinadamente fatos sociais como o desafio, o parentesco e a casa cabila. O
próprio Bourdieu destaca a importância desta experiência como etnólogo: “Eu me pensava como filósofo e levei
muito tempo para confessar a mim mesmo que me tornara etnólogo”, apud BONNEWITZ, Patrice. Primeiras
lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 14.
52
derivam de operações lógicas ou epistemológicas constitutivas da prática que desenvolve o
conhecimento, mas de disputas entre escolas e tradições de pensamento no interior dos
respectivos campos do saber, que promovem suas concepções particulares como se fossem
verdade científica total:
Ao longo de sua obra, Bour dieu procurou superar determinadas
oposições canônicas que mina m a ci ência social por dentro, c omo a
separação entre análise do simbólico e do mater ial, entre indivíduo
e sociedade, o emba te entre métodos quantitativos e qualitativos,
dualismos que comprometem uma adequada compreensão da prática
humana. (...) Assim, investiu contra a divisão artificial entr e t eoria
e pesquisa empíri ca, mediante a qual alguns pe squisa dores cultivam
a teor ia por si m esma, sem manter uma relação com objetos
empíricos precisos, enquanto outros, inversamente, de se nvolvem
uma pesquisa empírica sem r eferência a questões t eóricas.
1 2 6
Desse modo, o caminho metodológico proposto por Bourdieu se torna
referencial para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, pelas
razões que seguem: possibilita aproximações de áreas afins do conhecimento e inter-relação
entre teoria e trabalho empírico; permite entender como se deu a formação do habitus de
líderes e fiéis que compõem esse movimento; indica a existência de regras que possibilitaram
a inserção e a atuação dos agentes iurdianos no campo religioso; informa a existência de
conflitos e embates por conquista de capital simbólico; aponta para impactos e mutações
promovidos pelos agentes no referido campo na busca de consagração do poder simbólico;
postula a vivência de práticas que se tornam funcionais na medida em que atendem ao
“conjunto”, ao elemento coletivo, e o a fatores isolados ou a genialidades individuais.
Assim, considerando que o movimento iurdiano articula uma complexidade de elementos
culturais que envolvem habitus, regras, disputas e poder de consagração - possibilitados pelo
dinamismo do campo em que o referido objeto está inserido - a ênfase dessa pesquisa recai
sobre o conjunto das práticas e das representações.
1.2.1- Representações, prática, habitus
Um dos conceitos fundamentais para a análise e compreensão do universo
religioso é o de “representação”. Roger Chartier refere-se à “representação” como “a pedra
angular de uma abordagem em nível da história cultural”.
127
Michel Vovelle afirma que a
“história das representações coletivas” adquiriu atualmente uma importância considerável e
126
MARTINS, Carlos Benedito. Notas sobre a noção de prática em Pierre Bourdieu. Novos Estudos CEBRAP,
São Paulo, n. 62, p.165, mar. 2002.
127
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 23.
53
constitui, sem dúvida, “uma das transformações mais marcantes da nova historiografia”,
consistindo “uma espécie de mutação de uma história ontem focalizada numa abordagem que
se pretendia objetiva sobre realidades percebidas como tal”.
128
Afirma Chartier que as representações consistem em “configurações sociais
próprias de um tempo e de um espaço”, e assim como “as estruturas do mundo social não são
um dado objetivo” - tradicionalmente postuladas como “um real bem real”, existindo por si
mesmo - as representações também não são simples reflexos daquelas”.
129
Por isso, a
necessidade de superação da dúvida cartesiana que pressupõe a idéia do homem sendo
exterior ao seu mundo, de onde decorre a concepção de que a representação é o produto
artificial ou abstrato de seu intelecto. Ponto central na teoria simbólica de Norbert Elias, e
que supera a armadilha da “verdade absoluta” e de sua “impossível” representação, é que os
símbolos, de que compõem a linguagem, por exemplo, possuem certo grau de congruência
com a realidade, com os dados que eles pretendem representar.
130
Acrescentam-se a isso as
palavras de Bourdieu:
O mundo social ta mbém é representação e vontade (...) O que nós
consideramos como realidade soc ial é em grande parte representação
ou produto da r epre sentaç ão, em todos os sentidos do termo.(...) (O
discurso) produz um novo senso com um e nele int roduz as práticas e
as experiências até então tácitas ou recalcadas de todo um grupo,
agora investido de legitimidade conferida pe la manifestação públi ca
e pelo reconhecimento coletivo.
1 3 1
Ao falar sobre “pontos de conflitos de classificações” ou de
“afrontamentos”, Chartier afirma apoiar suas escolhas metodológicas em grande medida no
trabalho de Pierre Bourdieu, em particular na sua obra La distinction.
132
O emprego desse
conceito fundamenta-se na idéia de que as representações do mundo social, ou seja, a
representação que o indivíduo ou o grupo tem de si mesmo e a representação que tem dos
outros, traduzem-se por meio dos “estilos de vida”; e ainda: a identidade social que se
percebe naquilo que cada grupo mostra de si mesmo e que remete à incorporação mental
coletiva de esquemas de percepção, desemboca na encarnação dessa identidade social nos
elementos que representam esse grupo de uma maneira individual ou coletiva. A definição do
ser social, da identidade social, é dada, portanto, não unicamente a partir de condições
128
VOVELLE, Michel. In: D’Alessio, Márcia Mansor. Reflexões sobre o saber histórico. São Paulo: UNESP,
1998, p. 83.
129
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 23.
130
CARDOSO, C. Flamarion; MALERBA, Jurandir (Orgs.). Representações: contribuição a um debate
transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 208.
131
BOURDIEU, P. Coisas ditas, p. 70, 71, 119.
132
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 17.
54
objetivas que definem as categorias sociais, mas “do ser percebido por si mesmo ou pelos
outros”, daí a luta constante de classificações:
o trabalho de classificação e delimitação produz as configurações
intelectuai s múltiplas, das quai s a realidade é contraditoriamente
construída pelos diferentes grupos, seguidamente, as práticas que
visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira
própria de estar no mundo, significar simbolicamente um e statuto e
uma posição ( ...).
1 3 3
Observa Chartier que as representações do mundo social são historicamente
construídas, “são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam”,
134
daí as
dimensões de conflito que envolvem seu espectro de operosidade:
Por isso esta invest igação sobre as representações supõe-nas como
estando sempre c oloc adas num campo de concorrências e de
competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de
dominação. As lutas de represent ações têm tanta importânc ia como
as lutas econômic as para compreender os mecanismos pel os quais
um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social,
os valore s que são se us, e o seu domínio.
1 3 5
Um dos princípios da História Cultural consiste em não separar
artificialmente realidades e representações:
A tensão entre práticas e representações atravessa a nova história
social tanto quanto a nova história cultural e constitui-se num dos
eixos centr ais do debate a respeito dos limites do conhecimento
histórico nessas duas áreas.
1 3 6
As representações também têm fortes imbricações com o conceito de
“imaginário” - o qual pode ser identificado como “a teia de sentidos que propicia a
construção dos referentes sociais”
137
- ou ainda, como propõe Hilário Franco Júnior:
Por imaginário entendemos um conjunto de imagens visuais e
verbais gera do por uma sociedade (ou parcela desta) na sua r el aç ão
consigo mesma, com outros grupos humanos e com o univer so em
geral. Todo imaginário é, portanto, coletivo, não pode ndo se r
confundido com imaginação, atividade psíquica individual.
Tampouco pode-se reduzir o imaginário à somatória de imaginações.
(...) Porém, por englobar o denominador comum das imaginaçõe s, o
imaginá rio as supera, inter fere nos mecanismos da realidade
palpáve l (política, econômica, social, c ultural) que alimenta a
própria ima gina ção.
1 3 8
133
Id., ibid., p. 23.
134
Id., ibid., p. 26.
135
Id., ibid., p. 17.
136
LARA, Silvia H. História Cultural e História Social. Diálogos. Maringá, UEM, n.1, p. 26, 1997.
137
DUBOIS, Claude Gilbert. O Imaginário da Renascença. Brasília: UNB, 1985, (contra-capa).
138
JÚNIOR, Hilário Franco. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 16, 17.
55
Segundo esse mesmo historiador, toda sociedade é ao mesmo tempo
“produtora e produto de seus imaginários”, sendo eles responsáveis por estabelecer “pontes
entre tempos diferentes”, ou seja, promover um trânsito circular entre os elementos de longa
duração - de um ritmo histórico muito lento que compõem a realidade psíquica profunda da
sociedade - com a realidade material externa, a cultura, sendo que “desta, o imaginário leva
para a primeira os elementos que na longa duração histórica podem transformá-la; daquela,
leva para a segunda as formas possíveis de leitura da sociedade sobre ela mesma”.
139
Para
Chartier, o imaginário possui modalidades,
140
sendo movediços os limites entre essas formas.
E da articulação entre a realidade vivida externamente e a “realidade vivida oniricamente” é
que se o suceder dos eventos históricos, sendo também daí construídos conjuntamente os
comportamentos coletivos. Finaliza ressaltando que “um fenômeno imaginário (...) possui
uma trajetória e uma função que devem ser estudadas historicamente”.
141
Jacques Le Goff também considera que:
De uns trinta anos para cá, a história do imaginário ganha com
razão um lugar cada vez maior no domínio do saber histórico. E um
crescente número de histor ia dores reconhece que as imagens, as
representações, as sociedades imaginár ia s são tão re ais quanto as
outras, ainda que de ma neira dif erente, seguindo, uma outra lógica,
uma outra consistência, uma outra evolução. O imaginário social
tem, portanto, uma história que fa z parte da histór ia global das
sociedades, mas com sua ori ginalidade e sua especificidade.
1 4 2
Outras considerações sobre o mesmo conceito podem ser observadas na
obra de Laplantine e Trindade.
143
Segundo tais autores “a construção da divindade é realizada
a partir do imaginário coletivo”:
Utiliza ndo como matéria-prima re presentações simbólicas, os
homens constroem no proc esso do imaginário os deuses que
consubstanc ia lizam, que passam a existir no cotidiano de suas
experiências sociais. Assi m, partindo do real, os deuses
transformam-se e re estruturam a rea lida de soc ia l.
1 4 4
Baczko
145
empreende análise sobre o imaginário e destaca que no século XIX
se procurou separar o verdadeiro” e “real” do “ilusório” (crenças mitos etc.), sendo a
139
Id., ibid.
140
As modalidades de imaginário, segundo Hilário Franco Júnior, podem ser compreendidas da seguinte
maneira: a que foca sua atenção em um passado independente para explicar o presente é o que se chama de
mito; a que projeta no futuro as experiências históricas - concretas e idealizadas, passadas e presentes - é
ideologia; a que parte do presente na tentativa de antecipar ou preparar um futuro que é recuperação de um
passado idealizado, é utopia. Cf. Id., ibid., p. 17.
141
Id., ibid.
142
LE GOFF, J. História, novas abordagens, p. 7, 8.
143
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1996.
144
Id., ibid., p. 16.
145
BACZKO, B. Imaginário social. In: Enciclopédia Einaudi. V. 5. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985, p. 297.
56
operação científica uma operação de desvendamento e desmitificação”, processo esse
classificador das representações como incongruentes em relação ao que se denominava
realidade. No âmbito das ciências humanas, lembra esse autor, o imaginário gradativamente
passou a ser associado aos adjetivos “social” e “coletivo” para, finalmente, fazer parte da
realidade. Sobretudo a partir do discurso contestatório de maio de 1968, profissionais de
diferentes áreas das ciências humanas, assim como os historiadores, “começaram a
reconhecer, senão a descobrir, as funções múltiplas e complexas que competem ao
imaginário na vida coletiva e, em especial, no exercício do poder” percebendo que nas
mentalidades, a mitologia que nasce a partir de determinado acontecimento sobreleva em
importância o próprio acontecimento”, quando a imaginação se torna carregada de
simbolismo: “As ciências humanas põem em destaque o fato de qualquer poder (...) se rodear
de representações coletivas. Para tal poder, o domínio do imaginário e do simbólico é um
importante lugar estratégico”.
146
Nesse sentido, Baczko pergunta: “não são as ações efetivamente guiadas
por estas representações; não modelam elas os comportamentos; não mobilizam elas as
energias?” E argumenta:
O imaginá rio social é, deste modo, uma das forças reguladoras da
vida coletiva. A s referências simbólicas não se limitam a indicar os
indivíduos que pertencem à mesma sociedade, m as definem também
de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas
relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais.
O imaginário social é, pois, uma peça e fe tiva e eficaz do dispositivo
de controlo da vida cole tiva e, em especial, do exercício da
autoridade e do poder . Ao mesmo tempo, ele torna-se o l ugar e o
objeto dos conflitos sociais.
1 4 7
Um outro conceito diretamente relacionado ao de “representação” é o de
“prática”, uma vez que as representações são “construídas a partir de práticas plurais e
contraditoriamente complexas, múltiplas e diferenciadas”, afirma Chartier, acrescentando ser
necessário “articular a relação entre representações das práticas e práticas de representação”:
Constituir c omo representações os vestígios (...) que indicam as
prática s constitutivas de qualquer objetivação histórica; e
estabelecer hi poteticamente uma rela çã o entre a s séries de
representações, construídas e trabalhadas enquanto tais, e as
prática s que constituem o seu r eferente exter no.
1 4 8
Chartier associa “práticas” a um outro conceito que pode lhe servir como
fundamento: o habitus - que Bourdieu conceitua nos seguintes termos:
146
Id., ibid.
147
Id., ibid., p. 310.
148
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 86, 87.
57
Por sua própria et imologia habitus é o que foi adquirido, do verbo
habeo -, devia significar muito c oncretamente que o princípio das
ações ou das r epre sentaç ões e das operações da c onstrução da
realida de soc ial, pressupostas por elas, não é um sujeito
transcendental (...) É o habitus, como estrutura e struturada e
estrutura nte, que engaja, nas práticas e nas idéias, esquemas
práticos de construção oriundos da incorporação de estruturas
sociais oriundas, elas próprias, do tra balho histórico de gera ções
sucessi vas (...).
1 4 9
A partir desse elemento são identificados os esquemas geradores das
práticas, os quais podem ser chamados de cultura, competência cultural, ou seja, habitus. Tais
sistemas de esquemas de percepção, apreciação e ação, permitem tanto operar atos de
reconhecimento prático como também engendrar estratégias adaptadas e incessantemente
renovadas, situadas nos limites estruturais de que são o produto e também que as definem,
chamadas, por isso, de “estruturas estruturadas e estruturantesque viabilizam a própria vida
social.
150
Dentro de tal perspectiva, o habitus se constitui matriz e “condição de toda
objetivação”, a partir do que os códigos de comportamento e as estruturas sociais são
internalizadas pelo indivíduo, tornando-se então um sistema de estruturas interiorizadas.
151
Analisando o emprego desse conceito, Chartier afirma:
O conceito de representação que Bourdieu utiliza, o conceito de
classificação de luta de represent ação, de luta de classificação
se tornou um a categoria essencial, porque perm ite instalar a análise
dentro da hera nça da sociologia e da antropologia fundadora de
Mauss e Durkheim. E a categoria de representações coletivas, tal
como foi definida por Durkheim e Mauss, aponta para a
incorporaçã o, dent ro do i ndivíduo, do mundo soc ia l a partir de sua
própria posição dentro deste mundo, como se as categorias mentais
fossem resul tado da incorporação das divisões sociais e definissem
para cada indivíduo a maneira de classifi car, falar ou atuar.
1 5 2
Chartier apresenta ainda outra definição para “representação” que muito se
aproxima do conceito de habitus:
A noção de repre sentação coletiva (...) permite conciliar a s
imagens mentais claras (...) com esque mas interiorizados, as
categorias incorporadas, que as geram e a estrutura m. (...) Desta
forma, pode pensar-se uma história cultur al do social que tome por
objeto a compreensã o da s formas e dos motivos ou, por outras
palavras, das repre sentaç ões do mundo soc ia l que, à r evelia dos
atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente
confrontados e que, paralelamente, descrevem a soci edade tal como
pensam que ela é, ou como gostariam que fosse.
1 5 3
149
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 158.
150
Id. Meditações pascalianas, p. 169.
151
Id. A economia das trocas simbólicas, p. XLVII.
152
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 152.
153
Id. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 19
58
Como referenciais de análise mais especificamente sobre o objeto de estudo
desta pesquisa, podem ser apontados alguns aspectos fundamentais do uso dos conceitos
anteriormente identificados para uma compreensão das práticas e representações que
envolvem a Igreja Universal do Reino de Deus. Em primeiro lugar, por esses conceitos
indicarem os mecanismos internos mediantes os quais se produz a filiação dos indivíduos ao
movimento iurdiano. Nesse sentido, pode se tomar como ponto de partida que a adesão dos
fiéis ocorre mediante uma socialização engendrada por um habitus, através do qual se
assimilam as normas, os valores e as crenças. Logo, criam-se relações sociais comuns
envolvendo pessoas que compartilham do mesmo habitus.
154
Nasce, conseqüentemente, a
noção de uma comunidade religiosa, em que são produzidas e objetivadas práticas, revestidas
de sagrado, que respondem às necessidades e anseios daquele grupo social. Assim,
orquestradas por um habitus, as práticas e as representações iurdianas, enquanto produção
social dos agentes, líderes e fiéis, assumem plausibilidade, coerência e sentido para os que
estão inseridos ou fazem parte do respectivo grupo.
Em segundo lugar, o habitus é responsável por estabelecer um “certo grau
de coincidência e acordo entre as disposições dos agentes mobilizadores e as disposições dos
grupos aos quais aqueles se dirigem”, ou seja, as aspirações, reivindicações e interesses dos
adeptos iurdianos acabaram por encontrar na mensagem de seus líderes uma “conduta
exemplar ajustada às exigências do habitus mediante um discurso novo que reelabora o
código comum que cimenta tal aliança”.
155
Dessa forma, a ação dos fiéis iurdianos não
decorre, por exemplo, “da obediência a regras” estabelecidas pela coação ou imposição do
líder; as práticas, ali, são coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora
de um único maestro”.
156
O habitus, pois, dirige as práticas e os pensamentos à maneira de
uma força, mas sem constranger mecanicamente; ele também guia a ação ao modo de uma
necessidade lógica, “sem se impor como se aplicasse uma regra ou se submetesse ao veredito
de uma espécie de cálculo racional”.
157
Verifica-se que “os agentes põem em prática
estruturas históricas”,
158
por meio do habitus, a partir das quais criam-se “as disposições” -
que estão em tensão com o campo que as solicita, estimula e justifica que lhes dão razões
para crer e pensar, reunindo, assim, os que participam dos mesmos desafios e anseios. As
práticas iurdianas, portanto, dão-se mediante uma “relação ontológica”, uma “cumplicidade
154
Cf. BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 75.
155
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 91.
156
Id., Le sens pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, p. 88, 89, apud BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 77.
157
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 213.
158
Id., ibid., p. 160.
59
infraconsciente, infralingüística”, entre líderes e fiéis, desmistificando as pressuposições de
“enganador e enganado”.
159
Terceiro, esses conceitos ajudam a entender as mobilidades da história. Isto
se constitui importante parâmetro de análise para as transformações, impactos e mutações
promovidos pelo movimento iurdiano no campo religioso brasileiro. Constituindo-se pela
socialização das práticas, o habitus conjuga, simultaneamente, ões que promovem
transformações no respectivo campo, ao mesmo tempo em que é transformado por ele,
tornando-se desse modo “produto da história, fundamento das práticas e das ações”.
160
Por
isso, a “práxis está na raiz do conceito de habitus”.
161
A história se torna corpo, instituição
incorporada, atividade prática, engendrada por um habitus diretamente ajustado às tendências
imanentes do campo: É um ato de temporalização através do qual o agente transcende o
presente imediato pela mobilização prática do passado (...) O habitus temporaliza-se no
próprio ato pelo qual se realiza”.
162
Essa flexibilidade de reestruturação é capaz de adaptar-se
ou ajustar-se em função das necessidades inerentes às situações novas criadas pelo próprio
dinamismo da história. Bourdieu classifica essa prática cotidiana em termos de
“improvisação sustentada” com certos princípios que regulam - numa estrutura de
esquemas inculcados pela cultura tanto na mente como no corpo, em forma de habitus,
163
o
qual, como produto da história, é um sistema de disposição aberto, que está incessantemente
diante de experiências novas e, logo, incessantemente afetado por elas:
É duradouro, mas não imutável. Dito isso, devo acrescent ar
imediatamente que a maioria das pe ssoas está estatist icamente
destinada a encontrar circunstâncias af inadas com aquelas que
modelaram originariamente o seu habitus e, por conseguinte, a ter
experiências que virã o reforçar a s suas disposições.
1 6 4
De acordo com tal perspectiva, pode-se observar o que Bourdieu chama de
“reprodução cultural”, entendida como transmissão cultural em um processo contínuo de
criação, mediante uma apropriação ou recepção criativa. Essa reconstrução permanente é
impulsionada, em parte, pela necessidade de adaptar tradições a novas circunstâncias, “pela
busca de encontrar soluções para os problemas humanos e as necessidades da situação”.
165
159
Id., ibid., p. 171.
160
Id., ibid., p. 160.
161
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 19.
162
Id. Razões práticas, p. 160, 161.
163
BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 77.
164
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, L. J. D. Réponses... Pour une anthropologie réflexive. Paris: Le Seuil,
1992, p. 108, 109. Tradução de Lucy Magalhães.
165
BURKE, P. O que é História Cultural? , p. 130.
60
Em quarto lugar, o habitus promove processos de “apropriação”, decorrente
de práticas que, por sua vez, passam a configurar novas práticas, num processo mútuo que se
alimenta continuamente. Esse processo consiste num elemento importante para a produção de
uma história cultural da Igreja Universal, por apontar as raízes mais profundas ou
temporalmente mais expansivas de suas práticas. Desse modo, o movimento iurdiano pode
ser melhor situado como parte de um processo histórico que se estende na longa duração do
campo religioso brasileiro.
A noção de apropriação pode se r, de sde logo, reform ulada e
colocada no centro de uma abordagem de história cul tural que se
prende com práticas dife renciadas. ( ...) A apropriação, tal c omo a
entende mos, tem por objet ivo uma história social das interpretações,
remetidas para as suas determinações fundame ntais (que são sociais,
institucionais, c ulturais) e inscritas nas práticas específicas que as
produzem.
1 6 6
Vale dizer que esse processo de “apropriação” ocorre mediante práticas
diferenciadas, com utilizações contrastadas, pondo em relevo a pluralidade dos modos de
emprego e a diversidade” de elementos que estão constituídos no “campo” em que os agentes
sociais estão inseridos,
167
como o veremos a seguir.
1.2.2 - Campo, capital simbólico
As sociedades contemporâneas, segundo Pierre Bourdieu, são constituídas e
organizadas por diversos “campos”, os quais têm “leis próprias” e são relativamente
“autônomos”:
168
Cha mo campo, o universo no qual estão inseridos os agentes e as
instituiç ões que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a
liter atura, a ciência, os bens simbólicos. Esse unive rso é um mundo
social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou
menos específicas. (...) A noção de campo está aí para designar esse
espaço relativamente a utônomo, esse microcosmo dotado de suas
leis próprias.
1 6 9
De modo geral, todo campo exerce pedagogicamente sobre seus agentes um
processo de socialização que tem como efeito fazê-los adquirir os saberes necessários a uma
inserção correta nas relações sociais.
166
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 26, 27.
167
Id., ibid.
168
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 147, 148.
169
Id. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Edunesp, 2004, p.
20.
61
O cam po estrutura o habitus, que é o produto da incorporação da
necessidade imane nte desse campo (...) Mas é também uma relação
de conhecimento ou de const rução cognitiva: o habitus contribui
para constituir o campo como mundo significant e, dotado de sentido
e de valor (...) E, qua ndo o habitus entra e m relação com um mundo
social do qual ele é produto, sente-se c omo um peixe dentro dágua
e o mundo l he parec e na tural.
1 7 0
Os campos não são estáticos, sendo por isso transformados pelo dinamismo
da história, mediante as práticas dos agentes que nele se enfrentam, promovendo relações de
força e conseqüentes mutações:
Todo campo é um campo de forças e um campo de lutas para
conservar ou tr ansfor ma r e sse campo de forças. (...) São lugares de
relações de forças que implicam tendências imanentes e
probabilidade s obje tiva s.
1 7 1
O conceito de campo contrapõe as determinações “socioeconômicas na
definição mais tradicional da sociologia, da história social e a produção simbólica de idéias
ou de obras”, como afirma Chartier,
172
que acrescenta:
Há em Bourdie u (...) uma repulsa de uma maneir a simple s de pensar
o determinismo social, como se houvesse uma a dequaç ão imediata
entre a escolha de uma estética ou um enunci ado ideológico e a
posiç ão social do art ista, do e scritor, do pensador ou do i ndivíduo.
(...) Porque, como demonstra Bourdie u, há em cada campo
princípios de organização que são próprias deste campo.
1 7 3
As práticas dos agentes produzem, pois, bens simbólicos, ou capital
simbólico, que por sua vez passam a constituir os referenciais das “representações”
vivenciadas pelos respectivos integrantes de um dado campo:
Cha mo de ca pita l simbólico qualquer tipo de c apit al, percebi do de
acordo com as categorias de per cepção, os princípios de visão e de
divisão, os sistemas de classificação (...) produto da incorporação
das estruturas objetivas do ca mpo considerado. O ca pital simbólic o
é que faz c om que reverenciemos Luís XIV, que lhe façamos corte,
com que ele passe a dar ordens e que essas ordens sejam
obedecidas, com que ele possa desclassificar, rebaixa r, consagrar ,
etc. S ó existe na medida em que todas as pequenas dife renç as, a s
marcas sutis de di stinção na eti queta e nos níveis sociais, nas
prática s e nas vestimentas, tudo o que compõe a vida na corte,
sejam percebidas pelas pessoas que conhecem e reconhecem, na
prática (que incorporam), um princípio de diferenciaçã o que lhes
permite reconhe cer todas essa s difere nças e atr ibui-lhe s valor (...) O
capital simbólico é um capital com ba se cognitiva, a poiado sobre o
conhecimento e re conhecimento.
1 7 4
170
BOURDIEU, P. ; WACQUANT. L. J. D. Op. cit., p. 175, 176.
171
BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 22.
172
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 141.
173
Id., ibid.
174
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 149, 150.
62
Ao retomar Weber, Bourdieu amplia assim a importância dessa dimensão
simbólica na explicação dos fenômenos sociais, aprofundando a análise sobre a legitimidade
para mostrar como os agentes sociais de um dado campo a produzem, para fazer com que
sejam reconhecidos a sua competência, o seu status e o poder ostentado. Os conceitos de
campo e capital simbólico, anteriormente identificados, consistem em fundamentais
parâmetros para se desenvolver uma história cultural da Igreja Universal pelas razões que
agora passamos a analisar.
Em primeiro lugar, o campo se apresenta como lugar de produção coletiva
da imagem de poder do líder perante os fiéis. Através de uma legitimidade delegada pelos
membros do grupo estabelecidos no próprio campo, a autoridade se perpetua sem recorrer à
coação. Tal legitimidade se define, assim, em sentido geral, como a qualidade daquilo que é
aceito e reconhecido pelos membros do respectivo grupo social, no caso, o movimento
iurdiano. Ocorre ali, pois, a produção da crença a partir do que a própria crença é capaz de
produzir. Nesse sentido, durante longo tempo se fez “uma sociologia da cultura” que se
fixava no seguinte ponto: “como é produzida a necessidade do produto?” Ou seja,
“procurava-se estabelecer relações entre um produto e as características sociais dos
consumidores”.
175
Bourdieu propõe um avanço nesse viés de análise compreendendo que o
“próprio das produções culturais é que é preciso produzir a crença no valor do produto”,
processo este coletivo:
se, que rendo pr oduzir um objeto cultural, qualquer que se ja, eu não
produzo simul taneamente o uni verso de crença que faz com que seja
reconhecido como um obje to cul tural como um quadro, como uma
natureza morta, se não produzo isso, não produzi nada, apenas uma
coisa. Dito de outra maneira, o que caracteriza o bem cultural é que
ele é um produto como os outr os, mas com uma crença que ela
própria deve se r produzida.
1 7 6
Cabe citar, a título de comparação, a obra Os Reis Taumaturgos, de Marc
Bloch,
177
na qual se afirma, em relação à crença do milagre gio, que o “verdadeiro
problema é entender como se pôde acreditar em seu poder taumatúrgico”.
178
Ao estudar o
elemento das representações coletivas, Bloch examina a história do surgimento e da longa
permanência, na França e na Inglaterra, da de amplas camadas da população na força
175
CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 238.
176
BOURDIEU, P. A leitura: uma prática cultural. Debate com Roger Chartier. In: CHARTIER, R. (Org.).
Práticas da leitura, p. 240.
177
A esta obra se atribui certo pioneirismo na elaboração de uma história com interface antropológica. Cf.
BLOCH, Marc. Op. cit, p. 9.
178
Id., ibid., p. 274.
63
milagrosa dos seus monarcas.
179
Tal pesquisa tem como ponto de partida e inspiração as
experiências pessoais vividas por Bloch, durante a Guerra de 1914-18. No campo de batalha,
inicialmente, sua atenção foi despertada para investigar como a propagação de “notícias
falsas” entre os soldados - sob o filtro e a manipulação dos escritos pelo exame repressivo -
exercia influência sobre eles antes e depois de serem confrontadas com a “realidade” dos
acontecimentos. Assim, compreendendo o passado pelo presente, esse autor reporta-se ao
milagre régio constatando que a força da lenda e do mito, legada por substratos da tradição
oral, sobrepõe-se ao que se convenciona chamar de verdadeiro, racional ou cientificamente
comprovável. Dessa forma, mesmo que o poder taumatúrgico do rei fosse uma “gigantesca
notícia falsa” - uma vez que “apenas uma parcela dos doentes recuperava a saúde”; ou ainda
que as feridas, na verdade, desaparecessem de forma espontânea”, para reaparecerem mais
tarde, a idéia da realeza santa e do milagre régio continuava a ser propagada com a força de
um testemunho acumulado em rias gerações, cujo imaginário não pressupunha o juízo da
dúvida. Além do que, ocorria uma plausibilidade que lhes conferia sentido à vida. Em
suma, a existência do milagre se dava na mesma proporção em que se acreditava nele. Assim
entendido, o poder sacro e curativo dos reis era elemento que representava um tesouro de
legendas, de ritos curativos, de crenças meio eruditas, meio populares”, ancorado em fatos
que adquiriram identidade histórica em determinada época, circunstâncias e contexto.
180
Em segundo lugar, o campo religioso é espaço onde alguns agentes
disputam e adquirem maior capital simbólico do que outros. Notadamente se observa como
um dos elementos característicos presentes nas práticas da Igreja Universal a existência de
uma “grife do nome” de seu líder-fundador e as representações de poder que dele se acercam:
o nome “Igreja Universal” quase que automaticamente remete à expressão “igreja do bispo
Macedo”. Edir Macedo ganhou capital e poder simbólicos não somente no âmbito do grupo,
mas também como referência das novas expressões religiosas no Brasil contemporâneo. Os
demais que ostentam titulação diferenciada, na IURD - obreiros, pastores e bispos tornam-
se igualmente agentes admirados perante o grupo, ostentando posições de destaque,
adquirindo maior capital simbólico, à semelhança do que analisa Bourdieu quando elabora
179
Ruy de Oliveira Andrade Filho analisa, com profundidade, como a partir de origens vétero-testamentárias,
acrescido por diferentes influências históricas, o rito da unção régia foi incorporado por monarcas medievais,
através do qual reforçavam perante o povo o caráter divino da sua autoridade. Ver ANDRADE FILHO, Ruy de
Oliveira. Imagem e reflexo: religiosidade e monarquia no Reino Visigodo de Toledo (séc. VI VII). São Paulo:
USP, 1997. 250 fl. Tese (Doutorado em História Social) Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade de São Paulo, 1997.
180
BLOCH, M. Op. cit., p. 23, 187.
64
uma síntese original da clássica tipologia weberiana
181
sobre os agentes religiosos: sacerdote,
profeta, mago/feiticeiro aspectos esses que serão detalhadamente abordados mais adiante
nesta pesquisa. Ainda dentro desse item, é preciso fazer uma observação: ao se pensar sobre a
trajetória de vida de um dado personagem deve-se estabelecer a articulação entre essa
trajetória e o campo em que está inserido, ou seja, “a sua trajetória social, a sua condição, o
seu estado, a sua profissão, as suas produções durante toda a sua vida”:
Não se pode pe nsar a vida de um indivíduo sem situá-la de forma
relacional, dentro do espaço global ou específico no qual se
encontr a. E ver que ele pode mudar, porque ele mesmo muda ou
porque muda o espaço. A trajetória individual está vinculada a um
mundo social inteiro. O indivíduo e stá em relação com os outros.
Desta maneira, a biogra fia sempre implica em coletivi dade .
1 8 2
Assim, para se entender a atuação cultural-religiosa do líder iurdiano, que
demonstra “levar a cabo um projeto criativo original”, é preciso, antes, “recriar o
enovelamento de experiências que estão na raiz de disposições conducentes”, historicamente
situadas.
183
Ou seja, é necessário ter como ponto de partida não a genialidade pessoal” do
líder como fator de êxito do segmento que fundou e comanda, mas sim, a capacidade de
criação coletiva do campo, cujas regras permitiram construções inovadoras de um capital e de
um poder simbólicos desses agentes que adquiriram maior projeção e visibilidade social.
1.3 - Fontes para pesquisa historiográfica sobre a Igreja Universal do Reino de Deus
O método do historiador está diretamente relacionado à seleção das fontes e
ao modo de interpretá-las. Enquanto investigador, “não deve se apoiar apenas em enunciados
diretos das fontes, situadas na superfície”, mas com “espírito escrutador” deve fazer
renovadas perguntas, a partir de um ou mais problemas “formulados com precisão”.
184
Em relação ao uso de fontes para investigação da Igreja Universal do Reino
de Deus, cabe inicialmente dizer que as práticas iurdianas caracterizam a passagem de um
pentecostalismo de oralidade para um tipo de religião que faz do rádio e da televisão, ao lado
da escrita, suas principais formas de expressão. Em vista disso, a IURD se apresenta ao
pesquisador com um amplo leque de possibilidades de fontes para análise e investigação.
181
Tem-se procurado estabelecer o devido limite dos conceitos de Weber, tirados da tradição judaico-cristã
(mago, sacerdote, profeta, leigo, igreja, seita, carisma), uma vez que são elementos atribuídos por Weber ao
modelo de campo religioso da cristandade européia. Mas, vale dizer também, que este limite não é somente de
Weber e sim da sociologia da religião de um modo geral.
182
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 175.
183
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 9.
184
GURIÊVITCH, Aaron. A síntese histórica e a escola dos anais. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 61.
65
Conseqüentemente, essa nova realidade exige que o historiador desenvolva novas e
cuidadosas maneiras de coletar dados e utilizá-los como documentos investigativos, de modo
que o princípio em relação às fontes continue mantendo algumas de suas diretrizes básicas:
Todo documento deve ser analisado a partir de uma crítica
sistemáti ca que dê conta de seu e stabelec imento como fonte
histórica (datação, autoria , condições de elaboração, coerência
histórica do seu testemunho) e do seu conteúdo (potencial
informativo sobre um evento ou um processo históri co).
1 8 5
As fontes de investigação utilizadas nesta pesquisa se compõem de duas
principais modalidades: documentos próprios da Igreja Universal e pesquisa de campo.
1.3.1 - Documentos próprios da Igreja Universal
Podem ser considerados documentos próprios para a pesquisa sobre a IURD
os livros do bispo Macedo, assim como de outros pastores sob seu comando; o site oficial da
igreja na rede mundial de computadores; o jornal Folha Universal; as revistas Plenitude
186
e
Mão Amiga
187
- ambas com tiragem bimestral; material recolhido durante a observação
participante nos cultos, tais como panfletos ou objetos com dizeres gravados; além de
gravação de programas de rádio e TV.
Em relação à primeira modalidade de fontes, destaca-se que Edir Macedo
possui várias obras publicadas, as quais contemplam temáticas que demonstram não apenas a
perspectiva de ação da IURD, mas também a visão desse líder sobre a sociedade assim como
a produção teológica dela decorrente. Identificam-se as seguintes publicações
disponibilizadas como fontes para esta pesquisa:
MACEDO, Edir. Caráter de Deus. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.
____. Pecado e arrependimento. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.
____. O avivamento do Espírito de Deus. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.
____. As obras da carne & os frutos do Espírito. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal,
1986.
____. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1986.
____. O diabo e seus anjos. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1995.
185
NAPOLITANO, Marcos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005,
p. 266.
186
Destaca os cultos e grandes eventos realizados pela IURD, com ênfase nas atividades do bispo Macedo.
187
Considerada o braço de divulgação do trabalho assistencial da IURD.
66
____. Mensagens. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1995.
____. O perfeito sacrifício. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1996.
____. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? 14 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e
Editora Universal, 1990.
____. O despertar da fé. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1997.
____. O poder sobrenatural da fé. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1997.
____. Vida com abundância. 10 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.
____. Apocalipse hoje. 3 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.
____. A libertação da teologia. 7 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1990.
____. O Espírito Santo. 4 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1992.
____. Aliança com Deus. 2 ed. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1993.
Também são utilizados:
ESTATUTO E REGIMENTO INTERNO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE
DEUS. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, s.d.
UNIVERSAL: IGREJA DO REINO DE DEUS. Louvores do reino. Rio de Janeiro: Gráfica e
Editora Universal, 1998.
CABRAL, J. Entre o vale e o monte. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal, 1998.
HELDE, Sérgio von. Um chute na idolatria. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora Universal,
1999.
Quanto ao site da IURD cabe observar que são atualizadas diariamente as
principais atividades que envolvem a igreja, destacando-se a palavra do bispo Macedo, o
depoimento de fiéis, informações sobre as ênfases dadas aos cultos e “campanhas de fé”.
Assim, o procedimento metodológico consistiu em fazer download dessas informações,
catalogando-as em forma de texto para a devida análise e investigação.
Em relação ao jornal Folha Universal, órgão oficial da Igreja, destaca-se a
qualidade com que é confeccionado - em quatro cores, no mesmo formato dos jornais
tradicionais do eixo Rio-São Paulo - assim como a sua qualidade e circulação: chega a cada
templo da Igreja sempre aos sábados, para ser gratuitamente distribuído, com uma tiragem
semanal de aproximadamente dois milhões de exemplares. Vários são os assuntos ali
abordados: economia, política, saúde, cultura, esportes e, evidentemente, religião. Nesse
item, destaca-se a coluna inicial reservada à “palavra do bispo Macedo”, na qual esse líder
informa e comenta o principal tema ou “campanha de fé” que a igreja desenvolverá na
67
respectiva semana. Também se destaca a coluna dos “testemunhos de ”, dedicada aos
depoimentos dos fiéis, em que se relatam os “milagres” recebidos nas diferentes
programações da igreja. O jornal é bastante acessível ao pesquisador, fica diariamente
disponível ao público à entrada de seus templos, podendo também ser acessado pelo site
oficial.
188
Além do que, um acervo atualizado do mencionado jornal no Centro de
Documentação e Pesquisa em História - CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, em
Londrina – PR.
189
A utilização das fontes, até aqui mencionadas, para estudo da IURD coloca
o pesquisador frente a aspectos que envolvem a história da leitura, no desenvolvimento de
“uma história cultural em busca de textos, de crenças e de gestos aptos a caracterizar a
cultura (...).
190
Entendendo que “a leitura e sua compreensão permitem o acesso à
inteligibilidade do passado”, o historiador Cláudio DeNipoti destaca a “circulação de idéias”
advindas dessa prática:
A leitura passa a ser vista como um objeto possível da história, em
particular da história cultural (...) A leitura tem sido trata da como
objeto de pesquisa e análise, utiliz ando-se de diversas abordagens
(...) confronta ndo os diversos momentos históricos e socieda des
com as dife re ntes formas de leitura que foram de senvolvi das (...)
Marcadame nte influenciada por conceitos antr opológicos, de cultura
(no caso de R. Darnton, particularmente a a ntropologia
interpretativa de ri vada de Cl ifford Geertz) a história da le it ura
busca apreender a c ir culação da s idéias (...).
1 9 1
Considerando como a história do livro tem se desenvolvido nestes últimos
vinte anos, Chartier avalia que é preciso avançar e propõe que a história da leitura seja
entendida como “história de uma prática cultural”, o que pode representar “um novo avanço”
na investigação dessa temática. Para isso, é necessário que se investiguem os “usos dos
manuseios, das formas de apropriação e leitura dos materiais impressos”, entendendo que
esse conjunto de atos dá aos textos significados plurais e móveis. Por isso, a utilização de tais
fontes para o trabalho historiográfico deve ser pensada no encontro de maneiras de ler -
coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas - com protocolos
inseridos no objeto lido; ou ainda, numa imbricação triangular estabelecida entre “três pólos:
o texto, o objetivo que lhe serve de suporte e a prática que dele se apodera”.
192
188
http:// www.arcauniversal.com.br .
189
Rua Martinho Lutero, 277 – Londrina – PR.
190
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 7.
191
DENIPOTI, Cláudio. A sedução da leitura: livros, leitores e história cultural Paraná (1880 1930).
Curitiba: UFPR, 1998, p. 14, 15. 300 fl. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal do Paraná, 1998.
192
CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 78.
68
É preciso entender, então, que as significações dos textos, quaisquer que
sejam, são constituídas diferencialmente pelas leituras que se apoderam deles, dando assim
ao ato de ler “o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora”, não devendo por isso
ser anulada no texto lido, “como se o sentido desejado por seu autor devesse inscrever-se
com toda imediatez e transparência, sem resistência nem desvio, no espírito de seus
leitores”.
193
A leitura, representando “o esforço eterno do homem para encontrar
significado no mundo que o cerca e no interior de si mesmo”,
194
carrega consigo um
fertilíssimo substrato cultural que se desenvolve no processo histórico:
A leitura tem uma história. Não foi sempre e em toda parte a
mesma. Podemos pensar nela com o um processo direto de se e xtrair
informações de uma página; mas se considerarmos um pouco ma is,
concordar ía mos que a i nformação deve ser esquadrinhada, retirada e
interpretada. Os esquemas interpretativos pertencem a
configurações culturais, que têm variado enormemente atra vés dos
tempos. Como nossos anc estrais viviam em mundos mentais
diferentes, devem te r lido de form a diferente, e a históri a da le itur a
pode ser tão complexa , de f at o, quanto a história do pensamento.
1 9 5
Pierre Bourdieu considera que
tem sido universali za do o conceito da leitura estrutural, que pensa o
texto por ele mesmo, a uto-suficiente e procura nele mesmo sua
verdade, o que o constitui como auto-suficiente e procura nele
mesmo encontr ar sua verda de.
1 9 6
Acrescenta esse autor que é preciso “historicizar nossa relação com a
leitura” como uma “forma de nos desembaraçarmos daquilo que a história pode nos impor
como pressuposto inconsciente”.
197
Na obra Práticas da Leitura, sob organização de Chartier,
ressalta-se que devido à “crença no poder do livro”, “num primeiro momento, a leitura pode
parecer um ato tão somente mecânico”, no entanto, é um ato que requer aprendizagem:
A escrit a e a leit ura não são objetos de um procedimento espontâneo
de aquisição: trata-se aí ne cessariamente de práticas sociais
instituídas em que o simples o contato com os escrit os e a
observa çã o das leituras, silenc iosas ou não, não são suficiente s para
transmitir.
1 9 8
Tal prática consiste, pois, num “fenômeno cultural” que tem sintonia com o
enraizamento dos grupos sociais que a desenvolvem. Ao aprender a ler, a pessoa reinveste,
193
Id., ibid.
194
DARNTON, Robert. A história da leitura. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas
. São Paulo: UNESP, 1992, p. 219.
195
Id., ibid., p. 234.
196
CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 233.
197
Id., ibid.
198
Id., ibid., p. 26.
69
no domínio do escrito, as práticas culturais mais gerais do seu meio imediato. Portanto, o ato
de ler é, em grande parte, “um processo de produção de sentido, fazendo uma capitalização
cultural específica de cada leitor”, o qual reativa suas aquisições culturais anteriores.
Portanto, deve ser pensada como processo de confirmação cultural.
199
Assim, cabe analisar o
papel que a leitura desempenha sobre as práticas e as representações dos fiéis da IURD, ou
ainda, como estes se apropriam e interagem com as mensagens contidas nos textos. Para isto,
devem ser observados alguns passos metodológicos.
Primeiro, a relação imbricada entre textos e gestos. Compreender o ato de
ler significa perceber que tal prática não requer necessariamente a alfabetização: “Pelas
sociabilidades diversas da leitura em voz alta, existe uma cultura do escrito mesmo entre
aqueles que não sabem nem produzir nem ler um texto” afirma Chartier, no estudo que
realiza sobre as práticas de leitura no Antigo Regime:
As relações tecidas entre os escr itos e os gestos, longe de constituir
duas culturas separadas, elas se encontr am, de fato fortem ente
articul adas. Por um lado, numerosos textos têm por função anular-se
como discurso e produzir, no estado prátic o, as conduta s e
comport amentos tidos como legítimos pelas normas sociais ou
religiosas. (...) Por outro, o e scrito está no próprio centro das
formas mais ge stua is e ora lizadas das culturas (...). É o que ocorr e
nos rituais freqüentemente apoia dos na presença físic a e na leitura
efetiva de um t exto central na cerimôni a. Entre textos e gestos, as
relações são, portanto, estreitas e múltiplas, obr igando a c onside rar
em toda a sua diversidade as pr áticas do escrito.
2 0 0
Segundo, a apropriação feita pelos leitores iurdianos dos textos blicos.
Nesse sentido, deve-se buscar uma história cultural caracterizadora das práticas que se
apropriam diferencialmente dos materiais circulantes numa determinada sociedade, ou seja,
“que concentre sua atenção nos empregos diferenciados, nas apropriações plurais dos
mesmos bens, das mesmas idéias, dos mesmos gestos”.
201
Para entender como ocorrem essas
apropriações, Chartier elabora uma inquietante questão observada a partir da obra Celestina,
publicada em 1507:
Como é que um texto, que é o mesmo para todos os que lêem, pode
transformar-se em instrumento de discórdia e de briga s, entre seus
leitores, cria ndo divergências entre e les e levando cada um,
dependendo de seu gosto pessoal, a ter uma opinião diferente?
2 0 2
199
Id., ibid., p. 39.
200
CHARTIER, R. Leituras e leitores e leitores na França do Antigo Regime, p. 11, 12.
201
Id., ibid., p. 12.
202
CHARTIER, Roger. Textos, Impressão, Leituras. In: HUNT, L. Op. cit., p. 211. Chartier refere-se aqui às
indagações feitas por Fernando Rojas no “Prólogo” que escreve para a “Celestina”, quanto às razões da sua obra
“ter sido entendida, apreciada e utilizada de modos tão diversos”.
70
Ao apontar para as variações que a história da leitura assume em tempos e
lugares, Robert Darnton sublinha que as informações contidas numa página ganham sentido
quando ocorre a interpretação, sendo decisivas as configurações culturais a que pertence o
leitor. Assim, compreender a maneira como se tem lido, possibilita o entendimento de como
se compreende a vida”, pois “a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira
de estabelecer significado”.
203
Não sendo o ato de ler apenas uma decodificação da palavra escrita, uma
vez que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”,
204
a tensão entre tal prática e as
representações se motivada pelo desejo de captação dos signos ligados ao ambiente que
configura a ação existencial do leitor, fato esse que atribui à leitura uma finalidade, um
objetivo, um propósito”:
205
O ato de le r pode ser compreendido como uma prática social, algo
que se inscreve na dimensão simbólica das atividades humanas. Ao
produzir a leitura, o suj eito engaja automaticamente na dinâmica do
processo histór ic o-social de produção de imagens construído sobre o
lugar social que ocupa e do lugar ocupado pel o outro. Estes lugares,
por sua vez, sã o compre endidos em uma dimensão histórica.
2 0 6
Terceiro, observar os protocolos de leitura utilizados nas práticas iurdianas.
É também tarefa do pesquisador observar os suportes editoriais utilizados na confecção das
literaturas, pois um texto, aparentemente “estável”, sofre mutações de sentidos ao ser dado a
ler em formas impressas que se alteram”.
207
Todo texto é lido a partir de suportes ou veículos,
ou seja, o texto não existe em si mesmo, “fora das materialidades, quaisquer que sejam” -
afirma Chartier, que argumenta:
Contra essa abstração, é preciso lembr ar que as formas que fazem
com que os textos sejam lidos, ouvidos ou vist os participam ta mbém
da construção de sua significação. O mesmo texto, fixado pe la letr a,
não é o mesmo, se mudam os di spositivos de sua inscrição ou de
sua comunicação.
2 0 8
As análises feitas por Darnton também apontam para este aspecto:
Mas os textos moldam a recepção dos leitore s por mais ativos que
possam ser (...) cria m um arca bouço e dão um papel ao le itor ao
qual ele não pode se esquivar. (...) A história da leitura terá de
levar e m conta a coerção do texto sobre o leitor, bem c omo a
203
DARNTON, R. História da leitura, p. 218-234.
204
FREIRE, Paulo. Apud BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.). Estudo de leitura. Campinas: Mercado de Letras,
1999, p. 73.
205
Id., ibid., p. 74.
206
ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998, p. 111, 112.
207
Id., ibid., p. 20.
208
CHARTIER, Roger. Crítica textual e História Cultural: o texto e a voz século XVI e XVII. Leitura: teoria
e prática. Campinas: Associação de Leitura no Brasil - ALB, n. 30, p. 67-75, 1997.
71
liberdade do leit or com o texto. A tensão entre essas tendências
existe sempre que a s pessoas estã o diante de livros (...).
2 0 9
Esta primeira composição de fontes, portanto, possibilita ao pesquisador um
escopo mais amplo do que envolve esse segmento religioso em âmbito nacional. Assim,
mesmo existindo obviamente as variações regionais, por meio dos materiais veiculados,
torna-se possível estabelecer um olhar mais panorâmico sobre as práticas da IURD em sua
ressonância cultural.
1.3.2 - Fontes produzidas pela pesquisa de campo
Um dos recursos que compõem este segundo grupo de fontes é a
observação participante. Esse procedimento pode ser conceituado nos seguintes termos:
O proce sso no qual um investigador estabelece um relacionamento
multilatera l e de prazo relati vame nte longo com uma associação
humana na sua situação natural com o propósito de dese nvolver um
entendi ment o científico daquele grupo.
2 1 0
Tal recurso de pesquisa representa uma excelente oportunidade para uma
inserção mais densa nas práticas e representações vivenciadas pelos fiéis da IURD, pois
permite uma análise mais delimitada e específica, devido a incursões mais constantes que se
pode fazer no dia-a-dia de tais experiências. Havendo maior proximidade do contexto ou
ambiente do grupo a ser pesquisado, o pesquisador poderá afirmar ou fazer interpretações
sobre o seu objeto de estudo com maior correspondência ao modo como as práticas ali se
apresentam. As afirmações referentes às crenças religiosas de um povo devem ter sempre o
devido cuidado de apreensão das concepções, imagens mentais, palavras, válidas e coerentes
para o respectivo grupo, com conhecimento amplo do sistema de idéias de que tais crenças
participam ou pertencem.
211
O uso desse método também possibilita maior inserção no universo cultural
vivenciado pelo segmento religioso aqui pesquisado. Segundo Clifford Geertz, a cultura
consiste num “sistema entrelaçado de signos interpretáveis”, que podem ser descritos de
forma inteligível, isto é, descritos com densidade.
212
Esse autor apresenta importantes
procedimentos para a observação participante ou trabalho etnográfico, como recursos de
acesso ao universo cultural do grupo em pesquisa, ressaltando que durante a coleta de dados,
209
DARNTON, História da leitura, p. 128.
210
MAY, Tim. Pesquisa social: questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artemed, 2001, p.177.
211
EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 18.
212
GEERTZ, C. Op. cit., p. 24.
72
a multiplicidade das estruturas de significação pode parecer muito complexa, estranha,
irregular e inexplícita ao pesquisador. Mas, à medida que ocorrem as entrevistas, observação
de rituais, dedução de termos específicos e escrita do diário de campo, tal universo se torna
mais acessível à interpretação.
Buscando decodificar esse sistema de signos, alguns passos práticos são
apontados por Geertz. Primeiramente, o pesquisador precisa se situar dentro do universo
imaginativo em que os atos do grupo em pesquisa são marcos determinados. “Situar-nos, eis
no que consiste a pesquisa etnográfica como experiência pessoal” ressalta esse autor.
213
Também, não deve o pesquisador procurar “tornar-se um nativo” ou “copiá-lo”. O que deve
fazer é conversar com eles, “o que é algo muito mais difícil”. Visto desta maneira, a pesquisa
etnográfica apresenta como um dos seus objetivos o alargamento do universo do discurso
humano.
214
Outro aspecto: para compreender a cultura de um dado grupo, o etnógrafo deve
desenvolver formulações e interpretações dos sistemas simbólicos dos atos apresentados pelo
respectivo grupo, sabendo que, quanto se segue o que fazem e como se comportam os
membros de tal coletividade, “mais lógicos e singulares eles [os sistemas] se parecerão”.
215
Outro elemento importante é que a lógica a partir de referenciais do pesquisador - não pode
ser o principal teste de validade de uma construção cultural. Os sistemas culturais têm
coerência própria, do contrário não seriam chamados de sistemas, por isso a força das
interpretações não pode repousar na rigidez.
216
Ainda observa Geertz que a compreensão de
que a vida social não é fixa, mas dinâmica e mutável. Dessa forma, os procedimentos
anteriormente identificados possibilitarão meios para que o pesquisador se insira mais
profundamente nas atividades do dia-a-dia das pessoas que busca entender, tornando-se parte
do seu universo, registrando as experiências e seus efeitos sobre o comportamento do
respectivo grupo social.
Diferentemente da entrevista, na observação participante o pesquisador
vivencia pessoalmente o evento de sua pesquisa para melhor analisá-lo ou entendê-lo,
percebendo e agindo diligentemente de acordo com as suas interpretações daquele mundo;
participa nas relações sociais e procura entender as ações no contexto de uma situação
observada. As pessoas agem e dão sentido ao seu mundo apropriando-se de significados a
partir do seu ambiente. Desse modo, na observação participante, o pesquisador deve tornar
213
Id., ibid., p. 23.
214
Id., ibid., p. 24.
215
Id., ibid., p. 27.
216
Id., ibid., p. 28.
73
parte daquele ambiente para melhor entender as ações daqueles que ocupam e produzem
culturas, apreender seus aspectos simbólicos, os quais incluem costumes e linguagem.
Victor Turner emprega as expressões “exegese nativa dos símbolos” ou
“perspectiva de dentro” para se referir à compreensão dos símbolos rituais, procurando
entender como os próprios membros do grupo explicam e interpretam-nos. Destaca que “não
incongruência com a realidade para os membros do grupo” e que “cada elemento
simbólico relaciona-se com algum elemento empírico de experiência”. Os referentes são
“tirados de muitos campos da experiência social”.
217
Conforme esse autor, para se conhecer
mais profundamente um ritual “é preciso vencer qualquer tipo de preconceito e investigá-lo”,
e destaca a importância da inserção no grupo em estudo: “Uma coisa é observar as pessoas
executando gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos
rituais, outra coisa é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e a
palavras significam para elas”.
218
Nesse sentido, vale destacar também as observações
metodológicas de Jacques Le Goff, quando afirma que os ritos e os símbolos consistem num
“sistema de gestos” que “permite uma “recuperação para a documentação histórica, para
além do escrito e da palavra (...) este terceiro dado fundamental, que na maioria das vezes é,
aliás, o seu complemento”.
219
Assim, “a história faz-se com documentos e idéias, com fontes
e com imaginação”.
220
O mesmo autor, em capítulo intitulado “o historiador e o homem
quotidiano”, mostra que a visão etnográfica propõe à investigação historiográfica uma nova
documentação: “sem desprezar o documento escrito, o historiador é chamado a pôr-se ao lado
do homem quotidiano, num universo sem textos”. Assim, nos ritos e nos símbolos, o
pesquisador pode investigar a história dos gestos, das mentalidades, das crenças, dos
comportamentos.
221
Evidentemente, tem havido críticas ao método da observação participante.
Afirma-se, por exemplo, que quem o utiliza supõe saber o que é importante a ser anotado
ou observado, ou seja, como se o pesquisador buscasse tão somente a testagem ou
comprovação de idéias ou aspectos teóricos previamente elaborados. Para não incorrer em tal
erro metodológico, deve o historiador construir o conhecimento de seu objeto a partir das
experiências e da realização das investigações detalhadas e meticulosas que a observação
participante possibilita em termos de recursos. Dessa forma, no caso específico da IURD, é
217
TURNER, V. W. Op. cit., p. 60.
218
Id., ibid., p. 20.
219
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 64.
220
Id., Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente, p. 9.
221
Id., ibid., p. 321.
74
preciso que se tenha o devido cuidado quanto à interpretação a partir do que, a priori, se
conhece sobre tal segmento religioso através de informações que advém, por exemplo, da
imprensa, que, grosso modo, costuma referir-se às práticas iurdianas quase sempre em tom de
denúncia ou julgamento, como se “maquiavelicamente” existissem ali pessoas de “boa fé”
sendo financeiramente lesadas por práticas de charlatanismo.
Uma outra crítica suscitada refere-se ao risco de envolvimento demasiado
do pesquisador com o seu objeto, o que poderia comprometer um olhar mais crítico que a
investigação requer, pois “o contato direto do pesquisador com o fenômeno observado” deve
ocorrer sem que haja um demasiado envolvimento daquele.
222
Tendo tal consciência, o
trabalho de campo deve então ocorrer na tensão entre uma “descrição densa” do fenômeno e
o cuidado com o necessário distanciamento do objeto, de modo a garantir maior
plausibilidade em termos de parâmetros epistemológicos que envolvem a investigação
historiográfica.
Considerando mais especificamente o caso da Igreja Universal, a
observação e a interpretação participantes podem possibilitar diferentes perspectivas de
análise e composição de fontes. Primeiramente, permitem a visualização das imagens e a
estética dos rituais desenvolvidos nos cultos. Significa “descrever o rito na própria
consumação do rito”.
223
No culto e nos ritos iurdianos denotam-se códigos emissores e
receptores de comunicação. Há, neles, um universo mítico que se a representar. Os ritos,
ali,
tornam-se um reve lador maior das clivagens, te nsões e
representações que atravessa m uma sociedade. (...) o lugar de um
conflito em que se confr ontam, ao vivo, l ógicas culturais
contraditór ia s; por isso, autorizam uma apreensão das culturas
popular e erudita nos seus cruzamentos. (...) Os ri tos são uma das
formas sociais em que é possível observar tanto a resistência
popular às injunç ões normativas qua nto a re mode lagem segundo os
modelos culturais dom inantes dos comportamentos da maioria.
2 2 4
Tais práticas ritualísticas “fincam raízes em existências particulares”,
reunindo em si os “diferentes traços que desqualificam as práticas lícitas, contrárias à crença
verdadeira”,
225
muitas vezes postulada pelo protestantismo clássico. Na magia dos ritos e na
riqueza simbólica, adotadas por essa Igreja, percebe-se a apropriação de um substrato cultural
legado das crenças afro e da religiosidade popular católica substrato esse que é sincrético
ou pluralmente re-significado a partir de elementos da tradição evangélica.
222
MINAYO, Maria C. S. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1999.
223
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 131.
224
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 22.
225
Id., ibid., p. 27.
75
Além disso, a observação participante viabiliza um contato mais próximo
com a riqueza simbólica dos templos iurdianos, presente não apenas como ornamentação,
mas principalmente como elementos fundamentais no desenvolvimento dos cultos e ritos.
Também permite também melhor constatação e análise do desempenho e performance do
carisma ostentado pelos líderes perante o grupo. “Fazer história etnológica é também
reapreciar, na história, os elementos mágicos, os carismas” afirma Le Goff.
226
É marcante
nos cultos da IURD a “guerra espiritual” contra o Demônio, considerado o grande
responsável por todos os males, o que torna imprescindível a figura do líder taumaturgo,
capaz de sobrepujar-lhe as ações, por meio de um carisma que é estrategicamente
demonstrado, por exemplo, nos procedimentos de cura e de exorcismo. Nesses momentos, o
templo se transforma em palco da luta do bem contra o mal e oder pode, então, demonstrar
ao público extasiado, a sua autoridade e legitimidade, numa representação de algo que lhe
teria sido divinamente concedido, pois nessa Igreja:
Na dramaturgia, além do cenár io e dos objetos, é fundamental a
atuação do ator que com presença, voz , gestos e dramaticidade
provoca atitudes, reações e mudanças no comporta mento da platéia.
(...) O pastor-ator, por meio de suas palavr as e gestos, procura
integrar t odos os presentes no processo de exterioriza ção
interioriza ção coletiva da fé.
2 2 7
Finalmente, esse método de pesquisa possibilita maior acesso ao
comportamento de líderes e fiéis iurdianos e seu modo de ver o mundo e orientar suas ações
em sociedade. Nesse sentido, em um artigo intitulado “O morto se apodera do vivo”,
228
Bourdieu propõe certas categorias para se pensar o material histórico em termos do que seria
uma história incorporada pelos indivíduos, que se apresenta com suas práticas, suas ações,
seus testemunhos, sua história oral, ao lado de uma história objetivada ou reificada ou
institucionalizada, “que aparece em arquivos, em estátuas com construções, na arquitetura e
numa série de coisas”.
229
Em termos de procedimentos práticos, é preciso considerar que a
observação participante envolve aspectos de tempo, lugar e circunstâncias. Nota-se que
quanto mais tempo o observador gasta com o grupo em análise, maior adequação e
possibilidade de interpretação serão alcançadas, pois quanto mais familiarizado estiver com a
linguagem empregada na respectiva situação social vivenciada pelo grupo em pesquisa, por
226
LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média, p. 318.
227
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 94.
228
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989, p. 75-106.
229
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 157.
76
exemplo, mais próxima da realidade poderão ser as suas interpretações. Além do que, o
tempo pode gerar uma relação de maior intimidade e confiabilidade entre os envolvidos no
processo. Um maior envolvimento pessoal permitirá que o pesquisador seja capaz de não
apenas entender melhor os significados e as ações que o grupo realiza, como também obter
acesso a um mundo mais privado ou “de bastidores”. Em relação ao lugar, o pesquisador
deve considerar também queinfluência das condições físicas sobre as ações. Por isso cabe
registrar não apenas as interações observadas, mas também o ambiente físico no qual elas
acontecem.
Nesse aspecto, tomando como referência a IURD, o “onde deve ser
bastante considerado no processo de crença e comportamento ali vivenciados. Robert
Darnton,
230
quando analisa a história das práticas da leitura, afirma que o “onde” pode exercer
influência sobre o leitor por colocá-lo num ambiente que lhe propicia sugestões sobre a
natureza da sua experiência. Nos templos também exposição de fotos, quadros ou objetos
testificando os milagres alcançados pelos fiéis, tendo sempre ao lado versículos bíblicos os
quais procuram fomentar a compreensão sobre o significado do que está exposto. Em uma
das observações participantes realizadas no templo da IURD, em Londrina,
231
notou-se
visivelmente exposto à entrada do templo, um grande mural com fotos, atestados médicos
comprovando curas recebidas; fotocópia da carteira de trabalho, provando o emprego
alcançado e escrituras de imóveis, atestando a aquisição de bens materiais obtidos a partir das
campanhas ou “correntes de oração” feitas na Igreja. Em relação às circunstâncias sociais,
quanto mais variadas as oportunidades do observador relacionar-se com o grupo, tanto em
termos de status, de papel e de atividades, maior poderá ser o entendimento dele. Inserindo-
se nas diferentes atividades vivenciadas pelo grupo em pesquisa, os pesquisadores terão
maior domínio da linguagem no seu sentido mais amplo, incluindo não apenas as palavras e
os significados que elas transmitem, mas também as comunicações não-verbais como as
expressões faciais e corporais em geral. Por conseguinte, familiarizam-se com esse aspecto
do contexto social, aprendem a linguagem da cultura e registram as suas impressões e
quaisquer mudanças de comportamento do grupo em análise. Nesse ponto, o observador
deverá ser capaz de indicar como os significados são empregados na cultura e compartilhados
entre as pessoas, ou seja, sob quais condições e situações são transmitidos.
230
DARNTON, R. História da leitura, p. 203.
231
Templo situado à rua Benjamin Constant, 1649 centro. Observação participante realizada em 16 maio de
2003, no culto das 15 horas.
77
É preciso ainda acrescentar que a utilização de recursos metodológicos da
observação participante, assim como da História Oral
232
- não obstante seus aspectos
positivos, por propiciar uma aproximação maior do cotidiano de líderes e fiéis - cria algumas
dificuldades para o trabalho de campo quando isto envolve a IURD como objeto de
investigação. Dentre elas destacam-se a “desconfiança” que os fiéis têm para conceder
entrevistas; a “fiscalização” ou cerceamento
233
a quem visita os templos munido de máquinas
fotográficas, gravadores, filmadoras e até mesmo de bloco de anotações, pois a IURD vê com
bastante desconfiança a presença de “intrusos” pesquisadores em seus cultos e reuniões, fato
que exige maior habilidade ainda daquele que deseja fazer observação participante ou
entrevistas com líderes e fiéis, como o veremos mais adiante. Inevitavelmente, precisará
manter discrição e anonimato. E, por último, a “quase impossibilidade” de acesso à cúpula
iurdiana para entrevistas. Tal realidade bem se descreve nas palavras de um influente pastor
da IURD, quando procurado para entrevista por um outro pesquisador:
Sinto muito por não poder fazer nada quanto ao se u pedido de
entrevist as na Igreja Universal. Estamos proibidos de dar
entrevist as ou informações sobre o nosso trabalho. Essa proibição
vem de cima. O bispo Mace do proibiu te rm inantemente quaisquer
entrevist as e ele tem os seus motivos. Temos recebido muitas
pessoas com solicitações idênticas; todos vêm com a mesma
conversa , prometendo que vai ser um trabalho neutro,
honesto , porém , voc ê e todos sabem, não existe neutralidade . Por
exemplo, uma vez recebi em casa uma repórter da Folha de S.
Paulo; gastei horas conversando c om ela, e tudo o que saiu
publicado não condizia com a realidade. Nós, na Universal, estamos
cansados desse tipo de tratamento. Por isso, inf el izment e, não
poderemos dar ou autorizar entrevistas. H oje, até a presença de
pesquisador es e m nossos templos, ostensivamente a notando,
gravando ou fotografando, poderá ser encarada como provoc ação, e
não serão bem recebidos pel os obreiros. Não posso garantir como
pessoas nessas circ unstâncias serão tratada s.
2 3 4
Como delimitação do espaço de investigação, neste trabalho, optou-se pelo
desenvolvimento de observações participantes nos templos da cidade de Londrina e no
templo-sede, localizado à Av. João Dias, bairro de Santo Amaro, São Paulo. A escolha desse
232
No desenvolvimento da pesquisa, procurou-se conhecer e utilizar melhor as técnicas desenvolvidas por
especialistas em história oral, especialmente as que o recomendadas por THOMPSON, Paul. A voz do
passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
233
Outros pesquisadores têm mencionado certas hostilidades, fiscalização e constrangimentos sofridos em
trabalho de campo realizado no âmbito da IURD. É o caso, por exemplo, de Mônica do Nascimento Barros,
como o descreve em sua dissertação de mestrado em sociologia, A batalha do Armagedom: uma análise do
repertório mágico-religioso proposto pela Igreja Universal do Reino de Deus. Belo Horizonte: UFMG, 1995.
200 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1995.
234
José Vasconcelos Cabral é diretor-presidente da Gráfica Universal, com sede na cidade do Rio de Janeiro.
Entrevista concedida a Leonildo Silveira Campos, jul. 2002. (Cópia em CD-ROM, disponível no acervo do
Centro de Documentação e Pesquisa Histórica CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua
Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).
78
espaço é estratégica, pois é, hoje, o mais utilizado pela IURD, para a transmissão dos cultos
em rede nacional, pela TV Record e outras emissoras nas quais a igreja mantém programas
diários. Também é nele que o bispo Macedo comparece mais regularmente para participar de
reuniões, especialmente aos finais de semana.
No caso de Londrina, a escolha é igualmente estratégica pelo fato de ter
essa cidade, ao longo de sua formação histórica, desenvolvido um contexto favorável para a
operosidade iurdiana: formação de imaginários milenaristas;
235
abruptos e intensos processos
de urbanização, formadores de grandes periferias, decorrentes de crises instauradas no
campo. A escolha dessas duas cidades para observação e análise representa importante
estratégia também pelas suas diferenças ou contrastes como, por exemplo, em termos de
números de habitantes - Londrina, com cerca de 500 mil e São Paulo com mais de 20
milhões; ou ainda, quanto ao de tempo de existência - Londrina, com 71 anos e São Paulo
com quase meio milênio. Não obstante os contrastes ou disparidades, o movimento iurdiano
tem obtido expressivo êxito em ambos os contextos, isto por encontrar elementos comuns que
se tornam favoráveis à sua operosidade, sobretudo, no âmbito cultural.
Obviamente, o recorte espacial estabelecido para as observações significa
uma amostra de um segmento que atualmente se faz representar nas mais diferentes regiões
do país. Entretanto, ao menos dois aspectos favorecem a abrangência de tal amostragem.
Nota-se, inicialmente, uma certa padronização dos cultos e rituais realizados diariamente. As
dramaturgias seguem um mesmo modelo para todos os templos, sendo devidamente
planejadas pelas autoridades centrais, o colégio de bispos, em reuniões comandadas,
pessoalmente ou por telefone, por Edir Macedo. Essa sensação de unidade é partilhada pelos
fiéis, ao que se aplica bem a frase de Pierre Bourdieu: “pertencer ao grupo significa ter no
mesmo momento do dia e do ano o mesmo comportamento de todos os outros membros do
grupo”.
236
Somado a esse fato, há a veiculação em rede nacional de seus programas religiosos,
tanto através da televisão, pela Rede Record, quanto pelo rádio, mediante a cadeia
235
A Companhia inglesa responsável pela colonização do Norte do Paraná, a partir da década de 1930,
empreendeu forte apelo propagandístico que apontava para o aspecto paradisíaco dessa região. Esse imaginário
de Terra da Promissão, da Nova Canaã e do Novo Eldorado, pode ser observado nos termos empregados nas
matérias publicadas pelo jornal da Companhia colonizadora: “A cadeia é lugar de descanso (...) O paraíso
perdido pode ser encontrado nos domínios da Companhia de Terras Norte do Paraná, onde não ladrões, os
crimes são raros, conflitos de certa gravidade raramente acontecem (...); todos os que habitam este pedaço
dadivoso, da grande zona que é o Norte do Paraná, e onde o jornal vai agir no sentido de propagar-lhe a riqueza,
concretizada na fertilidade inigualável do seu solo (...) neste pedaço de terra americana, onde várias raças se
misturam na mais comovedora das harmonias”. Cf. Jornal Paraná-Norte, Londrina, n. 1, 9 de out. 1934.
(Material disponível no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica - CDPH, da Universidade Estadual de
Londrina).
236
BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 48.
79
radiofônica denominada “Rede Aleluia”. Muitos desses programas são transmitidos
diretamente de templos ou locais em que, principalmente Edir Macedo ou demais bispos que
o auxiliam, atuam.
Também compondo este segundo grupo de fontes aqui utilizadas, estão os
programas da Igreja veiculados pelo rádio e pela TV. Nas grandes cidades do país,
normalmente a IURD adquire concessões ou então aluga horários em emissoras de grande
alcance para diariamente veicular sua programação religiosa. Vale considerar que o uso de
tais recursos midiáticos tem sido um eficiente mecanismo de propagação da mensagem
religiosa iurdiana. A agressividade, nesse setor, tem sido um dos elementos responsáveis
pelos números expressivos do uso da mídia por igrejas evangélicas brasileiras: “atualmente,
os evangélicos controlam mais de 300 emissoras de rádio e canais de TV no país, com
faturamento global acima de meio bilhão de reais por ano. Mais de 80% da programação
religiosa na TV brasileira é evangélica”.
237
O uso desses programas como fontes de pesquisa deve considerar que “a
TV não é igual a um rádio com figuras”, pois se o próprio rádio não é simples, “os meios
áudio-visuais são um amálgama complexo de sentidos, imagens, técnicas, composição e
seqüência de cenas, etc.”.
238
Na estrutura e conteúdos desses mecanismos intencionais e
sofisticados usos de técnicas visando a modulações de fala, imagens, etc., recursos de
especialistas que podem instigar o afloramento de sentidos de que compõe o imaginário
coletivo. Assim, o produto final transcrito a ser usado pelo pesquisador será normalmente
uma condensação de toda essa complexidade. A pesquisa com imagem e/ou som envolve,
assim, alguns dos procedimentos que também ocorrem em relação às fontes escritas: escolha
ou seleção, anotações ou transcrição e análise. Primeiramente, uma seleção de programas
a serem observados. Nesse sentido, no caso da IURD, é preciso considerar a diversidade de
programação. programas diferentes em horários também diferentes: entrevistas, em que
os fiéis dão testemunho de milagres alcançados ou sucesso financeiro obtido através da ajuda
da igreja; mensagens dos pastores, em especial do bispo Macedo; musicais; transmissão ao
vivo de cultos realizados nos templos etc. Portanto, é plausível escolher para observação e
análise programas em diferente horários para que se tenha uma amostragem mais ampla do
que a IURD propaga e realiza.
237
Revista Veja, São Paulo, p. 91, 03 jul. 2002.
238
BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes,
2002, p. 343.
80
Em vista disso, sendo disponibilizados diariamente tais programas pelo
rádio e TV, foram feitas gravações, as quais, depois de transcritas, datadas, catalogadas e
arquivadas, passaram a ser usadas como fontes para a devida pesquisa e a investigação
historiográficas. Obviamente, a finalidade da transcrição é gerar um conjunto de dados que
possibilite uma análise mais cuidadosa do objeto em questão. É preciso também estar ciente
de que a transcrição inevitavelmente simplifica a imagem complexa da tela, com tendência a
se evidenciar mais o verbal do que o visual. Isso também envolve escolha: o que transcrever?
No caso da IURD é importante que se leve em conta a riqueza simbólica disponibilizada na
tela durante os programas, na qual costumam aparecer elementos como: a Bíblia, lida
repetidamente pelos pastores para reforçar ou fundamentar os seus argumentos e apelos,
havendo muitas vezes, inclusive projeção de textos blicos, tendo ao fundo imagens que
ilustram o que se está lendo, como por exemplo, as do Monte Sinai, da Terra Santa, lugar
para onde os bispos costumam viajar com o propósito de levar pedidos e súplicas dos fiéis;
carros, casas e empresas, quando se quer falar de prosperidade; cenas de rituais afro e de
sessões de exorcismo, quando se quer falar sobre a maneira como o demônio age na vida das
pessoas etc; grandes aglomerações de fiéis nos templos ou espaços mais amplos, para se
ressaltar como milhares de pessoas estão recorrendo à IURD.
Cabe também observar o “milagre da multiplicação da imagem”, o que se
constitui importante mecanismo para análise do comportamento social do grupo. De maneira
intencionalmente, ou não, nessa Igreja se adota uma padronização quanto ao comportamento
de seus pastores e bispos. Isso pode ser observado nos programas na mídia e na performance
desempenhada nos templos: mesmo timbre de voz, sotaque, gestos, vestimentas, modelo que
segue o perfil do líder maior, o bispo Macedo. Tal procedimento acaba por transmitir aos
fiéis a sensação de que qualquer templo que freqüentarem, em qualquer cidade do país,
encontrarão sempre a “figura” de Macedo em milhares de pastores que “multiplicam” essa
presença em todos os lugares ao mesmo tempo. Em outras palavras, não nos programas de
rádio e TV, mas em qualquer templo da IURD, a sensação de se estar ouvindo e vendo o
bispo Macedo. Nesse sentido, entendendo representação” também como tomar o lugar de
alguém”,
239
pode-se dizer que o carisma ostentado por Macedo perante o grupo é quantitativo
e estrategicamente ampliado, graças às inúmeras igrejas e aos diversos programas midiáticos
nos quais é representado pelos pastores sob o seu comando.
239
BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994, p. 20.
81
Nesse aspecto, cabe estabelecer um paralelo metodológico em relação ao
uso das fontes de pesquisa feito por Peter Burke ao escrever a obra A Fabricação do Rei. Ao
analisar a construção da imagem de Luís XIV, Burke afirma que ela tornou-se referência de
imitação por parte de outros monarcas. Ressalta também que a grande ressonância de
identificação entre o rei o povo se dava mediante a multiplicação e popularização da imagem
do rei. Para isto eram utilizadas literaturas, peças teatrais e rituais, sendo esses dois últimos
bastante valorizados: “entre a gente do povo (...) impressões físicas têm um impacto muito
maior que a linguagem (...)”.
240
Usavam-se também os retratos da sua imagem, os discursos e
as aparições públicas: “Luís sabia como vender suas palavras, seu sorriso, até seus
olhares”.
241
Burke observa no caso de Luís XIV “a ritualização ou mesmo a teatralização de
boa parte da sua vida cotidiana”.
242
As encenações ocorriam nos espetáculos, na intimidade e
nas aparições públicas do rei: Não é forçar demais o termo descrever essas ocasiões como
‘rituais’, pois tinham o propósito de comunicar uma mensagem”, mas “pode ser mais
esclarecedor referir-se às atividades como mais ou menos ritualizadas (mais ou menos
simbólicas)”.
243
Burke ressalta ter procurado enfatizar “que o rei era continuamente criado ou
recriado” por meio das performances em que desempenhava seu papel, sendo que tais
representações se configuravam em práticas: “Essas representações tornavam-se realidade, no
sentido de que afetavam a situação política”.
244
O rei também contava com uma equipe de assessores a qual elaborava
estratégias e meios para a fabricação da sua imagem: “ministros e conselheiros tinham grande
preocupação com a imagem real” procurando “dar atenção a todo sistema de
comunicação”;
245
cuidavavam para que o rei “aparecesse erguendo o bastão, não apoiado
nele”.
246
Logo, a analogia feita às práticas iurdianas são quase inevitáveis. Em 1995, quando
emissoras de TV exibiram um vídeo que teria sido gravado por um pastor dissidente da
IURD, no qual Macedo aparecia dando um treinamento aos seus pastores em relação à
maneira com que deveriam se comportar perante o público:
Vocês não devem a parece r perante o público com aquel a conversa
mansa, parecendo um padre, como um coitadinho (...) o público quer
ver em vocês agressividade, bravura ... alguém que é capaz de
240
Id., ibid., p. 19.
241
Id., ibid., p. 16.
242
Id., O que é História Cultural?, p. 114.
243
Id., ibid.
244
Id., ibid., p. 116.
245
Id., ibid.
246
Id., ibid., p. 14.
82
enfrentar o Diabo; o povo quer ser provocado, chamado para um
desafio contra o demônio para vencê-lo (...).
2 4 7
Sintetizando, pode-se dizer que a IURD vivencia habilmente uma “cultura
do impresso com uma cultura ainda amplamente oral, gestual e imagética”.
248
Palavra e
imagem são nela essenciais, mas o escrito impresso continua a desempenhar um papel de
primeira importância na circulação de modelos culturais. A IURD mantém uma cultura do
escrito, mesmo entre os que são pouco afetos à leitura, a qual é a apreendida através dos
rituais inspirados nos escritos bíblicos.
Os recursos da História Oral são também elementos importantes na
pesquisa de campo sobre a Igreja Universal:Permite o registro de testemunhos e o acesso a
“histórias dentro da História” e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do
passado”.
249
E mais:
Uma das principais riquezas da História Oral est á em permitir o
estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaborara m
experiências (...) entender como experimentaram o passado torna
possíve l questionar interpretações gener alizante s de determinados
acontecimentos e conjuntura s.
2 5 0
Assim, ao se procurar compreender o universo cultural e a situação
histórica em que surgiu e continua a se desenvolver a IURD, é fundamental ouvir
prioritariamente as personagens mais concretas que vivenciam as práticas dessa Igreja em
seus cultos e rituais: seus líderes e fiéis. Entretanto, como observado anteriormente, a
entrevista direta com Edir Macedo ou mesmo com pastores que estão sob o seu comando é
algo bastante difícil, uma vez que se negam a concedê-las. Tal desconfiança em relação aos
pesquisadores se acirrou principalmente quando houve o episódio conhecido como “chute na
santa”.
251
A partir dos desdobramentos desse fato, envolvendo uma série de denúncias feitas
pela TV Globo em relação às práticas da IURD, a igreja adotou postura de não permitir
filmagens dos seus cultos, sendo os pastores também proibidos de conceder qualquer
informação sobre a igreja. Evidentemente, essa recusa dos líderes em se deixar conhecer aos
pesquisadores já consiste em elemento a ser considerado no processo investigativo.
247
Gravação em fita de vídeo feita pelo ex-pastor iurdiano Carlos Magno de Miranda e levada ao ar pela Rede
Globo de Televisão, em dezembro de 1995.
248
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 376.
249
ALBERTI, Verena. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p.
156.
250
Id., ibid., p. 165.
251
Sérgio Von Helde, bispo da IURD, em 12 de outubro de 1995, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida,
em um programa levado ao ar pela TV Record, sob a alegação de ser esta “objeto de idolatria”.
83
Para driblar tais dificuldades, foram adotados nesta pesquisa alguns
procedimentos. Primeiramente, obter acesso a várias entrevistas concedidas, principalmente
por Macedo, antes do episódio conflituoso anteriormente referido, a revistas e jornais não
pertencentes à igreja. Depois, colher, de maneira indireta, a opinião ou entrevistas de líderes e
fiéis, concedidas ao jornal Folha Universal e revistas da própria denominação, aos programas
religiosos veiculados através do rádio e da televisão, ou ainda, às revistas de circulação
nacional, que apresentam matérias jornalísticas sobre a IURD. Também, conquistar a
confiança dos fiéis no sentido de concederem algumas entrevistas, atentando para que seus
nomes não fossem, por exemplo, literalmente mencionados. O livro Usos e Abusos da
História Oral, ao discutir acerca do “lugar da entrevista”, sugere que essa ocorra na casa do
entrevistado ou no local de trabalho.
252
No caso da IURD, tornou-se inviável fazer a
entrevista com os adeptos e os obreiros (auxiliares dos pastores) no espaço do templo, no
intervalo dos cultos etc. Eles não ficavam à vontade, pelos motivos anteriormente
apresentados. E para que o encontro ocorresse em um outro local, foi “indispensável criar
uma relação de confiança entre informante e entrevistador”.
253
A observação participante,
desenvolvida de forma sistematizada, contribuiu para essa relação de confiança.
Quanto às gravações diretamente feitas com os fiéis, as entrevistas se deram
a partir de perguntas fechadas ou bastante direcionadas, e outras mais abertas para que os
interlocutores pudessem se expressar mais livremente. Fizemos as devidas anotações, dados
que mostram como os entrevistados compreendem e descrevem a experiência que têm
vivenciado em suas práticas religiosas.
de se considerar, ainda, que a História Oral, vista como uma técnica de
investigação ou um método de pesquisa social do tempo presente, também tem sido alvo de
recorrentes críticas. Uma delas é a de que possui um grau elevado de subjetividade, ou seja,
por ela o historiador faz ao seu interlocutor tão somente as perguntas que interessam ao seu
objeto enquanto o interlocutor, por sua vez, também declara somente aquilo que interessa que
fique registrado. um direcionamento para a pesquisa. Sobre isso, vale contrapor tais
indagações com as palavras de Jacques Le Goff:
Não existe um documento objetivo, inócuo, primário. (...) O
documento não é qualque r coisa que fica por conta do passado; é um
produto da soc ie dade que o fabricou segundo as relações de forças
que detinham o poder. Só a análise do documento enquanto
252
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (Orgs.). Usos e abusos da História Oral. 5 ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2002, p. 236.
253
Id., ibid., p. 234.
84
monumento per mite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador
usá-lo cientificament e, ist o é, c om ple no conhecimento de causa.
2 5 4
Outra crítica é a de que ocorre a escolha das pessoas a serem ouvidas,
havendo grandes direcionamentos ou intencionalidades, pelo pesquisador em sua abordagem.
É preciso, contudo, ponderar que todo procedimento de pesquisa historiográfica envolve
“escolhas”:
Mas toda história é escolha. É-o, até devido ao acaso que a qui
destruiu e ali salvou os vestígios do passado. É-o, de vido ao
homem: quando os documentos abundam, ele resume, si mplifica,
põe em destaque isto, apaga aquilo. É-o, sobretudo, porque o
historiador cria os seus materiais, ou, se quiser, recria-os: o
historiador que não vagueia ao acaso pelo pa ssado, como um
trapeir o à pr ocura de achados, mas parte com uma intenção precisa ,
um problema a resolver, uma hipótese de trabalho a verificar.
2 5 5
Inegavelmente, os depoimentos orais aqui recolhidos e analisados podem
carregar elementos de subjetividade. Entretanto, isso não faz que essa fonte tenha menos
importância que o material escrito.
O test emunho oral te m sido amplamente discutido c omo fonte de
informação sobre eventos históricos. Ele pode ser enca ra do como
um evento em si mesmo e, c omo t al, submetido a uma análise
independe nte que permita recuperar não apenas os aspectos
materiais do sucedido como também a atitude do narrador em
relação a eventos, à subjetivida de, à imaginação e ao desejo que
cada indivíduo investe em sua rel ação com a história.
2 5 6
Além do que, a História Oral, apesar de ser-lhe normalmente atribuída um
maior grau de subjetividade e dessa trabalhar com certo deslocamento no tempo, propicia
elementos, informações e acesso a determinadas discussões que a fonte escrita nem sempre
pode propiciar, como por exemplo, as vivências e as percepções dos indivíduos em seu
cotidiano, um aprofundamento no universo cultural-religioso de tais agentes. Tal recurso
ajuda a trazer mais luzes para a compreensão do porquê, por exemplo, de tanta “teimosia”
por parte dos fiéis em continuar sendo seguidores de tal segmento, mesmo sob o fogo
cruzado de tantos questionamentos e críticas de diferentes setores da sociedade.
É preciso também considerar, entretanto, que essas mesmas preocupações
voltadas à subjetividade também se aplicam às fontes escritas. Ao analisarmos o jornal, por
exemplo, temos de considerar que as informações nele contidas também possuem a posição
pessoal do jornalista e, até mesmo, a censura estabelecida pelo próprio jornal enquanto
254
Apud KARNAL, Leandro; NETO, José Alves de F. (Orgs.). A escrita da memória: interpretações e análise
documentais. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004, p. 30.
255
Id., ibid., p. 28.
256
PORTELLI, A. Sonhos ucrônicos. Memórias e possíveis mundos dos trabalhadores. Projeto História, São
Paulo, Educ, n. 10, p. 41, 1993.
85
veículo informador, isto é, não nada que impeça a fonte escrita de conter elementos de
subjetividade tanto quanto a fonte oral. É preciso ressaltar ainda que o mesmo
direcionamento e papel de escolha pelo historiador também ocorrem no uso que se faz de
fontes escritas; escolha e seleção de conteúdos que interessam à temática que se está
investigando, por exemplo. E, de igual modo, também houve seleção de temas por parte
daqueles que produziram os registros, depois transformados em “documentos escritos”. Além
do que, geralmente o historiador utiliza a fonte oral como a única fonte para o seu trabalho.
Ao contrário do trabalho jornalístico, que tem como maior preocupação colher depoimentos e
transmiti-los, o historiador deve problematizar os depoimentos, fazendo o devido cruzamento
com outros documentos.
Também os que se dedicam ao estudo da História Oral costumam ressaltar
que a elaboração de um roteiro de entrevistas prévio é parte importante do uso desse método:
Nenhuma entr evista deve ser realizada sem uma preparação
minuc iosa : consulta a a rqui vos, a livros sobre o assunto, à vida do
depoente, leitura de suas obra s, se houver alguma, bem como
referênci a sobre as principais etapas de sua biogr afia. Cada
entrevist a supõe a abertura de um dossiê de document aç ão. A partir
dos elementos escolhidos, ela bora -se um rote iro de perguntas do
qual o informante deve estar ciente durante toda a entrevista.
2 5 7
Nesta mesma obra, Usos e Abusos da História Oral, adverte-se ainda sobre
os cuidados que se deve ter na elaboração de um questionário de entrevistas, para que não
dirija passo a passo a testemunha e assim, “a mesma fique presa a um roteiro que o lhe
permite desenvolver seu próprio discurso”. Por outro lado, se a testemunha for deixada
totalmente livre, há o risco de se afastar do tema tratado. Por isso, “a entrevista semidirigida é
com freqüência um meio-termo entre um monólogo de uma testemunha e um interrogatório
direto”. À medida que a entrevista prosseguir, o roteiro terá, às vezes, que ser modificado. “O
entrevistador deverá adaptar-se à testemunha e nunca dar por encerrada uma entrevista antes
de acabar o questionário”.
258
Em síntese, os recursos metodológicos da História Oral demonstram
relevância para a investigação da IURD principalmente pelo fato de possibilitarem maior
aproximação das práticas e vivências cotidianas de seus membros. Para tanto, que se ter
consciência também das limitações desse método de pesquisa. Por isso, as fontes produzidas
por tal recurso foram nesta pesquisa cruzadas com outros documentos disponíveis.
259
Aliás, o
257
AMADO, J. ; FERREIRA, M. M. Op. cit, p. 236.
258
Id., ibid., p. 237.
259
Para o uso que aqui se fará da História Oral, serão adotados alguns parâmetros propostos, por exemplo, pelas
obras: PORTELLI, A. Memória e Diálogo: Desafios da História Oral para a ideologia do século XXI. Fio Cruz
- Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2000, p. 67-71; PORTELLI, A. O que faz a História Oral diferente.
86
cruzamento de diferentes fontes, anteriormente nominadas, foi uma tônica no transcorrer
de todo o trabalho aqui realizado, estando-se ciente de que, na análise de entrevistas de
História Oral deve-se ter em mente também outras fontes primárias e secundárias; orais,
textuais, iconográficas etc – sobre o assunto estudado.
260
Finalizando esses apontamentos metodológicos, vale observa ainda que a
pesquisa sobre a IURD pode ser classificada como “história do tempo presente”,
considerando-se que os acontecimentos que a envolvem se dão no “calor da hora”. Nesse
aspecto, o historiador Eduardo Basto Albuquerque, em texto bastante elucidativo
261
- no qual
procura analisar a distinção no campo das disciplinas da história que tratam da religião e
estabelecer relações do saber histórico e da religião na constituição do objeto e nas suas
relações metodológicas - ressalta que, ao tomar a religião por objeto, é fundamental que o
historiador tenha como um de seus objetivos “preocupar-se com a inserção socialda mesma
“em certo tempo”,
2 6 2
independentemente do seu recorte cronológico:
Mas se há a lgo que distingue o sa ber histórico dos outros saberes é
que sua postura de ancor ar-se no tempo como fundamento de onde
partem todas as suas análises. Sem o tempo não há historiador.
Breve ou curto e longo ou muito longo, sempre o tempo é a base na
qual todo historiador se finca para realizar suas análises.
2 6 3
Destaca ainda Albuquerque que o historiador que toma o fenômeno
religioso por objeto pode aumentar a sua compreensão devido a dois pontos centrais: “a
temporalidade e as variedades do fenômeno religioso no tempo e no espaço”,
2 6 4
e argumenta:
Sua característica básica é que o conte xto histórico no qual se
insere a religião é essencial para compr eendê-la. Daí a necessidade
de constr uí-lo ou reconstruí-lo formando um conjunto que abrange a
psicologia soci al, a história social, política, econômica etc.
2 6 5
Investigar a IURD, nesse caso, significa para o pesquisador inscrever-se
dentro de um período de grandes mutações sociais, culturais e econômicas, com profundas
repercussões no campo religioso. Naturalmente, viver em períodos históricos representa para
o pesquisador vantagens e desvantagens. O principal aspecto positivo está em poder realizar
com mais facilidade, possivelmente, o que Pierre Bourdieu denomina uma “conversão do
Projeto História, São Paulo, n. 14, p. 25-39, fev. 1997.
260
ALBERTI, V. Op. cit, p. 187.
261
ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Distinções no campo de estudo da religião e da história. In:
GUERRIERO, Silas (Org.). O estudo das religiões: desafios contemporâneos. São Paulo: Paulinas, 2003.
262
Eduardo Albuquerque cita como exemplos dessa perspectiva, os trabalhos de Marc Bloch (Os reis
taumaturgos); Jacques Le Goff (O nascimento do purgatório); Carlo Ginzburg (O queijo e os vermes); Keith
Thomas (Religião e o declínio da magia). Id., ibid., p. 64.
263
Id., ibid., p. 57.
264
Id., ibid., p. 67.
265
Id., ibid., p. 65.
87
olhar” ou uma “ruptura epistemológica”.
266
Segundo esse autor, as rápidas mudanças sócio-
culturais estimulam alguns atores a adquirir uma visão perspicaz e crítica da própria
sociedade em processo de ebulição, sendo isso um elemento fundamental aos que se dedicam
à compreensão da sociedade: “As rupturas epistemológicas são muitas vezes rupturas sociais,
rupturas com as crenças do corpo de profissionais, com o campo de certezas partilhadas que
fundamenta a comnunis doctorum opinio” - afirma.
267
Em outras palavras, a convivência com
as tensões do campo religioso pode permitir não somente uma melhor proximidade do objeto,
mas principalmente a possibilidade de se compreender o fenômeno a partir de novos
conceitos ou reformulações de postulados teóricos que não mais conseguem responder às
mutações geradas pelo processo histórico.
Em termos de fontes e documentos, a investigação de um objeto do tempo
presente também significa que tais recursos se produzem simultaneamente ao trabalho do
pesquisador. Mas a plausibilidade de tal investigação pode ser fundamentada nas
considerações feitas por Eric Hobsbawm, quando apresenta a sua própria experiência na
atenção que dedicou em seus escritos à história do tempo presente: “O breve século XX
quase coincide com meu tempo de vida (...) Falo como alguém que atualmente tenta escrever
sobre a história de seu próprio tempo (...)” - e acrescenta: “toda história é história
contemporânea disfarçada”.
268
Feitas tais observações teórico-metodológicas, pode-se concluir com as
considerações apresentadas por Eduardo Albuquerque ao afirmar que “o estudioso acadêmico
da religião sabe que em vários momentos de sua pesquisa surgem questões as quais requerem
elementos de análise que rompem fronteiras epistemológicas”, sendo importante, neste caso,
escolher perspectivas de abordagem “conforme exigir o objeto e, mesmo assim, em um
momento ou segmento da pesquisa”.
269
266
BOURDIEU, P. O poder simbólico, p. 39.
267
Id., ibid.
268
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 243.
269
ALBUQUERQUE, E. B. Op. cit., p. 66.
88
2 – O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL EM QUE SE DESENVOLVEU O
PENTECOSTALISMO BRASILEIRO
O funcionamento da Igreja Universal do Reino de Deus articula
eficazmente mecanismos internos próprios do campo religioso e também elementos externos
que se situam em contextos sócio-econômicos e políticos específicos. Assim, é importante
relacionar a configuração do capital simbólico cultural, que propiciou um universo
representacional vivenciado por esse movimento, com um ambiente mais amplo,
dimensionado em outros campos da sociedade e que marcaram o país sobretudo no século
XX. Tal procedimento é necessário para que o segmento religioso, aqui investigado, não seja
compreendido como algo à parte da dinâmica histórica, pois como observa Jacques Le Goff,
“um fenômeno histórico jamais se explica plenamente fora do estudo de seu momento”.
270
As
expressões de crenças devem ser observadas em relação à cultura e à sociedade nas quais se
manifestam, como uma “relação de partes entre si dentro de um sistema historicamente
coerente”,
271
pois “o pensamento religioso não evolui sozinho no espaço simbólico, ele
interage com outras formas de pensamento e outras esferas de organização social, política e
cultural”.
272
Esse procedimento metodológico é também lembrado por Mircea Eliade,
quando afirma que não existe nenhum fenômeno religioso “puro”, fora da história, “porque
não existe nenhum fenômeno humano que não seja ao mesmo tempo fenômeno histórico”;
toda experiência religiosa é “expressa e transmitida num contexto histórico particular” -
declara.
273
Por essa razão, segundo esse autor:
[o historiador] Deve ainda c ompree nder o significa do, que r diz er
que deve identificar e ilumina r as situações e as posições que
induziram ou tornaram possíve l o a parecimento ou o triunfo desta
forma religiosa num momento particular da história . Isso constitui a
verdadeira funç ão cultura l do historiador das religiões.
2 7 4
Desse modo, a relação que os elementos das práticas e representações
iurdianos mantêm entre si e com os demais aspectos presentes na sociedade como um todo,
tendo como finalidade “determinar-lhes a significação intrínseca e social”,
275
implica
270
LE GOFF, J . In: BLOCH, M. Op. cit, p. 17.
271
EVANS-PRITCHARD, E. E. Op. cit., p. 155.
272
DELGADO, Lucila de A. N.; FERREIRA, Jorge (Orgs.). O Brasil republicano. O tempo da ditadura: regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. V. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 102.
273
Id., ibid., p. 28.
274
ELIADE, Mircea. La nostalgie es origines: méthodologie et histoire des religions. Paris: Gallimard, 1978, p.
18.
275
Id., ibid., p. 32.
89
conhecer e analisar as mudanças e transformações que o contexto histórico-social brasileiro
experimentou no período correspondente à formação e desenvolvimento do campo
protestante no país em suas diferentes faces, sobretudo com pontuações para os períodos
correspondentes ao surgimento e projeção do pentecostalismo em suas diferentes tipologias.
Assim procedendo, o movimento iurdiano será situado num ambiente de mobilidades do
campo religioso a partir de relações que se estabelecem com processos que articulam
elementos de âmbito sócio-econômicos e políticos no país, em tais períodos.
Seguindo a formulação feita por Pierre Bourdieu, de que “a história dos
deuses segue as flutuações históricas de seus seguidores”,
276
uma análise das dimensões de
tempo, lugar e circunstância em que a Igreja Universal surgiu e se desenvolveu no contexto
brasileiro, possibilitará então melhor compreensão de como esse segmento religioso obteve
êxito em sua construção histórica.
2.1 – O contexto de movimentos precursores
Durante o período colonial, os colonizadores portugueses estabeleceram em
solo brasileiro uma espécie de monopólio religioso, procurando impedir a entrada de
estrangeiros que não professassem a católica. Nesse período, o Tribunal do Santo Ofício,
por meio das conhecidas “visitações”, agia com rigor para extirpar qualquer prática religiosa
que fosse caracterizada “heresia”. Gilberto Freyre registra que em tal época “todo navio que
entrava num porto brasileiro recebia a bordo um frade capaz de examinar a consciência, a
e a religião de um recém-chegado. O que barrava um imigrante naqueles dias era a ortodoxia
(...) a possibilidade de ser herético”.
277
Não obstante as restrições impostas, duas tentativas de inserção foram feitas
por protestantes no Brasil colonial. Ambas acabaram sendo fortemente rechaçadas pela
religião dominante, o catolicismo, sob a acusação de se constituir prática de heresia, dado o
calor dos conflitos desencadeados naquele período pelo processo de reformas na igreja, que
contrapunha protestantes e católicos, e envolviam o aspectos religiosos, mas também
interesses econômicos de controle e conquistas de mercados pelos países europeus. A
primeira tentativa de inserção no país, por protestantes, data de 1555, quando se deu a
chegada da expedição liderada por Nicolau Villegaignon, que objetivava fundar a França
Antártica e construir uma espécie de refúgio onde calvinistas franceses, conhecidos como
276
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 91.
277
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Maria Schimidt, 1933, p. 237.
90
huguenotes, pudessem praticar livremente a reformada, uma vez que sofriam duras
perseguições religiosas em seu país de origem. Como desdobramento ainda desse projeto, em
10 de março de 1857, chegaram em solo brasileiro pastores enviados por João Calvino, da
cidade de Genebra, Suíça, com o propósito de difundir o culto protestante.
278
Em decorrência
de conflitos com deres políticos e religiosos portugueses,
279
a expedição teve seu término
com a expulsão, em 1860, de todos os franceses e a desativação da colônia que havia sido
organizada por Villegaignon.
Um segundo esforço de inserção no Brasil se deu no século XVII, entre
1630 e 1654, dessa vez com holandeses, através do empreendimento denominado
“Companhia das Índias Ocidentais”, que se estabeleceu inicialmente em Pernambuco e,
depois, em outras áreas do Nordeste brasileiro. O objetivo principal era o comércio de açúcar.
280
Maurício de Nassau, líder do projeto, também se preocupou em trazer ao Brasil pastores
da Igreja Reformada Holandesa, que chegaram a desenvolver um trabalho religioso o
apenas com a comunidade holandesa, mas também com outros grupos existentes no país.
Com esse propósito, foi elaborado até mesmo um catecismo nas línguas holandesa,
portuguesa e tupi, sendo organizadas inclusive algumas igrejas que praticaram o culto
reformado. Em 1654, conflitos políticos e econômicos provocaram o fim desse
empreendimento, desaparecendo também com isso os vestígios institucionais do cristianismo
protestante holandês em solo brasileiro.
281
No início do século XIX, em 7 de março de 1808, sob a alegação de refúgio
frente à ameaça de invasão napoleônica em seu território europeu, a Família Real Portuguesa
desembarcou na cidade do Rio de Janeiro. Com esse episódio, o Brasil deixaria de ser apenas
uma colônia portuguesa, adquirindo um novo estatuto político, o de Reino Unido, fato que
iria modificar substancialmente tanto sua relação com outras nações como seus arranjos
sociais internos. Era o início de um novo capítulo na história da religião no país. em 25 de
novembro do mesmo ano, D. João VI emitiu um decreto garantindo a todos os imigrantes
considerados aceitáveis, “independente de nacionalidade e religião”, condições atrativas de
trabalho em solo brasileiro. Um pouco mais tarde, em 19 de fevereiro de 1810, registra-se a
278
Fazia parte desse grupo um jovem estudante de teologia, chamado Jean de Léry, que vinte anos mais tarde
publicaria uma obra que se tornou um importante documento sobre o Brasil, em tal período, denominada
Viagem à Terra do Brasil.
279
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo:
Paulinas, 1984; LESTRIGANTE, Frank. A outra conquista: os huguenotes no Brasil. In: NOVAES, Adauto. A
descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
280
REILY, Duncan. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993.
281
MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 17.
91
celebração do Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação com a Inglaterra,
abrindo com isso os portos “às nações amigas”, permitindo que protestantes anglo-saxões
começassem a chegar e se estabelecer no Brasil com relativa liberdade para suas práticas
religiosas. Pela primeira vez o controle hegemônico institucional da Igreja Católica seria
modificado, permitindo que o campo religioso brasileiro ganhasse um novo estatuto em
relação à fé protestante.
Assim, permitiu-se que protestantes que viessem ao país a trabalho,
especialmente no comércio, pudessem aqui praticar a sua dentro de alguns limites que o
próprio acordo estabelecido prescrevia, tais como: não realização de cultos na língua
portuguesa, não construção de templo com semelhança aos templos católicos, não
proselitismo dos cristãos católicos etc. Mesmo com tais restrições, houve algum contato de
brasileiros com a reformada, pois vieram capelães para auxiliar espiritualmente os
marinheiros, os quais, além de realizarem cultos no interior dos navios, também se
encarregavam de distribuir algumas literaturas evangélicas. Ainda que fosse esta uma
pequena mudança, na verdade representava uma grande diferença em relação a períodos
precedentes.
Uma política de incentivo à imigração permitiu que mais de dois mil
imigrantes provenientes do cantão de Friburgo se estabelecessem, em 1819, nas
proximidades da cidade do Rio de Janeiro, onde fundaram a colônia de Nova Friburgo.
Grande parte dos imigrantes, principalmente os de origem germânica, professava a
reformada, fato esse que provocou novos debates acerca da questão religiosa no Brasil,
especialmente quanto à legislação envolvendo casamento, registro de crianças e
sepultamentos em cemitérios públicos.
Com a Independência do país, as discussões religiosas ganharam maior
evidência na elaboração da primeira Constituição, em 1824. Muitos dos parlamentares, de
idéias liberais, defendiam maior abertura religiosa. E, mesmo com forte oposição no
Parlamento,
282
e continuando a religião católica a ser a religião do Estado e a única a ser
mantida por ele, a Constituição reconheceu o Brasil como nação cristã em todas as suas
confissões, garantindo liberdade religiosa, ainda que fossem mantidas algumas restrições:
A Religião Católica Apostólica Romana c ontinuará a ser a Religião
do Império. Todas as outras religiões serão permitida s com seu
culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem
forma alguma exterior de te mplo.
2 8 3
282
Vale observar que dos 90 constituintes, 19 eram padres.
283
Artigo da Constituição do Brasil, promulgada em 24 de março de 1824. Apud FERREIRA, Júlio Andrade.
Religião no Brasil. Campinas: LPC, 1992, p. 69.
92
Também em 1824, chegaram ao país grupos de imigrantes, de origem
alemã, que se estabeleceram principalmente na região sul do Brasil.
Mantivera m a sua religião de origem, o luteranismo, mas, por serem
um grupo étnico distinto, sofreram um processo de marginalização
cultural, o que limitou sua influência sobre o conjunto da soc iedade .
Por muito tempo não de senvolveram uma atividade proselitista, pelo
contrário, solicitaram à sua igreja de origem que enviasse pastores
para dirigir as novas comunidades. (...) A igreja luterana começou a
enviar pastores a o Brasil para atender os imigrantes luteranos.
2 8 4
Os pastores se encarregavam de atender religiosamente os conterrâneos,
praticamente sem nenhuma pretensão de converter brasileiros à sua fé, até porque havia
grande preocupação em conservar a sua cultura e tradição, daí o fato dos seus cultos e
celebrações religiosas serem realizados na língua alemã -
285
o que dificultou ainda mais a
aproximação do contexto cultural brasileiro.
Vale destacar que, a distribuição de Bíblias, pela Sociedade Bíblica
Britânica e Estrangeira, organizada em 1802, tornou-se um procedimento estratégico onde o
protestantismo encontrava barreiras legais. Por isso essa estratégia também foi adotada no
Brasil, através do trabalho de colportores.
286
A primeira versão da Bíblia na língua portuguesa
foi feita por João Ferreira de Almeida, no século XVIII
287
, e isso contribuiu diretamente para
os primeiros empreendimentos evangelizadores do protestantismo em solo brasileiro. Com
esse propósito, em 1837 chegou ao Brasil o missionário americano, metodista, Daniel Kidder,
que viajou extensamente pelo país fazendo distribuição de Bíblias. Como fruto desse trabalho
chegou a ser organizada uma Igreja Metodista, no Rio de Janeiro, com aproximadamente 40
membros.
284
SIEPIERSKI, C. T. Op. cit., p. 33, 34.
285
HAHN, Carl Joseph. História do culto protestante no Brasil São Paulo: ASTE, 1995.
286
“Colportores” era a identificação que se dava aos missionários enviados pelas sociedades Bíblicas européias e
norte-americanas, com finalidade de propagar a protestante na América Latina, tentativa esta que havia
sido feita, esporadicamente, e sem maiores êxitos, por piratas e corsários protestantes, durante o período
colonial. Cf. DEIROS, Pablo. História del cristianismo en la América Latina. Buenos Aires: FTLA, 1992, p.
250.
287
João Ferreira de Almeida nasceu em 1628, na cidade portuguesa de Torre de Tavares. Educado num lar
católico, converteu-se ao protestantismo aos quatorze anos de idade. Ligou-se à Igreja Reformada Holandesa e,
mais tarde, partiu para o sudeste asiático como missionário. Em Málaca (atual Malásia), iniciou a tradução da
Bíblia para o idioma português com base em versões latinas, italianas e francesas derivadas dos originais em
grego e hebraico. Esta tarefa consumiu-lhe a vida, que ao morrer, em 1691, ele ainda estava no livro de
Ezequiel, no Antigo Testamento embora o Novo Testamento estivesse traduzido por ele desde 1677. A
tradução completa da Bíblia foi concluída três anos depois, pelo pastor holandês Jacobus den Arrer. Os textos
de Almeida foram submetidos a uma série de revisões e correções por parte da instituição a que estava
subordinado, antes de publicá-los o que ocorreu somente em 1748, mais de meio século após sua morte. Cf.
Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 41, abr. 2000; FERREIRA, A. J. Op. cit., p. 75-80.
93
Finalmente, a partir da segunda metade do século XIX, iniciou-se o trabalho
mais propriamente missionário, feito principalmente por norte-americanos, período em que
também começam a ser organizadas as primeiras igrejas com a conversão de brasileiros à
reformada.
288
Nesse contexto é que se desenvolverá o presbiterianismo no Brasil: a partir da
chegada ao país do missionário Ashbel Green Simonton. Nascido na Pensylvania, em 1833,
educado em lar protestante, Simonton decidiu dedicar-se ao trabalho pastoral quando estava
na conclusão do seu curso de Direito. Daí em diante, seguiu para a Universidade de Princeton
para estudar teologia e preparar-se para o exercício de sua vocação religiosa. Aos concluir o
seu curso de quatro anos, decidiu dedicar-se ao trabalho missionário. Em novembro de 1858
apresentou-se à Junta de Missões, indicando o Brasil como o campo missionário de sua
preferência.
Sintetizando esse período que envolve a inserção do protestantismo
histórico no Brasil, ao longo do século XIX, pode-se dizer que, em grande parte,
reproduziram-se em solo brasileiro as diferenças denominacionais das suas igrejas de origem,
notadamente norte-americanas. Permaneceram embates com a Igreja Católica até que,
finalmente, com a Proclamação da República, em 1889, e a promulgação de uma nova
Constituição, ficou estabelecida formalmente a separação entre Igreja e Estado, garantindo
legalmente a liberdade religiosa e admitindo uma situação de pluralismo religioso. O
catolicismo teve, assim, de gradativamente ceder terreno a uma nova religião institucional: o
protestantismo. Porém, a fragmentação deste em diferentes grupos, muitas vezes
concorrentes entre si, introduzia um aspecto de fragilidade na sua relação com a sociedade
brasileira:
Ao longo do séc ulo XIX, anglicanos, luteranos, metodistas,
presbiter ia nos, batistas, congregações tradici onais do chamado
protesta ntismo histórico implantaram-se pacificamente no Brasil,
ganhando adeptos ao ritmo da imigra ção estr ange ir a, núc le os junto
aos quais se enr aizaram, e da formação de uma classe média urbana,
mas sem um crescimento que pudesse inquietar a hierarquia
católica.
2 8 9
De qualquer forma, configurava-se uma diversidade e uma plasticidade no
campo religioso brasileiro, cuja dinâmica interna possibilitaria, mais tarde, a gênese de
movimentos mais agressivos, com maior impacto e ressonâncias culturais em dimensões mais
amplas.
288
FILHO, Prócoro Velasques; MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Introdução ao protestantismo no Brasil. São
Paulo: Edições Loyola, 1990.
289
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 81.
94
2.2 - O contexto do surgimento do pentecostalismo
No início do século XX, o Brasil experimenta significativas transformações
sociais, especialmente em sua paisagem urbana. Cidades como Rio de Janeiro e São Paulo,
por exemplo, recebem contingentes migratórios de diferentes regiões brasileiras, atraídos,
principalmente, pelo anseio de novas possibilidades de trabalho criadas pela instalação de
fábricas nesses dois maiores centros do país. Acrescenta-se a isto que, com o fim da
escravatura, em 1888, houve o deslocamento populacional de ex-trabalhadores escravos para
os centros urbanos em busca de outras oportunidades de vida.
Esse crescente aumento dos contingentes urbanos gerou um descompasso
entre demandas básicas da população e existência de infra-estrutura, desencadeando uma
série de dificuldades sociais:
Nessa época, o adensamenteo de populações nas grandes cidades
ocorreu sem que houvesse uma correspondência na expansã o da
infra-est rutura citadina e na of erta de empregos e moradias,
transformando esse avolumar me nos num desenvolvimento e mais
num inchaço, o que acentuou o contrast e entre as desigualdades
sociais que a í se fizeram presentes.
2 9 0
Nesse contexto, é também possível perceber conflitos entre os universos
rurais e os perfis mais propriamente “modernizadores” que se buscava implementar naquele
momento. Influenciados pelos modelos europeus de urbanização, elites brasileiras
empreendiam esforços com o propósito de transformar os então “complementos rurais” em
cidades modernas com prédios, monumentos, jardins, parques e longas avenidas. Em
decorrência disso eclodiu, na cidade do Rio de Janeiro, em 1904, o célebre episódio
denominado “Revolta da Vacina”, conforme descrito por José Murilo de Carvalho.
291
Projetos
elaborados visando implementar uma reformulação urbanística passaram a conceber os
cortiços como um grande obstáculo a tais intentos, razão pela qual seria necessária a
desapropriação de muitos daqueles casebres. Para atingir esses objetivos, técnicos do governo
passaram a utilizar como argumento “científico” a realização de campanhas sanitárias contra
diversas doenças infecto-contagiosas, associando sua transmissão ao tipo de vida insalubre
daquelas populações. Atitudes contundentes foram então adotadas visando a “desinfecção”
dos moradores: invasão dos cortiços, expulsão e vacinação das pessoas à força. A população,
290
WISSENBACH, Maria Cristina. In: SEVECENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil 3:
república, da belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 91.
291
CARVALHO, José Murilo. Cidadãos ativos: a revolta da Vacina. Os bestializados: o Rio de Janeiro e
república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 91-139.
95
entretanto, reagiu energicamente àquelas medidas, promovendo uma grande revolta nas ruas,
mobilizando milhares de pessoas “de todas as classes sociais”.
292
Dentre os aspectos “mais consistentes” que desencadearam aquela
resistência, destaca-se um elemento de motivação cultural-religiosa. José Murilo afirma que
aquelas populações “não aceitavam qualquer intromissão do governo, poder material, no
domínio da saúde pública, reservado ao poder espiritual. Irritava-os particularmente o
monopólio exercido pelos médicos sobre a saúde prinvada e pública”.
293
Observa-se, portanto, através de tais episódios, que um universo folclórico -
com imaginários fincados no mundo rural, segundo o qual a cura das doenças advém por
outros meios, que não os “científicos” - apresenta-se como um ingrediente cultural bastante
sólido no contexto brasileiro, capaz de efetivar resitências e mobilizar massas. E foi nesse
contexto e período que veio a se desenvolver em solo brasileiro uma nova tipologia cristã: o
pentecostalismo, disposto a vivenciar a fé numa dismensão folclorizada.
O marco histórico de origem desse segmento pode ser situado em 1901, em
Topeka, Kansas, Estados Unidos. Charles Fox Parhan, evangelista metodista - ligado aos
movimentos de santidade dos séculos XVIII e XIX e fundador e dirigente da Escolablica
Betel - passou a ensinar a seus alunos ser possível contemporaneizar ou reviver os sinais de
êxtase que teriam ocorrido com cristãos do primeiro século da era cristã, conforme relato do
texto bíblico Atos 2:1-4. Segundo tal narrativa, cerca de 120 cristãos que estavam reunidos
na cidade de Jerusalém, teriam recebido o “dom” ou a capacidade divina de “falar outras
línguas”. Esse episódio é lembrado como Pentecostes, por ter ocorrido no dia em que se
celebrava uma festa judaica que trazia esse nome em alusão aos cinqüenta dias que a
separavam da Páscoa. Daí a atribuição do nome “pentecostalismo”. A manifestação de um
fenômeno de êxtase, atribuído ao Espírito Santo, semelhantemente àquele descrito pelo texto
bíblico, teria se dado inicialmente com a jovem Agnes Ozman, aluna da escola dirigida por
Parhan. O fenômeno teria ocorrido posteriormente com outros estudantes, vindo também a
espalhar-se rapidamente por outros lugares no âmbito de várias igrejas.
Influenciado pela experiência pentecostal de Topeka , no ano de 1906, em
Los Angeles - EUA, o pregador negro William J. Seymour, membro da igreja Holiness,
passou a realizar cultos carismáticos em um salão alugado na Rua Azusa, 312, onde
oficialmente fundou a primeira denominação pentecostal, chamada de “Missão Evangélica da
Apostólica”. A ênfase à obra do Espírito Santo evidenciada por êxtases tornou-se, em
292
Id., ibid., p. 102.
293
Id., ibid., p. 97, 98.
96
pouco tempo, uma sensação local e, mais tarde, um fenômeno de alcance mundial. Os jornais
locais passaram a divulgar amplamente os episódios miraculosos que ali se afirmava ocorrer,
o que contribuiu para que muitos visitantes de vários lugares procurassem Los Angeles no
intuito de conhecer e depois também propagar aqueles sinais carismáticos. Estas reuniões na
Rua Azusa aconteceram diariamente por três anos, de onde surgiram inúmeros pregadores
responsáveis pela difusão do movimento em outras partes do mundo.
Além da alusão feita ao acontecimento bíblico anteriormente descrito, é
preciso salientar que o pentecostalismo tem raízes precursoras que se reportam a imaginários
de movimentos religiosos de longa duração. Uma delas pode ser localizada nas práticas
montanistas ocorridas no segundo século da era cristã, sob a liderança de Montanus, o qual,
ao tornar-se cristão e receber o batismo no ano 156, entrou em êxtase e começou a falar em
línguas desconhecidas. Esse episódio foi classificado por alguns cristãos como manifestação
do Espírito Santo, como ocorrera no Pentecostes, não, porém, para a igreja institucional, a
qual classificou aquele ato como algo estranho ao cristianismo. Expulso da igreja como
herege, o novo profeta passou a liderar um movimento que atraiu muitos seguidores,
anunciando que a revelação divina ocorre diretamente através de seus profetas, sem a
mediação institucional. Além disso, Montanus se considerava o escolhido para anunciar o
novo advento messiânico, passando a afirmar que o fim do mundo estava próximo e prestes a
ser estabelecida, na Frígia
294
- região onde morava - a nova Jerusalém, para onde, inclusive,
dirigiam-se muitos dos seus fiéis.
Sementes pentecostais também podem ser encontradas em movimentos
pietistas ou de “santidade” decorrentes da Reforma Protestante, entre os séculos XVI e
XVIII, na Europa ocidental.
295
Um desses, foi o movimento puritano Quaker. Jorge Fox
(1642-1691), líder desse segmento cristão, passou a pregar que “o Espírito de Deus não fala
somente pelas Escrituras”, mas que também o faz diretamente através daqueles que
“interiormente são iluminados”. Afirmava ainda que era preciso “rejeitar o ministério
profissional dos clérigos”.
296
Outro movimento que ganhou maior projeção e desempenhou maior
influência foi o metodismo, sob a liderança de John Wesley, na Inglaterra, no século XVIII.
294
Montanus viveu em meados do século II, na Frígia, interior da Ásia Menor, região “de muito notável pela
religião de tipo extático nela existente”. Cf. WALKER, W. História da igreja cristã. Vol. 1, 2. São Paulo:
ASTE, 1980, p. 86, 87; DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São Paulo: Sinodal, 1994, p. 36.
295
DARNTON, R. A história da leitura, p. 219.
296
WALKER, W. Op. cit., p. 160. Por volta de 1652, no Norte da Inglaterra, formou-se a primeira comunidade
Quaker, que espalhou-se posteriormente para vários outros lugares, inclusive nas colônias inglesas da América
do Norte.
97
O metodismo tem sido considerado como um ramo tardio da Reforma Protestante. Segundo
Peter Burke, os processos de reforma religiosa ocorridos entre os séculos XVI e XVII
ficaram mais restritos às elites. O referido autor observa que tais reformas devem ser
compreendidas como o esforço do clero católico e protestante em promover transformações e
controles no universo da cultura folclórica. Depois de esforços fracassados nos séculos XVI e
XVII, ocorreu, no século XVIII, uma tentativa não a partir de estratos sociais superiores, mas
com a participação mais efetiva de categorias sociais populares. O metodismo representou
então uma forma dessa penetração dos valores da Reforma Protestante na cultura folclórica.
A partir do metodismo também ocorreu o chamado “reavivamento” de
grupos internos das igrejas protestantes nos Estados Unidos, no século XIX, aspecto no qual
podem ser encontradas as raízes mais próximas do que viria a se denominar pentecostalismo,
no início do século XX. Conseguindo romper com controles dogmáticos e institucionais,
movimentos avivalistas daquele período davam grande ênfase à experiência mística e direta
com o Espírito Santo, evidenciada por êxtases e fortes emoções:
A função do prega dor era convencer seus ouvintes de seus pecados,
levá-los ao arrependime nto e torná-los responsáveis pela aceit aç ão
ou rejeição da salvação. Para isso, era necessário que se criasse um
clima altam ente emocional, onde choros, desmaios e ataques
histéricos er am habit uais.
2 9 7
O pentecostalismo seria, então, diretamente decorrente dessa efervescência
religiosa: “o movimento pentecostal é o metodismo levado às suas últimas conseqüências”:
298
(...) parece que o pentecostalismo a bsorveu da sua descendência
metodista as convicções da experiência subseqüente e instantânea, e
as transferiu i ntegralmente da sa ntif ic aç ão, segundo Wesley, para o
batismo do Espírito Santo. De qualquer forma, ta nto o metodismo
quanto o pentecostalismo colocam sua ênfase em algum lugar depois
da justif ic aç ão.
2 9 9
Em relação ao campo religioso brasileiro também não demorou para que o
pentecostalismo lançasse nele as suas sementes, configurando-se em denominações próprias.
Num primeiro momento, surgiu o que viria a ser identificado pela tipologia de
297
FILHO, P. V.; MENDONÇA, A. G. Op. cit., p. 85.
298
O Metodismo pregava a santificação como uma segunda obra da graça após a justificação:não conhecemos
um caso, em qualquer lugar de uma pessoa receber, no mesmíssimo momento, a remissão dos pecados, o
testemunho permanente do Espírito, e um coração novo e limpo”, dizia John Wesley. A origem do movimento
de santidade norte-americano nas décadas de 1840-1850, no qual o pentecostalismo viria também fincar suas
raízes, tinha a intenção de preservar e propagar o ensino de Wesley: O processo de salvação nesse movimento
envolvia duas fases: a conversão (justificação), significando a libertação dos pecados cometidos; e a inteira ou
plena santificação, entendida como a libertação da falha da natureza moral que leva a pecar. Cf. SEMANA DE
ESTUDOS TEOLÓGICOS, XI, 1992, Londrina. Anais: o neopentecostalismo brasileiro. Londrina: STL, 1992.
299
Id., ibid.
98
“pentecostalismo clássico”,
300
através da formação de duas igrejas: a Congregação Cristã no
Brasil e a Igreja Evangélica Assembléia de Deus - ambas organizadas por líderes que tiveram
inicialmente experiências com o movimento de Los Angeles.
A Congregação Cristã
301
tem sua organização inicial oficialmente datada
em 05 de junho de 1910, na cidade de Santo Antônio da Platina PR. Seu líder-fundador foi
Luís Francescon, um estrangeiro italiano que se considerava missionário autônomo e,
portanto, não era mantido financeiramente por nenhuma instituição do exterior. Francescon,
de origem religiosa presbiteriana-calvinista, havia residido anteriormente em Los Angeles,
onde passara a freqüentar o movimento pentecostal ali nascente. Decidiu expandir aquele
modelo de cristianismo para a América do Sul, iniciando seu trabalho em Buenos Aires,
Argentina, em 1909. Não obtendo grandes êxitos naquela cidade, quatro meses depois
dirigiu-se para o Brasil, chegando a São Paulo no início de 1910, onde passou a residir no
bairro do Brás, lugar de grande concentração de italianos. Naquele mesmo ano, ao saber da
existência de uma colônia italiana em Santo Antônio da Platina - PR, professante do
catolicismo romano, decidiu visitá-la com o propósito de fazer ali conversos à pentecostal.
O trabalho obteve êxito e dele nasceu uma nova igreja em solo paranaense. Retornando a São
Paulo, naquele mesmo ano, Francescon passou a fazer pregações na igreja Presbiteriana do
bairro do Brás, até que suas idéias doutrinárias geraram conflitos com a liderança daquela
igreja. Tendo um grupo simpatizante com o seu ensino, composto por italianos que
freqüentavam aquela comunidade, promoveu um cisma e constituiu oficialmente a sua nova
igreja, à qual foi filiado o núcleo já existente no Paraná.
Como bases teológico-doutrinárias, Francescon adotou e adaptou para a sua
nova igreja estruturas eclesiásticas do presbiterianismo calvinista, como é o caso da doutrina
da predestinação, segundo a qual Deus de antemão pré-determina os que haverão de ser
salvos ou condenados. Por isso mesmo, nessa denominação não se fazem campanhas
evangelísticas com apelos à conversão em locais públicos que não os templos, ou ainda
através do uso dos meios de comunicação de massa, como ocorre normalmente com os
demais segmentos pentecostais. Os fiéis fazem convites individuais para os cultos,
principalmente para os dias de batismo. O batismo se torna, então, um apelo mudo: quem se
apresenta ao batizador recebe o rito sem perguntas. Desses, alguns acabam não ficando na
300
Tipologia e classificação empregada por vários pesquisadores, dentre os quais, Antonio de Gouvêa
Mendonça, no capítulo Sociologia da religião no Brasil: o pentecostalismo, suas terminologias e classificações.
In: MENDONÇA, A. G. (Org.). Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: UMESP, 1999, p. 73-84.
301
Esta denominação conta hoje com mais de dois milhões de seguidores no Brasil, cf. CAMPOS, Leonildo
Silveira; GUTIÉRREZ, Benjamin (Orgs.). Na força do Espírito. Os pentecostais na América Latina: um desafio
às igrejas históricas. São Paulo: AIPRAL/UMESP, 1996, p. 111.
99
igreja, mas isto não é obstáculo, pois entendem que apenas os eleitos hão de permanecer, isto
é, os “verdadeiros chamados”, por isso, como destaca Mendonça, “neste sentido, eles são
mais presbiterianos que os presbiterianos brasileiros”.
302
O pesquisador Carl J. Hahn destaca que os “anciãos”, além de não
possuírem formação teológica específica, são obreiros voluntários e nada recebem por seu
trabalho:
As coletas recolhidas regula rmente vão para uma tesouraria central
para serem aplicadas na construção de novos templos. Há um fundo
diacona l, constituído por contribuições espontâneas dos membros,
que é usado par a ajudar os que estão em dificuldades prementes.
3 0 3
Para a configuração de sua fé, lêem quase que exclusivamente a Bíblia
tendo, quando muito, o auxílio de alguma literatura doutrinária sobre o texto bíblico,
publicada pela própria denominação. Crêem que os sermões pregados em seus cultos são
recebidos diretamente pela revelação do Espírito Santo, o qual coloca a mensagem necessária
no coração de um dos anciãos ou diáconos, que ficam estrategicamente assentados na fileira
da frente de seus templos, durante as celebrações cúlticas.
Em 1935, sob a vigilância do Estado Novo chefiado por Getúlio Vargas, em
que se impunha rigoroso controle em relação ao estrangeirismo, a Congregação substituiu em
seus cultos a língua italiana pela portuguesa, fato que também viria contribuir para a sua
expansão, a partir daí, para o interior do país:
A ide ntif ic aç ão c om os italianos do Brás, (pequena Itália, bairro
operário onde se concentra ram os imigrantes italianos em São
Paulo) era tanta, que o segundo hinário (impresso em Chicago em
1924) ainda era totalmente na língua italiana. A terc eira edição
(1935) tinha o total de 580 hinos e somente 250 deles estavam na
língua portuguesa. Porém, a edição de 1943 foi impressa totalmente
em por tuguês. Esse hinário, Louvor e Súplicas a Deus, contém os 12
pontos doutrinários da igreja, uma br eve históri a da elaboração da
obra e uma classificação dos hinos conforme os momentos
litúrgicos.
3 0 4
Na década de 1950 se deu o crescimento mais acentuado dessa igreja,
quando nordestinos passaram a ocupar o lugar dos italianos no referido bairro do Brás.
Atualmente, a maior concentração de templos ocorre em São Paulo e no Paraná, ainda que
estejam presentes em todos os demais estados brasileiros.
302
MENDONÇA, A. G. Introdução ao protestantismo no Brasil, p. 49.
303
HAHN, C. J. Op. cit., p. 346.
304
CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. (Orgs.), p. 111.
100
A Igreja Evangélica Assembléia de Deus
305
também tem suas raízes
fincadas no movimento pentecostal de Los Angeles. No Brasil, foi oficialmente estabelecida
em 1911, na cidade de Belém PA, por dois pentecostais sueco–americanos, Daniel Berg e
Gunnar Vingren, que atribuíam suas motivações missionárias às revelações recebidas
“diretamente de Deus”. O próprio Vingren, mais tarde, descreveu esta experiência vivenciada
quando ainda se encontravam nos Estados Unidos:
Num dia, no verão, De us pôs no coração que nos deveríamos reunir
num sábado à noite para oração. Q uando orávamos, o Espírito do
Senhor veio de uma forma poderosa sobre nós ( ...). Um irmão,
Adolfo Ulldin, recebeu pelo Espírito Santo palavras maravilhosas e
mistérios escondidos, que foram revelados. Entre muitas coisas, o
Espírito Santo falou por meio deste irmão que nós de veríamos ir a
um lugar chamado Pará, onde o povo a quem teste ficaríamos de
Jesus era de um nível soci al muito simples. Nós iríamos ensinar-
lhes os primeiros rudimentos do Senhor. Ta mbém escutamos pelo
Espírito Santo, a linguagem daquele povo, o idioma português. (...)
Nenhum dos presentes conhecia ta l luga r. Após a oração, fomos a
uma livraria a fim de consultar um mapa que nos mostra sse onde
estava loca lizado o Pará. Descobrimos então que se tr at ava de um
Estado no Norte do Brasil. A chamada divina esta va, então,
confirmada (...).
3 0 6
Em 05 de novembro de 1910, a bordo do navio Clement, os missionários
deixaram a cidade de Nova Iorque com destino ao Brasil. No dia 19 daquele mesmo mês e
ano desembarcaram, em um dia de sol escaldante dos trópicos, na cidade de Belém, no Pará.
Alojaram-se nas dependências da Igreja Batista, cujo pastor também era de origem sueca.
Depois de alguns meses, após certo aprendizado da língua portuguesa, os suecos, por
conflitos doutrinários, provocaram uma cisão na igreja ali existente e, com 19 membros,
criaram a Missão de Apostólica, cujo nome, após 1914, foi alterado, assim como também
ocorrera nos Estados Unidos, para Igreja Assembléia de Deus.
Acompanhando a migração dos nordestinos, a igreja em poucos anos se
expandiu para o Sul (hoje, Sudeste) do país. em poucos anos. Após três décadas de
predominância missionária sueca, o controle passou à liderança brasileira, e a base de
expansão deixou de ser Belém para centralizar-se no Rio de Janeiro, onde também existe
grande presença de nordestinos. Nota-se que o pentecostalismo tem raízes fincadas no
contexto do nordeste brasileiro e tem projeção ligada à inserção dos nordestinos em outras
regiões do país. Aliás, esse também pode ser um aspecto que contribui para a composição do
305
A Assembléia de Deus possui atualmente mais de 8 milhões de adeptos no Brasil. Esta denominação continua
ostentando com ampla vantagem o primeiro lugar quanto ao número de membros entre as igrejas evangélicas no
país.
306
CONDE, Emílio. História das Assembléias de Deus no Brasil - Belém 1911-1961. Rio de Janeiro: Livraria
Evangélica, 1960, p. 14.
101
imaginário messiânico presente no pentecostalismo brasileiro, pois tal região do país tem
forte tradição histórica de messianismo, como o veremos mais adiante.
Na Assembléia de Deus, a hierarquização interna está centralizada na figura
do pastor. Nas comunidades locais, essa liderança se subordina à dos templos–sede, e estes a
uma convenção nacional. Os pastores assembleianos eram, inicialmente, leigos e sem preparo
teológico, o que os levava a se identificar bastante com o povo na forma de pensar, falando-
lhe na mesma linguagem, causando com isso grande empatia na projeção de suas mensagens.
Atualmente, exige-se dos deres ao menos uma formação teológica básica. Coincidência ou
não, o fato é que essa igreja não mais apresenta escalonários índices de crescimento como
ocorrera anteriormente.
O grande contingente que aflui à sua mensagem é atraído, dentre outros
fatores, pela fraternidade que agrega ali pessoas dos mais diferentes níveis culturais e sociais
e, principalmente, pela oportunidade que lhes é outorgada de exercer cargos de liderança
através dos diferentes programas de evangelização desenvolvidos pela denominação. A partir
do momento em que o converso torna-se membro pelo rito do batismo de imersão em água,
passa a buscar o chamado “batismo com o Espírito Santo”, evidenciado pela glossolalia e
seguido de diversos dons ou carismas, mediante os quais se tem a oportunidade de provar que
são “vocacionados pelo Senhor”.
O sociólogo Ricardo Mariano resume os primeiros anos do pentecostalismo
brasileiro da seguinte forma:
Compostas majoritariamente por pessoas pobres de pouca
escolaridade, discriminadas por protest ante s históricos e
perse guidas pela Igreja Católica, essas igrejas se ca racterizavam por
um ferrenho anticatolicismo. Em 30 anos, seus t emplos já estava m
em todos os Estados brasileiros.
3 0 7
Vale observar que o período que marca a inserção e o desenvolvimento das
primeiras formas de pentecostalismo em solo brasileiro ainda é configurado pela presença
majoritária do catolicismo no país. Formalmente ligado, enquanto instituição, ao Estado até o
final do Império, o catolicismo entra no século XX sob o signo da romanização e, ao mesmo
tempo, a tentativa de recuperação de seus laços privilegiados com o poder político. Mesmo
com a instauração do fim do padroado, com a promulgação da primeira Constituição Federal
da República, a Igreja Católica continuou agir como se tivesse ainda de operar com primazia
e com certa exclusividade no contexto brasileiro. Submetida à injunção de reorganizar-se
institucionalmente, promovendo uma nova centralização do poder eclesiástico segundo os
307
Revista Eclésia, Rio de Janeiro, p. 46, abr. 2000.
102
ditames de Roma e obrigada a reencontrar para si um novo lugar na sociedade, a Igreja desde
meados dos anos 1920 abandonaria a posição defensiva em que se encontrava ante o avanço
da laicização do Estado e a ideologia do progresso inspirada no positivismo, para engajar-se,
com um novo espírito triunfante, na implementação da “restauração católica”.
A inauguração da estátua do Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro,
em 1931, e, dois anos mais tarde, a realização do II Congresso Eucarístico Nacional
representam o espírito militante com o qual, recorrendo à tradição para solucionar suas
longas décadas de crise, no mais puro estilo conservador, o catolicismo atravessará as
décadas de 1930 e 1940, procurando dar corpo ao projeto de recriação de um “Brasil católico,
uma nação perpassada pelo espírito cristão”. Por isso, os “inimigos” da Igreja Católica são,
nesse período, o protestantismo e as religiões afro-brasileiras, genericamente incorporadas
pela designação de “espiritismo”, ao lado do pensamento cientificista e da secularização que
ameaçavam a posição institucional e a hegemonia espiritual do catolicismo, num Brasil
“verdadeiramente cristão”.
308
A década de 1930 assinalará acontecimentos importantes pela força do seu
simbolismo:
Em toda a década de 30, a Igreja Católica perseguirá o objetivo de
consolidar sua unida de em plano nacional, atravé s de uma
centralização e coordenação da direção episcopal e do apostolado
dos leigos. Esta unidade ha via sido assegurada durante o período
colonial pelos mecanismos do Padroado, onde o Estado detinha o
control e da Igreja. O rei e de pois o imperador eram virtualmente o
chefe da Igre ja no país. Proclamada a República em 1889 cria-se um
vazio de poder , logo pr eenchi do por Roma, quando fracassam as
tentativas dos bispos brasileiros de criarem seus próprios
mecanismos de articulação interna, guardando um certo controle
sobre a Igr eja brasileira.
3 0 9
Desde os primeiros dias da República, havia uma reivindicação dos bispos
por um Concílio Plenário Brasileiro. Este veio a se realizar em 1939. Mas o esforço
institucional de busca pela “unidade do povo católico” se daria, antes, pelo prevalecimento da
força do simbólico, centralizada em um elemento de devoção: “a 16 de julho de 1930, o Papa
Pio XI declara Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil”.
310
Passava-se, dessa maneira,
do até então padroeiro principal da nação, São Pedro de Alcântara estabelecido durante o
308
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 73, 75, 76.
309
BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a redemocratização. In:
FAUSTO, Boris (Org.). História geral da civilização brasileira. O Brasil republicano. São Paulo: Difel, 1986,
p. 293.
310
Id., ibid., p. 294.
103
Império e mantido mesmo após a entrada da República - para uma representação oriunda dos
estratos populares:
Sua história é singe la . Tirada das águas do Paraíba por pescadores
encarregados do peixe para a comitiva do Conde de Assumar, em
viagem de São Paulo para Minas, em 1717, é guardada na casa de
Felipe Pedroso. Só em 1743, pede o vigário de Gua ra tingue tá
licença ao bispo do Rio de Janeiro para erigir uma capelinha no
local. (...) Apar ec ida pouco a pouco se tornaria um dos santuários
de maior de voçã o popular no país.
3 1 1
É cultural e socialmente significativo o fato de Aparecida não ter por
origem uma iniciativa diretamente episcopal ou clerical, assim como de grupos dominantes,
mas, ao contrário, ter sido encontrada enquanto imagem por pescadores, que viviam do
trabalho diário e, como observa Beozzo, “abrigada em casa de família e posteriormente numa
capela tosca e humilde”:
a imagem do prime iro oratório não pertenceram a nenhum membro
da classe dos grandes propr ie tários e se nhores de esc ravos, coisa
tão comum no Brasil colonial, onde as capelas er am construídas
pelos senhores de e ngenho, de minas e de faze ndas de gado ou café.
Não fazia parte daquelas invocaç ões apropriadas por a lguma classe
em particular ou algum grupo dominante, como era praxe
acontecer.
3 1 2
Além do que, de se considerar ainda o fato de aquela pequena imagem
retirada do rio ser de cor negra. Numa igreja com presença predominantemente branca em
sua membresia e liderança, aquela representação teria o significado de identificação e
aproximação daqueles que por quase quatrocentos anos viveram discriminados pela condição
de escravos e pela cor da pele. “Sendo uma Virgem dos mais pobres podia ser uma Virgem
de todos” – ressalta Beozzo.
313
A população negra e mestiça, assim como a massa procedente
de estratos sociais populares, aflui no cumprimento de votos e promessas a Aparecida, fato
que representa uma interrogação levantada à consciência católica acerca da força das crenças
populares, patrimônio cultural e espiritual de tais segmentos da população duramente
combatido ao longo de quase toda a história do país.
Naturalmente, o estabelecimento de Aparecida como padroeira do Brasil
também está associado aos interesses políticos e econômico-sociais do período:
Aparecida serviu muitas vez es na história mais rece nte do país como
um imenso capital e spir itua l e social acumulado pelo apego e
fidelidade do povo à Mãe de Deus, utiliz ado finalmente em
benefício dos interesses da hierarquia eclesiástic a e da ideologia
das classes domina ntes. Em épocas de duros emba te s ideológicos,
311
Id., ibid.
312
Id., ibid., p. 295.
313
Id., ibid.
104
Aparecida foi apr esentada como a melhor barreira à penetra ção do
comunismo no Brasil, a palavra comunismo se rvindo o mais das
vezes de f achada à re ação da s classes dominantes a reformas e
mudança s necessária s para a sobre vivência do próprio povo.
3 1 4
É necessário considerar o fato de que Aparecida se situa no Vale do Paraíba
paulista, num momento da história nacional em que a hegemonia econômica havia se
transferido do Norte açucareiro e da mineração do ouro nas Gerais, para o Sul cafeeiro, cujo
primeiro berço de prosperidade foi o Vale do Paraíba fluminense e paulista.
igual interesse de manter uma identidade e uma unidade nacional em
torno de um símbolo religioso. Por isso mesmo, logo após a Revolução de 1930, houve uma
grande concentração católica no Rio de Janeiro devido ao deslocamento da imagem de
Aparecida para uma homenagem na capital da República perante o Governo Provisório em
maio daquele mesmo ano:
No dia 31 de maio, chega a imagem c onduzida de Apar ecida em
trem especial pelo Arcebispo D. Duarte. De tarde perc orrerá em
procissão as ruas do Rio até a Esplanada do Cast elo, onde na
prese nça de imensa multidão, do Presidente e do seu Ministério, do
corpo diplomático c onvidado pelo Itamarati, o cardea l consagr a o
país à Virgem da Conceição Aparecida.
3 1 5
Esse evento religioso estava, entretanto, carregado de repercussões políticas:
O país refazia-se mal do abalo te rrível provocado pe la Revolução de
30. G ermens de discórdia política e surdos perigos ameaçavam
aquele moment o. A fisionomia da República Nova como se
intitulara o regime instaur ado pela Revolução mantinha- se
enigmática, numa época em que a idéia comunista fermenta va nos
países da Améric a. Não se podia prever o que o futuro r eservava
para o Brasil. De qualquer modo, haveria uma renovação nos moldes
polít icos e legislativos, em que a Igreja deveria influir, em nome da
imensa ma ioria católica do pa ís. Uma grande concentração de
elementos católicos na Capital da República, em momento assim
decisivo, valeria por uma demonstração de força moral, perante os
poderes públicos ainda hesitantes entre correntes diversas. E valeria
ainda como uma opor tunidade de desperta r a consciência católica
aos seus de veres cívi cos.
3 1 6
Quando da inauguração do Cristo Redentor no alto do Corcovado, em que
houve nova concentração popular, o presidente e todo o Ministério também fizeram questão
de marcar presença naquele ato:
O coro a f avor de Vargas era engrossado também pela Igr eja
Católica. Símbolo dessa aliança é a estátua do C risto Redentor, no
Cor covado, i naugur ada em 12 de outubro de 1931 com a prese nça de
314
Id., ibid., p. 296.
315
Id., ibid., p. 297.
316
ROSÁRIO, Maria Regina do Santo. O cardeal Leme (1882-1942). Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1962, p. 227, 228.
105
Var gas e do Cardeal d. Sebastião Leme, o mesmo que atuara um ano
antes na destituiçã o de W ashi ngton Luís.
3 1 7
Essas imbricações de interesses políticos e religiosos mereceriam o
destaque de Oswaldo Aranha nomeado ministro da Justiça do Estado Novo expresso nas
seguintes palavras:
Quando chegamos do Sul, nós pendía mos para a E squerda! Mas
depois que vimos os movimentos religiosos populares e m honra de
Nossa S enhora Aparecida e do Cristo Redentor, pe rcebem os que não
podíamos ir contra o sentimento do povo.
3 1 8
Em julho de 1939 destaca-se a reunião dos bispos para o Concílio Plenário
Brasileiro. O governo brasileiro oferece aos conciliares um banquete no Palácio do Itamarati.
Nos respectivos discursos de representantes da igreja e do Estado, a tônica era a “colaboração
mútua”. Nesse sentido, vale destacar as palavras proferidas pelo presidente Getúlio Vargas:
Apesa r de separados os campos de atuação do poder político e do
poder espiritual, nunca entre eles houve choques de maior
impor tâ ncia; respeit am-se, auxi liam-se. O Estado deixando à I greja
ampla liberdade de prega çã o, assegur a-lhe ambiente propício a
expandir-se e a ampliar o seu domínio sobre as almas; os sac erdote s
e missionários colaboram com o Estado, timbrando e m ser bons
cidadãos, obedientes à Le i civil, compreendendo que sem ela sem
ordem e sem disciplina portanto – os costumes se c orrompem, o
sentido da dignidade humana se apaga e toda a vida espiritual se
estanca. Tã o estreita cooper ação jamais se interr ompeu; afirma-se,
de modo auspicioso, nos dias presentes e há de intensificar- se no
futuro, mante ndo a admirá vel continuidade de nossa história.
3 1 9
No Concílio, realizado de 2 a 20 de julho do referido ano, também se
observam as preocupações dos bispos quanto aos problemas que ameaçavam mais de perto a
hegemonia da Igreja Católica naquele período, sobretudo nas camadas mais populares. Por
isso, ao longo dos debates internos, o Concílio criou comissões que trabalhassem
cuidadosamente três temas: o protestantismo, o espiritismo, a questão social. Observa o
historiador católico Oscar Beozzo:
O protestantismo, até então um fenômeno ligado à imigração alemã
(...) luterano em sua doutrina e sem espírito de conquista, vinha
sendo ra pidamente suplantado pelo protestantismo das seitas norte -
americanas, cuja pr opaganda se intensifica depois dos anos trinta.
Com o se u individualismo acentuado, seu agudo senso do dever no
trabalho, seu entusiasmo pela Bíblia e a aceitação de pastore s
vindos do povo miúdo, esse protestantismo militante c onseguia
penetrar com facilidade nas novas camadas populares, fruto do
capitalismo industrial depende nte. A religião é o cosmopolit ismo
317
O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. São Paulo:
PubliFolha, 2002, p. 57, 58.
318
Id., ibid., p. 289.
319
VARGAS, Getúlio. Discurso em homenagem ao Episcopado Nacional, reunido no Concílio Plenário.
Ação Católica, ano II, n. 10, p. 289, 290, out. 1939.
106
das classes subal ternas na or dem capitalista e aí o protestantismo
das seitas norte-americanas desempe nha pa pel-chave.
3 2 0
Não obstante a condição de primazia oficialmente ostentada no Brasil, cabe
observar que a Igreja Católica possuía uma face de “distanciamento do povo e do catolicismo
popular”:
Essa neocrist andade tem um caráter conservador e
desenvolvimentista. Ela se mant ém ancorada em torno das
oliga rquias conservadoras e dos propriet ários rurais. O processo de
romanização do catolicismo brasileiro e ntra em c rise com as
manifestações religiosas do povo. São consideradas super sticiosa s,
alienantes e vazias de sentido. As implicaç ões desse tipo de
catolicismo se fazem sentir nas celebrações litúrgi ca s, na ausência
de um projeto pastoral que c onside re a pluralidade cultural
brasileira.
3 2 1
Portanto, a ausência da Igreja quanto a uma proposta mais condizente com
a cultura e as necessidades da grande maioria da população brasileira. Nesse período:
Os desequilíbrios da soci edade passam a ser citados com basta nte
veemência, no entant o, sem considerar a forma ção histór ic a,
cultural, política e religiosa do povo. Existia, portant o, uma
fronteira entre Povo, Esta do e Igreja. Um jogo de representações,
construído pelo poder político e religioso, estabelecia limites e
divisõe s para um verdadeiro diálogo com as camadas populares.
3 2 2
Não conseguindo responder satisfatoriamente aos anseios dos grupos
urbanos que se formam, o catolicismo abre espaço para outras organizações, como bem
destaca Oscar Beozzo:
os grupos urba nos que se articulam para lutar contra a exploração
capitalista nã o encontram na Igreja uma aliada, pelo contrário, a
nascente classe operária encontra no anarquismo, no socia lism o e no
maximalismo sua visão de mundo, nos jornais operários, liberais de
esquerda, anticlericais e anarquistas, sua forma de expressão e, nos
clubes, mutualidades, sindicatos e centros operários suas formas de
organiz ação.
3 2 3
O período de 1930 a 1945 configurou um momento extremamente
complexo da vida econômica brasileira. A crise internacional, de 1929, levou a um impasse a
economia cafeeira, gerando a perda da hegemonia política por parte das oligarquias do café.
O Estado, com Vargas, passou a intervir de modo crescente na economia e na sociedade. O
período compreendido entre 1945 e 1964 possibilitou “a emergência de classes populares no
320
BEOZZO, O. Op. cit., p. 331.
321
DELGADO, Lucila de A. N.; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 98.
322
Id., ibid., p. 100.
323
FAUSTO, Boris (Org.). Op, cit, p. 277, 278.
107
quadro de uma democracia eleitoral que permitiu os experimentos de Vargas, Kubitschek,
Quadros e Goulart” no quadro político brasileiro.
324
Na década dos anos 50, “alguns imaginavam a que estaríamos assistindo
ao nascimento de uma nova civilização nos trópicos”, a qual combinava a incorporação das
conquistas materiais do capitalismo com a persistência dos traços de caráter que nos
singularizavam como povo: a cordialidade, a criatividade, a tolerância. De 1967 em diante, “a
visão de progresso vai assumindo a nova forma de uma crença na modernização, isto é, de
nosso acesso iminente ao ‘Primeiro Mundo’”.
325
Entre 1930 a 1950, sobretudo, processou-se um contexto propício ao
seguimento de líderes com projeção salvacionista por parte das massas. Esse caráter cultural
de messianismo pode ser observado, por exemplo, nas próprias palavras de Vargas, quando,
em discurso ao povo, apresenta-se como um líder capaz de viabilizar-lhe amparo,
paternalismo e satisfação de suas necessidades sem mediações institucionais:
Hoje, o Governo não tem mais intermediários e ntre ele e o povo.
Não mais manda tários e pa rtidos. Não há mais representantes de
grupos e não há m ai s representantes de interesses partidários. Há
sim o povo no seu conjunto e o governo dirigindo-se diretamente a
ele, a fim de que, auscultando os interesses coletivos, possa
ampará-los e realizá-los, de modo que o povo, sentindo-se ampar ado
nas suas aspirações e nas suas conveniência s, não tenha necessidade
de recorrer a interme diários para che gar ao C hefe de Estado [...].
3 2 6
Marilena Chauí, ao analisar esse aspecto, aponta para o caráter de
sacralidade que envolve o populismo,
327
destacando o que chama de “mito fundador” como
um poderio que provém de uma fonte imaginária “extra-social”, isto é, da divindade,
responsável por conferir ao líder poderes e representações salvacionistas, ou seja,
a visão do governante como salvador e a sacralização-sa tanização
da política. Em outras palavra s, uma visão messiânica da políti ca
que possui como parâ me tro o núcleo milenari sta como e mbate final,
cósmico, entr e luz e tr evas, be m e mal.
3 2 8
A autoridade máxima e a síntese do poder público moderno se fundem,
dessa maneira, em tal período, numa pessoa: o presidente. Tal formulação acabava por
combinar tradições da sociedade brasileira fincadas na longa duração fundadas no poder
personalizado do patriarca rural, assim como do líder com carisma messiânico – com os mais
vigorosos imperativos da política da época:
324
Id., ibid., p. 106.
325
NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 560.
326
VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p. 134.
327
Aqui entendido como política fundada no aliciamento, sobretudo, das camadas sociais de menor poder
aquisitivo.
328
Id., ibid., p. 19, 20, 30.
108
A capacidade incomparável de Getúlio de se comunicar com todo o
povo, que via nele o chef e-guia e o amigo-pai, o qual vibrava
no m esmo compasso que sua família (...) Uma das imagens mais
fre qüentes a que os discursos estado-novista s recorriam para
caracterizar o processo de construção do Estado Nacional, era
formação de uma grande família. Ne la , as lidera nças sindicais eram
como irmãos mais velhos, e o presidente, o pa i, de um povo nobre e
trabalhador o pai dos pobres.
3 2 9
Tradição e modernidade se confluíam harmoniosamente no
empreendimento que consagrava, a um tempo, o reforço do sistema presidencial e a
“construção mítica da figura de seu representante como uma encarnação do Estado e da
nação”.
330
Essa imagem se origina num mito sobre o qual se fundaria o processo de
integração da nação e que incorporaria suas características mais profundas. No caso de
Vargas, a relação direta líder-massa teve dupla feição da representação de interesses e da
representação simbólica, e Vargas transformava-se no terminal adequado para ambas:
Num país sem direita, sem esquerda, sem partidos, sem Congresso,
sem representação de intere sses além do corporativismo oficial, sem
nenhum intermediário institucional e ntre sociedade e governo, (...)
Get úlio Varga s se dirigia diretamente às massas no mel hor estilo
fascista. Se não estimulava o culto à personalidade , impunha na
máquina administrati va sua marca pessoal, devidamente difundida
por um mei o de comunicação que começava a vive r seu apogeu o
rádio.
3 3 1
Depois da transmissão inaugural, em 1922, o rádio começou a popularizar-
se dez anos mais tarde, quando o governo provisório autorizou a veiculação de propaganda:
“a população, na maioria analfabeta, tinha no rádio seu canal de comunicação com o
mundo”.
332
Percebendo o potencial deste meio de comunicação, Vargas criou, em 1934, a
“Hora do Brasil”. Dois anos mais tarde, surgia no Rio de Janeiro a dio Nacional, líder de
audiência, encampada pelo governo em 1940, quando se transformou em instrumento de
apoio a Vargas.
A importância desse mito estava em seu poder mobilizador, que dependia
tanto dos elementos de crenças e valores como das relações que estabelecia com as
experiências imediatas das massas a que se destinava. O carisma de Vargas pode, assim, ser
associado a um poder provindo das massas, como destaca Marilena Chauí:
No populism o, o poder encontra-se tal e plenamente ocupado pelo
governante, que o preenche com sua pessoa porque esta se identifica
com o cor po do detentor do poder (o povo) e com o próprio lugar do
poder. O governante populista encarna e incorpora o poder, que não
329
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 527, 528.
330
Id., ibid., p. 522.
331
O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op cit., p. 56, 57.
332
Id., ibid.
109
mais se separa nem se distingue de sua pessoa, uma vez que não se
funda em instituições públicas nem se realiza através de mediações
sócio-pol ític as.
3 3 3
As massas encontram no mito da personalidade um poder de expressão
simbólica fincado em estratos culturais de longa duração na sociedade brasileira:
O coração é um objeto simbólico de ampla força re ligiosa e de
uso difundido nas mitologias políticas. Mas o i magi nário do povo
brasileiro, c omo o óbvio, pode ser espantoso, e a lguns políticos
ligados a Vargas também. Assim, não é possível deixar de registrar
que, quando no ano de 1945 o Estado Novo vivia i negáveis
momentos de declínio, o mito Vargas deu sólidas demonstrações do
quanto havia tocado o povo, particular mente o das cida des. O
movim ento queremista, isto é, o movimento que quer a
permanência Vargas, primeiro como candida to á Presidência e, em
seguida, como condutor dos trabalhos constituintes previstos para
1946, l evou multidões às ruas e surpreendeu as oposições reunidas
no combate ao ditador.
3 3 4
Maria Helena Capelato, ao comentar o varguismo e o peronismo, afirma
que “transformaram os imaginários coletivos numa força reguladora da vida coletiva e peça
importante no exercício do poder”.
335
Essa autora aponta o aspecto da “divinização mítica”
que envolveu o governo brasileiro em tal período:
O poder m ístico e a identifi ca ção com o divino atrelavam o de stino
do homem- Deus [Vargas] ao da Pátria. Sua imagem mescla-se à da
pátria una e im ortal; o destino desse homem e ra o destino mesmo do
Brasil. A divinização do che fe insere-se no movimento de
sacralização da polít ica (...).
3 3 6
Quando se preparava para retornar ao poder, na década de 1950, em
entrevista publicada nos jornais dos Diários Associados, Vargas declarou: “Sim, eu voltarei,
não como líder político, mas como líder de massas”.
337
Comentando a afirmação, Francisco
Weffort transcreve as seguintes palavras retiradas da nota editorial de uma revista publicada
em 1950, que retrata a visão dos liberais da época, a qual analisa o caráter explosivo da
emergência política das massas, que culminaram com a vitória de Getúlio Vargas em outubro
daquele ano:
No dia 3 de outubro, no Rio de Janeiro, era meio milhão de
miseráveis, analfabetos, mendigos, famintos e andrajosos, espíritos
recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados pelo
abandono em homens boçais, ma us e vingati vos, que desceram os
morros e mbalados pela cantiga da demagogia berrada de janelas e
333
CHAUÍ, Marilena. Raízes teológicas do populismo no Brasil: Teocracia dos dominantes, messianismo dos
dominados. In: Anos 90 – Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 20.
334
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 529, 530.
335
Como, por exemplo, o Varguismo (ou o Peronismo, na Argentina), conforme análises feitas por Francisco
Weffort. In: CAPELATO, Maria H. Rolim. Multidões em Cena. Campinas: Papirus, 1998, p. 211-277.
336
CAPELATO, M. H. R. Op. cit., p. 259.
337
O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op. cit., p. 69.
110
automóveis, para votar na única e sperança que l hes rest ava: naquele
que se proclama va o pai dos pobres, o messias-charlatão.
3 3 8
Dias depois do pleito, o jornal Folha da Manhã publicava a seguinte
análise: “O fato é que Getúlio Vargas fala ao ‘homem da rua’”.
339
Algumas dessas representações populistas, anteriormente apresentadas,
aglutinam elementos que se aproximam de aspectos presentes em movimentos messiânicos
ocorridos na América. Exemplificam isto: a projeção num momento de grande instabilidade
social;
340
a sacralização da figura de seus líderes, mitificando-lhes o poder;
341
o perfil
salvacionista, procurando estabelecer uma luta contra o mal (“inimigos”);
342
a identificação
com símbolos de forte apelo popular (como as figuras religiosas);
343
o desenvolvimento de
seus ritos a partir de simbolismos que impregnam o imaginário popular coletivo; o
estratégico uso dos meios de comunicação para propagação de sua mensagem.
2.3 O contexto de projeção do pentecostalismo
Com a “substituição” do populismo pelo nacionalismo,
344
em meados da
década de 1950, no cenário político brasileiro, observa-se que se a palavra “populismo”
desaparecia, permanecia no entanto o seu caráter. Segundo Weffort, “o desenvolvimento
histórico posterior a 1930 havia constituído, através do populismo de Vargas e seus
herdeiros, a figura do moderno Estado Brasileiro”.
345
Essa figura, porém, se encontrava
“inacabada”, “imperfeita”, uma vez que o “povo não era uma comunidade” mas um conjunto
de “contradições”. Em meio a essas tensões em desenvolvimento é que eclodiu o golpe
militar de 1964, quando o Estado projetou-se sobre o conjunto da sociedade com a finalidade
de dirigi-la soberanamente. O mito Vargas tornou-se, portanto, referência de poder
carismático no imaginário político do país. E mesmo após a morte trágica desse líder, sua
figura continua a se impor como uma referência imortal para a memória nacional.
A partir de 1964, a Igreja Católica, que marcara sua relação com o Estado
por um movimento ambíguo e pendular quer de apoio e colaboração, quer de crítica diante
de antagonismos e entraves mais agudos, é compelida a redefinir posições, começando por
338
Apud WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1990, p. 22.
339
O BRASIL EM SOBRESSALTO. 80 anos de história contados pela Folha de S. Paulo. Op. cit., p. 70.
340
Id., ibid., p. 212.
341
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LVI.
342
CAPELATO, M. H. R. Op. cit., p. 267.
343
Id., ibid., p. 276, 277.
344
Id., ibid., p. 37-44.
345
Id., ibid.
111
sua própria estruturação interna. Inicialmente, houve divergência entre a cúpula da Igreja, na
avaliação do golpe. No final do mês de maio daquele ano, a Comissão Central da CNBB
emitiu pronunciamento extremamente cauteloso e ambíguo. A violência das inúmeras
punições pelo governo militar fez que o colegiado episcopal assumisse em um documento
oficial duas posições aparentemente contraditórias: procurava, por um lado, reafirmar sua
aliança com o Estado, apoiando a ação militar que “arrancou o país do comunismo”, que
deveria continuar para “consolidar a vitória, mediante o expurgo das causas desordem”; por
outro, lembrava a necessidade de que os acusados não fossem punidos pela força e tivessem o
direito à defesa, pois a restauração da ordem social não viria “apenas com a condenação
teórica e a repressão policial do comunismo”. O apoio ao Estado ocorre em nome da luta
contra o avanço comunista no país. Na mensagem da CNBB declaram os bispos que estão
“prontos a prestigiar, acatar e facilitar a ação governamental”, mas não silenciando “a voz a
favor do pobre e das vítimas da perseguição e da injustiça”.
346
Conflitos e desgastes de relacionamentos, porém, se seguiram. No primeiro
aniversário do golpe militar, D. Hélder Câmara se negou a celebrar a missa comemorativa,
alegando o caráter político do ato de exclusiva competência do governo militar e não da
igreja. Novas repercussões se deram no segundo aniversário, quando se reeditou o mesmo
argumento do religioso. Uma outra situação de conflito entre a igreja e o governo foi
provocada pela proibição, em julho de 1966, da realização em Belo Horizonte, do 28.º
Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Sob a alegação de que o referido órgão
de representação nacional dos estudantes universitários fora extinto, a polícia federal proibiu
aos hotéis da capital mineira que recebessem os congressistas. Dominicanos, franciscanos e
monjas beneditinas se solidarizaram com os membros da UNE, abrigando-os em suas casas
religiosas e permitindo assim que o congresso previsto se realizasse. Nos anos de 1967 e 68,
os conflitos entre Igreja e Estado se multiplicariam na medida mesma em que “a nova ordem
estatal escalava o caminho da direita e da força e voltava contra a sociedade o rosto do
terror”.
347
Em 1968, quando o governo promulgava o AI-5, armando o Estado com o
seu “instrumento mais discricionário”, a Igreja Católica se reunia em Melellín, com a
presença do Papa Paulo VI, definindo posições de vanguarda da Igreja, que se tornavam
346
DECLARAÇÃO DA COMISSÃO CENTRAL DA CNBB, de 27 maio 1964. REB 24 (2), p. 491-493, jun.
1964.
347
FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 375, 376.
112
oficialmente linhas básicas de ação: a opção pelos pobres e as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs).
Na década de 70 aprofunda-se o conflito entre a Igreja e o Estado
que se manifesta de ma neira multiforme, em níveis variados da
estrutura hierárquica, tanto do Esta do, como da Igreja. As mudança s
do catolicismo, apoiando movimentos de emancipação de categorias
sociais excl uídas e def ende ndo os direitos humanos cont ra o arbítrio
e a viol ência do Estado autoritário e ditatorial, parecem ocorrer de
modo gradual, prosseguindo em ritmo irregular, mas seguindo
tendênc ia coe rente.
3 4 8
Após o golpe militar de 1964, também passam a ocorrer dura vigilância e
repressão aos setores populares e suas organizações praticamente inviabilizadas. Profissionais
liberais e artistas, por exemplo, não conseguiram ficar imunes ao controle e repressão
governamental ao longo de tal período. Entretanto, restou como espaço de manifestação e
protesto o setor da cultura: “a esquerda era forte na cultura e em mais nada. É uma coisa
muito estranha. Os sindicatos reprimidos, a imprensa operária completamente ausente. E
onde a esquerda era forte? Na cultura”.
349
O teatro nacional, nos anos imediatamente anteriores e posteriores a 1964,
enfatizou a dramaturgia política. Surgiram, por exemplo, seminários de dramaturgia,
promovidos em São Paulo pelo Teatro Arena, a partir de 1958, incentivando a escritura e a
encenação de peça e autores nacionais que expressassem os dilemas do povo, procurando
refletir sobre a conjuntura nacional. O Teatro Arena tornou-se um pólo de atração para jovens
artistas engajados politicamente na capital paulista, além de intelectuais e estudantes. Ele
atraía artistas de vários campos, do cinema a artes plásticas, vários dos quais participaram de
encenações com músicas.
350
Nos grandes centros urbanos, bem no âmago do capitalismo,
como sua principal célula econômica e também como seu pior inimigo, estava sendo
representado o operário, pobre, ignorante, mas que começava a tomar conhecimento de suas
potencialidades e a perceber que os fracos, unindo-se, poderiam derrotar os fortes. A greve e
união em torno do sindicato significavam para ele menos uma oportunidade de luta por
reivindicações precisas, salariais ou de outra natureza, do que o estopim deflagrador de um
processo de esclarecimento político que se começou a chamar de conscientização.
351
A formação de uma cultura expressa na imagem áudio-visual se delineia no
Brasil a partir da década de 1950, quando se assiste a um revigoramento geral do cinema
brasileiro, visível pela abertura de novas companhias produtoras. Há, neste período,
348
Id., ibid., p. 377.
349
DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 143.
350
Id., ibid., p. 139.
351
Id., ibid., p. 570.
113
formulações que culturalmente instigam imaginários voltados à brasilidade, com
representações fincadas em anseios de instauração de um novo modelo de sociedade que
possibilitasse oportunidade de melhor condição de vida aos segmentos mais socialmente
desfavorecidos. Com isto, busca-se principalmente fazer da expressão cinematográfica um
recurso de identificação do “homem brasileiro” sobretudo o homem do povo do seu
trabalho, da sua estrutura mental, da sua maneira de andar, falar, vestir, de existir, ou seja,
pensava-se em retratar “sem disfarces” a realidade. O cinema deveria ser um “meio de
expressão” a serviço da cultura, a qual deveria ser “criada” com traços “autenticamente
brasileiros”:
Tratava-se da t entati va de alcançar, e se pr ec iso fosse inventar, uma
expressão cinematográfica adequa da a uma certa realidade cultural,
econômi ca, polític a, social, que ao mesmo tempo fosse reflexo desta
realida de e fator atuante na sua superação. Propunha-se que o
cinema ajudasse a formar uma nova cultura, apoiando-se na
preexiste nte para enriquecê-la e transformá-la . Assim, em termos
sociológicos, entendia-se o cinema enquanto manife stação
representativa de um a realidade histór ica determinada que se
pretende desvendar e analisar criticamente, e enquanto fator
interveniente nesta r ealidade .
3 5 2
Assim, num contexto de acelerado processo de urbanização, “certos
partidos e movimentos de esquerda, seus intelectuais e artistas valorizavam a ação para
mudar a história, para construir o homem novo”, cujo modelo estava no passado, na
idealização de um autêntico homem do povo com raízes rurais, do interior, do “coração do
Brasil, supostamente não contaminado pela modernidade urbana”. Formulavam-se
representações da mistura do branco, do negro e do índio na constituição da brasilidade, não
mais no sentido de justificar a ordem social existente, mas de questioná-la. Recolocava-se o
problema da identidade nacional e política do povo brasileiro, buscava-se a um tempo suas
raízes e a ruptura com o subdesenvolvimento, numa espécie de desvio à esquerda do que se
convencionou chamar de era Vargas, caracterizada pela aposta no desenvolvimento nacional,
com base na intervenção do Estado.
353
No aspecto educacional, nas décadas de 1950 e 1960 o país enfrentava
grandes desafios. Além da falta de escolas em amplas regiões do território nacional, outros
fatores, especificamente sociais, faziam com que grandes porcentagens de crianças nem
sequer chegassem a ingressar no sistema de ensino. Nas periferias das grandes cidades, por
exemplo, havia contingentes de menores marginalizados. Crianças, ou mesmo famílias,
socialmente destituídas da possibilidade de projetar a vida no futuro, estavam
352
Id., ibid., p. 495.
353
Id., ibid., p. 135, 136.
114
incompatibilizadas com a idéia, implícita na escolaridade, de um caminho em direção a um
futuro pensado e desejável.
354
Essa situação foi analisada, na época, por Florestan Fernandes:
Em primeiro lugar, a educação escola riza da aparece como um
privilé gio econômico e social. De um la do porque só uma minoria
pode arca r com os ônus diretos e indiretos da educação dos
imaturos. De outro, porque a compreensão da importância da
instrução e sua valorização societária dependem de convicções e
conhecimentos compartilhados, em regar, pelos cí rculos soc iais
dominante s. Em segundo lugar, porque existem graduações na
distribuiçã o desse privilégio. A desigualdade econômica, cultural e
social tende a fome ntar condições impróprias ao aprove itamento das
oportunidades educacionais, fazendo com que as dificuldades
financeiras sejam consideravelmente reforçadas pela indiferença
diante da instrução ou pelo poder coercitivo variável do dever de
instruir-se. O jogo desses fa tores extra-educacionais bene fi ci a,
naturalmente, as minorias bem instaladas na est rutura do poder da
sociedade.
3 5 5
Além desses fatores, destaca-se ainda a dificuldade de rendimento e,
conseqüentemente, as deficiências do ensino primário decorrentes de um choque cultural
entre os conteúdos do ensino e as condições de vida econômica, social e cultural das
comunidades rurais e periféricas no contexto urbano. Predomina uma orientação educacional
a partir de um “ponto de vista de uma cultura dominante” que define as diretrizes e os
conteúdos da escolaridade:
Amplos se gmentos das populações subalterna s, sobretudo na s zonas
rurais e nas periferias das áreas urbanas, vivem segundo valores,
normas de comportamento, atitudes, sentimentos, crenças, enfim,
segundo uma c ultura em geral ausente dos conteúdos e da
organiz ação do processo educativo, que não a valoriza, não a aceita
e nã o a leva em consideração. Por mais complexos e adaptativos que
possam se r esses contextos c ulturais, eles estão excluídos da
escola.
3 5 6
Foi nesse período e contexto, a partir de meados do século XX, que o
quadro religioso brasileiro também começou a sofrer maior impacto com a “irrupção de um
novo tipo de protestantismo de massa, que passa a crescer de uma maneira assombrosa com
base nos grupos pentecostais”.
357
No início da década de 1950, desenvolveu-se no país o que
alguns pesquisadores chamam de “segunda onda” pentecostal
358
ou pentecostalismo de “cura
354
Id., ibid., p. 404.
355
FERNANDES, Florestan. Dados sobre a situação do ensino. In: EDUCAÇÃO e sociedade no Brasil. São
Paulo: Dominus Editora, 1966, apud DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 404.
356
Id., ibid., p. 405.
357
Id., ibid., p. 82.
358
Terminologia empregada por Paul Freston. Cf. FRESTRON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da
constituinte ao impeachment. Campinas: UNICAMP, 1993. 350 fl. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa
de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Estadual de Campinas, 1993.
115
divina”,
359
notabilizado pela figura das “tendas divinas”, cujas igrejas “rapidamente se
implantam e passam a ganhar centenas de milhares de adeptos em velocidade crescente,
sobretudo entre as camadas mais modestas da população”.
360
Esse pentecostalismo passaria a
representar, de fato, ameaças à hegemonia católica e transformações no âmbito do próprio
protestantismo:
Missi onár ios norte-americanos invadiram o pa ís implantando uma
nova liturgia, mais espontânea, com cultos informais e grandes
concentrações de massa. O movimento evangélico se ur bani za va,
com surgimento de gr andes grupos pentec osta is, como a Igr ej a
Quadr angular, O B rasil Para Cristo, N ova Vida e a Igreja Deus é
Amor. Ao mesmo tempo, segmentos das igrejas históricas se
renovavam , principalmente batistas e metodist as. O pentecostalismo
se firmava como tendê ncia irreversível da igreja brasileira.
3 6 1
Uma das denominações mais ativas nesse processo foi a Igreja do
Evangelho Quadrangular, fundada nos Estados Unidos, em 1922, por Aimeé Semple
McPierson,
362
uma canadense, missionária da Igreja Metodista, que rompera com a sua
denominação para organizar o seu próprio movimento, também na cidade de Los Angeles.
363
Essa igreja viria a desempenhar um importante papel no campo religioso brasileiro quando,
no início dos anos 1950, começou um empreendimento proselitista sob o nome de Cruzada
Nacional de Evangelização. Um dos missionários responsáveis, Haroldo Williams, que
havia estado na Bolívia, chegou ao Brasil em 1946, radicando-se em São João da Boa Vista,
no interior do estado de São Paulo, onde iniciou uma igreja, em 1951. O começo foi lento e,
em 1953, ele convidou para auxiliá-lo um amigo, Raymond Boatright que, além de
missionário da Quadrangular, também era, como ele um ex-ator de filmes de faroeste.
Juntos, passaram a realizar campanhas de curas e expulsão de demônios, ocasião em que
conseguiram notadamente chamar a atenção da cidade. Devido ao sucesso alcançado, os dois
missionários foram convidados, no ano seguinte, para empreenderem uma campanha
semelhante na Igreja Presbiteriana Independente (IPI) do Cambuci, na cidade de São Paulo.
A ênfase era na cura e na expulsão de demônios e atraiu a atenção de uma crescente
multidão, de tal forma que o templo ficou pequeno. Os eventos ocorridos logo chamaram
359
Terminologias estas usadas, por exemplo, pelos pesquisadores: MENDONÇA, A. G. O celeste porvir. Op.
cit.; MARIZ, Cecília Loreto. In: Sociologia no Brasil. São Paulo: UMESP, 1998, p. 73-91.
360
Id., ibid., p. 82.
361
Id., ibid.
362
A Quadrangular é ainda considerada a única grande igreja cristã fundada por uma mulher, o que pode
explicar o espaço privilegiado nela existente para o ministério eclesiástico feminino, uma novidade na época.
Isso certamente também contribuiu para que essa igreja se tornasse menos repressora em relação aos “usos e
costumes” como “sinais externos de santidade”, como exigidos pelo pentecostalismo clássico em relação à
mulher.
363
McPierson morreu em 1944 e seu filho assumiu a liderança da igreja, que contava então com um grande
número de congregações nos Estados Unidos e em vários outros países.
116
também a atenção da imprensa, tornaram-se objeto de muitos artigos nos jornais da época,
que noticiavam o comparecimento de milhares de pessoas às sessões de cura, obrigando
inclusive, a interdição de ruas do bairro para melhor locomoção das massas.
O resultado dessa série de reuniões no Cambuci foi um conflito com as
cúpulas das igrejas hospedeiras. A direção da Igreja Presbiteriana Independente (IPI) exigiu
explicações do pastor daquela comunidade presbiteriana local, Rev. Silas Dias, acerca das
práticas ali adotadas e que fugiam ao perfil teológico presbiteriano. Esse embate terminou
com a recusa das denominações protestantes em ceder outros templos a esse tipo de
atividade, bem como o desligamento da igreja do Cambuci da IPI, fato que deu origem à
Igreja Evangélica do Cambuci. Com a cisão, a solução foi comprar e armar tendas – lonas de
circo em terrenos próximos à igreja, onde continuaram as reuniões. Muitas outras igrejas
presbiterianas independentes também foram atingidas pelo fenômeno pentecostal, sendo por
isso também forçadas a se desligar da IPI e cada uma se constituiu de forma autônoma,
abandonando a doutrina e a eclesiologia presbiterianas e assumindo uma nova identidade
marcadamente pentecostal.
Com o passar do tempo, o trabalho de curas e exorcismos realizado nas
tendas desvinculou-se da igreja do Cambuci, expandindo-se por todo o país. As tendas eram
montadas nos centros das grandes e médias cidades brasileiras. Esse “movimento de tendas”
ficou conhecido como Cruzada Nacional de Evangelização. Para organizar as novas igrejas
que foram surgindo em decorrência da atuação das cruzadas, os missionários criaram, ainda
em 1954, a Igreja da Cruzada, mas, no ano seguinte, associaram-se formalmente à Igreja
do Evangelho Quadrangular dos Estados Unidos, mudando não somente o nome, mas
estabelecendo vínculos doutrinários com a igreja americana. O que tinha sido pensado
inicialmente apenas como um movimento de avivamento no interior das igrejas existentes
logo se transformou em uma nova denominação. Inovaram também ao infundir sua
mensagem através do rádio, principal meio de comunicação de massa da época, dos
ajuntamentos itinerantes com tendas de lonas, das concentrações em praças públicas, ginásios
de esportes e estádios de futebol. Ainda que mantivessem a ênfase no batismo com o Espírito
Santo, como os primeiros pentecostais, sua mensagem era agora principalmente concentrada
na cura divina.
A atuação da Cruzada, portanto, causou um enorme impacto no campo
evangélico-protestante brasileiro, provocando cismas em praticamente todas as
117
denominações, sejam históricas ou pentecostais.
364
No caso das pentecostais, que até então
eram representadas quase que exclusivamente pelas igrejas Congregação Cristã e Assembléia
de Deus, a fragmentação denominacional foi enorme. Como resultado, surgiram várias novas
igrejas, entre elas a própria Igreja do Evangelho Quadrangular,
365
além de O Brasil para
Cristo, Deus é Amor e várias outras de menor porte:
A partir da Igreja do Evangelho Quadrangular, a semente do
espantoso movimento de cura divina estava lançada para germinar
em grande escala no pa ís. Embora tipicamente pentecostal, e ssa
igreja inseriu nos seus funda me ntos teológicos a chave do
neopentecostalismo, como por exe mplo, a ênfase à cura divina e à
expulsão de dem ônios.
3 6 6
Se as primeiras igrejas pentecostais, como visto, tiveram sua origem no
exterior, as que surgiram no Brasil, a partir da década de 1950, foram formadas por cisões de
suas predecessoras, apresentando a emergência de lideranças carismáticas nacionais. É o caso
da Igreja o Brasil para Cristo, fundada em 1956, em São Paulo, por Manoel de Mello, um
pernambucano que havia migrado para a capital paulista em busca de trabalho. Mello tornou-
se membro da Assembléia de Deus e depois evangelista na mesma igreja. Foi no decorrer de
1954 que se integrou ao movimento Cruzada Nacional de Evangelização, combinando as
funções de pregador de multidões, nas tendas, com o de pequeno empresário de construção
civil.
Em 1955, Manoel de Mello iniciou um programa radiofônico na Rádio
América, com quinze minutos de duração, e alguns meses depois passou a transmiti-lo pela
Rádio Tupi de São Paulo, então a mais potente emissora paulista. Foi, portanto, um dos
pioneiros no país a utilizar programas de rádio para a propagação da sua mensagem religiosa.
Assim nasceu o programa A Voz do Brasil para Cristo, nome este que acabou gerando a
própria Igreja O Brasil para Cristo, que viria a ser fundada por ele em 1956. O sucesso de
Mello e a projeção de seu carisma podem ser explicados, dentre outros fatores, pelas
pregações radiofônicas, que provocavam grande interatividade entre o locutor e os ouvintes,
364
Observando-se ainda a importância a Cruzada Nacional de Evangelização no cenário religioso brasileiro,
pode se dizer que tal segmento tornou-se uma espécie de matriz de “sindicato de mágicos”: a partir dela líderes
dissidentes deram início a outros movimentos concorrentes e firmaram escola. O movimento iurdiano, mais
tarde, também via brotar aí uma de suas raízes.
365
A Igreja Quadrangular com o passar do tempo se consolidou institucionalmente e, em 1991, segundo dados
da própria denominação, contava com aproximadamente 3.000 igrejas e 4.000 congregações (igrejas menores
sem autonomia, vinculadas ainda a uma igreja-mãe), comandadas por cerca de 10.000 pastores, dos quais 35%
são mulheres.
366
MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens. São
Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 158.
118
principalmente pela oração e relatos de curas dela decorrentes através de tais programações
diárias.
O intenso emprego das emissoras de rádio como estratégia de apoio às
concentrações, para divulgação das curas divinas, possibilitava também o contato com um
rebanho disperso por inúmeras cidades no interior do País. A ousadia de Manoel de Mello era
notória naquele contexto. A partir de 1958 passou a realizar grandes concentrações religiosas
que lotavam estádios de futebol, em São Paulo. Essas concentrações eram chamadas de
“tardes da bênção” e tinham grande ênfase em milagres e curas divinas. A mídia dava uma
certa cobertura a esses eventos. Seguindo a estratégia da Cruzada, Mello também passou a
usar tendas de lona e, assim, a partir de São Paulo, a igreja espalhou-se por todo o Brasil. Foi
a igreja pentecostal a estar em evidência na mídia na década de 60, pois suas campanhas de
cura divina, ao mesmo tempo em que atraíam grande multidão, também rendiam muitos
processos de charlatanismo contra Manoel de Mello. Desde o final dos anos 50, a imprensa,
mais a religiosa que a chamada “secular”, publicou inúmeras críticas sobre sua atuação. Ele
foi o primeiro a alugar cinemas para as reuniões evangelísticas, rompendo com o que até
então era considerado espaço sagrado, apropriando-se de lugares tidos profanos, como
cinemas e estádios. Participou inclusive de programas de auditório, um escândalo para
protestantes históricos e, principalmente, para os pentecostais. Mello realizava concentrações
de cura em estádios de futebol em dias de feriado nacional e convidava autoridades civis e
militares para participar das reuniões. Em 1958, conseguiu levar ao estádio do Pacaembu, em
São Paulo, numa “tarde da bênção”, cerca de 150 mil pessoas. Nessas concentrações, embora
os seguidores de Mello dissessem haver milagres, jornais da época o denunciavam por
charlatanismo, como por exemplo, O Estado de S. Paulo, de 08/07/1959, o que custou a
Mello processos na justiça. Todavia esses processos acabaram sendo arquivados por falta de
provas. Em 13/03/1960 Mello realizou na Praça da Sé uma “tarde da vitória”, atraindo 50 mil
pessoas para comemorar o despacho da Vara Criminal de São Paulo, arquivando um
processo aberto contra ele por charlatanismo e prática ilegal da medicina.
Outro projeto de Manoel de Mello foi a construção de um grande templo no
Largo da Pompéia, em São Paulo, que de maneira ufanística era apresentado na época como
o “maior templo evangélico do Brasil e do mundo”. A construção foi concluída em 1979.
Mello demonstrava também atitude dessacralizadora do espaço sagrado em relação a
outros segmentos evangélicos:
O povo precisa sentir-se à vontade no templo. Por exemplo: na
minha igreja eu permito que até à hora do culto o povo converse
119
quanto quei ra . É um verdadeiro merca do lá dentro, todo mundo
conversando: como vai a tua mãe? E aquele cavalo que você
comprou?” Todos conversam. Na hora do cul to entro no assunto
sério. Aquela idéia do sujei to entrar no templo e pensar que está
num túmulo, num cemitério, já acabou (...) Eu não pe rmito que o
povo veja o templo como coisa sagrada. Para o povo do Brasil para
Cristo o templo não é sagrado. É sagrado o que se faz lá dentro. O
templo em si tem apenas uma finalidade: ampara do sol e da chuva
(...) quando começa o c ulto t odo mundo está satisfeito (...) Fiz
muita coisa radical que hoje não faria mais. Mas percebi que o culto
partici pati vo é o culto de que o povo brasileiro gosta.
3 6 7
Outra inovação importante introduzida por ele foi o envolvimento político-
partidário da igreja. Em 1962, apresentou um candidato a deputado federal, Levy Tavares, o
qual foi eleito em 1966, mas ao tentar empreender uma atuação independente perdeu o apoio
de Mello e não conseguiu se reeleger em 1970. Devido a uma atuação controvertida, tanto
Manoel de Mello quanto a sua igreja encontraram forte oposição por parte das lideranças das
denominações protestantes históricas. Não obstante, o seu rápido crescimento e projeção,
faltou a esta igreja uma estrutura de sustentação que fosse maior que o seu próprio fundador,
razão porque, com a morte de seu líder, em 1990, o movimento descentralizou-se, perdendo
muito das suas marcas iniciais.
Da Igreja Quadrangular, Davi Miranda saiu para fundar, em 1962, a sua
própria denominação: a Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA). Miranda, que viveu a
infância e juventude na zona rural do município de Telêmaco Borba PR, mudou-se
posteriormente com sua família para São Paulo, onde se converteu ao pentecostalismo,
tornando-se membro da Igreja O Brasil para Cristo. Após ter obtido alguma liderança nesse
movimento, pediu rescisão de contrato na fábrica em que trabalhava como vigilante e, com o
dinheiro que recebera de seus direitos trabalhistas, alugou um pequeno salão na periferia da
capital paulista, criando assim, o seu próprio movimento. Mesmo possuindo apenas a
escolaridade primária, Davi Miranda logo passou a ganhar projeção no cenário religioso
pentecostal, enfatizando, sobretudo, a cura divina e o rigor ascético quanto ao chamado “usos
e costumes” dos seus fiéis.
Miranda empregou a mesma técnica de comunicação de Manoel de Mello,
fazendo do rádio o seu principal veículo de propaganda, prática esta à qual se mantém fiel até
hoje. À ênfase na cura divina, Miranda acrescentou o exorcismo, realizado durante os cultos
e transmitidos ao vivo pelo rádio. Com o crescimento de sua denominação, com sede em uma
antiga fábrica desativada próxima da Praça da Sé, no centro de São Paulo, missionário
367
MELLO, Manoel. Jornal Expositor Cristão, São Paulo, ano 83, n. 19, p. 11, 01 out. 1968. (Disponível para
pesquisa no CDPH da FTSA, Londrina – PR.).
120
investiu na aquisição de emissoras de rádio. Atualmente, a voz do “consagrado homem de
Deus”, como Miranda é chamado pelos fiéis, ecoa através das dezenas de emissoras de
propriedade da própria igreja e por centenas de outras com horários pagos em todo o Brasil.
Vale dizer que as primeiras programações radiofônicas realizadas pela IPDA provocaram
forte reação e oposição da mídia, sob a acusação de que tais programas promoviam a prática
de curandeirismo.
A IPDA mantém em seu templo-sede, na cidade de São Paulo, uma “sala de
milagres”, na qual inúmeras muletas, cadeiras de rodas e outros objetos ali expostos
testificam milagres declarados pelos fiéis. A igreja também se considera possuidora do maior
templo evangélico brasileiro, com capacidade para 18 mil lugares, onde funciona a sede
própria, instalada no centro da capital paulista. A Igreja Deus é Amor totaliza cerca de 2,5
milhões de seguidores no Brasil, estando também presente em outros 26 países, a maioria da
América Latina, sendo também proprietária de mais de 40 emissoras de rádio, que
transmitem diariamente e com exclusividade seus programas religiosos. A IPDA é fortemente
sectária, não colaborando com nenhuma outra igreja evangélica.
Essas vertentes do pentecostalismo neoclássico, das décadas de 50 e 60,
também se caracterizaram pelo chamado “sinal de santidade” expresso nos “usos e
costumes”. Isso se observa nas vestimentas características terno escuro e gravata dos
homens, saias compridas das mulheres ou nos hábitos peculiares com os quais geralmente
se identificam os chamados “crentes”: cabelos longos ou atados em coques pelas mulheres, a
Bíblia sempre carregada orgulhosamente na mão e a recusa de ter em casa aparelhos de
televisão ou participar de festas onde o canto, a dança e a bebida possam incitar à depravação
dos costumes. Mas, de todas as igrejas pentecostais brasileiras, a Deus É Amor é a mais
rigorosa em relação ao ascetismo comportamental. Ainda hoje se proíbe toda e qualquer
prática de jogos e uso de métodos anticoncepcionais. Também não se permite que seus
membros façam qualquer tipo de curso teológico, ou estudem qualquer instrumento musical,
por entender que tanto a teologia, como a arte, desviam o ser humano dos caminhos de Deus.
É também radicalmente contra o uso de TV como meio de diversão. Os casamentos só podem
acontecer entre os que freqüentam a igreja.
O regime militar, em busca permanente de legitimação e fidelidade,
valorizou práticas religiosas que enfatizavam a obediência às autoridades. Nesta demanda,
cresceram vários grupos religiosos pentecostais. Líderes como Davi Miranda, no início dos
anos 80, ofereciam, em suas pregações, respaldo de legitimidade ao regime autoritário. Numa
121
dessas orações, Miranda suplicava em favor das autoridades da nação e, especialmente, pelo
governo de Paulo Maluf em São Paulo (que naquela época procurava petróleo, por meio da
companhia estatal Paulipetro), usando as seguintes palavras:
Oh Deus, que as aut oridades possam tomar decisões sábias e pagar a
dívida externa (...) Abenç oa as pesquisas para encontrar petróleo,
pois tu fiz estes todas as coisas e sabes onde o our o negro está
escondido e também sabe s Senhor, o quanto o Brasil precisa
disso.
3 6 8
Quanto ao uso da televisão como meio de veiculação de programas
religiosos, é preciso considerar que até os anos 1960 – apesar da televisão ter iniciado as suas
atividades na década anterior - os pentecostais ainda se mantinham longe desse novo veículo
de comunicação. As primeiras investidas dessas igrejas na televisão esbarravam em dois
grandes problemas: o pouco recurso financeiro para custear os programas e a falta de
experiência com o veículo.
369
Manoel de Mello, nos anos 60, chegou a usar a TV, ainda que
em programas de pouquíssima duração de tempo. Além dele, o pregador pentecostal Josias
Joaquim de Souza, conhecido como “missionário Josias”, da Cruzada Evangélica A Volta de
Jesus, sucessora da Igreja Viva Jesus. Souza pregava a cura divina e chegou a transmitir ao
vivo cenas de exorcismo que causaram enorme reação e provocaram o fim de sua aparição na
TV. Embora tais programas de TV, ancestrais da bateria de programações religiosas atuais,
tenham durado pouco, os líderes aceitavam convites para comparecer em outros shows,
mesmo aqueles que chocavam os pentecostais, como o da apresentadora Hebe Camargo.
370
Esse novo pentecostalismo, chamado às vezes de “protestantismo de
conversão”,
371
trouxe, sob vários aspectos, significativas inovações para o campo religioso.
Primeiro, no uso de instrumentos não convencionais de evangelização, centrados sobretudo
na comunicação de massa, por meio do rádio, tendas de lona itinerantes junto às quais se
agrupavam os adeptos potenciais para ouvir a nova mensagem evangélicas, assim como nas
concentrações em praças públicas, ginásios de esporte e estádios de futebol. Segundo,
inovava também em sua própria mensagem a “cura divina” para as doenças do corpo ou da
interioridade do espírito, em uma dimensão bastante privada, mas que, no entanto, eram
expostas publicamente por meio dos nomes verbalizados pelos pregadores que, sem receios,
as diagnosticavam; e também pela autoconfissão nos chamados “testemunhos de cura” dados
368
CAMPOS, Leonildo Silveira. O milagre no ar: persuasão a serviço de quem? Simpósio São Paulo, ASTE, v.
5, ano XV, p. 92, dez. 1982.
369
No caso da Igreja Pentecostal Deus é Amor, o uso da televisão é proibido aos fiéis sob o argumento de que é
um veículo difusor de imoralidade.
370
FRESTON, P. Op. cit., p. 88.
371
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de (Org.). Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes,
1973.
122
pelos fiéis. E, por fim, o novo pentecostalismo inovava ainda, num país majoritariamente
católico, do ponto de vista teológico e organizacional: suas igrejas prescindiam da hierarquia
sacerdotal e “negavam ao catolicismo o monopólio da salvação, agora colocada nas mãos dos
próprios fiéis”:
372
Para esses novos fiéis, a a desão às igrejas pentec ostais emergentes
seguramente representaria uma subversã o simbólica da estrutura
tradici onal do poder. (...) Ao rejeitarem também a hierarquia
sacerdotal tradiciona l da Igreja Ca tólica , elas promovem adesão a
um sistema de cr ença s reli giosas que colocam o sobrenatural ao
alcance imediato de todos os que abraçam a nova fé.
3 7 3
Nesse período de desenvolvimento de novas denominações pentecostais,
houve significativas transformações sociais, como, por exemplo, a aceleração do processo de
industrialização e a conseqüente migração para os grandes centros urbanos de contingentes
populacionais vindos de um Brasil rural pobre em busca de melhores condições de vida na
cidade.
A eme rgência destas igre jas viria ao encontro dos va lores
tradici onais da cultura desses migrant es, em especial aqueles
ligados a uma terapêutica mágica de benzimentos e simpatia s ou à
medicina tradiciona l de ervas e plantas curativas sobe jamente
conhecidas do meio rural de onde provinham. Para estes a
mensagem de cura divina não seria algo estr anho.
3 7 4
Outra dimensão social do papel dessas igrejas é a conferência aos fiéis de
algum status, o que lhes tem sido negado, como destaca Montes:
No meio em que passam a viver, essas igr ej as rapidamente
reconstit uem para esses novos trabalhadores que chegam aos
grandes centros urbanos os laços de solidariedade primária de seu
local de origem, perdidos com o processo migratório, dando-lhes
enfim o sentimento de pertencimento que lhes falta na grande
cidade, absorvendo-os numa c omunidade. Por mais humilde, mais
incapaz, mais ignorante que seja, o convertido sente imediatamente
que é útil e que nele depositam confiança: chamam-no
respe itosamente irmã o, seus serviç os sã o sol icitados por pessoas
que fal am como ele e que têm a certeza de pertencer ao povo de
Deus.
3 7 5
A multiplicação desses segmentos evangélicos, com extraordinário
crescimento, faz que seus fiéis “partilhem as mesmas crenças e as mesmas esperanças, longe
da agitação da vida social mais ampla, ensinando a não ambicionar outra projeção senão
aquela que se conquista no interior da própria igreja”.
376
372
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 83.
373
Id., ibid., p. 84.
374
Id., ibid.
375
Id., ibid.
376
Id., ibid.
123
Do lado católico, preocupações frente ao desenvolvimento dessas novas
expressões religiosas que se apresentam como alternativa de amparo e acolhimento diante de
condições sociais agravantes. Sobretudo a partir da década de 1960, observam-se inquietantes
clamores das massas e apelos da sociedade por melhores condições de vida. O catolicismo
apresentará, então, setores preocupados em estabelecer maior proximidade com este quadro
social. Com tal propósito, convocado pelo papa João XXIII, ocorrerá o Concílio Vaticano II,
de 1962 a 1965. Buscava-se uma posição de abertura, diálogo e articulação. O Concílio
inspirou, assim, novos desenhos para o catolicismo, marcado por uma busca de diálogo com
os novos desafios do mundo contemporâneo. Produzem-se documentos que chamam a
atenção para o agravamento das desigualdades sociais. Sob o impulso conciliar, os bispos
brasileiros traçam um plano pastoral nas diversas regiões e dioceses do Brasil, realizando-se
cursos, conferências e seminários com o objetivo de divulgar uma nova mentalidade religiosa
de aproximação com o povo. Há maior abertura para os leigos e renovações litúrgicas.
Sob inspiração do Vaticano II também se articula no período subseqüente a
Teologia da Libertação. Em 1964, na cidade de Porto Alegre, reuniram-se teólogos latino-
americanos com o objetivo de estudar a presença do catolicismo no continente. Busca-se
outra postura da igreja, pois uma nova maneira de se fazer teologia es sendo tecida,
procurando dialogar com as questões sociais, políticas e culturais. Surge das práticas
populares, procurando responder às situações históricas e desafiantes do cotidiano, “pleiteia
uma leitura sempre situada e orientada em função dos desafios e dos problemas concretos”.
377
No âmbito religioso, nesse período também, a Igreja Católica abrir-se um espaço real pela
redefinição de sua situação dentro da sociedade civil, de sua articulação com as classes
emergentes e com o novo bloco no poder. Internamente, a questão do laicato, em suas
relações com a sociedade, com a política e com a hierarquia, sobe ao primeiro plano.
378
Procurando implementar as diretrizes da primeira sessão do Concílio do
Vaticano II, realizado em 1962, as Conferências do Episcopado Latino-Americano de
Medellín, em 1968, e de Puebla, em 1979, levaram bispos brasileiros a uma profunda
mudança no discurso perante a realidade social, em seus posicionamentos políticos e em sua
própria estrutura organizacional. Assim, abraçando-se a “opção preferencial pelos pobres”,
empreendem-se esforços na organização de Comunidades Eclesiais de Base, a Igreja Católica
promove uma revisão autocrítica de sua própria história, procurando redescobrir ou
reinventar sua vocação com base em uma releitura de sua atuação do ponto de vista do
377
BOFF, Clodovis. Teologia e prática: teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 21.
378
DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 274.
124
povo”.
379
Essa proposta de maior envolvimento social e político procura levar o fiel a uma
conduta mais voltada para a dimensão pública que para a interioridade da na vida privada.
Esse processo, porém, levaria o catolicismo a pagar um preço:
Longe da vida pública, da política e de compromisso c om os pobres
e suas causa s socia is, uma grossa massa de f iéis, ricos assim como
pobres, não mais se re conhecer ia nessa nova Igreja, vista por muitos
como incapaz de lhes fornecer respostas quando as exigências da fé
não enc ontravam equivalênc ia necessária no plano da política, como
ao precisar de conforto diante das agruras da dor íntima, da perda
pessoal ou da car ência espi ritual, no âmbito da vida privada.
3 8 0
O sacerdote peruano Gustavo Gutierrez que desenvolve um articulado
trabalho com estudantes universitários e se um dos principais expoentes e articuladores
desta maneira de pensar a teologia, declara:
A Teologia da Libertação é uma tentativa de compreender a fé a
partir da práxis histórica , libertadora e subversiva dos pobres deste
mundo, das classes exploradas, das raças despre zadas, das culturas
marginaliza das. Ela nasce da inquie tant e espera nça de libertação.
3 8 1
Essa nova perspectiva de reflexão favoreceu a organização de uma pastoral
popular. Os leigos puderam, então, assumir maior participação de liderança na igreja.
Desenvolveram-se as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que congregavam grupos e
movimentos. As CEBs, na década de 1970, multiplicam-se em diversas regiões do país.
Através de círculos bíblicos promoviam-se reflexões das situações concretas da vida. A troca
de experiências dos participantes era uma forma de socializar os problemas e os
questionamentos de cada um, em sintonia com desafios da história presente. Há, assim, uma
intensificação entre religião e vida cotidiana, colocando nas manifestações religiosas
situações básicas: a família, o trabalho, o bairro, a cidade e seus desafios prementes. Em
síntese, a Teologia da Libertação, ultrapassando o conhecimento doutrinário apenas, propõe-
se a oferecer fundamento teológico às práticas da comunidade. Acredita na formação de uma
consciência política que torne o cristão um agente/sujeito engajado no propósito de
estabelecer novos rumos para a história na qual está inserido. Para tanto seria necessário
estabelecer uma rede de relações com sindicatos, associações e os diversos movimentos
populares. Assim, não apenas o religioso, mas a articulação política seria um caminho
obrigatório a fim de alcançar a tão sonhada libertação.
Para o catolicismo, seria preciso, assim, que se urbanizassem as massas
crescentes de fiéis, respondendo aos seus anseios frente aos novos desafios que o mundo
379
Id., ibid., p. 78.
380
Id., ibid.
381
CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 58.
125
urbano passa a representar. Num processo de urbanização que se modelava, “a igreja, com
sólidas raízes na zona rural, sentia que seu futuro podia estar comprometido se de algum
modo não tornasse ativa sua presença junto às classes populares em constituição nas
cidades”.
382
Na medida do avanço progressivo e rápido das formas capitalistas de organização
da produção, os fiéis católicos nas cidades eram, em número cada vez maior, assalariados,
operários, funcionários. Para pôr em execução sua estratégia reformulada de reconquista
desses contingentes, a Igreja Católica faz “alianças táticas oportunas”:
Preocupada sim com a própria sobrevivência e aceitação entr e as
massas que então se mobi lizava m, valeu-se de órgãos do governo
federal para minorar os ma les advindos das condições subumanas
de vida de grande parte da população brasileira, conscientemente
ou à revel ia (...) a sua essencial ambigüidade casou-se, num plano
de quase intimidade, com a ambigüidade do próprio Estado no
período populista.
3 8 3
Essa aproximação entre Igreja e Estado
384
se observou nos esforços
empreendidos para “promover o desenvolvimento”, mediante a apressada sindicalização dos
trabalhadores rurais por iniciativa do clero, a formação das Frentes Agrárias, o Movimento de
Educação de Base (MEB). Tais procedimentos revelam muito do espírito de conquista e
disputa que tomou conta dos segmentos mais dinâmicos e renovadores do clero.
A relação de intimidade palaciana com o Estado populista
desenvolvimentista, ar rastar iam a Igreja rumo aos anos 60 em
malhas tão contraditórias, que far ia m dela uma força bem mais
progressista do que se poderia supor na primeira metade dos anos 50
e, ao mesmo tempo, muit o mais dividida em sua força, porquanto ela
viria a significar ao mesmo tempo freio e estímulo à expressão das
insatisfações de diferentes cama das da população, no campo e na
cidade.
3 8 5
Entretanto, o agravamento das condições sociais de vida no mundo urbano
marcado pela violência, desemprego, falta de saúde, moradia etc. passava a exigir cada
vez mais respostas imediatas, que não podiam esperar pelo processo demorado de
engajamento social objetivando uma possível transformação da sociedade pelas mediações
políticas. Ruben Oliven, em análise sobre tal período, estabelece uma relação que ocorreu
entre a urbanização e um declínio gradual do catolicismo entre a população urbana, ao passo
que se observa a ascensão de outros segmentos populares não católicos.
386
Nesse contexto,
marcado pelo estado de ignomínia”, “pauperismo” e “fome”, e desencadeador de um
382
BEOZZO, O. Op. cit., 299.
383
Id., ibid., p. 367.
384
Id., ibid.
385
Id., ibid., p. 368.
386
OLIVEN, Rubem Georg. Urbanização e mudança social no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.
126
crescente “desespero” por parte das massas, cria-se espaço para maior operosidade de outras
organizações religiosas.
387
2. 4 – O contexto de desenvolvimento do neopentecostalismo
A tomada do poder pelos militares consistiu num acontecimento político
de enormes conseqüências não apenas na política, mas na economia, na cultura e no
comportamento”.
388
Com a instauração desse regime, passou-se a uma preocupação com a
manutenção da “boa imagem” do país, e também com a amenização da impopularidade
daquele modelo de governo que a cada dia se tornava crescente. Nesse sentido, segundo
Carlos Fico, no estudo a que denominou “a criação de uma agência de propaganda”,
389
mostra
que a formação de tais agências pretendia criar um sentimento de patriotismo, de unidade, e a
idéia de que o país vivia um bom momento econômico: “a grande identidade entre Aerp e a
Arp era a pretensão de projetar uma imagem de otimismo, de esperança (...) a criação de uma
atmosfera de otimismo e o fortalecimento do caráter nacional”.
3 9 0
Daí, slogans e frases de
efeito com grande teor apelativo: “Brasil: ame-o ou deixe-o”; “ninguém segura este país”; ou,
“este é um país que vai para frente”.
Entretanto, não obstante o espírito de “otimismo”, durante o regime militar
brasileiro, mediante o ufanismo do chamado “milagre econômico”, a partir dos anos 80,
assiste-se ao “reverso da medalha: as dúvidas quanto às possibilidades de construir uma
sociedade efetivamente moderna tendem a crescer e o pessimismo ganha, pouco a pouco,
intensidade”.
391
Acentuou-se, pois, intensa crise social em todo o país, e mesmo nos países
desenvolvidos tal crescimento se mostrou instável:
Ele [desenvolvimento econômico] consolidou-se nas décadas de 60 e
70 provocando um intenso crescimento econômico definido nas
sociedades industriais e te cnológicas, como desenvolvimento.
Naque le momento irrompeu naquele e spaço uma profunda c rise
social, política e c ultural. Os pre ssupostos defendidos segundo os
quais com o crescimento material milhões de se res humanos
passariam a ter uma m elhora significativa de sua condição de vida,
bem como a s desigualdades entre os pa íses seriam sanadas,
demonstraram ser falsas. O aument o do bem-estar material
concentrou-se na mão de alguns poucos privilegiados, detentores do
poder polít ico-econômico (...).
3 9 2
387
DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 362.
388
Id., ibid., p. 6.
389
FICO, Carlos. Reiventando o otimismo. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 89-147.
390
Id., ibid.
391
NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 560.
392
PAES DE ALMEIDA, Jozimar. Errante no campo da razão. Londrina: UEL, 1996, p. 54.
127
Descrevendo esse período, em nível nacional e internacional, pode-se citar
Eric Hobsbawm:
Depois da Segunda Guerra Mundia l, seguiram-se 25 ou 30 anos de
extraordinário crescimento econômico e transformação social, anos
que provavelmente m udaram de maneira mais profunda a sociedade
humana que qualquer outro período de brevidade comparável.
Retrospec ti vame nte, podemos ver esse período como uma espé cie de
Era de Ouro, e assim ele foi visto quase que i mediat amente depois
que acabou, no início da década de 70.
3 9 3
As palavras de Perry Anderson ressaltam as dificuldades que envolveram a
economia capitalista em geral, a partir dos anos 70:
A chegada da grande crise do modelo econômico do pós- guerra, em
1973, quando todo o mundo ca pitalista avançado caiu numa longa e
profunda recessão, com binando, pela primeira ve z, baixas taxas de
crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as
idéias neoliberais passaram a ganhar t er reno. (...) o Estado teve de
aumentar cada vez mais os gastos sociais (...) desencadearam-se
processos inflacioná ri os que não podiam deixar de terminar numa
crise gener alizada das economias de merca do.
3 9 4
A economia brasileira, nas décadas de 1970 e 1980, sustentou-se a partir de
empréstimos externos e juros exorbitantes,
395
fato que culminou na sua subserviência cada
vez maior à hegemonia do capital estrangeiro. O neoliberalismo se projetava como uma
“seita exótica, que pregava teses como a privatização dos serviços de saúde, do sistema
educacional, a diminuição da proteção social ao trabalho, o incremento da desigualdade como
fator de crescimento econômico”.
396
Pesquisas elaboradas na época apontavam para ampla
crise social em escala crescente:
Em 1960, 51% de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza na
América Latina, o que equivalia a cerca de 110 milhões de pessoas
(...) em 1990, cerca de 196 milhões de latino-americanos, ( ...) na
chegada do ano 2000, a estimativa é para mais de 300 milhões.
3 9 7
Fernando Novais comenta esse quadro econômico e social:
A par tir de 1980, finalmente, a nova realidade se impõe. Malgrado
hesitantes tent ativas de reinve rsão, consolida-se nas suas expressões
limítrofe s (e stagnação econômica, superinflaç ão, desemprego,
violê ncia, e scalada das drogas etc.), nestes dias atuais em que
vivemos.
3 9 8
393
Apud NETO, José Miguel Arias. O Eldorado: representações da política em Londrina - 1930-1975.
Londrina: UEL, 1998, p. 9.
394
ANDERSON, Perry. In: SADER, Emir (Org.). Pós-neoliberalismo: As políticas sociais e o Estado
Democrático. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1995, p. 10, 11.
395
SADER, Emir (Org.). Op. cit., p. 83.
396
Id., ibid.
397
Id., ibid.
398
NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 562.
128
No início da década de 1970, se observava também um processo de
industrialização o qual atraía a grande mão-de-obra do campo, que a então representava
uma das principais bases econômicas do País, sendo esta expulsão da mão-de-obra do campo
também decorrente, dentre outros aspectos, da implantação de culturas que passaram a
utilizar a crescente mecanização, como a soja e o trigo.
Os jornais da época apontavam para
novos quadros sociais:
As cidades cr esce m e faltam moradias. O grande número de pe ssoas
que ve m das regiões rurais contribui e m cer ca de 50 por cento para
o c resc imento das cidades, e a outra metade resulta do crescim ento
natural da população urbana . Assim, a s cidades, pr incipalmente nas
latit udes tropicais, aumentam o se u ta manho duas e até três vezes
dentro de 10 anos. Princi palmente atingidas pe lo problema da
habitação são as grandes camadas de renda s i nferiores, e entre a s
quais estão justamente aquelas pe ssoas que vêm de áreas rurais para
as c idades, onde esperam encontrar melhores condições de vida. Nas
áreas marginais das cidades surgem então, da noite para o dia , as
favelas com todos os seus problemas.
3 9 9
Também nesse período se completa a integralização efetiva de todas as
grandes regiões do território nacional. A expansão rodoviária e a instalação da indústria
automobilística levaram à integração de regiões, dando lugar a um processo de concentração
ainda mais profundo.
400
A urbanização acelerada fez surgir grandes regiões metropolitanas,
notadamente na região sudeste, onde se encontram Rio de Janeiro e São Paulo as duas
maiores metrópoles brasileiras. O país vive os momentos decisivos do processo de
industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados, que exigiam
investimentos de grande porte, como foi o caso do pólo industrial instalado em São Paulo.
As migrações internas e a urbanização ganharam assim um ritmo
acelerado,
401
provocando alterações nos dados estatísticos populacionais: se até 1970, cerca
de 70% da população estava concentrada no campo,
402
em 1980, as cidades abrigavam 61
milhões de pessoas, contra quase 60 milhões que moravam ainda no campo, em vilarejos e
cidades pequenas.
403
Uma das razões desse novo quadro tem origem no fato de que, na
década de 1980, a esmagadora maioria da população que vivia no campo estivesse
mergulhada na pobreza absoluta, forçando, assim, o deslocamento para o contexto urbano:
Nestas circunstância s, o êxodo rural se intensifica de maneira
extraordinária (...) A miséria rural é, por assim dizer, exportada
para a cidade. (...) E, na cidade , a che gada de ver dadeir as massas de
399
Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01 (material disponível no acervo de Jornais da Biblioteca
Pública de Londrina).
400
FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 227.
401
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 560, 561.
402
Cf. Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01.
403
Atualmente, segundo dados do Censo IBGE, mais de 70% desse contingente se instalam nos centros urbanos.
129
migrantes pressionou c onstantemente a base do mercado de trabalho
urbano. Em vez de regular o mercado urbano de trabalho, o
autoritarismo plutocrático, a pretexto de combater a inflação, pôs
em prática a política deliberada de r ebaixa me nto do sal ário m ínimo.
Não bastasse isso, a ditadura calou os sindicatos.
4 0 4
O sociólogo Rubem G. Oliven apresenta uma análise sobre as
transformações sociais que ocorreram no país apontando para uma sociedade cada vez mais
“urbana”, sobretudo a partir do final da década de 60, e apresenta a migração de camponeses
e agricultores mais pobres para as cidades, em busca de trabalho, como um dos fatores
responsáveis por este quadro, e acrescenta:
Um dado signi fica tivo sobre o volum e da migração no Brasil é o
fato de que por oc asião do censo de 1970 quase um t er ço de todos
os brasileiros estavam vivendo num lugar diferente daquele em que
tinha m na scido.
4 0 5
Devido a crises no campo, ou embalados pelo sonho de uma vida melhor,
massas migratórias que se concentram no mundo urbano passarão a enfrentar grandes
problemas de violência e desemprego, exclusão social, crise de sentido, numa espécie de
subproduto do modelo urbano-industrial – aspectos esses que foram intensificados com o fim
do “milagre econômico” apregoado pelos governos autoritários. Novas classes sociais
emergem, pois, disputando um espaço, ainda que subalterno na sociedade brasileira: classes
médias urbanas, o operariado industrial, o mundo estudantil. Conseqüentemente, houve
considerável aumento do custo de vida, ocasionando uma queda dos salários reais. Nos meios
urbanos, observam-se condições de saúde e nutrição, assim como o controle de doenças,
agravando-se de forma bastante precária:
o combat e à m ortali dade encontra sérias barreiras na condi ção de
vida das camada s mais pobres da população, partic ularmente no que
diz re speito à mortalidade infantil nos centros urbanos, cujos
coeficientes aumentaram a par tir de 1962-63.
4 0 6
Desse modo, sem mão-de-obra qualificada, a condição de grande parte da
população trabalhadora se torna cada vez mais difícil:
As possibilidades de ascensão do trabalhador comum são ba stante
limitadas. Na indústria, um ou outro consegue se erguer até o
trabalho especial izado ou semi-e specia lizado; alguns passam da
pequena para a grande empresa, que paga melhor. Na construção
civil, uns poucos aprendem o ofício de pedreiro, encanador, de
eletricista, de colocador de pisos e azulejos etc. Depois,
pouquíssimos poderão chegar ao objetivo sonhado por todos:
trabalhar por conta própria.
4 0 7
404
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit,. p. 620, 621.
405
OLIVEN, Rubem Georg. Op. cit., p. 68.
406
DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 257.
407
NOVAIS, Fernando A. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 600.
130
As grandes camadas de rendas inferiores, principalmente, passaram também
a ser atingidas pelo problema da habitação. O processo de favelização também se acentuou
na mesma proporção. Nas áreas marginais das cidades, principalmente as de médio e grande
porte, surgiram então, da noite para o dia, as favelas com todos os seus problemas correlatos:
Os nossos governantes voltaram suas vistas para as cidades e
abandonaram total me nte a zona rural e os distritos em termos de
educação, saúde, habitação, comunicação, lazer, tr ansporte ,
estradas, etc.; a migração rura l-urba na, causou o inchaço das
cidades médias e grandes, aumentando com isso as favelas, a fome,
a margina lização, a violênc ia e insegur ança.
4 0 8
Vista a sociedade em sua maior parcela, a família do trabalhador
comum, do migrante rural recém-chegado e dos citadinos pobres, de todos os que se
encontram na base do mercado do trabalho; a família que mora em barracos mais ou
menos precários nas favelas, ou na periferia, ainda cheia de poeira, sem iluminação pública,
sem esgoto ou água encanada, sem condições básicas de saneamento. “Fugir do aluguel” é
uma preocupação permanente de todos os assalariados.
409
Naturalmente que o incremento populacional é um dos elementos
desencadeadores da violência urbana. uma explosão desse problema social nos anos 1970
e 1980. Os efeitos da pobreza e da urbanização acelerada promovem aumento espetacular da
violência nas metrópoles, sendo as áreas e bairros mais pobres os mais afetados. Noticiários
nos meios de comunicação de massa passam a estampar diariamente informações que
propagam o medo, sobretudo pelo crime e morte ocorridos de modo agressivo.
410
No final dos anos 60, início dos anos 70, o país começaria a viver uma fase
de grande desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, especialmente através da
televisão, que logo passaria a transmitir em cadeia nacional e em cores.
411
A importância e a
capacidade de influência desses meios de comunicação para a atividade política, sobretudo da
televisão, ficou muito evidente com o regime militar:
Nos anos 60, e specia lmente depois de 1964, consolidou-se aos
poucos a indústria cultural e os meios de comunicação de massa.
Desde os anos 40, o rá dio, e posteriormente a TV, começou a
desempenhar papel cada ve z mais dec isivo na vida social.
4 1 2
408
Folha de Londrina, Londrina, 22 maio 1984, Caderno 2.
409
NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 601.
410
ZALUAR, Alba. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.
411
DELGADO, Lucila de A. N. ; FERREIRA, Jorge (Orgs.). Op. cit., p. 197.
412
ALAMBERT, Francisco. A cultura no Brasil. In: 500 anos de Brasil: histórias e reflexões. São Paulo:
Scipione, 1999, p. 102.
131
Valendo-se desses recursos, o regime militar recorreu às diferentes
emissoras de TV para a veiculação de filmes e propagandas de seu material produzido a fim
de “levar aos brasileiros uma mensagem de ‘confiança e otimismo’” - afirma Octávio Costa,
um dos principais mentores das propagandas daquele período ditatorial. As estratégias dos
apelos propagandísticos estavam voltadas para “sentimentos nobres”, para símbolos culturais:
“A propaganda da AERP/ARP não foi doutrinária. Amparou-se num material histórico pré-
existente, fundou-se em mitos e estereótipos clássicos da “brasilidade”.
413
Lançava-se mão,
portanto, de “imagens, palavras e gestos” que estivessem enraizados na própria “memória
nacional”.
414
O advento da televisão teria, inegavelmente, uma importância cultural de
grandes proporções na história do país, como afirma Fernando Novais: “o centro da nossa
indústria cultural tornou-se a televisão”.
415
É dos anos 70 aos anos 90 que se fi rma um novo meio de produção
cultural, que iria marcar o final do século brasileiro de maneira
ainda a ser dimensionada: a televisão de massa. No Brasil recente, a
televisão teve o papel de incorporar, modificar, padronizar e
banalizar todo o legado cult ural. Ela tornou-se o meio, por
excelência, do reconhec imento de valore s.
4 1 6
Introduzida no Brasil, em 1950, por iniciativa de Assis Chateubriand,
proprietário do conglomerado jornalístico Diários Associados, seu raio de ação era ainda
muito limitado em tal período, não pelo número reduzido de telespectadores a classe
média de renda superior mas, também, pela frágil organização empresarial e pelas
limitações tecnológicas, quer do país, quer das próprias empresas. Estes obstáculos,
entretanto, foram logo vencidos e o aparelho de TV passou a ser difundido rapidamente para
a base da sociedade, com o auxílio valioso do crédito ao consumo: “bastaram vinte anos para
que 75% dos domicílios urbanos o possuíssem”.
417
O impacto da televisão na vida privada dos brasileiros pode ser
dimensionado no fato de ser a principal forma de lazer, de entretenimento e de informação.
Em 1980, por exemplo, ficava ligada, no Rio de Janeiro e São Paulo, cerca de seis horas por
dia, de segunda a sexta. No domingo, em São Paulo, atingia a média de oito horas diárias.
418
Dentre outros aspectos, a TV passou a representar a “quase invasão de privacidade” que
preenche espaços deixados pelo analfabetismo com uma cultura visual que, no limite,
413
Id., ibid., p. 146.
414
Id., ibid., p. 118.
415
NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 640.
416
ALAMBERT, F. Op. cit., p. 92.
417
NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 638.
418
Cf. dados da revista Meio e Mensagem, São Paulo, n. 25, nov. 1984 , “informe especial”.
132
prescinde de instrução básica.
419
As telenovelas substituíram, para a maioria da população, a
literatura e o cinema como formas válidas e importantes de pensar o Brasil. Os anos da
ditadura militar e conseqüente abertura dos governos Sarney, Collor e Fernando Henrique
Cardoso continuaram permitindo que o Brasil mantivesse uma crítica distribuição de renda,
um número elevadíssimo de analfabetos, “mas nunca nada se opôs ao predomínio da
televisão e das formas de publicidade”:
Se nossas escolas continuaram ruins e desamparadas, se nosso
cinema não tinha espaço, se a liter at ura esta va restrit a a
universitários, a televisão recebeu todos os benefícios para
substituir e impor se u padrão.
4 2 0
Analisando esse aspecto, Novais tece o seguinte comentário:
Exposta a o im pacto da indústria cultural, centrada na televisão, a
sociedade brasileira passou diretamente de iletrada e deseducada a
massificada , sem percorrer a etapa intermediária de absorção da
cultura moderna. Estamos, portanto, dia nte de uma audiência
inorgânica que não chegou a se constituir como público; ou seja,
que não tinha dese nvolvido um nível de autonomia de juíz o moral,
estético e político, assim como de processos intersubjetivos
mediante os qua is se dão as trocas de idé ias e informações (...) os
questionament os que aprofundam a reflexão, tudo aquilo, enfim , que
torna possível a assimilação crítica das emissões im agéticas da
televisão e o enfr entamento do bombardeio da publicidade. (...) Os
valores inoculados pela televisão são pr edominantemente os
utilitári os.
4 2 1
A penetração intensa da televisão no Brasil se inscreve na paisagem urbana
e rural, na profusão de aparelhos nos interiores das casas, nas mansões de alto luxo, nos
barracos das favelas das cidades grandes, como também nas casas modestas e nas praças
públicas de cidades pequenas:
Os recordes nas vendas de televisores se explicam pela presença de
diversos aparelhos por domicílio, cuidadosa mente dispostos e m
vários cômodos das residências, às vezes e m meio a altares
domésticos. As i númera s a ntenas pa rabólica s, com seus imensos
discos re dondos voltados para o c éu, inst aladas em muitos telhados
de residências em f avelas (...) em distantes sítios nas zonas rurais,
são emblemáticas, quase falam por si só. Esse aparelho tecnológico
disse mina por todo o território nacional imagens ac uradas emitidas
por uma varieda de de canais, eliminando nesse contexto a lgumas
barreiras sociais geogr áfic as.
4 2 2
Tornando-se cada vez mais um poderoso instrumento de comunicação, a
televisão passou a fornecer um repertório comum por meio do qual pessoas de classes
419
Id., ibid., p. 9.
420
ALAMBERT, F. Op. cit., p. 105,106.
421
NOVAIS, Fernando. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 640, 641.
422
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 440.
133
sociais, gerações, sexo e regiões diferentes se posicionam, integram-se e se situam umas em
relação às outras, criando com isso aproximações e, no caso de programações religiosas,
promovendo aos fiéis representações de pertencimento a uma comunidade imaginária maior.
Atenta a essa nova estratégia que se apresenta, a Igreja Católica passou a investir nesta
modalidade de comunicação. Empreendeu também uma corrida para a conquista de mais
espaço na TV, fundando a Rede Vida e apoiando as lideranças da Renovação Carismática,
maximizando o uso evangelístico de sua extensa rede de rádio.
Nos anos 60 e 70 no Brasil, ainda predominava uma moral herdada do
mundo rural, conservadora e tradicional, usada politicamente pela ditadura militar como
apoio ao seu discurso de moralidade e patriotismo. Essa reação moralista facilitava o
acionamento da censura praticada pela Polícia Federal, encarregada da fiscalização dos meios
de comunicação. Tal contexto explica toda a polêmica criada pela presença na TV de agentes
religiosos umbandistas, por exemplo.
423
Em 1971, tem-se conhecimento do caso envolvendo
Cacilda de Assis, que se dizia encarnar “Seu Sete da Lira da Encruzilhada”. Era proprietária
de um sítio onde instalou o seu centro de culto afro-brasileiro, no Rio de Janeiro, e mantinha
um programa de rádio diário, na Rádio Metropolitana (RJ). No final de agosto daquele ano,
essa médium se apresentou nos programas de auditório de Abelardo Barbosa (Chacrinha) e
de Flávio Cavalcanti, respectivamente nas TVs Globo e Tupi. No programa do Chacrinha,
não somente D. Cacilda caiu em êxtase, como também o apresentador foi tomado de
convulsão de choro, as duas ajudantes (“chacretes”) entraram em transe, junto com várias
pessoas do auditório.
424
O acontecido criou uma ebulição nacional e, sobretudo, entre
representantes de segmentos religiosos do país. Os bispos católicos reagiram, através da voz
de D. Eugênio Sales no programa de rádio “A Voz do Pastor”, e através dos jornais O
Globo
425
e Tribuna da Imprensa.
426
Até mesmo os demais umbandistas condenaram o delírio
causado na TV, conforme matéria publicada no jornal A Notícia,
427
sob a manchete
“Umbandistas manifestam sua repulsa por Seu Sete” e também no jornal Última Hora.
428
Houve também debates entre deputados na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Esse
423
Cf. estudos realizados por MAGGIE, Yonne. Medo do feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Rio
de Janeiro: Ministério da Justiça, 1992.
424
Em seu livro A Noite da Madrinha, publicado em 1972, e recentemente relançado pela editora Companhia das
Letras, em que trata de programas televisivos, Sérgio Miceli descreve tal episódio referindo-se à “macumbeira
que bebeu pinga e fez o auditório entrar em transe no programa do Chacrinha e do Flávio Cavalcanti, em 1971”.
Cf. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 2005, p. E1.
425
O Globo, Rio de Janeiro, 03 set. 1971.
426
Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 04 set. 1971.
427
A Notícia, Rio de Janeiro, 09 set. 1971.
428
Última Hora, Rio de Janeiro, 13 set. 1971.
134
episódio, ao lado de outros, foi usado pela ditadura militar para estabelecer a censura dos
programas de auditório, então transmitidos ao vivo. Tecnicamente, a televisão brasileira
havia incorporado os recursos do deo-tape, o que facilitou o cumprimento de tal exigência
e, ao mesmo tempo, facilitaria mais tarde a presença mais efetiva de programas religiosos na
TV.
Foi nesse contexto e período que também surgiu um elemento marcante no
campo religioso brasileiro: a Igreja de Nova Vida, fundada em agosto de 1960, no bairro
Botafogo, Rio de Janeiro, pelo pastor canadense Walter Robert McAlister. Ele publicou mais
de 40 livros e livretos sobre libertação de demônios. Durante os anos 60 McAlister fixou-se
no Brasil como missionário, morando no Rio de Janeiro, e pregava semanalmente no
auditório ABI Associação Brasileira de Imprensa, iniciando a Cruzada de Nova Vida. Essa
igreja desempenhou um papel importante na demarcação do campo religioso brasileiro: nela
se formou um habitus pentecostal, desencadeador e provedor de quadros de liderança das
duas das maiores igrejas neopentecostais do país: Universal do Reino de Deus e Internacional
da Graça de Deus respectivamente lideradas por Edir Macedo e R.R. Soares, originários
daquela igreja.
Ao lado da Igreja O Brasil para Cristo, a Nova Vida foi também pioneira no
uso da televisão como veículo de divulgação de sua mensagem. Através da TV Tupi,
McAlister transmitia seus programas religiosos, no período de 1965 a 1967. No Rio de
Janeiro, a Nova Vida é proprietária da Rádio Relógio. Ela criou a sua própria editora e, desde
1994, passou a editar a revista mensal Voice, cuja tiragem alcança 20 mil exemplares,
distribuídos gratuitamente ao público, em geral através de bancas de revistas, especialmente
no Rio de Janeiro.
Mas foi a partir de meados da década de 1970 que surgiu uma nova
tipologia
429
pentecostal denominada “terceira onda”, por Paul Freston,
430
e que Mendonça,
Bittencourt e Mariano designam “neopentecostalismo”,
431
nomenclatura também empregada
por Leonildo Campos.
432
A opção feita neste trabalho pelo termo neopentecostalismo se deve
429
MARIANO, R. Op. cit., p. 23-49.
430
FRESTON, P. Op. cit.
431
Ricardo Mariano afirma que “não é possível supor que através de uma construção tipológica se conta de
um universo religioso tão complexo e heterogêneo. A divisão em três ondas visa apenas ordenar a realidade
observada, tornando-a mais inteligível”. Cf. MARIANO, R. Op. cit., p. 35-36.
432
O debate em torno da tipologia ocorre pelo fato de não haver propriamente rupturas bruscas entre o que seria
uma “onda e outra, ou seja, existem vários elementos comuns nas supostas “fases”. Ricardo Mariano faz um
balanço crítico das principais tipologias apresentadas e aponta suas inconsistências e imprecisões, acentuando
que o termo “neopentecostal” tem sido empregado com imprecisão, mas é o que mais vem sendo empregado
pelos pesquisadores. Cf. CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um
empreendimento neopentecostal. Op. cit.
135
não somente ao fato de ter se tornado esse um termo de uso mais freqüente nas pesquisas
acadêmicas, assim como no uso mais popular, mas, porque embora mantendo certas ênfases
das denominações pentecostais mais antigas, as novas igrejas “acrescentam elementos
totalmente inovadores (...) constituindo-se em algo qualitativamente diferente”,
433
características distintivas que conferem a tal segmento identidade e estatuto próprio em
relação ao protestantismo histórico, configurado pela Reforma Protestante no século XVI, e
também quanto aos modelos predecessores de pentecostalismo, como o veremos mais adiante
no desenvolvimento dessa tese.
Finalizando esse item, vale sintetizar os aspectos anteriormente observados,
destacando que a IURD foi fundada em um contexto de urbanização - a cidade do Rio de
Janeiro que obviamente possui suas especificidades, mas que reflete situações de outros
contextos brasileiros. É uma cidade que convivia, na década de 1970, com a expansão da
violência, da máfia, do jogo do bicho e das mazelas sociais presentes nas favelas que a
contornam. Sob o ponto de vista cultural, caracterizada pela promoção de mega-eventos e
shows, facilitando assim os movimentos de concentração popular. Sob o ponto de vista
religioso, traduz, de certa forma, a natureza plural da religiosidade brasileira, marcada pela
forte presença de pessoas da raça negra e, também, por inúmeros locais de culto das crenças
afro-brasileiras. Politicamente, naquela época, o Rio de Janeiro vivia sob a influência do
populismo personificado em Leonel Brizola. Portanto, a fundação da IURD, nesse contexto
nacional-urbano, desde cedo encontrou um terreno fértil” para o seu desenvolvimento e
expansão, respondendo a ele com uma mensagem inovadora em relação às demais igrejas
evangélicas e outros segmentos religiosos, ao procurar trazer o “céu” com todas as suas
benesses para a terra, no aqui e no agora, apresentando-se como o “pronto-socorro
espiritual”, falando às questões emocionais do ser humano, tratando de assuntos de natureza
afetiva, financeira, familiar e de saúde.
O advento da Igreja Universal do Reino de Deus, no Brasil, portanto, está
temporalmente situado num período de intenso processo de urbanização, assim como de
agravamento das condições sociais de vida. Por isso mesmo, sua mensagem encontrou
ressonância no tipo de discurso com forte apelo popular que se buscava naquele momento. A
IURD se apresenta, assim, como a materialização deste universo. E mais: a Igreja Universal
saberá utilizar com uma eficácia sem precedentes os meios de comunicação de massa para
433
SIEPIERSKI, C. T. Op. cit., p. 17.
136
veiculação de sua mensagem nas mais diferentes regiões do país, como o veremos mais
adiante.
2.5 – Um contexto de esforços do catolicismo pelo controle do campo religioso
É possível identificar, no contexto que se formou nos períodos
anteriormente descritos, um caminho que se abriu a novas configurações religiosas no
cenário religioso brasileiro e que se tornou uma opção sedutora a esse contingente de fiéis,
como destaca Montes: “Sentindo-se abandonados à própria sorte, muitos deles se bandearam
para o lado do protestantismo então em plena expansão e das religiões afro-brasileiras
(...)”.
434
Enquanto o catolicismo se projetava na vida social e política, engajando-se
decididamente na via da “opção pelos pobres”, o neopentecostalismo se voltaria para uma
religiosidade mais pessoal, ainda que comunitária, com base na experiência da conversão.
Um olhar mais atento sobre os últimos censos brasileiros mostra uma
progressiva redução do número daqueles que professam a católica. Cândido Procópio
Camargo, por exemplo, em sua clássica análise sobre os censos de 1940, 1950 e 1960,
havia chamado a atenção para essa “tendência geral para um declínio moderado, mas
constante, de adeptos da Igreja Católica”.
435
Mas foi sobretudo a partir dos anos 80 que a
porcentagem de católicos experimentou um declínio cada vez mais acentuado: 90% da
população em 1980; 83,3% em 1991; e 73,8% em 2000, quando
os evangélicos já que
atingiam índices acima de 15,4% da população brasileira.
436
Vale citar a observação feita por
Pierre Sanchis, que a Igreja Católica passou a perder “o seu caráter definidor hegemônico da
verdade e da identidade institucional no campo religioso brasileiro”.
437
Dessa forma, o avanço e a pronta penetração de um protestantismo
agressivo, como da propagação popular do espiritismo e da umbanda, obrigariam os bispos
católicos a levar em consideração aspirações populares e reformular seu modo de atuação.
Neste período, o Vaticano se mantém bastante vigilante. Em relação ao espiritismo, a Igreja
Católica manteve sua posição institucional de combate ao que entende ser práticas de heresia
e ameaçadoras à “verdadeira fé”. Assim, os bispos reagem tanto em relação ao kardecismo de
434
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 79.
435
CAMARGO, C. P. Op. cit., p. 24.
436
TEIXEIRA, Faustino. Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo. Revista USP, Religiosidade no Brasil,
São Paulo, n. 67, p. 16, set./nov., 2005.
437
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à cultura católico-brasileira. In: Alberto Antoniazzi et al. Nem anjos
nem demônios. Op. cit., p. 36.
137
importação, principalmente norte-americana, quanto à eclosão de cultos afro-brasileiros que
emergem cada vez mais com autonomia no campo religioso brasileiro. Desde que surgiu no
Rio de Janeiro, na década de 1920, e nas décadas de 1930 e 1940, a umbanda começava a
se disseminar pelo tecido urbano mais moderno do país, o das cidades grandes da região mais
desenvolvida, o Sudeste.
No afã de tentar manter controle sobre o campo religioso brasileiro, o
catolicismo lançou mão de todas as estratégias possíveis para impedir que seus fiéis fossem
atraídos para o protestantismo, não importando qual ramificação ou tipologia a ele
pertencente. Assim, empreenderam-se esforços em âmbito nacional e também regional,
como, por exemplo, um episódio ocorrido na região de Londrina, no Paraná. No início da
década de 1930, quando a região norte-paranaense passou a ser colonizada, as primeiras
igrejas protestantes começaram a se estabelecer em Londrina e adjacências, sendo
presbiterianos e metodistas os pioneiros desse trabalho. Naquela ocasião, os evangélicos
usavam como uma das principais estratégias para as atividades de proselitismo, a distribuição
de Bíblias - literaturas adquiridas pelos protestantes e depois vendidas ou doadas a fiéis
pertencentes ao catolicismo:
Naque le tempo, as Bíblias vinham de São Paulo ou Rio de Janeiro
das sociedades bíblicas. Os crentes ou as igrejas adquiriam e stas
Bíblias e depois vendiam ou doavam (...) Eu mesmo, era
comerciante, e no meu estabelec imento comercial havia uma se ção
onde expunha as Bíblias. Quem comprava e ram geralmente os
crentes, aos católicos nós geralme nte fazíamos doação. A maioria da
população mora va na roça , lá também os católicos ganhavam Bíblias
dos seus vi zinhos crentes.
4 3 8
A posse e a leitura da Bíblia entre os católicos, nesse período, estavam
restritas aos clérigos: “A população católica não tinha contato com a Bíblia, ouviam falar
dela nas missas, que eram feitas em latim”.
439
Por isso, a iniciativa feita pelos protestantes
desencadeou preocupações por parte do clero que, em 1941, transformaram-se em ações
concretas, ao serem enviados para a região do norte do Paraná missionários capuchinhos da
cidade de Aparecida SP, com a finalidade de impedir a aproximação de católicos das
“heresias protestantes”:
Esses missionári os passaram a pe rcor rer toda a região conclamando
os fiéis para que trouxessem todas as Bíblias que havia m rec ebido
dos protesta ntes, até a igre ja para serem quei madas, porque er am
438
Georgino Matias de Freitas, comerciante, membro da Igreja Presbiteriana, residente na cidade de Cambé
PR, desde 1934, região pertencente à área metropolitana de Londrina. Depoimento concedido em 17 jul. 2003
(Material em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica CDPH, da
Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).
439
Id., ibid.
138
falsas. Em Cambé fizera m um “monte” com Bíblias em frente à
igreja, na hora da missa, ocorrendo e m seguida a queima. Este
episódio se repetiu em 1942, e também ocorreu em outras cidades da
região.
4 4 0
Cerca de dez anos depois os conflitos novamente se acirraram na região,
conforme se observa em outro depoimento:
Os missionários capuchinhos perseguiram muitos crentes. Diz iam
que a Bíblia protestante era fa lsa, e que só a Bíblia católica era
completa, por conter todos os livros, incluindo o que nós
protestantes consideramos apócrifos. Em A storga, fizeram uma
colheita de Bíblias e literaturas que tinham sido distribuídas
pelos e vangélic os, e realizaram uma queima de Bíblias ao pé do
cruzeiro, e m frente a igreja matriz.
4 4 1
Esta queima pública e coletiva de Bíblias provocou intensos debates sobre
as questões teológicas através do que era, então, o principal sistema de comunicação nas
pequenas cidades interioranas:
Aos domingos, quando havia uma aglomeração maior de pessoas na
cidade, líderes evangélicos estrategicamente voltavam os a lto-
falante s fi xados no topo dos templos, na direção da igreja c atól ic a,
antes ou após a missa, fazendo leituras da Bíblia e pregaçõe s que
denunciavam principalme nte a idolat ria.
4 4 2
Esses são exemplos de esforços empreendidos pelo protestantismo no
sentido de aproximar católicos romanos da leitura da Bíblia e, mais particularmente, da
chamada “Bíblia protestante”.
443
Tal aproximação veio a se consolidar nas décadas seguintes,
quando já passado aquele período conflituoso e havendo um processo de intensa urbanização,
muitos católicos, em diferentes regiões do país, ao migrarem para as cidades se tornaram
adeptos de segmentos neopentecostais e, particularmente, da Igreja Universal do Reino de
Deus:
Um pouco mais tarde, a partir da década de 70, a Igreja Católica
começou a perder muitos membros para as igrejas pente costais, e
também para as neopentecostais, que passavam a formar um
movim ento c ada ve z mais a rrojado.
4 4 4
440
Id., ibid.
441
Uzias Stultz é agricultor, membro da Igreja Presbiteriana, residente na região desde 1944. A cidade de
Astorga localiza-se nas adjacências de Londrina. Existe hoje, na praça desta cidade, um monumento dedicado à
Bíblia em alusão aos episódios acima descritos. Depoimento concedido em 10 out. 2003 (Material em CD-
ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – CDPH, da Faculdade Teológica
Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.).
442
Depoimento de Georgino Matias de Freitas, cf. já citado.
443
Durante décadas, desde a inserção do protestantismo no Brasil, permaneceu a expressão feita por católicos,
em tom de certa desconfiança ou suspeita, de “Bíblia dos protestantes” ou “Bíblia dos crentes”, em alusão ao
texto bíblico utilizado pelo protestantismo no Brasil. Tal referência decorre, principalmente, do fato da Bíblia
usada por estes conter sete livros a menos do que a Bíblia adota pelo catolicismo.
444
Depoimento de Uzias Stultz, cf. já citado.
139
No ano de 1955, reuniu-se no Rio de Janeiro a I Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano (CELAM), a qual apontou os “mais graves inimigos do
catolicismo na América Latina: o protestantismo, o comunismo, o espiritismo e a
maçonaria”.
445
No ano de 1957, o papa Pio XII, falando ao II Congresso Mundial para o
Apostolado dos Leigos, lembrava a urgência da formação de apóstolos leigos “para suprir a
falta de padres na ação pastoral” e fazer frente aos “quatro perigos mortais” que ameaçavam
a Igreja na América Latina: “a invasão das seitas protestantes; a secularização da vida toda; o
marxismo, que nas universidades se revela o elemento mais ativo e tem nas mãos quase todas
as organizações de trabalhadores; e finalmente, um espiritismo inquietador”.
446
Em abril de 1962, reunidos no Rio de Janeiro, os bispos católicos
discutiram e votaram, inclusive, um “Plano de Emergência”, o qual destacava que o campo
de ação do catolicismo no Brasil se achava “trabalhado por forças adversas”. No documento
elaborado, retomavam a fala de Pio XII:
Aplica-se ao Bra sil o que disse o Santo Padr e quanto a quatro
perigos mortais para a América Latina: o natura lism o que leva até
cristãos a não t er em, muitas ve zes, a visão cr istã de vida; o
protestantismo que tenta entre nós seu esforço máximo de e xpansã o
e se acha, de fato, em maré montante; o espiritismo cuja difusão,
nas grandes cidades, nos m eios de miséria, tem ares de endemia; o
marxismo que empolga as Escolas Superiores e controla os
Sindica tos Operários.
4 4 7
Essa atitude do catolicismo institucional para com as demais crenças
operantes no campo religioso brasileiro demonstra semelhança com o que Jacques Le Goff
analisa em relação ao contexto medieval. Naquele período, houve “recusa da cultura
folclórica pela cultura eclesiástica,” empreendendo-se esforços para isto, como inúmeras
“destruições de templos e de ídolos” e, no âmbito da literatura, a “proscrição de temas
propriamente folclóricos”, especialmente o cuidado em relação a textos do Antigo
Testamento, “pela tradição rica em motivos folclóricos”.
448
No entanto, o próprio catolicismo historicamente ajudou a criar os
elementos culturais-religiosos que propiciaram o surgimento do que ele agora entende ser
necessário combater. Maria Lucia Montes, ao falar sobre o “espírito” que preside as
transformações do campo religioso brasileiro, aponta para um etos” orientador de tais
445
FAUSTO, B. (Org.). Op. cit., p. 360.
446
PIO XII Normas aos participantes do II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos. Rio de Janeiro,
REB 17 (4), 1060, dez. 1975.
447
CÂMARA, D. Helder. CNBB Apresentação do Plano de Emergência. Rio de Janeiro: Livraria D. Bosco
Editora, 1962, p. 3.
448
LE GOFF, J. Op. cit., p. 214.
140
práticas, destacando a Igreja Católica como plenamente atuante na vida pública, “capaz de
acomodar-se, em curiosa mistura, ao etos da sociedade em que se inseria e assim incorporar
sistemas de crenças particulares e locais, adaptar-se à devoção de cunho privado”.
449
Nas
práticas mais folclóricas da fé, formas simbólicas foram introjetadas por “culturas africanas e
indígenas”, permitindo que por meio dela se interagissem segmentos étnicos distintos à
sociedade e à cultura brasileira em formação.
450
Esse catolicismo, nos tempos coloniais, na
distância da metrópole, “aqui se reinventa, nas devoções e na lassidão dos trópicos”, no
convívio com índios e negros, incorporação pelas festas e rituais, “desses diferentes estoques
étnicos e culturais que aqui se confrontam e aos poucos se fundem num Brasil em
formação”.
451
Neste mesmo sentido, A. Otten diz que desenvolveu-se no Brasil um
catolicismo “longe do clero que estava a serviço do Estado e dos senhores e se limitava a
ministração sumária dos sacramentos”; “o catolicismo oficial” deixou assim uma lacuna que
acabou sendo preenchida pela “elaboração de formas religiosas leigas”.
452
Entretanto, por mais que o catolicismo tenha empreendido esforços para
manter o controle hegemônico no campo religioso brasileiro, o maior adversário não
provinha do protestantismo, o pentecostalismo e nem das crenças afro-brasileiras,
nominalmente identificados, a grande força concorrente provinha de modo silencioso e
sutilmente impregnado em todas essas manifestações de fé: a magia.
2.6 – Um contexto histórico de magia no campo religioso brasileiro
A magia consiste num dos elementos que marcam fortemente o campo
religioso brasileiro, com raízes fincadas na longa duração. Pode-se entender como magia tudo
aquilo que tenta inverter as formas naturais das coisas. A sua essência reside, pois, na
dominação dos poderes supra-sensíveis, os quais são convocados e controlados
autoritariamente em função do objetivo visado pelos seus adeptos. Desde os tempos mais
antigos, a magia tem prometido às pessoas que a ela recorrem a solução imediata de
determinados problemas muito concretos. Antônio Flávio Pierucci ressalta que a magia está
circunscrita nas soluções que pode oferecer aos transtornos e contratempos da vida humana:
“A magia torna o mundo mais próximo das nossas próprias mãos, deixa os poderes
449
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 101.
450
Id., ibid., p. 116.
451
Id., ibid., p. 103.
452
OTTEN, A. O contexto histórico-religioso. In: Só Deus é grande. São Paulo: Loyola, 1990, p. 93, 132.
141
superiores mais acessíveis à nossa própria vontade, simbolicamente mais controláveis; a
magia delimita, define e aproxima os resultados que promete”.
453
Esse mesmo autor
acrescenta:
A magia nã o é da ordem do cotidiano, da repetição rotineira e
previsível. Ela é do mundo vivido, sim, ma s não se alimenta da
rotiniz ação da vida. A magia, quando se dá, põe -se sempre no plano
do extraordinár io, do extra-cotidiano, do im previsível. (...) A magia
costuma ser praticada em situações de muita incerteza,
imprevisibilidade e, portanto, tensão e ansiedade. (...) Magia é para
ser acionada no momento oportuno, qua ndo se tem que enfrenta r,
com sucesso, dificuldades não usuais, situações e specíf ic as fora do
trivial, quando o inexplicável teima em acontecer e o impr evisto
pode sobrevir. Magia é fe ita para concretizar o extraordinário.
4 5 4
Estabelecendo como ponto de partida o contexto do Brasil colonial, pode-se
dizer que em tal período podem ser identificadas práticas religiosas marcadamente
caracterizadas por expressões de magia, com fortes raízes no catolicismo folclórico medieval.
Especialmente, a partir do século IV da era cristã, quando o cristianismo se tornou religião
lícita e oficial do Império Romano, desenvolveu-se um intenso e crescente processo de
aculturação entre doutrinas cristãs e antigas práticas cúlticas que permeavam o universo
religioso do mundo greco-romano. Segundo Leonildo Campos, nesse período a assimilação
da fé cristã pela população rural, mediante a catequese, “formou uma camada de verniz sobre
uma antiga realidade religiosa”,
455
desencadeando um intenso apego às relíquias como
fetiches de proteção, com caráter mágico, objetos esses que supostamente teriam sido
utilizados pelos apóstolos ou outros mártires do cristianismo e que eram então guardados nos
lares dos devotos com o sentido de proteção contra doenças, contra infortúnios do demônio
ou como ajuda contra as intempéries que poderiam ameaçar as colheitas.
456
Esta “magia” dos
objetos desencadeou um verdadeiro comércio de amuletos:
Multiplic ar am-se os cultos às relíquias sa gradas, verdadeiros
fetiche s milagr osos, aos quais se atribuíam poder de curar
enfermidades e protege r as pessoas dos perigos. Esses obje tos, que
pensavam terem pe rt encido aos santos ou simplesmente por terem
sido usados na missa, eram trocados, presenteados, roubados,
vendidos ou comprados. Muitos deles eram e mprega dos com as m ais
diversas finalidades, desde o auxílio no traba lho de parto até na
cura de peste no gado bovi no ou afastar epidemias de se ca, fome ou
pragas de gafanhotos.
4 5 7
453
PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 44.
454
Id., ibid., p. 55.
455
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 170.
456
Cf. GONZALEZ, Justo. A era dos mártires. São Paulo: Edições Vida Nova, 1992; DREHER, Martin. A
igreja no mundo medieval. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
457
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 171.
142
O historiador inglês Keith Thomas também afirma que no contexto da Idade Média,
as relíquias sagra das tornaram-se fet iche s milagrosos, tidos como
dotados do poder de curar enfermidades e prote ger contra perigos
(...) atribuía-se igua lmente um a eficácia mira culosa às image ns. A
representação de são Cristóvão, que com tanta freqüência
ornamenta va as paredes das igrejas das aldeias inglesas,
suposta mente concedia um dia de imunidade à doença ou à morte a
todos os que a fitassem.
4 5 8
Este mesmo autor constata que no mundo medieval havia se desenvolvido
um “amplo leque de fórmulas para atrair a bênção prática de Deus sobre as atividades
seculares”, acrescentando:
O ritual básico era o benzimento com sal e água para a sa úde do
corpo e expulsão dos maus e spíritos. Mas os livros litúrgicos da
época ta mbém traziam rituais para benzer casas, gados, culturas,
embarcações, ferramentas, armas, cisternas e fornalhas. Havia
fórmulas para abençoar homens que se preparava m para sair em
viagem, pa ra tra var um duelo, para entrar em bata lha ou mudar de
casa. Havia métodos para abençoar os doentes e tratar de animais
estéreis, para afastar o trovão e tra zer a fecundidade ao leito
matrimonial (...) Fundamentalmente em todo esse procedimento e ra
a idéia de e xorc ismo, o esconjuro formal do demônio, expulsando de
algum objeto material por meio de preces e da invocação do nome
de Deus. A água benta podia ser util izada para afastar maus
espíritos e vapores pestile nciais. Era rem édio contra a doença e a
esterilidade.
4 5 9
Thomas observa ainda que, no período entre os séculos XVI e XVII, da
história inglesa, os objetivos pelos quais a maioria dos homens recorria a sortilégios e a
feiticeiros eram precisamente aqueles para os quais “não havia alternativa técnica adequada”.
Assim, na agricultura, o lavrador que normalmente confiava em suas próprias habilidades e
perícias, quando ficava dependente de circunstâncias fora do seu controle a fertilidade do
solo, as condições meteorológicas, a saúde do gado -, ele se mostrava mais propenso a
acompanhar suas atividades normais com alguma precaução mágica. Na ausência de
herbicidas, “havia encantamentos para manter a erva daninha distante das plantações”, e, em
lugar de inseticida e raticida, “havia fórmulas mágicas para afastar as pestes”. Havia também
sortilégios para aumentar a fertilidade da terra, além de precauções rituais que rodeavam a
caça e a pesca, “atividades especulativas, isto é, incertas ambas”.
460
Assim como em Weber, para Bourdieu
461
a racionalização da prática
religiosa, concentrada nas mãos de “sacerdotes” tende a enfraquecer o espírito mágico diante
458
THOMAS, Keith. Religião e declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 36.
459
Id., ibid., p. 38.
460
THOMAS, K. Op. cit., p. 775.
461
BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. Op. cit., p. 79.
143
do religioso. Segundo Weber, essa história de rivalidade começou com a religião judaica,
séculos antes de Cristo. No universo do magismo, nas religiões com origem na Índia, na
Mesopotâmia, na Pérsia, no Egito, na China, os deuses e espíritos são imanentes ao mundo,
não transcendentes. Javé, para o judaísmo, é um Deus pessoal e único, totalmente
transcendente ao mundo terreno. Isto fez que se introduzisse um dualismo básico que
separava a figura de Deus da esfera da natureza criada Deus é uma realidade, e o mundo,
porquanto criatura, uma esfera totalmente distinta. Conforme Weber, esse é o verdadeiro
começo da idéia de desencantamento do mundo, a saber: este mundo não é sagrado.
Fundamentado no monoteísmo como dogma central, o principal pecado para o judaísmo era a
idolatria, e essa poderia ser cometida pela recorrência à magia (Deuteronômio 18; 9-15). Os
profetas bíblicos em sua pregação ética deflagram verdadeira guerra contra a magia. Esta
passa a ser concebida como pecado de idolatria: prática de inspiração diabólica, moralmente
condenada. Aos olhos de Javé, toda feitiçaria não pode ser senão arte do demônio,
abominação, diz a Bíblia, por isso, a Moisés teria ordenado: “não deixarás viver a feiticeira”
(Ex. 22:17). Os principais responsáveis por essa postura de rejeição moralizante da magia
foram os profetas de Israel, portadores de um tipo inédito de profecia na história das religiões
a profecia ética.
462
Eles condenaram a magia no âmbito do próprio “povo eleito”, exigindo
das autoridades sua repressão em nome da aliança com Javé. Segundo Weber,
463
assim
procedendo, os profetas bíblicos davam início a um longuíssimo processo histórico-cultural
de “desencantamento religioso do mundo”, o qual veio a atingir o seu ápice no radicalismo
dos movimentos protestantes surgidos na Europa dos séculos XVI e XVII. Antes desse
período, durante a vigência do catolicismo medieval como religião do ocidente, magia e
religião viviam em simbiose, não podendo separar-se facilmente. Foi o surgimento das
formas puritanas de protestantismo que precipitou a separação entre as duas, separação
tornada reflexiva pela teologia calvinista do século XVII.
Em sua obra, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber
aborda o processo de desmagificação do cristianismo, na transição do catolicismo de feitio
sacramental e ênfase ritualística, para o protestantismo puritano dos séculos XVI e XVII, de
feitio ascético e acento moralista. Desde então, reformadores, inquisidores, tanto protestantes
como católicos, saíram a campo decididos a converter à “verdadeira fé” seus
462
PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p.10.
463
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo/Brasília: Pioneira/EdUNB, 1981.
144
contemporâneos, classificados como pagãos pela magia que praticavam e, por isso mesmo,
heréticos e pecaminosos.
464
Assim,
as ve rtentes religiosas ma is desencantadas, isto é, menos mágicas,
seriam judaísmo profético, protesta ntismo puritano e catolicismo
intelectual . Elas assumem em rel ação às crenças e práticas mágicas
uma post ura primeir o superior, depois, exc ludente. Pode -se dizer
que o catolicismo é menos desencantado que o prot estantismo
histórico, sobretudo o de feitio puri tano;o pentecostalismo, mais
encantado que os outr os ramos do protestantismo.
4 6 5
Os articuladores da Reforma Protestante, no século XVI, sobretudo na
forma do ascetismo ético intramundano dos grupos puritanos, reagiram energicamente contra
as conotações mágicas vivenciadas pela Igreja medieval, empreendendo-se intensivos
esforços no sentido de banir o que consideravam superstição e magia ainda presentes em seu
meio como herança do catolicismo medieval. Atribuíam a elas, inspirações do demônio,
associando-as à prática de necromancia:
Os ritos católicos eram vistos, em sua maioria, c omo metamorf oses
mal disfarçadas de cerimônias pagãs anteriores (...) os primeiros
reformadores também come çaram a suspender costumes tradicionais
do calendário (...) Evidentemente, essa nova atitude protestante em
relação à magia ec le siástica não logrou uma vitória imediata, e
algumas tradições do passado ca tólico c ontinuaram a subsistir.
4 6 6
De acordo com Keith Thomas, para os protestantes surgidos com a
Reforma, a vivenciada pelas massas católicas estava profundamente marcada por
superstições e magia. Afirma este autor que a tendência de estigmatizar as práticas e
sacramentos católicos como magia, que vinha desde os lombardos, em fins do século XIV,
tornou-se mais forte no decorrer da reforma iniciada por Henrique VIII. Nessa época,
analisaram-se todos os sacramentos quanto às suas ligações com práticas mágicas e, um por
um, foram sendo abandonados, até se fixarem apenas na Santa Ceia e no Batismo. “À
primeira vista, a Reforma parece ter eliminado todo esse aparato de assistência sobrenatural.
Ela negou o valor dos rituais da Igreja e devolveu o devoto à imprevisível mercê de Deus”
afirma Thomas.
Remover a magia do mundo com base no ethos dos movimentos
protestantes puritanos implicava, inclusive, livrar-se de seus praticantes. Envolveu, por isso,
não a violência simbólica do ataque intelectual e oratório ao pensamento mágico e às
464
GODBEER, Richard. The Bevil´s Dominion: magic and religion in early new england. Cambridge:
Cambridge University Press, 1994.
465
MARIANO, Ricardo. Igreja Universal do Reino de Deus: a magia institucionalizada. Revista USP, n. 31, p.
121, set./nov., 1996.
466
Id., ibid., p. 66-70.
145
diversas modalidades do exercício “pecaminoso” da magia, mas também a violência física da
perseguição, prisão, tortura e morte dos profissionais da magia.
Também a Contra-Reforma Católica capitaneada pelos padres jesuítas e
outras ordens religiosas alinhadas com o papado, em de guerra religiosa com os
protestantes, desencadearam perseguições ao que consideravam magia.
467
Laura de Mello e
Souza afirma que à semelhança dos protestantes, católicos também chegaram a fazer uso da
violência no esforço que empreenderam visando o banimento do que consideravam
“paganismo”, expresso na religiosidade vivida pelas populações da Europa Moderna:
“homens e mulheres [eram] acusados de (...) blasfêmias, proposições heréticas, visões e
feitiçarias”.
468
Segundo escreve essa historiadora,
469
“os jesuítas haviam desempenhado
função demonizadora durante o século XVI, vendo sabá nas cerimônias indígenas”. As
atuações colonizadoras no Brasil colonial eram também vistas como mecanismos
“exorcizadores desses povos; trazendo-lhes a cristã, os livrariam dos demônios”.
470
Na
época, como mostra Keith Thomas, o diabo era a explicação para o inexplicável e para
mistérios, doenças e insucessos, havendo, portanto, a necessidade de se recorrer à magia.
471
Esta religiosidade continuou se projetando com o advento da modernidade.
Em estudos que realiza sobre este período, Laura de Mello e Souza afirma que “a baixa Idade
Média assistira a uma demonização paulatina da existência”, e que “a Reforma Protestante e
as lutas religiosas do século XVI fortaleceram ainda mais a presença de satã entre os
homens”.
472
Acrescenta ainda esta autora:
No final do séc ulo XV, pregadores e clérigos saturavam seus
sermões com um vocabulário diabólico. (...) Foi, portanto, no início
da Época Moderna, e não na Idade Média, que o inferno e seus
habitantes tomara m conta da ima gina çã o dos homens do Ocidente.
4 7 3
No caso católico, a ratificação feita pelo Concílio de Trento no sentido de
continuar usando a Inquisição no combate às heresias, acabou instigando ainda mais o
imaginário diabólico que viria configurar as práticas religiosas desenvolvidas na América
Colonial.
Encontrando na colônia populações autóctones que também viam o
diabo como for ça atuante e poderosa, os jesuítas acabaram por
467
DELUMEAU, Jean. Le catholicisme entre Luther e Voltaire. Paris: PUF, 1971.
468
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. Demonologia e colonização - Século XVI - XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993, p. 90.
469
Id., O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
470
MARIZ, Cecília L. Identidade e mudança na religiosidade latino-americana. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 257.
471
THOMAS, K. Op. cit., p. 387.
472
SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 137.
473
Id., ibid., p. 139.
146
demonizar a inda mais as concepções indígenas, tornando-se, em
última instância, e por mais paradoxal que pareça, agent es
demonizadores do cotidiano colonial.
4 7 4
Ressalta-se ainda que as práticas mágicas e religiosas na colônia brasileira
revelariam, ao final de seu primeiro século de existência, sua face pluricultural, que se
consolidou durante o século XVII. Para isso contribuiu a Inquisição, que “despejou sobre
solo colonial com grande freqüência os hereges e feiticeiros” que trabalhariam no sentido da
manutenção das persistências”.
475
Enfim, a Europa da Modernidade nascente, berço e auge
das reformas religiosas protestante e católica, experimentou, com sua periferia colonial uma
guinada: em vez de “religião com magia”, como sempre tinha sido e assim seguiria sendo no
resto do mundo, “religião contra magia”.
476
Portanto, há uma vasta difusão geográfica e longuíssima duração histórica e
permanência da magia no Ocidente, mesmo com o advento da Modernidade. Assim, da
Modernidade clássica e pré-industrial à atual sociedade pós-industrial - a magia vem
enfrentando repressão, porém, jamais se deixando extinguir. Pelo contrário, tem se dado
muito bem em situações de risco.
477
O próprio Max Weber, teórico da desmagificação do
mundo ocidental, admite que a magia é inextirpável: “a magia é uma base inerradicável”
478
das manifestações mais folclóricas da fé. Isso significa que o desencantamento do mundo (ou
desmagificação), de que falou Weber, não chega a atingir plenamente as religiosidades.
Sempre interesse por um objeto religioso mais próximo, suscetível de influenciar
magicamente, para que o desejo seja prontamente atendido.
Assim, nas últimas décadas, como visto anteriormente, o Brasil se encontra
numa industrialização ainda em processos de incompletude fase de formação de
complicações no mercado de trabalho, multiplicação do número de desempregados e
excluídos do sistema econômico vigente. Esse quadro social de instabilidade acabou criando
condições propícias para a recorrência a respostas mais rápidas aos dramas existenciais, ou
seja, esse componente externo instigou o florescimento de um mecanismo interno
profundamente arraigado no campo religioso brasileiro: a magia. O contexto urbano se
tornaria, dessa forma, lugar de uma magificação especialmente configurada pelo que se pode
chamar de “massa de pressão cultural do campo”.
474
Id., ibid., p. 140.
475
SOUZA, L. M. Inferno Atlântico, p. 56.
476
PIERUCCI, A. F. Magia, p. 86.
477
Id., ibid., p. 53.
478
WEBER, Max. Economia de sociedade. V. 1. Brasília: UNB, 1991, p. 292.
147
2.7 - Um contexto de pressão folclórica camponesa no mundo urbano
Jacques Le Goff usa a expressão “massa de pressão cultural do campo” para
se referir ao “fenômeno de pressão das representações populares sobre a religião dos eruditos
no cristianismo medieval”. Naquele contexto, uma cultura “primitiva” de “cariz mais
guerreiro”, laica, de caráter sobretudo camponês no conjunto das camadas inferiores
ruralizadas, manifestou uma acentuada pressão perante a cultura eclesiástica:
Ocorrem, assim, dois fenômenos essenciais: a emergência da massa
campone sa como grupo de pressão cultur al e a i ndiferenciação
cultural cresc ente com algumas exceções individuais ou locais
de todas as c am adas soci ais laicas fa ce ao clero que monopoliza
todas as formas evoluída s, e nomea damente escritas, de cultura. O
peso da massa ca mponesa e o monopólio clerical sã o duas formas
essenciais que agem sobre as relações entre os meios sociais e os
níveis de cultura da Alta I dade Média.
4 7 9
Algo semelhante se deu no contexto brasileiro na segunda metade do século
XX: um universo folclórico religioso, configurado na liminaridade do controle institucional
católico, emergiu como “massa de pressão” no campo religioso. Que cultura folclórica é
essa? Antonio Gouvêa Mendonça ajuda a descrever esse compósito afirmando que “o
universo do catolicismo popular era um universo mágico de pluralidade de deuses”, cujo
cenário, nunca fixo e permanente, “podia ser manipulado e rearranjado segundo as
necessidades humanas”. Acrescenta ainda:
A cultura brasileira tem três componentes muito claros: a cultura
ibero-latino- católica, a indígena e a negra. A prime ira nã o é
representada pelo catol icismo tridentino, mas pe la religião popular,
folclórica e festiva legada pel a tradição lusitana . Dessa mistura de
cultura r esul tou um imaginário de um mundo composto por espí ritos
e demônios bons e ma us, por poderes intermediários entre os
homens e o sobrenatural e por posse ssões. Trata-se de um mundo
maniqueísta em que os pode res são classificáveis entr e o bem e o
mal e manipuláveis magicament e.
4 8 0
Mendonça destaca algumas características fincadas nas raízes dessa
religiosidade desenvolvida desde o período colonial: peregrinações a locais sagrados;
mediação dos santos por meio de preces muito populares, que nem sempre seguem a
canonização oficial dos mesmos pela igreja; fazer e cumprir promessas, acender velas,
solicitar ajuda de rezadores. Eduardo Albuquerque comenta o arraigamento dessas práticas
no catolicismo de devoção folclórica:
479
LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 207, 208,
209.
480
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus
personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 160.
148
No crist iani smo popular bra sileiro, a oração, a prece e a reza são
fórmulas religiosas dirigidas a De us, a Cristo, à Virgem Maria e aos
santos, mediante o que o fiel pede, deseja, julga a si mesmo e avalia
suas próprias necessidades. Vindas de Portugal, enf rentam a
Inquisição, os médicos e os juristas e sobrevivem nos nossos dias
através dos homens e mul heres que benzem. (...) instrumentos
mantidos pela memória do povo bra sileir o par a enfrentar suas
adversidades cotidianas.
4 8 1
A introdução de grandes levas de escravos provenientes da África
ocasionou não somente uma grande mescla ou mestiçagem racial, como também um intenso
e circular pluralismo nas crenças que perfazem o campo religioso brasileiro. Basicamente, os
únicos elementos que os negros puderam transportar da sua terra natal para o Brasil colonial
foram, além de outros aspectos culturais, as crenças em seus deuses e espíritos e os múltiplos
ritos para se relacionar com eles. Esta se estendeu posteriormente às diferentes regiões do
país, estando presente por meio de uma variedade de expressões das quais as mais conhecidas
e extensivas são o candomblé e a umbanda. Essa última tipologia contém traços muito fortes
de espiritismo como também elementos litúrgicos da cristã. Tais crenças devem, pois, ser
consideradas como parte importante da cultura do país, como bem destaca Milton Carlos
Costa ao dizer que a religiosidade afro-brasileira” consiste em “manifestação cultural de
reconhecida importância e um dos traços distintivos da civilização desenvolvida no Brasil”.
482
Pierre Sanchis também se refere ao capital simbólico que configura o
campo religioso brasileiro, indicando como matriz religiosa um encontro de práticas, crenças
e ritos de expressões culturais distintas, marcadas por raízes européias, africanas e indígenas.
A porosidade” que configura essa matriz cultural é que permite, ao mesmo tempo, crer em
demônios, ter medo de pisar em trabalhos de macumba, usar fitas do Senhor do Bonfim,
colocar carrancas nas entradas das casas, elefantes de costas para as portas, soltar fogos no
dia de Nossa Senhora Aparecida, virar Santo Antônio de cabeça para baixo para se obter um
casamento, ir à missa aos domingos, acreditar em reencarnação, tomar banho de descarrego e
benzer-se com água benta, acender incensos, acreditar em “olho gordo”, cristais, gnomos...
483
Também Eduardo Hoornaert, distinguindo do que chama de catolicismo
estabelecido ou patriarcal”, identifica o “catolicismo popular” brasileiro como sendo a
religiosidade indígena e africana.
484
Afirma ainda que “os sacerdotes católicos foram
481
ALBUQUERQUE, Eduardo Basto de. Orações & rezas populares. Texto disponível em: http://
www.planetanews.com. Acesso em: 25 out. 2006.
482
COSTA, Milton Carlos. Joaquim Nabuco entre a política e a história. o Paulo: Editora Annablume, 2003,
p. 55.
483
SANCHIS, Pierre. Para não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do ISER, Rio de Janeiro, n. 13,
p. 4-11, 1994.
484
HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 98.
149
assimilados a modelos bem definidos do imaginário religioso indígena...”,
485
ao passo que um
processo em outra via também ocorreu: no confronto entre o sacerdote católico e o “xamã”
americano (pajé, curandeiro, conselheiro, feiticeiro etc.) alguns deles “descobriram nesse
confronto a dimensão xamânica inerente à sua própria vocação”.
486
Devido a um intenso processo de êxodo rural e urbanização acelerada,
grandes contingentes populacionais passaram a experimentar no dia-a-dia do mundo urbano
um alto grau de insegurança, desproteção e incertezas, principalmente entre as camadas
médias e pobres da sociedade. Este escalonário deslocamento da população do campo para a
cidade criou uma intensa “orfandade” religiosa envolvendo fiéis e devotos. Diante desse
quadro, o discurso feito pelo corpo de especialistas urbanos da religião - católicos e
protestantes históricos - não foi capaz de atender satisfatoriamente a essa massa em busca de
amparo, fazendo que ocorresse um processo de espoliação simbólica ainda maior,
envolvendo tais devotos e levando-os a um distanciamento cada vez mais acentuado de suas
divindades.
487
Ao falar sobre elementos geradores de magia, Max Weber a localiza e a
observa sobretudo entre camponeses, pois devido à incerteza com que vivem em sua
atividade profissional, as práticas mágicas ou de uma religião com maior presença de traços
mágicos, apresenta-se-lhes como um dispositivo para soluções mais imediatistas. Sendo
assim, a cidade dada à existência em seu meio de maior proximidade com o
desenvolvimento de saberes científicos, assim como a presença de práticas religiosas mais
institucionalizadas constitui-se como um dos elementos diretamente responsáveis pela
eliminação desse encantamento folclórico camponês. Logo, as transformações do contexto
brasileiro contribuíram para provocar o abandono ou redução da atratividade das opções
religiosas estabelecidas no mundo urbano, que propunham ao indivíduo um “novo céu e uma
nova terra” fora do mundo e da história, como foram os casos do protestantismo clássico e do
pentecostalismo em seus primórdios.
E, como visto anteriormente nessa pesquisa, o campo religioso possui denso
capital simbólico de magia. Assim, nesse momento e contexto, eclodiu uma massa emergente
de indivíduos em busca de respostas mais rápidas aos seus dramas e anseios. Em outras
palavras, esse contingente migrante do contexto rural para o urbano não encontrou espaço no
485
Id. Sacerdotes e conselheiros. In: HOORNAERT, Eduardo et al. Estudos Bíblicos 37. Petrópolis: Vozes,
1993, p. 67.
486
Id., ibid., p. 72.
487
BENEDETTI, Luiz R. Os Santos Nômades e o Deus Estabelecido. São Paulo: USP, 1981. 250 fl.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade de São
Paulo, 1981.
150
protestantismo pela sua aridez simbólica, discurso racional e por constituir-se em uma
religião tipicamente urbana no mundo moderno. Além de um estilo de culto com linguagem
inacessível e espaço quase inexistente à liderança leiga, aspectos que marcavam um fosso
cultural entre a cultura folclórica e o racionalismo da cultura eclesiástica. No catolicismo
oficial, a erudição das missas em latim também se tornava grande obstáculo. Tampouco o
discurso militante da Teologia da Libertação foi capaz de atrair essa massa que precisava de
respostas imediatas, sem poder esperar pelos processos de conscientização promovidos nos
grupos de reflexão e catequese das Comunidades Eclesiais de Base e a conseqüente
transformação da sociedade pela revolução dos oprimidos ou proletariados. Com ênfase nas
questões de natureza social e na politização da fé, essa opção religiosa acabou gerando
vulnerabilidade e muitos desses simpatizantes acabariam atraídos a uma “solução” mais
rápida e de caráter mais “sobrenatural”. Assim, acaba ocorrendo algo semelhante ao
identificado por Jacques Le Goff no cristianismo medieval, quando afirma que, não obstante
“haver um bloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, as influências não são
unilaterais”, é preciso considerar “duas culturas diversamente eficazes, em níveis diferentes”,
e por isso “o fosso que separa a elite eclesiástica não impede, porém, que esta se torne
permeável à cultura folclórica, da massa rural”.
488
Pessoas experimentando intensas incertezas na vida urbana, nos quadros de
uma economia capitalista em processo de remodelação, aliado a um processo de
desarticulação dos modos de vida, provocado dentre outros aspectos pelo deslocamento de
grandes contingentes populacionais do campo para os espaços urbanos, buscavam, na
verdade, oportunidade para o emprego de rituais que reduzissem as incertezas e restaurassem
nos indivíduos a crença de que o mundo pode deixar de ser não-manipulável e arbitrário. Ou
seja, tornava-se emergente a aparição de um espaço que permitisse a esta massa que,
deixando o catolicismo ou as religiões de origem afro, pudesse manter ou reviver um
fertilíssimo mundo de práticas tipicamente mágicas e híbridas que constituíam seu imaginário
primevo. Foi em tal ambiente onde o ato mágico se tornou necessário para preencher o
vazio do desconhecido, sob a “pressão psicológica do indeterminismo” -
489
que surgiu uma
resposta aos anseios emergentes: um “sindicato de mágicos”. Um movimento com propostas
de soluções mais instantâneas e mediadas pelo “sobrenatural” do sagrado apresentar-se-ia
como um caminho mais sedutor para um imaginário cultural-religioso de um contingente
urbano que não mais podia esperar. Assim, com o nome Igreja Universal do Reino Deus, essa
488
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 215.
489
GEERTZ, C. Op. cit., p. 140.
151
expressão religiosa marcaria a escrita de um capítulo absolutamente novo na composição e
no funcionamento do campo religioso brasileiro, reconfiguração tão absolutamente radical ao
ponto de se poder afirmar que o panorama de crenças do país se divide em antes e depois
dessa Igreja.
Naturalmente, algumas das características que marcam as práticas da IURD
reeditam experiências conquistadas por segmentos pentecostais que historicamente a
antecederam. Porém, as modificações implementadas ocorrem numa dimensão e numa
profundidade sem precedentes em tal contexto. Maria Lucia Montes descreve este aspecto
dizendo que surgiu aí “um novo tipo de igreja evangélica, inédito no Brasil”:
Em menos de três décadas essa igreja atingiu um crescimento
vertiginoso, diversificando suas atividades e formas de atuação a
ponto de defini r um perfil próprio que a distingue no inter ior do
campo eva ngélico, configurando o que veio a ser chamado de
neopentecostalismo.
4 9 0
A IURD se diferencia do protestantismo e do pentecostalismo clássico,
assim como promove um dinâmico processo de apropriação e resignificação das expressões
de arraigadas nas crenças afro-brasileiras e no catolicismo de devoção mais folclórica.
Dessa forma, a “massa de pressão folclórica”, com um espectro denso de magia, proveniente,
em boa parte do mundo rural, encontraria finalmente um espaço de acolhimento para a
experiência com o sagrado em seus níveis mais encantados, como o veremos a seguir.
490
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 85.
152
3 UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS:
PRÁTICAS
3.1 - A consagração do herético: o nascimento de um sindicato de mágicos
Nascido na cidade de Rio das Flores, em 18 de fevereiro de 1945, Edir
Macedo Bezerra viveu sua infância em um lar extremamente pobre de migrantes nordestinos:
“seu pai, Henrique Francisco Bezerra, alagoano, possuía uma pequena venda de secos e
molhados, e sua mãe, Eugênia Bezerra, dona-de-casa”.
491
Segundo o próprio Macedo, ele é
um “sobrevivente”, pois sua mãe teve 33 filhos, dos quais 10 morreram e 16 foram abortados
por terem nascido “fora de época”.
492
No começo da sua adolescência, Macedo mudou-se
com sua família para Petrópolis - RJ. Em 18 de dezembro de 1971, casou-se com Ester
Eunice Rangel Bezerra. Do casamento nasceram três filhos, sendo as duas filhas mais velhas
casadas com pastores da Igreja Universal e vivendo, atualmente, no exterior. O terceiro filho,
Moisés, já na juventude, “segue o mesmo caminho vocacional do pai” - comenta o site oficial
da igreja, que também ressalta:
O bispo Edir Macedo considera de fundamental importância a
guarda dos valores e princípios cr istã os, segundo a Palavra de Deus,
para a c onstituição da família. Ele próprio é exem plo disso. Com
mais de 30 anos, seu feliz e sólido casamento com Ester Eunice
Macedo Bezer ra é um dos grande s segredos das vitórias no
ministério do bispo.
4 9 3
Quanto à sua trajetória mais propriamente religiosa, vale destacar que, antes
de fundar a sua própria igreja, foi católico, depois participante da umbanda e candomblé além
de peregrinar por igrejas evangélicas, fato que o torna figura bastante representativa da
configuração de elementos culturais-religiosos dispostos no campo:
A própria trajetória de Edir Macedo é ilustrativa dessa fusão de
referentes culturais, pois Macedo nasceu de uma família de
católicos devotos, passou por uma iniciação no Candomblé, pelo
pentecostalismo clássico e pela s ondas renovadas do
pentecostalismo norte-americano. Mas foi de modo paulatino que a
nova igreja se transformou em um marco do que viria a ser
conhecido com o o neopentecostalismo. (...)
4 9 4
O início de sua trajetória religiosa pelos caminhos do pentecostalismo se
deu em 1963, quando, aos 18 anos, converteu-se na Igreja Pentecostal Nova Vida, onde
chegou por meio de sua irmã, que testemunhava ter sido curada de uma bronquite asmática
491
MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 43.
492
Programa 25ª Hora. São Paulo, Rede Record, 15 nov. 1991. Programa de TV.
493
http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 25 out. 2005.
494
MAFRA, C. Os evangélicos, p. 38.
153
naquela denominação religiosa. Em entrevista jornalística (20/06/91), Macedo mencionou
detalhes dessas primeiras experiências:
Eu era uma pessoa triste, deprimida, angustiada . No fundo do poço
busquei a igreja C atól ic a, e só encontrei um Cristo morto. Aquilo
não sat isfez meu cor ação e pa rti para o espir itismo, mas as idé ia s
que aí encontrei não se coadunavam com as minhas. E ntão, um dia,
tive esse encontro pessoal com Deus. Est ava em uma reunião
pública de evangelistas na sede da Associação Brasileira de
Imprensa, no Rio. As pessoas cantavam e, de repente desceu uma
coisa sobr e nossa cabeça, nosso corpo, como se estivé ssemos sendo
jogados deba ixo de um chuvei ro. Foi al go ao me smo tempo físico e
espiritual, abstrato e c oncreto. Pude me ve r como realmente er a, e
eu me via como se estivesse descendo ao inferno. Caí em prantos.
Então a mesma presença me apontou Jesus. Foi quando nos
convertemos e nos e ntregamos de corpo, alma e espírito.
4 9 5
O site da Igreja descreve esta experiência de conversão como decisiva na
vida de seu líder:
Desde muit o jovem, Edir Macedo sentia falta de algo e specia l que
preenchesse o vazio de seu coração: uma experiência maior com
Deus. O encontro ocorreu em 1963 e deu origem a uma virada
radical não apenas em sua vida, mas também na de milhões de
pessoas.
4 9 6
A aparição definitiva de Macedo como líder religioso aconteceu pouco
tempo depois, em 1974, cuja vocação é enaltecida pela Igreja:
Logo após receber a plenitude do Espírito Santo na sua vida, sentiu
o desejo ardente de conquistar almas par a o S enhor Jesus e levar o
Evangelho a todos. Começ ou evangelizando nas ruas e fa zendo
reuniõe s nas praças. Qua ndo sentiu o chamado de Deus para o
ministério, deixou o emprego e iniciou o trabalho da Igreja
Universal do Re ino de Deus.
4 9 7
A Folha Universal apresenta ainda outros detalhes que enobrecem a
vocação de seu líder:
Quando criança, já mostrava seu tempera mento forte; na
adolescência coragem, ousadia , espírito renovado e vigor da
juventude; aos 27 a nos entre lutas e lágrimas, amadureceu
mostrando ao mundo que sua força está no trabal ho nos guetos, nas
favelas, onde haja algué m sofrendo. Quando iniciou o trabalho da
Igreja Universal do Reino de Deus, em 1977 o bispo Edir Ma cedo já
tinha certeza de que iria levar o evangelho a um imenso número de
pessoas ult ra passando a s fronteiras do Brasil.
4 9 8
Quando Macedo era agente da Casa de Loterias do Rio de Janeiro, com 31
anos, deixou a Igreja Pentecostal Nova Vida, que freqüentava na cidade do Rio de Janeiro,
495
Apud MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 69.
496
http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 20 abr. 2004.
497
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em 21 abr. 2004.
498
Folha Universal, Rio de Janeiro, 11 jul. 2004, p. 7.
154
para iniciar sua própria igreja. O primeiro passo foi iniciar um programa de rádio que ia para
o ar logo após uma outra programação religiosa, apresentada por uma mãe-de-santo. O
programa, ao vivo, garantia que Edir contrapusesse os discursos, as cosmologias e,
principalmente, os resultados práticos de uma religiosidade e outra. Durante esse período,
com o auxílio de Romildo Ribeiro Soares, seu cunhado, (hoje, conhecido como “missionário
R.R. Soares”), Roberto Augusto Lopes e Samuel Fidélis Coutinho, fundou a Igreja Cruzada
do Caminho Eterno. Logo depois, Macedo e R. R. Soares consagraram-se mutuamente
pastores, sendo que Edir Macedo passou a acumular também o cargo de tesoureiro da
cruzada. Vale dizer que antes de fundarem a Igreja do Caminho Eterno, esses dois líderes
nunca haviam exercido qualquer cargo eclesiástico; contudo mesmo sem qualquer
formação teológica específica – obtiveram a consagração para tal função.
Três anos mais tarde ocorreu uma cisão no grupo. Foi quando Macedo,
após também pedir demissão de seu emprego na Loterj, com o apoio de R. R. Soares, fundou,
no dia 9 de julho de 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus. Nas palavras da própria
IURD assim é descrito o surgimento da Igreja:
Num século em que a criminalidade , a insegurança e a discórdia
imperam , falar da Igr eja Uni versal do Reino de De us é o mesmo que
descrever uma bonita história de amor. Essa história ve m sendo
levada para as pessoas carente s. É bem ve rdade que nada começou
de uma hora para outra . Sem condições de alugar um imóvel, o
então pastor Edir Macedo ini ciou as suas primeiras reuniões num
coreto do Jardim do Méier . Orientado pelo Espírito S anto e
revestido de uma fé inabalável, a s suas palavr as logo deram início à
Igreja que atualmente mais cresce no mundo. Em 9 de julho de
1977, abriamse oficialmente as port as da Igreja Universa l do Reino
de Deus. Foi alugada uma antiga fábrica de móveis no número 7.702
da Avenida Suburbana que parec ia ser o local idea l para iniciar a
obra, O galpão se tornou o grande templ o da Aboliç ão, com
capacidade inicial par a 1.500 fiéis. Mas logo foi preciso ampliar a
capacidade para duas mi l pessoas.
4 9 9
Em 1980, devido a uma divergência, R.R Soares separou-se de Macedo
para fundar a sua própria denominação religiosa, a Igreja Internacional da Graça de Deus.
Mais tarde, em 1981, optou pelo episcopado, sendo consagrado bispo.
Em torno da figura do bispo desenvolveu-se um fetichismo, uma grife e um
efeito mágico que o torna distintivo perante os fiéis:
Todo mundo adora o bispo Macedo. Ele dá uma orde m aqui e lá no
extremo do Brasil, e mesmo numa igreja distante, a ordem é
conhecida e obedecida (...) Macedo é uma espécie de líder
autoritário no bom se ntido da palavra (...) ele é um homem que
tem tudo nas suas mãos dentro da igreja (...) as suas decisões são
rápidas e inquestionáveis na igreja. Ele falou e tá fal ado (...) a
499
http:// www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 25 abr. 2004.
155
unidade da IURD é garantida pela autoridade únic a e centra lizada
do bispo Macedo. Assim temos uma igreja que tem mais unidade do
que a própria I greja Ca tólica na figura do Papa.
5 0 0
Ao ser venerado pelo movimento que fundou, esse líder recebe como
destaque o atributo de grande empreendedor:
Idealiz ador e fundador da Editora Gráfica Universal, hoje
incorporada pela Holding Univer sa l Pr oduções. Fundador do Portal
Arc a Unive rsal (Internet). Presidente do Conselho das Redes
Record, Mulher e Re de Famíli a de Televisão. Criador e presidente
do Conselho da Rede Aleluia de Rádio (Rede Na cional de
Radiocomunicação para a Evangeliz ação do Povo de Deus).
Funda dor e responsável direto pela Igreja Univer sal do Reino de
Deus em mais de 100 países da Europa, Ásia , África e Américas.
Autor de inúmer os e influente s livros. Jornalista-colaborador
responsável por artigos periódicos em vá rios veículos de
comunicação, destacando-se: jornal semanário Folha Universal, com
tiragem superior a 1,4 milhão de exemplares em edição nacional;
Jornal Hoje em Dia (vespertino diário editado em Belo Horizonte,
com distribuiçã o para todo o Estado de Minas Gerais); Jornal do
Brasil (vespertino diário editado no Rio de Janeiro); Jornal Pa re de
Suf rir! e St op Suffering! (ambos e ditados em Nova York,
simultaneamente, nos idiomas espanhol e inglês); Jornal City
New s (Londres); Tablóide Folha Univer sal (e dita do para
Por tuga l e comunidades africanas de Língua Portuguesa
(Moça mbique , Cabo Verde e Angola); Jornal Uni versal SH INBUN
(Japã o); Jornal El Universal (Buenos Air es); Revista Plenitude
(direcionada para toda a comunidade evangé lica, em edição
naciona l, com tiragem mensal de 450 mil exemplares); Revista
Obreiro de Fé (dir igida a obre ir os e obreiras de comunidades
cristãs em busc a de ensinamentos bíblicos - tir agem de 100 mi l
exemplares). Radia lista, aprese ntador e comenta rista de programas
evangélicos em várias redes de televisão e rádio, no Brasil e no
exterior, destacando-se a Rede Record de Tele visã o e a Rede
Aleluia de Rádio. Organizador de concentrações evangélicas no
Brasil e em outros países: 1994 (Aterro do Flamengo - RJ) - mais de
um milhão de pessoas; 1995 ( Vale do Anhangabaú - SP) - mais de
um milhão de pessoas e arrecadação de 700 toneladas de alimentos
não-perecíveis para as comunidades care ntes; 1998 (Praça da
Apoteose - RJ) - 200 mi l pessoas concentr adas em clamor a Deus;
09 de a bril de 2004, por ocasião da Páscoa (no aterro do Flamengo,
no Rio de Janeiro RJ) 1,5 milhão de pessoas. De staca-se, também,
na lidera nça de concentrações evangélicas em todos os estádios do
Brasil, além de eventos inte rnacionais, concentrando grande número
de pessoa s de vários países em Israel.
5 0 1
Igualmente, são destacados os títulos que lhe foram conferidos:
Cidadão Benemérito do Esta do do Rio de Janeiro (confe ri do pela
Assembléia Legisla tiva , conforme a r esolução 41/1987). Medalha
Tiradentes ( conferida pela Assembléia Legislativa do Estado do Ri o
de Janeiro). Cidadão Petr opolit ano (Câmara Municipal de
500
L. M. S. é pastor da IURD na cidade de Londrina. Entrevista concedida em nov. 2004. Gravação em K7,
transcrita para uso como fonte.
501
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 02 maio 2004.
156
PetrópolisRJ). Cidadão Paulistano (Câmara Municipal de São
Paulo).
5 0 2
Mas a igreja transfere todas estas representações para o nível do eufemismo religioso,
recalcado pela alquimia da consagração”, pela representação de serviço prestado à
divindade,
503
ao lembrar que:
Edir Macedo, líder espiritual da Igreja Universal do R ei no de De us,
abriu mão de uma vida e stável para servir exclusivamente a Deus.
Sua s primeiras pregações aconteceram num modesto coreto do
Méier, subúrbio do Rio de Janeiro. H oje, Catedrais imponent es se
espalham por mais de cem países. Na época em que abandonou seu
emprego de func ionário público para se dedicar à obra do Senhor
Jesus, f oi criticado até mesmo por familiares. No entanto, acreditou
em seu sonho e atualmente a IURD é a igreja evangélica que mais
cresce no Brasil e no mundo. Nestes 28 anos de lutas e conqui stas
ele sofreu dive rsas perseguições, foi preso e humilhado, mas sempre
superou seus desafios e se manteve firme no propósito de levar a
Palavra de De us aos desampara dos e sofridos.
5 0 4
3.2 - A universalização do reino: o explosivo crescimento da Igreja Universal
O crescimento da Igreja Universal se deu de modo sem precedentes no
campo religioso brasileiro. Em menos de três décadas transformou-se no mais surpreendente
e bem-sucedido fenômeno religioso do país. Nenhuma outra igreja havia crescido tanto em
tão pouco tempo. Rapidamente, a IURD rompeu as fronteiras geográficas de seu ambiente de
origem, superando as expectativas mais otimistas utilizadas para aferir o crescimento de
novas igrejas. O site oficial da IURD enobrece essa capacidade visionária e o papel de
ousadia desempenhado pelo seu líder.
Quando o jove m Macedo alugou o gal pão, alguns pastores que
trabalhavam com ele consider aram o gesto uma loucura, já que o
aluguel do imóvel era muito caro. Essa ousadia, entretanto,
contribuiu para fa zer da Universal o que ela é hoje: uma Igreja que
não pára de crescer. Cruzada do Caminho Ete rno e Igreja da B ênção
foram alguns dos nomes utilizados na formaçã o da atual Igreja
Universal do Re ino de Deus.
5 0 5
Nos primeiros anos, a distribuição geográfica da Igreja se concentrou nas
regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Em seguida expandiu-se
pelas demais capitais, grandes e médias cidades. Com apenas três anos contava com 21
templos em cinco estados brasileiros. Em 1985 avançou para 195 templos em 14 Estados e no
502
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 03 maio 2004.
503
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino
(Org.). Sociologia da religião. Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 105.
504
Folha Universal, Rio de Janeiro, 21 ago. 2005, p. 6.
505
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 05 jun. 2004.
157
Distrito Federal. Em 1989, eram 571 locais de culto. Na década de 1990, passou a cobrir
todos os Estados do território brasileiro. Em 1999, numa vigília, reuniu multidão suficiente
para lotar, ao mesmo tempo, o enorme estádio do Maracanã e o Maracanãzinho, evento
registrado de forma entusiástica pela Folha Universal:
A noite de 29 de outubro entra para a história c omo a data em que
se reuniu o m aior número de pessoas em um evento religioso
realizado num estádio de futebol no país: 250 mil pessoas. Ônibus,
trens e metrô c ompletamente lota dos, tra ziam , a cada nova viagem,
centenas de pessoas (...) Caravanas, utilizando mais de t rês mil
ônibus, de vários pontos do país, passa ram pelos por tões do maior
estádio do mundo, porém pequeno para abrigar o grande número de
membros da IURD.
5 0 6
Nesse acontecimento, a Universal ousou novamente ao alugar dois trens, cada um com oito
vagões, que saíram da Baixada Fluminense, transportando os fiéis até o local da reunião.
Comentando esse crescimento da Igreja, Ricardo Mariano destaca a
distinção obtida pelo movimento liderado por Macedo:
Qualquer um que tivesse visto a IURD surgir na sala de uma ex-
funerária do bairro da Abolição, subúrbio da Zona Norte do Rio,
não sustenta ria gra ndes expectativas a seu respeito. (...) No ent anto,
apesar da remota probabilidade de ê xito, a história lhe foi assaz
generosa, m ilagrosa até.
5 0 7
O depoimento dado por um ex-pastor da IURD também destaca essa
capacidade de projeção:
De todos os mi lagres opera dos por Edir Macedo, o maior, sem
sombr a de dúvida, foi de ter t ransformado uma igre jinha
protestante, que começara timidamente em uma funerá ria no Rio de
Janeiro, em 1977, neste imenso e poderoso império que se espalha
por vá rios países. Um impé rio que cresce a cada dia com a
capacidade de multiplicar milhões de dólares como se fossem
pães.
5 0 8
O editorial da revista Plenitude atribui à “ousadia” essa capacidade de
projeção da Igreja:
O nome Igrej a Universal faz jus a o desejo do pastor Macedo: ide
por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Mar cos
16:15. O trabal ho sempre foi duro. Distribuir folhetos nas ruas
convidando os sofridos e necessitados para os cultos transformou
aquela igreja em um local pequeno dem ais. Mesmo fazendo várias
reuniõe s por dia para poder comportar todos os fre qüentadores, o
local já não era suficiente. Surgia, então o de safi o de conseguir um
local m aior e assumir os compromissos, principalmente finance iros
506
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 69, ano 18, p. 69, 1999.
507
MARIANO, R. Neopentecostais: o pentecostalismo está mudando, p. 43.
508
JUSTINO, Mário. Nos bastidores do reino. A vida secreta na Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo:
Geração Editorial, 1995, p. 29.
158
que isso acarretaria. Esse era apenas o primeiro passo que
sinaliz aria uma das m aiores carac terístic as da IURD: a ousa dia.
5 0 9
A mesma reportagem ressalta que poucos anos depois da fundação da Igreja
Universal no Brasil, “o bispo Edir Macedo havia cruzado os limites do Rio de Janeiro e
levado a palavra de Deus a vários estados brasileiros”. Lembra que, ao invés de comemorar o
rápido crescimento e usufruir de algumas facilidades que a igreja havia conquistado para o
trabalho evangelizador, como programa de rádio e televisão, a liderança da IURD “partia
para um novo e maior desafio, afinal, não se tratava da Igreja Nacional, mas sim da Igreja
Universal do Reino de Deus”.
Em declaração à revista Plenitude, o bispo Macedo conta um pouco de
como foi o início da igreja que fundou:
Muitos episódios vividos por mi m e minha família nos ensinaram o
sentido maior da pa la vra perseverança. Aprendemos na prátic a a
diferença entre a fé emocional e a fé espiritual. Contamos com a
prese nça constante do Espírito do Senhor Je sus. Al ém do que,
aquele que fez essa promessa não pode falhar. Mesmo diante de
perse guições e grandes lutas a igre ja Universa l progrediu e se
expandiu nã o parando de cre scer partindo para várias regiões.
5 1 0
Segundo o bispo uma das atitudes que tem colaborado para o crescimento
da IURD em todo o mundo é uma receita bem simples: “fazer dos limões (que representam
os problemas), uma boa limonada (representando a vitória)”. A igreja enfrentou períodos de
grande perseguição e rejeição de alguns de seus pastores em alguns lugares onde se
estabeleceu. “Essas dificuldades têm sido encaradas pelos líderes da Igreja Universal como
oportunidades ideais para o exercício da fé e para a ação do poder de Deus”.
511
A igreja reconhece essa ousadia de seu líder, afirmando que “não deu
importância às barreiras e às palavras negativas que se levantavam a cada dia”,
512
experiência
que se tornou inspiração para os demais líderes:
A Igreja Universal do Reino de D eus tem ultrapassado as fronteiras
abençoando os povos em mais de cem países. Todos os dias,
milhares de pessoas testemunham milagres de cura, vitória e
prosper idade um sinal da manife stação do poder de Deus que
fazem com que a IURD se mantenha firme em sua trajetória. Nas
ruas, prisões, hospitais e atra vés dos meios de comunica ção, bispos,
pastores e obreiros devotam cada minuto de suas vidas, de dicando
todas suas forças para ajudar os necessitados.
5 1 3
509
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 122, p. 10, jul. 2005.
510
Id., ibid.
511
Id., ibid., p. 12.
512
Id., ibid.
513
Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 dez. 2005, p. 5.
159
Grandes e estratégicas cidades se tornaram alvo dos primeiros esforços de
expansão fora do Rio de Janeiro. Em São Paulo, a Universal se estabeleceu em 1984, quando
Roberto Augusto um dos auxiliares de Macedo na fundação da igreja - foi enviado para
implantar a igreja na capital paulista. O trabalho obteve êxito, tendo início no Parque D.
Pedro, sendo depois estabelecido no bairro da Luz Brás, no antigo Cine Roxi, onde em
1989, se tornou sede nacional. Atualmente, porém, a sede está localizada na chamada
“Catedral da Fé” - um grande templo em Santo Amaro – SP.
514
Ao se expandir para o Estado da Bahia, o movimento iurdiano já deu
mostras daquilo que lhe parece ser uma das vocações: obter êxito em contextos e realidades
marcados por crises e dificuldades. Nesses ambientes encontra terreno fértil para sua
operosidade. Recentemente, a Folha Universal publicou extensa matéria, intitulada Do
porão à Catedral”, contando a história do movimento na cidade de Salvador BA. Mais
precisamente, “um porão, em condições precárias, embaixo de um viaduto” foi o primeiro
endereço da igreja naquela cidade, em 1980 destaca a reportagem. Muitos teriam sido os
obstáculos enfrentados pelos dois pastores responsáveis pela fundação da IURD naquela
capital, como declara Paulo Roberto, hoje bispo: “Na época, com 20 anos de idade, recém-
casado, estava iniciando meu ministério. Diante das condições péssimas das instalações da
igreja na ocasião, liguei para o bispo Macedo contando-lhe sobre nossas dificuldades, que o
lugar era uma área de risco, onde existiam prostituição e assaltos, e que havia resistência dos
moradores locais devido a seus costumes e religiosidade”. Paulo Roberto relata que, para sua
surpresa, ouviu de Macedo a seguinte resposta: “Graças a Deus! Excelente! Este é o lugar!”.
Não havendo então alternativa para o pastor Paulo Roberto e seu auxiliar, tiveram de
prosseguir e trabalhar com maior empenho ainda. Mas o resultado veio em pouco tempo: “A
igreja, que comportava 250 pessoas, logo ficou lotada” - comenta, ressaltando que passaram a
ser “realizados cultos de duas em duas horas”. Hoje, um dos maiores e mais confortáveis
templos da IURD, está justamente situado na capital baiana. Diz o bispo Sérgio Correia, atual
responsável pelo trabalho naquele Estado, que “em apenas três dias - domingo, segunda-feira
e terça-feira - passam semanalmente pelo Templo Maior, na cidade de Salvador, 72 mil
pessoas, sendo uma média de 24 mil para cada dia”.
515
Em Londrina um dos locais utilizados para pesquisas mais sistematizadas
neste trabalho - a IURD se estabeleceu ao final da década de 1980. Logo depois de chegar à
514
Roberto Augusto, atendendo sugestão de Macedo para ingressar na política partidária, em 1986 foi eleito
deputado federal constituinte pelo PTB/RJ. Porém, no ano seguinte, saiu da IURD e retornou à Igreja de Nova
Vida, deixando assim, na IURD, o caminho livre para Macedo.
515
Folha Universal, Rio de Janeiro, 03 set. 2005, p. 1.
160
cidade de Curitiba PR, estendeu-se a partir desta capital paranaense ao solo londrinense.
Neste, seguiu um roteiro quase que padrão: alugou um grande espaço na área central da
cidade, antes ocupado por uma loja, em frente ao terminal de transporte coletivo urbano,
onde passou a realizar reuniões diárias em diferentes horários. Literalmente, as pessoas que
saíam do movimentado terminal de transportes se encontravam imediatamente às portas da
igreja. Também passou a desenvolver programas diários em uma das emissoras de rádio
local, a Atalaia AM, a qual posteriormente adquiriu. O passo seguinte foi a compra um mega
espaço antes ocupado pelo “Supermercados Pastorinho” - um estabelecimento comercial
bastante tradicional na cidade e de uma nova emissora de rádio: a Gospel FM de Londrina,
anteriormente pertencente à Igreja O Brasil Para Cristo, emissora que mantém
ininterruptamente programação exclusiva da denominação. Finalmente, a IURD de Londrina
transformou-se em sede regional, instalando-se num grande complexo antes pertencente a
uma rede de lojas de eletrodomésticos, comprado por uma suntuosas quantia. Este espaço,
agora denominado Templo Maior da Fé”, comporta milhares de pessoas em seu auditório,
além de oferecer salas para escritório, livrarias para a divulgação dos produtos da
denominação e estúdios transmissores de programas de rádio e TV.
Atualmente, um dos pastores líderes da IURD atuantes em Londrina é
Renato Lemes. Natural do interior de São Paulo, Lemes trabalhou na roça até os 16 anos,
sendo depois metalúrgico e comerciário. Tornou-se pastor da Igreja Universal em 1985,
começando a atuar no interior de São Paulo, de onde se transferiu para Santa Catarina e, em
1996, para o Paraná, como pastor da igreja na cidade de Curitiba. Chegou a Londrina em
2003 para atuar no pastorado e também coordenar a campanha dos deputados estaduais do
Partido Liberal - PL. Envolvido com a proposta estratégica da IURD de ocupar cada vez mais
espaços na política, em 3 de outubro de 2004 foi eleito vereador para o seu primeiro mandato
na Câmara Municipal de Londrina, pelo Partido Social Liberal (PSL), com 3.245 votos.
Atualmente, Lemes também coordena os programas de rádio “Momento do Presidiário”,
veiculado pelas emissoras Atalaia AM e Gospel FM, e “Bom dia Londrina”, pela rádio
Atalaia AM.
516
A IURD estabeleceu um total de sete templos na cidade, além de dezenas
de outros espalhados nas regiões adjacentes. A pesquisa Tendências Demográficas, realizada
pelo IBGE, 2000, apontam o Paraná como o maior Estado do Sul do país em número de
evangélicos, perfazendo 16,6% da população. Inegavelmente, a presença da IURD no Estado
tem sido responsável pela projeção desses números.
516
http://www.camaramunicipaldelondrina.com.br . Acesso em: 10 fev. 2005.
161
3.3 - A multiplicação da palavra: os recursos midiáticos da Igreja Universal
Inovação e agressividade têm sido marcas distintivas do movimento
iurdiano. Isto se observa, por exemplo, no uso extensivo e impactante dos meios de
comunicação, principalmente o rádio e a TV, como instrumento de evangelização de massas,
tendo conseqüentemente acesso ao ambiente privado dos lares em horários nobres e nos
horários tardios. Essa utilização dos meios de comunicação de massa ganhou uma proporção
inédita ou sem precedentes nas práticas da Universal, desempenhando um papel importante
no processo de rápida expansão do movimento. O depoimento de um pastor, líder da Igreja
no Nordeste do Brasil, revela o uso dessa estratégia:
A implantação da igreja é praticamente igua l em qualquer lugar. Em
João Pessoa, por e xemplo, consegui um horário na rádio e comecei a
pregar o evangelho. A rranje i um c lube e marquei para fazer
reuniõe s aos domingos. Muita gente ia porque ouvia o rá dio.
Começa a ssim: um núcleo a part ir de um programa de rá dio e
televisão e dali nasce a igreja. Só então você aluga um lugar para
reunir as pessoas. F oi assim que come çou a Universal no R io, com
horário alugado na Rádio Metropolita na, na época um programa de
15 minutos. E assim i mplantei a Univer sal em todos os Estados do
Norde ste, exc eto no Ceará.
5 1 7
Reportagens do início da década de 1990 constatavam o espaço da mídia
ocupado de forma ascendente pelos pregadores neopentecostais nas emissoras de rádio e
TV,
518
os quais também vinham adquirindo concessões de dezenas de canais. A expansão da
IURD confirma bem esse quadro, que se constitui hoje numa grande potência em termos
de propriedade e uso dos meios de comunicação de massa. Em 1984 ocorreu a compra da
emissora de rádio, a Copacabana Rio. Um avanço maior ocorreu em 1988, quando houve a
aquisição de várias emissoras de rádio e TV.
519
A partir daí, não faltaram empreendimentos
milionários como, por exemplo, a compra do jornal diário Hoje em Dia e a Rádio Cidade de
BH, por 20 milhões de dólares. Ao final da cada de 90, a igreja possuía um verdadeiro
império comunicacional formado por 22 emissoras de rádio e 16 emissoras de televisão. A
entrada da IURD na política partidária, a partir de 1986, configurou-se como estratégia para
se obter concessão de canais de rádio e TV.
520
No final de 1989, realizou o mais ousado
517
Carlos Magno, pernambucano, então pastor da IURD. Depoimento ao Jornal da Tarde, São Paulo, 02 abr.
1991.
518
Revista Veja, São Paulo, p. 40, 16 maio 1990.
519
Ronaldo R. M. de ALMEIDA elabora uma análise sobre os dados estatísticos de projeção midiática da
IURD, em seu texto: A universalização do Reino de Deus. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 44. Op. cit.,
p. 12-13.
520
MARIANO, Ricardo; PIERUCCI, Antônio Flávio. O envolvimento dos pentecostais na eleição de Collor.
Novos Estudos CEBRAP, n. 34, São Paulo, p. 92-106, nov. 1991.
162
investimento nesse setor: a compra da Rede Record de Televisão, por 45 milhões de
dólares.
521
Atualmente, cerca de noventa emissoras de televisão estão afiliadas à TV Record.
O uso deste recurso de comunicação se tornou, inegavelmente, muito estratégico para a
propagação da mensagem iurdiana, sobretudo quando considerados os dados de que 90% dos
lares brasileiros possuem atualmente um aparelho de TV, o que corresponde a 65 milhões de
aparelhos.
522
Edir Macedo foi o primeiro evangélico a televisionar os cultos ao vivo.
Davi Miranda, da Deus É Amor, havia inaugurado prática semelhante, transmitindo as
sessões de exorcismo de seus templos, pelo dio. A IURD também se utiliza dessa mesma
dramaticidade, que de maneira ainda mais espetacular, pois o evento passa a ser veiculado
pela televisão. O movimento iurdiano soube, assim, aproveitar tal recurso midiático,
estabelecendo por meio dele altares domésticos”, fazendo ocorrer uma aproximação entre a
igreja e o cotidiano de milhões de telespectadores.
Em programações televisivas diárias, exibidas durante a madrugada, a
denominação mantém sistematicamente dois programas: “Fala que eu te escuto” e “SOS
espiritual”, com grande abertura para a participação entre emissor e receptor. Aflitos recebem
socorro espiritual pela televisão. O telefone não pára de tocar durante toda a madrugada, na
Rede Record. São pessoas com diversos problemas, procurando um aconselhamento
espiritual. As telefonistas anotam os pedidos dos telespectadores sofridos por causa do
fracasso no casamento, filhos drogados etc. Nos programas, muitos deles ao vivo, o bispo ou
pastor recebe ligações telefônicas de pessoas que estão passando pelas mais variadas
dificuldades. Após ouvir pacientemente o relato do(a) telespectador(a), o apresentador abre a
Bíblia e lê algum texto que possa identificar ou “diagnosticar” a causa dos problemas. Em
seguida, são dados alguns conselhos e, finalmente, uma orientação no sentido de que tal
pessoa procure, com urgência, um dos templos iurdianos. A Igreja destaca a eficiência dessas
programações:
Os teste munhos comprovam a eficácia do trabalho de oração
realizada por bispos e pastores. Por assistir a essa programação,
centenas de pessoas j á conheceram a palavra de Deus e passaram a
ter uma vida tr ansfor mada e abe nçoada .
5 2 3
Maria da Graça, 64 anos, atesta o alcance desse recurso utilizado pela Igreja:
Estava desenganada pela medicina, e m decorrência a cinco
meningite s sofridas, por isso cheguei a pensar em suicídio. Numa
521
Segundo reportagem da Revista Isto É Senhor, São Paulo, 22 nov. 1989.
522
Entrevista 107. Londrina, Rádio Universidade FM, 07 jul. 2006. Programa de rádio.
523
Folha Universal, Rio de Janeiro, 07 nov. 1998, p. 6.
163
certa noite resolvi ligar o rádio e sintonizei um programa da Igreja
Universal. As palavras do pastor m e fizeram desistir da morte .
Naque le momento me a joelhei, comece i a chorar e a falar com Deus.
No dia seguinte, procurei a igreja e passei a seguir as orientações
do homem de Deus, que me ensinou a usar a minha fé, determinando
a cura na minha vida . H oje estou completamente curada da
enfermidade e meu c asam ento r estaurado.
5 2 4
Não obstante o uso recorrente da televisão para veiculação de sua
mensagem, parece ser inconsistente a conceituação que se tornou de certa forma
convencional entre pesquisadores do fenômeno religioso no Brasil de que a IURD seja
classificada como “igreja eletrônica”, pois é decisivo em suas práticas o templo como local
de ritos, reuniões e atendimento ao público. O bispo João Batista Ramos, ao ser entrevistado
pela Folha de S. Paulo sobre os “telepastores” norte-americanos, confirma essa perspectiva:
somos frontalmente contra a igr eja e le trônica. Se você quiser
comprar carne, vai ao açougue. S e quiser compra r um remédio, vai à
drogaria. Se quiser um encontro ma is íntimo com Jesus, precisa ir à
igreja. Ca so se comunique só pela televisão, o pastor se distancia de
suas ovelha s.
5 2 5
3. 4 - Os milagres do dinheiro e dinheiro dos milagres nas práticas iurdianas
A trajetória de vida de Macedo revela curiosa proximidade com números.
Aos 17 anos ingressou como office-boy na Loterj - Loteria do Rio de Janeiro - trabalhando
durante dezesseis anos como funcionário público. Deixou a carreira no funcionalismo
somente em 1977, quando exercia a função de agente administrativo, para se dedicar
exclusivamente à IURD. Diferentemente da maioria dos líderes pentecostais, freqüentou, no
começo dos anos 70, os bancos universitários. Estudou Matemática na Universidade Federal
Fluminense e Estatística na Escola Nacional de Ciência e Estatística, sem, contudo, concluir
os respectivos cursos. Disto talvez decorra o fato de existir em Macedo, por trás da figura
eclesiástica, também a de um empreendedor sempre à vontade com números e balanços
contábeis. Tal preparo deve, naturalmente, ter contribuído para que viesse a ser reconhecido
como negociador habilidoso, também no âmbito eclesiástico. Ricardo Mariano ainda observa
tal característica, associando a projeção do movimento iurdiano à figura do seu líder,
destacando a controvertida, mas funcional atuação desempenhada:
Parte do sucesso da I URD deve ser creditada a seu controverso
líder, bispo Edir Macedo, sobre o qual não há unanimidade.
Venerado por fiéis e subalternos, invej ado e criticado por
524
Folha Universal, Rio de Janeiro, 16 abr. 2006, p. 8.
525
Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 fev. 2003.
164
adversários religiosos e pastores concorrentes, a cusado pe la polícia,
pela Justiça e pela imprensa de charlatanismo, estelionato,
curandeirismo e de enri quec imento às custas da exploração da
miséria, i gnorânci a e credulidade a lheias. Edir vai, em pa rte graça s
ao Diabo que tanto ata ca, interpela e humilha, construindo a passos
largos se u império.
5 2 6
A projeção financeira da IURD, que acompanhou o ritmo acelerado da
multiplicação dos seus templos, também suscitou inúmeras polêmicas. Reportagens do início
da década de 90 calculavam a arrecadação financeira dos templos em “cerca de 150 milhões
de dólares ao ano”.
527
Na ocasião da aquisição da TV Record, estratégias de captação de
recursos ainda mais agressivas vieram à tona, a fim de garantir a compra dessa emissora e de
várias outras estações de rádio adquiridas no período. Mário Justino, então pastor da IURD,
relata sobre um megaculto promovido pela IURD no estádio de futebol da Fonte Nova, em
Salvador – BA, com a presença de Macedo:
O bispo, depois de r ecolhe r os envelopes com as ofertas,
denominadas de sacrifício, e com os pe didos de oração, que
seriam levados para o Monte das Oliveiras, em Jerusalém, pediu aos
seus se guidores baianos uma oferta especial para comprar uma
emissora de rádio em Salvador, assim como seus fiéis cariocas o
haviam contemplado com a Rádio Copacabana. Ser á que os
cariocas têm mais fé que os baianos? ref erindo-se à mul tidã o.
Não! – a resposta retum bou como um trovão. As ofe rtas viera m
então em forma de dinheiro e jóias. Passamos três dias tr ancados em
uma sala contando os sacos de dinheiro levantados no Fonte Nova.
No final, o dinheiro foi depositado na conta da Igreja, no Bradesco,
em Salvador. O ouro foi levado para o Rio de Janeiro e
transformado em barra s.
5 2 8
Um verdadeiro frenesi também foi causado na mídia pelas palavras de
Macedo, proferidas numa concentração de fiéis que lotou o Estádio do Maracanã, com
capacidade para mais de cem mil pessoas, na cidade do Rio de Janeiro: “Sacudam bem
obreiros [as sacolas de oferta], para eles verem que estão vazias e voltem quando
estiverem tão cheias quanto um saco de pipoca”.
529
Também foram impactantes as imagens
que mostraram Macedo – em uma gravação em fita de vídeo – orientando seus pastores sobre
como mobilizar os fiéis da Igreja a aumentar as contribuições financeiras. Tais imagens
mostravam Edir Macedo, numa chácara, jogando futebol juntamente com a maior parte da
liderança de sua igreja. Ao final daquela atividade, informalmente, ele passou a orientar os
526
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando. São Paulo: USP, 1995, p. 42, 43.
250 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade
de São Paulo, 1995.
527
Revista Veja, São Paulo, 17 jul. 1991.
528
JUSTINO, M. Op. cit., p. 49.
529
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 dez. 1988.
165
pastores sobre como deveriam agir na arrecadação de ofertas e na ousadia de conduzir a
massa de fiéis:
Você tem que chegar e diz er: ó pessoal! Você vai ajudar agora na
obra de Deus. Se quiser ajudar, amém. Se você não quiser aj udar ,
então Deus vai ajudar outra pessoa a ajudar, amém! Ou dá ou desc e!
Entendeu como é que é? Porque aí o povo vê c oragem em você. O
povo tem que ter confiança no pastor. Quer ver o pastor brigando
com demônio! Se você mostra aquela maneira chocha, o povo não
vai confiar em você. (...) Tem que ser o super-herói para o povo e
dizer: Olha pessoal, vamos fazer isto aqui? É o grande desafio. Eu
fiz isso. Eu peguei a Bíblia e disse: O h! Deus! Ou o Senhor honra a
sua palavra (...) e então joguei a Bíblia, que se despedaçou no chão.
Fiz isso na igreja e na televisão. Então isso cha ma a atenção. O
povo diz: Esse aí, pô, briga até com D eus! Cuidado, heim! Então
tem aqueles que são tradicionais e dize m: Hi! Esse aí é um falso
profe ta... esse aí, então, não vai ser abençoado. Agora, têm outros
que di ze m: Puxa, há quanto tempo que eu queria isso, poxa, eu
estou cansado de ler a Bíblia, de ler tantas palavra s e não acontecer
nada na minha vi da. Então esse vai fi ca r do nosso lado. É tudo ou
nada! E ele põe tudo lá. Quem embarcar está abençoado. Quem não
embarcar fica. Então você nunca pode ter vergonha, timidez. Peça,
peça, peça. Se, tem alguém que não quer dar, há um montão que vai
dar. (...) O povo está cansado de falsa humildade. O padre é tão
humil de, e não dá nada, não oferece na da. O pa dre com aquela
maneira ( ...) e nós vamos l á, é isso mesmo, (sic) e bota pra quebrar,
e vira cambalhot a, e faz o povo f ic ar louco (...). Vejam o caso de
Moisé s, que se apresentou perante o povo com um cajado na mão
aquele mesmo que ele havia usado para abri r o Mar Vermelho e
fazer t antos milagres no deserto - e perguntou: acaso pode sair
água dessa pedra? Ele bateu com o cajado na r ocha e então jorrou
água e o povo ficou ma ravilhado. É também isso que vocês precisam
dizer ao povo: quem aqui tem um cajado? O cajado é a fé e o toque
na rocha signif ic a a oferta de dez mil, cinc o mil ou dois mil
cruzados novos... Desafiem: se você tem o cajado, então use -o
agora! Assim, as pessoas vão dar a ofe rta e o milagre vai
acontecer...
5 3 0
Vários jornais e revistas, na ocasião, reproduziram denúncias sobre esse
tema, como por exemplo, a revista Isto É (27/01/1996) e a Folha de S. Paulo (02/01/1996),
que publicaram reportagens, apontando aspectos empresariais e de exploração financeira
praticados pela IURD e apresentando dados de arrecadações, consideradas “exorbitantes”, de
vários templos iurdianos.
Edir Macedo juntamente com a IURD também têm sido alvo de diversos
processos criminais sob acusações de práticas escusas envolvendo dinheiro, tais como
charlatanismo, vilipêndio do culto religioso etc.
531
Exemplo disso se deu no dia 24 de maio
de 1992, quando Macedo foi preso em São Paulo, acusado de charlatanismo, curandeirismo e
530
Fita de deo gravada pelo ex-pastor iurdiano Carlos Magno de Miranda e levada ao ar pela Rede Globo de
Televisão, em horário nobreno Jornal Nacional - poucos dias antes do Natal de 1995. Esses episódios vieram
a público durante a polêmica entre a Rede Globo de Televisão e a IURD, no segundo semestre de 1995.
531
Ver JUNGBLUT, Airton Luiz. Deus e nós, o diabo e os outros: a construção da identidade religiosa da Igreja
Universal do Reino de Deus. Cadernos de Antropologia, Porto Alegre, UFRGS, n. 09, p. 45-61, 1995.
166
estelionato. Sua prisão teve origem num inquérito aberto, em 1989, por cinco ex-fiéis
alegando terem doado dinheiro e bens à igreja em troca de milagres, que não teriam ocorrido.
O Ministério Público de São Paulo acatou a denúncia e determinou a prisão. Mas três dias
antes de ser detido, Macedo também fora indiciado com base no artigo 15 da Lei do
Colarinho Branco, acusado de usar a IURD como instituição financeira clandestina.
532
A
acusação principal era de que o bispo teria adquirido grande patrimônio, graças à sua
atividade frente à Universal. Segundo o Ministério Público, o patrimônio pessoal de Macedo
chegava, em 1992, ao equivalente a 100 milhões de reais. Vale observar que, antes, esse
mesmo tribunal, a 21ª Vara Criminal de São Paulo, havia absolvido Edir Macedo em
outros dois processos. Um deles, que tratava de ataques contra cultos afro-brasileiros,
acusava quatro pastores da IURD de terem invadido um templo de umbanda em Diadema,
município da grande São Paulo, em abril de 1990. Nesse processo, Macedo foi acusado de
estimular publicamente os ataques a adeptos daquela religião que, segundo ele, eram
“adoradores do demônio”. Num outro inquérito, o bispo era acusado de vender “óleo bento”
aos fiéis que participavam dos cultos de sua igreja.
533
Traduzida como símbolo da existência de perseguição religiosa no país, sua
prisão também foi capaz de mobilizar fiéis, pastores e políticos evangélicos. Em primeiro de
junho de 1992, preso oito dias, “cerca de dois mil fiéis da IURD formaram uma corrente
humana em volta da Assembléia Legislativa de São Paulo para protestar contra a sua
detenção”.
534
Entendendo ser esta uma questão de liberdade religiosa, líderes evangélicos
também reagiram imediatamente. Logo vários políticos, evangélicos e não evangélicos,
solidarizaram-se com Macedo. Curiosamente, até mesmo alguns dos segmentos religiosos
que se sentiam concorrencialmente ameaçados pela atuação da IURD, uniram-se naquele
momento, em prol de um interesse comum. Duzentos pastores protestaram na Assembléia
Legislativa de São Paulo, argumentando que a prisão fora manipulada por grupos ligados ao
setor de comunicações que a propriedade da Rede Record estava ameaçando, e os setores
religiosos, que estavam tendo seus membros captados pelo discurso da Universal. Reunidos
no interior da Assembléia, os pastores, representando 34 igrejas, e 30 deputados redigiram
documento repudiando o ocorrido, o qual apresentava o seguinte teor:
O Brasil vive nos últimos dias momentos de preocupação no que diz
respe ito aos direitos de expressão religiosa e suas garantias
constituc ionais. Os 35 milhões de evangélicos em todo o país
532
O Globo, Rio de Janeiro, 25 maio 1992.
533
Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1995.
534
MARIANO, R. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando, p. 61.
167
exigem o cumprimento da Constituição e o fim de todo ti po de
discriminação religiosa.
5 3 5
Doze dias depois, Macedo foi solto. Vale ressaltar a habilidade sempre
demonstrada por ele em lidar com as “regras do campo”, fato que lhe tem permitido grande
capacidade de reverter obstáculos em benefício do grupo. Quando esteve preso, representou
bem o papel de vítima, recorrendo comparativamente à imagem de sofrimento de Cristo e dos
apóstolos. Dizia-se “orgulhoso de estar preso em nome de Deus”. Atrás das grades, ao
conceder entrevistas ou deixar-se fotografar, aparecia lendo ou portando uma Bíblia. Até bem
pouco tempo, quem tomava a Folha Universal para uma primeira leitura teria sua atenção
despertada para uma imagem: em seu logotipo uma foto do bispo em uma cela de presídio,
fazendo a leitura da Bíblia. A imagem no jornal ajuda a preservar e a manter vivo na
memória dos fiéis o ato heróico do seu líder, cuja confiança se observa no depoimento de um
obreiro da IURD:
O bispo não mente conforme as revistas e a televisão dizem por aí .
Ele é um servo de D eus, dedi ca do, honrado, infelizmente, cai u nas
garras da mídia, mas Deus fala através dele e as pessoas que têm fé
crêem nisso. Eu acredi to em tudo o que o bispo Macedo fala, pois
sei que e le é i lumina do, inspirado por Deus.
5 3 6
A confiança em seu líder, diante das experiências adversas que enfrentou, é
destacada pela Igreja:
Calúnia s, injúrias, difamações e ataques gra tuit os somam-se a uma
lista imensa de adversidades vividas pelo bispo Edir Macedo.
Embora nunca se tenha aprovado nenhuma das ac usaçõe s, ele não se
deixou aba ter por nenhum a delas. Como lema principal de seu
ministério, o bispo vive aquilo que prega e, di ante das dif ic uldades,
não se mostra nem mesmo cansado. O segredo, segundo ele é o
emprego da fé sobrenatural, pois seus sonhos nunca foram baseados
em e moções, mas sim na c erte za de que com seu tra balho, aliado à
ação do poder de De us, tornariam-se realidade.
5 3 7
Ao se sentir afrontada pelas acusações de charlatanismo e abuso da
popular, pela mídia e demais segmentos religiosos, a IURD também reagiu. Nos cultos, os
jornalistas passaram a ser identificados como enviados do Diabo. Os fiéis receberam
expressas orientações para não lerem nem darem crédito às notícias veiculadas na imprensa
sobre a Igreja Universal e seus pastores, e de igual forma, para também não concederem
entrevistas ou emitirem opinião a jornalistas sobre a Igreja:
Em meados de 1994, convictos ou tomados por paranóia de que
havia uma conspiração em andamento para destruir a Universal,
535
Id., ibid.
536
João Luís M. Depoimento concedido em ago. 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte.
537
http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 03 mar. 2005.
168
líderes da denominação proibira m todo e qualquer membro ou pastor
de dar entrevistas ou esclarecimentos a quem quer que soli citasse.
Além de j orna listas, pe squisadore s passaram a não ser benquistos.
5 3 8
Em um grande evento realizado no estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, na
ocasião, Edir Macedo, em tom combativo e convocatório, exclamou: Estamos sendo
castigados e perseguidos pela imprensa como cão danado. Eles querem arrancar nossa
cabeça. Mas isto só aumenta a nossa fé”.
539
3.5 – Interesses do gesto desinteressado: a economia de oferenda nas práticas iurdianas
Devido à grande demanda dos que recorrem aos espaços sagrados sob seu
comando, inegavelmente muito trabalho a ser feito pelos líderes da Igreja Universal. Por
isso, permanecem diariamente de plantão nos templos. Lidam no dia-a-dia com os mais
diferentes dramas das pessoas que ali chegam. Não têm folga, dormem pouco, vivem
atarefados com os cultos, programas de rádio e TV, vigílias, entre outros. Não se sabe ao
certo sobre a remuneração que recebem. Apenas que têm suas despesas cotidianas custeadas
pela Igreja tendo direito ainda a moradia, telefone, carro, escola paga para os filhos. Segundo
a linguagem de Bourdieu, criou-se uma representação de que os agentes especializados do
sagrado não precisam mais se ocupar com a produção de sua existência material, pois seu
sustento é assegurado pelos serviços religiosos os quais estão socialmente autorizados a
desempenhar. Ademais, a alquimia em relação a tais pastores se mostra eficaz à medida que a
ostentação apresentada de um estilo de vida próspera e bem sucedida, acaba se convertendo
favoravelmente em seu favor no sentido de referendar o discurso proferido sobre a
prosperidade, acenando positivamente aos fiéis ao mostrar a possibilidade de semelhante
performance.
É possível observar uma economia de produção e circulação de bens
simbólicos nas práticas da IURD. Uma primeira característica a se destacar dessa
operosidade refere-se à denegação do interesse econômico possibilitada por uma “economia
de oferenda” que ali ocorre. Se, em relação aos fiéis iurdianos, o dinheiro e a se
amalgamam em sedutora proposta de acesso à prosperidade e riqueza, o mesmo não se
quando este assunto envolve os líderes, os quais são vistos no âmbito do grupo como agentes
“desinteressados” pelos bens materiais. Nesse sentido, lembra Bourdieu que, embora não
exista ato desinteressado”, uma das principais características do campo religioso e também
538
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: os pentecostais estão mudando, p. 58.
539
Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 9 out. 1990.
169
dos campos culturais - é o revestimento eufêmico de desinteresses quanto ao acúmulo de
riquezas e poder. Ao descrevê-los, Bourdieu destaca que devem ser considerados como “um
mundo econômico invertido”,
540
ou seja, um mundo econômico que substitui interesse
econômico pelo desinteresse estético. Entende o autor que uma economia da produção
simbólica, mas que funciona com parâmetros opostos aos do campo econômico:
Há um a inversão dos valores ou dos interesses que regem o ca mpo
econômi co dentro dos campos cultur ais; por exemplo, há o
desintere sse estético ou intelectual contra a busca de benefíc io, de
lucro econômico; a gratuidade do gesto c ontra a utilidade da
produção; a arte pela arte contra a circ ulação e a acumulação de
dinheiro.
5 4 1
No campo religioso, pois, quanto maior a separação entre os agentes
especializados na produção e reprodução de bens religiosos e os demais membros da
sociedade, tanto maior a autonomia do campo e mais forte a aparência da instituição como
acima dos interesses mundanos, gerando assim um eufemismo de que a religião paira sobre
ela e refere-se apenas ao sobrenatural. Dessa forma, supõe-se que os agentes que atuam no
referido campo sejam “desinteressados” do interesse econômico, repousando suas práticas na
economia da oferenda, no voluntariado, no sacrifício, pois não teriam uma “profissão”, e sim,
um serviço prestado à divindade. Essa alquimia da oferenda pode ser observada tanto no
discurso dos próprios líderes quanto no reconhecimento pelos fiéis. O bispo Marcelo Crivela,
quando interrogado sobre a posse de bens pelos líderes da Igreja, respondeu:
Desde criança gosto de conforto, mas tenho ódio de luxo. (...) O que
ocorre na Igre ja Universa l é que nenhum pastor tem posses ou é
dono de qualquer coisa. Mesmo os que trabalham no exterior ou no
Brasil e vi vem em situação melhor não são donos. O ca rro do bispo
Macedo, sua casa, tudo pertenc e à Igreja. Ninguém tem poupança,
exatamente porque cremos que este é o sabor que nós temos. No
Antigo Testamento, os levitas fizeram uma aliança de sa l com
Deus , segundo a qual abririam mão de posses materiais, sendo que,
em contrapartida não lhes faltaria nada. De igual modo isto hoje
também nos dá a utoridade para subir no púlpi to e pedir ao povo que
entregue o dí zimo e dê ofer ta.
5 4 2
Também o bispo Macedo, quando pressionado por denúncias da mídia
acerca de ostentação de riquezas, alto padrão de vida e preferência por carros luxuosos como
Mercedes e BMW, respondeu apontando para o exemplo católico: “O Papa mora e utiliza um
palácio em representação da sua igreja, e ninguém se importa com isso”.
543
E, orientando-se
pelas regras do campo, assim se expressou em uma entrevista: “Se eu fosse interessado em
540
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 141.
541
Id., ibid.
542
Revista Eclésia, ano V, n. 50, p. 11, jan. 2000.
543
Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 out. 1991.
170
dinheiro não seria pastor, seria político, com bom salário e mordomias (...) O Brasil ainda é
uma província e a imprensa não traduz a verdade”.
544
Ao se queixar da “perseguição” movida
pela mídia contra ele e sua igreja, argumentou:
Não deveriam ser tratados como ladrões e chantagistas aquel es que
dedicam suas vidas para servir o outro. O título de mercantilista não
cabe a nenhuma organização religiosa que estej a inserida em um
sistema no qual sem dinheiro nada se pode fa zer; muito ma is quando
este sistema é injusto, corrupto, sujo e, pior, aceito, propagado e
imposto aos cidadãos, no uso de uma racionalidade mentirosa ,
hipócri ta, maldosa e sem De us.
5 4 5
A eficiência desse processo de alquimia veiculada pelos líderes iurdianos
também se observa na capacidade de transfigurar as instituições sociais - que são construções
humanas, culturalmente estabelecidas em instituições de origem sobrenatural. Por isso,
diante de críticas ou de questionamentos quanto à sua atuação, Edir Macedo afirma:
Ninguém tem o direito de se volta r cont ra a autoridade instituída
por Deus, pois é o próprio Deus que tem que tomar as devidas
providênc ia s para fazê -l o sair ou permanec er na condiç ão de
autoridade e spir itua l, mas nunca e jamais, ninguém deve nem pensar
em se coloc ar no lugar de Deus e procurar tomar providências
contra o ungido do Senhor ! E muito menos tecer comentários
negativos a r espe ito daquela autoridade e spiritual.
5 4 6
Esse reconhecimento da “vocação divina”, ou de prestação de serviço à
divindade, também ocorre em relação aos demais obreiros:
A exper iência de ser um obreiro ou uma obreira na IURD, onde se
luta diariamente com os demônios, é a base para que esse trabalho
evangelístico, feito com muito amor, cresça cada vez mais em todo
o mundo. Os obreiros têm uma atuação indispensável, porque sã o os
cartões de visita da I greja e desempenham as mais variadas funções.
Fazem tudo isso por amor a Jesus. Não recebem salário; é um
trabalho voluntário. Para os que são conve rtidos, ser obreiro é
considerado um privilégio, porque c ompr eendem que são escolhidos
por Deus para essa missão.
5 4 7
A economia de oferenda transfigura noções de “exploração financeira” em
relação aos membros do grupo, conforme declara o pastor iurdiano J. Cabral:
Nenhum líder da Igreja Unive rsal força as pessoas a contribuír em .
Pedem como fa zem todas as igrejas, e talvez insistam mais do que
em algumas, porque compreendem a necessidade e a ur gênc ia de
ganhar o mundo para Jesus Cristo libertando as pessoas das garras
do m aligno. As pessoas são orient adas a contribuir com amor e
aprendem que Deus a ma ao que dá com a le gria ( II Cor. 9:7).
5 4 8
544
O Globo, Rio de Janeiro, 29 abr. 1990.
545
Folha Universal, Rio de Janeiro, 15 out. 1995.
546
MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1986, p. 76.
547
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 08 abr. 2005.
548
Jornal Soma, Goiânia, - GO, ano 4, n. 9, dez. 2000, p. 8.
171
O bispo da IURD, João Batista Ramos, em entrevista concedida a um
programa da TV Record, referindo-se ao episódio da apreensão das malas com dinheiro -
anteriormente mencionado - afirmou:
Os fiéis da igreja entr egaram este dinheir o espontaneamente, não
foram forçados a fazê-lo. Ofertaram voluntariamente a Deus at ra vés
da igreja, pois sabem que a igreja ir á administrá-lo para expansão
do reino de Deus na terra. O dinheiro das of ertas é o sa ngue da
igreja.
5 4 9
Para evitar situações constrangedoras, a Igreja Universal, logo depois
daquele episódio, apressou-se em providenciar meios mais privativos para o transporte das
quantias arrecadadas em seus mais de 5 mil templos próprios espalhados pelo país.
Recentemente, comprou uma frota de 70 carros blindados de uma locadora que precisava se
desfazer dos automóveis: “os veículos, discretos e seguros, já circulam diariamente pelas ruas
e avenidas de diversas cidades do país, recolhendo sacos e mais sacos de dinheiro doados nos
templos” – ressalta uma reportagem.
550
Ainda como defesa dessas acusações sofridas, a Igreja vem semanalmente
estampando em seu jornal reportagens que denotam perseguição em razão de seu crescimento
e projeção:
O clima de perse guiç ão à IURD não passa despercebido pela
população brasileira, que vem acompanhando o caso at ra vés das
sucessi vas e dições da Folha Universal, que , em sua tiragem de
quase dois mi lhões de exemplares semanais, alerta sobre a atitude
de Lula, que tem cl ar o objetivo de desviar a atenção dos sucessivos
escândalos polít icos envolvendo o seu governo. Enquanto isso, as
ofertas da Igreja Universal permane ce m retidas.
5 5 1
Segundo a IURD, não é segredo que o seu crescimento sempre assustou os
“manipuladores da opinião pública”. Para tentar deter esse avanço, “a Rede Globo promoveu
várias campanhas difamatórias contra a igreja e contra o bispo Edir Macedo”. Por isso, a
origem do dinheiro, “já comprovada e o seu transporte, feito por pessoas devidamente
autorizadas, não caracterizam um crime, de acordo com a Constituição Federal” ressalta a
Igreja.
552
Essa dualidade da economia da oferenda não deve ser vista como
duplicidade, como hipocrisia ou como relação de “enganador” e “enganado”, pois se trata de
um recalcamento coletivo fundamentado na orquestração do habitus de todo o grupo: “o
549
Fala Que Eu Te Escuto. São Paulo, Rede Record, 15 jul. 2005. Programa de TV.
550
Revista Exame, ano 40, n. 17, p. 20, 30 ago. 2006.
551
Folha Universal, Rio de Janeiro, 31 dez. 2005, p. 1.
552
Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 dez. 2005, p. 6.
172
trabalho coletivo de recalque é possível se os agentes são dotados das mesmas categorias
de percepção e de avaliação” – afirma Bourdieu.
553
E acrescenta:
A reconversã o permane nte do capital ec onômic o em capital
simbólico (...) só pode ter sucesso com a c um plicidade de todo o
grupo: o trabalho de denegação que está na origem de alquimia
social é, c omo a magi a, um empr eendimento c oletivo.
5 5 4
[grifo nosso]
Daí a força representativa de confiança que ostenta o líder, por exemplo,
demonstrar-se inabalável perante os fiéis, como se pode observar na resposta de um dos
membros iurdianos a uma revista de circulação nacional quando interrogado sobre o que
achava das acusações que a imprensa fazia em relação ao bispo Macedo e as origens obscuras
do dinheiro arrecadado para a compra da TV Record:
Se realmente o Bispo houvesse roubado, ele não seria o homem com
a vida abençoada que tem. Além disso, a grande obra da Igreja
que é de Deus e não do Bispo também não cresceria, pois ele
estaria roubando de Deus (...) De us nunca abençoar ia um ladrão e o
Bispo Mac edo sa be disso (...) ele sabe que, se roubar, perde tudo.
5 5 5
De acordo com Bourdieu,o discurso religioso que acompanha a prática é
parte integrante da economia das práticas como economia de bens simbólicos”, por isso essa
ambigüidade se torna uma propriedade geral da economia da oferenda, na qual “a troca se
transfigura em oblação de si a uma espécie de entidade transcendente”.
556
Nesse aspecto, as
tarefas sagradas são irredutíveis a uma codificação puramente econômica e social: “o
sacristão não exerce um ofício; ele realiza um serviço divino” lembra Bourdieu. Ressalta
ainda que a questão de saber se nisso ou não cinismo desaparece inteiramente, se
percebermos que tal ocorrência faz parte das próprias condições de funcionamento e de êxito
da empresa religiosa, segundo as quais os agentes religiosos acreditam no que fazem e não
aceitam a definição econômica estrita de sua ação e de sua função.
557
Ainda aqui a definição
ideal que os dignatários da igreja defendem faz parte da verdade da prática. A empresa
religiosa, nesse sentido, obedece aos princípios da economia doméstica, da qual aquela é uma
forma transfigurada (com o modelo de troca fraterna), ou seja, as relações de produção
funcionam de acordo com o modelo das relações familiares:
As instituições r eligiosa s trabalham permanentemente, tanto prática
como simbolicamente, para eufe mizar as relações sociais, aí
incluídas as relações de e xploração (como na família),
553
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. p. 199, 200.
554
Id. A produção da crença, p. 211, 212.
555
Revista Veja, apud Bonfatti, P. Op. cit., p. 32.
556
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 191.
557
Id., ibid., p. 192.
173
transfigurando-as em relações de parentesco espiritual ou de c renç a
religiosa, através da lógic a da benemerência.
5 5 8
Ressaltando esta característica paradoxal da economia da oferenda, da
benemerência, do sacrifício, Bourdieu cita o caso da igreja católica como exemplo:
(...) essa empr esa (a Igreja Católica) com dimensões econômicas,
fundada na recusa do econômico, e stá mer gulhada em um universo
no qual, com a generalização das trocas monetárias, a procura da
maximização do lucro tornou-se o princípio da maior parte das
prática s cotidianas, de modo que qua lque r agente religioso ou não
religioso te nde a avaliar em dinheiro, ainda que implicitamente, o
valor de seu trabalho e de seu tempo.
5 5 9
O comentário que esse autor faz em relação ao que ocorre na Igreja Católica
pode ser perfeitamente aplicado ao caso da IURD: embora a igreja seja uma empresa
econômica, nega-se como tal, sendo esta ambigüidade uma propriedade geral da economia da
oferenda:
O templ o funciona, assim, objetivamente como uma espécie de
banco, que não pode, no entanto, ser percebido ou pensado como
tal, e até sob a condição de que não seja nunca visto como tal. A
empresa religiosa é uma empresa com dimensões econômicas que
não pode se confessar como tal e que funciona em uma e spécie de
negação permane nte de sua dimensão ec onômic a.
5 6 0
Acrescenta-se a isso um exemplo mencionado por Bourdieu, referente ao catolicismo, mas
que bem pode se aplicar ao caso iurdiano:
Assim, fiquei surpreendido pelo fato de que, cada vez que os bispos
adotava m, a respeito da economia da igreja, a linguagem da
objetivação, falando, por exemplo, ao descrever a pastoral, do
fenômeno da ofer ta e da procura , eles riam : (...) não produzim os
nada, não vende mos nada [riso] não é mesmo? (...).
5 6 1
3.6 - O poder simbólico do carisma nas práticas iurdianas
De acordo com Bourdieu, nas sociedades contemporâneas os campos são
espaços onde são travadas lutas concorrenciais “entre os atores em torno de interesses
específicos que caracterizam a área em questão”.
562
Nas batalhas empreendidas, os agentes
“dominantes e dominados” disputam o capital existente no respectivo campo:
A estrutura do campo pode ser apreendida tomando-se como
referênci a dois pólos opostos: a dos dominante s e a dos dominados.
Os agentes que ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles que
558
Id., ibid., p. 194.
559
Id., ibid., p. 183.
560
Id., ibid., p. 192.
561
Id., ibid., p. 184, 185.
562
ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983, p. 19.
174
possuem um máximo de capital social; em cont ra partida, aqueles
que se situam no pólo dominado se definem pela ausê ncia ou pela
raridade do capital social específic o que determina o espaço em
questão.
5 6 3
Como observado anteriormente, a Igreja Católica ocupou, desde o
período da colonização, posição dominante no campo religioso brasileiro na maior parte da
história do país, constituindo-se “uma ortodoxia que pretende conservar intacto o capital
social acumulado”. Mas, como pressupõe a própria estruturação do campo, “ao pólo
dominado correspondem as práticas heterodoxas que tendem a desacreditar os detentores
reais de um capital legítimo”.
564
Dessa forma, a hegemonia católica, que começou a ser
alterada, ainda que de forma bastante insipiente, com a presença do protestantismo, em
meados do século XIX processo esse intensificado em meados do século XX, com a
explosão do pentecostalismo sofreu maior impacto com o advento do neopentecostalismo
iurdiano. Essas transformações no campo acirraram os conflitos entre a ortodoxia católica e a
heterodoxia de um movimento novo:
A chegada de qua lque r novo agente no interior de um campo
provoca, necessariam ente , o deslocamento das instituições ali
estabelecidas. Por isso, a estr atégia do recém-chegado é, se não
conseguir alianças, contestar e desbalizar o já existente. Os novos
pregadore s te ndem a vestir a roupagem dos profetas, encarando a
retóric a da novidade e da transformação, denunciando os demais
como meros sacerdotes. As mudanças ocorridas no interior do
campo religioso, desde a vida dos pentecostais, refletem os
conflitos e lutas desencadeadas a partir da tensão entre os
estabelecidos e os arrivi stas.
5 6 5
Pode-se dizer que esses conflitos são protagonizados pelos representantes
da religião e pelos agentes da magia ou da profecia. Nesse processo, a expressão religiosa
que está buscando o seu estabelecimento no campo tende a ser classificada como “magia ou
feitiçaria” pela instituição dominante, que a considera como uma “religião inferior, logo
profana e profanadora”:
Todo sistema simbólico está predisposto a cumprir uma função de
associação e de dissociaçã o, ou melhor, de distinção, um sistem a de
prática s e crenças e stá fadado a surgir como magia ou como
feitiçaria, no sentido de religião inferior, todas as ve zes que ocupar
uma posição dominada na estrutura de relações de força simbólica,
ou seja, no sistema da s relações entr e o sistema de práticas e de
crenças próprias a uma formação social dete rminada.
5 6 6
563
Id., ibid., p. 21.
564
Id., ibid., p. 22.
565
CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. Op. cit., p. 96.
566
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 43, 44.
175
No caso da Universal, o seu desenvolvimento está diretamente associado à
ocupação de espaço simbólico de seus líderes. Perante o grupo, são vistos como um
curandeiro, um benzedor, um exorcista ou taumaturgo, enfim, um “iluminado” que, com o
transe místico e o êxtase físico, enfrenta a maldade, desmancha feitiço ou então o localiza
identificando o sujeito causador das aflições de seus devotos: o Diabo. Isso faz que sejam
procurados tanto por seus conhecimentos práticos - espécie de segredos quanto pela crença
em sua capacidade taumatúrgica: exercício de dons espirituais ou sobrenaturais. Acredita-se
que possuam faculdade incomum de entrar em contato com o mundo espiritual, a partir do
que adquirem autoridade para oferecer tratamento aos males do corpo e do espírito:
sofrimentos físicos, aflições psíquicas, perturbações espirituais e premências sociais. Esse
poder ostentado pelo líder iurdiano outorga-lhe autoridade, reputação e méritos perante seus
seguidores:
O capital simbólico do líder religioso, enquanto agente social, se
apresenta como um crédito (no sentido, ao mesmo te mpo, de crença
e de confiança conc edida antecipadamente) posto à disposiçã o de
um agente pela adesão de outros agente s, que lhe r econhe ce m esta
ou aque la proprie dade valorizante .
5 6 7
Segundo Bourdieu, a alquimia produz, em proveito daquele que cumpre
com esses atos, um capital de reconhecimento que lhe permite ter efeitos simbólicos: “É o
que chamo de capital simbólico, atribuindo assim um sentido rigoroso ao que Max Weber
designava pela palavra carisma”.
568
Segundo Weber:
A expressão carisma deve ser compreendida como referi ndo-se a
uma qualidade extraordinária de uma pessoa (...) Autoridade
carismática, portanto, refere-se a um domínio sobre os homens (...)
a que os governados se submetem devido à sua crença na qualidade
extraordinária da pessoa específica. O feiticeiro mágico, o profeta
(...) são desses tipos de governantes para os seus discípulos,
seguidore s, etc. A l egitimidade de seu domínio se basei a na crença e
na devoção a o extraordinário, desej ado porque ultrapassa as
qualidades humanas normais e originalmente considerado como
sobrena tural. A legitimida de do domínio carismático baseia-se,
assim, na crença nos poderes mágic os, revelações e cult o de
herói.
5 6 9
Isto se viabilizou devido à existência do capital simbólico presente no
campo. Os agentes religiosos iurdianos, com um mínimo desse capital, obtiveram condições
de se engajar no campo religioso e, a partir disso, aumentar o seu poder de representação.
567
BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 103.
568
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 177.
569
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 340.
176
Esse capital simbólico, denominado carisma, portanto, torna-se nas práticas iurdianas um
poder simbólico:
O capital simbólico tem com o característica surgir em uma re laçã o
social entr e as propriedades possuídas por um agente e outros
agentes dotados de c ategor ia s de percepção adequa dos: ente
percebido, construído, de acordo com categorias de percepção
específicas, o capital simbólico supõe a existência de agentes
constituídos, em seus modos de pensar , de tal modo que conheçam e
reconheçam o que lhes é proposto, e creiam nisso, isto é, em ce rtos
casos, rendam-lhe obediência e submissão.
5 7 0
Na obra A Produção da Crença,
571
em que oferece uma análise crítica
sobre o processo de criação, circulação e consagração dos bens culturais, Bourdieu ressalta
que o princípio da eficácia de todos os atos de consagração o é outro senão o próprio
campo, lugar de capital simbólico socialmente acumulado.
Aquilo que define a estrutura de um campo num dado moment o é a
estrutura da distribuiç ão do capital entr e os diferentes agentes
engajados nesse campo. Muito bem, dirão, mas o que você e ntende
por capital? Só posso responder brevemente: cada ca mpo é o lugar
de consti tuição de uma forma espe cí fica de capita l.
5 7 2
Neste aspecto, vale dizer que a crença em poderes divinamente concedidos
a “indivíduos iluminados” é um dos componentes do capital simbólico do campo religioso
brasileiro. Assim, a representação do carisma configurada na IURD possui raízes fincadas na
longa duração, legadas pelo cristianismo. Já em seus primórdios, a cristã associou a idéia
de carisma ao vocábulo grego cháris”, que significa “dom” ou “graça divina”. Segundo
relatos bíblicos, no ambiente das primeiras comunidades cristãs tal elemento foi associado à
idéia de que determinadas pessoas são visitadas por um poder divino, mais especificamente
pela figura do Espírito Santo, com o propósito de desempenhar certa vocação ou missão. Em
uma experiência religiosa denominada “pentecostes”, segundo o relato bíblico do livro de
Atos, o Espírito Santo teria sido enviado como poder divino para revestir de dons os
primeiros cristãos. Desta forma, o carisma passava a significar o reconhecimento intuitivo,
por parte dos que eram denominados leigos, de que determinadas pessoas no interior do
grupo ostentavam a condição de iluminadas” ou santas”, sendo possuidoras de
determinados poderes extraordinárias em razão do seu contato mais íntimo com a divindade.
de se dizer que o cristianismo emprestou tal concepção de outras
matrizes religiosas e culturais. Primeiramente, do judaísmo, que preservava antigas tradições
com forte apelo de carismatismo. No ambiente do Antigo Testamento, juízes, profetas e reis
570
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 178, 179.
571
Id., ibid., p. 30.
572
BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 26.
177
eram vistos como especialmente possuídos pelo Espírito do Deus Iavé, para o desempenho de
suas funções. No advento da era cristã tais idéias estavam ainda muito presentes no cotidiano
do apocalipsismo judaico que projetava em líderes taumaturgos capacidade de cura, de
exorcismo e de controle sobre fenômenos da natureza. Em segundo lugar, das chamadas
“religiões de mistério” oriundas do Egito, da ria e da Pérsia, bastante difundidas e
popularizadas no mundo greco-romano quando do surgimento do cristianismo. Nos cultos,
com cerimônias secretas, acreditava-se que pessoas iluminadas eram possuídas por forças
divinas, podendo assim, em êxtase, mediar a cura de enfermidades físicas e estabelecer
comunicação com o mundo espiritual. A comunidade cristã, em parte, se apropriou desse
imaginário religioso, re-significando-o à luz do ensino apostólico. Terceiro, da idéia grega do
“homem divino”, ou do conceito romano de facilitas, que pressupunham a habilidade inata
do herói para levar um projeto ao sucesso, graças à sua ligação com o sagrado. Os gregos, de
acordo com suas mitologias, acreditavam que os deuses por eles adorados não estavam
separados dos homens por uma fronteira bem definida, razão porque alguns desses poderiam
ser colocados na comunhão divina, tornando-se filhos da divindade, podendo mediar
benesses sagradas aos que se punham sob sua liderança.
Bourdieu, ao fazer uma releitura de Weber, propõe um avanço na
compreensão do carisma ao associá-lo não ao indivíduo isolado, mas sim ao grupo em que se
desenvolve tal representação, mediante a força do capital simbólico e da crença existente no
campo:
O poder carismá tico, confe ri do a indivíduos supostamente dotados
de qualidades espe ciais que lhes assegura m uma irradiação social
excepcional, está base ado numa delegação de poder dos liderados
em benefício dos que lideram, que só faz exercer sobre aqueles o
poder que eles própr ios depositaram em suas mãos (...) É i sso que
explica o fato de que alguns indivíduos, dotados inicialmente de
talentos comuns, mas bem servidos por circunstâncias comuns,
tenham galgado posição de poder.
5 7 3
De acordo com Bourdieu,
574
certas disposições em relação ao mundo, certas
formas elementares de construção da realidade, constituem possibilidades antropológicas que
formam potencialidades, um poder simbólico estabelecido pela força da crença.
575
O “efeito
de constituição que opera a consagração desse capital consagrado e as condições sociais de
surgimento desse efeito”
576
é melhor detalhado nos seguintes termos:
573
BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 104.
574
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 218.
575
Id., ibid., p. 177.
576
Id., ibid., p. 187.
178
O capital simbólic o é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo
de capital, econômico, cultura l, social), per ce bida pelos agentes
sociais cujas categorias de percepçã o são tais que eles podem
entendê -las (percebê-las) e reconhec ê-la s, atribuindo-lhes valor.
(...) O capital simbólico é uma propriedade que, percebida pelos
agentes sociais dotados das categorias de perce pção e de avaliação
que lhes permite m percebê-la, conhecê -la e reconhecê-la, torna-se
simbolicame nte eficiente, como uma verdadeira força mágica: uma
proprie dade que, por r esponder às e xpec ta tiva s coletivas,
socialmente constr uídas, em re laçã o às crenças, exerce uma espécie
de ação à distância, sem contato físico (...) apoiando-se em
expectativas c oletivas, em crenças socialme nte inculcadas.
5 7 7
Ao formular essa compreensão do carisma na perspectiva do grupo,
Bourdieu se aproxima de Émile Durkheim, cuja preocupação não é com o ator socialmente
contextualizado, sempre individualmente motivado, mas sim com a dinâmica própria do
grupo carismático. Segundo Durkheim, o coletivo é o caso típico do sagrado: enquanto
pertence à sociedade, o indivíduo transcende a si mesmo, seja quando pensa ou quando
age”.
578
Para ele, o princípio criador é a participação conjunta em rituais sagrados, que
servem para integrar todos os participantes numa unidade. Na multidão, há uma participação,
mais do que de cooperação, mais do que competição; nela o poder supera a fraqueza, as
semelhanças sobrepujam as diferenças. No grupo, “os homens ficam mais confiantes porque
se sentem mais fortes; e realmente ficam mais fortes porque as forças que estavam
adormecidas despertam na consciência”.
579
Os campos da produção de bens culturais são, pois, “universos de crença
que podem funcionar à medida que conseguem produzir, inseparavelmente, produtos e a
necessidade desses produtos por meio de práticas.
É produzindo a raridade do produtor que o campo de pr odução
simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do criador
é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá
agir se não for mobiliza do por uma pessoa autorizada, ou melhor
ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além
de ser garantido por sua assinatura.
5 8 0
Com isso, desmistifica-se a autonomia do caráter sagrado do carisma
religioso, pois, sua produção é considerada resultado de um amplo empreendimento de
alquimia social, na qual colabora o conjunto dos agentes envolvidos no campo da produção e
circulação. Portanto, em relação ao carisma, pode-se dizer que o sucesso de tal alquimia se
577
Id., ibid,. 107, 177.
578
DURKHEIM, Émile. The elementary forms of religious life. Nova York: Free Press, 1965, p. 29.
579
Id., ibid., p. 387.
580
BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 154.
179
constitui na medida em que o aparelho de consagração e de celebração se torna capaz de
produzir e de manter tal poder simbólico bem como a sua necessidade:
Deve-se evitar a fé no poder carismático do criador: este limita-se a
mobil izar, em gra us e por estratégias diferentes, a energia da
transmutação simbólica (isto é, a autoridade ou a legitimidade
específica) que é i manente à totalidade do c ampo porque este
produz e a reproduz por meio de sua própr ia estrutura e de seu
próprio f unci onamento.
5 8 1
Pode-se citar o exemplo da “grife do costureiro” para se demonstrar a
importância do reconhecimento coletivo na construção de um poder simbólico:
A grife, simples palavra colada sobre um produto é, sem dúvida,
com a assinatura do pintor consagrado, uma das palavras do ponto
de vista si mbólico. (...) Mas, do mesmo modo que o poder da
assinatura do pintor não se e ncontra na assinatura, assim também o
poder da grife não está na grife, nem se encontra sequer no conjunto
dos discursos que celebram a c ri aç ão, o criador e suas criações,
contribuindo de f orma tanto mais eficaz para a valorização dos
produtos elogiados, quanto maior é a impressão suscitada de que
limitam a constatar tal valor quando, afinal, estão empenhados em
produzi-lo.
5 8 2
O habitus se torna responsável pela produção da estrutura coletiva do poder
carismático ostentado pelo líder, configurando-se num mecanismo essencial da socialização,
na medida em que os comportamentos e valores apreendidos são considerados óbvios,
naturais, quase instintivos; a interiorização permite agir sem ser obrigado a lembrar-se
explicitamente das regras que é preciso observar para agir.
583
Louís Pinto comenta tal aspecto
afirmando que “a noção de poder simbólico é um instrumento muito sensível
simultaneamente aos dois principais espaços que são próprios da sociologia de Pierre
Bourdieu: o espaço do habitus e o espaço do campo”, e acrescenta:
O ca pita l estabel ece uma relação e ntre habitus e o campo, agindo
como um poder que permite dominar um conjunto de potenc ia lida des
objetivas; por outro, ele existe segundo gra us de objetivação que
variam de modo contínuo, desde o saber incorporado numa técnica
até a obra que lhe dá a forma de uma c oisa , porém esperando ser
apropriada por agentes de terminados e di spostos a tanto, isto é,
dotado de disposições afins.
5 8 4
Mediante a orquestração do habitus - capaz de promover o efeito de
consagração - um mecanismo de “interiorização da exterioridade” torna capaz de adquirir
disposições para reproduzir-se espontaneamente, mobilizando energias do campo,
concentrando capital simbólico que, na forma de carisma, transforma-se em poder simbólico
581
Id., ibid., p. 155.
582
Id., ibid., p. 160.
583
BONNEWITZ, P. Op. cit, p. 77.
584
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 136.
180
na pessoa do líder. Promove-se, dessa forma, a transfiguração das relações de dominação e de
submissão em relações afetivas. O habitus, assim, permite explicar a plausibilidade que as
representações iurdianas passaram a ter para os seus adeptos, em meio a outras que surgiram
com proposta semelhante no mesmo período: somente a produção originada do consenso
coletivo do grupo, ainda que anônimo, obtém seu reconhecimento e legitimidade.
Portanto, a constituição de um poder carismático ocorre pela alquimia da
consagração e pela existência, no campo religioso, de crenças que promovem o revestimento
com caráter sagrado do que é produto humano. Em decorrência, estabelece-se uma forma de
dominação, porém transfigurada e, como tal, imperceptível perante o grupo liderado:
Torna-se necessário saber descobri-lo [poder simbólico] onde ele se
deixa ver m enos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto,
reconhecido: o pode r simbólico é, com efeito, esse poder invisível o
qual só pode ser exercido com a cumplici dade daqueles que não
querem saber que lhe sã o sujeitos ou mesmo que o exercem.
5 8 5
Em vista disso, denota-se que a relação social é também uma relação de
sentido, e não somente uma relação de força. Tal fato, em relação ao líder religioso da IURD,
supõe a mobilização de um poder simbólico, o qual consegue se impor com significações
legítimas, tendo a cumplicidade de todo grupo do qual faz parte. Comentando esse aspecto,
Chartier afirma:
A dominação simbólica se define como uma dom inação que não
supõe o recurso imediato à força, ela se define como a incorporação
dos princípios da dominaç ão, inclusive pelos dominados. I sto é
possíve l me diante siste mas de r epresentaç ões cole tiva s.
5 8 6
Poderia se aplicar a isso às considerações de Baczko quando propõe uma
imbricação entre imaginário, imagens e relações de poder, mobilizados em favor daquele que
lidera. Reporta-se, como exemplo, a Maquiavel, quando afirmou que “governar é fazer crer”,
ressaltando que tal expressão
põe em de staque as relações íntim as entre poder e imaginário, ao
mesmo tempo que resume uma at itude técnic o-instrumental perante
as crenç as e o seu simbolismo, em especial perante a r eligiã o.
Encontramos em Maquiavel toda uma teoria da s aparências de que o
poder se rodeia e que correspondem a outros ta ntos instrumentos de
dominação simbólica. As aparênci as fixam as esperanças do povo no
Prínc ipe (...) O Príncipe, rodeando-se dos sinais do seu próprio
prestígio e manipulando ha bilmente toda a espécie de ilusões
(símbolos, festa, etc .) pode desviar e m seu proveito as c renç as
religiosas e impor aos seus súditos o dispositivo de que retira o
prestígio da sua própria imagem.
5 8 7
585
BOURDIEU, P. O poder simbólico, p. 7, 8.
586
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 168.
587
BACZKO, B. Op. cit., p. 301.
181
Assim, a produção desses bens simbólicos consiste numa operação de
transubstanciação simbólica. No campo, líderes e fiéis passam a agir e a constituir-se pelas
regras nele existentes, criando a grife do nome e a necessidade do carisma. Em um processo
coletivo, “a criação carismática é uma ilusão bem fundamentada”:
588
O poder do criador nada ma is é do que a capac idade de mobilizar a
energia simbólica produzida pelo conj unto dos agente s
comprom etidos com o funcionamento do campo. (...) O trabalho de
fabricação propriamente dito nã o é nada sem o tr abalho coletivo de
produção do valor do produto e do interesse pel o produto, isto é,
sem o conluio objetivo dos inte resses que alguns dos agentes, em
razão da posição que ocupam em um campo orientado para o
produção e c irculação deste produto, possam ter e fazer circular tal
produto, celebrá-lo e, assim, apropriar- se dele simbolicamente, além
de desvalor iz ar os produtos concorrentes, isto é, celebrados por
concorrente s.
5 8 9
Pela apropriação de imaginários e mobilização de símbolos, a mensagem
dos líderes iurdianos torna-se autorizada por ser investida de autoridade pelo próprio grupo
de onde procede. Assim, pelo processo de transfiguração das relações sociais, as práticas e
representações religiosas não são na IURD simples camuflagem ideológica de instituições ou
de interesses de classes. São produções internas do campo religioso que, pelo efeito da
consagração, as tornam irreconhecíveis enquanto produção humana e arbitrária, assegurando
sua reprodução:
(...) os agentes sociais são agentes cognoscentes que, me smo quando
subme tidos a determinismos, contribuem para produzir a eficácia
daquilo que os determina, na medida em que e le s e struturam a quilo
que os de te rmina.
5 9 0
A eficácia do anúncio iurdiano deve ser buscada, então, no compósito
cultural, enquanto raiz, base e fundamento de sua operosidade, pois para se lançar num
campo um determinado agente precisa dedicar-se a ele, isto é, ter uma espécie de “vocação”
que permita esperar daí a satisfação de estar em harmonia com as expectativas.
591
Quem a
possui é por ela animado ou “possuído”, empenha sua pessoa, suas convicções e seus talentos
específicos, sem precisar que objetivos sejam impostos de modo consciente, calculado,
refletido:
Pois quem possui vocação encarna o a justamento entre as
probabilidade s objetivas oferecidas pelo campo e o capital que suas
disposições implica, sendo as escolhas explícitas feitas à base de
evidênc ia dóxica: esse indivíduo é solicitado a fazer algo que
parece feito para ele e que exige ser feito por ele. Os atos por
588
Id., ibid., p. 156.
589
Id., ibid., p. 163, 164.
590
BOURDIEU, P. ; WACQUANT, L. J. D. Op. cit., p. 143.
591
PINTO, L. Op. cit., p. 137.
182
realizar, longe de serem ante cipados por um pr ojeto, são
simplesmente sugeridos por um estado do mundo que encerra de
modo virtual a dialética dos possíveis objetivos e das
potenci alidades inscritas no corpo e na mente do indivíduo. As
condições de ê xito das pr áticas repousam sobre c renças que são
tanto mais eficazes e intensas quanto r eflete m a cumplicidade das
estrutura s obje tiva s e das disposições subjetivas.
5 9 2
Assim, pela crença nas relações sociais “bem terrenas”, por meio de uma
transfiguração, as práticas e representações religiosas são transferidas para o “absoluto”, o
“sobrenatural” ou o “transcendente”. Desse modo ocorre um processo de socialização que
possibilita a aceitação das práticas como se fossem disposições “naturais” e não socialmente
construídas, promovendo compatibilidade estrutural entre o sistema religioso e a sociedade
na qual ele existe, ainda que tal sistema religioso seja estruturalmente divergente dela.
593
Portanto, é preciso que o campo esteja constituído com os elementos
necessários para a configuração do capital simbólico do qual o líder se apropria e mobiliza
em seu favor, dando origem ao seu carisma. Da mesma forma que ocorre em relação ao
artista, é necessário existirem condições sociais para que o líder carismático pareça e
aparente.
594
O líder carismático iurdiano é, assim, construído no campo, modelando-o ao
passo que é também por ele modelado:
Se o mundo social, com suas divisões é algo que os agentes sociai s
têm a fazer, a construir, individual e sobretudo coletivamente, na
cooperação e no conflito, resta que essa s c onstruções não se dã o no
vazio social. A posição ocupada no espaço social comanda as
representações desse espaço e as t omadas de posição nas lutas pa ra
conservá- lo ou transformá -lo.
5 9 5
O carisma dos líderes iurdianos, portanto, configura-se pela mobilização do
capital simbólico existente no campo. Pela crença, o carisma se configura e é demonstrado na
medida em que compartilha um conjunto de “crenças das pessoas engajadas no campo”
596
nas
condições culturais em que se encontram os que a elas aderem, pois “sem uma resposta ao
anúncio, por mais estratégico que se proponha a ser, nenhum credo germina e cresce”.
597
Bourdieu cita Marcel Mauss para afirmar que é preciso que “as expectativas sociais” estejam
presentes, ou que os “espíritos estejam preparados”
598
para tal surgimento. Nesse sentido, os
592
Id., ibid., p. 136.
593
BERGER, Peter L. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo:
Paulinas, 1985.
594
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 188.
595
Id., ibid., p. 27.
596
Id., ibid., p. 177.
597
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil: uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes,
1995, p. 12.
598
Id., ibid., p. 188.
183
líderes iurdianos se encontraram socialmente predispostos a sentir e a exprimir, com uma
força e uma coerência particulares, disposições éticas ou políticas, presentes, de modo
implícito, em todos os membros da classe ou do grupo de seus destinatários”.
599
De forma incomum, a trajetória de Macedo e dos demais líderes que o
auxiliam, descreve a série de posições ocupadas, não sucessivamente, mas ao mesmo tempo,
por um mesmo líder no campo religioso, que assume representações diferentes e simultâneas
perante os seus fiéis. Isto se torna possível porque no caso de movimentos religiosos, “a
mensagem do fundador muitas vezes é ambígua. Na verdade, pode-se afirmar que os
fundadores têm êxito precisamente porque significam muitas coisas para muitas pessoas”.
600
É na estrutura relacional e no processo de mutação do campo religioso que se pode definir o
sentido e a dinâmica dessa conjugação de posições.
A seguir, uma análise mais detalhada das tipologias pelas quais o carisma
assume representações nas práticas iurdianas.
3.6.1 - O carisma do profeta
Em sua obra Economia e Sociedade,
601
dentre os tipos de agentes sociais
idealizados, Max Weber identifica o “carismático”, representado pela figura do profeta, do
guerreiro heróico, do revolucionário, que surge como líder em tempos críticos e a quem são
atribuídos poderes extraordinários e sobrenaturais. Podendo aparecer em qualquer sociedade,
a religiosidade carismática que se forma em torno desse líder tem grande preocupação com
valores imediatistas, tais como saúde, vida longa e riqueza. Nesse sentido, podem ser
destacados ao menos três aspectos em relação ao perfil “profético” do movimento iurdiano:
ruptura com os clichês institucionais de consagração; identificação com os dramas
vivenciados pelo povo; ação contestatória em relação aos demais agentes religiosos atuantes
no campo.
Primeiro, em relação ao rompimento com a instituição, vale considerar que,
de acordo com Bourdieu, no campo religioso a posição de destaque que certos agentes sociais
adquirem deve a sua eficácia de ação a uma dupla condição: por um lado, pela eficácia
simbólica do rito da instituição; por outro, através do processo de consagração popular a
partir do capital disposto no campo. Pelo poder de nomeação institucional, os líderes recebem
599
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 94.
600
BURKE, P. O que é História Cultural?, p. 130.
601
WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 1. Op. cit.
184
títulos ou rótulos oficiais, mediante o que “a instituição impõe um dever-ser aos agentes
consagrados, agindo sobre a representação que os receptores do discurso institucional têm da
realidade”.
602
É preciso, portanto, que os agentes a quem se dirige a instituição estejam
preparados para submeter-se aos seus veredictos é o caso dos sacerdotes. os profetas,
acumulam veredictos dispostos no campo em que estão inseridos, dos quais aparecem como
porta-vozes.
603
E, nesse sentido, no caso da IURD, seus líderes se tornaram produtores diretos
dos bens de seu mundo religioso; criaram seus próprios meios de relação direta com o
sagrado, rompendo ou eliminando as mediações sacerdotais do catolicismo ou do
clericalismo erudito postulado pelo protestantismo clássico.
A trajetória de consagração religiosa de Edir Macedo e de seus líderes
auxiliares, ocorre de modo sem precedentes no campo religioso brasileiro em relação ao
protestantismo e ao pentecostalismo clássicos. No caso do protestantismo histórico,
representado, por exemplo, pelas igrejas luterana, presbiteriana, batista e metodista, constata-
se que um critério institucional bem definido para a nomeação daqueles que devem
exercer a liderança pastoral. Após se inserirem no Brasil, a partir do século XIX, essas igrejas
receberam orientação religiosa de pastores estrangeiros, oficialmente designados pelos países
de origem. E, quando finalmente constituíram as suas primeiras escolas de formação
teológica, seguiram o modelo norte-americano ou europeu: pastores devem exercer este
ofício após cursarem teologia por um período de quatro a cinco anos, com a
complementação de mais um ano de licenciatura prática, sob a tutela de um pastor mais
experiente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o primeiro seminário teológico
protestante criado no Brasil, nas dependências de uma Igreja Presbiteriana, a 14 de maio de
1867. Os primeiros professores eram os pastores-missionários, todos de nacionalidade
estrangeira. A primeira turma foi constituída por três alunos brasileiros, que receberiam toda
a formação segundo a teologia e os dogmas da igreja-mãe norte-americana. Já em seguida, os
seus dirigentes providenciaram para que chegassem ao Brasil livros que comporiam a
primeira biblioteca para estudos e pesquisas. Foi assim que, em 1868, sob encomenda do
missionário Ashbel Green Simonton, fundador daquela escola, vieram não apenas obras
teológicas, mas também de Física e Astronomia. Segundo o pesquisador Júlio Andrade
Ferreira
604
além de matérias mais específicas do campo teológico, como Grego e Homilética,
602
BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 101.
603
Id., ibid., p. 102.
604
FERREIRA, Júlio A. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2 ed. v. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 1959,
p. 85; GOMES, Antônio Máspoli de Araújo. Origens e imagens do protestantismo brasileiro no século XI numa
perspectiva calvinista e weberiana. Ciências da Religião. História e Sociedade, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 71-106, 2003.
185
os alunos também tinham aulas de Álgebra, Aritmética, Inglês, Latim e Gramática
Portuguesa. Chamberlain ficou responsável pela coordenadoria de ensino e o curso completo
por ele elaborado tinha a duração de seis anos. Pouco tempo depois, em 1888, ao se expandir
para a região de São Paulo, a Igreja Presbiteriana do Brasil estabeleceu outro seminário
teológico na cidade de Campinas.
O que se observa nessas experiências é a preocupação de se formar líderes
com bom nível de conhecimento intelectual, tendo como referência a cultura estrangeira.
Assim, de origem norte-americana ou européia, perfil elitista e com uma mensagem
racionalizadora do mundo, o protestantismo clássico desenvolvido no Brasil demonstrou
desde o início ter grandes dificuldades para aproximar-se das camadas sociais mais
populares.
Não é muito diferente o caso do pentecostalismo clássico, desenvolvido no
país nas primeiras décadas do século XX. Observa-se que, apesar de haver menor rigor
quanto ao preparo teológico de seus líderes, ainda assim, no caso da Assembléia de Deus, por
exemplo, seus fundadores possuíam um curso teológico.
605
Mais tarde, em 1958, foi inclusive
fundado o Instituto Bíblico das Assembléias de Deus (IBAD), em Pindamonhangaba, interior
de São Paulo, onde se formam a cada ano, em média, 210 novos pastores que vão comandar
os mais de 180 mil templos que essa igreja hoje a maior igreja evangélica do país com 8,6
milhões de fiéis tem espalhados por todo o país.
606
Também no pentecostalismo de “cura
divina”, desenvolvido a partir da década de 1950, igrejas como do Evangelho Quadrangular e
O Brasil para Cristo desenvolveram critérios e ritos institucionalizados para a ordenação de
seus líderes.
No caso do líder iurdiano, especialmente Edir Macedo, uma distinção
que o configura como um profeta, “portador de um carisma pessoal”
607
atribuído por uma
iluminação direta do sagrado, sem a mediação institucional, razão porque obteve êxito
possibilitando que houvesse uma “consagração do herético”.
608
Ao comentar as razões do
sucesso de sua igreja, Macedo retrata bem este aspecto: “Atribuo o crescimento da Igreja à
atuação do Espírito Santo nos corações do povo que faz parte dela (...) A direção da obra vem
do Espírito Santo, não do homem”.
609
Esse reconhecimento vem, igualmente, da própria
IURD, que faz questão de ressaltar o carisma do seu líder-fundador como um dom divino:
605
Revista Igreja, São Paulo, jul. 2007.
606
Revista Veja, São Paulo, p. 84, 12 jul. 2006.
607
WEBER, Max. Economia e sociedade, v. 1, p. LI.
608
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 108.
609
Revista Isto É, São Paulo, 14 dez. 1994.
186
Com o objetivo de pregar o evangelho a toda criat ura e le var as
pessoas a encontrarem o verdadeiro caminho da paz e da felicidade
eterna, há cerca de vinte e c inco anos, o jovem pastor, Edir Macedo,
usava toda a sua fé e determinação numa praça do Méier, subúr bio
do Rio de Janeiro, para realiz ar várias pregações. Em julho de 1977,
este jovem, auxiliado por outr as pessoas, que compartilhavam da
mesma fé, fundava a primeira Igreja U niversal do R eino de D eus.
Não demorou muito para que a IURD mostrasse que tinha sur gido
pela vontade do Espírito Santo. O poder de Deus se manteve tão
forte sobre a Igreja que, logo, outros espaços precisar am ser
alugados para dar lugar a mais fi éis. Naque la é poca , a divulgação
dos cultos era feita por dez obreiros, que colavam folhetos nos
poste s e convidavam as pe ssoas para assistirem às reuniões.
6 1 0
Comentando o assunto, Cartaxo Rolim afirma que o profeta
(...) não nasc e das f ileiras sacerdotais. Não é, pois, o homem do
culto. Mas alguém que proclama uma revelaç ão recebida do alto. A
mente, a palavra, o poder do profeta estão ancorados num dom
pessoal dado gradativamente por uma divindade.
6 1 1
Essas representações estão em sintonia com a compreensão de Weber
quando fala sobre a força que o líder carismático possui em relação aos seguidores:
São considerados especialmente sagr ados e divinos devido a sua
excepcionalidade psíquic a e ao valor intrínseco dos respectivos
estados por eles condicionados (...) para o devoto o valor sagrado,
antes e acima de tudo (...) Este valor sagrado torna o elemento
carismático cerne e mocional da e xperiê ncia religiosa e impõe a
submissão íntima ao inédito e absolutamente único, portanto
divino.
6 1 2
Joachim Wach comenta este aspecto da “vocação divina” do profeta como
sendo um dos segredos do êxito da sua atuação:
A consciência de ser órgão, ou instrumento ou porta -voz da vontade
divina caracteriza a auto-interpelação do profeta (...) visões,
transes, sonhos ou êxtases ocorre m com freqüência ( ...) o prof eta
está preparado para receber e interpretar manifestações do divino
(...) Com freqüência ele aparece como renovador de conta tos
perdidos com os pode res ocultos da vida, e a qui se parece com o
feiticeiro e o curandeiro. O prof et a lança luz no passado e
interpreta-o, mas e le antecipa também o f utur o.
6 1 3
Marcelo Crivella, influente bispo iurdiano, declara:
As denominações protestantes tradici onais, que chegar am
primeiramente ao Brasil la nçaram aqui uma boa semente. Porém, a
Igreja Universa l surgiu como uma igr eja de poder, que mostra cura,
em que os espírit os malignos são expulsos dos corpos das pessoas.
Isso traz re alment e mudanças a vida das pessoas e se encaixa
610
Id., ibid.
611
ROLIM, F. C. Op. cit., p. 73.
612
WEBER, Max. Economy and socity. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 117.
613
WACH, Joachim. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 416.
187
perfeitamente a Palavra de Deus. A visão da Universal é de
trabalhar com os aflitos.
6 1 4
Crivella, ao comentar a maneira como Edir Macedo experimentou rejeições
no âmbito do protestantismo clássico, destaca elementos significativos que identificam o
fundador da IURD como um “profeta” que emerge do povo e foge aos estereótipos
estabelecidos pelas instituições:
Na época em que eu fazia o segundo grau, ele [Edir Macedo] fazia
faculdade de estatística, (...) Conversá vamos sobre a Bíblia, ele
dizia: Rapaz, Deus tem que fazer uma obra neste Brasil. Assisti
de perto ao surgime nto de um grande líder, que foi leva ntado por
Deus. Nas igrejas pelas quais passou, não havia atrativo algum nele
que despertasse a a tenção dos outros pastores. Ele tem um defeito
nas mãos. Era uma pessoa que, quando pegava o microfone,
demorava um pouco para falar, não ti nha aquela ret órica
entusiasmada dos pastores. Não cantava muito bem. Era apenas um
homem com uma fé muito grande. Era um pati nho f eio, mas Deus o
conduziu para se r o líder da Igreja Universal, que hoje cre sceu mais
do que todas as igrejas pelas quais passamos, e nas quais o bispo
esperava te r a chance de ser convidado a se r pastor.
6 1 5
Victor Turner, em sua obra O Processo Ritual, emprega o conceito de
“liminaridade” para se referir à “ação cultural” de “pessoas que escapam à rede de
classificações que normalmente determina a localização de estados e posições num espaço
cultural (...), pessoas que fogem às ordenanças da lei, convenção e costumes”,
616
estabelecendo-se em “regiões de fronteira”, formando comunidades “vicinais” como modelo
de sociabilidade.
617
As expressões culturais que agem nesse nível “podem ser muito criativas
em sua libertação dos controles estruturais ou podem ser consideradas perigosas do ponto de
vista da manutenção da lei e da ordem” – declara esse autor,
618
que acrescenta:
Os profetas tendem a ser pessoas limina res ou marginais,
fronteiriços que se esforçam com veemente sinceridade por
libertar-se dos clichês ligados às incum bênc ia s da posiçã o social e à
representação de papéis, e entrar em relações vitais com os outros
homens, de f ato ou na imaginação. (...) Transgride ou anula as
normas que governam as relaçõe s estruturadas e institucionalizadas,
sempre acompanhadas por experiência de um poderio sem
precedentes.
6 1 9
Segundo Turner, os profetas surgem nos “interstícios da estrutura, na
liminaridade ou na marginalidade; não costumam provir da aristocracia, do meio dos doutos;
614
CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL do Brasil para o mundo. Rio de Janeiro: Universal
Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.
615
Revista Eclésia, Rio de Janeiro, ano V, n. 50, p. 12, jan. 2000.
616
TURNER, Victor W. Op. cit., p. 5.
617
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. Cit., p. 08.
618
Id., ibid.
619
TURNER, V. Op. cit., p. 155.
188
freqüentemente surgem dentre o povo mais simples”.
620
Esta compreensão está de acordo
com a visão dos fundadores do movimento iurdiano:
Os melhores pastores não saem dos seminár ios. Pastor é que nem
jogador de futebol: e le s saem das escolinhas; eles surge m,
aparecem. Depois só prec isam ser lapidados. Com o passar dos anos,
eles vão fica r muito mais prepa rados do que jamais ficariam num
seminário normal. Os grandes homens de Deus surgiram do nada ,
sem prepara ção.
6 2 1
O pastor iurdiano J. Cabral observa que para ser pastor na Universal, os
requisitos são a conversão, a dedicação e o desejo de fazer a obra de Deus”. O aprendizado
para exercer o pastorado ocorre mediante a “atuação prática e direta nas igrejas”. Assim, para
o aspirante a pastor é fundamental aprender a reproduzir corretamente o que os pastores
titulares fazem no púlpito. Este caráter do chamado divino para o exercício da função
pastoral é destacado pela igreja:
Consc iente da urgênc ia que a população mundial tem de ouvir a
Palavra de Deus, a Igreja U nive rsal compreende a necessi dade da
imediata formação de pastor es. Por isso, levanta homens de Deus em
caráter emergencial e os encaminha para cumpr ir o ide de Jesus.
Para a Igreja Universal do Reino de Deus não é preciso estudar
cinco anos de Teologia para fal ar do que o amor, a misericórdia e o
poder de Jesus podem fazer na vida dos que O aceitam como
Salvador. A IURD prega uma f é prátic a, a tiva e dinâmi ca. Seus
pastores são orientados a levar o povo a vi vê-la, nã o buscando
apenas sabedor ia . Que m determina o chamado para a obra é o
Espírito Santo, de acordo com o caráter, a fé e a disponibilidade do
candida to.
6 2 2
Pastores e bispos iurdianos são, portanto, leigos quase que na sua totalidade;
não fizeram curso teológico, até porque não lhes é exigido. São-lhes designados tais títulos e
funções pela desenvoltura e habilidade no exercício do seu carisma:
Esses pastores [da IURD], bem como os obreiros e obreira s, são
seleciona dos segundo seu car isma e seu dom de oratória, num
reconhecimento da graça dada ao indivíduo (...) aspecto não-
desprezível frent e a origem humilde da maioria deles.
6 2 3
O treinamento do futuro pastor acontece normalmente no próprio templo
que freqüenta. Depois da entrada na igreja, portanto, é preciso percorrer um caminho que
requer constância e fidelidade, participação, trabalho intenso e certa abdicação total da vida
pessoal. “São rapazes de poucos recursos, com baixa escolaridade” observa uma
620
Id., ibid.
621
Revista Eclésia, Rio de Janeiro, n. 67, p. 30, abr. 2001. Palavras de R. R. Soares, cuja perspectiva é
compartilhada por Edir Macedo quando demonstra aversão à erudição teológica clássica, como se observa em
seu livro Libertação da Teologia. Op. cit.
622
http://www.igrejauniversal.org.br Acesso em: 25 mar. 2005.
623
MAFRA, C. Op. cit., p. 43, 44.
189
reportagem jornalística.
624
Começam lendo os livros do bispo Macedo, depois passam por um
curto treinamento, que dura em média três meses, ganhando em seguida o título de pastor.
Inicialmente como obreiro, depois auxiliar de pastores, pastor e, finalmente, bispo. É lá, junto
a outro pastor e, sob a sua orientação, que o candidato a pastor recebe um preparo prático de
como conduzir o público, dar orientações, realizar milagres e fazer exorcismos. É no
cotidiano que o futuro líder assimila ou reconfigura não apenas um universo simbólico, mas
também os procedimentos práticos que lhe compete no exercício dessa função, assim como a
confiança e a respeitabilidade por parte dos fiéis.
Por ser uma obra de Deus, a IURD não pára de c resc er. Por isso
mesmo, necessita cada vez ma is de novos bispos, pastores, obreiros
e membros para socorr erem os ma is necessitados. É importante dizer
que o braço direito da Igre ja Univer sal é composto de homens e
mulhe res, que um dia tive ram uma experiência com o Espírito Santo
e coloc aram suas vidas a se rviço de Deus.
6 2 5
A procedência do próprio grupo para o qual dirige a sua mensagem
possibilita criar maior identificação dos profetas com os anseios e o universo representacional
dos seus fiéis. Essa identificação entre líderes e fiéis promove um processo dialético entre a
“linguagem autorizante” e a “linguagem autorizada”:
626
O mi stério da ma gia performat iva resolve-se assim no mistério, isto
é, na alquimia da re presenta çã o através da qual o representante
constitui o grupo que o constituiu: o porta-voz dot ado do poder
pleno de falar e de agir em nome do grupo, falando sobre o grupo
pela magia da palavra de ordem , é o substituto do grupo que e xiste
somente por e sta proc uraç ão.
6 2 7
Atuando na liminaridade de um profeta, Macedo demonstra grande
desconfiança em relação à teologia institucional. Em um dos seus livros de grande tiragem,
intitulado A Libertação da Teologia,
628
alerta que os dogmas estabelecidos a partir dessa área
do conhecimento anulam a espontaneidade da fé, impedindo sua “manifestação miraculosa”:
Todas as formas e todos os r amos da Teologia são fúteis. Nã o
passam de emaranhados de idé ias que nada dizem ao inculto;
confundem os simples e iludem os sábios. Nada a cresce ntam à fé;
nada fazem pelo homem senão talvez aumentar sua capacida de de
discutir e discordar. ( ...) Cristianismo de muita teoria e pouc a
prática ; muita teologia, pouco poder; muitos argumentos, pouca
manifestação; muita s palavr as, pouca fé .
6 2 9
624
Revista Veja, São Paulo, 06 set. 2000.
625
http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 27 mar. 2005.
626
BOURDIEU, P. A economia da trocas simbólicas, p. 92, 93.
627
Id., ibid., p. 83.
628
MACEDO, Edir. A libertação da teologia. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Universal, 1990.
629
Id., ibid.
190
Entretanto, não obstante ao discurso reticente em relação à Teologia, a
Igreja Universal ressalta que o seu líder “fala fluentemente três idiomas, português, inglês e
espanhol” e destaca como parte de seu currículo uma extensa lista de cursos teológicos
realizados:
Bacharel em Teologia, pela Faculdade Evangélica de Teologia
Seminári o Unido . Doutor em Te ologia , Fa culdade de Educa çã o
Teológica no Estado de São Paulo (FATEBOM). Doutor em
Filosofia Cristã, pela Faculdade de Educação Teológica no Estado
de São Paulo (FATEBOM). D outor Honoris Causa em Divindade,
pela Fac uldade de Educação Teológica no Est ado de São P aulo
(FATEBOM). Mestre em Ciências Teológicas, pela Federación
Evangélica Española de Entidades Religiosas F.E.E.D.E.R
(MADRID, ESPAÑA).
6 3 0
O próprio Macedo se apressa em reverter em seu benefício a ostentação dos
títulos teológicos que lhe são atribuídos, dizendo que por isso fala com maior autoridade e
propriedade, pois conhece bem os “perigos” que tal formação pode representar.
O fato é que a IURD produz e elabora a sua própria concepção teológica,
ancorada não em especulações caracteristicamente conceituais ou filosóficas, mas sim, no
universo das práticas e do vivido. Há, em seu espaço, uma teologia própria, fundamentada
numa leitura funcional da blia. Nas centenas de ginas dos livros de autoria de Edir
Macedo, analisadas para esta pesquisa, observa-se, por exemplo, que o autor recorre
insistentemente às citações bíblicas na proposição dos seus argumentos. Verifica-se também
que é bastante característico que os textos bíblicos sejam interpretados e filtrados a partir de
um substrato cultural que é próprio de seu habitus e imaginário religioso. A coerência das
postulações teológicas iurdianas fundamenta-se na lógica do sistema religioso. A teologia que
nasce de tal procedimento dá coerência às práticas ao mesmo tempo em que também por ela é
referendada. Exemplo desta “prova de fogo”, estabelecida por Macedo e seus líderes à
mensagem que anunciam, ocorre durante os rituais de cura e de exorcismo, quando as
palavras se materializam em cenas dramáticas perante os fiéis.
A teologia “liminar” de Macedo é transportada para os diversos livros
publicados por sua autoria. O site da Igreja refere-se ao seu líder destacando a sua atuação
como escritor:
Escritor evangéli co com mais de 10 milhões de livros vendidos,
divididos em 34 títulos, desta cando- se best-sellers O rixás,
630
http://www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 25 jul. 2005. Vale observar que alguns desses cursos podem
ser feitos a distância, por correspondência ou por outros recursos magnéticos ou eletrônicos, sem necessidade,
por exemplo, de freqüência às aulas.
191
caboclos e guias e Nos Passos de Jesus , ambos com ma is de 3
milhões de exemplares vendidos no Brasil.
6 3 1
Também se valoriza a influência desses escritos na vida dos fiéis: “Fé é a
palavra mágica sempre presente nos livros do Bispo Macedo, porque ele aspira, respira e
transpira esse maravilhoso sentimento que eleva e enleva, concedendo-nos a senha para
penetrarmos no coração de Deus”,
632
acrescentando-se ainda as especificidades na atuação
desse líder:
Ele tornou-se, também, um consagrado a utor de livros. Seus
escritos, que não fazem concessões às linhas teológicas, têm
prestado um e fica z combate ao engano, à me ntir a e ao erro
religioso, transmitindo ao leitor os ensinamentos bíblicos como são
e estão, atra vés de r edação c lara e obj etiva. A prega ção de stemida e
a forma de falar do bispo Edir Macedo o transformaram, em poucos
anos, de pastor, antes sem púlpi to, a líder mundial da Igreja
Universal do Re ino de Deus, que congrega, hoje, milhões de fiéis.
6 3 3
Comprometidos, portanto, com a “teologia do vivido”, bispos e pastores da
IURD não cursam teologia. As palavras de um ex-pastor da IURD não também constatam
essa realidade, como ainda demonstram as representações que de fatom valor para os fiéis
seguidores desta Igreja:
Na minha visão, os pastores eram mensageiros celestiais (...) O que
mais me mara vilhava naqueles homens era o fato de que a maioria
era ge nte humilde, sem instruçã o f ormal. Muitos ne m sequer tinham
o prime ir o grau com pleto. Não haviam passado anos freqüent ando
seminários e faculdades de Teologia e muitas vez es se embaraçavam
para ler e explicar uma simple s passagem bíblica. Alguns, e m meio
a uma tra nsmissão ao vivo, liam na Bíblia parabólas de Jesus com
a tônica no ó em vez de par ábolas.
6 3 4
Em segundo lugar, destaca-se a identificação do profeta iurdiano com os
seus seguidores. Afirma Bourdieu que, no sentido weberiano, um dos significados da atuação
carismática do profeta é o de oferecer “resposta sistemática a todos os problemas da
existência”:
635
Os pr ofetas são produtores e portadores das revelações
metafísicas ou ético-religiosas (...) O profeta é o portador de uma
nova visã o do mundo que surge aos olhos do leigo como
revelação, como um mandato divino. (...) É o portador de um
discurso de origem, o intermediário e o anunciador de mudanças
sociais.
6 3 6
631
http://www.igrejauniversal.org.br. Acesso em: 02 ago. 2004.
632
MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 13ª ed. Rio de Janeiro. Gráfica Universal, 2004, p. 5.
633
http;//www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 20 set. 2005.
634
JUSTINO, M. Op. cit., p. 28.
635
CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 241.
636
BOURDIEU, P. A economia da trocas simbólicas, p. LVI.
192
O surgimento e a projeção do líder carismático se dá, sobretudo, em
“situações de crise, quando a ordem estabelecida ameaça romper-se ou quando o futuro
inteiro parece incerto”:
O discurso profético tem m aior es chances de sur gir nos períodos de
crise aberta envolvendo sociedades inte iras; ou então, a penas
algumas classes, vale dizer, nos perí odos em que transformações
econômi cas ou morfológicas determinam, nesta ou naquela parte da
sociedade, dissolução, o enfraquecime nto ou absolescência das
tradições ou dos sistemas simból icos que forneciam os princípios da
visão do mundo e da orientação da vida.
6 3 7
Esse aspecto da atuação do der iurdiano como “profeta” se apresenta,
assim, na proposta de uma mensagem voltada a oferecer respostas imediatas às situações de
crises. A teoria social de Weber, ao tecer redes culturais de significado, fala de profetas
carismáticos que surgem em um contexto social marcado por situações extraordinárias”,
cujo carisma se torna revolucionário e criativo, abrindo caminho para um novo futuro. Os
próprios líderes iurdianos apresentam depoimentos sobre essa atitude distintiva do
movimento sob sua liderança:
Ao longo destes 20 séculos o cristi anismo quis se tornar uma
religião hegemônica , mas ao mesmo tempo aliou-se a muitos
interesse s e poderes que comprometeram a essência do evangelho.
No caso do Brasil, por séculos o povo só conheceu um t ipo de
cristianismo, o catolicismo. Só a partir do século XIX c hega ram as
igrejas históricas. Por ém , continuou existindo uma distância muito
grande entre o povo e os sacerdotes/pastores. As pessoas
permaneciam ainda angusti adas em busca de respostas para os seus
dramas pessoais. Isto fez inclusive c om que recorr essem a outras
prática s religiosas, sem c ontudo encont ra r explicações para as
causas de seus sofr imentos. Foi aí que De us levantou, em me io a
esse cont exto de idolatria um movimento que viria a dar
continuidade a igreja primitiva cr ia da por Jesus. Isso mudaria o
curso da evangelização no Bra sil.
6 3 8
Em uma entrevista, ao falar sobre o surgimento da IURD e os motivos que o
levaram a fundar a sua própria igreja, Edir Macedo revela um episódio bastante pessoal, mas
que identifica bem a situação de sofrimento por que passam tantos outros brasileiros:
Tudo começou quando nasceu a minha filha mais velha, Viviane .
Viviane nasceu acometi da de problemas sérios de saúde, havendo
inclusive por parte dos médicos diagnósticos de que era porta dora
de debi lida des irreversíveis que a impossibilitariam de falar e ter
uma vi da norma l. Diante desse fato, senti de perto o drama de
outras famílias que sem condições financeiras padec em com filhos
doentes, sem recursos para encaminhá-los a um tratamento médico
especializado. Isso fez com que se movesse dentro de mim um
intenso de sejo de funda r uma igreja na qual as pessoa s pudessem
637
Id. ibid., p. 74, 75.
638
Depoimento de Paulo Guimarães, bispo da IURD. CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL do Brasil
para o mundo. Rio de Janeiro: Universal Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.
193
encontr ar uma porta a berta que lhes oferecesse socorro e amparo em
momentos de desespero e angústia. Por isso trazemos desde o iní cio
da igre ja , como lem a, a mensage m: Pa re de sofrer.
6 3 9
A esposa de Edir Macedo, Ester Bezerra, também é contundente ao
recordar esse episódio: Com o nascimento da Viviane, nasceu a Igreja Universal”. Lembra
ainda o casal que hoje Viviane “é uma pessoa completamente curada de seus problemas de
infância”.
640
Macedo destaca também a dimensão mais coletiva deste episódio que o
teria levado a dar início a um novo movimento religioso: “Queria ajudar o povo brasileiro a
descobrir a causa de seu sofrimento e encontrar respostas concretas para os seus males.
Queria mostrar às pessoas que o evangelho é capaz de libertá-las das estruturas religiosas que
não ensinam uma sobrenatural com resultados práticos”. Explica melhor esse propósito ao
dizer que através da IURD “o povo tem a oportunidade de tocar o sagrado, cantar, aplaudir,
sentir-se protagonista, como alguém que não apenas vai a uma cerimônia religiosa para ouvir
do púlpito sermões distantes da realidade em que vive, como normalmente acontece nas
igrejas tradicionais”.
641
Os profetas iurdianos promovem então uma interatividade com aqueles que
normalmente estão colocados também à margem: Na liminaridade, as crises da vida e as
mudanças de posição social encontram oportunidade de manifestações pelos sinais externos e
sentimentos internos de distinção de situação social e fundir-se com as massas”.
642
Citando
Durkheim, Bourdieu afirma que da mesma forma que um “emblema” constitui “o sentimento
que a sociedade tem de si mesma”, a fala e a pessoa do profeta “simbolizam as
representações coletivas porque contribuíram para constitui-las”, e acrescenta:
O profeta traz ao níve l do discurso ou da conduta exe mpla r,
representações, sentimentos e aspirações que já existiam antes dele
embora de modo implíc ito, semiconsciente ou inconsciente. Em
suma, realiza at ravés de seu discurso e de sua pessoa, como falas
exemplares, o encontro de um significante e de um significado
preexiste ntes (...) é por isso que o profeta (...) pode agir como uma
força organizadora e mobili za dora.
6 4 3
A Igreja Universal faz questão de ressaltar a identificação de Edir Macedo
com o povo brasileiro:
639
CRESCIMENTO DA IGREJA UNIVERSAL do Brasil para o mundo. Rio de Janeiro: Universal
Produções, 2000. Documentário em vídeocassete.
640
Id., ibid.
641
Id., ibid.
642
Id., ibid., p. 243.
643
Id., ibid., p. 92, 93.
194
De hábitos simple s, o bispo não considera o seu estilo de vida
diferente do de qualquer servo usa do por De us. E, depois de mais de
24 anos à frente de um rebanho de filhos na fé, cada vez mais
numeroso, e le afirma que, se tivesse de recomeçar tudo de novo, não
mudaria nada do que foi feito até o momento, mant endo sempre a
mesma linha de a çã o: pregação do Evangelho para salva ção e
libertação das pessoas. O bispo nunca esconde u a su a insatisfação
e pr eocupação com a situação do Brasil e com os problemas d as
pessoas. Descompromissado com a s corrente s filosóficas e
religiosas, ele está sempre pronto para dar uma palavra de fé e
ânimo a todos os seus ouvintes.
6 4 4
[grifos nossos]
É igualmente notável o fato de quase todos os pastores iurdianos terem
experimentado episódios de adversidades pessoais e sociais múltiplas, tais como desemprego,
crise familiar ou financeira, convívio com a violência urbana, entre outros. Romualdo
Panceiro, atualmente, um dos bispos mais influentes na hierarquia da IURD, responsável pela
direção do Templo Maior da Fé, localizado em Santo Amaro - SP, onde atua com o auxiliar
direto de Edir Macedo tem uma história de vida marcada por dramas. A igreja refere-se ao
testemunho de vida do bispo da seguinte maneira: “Assim como acontece com rios outros
bispos e pastores da Igreja Universal, o bispo Romualdo teve uma vida sofrida, sentiu
solidão, desprezo, fome e dor. Hoje, ele sabe entender um coração desesperado que chega até
um templo da IURD. Ele sabe o que essas pessoas com as vidas destruídas precisam e como
fazês-la enxergar a vitória que está poucos passos à frente”.
645
O próprio Romualdo relata que
tendo nascido em um lar com posses e recursos materiais, veio a experimentar posteriormente
a miséria e o sofrimento, após o pai ter sido acometido de distúrbios mentais, vindo a morrer
de câncer. “Hoje tenho consciência de que a loucura de meu pai foi fruto de um trabalho de
bruxaria, que atingiu também minha mãe e os três filhos. Passei a trabalhar, mas sempre
enfrentando muitas dificuldades, tendo uma vida muito arrasada” recorda. “Foi então que a
minha mãe conheceu o trabalho da Igreja Universal através de um programa de rádio e
passou a freqüentá-la. Ela começou a fazer uma corrente direcionada à minha vida. Todos os
dias ela levava uma foto minha para a igreja. Nessa época, eu usava drogas e não dormia.
Foi quando abriu uma igreja Universal perto da minha casa e eu decidi ir a um culto. Cheguei
no templo, com um casaco do meu irmão, uma calça jeans suja e um sapato furado, mesmo
assim recebi a atenção de um obreiro e desabafei com aquele homem de Deus. Comecei a
fazer as correntes de libertação e de prosperidade. Um dia, numa reunião especial no
Maracanã, dirigida pelo bispo Edir Macedo, eu me ajoelhei, abri meu coração e comecei a
chorar. Não me importei com nada. Quando saí dali eu era uma nova criatura. Naquele dia eu
644
http://www.igrejauniversal.org.br . Acesso em: 15 ago. 2005.
645
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 70, p. 47, 2000.
195
tive um encontro real com Jesus e enfrentei todos os meus problemas. Logo passei a ganhar o
respeito de todos de minha família e do meu trabalho, até que um dia fui chamado para ser
pastor”. A IURD faz questão de destacar o impacto da atuação desse líder hoje: Quem
assiste a um culto do bispo Romualdo percebe a força da dedicação desse homem de Deus.
Nesses cultos a presença do Espírito Santo é sentida de tal maneira que as pessoas vão as
lágrimas e têm um verdadeiro encontro com Jesus”.
Também o bispo Clodomir dos Santos, 38 anos, apresentador de um dos
principais programas televisivos denominado “Fala que eu te escuto”, ressalta em seu
testemunho de vida que enfrentou a “miséria, vícios, marginalidade na infância e
adolescência”, mas que através da conquistou “uma nova vida”. Em uma infância marcada
pela miséria financeira e a família desestruturada, chegou a envolver-se com armas e drogas:
Com doze anos comecei a consumir cocaína. Minha família era
dividida, com muitos sofrimentos em casa. A fome chegou. Eu e
meu irmão entramos para uma quadrilha e c omeçamos a roubar.
Tornei- me em pouco tempo um dos traficantes mais pr ocurados nas
favelas do Rio de Janeiro. Quando e stava ameaçado de mor te por
grupos rivais, t ive de muda r-me do bairro onde vivia com a família.
Recebi um livro de um homem da Igreja Univer sal do Re ino de Deus
chamado Orixás, Caboclos e Guias, do bispo Edir Macedo. C omecei
a ler e a tr em er ; eu pensava em suicídi o a noite, fui a igr eja
Universal do bairro onde morava. Cheguei lá aflito, sem sa ber o que
fazer, pe nsando em morr er. Mas a partir da ida ao templo minha
vida começou a mudar. Lá me acolheram e me ajudaram a exer citar
a fé. Naquela semana foi aberta uma possibi lidade de emprego. Oito
meses depoi s, f ui levantado a obreiro na oca sião, passei a
fre qüentar a I URD do Maracanã. Tempos depois deixava o emprego
para ser auxiliar de pa stor pelas mãos do bispo Sérgio von Helde.
6 4 6
Não é diferente a história de Renato Santos, hoje bispo da IURD na cidade
de Curitiba - PR e responsável pelo trabalho da Igreja no Estado do Paraná. Renato teve uma
adolescência marcada por dramas. Aos treze anos, por influência dos colegas do conjunto
habitacional onde morava, em Vista Alegre, Rio de Janeiro - RJ, teve a primeira experiência
com maconha: “Apesar de saber que o caminho pelo qual outros haviam enveredado os
conduzira à marginalidade, e muitas vezes à morte, uma força maior me impelia às mesmas
experiências, e depois com drogas ainda mais pesadas” recorda, emocionado. Renato foi
detido pela polícia cinco vezes e internado em uma clinica para dependentes químicos, e nada
surtia efeito. Na ocasião conheceu a atual esposa, que freqüentava a Igreja Universal:
“Consegui autorização para sair da clínica e fui ao culto com ela. o pastor orou e um
espírito, manifestando através da minha namorada, disse que queria me matar - esse pastor
que orou por mim hoje é o bispo Macedo” lembra. Renato passou a freqüentar os cultos da
646
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 118, p. 43-45, 2000.
196
IURD. Tornou-se evangelista, pastor e bispo, além de escritor de livros sobre experiências
com entorpecentes.
647
Bourdieu ressalta que é preciso superar o postulado da “representação do
carisma como propriedade associada à natureza de um indivíduo singular”.
648
Lembra que
em Weber essa perspectiva quando este afirma que a criação de um poder carismático [...]
constitui sempre o produto de situações exteriores inauditas”, ou de uma “excitação comum a
um grupo de homens, suscitada por alguma coisa extraordinária”. É possível então
compreender que o líder carismático iurdiano obtém êxito no campo em que atua não por
causa de sua genialidade, como se exercesse um papel de criador onipotente e se localizasse
fora do grupo, mas sim, pelo fato de encontrar uma ressonância interativa por parte dos fiéis
que também estão inseridos no mesmo campo.
649
O poder simbólico de que se cerca o líder
iurdiano procede, portanto, do próprio grupo do qual faz parte:
O poder do profeta tem por fundamento a força do grupo que ele
mobil iza por sua aptidão para simbolizar em uma c onduta exemplar
e/ou em um di scurso (quase) sistemático, os interesses pr opriamente
religiosos de leigos que ocupam uma posição determi nada na
estrutura social.
6 5 0
A força da mensagem proferida pelo profeta não reside nas próprias
palavras ou nos locutores que a empregam:
O poder das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz (...)
sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe
conferiu o mandato (...) do qual ele é (...) o procurador.
6 5 1
Há, assim, uma cumplicidade entre líderes e fiéis na vivência das práticas e
das representações que ocorrem no âmbito iurdiano. Nesse sentido, vale destacar a fértil
reelaboração feita por Bourdieu da tipologia religiosa proposta por Weber, ao sublinhar que
não se pode criar uma dicotomia de mercado religioso que separa produtores de bens
religiosos especialistas - e consumidores, destituídos da capacidade de produzirem eles
mesmos os bens religiosos que dão sentido à sua existência os leigos. Pois é preciso
entender que os chamados “leigos” também são produtores coletivos dos referidos bens,
ainda que na condição de não-especialistas. Bourdieu afirma que não pode existir a produção
647
Folha Universal, Rio de Janeiro, 12 fev. 2006, p. 3.
648
A compreensão de Marcel Mauss, citado por Bourdieu, também vai nesta direção: fomes e guerras suscitam
profetas, heresias (...) não se deve confundir essas causas coletivas, orgânicas, com a ação dos indivíduos, que
delas são muito mais intérpretes do que senhores (...)”, cf. BOURDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas,
p. 74, 75.
649
BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 317-368.
650
Id., A economia da trocas simbólicas, p. 92, 93.
651
Id., A economia das trocas lingüísticas, p. 87, 89.
197
de bens simbólicos ex-niilo. O que pode ocorrer é uma expropriação do trabalho religioso
popular pelos especialistas, para devolvê-los como um bem simbólico apto a atender sua
demanda de sentido:
as significações religiosas por eles [não-especiali stas] produzidas
ficam em estado bruto até que os especialistas trabalhem,
lapidando-a s para as apresentarem c omo se fosse m uma intuição ou
revelação original.
6 5 2
Os líderes carismáticos iurdianos se tornaram, portanto, agentes
catalisadores de toda uma situação que clamava por uma nova teodicéia. Isso ocorre em
momentos nos quais as formas de entender e explicar a vida não mais estão em sintonia com
as condições sociais, gerando novas demandas, que somente podem ser atendidas por uma
palavra profética.
653
Os profetas iurdianos reiniciaram, assim, a produção de um novo capital
religioso. Sendo orientado pelo mesmo habitus de seus fiéis - “princípio ativo, irredutível às
percepções passivas, de unificação das práticas e das representações” -
654
pode-se dizer que o
líder da IURD “não prega senão a convertidos”,
655
pois fala, na verdade, a seus pares, e nisto
reside certamente um dos segredos de seu sucesso.
A própria trajetória desses líderes em sua relação com a IURD torna-se,
para os fiéis, uma prova argumentativa de que é possível vencer os obstáculos e ascender
socialmente, pois a chegada deles à igreja quase sempre na mesma condição de fracasso
ou desespero com que os demais também recorrem à igreja. Essa situação costuma ser
denominada por eles de “fundo do poço”. Ocorre, assim, uma identificação entre líderes e
fiéis:
A Igreja entende que a verdadeira fé, o encontro real com Jesus e a
unção com o Espírito Santo são suf icientes para que pa stor es sejam
consagrados. Só aquele que é verdadeira me nte ungido pelo Espírit o
de Deus se propõe a uma vida de lutas e sacrifícios. Para os que são
realmente toca dos, trabalhar na obra de Deus, seja da forma que for,
é uma bê nção, porque é um privilégio servir ao Senhor dos
senhore s. Quanto ao aprendizado, devem c onhecer as ver dades
bíbli ca s, sendo preciso entendê-las com o cora ção, a alma e o
espírito. A Palavra deve ser respei tada e obedecida para que haja
intimidade com Deus. A linguagem simples deve valoriza r a
comunhão com Nosso Se nhor.
6 5 6
Assim, palavras, gestos e atitudes desses agentes respondem a um habitus
adquirido e relacionado às estratégias operadas pelo campo. Por isso o líder é compreendido
652
OLIVEIRA, P. A. R. Op. cit., p. 101.
653
BOURDIEU, Pierre. A economia da trocas simbólicas, 1982, p. 49.
654
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 77.
655
Id., A produção da crença, p. 57.
656
www.igrejauniversal.com.br . Acesso em: 20 jan. 2004.
198
pelos fiéis, conseguindo estabelecer comunicação em linguagem que descortina anseios e faz
emergir representações que impregnam o imaginário coletivo:
(...) dotada de sentido e doadora de sentido, a profecia legitima
prática s e representações que têm em comum apenas o fato de serem
engendradas pelo mesmo habitus (próprio de um grupo ou de uma
classe) (...) porque a própria profecia tem como pr incípio gerador e
unificador um habitus objetivamente coincidente com o dos seus
destinatários.
6 5 7
Um terceiro aspecto a se destacar diz respeito à ação combativa pela Igreja
Universal em relação aos demais segmentos religiosos atuantes no campo. Ao mesmo tempo
em que é combatida, essa Igreja também empreende um incisivo ataque. Logo, interpretando
as configurações religiosas presentes no contexto brasileiro, nos últimos decênios, Edir
Macedo procura tirar proveito da situação em favor de sua mensagem:
Potestades são classe de espíritos imundos (...) e agem
especificamente dentro do mundo religioso (...) cr iam novas
religiões a cada dia, somente c om o objetivo de pulverizar a genuína
fé cristã (...) promove m falsos profetas, com suas falsas religiões,
aparentando um cristianismo autêntico (...) e não adianta vesti menta
religiosa e aparência humilde, porque a Palavra da Ve rdade revela a
mentira e o engano.
6 5 8
Agindo na condição de um profeta, Macedo tece críticas às instituições
religiosas:
Enquant o você, amigo leitor, estiver satisfeito com a tradição
histórica da sua igreja , com seus rituais e cerimônias, com sua
liturgia e com a sua ac eitaçã o das coisas como estão, nã o será
ungido pel o Espírito Santo (...) há um demônio chamado Exu
tradiçã o que penetra sorra te iramente, obrigando os membros da
Igreja a a tent ar tão somente para usos, c ostume s e normas
eclesiásticas (...) .
6 5 9
Citando especificamente a Igreja Católica, Macedo a responsabiliza por ter
dado início à perseguição sobre a IURD, dizendo que o motivo era porque “aquele gigante
adormecido” estaria perdendo adeptos para “uma igreja que tem trabalhado pela
transformação de viciados, alcoólatras e outras pessoas de vida perdida”, e acrescenta:
Um padre só sabe dizer: reze minha filha. Ora, o povo já cansou
de rezar ! O povo quer ver sua vida mudada. Os doutos junto com
suas te orias não podem entender como um pastorzinho, com a sua
ridícula 4ª série do primeiro grau, impõe sua mão sobre a cabeça
do dito c ujo, e a pessoa é liberta, não voltando mais ao vício.
6 6 0
O bispo emite também dura crítica ao culto mariano do catolicismo:
657
BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 94.
658
Folha Universal, Rio de Janeiro, 24 jul. 1994.
659
MACEDO, E. A Libertação da teologia, p. 21.
660
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, ano VII, n. 50, p. 2, 1990.
199
Foi ela que come çou a promover Maria. Ela não passava de uma
serva de D eus, um instrumento usado para trazer Jesus ao mundo. O
culto mariano é uma agressão a Jesus e a ela mesma . Há um trecho
na Bíblia em que Jesus se dir ige à mãe, dizendo Mulher, que tenho
eu contigo? Veja bem, ele não disse mamãe. Maria então
entende u que Jesus era Deus, o Deus homem. E ela pediu a todos
para obedecer a Jesus. Nós f azemos apenas o que ela mesma
indic ou. A Igreja Ca tólica faz o contrári o. Ela promove a imagem de
Maria porque é lucrativo. O Vaticano tem fábrica de santos, fábrica
de e státua s. E eles sabem que qualquer imagem feminina faz
sucesso. E tem mais, o problema não é só com ela. Quando vejo a
imagem de Jesus e nsangüenta do na cruz, fico com pena dele.
6 6 1
Prossegue, Edir, afirmando que em 1980, quando esteve pela primeira vez
em solo brasileiro, “o papa abençoou o Brasil através de um ídolo chamado Senhora da
Aparecida. Como conseqüência o país entrou numa onda de maldição incontrolável”. Destaca
as conseqüências danosas decorrentes daquele ato: “Sérios problemas políticos. Inflação
galopante. Tremendas secas no Nordeste. O nascimento do cruzado. O enxerto do cruzado
novo. O presidente Collor. O aumento da violência. Seqüestros generalizados. Terremotos no
Ceará... e por aí a fora”.
662
O bispo também culpa o catolicismo pela formação de um habitus que
impede o usufruto de uma vida melhor, segundo o qual a dor, o sacrifício, o sofrimento e a
pobreza são vistos como uma espécie de caminho de redenção ou de penitência a ser
percorrido pelo cristão em sua trajetória de fé:
A Bíblia apresenta Jesus como a face do sol ao meio-dia. O que a
Igreja C at ólic a f az é o oposto. É como se eu fosse visitar um
parente terminal de câncer e, pouco tempo antes dele [sic] morrer,
eu t irasse fotografia do rapaz , em coma, semimorto. E pe gasse
aquela fotografia, pintasse um quadr o, fize sse uma imagem de gesso
e levasse par a sua casa e colocasse no lugar mais aparente da ca sa
[...] Passa-se a i déia de que, se ele sofreu, não há mal algum no fiel
sofre r também. Então a humanidade passa a aceitar a derrota como
uma coisa natural. Como as religiões não atendem a necessidade das
pessoas que estão sofrendo, elas se j ustificam diante delas com uma
imagem de alguém que supost amente foi derr otado. “Olha, vocês
estão no fundo do poço, Jesus também esteve e ninguém salvou.
Está lá, morr eu. Esta idéia faz com que as pessoas acatem os seus
sofriment os, ac eitem os seus carmas ou sua desgraça como uma
cruz.
6 6 3
Pesquisas nas manchetes da Folha Universal também evidenciam atitudes
de denúncia da IURD ao catolicismo:
Histórias do clero romano: padre português recolheu ofertas e
enganou o povo (120); Arcebi spo católi co preso por seduçã o de
meninos (146); Padre católico abusava de meninos (130); Desvios e
661
Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.
662
Folha Universal, Rio de Janeiro, 19 out. 1997, p. 2
663
Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.
200
poder do clero católico em Portugal (120); Fundador de Movimento
Carismático acusado de abuso sexual (125); Padres perseguem a
IUR D em Pieda de (124); O papa não é infalível (127); Declí nio do
papado (174); IURD anive rsar ia sob perseguição católica (118);
Perda de fiéis e desespero da I greja Católica (171); Bispo católico
se torna pai ( 170); O culto de Maria na Igreja Católica (168); Padre
católico estuprava mulheres em Ruanda (174); Cardeal-primaz
destila ódio contra a IURD (193).
6 6 4
Inegavelmente, um dos ápices dos conflitos envolvendo o catolicismo deu-
se no dia 12 de outubro de 1995, quando o bispo Sérgio von Held chutou a imagem de Nossa
Senhora Aparecida em seu programa na TV Record. Em uma cerimônia religiosa, o bispo “se
referia com horror aos descaminhos idólatras da católica em sua adoração a uma imagem
de barro”, empreendendo chutes numa “imagem que a representava”, observa Montes, que
dimensiona o alcance desse ato para exigências de novas compreensões envolvendo o
sagrado:
Tal gesto vi ria a estilhaçar essa piedosa im agem, e os ecos do
escândalo por ele suscitado se estendera m por meses a fio,
surpreendendo a opinião e obr igando os especialistas a repensar a
configuraçã o do campo reli gioso brasileiro às vésperas do terceiro
milênio.
6 6 5
A Rede Globo de televisão multiplicou as imagens em nível nacional,
mostrando Von Helde chutando a imagem da padroeira do Brasil. Naquele dia, via Embratel,
a televisão brasileira transmitiria para todo o país, ao vivo e em cores, a imagem do que seria
considerado um ato de profanação e quase uma ofensa pessoal a cada brasileiro - dada a
importância daquele símbolo de fé, como observado nesta pesquisa - provocando enorme
indignação popular e mobilizando em defesa da Igreja Católica não sua hierarquia como
também figuras eminentes de praticamente todas as religiões, além de levantar uma enorme
polêmica inédita nos meios de comunicação sobre uma instituição religiosa no Brasil.
666
Em relação às denominações do protestantismo clássico, a IURD polemiza
ao ressaltar a ineficiência dessas igrejas em se atualizar em seu culto e liturgia, assim como
estabelecer maior proximidade com as camadas mais populares. Em um artigo publicado pela
Revista Plenitude, pode-se ler a referência feita, por exemplo, ao caso metodista:
A Igreja Metodista tem cerca de 250 anos e apesar disso seu
crescimento vem se da ndo a passos de tartaruga pelo
664
Os números entre parênteses referem-se às edições do jornal Folha Universal utilizados para a pesquisa.
Exemplares disponíveis no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica – FTSA, Londrina - PR.
665
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 65.
666
O bispo Von Helde recebeu uma pena de dois anos de prisão domiciliar em regime aberto por causa deste
episódio. Como era réu primário, cumpriu em liberdade. Cf. Revista Eclésia, Rio de Janeiro, ano V, n.50, p. 11,
jan. 2000.
201
tradici onalismo da igreja que tem quase a mesma liturgia desde a
sua funda çã o. Os metodistas valorizam em seus sermões o raciocínio
lógic o, o profundo conhecimento teológico e as músicas da Idade
Média, afastando com isso o povão dos seus templos. Uma pessoa
humil de a proveita pouco desse s cultos.
6 6 7
entre os pastores da IURD muitas reservas quanto ao que chamam de
“pastores intelectuais” - uma referência aos deres de outras denominações protestantes que
prezam pela formação teológica. Chegam a mesmo a ultrapassar os preconceitos
cultivados pelos demais grupos pentecostais. Respondendo a críticas de pastores protestantes,
mencionadas em artigo na Folha de S. Paulo,
668
o então influente Bispo Rodrigues, da Igreja
Universal, usou as seguintes palavras: “É muito fácil ficar num amplo gabinete escrevendo
teses de doutorado e acusando outros pelos jornais (...) Para mim tem mais valor a pessoa que
a vida pelo que crê e luta por aquilo que acredita ser o melhor, do que um sujeito cheio de
pós-graduação, que se contenta com meia dúzia de fiéis”.
669
O bispo Macedo ao se referir aos líderes de outras igrejas evangélicas é
contundente ao afirmar que estariam, ingênua e irresponsavelmente” pregando o evangelho
“água com açúcar”:
A culpa do fa to de o Diabo e se us anjos estarem arruinando a vida
das pe ssoa s, muitas veze s, resi de nos líderes religiosos evangélicos
que não ministram o poder de Deus na vida das pessoas. Pre gam
apenas o eva ngelho chocolate, ou água com açúcar e não libe rtam
verdadeiramente as pessoas da inf luência dos demônios.
6 7 0
Nesse aspecto, ele aponta para o que entende ser diferencial nas práticas da
Igreja que comanda:
A Igreja Universal do Reino de Deus tem consc iê ncia da supremacia
da fé em relação à razão (...) Talvez esse seja um dos aspectos mais
impor ta ntes que a fazem diferente de outras organizações religiosas
(...) C risto passou muito ma is tempo expulsa ndo demônios e
curando miraculosamente as pessoas do que pregando se rmões ou
distribuindo comida para os pobres (...).
6 7 1
O depoimento de outro bispo da Igreja também destaca a inovação da
mensagem iurdiana:
A IURD veio pa ra atender aos perdidos. O s cultos pr otestant es eram
tradici onais, não diziam nada ao coração das pessoas.
Repentinament e, a IURD se espalhou pelo mundo. Nossa Igre ja veio
para m ostrar a B íblia e interpretá-la àqueles que não a
667
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 66, p. 28, 1999.
668
Folha de S. Paulo, São Paulo, 01dez. 1995.
669
Folha Universal, Rio de Janeiro, 28 jan. 1996.
670
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1988, p.
131.
671
Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 out. 1995.
202
compreendem. Falem bem ou mal, mas I URD consegue tocar no
coração das pessoas porque mexe lá no fundo da ferida. Estamos
sempre com as porta s abertas de segunda a segunda abertas para que
o mundo possa encontrar-se c om Deus. Atendemos todos os tipos de
pessoas c om seus re specti vos problemas.
6 7 2
Até mesmo em relação ao pentecostalismo clássico são contundentes as
palavras de Edir Macedo:
Temos de sair da mera pre gação pe ntecostal, que está na moda, para
a pregação plena. Temos que sair por aí dizendo que Jesus Cristo
salva, batiza com o Espírito Santo, mas também, e antes de tudo,
que liberta as pessoas que estão oprimidas pe lo diabo e seus anj os.
(...) Seus membros não se a listam no combate contra as potestades e
passam a se preocupar com jogos, passatempos, diversões, ou no
outro extre mo, com as vestes dos santos.
6 7 3
Também são combativas e duras algumas palavras da IURD em relação ao
comportamento de líderes de outras igrejas que tecem críticas ou fazem oposição à Igreja
Universal, assegurando que procedem assim instigados e manipulados por “espíritos
enganadores”:
Nós, membros e pastores da Igrej a Universal, temos enfr entado
enormes di ficuldades para servir ao nosso Senhor com almas. Nossa
maior luta tem sido contra os espíritos enganadores a tuantes nos
pastores de outras denominações. [ ...] em todos os países do mundo
onde temos aberto as portas da Casa do Deus de Abraão, temos
encontr ado entr e os ditos evangéli cos grande número daqueles que
usam a Bíblia , nã o para salvar per didos, mas para vaciná- los contra
o traba lho da Igr ej a Universal do Reino de Deus.
6 7 4
Mas a ação dos profetas iurdianos também se voltou de maneira
contundente contra outras expressões de crença que igualmente disputavam o capital
simbólico com o propósito de ganhar legitimidade e reconhecimento no campo. Foi assim
que ao se expandir para a Bahia, principal reduto brasileiro de cultos africanos, no início dos
anos 80, a IURD promoveu vários conflitos com adeptos do candomblé, cometendo até
mesmo um equívoco cultural, porque não se deu conta inicialmente da existência de suas
peculiaridades em relação à umbanda. Tais polêmicas ganharam, inclusive, instâncias
judiciais, tematizando liberdade de culto, disputas por espaços e símbolos religiosos.
Quando se refere ao combate contra as forças do mal, personificados
sobretudo nos cultos afro-brasileiros, a IURD usa a expressão “guerra santa”, tanto em suas
literaturas como em suas campanhas. Em junho de 1994, por exemplo, durante uma semana
se divulgou no rádio e na TV a realização da “Guerra Santa Contra a Macumba”. Essa
672
R. A., bispo da IURD em Londrina. Depoimento a mim concedido, Londrina, set 2004. Gravação em K7,
transcrita para uso como fonte.
673
MACEDO, E. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 131, 133, 138.
674
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 82, 2002.
203
atitude, na verdade, caracteriza a Igreja Universal desde o seu nascimento, especialmente nas
primeiras décadas de seu funcionamento. Um dos elementos que credenciava com êxito o
pastor da IURD era a habilidade e ousadia que tal líder demonstrava para fechar um certo
número de terreiros de candomblé e umbanda. E, envolvidos pelo “espírito militante dos
fiéis”, notabilizavam-se por “agredir a golpes de Bíblia pais-de-santo e iaôs em dia de festa
de terreiro”.
675
Nélson de Omulu, pai-de-santo, descreve alguns dos conflitos e agressividades
cometidos por líderes e fiéis contra os cultos afro:
Primeir o, e le s só atacavam nas rádi os. Depois c omeçaram a invadir
terreiros. Agora, eles resolveram bagunçar nossas festas. Aconteceu
isso na festa do fi nal do ano passado, quando o Bispo Mace do e seus
seguidore s (cerca de 15 mil) invadir am a Pra ia do Leme, com
aqueles alto-falantes, para de struir nossas homenagens a Iemanjá.
Na festa da criança, que a ge nte realizou na Quinta da Boa Vista, os
evangélicos quebrara m várias image ns e queimaram até roupas de
santo.
6 7 6
Na Folha Universal é também possível se observar manchetes polêmicas
em relação aos cultos afro-brasileiros:
Violação de sepulturas e de cadáveres (156,196); Exus exigem que
médium se retalhe (175); N ecrofilia de ex-pai-de -santo (130); Lula
apela par a o candomblé (118) Espiritismo estimulava Jocemar a ser
gay (129); Re veillon de Iemanjá promove sujeira, violência e
maldição (195); Falsos milagres espíritas (113).
A revista Plenitude trouxe recentemente reportagem intitulada “ocultismo”,
alertando sobre “as armadilhas” que as festas escondem, quando possuem significado
religioso:
Muitas festas pa ssaram a fa zer parte da c ultura brasileira, algumas
oriundas de outros paíse s. Quero chamar a a te nção para os perigos
espirituais e até mesmo físic os para algumas dessas festas. Temos
casos de pessoa s que sumiram e após algum tempo foram
encontr adas mortas. Após investigações realizadas foi possível
associar essas mortes a determinada festa. A popular festa de
Cosme e Da mião, por exempl o, aparentemente inofensiva e caridosa,
esconde o fato de que os doces e brinquedos, antes de serem
distribuídos às crianças são oferecidos às entidades espir ituais. Já
ouvimos muitas pessoas declararem que após a participação delas ou
de seus f ilhos ne sta festa anual, surgiram vários problemas.
6 7 7
Em artigo, na Folha Universal, intitulado “Macumba, religião ou folclore?”,
a IURD explica que a macumba de hoje tem sua origem na tradição africana. “Macumba vem
do idioma quimbundo, e significa fechadura, cadeado, provavelmente ligada aos ritos e
675
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 137.
676
O Globo, Rio de Janeiro, 23 out. 1988.
677
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 124, p. 39, out. 2005.
204
banhos de fechamento do corpo, praticados no sentido de proteger contra o mau olhado”
ressalta-se. Registrando que a inserção desses ritos e práticas se deu pela presença dos
escravos no Brasil colonial, o artigo destaca que houve uma união pragmática dos ritos da
natureza, que foram trazidos da África pelos negros escravos, com a religião católica romana
e crendices indígenas. Assim, rápidas fusões e amalgamações com outros ritos, como o
Cabula, Catimbó e a Pajelança, teriam contribuído para que esses cultos se expandissem
rapidamente pelo país, sobretudo após o fim da escravidão, quando uma boa parte dos cultos
passaram a ser feitos sem maior repressão, facilitando a abertura de inúmeros terreiros.
Finalizando a abordagem do tema, a matéria apresenta então o resultado final do
desenvolvimento dessas crenças em solo brasileiro:
Com sua magia perve rsa exerce influênc ia maligna nos quatro
cantos do país. Milhares de pessoas de todas as classe s sociais
recorrem a seus sortilégios. P olíticos e a rtista são os melhore s e
mais assíduos clientes, já que recor rem a esse subterfúgio para
resolver problema s de amor, ódio e interesses escusos.
6 7 8
Inúmeras polêmicas também têm sido desencadeadas pelo livro Orixás,
Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? - de autoria do bispo Macedo. A Justiça Federal da
Bahia determinou recentemente a suspensão da venda do livro: uma ação civil pública foi
movida sob alegação de ser literatura ofensiva e preconceituosa em relação às religiões afro.
A juíza Nair Cristina de Castro determinou que a IURD e a Editora Gráfica Universal
retirassem em 30 dias os livros do mercado, sob pena de multa diária de R$ 50 mil. A Justiça
considerou a obraabusiva e atentatória ao direito fundamental”, não apenas aos adeptos das
religiões originárias da África e aqui absorvidas culturalmente, como afro-brasileiras, “mas
da sociedade, no seu genérico prisma, que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a
despeito de toda a sua adversidade (de cores, raças, etnias e credos)” declarou a
representante do poder público.
679
Ao apresentar a referida obra ao público leitor, Macedo usa as seguintes
palavras: “é impossível a um praticante do espiritismo ler esse livro e continuar na sua
prática. Todas as áreas do demonismo são postas a descoberto neste livro; todos os truques e
enganos usados pelo diabo e seus anjos para iludir a humanidade são revelados”. No prefácio
da obra, Macedo é apresentado pelo editor da seguinte maneira:
Poucas pessoas estão tão bem qualificadas para falar desse assunto
quanto o bispo Macedo. El e tem se empenha do ferrenhamente, por
muitos anos, na obra de libertação. Quem o conhece pessoalmente se
contagi a com sua ar dente fé, pois dedica toda sua vida a lutar contra
678
Folha Universal, Rio de Janeiro, 14 set. 2005.
679
Jornal da Manhã, Marília - SP, 13 nov. 2005, p. 6
205
os demônios, pelos quais tem repugnânc ia e raiva. Esse homem, que
Deus levantou nesses dias para uma obra de grande vulto no cenário
evangelístico nacional e mundial, c onhece todas as artimanhas
demoníacas. Seu freqüente contato com pra ticant es do espirit ismo,
nas suas mais diversas ramificações, fa z com que seja um grande
conhecedor da matéria. Através dos veículos de comunicação e das
igrejas que tem estabele cido pelos rincões de nossa pátria e no
exterior (...). Neste livro, denuncia as ma nobras satânicas atr avés
do kardecismo, da umbanda , do candomblé e outras seitas si mila res;
coloca a descoberto as verdadeiras intenções dos demônios que se
fazem passar por or ixás, exus, erês, e ensina a fórmula para que a
pessoa se ja liberta do de mônio que a domina.
6 8 0
Também na introdução da referida obra um alerta quanto a uma possível
polêmica a ser desencadeada pela leitura: “o diabo e seus demônios irão se levantar com
todas suas forças contra o bispo Macedo e toda a Igreja Universal, pois sabem que terão de
contabilizar grandes perdas”.
681
Durante a exposição do texto, Macedo faz a seguinte
afirmação: “há muito tempo venho orando por pessoas que tiveram ligações com o
espiritismo nas suas diversas facetas”. Ressalta que milhares de pais e mães-de-santo “se
transformaram em cristãos sinceros e tementes a Deus”, após participarem de reuniões da
Igreja Universal. “Nossa igreja foi levantada para um trabalho especial, que se salienta pela
libertação de pessoas endemoninhadas” afirma, acrescentando: “nossa experiência tem sido
muito vasta nesse campo e grande é o número de pessoas que nos procuram pedindo
esclarecimentos a respeito de tão discutido assunto”.
682
Macedo não esconde o seu desejo de
ver os líderes religiosos de cultos afro-brasileiros sendo encaminhados para atuar em sua
igreja:
Dedico e sta obra a todos os pais-de-santo e mães-de-santo da nossa
pátria, porque eles, mais do que qualquer pessoa, merecem e
precisam de um esclarecimento. São sacerdotes de cultos como
umbanda, quimbanda e candomblé, que estão na maioria dos casos
bem-intencionados. Poderão usar seus dons de liderança ou de
sacerdócio, corretamente, se forem instruídos. Muitos deles hoje
são obreiros ou pastores das nossas igrejas, mas não o seriam se
Deus não levantasse alguém que lhes dissessem a verdade.
6 8 3
[grifos
nossos]
Atribuindo ao Demônio a origem dos cultos afro, Edir afirma:
O povo brasileiro herdou, das prá tica s religiosas do índios nativos e
dos escravos oriundos da África, algumas religiões que vieram mais
tarde a ser reforça da com doutrinas espi ritualista s, esotéricas e
tantas outras. Houve, com o decorr er dos séculos um sincretismo
religioso, ou seja, uma mistura curiosa e dia bólica de mitologia
africana, indígena brasileira, espiritismo e cristianismo, que criou
680
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 2.
681
Id., ibid.
682
Id., ibid., p. 9.
683
Id., ibid., p. 10.
206
ou favore ce u o desenvolvimento de cultos fetichistas como a
umbanda, a quimba nda e o candomblé.
6 8 4
Macedo é incisivo em sua afirmação ao dizer que,
no B ra sil, em se itas como o vodu, ma cumba, quimba nda, candombl é
ou umbanda, os demônios são adorados, agradados ou servidos como
verdadeiros deuses; no espiritismo mai s sofisticado, eles se
manifestam mentindo, afirmando se rem espíritos de pessoas que já
morreram. Na maioria desse s cultos os espíritos são invocados para
prestar c aridade, seja praticando c urandeirismo ou transmitindo
mensagens que vão i luminar os adeptos, ou ainda, para realizar
algum feito extra ordinário
6 8 5
Associando os cultos afro ao catolicismo folclórico, o bispo afirma:
Quando os primeiros e scra vos che garam ao Brasil, trouxeram com
eles as seitas animistas e fetic histas que permeavam seus países de
origem na África. Para evitar at ritos com a igreja católica, os
escravos que praticam macumba, inspirados pelas próprias entidades
demoníacas, pa ssaram a relacionar os nomes de seus deuses ou, para
ficar mais claro, demônios, com os santos da igreja católica. Por
isso, os nomes dos demônios esta rem associados a santos, como são
os casos de São Jorge, que representa Ogum; a Virgem Maria que
representa Iemanjá.
6 8 6
Os conflitos com as crenças afro também ganharam as dimensões dos meios
de comunicação de massa. Recentemente, a Justiça condenou duas emissoras controladas por
Macedo, a TV Record e a Rede Mulher, por descriminação:
A Record e Rede Mulher foram condenadas pe la Justiça por
discriminação contra religiões afro-brasil eiras e seus praticantes.
As e missoras transmit em programas da IURD, considerados pela
Justiça ofensivos à libe rdade religiosa. Como direito de resposta,
terão de transmitir durante sete dias consecutivos programas de uma
hora sobr e os c ultos trazidos ao Brasil pelos escravos.
6 8 7
De acordo com a Vara Federal Cível de São Paulo, não houve como
negar o ataque feito às religiões de origem africana e às pessoas que as praticam ou que delas
são adeptas. Segundo a juíza responsável pelo caso: “Nos programas gravados
depoimentos de pessoas que antes eram adeptas das religiões afro-brasileiras e se
converteram; nos templos da nova religião essas pessoas realizam sessões de descarrego ou
consultoria espiritual. Assim, é de se concluir que não negam as tradições e os ritos de
religiões de matriz africana, porém afirmam que nos terreiros os seguidores praticam o mal, a
feitiçaria e a bruxaria”.
688
684
Id., ibid., p. 13.
685
Id., ibid., p. 14, 15.
686
Id., ibid., p. 44.
687
Folha Online. www1.folha.uol.com.br . Acesso em: 14 maio 2005.
688
Jornal da Manhã, Marília – SP., 20 nov. 2005, p. 2.
207
A IURD, evidentemente, também se defende. Em matéria publicada com o
título “A censura está de volta ao Brasil?”, a Folha Universal encampa a defesa do livro
Orixás, Caboclos e Guias, com quase três milhões de exemplares comercializados. A
reportagem cita a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5º, para afirmar a liberdade de
expressão e manifesta ainda o temor pela volta de algum tipo de censura aos meios de
comunicação.
689
É preciso considerar que as perseguições às crenças religiosas e práticas
rituais de origem afro-ameríndia era um fato empreendido pelo catolicismo desde os
tempos coloniais. Onde a atitude iurdiana inova é na operação de apropriação reversa que faz
dessas religiões. O que se exorciza é o conjunto das entidades do panteão afro-ameríndio
incorporado às crenças populares, das devoções e práticas mágico-rituais do catolicismo
ainda conservadas às religiões de negros e mais recentemente apropriadas pelos estratos
médios das populações urbanas:
O que os ritos neopentec osta is supõem, e põem em ação, é um
profundo conhecimento dessas outras c osmologias que sustentam
tais religiosidades, assim como as técnicas de produção e
manipulação do tr anse das re ligiões de possessão. Sob a mesma
forma ritual geralmente já conhe cida pelo fiel nos terreiros de
candomblé e de umbanda, as ent idades do panteão afro-brasileiro
são chamadas a incorpor ar-se para, depois de desmascaradas como
figuras demoníacas enviadas por alguém conhecido para fazer um
trabalho contra a pe ssoa, se r de vidamente exorcizadas e
subme tida s à injunção de não mais voltar a atormenta r aquele
espírito, pel o poder de Deus.
6 9 0
Por outro lado, em sua curta trajetória histórica, a Igreja Universal
também tem sido alvo de combate por parte de outros segmentos religiosos, sobretudo das
religiões institucionalmente estabelecidas no campo, que lhes atribui o estigma de magia,
vendo em suas práticas “heresias” e usurpação da “legitimidade” sacerdotal ou pastoral.
Neste aspecto, desde os primeiros momentos de sua aparição, o emprego pela IURD do título
de “bispo” ao invés de “pastor” até então um clichê no protestantismo brasileiro soava
não apenas como uma ousadia, mas como usurpação. Os combates também envolveram
questões “teológicas”. Julgando-se depositários da verdade e da ortodoxia, catolicismo e
protestantismo brasileiros voltaram-se a partir daí contra um inimigo comum que lhes
ameaçava, passaram a referir-se em tom depreciativo às práticas vivenciadas pela Igreja
689
Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 nov. 2005, p. 6.
690
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p.122, 123.
208
Universal sob alegação de não ter ela teologia
691
nem coerência doutrinária com a leitura que
faz dos textos bíblicos pelo fato de não utilizar métodos hermenêuticos ou exegéticos
adequados para a leitura e interpretação da Bíblia. Assim, com uma mensagem caracterizada
“profética” porque inovadora e contestatória em relação à religião estabelecida - o
“profeta” e seus discípulos iurdianos passaram a ser duramente combatidos pelos
“sacerdotes”:
A força de que dispõe o profeta (empresário inde pendente de
salvação) c uja pret ensão consiste em produzir e distr ibuir bens de
salvação de um tipo novo e pr openso a desvalorizar os antigos (...)
depende da aptidão de seu discurso e de sua prática pa ra mobilizar
os interesses religiosos virtualmente heréticos de grupos ou classes
determi nantes de leigos, graças ao efe ito de consagração que o mero
fato da simbolização e de e xplicitação exerce.
6 9 2
Da parte do protestantismo clássico, por exemplo, devido ao balizamento
feito por dogmas com forte apelo à razão e pouco propenso para lidar com elementos da
cultura folclórica, líderes da IURD passaram a ser acusados de charlatanismo, e seus
prodígios de curas e exorcismo foram atribuídos ao próprio demônio, capaz de “imitar a
graça divina”.
693
Assim como no estudo sobre a crença no milagre régio, feito por Marc
Bloch em Os Reis Taumaturgos - em que a Igreja usou o conceito de “superstição” para
condenar as crendices que contrariavam a ortodoxia ou dela se desviavam, empregando
definições como a de “equívoco coletivo”, “representações” infantis do povo”
694
- a opinião
emitida por um pastor presbiteriano retrata semelhante hostilidade e posicionamento
ortodoxo combativo do protestantismo em relação à IURD:
Consideramos um absurdo pessoas se inti tulando pastores,
missionár ios, abençoando copos de água, gravando orações de cura
divina, elementos que , tomados e ouvidos, curariam toda e qualque r
doença (...) Pi or ainda: anunciam espalhafatosamente grande s
concentrações em estádios com dia marcado e hora determinada,
garantindo que o Espírito Santo estará prese nte para curar todas as
enfermidades e sol ucionar todos os problem as. Além das sedes
dessas igrej as, em cuja porta é colocado o expediente para
691
O protestantismo clássico, de modo geral, conceitua teologia nos seguintes termos: “Uma visão de mundo
expressa por um grupo de fiéis, uma teia de palavras, símbolos e atos elaborados à luz de suas experiências
religiosas, discurso esse nem sempre regido pela lógica cartesiana. Como tal, a teologia transcende a reflexão
individual, porque ela é uma atividade grupal, objetivada em dogmas, ritos ou meios catequéticos. Além disso,
toda teologia tem por finalidade explicar a especificidade de suas relações com o sagrado, enquanto apresenta as
experiências históricas do grupo, que a formulou como um modelo de vida para todas as demais pessoas”, cf.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal, p. 327.
692
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 49.
693
Isto foi o que também ocorreu em relação ao rito do toque régio, estudado por Marc Bloch, quando afirma
que na Inglaterra e na França este ritual sofreu fortemente o ataque do protestantismo, sob a acusação de ser
aquele milagre uma atribuição dos demônios, capazes de imitar os prodígios divinos. Cf. BLOCH, M. Op. cit.,
p. 270.
694
GURIÊVITCH, A. Op. cit., p. 45.
209
atendimento dos inte ressados, como se o Espíri to Santo fosse um
executivo à disposição de tais ministros (...).
6 9 5
Quando ocorreu, por exemplo, o episódio conhecido “chute na santa”, a
Associação Evangélica Brasileira (AEVB) - com sede na cidade do Rio de Janeiro, então
presidida pelo pastor presbiteriano Caio Fábio D’Araújo Filho - fez um pronunciamento
oficial na imprensa, além da elaboração de um documento, assinado pelos diretores,
conselheiros e secretários da AEVB e também por cerca de quarenta pastores de diversas
denominações evangélicas.
696
Esse pronunciamento objetivou distinguir as igrejas
evangélicas da IURD, ressaltando que nas práticas desta “elementos radicalmente
contrários à evangélica e ao melhor da herançablica da igreja protestante e pentecostal”,
acrescentando ainda que existem “imensas e irreconciliáveis diferenças entre as práticas da
maioria dos evangélicos e a IURD”. Como exemplo , destacava algumas questões que se
referiam: à doação de dinheiro para alcançar bênçãos; ao seu método de levantar fundos; à
aceitação de entidades dos cultos “afro-ameríndios” tal qual estes as concebem; ao “uso de
elementos mágicos dos cultos e das superstições populares do Brasil” como “sal grosso”,
“rosa ungida”, “água fluidificada”, “fitas e pulseiras especiais”, “ramo de arruda” e “uma
quantidade enorme de apetrechos”. Caio Fábio também afirmou na ocasião:
As prátic as da Igreja Universal geram um constrangimento profundo
no meio eva ngélic o (...) A Igreja é uma máquina de arrancar
dinheiro dos fiéis (...) ela é o primeiro produto de um sincretismo
surgido entr e os evangélicos brasilei ros, é uma versão cristã da
macumba.
6 9 7
A chegada da IURD ao campo de Londrina, no final da década de 1980,
reeditou conflitos observados em outras regiões do país. A sua presença também se tornou
“incômoda”, causando impacto e provocando reações por parte das demais igrejas já atuantes
na cidade. A Universal representava uma concorrência com proposta “diferente”, dada a sua
agressividade e inovação, o que levava as demais denominações a se sentirem ameaçadas e
com dificuldades para competir em de igualdade com o novo fenômeno. Por isso, a
primeira estratégia de defesa foi a de empreender veementes críticas às práticas iurdianas,
classificando-as como “perigosas” à fé cristã, sob o argumento de serem muito parecidas com
o “espiritismo”, e também de “oferecer milagres em troca de dinheiro”. As afirmações
695
Palavras de Roberto Vicente Cruz Themudo Lessa, pastor presbiteriano, em entrevista jornalística, 24 ago.
1978. Apud CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing e eum empreendimento
neopentecostal, p. 177.
696
Documento com cópia impressa disponível para pesquisa no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa
Histórica - CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina – PR.
697
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 68.
210
provinham dos pastores, que se utilizavam de seus púlpitos e de programas de rádio para
alertar os seus respectivos rebanhos. O próprio Conselho de Pastores de Londrina chegou a
fazer pronunciamentos oficiais e emitir notas que questionavam a “identidade evangélica” da
igreja liderada por Macedo.
Mais recentemente, no ano de 2006, a IURD concorreu à compra de um
grande terreno existente no centro da cidade, onde intenciona construir a “Catedral da do
Norte do Paraná”, projeto arquitetonicamente elaborado. Entretanto, no processo de
licitação, mesmo fazendo uma proposta financeira superior aos valores feitos pelos demais
concorrentes no caso, grandes grupos do setor comercial a aquisição do terreno está
embargada devido à articulação de moradores da região, apoiados por lideranças católicas, e
de estabelecimentos comerciais localizados nas proximidades, que se opõem à construção de
um templo religioso naquele endereço. O processo, por esse motivo, tramita na Justiça e a
IURD luta por fazer valer seu direito de compra do terreno.
Semelhante reação proveio da Igreja Católica que passou a perder milhares
de seus fiéis para os segmentos evangélicos. Reportagens jornalísticas, no início dos anos 90,
apontavam para o poder de arregimentação e atração exercida por tais movimentos sobre
adeptos do catolicismo romano:
Mais de seisc entas mil pessoas, por ano, abandonam o catolicismo
para j untar- se a uma igreja evangélica. A mensage m pregada pelas
seitas evangélic as é muito mais simples e me lhor do que a
mensagem do Catolicismo, que pregava por meio dos padres de
esquerda, uma maior participa ção política.
6 9 8
Tendo historicamente marcado o país, ajudando a configurar um conjunto
de valores, crenças e práticas, por aproximadamente cinco séculos, o catolicismo percebia
cada vez mais que seu controle institucional e seu conjunto de doutrinas - que se propunham
definir de modo coerente os limites e as intersecções entre a vida pública e a vida privada -
não eram tão incontrastadamente hegemônicos como se ostentava. Por isso,-se obrigada a
reagir, partindo em busca da modernidade e das linguagens contemporâneas da fé, que
haviam sido dominadas pelos novos grupos pentecostais, através do controle dos meios de
comunicação de massa. Busca-se, ao mesmo tempo, vigor interior da crença, da experiência
da exaltação da e do transporte espiritual diante do milagre como diretriz para uma
recuperação de uma dimensão privada da experiência religiosa, inteiramente íntima e pessoal.
Isso gerou uma outra “aproximação a contrapelo com o pentecostalismo”, representada, por
698
Revista Veja, São Paulo, 16 maio 1990, p. 40-44.
211
exemplo, pelo fortalecimento e progressiva expansão da Renovação Carismática Católica.
699
“É o movimento carismático que vai fortalecer a Igreja Católica contra os avanços das
seitas”, dizia, em 1990, Claudionor Erasmo Peixoto, diretor regional da renovação
carismática em São Paulo.
700
A redefinição de seu papel numa sociedade cada vez mais pluralista em
termos religiosos fez que, em 1982, o setor de ecumenismo e diálogo inter-religioso da
CNBB (Conferência Nacional de Bispos do Brasil), a pedido do Vaticano, passasse a
pesquisar o fenômeno.
701
Em 1995, o Conselho Pontifício para a família e a Comissão
Pontifícia para a América Latina se reuniram em Petrópolis - RJ, para discutir o que fazer
“diante dos desafios das seitas”. Face a ampla “pesquisa de mercado”, a hierarquia Católica
passou a agir, não hesitando em se apropriar de certas estratégias dos concorrentes: ampliar a
utilização dos meios de comunicação de massa; oferecer maior abertura à participação dos
leigos nas celebrações; revalorizar as tradições populares e as pastorais sociais e de saúde;
renovar as liturgias; promover a abertura de novos ministérios; tornar os sacerdotes mais
disponíveis ao povo; incentivar vocações sacerdotais e conceder maior espaço à
expressividade emocional nos cultos, também foram estratégias adotadas. Enfim, a Igreja
Católica, reconhecendo que perdia o “seu” espaço, também entrou na moderna estratégia do
marketing religioso.
Todos esses movimentos no campo religioso, como anteriormente descritos,
tornam-se possíveis porque nele existem tensões e forças vivas”, com potencialidades de
promover mudanças, sendo que algumas são propícias a inovações ou até mesmo,
“revoluções”, como afirma Bourdieu:
O espaço dos possíveis re aliza- se nos indivíduos que exercem uma
atração ou uma repulsão, a qua l depende do peso deles no
campo, isto é, de sua visibilidade, e da maior ou menor afini dade
dos habitus que leva a a char simpáticos ou antipáticos seu
pensamento e sua ação.
7 0 2
Bourdieu considera em suas análises a possibilidade de haver, num dado
momento histórico, uma ruptura do que chama de “dominação” do poder simbólico que
699
Id., ibid., p. 80.
700
Id., ibid.
701
A primeira pesquisa acusa principalmente governos de direita de fomentar a expansão de seitas “alienantes” e
conservadoras do status quo na América Latina para dificultar a ação da igreja progressista”. Em 1987,
procurando evitar explicações simplistas ou preconceituosas, passou a pesquisar as causas mais profundas do
fenômeno. E, depois que a Igreja Universal passou a comandar a Rede Record, a preocupação da cúpula
Católica cresceu ainda mais, tornando a expansão das “seitas” tema quase constante das Assembléias Gerais da
CNBB.
702
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 55.
212
determinados agentes ou instituições exercem sobre os que estão a eles agregados: “Os
dominados podem recusar progressivamente o que haviam incorporado, ou ainda, um
acontecimento brutal pode dilacerar o tecido ordinário da reprodução e introduzir uma crise
violenta”.
703
Pode-se dizer, então, que líderes e fiéis iurdianos, “não são partículas
passivamente conduzidas pelas forças do campo”, mas “têm disposições adquiridas” pelo
habitus, isto é, “maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em particular, levá-los a
resistir, a opor-se às forças do campo”.
704
Esse efeito se exerce em parte, por meio de
“confronto com as tomadas de posição de todos ou de parcela daqueles que também estão
engajados” nesse espaço de atuação, sendo fundamental para isto “encarnações entre um
habitus e um campo”.
705
Em sua obra Coisas Ditas,
706
esse autor amplia ainda mais a imagem da
sociedade como um campo de batalha operando com base na força e no sentido”, ao afirmar
que:
Os agentes que estão em concorrência no campo de manipulaçã o
simbólica têm em comum o fato de exercerem uma a ção simbólica.
São pessoas que se e sforçam para manipular as visõe s de mundo (e,
desse modo, para transform ar as práticas) manipulando a e strutura
da perc epção do mundo (natural e social), manipulando as palavras,
e, através de las, os princípios da construção da realidade social.
7 0 7
Assim, os agentes podem recriar esse espaço do qual fazem parte e estão
inseridos e, sob certas condições estruturais, transformá-lo:
708
Descrevo o espaço social global como um campo, campo de forças,
cuja necessidade se im põe aos agentes que nele se encontram
envolvidos, e como um cam po de lutas, no interior do qual os
agentes se enfrenta m.
7 0 9
Em relação às rupturas, Pierre Bourdieu observa que para se entrar no
campo acadêmico, por exemplo, são necessários títulos, certificados, havendo assim uma
objetividade dos mesmos quanto à permissão para que alguém seja considerado ou não
membro de um espaço acadêmico identificado com o mundo universitário. “Ritos
institucionais produzem a condição de ingresso na tribo dos filósofos (...); alguém se torna
‘filósofo’ pelo fato de haver sido consagrado”, garantindo para si o “estatuto prestigioso de
‘filósofo’” - exemplifica esse mesmo autor.
710
Comentando este aspecto, Chartier afirma que
703
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 154.
704
BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico, p. 26.
705
Id. Esboço de auto-análise, p. 55.
706
Id. Coisas Ditas, p. 121-122.
707
Id., ibid.
708
Id. Razões práticas., p. 161.
709
Id., ibid., p. 50.
710
Id., Esboço de auto-análise, p. 41.
213
o mesmo já não ocorre nos campos culturais, pois esses “não são juridicamente
codificados”.
711
Assim, a inexistência de codificações formalmente estabelecidas faz com que
nos campos culturais se promovam lutas de representação, conflitos, na busca pela definição
e classificação de quem é considerado ou se considera participante legítimo.
Semelhantemente, pode-se dizer, “rivais num campo gravitacional regido por expectativas de
prestígio e consagração”,
712
para produzir, proteger ou conquistar capital simbólico, os
agentes religiosos também acabam travando intensos conflitos e lutas no campo em que
atuam.
Em sua obra As Regras da Arte, Bourdieu analisa como esses conflitos, para
definir essas identidades, remetem à luta pelo direito ou pelo monopólio do poder da
consagração. Uma luta pela classificação, como observa Chartier:
As r epresentaç ões simplista s e solidificadas da dominação social ou
da difusão cultural devem então se r substituídas por uma maneira de
compreendê-las que r econhece a reprodução da s diferenças no
interior dos próprios mecanismos de imita ção, as concorrências
dentro das divisões, a constituiç ão de novas divisões pelos próprios
processos de divulgação.
7 1 3
Pode-se associar esses dinamismos ao conceito de representação, pois
permitem articular configurações múltiplas, “através das quais a realidade é
contraditoriamente construída pelos diferentes grupos”, práticas essas que “visam fazer
reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar
simbolicamente um estatuto e uma posição”, fazendo que sejam marcadas “de forma visível e
perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade”.
714
E ainda nesse sentido,
Chartier afirma que um dos elementos mais essenciais do trabalho de Bourdieu era pensar
que as lutas de classe, que regem e organizam o mundo socioeconômico, sempre se
traduziam ou se nutriam das lutas de classificação, permitindo o direito de dizer a sua própria
identidade ou a do outro dentro do campo - espaço social no qual se situam as produções
simbólicas.
715
Não obstante os esforços de controle empreendidos pelos agentes detentores
de capital institucional, sempre espaço para que agentes rompam com tais protocolos e
promovam mutações, como se observa no comentário feito por Chartier ao lembrar que uma
das contribuições de Bourdieu para o trabalho historiográfico está no fato de
711
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 142.
712
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, contra-capa.
713
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Op. cit., p. 17.
714
Id., A história cultural: entre prática e representações, p. 23.
715
Id. Pierre Bourdieu e a História, p. 143.
214
sugerir que, para cada obje to de análise, de vemos pensar ao mesmo
tempo no espaço, no ca mpo de coerção, de coaç ões, de
interdepe ndências que não são percebidas pelos indivíduos, e, ao
mesmo tempo, loc alizar dentro dessa rede de coações um espaço
para o que chamava sentido prático , ou estratégia , ou ajuste às
situações – e que, inclusive, para indivíduos que têm a s mesmas
determi nações soc ia is, não func iona de uma maneira homogênea.
7 1 6
Dessa forma, o campo religioso pode ser entendido como o espaço em que
o conjunto de atores e instituições religiosas - em interação e conflitos - produzem,
reproduzem e distribuem bens simbólicos de salvação, ou seja, um espaço especializado de
produção cultural”.
717
Tais mudanças originam-se da própria estrutura nele existente, isto é,
das posições sincrônicas entre posições antagônicas no campo global, da posição na estrutura
de distribuição do capital específico de reconhecimento, posição esta fortemente
correlacionada entre o que é ortodoxo e o que é herético,
718
pois a história do campo é “a
história da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação
legítimas; é a própria luta que faz a história do campo”.
719
Assim, orientados por um habitus,
e tendo certa liberdade para agir, os líderes iurdianos acabam incorrendo no que se pode
chamar de “desvio”, devido ao comportamento que rompe ou se afasta de normas
estabelecidas pelos segmentos religiosos oficiais, o que os levou à organização de novos
espaços de atuação, promovendo intensas disputas pela classificação, autoridade e
legitimidade de atuação.
Todos esses fatores de conflitos, anteriormente mencionados, acabaram
contribuindo para que a IURD continuasse crescendo, instigando e promovendo mutações de
impacto no campo religioso brasileiro. Os fatos que pareciam ser grandes obstáculos para
essa igreja, acabaram revertendo-se, na verdade, em fatores que sedimentaram ainda mais a
força aglutinadora do movimento. Razão porque o hino oficial da IURD também traz como
tema principal a perseguição que o seu líder maior sofreu no país naquele momento em que
iniciava o que entendem ser o cumprimento de uma vocação, ou chamado divino, como a
própria IURD faz questão de ressaltar:
A seriedade e o compromisso com o Evangelho der am lugar a uma
igreja abençoada e fiel aos seus membros. Me smo encontrando no
caminho pedras e tribulações, a Igreja nunca desistiu de se u
objetivo: le var a Palavra de Deus aos carentes e desesperados. A
cada dia, Bispos e pastores travam uma luta difere nte com as forças
ocultas. Em todo lugar t em sempre alguém e m busca de paz interior ,
precisando das orient ações desses homens de Deus. No ent anto, eles
716
Id., ibid., p. 151.
717
BOURDIEU, P. Esboço de auto-análise, p. 15.
718
Id. Razões práticas, p. 68.
719
Id. A Produção da crença, p. 87.
215
não de sistem da luta, pois sabem que a batalha é árdua, poré m, a
vitór ia é c erta, em nome do Senhor Jesus.
7 2 0
A habilidade de Macedo para lidar com as situações adversas também se
tornou bastante evidente quando do episódio que ficou conhecido como “chute na santa”. Na
época, o então influente pastor iurdiano Ronaldo Didini saiu em defesa de Von Helde.
Ambos estavam habituados a brigar com o catolicismo e a desmascarar imagens católicas no
interior dos templos iurdianos. Didini, sem considerar a centralização hierárquica, deu uma
entrevista coletiva afirmando que “a Igreja Universal estava solidária com o bispo Von
Helde”. De imediato, porém, através do rádio, Macedo retomou o controle da situação, e
segundo o registro feito pelo jornal Folha de S. Paulo, proferiu as seguintes palavras:
Nós quer íamos declarar para todo o povo católico, espírita e
evangélico, a todas as pessoas que direta ou indiretamente, foram
atingidas por uma ati tude impensada, (...) insensata do bispo Von
Hel de (...) que pensou e a giu como um me nino, trazendo esse fato
novo e inconsciente para todo o povo brasileiro (...) queremos pedir
então perdão a todos vocês, ca tólicos, que fora m atingidos por essa
atitude do bispo Von Helde (...).
7 2 1
Em todas as circunstâncias de embates nas quais se envolveu, nessas três
décadas de sua existência a Igreja Universal conseguiu demonstrar força de resistência e
capacidade de arregimentação, em grande parte graças aos elementos que envolvem o seu
habitus identitário, com raízes culturais historicamente fincadas no campo religioso
brasileiro.
3.6.2 - O carisma do mago
O mago é definido, na linguagem de Weber
722
e Bourdieu, como um
“pequeno empresário autônomo de salvação”, cuja atividade econômica consiste em produzir
e oferecer a uma clientela avulsa serviços de socorro e ajuda. A magia, manipulada pelo
mago, pode ser mais detalhada nos seguintes termos:
Trata-se de um poder extraordinário um carisma, no sent ido forte
do termo que, segundo se crê, capacita quem é mago, bruxo,
feiticeiro ou xamã, a impor sua vontade à s forças supra-se nsíveis
(tanto faz se divina ou demoníacas) e direcioná-las para a
concretização dos objetivos para os quais é solicitada sua
competente pe rfor ma nce profissional: predizer o destino de alguém,
curar uma doe nça, defender dos invejosos, atacar os inimigos.
7 2 3
720
http:// www.universal.org.br . Acesso em: 16 mar. 2005.
721
Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 out. 1995.
722
WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 1, p. 294.
723
PIERUCCI, A. F. Magia, p. 9.
216
Aos olhos dos sacerdotes e profetas concorrente na administração do
sobrenatural e na oferta de serviços de acesso ao sagrado – os serviços prestados pelos magos
são “apenas aparentemente” religiosos, “pseudo-religiosos”, ou ainda, “religiosos ilegítimos
ou ilícitos”, manipulações profanas e profanadoras do divino.
724
Pierucci destaca que o mago
ou o feiticeiro é portador de saber especializado e as ciências que ele controla são ditas
“ocultas”:
as artes que ele dom ina na condição de produtor independente,
envolvem multiplicidade complexa de oper ações. São elas que lhe
possibilita m oferecer aos interessados dua s classes de produto: em
troca de remunera ção monetária c obra da sem subterfúgios ou
eufemismos, o feitice iro produz bens e presta serviços.
7 2 5
Classicamente, os sacerdotes têm sido entendidos como “funcionários
qualificados de uma empresa religiosa permanente, especializada em exercer influência sobre
os deuses e os corações dos homens através do culto regular e organizado”.
726
Também é
atribuição do agente sacerdotal propor submissão à soberana vontade divina, promover a
salvação eterna e a paz espiritual. os serviços do mago visam fins específicos, voltados
para o aqui e agora, não para ooutro mundo”, no porvir. Ao contrário do ritual clerical, que
é serviço divino, o ritual mágico é visto como coerção divina. Enquanto que o sacerdote
estabelece relações mais duradouras com os seus adeptos, a relação do mago com as pessoas
que o procuram é conceituada normalmente como profissional, como feita a um cliente.
Outra distinção que se coloca é de que o mago não se preocupa em aplacar a cólera dos
deuses ou atrair para si seus favores – ele procura coagi-los:
Quem possui o carisma de e mprega r os meios adequados para isto é
mais for te até mesmo que um deus, e pode impor a este sua vontade.
Neste caso, a aç ão ritual não é serviço ao de us, mas sim coação
sobre Deus, a invocação não é uma oração, mas uma fórmula
mágica.
7 2 7
A atitude da magia para com os poderes divinos é tida, assim, como
manipulativa e instrumentalizadora. Enquanto que a relação clerical com o divino é de
respeito, obediência e veneração, o mago não ora nem suplica aos poderes supra-sensíveis;
submete-os ao poder da fórmula mágica:
A maioria dos autores está de acordo em reconhecer nas práticas
mágicas os seguintes traços: visam objetivos concretos e
específicos, parciais e imediatos (...); estão inspiradas pela intenção
de coerção ou de ma nipula ção dos poderes sobrenaturais (...) e por
724
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 60.
725
PIERUCCI, A. F. Magia, p. 28.
726
Id., ibid., p. 27.
727
WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 1, p. 292.
217
último, encontram-se fechadas no formalismo e no ritualismo do
toma lá da cá.
7 2 8
Ainda segundo Pierucci,
729
todo diagnóstico mágico segue mais ou menos
ponto comum: “tens problemas?” A causa de um problema específico é “alguém”. Ou seja,
sempre se coloca a etiologia: “alguém está causando isto”, um “trabalho feito”, uma “coisa
feita”, um feitiço ou malefício encomendado por um inimigo. Está “carregado”, com um
“encosto”.
Adotando essas práticas, linguagem e procedimentos, Edir Macedo e seus
auxiliares promoveram uma irrupção autônoma do carisma configurado por um “sindicato de
mágicos”. Há, nesse segmento, produção e distribuição de bens simbólicos, como parte de
uma “economia de trocas simbólicas”,
730
com imediata ressonância nos elementos místicos e
mágicos que culturalmente configuram o campo religioso brasileiro. O movimento iurdiano
procurar satisfazer, através da magia, necessidades e desejos dos que acorrem a seus templos.
Essa manipulação do sagrado pode ser observada, por exemplo, nas palavras de Macedo: “A
verdade é que os louvores que ministramos a Deus são o seu alimento (...) Por isso mesmo,
antes de fazermos qualquer pedido ao Senhor, devemos atraí-lo com os nossos louvores”.
731
Identifica-se, aí, um aspecto de manipulação mágica do humano sobre o divino, o que está
em conformidade com a conceituação elaborada por Weber:
(...) a antropomorf ização tende (então) a tr ansl adar a o
comport amento dos deuses a gr aça livre de um poderoso senhor
mundano, a se r obtida mediante súplica s, presente s, serviços,
tributos, adulações, subornos e, por fim e nomeadamente, mediante
um comportamento agradável que c orre sponde à vontade do senhor,
concebendo os deuses em analogia com este, como seres poderosos e
inicialme nte mais fort es apenas em termos quantitativos. (...) Do ut
des é o dogma fundamental por toda a parte (...) caráter iner ente à
religiosida de cotidiana e das massas de todos os tempos e povos e
também de t odas a s religiões.
7 3 2
Nas práticas iurdianas está também muito presente a oferenda como meio
de troca pela realização do desejo:
O fiel paga primeiro. Coloca-se na posição de credor, coagindo
Deus a re tribuir abunda ntem ente. O desafio financeiro, antes de
constituir arriscada a posta, representa a c erteza da eficác ia da f é
como meio de propiciar a intervenção divina sobre determinado
infortúnio.
7 3 3
728
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 44, 45.
729
Id., ibid.
730
Expressão usada por Pierre Bourdieu em sua obra A Economia das Trocas Simbólicas, op. cit.
731
MACEDO, Edir. Vida com abundância. 10ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1990, p. 56.
732
WEBER, Max. Economia e sociedade, p. 292, 293.
733
MARIANO, R. Neopentecostalismo: os pentecostais estão mudando, p. 131.
218
A conversão que se observa na Igreja Universal não significa
necessariamente o rompimento com as antigas práticas religiosas. Ao contrário, há, na
verdade, uma apropriação re-significadora, cujo simbolismo não desaparece, recebendo
apenas como que “uma nova camada de verniz religioso” a partir de elementos legados pelas
forças dispostas no campo. Desta forma, o Jesus curandeiro, mágico e taumaturgo, age na
IURD através de seus porta-vozes, bispos e pastores, conhecidos e reconhecidos como
“homens de Deus”, vistos como mediadores entre o ser humano e o sagrado.
734
A bênção por
eles ali proferida tem a capacidade de “fechar o corpo” das pessoas, afugentar os demônios e
produzir benesses na vida daqueles que levam para a casa alguns objetos recebidos na Igreja.
A IURD faz ressurgir, assim, experiências cotidianas muito intensas com o sagrado,
marcadas pela prática de curas, tal como faziam antigos taumaturgos, curandeiros ou xamãs,
usando-se para isso, procedimentos de conotações mágicas e exorcistas, e que manda as
pessoas de volta para a casa, levando talismãs ou fetiches carregados de energias “benéficas”,
direcionadas à solução dos casos mais difíceis.
O que também se constata com isto é que, apesar de todo esforço
prolongado para a eliminação da magia, como analisado anteriormente, o movimento
iurdiano, enquanto ramificação protestante, veio comprovar que não se atingiu aquele fim
esperado. Se até meados do século passado, na Europa, com o crescimento do número de
pessoas que afirmavam o possuir crença religiosa, chegou-se a falar “na morte de Deus”,
ou, num “desencantamento do mundo”,
735
- gerado por um processo de “racionalização e
intelectualização”, do qual o protestantismo é participante ao forjar uma postura
racionalizante da vida, isto como resultado de um crescente processo de secularização - o que
hoje se observa é que o campo religioso caminha na direção contrária: o retorno a uma
intensa imersão na magia, gerando-se um dinâmico e recriativo encantamento do um mundo:
Enquant o se estilhaçam as instituições, longe das igrejas, perto da
magia, é a importânci a do sagr ado que assim se rea firma,
demonstrando que a religião na socie dade brasileira a inda é um
elemento essencial na demarcaçã o de fronteiras entre a esfera
pública e a vida privada, num mundo que lentamente vol ta a
reencantar-se.
7 3 6
Dado o seu estabelecimento no campo religioso brasileiro, a magia tem
persistido, como uma espécie de “eterno retorno”, recriando-se, renegando-se. Reginaldo
734
PIERUCCI, A. F. Magia, p. 36.
735
WEBER, Max. In: GERTH, H.; MILLS, C. (Orgs.) Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p.
182.
736
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 149.
219
Prandi comenta esse aspecto da recuperação da magia nas práticas dos segmentos religiosos
aos moldes iurdianos:
O que há de mais car ac te rí stic o na multiplicação mais recente de
religiões e na expansão da conversão ou reconve rsão a essas novas
ou renovadas formas de cre nças é a falta de compr omisso com
qualquer postura que releve o caráter racional, cie ntífico e
historicista fundante da sociedade na sua presumida modernidade
desencant ada. Essas religiões não estão preocupadas em ret er nos
seus conte údos explicativos e orientadores da conduta fundamentos
impor ta ntes do desencantamento do mundo. O desencantamento
significa o refluxo da magia (...) mas o que as novas propostas
religiosas fazem e pr ofessa m significa voltar atrás, recuperando a
magia com m uito vigor .
7 3 7
É preciso sublinhar que as práticas de magia no ambiente da Igreja
Universal tem demonstrado contornos inovadores em relação às conceituações clássicas.
Primeiro, a magia ali praticada possui denotação coletiva: não apenas uma relação isolada
ou independente entre o mago e seu “cliente”, mas, ao contrário, intensas relações e
interatividade são vivenciadas nos ritos disponibilizados. Nesse sentido se aplicam com
propriedade as palavras de Bourdieu quando afirma que “é impossível compreender a magia
sem o grupo mágico”, e acrescenta:
Em matéria de magia, a questão não é tanto saber quais são as
proprie dades específicas do mago, nem sequer operações e
representações mágicas, mas determinar os fundamentos da crença
coletiva ou, ainda melhor, do ir reconhec imento coletivo,
coletivamente produzido e manti do, que se encontra na origem do
poder do qual o mago se apropria (...).
7 3 8
A esse processo interativo e representativamente conjugado, cabem também
as observações feitas por Lévi-Strauss:
A efi cácia da magia impli ca na crenç a da magia: existe ,
inicialme nte, a crença do feiticeiro na efi cácia de suas técnicas; em
seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele
perse gue, no poder do próprio feiticeiro; finalme nte, a c onfiança e
as exigênc ia s da opinião col etiva, que form a a cada instante uma
espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se
situam as relações entre o feitic eiro e aquele que enfeit iça.
7 3 9
Segundo, essa instituição demonstra a gica habilidade em o deixar a
magia institucionalizar-se. A tendência natural do campo é de que o movimento mágico ou
profético caminhe para uma complexa estrutura hierárquica, com cerimônias mais
complexas, tornando-se, no caso do cristianismo, igreja. Segundo Weber, num processo
dialético, quando o carisma se torna rotina, aparece a instituição, e esta, por sua vez, lugar
737
PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 95.
738
BOURDIEU, P. A produção da crença, p. 28, 29.
739
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 194.
220
a um processo de nova irrupção do carisma autônomo, sectário. Este carisma vive, então, um
processo oscilante entre a manifestação e a latência: a institucionalização é o período de
latência do carisma autônomo que, ao se manifestar, promove a desinstitucionalização:
Os m ovimentos de renovação carismática ou de reavivamento
aparecem precisamente quando as sociedades religiosas, i grejas,
alcançaram um grau de burocratização, que já não dá lugar para a
espontane idade (...) A ir rupç ão ou manifesta ção do carisma toma,
no início, a forma orgânica de uma seita, que depois evolui até
tomar a f orma de uma igreja (...).
7 4 0
Esse processo gerador de mobilidades estruturais é descrito por Carlos
Rodrigues Brandão da seguinte forma: “Se alguma coisa é realmente estável no mundo da
religião, essa coisa é a dialética de sua constituição, onde a Igreja conquista o sistema e gera
a seita que vira a Igreja que produz a dissidência”.
741
Victor Turner também observa que, com o passar do tempo, os movimentos
“liminares” caminham para a cristalização, reingressando-se na estrutura, recebendo um
inteiro suplemento de papéis e posições estruturais: “O tempo e a história introduzem, porém,
a estrutura na vida social daqueles movimentos e o legalismo em sua produção cultural”,
742
pois, nestas, “os indivíduos estruturalmente inferiores aspiram superioridade simbólica
estrutural no ritual”.
743
Na linguagem de Weber e Bourdieu, a igreja é o estágio de maior
organização ou burocratização da “seita”, ou a etapa de institucionalização do movimento.
Por isso, é natural que a racionalização da prática religiosa leve a um crescente
enfraquecimento do espírito mágico diante do religioso. A tendência no campo religioso é a
de que se forme, portanto, a partir dos movimentos liminares, uma “comunidade religiosa de
irmãos” instituída na forma de igreja, em torno do serviço divino administrado rotineiramente
pelos sacerdotes, isto é, uma “comunidade moral permanente e permanentemente
moralizável” pela “ação pastoral de proselitismo insistente e endoutrinação incansável dos
seguidores, a fim de fazê-los e mantê-los fiéis”.
744
O representante da instituição,
burocratizada, torna-se sacerdote, que pereniza a rotina de um sistema de crenças e ritos
sagrados:
Está, portanto, predisposto a atuar em defesa da ordem simbólica e
social, sendo por si mesmo incapaz de produzi r o novo ou expressar
740
CAMPOS, Bernardo. Da Reforma Protestante à pentecostalidade da igreja: debate sobre o pentecostalismo
na América Latina. São Leopoldo: Sinodal, 2002, p. 50.
741
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 113.
742
TURNER, V. O processo ritual, p. 202.
743
Id., ibid., p. 245.
744
Id., ibid., p. 27.
221
aquilo que nã o é lícito existir: tudo que está fora da ordem (definida
como natura l ou divina) é anatematiza do como pecado.
7 4 5
Nesse sentido, o movimento iurdiano percorreu um caminho histórico com
amostras de aproximação da magia, que originou suas práticas, de uma estrutura
institucionalizada. O quadro a seguir, que descreve a distribuição hierárquica de funções
exercidas, demonstrando um certo grau de complexidade organizacional da IURD, parece
comprovar esse aspecto:
- Edir Macedo: Fundador e líder máximo da igreja. Nenhuma decisão importante, seja de
caráter religioso, seja financeiro, é tomada sem sua interferência.
- Conselho Episcopal Mundial: É o órgão máximo da igreja, formado por bispos no Brasil e
fora do país.
- Líderes Estaduais: Podem ser bispos ou pastores. Controlam a arrecadação dos templos nos
Estados.
- Pastores Regionais: Administram de dez a quinze templos em suas regiões.
- Pastores: Subordinados aos bispos, os pastores estão espalhados pelos templos existentes
no Brasil e no exterior. Administram apenas um templo, ministram cultos e indicam seus
auxiliares.
- Pastores Auxiliares: São uma espécie de estagiários. Ajudam o pastor titular nas tarefas do
templo, mas não ministram cultos.
- Obreiros: São milhares espalhados nos diferentes templos. São requisitados do grupo de
fiéis, cuja principal missão é auxiliar nos templos: limpeza e ornamentação, recepção de
visitantes, distribuição de literaturas e auxílio nos momentos de cultos e rituais. Vestem-se
com uniformes específicos durante o período em que exercem suas funções.
Atualmente, a IURD possui, além de algumas dezenas de bispos, cerca de
dezesseis mil pastores titulares e auxiliares, responsáveis pelos mais de cinco mil templos no
Brasil. Acrescenta-se a isso o fato de que à medida que obteve rápido crescimento, gerando
grande movimentação financeira e posse de enorme patrimônio imobiliário, a Igreja
Universal passou a adotar mecanismos mais sofisticados de gerenciamento de seu capital. Em
1989, por exemplo, adquiriu a Delpa Distribuidora de Títulos e Valores, empresa atuante no
mercado de capitais.
746
Depois, em 1991, comprou por três milhões de dólares o Banco Dime,
que se transformou no Banco de Crédito Metropolitano, dirigido por um pastor.
747
745
OLIVEIRA, P. A. R. A teoria do trabalho religioso em Bourdieu, p. 187.
746
Cf. Jornal da Tarde, São Paulo, 06 abr. 1991.
747
Cf. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 05 jun. 1992.
222
Pelo quadro exposto acima seria de se esperar que o elemento mágico do
movimento iurdiano tivesse atingido um grau de institucionalização que o caracterizasse
como igreja aos moldes mais clássicos. Entretanto, não obstante a presença desses elementos
institucionais que envolvem a IURD, de se destacar a sua capacidade de preservar o
aspecto de magia em suas práticas, num dinamismo que permanentemente se atualiza.
Quais seriam, então, os segredos iurdianos para manter a alquimia que
combina elementos, em tese, concorrentes? Primeiro, a IURD opera com as regras do
campo, em que prevalece a alquimia do múltiplo. Essas forças operantes no campo religioso
possuem porosidade, são produtoras de circularidades, que mobilizam fronteiras entre o que é
liminar e institucional, folclórico e clerical, herético e canônico. Marcel Mauss comenta essa
funcionalidade do elemento coletivo:
Se pudermos mostrar que, na magia considerada em sua totalidade,
reinam forças semelhantes à quelas que agem na rel igiã o, te remos
mostrado que a magia tem um caráter coletivo idêntico ao da
religião. Só nos r estará, entã o, fazer ver como essas forças coletivas
foram produz idas, não obstante o isolamento que, segundo o que
parece, se encontram os magos, e seremos le vados a conceber a
idéia de que esses indivíduos limitam -se a se apropriar das forças
coletivas.
7 4 8
Em segundo lugar, líderes e fiéis são orientados por um habitus
historicamente construído pelas experiências com religiões de mediúnicas, de mistério e de
encanto. Os agentes iurdianos incorporaram, assim, esses elementos pela própria experiência
de trânsito religioso que tiveram por igrejas católicas, pelo protestantismo histórico, pelo
pentecostalismo clássico e, principalmente, por religiões afro-brasileiras. Por isso o carisma
da magia não permite que nela ocorra o elemento da rotina. As suas reuniões não se
transformam em liturgia que inibe a manifestação do inédito. Comparecer ao templo é estar
preparado para o mistério do imprevisível, do novo que a qualquer momento pode irromper.
Assim, em uma sociedade marcada pela violência, individualismo e desagregação, a
Universal também opera eficazmente com flexibilidade capaz de responder na mesma
agilidade com que os anseios também se avolumam em meio ao caos:
Ora , as religiões tradicionais, como religião, têm a função de
cultuar e manter um univer so fixo e previsível. Quando e sse
universo se desorganiza, as reli giões tradiciona is têm dificuldades
para ajustar as pessoas. Entr a então a magia, c om sua visão mais
compartimentada do universo, que permite ajustes imediatos e
parciais. Seria, então lícito, concluir que o neope ntecostalism o é um
ajuste entre re ligi ão e magia.
7 4 9
748
Apud BOURDIEU, Pierre. A produção da crença. Contribuição para uma economia dos bens simbólicos.
São Paulo: Zouk, 2002, p. 115.
223
Terceiro, a permanente recepção de novos adeptos, provenientes em sua
maioria de crenças folclóricas, mantém alimentado o repertório mágico iurdiano. É uma
Igreja que se alimenta de outras manifestações religiosas brasileiras, das próprias
representações que necessita combater. Nesse sentido, o crescimento escalonário da IURD
rompe com um postulado proposto por Victor Turner, de quenos movimentos liminares se
cria uma organização hierárquica à medida que o número de membros aumenta”.
750
No
campo religioso brasileiro, os segmentos que obtiveram estagnação em termos de
crescimento - em alguns casos, tendo inclusive decréscimo de filiação, como é o caso de
históricas denominações do protestantismo clássico mostram perfis de institucionalização
dogmática, rígida. No caso da Universal, a adesão de cada novo fiel tem contribuído para
assegurar a atualização das origens do movimento. Como que num ciclo vicioso, os novos
convertidos são atraídos, ali, à mensagem sedutora do mistério e da magia; uma vez
ascendendo às funções de obreiros, pastores ou bispos, perpetuam tais práticas.
E, por fim, destaca-se o fato da IURD ter conseguido desenvolver uma
organização intermediária entre a cultura folclórica e a clerical: um sindicato de magia.
Ricardo Mariano chega a usar a expressãomagia institucionalizada” para tentar descrever a
capacidade da IURD de lidar com a tensão que os elementos da religião e da magia
congregam.
751
Mendonça emprega o termo “igreja mágica no esforço por conceituar tal
experiência.
Contrariando Durkheim, dentro de uma eclesiologia desatenta,
podería mos dizer que o neopentecostalismo constitui, ou institui,
igrejas mágica s. (...) Essas igrejas estão sempre cheias, mas de
clientes que buscam solução mágica para os problemas do cotidiano,
mantendo sua identidade religiosa tradicional. N ão são, portanto,
igrejas, mas clie ntes de be ns de religião obtidos magicamente.
7 5 2
Reginaldo Prandi parte do princípio de que, se o protestantismo clássico
teve um compromisso natural com o processo de “desmagicização” do mundo moderno, a
Igreja Universal seria então propagadora de uma mensagem religiosa “falsificadora” do
protestantismo clássico, logo, “anti-protestante”.
753
E, considerando que o esforço protestante
não foi capaz de banir a magia, Prandi aponta então duas possibilidades para uma
compreensão do que ocorre no movimento iurdiano: ou as pessoas recorreram a “outros tipos
749
MENDONÇA, Antonio de Gouvêa. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus
personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 1997, p. 161.
750
TURNER, V. Op. cit., p. 222.
751
MARIANO, R. Igreja Universal do Reino de Deus: magia institucionalizada?. Op. cit.
752
MENDONÇA, A. G. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus personagens, p. 161.
753
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1991, p. 188.
224
de controle mágico, para substituir os remédios oferecidos pela religião clerical, ou teria o
próprio protestantismo violado suas premissas, para elaborar uma magia própria.
754
Finalizando esse item, é plausível afirmar que a IURD surgiu como um
rompimento ao modelo de protestantismo que se quis averso ao elemento mágico, provando
que as fronteiras estanques convencionalmente estabelecidas entre magia e religião possuem
porosidades, pois são elementos imbricados. Dessa forma, aos moldes de um sindicato, é
vivenciado um tipo de “magia protestante”, ou “magia evangélica”, num dinamismo eficiente
que permite a magia e a instituição clerical agirem conjuntamente, complementando-se,
inclusive. Ao combater as práticas católicas e afro-brasileiras, o segmento iurdiano, em
aparente ambigüidade, repõe assim em seus rituais práticas que escandalizam os protestantes
clássicos e desafiam a concorrência católico-romana, pois o campo religioso tem se tornado
“um campo de manipulação simbólica mais amplo”
755
do que as fronteiras estabelecidas pela
religião institucionalizada.
3.6.3 O carisma messiânico-milenarista
O campo religioso brasileiro possui grande presença de elementos
messiânicos e milenaristas. Maria Isaura Pereira de Queiroz conceitua aquele primeiro
elemento nos seguintes termos:
A idéia messiânica não é peculiar ao judaísmo (...) Mas foi na
antiga re ligião judaica que a noção adquiriu sua defi nição plena. O
conceito messiânico parece ter passado aos jude us proveniente de
fonte oriental. Ocorre pela primeira ve z no livro de Samuel,
sugerindo o contexto que o messias era o ungido do Senhor e que
seu papel era político (...). Somente depois do cativeiro, por ém,
surgiu uma prome ssa clara de uma idade ainda por vir, e na qua l
todas as injustiç as ser ia m sa nada s.
7 5 6
Originariamente, na língua hebraica, o termo “messias” significa
“ungido”.
757
O judaísmo e o cristianismo na Antigüidade foram os principais responsáveis
pela difusão de tal expectativa em todo o mundo ocidental. Mas sua definição passou a ser
empregada para designar movimentos com tais perfis mesmo em sociedades que não
754
THOMAS, K. Op. cit., p. 75.
755
BOURDIEU, P. Coisas ditas, p. 121.
756
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa e Omega, 1982, p.
25.
757
DOBRORUKA, Vicente. História e milenarismo. Ensaio sobre tempo, história e milênio. Brasília: UNB,
2004, p. 115.
225
conhecem a figura de um messias nos moldes judaico-cristãos, ainda que tal emprego deva
merecer certo cuidado:
Existem aqueles que supõem que os movimentos messiânicos
somente podem ocorrer em soc iedade s que tenham tido algum
contato com a herança judaico-cristã ( ...) e por outro lado os que
afirmam ser a expectativa da vinda de um redent or e a instaura ção
de uma idade de ouro traços universais, enc ontráveis em todo o
mundo e em todas as sociedades.
7 5 8
Na tradição cristã, a palavra “milenarismo” remete, em seu sentido
primeiro, à espera de um reino de mil anos de paz sob o reinado de Cristo, então de volta à
terra antes do juízo final. Em sentido mais amplo, “entende-se por ela todas as esperanças,
todas as aspirações de conotações religiosas prevendo o surgimento sobre a terra de uma
ordem perfeita, de certa forma paradisíaca”.
759
Constitui-se o cerne dessa mentalidade,
portanto, a crença de que o mundo terreno está com os seus dias contados e que, por
deliberação divina, chegará brevemente ao fim para dar lugar a um outro mundo o reino da
paz, da boa-aventurança e da justiça.
Outra corrente , igualmente poderosa, arrastou muitos deles [homens
da Idade Média] para outra e sperança , para outro desej o: a
realização na terra da f elicidade eterna , o regresso à idade de ouro,
ao para íso perdido. (...) O mile narismo é um aspecto da escatologia
cristã, enxerta-se na tradição apoc al íptica (...) o clima dramático
desemboca-se numa mensage m de esperança.
7 6 0
Desde o fim da Antigüidade, as idéias escatológicas contendo elementos
milenaristas situavam-se fora da tradição doutrinal da Igreja. O estado ideal cujo surgimento
esperava-se era essencialmente definido pela purificação da Igreja, numa atitude crítica em
relação à religião oficial estabelecida.
Messianismo e milenarismo podem apresentar elementos afins ou
complementares, ou que se coadunam, pois o estabelecimento de um reino de paz, ou a
antecipação das benesses do paraíso na terra, tem a condução de um ou mais líderes
messiânicos. Maria Isaura apresenta uma descrição de como isso acontece:
Essas doutrinas religiosas que prediz iam o nascimento na terra de
uma era de felic idade per feita são chamadas de mil enares; elas se
opõem à sociedade existente, que é considerada tão injusta quanto
opressora, e proclamam sua queda iminente. Essas doutrinas são
chamadas de messiânicas sempre que o iní cio desse mundo
perfeito depender da chegada de um filho de Deus, de um
mensageir o divino, ou de um herói mítico: na realidade, de um
Messias . É o Messias que dá início e que anuncia na te rra o
758
Ibid., p. 114.
759
TÖPFER, Bernhard. Escatologia e milenarismo. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.).
Op. cit., p. 353.
760
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. V. 1. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 233.
226
Reino dos Céus. [...] os movimentos milenar es podem ser
dirigidos por um grupo de idosos ou por lídere s e le itos entre os
fiéis (...); um movimento é messiânico se for dirigido por um líde r
sagra do, um mensage ir o do além.
7 6 1
Maria Isaura, quando qualifica o campo religioso brasileiro como solo fértil
para o florescimento de messianismos milenaristas, apresenta ainda outros aspectos: credita
às crenças religiosas e míticas a importância dos elementos constitutivos desses fenômenos.
Crenças apocalípticas que se fazem presentes no imaginário popular de vastos segmentos
sociais, catalisaram a fermentação de um clima propício à eclosão desses surtos. De acordo
com essa autora, esses movimentos decorrem do encontro do imaginário ameríndio com uma
intensa tradição de representações salvacionistas da sociedade européia colonizadora da
América. O desenvolvimento de uma mentalidade messiânica, desde os tempos coloniais no
Brasil, aglutina, pois, um cristianismo de penitência e de apocalipse, marcado por
redefinições peculiares, influências indígenas e africanas. É o universo do capelão, que
desconhece os dogmas católicos, mas se encarrega na costumeira ausência das autoridades
eclesiásticas da condução dos ritos, das orações e ladainhas que acompanham as práticas
religiosas da população pobre do campo. É também a religião das festas, da devoção aos
santos, das romarias, das penitências, manifestações muitas vezes avessas aos agentes oficiais
da igreja. Afirma, Maria Isaura, que esse distanciamento, por vezes tenso, em relação ao
catolicismo oficial, é o ventre fecundo dos líderes religiosos leigos, penitentes, “santos” e
beatos que “se acredita serem os verdadeiros representantes de Deus, que os inspira
diretamente, enquanto o padre é antes um funcionário da igreja”. E também não é raro que
este último fosse estrangeiro, tendo por isso muitas vezes dificuldades de bem compreender
os costumes locais.
Detalhando ainda mais a definição desse compósito cultural, na
classificação que apresenta, Maria Isaura identifica a primeira tipologia nos messianismos
mais autóctones inspirados na mitologia indígena e nas visões de mundo que antecederam e
permaneceram após a chegada dos colonizadores ibéricos. Foi assim com os Tupi e com os
Guarani, quando as tribos, em massa, peregrinavam periodicamente em solo brasileiro na
busca do seu “paraíso”, a Terra sem Mal, cuja existência é aventada no corpus mítico desses
povos como um lugar em que o arco e flecha caçariam sozinhos, ninguém envelheceria, nem
adoeceria ou morreria.
762
Também Jean Delumeau, ao se referir aos messianismos que se
exprimiram na civilização ocidental como sendo a “nostalgia do paraíso perdido”, ou ainda
761
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Messinic Miths and Movements. Diogene’s, Paris, n. 90, 1975.
762
CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal. São Paulo: Brasiliense, 1978.
227
como “a duradoura esperança de reencontrar no futuro o paraíso terrestre das origens”,
763
cita,
dentre outras culturas, o caso “dos guaranis”.
764
Tais povos se apegavam às orientações de
seus líderes espirituais, xamãs
ou pajés, que assumiam papéis de profetas e guias religiosos
conhecedores do caminho para a condução ao paraíso sonhado. Arrebatados pelos inflamados
discursos dos profetas-xamãs, cujas pregações anunciavam a iminência do fim do mundo e
outras catástrofes, expressivos contingentes daqueles indígenas deixavam suas aldeias à
procura da Terra sem Males,
A peculiaridade destes messianismos consiste, pois, em que
surgiram endogenamente, causados por um a mitologia messiânica.
As migrações foram produzidas sob a conduç ão de um profeta
carismático, na maioria dos casos um xam ã (pajé), buscando a
terra sem males” para o leste, mais além-mar, o que explica o
trajeto desde o interior pa ra a costa.
7 6 5
[grifo nosso]
Também Maria Isaura destaca a participação de líderes neste processo:
Profetas indígenas iam de a ldeia em aldeia aprese ntando-se como
reencarnação de heróis tribais incitando os índios a aba ndonar o
trabalho e a dançar, pois os “novos tempos, que instalariam na
terra uma espécie de Idade de Ouro, e stavam par a chegar .
7 6 6
Outro grupo apresentado na taxonomia elaborada pela autora compõe-se
pelos chamados movimentos messiânicos de influência ocidental. Uma mentalidade com tais
representações norteou os primeiros conquistadores que chegaram ao Brasil colonial, com
raízes em tempos primevos. Delumeau
767
também explica o fato referindo-se ao que ocorrera
com o messianismo milenarista propagado por Joaquim de Fiore,
768
nos séculos XII e XIII, o
qual teria sofrido influência de uma tradição escatológica que se reporta aos séculos IV e VII
d.C., no Ocidente, quando foram redigidos textos sob o nome de “sibilinas cristãs”,
anunciando a vinda de um rei ou imperador cristão, cujo reinado se instalaria em
Jerusalém.
769
Essas “sibilinas” circularam durante toda a Idade Média e foram impressas no
763
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1990,
p. 441.
764
Id., ibid.
765
PRIEN, H. J. La historia del cristianismo em America Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 313.
766
QUEIROZ, M. I. P. Messianismo no Brasil e no mundo, p. 165.
767
Outro pesquisador sobre tal temática é Norman Cohn. Ver COHN, Norman. Na senda do milênio.
Milenaristas, revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média. Lisboa: Presença, 1981.
768
Joaquim de Fiore (1145-1202) foi abade de um mosteiro na Calábria, no sul da Itália. Em seus inúmeros
livros desenvolveu uma filosofia da história com base em genealogias bíblicas, a partir do que calculou e previu
o retorno de Cristo à terra para o ano 1260 d.C, fato que seria seguido por um reinado terreno com duração de
mil anos, quando seria então estabelecido o paraíso da terra. Fiore conquistou e influenciou inúmeros
seguidores.
769
Joaquim de Fiore sem empregar a palavra “milênio”, anunciou a vinda de um tempo do Espírito, no qual a
humanidade viveria em um estado de piedade e de paz. Escreve Delumeau: “Joaquim, morto em 1202, estimava
que um período crítico ia começar muito em breve e duraria até por volta de 1260 e que, depois desse tempo de
turbulências, a “religião monástica” faria reinar paz no mundo. Ele evocou apenas em termos sóbrios essa futura
228
fim do século XV. Antonio Gouvêa Mendonça afirma: “a profecia joaquiniana é também
responsável por boa parte da mentalidade messiânica que perpassa o movimento
pentecostal”.
770
Esta esperança messiânica medieval sustentou a empresa das Cruzadas, vindo
influenciar, inclusive, Cristóvão Colombo, que esperava financiar a retomada de Jerusalém
através das riquezas dos países que descobrira.
771
Dessa forma, estas concepções se
deslocaram para a América como parte do imaginário dos conquistadores europeus, sendo
alimentadas pelo desejo de se encontrar tal paraíso perdido, conforme bem demonstrou
Sérgio Buarque de Holanda.
772
O Padre Manoel da Nóbrega, em uma carta escrita em 1549, menciona um
movimento entre os tupiniquim e os tupinambá:
Somente entre eles se f az em cerimônias da maneira seguinte: De
certos e certos anos vêm uns feiticeiros de mui longe terras,
fingindo trazer santidade e ao tempo de sua vinda lhes mandam
limpar os caminhos e vão recebe-los com dança e festas, segundo o
costume (...) Em chegando o feiticeiro... lhes diz que não cuidem de
trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si virá a casa e que
as enxadas i rã o cavar e as fle chas irão ao mato por caça para seu
senhor e que hão de matar muitos dos seus c ontrários, e c at ivar ão
muitos para seus comeres e promete-lhes larga vida, e que as velhas
vão se tornar moç as...
7 7 3
Também o Padre José de Anchieta, em carta escrita em 1557, destaca outro
exemplo de representações de messianismo presente no Brasil colonial:
Pelo se rtão anda agora um ao qual todos seguem e veneram como a
um gra nde santo. Dão-l he quanto têm, porque se isto não fazem
crêem que el e com seus espíritos os matará logo. Este mete ndo fumo
pela boca, aos outr os lhes dá seus espíritos, e faz seus semelha ntes.
Aonde quer que va i o seguem todos, e a ndam de cá para lá,
deixando suas próprias casa s.
7 7 4
Também estudos feitos por Antônio Cândido
775
constatam que os
segmentos da população brasileira que ofereceram espaço para as manifestações messiânicas
apontam para um imaginário com raízes fincadas no “sebastianismo”
de Portugal, colorido e
felicidade espiritual e, não obstante, terrestre”, cf. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300
1800), p. 445.
770
MENDONÇA, A. Gouvêa. In: Sociologia da religião no Brasil. São Paulo: UMESP, 1998, p. 74.
771
Ibid., p. 446-447.
772
HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do paraíso. São Paulo: Nacional, 1969. Outro pesquisador, Ronaldo
Vainfas, ao falar sobre milenarismo, reporta-se ao conceito de “mito”, conforme o conceitua Mircea Eliade: “o
mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso
dos começos”. Apontando para este modelo de anúncio apocalíptico que ocorrera na América após a conquista,
Vainfas afirma que a “previsão apocalíptica implica necessariamente a indicação do recomeço”. Cf. VAINFAS,
Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 35.
773
VAINFAS, R. A heresia dos índios, p. 99.
774
Ibid., p. 109.
775
CANDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975.
229
reforçado no fértil solo indígena do mito da “terra sem males”, presente no contexto
brasileiro. O “sebastianismo” significou a crença, muito difundida em Portugal, nos séculos
XVI e XVII, em relação ao regresso vitorioso do rei D. Sebastião, morto na batalha de
Alcácer-Quibir, atualmente Marrocos, em 1578. Ao tornar-se rei, Sebastião foi chamado “O
Desejado” e ao morrer foi aguardado como o “Encoberto”. Isto porque, dadas as
circunstâncias misteriosas da sua morte, desenvolveu-se a crença de que talvez tivesse
sobrevivido à batalha e se tornado prisioneiro dos mouros ou estivesse escondido
(“encoberto”) na África. Daí a espera pelo seu retorno.
Esse imaginário português transferiu-se para o Brasil com a colonização,
fincando raízes especialmente na região Nordeste. A partir de 1640, o principal disseminador
dessas idéias foi o padre Antonio Vieira, fato que muito provavelmente tenha ajudado a
impregnar de sebastianismo as crenças religiosas no Brasil. Logo a crença sebastianista deu
lugar à expectação de um salvador no sentido mais geral, aproximando-se sensivelmente do
messias de Israel, ao desenhar o anseio popular pelo aparecimento de um personagem
redentor messiânico. O “Encobertismo”, como é também conhecido o sebastianismo, teve,
inclusive, muita guarida entre os judeus e é possível que os cristãos-novos também tenham
dado sua contribuição para propagar tal crença no Brasil. Também as longas migrações de
milhares de indígenas, anotadas desde o século XVI, em busca de imortalidade e descanso
eternos, podem ter alimentado ou oferecido solo propício para diversos movimentos
sebastianistas no século XIX, quase todos eles com desenlaces trágicos.
776
O pesquisador Antonio Gouvêa Mendonça, analisando movimentos com
tais perfis, afirma:
De fato, a história da coloni zação brasileira manifesta um cli ma
messiânico e, possivelmente, uma ment alidade messiânica.(...) Os
estudiosos desses movimentos concordam, regra geral, que eles
surgem em popula ções rurais subalt er nas em si tuaçõe s anômicas ou
de mudança soc ia l, em que os modos de vida tradicionais são
ameaçados. Quando a estes fatores soma -se a fa lta de assistência
religiosa, como ocorreu dur ante quase todo o desenvolvimento da
sociedade brasileira rústica, as condiç ões para a emergência de
messianismos sã o bast ante f avoráveis. C reio ser válida a hipótese de
que a junção da s crenças indígenas sobre a Terras sem Males com
as crenças sebastianistas formou na civilização rústica brasi leira
uma mentalidade messiânica.
7 7 7
O historiador Levine comenta que “no período moderno podemos
identificar oito movimentos messiânicos brasileiros que (...) deixaram as suas marcas
776
Cf. CLASTRES, Hèlene. Terra sem mal. São Paulo: Brasilienses, 1978; BASTIDE, Roger. As religiões
africanas no Brasil. V. 1 e 2 . São Paulo: Pioneira, 1971.
777
MENDONÇA, A. G. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil, p. 247-248.
230
importantes” no país.
778
Destaca que no século XIX, por exemplo, ocorreram no Brasil
diversos movimentos sociais de inspiração sebastianista, como o de Pedra Bonita, em
Pernambuco, em 1817; O Reino Encantado, também iniciado em Pernambuco, por volta de
1836; A Cidade Santa (Juazeiro, Ceará), fundada em 1872 pelo Padre Cícero, o mais extenso
movimento messiânico brasileiro, pois que hoje ainda permanece. Assim, merece registro o
fato de o pentecostalismo, por exemplo, ter se desenvolvido inicialmente no Norte e no
Nordeste brasileiros - regiões tradicionalmente marcadas por movimentos religiosos
populares com perfis messiânicos.
no século XX, registra-se o movimento milenarista do Contestado, mais
ou menos com as mesmas características dos anteriores. Na “Guerra do Contestado”, como
ficou conhecida, de 1912 a 1916, na região fronteira entre Paraná e Santa Catarina, velhas
tradições e concepções culturalmente folclorizadas revigoraram-se até mesmo no plano
militar e redefiniram profundamente a vida diária da população regional, sacralizando e
militarizando o cotidiano no grande embate entre o bem o mal, entre a justiça e a injustiça.
Tais movimentos são revoltas camponesas diante da penetração do modelo econômico
capitalista no campo, da ruptura das antigas formas de relações de produção e de relações
sociais. Nesse sentido, Maurício Vinhas de Queiroz, em trabalho publicado em 1965,
779
buscou uma explicação global para a eclosão desse tipo de reação popular. Esse autor
encontra a explicação para a Guerra Sertaneja do Contestado, por exemplo, “numa crise de
estrutura, em que problemas sociais acumularam-se e agravaram conflitos latentes entre
diferentes classes sociais”.
780
O pesquisador René Ribeiro considera que para se compreender a
constituição de um movimento messiânico, além de causas sócio-culturais e a atração
estética que exerce a idéia de uma era perfeita”, é necessário levar em conta “o fascínio que
os novos líderes exercem”.
781
Jean Delumeau, quando se refere a movimentos milenaristas
dos séculos XIX e XX, apresenta, dentre outros fatores que propiciam o seu florescimento, os
“desequilíbrios surgidos no interior de uma sociedade dada ou de uma desorganização social
provocada por fatores externos”, os quais podem recrutar adeptos em todos os níveis
sociais.
782
Maria Isaura também situa o fenômeno milenarista numa lógica social, destacando-
o como uma força ativa e não apenas uma espera contemplativa por uma intervenção divina.
778
LEVINE, Robert. O sertão prometido. O massacre de Canudos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 309.
779
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social. A Guerra Sertaneja do Contestado 1912-
1916. São Paulo: Ática, 1981.
780
HERMAN, Jacqueline. In: CARDOSO, C. F. ; VAINFAS, R. Op. cit., p. 349.
781
Apud LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 327.
782
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800), p. 155.
231
Ajudam nas mobilizações da luta contra a morte social, contra a perda de identidade,
construindo ações articuladas, criando esperança na possibilidade do novo. Entretanto, para
essa autora esse universo simbólico deve ser reposicionado especialmente nos setores da
população rural. Contextos de expropriação ou de privação a que camponeses pauperizados
estão submetidos, por esse motivo o apontados como fatores responsáveis por tais
manifestações.
783
Todas essas revoltas, enfim, buscam na religião seu ponto de partida e sua
força de aglutinação. O imaginário religioso é que expressa essas redefinições, constituindo
como uma espécie de documento cultural sobre mudanças nas mentalidades.
A Igreja Católica, mantendo sua postura institucional, tem historicamente
marcado distância de todas essas expressões populares. Foi a primeira a condenar o que
chamou de fanatismo religioso dos seguidores de Conselheiro e a emprestar seu apoio à
repressão do Estado que se seguiu àquele movimento. Não foi diferente sua atitude com o
Padre Cícero de Juazeiro, suspenso de ordens até o fim de sua vida, ou com o monge José
Maria, do Contestado:
Toda igreja constituída tem, sem dúvida, seus místicos, mas ela
desconfia dele s, ela lhes delega seus confessores e seus diretore s
para dirigir, canalizar, controlar seus estados extáticos (...) Os
movim entos de reforma, a s heresias, os messianismos, os
milenarismos sã o expressões sociais do desejo de volta a um
passado vibrante e efervesc ente de deuses sonhados.
7 8 4
O movimento iurdiano, ainda que não possa ser classificado como
tipicamente messiânico pelos moldes clássicos, notadamente apresenta práticas que
configuram representações de um tipo de “messianismo no mundo urbano”. Podem ser
identificadas, em seu meio, como messiânico-milenariastas, as seguintes características:
proposta de estabelecimento terreno de um reino de felicidade; crença de ser o grupo portador
de uma especial eleição ou saberes divinos; pressuposição de um outro reino terrenamente
acessível aos membros do grupo; a existência de um reino do bem em combate a um reino do
mal; formação e desenvolvimento de um poder paralelo ao existente na sociedade geral;
amparo e sentido frente a um contexto de crise e desestabilidade, com deslocamento de um
imaginário com representações rurais para um contexto urbano.
Para que estes elementos pudessem se configurar foi necessário, como
visto, a existência de um capital simbólico próprio disposto no campo. Há, no Brasil, um
substrato cultural fortemente marcado pela crença de que é possível a superação de
783
QUEIROZ, M. I. P. O messianismo no Brasil e no mundo, 1977.
784
DOSSIÊ: Religiões no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo: USP, n. 52, v. 18, p. 31, 2004.
232
contingências e mazelas seguindo-se à voz de comando de líderes visionários com forte
representação de carismatismo. A IURD se apropria, portanto, de um capital simbólico
messiânico-milenarista disposto no campo e de maneira bastante criativa o re-significa,
mobilizando-o em seu favor. Em suas práticas, os dois elementos estão conjugados, ou seja, o
acesso ao reino de paz e felicidade já está acessível aos fiéis, sendo necessário para isso estar
sob a orientação e o comando de seus bispos e pastores. A seguir, mais detalhadamente, uma
análise destas representações nas práticas iurdianas.
Em primeiro lugar, a IURD se apresenta como um reino de benesses
terrenas com acesso imediato. Não é sem propósito que escolheu colocar no seu nome a
palavra “reino”. Fala-se ali de um outro reino terrenamente acessível aos membros do
grupo. Não há mais a necessidade da morte ou mesmo um advento apocalíptico para o acesso
ao paraíso idílico. Ao proceder dessa maneira, o movimento iurdiano promove mutações no
campo religioso brasileiro e reconfigura elementos culturais de longa duração. Nesse sentido,
vale observar as considerações feitas por Chartier que, citando Philippe Ariès, destaca a
atenção de olhares voltados para o “além-pós-morte”como um dos elementos que
culturalmente marcam a civilização ocidental. A esse propósito a leitura no caso, de textos
bíblicos - desempenhou “um papel pedagógico quanto às preparações para a morte: como ela
devia ser pensada, domesticada, vivida nos últimos instantes argumenta Chartier.
785
Exemplifica tal procedimento o protestantismo clássico desenvolvido no Brasil, o qual
representa bem as raízes fincadas na modernidade. Desde a sua chegada ao país, no século
XIX, esse segmento religioso teve como uma de suas características ler a Bíblia com a
atenção voltada para o “celeste porvir” ou para a espera do “grande dia” do advento, como
bem destaca o pesquisador Antonio Gouvêa Mendonça. Sob orientação desses imaginários, o
protestantismo desenvolvido em solo brasileiro, em suas primeiras vertentes, direcionava sua
mensagem a uma dimensão para “além da história”:
A visão de Cristo do cé u implantou na América Latina um
Prote stantismo já de início em crise, porque colocou a igreja numa
encruzilhada até aqui não superada. O Cristo do céu não apresenta
saída além da seguinte alternativa: ou ar rebata a igreja para que vá
ao seu encontro ou desce novamente para encerrar a história e
inaugurar um reinado terreno. Qualque r destas opções t em levado a s
igrejas a expe ct ativas de plenit ude além da hi stória. S ão
comunidades de espe ra...
7 8 6
785
CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 376.
786
MENDONÇA, A. Gouvêa. Cristo no Céu e a Igreja Ausente. Ciências da Religião, São Bernardo do Campo,
n. 6. p. 170, abr. 1989.
233
Algo semelhante também se deu com o pentecostalismo clássico. A sua
mensagem se notificou como eminentemente futurista, milenarista, voltada à espera de um
“grande dia” quando haveria a instauração do reino dos céus por uma intervenção
sobrenatural e divina. Tal perspectiva acaba por gerar, por exemplo, uma conduta de
aceitação da pobreza, sob a espera de um reino de riquezas no tempo do fim. Gutierrez
lembra que às vezes, quando se pergunta a líderes pentecostais se as suas igrejas fizeram a
“opção pelos pobres”, prontamente respondem: “não optamos pelos pobres, somos os
pobres”
.
787
Nesse aspecto, vale também retomar o fato de que o movimento pentecostal
também consiste num desdobramento do chamado “grande avivamento” religioso que
ocorrera nos Estados Unidos no século XVIII e XIX.
788
Dentre os pregadores avivalistas,
naquele momento, destacou-se Jonathan Edwards, a quem Jean Delumeau faz referência
como propagador de idéias milenaristas,
789
as quais estavam associadas à noção de
“progresso” e “prosperidade econômica”
790
que sucederiam àquele despertar religioso
mediante um grande advento apocalíptico. Nesse sentido, a IURD apresenta uma proposta
inovadora de milenarismo: não mais necessidade de espera pelo “Grande Dia” do devir
escatológico, marcado pelo retorno de Cristo à Terra e inauguração do milênio. O reino
chegou e suas benesses podem ser usufruídas. Essa escatologia se configura não como um
apocalipsismo, mas como um messianismo-milenarista voltado à presença do “reino de
Deus” na terra, aqui e agora, com acesso imediato pelos fiéis através dos meios
disponibilizados pela igreja. As palavras de Ricardo Mariano também constatam essa
perspectiva:
Se os primeiros pente costais enfatiz avam o abrupto fim apoc al íptico
deste mundo, ao qual se seguiria a bem-aventurança dos ele itos no
paraíso celestial, os novos pentecostais, por seu lado, priorizam a
vida aqui e agora , el es que rem ter sucesso nesse mundo.
7 9 1
Edir Macedo faz questão de ressaltar - em relação ao que o protestantismo e
o pentecostalismo oferecem - a nova proposta e visão apresentada pelo movimento sob sua
liderança:
Até bem pouco tempo atrás uma fatia respeitável da igreja cri stã
empurrava toda s as bem-aventuranças para o céu e par a a
787
CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 16.
788
FILHO, Prócoro Velasques; MENDONÇA, A. Gouvêa. Op. cit., p. 82-109.
789
DELUMEAU, Jean. Uma travessia do milenarismo ocidental. In: NOVAES, Adauto et al. A descoberta do
homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 449.
790
Delumeau acrescenta que “laços uniram, no século XVIII, o milenarismo e a crença no progresso”, cf. Id.,
ibid, p. 451. Assim, o discurso iurdiano encontra afinação entre o seu compósito de crença com a idéia de
sucesso, prosperidade e usufruto dos bens de consumo, propostos pelo sistema capitalista.
791
MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, p. 8.
234
eternidade. Dizia-se então que era necessário suporta r
pacientemente o sofrimento presente... A Teologia da
Prosperidade e stá trazendo o celeste porvir para o terrestre
prese nte. Para comermos a melhor comida , pa ra vestirmos as
melhores roupas, para dirigir os melhores carros, par a termos o
melhor de todas as coisas, para adquirir muitas riquezas, para não
adoecermos nunca, para não sofrer qualquer acidente, para
morrermos entr e 70 e 80 anos, para experimentarmos uma morte
suave - basta cr er no c oração e decretar e m voz alta a posse de tudo
isso. Basta usa r o nome de Jesus com a me sma liberdade com que
usamos nosso talão de cheques.
7 9 2
No modelo da IURD, o pentecostalismo abandona uma ética de
desvalorização do mundo e se volta para objetivos extra-mundanos e uma escatologia
apocalíptica, optando pela idéia da aceitação de que é natural o usufruto de riquezas, de saúde
e de prosperidade
793
em uma espécie de antecipação do paraíso que comumente esteve
deslocado para o final dos tempos, num futuro incerto e indeterminado. Para os fíéis da
IURD o templo que freqüentam e o movimento que integram representam o início de uma
vida no paraíso a ser conquistado dentro da história. O acesso às benesses do paraíso tem
passagem imediata; a escatologia do “celeste porvir” é substituída pela do “terrestre
presente”.
Um dado marcante que se apresenta nas práticas da IURD, dentro desse
aspecto messiânico, é o que se pode chamar de “confraria de ajuda mútua”. Isto significa que,
ao se filiar à igreja os fiéis se integram a uma “grande família da fé” passando a contar não
apenas com o auxílio e a ajuda para eventuais dificuldades que venham a enfrentar, mas
também com a “preferência” e apoio dos irmãos nas diferentes atividades profissionais que
realizam. Exemplificando: é prática freqüente os membros da igreja comprarem
preferencialmente no estabelecimento comercial do “irmão” que também pertença à sua
mesma comunidade; ou então, solicitarem os serviços do “irmão” ou “irmã” que exerce a
atividade profissional de imobiliarista, mecânico, pintor, motorista de táxi, empregada
doméstica, médico etc. Algumas igrejas chegam, inclusive, a manter um guia de classificados
que indica os nomes e os serviços prestados por profissionais evangélicos, onde também se
atualizam semanalmente as ofertas de empregos aos membros da comunidade local. Ainda
792
Depoimento do bispo Edir Macedo, cf. Teologia da Prosperidade. Revista Ultimato, São Paulo, série
Cadernos Especiais, p. 5, mar. 1994.
793
Os ensinos precursores da Teologia da Prosperidade se remontam a movimentos teosóficos propagados no
contexto norte-americano no início do século XX, que enfatizavam a “confissão positiva” com finalidades
terapêuticas, tendo como pressuposto o fato de que as forças mentais e espirituais estão à disposição do
indivíduo para que, uma vez manipuladas, possam realizar curas e resolver problemas. Essek W. Kenyon e
Kenneth Hagin se tornaram os principais propagadores desse ensino no meio evangélico norte-americano,
mediante pregações itinerantes e publicações de literaturas, através das quais houve influência sobre alguns
líderes do neopentecostalismo brasileiro. Cf. CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e
marketing de um empreendimento neopentecostal, p. 365.
235
nesse sentido, vale observar que empresários ou empreendedores que têm emprego a
oferecer, costumam normalmente dar preferência aos membros da mesma igreja que também
freqüentam para a ocupação de tais cargos e funções. Desta maneira, converter-se numa
igreja local significa inserir-se numa rede de ajuda mútua, ampliar consideravelmente
possibilidades de se ter novos clientes, novas portas de emprego abertas, e assim por diante.
Com isto, o comerciante passa a vender mais, o taxista a ter mais passageiros, odico a ter
mais pacientes, o trabalhador autônomo mais opções de emprego. Daí ser possível
compreender que resultados concretos como esses acabem transmitindo ainda mais aos fiéis a
firme convicção de que a chamada “teologia da prosperidade” é de fato funcional e eficaz.
Um segundo aspecto do messianismo iurdiano se configura no fato dessa
Igreja representar amparo e sentido frente a um contexto de crise e desestabilidade. De
acordo com Maria Isaura, grupos sociais que estão “imersos numa sociedade em intensa crise
sócio-econômica e política, acham-se normalmente mais predispostos a se reunirem em torno
da figura carismática de um líder messiânico”.
794
Norman Cohn destacou que dentre as
manifestações da cultura se encontram os movimentos religiosos, “chamados milenaristas”,
que surgem no meio das “massas desarraigadas e desesperadas, ... vivendo à margem da
sociedade (estruturada, complexa)”.
795
Também Weber e Durkheim concordam que o carisma é uma força criadora
e regeneradora favorecida em tempos de mal-estar e sofrimentos sociais, quando formações
sociais fragmentadas necessitam especialmente de uma revigoração através da participação
carismática. A figura de um líder carismático consegue então agregar partícipes de uma
mesma convicção em torno de um anseio idílico, projetando expectativas de superação das
mazelas existenciais. A participação da comunidade no ritual coletivo pode proporcionar uma
sensação interior de propósito elevado, necessário para os indivíduos que precisam de um
objeto transcendente para escapar do desespero e do isolamento.
796
Roger Bastide igualmente
observa que “o messianismo (...) representa um despertar que sempre acaba levando a uma
percepção de causas da privação”.
797
Peter Berger afirma que “manifestações do messianismo
religioso, do milenarismo e da escatologia, como seria de se esperar, associam-se
historicamente aos tempos de crise e desastre, de causas naturais ou sociais.”
798
A influência
794
Apud CARDOSO, C. F. ; VAINFAS, R. Op. cit., p. 349.
795
COHN, Norman. The pursuit of the millenium. New York: Harper Torch Books, 1961, Apud TURNER, V. O
processo ritual. Op. cit., p. 19.
796
Apud LINDHOLM, Charles. Carisma. Êxtase e perda de identidade na veneração do líder. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1990, p. 44.
797
apud LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 326.
798
BERGER, P. Op. cit., p. 53.
236
que o líder exerce em seus seguidores se deve, em geral, à insegurança e à desesperança
generalizadas” – ressalta também Robert Levine, que argumenta: “quando um grande número
de pessoas se liga a um culto religioso, existem normalmente mais causas do que a
meramente religiosa”.
799
Levine apresenta ainda maiores detalhes sobre tais ambientes que
criam espaço e condições favoráveis para o desenvolvimento de propostas salvacionistas com
perfil messiânico:
A maioria dos movimentos messiânico-milenaristas surge em
conseqüênci a de movime ntos de agitação econômica e soc ial, de
grandes privações, de crescimento das ansiedades e tensões do
povo, de contur bações psicóticas coletivas, ou então como f orma de
protesto social.
8 0 0
Trata-se, portanto, de um fenômeno bastante característico das sociedades
que estão sofrendo mudanças sociais rápidas e desordenadas. Aqueles que se vêem
desvalorizados e confusos pela desintegração do tecido social estão prontos a abrir mão de
uma identidade, prejudicada, em troca da aceitação em um grupo no qual, devido a sua
intensidade e objetivo, a existência se transforma em algo transcendente. Em um contexto de
agravamento das condições sociais de vida, portanto, a representação carismática pode
oferecer ao grupo elementos de reconstrução de sua identidade:
Se houver uma crise, podemos esperar atividades ca rismátic as mais
radicais. Estes grupos podem fazer, inclusive, afirmações
milenaristas, provocando o fervor entusiástico dos acólitos. (...) O
carisma ofe rece a força e a imaginação para mudanças. (...) A
experiência de fusão intensa com um ser c arismático dentro do
grupo permite a continuação da vida e de seu significado qua ndo o
mundo cotidia no já perdeu o encanto. Tal participação pode oferecer
um per íodo de descanso e um momento de transição, dando força e
suste ntação para a constr ução de uma nova identidade.
8 0 1
As três últimas décadas, devido à formação de condições sociais de
exclusão, marcadas por intenso processo de urbanização e desilusão com o presente no
contexto brasileiro, propiciaram condições favoráveis para a emersão de representações,
configuradas por anseios de amparo e segurança. O misticismo, o messianismo e o
milenarismo, “tão próprios de nossas tradições sertanejas”, encontraram no mundo urbano
espaço e condições para expressar uma esperança e uma base nova a fim de mediatizar sua
utopia como tempo do novo e inovação social. Em um período no qual o Brasil vivencia um
processo de urbanização e industrialização caóticas, está em escalonário desencadeamento o
êxodo rural, responsável por deslocar grande contingente populacional para os centros
799
Id., ibid, p. 323.
800
LEVINE, R. O sertão prometido. O massacre de Canudos, p. 327.
801
Id., ibid., p. 218, 219.
237
urbanos, intensificando assim a formação e multiplicação de periferias pobres, gerando
desemprego e perda de referência de coletividade. Isso fez que a periferia das cidades, que
acolhe em primeiro lugar os imigrantes, se tornasse o recôndito dos excluídos do processo
produtivo, aumentando ainda mais os problemas sociais e gerando muitos outros, inclusive de
natureza existencial. Formava-se, desta maneira, o “terreno social fértil” para o
desenvolvimento de práticas religiosas que pudessem responder a tais contingências:
No contexto de ur bani za ção e industrialização c aóticas que
caracterizaram o desenvolvimento nacional nos últimos 50 anos,
uma proposta religiosa alicerçada na intensa circulaçã o de bens
simbólicos, levou a mplíssimos segmentos e mpobrecidos da
população, incluindo camada s inte rmediárias, excluídos do mundo
moderno, a for jar suas próprias regras e combinarem originalmente
um mosa ic o simbólico que lhes conferisse sentido e dignidade.
8 0 2
O processo de urbanização, portanto, proporcionou o surgimento de um
contingente que passaria a experimentar situações de pobreza e violência, num contexto
gerador de profundas incertezas e desestabilidade existenciais, em proporções ainda maiores
do que as vividas pelo homem rural. Neste quadro de uma economia capitalista em fase de
remodelação, provocando desarticulação dos modos de vida, é que se formou um contingente
vivendo em situações-limite - terreno fértil e público–alvo para a operosidade iurdiana:
O crescimento do pentecostalismo se dá desde a perspectiva de um
context o de crise sócio-econômica e política nos países do
Continente, que criou a massificação e a de spersonalizaçã o entre os
setores da população que migram do campo para a cidade
(urba nização). Diante dessa mudança tão ra dical, a igreja
pentecostal ajuda a restaurar os valores comunit ár ios do mundo
rural perdido, de modo que se possa r esistir aos desafios e
exigênc ias do mundo moderno.
8 0 3
A massificação da vida nos grandes centros urbanos leva o indivíduo a
conviver com problemas de natureza psicossocial: a solidão e a perda de muitos referenciais
simbólicos como a família e a religião da tradição, logo, torna-se necessário buscar
alternativas de compensação na tentativa de preencher os espaços vazios que o novo estilo de
vida foi criando. E a religião exerce um papel fundamental, tanto como fator de integração
social, como também de reorganização da vida, procurando dar a esse indivíduo um sentido e
uma direção no âmbito de uma comunidade. Fry e Howe,
804
ao comentarem o
desenvolvimento de cultos populares sobretudo entre as camadas sociais mais pobres nas
grandes cidades brasileiras, mostram que a umbanda e o pentecostalismo passaram a
802
BITTENCOURT FILHO, J. Op cit., p. 102,103.
803
CAMPOS, L. S. ; GUTIÉRREZ, B. (Orgs.). Op. cit., p. 15.
804
FRY, Peter; HOW, Gary Nigel. Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo. Debate e Crítica. São
Paulo: HUCITEC, n. 6, 1975.
238
constituir respostas à aflição decorrente das situações de crise a que as populações urbanas
passaram a estar submetidas em tal contexto.
Diante deste quadro social, é preciso considerar que a IURD é uma igreja
essencialmente urbana, cuja mensagem é voltada para alcançar os “excluídos” da cidade.
Num contexto, como o descrito anteriormente, ela surgiu como um movimento agressivo,
inovador, determinado a realizar o “milagre” que todos esperam e muito tempo não vêem.
Isso faz lembrar as palavras de Pierre Bourdieu, quando em entrevista concedida a uma
autora brasileira foi indagado acerca da seguinte questão: O senhor acredita que a enorme
massa de sofrimento que no Brasil se expressa em violência, miséria, exclusão,
insegurança, incerteza sobre o futuro - produzida pelo neoliberalismo poderá um dia dar
origem a um movimento capaz de acabar com ele? E as religiões que crescem de forma
proporcional a esse estado de coisas, têm alguma chance de se voltar contra a sociedade?” A
resposta de Bourdieu:
As situações de crise são situações críticas nas quais o mundo cai
em pedaços. As pessoas perdem as refe rênc ias, ficam sem
instrumentos pa ra totalização. Max We ber diz que a função
principal da religião é da r sentido e coe rê ncia prática, não teórica, à
existênci a, de modo que a pessoa se encontre, se or ie nte.
Infeliz mente, os profetismos religiosos costumam se situar na l ógica
do escapismo, conduzindo a visões milenaristas que se afastam do
polít ico no que ele tem de brutal e insuportável. Poderíamos nos
perguntar onde seria possível encontrar forças sociais para mudar
esse mundo. ( ...) Penso que o que está a contec endo é muito grave e
que a humanidade está ameaçada.
8 0 5
Ao comentar sobre a miséria que afeta grande parte da população atual,
Bourdieu faz ainda a seguinte afirmação:
O conhec imento do mundo social permite ver coisas e suas
conseqüênci as ocultas. Por exemplo: atualmente, existe a tendência
de se substituírem os contratos de trabalho de duração
indeterminada pelos contrat os de duração determinada, os empregos
permanentes pelos empregos temporários. São pequenas medidas
tomadas todos os dias, nos mais diferentes setores. Na verdade esse
tipo de medi da terá conseqüências (...) P ar a quem sa be ver elas já
estão pre se ntes no Brasil, por exemplo. (...) vemos as
conseqüênci as: aumento de desemprego, violência, criminalidade,
religiões milenaristas, pentecostalistas etc.
8 0 6
[grifo nosso]
Os fatores de experiência e criação de sentido se apresentam como
elementos consistentes para as práticas e as representações que os fiéis vivenciam no âmbito
da IURD. Bispos, pastores, obreiros auxiliares e membros, de modo geral, demonstram uma
805
BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002,
p. 39.
806
Id., ibid, p. 22, 23.
239
experiência comum: chegaram à Igreja na condição do que denominam “fundo do poço”. A
saída de tais situações de infortúnio, que se materializam em doenças, desemprego e
fracassos, está nas mãos de cada um, pois basta que os fiéis apelem para Jesus buscando o
auxílio da verdadeira Igreja (IURD, é claro), a qual é fiadora dos milagres. O passo seguinte
é fazer, lá mesmo, as “correntes de fé”.
Pessoas vivendo em “situações limites” de sofrimento e a decepcionadas
com a medicina oficial recorrem à IURD. Muitas dizem “desenganadas” da ciência, tendo
apenas uma última centelha de esperança: o milagre. Nos depoimentos, chamados de
“testemunhos”, em que relatam as experiências de mudança e transformação alcançadas,
costumam ressaltar que para se dirigem ou como doentes, bados, jogadores, traficantes,
pobres, homossexuais, travestis, prostitutas, viciados ou assassinos. Os dois relatos, a seguir,
apontam para este aspecto:
Quando eu che guei na Universal, eu estava derrotada, desesperada
[...] t udo que havia tentado deu errado. A loja era a última
esperança [...] Tinha perdido tudo, meu negócio faliu, minha sócia
tinha ido embora e eu fiquei sozinha, olhando a loja vazia, não
acreditando que tinha perdido tudo, que havia dado tudo er rado.
8 0 7
Um rapaz, em outro depoimento, diz:
Eu estava andando só com ma rginal [...] era traf icante e vivia na
prostituiçã o. Porque só eles aceitavam andar comigo. Um dia minha
mãe apareceu para conversar com igo, chorou muito, falou para eu
sair daquela vida [...] fiquei chateado dela ter ido ali, sabe como é,
mãe da gente [...] meu pai já nem conversava comigo, depois minha
mãe também sumiu... acho que ela se cansou de mim, cansou de
tanto sofrer, de me ver naquela vida [...] E eu só usando todo tipo
de droga, algumas já nem fa zi am mais ef ei to. Ti nha que roubar pra
manter o vício [...] Aí eu cheguei aqui na Igreja e tudo mudou.
8 0 8
O bispo Macedo faz questão de ressaltar que acolher pessoas nesta situação
de sofrimento e redimensionar-lhes o sentido de vida faz parte do dia-a-dia da IURD.
Segundo ele, “a mudança de vida não é difícil quando se está no fundo do poço [...] e
qualquer pessoa quando chega até nós é porque está no fundo do poço. E quando ela está
tende a subir ou morrer. Baixar mais não pode”.
809
A IURD representa, para os que a ela recorrem, um lugar aonde se vai
quando não se tem mais para aonde ir, quando se está sofrendo, sozinho e sem saída. Num
contato inicial tais pessoas são simplesmente acolhidas sem questionamentos ou exigências.
Cria-se então uma relação de ajuda que obedece em linhas gerais a seguinte ordem:
807
Sandra Regina Ribeiro, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 07 jul. 2005, p. 4.
808
Marcos Antonio de Paula, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 14 mar. 2005, p. 8.
809
Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.
240
acolhimento, escuta e proposta de solução. Promove-se, a partir daí, principalmente através
da participação nos ritos oferecidos pela Igreja, noções de segurança, proteção e sentido no
ambiente do grupo.
Ao se r emeter em à situação de fundo de poço, os me mbros fa lam
sempre de um a vida desestruturada no âmbito financ ei ro, físico,
afetivo, emocional, familiar e social. Qua ndo se chega à IURD,
chega-se não tendo mais lugar para se ir, e m ge ral o indivíduo já
perdeu tudo o que lhe dava alguma dignidade social ou pessoa l.
Ger almente, não se te m saúde, empr ego, afeto, recursos financeiros
para prover, até me smo, às vezes, o básico como moradia e
alime ntação. Ou então, não se é aceito pela famíli a, pela sociedade
ou vive-se no submundo de vícios, prostituição e droga s.
8 1 0
Esse sentido de mundo, calcado na experiência - por ilógicos que pareçam
ser aos queo pertencem àquele universo coerência a quem está inserido ou se integra
no ambiente iurdiano. Como observa Peter Berger, a religião se torna assim resultado de uma
atividade humana fundamental de contínua busca, no meio do caos, de um mundo pleno de
sentido e ordem: “Toda sociedade humana é um empreendimento de construção de mundo
(...) a religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento”.
811
Bourdieu, ao empregar o
conceito de “distinção” associa a ele os mecanismos que possibilitam a construção desta
identidade social, organizada em função do habitus. O texto, a seguir, tece considerações
sobre este aspecto:
O funcionamento do espaço socia l baseia-se na vontade de distinção
dos indivíduos e dos gr upos, isto é, na vontade de possuir uma
identidade soc ial própria, que permita existir socia lmente . Tra ta-se
de ser reconhecido pe los outros, de adquirir importância,
visibilidade, e finalmente tra ta-se de ter um sentido. Existir
socialmente é, essencialmente, ser percebido, isto é, fa zer com que
sejam reconhecidas tão positivamente quanto possível as suas
proprie dades distintivas. Daí transformar-se em capital simbólico as
proprie dades im aginár ias.
8 1 2
Para o imaginário representativo que nela se vivencia, acredita-se ser
possível, dentro da Igreja, alcançar tudo o que se deseja. Tal crença é nutrida pelos relatos e
testemunhos dos pastores e fiéis que lembram a todo instante que a vitória obtida pelo
outro é prova de que também pode acontecer com os demais. Assim, o fiel sabe que, se ainda
não alcançou o seu objetivo, está lhe faltando uma entrega ou obediência mais completa a
Deus através dos recursos oferecidos pela Igreja. Desta forma, ele acredita que em algum
momento isso ocorrerá. Mesmo quando o milagre ou solução do problema não é alcançado, a
capacidade de produção de sentido da IURD consegue incorporar essa situação em seu
810
BONFATTI, P. Op. cit., p. 137.
811
BERGER, P. Op. cit., p. 15, 20, 21.
812
BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 103.
241
universo simbólico. Não se questiona a lógica simbólica da IURD, pois não é ela que deve
mudar, mas a atitude do fiel dentro dessa lógica. Isto faz que o adepto permaneça ligado à
Igreja. Tal perspectiva se assemelha aos milagres régios estudados por Marc Bloch:
Se o doente a quem o mila gre falhara era mal-educado o bastante
para queixar-se, os defensores da realeza não tinham dificuldade em
responder-lhe . Re plic ava-se-lhe , por exem plo, que lhe faltara fé (...)
Ou conc luía -se que houver a erro de diagnóstico.
8 1 3
Este amparo e proteção recebidos são também demonstrados nos
depoimentos dos fiéis, os quais, ao concederem tais “testemunhos” aos pastores, costumam
seguir uma tríade: cura de enfermidades, libertação dos demônios e prosperidade financeira.
Sendo divulgados nos horários dos cultos e também veiculados nos programas de rádio, TV e
jornal Folha Universal, esses depoimentos obedecem basicamente à seguinte estrutura:
primeiro, a identificação do problema (doença, miséria, falência etc.); segundo, a
complicação ou agravamento da situação (apelo para todas as soluções possíveis: medicinais,
extra-medicinais, espiritismo, terreiros, tentativa de suicídio etc.); terceiro, a solução
encontrada na última porta, ou seja, a entrada na Igreja Universal, seguida pelo “milagre”
alcançado.
Portanto, em meio às crises e transformações ocorridas nas últimas décadas,
o movimento iurdiano surgiu como o meio pelo qual determinados setores da sociedade
tentam superar coletivamente as contingências e as mazelas existenciais. Os fiéis iurdianos
foram atraídos intensamente para uma religião que se foi criando e moldando como resposta
possível e concreta à crise e às transformações em todas os níveis de vida, que desarraigaram
e desconcertaram o povo em um contexto de instabilidade econômica e social. Afinal, “num
momento, o sujeito se sente desamparado e, no outro, está num ambiente de fraternidade”.
814
O ambiente iurdiano, assim, propicia estrutura organizacional, afetiva e cultural condizentes
com a geração de confiança em uma espécie de rede social familiar, cumprindo um papel de
integração e de adaptação ao meio urbano:
Experim enta ndo no corpo e na alma os efeitos angustiantes da
desorga nização social e de padrões de comportamento produzidos
pela industrialização (anomi a social), o migrante busca, c omo por
ensaio, um grupo no qual possa sentir afinidade emocional e
reconhecimento pe ssoal.
8 1 5
Em síntese, a experiência de conversão vivenciada no contexto da IURD
insere os membros em um grupo social no qual encontram relações possibilitadoras de
813
BLOCH, M. Op. cit., 275.
814
FONSECA, Alexandre Brasil. Revista Veja, São Paulo, 03 jul. 2002, p. 93.
815
Id., ibid, p. 38.
242
ascensão perante o grupo ao qual pertencem, dando-lhes, por exemplo, uma certa liderança
que lhes confere uma honra pouco acessível no mundo em que vivem. No âmbito da IURD
ocorre a criação e o desenvolvimento de uma forma de poder ou capital simbólico, podendo
chegar ao exercício dos cargos eclesiásticos mais elevados e à obtenção de títulos e prestígio
conferidos pelo poder simbólico. No grupo no qual estão inseridos, são chamados por títulos
como: bispos, pastores, obreiros. Constata-se também grande presença de pessoas vitimadas
por algum tipo de preconceito na sociedade: pobres, negros, mulheres, semi-analfabetos etc.
Líderes e fiéis encontram no segmento iurdiano um espaço acolhedor que lhes confere
dignidade, prestígio, ascensão social mediante os cargos e funções que passam a
desempenhar oportunidades essas que muitas vezes se apresentam inacessíveis na
sociedade em geral.
Um terceiro aspecto que envolve representações messiânicas neste
segmento religioso pode ser observado na mobilização de símbolos e na auto-compreensão de
ser um grupo divinamente eleito para um combate ao reino do mal. Como observado
anteriormente, nas últimas décadas a cidade se tornou cada vez mais lugar do medo. Os
efeitos da pobreza e da urbanização acelerada promoveram um aumento espetacular da
violência. Os meios de comunicação de massa passaram a estampar diariamente informações
que propagam o medo, sobretudo pelo crime e morte violentos.
816
Isso desencadeou uma
busca de amparo e proteção por meios que ultrapassam os recursos convencionais advindos
de órgãos públicos ou organizações privadas.
Observa-se também, pelos testemunhos, que os participantes da IURD dela
se aproximam orientados por um habitus marcado por um “encantamento”, cujo mundo é
intensamente habitado por forças espirituais. Dessa forma, é comum nos depoimentos sobre a
entrada na Igreja Universal perceber a idéia de que Deus, em todo tempo, estava querendo
mostrar o caminho ao ainda não convertido por meio de inúmeros sinais, aos quais se opunha
a todo tempo o Demônio, numa batalha espiritual: ter sido abordado na rua para recebimento
de panfletos com propaganda da IURD, assistido circunstancialmente ao programa de rádio e
TV (em que naquele programa, viu-se a própria vida sendo relatada pelos testemunhos
alheios), ou então, ter sentido tremuras nas pernas quando passou em frente da Igreja pela
primeira vez, e o Diabo fez que ele não quisesse entrar...
817
Ou ainda, como descreve outro
depoimento, ter chegado à Igreja em condição de fracasso financeiro e crise familiar: “Havia
sido abandonado pela mulher e estava derrotado, ficando dias perambulando pela rua, sem
816
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.
817
Paulo César Oliveira, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 25 maio 2004.
243
rumo, até que Deus fez com que fosse parar em frente à Igreja, foi quando ouvi uma cantoria
e o meu corpo ficou arrepiado e então decidi entrar. Então comecei a chorar e não conseguia
parar... era Deus que estava me chamando”.
818
O espaço da crença se torna assim estratégico para a obtenção de amparo
por meios sobrenaturais”, gicos, pois no espaço iurdiano se opera um combate, uma
guerra contra as forças operantes do mal. A IURD entende que a origem do mal se deu a
partir de uma rebelião dos anjos no céu, comandada por Lúcifer, “querubim da guarda”,
culminando com a sua expulsão e a de seus seguidores. O orgulho teria feito que almejasse
ocupar a posição de Deus. Estaria a razão de sua queda. Edir Macedo, por exemplo,
fundamenta tal explicação na interpretação que a dois textos bíblicos do Antigo
Testamento: Isaías 14:12,14 e Ezequiel 28:11-19. Em sua obra Orixás, Caboclos e Guias, o
bispo explica que Lúcifer, tendo sido anjo criado por Deus, teve essa condição original até se
rebelar contra o Criador, pelo que foi amaldiçoado e, conseqüentemente, tornado-se demônio.
Esclarece que antes da “queda dos anjos”, Satanás liderava uma estrutura hierárquica desses
seres. “Dotados de livre arbítrio, eles podem escolher entre o obedecer a Deus ou rebelar-se
contra Ele. Prova é que numerosos anjos, um terço, decidiram seguir a rebelião de Satanás e
transformaram-se em demônios” declara Macedo.
819
Assim, após ter sido expulso da
presença de Deus, perdendo sua condição original, Satanás teria organizado os anjos
decaídos, os demônios, para atuarem em áreas e regiões distintas em toda terra com o
objetivo de dominá-la, passando a fustigar o mundo e a humanidade a partir do momento em
que esta também veio a ser criada. Cheios de ódio e vingativos fazem de tudo para prejudicar
a obra de Deus, principalmente o ser humano.
A partir de uma configuração cultural, portanto, no âmbito do “grupo
eleito” iurdiano, em que entram teologias, teogonias, antropogonias e uma série de mitos
ancestrais, a cosmologia iurdiana se assemelha à visão tripartida do imaginário religioso
hebreu, descrito nas Escrituras Bíblicas, que separava o cosmos em três dimensões: céu,
morada de Deus e de seus anjos; terra, uma criação divina entregue aos seres humanos;
inferno, regiões inferiores destinada a acolher as almas dos mortos e demônios. O mundo é
assim concebido como uma arena onde se trava a luta entre Deus, o Diabo e seus anjos. O
objeto dessa guerra é o ser humano. Para a IURD os demônios existem, estão soltos e cada
vez mais astutos no propósito de causar diversos males na vida das pessoas. “Vivemos em
818
Afonso Vítor Martins, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 13 jun. 2005.
819
MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 1. Rio de Janeiro: Gráfica Universal,
1998, p. 105.
244
plena era do mal” - enfatiza o bispo Macedo.
820
Em seu Manual do Obreiro, a Igreja expressa
bem o imaginário permeado por forças do mal em que desenvolve suas práticas:
Acr editamos que os demôni os atuam na vida das pessoas com o
propósito de afastá-las de Deus e não deixá-la s e conseqüentemente,
entende r o plano divino para suas vidas. Daí entendermos que a
primeira coisa que deve ser feit a com alguém, para trazê -l o ao
Senhor e liber tá-lo do poder e da infl uênc ia do diabo e dos seus
anjos, os demônios (...) Uma vez libert ado dessa inf luência, a
pessoa pode enc ontrar força s para perseverar em seguir ao Senhor
Jesus e c aminhar a vida cristã de uma maneira vitoriosa.
8 2 1
Argumenta o bispo Macedo que os demônios, que são espíritos imundos,
não têm corpo nem sexo. Eles são espíritos que sabem que para se expressarem nesse mundo
material precisam de corpos, por isso atraem, cativam e iludem as pessoas com intenção de
destruí-las e usá-las para fazer o mesmo com as demais. Como forças espirituais do mal,
esses espíritos usam corpos dos homens para realizar e expressar suas ações maléficas contra
Deus e os seres humanos. “Atuam agora gerando enfermidades, desastres, medo, insônia,
depressão, desejo de suicídio, destruição dos lares etc. sobre a vida das pessoas”.
822
Em uma outra reportagem, a IURD afirma que “existem inúmeras pessoas
de boa índole, sinceras na , mas enganadas pelas mentiras, as falsas curas e sinais
demonstrados por esses espíritos. A Bíblia não é contra tais pessoas, mas condena
veementemente essas práticas”.
823
A Universal acredita, assim, que aquilo que se passa no
“mundo material” decorre da guerra entre as forças divina e demoníaca no “mundo
espiritual”, tendo como protagonistas Deus/anjos versus Diabo/demônios. Os seres humanos,
porém, conscientes disso ou não, participam ativamente de uma ou de outra frente de batalha.
A Igreja faz o papel de engajá-los do lado divino, fazendo com que seus fiéis adquiram poder
e autoridade para reverter e destruir as obras do mal. Há, assim, uma convocação para uma
batalha coletiva contra o mal. Aqueles que, por razões de tempo, vontade ou aptidão, não
podem se dedicar ao trabalho como pastores ou obreiros, são exortados não somente a ofertar
dízimos para a expansão do reino de Deus na terra, mas também se engajar na “batalha
espiritual” contra as potestades do mal, a pregar o evangelho mediante distribuição de
panfletos evangelísticos em locais públicos, convidando amigos, parentes e vizinhos para
comparecerem aos templos.
820
MACEDO, Edir. A libertação da teologia, p. 117.
821
MANUAL DO OBREIRO: Estatuto e regimento interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Op. cit.
822
MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2. Rio de Janeiro: Gráfica Universal,
1999, p. 58.
823
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, p. 14-16, mar. 1999.
245
Maria Isaura de Queiroz
824
identifica como um dos componentes
fundamentais para o desenvolvimento de movimentos messiânicos a presença e a atuação de
um líder que acredita - e cuja representação também lhe é atribuída por seus fiéis - ser
possuidor de poderes sobrenaturais. E a força mobilizadora dessa verdade estabelecida é
capaz de atrair grande massa de seguidores a partir da projeção das representações que se
constitui em torno da pessoa. Nesse sentido, os líderes iurdianos são vistos como detentores
de um saber ou de um conhecimento diferenciado sobre o sagrado e, como tais, profetas
portadores de uma nova mensagem divina no combate ao mal, como se pode observar nas
palavras de Edir Macedo:
O Espír ito do Senhor nos tem dirigido, razão pela qual estamos
pisando a cabeça de satanás. Em nossas reuniões, os demônios sã o
humil hados e até mesmo achincalhados, numa prova de que o Senhor
está c onosco. (...) Se uma pessoa chegar à Igreja no momento em
que as pessoas e stão sendo libe rtas, poderão a té pensar que estão
num centro de m acumba (...) temos a impressão que a quelas pessoas
ficaram loucas, entretanto, após alguns momentos, quando fa ze mos
a limpeza em suas vidas ( ...) aí vem a bonança, a paz (...) em seus
rostos tr ansparec e a alegria da l ibertação.
8 2 5
No âmbito do grupo iurdiano, o aparecimento e a atuação do “líder
carismático” presume que sua autoridade esteja em “harmonia direta com a “vontade divina”,
e que ele foi chamado a cumprir” especial missão contra um reino demoníaco.
826
J. Cabral,
escritor da IURD, no prefácio que apresenta ao livro best seller de Macedo, Orixás, Caboclos
e Guias: deuses ou demônios?, faz a seguinte afirmação em relação ao bispo:
Tem dedicado toda a sua vida a lutar contra os demônios, por quem
tem r epugnância, raiva. O bispo Macedo tem desencadeado uma
verdadeira guer ra santa contra toda a obra do diabo.
8 2 7
Na visão da IURD, o Diabo está no mundo tentando tomar conta dele. E
esse “reino do mal” a ser enfrentado e combatido pode ser identificado em algumas “faces”.
Num primeiro momento, apresenta-se através de falsas religiões. Estas podem se apresentar
na roupagem do catolicismo, como se pôde observar no episódio do “chute na santa”,
conforme destacado. No entanto, tais formas de “engano religioso” são identificadas
prioritariamente pela IURD nas crenças afro-brasileiras. Obviamente, contribui para isto a
passagem de Macedo pela umbanda e candomblé, como ele mesmo o declara, reivindicando
a autoridade da experiência pessoal no conhecimento de tal universo religioso.
828
Macedo
824
QUEIROZ, M. I. P. Messianismo no Brasil e no mundo, p. 165ss.
825
MACEDO, Edir. O Espírito Santo. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 1993, p. 134.
826
CAMPO, Bernardo. Op. cit., p. 53.
827
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 14.
828
Id., ibid., p. 91.
246
adverte que os demônios procuram se “disfarçar de santos” e cheios de filosofias
“aparentemente cristãs” criam religiões onde transformam seres humanos em “cavalos” e
“aparelhos”. A Igreja explica que normalmente se tem entendido que essas entidades
desenvolveram práticas específicas para cada classe social, ou seja, o baixo espiritismo”
(umbanda, candomblé, quimbanda etc) com seus terreiros e figuras ameríndias estariam
voltadas às camadas mais populares da população; enquanto que o alto espiritismo”,
também conhecido como científico (kardecismo, esoterismo e outros), estaria voltado para
“os intelectualizados”. A IURD, porém, alerta que a origem e as manifestações são as
mesmas:
O exu que baixa nos terreiros é o médico conselheiro no espiritismo
e assim por diante. Essas entida des, para justificar a própria
existênci a, inventaram histórias de vidas t errenas, como se fossem
suas, e hoje mortos vivem em outro plano espiritual vindo a terra
para pre judicar. Os filhos de santo e freqüentadores são orienta dos
a fazerem trabalhos para expulsar os espíritos encarnados,
obsessore s.
8 2 9
Sobre os milagres atribuídos aos santos católicos, ou então viabilizados por
um trabalho mediúnico, Macedo também é contundente em suas palavras:
Não são milagr es feitos pelos ser vos de Deus que já faleceram, pois
os mortos não voltam e nada podem fazer por nós. Trata-se de
engano de Satanás, que pode perfeitamente iludir pessoas
espiritualmente care ntes. O di abo é ca paz de esc ravizar uma pessoa
durante a nos, colocando-lhe uma doença, depoi s quando lhe for
conveniente, também pode re ti rar suas garr as de modo que pare ça
estar acontecendo uma cura. Eis a explica çã o para ta ntas curas
mediúnicas e ta ntos milagre s atribuídos aos santos.
8 3 0
Em depoimentos, os fiéis também constatam bem esses aspectos ao
testemunhar que foram “libertos” de crenças identificadas como diabólicas, conforme é o
caso relatado a seguir:
Estava completamente e ndividado no banco e era juros sobre juros...
Freqüente i a té por algum tempo a Seicho-no-iê e nada, a dívida só
ia crescendo. Mais t arde fiquei sabendo que haviam feito um
trabalho de macumba contra mim para que as coisas fossem de mal
a pior; foi uma m ulher com quem terminei um relacionamento.
Quando cheguei à Igreja senti um a coisa muito estranha, um arrepio
e e ntão um obreiro orou para que o de mônio saísse da minha vida,
para que ela fosse desamarrada. Senti então uma espécie de
alívio...
8 3 1
829
Id., ibid.,
830
MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2. Rio de Janeiro: Gráfica Universal,
1999, p. 93, 94.
831
Luiz Henrique Camargo, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 18 abr. 2005.
247
Continua relatando que uma série de eventos posteriores começaram a
rearticular sua vida financeira e vindo a receber maior salário devido a uma promoção no
emprego e ressalta a importância da Igreja: “Hoje eu sei que foi ‘trabalho da ex-amante’ que
fez com que eu ‘andasse para trás’... E quando encontrei Jesus na Igreja Universal minha
vida foi abençoada”.
Em relação às crenças afro, líderes e fiéis sentem não o direito, mas
também o dever de combatê-las. Constatando nelas a presença do Diabo e seus demônios
agentes, a IURD promove dois tipos de combates: invoca tais agentes inimigos dentro dos
seus rituais de libertação para serem exorcizados; e desempenha uma “batalha espiritual” de
ocupação de espaços físicos religiosos, o que tem desencadeado, por vezes, conflitos em
relação às crenças afro. Como mencionado, ao se expandir no Estado da Bahia, a IURD
acirrou os ânimos quando passou a desclassificar em seus programas de rádio e televisão os
orixás, igualando-os aos demônios identificados pelo cristianismo, e também chegando a
promover invasões em terreiros de culto afro. A reação da população ligada a tais cultos
manifestou-se na forma de conflitos físicos entre pastores e adeptos de diferentes terreiros,
em tentativas de fechar templos e prender pastores. Dessa forma, a IURD reconhece,
legitima e reafirma a força das religiões afro, fazendo com que tais crenças, de maneira
ambígua, ao serem combatidas acabem sendo muito valorizadas devido à capacidade que têm
de interferir negativamente na vida das pessoas. Afinal, quanto mais poderosos forem os
inimigos diabólicos, maior será a vitória e a necessidade de se pertencer à Igreja. Assim, ao
identificar tais crenças como verdadeiras e perigosas, a IURD se apresenta aos seus fiéis
como única força capaz de enfrentá-las ou, então, lugar de proteção e segurança frente a tais
ameaças.
Fechar centros espíritas, tendas de umbanda e terreiros de candomblé
situados ao redor de seus templos se deve a propósitos expansionistas, mas também ao que a
IURD chama de “demarcação de território”, ou conquista de espaço para o reino de Deus.
Seus líderes e seguidores entendem que é preciso tomar conta do mundo e libertá-lo, antes
que os seguidores do mal o dominem. Segundo Macedo, para que a igreja não seja “apenas
um clube”, deve usar e mostrar o seu poder no combate a este “anti-reino”:
Podemos considerar um a igre ja forte se ela está alistada para a luta
contra toda s as potestade s infernais... e se na igreja o poder de Deus
sobre os demônios não é exercitado, ela se transforma em um clube
ou em uma escola bíblica. Evangelho é poder, e pode r tem de ser
exercido, para a derr ota de satanás ( ...) e a glória de Deus!
8 3 2
832
MACEDO, E. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 138.
248
Portanto, se esse mal se utiliza de cinemas para a projeção de filmes
imorais, que se instalem em tais lugares templos; se emissoras de televisão estão a serviço do
mal, que se comprem emissoras de televisão para enfrentá-lo em condições de igualdade.
Uma outra “face” do reino do mal a ser vencido tem dimensões políticas.
Vale citar Eric Hobsbawm quando afirma que “os movimentos messiânicos são formas
religiosas de também se demonstrar necessidades e exigências políticas”.
833
No movimento
iurdiano cria-se um ambiente messiânico que se configura como uma espécie de contra-
poder político-religioso em nível local e terreno. A IURD faz com que as práticas ali
vivenciadas “respondam aos processos de modernização que se impõem à sociedade,
favorecendo a sobrevivência e a ascensão social”.
834
Nesse sentido, suas práticas se
convertem em uma alternativa sociorreligiosa frente a uma contingência estabelecida, “uma
forma de resposta à situação de anomia social, produzida pelo processo de migração criado
na incipiente industrialização e urbanização da América Latina dependente”,
835
significando a
possibilidade de construção de uma identidade popular pela mediação do religioso.
Destaca-se, como um dos elementos que sustentação às práticas
messiânicas com representações políticas, a apropriação de mitos e mobilização de símbolos
com forte apelo popular impregnados no imaginário coletivo. Sobre isto, Lévi-Straus afirma:
“sabe-se que todo mito é uma procura do tempo perdido”.
836
Assim, na experiência
ritualística, “o fiel vive e revive mitos, com a ajuda de elementos tirados do seu passado”:
837
O mito é recr ia do pelo sujeito, que r se ja tomado de empréstimo à
tradiçã o, ele a bsorve de suas fontes, individual ou coleti va (e ntre as
quais se produzem constantemente interpenetrações e trocas), o
material de imagens que e le emprega; m as a estrutura permane ce a
mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza.
8 3 8
O poder do mito resulta, pois, de acontecimentos históricos e socialmente
apropriados, temporalmente ligados à “longa duração”. Partindo da afirmação de Bourdieu de
que a emersão de representações que estão depositadas no imaginário coletivo ocorre pela
existência de um habitus, denota-se que essas configurações não são criadas e impostas a
partir de elementos externos, mas sim introjetadas pelos diferentes grupos que compõem a
sociedade, daí a sua força de arraigamento. Tais mecanismos, que vão além da “situação-
833
Apud NARBER, Gregg. Entre a cruz e a espada: violência e misticismo no Brasil rural. Op. cit., 2003, p. 22.
834
CAMPOS, L. S. ; GUTIERREZ, B. (Orgs.) Op. cit., p. 14.
835
CAMPOS, Bernardo. Op. cit., p. 37.
836
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural, p. 236.
837
Id., ibid., p. 230.
838
Id., ibid., p. 235.
249
limite”, tornam-se os elementos mais profundos em tais mobilizações sociais, como afirma
Joanilho:
Para que as idéias possam congre gar pessoas, al ém da situação-
limite é preciso que atinjam as expectativas, criem possibilidades
(...) para que as pessoas se a ssociem a uma idéia para mudar
determi nada situaçã o, devem ve r nela uma ressonância de seus
desejos e aspirações. É preciso que vejam nela uma saída (...)
Assim, todo movime nto de revolta proc ura estabelecer alguns
símbolos que lhe dão identidade, tenta ndo atingir e representar
esses de sejos, (...) e formar uma cumplicidade na ação coletiva.
8 3 9
Destacam-se ainda as palavras de Joanilho quando classifica tais
movimentos salvacionistas como “sócio-mitológicos”:
840
Muitos movimentos, mesmo derrotados militarmente, permanec em
na memória social e por ela são relidos (...) Muitas e xperiências que
foram postas em prática em movimentos, vão sendo reapropriadas
(...) A o ser reapropriada pela memór ia social, a revolta ganha
realmente importância, isto é, pa ssa a se r utilizada de forma
diferente pelas pessoas, de acordo com o contexto em que vivem.
8 4 1
Estudos sobre os participantes de movimentos carismáticos mostram que os
devotos acreditam ter adquirido uma capacidade maior de enfrentar as contingências do dia-
a-dia graças à sua experiência religiosa: “de fato, nem mesmo o colapso final do movimento
carismático elimina a profundamente arraigada dos crentes; uma que se tornou
fundamental para a sua identidade”.
842
E, nesse sentido, os movimentos messiânicos
expressam além de revolta e protesto, uma expressão de “eterno retorno”, o que pode ser
aplicado ao caso iurdiano:
Sempre há nas revolta s uma idéi a de retorno a um passado grandioso
ou uma ida ao futuro onde se realizarão os desejos. Ou melhor
ainda, a proposta é de um retorno ao futuro, isto é, a soci edade terá
de volta o que foi perdido. É o mito do eterno retorno.
8 4 3
É também relevante a compreensão feita por Max Weber de que “processo
de simbolização cumpre sua função essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de
poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessários à sua expressão”.
844
Comentando
ainda este aspecto, Sérgio Miceli afirma que, segundo Weber, o discurso do agente religioso
carismático não constitui “mero epifenômeno da realidade social”, e acrescenta:
Sem os símbolos que são os materiais significante s que a doutrina
transmite como se fossem significações não-ar bitr ária s, não pode
839
JOANILHO, André Luiz. Revoltas e rebeliões. São Paulo: Contexto, 1989, p. 19-20.
840
Joanilho usa tal terminologia para identificar, caracterizar e situar historicamente os principais movimentos
com caráter messiânico-milenaristas desenvolvidos no Brasil. Op. cit., p. 73-75.
841
Ibid., p. 54-55.
842
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural, p. 233.
843
JOANILHO, A. L. Op. cit., p. 67-68.
844
MICELI, Sérgio. A Força do Sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LIV.
250
haver expre ssão de um a esfera pr opri amente econômica e muito
menos uma estrutura de poder.
8 4 5
Bourdieu afirma que Weber encontra os meios de correlacionar o “conteúdo
do discurso mítico” aos interesses religiosos daqueles que “o produzem, que o difundem e
que o recebem”.
846
Comentando este aspecto, Miceli afirma:
O tema central diz respeito, portanto, às relações entre sistemas
simbólicos como por exemplo, as crenças religiosas (...) e o
sistema de classes e grupos de status, e a estrutura de pode r daí
resultant e (...) o alvo último de Weber c onsiste em compreender o
processo de difusão e m obilização a través do qual uma dada
orientação religiosa pode tornar-se a c once pção do mundo
dominante par a toda uma soc iedade .
8 4 7
Quando líderes e fiéis iurdianos exaltam poderes divinos, apresentando-o
como cura para os males presentes e sentidos de modo imediato, transferem para um
ambiente intra-histórico, o grupo, a aspiração de uma libertação latente, que tem implicações
sociais. Assim, a IURD, num dinamismo aparentemente paradoxal, ao mesmo tempo que
acena aos seus adeptos com os bens de consumo que a sociedade capitalista tem para seduzir,
acaba por representar uma forma de reação e enfrentamento da situação adversa que o
sistema estabelecido também lhes proporcionou:
A religiosidade freqüentemente se encontra na base dos grandes
movim entos populares de contestação política, como foi o caso de
Canudos e do Cont estado (...) Os movimentos religiosos populares
de Canudos Juazei ro e Contestado não sã o resultado de isolamento
sócio-pol ític o redundando em fanatismo, mas são uma re sposta
concreta, de caráter religioso, artic ulada a transfor ma ções polític as
na sociedade brasileira e percebidas como adve rsas para os f racos e
desprotegidos. Não é por alienação que a resposta de tipo
milenarista se efetua .
8 4 8
Segundo Chauí, a resposta messiânica à adversidade social e política possui
qualidades que a revestem de religiosidade, permitindo que haja o desejo profundo de
“mudança da ordem vigente aqui e agora”, ou ainda, a expressão do sentimento “dos
oprimidos de que eles são mais fracos que os opressores” e que poderão superar os
desafios do contexto urgente, pela união de todos, “formando uma comunidade verdadeira e
nova, indivisa, protótipo do mundo que há de vir”.
849
Na IURD, portanto, os agentes sociais, utilizando-se de um capital cultural
ao seu alcance, introjetado pelo habitus, reconstroem ou resignificam sua identidade “capaz
845
Id., ibid., p. LIX.
846
Id., ibid., p. 32.
847
Id., ibid., p. LII.
848
CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 75.
849
Id., ibid., p. 76.
251
de redefinir sua posição na sociedade” e de fazê-los buscar a transformação do contexto
social em que estão inseridos: “a identidade destinada à resistência leva à formação de
comunas, ou comunidades”.
850
Por tal identidade pode-se entender “a fonte de significado e
experiência de um povo”, ou “o processo de construção de significado com base em um
atributo cultural, assim como um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s)
qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado”.
851
Os i magi nários soci ais organizam e controlam o tempo coletivo,
interfe rem na produção da memória e nas visões de futuro. Por meio
deles, uma col etividade designa sua identidade elaborando uma
representação de si própria ; a representa çã o totaliza nte da sociedade
indic a uma ordem por meio da qual cada elemento tem se u lugar,
sua ident idade e sua razão de ser.
8 5 2
No movimento iurdiano, líderes e fiéis, enquanto atores sociais,
internalizaram uma “identidade de resistência coletiva”, a qual “é criada [ou recriada] por
atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas” por um
contexto de vida que se lhes tornou desfavorável e excludente, levando-os a criar “trincheiras
de resistência e sobrevivência”, com base em identidades que haviam sido anteriormente
“definidas pela história”.
853
3.7 - O palimpsesto cultural das práticas iurdianas
Como figura de linguagem, pode-se empregar a representação do
“palimpsesto”
854
para identificar o modo pelo qual antigas crenças, muitas vezes combatidas e
aparentemente extirpadas, histórica e culturalmente, mantêm a força para resistir e ressurgir
com uma nova roupagem nas expressões do sagrado, no contexto religioso brasileiro
contemporâneo. Tomando-se o protestantismo histórico como referência, observa-se que este
segmento, em mais de um século de atuação no contexto brasileiro, manteve-se um elemento
estranho ao universo cultural-religioso que configura o país. Para os missionários que
chegaram ao Brasil, no século XIX, era preciso substituir uma cultura considerada “inferior e
idolátrica” por valores culturais e normas sociais superiores. Assim, nota-se uma atitude
850
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 25.
851
Id., ibid., p. 22.
852
CAPELATO, M. H, Op. cit., p. 211-277.
853
CASTELLS, M. Op. cit., p. 24, 25.
854
Palavra de origem grega empregada para identificar um antigo material de escrita, conhecido como
“pergaminho”,
o qual, em razão da sua escassez ou alto preço, era raspado por copistas para permitir novos
registros. Assim, após um determinado tempo em que fora apagada, a antiga escrita costumava reaparecer sob o
novo texto impresso, permitindo, inclusive, a releitura ou decifração do que havia sido ali primeiramente
redigido.
252
semelhante a que é identificada por Jacques Le Goff quando emprega o termo “obliteração”
para se referir ao esforço empreendido pelo catolicismo medieval no sentido de realizar uma
“sobreposição dos temas, das práticas e dos monumentos cristãos sobre os antecessores
pagãos”. Naquele contexto, “luta-se por não haver sucessão; uma abolição. A cultura
clerical encobre, oculta e elimina a cultura folclórica” afirma Le Goff.
855
nos primeiros
esforços de inserção empreendidos pelo protestantismo no Brasil, ficava demonstrada a
inabilidade para lidar com as regras existentes neste novo campo. Enquanto que, com
plasticidade, o português – durante o período colonial - “americanizava-se” ou “africanizava-
se” conforme fosse preciso, cedendo com “docilidade ao prestígio comunicativo dos
costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas”, o protestantismo era inflexível diante de
elementos culturais, como observa Sérgio Buarque de Holanda:
Ao oposto do catolicismo, a rel igião reformada oferecia nenhuma
espécie de excitação aos sentidos ou à imaginaç ão dessa gente, e
assim não proporcionava nenhum terreno de transição por onde sua
religião pude sse ac omodar-se aos ideais cristãos.
8 5 6
Quando, finalmente, conseguiu inserir-se no país, finalmente, no século
XIX, continuou sendo um elemento estranho à realidade cultural brasileira”.
857
Em sua face
mais européia, como no caso dos luteranos alemães que se estabeleceram no Sul do país, a
preocupação era a de preservar valores culturais de origem, como um valor identitário, sendo
os cultos feitos inclusive na língua estrangeira. Em sua vertente norte-americana, o
comprometimento era com o chamado “Destino Manifesto”, que pressupunha ser a
“civilização cristã norte-americana” o protótipo do reino messiânico que se consolidaria com
o retorno de Cristo a terra. Assim, àquele povo, divinamente eleito, caberia então a tarefa de
evangelizar as outras nações:
(...) um a incrível inquietação messiânico-milenarista na América do
Norte atingiu se u auge no século XIX. (...) P ar a muitos líderes e
pensadores e clesiásticos a vinda gloriosa do Reino se daria após a
implantação da civilizaç ão cristã; por isso a cristianização da
sociedade ser ia uma pre paração para a vinda do Re ino de Deus, fato
que promove u a empr esa missionária via Destino Manifesto.
8 5 8
As palavras a seguir retratam bem o perfil do protestantismo clássico que se
desenvolveu no país, destacando-se a sua dificuldade de inserção, sobretudo, nas camadas
855
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214.
856
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 65.
857
ALVES, Rubem. Protestantismo: dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982.
858
MENDONÇA, A. G. O celeste porvir, p. 55.
253
mais populares e a perda de espaço “na luta entre diferentes empresas de bens de
salvação”:
859
A ética prot estante rompia com dive rsos padrões do c at olic ismo
medieval. Além de redirecionar a ascese, o protestantismo nega
vários sacramentos, a devoçã o a os santos questionando milagres. Ao
mesmo tempo em que diminui a quantida de de rituais, rejeita a
prática de promessas e rezas tradicionais, estimulando a leitura e
interpretação da Bíbli a por todos. Era assim uma religião menos
ritualista, mais intelectualizada, mais ética, menos encant ada,
menos mági ca . A racionalização moderna ocidental se expressa
bem nessa te ntativa protestante de se livrar de qualquer
proximida de c om o que Weber define como o tipo ideal de magia.
8 6 0
E mesmo no caso do pentecostalismo clássico - não obstante seu avanço de
aproximação dos estratos sociais mais amplos da sociedade brasileira muitos dos seus
referenciais continuaram sendo externos. Os missionários - responsáveis por sua introdução
no país - eram todos estrangeiros, daí uma preocupação rígida quanto aos usos e costumes,
por exemplo, e mesmo em relação a qualquer comportamento social que lembrasse
“catolicismo” ou até mesmo com relação à prática de esportes ou à participação de
determinadas atividades sociais. O pentecostalismo classificou os cuidados estéticos do corpo
como “vaidade” e, portanto, algo perigoso para a espiritualidade cristã.
É notório, portanto, que a IURD tenha adquirido uma identificação cultural
sem precedentes com elementos do campo religioso brasileiro. Em relação aos “usos e
costumes”, por exemplo, conecta perfeitamente a a elementos associados ao “valor ao
corpo”. Seria simplesmente inconcebível imaginar as primeiras formas de pentecostalismo
desenvolvidas no campo religioso brasileiro, estampando como propaganda ou testemunho
da bênção divina alcançada, a seguinte manchete: “Quando a e a beleza são fundamentais:
conheça o testemunho de quem tem alcançado a prosperidade” – título que aparece em artigo
da Revista Plenitude,
861
destacando o lançamento, pelo empreendimento de membros da
Igreja Universal, de uma linha de produtos de beleza, direcionada especialmente ao público
evangélico”. Composta por cerca de duzentos produtos, “traz citações de versículos bíblicos
nas embalagens e nomes patenteados ligados à blia”. Ressalta ainda a reportagem que “os
cuidados com a beleza exterior não são sinais de falta de espiritualidade”. A IURD responde
assim ao pluralismo que historicamente configura o campo religioso brasileiro, estabelecendo
859
MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOUDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. XIII.
860
MARIZ, Cecília Loreto. A sociologia da religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia
da religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 77.
861
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 67, p. 34, 1999.
254
ressonância identitária com o capital simbólico cultural nele disposto, do qual se apropria.
Esse compósito cultural ou folclórico pode ser entendido como:
O conjunto de r epre sentaç ões coletivas sedimentadas que ,
transmitida s de uma geraç ão para outra, formaram um substrato
comum a todos, uma espécie de matriz religiosa, que permanece
subja cente a o c atolic ismo, a certas formas de kardecismo e religiões
afro-brasileiras. Esse terreno c onté m o húmus no qual o
neopentecostalismo se alimenta tanto ritual como teologica ment e,
ao se apropriar de símbolos, linguagens e visões de mundo
preexiste nte ao seu surgi mento na história.
8 6 2
Segundo Bourdieu, uma relação de tripla dimensão no campo cultural:
recuperação e integração do passado dentro do presente, paródia e repulsa e ruptura
responsáveis por promover “revoluções” culturais. Na trajetória histórica da IURD, é
possível identificar esses movimentos acontecendo simultaneamente. Sobre o processo de
apropriação e assimilaridade de elementos culturais, Roger Chartier comenta que um dos
elementos característicos dos campos culturais reside na sua relação mais forte, mais do que
em outros campos, “do presente com um passado de longa duração”.
863
Diante disso, pode-se
dizer que os campos culturais
caracterizam-se pela incorporação, em cada momento histórico, de
sua própria histór ia , a partir dos diversos tipos de relação que os
criadores, os produtores estéticos ou intelectuais, num dado
momento do tempo, têm com o passado do campo, disciplina ou
prática .
8 6 4
Para a ocorrência desse processo de ressonância cultural são decisivos a
orquestração do habitus - que permite uma conversão sem rupturas e uma apropriação e
resignificação de ritos católicos e afro-brasileiros. Os discursos, as configurações conceituais
e as práticas iurdianas consistem, pois, em apropriações de uma realidade simbólica social já
existente, estruturas essas que “são historicamente produzidas pelas práticas articuladas
(políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras”.
865
Segundo Durkheim, “a
religião é um fato social, tem história, estrutura e função (...) é um fenômeno coletivo e
objetivo”, sendo um dos aspectos que lhe objetividade a sua “transmissão de uma geração
para outra”, fazendo que o indivíduo “a adquira tal como o faz com a linguagem”, por
exemplo.
866
Observa-se que pela incorporação do e pelo processo histórico as representações
apreendidas e estruturadas pelas práticas iurdianas estão relacionadas “com os esquemas
862
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 19, 20.
863
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a História, p. 142.
864
Id., ibid., p. 141.
865
Id., A História Cultural: entre práticas e representações, p. 19, 27, 28.
866
Apud EVANS-PRITCHARD. Op. cit., p. 79, 81.
255
interiorizados, categorias incorporadas, que as geram e estruturam”. Essa subjetividade da
experiência religiosa objetiva-se em práticas e discursos à medida que responde a uma
demanda social, ou seja, é capaz de dar sentido à existência de um grupo: “A noção de
habitus ajuda a explicar a unidade de estilo que une as práticas e os bens de um agente
singular ou de um grupo de agentes”.
867
Logo, os agentes iurdianos, orientados por um
habitus orquestrador, não precisam entrar em acordo “racional” ou formalmente protocolado
para agir da mesma maneira: cada um, obedecendo a um “gosto pessoal”, realizando o seu
projeto individual, concorda de maneira espontânea e sem saber com um número incontável
de outros que pensam, sentem e escolhem semelhantemente a ele. Daí as práticas coletivas
iurdianas adquirirem coerência e sentido aos seus adeptos.
Contribui diretamente para esse processo de assimilaridade do capital-
cultural do campo o fato dos agentes iurdianos, líderes e fiéis, não se despojarem de suas
raízes culturais de origem. Em relação aos fiéis, a mensagem iurdiana evita uma ruptura com
o universo representacional e com as vivências religiosas anteriormente experimentadas, fato
que contribui para que haja uma pida adaptação ao grupo, dos que recorrem aos seus
templos. Afinal, quando se passa parte da vida freqüentando cultos afro-brasileiros ou
fazendo promessas a santos é porque esse referencial faz um sentido. A importância dessas
crenças existentes para a operosidade da IURD pode ser observada no depoimento de seus
líderes:
O bispo Macedo é uma pe ssoa mui to pr ática. E uma vez ele estava
conversando conosco e disse que o Brasi l é um grande ter reiro de
macumba. E nós temos trabalhado exatamente em cima da
experiência do brasileiro... No Rio de Janeiro qua ndo você pergunta
quem ve io da umbanda, do candomblé, do espiritismo, 90%
levanta a mão (...) Muitas vezes nós somos c riticados porque
procuramos despe rtar a fé do povo da maneira mais simple s e da
maneira mais palpável (...) Para despertar a fé da pessoa, nós às
vezes entregamos alguma coi sa na sua mão dize ndo que a quilo é
exatamente algo que vai ajudá-la. Então, c ada ve z que ela olha
aquele objeto, ela vai dizer eu vou conseguir. Então porque não
pegar a arruda que é um negócio que todo mundo conhece no Br asil?
Eu já fiz e sei o resultado disso. Você bota a arruda numa bacia de
água e espalha, onde bate aquela água o camarada, se ele e stá
endemoninha do, manifesta demônio (...) Essas c oisa s você faz para
despertar a fé das pessoas e, inclusive, utilizar o que está arraigado
no subconsciente coletivo brasileiro para fomentar a fé e libertar a
pessoa. (...) Outro dia eu estava conversando com o bispo Macedo.
Escuta, bispo, a fulana a gente conversa muito sobr e experiência
acredita que esteve na França e trouxe de lá potestade etc. Ele
me respondeu: Ela acredita nisso? Trabalhe em cima do que ela
acredita.
8 6 8
[grifo nosso]
867
Cf. BONNEWITZ, P. Op. cit., p. 83.
868
Paulo De Velasco, pastor da IURD - e, na ocasião, deputado federal em depoimento à Revista Isto É, São
Paulo, 25 jan. 1995.
256
Também um relato apresentado pela Folha Universal, transcrito a seguir,
exemplifica bem como a mensagem iurdiana encontra ressonância no habitus religioso de
seus fiéis:
Alzira Vargas, ex-mãe-de-santo durante 25 anos, foi atraída pelas
pregações da Televisão Rec ord e conta que, depois de ter tido
algumas frustrações com as religiões afro-brasileiras fic ou na
seguinte situação, da qual saiu através de uma experiência de
conversão: Passei a ter i nsônia; audição de vozes; desejo de
suicídio; pe rdi a minha ca sa e os meus carros; fiquei com uma
dívida altí ssima no banco que me mandou pa ra cartório; enfim eles,
os or ixás, me t omaram tudo. Aí foi o meu fundo do poço. A sua
chegada na igreja se deu da seguinte forma: Foi no dia que tentei
suicídio. Completamente louca e decidida, apanhei o revólver e
ligue i a televisão par a abafar o som do tiro, porque meu f ilho estava
dormindo. Quanto liguei a televisão caiu no canal 13 [TV Recor d no
Rio de Janeiro]. Não se i porquê , mas fiquei hipnotizada, assi stindo
à oraç ão do pastor ( ...) passou no rodapé da televisão ‘pare de
sofre r e o telefone. (...) Fiquei desesperada para ir lá querendo
falar com o pastor (...) Apanhei um táxi naquele m omento e fui a
IUR D de Botafogo (...) O pastor me atendeu com pac iência, me
orientou, fez uma ora ção, a qual me fez sair dali leve e com uma
força incrível (...) quando cheguei em casa tive forças para quebrar
todo o barr acão (...) destruí tudo.
8 6 9
Em outro depoimento, uma fiel da IURD faz a seguinte afirmação: Na
Universal é que eu me encontrei depois de muitos anos [...] depois de ter passado pela Igreja
Católica [...] terreiro, de mesa branca e ter feito muito trabalho...”
870
As palavras a seguir
confirmam semelhante constatação:
José Adalberto Silva diz que tocava atabaque num Centro
Espírita. No meio de uma crise se embriagou e foi para a casa com
o objetivo de praticar o suicídio. Foi então que ouviu no r ádio uma
oração de Edir Ma ce do, que o fez pr ocurar um templo da IURD,
localizado no bairro do Guarani, em Belo Horizonte e ali, diz ele ,
comecei meu processo de libe rt aç ão.
8 7 1
Essa continuidade de profundas experiências religiosas anteriormente
vivenciadas pelos fiéis, em práticas agora resignificadas, está de acordo com os conceitos
formulados por Mircea Eliade de que “o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância
da vida espiritual”, e que se pode “camuflá-los ou mutilá-los”, mas que jamais se pode
“extirpá-los”, como afirma o mesmo autor:
O pensamento simbólico é consubstancial ao ser humano; precede a
linguagem e a raz ão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da
realida de os ma is profundos (...) As imagens, os símbolos e os
mitos não são criações irr esponsáveis da psique; elas respondem a
869
Folha Universal, 02 abr. 2004.
870
Nereida Shlishia, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 29 maio 2005.
871
Folha Universal, 26 nov. 2003.
257
uma necessidade e preenchem uma funçã o: revelar as mais secretas
modalidades do se r.
8 7 2
A força de elementos simbólicos que emergem de crenças e desejos
impregnados no imaginário social dos seus adeptos mostram que nas práticas ritualísticas os
agentes “não se contentem em reproduzir ou representar mimicamente certos acontecimentos;
eles os revivem afetivamente em toda sua vivacidade, originalidade e violência”.
873
Revivem
de “maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela mentalmente os
menores detalhes (...) o mesmo caráter de experiência vivida inicialmente”.
874
Também
Eliade, ao falar sobre “o eterno retorno”, afirma que o “tempo sagrado” é, pela sua própria
natureza, reversível e recuperável, sendo os ritos um mecanismo importante para viabilizar
esse processo:
Espécie de eterno presente mít ico que o homem reintegra
periodi ca mente pela linguagem dos ritos: Toda a festa re ligiosa,
todo o tempo litúrgico, r epre sent a a reatualização de um evento
sagra do que teve lugar num passado mítico, no começo. (...) Por
conseqüênci a, o tempo sagrado é indefinidamente recuperável,
indefinidam ente repetível.
8 7 5
Apropriando-se de elementos de uma matriz cultural religiosa, a IURD
elaborou uma prática religiosa na qual o grau de semelhança com o catolicismo folclórico e
os cultos afros é muito evidente, tornando-se, por isso, uma igreja muito próxima das
aspirações religiosas do povo, de fácil assimilação, implicando um crescimento incomparável
na história recente do pentecostalismo. Em suas práticas a IURD demonstra os elementos
constitutivos da “alma religiosa”, fazendo assim uma paráfrase ao conceito utilizado por
Durkheim, segundo o qual a “sociedade é a alma da religião”.
876
O “processo de
simbolização” - de que se reveste o carisma nas práticas da IURD - cumpre sua função
essencial de legitimar e justificar a unidade do sistema de poder, fornecendo-lhe o estoque de
símbolos necessários à sua expressão”.
877
Para alguém que tenha sido um praticante de ritos das religiões afro-
brasileiras ou tenha mantido algum tipo de crença nas práticas do catolicismo, como o
costume de acender velas ou invocar a proteção do anjo da guarda ou das santas almas num
872
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins
Fontes, 1991, p. 8, 9.
873
LÉVI-STRAUSS, Claude. O feiticeiro e sua magia. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, p.
209.
874
Ibid., p. 223.
875
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s.d, p.
81, 82.
876
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 496.
877
MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. LIV.
258
momento de aflição, uma identificação, uma noção de pertença a tal universo. Mediante o
dinamismo das práticas, o habitus iurdiano se tornou um conjunto de “esquemas que
permitiram aos agentes gerar uma infinidade de práticas adaptadas a situações que se
modificam de modo ininterrupto”,
878
engendrando “esquemas” que habilitam os agentes a
gerar uma infinidade de ações adaptadas a um sem fim de situações de mudança.
879
Passível
de atribuição a um dado grupo social, o habitus
880
se torna, desta maneira, responsável por
capacidades “criadoras”, produto da história, que produz práticas individuais e coletivas,
estabelecendo os limites dentro dos quais os indivíduos são “livres” para optar entre
diferentes estratégias de ação:
O habitus a pa rece c omo o terreno comum em me io ao qual se
desenvolvem os e mpreendime ntos de mobilização c oletiva cujo
êxito depende forçosamente de um cer to grau de coincidê ncia e
acordo entre as disposições dos agente s mobilizadores e as
disposições dos grupos ou classe cujas aspirações, reivindicações e
interesse s, os prime iros empalmam e expressa m através de uma
conduta exemplar ajusta da às exigências do habitus e através de um
discurso novo que r eela bora o código comum que cimenta tal
aliança.
8 8 1
De igual modo, em relação aos seus deres iurdianos, o processo de
ascensão que desenvolvem perante o grupo não ocorre por ruptura, mas por continuidade.
Destaca-se na história de vida desses pastores e bispos uma trajetória de experiências
anteriores com diferentes expressões religiosas do campo religioso brasileiro. Não apenas
Edir Macedo ou Roberto Augusto, um de seus auxiliares na fundação da IURD, que foi
coroinha da Igreja Católica e posteriormente freqüentador da umbanda - mas quase a
totalidade dos demais pastores e bispos iurdianos transitaram por inúmeras religiões antes de
aportarem na Igreja Universal. Dada a sua história ainda recente, poucos pastores que
“nasceram na Igreja”. Um grande número diz ter pertencido ao catolicismo e poucos
passaram pelo exercício do pastorado em outras denominações evangélicas. Mas,
inegavelmente, pelos depoimentos e testemunhos que apresentam sobre a sua vida pregressa
geralmente citados nas suas prédicas identificam-se como provenientes de uma
experiência religiosa anterior principalmente com o kardecismo ou cultos afro-brasileiros.
Como exemplo dessa realidade, pode ser citada a história de vida de Jorge Pinheiro, que com
apenas oito anos de idade era levado pelo pai a “freqüentar casas de encostos”, sempre às
sextas-feiras, na cidade de Juiz de Fora - MG, onde nasceu. Já ao lado da mãe, freqüentava as
878
BURKE, P. História e teoria social, p. 167.
879
Id. O que é História Cultural?, p. 52.
880
BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas, p. 51.
881
Id. A Economia das trocas lingüísticas, p. 91.
259
missas de domingo. Crescia, assim, “dividido entre religiões”. Ainda na adolescência,
conforme seu relato, enfrentava o drama de conviver com pesadelos e constantes dores de
cabeça. Até então imaginava que era “apenas problema de saúde comum a crianças”. “Mas os
remédios não surtiam o efeito esperado, pois se tratava de uma opressão espiritual” - observa.
Foi levado então por seu pai a uma igreja evangélica. Um ano depois, ainda sem respostas
para sua angústia, ouviu falar que uma nova denominação estava chegando à cidade. O
anúncio chegara pelo rádio:
Meu pai ouvi u que havia uma igre ja onde aconteciam muitos
milagres e, por curiosidade, resolveu ir e me levar junto. Era a
Igreja Universal do R ei no de Deus. Ainda lembro que func iona va no
espaço de uma di scotec a e havia muita gente gritando, manifestando
encostos. Er a algo diferente para nós, porque na outra igre ja não
havia esse trabalho de l iberta ção. Vi na IURD entidades
manifestadas dizendo que destruí a a vida de crianç as. Aí c omecei a
entende r o porque dos meus problemas de saúde.
8 8 2
Tornou-se membro da Igreja e, posteriormente, quando possuía uma boa
condição financeira, decidiu deixar um bom emprego como funcionário público, para
dedicar-se exclusivamente ao ministério pastoral, entendendo ser esta sua vocação. Depois de
trabalhar em alguns estados do Nordeste, atualmente é pastor da IURD na cidade de Brasília.
Em um processo dinâmico que envolve não o líder-fundador da IURD,
mas também o grupo que compõe o movimento sob sua liderança, Edir Macedo e seus
auxiliares foram assumindo papéis reconfigurados, representacionalmente dispostos no
campo sob a roupagem de xamãs, exorcistas, pais-de-santos etc. São líderes nacionais, sem
raízes oriundas de empreendimentos proselitistas vindos do exterior. Essa autoctonia permite
uma reelaboração dos elementos culturais-religiosos figurados nas crenças populares
desenvolvidas em solo brasileiro, promovendo pela orientação do habitus, maior
interatividade com o mundo do qual os fiéis também fazem parte. Esse habitus iurdiano
incorpora compósitos culturais híbridos, que estabelecem interações com um passado de
longa duração.
Destaca-se ainda o papel dos ritos nas práticas iurdianas no sentido de
promover a “recuperação do tempo sagrado” disposto no campo religioso, capaz de fazer
dessa Igreja um segmento com raízes culturalmente brasileiras. Como Capelato e Dutra
observam, “o imaginário tem sua existência afirmada pelo símbolo e sua expressão garantida
pela evocação de uma imagem, seja ela acionada por palavras, por figuras de linguagens ou
por objetos”:
882
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 126, p. 54-55, nov. 2005.
260
Quando uma sociedade, grupos ou mesmo indivíduos de uma
sociedade se vê em ligados numa rede c omum de significações, em
que símbolos (significantes) e significados (repre sentações) são
criados, reconhe cidos e apree ndidos dentro de circuitos de sentido;
(...) são capazes de mobiliz ar socialmente afetos, emoções e desejos
(...) Este imaginário social se traduz c omo sistema de idéias, de
signos e de associa ções indissoluvelmente ligado aos modos de
comport amento e de comunicaçã o.
8 8 3
Nesse aspecto, como afirma Durkheim “as representações religiosas são
representações coletivas; os ritos são maneiras de agir que se destinam a suscitar, entender ou
refazer certos estados mentais destes mesmos grupos”.
884
Também Peter Berger declara que
“o ritual religioso tem sido um instrumento decisivo do processo de ‘rememoramento’”, pois
“as execuções do ritual estão estreitamente ligadas à reiteração das fórmulas sagradas que
tornam presentes uma vez mais os nomes e os feitos dos deuses”.
885
Victor Turner igualmente
destaca a importância dos ritos e dos símbolos religiosos para a organização e estruturação de
uma dada sociedade: “Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender-se a constituição
essencial das sociedades humanas. (...) Os rituais revelam os valores no seu nível mais
profundo (...) os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente”.
886
Ressalta esse autor
que “os ritos extrapolam a fronteira do tempo, estabelecendo
multiplicidade de laços estruturais”.
887
Evans assinala que “o rito é parte da cultura em que
nasce o indivíduo (...) Ele é uma criação da sociedade, e não das emoções ou cognições
individuais, embora possa satisfazer a ambas”.
888
Assim, a participação em rituais consiste
numa estrutura simbólica que, como linguagem, orienta o comportamento coletivo, a partir
do que também se constrói o que se pode chamar de personalidade social: “Os ritos ligam o
presente ao passado e o indivíduo ao grupo. (...) geram uma efervescência na qual todos os
sentimentos de individualidade se perdem e as pessoas se sentem a si mesmas como sendo
uma coletividade, a partir e através das coisas sagradas”.
889
Constata-se que o êxito da IURD se deve ao fato de ancorar as suas práticas
no substrato cultural que configura a sociedade brasileira. E nesse aspecto Maria Lucia
Montes destaca como marcas do “etos brasileiro” a festividade, a configuração de ritos
883
CAPELATO, M. H. Rolim; DUTRA, Eliana R. F. In: CARDOSO, C. F. ; MALERBA, J. (Orgs.). Op. cit., p.
229. Estes aspectos, envolvendo a importância dos signos, dos significantes ou dos significados, para a
mobilização de um dado grupo social, são também analisados no livro EPSTEIN, Isaac. O signo. São Paulo:
Editora Ática, 1985.
884
DURKHEIM, E. Apud ROLIM, Francisco Cartaxo. Dicotomias religiosas. Ensaio de sociologia da religião.
Petrópolis: Vozes, 1997, p. 39.
885
BERGER, Peter. Op. cit., p. 53.
886
TURNER. V. Op. cit., p. 19.
887
Id., ibid., p. 118.
888
Id., ibid., p. 69.
889
Id., ibid., p. 89, 90.
261
mágicos, símbolos, procissões e espetáculos dramáticos,
890
acrescentando que “a IURD se
aproxima desse etos católico e das religiosidades populares, pela incorporação de práticas
rituais”. uma incorporação por essa Igreja das figuras do sagrado das religiosidades
populares, “uma transposição de ritos, crenças, valores e práticas rituais que por anos se
agregaram para compor um etos e uma visão de mundo minimamente coerentes”.
891
Montes
observa ainda que:
No esplendor de suas procissões e a alegria de suas festas que,
cortando transve rsalment e a história , na longa duração, sempre
foram os meios pelos quais as grandes ma ssas do povo, bem ou mal,
se cristianiza ram, ou reinterpretaram a fé c at ólic a na lógica de
outras cosmol ogias afro-ameríndias, na zona de ambigüidade que o
recurso às formas sensíveis e a o jogo da imaginação sempre lhes
permitira r ealizar.
8 9 2
Referindo-se ao devocionário folclórico, esta autora caracteriza-o como
expresso nas Folias de Reis ou do Divino, na celebração do antigo poder de São Sebastião
ainda invocado contra a peste, a fome e a guerra que continua perseguir como ameaça
constante a existência dos pobres, nas festas dos santos padroeiros, nas comemorações
juninas, nos pastoris e bumba-meu-boi dos autos de Natal, nas procissões, nas romarias e
santuários espalhados pelo Brasil. Também Fernando Novais, citando Gilberto Freyre, refere-
se a estas “profundas raízes históricas do catolicismo” nos seguintes termos:
Estamos diante de um cristianismo inteiramente esvaziado de
conteúdo ético. É essa uma religião utilitár ia, em que D eus, a
Virgem e os santos vão socorrendo a ca da momento,
milagrosament e, a i nação dos homens. Uma r eligiã o r itualista e
festiva, ace ntuadamente mágica, uma religião dos sentidos,
destituída de inte ri oridade. Uma religião purament e adaptativa, que
reduz a quase nada a tensã o entre o código moral que deve ser
pratica do e o mundo tal como existe.
8 9 3
Cândido Procópio Camargo define como santorial esse catolicismo
presente no Brasil desde o período da colonização. De caráter predominantemente leigo, sua
característica principal é o culto aos santos, seja nos oratórios domésticos, capelas de beira de
estrada ou santuários. É um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco
padre” observa. Neste modelo, os santos representam um poder especial e sobre-humano
que penetra nos diversos espaços da vida, favorecendo uma estreita aproximação e
familiaridade com os seus devotos, oferecendo proteção diante das incertezas da vida,
890
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 105, 118.
891
Id., ibid., p. 123.
892
Id., ibid., p. 117, 118.
893
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit, p. 607, 608.
262
necessidades mais urgentes nos negócios e na vida familiar. Segundo Procópio, esse
catolicismo de devoções populares sempre manteve relativa autonomia com respeito ao
catolicismo institucional e aos representantes oficiais da igreja, por isso sofreu o embate
violento da assim chamada “romanização”, que marcou o processo de instauração no Brasil
de um catolicismo universalista”, caracterizado pelo maior controle sobre os leigos e suas
associações e de adequação do catolicismo brasileiro às diretrizes centralizadoras de Roma.
894
Como mencionado, nas décadas de 1930 e 1940, o clero dirigiu às
expressões da populares um combate sem tréguas”. Principalmente nas cidades, ocorreu
um maior esforço por controle dos padres sobre o rebanho. “É para esse catolicismo do
devocionário popular que a Igreja, sob o império da romanização, volta decididamente as
costas”, por considerá-lo forma de exteriorização “vazia” da , expressão da ignorância do
povo ou obra de perversão da maldade ressalta Montes.
895
Para o novo catolicismo
romanizado e as “elites modernizadoras”, era preciso definir com precisão as fronteiras entre
o sagrado e o profano, o público e o privado, “para que a civilização triunfasse e a Igreja
pudesse firmar em outras bases o poder da fé”,
896
razão porque o sistema popular de crenças e
práticas rituais deveria ser eliminado. Um exemplo dessa reação dos representantes
institucionais, visando enquadrar essas manifestações de e estabelecer fronteiras de
delimitação entre o sagrado e o profano, pode ser observado nas palavras a seguir:
De mais, é necessá rio que se compreenda que a religião não consi ste
em passeatas que chamam de proci ssões, acompanhadas de ruidoso
foguetório e de luzes art ificiais. É pr eciso que se saiba que é uma
acerba ironia e uma sacríle ga irrisã o querer coroar uma festa
religiosa com baile e outros divertimentos prof anos e perigosos,
onde o homena geado é sempre o demônio (...).
8 9 7
A partir da década de 60, paradoxalmente ao abraçar a “opção preferencial
pelos pobres”, a Igreja Católica, em seu esforço de modernização, uma vez mais se afastaria
do povo, ao desritualizar suas práticas litúrgicas:
Fazendo o sacerdote voltar-se de frente para o público de fiéis, ela
o faz de certo modo voltar as c osta s par a o Cristo, a Virge m e os
santos do altar, nos qua is o catolicismo tradic iona l sempre vira os
símbolos de sua fé.
8 9 8
894
CAMARGO, C. Procópio F. Op. cit., p. 32.
895
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 111.
896
Id., ibid., p. 116.
897
Palavras de D. Antonio Mazarotto, carta pastoral, fev. 1931, apud AZZI, Riolondo. A neocristandade: um
projeto restaurador. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 96.
898
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 117.
263
Abandonando o latim em suas cerimônias e os solenes responsórios do
canto gregoriano, os militantes utilizam-se de sons de violão para convocar cada um à luta
para que o Reino de Deus se realize na história, pelas mediações políticas e reordenamentos
sociais. A igreja, procedendo assim, enfraquecia a antiga magia, o mistério, elementos esses
fundamentais à cristã. Perderia ainda, o encanto da solenidade, o esplendor de suas
procissões e a alegria de suas festas que, cortando transversalmente a história, na longa
duração, sempre foram meios pelos quais as grandes massas do povo brasileiro, bem ou mal,
cristianizaram-se ou reinterpretaram a católica na lógica de outras cosmologias afro-
ameríndias.
899
Também cabe citar as palavras de Baudrillard:
Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na
imanência pagã das ima gens, no e spetáculo que a igreja oferecia.
(...) As massas absorveram a religião na prática sacrílega e
espetacular que adotaram (...) Nenhuma força pôde convertê-las à
seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do código (...)
desde que eles se transformem num a seqüência espetacular.
9 0 0
Ao proceder dessa forma, a Igreja Católica, em sua representação
institucional, abria o caminho para a progressiva perda de hegemonia do catolicismo e a
exposição do campo à oferta de bens de salvação por outros segmentos religiosos. Não
obstante os esforços empreendidos, não se conseguiu implantar uma forma romana na grande
massa de católicos do país. uma força, um enraizamento de uma teia de símbolos e
valores culturais que fazem que o apego aos santos e a crença nos milagres, por exemplo,
permaneçam como concepções basilares desse catolicismo folclórico, mantendo por isso
grande capacidade de se refazer continuamente. Abandonada pelas elites e pelo poder
eclesiástico, a antiga manifestação folclórica da iria permanecer então como memória ou
forma viva apenas entre os segmentos populares.
Dentre as novas expressões religiosas que se projetaram no cenário
brasileiro, principalmente a partir da década de 1970 - disputando com o catolicismo, mas
dentro de seus próprios referenciais, as massas de pressão folclórica a IURD ganhou
especial notoriedade por incorporar um universo de crenças mágicas, ainda que sob o
discurso de combatê-las. Essa Igreja conseguiu, então, articular com grande eficiência a
apropriação, “às avessas”, de elementos “do tradicional ecumenismo popular, demonizando
indiscriminadamente santos, espíritos obsessores e orixás”:
Ao fazer da guer ra espiritual uma agressiva a rma de c ombate às
demais re ligi ões, ao catolicismo e em e specia l ao universo religioso
899
Ver Id., ibid.
900
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São
Paulo: Brasiliense, 1994, p. 13-15.
264
afro-brasileiro, (...) a Igreja Universal consegui u reapropriar em seu
benefício, mas pelo avesso, um rico filão da fé da do nas
religiosida des populares no Brasil. E é nessa retradução doutrinária
em termos das linguagens espi rituais m ais imediatamente próxi ma s,
no contexto brasi le iro, que reside um dos fatores fundamentais do
seu êxito.
9 0 1
Distintivo é o fato do movimento iurdiano - não obstante ao discurso de
combate apresentado - acabar por depender diretamente das práticas mágicas, das religiões
afro-brasileiras, das bruxarias, do kardecismo, do catolicismo, ou mesmo dos protestantes
clássicos, para definir e estabelecer as suas instituições referenciais, assim como para fixar
seus programas de ação. É uma Igreja que tira a sua vantagem exatamente da identidade do
inimigo, exteriorizada na representação do Diabo, presente também naqueles seus
concorrentes que operam com formas simbólicas arraigadas no imaginário social. Ao
combater a umbanda, o candomblé, o espiritismo e o catolicismo, a IURD traz para o interior
dos seus cultos e doutrinas elementos da crença, da teodicéia e da visão de mundo das
religiões inimigas. Há, assim, uma apropriação de todo o panteão afro-brasileiro ou das
crenças mediúnicas. À proporção que se fortalece o inimigo e se justifica sua existência,
também se tornam legítimas e necessárias as práticas combativas da Igreja:
Sem o Diabo, se m o inimigo ince ssantemente expul so, humilhado,
combatido, a IURD não seria quem é e nem quem presume ser.
Precisam estar combatendo e vencendo um inimigo forte e poderoso
para at estar seu poderio espiritual, confirmado a cada exorc ismo e a
cada conversão nas ra ia s das re ligiões inimigas.
9 0 2
Ao fazer uma resignificação de elementos reconhecidos e profundamente
arraigados no imaginário religioso, ou na(s) matriz(es) religiosa(s) brasileira(s), de uma
forma bastante peculiar e eficaz a IURD rompe com práticas de caráter mais intelectualizado
ou racionalizante como demonstrado pelo protestantismo clássico - para ir ao encontro de
um universo encantado preexistente no fiel, que dificilmente obteria tanta ressonância em
outro lugar. Essa igreja promoveu apropriações e empregos distintos, em relação a outros
grupos religiosos, dos mesmos bens simbólicos acumulados e em circulação no campo. Nesse
sentido, o que se observa é que o movimento iurdiano não somente participa de um processo
de “reencantamento”, mas, principalmente, recria crenças já “encantadas”.
Assim, diante de uma realidade na qual se defronta com a solidão, a
oportunidade de inserir-se numa comunidade de outorga ao fiel iurdiano espaços de
relações familiares ou de trabalho, onde compartilha com outros um sistema de interpretação
901
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 92.
902
MARIANO, R. Neopentecostais: o pentecostalismo está mudando, p. 129.
265
do mundo ao seu redor capaz de dar sentido às experiências-limites em confronto com as
quais o sagrado volta a emergir como fonte de significado para a existência humana. Desta
forma, por meio de ancoragens nos processos históricos, que envolvem as múltiplas esferas
da experiência pelas quais o ser humano é chamado a conferir sentido à sua existência, a
iurdiana toca o indivíduo de forma íntima e profunda, levando-o a aderir a “um sistema
cultural no qual um mesmo etos e uma visão de mundo a ele congruentes conformam sua
interpretação dessas experiências”.
903
Ali, a organização interna do sagrado, na crença e na
prática ritual e devocional, valores e práticas ritualizadas tornam-se sistema interpretativo.
Desta forma, a IURD se configura numa “comunidade de sentido”, ao permitir que a
experiência do mundo se torne interpretável e que no seu interior também se definam
identidades. O conjunto de práticas e representações que se revestem de caráter sagrado nas
práticas iurdianas, torna-se, desta maneira, uma força estruturante da sociedade, pois opera a
ordenação de mundo para o grupo que a compõe, assumindo a produção de sentido:
Enquant o sistema simbólico, a religi ão é estruturada na medida em
que seus elementos internos relaciona m- se entre si formando uma
totalidade coerente, capaz de construir uma experiência. As
categorias de sagrado e profano, materia l e espiritual, ete rno e
temporal, o que é do céu e o que da terra, funcionam como alicerces
sobre os quais se constrói a experiência vivida.
9 0 4
Concluindo esse capítulo, pode-se dizer que as práticas e representações
vivenciadas pela IURD se orientam a partir de um habitus que, presente no dia-a-dia, baliza
as falas, os ritos e o comportamento religioso de cada um dos seus membros, mesmo que
estes não se dêem conta dessa força reguladora. Por esse elemento, o que se curou ou não se
curou, aquilo em que não se acreditava e que se passou a acreditar, as desgraças, os
malefícios causados pelos demônios, doenças que surgiram, a expulsão de demônios, a saída
de outros movimentos religiosos e a entrada na Igreja são compreendidos e vivenciados,
adquirindo nexo, inteligibilidade e sentido. Esta força reguladora ancora-se em anseios,
desejos e símbolos coletivos de que compõe o campo religioso, razão porque a IURD
demonstra solidez, projeção e ampla aceitação por fiéis oriundos de diferentes estratos que
compõem a sociedade brasileira.
A economia de produção cultural nas práticas da Igreja Universal trata-se,
portanto, de um imenso trabalho de promoção e divulgação produzido e consumido por
todos. A cultura se torna um produto que se consome ao se produzir. O capítulo, a seguir,
903
Id., ibid.
904
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 179.
266
analisará mais detalhadamente este universo cultural que recreativamente se retraduz nas
representações vivenciadas por este fenômeno religioso.
267
4 UMA HISTÓRIA CULTURAL DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS:
REPRESENTAÇÕES
4.1 - Da funerária à catedral: representações do espaço sagrado iurdiano
O espaço inicial da antiga funerária logo deu lugar a edificações cada vez
mais imponentes para as práticas da Igreja Universal do Reino de Deus. Buscando atingir
escalonariamente as massas, a IURD desde o início procurou estabelecer-se em grandes
espaços, em lugares públicos de notória visibilidade, como cinemas e teatros, supermercados
e galpões, chamando a atenção por sua presença extensiva, contrastando com os modelos
arquitetônicos padrão sempre adotado por segmentos pentecostais, como são os casos da
Assembléia de Deus e Congregação Cristã. Na fachada, em letras góticas, sempre muito
visíveis, a frase Jesus Cristo é o Senhor, ao lado de “Igreja Universal do Reino de Deus”,
logo se tornou uma referência dos templos iurdianos. As várias portas, sempre abertas,
também se constituíram outra característica típica. O escritor Caio Fábio D’Araújo Filho
descreve bem este aspecto ao afirmar: “É só porta. A IURD não tem porta, ela é uma porta. A
arquitetura dela é uma porta (...) fica aquela boca assim aberta, gulosa, aberta e na
calçada...”.
905
Com a expressão “não erguemos esse templo para possuirmos conforto ou
luxo, mas para termos mais trabalho para o Senhor Jesus”, o bispo Macedo declarou
inaugurada a Catedral Mundial da Fé, “a glória do novo Israel de Deus” como é
denominada pelos líderes - na cidade do Rio de Janeiro, no ano 2000. Com auditório para
comportar 12 mil pessoas confortavelmente assentadas, o suntuoso e moderníssimo templo
agrega ainda em seu complexo uma espécie de shopping-center com lojas de roupas,
livrarias, praça de alimentação, cinema, parques infantis, museu com exposição de objetos
trazidos de Israel. A inauguração desse templo marcou uma nova tendência da IURD:
edificar megas “catedrais da fé” nas principais cidades brasileiras, começando pelas capitais
dos diferentes Estados do país.
Ao contrário do que ocorre com as igrejas tipologicamente pertencentes ao
protestantismo clássico, na IURD os templos permanecem abertos todos os dias, das 7 da
manhã às 10 da noite, sendo que muitas vezes esses horários se estendem pelas madrugadas
nas programações de vigílias que freqüentemente se realizam. Com isto, a Igreja faz jus a um
905
Revista Veja, São Paulo, p. 31, 14 nov. 1990.
268
de seus slogans: “Há sempre um pastor e um milagre esperando por você!” E, mesmo fora
dos horários pré-estabelecidos das reuniões ou correntes, sempre pelo menos um obreiro
ou obreira (auxiliares dos pastores) para acolher e atender a quem procura pela Igreja. São
solícitos e muitas vezes ficam à porta dos templos convidando os transeuntes para participar
das reuniões ou simplesmente para entrar e conversar ou receber uma oração. Sobre isso,
Montes afirma que os templos, disponibilizados pela IURD, em movimentados locais
públicos do mundo urbano, têm como uma de suas funções estabelecer “mediações que, no
domínio do sagrado, se interpõem entre o indivíduo e a vida social mais ampla”:
A IU RD promoveu exte nsão da rede física dos seus locais de cult o,
com suas por ta s sempre a bertas e seus pastores disponí veis em
diversos horários para pregação e oração comunitária dos fi éis (...)
Instalados em pontos estratégicos, permit em que as pessoas que
saem a pressa das dos escritórios, lojas de comércio, à sua volta,
possam aproveitar as reuni ões nos intervalos de almoço ou nos
finais de expedientes (...) Esses te mplos situados em locais de
grande movimento respondem, para os fiéis, a uma demanda
individual pel o sagrado (...) recriando para eles, diante do
anonimato em que se perdem, na vora gem da vida urbana, um certo
ar de família (...) Cria-se, com isso, uma rede de sociabilidade,
recriando para seus freqüent adores um novo sentido de
pertencimento à cidade.
9 0 6
No templo também linhas telefônicas à disposição daqueles que
necessitam de orientação e atendimento, atividade esta chamada pela Igreja de “S.O.S.
espiritual”. As sedes regionais também possuem estúdios instalados em suas dependências,
de onde são produzidos os inúmeros programas mantidos em emissoras de rádio e TV,
muitos deles transmitindo ao vivo os cultos realizados.
A Igreja Universal também rompe com a aridez de símbolos normalmente
observada no protestantismo clássico, pois utiliza uma riqueza de objetos significantes em
seus cultos e ritos. E o que é mais inusitado: muitos desses objetos cúlticos são típicos dos
ritos católicos e dos cultos afro-brasileiros - aspecto que denota o lugar fronteiriço ocupado
por essa Igreja no campo representacional. Estabelecendo uma comparação, vale dizer que,
procurando construir uma identidade de negação em relação ao catolicismo, o protestantismo
brasileiro elaborou um culto ausente de riqueza simbólica e com forte apelo à razão. Para
isso, dessacralizou a missa católica, eliminando símbolos, luzes, cores e vestes, tornando
desencantado o seu próprio culto:
A Reform a Protestante colocou, no lugar da devoção em movimento,
uma platéia de boca fechada e ouvidos abertos, estacionada ao redor
do púlpito, lugar de onde o sagrado se irrompe através da palavra
906
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 149.
269
articul ada racionalmente. O protestantismo também delimitou a
criatividade litúrgic a e, mesmo condenando a missa católica , impôs
sobre o culto um script rígido. O resultado foi o culto formal, que,
no caso brasileiro, o prote stante histórico aprendeu a prestar à
divinda de com os missionários norte- am eric anos, a despeito de
todas as influênc ias ca tólica s sobre el e exercida s.
9 0 7
Também, diferentemente dos púlpitos utilizados pelos protestantes
históricos - que escondem o corpo do pastor por trás de uma tribuna a fim de enfatizar sua
fala ou sermão, ou também das igrejas católicas em que o padre convencionalmente fica atrás
do púlpito e também da mesa eucarística - o templo/palco iurdiano faz com que toda a
performance verbal e não verbal seja absorvida de forma mais dinâmica e envolvente. Não
importa apenas o que o pastor diz em seus sermões, é preciso que seus movimentos também
exprimam sua narrativa; não basta vituperar com socos e pisões sobre o demônio nem dizer
que se está “cheio do Espírito Santo”, se fenômenos extraordinários não acontecerem.
A IURD realiza eventos religiosos em grandes espaços públicos, como
ginásios e estádios de futebol, porém, o culto no templo é, sem dúvida, com seus ritos,
cerimônias e todo o ritualismo e simbolismo que o envolve, o cenário preferido para as
práticas dessa Igreja. Devido a tal importância, os templos iurdianos são estrategicamente
construídos ou adaptados em forma de teatro onde o altar e o púlpito ficam elevados numa
condição de palco. Aliás, muitos deles foram antes utilizados como cinema, predispondo
assim espaços cênicos com vistas à construção de uma ação representativa. Nesse sentido,
aproximam-se mais do catolicismo do que ao protestantismo. Nos templos católicos, a
suntuosidade observada também causa impressões de grandeza e de poder do sagrado em
relação aos fiéis que comparecem para assistir a algo. O que se destaca, entretanto, é que no
culto neopentecostal iurdiano a participação da platéia é mais interativa e constante durante
os rituais, através dos quais são revividos, a cada encenação, eventos carregados de força
simbólica, fazendo que se tornem também protagonistas das práticas que ocorrem. Fora do
grupo talvez não fossem vistos muito além de massas anônimas constituídas de negros,
pobres, mulheres... Mas no âmbito iurdiano todos se tornam agentes, personagens ativas de
práticas que constroem sentido.
Vale ressaltar que a concepção do “espaço sagrado” como algo miraculoso
ou mágico é muito presente na cultura religiosa brasileira: assim, os santuários católicos de
forte apelo e devoção popular, por exemplo, são concebidos como locais a serem visitados
em busca de milagres e os próprios terreiros das crenças afro-brasileiras, identificam-se como
907
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 67, 68.
270
espaços de manifestações do sagrado. No templo da IURD tudo é público. O atendimento
particular dado pelo pastor é à vista de todos, assim como a oração, imposição de mãos,
exorcismo ou unção com óleo aos enfermos. Há, de uma certa maneira, a reconstrução
simbólica do antigo confessionário católico e das consultas aos guias para receberem
“passes”, tal como no kardecismo e nas religiões afro-brasileiras. Em vista disso, o templo se
constitui em espaço para o desenvolvimento de ritos, utilização de símbolos, configuração da
imagem do líder carismático, cruzamentos, injunções, remodelagens, apropriação e
resignificação de um fertilíssimo capital simbólico disposto no campo religioso brasileiro.
Desempenhando o templo um papel fundamental nas práticas da IURD
como local sagrado,uma orientação dentro da Igreja para que os ritos de cura e exorcismo
não ocorram em qualquer ambiente. Segundo o próprio bispo Macedo, os templos são
espaços propícios para a ação do Espírito Santo. Por isso, pastores e obreiros são orientados a
não se envolverem afetivamente com o doente ou quem esteja sob “influência do mal” e,
quando nas visitas a doentes nos hospitais ou residências, convidarem para ir ao templo a fim
de participar dos rituais lá desenvolvidos.
Mesmo quando ocorre algum tipo de auxílio através dos programas de rádio
e TV, o apelo e orientações finais a que a pessoa procure pelo templo da IURD mais próximo
são sempre enfáticos. Toda a publicidade desta Igreja, na sua própria mídia, está voltada para
um objetivo central: levar pessoas ao templo. Esse lugar é, assim, ideal para a realização do
milagre, e mesmo que o prodígio aconteça em casa, é naquele espaço sagrado que ele é
aprovado, legitimado e divulgado. Por isso serem freqüentes nas programações de rádio e TV
apelos como estes: “você precisa tomar uma decisão” (sinônimo de “ir à igreja”); “vença o
Diabo, que não quer que você até a Igreja”. Tais apelos acabam surtindo resultado. Os
que são atingidos pela mensagem da IURD preferem o comparecimento ao culto, a
participação pessoal no clima do ato religioso, a presença na apropriação daproporcionada
pelo ofício no espaço considerado sagrado.
Nos templos iurdianos, como parte da ornamentação, no palco-altar, sobre o
púlpito, fica permanentemente colocada uma blia aberta. Na frente do palco, uma cruz de
madeira sem imagem do Cristo crucificado posiciona-se entre o rigor protestante, que excluiu
de seus templos o crucifixo, e a Igreja Católica, que faz dele sua marca distintiva. No da
cruz estão a “água abençoada” e uma tigela de “azeite orado”, marcas dos cultos kardecistas e
afro-brasileiros. Sobre a mesa está a menorah, castiçal judaico de sete velas. É possível
constatar, através da observação participante na IURD, que tal segmento religioso rompe com
271
o protestantismo clássico à medida que este contribuiu diretamente para que o “pensamento
iconoclasta imperasse entre nós”,
908
ao retirar dos seus templos as imagens que eram comuns
nos espaços sagrados do catolicismo.
4.2 - Representações mágicas dos objetos litúrgicos
Quando se desenvolve o espetáculo cúltico, os auxiliares dos pastores, no
momento oportuno, trazem outros objetos que serão utilizados: o “óleo consagrado”, os
“galhos de arruda”, as “rosas do amor”, a “água do rio Jordão”, o sal grosso”, a “água
orada” etc. Este enorme arsenal simbólico pode significar ainda lavar-se com sabonete ou
xampu abençoados; andar com um retalho de manto sagrado no bolso; levar uma lâmpada
elétrica para ser ungida pelo óleo sagrado e colocá-la acesa no quarto, com o propósito de
que “ilumine a vida”; pode-se levar, de casa ao templo, uma foto ou um sapato de alguém
“problemático”, para ser abençoado, para que a pessoa representada seja então colocada “no
caminho certo”. Fala-se ainda em fechamento do corpo”
909
e, no chamado dia de Cosme e
Damião, reedita-se uma prática típica do catolicismo de devoção folclórica: distribuição da
“bala ungida” para as crianças. Destaca-se ainda a utilização do copo com água durante a
oração, prática diária nos programas iurdianos realizados no rádio e na televisão. Tal
procedimento estabelece analogia com a “água fluidificada” comumente utilizada, dentro de
ritual semelhante, em algumas religiões mediúnicas como o kardecismo. Também, o pão da
fartura, a maçã do amor, a rosa consagrada, o óleo ungido, o sabão da purificação - fetiches e
amuletos utilizados para exorcizar o mal e afastar os infortúnios, usados com evidência pelo
catolicismo medieval - revestem-se agora de nova roupagem simbólica nas práticas iurdianas.
Assim, fazendo jus à afirmação de que “o pensamento popular sempre gostou de procurar nas
imagens simbólicas a menção de acontecimentos concretos”,
910
os objetos cúlticos tornam-se,
para o indivíduo, a sua casa e seus negócios, proteção contra os males atribuídos e
personalizados na figura do diabo e seus demônios.
O que ocorre na IURD se assemelha ao que é analisado por Jacques Le Goff
no período medieval: o homem medieval possui uma 'mentalidade simbólica'”, vivendo
numa “floresta de símbolos”. A simbologia comanda o culto, a vida e os templos com sua
908
BERNARDO, Teresinha. Técnicas qualitativas na pesquisa da religião. In: Sociologia da religião no Brasil.
São Paulo: PUC/ UMESP/ Edições Simpósio, 1998, p. 140.
909
Prática típica dos terreiros de umbanda, segundo a qual os devotos recebem “passes” de benzimentos para que
o corpo fique, por exemplo, protegido contra doenças e outros males causados por forças negativas.
910
BLOCH, M. Op. cit., p. 171.
272
estrutura simbólica. Nota ainda, este autor, que em tal período “o livro essencial, a Bíblia,
tem uma estrutura simbólica. A cada personagem, a cada acontecimento do Velho
Testamento, corresponde uma personagem e um acontecimento do Novo Testamento”. O
homem medieval é assim um “decodificador contínuo, o que reforça a sua dependência em
relação aos clérigos, peritos em simbologia”.
“O analfabetismo, que restringe a ação do texto
escrito, confere às imagens um poder muito maior sobre os sentidos e sobre o espírito do
homem medieval. Representações iconográficas”.
911
Podem ser identificadas algumas finalidades representacionais no emprego
dos símbolos feitos nas práticas iurdianas. Primeiro, a utilização para ensino de ilustrações de
relatos bíblicos. Afirmando que a Bíblia é um livro “cuja linguagem é repleta de símbolos”, o
bispo Macedo ressalta que “os símbolos devem ser empregados para transmitir
ensinamentos”, acrescentando ainda que “um objeto é figura ou idéia que representa e
garante a realidade daquilo que está sendo simbolizado”.
912
Em segundo lugar, o emprego dos objetos visa instigar a imaginação dos
participantes daquele universo para o que chamam de “exercício da fé”. Macedo faz questão
de frisar que os objetos simbólicos são “pontos de contato, elementos usados para despertar a
fé das pessoas, de modo que elas tenham acesso às respostas de Deus para seus anseios”:
Muitas pessoas têm dificuldade para coloca r sua fé em prática, por
isso precisam do ponto de contato, que podem se r o óleo de unção, a
água, a rosa, uma peç a de roupa e outros elementos. Esses objetos
despertam o coração e as mentes das pessoas para a r eali dade de que
o Senhor está prese nte para abençoá -las.
9 1 3
Terceiro, utilização dos símbolos como fetiches ou amuletos. Isto se
observa, por exemplo, em relação aos frascos de água, de óleo ou sal, às vezes vendidos, às
vezes distribuídos gratuitamente, os quais, usados no templo ou em casa, cumprem funções
de proteção ou realização de desejos com efeitos mágicos. Por meio desses, acredita-se que o
próprio Cristo se faz presente nas reuniões ou instala-se no lar de cada um. E por fim,
estabelecer uma conexão direta com o universo do catolicismo e das crenças afro-brasileiras,
onde a presença de símbolos e objetos ritualísticos exerce papel fundamental nos cultos.
Os Estatutos da Igreja Universal oferecem para os objetos simbólicos as
seguintes explicações:
Muitas pessoas necessitam de sinais exte riores, coisas concretas
para for ta lece r sua fé ou para crer. Foi por isso que Jesus quando
curou a um cego fazendo um lodo de sua saliva e terra (cf. João
911
LE GOFF, Jacques (Org.). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 27.
912
MACEDO, Edir. O perfeito sacrifício. Rio de Janeiro: Graça Editorial, 1997, p. 16.
913
Id. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 101.
273
9:6). Nem todas as pessoas necessitam de pontos de contato para
desenvolverem fé suficie nte, mas a m aioria precisa, razão pela qual
realizamos em nossos traba lhos as correntes e distribuímos coisas
ligadas à P alavra de Deus...
9 1 4
Os episódios descritos a seguir demonstram com mais detalhes as funções
desempenhadas pelos símbolos nas práticas iurdianas. Acionando o capital simbólico
acumulado no imaginário e de acordo com a procedência do fiel, o bispo Gonçalves fazia o
seguinte apelo na programação levada ao ar pela TV Record, às 23 horas do dia 31/08/95:
Venha à Igreja Universal receber uma fita para colocar no seu
braço. Você que hoje está com uma fita verme lha, venha na próxima
semana receber uma fita azul em que está escrito: persegui os me us
inimigos e só voltei depois que os e smaguei. Venha! Pois no
Domingo, você vai rece ber a fita azul em todas as Igre jas Universal;
largue a fita do Senhor do Bonfim, dos santinhos e venha receber a
nossa fit a azul da cor do céu.
9 1 5
Em julho de 1994, jingles da IURD, veiculados pelas diferentes emissoras
de rádio que transmitem em rede nacional suas programações, faziam anúncio das virtudes
miraculosas da “rosa ungida”:
A rosa ungida! Para você que está doente, procurou os médic os,
tomou remédio e nada adiantou. A rosa ungida! Para você que é uma
pessoa deprimida, triste, tem problemas interiores, vive perseguido
por lembranças do passado. A r osa ungida! Para você que te m
problem as nas suas finanças, está endivi dado, envolvido com
apostas, indo à falência e não sabe mais o que fazer. A rosa ungida!
Para você que tem problemas na vida sentimental e nunca foi fe liz
no a mor! (...) Você estará recebendo a rosa ungida, que representa o
próprio Jesus, por que na Bíblia diz E u sou a rosa de Sarom. Eu
Sou é o nome de Deus, de Jesus (...) você va i colocar essa rosa no
lugar mais alto de sua ca sa, porque, assim como Jesus foi levantado
e colocado no lugar ma is alto, que havia e m Jerusalém na época, no
Calvário, assim você vai colocar a rosa ungida no lugar m ais alto de
sua casa, e todo o mal vai ser atraído para essa rosa, todo espírito
de vício, contendas, homossexualismo, espírito de prostituiç ão, de
adultério, de doença s (...) É hoje que você, meu amigo, vai recebe r
a rosa ungida (...) vai r eceber a rosa ao pé da cruz e pelo poder da
fé todo o mal, que atormenta a sua vida vai desaparecer aqui, já na
igreja (...) nã o se esqueça de trazer o envelope com as péta la s seca s
da rosa da semana passada, será queimada na fogueira santa ( ...)
[música clássica]. Igreja Universal do Reino de De us, lugar de paz
interior (...) onde o milagre acontece.
9 1 6
Vale observar que a “rosa”, no imaginário católico brasileiro, consiste num
símbolo que possui um significante de grande apelo mítico: representa Maria, mãe de Jesus.
914
Estatuto e Regimento Interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Cap. VI. Rio de Janeiro: Gráfica e
Editora Universal, s.d, p. 50.
915
Apud CAMPOS, Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 79.
916
Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 20 ago. 2004. Programa de rádio. Material gravado em K7,
transcrito para uso como fonte.
274
Assim, não obstante condenar a prática do culto mariano, para conseguir que sua mensagem
fique mais tangível, a IURD mantém estrategicamente um elemento de grande apelo de
massa “pela sua potencialidade de mobilizar as pessoas”. Com este símbolo, consegue
desempenhar papel importante na vida imaginativa pelo fato de representar “uma idéia
abstrata por meio de um objeto concreto”.
917
Também, recentemente, a Igreja organizou uma campanha denominada
“escada de Jacó”, alusiva ao episódio bíblico relatado no livro do Gênesis, em que esse
personagem bíblico teve num sonho a visão de uma escada que ligava a terra ao céu,
representando as conquistas materiais que obteria em sua vida e posteridade. Para representar
tal experiência, a IURD confeccionou uma escada e a colocou como parte do cenário do
templo, a fim de ser recorrentemente utilizada como ilustração pelo pastor em sua prédica.
Ao final do seu discurso, o pastor desafiou os fiéis a subirem pela escada em busca da
realização de seus sonhos e da conquista do que Deus lhes pode conceder.
Chama também a atenção o que ocorre na reunião denominada “corrente da
família”. Freqüentada quase sempre por pessoas sozinhas, e não por famílias, essas pessoas
comparecem trazendo retratos de filhos, roupas do marido e garrafas pertencentes àqueles
que “têm problema de bebida”, por exemplo. Os objetos são trazidos para ser abençoados nos
rituais da Igreja, mesmo que as pessoas por eles representadas não façam parte dela ou não
estejam ali naquele momento. A IURD se empenha na crença de que uma pessoa da
família pode ser o grande ponto de partida para a transformação de toda a família envolvida
em algum tipo de crise. Seria o caminho inverso no sentido de se reverter o processo que
originou tais malefícios. O bispo Macedo procura mostrar como isto ocorre:
O Demônio pode se apossar de toda uma família, pode entr ar na
vida de uma pessoa por hereditarieda de, por a lgum trabalho, quando
a mãe estava grávida, pode entrar e se alojar na família quando
alguém desta freqüent a ou f reqüentou algum centro espírita.
9 1 8
Na corrente da “sagrada família”, que envolvia a passagem pelo “arco do
amor”,
919
foi colocado no corredor um grande arco com flores artificiais, por onde as pessoas
carentes de amor e de paz no lar deviam passar. Com duração de duas semanas,
920
a IURD
também organizou a “Campanha das Loucuras da Fé”, enfatizando o comportamento tido
como louco daqueles que esperaram milagres de Deus em condições adversas e nas quais
tudo indica o contrário. A propaganda da “campanha” prometia a distribuição de dois objetos
917
EPSTEIN, Isaac. Op. cit, p. 59, 66.
918
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, p. 46.
919
Observação participante realizada no templo de Londrina, 30 ago. 2004.
920
De 1º a 14 de ago. 2004.
275
que iriam, segundo os pastores, despertar a das pessoas, as quais os receberam como se
fossem objetos mágicos: dia 07/08, o “óleo de Israel” e dia 14/08, a “vara de Jacó”. Em
relação a este último anúncio, um pastor da IURD, em um de seus programas de rádio,
ressaltava: “Venha para o nosso templo e você vai receber a ‘vara de Jacó’. Com ela você
poderá apontar para o carro, para a empresa em que você quiser trabalhar e Deus vai-lhe dar
tudo o que você pedir. Toda maldição e amarração que estiver no seu caminho serão
queimadas ou afastadas”.
921
Um programa na televisão entrevistou uma mulher que
testemunhou dizendo ter colocado a “varinha” na garagem e recebido um carro. Disse o
pastor: “Ela possuía uma varinha, não tinha mais nada; com uma varinha que nós damos
na Igreja Universal, ela colocou na garagem e ganhou um carro”... (mostrando então no vídeo
aquele objeto, e acrescentando): “vá também domingo e receba a sua varinha e conquiste o
que você deseja (...) você vai determinar e Deus vai atender”.
922
A finalidade dessa campanha
é mostrar que o milagre se encontra acima do “senso comum”, na dimensão da fé, instância
inatingível pela lógica rotineira da vida.
No templo de Santo Amaro, em outra reunião, pessoas receberam fitas azuis
e vermelhas para serem amarradas nos pulsos, adquirindo-se assim sorte e proteção contra os
malefícios demoníacos. Vale ressaltar que as cores azul e vermelha têm significação nos
cultos afro-brasileiros.
923
Numa sexta-feira, na “vigília da mesa branca”, as pessoas, em fila,
passavam as mãos sobre uma toalha branca, estendida sobre a “mesa energizada”, para
adquirir bênçãos e proteção para a vida. Aquele objeto teria sido energizado pela imposição
de mãos de pastores, que teriam passado 24 horas em oração e santo jejum” para aquela
finalidade.
924
A IURD também reedita uma prática típica ocorrida com grande evidência
no período medieval: peregrinações a Israel e aquisição de objetos tidos como sagrados da
Terra Santa. As campanhas de fé denominadas “campanha do Monte Sinai” e “fogueira santa
de Israel” ostentam especial destaque nos ritos propostos pela IURD. Visto como um solo
sagrado”, Israel está à espera de uma peregrinação concreta, para os que tiverem condições
ou por procuração, feita pelos fiéis aos pastores, bastando para isso preencher uma folha de
papel com os seus “pedidos de fé”, cujas cinzas serão, segundo os pastores, por eles levadas
para Israel. É estabelecida, desta forma, uma conexão simbólica entre a Terra Santa e o
templo iurdiano por meio de objetos como água, pedra, sal, óleo, trazidos pelas caravanas de
921
Ponto de Luz. Londrina, Rádio Gospel FM, 07 ago. 2004. Programa de rádio.
922
O Despertar da Fé. São Paulo, Rede Record, 04 ago. 2004. Programa de TV.
923
Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, fev. 2005.
924
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 11 nov. 2004.
276
pastores e fiéis que periodicamente fazem turismo àquele país. Nesse imaginário, Israel é
mais do que um território, pois transcende as fronteiras geográficas e adquire uma dimensão
mítica nas pregações dessa Igreja. Israel é a terra “abençoada”, onde tudo dava certo para os
que temiam a Deus, e está pontuada por locais “carregados de poder”, tais como os montes
Carmelo e Sinai, o Rio Jordão, o mar da Galiléia, as minas do rei Salomão e o túmulo de
Jesus, entre outros. Como espaço mítico, Israel serve de suporte para nele se apoiarem as
necessidades e desejos concretos a serem satisfeitos, como se pode observar no exemplo de
uma propaganda, transcrita a seguir:
Não perca a unção dos dizimistas. No próximo domingo, haver á a
consagraç ão dos dizimistas com óleo santo, que o Bispo Paulo
estará traze ndo de Israel e na segunda-feira iremos aprese ntar as
imagens das peregrinações, que 300 pessoas de nossa Igreja fizera m
a Israel. Foram momentos inspiradores, inesquecíveis mesmo, c omo
a Santa C ei a no Get sêmane, com a participaç ão do Bi spo Macedo.
9 2 5
Num dos templos da IURD,
926
sobre a mesa, localizada no altar, foi
colocada uma pedra que, segundo os pastores, havia sido trazida do Monte Sinai. Em outra
ocasião,
927
uma pedra apresentada aos fiéis teria sido tirada, segundo um dos obreiros, das
“minas do rei Salomão” personagem bíblico notadamente lembrado como possuidor de
grande riqueza e poder. Mediante uma oferta financeira especial, as pessoas tinham então o
direito de colocar as mãos sobre aquela pedra, através da qual se transfeririam para os fiéis as
energias de origem divina que no passado teriam gerado a prosperidade daquele personagem
bíblico.
No programa matinal Despertar da e à hora da oração especial de meio-
dia e seis da tarde, o momento em que o pastor ora com um copo de água nas mãos. Ele
pede que Deus “fluidifique” com o Espírito Santo aquela água e “que ela seja, em cada uma
de suas moléculas, carregada com o poder do Espírito”. No final, convida as pessoas que
tiveram o seu copo abençoado, por causa do contato com o aparelho de televisão, a beber
daquela água com ele. Tal procedimento também encontra similaridade nos ensinos de Allan
Kardec. Teóricos kardecistas, entre eles José Lhomme, acreditam que há magnetismos agindo
na natureza, destacando-se entre estes o espiritual”, cuja atuação se pelo pensamento
que contém qualidades boas ou más – com o auxílio de entidades espirituais superiores.
928
De
igual modo, vale também destacar que, em 1955, o padre Donizetti Tavares de Lima, que era
pároco na cidade de Tambaú SP, atraiu a atenção de todo o país por causa de alguns
925
O Despertar da Fé. São Paulo, Rede Record, 02 fev. 2003. Programa de TV.
926
Observação participante no templo da IURD em Londrina, 20 mar. 2004.
927
Observação participante no templo da IURD em Santo Amaro, 30 nov. 2004.
928
LHOMME, José. O livro do médium curador. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Eco, s.d, p. 59, 65.
277
milagres que estariam ocorrendo por meio de seus atos religiosos. Segundo Maria Isaura
Pereira de Queiroz, que dedicou estudos a esse caso, esse padre recomendava que, à hora da
bênção das seis da tarde, as pessoas colocassem as suas mãos, garrafas de água ou roupas de
enfermos sobre os aparelhos de rádio, afirmando também que, naquela hora, cada aparelho de
rádio se transformaria numa “sucursal de Tambaú”, podendo-se receber os milagres em
casa.
929
A numerologia tem importante significado nos ritos iurdianos. É o que
ocorre, por exemplo, em relação ao número 7,
930
pois, como afirmam, “representa a perfeição
divina: sete são os dias da semana; sete foram os altares que Balaão pediu para Balaque
edificar (Números 23:1); sete são as bem-aventuranças (Mateus 5); sete foi o número dos
primeiros diáconos da igreja”.
931
Em uma programação de rádio, o pastor iurdiano deu a
seguinte instrução para a cura de uma fiel que iria amputar a perna: Olha, a senhora virá à
reunião, irá pegar três petalazinhas da rosa que iremos distribuir, fazer um chá, um banho e
vai durante sete dias de manhã banhar a perna em nome de Jesus com toda a fé. Fazendo isso
não precisará mais cortar a perna”.
932
Ocorre algo semelhante ao que Le Goff também
observa: “Também, o homem medieval vive fascinado pelo número simbólico: o três,
número da trindade; o sete, número dos sete sacramentos; 12, número dos apóstolos”.
933
Em
setembro de 2003, apareceram em programas televisivos da IURD, pastores contando que se
banharam sete vezes no mar com roupas de pessoas doentes, dizendo que garantiam a cura
para os que viessem a usar tais peças de roupas.
934
É também comum pessoas trazerem para
as reuniões, seguidamente por sete dias, garrafas com água, fotografias de parentes e roupas
de enfermos e colocá-los sob a cruz de madeira para receber a bênção. Durante os meses de
março e abril de 2006, a Igreja realizou a campanha “Sete Segredos Para a Virada
Econômica”. Nesse rito os fiéis recebiam uma carta selada contendo um segredo para a
respectiva semana, devendo ser aberto somente no momento da reunião. No texto da carta
elaborada, aparecem indagações que desafiam os fiéis: “Por que os incrédulos mantêm o
controle das indústrias, bancos, lojas, empresas ou meios de comunicação do mundo? Por que
os filhos de Deus, normalmente, são subordinados dos incrédulos? Será que Deus é pobre e o
929
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo:
LTC/Edusp, 1990, p. 135-208.
930
Número também bastante utilizado nos ritos das crenças afro-brasileiras.
931
Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 jul. 2000, p. 4.
932
Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, Londrina, 20 jun. 2006.
933
LE GOFF, J. (Org.). O homem medieval, p. 27.
934
Uma alusão ao episódio bíblico de I Reis. Segundo tal narrativa, o rei acometido de lepra banhou-se por sete
vezes no rio Jordão sob recomendação do profeta Eliseu, sendo por isso curado de sua enfermidade.
278
diabo é rico? Não! Deus é proprietário de tudo o que existe nesse mundo e por isso deseja
que os seus filhos estejam no comando de tudo o que Ele criou”.
935
Nas práticas e representações da IURD se crê que, de forma mágica, os
objetos têm a capacidade de proteger a casa, o indivíduo e as relações sociais contra todos
aqueles males atribuídos e personalizados na figura do Demônio. Os símbolos desempenham
ali importante papel na “construção do mundo como representação”, pelo fato de promover
uma relação compreensível entre o signo visível e o referente por ele significado”.
936
Os
imaginários sociais entram em cena quando a linguagem simbólica comunicável exprime
representações. Contribui diretamente para a vivência do universo representacional iurdiano,
num processo de identificação com os elementos culturais-religiosos do contexto brasileiro, o
fato de muitos dos seus fiéis terem pertencido ao catolicismo de devoção folclórica e às
religiões afro, além das igrejas do pentecostalismo clássico, havendo, portanto, na vivência
religiosa de tais membros, um fertilíssimo substrato cultural que retrata bem a “matriz
religiosa brasileira”, a qual, segundo Bittencourt Filho, é constituída por “catolicismo ibérico,
magia européia, religiões indígenas, religiões africanas, espiritismo europeu e catolicismo
romanizado”.
937
, pois, uma relação de continuidade com o mundo mágico das religiões
afro-brasileiras e do catolicismo de devoção popular, imaginário este que é - parafraseando
Marc Bloch - “herdeiro tanto das tradições do cristianismo quanto das velhas idéias [ditas]
pagãs”, e que tem demonstrado grande capacidade de filtrar elementos de uma tradição cristã
mais elitizada, legada do protestantismo, que se desenvolveu no Brasil a partir de
“prerrogativas da estirpe”,
938
arraigadas como substrato cultural desde o período colonial e
que se reportam, até mesmo, ao mundo do medievo.
4.3 - O universo representacional dos ritos
Na IURD, o calendário dos ritos e sessões apresenta uma correspondência
bastante explícita com o calendário ritual estabelecido pelas religiões afro-brasileiras para
celebrar suas divindades. Nessas religiosidades, acredita-se que o tempo é um sistema
discreto sob a regência de divindades específicas. Os dias da semana ou meses podem indicar
regências de princípios simbólicos organizadores. Assim, por exemplo, a segunda e sexta-
feira são dias consagrados a Exu, que, sendo orixá dos caminhos e das passagens, é cultuado
935
Material distribuído pela IURD e recolhido para pesquisa em abril de 2006.
936
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 20, 21.
937
BITTENCOURT FILHO, J. Op. cit., p. 99.
938
BLOCH, M. Op. cit., p. 169.
279
nesses dias liminares que circunscrevem as mudanças entre períodos de trabalho e descanso.
Suas horas consagradas são as de mudanças de períodos, como a meia-noite. Por isso,
preferencialmente nesses dias são feitas as giras de exus nos terreiros de umbanda e lhes são
entregues oferendas em locais de passagem, como encruzilhadas e cemitérios. Sexta-feira é
também consagrada a Oxalá, no candomblé, quando muitos iniciados se vestem de branco. A
associação desse dia ao da crucificação de Cristo, também o torna uma referência de morte.
Nas práticas da IURD, as sessões de libertação ou de descarrego realizadas às sextas-feiras à
noite ganharam especial evidência, sendo as mais concorridas. À meia-noite, “hora grande”
de sexta para sábado, é o momento em que os Exus se manifestam e trabalham, é justamente
nessa mesma hora que nas igrejas estão sendo realizadas as cerimônias onde esses Exus são
invocados para, em seguida, serem expulsos dos corpos das pessoas presentes. O mês de
agosto, no calendário afro, é dedicado à terra onde se depositam os corpos dos mortos e se
veneram os ancestrais. Na IURD, essa época foi declarada o mês dos encostos”, espíritos
malignos dos cemitérios.
Também esse calendário se utiliza das homenagens aos santos católicos.
Em janeiro, por exemplo, devido ao dia de São Sebastião, os terreiros saúdam Oxóssi, deus
da caça associado ao mártir cristão que fora torturado com flechas lançadas sobre o seu
corpo. Nesses rituais, é comum, por exemplo, que os caboclos recomendem benzimentos com
ervas, uso de sal grosso, óleo etc. Na IURD esses mesmos elementos fazem parte de rituais
feitos nos templos ou recomendados pelos pastores para que os fiéis o façam em casa. Em
suas programações de rádio, o pastor Gilberto convida os telespectadores para a busca do
“sabão abençoado”, com o qual iriam “lavar a peça de roupa daquela pessoa que está
internada, que está com Exus em cima, está com Tranca-Rua, com Omolu, alguém que
colocou seu nome lá no cemitério na cabeça de defunto fresco”.
939
Nos templos iurdianos há, pelas razões anteriormente apresentadas, especial
espaço para a ação cênica, cujos agentes interagem com a presença de uma simbologia
devidamente compartilhada pelos participantes. Destaca-se a capacidade dos líderes na
condução desses ritos realizados durante os cultos. Edir Macedo, por exemplo, demonstra
notável habilidade para manter a atenção dos ouvintes quando conduz essas reuniões.
Durante sua prédica - que pode durar cerca de uma hora o público o observa estaticamente,
ao ponto de raramente se retirar alguém do templo antes que sua mensagem se encerre. É
939
SILVA, Vagner Gonçalves da. Concepções religiosas afro-brasileiras e neopentecostais: uma análise
simbólica. RevistaUSP, Religiosidade no Brasil, n. 67, p. 164 set./nov. 2005.
280
como se fosse um momento “mágico”. Alguns choram como se aquelas palavras estivessem
sendo proferidas única e exclusivamente para eles:
Quando assisto aos cultos diri gidos pelo Bispo Mac edo, si nto que
Deus está falando diretamente comigo. O bispo prega pra todos, mas
o Espírito S anto fala ao meu cora ção de um m odo que eu não posso
me conter e choro, choro muito. Aquelas palavras que ele diz são
pra mim, tenho ce rt ez a di sso.
9 4 0
Mas, no restante da reunião, o imenso público não fica impassível diante do
espetáculo religioso, comportando-se ora como platéia, aplaudindo o(s) ator(es) em cena, ora
como ator em transe, arrebatado em êxtase religioso diante de um profeta. Assim, em alta
voz, é bastante comum ouvir frases da platéia em concordância com o pregador ou dirigente
da reunião, às vezes gritando palavras como “glória” ou “aleluia”, e outras vezes repetindo
vibrantemente frases de efeito que o dirigente lança em orações. Os obreiros auxiliares
também costumam percorrer os corredores, estimulando o auditório a participar com
intensidade das cenas vividas no palco ou propostas pelo pregador.
Em uma reunião observada, numa sexta-feira, o pastor, ao entrar no palco-
altar deu início à dramatização, auxiliado por uma equipe de músicos passou a entoar
cânticos ao som de teclados, guitarras e baterias, enquanto os obreiros e obreiras, com seus
uniformes padronizados, postavam-se à frente. Com um microfone nas mãos, o próprio
pastor se encarregou de conduzir o espetáculo de fé, alternando, com voz incisiva e emotiva,
orações e palavras de ordem e estímulo aos participantes. Desta maneira, uma verdadeira
massa foi comandada nos 120 minutos que se seguiram, participando intensamente dos
cânticos, das pregações, dos rituais de exorcismo, das contribuições financeiras e do contato
com os “fetiches” simbólicos que foram utilizados naquele dia. Nota-se que durante o culto o
pastor apresenta uma performance verbal e não-verbalo eficaz e eloqüente quanto a de um
ator em cena. Naquele espaço ele representa, configurando códigos que nele são projetados a
partir do imaginário do público que com ele interage.
No livro Teatro, Templo e Mercado, em que analisa, entre outros pontos, a
teatralização do sagrado na Igreja Universal do Reino de Deus, o sociólogo Leonildo Campos
afirma que os pastores iurdianos são avaliados não pela sua intrepidez na arrecadação de
dinheiro, mas também pela sua capacidade comunicativa em executar performances teatrais:
Para conseguir tais r esul tados, o pastor-ator precisa dominar as
artes ou as técnicas, produtoras de persuasã o e realizar o que se
atribui ser importante para o ator, isto é, c orporificar os papéis e
efetiva r o dr ama ao representá-lo em um determinado palco.
9 4 1
940
Beatriz Gonçalves, em depoimento à Folha Universal, Rio de Janeiro, 05 fev. 2006, p. 7.
281
Durante os cultos e seus ritos, o líder pode demonstrar ao público extasiado
a sua autoridade e legitimidade como algo divinamente concedido. Exercendo a função de
mediador gico e tornando-se quase um “xamã”, observa-se que o pastor se torna o
responsável por estabelecer o momento em que o combate entre o bem e o mal deve iniciar e
quando o espetáculo deve se encerrar, além de possibilitar as armas” espirituais para a
participação interativa dos fiéis. Nesses momentos de cura e libertação, o bispo ou pastor
convoca as pessoas que estão passando por diferentes problemas, como brigas entre
familiares, falta de dinheiro, vícios, doenças, desemprego, perturbação demoníaca a irem à
frente do púlpito. O líder, então, chama os pastores auxiliares e obreiros para, junto dele,
intercederem a Deus por aquelas pessoas. Todos começam a orar ao mesmo tempo em voz
alta. Ocorre uma manifestação coletiva, um intenso estado de êxtase toma conta de muitos.
Assim, é possível dizer que na IURD os rituais são desenrolados como um drama, uma “ação
representada num palco” num espaço sagrado -, como nas cerimônias que consagram o
poder, “a ação reveste a forma do espetáculo”:
Nesse c aso, a r epre sentaç ão não se resume à e xibiçã o (...)
presume a re al identificação, a repetição místic a ou a r epresent aç ão
do acontecimento. (...) o ritual produz um efeito que, mais do que
figurativamente mostr ado, é rea lmente reproduzido na ação.
9 4 2
Em suas representações, a IURD revive práticas que foram vistas com
suspeitas pelo catolicismo oficial no medievo. Jacques Le Goff fala de um sistema de
controle ideológico dos gestos no ocidente medieval por parte da igreja. O cristianismo da
Alta Idade Média considerou a gestualidade como suspeita:
Os cristãos ma ntinha m uma luta rigorosa contra as sobrevivências
pagãs, sobretudo em dois setore s: o do teatro e o da possessão
diabólica, os e specia list as do gesto, mimos ou possessos do
demônio, vítimas ou servos de sata nás. A m ilíc ia de Cristo era
discreta, sóbria nos seus gestos. O exército do diabo apreciava a
grosser ia dos gestos.
9 4 3
Ainda usando como exemplo de comparação a análise feita por Le Goff
sobre os gestos no período medieval, observa-se que se acreditava nos benefícios que alguém
podia fazer em favor de parentes e amigos, através de ritos, inclusive em favor da vida no
Além, no purgatório. Na IURD, também pessoas podem fazer algo semelhante, porém, no
âmbito da existência terrena, em favor de familiares através de ritos disponibilizados pela
941
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento neopentecostal,
p. 101.
942
CARDOSO, C. F. ; MALERBA, J. Op. cit., p. 215.
943
LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 64.
282
Igreja, mediante o uso de objetos como fotos, carteiras de trabalho, peças de roupas que,
levados para a casa, podem beneficiar com purificação espiritual a pessoa a quem se destina.
Umberto Eco afirma que os elementos presentes nas celebrações religiosas
obedecem a uma estética kitsch, compreendendo este conceito como uma comunicação que
tende à provocação de um efeito”.
944
Assim, desde o emocionalismo dos discursos dos
pastores, passando pelas repetitivas letras de músicas, até a cenografia do templo, tudo se
dirige como um apelo às emoções do público. Nas palavras do próprio Umberto Eco, todos
os elementos se apresentam como “efeitos confeccionados”. Assistir ao culto é também
participar de um espetáculo visualmente bem construído, no qual a performance do líder
religioso ganha centralidade a ponto de arrancar palmas, gritos e outras formas de emoções
da platéia. De toda ação desenvolvida no palco se exige dramaticidade, que pressupõe a idéia
de uma presença, expondo uma situação significativa, que evoca um encadeamento de
ações, tornando presente o destino, a vida, o mundo – tanto em seu aspecto visível quanto em
suas significações invisíveis”.
945
Pode-se dizer que a IURD, em seus ritos, traz para dentro do templo o
espírito das festas populares e das procissões católicas, promoveu aproximação do
devocionário popular, à medida que incorpora algumas de suas práticas rituais, invertendo,
quando necessário, o seu significado. Exemplo disso é a campanha religiosa intitulada
“novena da sagrada família” não coincidentemente iniciada no período da Quaresma no
calendário católico - segundo a qual os fiéis são desafiados a comparecer à Igreja durante
nove semanas ininterruptas em busca de solução para problemas que estejam afligindo a
família. Seguindo ainda este mesmo calendário, a Universal costuma realizar também a
campanha “Quarentena da – quarenta dias de vitória”, cujo objetivo é realizar em todas as
noites nos dias de domingo, segunda, quarta e sexta-feira reuniões em busca de milagres.
946
Assim, as convocações para grandes eventos em estádios de futebol ou ginásios de esportes
relembram cortejos católicos festivos para conduzir os fiéis a esses lugares. Essas festas de
devoção também se reeditam no âmbito dos templos, nos rituais que semanalmente se
realizam. Por esse motivo, o culto se transforma num espetáculo do qual fiéis participam
intensamente. No decorrer da encenação deslocamento de pessoas, movimentos corporais,
formação de filas e realização de procissões. É como se aquelas manifestações populares
deixassem as ruas e acontecessem no interior do templo, mediante o que os fiéis dramatizam
944
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993, p.73.
945
Id., ibid., p. 84.
946
Campanha divulgada nas programações de rádio e TV, no período de março a julho de 2005.
283
uma trajetória que vai da aflição ao milagre, do profano ao sagrado, apresentando à divindade
as ofertas, pagando promessas e recebendo as dádivas divinas. Numa dessas correntes,
observou-se intensa movimentação e mobilidade corporal do público na passagem pelo
“corredor dos milagres”, formado por “setenta pastores”. Também, na campanha “travessia
do rio Jordão”,
947
no meio do corredor jogou-se “água do rio Jordão”, devendo os fiéis, tal
como Moisés, apontar o cajado (miniaturas que haviam recebido no início da reunião) para
aquela água “determinando” conquistas em sua vida, assim como ocorrera em relação à “terra
prometida” alcançada pelo povo hebreu após a longa peregrinação do Êxodo. Em outra vez,
realizou-se a campanha das “Portas Abertas”:
948
pessoas formaram filas para passar por uma
porta aberta dentro de uma enorme cruz de madeira, sob promessa de sucesso profissional e
financeiro e uma efusiva presença do poder de Deus em suas vidas. De igual modo, o toque
de trombetas na “Queda dos Muros de Jericó”,
949
em que os participantes da reunião recebiam
trombetas de plástico que, no momento oportuno do ritual, deveriam ser tocadas,
rememorando assim o episódio bíblico da queda dos muros de Jericó quando da conquista
desta cidade pelo povo hebreu sob liderança de Josué.
Os cultos iurdianos são assim, por excelência, os momentos em que se
vivenciam vários elementos do universo simbólico em que estão inseridos líderes e fiéis.
Devido a esse papel preponderante, tais atividades são realizadas, em média, quatro ou cinco
vezes todos os dias da semana. inclusive uma agenda semanal com horários e objetivos
estabelecidos para cada dia, que segue uma programação padronizada em todos os templos,
ainda que uma vez iniciada cada reunião o templo se transforme num espaço de
espetacularização do sagrado sem um roteiro rígido, havendo sempre uma expectativa para o
inédito e o inusitado. A grade de programação segue, em linhas gerais, o seguinte
cronograma:
Segunda-feira: Corrente da prosperidade
Terça-feira: Corrente de libertação e sessão de descarrego
Quarta-feira: Corrente de cura divina e milagres
Quinta-feira: Corrente da família (problemas conjugais, dificuldades com os filhos etc.)
Sexta-feira: Corrente de libertação e sessão de descarrego
Sábado: Terapia do amor (dedicada àqueles que desejam conseguir um casamento ou
solucionar problemas relacionados à vida sentimental)
947
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 10 mar. 2004.
948
Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, 20 abr. 2004.
949
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 22 ago. 2004.
284
Domingo: Busca do novo nascimento
A seguir, descrição e análise mais detalhadas de algumas dessas correntes
ou campanhas.
4.3.1 - Corrente da prosperidade: o dinheiro e suas representações
A Igreja Universal reserva um dia da semana para a realização de ritos
especialmente voltados à conquista de bens materiais pelos seus fiéis. A Igreja atua
acreditando ser depositária de poderes mágicos que podem ser distribuídos aos fiéis para
auxiliá-los em seus problemas financeiros, como o demonstra o anúncio abaixo:
CAMPANHA ESPECIAL DE PROSPERIDADE Você que: deseja
trabalhar por cont a própria; prosperar no seu empr ego; está com
dificuldade s finance iras; vive desempregado; seu salário não é
suficient e para pagar as dívidas; está com prejuízo nos negóc ios.
Participe desta ca mpanha e receba a chave que abrirá a porta do
sucesso. Participe também da CORRENTE DA VIDA REGALA DA
PARA OS EMPRESÁRIOS Se você está passando por dificuldades
tais como: títulos protestados; falência; dívidas no banco, agiotas,
não tem como pagar seus funci onários; o seu comércio, indústria,
escritório estão indo de mal a pior ; não consegue vender nada.
Existe uma saída. Toda a se gunda às 19:00 (...).
9 5 0
Nas reuniões que dirige, Edir Macedo costuma ser enfático: “Cobre de Deus
o que você tem direito”.
951
A Igreja argumenta que existem várias promessas da Bíblia para
este assunto, razão porque “na IURD todos são ensinados a conquistar cada vez mais bênçãos
materiais”:
Por isso nas noites de segunda-feira milha re s de pessoas se re únem
em templos da I greja Unive rsal espalhados pelo país para clama r a
Deus pelo sucesso nos empreendimentos. São fiéis que desejam ser
empresári os, donos do próprio negócio, se tornar patrões. Eles
querem ser cabeça e não calda, e star por c ima e nã o por baixo. Os
cânticos estimulam a fé, nas oraçõe s os bispos e pa stor es
incentivam as pe ssoas a determinarem a vitória, pa ra que possam
obter prosperidade, já que a s promessas est ão na Bíblia: O Senhor
te abrirá o se u bom tesouro, o céu... emprestarás a muitas gentes,
porém tu não tomará s emprestado. O Senhor te porá por cabeça e
não por calda ; e só est arás em cima e não debaixo... (Deuteronômio
28:12-13).
9 5 2
Após “determinarem a própria vitória”, nos cultos e ritos realizados para
este fim, muitos conseguiram estabelecer o seu próprio negócio, “vencendo o Golias da
950
Folheto divulgado pela Igreja Universal do Reino de Deus, recolhido para pesquisa em 2003.
951
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2000, p. 12.
952
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 67, p. 41, 1999.
285
miséria e das dívidas”, chegando ao “topo do sucesso e da prosperidade, sem o risco de sofrer
quedas inesperadas” lembra a Igreja, ressaltando que outros se tornaram empresários bem
sucedidos, conseguindo reerguer-se financeiramente: “É devido a esse resgate que muitas
pessoas que viviam na sarjeta, completamente arrasadas por problemas econômicos se
recuperam e de novo prosperam”.
953
Ainda em tom de desafio se afirma:
Embora a s pesquisas sejam pessimistas e c oloque m a miséria como
uma ameaça da virada do sécul o, milhar es de pessoas têm saído de
uma vida de derrotas para a prosperidade atravé s do Senhor Jesus.
Testemunhos não faltam na Igreja Univer sal para mostrar que crise
se vence com fé.
9 5 4
Duas campanhas são intituladas com este propósito financeiro: a “vigília
dos 318 pastores” e a “fogueira santa de Israel”. A primeira campanha é alusiva a um
personagem bíblico chamado Gideão, que exercendo a função de juiz em Israel, teria se
“revoltado” contra a opressão estrangeira dos midianitas sobre o seu povo. Ele reclamou o
abandono de Deus e, movido pela fé, “convocou 318 homens para uma batalha contra um
exército inimigo mais poderoso e foi vencedor”.
955
A IURD explica o significado e a
finalidade dessa reunião dizendo que consiste na “maior concentração de em prol da vida
financeira”. Argumenta que a reunião tem contribuído, por meio de orientações transmitidas
com base nas Sagradas Escrituras, para que muitos “usem a Palavra de Deus como
ferramenta para vencer os obstáculos que surgem em suas vidas”, como por exemplo,
dívidas, misérias, falências e tantos outros. “O exercício da faz nascer no coração de cada
um a esperança de um futuro abençoado e promissor e é por meio dessa prática que muitas
pessoas estão descobrindo os segredos para superar todas as crises” observa a Igreja,
acrescentando que “essas pessoas compreenderam que todas as desventuras financeiras são
ocasionadas, não por conta da crise que assola o país, mas sim por não terem uma aliança de
fidelidade com Deus”:
Nessa r euni ão muitas pessoas che gam aflitas e dese speradas em
função de dívidas, protestos, f alências e disposta s a até mesmo a
darem cabo da própria vida. O utras nem dormem m ais, tama nha a
preocupaç ão. No entanto, ao ouvire m as orientações mi nistradas
pelos homens de Deus, surgem em seus corações uma espe ranç a de
que nem tudo está perdido e que por intermédio da fé podem
conquistar a prosper idade, ma s de uma forma segur a, pois quando se
tem a direção de Deus nos negócios a pe ssoa não apenas se torna
vitor iosa , ma s estabe le ce todas as suas conquistas.
9 5 6
953
Id., ibid.
954
Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 abr. 2006, p. 8.
955
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 93, p. 46, 2003.
956
Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 mar. 2003, p. 8.
286
A IURD apresenta maiores detalhes sobre a campanha dizendo que foi
criada para responder a desafios de um mundo capitalista onde impera a competitividade e
cada vez mais se torna difícil vencer o que leva ao aumento do número de falências, pois “a
mudança de governo e altas taxas de juros fazem espalhar o medo entre patrões e
empregados que, desesperados com a condição econômica em que se encontram não
conseguem enxergar uma saída para os seus problemas”. Entretanto, “há quem esteja
contrariando as estatísticas desanimadoras e alcançando vitórias financeiras usando uma arma
diferente: a fé”, pois - como ressalta a Igreja - “não crise que resista a dos que
participam da vigília dos 318 pastores!”
957
Lembram os líderes que muitas pessoas que
aparentemente tinham tudo para dar errado, através da e da força de vontade, “aprenderam
a transformar o fracasso em sucesso”, em um momento de crise “abriram os olhos para
visualizar outras opções”. “Onde elas aprenderam isso?” perguntam, ao passo que
apresentam resposta de forma incisiva: “no maior congresso empresarial do Brasil: a Reunião
dos 318, que acontece todas as segundas-feiras nos templos da Igreja Universal do Reino de
Deus”. Acrescenta-se que:
Lá as pessoas aproveitam os momento de fr acasso para colocar suas
idéias e projetos e m ação. Aprendem a converter o revés e m êxito.
Fazem uma ponte para seus negócios e exercita m a fé para vencer. A
nuvem da crise que assombra o país não paira sobre a vida deles
que, após participar da reunião dos 318 pode m ver em suas vidas
resultados surpreendentes.
9 5 8
Inegavelmente, uma das propostas mais contundentes e impactantes da
mensagem iurdiana tem sido a chamada “teologia da prosperidade”. Em seu livro, Nos
passos de Jesus, Edir Macedo inicia seu primeiro capítulo denominado “a origem do caos”,
fazendo a seguinte afirmação: “É o nosso grande desejo, através deste livro (...) despertar a fé
do leitor, a fim de que venha a participar de tudo o que tem direito, diante de Deus-Pai,
através do nome do Senhor Jesus Cristo, por obra e graça do Espírito Santo”.
959
Ressalta que
o propósito idealizado por Deus é que a humanidade viva em abundância. Viver desse modo
é um direito do ser humano, desde que havendo cumprido primeiro o seu papel de “mordomo
fiel de tudo o que lhe fora confiado pelo Criador”, que significa pagar os dízimos de tudo o
que administra. No mesmo livro Macedo afirma: “O dízimo foi instituído pelo Senhor, como
uma espécie de imposto às suas criaturas”.
960
Além dos dízimos, ressalta a grande
importância das “ofertas voluntárias”, as quais são demonstração de amor a Deus. Havendo
957
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 jan. 2003, p. 8.
958
Id., ibid.
959
MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus. 8 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1986, p. 17.
960
Id., ibid, p. 99.
287
cumprido tais requisitos ensina Macedo - o fiel fica no direito de exigir algo de Deus ou
então determinar o que deseja que a divindade lhe faça. Descobrir tal direito é um “despertar
da fé”, título este do primeiro livro publicado por Macedo assim como de rios programas
de rádio e televisão realizados pela IURD. O usufruto da prosperidade se caracteriza, pois,
por uma tríade: ter paz espiritual, boa saúde e sucesso financeiro:
Quem ganha com isso? Deus e você, porque tendo sua renda
aumentada, viverá mais tranqüil o e mais feliz, e Deus, porque você
trará mais à S ua igreja, terá mais dinheiro para usar em fa vor de
outras pe ssoa s que estã o necessitando ser abençoadas.
9 6 1
Sobre a idéia de que Jesus teria sido pobre, Macedo reage incisivamente:
Este é um tremendo engano. Jesus nunca foi pobre. E le disse: Sou
o se nhor dos senhores, o rei dos reis. Um rei nunca é pobre, a
menos que esteja destronado. Sendo rei dos reis Jesus era rico. Ele
veio ao mundo na pobreza para sentir na pele o que é ser pobre, o
que é viver na condiçã o m ais insignificante do ser humano. Mas
Jesus não e ra pobre.
9 6 2
Segundo a mensagem da teologia da prosperidade, crer em Jesus Cristo e
tornar-se participante da igreja significa deixar de ser pobre, doente, azarado ou derrotado,
para ser uma pessoa rica, sã, de muito sucesso social e financeiro. Edir Macedo expressa bem
essa perspectiva ao afirmar em um dos seus livros:
Ser cristão é ser filho de Deus e co-herdeiro de Jesus, dono, por
herança, de todas as coisas que existe m na face da terra;
proprie tá rio de todo o Universo (...) Você, leitor, é he rdeiro de
todas as coisas e na sua vida deve re spla ndecer a glória do seu Pai.
Nada de se contentar com a de sgraça ou a pobreza. Levante-se agora
mesmo e assuma a sua posição (...) Dê adeus às doenças, à mi séria e
a todos os males, tenha um ree ncontro com Deus e assuma
novamente a sua posição na família Divina (...) Verdadeiramente,
um pai rico só pode ria ter filhos ricos. Se você, amigo leitor, não
está vivendo como um abundante filho de Deus, é porque ou está
afastado das origens da sua verdadeira família, ou não quer se
apossar da he ranç a.
9 6 3
O pregador, em um dos cultos observados, disse: “Não adianta você parar
na frente de uma casa e pensar: 'Ah! Se esta casa fosse minha!' Você tem que dizer: 'Esta
casa será minha, porque o Senhor vai me dar essa bênção, creio nisso'”.
964
Em uma de suas
entrevistas, o bispo Macedo faz a seguinte afirmação: “Nós ensinamos as pessoas a cobrar de
Deus aquilo que está escrito [na Bíblia]. Se ele não responder, a pessoa tem de exigir, bater o
961
MACEDO, Edir. Vida com abundância. 10ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1990, p. 74.
962
Revista Veja, São Paulo, 14 nov. 1990.
963
MACEDO, E. Vida com abundância, p. 42.
964
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, set. 2004.
288
pé, dizer: - 'Estou aqui, estou precisando'”.
965
O depoimento de uma freqüentadora assídua da
IURD demonstra como essas palavras ganham interatividade e ressonância entre os fiéis:
Era uma sexta-feira, eu estava orando enquant o o Bispo c lamava ao
Espírito Santo que tocasse nos nossos corações. Isso no momento
das ofertas. Senti o Espírito Santo e ntrar em mim, um calor imenso
tomou conta de mim, comecei a falar em línguas, em seguida, abri
minha bolsa e dei tudo o que tinha na carteira (R$ 70,00). Ao sair
do templo, fui a um caixa eletrônico sacar uma quantia para poder
volta r par a minha casa e para passar o fim de semana. Por tentaç ão
do inimigo, par a que eu me arrependesse de minha doação, meu
cartão ficou preso na máquina e eu só o recuperei na t er ça-feira.
Qual foi a minha surpresa? Havia R$190,00 e m depósito feito pela
empresa que eu tra balhava antes de me apose ntar. Tratava-se de uma
diferença que e les f icar am me devendo. Orei a li mesmo no Banco,
agradecendo a Deus pelo se u feit o. B em que o Bispo nos falou, que
se a gente desse tudo o que tinha, Deus iria multiplicar.
9 6 6
O ato de ofertar dinheiro nas práticas da IURD está diretamente associado
ao repertório simbólico dos fiéis, ou seja, também denota uma força cultural. Pertence a esse
repertório o “princípio da reciprocidade e da troca”, que postula os atos de dar, receber e
retribuir como elementos constitutivos das práticas religiosas, como destacado por Marcel
Mauss em seu Ensaio sobre a dádiva.
967
Desta forma, o dinheiro adquire simbolismo de um
veículo de comunicação com Deus, num universo em que nada é dado ou recebido
gratuitamente. Em uma entrevista, o bispo Macedo emite a seguinte opinião sobre este
princípio:
A Bíblia, do início ao fim, fala sobre ofertas. A oferta representa
alguma coisa. Não é simplesmente uma questão de dinheiro. Ela
significa amor. Quando você ama alguém, você dá a lguma coisa a
alguém. Como expressar seus sentimentos por alguém? Dando-lhe
algo. Abraão quase sacrificou o filho para da r esse algo a Deus. Nós
damos a oferta (...) Na segunda carta aos Coríntios 9: 6, o apóstolo
Paulo diz: o que semeia pouco, pouco também ceifará. Eu ensino
isso às pessoas. De acordo com o tamanho da fé, a pessoa faz a
oferta. Para que alguém alcance as riquez as de Deus, é preciso
manifestar uma fé. A fé no Deus vivo é o melhor investimento que
uma pessoa pode fazer na vida .
9 6 8
Esta relação de reciprocidade estabelecida, em que quanto mais se der mais
se receberá, ganha maior força ainda pelo fato do dinheiro ser inserido num ritual, adquirindo
com isto novos significados que extrapolam o aspecto monetário. O dinheiro, nas práticas da
IURD, de certa forma, substitui as promessas feitas na devoção católica, ou então as
oferendas de comidas e bebidas assim como sacrifícios de animais comumente praticados nos
965
Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 ago. 1991.
966
Maria A. S. Londrina, membro da IURD em Londrina. Depoimento concedido em out. 2004. Gravação em
K7, transcrita para uso como fonte.
967
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. V. 2. São Paulo: Ática, 1974.
968
Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.
289
cultos afro-brasileiros. O dízimo e as ofertas assumem o sentido de um pacto entre Deus e o
fiel. Tal pacto não deve jamais ser quebrado, sob a ameaça de que se isso ocorrer, abrir-se-ão
as “portas” para o Diabo entrar e agir na vida da pessoa. Aliás, os demônios são vistos como
os responsáveis diretos por toda sorte de miséria e fracasso financeiro. Assim, ofertar o
dízimo é a estratégia ideal para afugentá-lo, o que não é incomum nos rituais de exorcismo
durante o culto. Conforme se acredita, um demônio (através do corpo do possuído), depois de
controlado e dominado pelos pastores, costuma passar pela humilhação de ter de percorrer os
corredores do templo recolhendo os dízimos dos fiéis, prática que significa sua dominação e
derrota.
O caminho obrigatório para uma vida financeira abundante é fazer uma
aliança com Deus, por intermédio de Jesus, o “filho do dono”. Para que essa aliança se
estabeleça é preciso que cada um faça a sua parte, isto é, realize o sacrifício, que consiste em
doar para a Igreja o que a pessoa tem de mais pessoal e sagrado: o dinheiro. Esse sacrifício,
“exigido por Deus”, atinge, especialmente, aquele dinheiro reservado para outras coisas
“menos sagradas” como manter a família, pagar o aluguel ou um projeto muito especial e
ansiosamente esperado. Sobre isto, Macedo declara: “É necessário dar o que não se pode dar.
O dinheiro que se guarda na poupança para algum sonho futuro, esse dinheiro é que tem
importância, porque o que é dado por não fazer falta não tem valor para o fiel e muito menos
para Deus”.
969
Por isso mesmo, fazer donativos para a Igreja é colocar a em ação, é
provar a si mesmo, e Deus, vendo esse esforço, agora estará obrigado a fazer a sua parte, isto
é, abençoar o fiel. Somente assim, o cristão começa a se parecer com Cristo, pois ele teria
doado tudo em benefício de cada um dos pecadores. Um exemplo disso se observa nas
palavras de Edir Macedo, citadas abaixo:
Dar o dízimo é obrigação do c ri stão, é demonstraçã o de seu
comprom isso, responsabilidade e fidelidade a Deus. Já a oferta é o
que deve ser oferecido além do dízimo, como uma demonstraçã o
maior ainda de amor a Deus. A Bíblia nos ensina que o amor deve
ser comprovado por doação, como aconteceu com Jesus, que doou a
si mesmo, a sua própria vida em favor daqueles a quem ele amou.
Assim, para demonstrarmos que o ama mos, devemos ofertar-lhe
aquilo que exige de nós sa crif íc io. E as Escrituras Sagradas
ensinam, no livro de Malaquias, capítulo 3, que sobre aquele que
oferta além do dízimo, De us abre as janelas do céu para abenç oar
e fazer prospe ra r “sem me dida. Compareça à igreja e faça esta
prova entrega ndo a sua oferta.
9 7 0
969
Revista Isto É, São Paulo, 22 nov. 1989.
970
Ponto de Fé. Londrina, Rádio Gospel FM, 01 ago. 2005. Programa de rádio.
290
Através do site da Igreja, num espaço especificamente designado para
interatividade com o público, uma fiel da Igreja, Sandra Oliveira, de Porto Alegre RS, faz
um pedido de esclarecimento: “Bispo, meu nome é Sandra, estou na IURD três anos, sou
fiel a Deus nos dízimos e nas ofertas, porém tenho uma dúvida: sempre participo da Fogueira
Santa e vejo os bispos e pastores dizerem que a pessoa que sacrifica o tudo não precisa tirar o
dízimo. Pois bem, pelo que entendo, na Bíblia está escrito que de tudo que passa pelas nossas
mãos devemos devolver o dízimo. Por favor, oriente-me, pois não quero permanecer com
essa dúvida”. O Bispo Alceu Nieckarz responde, apresentando a seguinte explicação:
“Prezada Sandra: O dízimo, 10%, pertence a Deus, e o entregamos no altar como devolução.
Os 90% restantes pertencem à pessoa. Assim, a oferta sacrificial, significa a pessoa entregar
num ato de fé também este valor que lhe pertence. Que Deus a abençoe”.
971
Edir Macedo detalha ainda mais esta explicação afirmando que, ao
contrário do que acontecia no Antigo Testamento, hoje não precisamos mais realizar
sacrifícios de animais. Porém, no Novo Testamento as ofertas e os sacrifícios não cessaram e,
assim, ao invés da oferenda de animais e produtos da terra, passa-se a ofertar agora o
resultado do trabalho, que é o dinheiro:
Os dízimos e ofertas são maneiras pelas quais hoje realizamos
sacrifícios. O dinheiro que entregamos à igreja é resultado do nosso
trabalho e representa parte do tempo no qual gastamos a nossa vi da
para obtê-lo. Nesse aspecto o dinheiro é um pouco de nós mesmos
que depositamos no altar do Senhor.
9 7 2
Prossegue dizendo que muitos criticam a oferta que é dada com a intenção
de se receber algo em troca. Lembra que Deus, na realidade, “não precisa de nada, pois é
dono de tudo, no entanto, quando estabelece este tipo de relacionamento com o ser humano
está “se preocupando com a sua obra na terra, que necessita da assistência da sua criatura”. E,
recorrendo à Bíblia, observa que “uma das mais importantes ofertas é a dozimo”, e que no
texto Malaquias 4 se afirma que quando se oferta uma recompensa. “Essa relação de troca
é o próprio Deus que estabelece” ressalta.
973
Essa mensagem da Igreja é referendada pelos
fiéis. Angela Maria da Conceição, 49 anos, empresária no ramo de cosméticos, declara:
“Tudo começou a mudar na minha vida financeira quando cheguei a Igreja Universal e
descobri que quanto mais nos damos a Deus, muito mais Ele nos dá. É algo recíproco”.
974
971
A IURD mantém em seu site oficial um espaço para que qualquer pessoa possa esclarecer dúvidas ou receber
orientação espiritual. Http://www.arcauniversal.com.br Acesso em: 12 mar. 2006.
972
MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 34, 36.
973
Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 nov. 1998, p. 6.
974
Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 abr. 2006, p. 9.
291
Para a teologia da prosperidade os fiéis são colaboradores da vontade
divina, e “o dinheiro é uma ferramenta sagrada usada na obra de Deus”.
975
Em entrevista
concedida à revista Veja, Macedo também afirma que o “dinheiro é o sangue que sustenta a
igreja” e que, por isso, ao oferecer à “casa de Deus” o seu dízimo, o cristão está como que
oferecendo metaforicamente o seu próprio sangue, substância que a igreja precisa para a sua
expansão. O bispo também acrescenta que “quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na
obrigação (porque prometeu) de cumprir a sua Palavra, repreendendo os espíritos
devoradores que desgraçam a vida do homem”.
976
Ocorre, aí, uma espécie de contrato que
estabelece Deus como um sócio:
Dec ida-se agora mesmo. Dê a deus às doenças, à miséria e a todos os
males, te nha um reencontro com Deus e assuma novamente a sua
posiç ão na família de Deus (...) A vida abundant e que D eus, pelo
seu grande amor, nos garante através de Jesus Cristo, inclui todas as
bênçãos e provisões de que necessita mos, ou m esmo que ve nhamos a
desejar (...) Não perca a oportunidade de ser sócio de Deus.
Coloque -se à sua disposição com tudo o que você tem e comece a
partici par de tudo o que Deus tem. (...) O dinheiro, que é humano,
deve ser a nossa participação, enquanto que o poder espiritual e os
milagres, que são divinos, são a participação de Deus (...) Dar o
dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida (...) quando
pagamos o dízimo a Deus, Ele fic a na obrigação de cumprir a Sua
Palavra.
9 7 7
Segundo essa teologia, todos os fiéis ao se converterem são reconhecidos
como “filhos de Deus” e, como tais, portadores do legítimo direito de receber todas as coisas
materiais criadas e terem êxito em todos os seus empreendimentos. Por isso Edir Macedo faz
um alerta: “nunca ouça a voz dos inimigos de Cristo, que colocam mensagens demoníacas,
afirmando que o dinheiro é mau, que a riqueza é diabólica ou coisas semelhantes a estas”.
978
Entretanto, aqueles que ainda não receberam tais benefícios, continuando a enfrentar
adversidades, miséria, pobreza, doença, sofrimento. Isso ocorre porque a do convertido
inaugura a chamada “batalha espiritual” contra o Demônio, o qual deseja fazer com que os
crentes duvidem de Deus ou dele se afastem. Assim, entre a prosperidade a que o fiel tem
direito desde a sua conversão e a sua vida presente interpõem-se as forças do Mal, e é para
combatê-las que a Igreja Universal disponibiliza aos fiéis os ritos em seus cultos, dando-lhes
condições de alcançar a desejada prosperidade. Com esse discurso, a IURD revisita, em
parte, elementos da ética protestante que considera o dinheiro, o lucro e os bens materiais
como sinais de bênçãos e até ser este o desejo de Deus para o crente, como análise feita por
975
Ibid, p. 75.
976
Revista Veja, São Paulo, 14 nov. 1990.
977
Ibid, p. 76.
978
MACEDO, Edir. Vida com abundância, p. 43.
292
Max Weber em relação a determinados segmentos do protestantismo surgidos com a
Reforma do século XVI.
979
Segundo análise weberiana, os bons frutos adquiridos pela ética
do trabalho eram vistos como prova da eleição divina dos seus filhos que, ao terem êxito em
seus negócios, certificavam-se de serem objetos da graça divina. Mas na configuração e no
alcance notabilizados nas práticas iurdianas tal proposta ganha novas perspectivas. O que se
constata é que a aquisição de riquezas materiais não mais se dá pelo ascetismo, rompe-se com
tal categoria e o acesso aos bens materiais se pelo caminho do simbólico, do elemento
místico. Agora, o acesso a tais bens percorre um caminho místico, de “sobrenaturalidade”,
viabilizado pelos ritos mágicos da igreja. E, mais, a prosperidade material sintoniza-se com
regras do mercado: um lance maior de oferta corresponde a uma maior recompensa, quanto
mais se oferece à igreja mais se recebe de Deus. A mediação do trabalho não mais aparece.
Dessa forma, notadamente a IURD, em seu discurso e organização do
universo da crença, consegue promover a compatibilidade da religião com o sistema
capitalista. O êxito alcançado por essa Igreja é sem precedentes. Deus é visto como uma
espécie de provedor de benesses e prosperidade material para os fiéis. Conforme esse modelo
de pensamento, todo cristão consagrado tem o direito de “exigir” de Deus uma vida
financeiramente agradável, já que adquiriu a posição de legítimo “filho do Rei”. Descrever os
bens desejados, como casa, carro, ou outra forma de consumo, tornou-se uma prática comum
entre os evangélicos. Se os cristãos sofrem dificuldades financeiras é porque não fazem
ofertas suficientes para a obra de Deus. Essa é, portanto, a lei do retorno “cem vezes maior”.
A regra espiritual das finanças então seria: se a pessoa quer mais, ela precisa dar mais: Se
alguém deseja grandes coisas, deve ter fé na mesma proporção. As bênçãos vêm pela fé, mas
você só pode colher caso plante – afirma Macedo”.
980
Edir Macedo utiliza a expressão “o direito de cobrar” para se referir à
condição adquirida por aquele que é dizimista: “Quem tem o direito de cobrar de Deus aquilo
que Ele prometeu? O dizimista! Uma das grandes razões porque devemos dar o nosso dízimo
é esta”. Utiliza ainda como ilustração de seu argumento alguns nomes famosos:
“Conhecemos muitos homens famosos que provaram a Deus com respeito ao dízimo e se
transformaram em grandes milionários, tais como o Sr. Colgate, o Sr. Ford e o Sr. Caterpilar.
Homens como estes que além dos negócios e do acúmulo de riquezas se preocupam com a
fidelidade a Deus, tendem a ser abençoados cada vez mais”.
981
979
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 122ss.
980
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 74, 2001.
981
MACEDO, Edir. Nos passos de Jesus, p. 64.
293
A figura do Diabo é também de grande importância para este modelo de
mensagem. Com isso, seguir corretamente a orientação do líder é assegurar-se de proteção e
livramento da ação demoníaca caracterizada pela crise financeira, doença e outras formas de
adversidade. O líder tem a autoridade para “quebrar as obras do inimigo” e impedir a “ação
do devorador” - costumam ressaltar os fiéis. Sobre o dinheiro nas mãos de pessoas “sem
Deus no coração”, o bispo Macedo adverte que “o dinheiro também pode trazer desgraça”, e
cita exemplos com a autoridade de quem já conviveu com o setor de loterias: “há pessoas que
ficaram ricas da noite para o dia com loterias e para elas as coisas não terminaram bem”. E
acrescenta: “Por que isso? Porque aquele dinheiro carecia de uma sustentação bíblica, não
tinha legitimidade espiritual”.
982
De igual modo, “quem conquista bênçãos, mas o
estabelece um compromisso sério com o Abençoador, acaba sempre voltando à estaca zero” –
lembra o bispo.
983
Assim, observa-se a estreita relação entre o fato de possuir bens materiais
estar diretamente vinculado ao campo do “espiritual”.
De acordo com Bourdieu, no campo as relações de transação ligam os
diferentes agentes especializados a grupos sociais. Assim, numa sociedade de dominantes e
dominados, os que pertencem às classes dominantes tendem a pedir à religião que legitime
sua dominação e seu bem-estar material. os grupos dominados tendem a recorrer aos
agentes religiosos para a superação imediata de algum tipo de sofrimento, ou para encontrar a
esperança de libertar-se de sua opressão em um futuro não muito distante. Nesse sentido, os
exemplos de Weber “procuram mostrar a religião como garantia e proteção, justificação e
legitimação de interesses econômicos e sociais: a proteção de bens materiais, proteção da
propriedade, proteção das barreiras sociais etc.”
984
O evangelho da prosperidade tem eficazmente conseguido seduzir os fiéis
na busca de ascensão financeira e social. Nos depoimentos que dão, os líderes iurdianos não
escondem o orgulho de ver as igrejas sob seu comando prosperarem financeiramente. A
Folha Universal e a Revista Plenitude citam inúmeros depoimentos de pessoas que
participam das campanhas pela prosperidade, destacando que “muitos empresários,
microempresários, profissionais liberais e desempregados”, sem encontrar solução para seus
problemas financeiros “chegam a pensar em suicídio”, mas os que “aprendem a viver pela
descobrem que é possível ser um vitorioso”. É o caso de Maurício Ferreira. Aos 35 anos,
982
O Globo, Rio de Janeiro, 29 abr. 1990.
983
Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 fev. 2003, p. 2.
984
MICELI, Sérgio. A força do sentido. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Op. cit, p. LII,
LIII.
294
empresário, tinha uma vida financeira estável, em Brasília, quando “de uma hora para outra
tudo começou a desmoronar”:
De repente, as vendas começar am a c ai r em minhas duas
revendedoras de automóvel e tive que f echá-las. Contraí dívidas
altíssimas, tive bens penhora dos, cheque s devolvidos e perdi o
imóve l em que eu morava. Os oficiais de Justiça viviam em minha
casa. Eu estava no fundo do poço e nã o conseguia enxergar uma
soluç ão. Desesperado, cheguei ao ponto de tent ar o suicídio. Foi
quando r esolvi procurar a Igreja Universal ma is próxima no anseio
de a char uma saída, pois ouvia falar da IURD e dos inúmeros
milagres que lá aconteciam. No momento em que cheguei na Igreja o
pastor falou algo que foi diretamente para mim: você que tentou a
morte o S enhor Jesus está falando que sua vida tem jeito e Ele quer
mudá-la. Pensei, se esse Deus existe então vou mudar. Daquele dia
em diante parei de questionar o que o homem de De us falava. O que
Deus tem feito em minha vida num curto período chega a ser
inacreditável para muitas pessoa s. Já adquiri três imóvei s, entre
eles uma cobertur a, além de c ar ros importados. Tenho consciência
de que todas a s minhas c onquista s são pela fé, frut o da participação
nas reuniõe s e, acima de tudo, da minha fidelidade a Deus. Venci
porque apre ndi na reunião dos 318 a ter visão de coisas grande s.
9 8 5
O testemunho de Odair Ribeiro de Siqueira, proprietário de uma
conceituada fábrica de brinquedos, também é apresentado como exemplo de sucesso
alcançado:
Che guei à i greja com minha vida financeira a rruinada. Estava numa
situação difícil, em total decadência f inance ir a, com 275 cheques
sem fundos, 95 títulos prote stados e uma dívida que a os olhos
humanos er a impagável , embora trabalhasse nesse ramo há 16 anos.
Vej am em que condição fiquei: um empre sário com mais de 100
funcionários chegou ao ponto de não te r condições de comprar 1
quilo de matéria prima para fabricar. Meu conta dor aconselhou-me
então a encerrar a empresa, mas tudo isso mudou quando tome i
conhecimento das reuniões que a contec ia m na Universal,
especialmente a vigília dos 318 pastores, através da qua l aprendi a
agir com a fé, aliada a inteligência e, claro, com a açã o. Deus foi
abrindo as portas gradativamente de forma que fui quitando as
dívidas com os fornecedores e hoje tenho prosperado.
9 8 6
De igual modo, a empresária Ana Lúcia Valente, 38 anos, descreve a sua
participação nesta campanha:
Por três vezes resolvi a brir meu próprio negócio, em ramos
diferentes, mas não deu certo. Sem explicação, todos faliram em
pouco tempo me deixando em situação econômica m uito mais
complic ada, porque as di vidas se multiplicaram. Pensava até em
cometer suicídio. Estava muit o angustiada quando assisti a
programação da IURD pela t elevisão e sem per ceber consegui te r
uma boa noite de sono, o que não acontecia a al gum tempo. Por isso
resolvi ir à igr eja. Me lancei nas mãos do Senhor Jesus e clamei
com todas minhas forças pela transformação da m inha vida. A
resposta não demorou. Montei um negócio no ramo de
985
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 93, p. 46, 2003.
986
Id., ibid.
295
computadore s, o qual tem prosperado muito. Hoje possuo três lojas
no ramo da informática.
9 8 7
Mas não somente empresários ou micro-empresários testificam sobre as
experiências obtidas nos ritos de prosperidade. Roberto Tavares de Souza, 46 anos, membro
da Catedral Mundial da Fé, conta que chegou à Igreja Universal com várias dificuldades
financeiras, e a primeira reunião que freqüentou foi a sessão espiritual de descarrego, onde
ficou “livre da opressão dos espíritos imundos”. “Participo desde junho da Reunião dos 318
Pastores, e neste mês entre outras coisas, consegui adquirir um automóvel zero quilômetro”
destaca.
988
Deuza G. Coutinho, 56 anos, relata que durante sua juventude deixou o sertão
nordestino para tentar a vida na cidade grande. Ao chegar em São Paulo deparou-se com a
dura realidade. Sem trabalho e moradia acabou se instalando debaixo de um viaduto na
região central da capital paulista. “Nem cobertor eu tinha para passar minha primeira noite na
rua” - relembra emocionada. “Embora eu estivesse numa situação horrível e deprimente,
dentro de mim havia uma certeza de que eu, um dia, iria mudar de vida e que aquela situação
seria revertida. Eu olhava para o céu e dizia: Deus! Vim para São Paulo para vencer e não
para ser mendiga”. Foi quando a IURD surgiu em sua história de vida: “Um dia avistei um
local com uma pomba desenhada na frente e pensei tratar-se de um lugar que tivesse alguma
relação com o nordeste. Entrei e disse que queria falar com o responsável. Era uma Igreja
Universal” - conta. Após conversar com o pastor ela saiu dali com os sonhos renovados: “Ele
me disse para procurar um emprego. No início achei que aquele homem não tinha juízo. Eu
estava maltrapilha e suja, quem iria me atender? Mas ainda assim, voltando para debaixo da
ponte me senti renovada. Havia muito tempo que euouvia palavras de derrota por isso me
apeguei à palavra do pastor. Com aquele incentivo, fui a um restaurante e perguntei se tinha
trabalho, o dono me respondeu que se eu estivesse limpa haveria sim. Fui ao viaduto, peguei
uma lata de água e joguei por cima do corpo. Esse era meu banho” - revela. Começou
lavando a calçada do estabelecimento e, durante este período, “participava da reunião dos
318 na IURD às segundas-feiras”. Vendo o empenho de Deusa, seu patrão lhe cedeu um
quarto com banheiro no fundo do restaurante. Deusa se empenhou e paralelamente concluiu
seus estudos. Com muito trabalho e dedicação ao ramo de beleza e estética, abriu um salão.
Hoje, ela é proprietária de uma clínica de beleza que leva seu nome e está localizada no
bairro do Morumbi, uma região nobre da cidade de São Paulo. “Eu não tinha nada.
987
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 90, p. 31, 2002.
988
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 out. 2003, p. 8.
296
precisei de uma palavra de incentivo e exercitei a minha para ir adiante e conseguir as
portas” - comemora.
989
Semelhantemente, Maria Aparecida Souza de Oliveira testemunha que
chegou à IURD com a vida destruída: Fui abandonada por meu marido, mas não podia
trabalhar, pois tinha que cuidar de um dos meus filhos que estava acidentado. Sem saber de
onde tirar dinheiro, a única saída que encontrei foi a de ir às ruas e pedir esmolas”. Nessa
época foi então convidada a participar de uma reunião na Igreja Universal e, na vigília dos
318, desafiada com as palavras do pastor: “Deus não nos chamou para a derrota, mas nos deu
a para resolver os problemas”. O que se seguiu a isto é descrito em tom miraculoso:
“Recebi orações do pastor e com o tempo todas as portas se abriram e comecei a trabalhar,
conseguindo pagar todas as dívidas. Hoje sou empresária, tenho casa própria, carro e posso
comprar tudo o que desejo”.
990
A teologia iurdiana sobre prosperidade atribui ao Demônio toda a
responsabilidade pela miséria e sofrimento. Do material coletado pelas pesquisas de campo,
um folheto trazia o seguinte anúncio:
OS EXTERMINADORES DE RIQUEZAS: ASSOLAÇÃO DOS
GAFANHOTOS DO INFERNO . [Figur as repr esenta ndo gafanhotos
ameaçando destruir a ca sa, o carro, dinheiro e jóias]. Cada tipo de
gafanhoto representa uma le gião de demônios que age na vida do
homem, em seu patrimônio, suas riquezas, bens, salários e família.
Participe desta cruz ada vencendo os exterminadores de riquezas.
Deus devolverá tudo aquilo que o diabo tomou de você. Nesta
segunda-feira, às 14 e 19:30 horas. Participe!
9 9 1
Em um dos templos da IURD, no dia e hora marcados pelo convite acima,
realizou-se uma observação participante de uma campanha voltada à prosperidade.
992
O culto
teve início com a entoação de cânticos que enfatizavam a “guerra espiritual” contra o
Demônio. Em seguida, passou-se à leitura do texto bíblico de Efésios 2:1-7, cuja ênfase dada
pelo pastor era a de que “através de Jesus podemos ter acesso à riqueza, porque está escrito, a
miséria é do diabo”. A todo instante o pastor procurava fundamentar seus argumentos no
texto bíblico. Além de proceder à leitura em voz audível, com entonação enfática nas
palavras que pretendia destacar, também instigava os ouvintes a repetir as frases do texto
bíblico, durante a pregação de aproximadamente vinte e cinco minutos. Ao final, o pastor
disse: “Deus colocou um alvo [oferta] em meu coração para atingir nesta tarde”. Logo após,
foram distribuídos envelopes de dízimos para quem quisesse ajudar. Em seguida, passou a
989
Folha Universal, Rio de Janeiro, 09 fev. 2006, p. 08.
990
Id., ibid.
991
Folheto divulgado pela IURD, recolhido para pesquisa em Londrina, em 2004.
992
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, ago. 2005.
297
fazer o apelo, enumerando valores em escala decrescente a ser oferecido. Primeiro, pediu aos
que gostariam de ofertar cinco mil reais, depois por etapas reduzindo os valores: mil reais,
quinhentos, cem, cinqüenta, dez e, finalmente, cinco. A cada apelo, ressaltava: “O Diabo é
contra a doação, não deixe que ele fique cochichando ao seu ouvido...”. Encontrando certa
dificuldade para atingir o seu alvo financeiro, indagou em tom apelativo: “Vamos sair daqui
derrotados? Quem não prospera é porque não tem coragem de dar um passo de fé”. E,
ilustrando, ressaltou: “Se você o tiver coragem de saltar, o pára-quedas não abre!” Após
todas estas etapas cumpridas, o pastor finalmente dirigiu-se ao público com entusiasmo:
“Irmãos, alcançamos nosso alvo!”
A segunda modalidade de ritos visando a prosperidade envolve
peregrinações à Terra Santa, mediante a campanha denominada “fogueira santa de Israel”.
993
De acordo com o bispo Macedo, essa campanha serve para tornar possível em sua vida
aquilo que é impossível. Esse é o propósito. Não é para dar o seu dinheiro ou a sua oferta
para a igreja. O objetivo é determinar que coisas grandes, magníficas aconteçam na vida
daqueles que acreditam que aquilo que Deus prometeu é verdade”. O Bispo explica porque é
necessário levar os pedidos das pessoas para Israel: “Esse país é disputado por muçulmanos,
cristãos e judeus, não por causa de ouro, petróleo ou pedras preciosas. O produto mais forte
de Israel se chama fé, por causa dela há um desenvolvimento no turismo. O mundo inteiro vai
a Israel, pois quer sentir naquela terra o que os profetas do passado sentiram. Israel representa
a existência de Deus nos dias de hoje. Por que não foi construído como os demais países.
Israel nasceu por obra do próprio Deus no coração de Abraão. Deus escolheu aquele lugar,
separado de todos os demais lugares, para que fosse santo, sagrado, para que tivesse um povo
que não fosse semelhante aos demais povos pagãos. Até hoje, tudo naquele lugar leva para a
do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. A vida abundante é o resultado que essa
produz. É pela fé que você irá prosperar. É a fé que tornará todos os seus sonhos em realidade
e trará cura a todas as enfermidades, independente de sua gravidade. Esse é o sentimento que
faz a pessoa ser parceira de Deus, então não terá inimigo que possa barrar seu caminho de
conquistas”.
994
Na entrada do ano 2000, a IURD realizou uma grande campanha
denominada “fé e sacrifício no monte de Deus”. Exatamente à meia-noite do dia 31 de
993
As caravanas da IURD à Terra Santa tiveram início em 1995. No primeiro grupo havia 52 peregrinos. “O
objetivo maior é refazer os passos de Jesus Cristo, caminhando exatamente pelos mesmos locais nos quais Ele
esteve” destaca a Igreja. naquela época a IURD conseguiu “levar milhares de fiéis a Israel”, cf. Folha
Universal, Rio de Janeiro, 27 nov. 2005, p. 1.
994
Folha Universal, Rio de Janeiro, 04 dez. 2005, p. 2.
298
dezembro, os bispos, representando as IURD de todo o mundo, iniciaram o chamado
sacrifício da subida ao Monte Sinai, o monte de Deus. Ao mesmo tempo, os templos das
igrejas ficaram super-lotados com a presença dos fiéis. A IURD explica o significado desse
rito: “No monte que o Senhor escolheu para fazer aliança com o povo de Israel, entregando a
tábua com os 10 mandamentos a Moisés, os bispos clamarão por vitória, para todo o povo
evangélico e entregarão seus pedidos. Estarão enfrentando para isso uma subida difícil, em
terreno acidentado, podendo encontrar uma temperatura que nesta época do ano atinge
índices abaixo de zero. A escalada deve demorar de duas horas e meia a três horas. É
verdadeiramente um sacrifício. Mas Israel também teve que se sacrificar antes de fazer uma
aliança com Deus. Nós vamos subir o monte e voltaremos com a certeza da vitória”.
995
Destacando que o propósito dos bispos que sobem o Monte Sinai é “trazer
libertação, conforto e a presença de Deus ao povo”, Macedo é incisivo no desafio que
apresenta: “Meu amigo, esta subida do Monte Sinai é para mudar a sua vida. Nós vamos
levar o seu pedido, a sua súplica ao mesmo lugar em que Moisés esteve a cobrar de Deus
suas promessas e exigir que Ele nos use assim como usou muitos profetas em suas
respectivas épocas. Ele é o mesmo Deus e assim como respondeu a todos os profetas a de nos
responder em nome de Jesus”.
996
Como resultado do sucesso obtido nesses ritos da fogueira santa, a Folha
Universal cita inúmeros testemunhos, como o do casal José e Luíza, comerciantes em São
Paulo: “Quando abrimos o nosso comércio não foi fácil, foram muitas lutas, inclusive o local
era alugado. “Determinei” que compraríamos o imóvel, então participamos do propósito da
fogueira santa, e fizemos o nosso voto com Deus, que nos respondeu. Recebemos uma
proposta de compra do imóvel e mesmo sem condições financeiras conseguimos fechar o
negócio. O nosso restaurante fica em local privilegiado, temos um movimento muito bom,
que me um padrão de vida como nunca tive antes. Tudo que quero posso comprar.
Agradeço a Deus e já estou me preparando para a próxima fogueira” – afirma Luíza.
997
Alenir Mioto, 47 anos, decoradora, de Curitiba, conta que após passar por
situações de fracasso financeiro e ter perdido muitos bens, chegou a buscar ajuda em várias
religiões, “inclusive em casa de encostos, mas nada resolvia” – lembra. Foi quando conheceu
a Igreja Universal e começou a participar da campanha da fogueira santa: “Mesmo não
entendendo direito me lancei em busca dos meus objetivos. Os resultados foram
995
Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 dez. 2005, p. 7.
996
Folha Universal, Rio de Janeiro, 11 jul. 2004, p. 3.
997
Folha Universal, Rio de Janeiro, 27 dez. 2005, p. 7.
299
surpreendentes. Conseguimos comprar um sobrado com três pisos, carro zero, uma loja de
decoração. Depois de mais algum tempo compramos mais um sobrado que está em
construção. Todos os meus sonhos foram realizados na fogueira santa, mas o maior deles foi
a conquista da paz interior, restauração familiar e a compra de meu sobrado” finaliza
Elenir.
998
O depoimento de Francisco Alves da Silva, 42 anos, também segue a
mesma ênfase:
Quando passava por muitas dificulda des f inance ir as, fui convidado
a participar de uma re união na Igreja Uni versal. Ao aceita r o
convite percebi que havia algo de errado, que meu sofrimento era
causado por espír itos malignos. Decidi então lutar para a minha
libertação total e não mais aceitar viver na miséria. Hoje minha
família está completamente liberta, nunca mais passamos por
necessidades e estamos conquist ando a s bênçãos de Deus.
9 9 9
4.3.2 - Corrente do descarrego: o mal e suas representações nas práticas
iurdianas
O anúncio apresentado a seguir demonstra o amplo alcance do universo
simbólico vivenciado pela IURD:
SES SÃO ESPIRITUAL DE DE SCARREGO! Se você é vítima de um
encosto de vícios, doenç as, miséria, separação conjugal, VENHA
RECEBER A LIBERTAÇÃO NA PRECE DO DESCARREGO, aonde
DEUS, que é o pai das luze s, vai iluminar seus caminhos! Você
receberá gratuitame nte a R osa do De scarrego. Coloque-a num
ambiente onde existe um encosto pa ra que a maldiçã o seja quebrada .
Participe tam bém da campa nha da arr uda contra os maus espíritos na
última sexta-feira do mês. Temos a oração de descarr ego com
arruda, uma oração forte, muito forte para a sua vida. Sexta-feira,
às 15 e 19:30 horas. Rua Brasil, 553, centro. S e precisar, ligue para
o SOS Espiritual: (43) 3344-3557.
1 0 0 0
Na mensagem acima aparecem elementos que configuram a magia dos
símbolos (arruda, rosa ungida), dos rituais (encosto, sexta-feira, descarrego
1001
) e dos lugares
998
Id. ibid.
999
Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 jul. 2000, p. 11.
1000
Folheto publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus, de Londrina, recolhido para pesquisa em Janeiro
de 2004. A divulgação destes rituais também se faz diariamente, em nível nacional, através de programações
diária de rádio e TV, como registro feito, por exemplo, no dia 22/03/04: O Despertar da . São Paulo, Rede
Record, 22 mar. 2004. Programa de TV. Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 22 mar. 2004. Programa
de rádio.
1001
Uma edição re-significada do e, que, nos cultos afro-brasileiros, consiste num ritual de limpeza para
descarregar o indivíduo de energias estranhas, que sobrecarregando o indivíduo, podem provocar desequilíbrios
que resultam em doenças físicas ou psíquicas ou, de modo geral, em empecilho à realização de seus projetos e
suas tarefas cotidianas. Cf. MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o prinvado. In:
SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 151, 152.
300
onde ocorrem as manifestações taumatúrgicas (templos). Fala-se em crença na inveja, mau-
olhado, praguejamento, simpatias, benzimento, apego a objetos como fetiches e amuletos.
A campanha de “descarrego” consiste num dos ritos fundamentais
apresentados pela Igreja para quem deseja superar a condição mais profunda de sofrimento e
de fracasso:
Se a pessoa admite que a sua vida está um inferno, é porque existe a
atuação do maligno, e com essas palavras ela dá forças aos
encostos. O mal quando entra na vida de uma pessoa usa toda a
força para de struir o ser humano, por isso, quem pa rt icipa da Sessão
do Desc arrego, tem que usar a força que vem de Deus para vencer
definitivamente os encostos.
1 0 0 2
Um panfleto, apresentando como slogan “venha libertar-se dos encostos!”, detalhes sobre
o que a IURD entende por tal expressão:
Encosto é uma força espiritual ne gativa que se aproxima das pessoas
causando sofrimento, transtorno, confusões, virando a vida do
avesso do dia para a noite como num pisca r de ol hos. O feitiço, a
inveja, o olho-grande são os meios mais com uns de se lançar um
encosto em alguém. Se você tem vícios, insônia, depressão,
nervosism o, dores de cabeça constante s, desmaios ou ataques, vê
vultos, ouve vozes, tem de sejos de morr er; se tudo tem dado er rado
pra você ... Há um encosto em sua vida!
1 0 0 3
No início de suas atividades no Brasil, essa Igreja costumava empregar
publicamente em seus ritos os nomes das divindades pertencentes às crenças afro-brasileiras
para identificá-las com demônios: Exu, Tranca-rua, Maria Padilha, Preto Velho, Pomba-Gira
etc. Porém, devido a intensos conflitos e processos na Justiça movidos por estes segmentos
religiosos contra a IURD, o movimento passou a generalizar os nomes com o termo
“encosto”. Por isso também a Igreja, ao invés de usar as expressões “mães ou pai-de-santo”,
para se referir aos líderes de terreiros de cultos afro, identifica-os, agora, por “mãe ou pai-de-
encostos”.
O poder concedido por Deus sobre o mal se especialmente por meio dos
exorcismos dos demônios e da cura divina. Todos os problemas m solução, sendo que
praticamente todos têm sua explicação na presença de algum, ou geralmente, muitos
demônios. Para isto atuam os pastores e obreiros da IURD, como os que podem exercer o
devido poder da fé para curar e libertar da força dos demônios os que recorrem à Igreja.
A teologia iurdiana pressupõe que todos os filhos de Deus têm direito de
usufruir as melhores riquezas e uma condição de vida sem infortúnios. E se isto não ocorre é
1002
Folha Universal, Rio de Janeiro, 02 abr. 2006, p. 21.
1003
Folheto publicado pela Igreja Universal do Reino de Deus, recolhido para pesquisa em 2004.
301
porque existe um adversário que o impede: o Diabo e seus demônios. Por isso o fiel precisa
tomar conhecimento disto e engajar-se numa batalha espiritual para vencer o inimigo. A
participação nos ritos oferecidos pela igreja é o “modo como o fiel trava esses infindáveis
combates”, mediante o que se desvendam “as figuras do sagrado por trás das quais o Maligno
revela sua ação” – destaca Maria Lucia Montes, que acrescenta:
Os cultos da Igreja Universal se povoam de feitiç os e macumbarias
de exus e pomba-giras, de traba lhos da direit a ou da esquerda, de
orixás malévolos e falsos santos, de benzimentos, rezas, pajelanças
e ope rações espirituais, alé m de falsas promessas de pais-de -santo
de umbanda e candomblé ou beat os milagreiros que enganam um
povo incrédulo e ignorante.
1 0 0 4
A Universal ressalta que é comum encontrar pessoas sofrendo com
depressão, desejo de suicídio, insônia, família destruída, vida financeira arruinada, vícios,
enfim, problemas que não conseguem solucionar”, as quais, em alguns casos, chegam a
“gastar fortunas com especialistas” sem contudo descobrir as “causas de determinadas
doenças ou tão pouco obter a cura”. Isto ocorre pelo fato de estarem sendo “vítimas de
espíritos malignos, encostos que têm como único objetivo devastar a vida do ser humano,
direcionando ao fracasso”. Com o intuito de combater esses encostos e os males por eles
causados é que se realiza a sessão espiritual de descarrego: “Durante essas reuniões, uma
guerra espiritual é travada através da fé no Senhor Jesus e de orações em favor a dar um basta
em tanta humilhação”.
1005
O anúncio, a seguir, descreve com mais detalhes a dimensão dos
males que a Igreja se propõe solucionar:
Participe da SEXTA-FEIRA FORTE! Se Deus é por nós, que m será
contra nós!!!? Existem 10 sintomas de possessão demoníaca: dores
de cabeça; vícios; insônia e ne rvosismo; pertur baçã o; desma ios
constantes; medo; depressão; audição de vozes e visões; doenças
sem diagnósticos; desejos de suicídio. Nã o importa qual a sua
religião, Deus vai abrir seu caminho, marque com um X o seu maior
problem a e você deverá comparecer neste endereço: Rua Mar anhã o
449 - centro. Diariamente, às 8:00, 10:00, 15:00 e 19:30 horas. Só
depende de você! Existe uma saí da!
1 0 0 6
A Rádio Gospel FM, de Londrina, reforçando essa chamada, inseriu a fala
de Edir Macedo explicando “o porquê da sexta-feira”:
Esse dia, a sexta-feira, é crucial e diferent e dos demais, pois é
quando os demônios se enfurecem e agem mais agressivamente
contra as pessoas, isso porque foi nesse dia que Jesus f oi
crucificado. É nesse dia também que os trabalhos de feitiçarias
são feitos em maior quantidade. Há um afluxo maior de pessoas aos
terreiros e encruzi lhadas. Por isso nós nos preparamos de uma
1004
MONTES, M. L. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit., p. 123.
1005
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 8.
1006
Folheto recolhido para pesquisa em junho de 2004.
302
maneira muito especial para um a guerra de liber ta çã o dos
perturbados por e sses espíritos.
1 0 0 7
Sobre possessão demoníaca, Macedo define-a como “habitação de um ou
mais demônios no corpo de uma pessoa, exercendo-lhe controle e influência, com prejuízos
para as funções mentais e físicas. O espírito imundo age bloqueando a visão, entendimento e
compreensão da Palavra de Deus”. E em relação aos sintomas o bispo afirma que significam
“tudo aquilo que foge ao normal sem que tenha uma causa plausível”, e apresenta outros
detalhes: “doenças e enfermidades sicas; doenças mentais; constantes dores de cabeça ou
dores localizadas em outras partes do corpo, não diagnosticadas pela medicina; insônia; medo
e fobias; desejo de suicídio; vícios; nervosismo; depressão; visão de vultos e audições de
vozes inexplicadas”.
1008
Seguindo o convite de um desses panfletos, convidando para uma “sessão
de descarrego”, foram desenvolvidas algumas observações sobre esse ritual num dos templos
da IURD, localizado em área central da cidade de Londrina, com amplas instalações,
anteriormente ocupadas por uma loja de eletrodomésticos.
1009
Uma dessas reuniões se deu
numa sexta-feira, no horário das 19 horas e 30 minutos; o templo, com capacidade para cerca
de 2 mil pessoas, estava completamente lotado. Antes de iniciar a reunião, à porta estavam
colocados os obreiros, vestidos com roupas brancas, que davam boas-vindas aos visitantes e
os conduziam para o interior do templo, aproveitando a ocasião para oferecer-lhes as
literaturas do bispo Macedo, as quais ficam estrategicamente em exposição sobre mesas à
entrada do local. No altar havia uma grande mesa pintada de branco, próxima à qual estava o
pastor, assentado em atitude de oração e concentração, preparando-se para entrar em cena. Na
hora marcada, iniciou-se a reunião com a entoação de um cântico conduzido por um grupo
musical, sendo acompanhado pela multidão presente. Terminada a canção, o pastor, com
idade aproximada de vinte cinco e anos, vestido com roupas brancas, levantou-se e se dirigiu
ao púlpito. De forma espontânea a multidão também se levantou e ouviu do pastor as
seguintes palavras: “Esta é uma noite muito forte! Você que sente que um encosto, um
trabalho do diabo em sua vida ... um trabalho de feitiçaria ou de bruxaria contra seu
casamento, seus negócios financeiros, você que está tendo uma vida perturbada ... que
freqüentou um terreiro, fez rituais nas encruzilhadas, acendeu velas no cemitério, venha
à frente, esta é a noite da sua libertação!” Cerca de uma centena de pessoas se dirigiu à frente
1007
Ponto de Luz. Londrina, Rádio Gospel FM, 12 ago. 2005. Programa de rádio.
1008
MACEDO, Edir. Doutrinas da Igreja Universal do Reino de Deus. V. 2, p. 63, 64.
1009
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, mar. 2005.
303
do altar. Sete obreiros (homens e mulheres) de cada lado do púlpito, estrategicamente se
posicionaram para auxiliar o pastor. Quando este começou a orar, pedindo ao Diabo que se
manifestasse, também foi acompanhado por toda a multidão que pronunciava, em voz alta,
impropérios contra o demônio. Instantes depois, havia dezenas de pessoas caídas ao chão,
com as mãos contorcidas para trás, com o rosto desfigurado, supostamente possuídas pelos
maus espíritos. Cessado o momento de oração coletiva, a multidão se assentou e o pastor
passou a citar passagens bíblicas, explicando como o Diabo age na vida de uma pessoa,
dando destaque ao texto de Tiago 2:9, que afirma: “O Diabo anda em derredor como um leão
procurando alguém para devorar”. Em seguida, para realçar os perigos de uma vida sem
Deus, voltou-se para uma enorme figura de leão, emoldurada em isopor, que estava exposta
sobre o altar, representando o demônio. Logo após, dirigiu-se àqueles que estavam sob
possessão demoníaca, declarando aos “maus espíritos” que os esses estavam espiritualmente
“amarrados” e o poderiam fazer nada naquele lugar. Iniciou-se a partir daí um período de
entrevistas com os demônios em que o pastor perguntava: “Qual é o teu nome”? Ao que
obtinha, em tonalidade de voz aguda e aterrorizante, respostas como: “sou lúcifer, pomba-
gira, zé-pilintra, tranca-rua, Maria Padilha ...”, nomes tipicamente pertencentes às crenças
afro. Prosseguiu: “o que você pretende fazer contra esta pessoa?” “Vou destruir o seu
casamento, tirar o seu emprego, não deixá-la ser feliz...”. O pastor então se dirigiu à multidão
dizendo que o mesmo poderia acontecer com todos os que ali estavam, e que a “campanha do
descarrego” era o meio de se libertarem. Os fiéis foram convidados a receber uma fita em seu
braço, na qual estava escrito “pai das luzes”, para isto, entretanto, teriam de ir de maneira
voluntária à frente e entregar uma oferta em dinheiro para ajudar à igreja. Ressaltou o pastor
que ofertar a Deus é a maneira de se proteger contra o ataque do diabo na área financeira: “o
que você não a Deus, o Diabo rouba” - enfatizou. Todos então se colocaram de pé, as
luzes foram apagadas, ficando acesa apenas uma grande cruz colocada diante do altar.
Formou-se um corredor com os obreiros diante dos quais a multidão passou em fila,
recebendo orações e aspersão de água feita com galhos de arruda, dirigindo-se até à cruz para
tocá-la e receber, finalmente, o suposto descarrego de todos os males. Quando as pessoas
retornaram aos seus lugares, as luzes foram novamente acesas, representando que os
caminhos estavam agora iluminados. Aqueles que haviam ficado “possuídos” pelo demônio
desde o início do culto, permaneceram estrategicamente nesta condição sobre o altar, durante
as duas horas em que a programação se desenvolveu, aguardando o momento em que viria
ocorrer a derrota final do Diabo e seus demônios. Por fim, o pastor convidou a multidão para
304
ajudá-lo no último ritual daquela noite: libertar aquelas vidas. Antes, porém, lançou um
provocativo desafio: “Você que não acredita que isto aqui é demônio ... eu te desafio a vir
aqui à frente e tocar nestas pessoas. Porém, se o demônio sair daquela pessoa e entrar em
você, eu não vou tirar não... Você vai pra casa com ele! ...[risos]”. A multidão começou, de
forma sincronizada, a gesticular e a gritar repetitivamente “queima demônio!”, enquanto o
pastor e auxiliares passaram a travar uma verdadeira luta corporal contra os “demônios” em
cima do altar: agarrões, quedas ao chão, gritos veementes, davam o tom da dramaticidade e
representação do embate que naquele momento ocorria. Usando o microfone, o pregador
perguntou para a multidão de fiéis: “Ele sai ou o sai?” A reposta veio em coro: “Sai em
nome de Jesus!”. O pastor então pediu mais ajuda à multidão: “Maisgente! Mais poder! O
nosso Deus é maior!” A sessão de exorcismos continuou com gritos histéricos até que, cerca
de dez minutos depois de iniciado o combate, finalmente os demônios foram “vencidos”. Em
seguida, aqueles que experimentaram a libertação deram testemunhos em público afirmando
que não se lembravam de nada do que havia ocorrido durante todo o tempo em que ali
haviam permanecido, mas que naquele instante desfrutavam de intensa sensação de bem-
estar. Encerrou-se aquele momento com a multidão, em êxtase, aplaudindo mais um
espetáculo cúltico e tendo nítida certeza de que naquele lugar estava o poder de Deus, capaz
de oferecer vitória mesmo diante dos mais temerosos desafios que a vida apresenta. Antes de
saírem daquele santuário, entretanto, os fiéis foram mais uma vez advertidos a não deixarem
de usar a fita de proteção que receberam e voltarem na sexta-feira seguinte para continuar a
campanha até que se completassem sete dias. Para a próxima reunião deveriam empenhar-se
em trazer mais um visitante para participar do ritual em que o “leão” seria destruído.
O que se observa, portanto, é que o exorcismo geralmente se realiza de uma
forma coletiva. Quando demônios se manifestam entre o público reunido no templo, com a
intervenção dos obreiros e apoio ativo dos presentes com seus gritos estridentes “Sai!”
“Queima!”, acompanhados de gestos enérgicos, o exorcismo realizado tem caráter de um
espetáculo. No altar também se costuma desenrolar um diálogo entre o pastor e a pessoa
endemoninhada, que com os seus braços cruzados às costas é obrigado a responder a
perguntas do pastor, como por exemplo: Qual o teu nome? Por que estás molestando esta
pessoa? Que trabalho foi feito contra a vida desta pessoa? Antes de “expulsar” os demônios,
é costume o pastor demonstrar o seu poder obrigando o demônio a fazer movimentos como
dobrar as pernas, caminhar para trás. Às vezes, o pastor e seus auxiliares agarram os
endemoninhados pela cabeça, demonstrando uma cena bastante agressiva. Acredita-se que a
305
cabeça é a sede em que se alojam os espíritos malignos. Os exorcismos, sempre com tal
intensidade dramática e uso de fortes e numerosas expressões “Sai em nome de Jesus”, são ao
final aplaudidos calorosamente pelos fiéis.
Quando se desenvolve o ritual de descarrego, o templo se transforma em
palco de uma batalha, uma luta “dramática entre espíritos protetores e espíritos malfazejos
pela conquista e domínio de uma alma”.
1010
Na realização desse drama, Deus e o Diabo
possuem papéis bem definidos. Esse espetáculo de “batalha espiritual”, em que o Diabo é o
antagonista por ser a figura causadora de tudo aquilo que impede toda sorte de bênçãos
materiais e espirituais, é muitas vezes transmitido também através do dio ou da TV,
mostrando pastores e equipe de obreiros auxiliares nas sessões de exorcismo realizando um
verdadeiro talk show do além, presentemente materializados. “Nestes segmentos religiosos a
promessa de cura divina e exorcismos durante os cultos se tornaram cada vez mais próximos
de um espetáculo”- destaca uma reportagem jornalística.
1011
O agente publicitário José
Szekely,
1012
que trabalha com venda de programas evangélicos para a TV, também acrescenta
que “o demônio é o principal instrumento da mídia para atrair fiéis”, argumentando que a
audiência desses programas aumenta quando o Diabo é realçado. Nas sessões de exorcismo
os demônios acabam se tornando “vítimas”, pois antes de serem expulsos dos corpos têm o
dever de dar entrevistas para maior “esclarecimento” do público ouvinte. Trata-se do
surgimento de um fenômeno que inverte as condições comumente aceitas da relação ser
humano/Diabo, uma vez que seus entrevistadores o utilizam como artifício na conquista de
audiência bem como de fiéis. Os demônios tornam-se espécie de marionetes nas mãos dos
exorcistas, aspectos esses que conferem noções de segurança e proteção aos que vivenciam
tal universo, além de dar-lhes garantia de que “outras” expressões religiosas, como as de
tradição afro-brasileira, estão sob o engano do Demônio, pois ouviram pela própria voz das
entidades espirituais tal confissão.
convergentes proximidades simbólicas entre os rituais iurdianos e uma
sessão umbandista. Isto se deve, em parte, ao fato de o próprio líder-fundador da IURD ser
ex-umbandista, algo que também ocorre em relação aos demais bispos e pastores que, em sua
maioria, têm uma história de vida anteriormente ligada a essas crenças. Tais raízes são
visivelmente detectadas, por exemplo, no momento da expulsão de demônios. Os bispos e
pastores iurdianos, inclusive, chamam os demônios por seus nomes, nomes estes conhecidos
1010
LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural, p. 222.
1011
Gazeta do Povo, Curitiba, 10 set. 2000, p. 4.
1012
Revista Veja, São Paulo, 31 jul. 1996, p. 7.
306
e citados nos rituais umbandistas. Ainda que algumas diferenças sejam observadas entre os
rituais de exorcismo desses dois segmentos religiosos, o que se constata, entretanto, é que o
princípio acaba sendo o mesmo: invocação, pelo líder, de uma força espiritual mediante
possessão. Tanto o ritual de exorcismo de uma sessão umbandista como o iurdiano apresenta
uma linguagem verbal e corporal bastante afins. Nos rituais dos cultos afro-brasileiros se
observa que o médium, ao incorporar um determinado “guia” ou espírito, comporta-se como
se estivesse munido de toda a capacidade para retirar espíritos perturbadores das pessoas
presentes. No caso da IURD, a primeira providência do pastor-exorcista é obrigar a tima
dos demônios a ficar de joelhos e colocar as mãos para trás, simbolizando assim o
reconhecimento, por parte do espírito rebelde, do poder de Jesus corporificado no pastor. Às
vezes, acontece de algum exorcista usar alguma forma de coerção física, mas será através do
diálogo que se tentará arrancar-lhe o nome, procedimento simbólico essencial, que garante a
soberania de Jesus sobre o intruso. Depois de muita insistência, o nome é dito entre urros,
suspiros e intensas agitações corporais. Assim, na IURD, o Demônio é retirado da vítima em
nome de Jesus mediante o poder do Espírito Santo que se apossa do bispo ou do pastor; na
umbanda, atribuem-se tais poderes ao “guia”, o espírito que entrou no corpo de um
determinado médium para cumprir aquela função. Ainda quanto a esse aspecto, cabe destacar
que, depois das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, Salvador - BA é a capital em que a
IURD tem obtido seus maiores êxitos em relação ao número de templos. Não é sem motivo
que isto acontece: essas cidades estão entre as que apresentam o maior número de adeptos do
kardecismo, umbanda e dos cultos afro-brasileiros, havendo, portanto, um universo cultural
afim às práticas e representações da operosidade iurdiana.
Maria Lucia Montes ressalta que o que se exorciza nas práticas da Igreja
Universal é sobretudo o conjunto das entidades do panteão afro-ameríndio incorporado às
religiosidades populares das devoções e práticas mágico-rituais do catolicismo ainda
conservadas às religiões de negros perseguidos e depois apropriadas por diferentes estratos
sociais também das populações urbanas.
1013
Percebe-se a importância da dramatização do
confronto entre as forças do bem e do mal realizadas no culto, com a espetacularidade dos
rituais de libertação, cumprindo plenamente o papel de comprovar suas crenças. E mais, ali
as pessoas têm como argumentos de persuasão - em relação ao aspecto “farsante” das demais
religiões - não somente as palavras do líder, mas a voz dos próprios demônios que se auto-
nomeiam identificando-se, principalmente, com as divindades dos cultos afro-brasileiros.
1013
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op. cit.,
p. 122.
307
Mas, inegavelmente, um dos principais elementos pelos quais a IURD
desempenha a sua operosidade inovadora reside na apropriação reversa que faz das religiões
afro-brasileiras. Isto pode ser observado nos próprios apelos públicos, como o ocorrido
recentemente, na cidade do Rio de Janeiro, em que alguns templos iurdianos estampavam
uma faixa afixada na parte externa, com os seguintes dizeres: Participe das reuniões no
Templo do Pai Maior”. Outro exemplo pode ser observado na prática denominada consulta
espiritual”, realizada desde o ano de 2005. Essa atividade envolve “ex-pais e ex-mães-de-
santo” que, membros da Igreja, agora auxiliam os pastores e bispos no diagnóstico” dos
problemas espirituais que envolvem aqueles que buscam auxílio da IURD. Em observações
participantes realizadas se verificou, durante os dias de campanha de “descarrego e
libertação”, “ex-pais e ex-mães-de-encosto” como a Igreja os identifica presentes para
oferecer consulta espiritual aos participantes da reunião.
1014
Vestidos com roupas brancas
idênticas às usadas na umbanda e no candomblé ficam assentados a uma grande mesa
coberta com tolha branca, ouvindo individualmente o drama pessoal de cada solicitante. Logo
após, identificada a “causa espiritual” do problema, a pessoa recebe as instruções para
participar da devida corrente para que possa se libertar de seu mal. Dependendo da gravidade
do problema, o fiel recebe ali mesmo, imediatamente, orações de exorcismo para
“descarrego” de sua opressão, feitas pelos pastores e obreiros. Isto não o desobriga, porém,
de iniciar uma corrente que lhe garantirá a vitória completa. Este mesmo procedimento
também vem sendo adotado nos programas de TV,
1015
realizados nos períodos noturnos,
especialmente às sextas-feiras, quando os telespectadores têm a oportunidade de telefonar
para o programa e descrever os problemas que estão enfrentando. As questões são
imediatamente respondidas e os diagnósticos apresentados pelos “ex-pais e ex-mães-de-
santo” que, devidamente trajados com aquelas mesmas roupas anteriormente descritas,
auxiliam os pastores na realização do programa. Os pareceres emitidos seguem um roteiro
quase padrão: um trabalho espiritual de macumba, um despacho feito na encruzilhada ou no
cemitério para prejudicar a pessoa; inveja no trabalho, mau-olhado, ou ainda opressão
demoníaca decorrente de algum envolvimento, da própria pessoa ou de alguém de sua
família, com práticas das religiões afro-brasileiras. A solução também é apresentada de
maneira incisiva: procurar o mais rápido possível um templo da IURD e realizar uma
campanha de descarrego e de libertação.
1014
Observações participantes realizadas nos templos de Santo Amaro e Londrina, mar./abr. 2006.
1015
Programas: Fala que Eu te Escuto e Mistérios, ambos levados ao ar pela Rede Record. Gravação para
pesquisa realizada em março e abril de 2006.
308
É característica marcante, portanto, o fato de os pastores aproximarem ou
adaptarem os discursos e os ritos àquilo em que os fiéis crêem, ocorrendo, assim, um
processo de apropriação e resignificação, uma adaptação, uma circulação cultural. É a partir
de uma crença ou “capital simbólico” existente que os deres coordenam os ritos em
sintonia com a visão de mundo das religiões populares, de origem cristã ou afro-brasileira. E,
segundo Carlos Brandão, nas religiões populares, como o catolicismo rural e as crenças afro-
brasileiras, o milagre é “rotina simples, fidelidade mútua entre as divindades e os fiéis”,
sendo, portanto, “necessário, acessível, rotineiro e reordenador”.
1016
Os atos de exorcismo
representam um instrumento de reorganização do universo dos fiéis, separando o bem do
mal.
A Folha Universal destaca que nessa reunião, realizada às sextas-feiras, os
que comparecem “recebem a oração da que os fortalece na luta contra os espíritos
causadores das desgraças que acontecem em suas vidas”. Nos depoimentos dados pelos fiéis
observa-se a interatividade estabelecida com esse rito de descarrego. A comerciante Sueli de
Souza, 39 anos, conta como venceu os problemas espirituais:
Eu era completa me nte perturbada. Levava uma vida de fracassos,
brigas e derr otas, meu casamento estava destruído, estava sufocada
em dívidas. Sem saber o que fazer, ouvi na rádi o o bispo
convidando para a sessão do descarrego. A partir daquele dia
compareci às reuniões, apre ndi a desenvolver uma f é inteligente que
produz resultados e daí fui liberta. Hoje realizo todos os meus
propósitos com Deus, tenho uma família abençoada e não possuo
dívidas.
1 0 1 7
Alex Cabral Borges, 39 nos, declara ter atuado como “bruxo” durante 20
anos:
Eu tinha 200 filhos de encostos diretos e mais 800 indiretos. Eu
fazia trabalhos que norma lmente visavam a destr uição das pessoas.
Por isso fiquei conhecido como pai Alex, apesar de t udo isso, fiquei
muito doente e minha esposa morreu juntamente com minha filha
ainda no período de gestação. Os encostos me levaram à misé ria.
Finalmente uma pessoa me convidou pa ra ir a I greja Unive rsal onde
senti grande impa ct o com o que vi naquele lugar. Quando cheguei só
me lembro de ter lido Jesus Cristo é o Senhor, depois disso
manifestei vários encostos. Naquele dia vi com os meus pr ópri os
olhos aqueles que se a presentavam como deuses se rendendo ao
poder de Deus. Fiquei revoltado, decidindo então abandona r toda
aquela mentira. Hoje sou nova criatura, totalmente liberta das
forças da s tr evas.
1 0 1 8
1016
BRANDÃO, C. R. Op.cit., p. 131-132.
1017
Folha Universal, Rio de Janeiro, 01 abr. 2006, p. 21.
1018
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 5
309
Maria Goreth, 36 anos, chegou à IURD “totalmente atormentada, pois
servira aos espíritos por mais de 20 anos”, sofrendo diversos tipos de enfermidade e com
desejo de suicídio. Envolveu-se com os encostos em busca de ajuda, mas acabou por
complicar ainda mais a sua vida, chegando a tornar-se filha-de-encosto e despachante de
trabalhos. Somente depois de participar da oração forte da sessão de descarrego, Goreth
“alcançou a verdadeira felicidade que só o Pai das Luzes pode dar”.
1019
O testemunho de Sisleide Maria Coutinho também é citado como exemplo
dos benefícios alcançados:
Vivi escrava dos encostos por m ais de 25 anos, inclusive dava
consultas . Mas em mi nha própria vida havia desavenças, doenças
vícios e misé ria. Gastei muito dinheiro com oferendas, m as só tive
meus olhos abertos depois de chegar a Igreja Universal e participar
dessas Reuniõe s de Libertação. A partir daí tudo mudou. Hoje,
liberta de todo o mal, sou verdadeiramente feliz.
1 0 2 0
Nessas práticas da IURD é possível observar também que “há um ato
fundador da violência que é a conquista dos territórios, a dominação dos corpos, o controle
dos indivíduos” exercida por tais líderes,
1021
pela legitimidade e o direito que ostentam para
agir sobre a pessoa que se acredita estar enferma ou possuída pelos demônios. Mas essa
violência tem a sua legitimidade e autorização delegadas pelo próprio grupo. Pelo carisma
que se atribui ao profeta se estabelece a autoridade e o reconhecimento imediato, a cujas
qualidades milagrosas por concessão divina o discípulo se entrega numa total devoção
pessoal. Chartier aponta para o poder” da representação ao dizer que “a distinção
fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas
formas de teatralização da vida social”.
1022
A identidade do ser pode ser confundida com a
aparência da representação. Para mostrar como a “aparência pode valer pelo real”, cita
Pascal, quando se refere à imagem de justiça dos magistrados e atuação curativa dos médicos
mediante o uso de aparatos simbólicos: “Mas lidando apenas com ciências imaginárias, é-
lhes necessário lançar mão desses vãos instrumentos que impressionam a imaginação
daqueles com quem têm de tratar; e é deste modo, que se dão ao respeito”.
1023
Nesse sentido,
ao promover “respeito e submissão”, a representação se torna um instrumento que produz
“constrangimento interiorizado”, o que na linguagem de Pierre Bourdieu se converte em uma
forma de “dominação simbólica”, como bem comenta Chartier:
1019
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 97, p. 30, 2003.
1020
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 mar. 2003, p. 8
1021
CHARTIER, R. Pierre Bourdieu e a história, p. 154.
1022
Id. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 21.
1023
Id., ibid., p. 22.
310
Esta inspiração de Bourdie u permitiu instalar no cerne de mui tas
pesquisas históricas um conceito como o de violênc ia simbólica ou
de dominação simbólica. Isto é, pensar que não há unicamente,
numa sociedade, formas de dominaç ão brutais ou enfrenta mentos
explícitos, imediatamente sociais (...) Para que uma dominação se
reproduza , é pre ciso um mecanismo de violência simból ica ou
dominação sim bólica.
1 0 2 4
Os dominados incorporam por meio “do simbolismo de que se reveste
toda e qualquer dominação”
1025
- os princípios da dominação que asseguram a sua
dependência como legítima, comenta Chartier, destacando que isso se mediante a
instauração de um mecanismo mais sutil: “esse tipo de dominação se reproduz a partir da
incorporação da legitimidade do princípio da própria dominação nas percepções dos
dominados”: Os dominados utilizam as categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes sobre as relações de dominação e, a partir daí, fazem estas relações de dominação
parecerem naturais.
1026
4.3.3 - “Pare de sofrer”: corrente de cura divina e milagres
“Pare de sofrer! Existe uma solução!” Este tem sido um dos slogans
característicos proclamados pela IURD desde a sua fundação. Por isso a Igreja mantém uma
campanha que apresenta permanente variação de tipologia e estética ritualística. Reporta-se
geralmente a episódios relatados na Bíblia, em grande parte no Antigo Testamento,
estabelecendo ao mesmo tempo, de maneira bastante original, uma conjugação entre os ritos
católicos, afro-brasileiros e protestantes. Dificuldades financeiras, crise no casamento,
doenças, vícios e muitos outros problemas têm levado um número incontável de pessoas para
a Igreja Universal” propaga a própria Igreja, que acrescenta: “elas têm a oportunidade de
participar de vários propósitos de oração, já que a IURD realiza reuniões diárias”.
1027
O anúncio publicado no panfleto transcrito a seguir retrata bem o amplo
leque de opções que o fiel encontra nos cultos e ritos da IURD, na busca de respostas para
seus problemas:
PARE DE SOFRER Você que tem alguns desses problemas marque
um X: inveja, vítima de olho gordo, feitiçaria, prestação atrasada,
quer emagrecer ou engordar, passar em conc urso público, doenças,
insônia , falência, dese mprego, aluguel atra sado, possessão maligna,
aposentar-se, dores de cabeça, dívidas, depressão, angústia, etc.
1024
Id. Pierre Bourdieu e a História, p. 154.
1025
Id., ibid.
1026
Id., ibid..
1027
Folha Universal, Rio de Janeiro, 05 fev. 2006, p. 7.
311
Traga este folheto, receba uma oração forte e uma rosa ungida!
Sábado, a 1:00 hora da tarde, na Igreja Unive rsal, Rua Benj amim
Constant, 1488, centro Londrina.
1 0 2 8
Em vista disso, a Igreja Universal mobiliza um universo muito presente no
chamado catolicismo folclórico rural,
1029
no qual é comum, por exemplo, a realização de
festas religiosas em que os devotos fazem donativos aos santos suplicando uma graça a ser
alcançada, bem como a realização de rezas e rituais de benzimentos em favor das colheitas,
do gado e diante de doenças coletivas:
O catolicismo devocional é montado sobre rezas, bênçãos, de voções,
curas, pr omessas, todas elas fundadas na crença no milagre. Este se
refere às doenças (que pode m ser int erpretadas como m alfe ito ou
como c astigo, i sto é, como influência malévola ou como resultado
da cul pa), à busca de proteção (para a colhe ita, o ga do, a saúde,
contra desastres naturais, para encontrar objetos perdidos (...) o
milagre depende da fé de quem pede, do valor da promessa feita
como retribuição da graça recebida. Mas depende sobre tudo da força
do rezador ou do benz edor, de seu carisma pessoal.
1 0 3 0
Em relação à “cura divina”, no Manual da IURD, registram-se as seguintes
concepções:
A cura divina está de ac ordo c om o caráter de De us, que sendo um
pai amoroso, não poderia aceita r na vida dos seus filhos doenças ou
enfermidades, (...) as doenças, na sua gr ande ma ioria, são causadas
pelos demônios, que uma vez saindo do corpo das pessoas as levam
consigo, (...) elas não contribuem para a glór ia de Deus, e sim para
a miséria e de sgraça dos homens (...) A Igreja (...) ministra a oração
para a cura divina por inter mé dio dos seus Bispos, Pastores e
Obreiros, quer com imposição de mãos conforme determinam as
Escritura s, quer sem imposiçã o de mãos, porque obedece à ordem do
Senhor Jesus Cristo, que mandou curar os enfermos e expelir os
demônios. Uma pessoa cheia de doenças não está à vontade para
glorificar a Deus. Não pode compreender corretamente o Seu amor,
se não for curada e a bençoa da e m toda s as coisas.
1 0 3 1
Atribuindo a uma dimensão espiritual a causa das enfermidades, Edir
Macedo ressalta em uma de suas entrevistas: “Quando o problema é espiritual, o tem
médico que consiga resolver”.
1032
Destaca também a fórmula de se obter a cura: “Nada de
ficar falando: Ó Deus, cura! Ó Deus, liberta! Ó Deus, abençoa! Isto é burrice espiritual! Nós
1028
Folheto distribuído pela Igreja Universal do Reino de Deus de Londrina, setembro e outubro de 2002.
1029
Entendendo tal conceito como referindo a um tipo de catolicismo que, mesmo mantendo-se ligado à Igreja
Católica oficial, muitas vezes se organiza à margem desta, com expressões tipicamente sincréticas, rurais,
extrapolando o controle dos dogmas oficiais. Cf. CHAUÍ, M. Raízes teológicas do populismo no Brasil:
Teocracia dos dominantes, messianismo dos dominados. CHAUÍ, M. et ali. Anos 90 - Política e sociedade no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
1030
Id., ibid., p. 128.
1031
MANUAL DO OBREIRO. Estatuto e regimento interno da Igreja Universal do Reino de Deus. Op. cit.
1032
Revista Veja, São Paulo, 06 dez. 1995.
312
é que temos que curar, libertar e abençoar... Em nome do Senhor Jesus Cristo!”
1033
Mostra
ainda a eficácia de tal procedimento na obtenção da cura: “(...) às vezes, gradativamente, às
vezes instantaneamente, dependendo da fé da pessoa”.
1034
A Revista Plenitude destaca que a “corrente de Jericó – derrubando todas as
muralhas do mal”, tem como objetivo despertar a sobrenatural das pessoas através da qual
encontrarão forças para derribarem os muros que as tem impedido de usufruir as promessas
de Deus:
Por ma is que as pessoas se e sforcem, sempre existe um obstáculo,
uma barreira que as impe de de atingir seus objetivos. No ponto de
vista humano, as muralhas das dívidas, do fracasso sentimental e
profissional, das doença s, entre outra , parece ser intransponíveis.
Por ém muitos estão conseguindo derrubar essas barreiras ao
partici parem da Cor rente de Jericó. A reuniã o tem despertado no
coração dos que comparecem, a fé sobrenatural, através da qual
muitos encontram força s par a vencer os obstác ulos e darem um
basta ao sofrimento.
1 0 3 5
O testemunho de Aureneide Mendes de Souza, 29 anos, é citado como
exemplo de alguém que transpôs essas barreiras:
Sem explica ções comecei a te r convulsões e de smaios e como toda
minha parentela servia aos encostos, meus pai s foram consultá-los
sobre minha doença . Por orientação da mãe-de-encosto comecei a
trabalhar para e sses espíritos com a pena s 12 anos de idade. Minha
vida passou a ser controlada pelos encost os que passaram a m e
perse guir com vozes e vultos, chegaram a me ameaçar de morte.
Alem de deprimida me tornei nervosa, agressiva, estava a ponto de
cometer suicídio quando recebi um convite para assist ir uma reunião
na Igre ja U niversal. Chegando a igr eja recebi uma oração, ouvi a
palavra de Deus e compree ndi que havia um mal se opondo a m inha
felicidade, causando toda sorte de sofrimento. A partir da í minha
vida foi liberta e transf ormada .
1 0 3 6
No templo-sede, em Santo Amaro, na cidade de São Paulo, num culto
voltado à “saúde”, organizou-se um ritual denominado “corredor dos setenta pastores”,
1037
em
que pessoas em busca de cura passavam as mãos ou beijavam um manto vermelho,
denominado “manto sagrado”. Enquanto os pastores e obreiros oravam e ordenavam que todo
o mal físico se desfizesse, o manto foi estendido sobre a cabeça dos fiéis, ao longo de toda
extensão do templo. Ao final do culto, no momento das ofertas, os obreiros passaram pelas
cadeiras oferecendo em troca de ofertas um pequeno pedaço daquele pano para ser colocado
1033
MACEDO, Edir. O poder sobrenatural da fé. 3ª ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1991, p. 157.
1034
Id. O Espírito Santo. 4 ed. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Universal, 1992, p. 96.
1035
Revista Plenitude, Rio de Janeiro, Universal Produções, n. 95, p. 29, 2003.
1036
Folha Universal, Rio de Janeiro, 23 jan. 2003, p. 8.
1037
Ao estabelecer o número de “setenta” pastores a IURD se apropria de crenças judaicas que valorizam a
numerologia, conforme registros apresentados principalmente no Antigo Testamento.
313
sobre a enfermidade, para que “o Senhor estivesse completando a obra dele”.
1038
Nesse
sentido, a IURD resignificativamente reedita a festa de Pentecostes ou do Espírito Santo
praticada pelo catolicismo, na qual também uma larga tira de pano vermelho, amarrada ao
altar, é estendida em todo o comprimento do templo por sobre a cabeça dos fiéis, sendo
recortada em pequenos retalhos para ser distribuídos aos fiéis. Pode se constatar também uma
versão da “Bênção do Divino” - bastante tradicional no catolicismo - mediante a qual os
devotos reverentemente beijam bandeiras, cobrindo com ela por um instante a cabeça, com o
propósito de buscar resultados com caráter mágico especialmente em situações de grande
aflição.
Em culto realizado por Edir Macedo na IURD do bairro do Brás, na capital
paulista, constatou-se, numa observação participante, que o templo, com capacidade para
aproximadamente 5 mil pessoas, estava completamente lotado. O bispo desenvolveu sua
pregação enfatizando “as respostas que Deus dá aos aflitos que a ele recorrem em templos de
aflição e angústia”. No momento da oração, chamou à frente os que desejavam se “libertar de
seus males e angústias”. O altar foi tomado pela multidão. O bispo canta e desafia o povo a
entoar junto com ele uma letra que convida a “entregar-se completamente a Deus”. Um
estado de profunda emoção toma conta do lugar. O líder então profere palavras de repreensão
ao demônio, “determinando” a cura, o milagre, a prosperidade. Após o êxtase coletivo, passa-
se ao momento do ofertório. Macedo indaga os fiéis:
Quantos est ão aqui por que ouviram a me nsagem da igreja através
de um programa de rádio? Atravé s da televisão? Ou conheceram a
igreja através de litera turas? A lgué m deu sua oferta para patrocina r
estes programas ou pa ra pagar o aluguel do imóvel quando o templo
foi a qui instalado. Por isso, a sua ofe rta hoje significa t ambém a
oportunidade que outros terão para ouvir esse evangelho através dos
diferentes projetos da igreja.
Ao fundamentar biblicamente o seu argumento, Macedo cita o texto de João
3:16, “porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu filho unigênito para salvar a
todo aquele que crê”, destacando que Deus ofertou à humanidade o que ele possuía de maior
valor e que por isso devemos também lhe ofertar com o máximo de esforço possível”.
1039
Em agosto de 2004 foi iniciada a campanha denominada “troca do anjo da
guarda”. Ressaltava-se, nos apelos radiofônicos e televisivos, que “quando o anjo da guarda
está falhando” é preciso substituí-lo: “a pessoa necessita ter um anjo mais forte para
acompanhá-la, guardá-la e ajudá-la a vencer as batalhas espirituais” desafiavam os pastores
1038
Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, out. 2004.
1039
Observação participante realizada no templo da IURD no Brás, em São Paulo, 05 mar. 2006.
314
na ocasião.
1040
Para esse rito, os fiéis são convocados a vir ao templo e, no momento oportuno
do ritual, efetuar uma substituição do anjo da guarda que têm tido até então em razão de
terem pertencido ao catolicismo ou de outras crenças até então professadas por outro que,
funcionalmente, passará a ser, de fato, eficaz. Segundo o bispo Macedo, em reunião realizada
na Catedral da Fé, no Rio de Janeiro, essa corrente visava pedir que os anjos poderosos
viessem guardar os fiéis: “porque balas perdidas têm ceifado muitas vidas nessa cidade. A
coisa está incontrolável. Deus para mudar essa situação”. Durante a reunião, o bispo
Macedo enfatizou que “diante de tantos problemas como violência, desemprego,
desentendimentos nos lares, entre outros, a pessoa necessita ter um anjo mais forte para
acompanhá-la”. A idéia da campanha surgiu a partir da leitura do texto bíblico de Daniel
10:13, que diz: “mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu por 21 dias; porém Miguel, um
dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me, e eu obtive vitória sobre os reis da Pérsia”.
1041
Em setembro de 2004, por exemplo, a IURD realizou a “campanha da
revolta”, mediante a qual os iurdianos poderiam exteriorizar situações de amarguras, revoltas
contra o Diabo e esperanças de mudanças. Em uma de suas programações de rádio,
1042
foi
possível registrar o quadro descrito, a seguir. Atendendo os ouvintes ao telefone, o pastor
usou os seguintes termos: “Alô, irmã, revoltada? a à Igreja para manifestar a sua
revolta, pegue o seu envelope”. A ouvinte responde: “Estou revoltada contra esse Diabo
desgraçado, que é o responsável pelo baixo salário de cento e sessenta reais que estou
ganhando”. Ao saber que a ouvinte ainda não havia retirado o respectivo envelope de
contribuição e de inclusão dos motivos de sua revolta, o pastor disse: “Então você não está
revoltada nada, porque ainda não tomou a decisão”, insistindo que a mulher procurasse um
templo e retirasse o envelope, dizendo que as pessoas, fazendo isso, estariam pegando o
Diabo pelo pescoço”.
Vale ressaltar que a prática de duelos e desafios é um elemento muito
presente na cultura brasileira, isto não no plano artístico, expresso em composições
musicais e poéticas, como também nas celebrações religiosas. Esse capital simbólico se faz
presente em romarias e peregrinações, quando as pessoas expressam suas relações com o
sagrado por meio de um duelo que envolve promessas e pagamento do prometido, quase
sempre por meio de sacrifícios corporais, de tempo ou de dinheiro. Por meio desses gestos
demonstra-se à divindade a coragem, ousadia e disposição dos devotos. Rubem César
1040
Gravação de programas veiculados pela Rede Record de Televisão e rádios Atalaia AM e Gospel FM, de
Londrina, em fevereiro de 2006.
1041
Folha Universal, Rio de Janeiro, 13 ago. 2004, p. 8.
1042
Ponto de Luz. Londrina, Rádio Atalaia AM, 29 set. 2004. Programa de rádio.
315
Fernandes se refere a tais formas de expressão social num estudo sobre os romeiros a um
santuário católico, localizado na cidade de Pirapora do Bom Jesus. Para alguns daqueles
peregrinos, romaria é coisa para corajosos”, para “pessoas ousadas” e nunca para
“medrosos”.
1043
Também Carlos Rodrigues Brandão analisa as festas populares como “folia
de reis”, “folia do divino” e, especialmente, as cavalhadas, como reminiscências de guerras
mantidas por portugueses e mouros na Idade Média.
1044
Esses rituais são de desafios e contra-
desafios, que podem ser usados pelo povo como expressão de seu inconformismo a
determinadas situações, expressando de uma maneira simbólica sua disposição de vencer as
dificuldades da vida, sempre atribuídas à presença de forças do mal.
Percebe-se com isso a forte presença cultural que reside na compreensão de
“desafio” nos ritos que a IURD realiza. Participar dos rituais, seja “campanha” ou “corrente”
de fé, é ser colocado diante de um repto que envolve provocações e exige mudança nas
condutas. É constante o fiel ser ali desafiado a desempenhar papéis que mexem com os seus
brios. Essa atitude de desafio pode ser a de ir à Igreja, contribuir financeiramente, ir à frente
no altar, no momento em que o pastor faz um apelo para um determinado compromisso, de
acordo com os diferentes ritos que se desenvolvem. Os ritos dramatizam “batalhas” ou uma
“guerra espiritual” que está em andamento, entre as forças de Deus e dos demônios, diante da
qual não se pode permanecer neutro.
Em relação à eficácia dos rituais, pode-se dizer que essa se deve a “um
sistema coerente que fundamenta o universo” cultural na qual os participantes estão
inseridos. É esse “universo mítico que executa as operações” - observa Lévi-Straus.
1045
No
momento em que o ritual se organiza “mecanismos se ajustam espontaneamente, para chegar
a um funcionamento ordenado”.
1046
E, vale citar que, se os elementos simbólicos “não
correspondem a uma realidade objetiva, não tem importância: os participantes acreditam
nela, e eles são membros de uma sociedade que também acredita”.
1047
Orientados por um
habitus, ao mesmo tempo que produtores de novos habitus, os ritos e símbolos praticados
pela IURD promovem, assim, indissociabilidade entre o físico e o espiritual” elementos
comumente distinguidos. Destaca-se o fato do simbólico não ser entendido como mero
reflexo do real, nem como simples subjetividade, o que aponta para a necessidade de
superação da dúvida cartesiana que pressupõe a idéia da humanidade ser exterior ao seu
1043
FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: Uma introdução às religiões populares. São
Paulo: Brasiliense, 1982.
1044
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cavalhadas de Pirinópolis. Goiânia: Edições Oriente, 1974.
1045
LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia, p. 228.
1046
Id., ibid., 229.
1047
Id., ibid., p. 228.
316
mundo, de onde também decorre a concepção de que “o pensamento ou a representação são o
produto artificial ou abstrato de seu intelecto”.
1048
Logo, a eficácia da ritualística iurdiana se deve não à genialidade do líder,
mas ao imaginário dos participantes daquele universo representacional, como o observa Lévi-
Strauss ao falar da atuação do xamã, afirmando que este estabelece uma relação imediata
com as representações dos doentes”, sendo esse “o papel da encantação propriamente dita”:
Neste sent ido, ele se encarna objeto da transferência, para se tornar,
graças às repr esenta ções induzidas no espí rito do doente, o
protagonista real do conflito que este experimenta a meio-caminho
entre o mundo orgânico e o mundo psíquico.
1 0 4 9
Como parte do universo da cultura, as práticas iurdianas propiciam,
portanto, a criação de um sistema cultural capaz de instituir um “corpo consistente de
símbolos, práticas, ritos, valores crenças e regras de condutas”, do que lhe advém a
“capacidade de conferir significado à existência humana” através da recorrência que se faz a
um “outro mundo para atribuir sentido ao que ocorre nesta vida”.
1050
4.4 - O papel da leitura nas representações iurdianas
Historicamente, a leitura da Bíblia foi sempre uma prática bastante
controlada na constituição e configuração do campo religioso brasileiro. Durante um longo
período adeptos do catolicismo no Brasil ficaram privados de acesso ao texto bíblico. Até a
década de 1960, a sua leitura ocorria somente durante as missas, em latim.
Cabia ao sacerdote
ler o texto sagrado nas homilias explicá-lo aos fiéis. O argumento era o de que tal
procedimento, quando feito por “leigos”, poderia suscitar interpretações errôneas,
desencadeando práticas de heresias. Mas, na verdade, com tal controle a instituição
dominante quer construir e manter representações de poder. D ter implementado uma
constante vigilância por parte da igreja em relação às constantes tentativas feitas por
protestantes de distribuir tais literaturas entre católicos.
O protestantismo clássico brasileiro, através das suas confissões de fé, tem
reivindicado para si a condição de guardião da “reta doutrina”,
1051
mantendo-se reticente a
qualquer tipo de experiência pessoal que fuja aos seus cânones. Tal procedimento visa
controlar o surgimento de “heresias” em seu meio e coibir o avanço de movimentos que
1048
BURKE, P. História e teoria social, p. 168.
1049
Id., ibid., 229, 230.
1050
Id., ibid., p. 71.
1051
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão, p. 27-36.
317
considera seitas,
1052
usando para isto a força de seus dogmas. Entretanto, parece ocorrer algo
já observado por Weber:
Quanto mais a religião se tornou livre sca e doutrinária, tanto mais
liter ária tornou-se e mais eficiente foi no estímulo ao pensame nto
leigo racional, livre do controle sacerdotal. Dos pensadores leigos,
porém, saír am os profetas, que era m hostis aos sacerdotes; bem
como os místicos, que busc avam a salvação independente deles e
dos sectá rios.
1 0 5 3
Edir Macedo e seus seguidores, na condição de “místicos” e “sectários”,
passaram a ler a Bíblia inovando nas suas interpretações, configurando práticas diferenciadas
em relação ao protestantismo clássico. “As práticas de leitura são mais complexas e mais
dinâmicas e devem ser pensadas, antes de tudo, como lutas de concorrência em que se
procura uma nova distinção” – observa Chartier.
1054
Algumas características de leitura que “incomodam” o protestantismo têm
notabilizado as práticas iurdianas. Primeiro, o caráter místico da leitura. Na IURD, a leitura
realizada “alimenta as imaginações em que elementos do sobrenatural, miraculosos ou
diabólicos, rompem com o ordinário do cotidiano”.
1055
A Bíblia tem a representação de “um
depósito de mbolos, alegorias e de cenas dramáticas, ou até um amuleto para exorcizar
demônios e curar enfermos, do que ‘regra única de e prática’ como a encaram outros
grupos protestantes”.
1056
Essa mesma conotação de magia assumiu o ato de ler o texto bíblico
no contexto medieval:
Qualquer oração ou passagem das escrituras podia te r um poder
místico à espera de ser rede scoberto. A Bíblia podia se r um
instrumento divina tóri o, que a berta ao acaso revelaria o destino da
pessoa. Os evangelhos podiam ser lidos em voz a lta para
parturientes, a fim de lhe s garant ir um bom parto. Podia-se colocar
uma Bíblia na cabeça de uma criança inquieta, para fazer com que
conciliasse o sono.
1 0 5 7
Nas práticas iurdianas, a leitura da Bíblia “oferece signos a decifrar. (...)
Textos que decifram o universo ou que dão receitas de bem-viver”;
1058
ela responde a “uma
1052
O historiador Cláudio DeNipoti, ao analisar a obra de David Hall, sobre a Nova Inglaterra, afirma que a
mesma apresenta interessante contribuição para se verificar “como ministros protestantes buscaram impedir que
ocorressem excessos na livre interpretação da Bíblia, principalmente através da perseguição de profetas e
visionários que se diziam inspirados por Deus, cujo exemplo máximo são os julgamentos de supostos
feiticeiros, em Salém, em 1692”. Cf. DENIPOTI, Cláudio. Op. cit., p. 22.
1053
Weber, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: Weber, Max et al. Ensaios de Sociologia. 5
ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, p. 402.
1054
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 17.
1055
Id., ibid., p. 116.
1056
CAMPOS, L. S. Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento
neopentecostal, p. 82.
1057
Id., ibid., p. 50.
1058
CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 126.
318
expectativa compartilhada, seja da ordem de devoção, da utilidade ou do imaginário.”
1059
Denota-se daí algo semelhante ao que Michel de Certeau denominou de “leitura mística”, ao
referir-se aoconjunto de procedimentos” adotado por grupos designados nos séculos XVI e
XVII, como “iluminados, místicos, ou espirituais”.
1060
Os livros escritos pelos líderes
iurdianos, de igual modo, assumem poder simbólico e místico.
1061
Segundo, uma prática de leitura resignificadora de substratos culturais. A
interpretação dada por líderes e fiéis às escrituras bíblicas se lhes apresenta como revelação,
tendo como filtro um substrato cultural que configura o seu imaginário. No caso específico
dos pastores e bispos, o êxito em atingir seus ouvintes com a mensagem que proferem se
deve em boa parte ao fato de a interpretação do texto bíblico ocorrer em conformidade com o
imaginário dos fiéis. Contribui para isto o fato de também serem eles mesmos pertencentes a
tal universo representacional, o que lhes permite descortinar eficazmente o capital
simbólico
1062
que configura as representações por eles vivenciadas. Os iurdianos, através da
leitura bíblica, a partir de um capital simbólico e de um conjunto de representações híbrido
constituído em seu imaginário, filtram dogmas e postulados teológicos eruditos legados pelo
protestantismo clássico, realizando um dinâmico processo de circulação cultural. Neste
aspecto, torna-se ilustrativa a comparação com Menóchio, personagem de Carlo Ginzburg,
em sua obra O Queijo e os Vermes. Nas várias leituras que fez, o moleiro de Friuli não soube
nelas encontrar o sentido esperado por todos, a “verdade” dos textos que teve em suas mãos,
mas reinterpretou-os. Efetuando leituras desviantes, que fogem ao controle, Menóchio fez
ressurgir uma tradição cultural não letrada, na qual, ainda que alfabetizado, ele está
totalmente inscrito. “Ao condenarem-no, os juízes condenaram sua intrusão não controlada e
incontrolável no mundo da cultura escrita”.
1063
Menóchio não estava simple smente r elendo mensagens tra nsmiti das
de cima para ba ixo na ordem social. Ele lia agressivamente,
transformando o conte údo material à sua disposição numa concepção
radicalmente não-cr istã do mundo.
1 0 6 4
1059
Id., ibid., p. 270.
1060
Apud. CHARTIER, R. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
XVIII. Brasília: UNB, 1999, p. 13,14.
1061
Neste sentido, pode-se afirmar que a prática de leitura iurdiana trabalha na contramão do sistema escolar que
propõe eliminar este caráter místico, conforme análise feita por Bourdieu. Para este autor o sistema escolar tem
esse efeito de se contrapor ao caráter místico de leitura, desenraizando a expectativa de “profecia”, no sentido
weberiano de “resposta sistemática a todos os problemas da existência”. In: CHARTIER, R. Práticas da
Leitura, p. 241.
1062
BOURDIEU, P. Razões práticas, p. 107.
1063
CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 64.
1064
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras,
1990, p. 147.
319
Ginzburg, quando emprega o conceito de circularidade,
1065
em tal análise,
seguiu semelhante metodologia e inspiração teórica utilizada por Mikhail Bakhtin,
1066
embora
tenha estudado não um intelectual das elites, mas um simples moleiro que sabia ler, ao passo
que também empregou um conceito de cultura folclórica interposto em dois vértices:
primeiro, a oposição desta à cultura letrada ou oficial das classes dominantes; segundo,
manutenção de certas relações com a cultura dominante, filtrando-a, entretanto, de acordo
com seus próprios valores e condições de vida. É nesta dinâmica entre os níveis culturais,
chamados, por vezes, de popular e de erudito, que Ginzburg propõe um princípio que vai
além do que fora adotado por Bakhtin, pois considera as interpenetrações culturais e não
somente as oposições entre elas. Chartier comenta que Carlo Ginzburg analisa “como um
homem do povo pode pensar e utilizar os elementos intelectuais esparsos que, através dos
seus livros e da leitura que deles faz, lhe advém da cultura letrada”:
É a partir de fragmentos emprestados pela cultura erudita e livresca
que se constrói um sistema de re presentações que lhes for nece um
outro sentido, por que na sua base se encontra uma outra cultura
(...) Por detrás dos livros revolvidos por Menóchio tínhamos
individuali za do um código de leitura ; por detrás deste código, um
sólido estrato de cultura ora l. O import ante é identificar como, nas
prática s, nas representações ou nas produções, se cruzam e se
imbricam diferente s formas culturais, (...) ou seja, que entre o que
se c onvencionou classificar entre erudito e popular, há um jogo
subtil de a propriação, reempr egos, desvios, cruzamentos (...).
1 0 6 7
Semelhantemente, a leitura bíblica iurdiana tem por condição “evidências
anteriores”,
1068
uma memória dos sentidos que a sustenta, estrutura, sentidos que se
apreendem mediante um processo de desvelamento “circunscritos a determinadas condições
sócio-históricas”:
A leitura não se realiza assi m a partir de um vazio de saber es; a sua
base de ef et uação é um campo de signifi ca ção r econhecí vel, em que
o texto se introduz para significar (...) Esse s saberes anteriores
nem nascem nem habitam apenas no indivíduo isol adamente, mas
remetem, t ambém eles, à existência de um corpo sóc io-histórico de
traços discursivos que constituem o espaço de me mória. É a partir
de tal espa ço discursivo de regularização dos sentidos, então, que os
leitores proc edem à leitura.
1 0 6 9
1065
Partindo de conceitos inspirados na Antropologia Cultural, Ginzburg investiga as idéias de um moleiro da
região de Friuli, na Itália, condenado como herege pela Inquisição, no século XVI, devido às interpretações que
passou a fazer a partir da leitura de textos religiosos. Essas idéias de Menóchio entraram em confronto com a
posição escolástica da Inquisição. Desse embate, emerge o enredo transformando em análise pelo referido autor
sobre a cultura folclórica e a cultura clerical daquele período.
1066
Mikhail Bakhtin procurou analisar a cultura das classes populares na França, na década de 60, através da
obra de um letrado, tentando perceber nisto algum “conflito de classe” no plano cultural.
1067
CHARTIER, R. Práticas da leitura, p. 56, 57.
1068
Id., ibid., p. 25.
1069
PAYER, Maria Onice. Memória de leitura e meio rural. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). A leitura e os
leitores. Campinas: Pontes, 1998, p. 144.
320
Sendo a capacidade de ler uma maneira culturalmente variável de
estabelecer significado, este emerge no instante em que o leitor iurdiano absorve o sentido
“em sua própria existência”,
1070
pois “a leitura conceituada de maneira técnica como a
capacidade de reconhecer símbolos alfabéticos e também o hábito de fazê-lo com
regularidade tem a sua história intimamente relacionada com a história do mundo ‘como a
conhecemos’”.
1071
Tal operosidade se torna possível graças ao habitus, que segundo
Bourdieu
(...) é um corpo socializ ado, um corpo estr uturado, um corpo que
incorporou as estruturas imanentes de um mundo ou de um setor
particular desse mundo, de um campo, e que estrutura a percepção
desse mundo c omo a aç ão desse mundo.
1 0 7 2
Assim, tais sistemas de esquemas de “percepção, apreciação e ação”, geradas pelo habitus,
permitem tanto operar atos de reconhecimento prát ico, f undados no
mapeamento e no reconhecime nto de estímulos condicionais e
convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como
também engendrar, sem posição explícita de finalidades nem cálculo
racionais de meios, estratégias adaptadas e incessante mente
renovadas, situadas porém nos limites das constr iç ões estr utur ai s de
que são o produto e que as definem vol tou-se para a construção de
uma teoria da ação, são as estr uturas estruturadas e estrut urantes
que viabilizam a própria vida social.
1 0 7 3
Terceiro, uma apropriação “vivencial” da leitura bíblica. Este processo se
a partir da reencenação de episódios bíblicos, narrados de modo miraculoso e carregados
de força simbólica. Os fiéis são desafiados a tomar o lugar de personagens bíblicos. No mês
de maio de 2004, por exemplo, a IURD
1074
realizou a campanha sobre a “Ressurreição de
Lázaro”, uma alusão ao personagem bíblico que, conforme relato feito pelo evangelho de
João, capítulo 11, foi ressuscitado por Jesus. Assim, os pastores e obreiros auxiliares
construíram no interior do templo uma pequena tenda escura, dentro da qual os fiéis
deveriam passar como parte da encenação, enquanto os pastores liam o referido texto bíblico,
ordenando que os crentes saíssem das “trevas” da doença, da miséria, do fracasso para a
“luz” da cura, da prosperidade e da vitória. Nesta teatralização, pela leitura bíblica, os fiéis
assumem o lugar ou os papéis das personagens, objetivando a “apropriação” dos benefícios
que supostamente se lhes torna acessível. Aplicam-se com propriedade a isto as palavras de
1070
WOLFGANG, Iser. O ato da leitura: Uma teoria do efeito estético. Vol. II. São Paulo: Editora 34, 1999, p.
82.
1071
DENIPOTI, C. Op. cit., p. 14, 20.
1072
BOURDIEU, P. Razões práticas. Sobre a teoria da ação, p. 144.
1073
Id., Meditações pascalianas, p. 169.
1074
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 20 maio 2005.
321
Chartier, no sentido de que as obras, os discursos, existem quando se tornam realidades
físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra,
declamadas num palco de teatro”.
1075
Na IURD “os textos constroem representações e imagens”.
1076
Observa-se
que o papel da fala, nos rituais, “não é apenas comunicação, mas poder e sabedoria; não
consiste somente num aglomerado de palavras e de sentenças, mas tem valor ontológico”,
sendo capaz de “remodelar o ser” dos que dele participam ao promover a passagem de uma
condição para outra, a substituição de uma condição anterior.
1077
Nesta elevação simbólica a
posições de autoridade, “os fracos passam a agir como se fossem fortes”
.1078
Exemplo disso
também se pode observar por ocasião do batismo: nas instruções preparatórias são citados
recorrentemente aos neófitos textos que lhes asseguram ser “despojados” de sua condição de
pecado, de maldição e de “velha vida” para o renascimento a uma “nova vida” de posição de
“filhos de Deus”, adquirindo-se, dessa maneira, o direito de viver com todos os “privilégios”
que tal condição representa. Pelo ato das palavras, naquele momento os ritos promovem
“status”.
1079
A IURD opera num campo de leituras codificadas, de saberes populares,
promovendo, ao mesmo tempo, uma resignificação das leituras existentes no referido
campo. Essas dramatizações proporcionam também aos participantes uma saída momentânea
do presente e um reencontro com dimensões sagradas da existência, conforme estudos feitos
por Mircea Eliade.
1080
Esse tempo sagrado, segundo Eliade, é percebido pelo ser humano
como indestrutível e capaz de promover ordem. Volta-se a ele nos rituais e festas. Estes
permitem a invasão e alteração do presente por forças do passado, fazendo que as pessoas
distantes no tempo e no espaço se tornem “contemporâneas dos deuses”.
1081
E, nas práticas da
IURD se observa, por exemplo, que os chamados pontos geográficos sagrados da Terra Santa
são conectados com os “espaços sagrados” em que estão localizados os fiéis.
Ainda neste item, constata-se que nessa Igreja a leitura bíblica se torna
como que uma chave usada para abrir espaços temporais residentes no imaginário dos seus
adeptos. A participação nos ritos, mediada pela leitura da Bíblia, representa não um
mergulho nos tempos bíblicos”, como também em um imaginário moldado pela tradição
1075
CHARTIER, R. A ordem dos livros, p. 8.
1076
Id. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 377.
1077
Id., ibid., p. 127.
1078
Id., ibid., p. 202.
1079
Essas expressões são enfatizadas pelo bispo Macedo quando fala sobre o significado do batismo, em artigo
na Folha Universal, intitulado “Batismo, o ato de sepultar a carne”. In: Folha Universal, Rio de Janeiro, 08 out.
2006, p. 2.
1080
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões, p. 102,117.
1081
Id. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 313, 314.
322
católico-afro-brasileira. De acordo com Maria Isaura P. Queiroz, o imaginário pode ser
entendido como um “conjunto de representações” do qual emerge a capacidade criativa do
espírito humano de compor sínteses originais, “a partir de mitos, símbolos, imagens, sonhos e
tantos outros materiais estocados por uma determinada cultura”.
1082
Nesse sentido, as práticas
de leitura da blia tornam-se um importante elemento de produção e transmissão cultural,
pois promove um dinâmico processo de retradução e circulação de elementos pertencentes a
tempos de longa duração:
Os leitores são viajantes (...) A escrita acumula , estoca , resiste ao
tempo pelo estabelecimento de um lugar (...) A leitura não se
protege contra o desgaste do tempo; ela pouc o ou nada conserva de
suas aquisições, e cada lugar por onde ela passa é a repetição do
paraíso perdido.
1 0 8 3
Desta forma, portanto, eventos perdidos no tempo fixados pelo relato
bíblico, ligam-se existencialmente à biografia de cada iurdiano, que se apropria desses
espaços e acontecimentos, inserindo neles seus sonhos e desejos. Assim, pela leitura
ritualizada da blia, as práticas da IURD se tornam uma grande ação simbólica, em que
coletivamente se revivem experiências fundamentais, geradoras de sentido e de certeza para a
vida presente.
Quarto, uma leitura de caráter “rebelde” frente aos dogmas ou cânones
estabelecidos pelos segmentos religiosos dominantes no campo. No âmbito da IURD não
preocupação com qualquer recurso metodológico de hermenêutica ou de exegese para a
leitura que fazem da Bíblia. Assim, sem maiores preocupações com a sistematização da
teologia bíblica que ocorre pelo agrupamento de grandes blocos literários dos diferentes
livros - a prática de leitura iurdiana se dá pela fragmentação de trechos isolados das escrituras
bíblicas que priorizam personagens bíblicos descritos como portadores de uma vida próspera
e de sucesso como, são os casos de Abraão e José do Egito. Normalmente são evitadas
referências a textos que mencionam “fracasso” ou dificuldades que envolveram personagens
bíblicos, a não ser quando isso serve como argumento dos pastores para mostrar o que o
Demônio pode fazer na vida de uma pessoa que ainda não aprendeu a usar os recursos
disponibilizados pela Igreja.
A esse modelo de leitura podem ser aplicadas em paráfrase as
considerações feitas por Chartier, quando cita a temeridade demonstrada por Locke em
relação ao fato de que esses procedimentos fragmentados “quebram a continuidade
1082
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O imaginário em terra conquistada. Textos CERU, São Paulo, n. 4,
1993.
1083
CERTEAU, Michel de. Apud. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros, p. 11.
323
ininterrupta do texto”, acrescentando-se que tal “recorte pode ter implicações fundamentais
quando se trata de um texto sagrado”, por “provocar uma obliteração à coerência da palavra
de Deus”, propiciando maior facilidade a cada “seita ou partido religioso de fundar a sua
legitimidade sobre os fragmentos da Escritura que mais lhe pareçam confortáveis”.
1084
Essa
mesma temeridade, portanto, poderia paralelamente retratar a opinião do protestantismo ou
mesmo do catolicismo atuais a respeito do que vem ocorrendo nas práticas da IURD:
Basta a ele (o fiel de uma igreja qualquer) munir-se de certos
versículos das Santas Escrituras contendo palavra s e expressões de
fácil interpretação (...) para que o sistema, que os terá integra do à
doutrina ortodoxa de sua Igreja, logo os faça advoga dos poderosos e
irrefutáveis de sua opinião. Essa é a vanta gem de f rase s separadas e
da fragmentação das Escrituras em versículos que , rapidamente,
tornar-se-ão af orismos inde pendentes.
1 0 8 5
Não obstante os esforços pelo controle da leitura, as práticas da Igreja
Universal fazem com que os protestantes clássicos não apenas percebam a ineficácia de se
atingir tal objetivo no campo religioso brasileiro, como também levam-no a experimentar dos
efeitos de sua própria nese histórica, uma vez que a apropriação das práticas de leitura foi
preponderante para o desencadeamento da Reforma Protestante, no século XVI. Na ocasião,
vendo a leitura da Bíblia como o principal meio de se promover o acesso ao conhecimento da
salvação, ao liderar aquele movimento, Martinho Lutero foi enfático perante a Dieta de
Worms quando inquirido a abdicar de suas idéias reformadoras: “É impossível retratar-me, a
não ser que me provem que estou laborando em erro, pelo testemunho da Escrituras (...)
minha consciência está alicerçada na Palavra de Deus e não é honesto agir-se contra a
consciência de alguém”.
1086
Constituiria-se, a partir daí, a doutrina do “sacerdócio universal
de todos os crentes” preconizada pela Reforma, que popularizou a leitura da Bíblia por não
mais imprescindir da figura mediadora do sacerdote como o agente devidamente autorizado a
interpretar as Escrituras. Isto acabou, porém, abrindo grande precedente em relação à
interpretação que se faria do texto sagrado. Pode-se verificar as implicações deste aspecto na
formação de diferentes grupos e ramificações denominacionais que passaram a configurar o
protestantismo em diferentes lugares para onde se expandiu a partir do século XVI, o que está
em sintonia com o dinamismo que possui a leitura. Por isso mesmo não demorou para que, à
semelhança do catolicismo, as igrejas reformadas também passassem a estabelecer seus
1084
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros,, p. 18, 19.
1085
Id., ibid.
1086
NICHOLS, R. Op. cit., p. 151.
324
dogmas e cânones, que deveriam se constituir em parâmetro interpretativo das Escrituras
bíblicas, incorrendo assim também no modelo de classe sacerdotal:
O corpo de sacerdotes tem a ver diretamente com a racionalizaç ão
da r eligião e deriva o princípio de sua le gitimidade de uma teol ogia
erigida em dogma cuja val idade e perpetua çã o ele garante. (...)
Enquant o resultado da monopolização da gestão dos bens da
salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialm ente
reconhecidos como os detent ores exclusivos da compe tê ncia
específica necessária à produçã o ou à reprodução de um 'corpus'
deliberadamente organizado de conhecime ntos secretos (e, portanto,
raros), a constituição de um campo rel igioso acompanha a
desapropriação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se
transformam por esta razão em leigos (...) desti tuídos do capital
religioso (...) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação
pelo simple s fato de que a de sconhecem enquanto tal.
1 0 8 7
Ao se observar um caráter de insujeição e rebeldia da leitura nas práticas da
IURD, em relação ao modelo oficial preconizado por católicos e protestantes clássicos, pode-
se constatar que “aparentemente passiva e submissa, a leitura é, em si, inventiva e criativa”,
1088
e que também “liberta-se de todos os entraves que visam submetê-la”.
1089
A isto se
aplicam com propriedade as palavras de Chartier:
Pensar as práticas culturais em relaçã o de apropriações diferenciais
autoriza também a não considerar como totalmente eficazes e
radicalmente aculturantes os textos, as falas ou os e xemplos que
visam moldar os pensamentos e as condutas da maioria. Além disso,
essas práticas são criadoras de usos ou de representações que não
são absolut amente redutíveis às vontades dos produtore s de
discursos e de normas. O ato de leitura não pode de maneira
nenhuma ser anul ado no próprio texto, nem comportamentos vividos
nas interdiç ões e nos prece itos que pretendem regulamentá-los. A
aceitação dos modelos e das mensagens propostas opera -se por meio
dos arranjos, dos desvios, às vezes das resistênc ia s, que manifesta m
a singularida de de cada apropriação.
1 0 9 0
Assim, por mais que se queira direcionar a recepção de sentido pelos
leitores acerca do que se lê, haverá sempre o risco de uma subversão herética”
1091
parafraseando Bourdieu - na apropriação que se faz pela leitura:
A leitura é prática criadora, atividade produtora de sentidos
singula res, de significações de modo nenhum redutíveis às intenções
dos autore s de t extos ou fazedores de livros ... Abordar a leitura é,
portant o, considerar conjuntamente a irredutível liberdade dos
leitores e os c ondici onamentos que pretendem refreá-la.
1 0 9 2
1087
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 39.
1088
CHARTIER, Roger. In: CHARTIER, Roger et al. Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado
de Letras, 2000, p. 31.
1089
Michel de Certeau. In: CHARTIER, A ordem dos livros, p. 12.
1090
CHARTIER, R. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 13, 14.
1091
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 93.
1092
CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 123.
325
Chartier ressalta ainda que “uma configuração narrativa pode corresponder
a uma refiguração da própria experiência” e que é preciso “compreender na sua historicidade
as apropriações que se apoderam das configurações textuais”:
1093
Os textos não são depositados nos objetos, manuscritos ou
impressos, que o suportam como receptáculos (...) Considerar a
leitura como um ato concreto requer que qualquer proce sso de
produção de sentido, logo de inter pretação, seja encarada como
estando situado no cruzamento entre, por um lado, leitores dotados
de competências específicas, i dentificados pelas suas posições e
disposições caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro lado,
textos cujo significado se encontra sempre dependente dos
dispositivos disc ursivos e formais chamemos-lhes tipográ ficos.
1 0 9 4
Sendo as práticas, por meio das quais o leitor se apropria do texto, histórica
e socialmente determináveis, o livro está “suscetível a uma pluralidade de usos, sendo
tomado dentro de uma rede de práticas culturais e sociais que lhe sentido” afirma
Chartier, acrescentando ainda que “a leitura não é uma invariante histórica, mas um gesto,
individual ou coletivo, dependente das formas de sociabilidade, das representações, das
concepções da individualidade”.
1095
4.5 - Representações da morte nas práticas iurdianas: mudanças na geografia do
“Além”
A IURD promove significativas mudanças em relação à “geografia do
Além”, assim como nas relações entre “a sociedade dos vivos e a sociedade dos mortos”.
1096
Sobre esse assunto, três aspectos podem ser destacados: a ausência de discurso em relação à
morte, e, nesse aspecto, curiosamente, a igreja que nasceu numa antiga funerária mantém
absoluto silêncio ou indiferença, quando não, atitudes combativas, em relação a esse assunto;
o “celeste porvir” é antecipado para o “terrestre presente”, propondo-se que as benesses do
paraíso, tradicionalmente projetado pelo cristianismo para a vida futura, possa ser acessível
ao fiéis na existência terrena; antecipação das representações do inferno para o mundo
presente. As descrições feitas pela IURD do que o Demônio faz na vida das pessoas apontam
para ações que o cristianismo normalmente projetava para o mundo pós-morte. Jacques Le
Goff, quando descreve as representações do inferno no mundo medieval, cita, por exemplo,
“torturas sobre o corpo, gritos, urros, vociferações espetaculares e aterradores”,
1097
1093
Id., ibid., p. 24.
1094
Ibid., p. 25, 26.
1095
CHARTIER, R. Leitura e leitores na França do Antigo Regime, p. 173.
1096
LE GOFF, J. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, p. 63.
1097
Id., ibid., p. 67.
326
provocadas pelos demônios. Esse segmento religioso toma essas imagens projetadas para o
futuro e as antecipa, identificando sua ocorrência principalmente nos terreiros afro. As
sessões de exorcismo, feitas no templo, encarregam-se de reproduzir tais manifestações,
tornando-se momentos estratégicos para demonstração de que o diabo está antecipando
para o tempo presente, o que anteriormente se costumava projetar para o devir escatológico.
Jacques Le Goff, no texto anteriormente citado, também mostra que no
conjunto gestual medieval proposto para o cristão, caracterizava-se o gesto da “subida e o da
interiorização; uma atração do alto e interior”. Na Igreja Universal, uma inversão do fato:
as representações estão voltadas para “baixo”, para o terreno, para o plano material e para o
“exterior”, o que é demonstrado na ostentação de riquezas, saúde e prosperidade financeira.
Esse “terrestre presente” também promove uma alteração na própria escatologia cristã: a
“nova Jerusalém”, descrita como a cidade ideal, na mensagem do Apocalipse (Ap. 22),
projetada para o Além, na IURD a Jerusalém atual, geograficamente localizada na Ásia é que
tem valor simbólico, razão porque se tornou centro de peregrinação de líderes e fiéis iudianos
para a realização de seus ritos, como já observado anteriormente.
Em relação propriamente à morte, vale dizer que consiste num elemento
muito presente na cultura e na religiosidade brasileiras, ocupando, na longa duração, grande e
importante espaço na vivência da fé. O historiador Philippe Ariès, em notável pesquisa sobre
as atitudes do ser humano diante da morte, no Ocidente católico, entre a Idade Média e
meados do século XVIII, apresenta uma relação de muita proximidade entre vivos e mortos.
Usa a expressão “morte domesticada” para se referir à maneira como parentes, amigos,
irmãos de confrarias e vizinhos acompanhavam no quarto dos moribundos seus últimos
momentos. Observa também, como prática característica, a partir do século V, o costume
cristão de se enterrar os corpos dos mortos no interior das igrejas que freqüentavam ou em
cemitérios absolutamente integrados à vida da comunidade. Uma sociedade em que
coabitavam os vivos e os mortos, em que o cemitério se confunde com a igreja no coração da
cidade” – destaca.
1098
Essa prática religiosa-cultural de proximidade e inter-relação entre os
mundos dos vivos e dos mortos fincou também raízes no Brasil ao longo do período colonial.
O historiador João José dos Reis afirma que na Bahia da primeira metade do século XIX, por
exemplo, havia “uma cultura funerária com as características de raízes em Portugal e África”.
Destaca que em ambos os lugares prevalecia a idéia de que o indivíduo devia se preparar para
1098
REIS, João José dos. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 73.
327
a morte, arrumando bem a sua vida, cuidando de seus santos de devoção ou fazendo
sacrifícios a seus deuses e ancestrais:
Tanto africanos como portugueses eram minuciosos no cuidado com
os mortos (...) Em ambas as tradições aconteciam cerimônias de
despedida , vigílias durante as quais se comia e bebia com a
prese nça de sacerdotes, familiar es e membros da comunidade. Tanto
na África como em Portugal, os vivos e qua nto maior o número
destes melhor m uito podiam fazer pelos mortos, tornando sua
passage m para o a lé m mais segura, definitiva, até alegre (...). Os
mortos ganharam maior importâ ncia no catolicismo popular, ainda
impregnado de for te s componentes mágicos e pagãos.
1 0 9 9
Reis observa que os africanos mantiveram no Brasil muitas de suas
maneiras de morrer, mas sobretudo incorporaram maneiras portuguesas. Isso se deveu em
grande parte à repressão da religião africana no Brasil escravocrata, mas também à
dramaticidade ritualista dos funerais portugueses que se aparentava à dos africanos.
1100
Esse
autor também se refere à tradição de sepultamento dos corpos no interior dos templos: “Por
mais de dois mil anos tinha sido direito de ricos e pobres, senhores e escravos a sepultura no
interior dos templos”, acrescentando-se que ficavam excluídos dessa graça “só os hereges,
pagãos, excomungados, pecadores públicos, autores de crimes hediondos”.
1101
Em relação ao protestantismo que se desenvolveu no Brasil, também se
configuraram representações muitos fortes voltadas ao chamado “celeste porvir”. Para isto
dava-se grande ênfase nas prédicas à mensagem de conversão visando preparar o indivíduo
para a vida do além-pós-morte. Houve igualmente especial cuidado com o local de
sepultamento, construindo-se inclusive cemitérios próprios, em razão de conflitos com o
catolicismo local, sobretudo no século XIX, razão porque esses “cemitérios protestantes” são
até hoje encontrados, por exemplo, na capital e em cidades do interior do Estado de São
Paulo, assim como na região Sul do Brasil. Esse cuidado para com a morte, e os mortos,
decorre da herança protestante, especialmente norte-americana. Naquele contexto, não
obstante os esforços empreendidos a partir da Inglaterra por autoridades anglicanas e pastores
calvinistas visando a simplificação ritual dos funerais, acabou prevalecendo a resistência do
povo: “os cadáveres geralmente deixaram de ser enterrados no interior das igrejas, mas
permaneceram ocupando seus adros, sinal de resistência ao distanciamento entre vivos e
mortos”. Por esse motivo, na Nova Inglaterra, “no culo XVIII, a maioria dos cemitérios se
aproximou dos templos e os funerais, antes de chegarem ao cemitério, paravam na igreja
1099
Id., ibid., p. 90.
1100
Id., ibid., p. 91.
1101
Id., ibid., p. 267.
328
onde o pastor fazia um sermão fúnebre, conclamando os presentes a abandonarem seus
pecados”.
1102
Em relação às crenças afro, assim como no kardecismo, em período mais
recente, também em suas práticas fortíssimos vínculos estabelecidos entre o mundo dos
vivos e dos mortos. Através de seus rituais, acredita-se que o médium estabelece contato com
o mundo além, comunicando-se com espíritos dos que já morreram.
Sobretudo nas regiões interioranas do Brasil, a morte ainda consiste num
momento acercado de procedimentos quase que litúrgicos, que rompe a fronteira do privado
para tornar-se público: parentes, vizinhos e até estranhos têm acesso livre ao interior da casa
e ao leito do moribundo, denotando solidariedade própria dessas horas. Todos, de algum
modo, revezam-se na preparação para a morte, na preparação do corpo, no velório e no
enterro. Esse envolvimento comunitário expressa a concepção de que, embora o morto seja
da família, a morte, ao contrário, é assunto da comunidade.
A IURD, promove em suas práticas alteração destas representações. De
forma recorrente, tanto em suas reuniões como nos programas de rádio e TV, é citado o texto
bíblico de João 10:10, que diz: “O Diabo veio para matar, roubar e destruir”. A morte, a dor e
o sofrimento, situações-limite da vida humana, na cosmovisão iurdiana estão assim
diretamente associadas à atuação do Demônio. Em um depoimento ao programa de televisão
“Em que posso te ajudar?”, exibido pela TV Record, um recém-convertido à IURD enfatizou
a morte como tragédia provocada pelos demônios contra a sua família, antes de sua
conversão à Igreja:
Eu não conhecia a De us. Por isso, trabalhos de bruxaria e feitiça ria
trouxer am desgraç as cont ra a minha f amília , me fazendo per der um
bom emprego que possuía, mas principalmente, perde r minha irmã
doente no hospit al e um irmão em ac idente de carro... Em busca de
ajuda, recorri aos terr eiros para f azer trabalhos que pude ssem
desfa zer o m al que estava contra mim... Mas vi as coi sas
continuarem indo de mal a pior... Até que conheci a Igreja
Universal e tudo mudou na minha vida...
1 1 0 3
Procurando ser coerente com a teologia da prosperidade, que prega o
usufruto de saúde, riqueza, bem-estar e vida longa, a mensagem iurdiana demonstra, por esse
motivo, grande dificuldade em lidar com qualquer situação que lembre “fracasso” e a morte
representa um tipo de derrota de todos os procedimentos ritualísticos criados para conferir
aos seus fiéis o sentimento de êxito e sucesso. O posicionamento da IURD confronta um
habitus que incorpora o campo religioso brasileiro e isso pode ser observado nas próprias
1102
Id., ibid., p. 80.
1103
Em que posso te ajudar? São Paulo, Rede Record, 10 de maio 2005. Programa de TV.
329
atribuições dos pastores. Em seu regimento interno, artigo 32, que trata das funções do
pastor, não nenhuma menção à assistência às famílias enlutadas. Em outras igrejas
evangélicas é comum os pastores dirigirem ofícios fúnebres nos velórios, templos, casas de
família ou cemitérios. os pastores iurdianos, simplesmente se calam diante da morte. Em
entrevista com famílias, em Londrina, perguntando sobre os procedimentos da IURD quando
do falecimento de algum membro, os depoimentos apresentaram informações comuns:
estando ainda hospitalizado, antes de morrer, o doente, nos casos em que houve solicitação
da família, recebeu uma visita de um obreiro da Igreja, o qual orou pela cura do enfermo,
desafiando-lhe a acreditar que seria possível ocorrer um milagre. São oportunas as
observações feitas por Philippe Ariès sobre as mudanças de comportamento diante da morte
no mundo contemporâneo:
Hoje, nos hospitais, e clíni ca s em particular, não há mais
comunicação c om o mor ibundo. Ele não é ma is escutado como um
ser racional, é apenas obser vado como um caso clínico, isolado, na
medida do possível, como um mau exemplo (...) Na medida do
possíve l, ele se beneficia de um a assistência técnica mais eficaz que
a companhia cansativa de parente s e vizinhos. Mas tornou-se, ainda
que bem cuidado e por muito tempo conservado vivo, uma coisa
solitár ia e humilhada.
1 1 0 4
Após o falecimento, nos casos aqui analisados, os procedimentos fúnebres
não tiveram nenhum ritual religioso mais específico: o corpo, após liberação do hospital, foi
velado na “casa de velório” municipal; não houve o comparecimento de pastores, apenas a
presença de amigos da igreja num gesto de solidariedade.
Outra observação pode ser constatada na ausência de registro ou menção de
falecimentos de adeptos da Igreja. Examinando-se, para o desenvolvimento desta pesquisa,
centenas de exemplares da Folha Universal,o se encontrou uma nota sequer referente a
falecimento de membros da Igreja, algo que é bastante comum em outros jornais evangélicos.
Mário Justino, um ex-pastor da IURD, em depoimento que faz sobre a Igreja, em livro de sua
autoria, narra um episódio envolvendo sua mãe, que freqüentava um dos templos iurdianos
no Rio de Janeiro. Seis meses após o falecimento dela, a família teria recebido uma carta do
pastor redigida nos seguintes termos:
Prezada irmã: ultima mente temos sentido a falta de sua preciosa
prese nça nos cultos de louvores ao Divino Espírito Santo. Lembre-
se: r esisti ao diabo e ele fugirá de vós. Espero ver-te na próxima
Ceia do Senhor. Paz seja convosco. Seu esc ra vo em Cristo, Pastor
Ricardo Pelegri ni. P.S: O dízimo da irmã está atrasado em c inco
meses.
1 1 0 5
1104
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977,
p. 298, 299.
1105
JUSTINO, M. Op. cit., p. 65.
330
Igualmente os hospitais são vistos como espaços de atuação de
“concorrentes”, médicos e enfermeiros, que disputam pelos meios da ciência o controle sobre
os corpos daqueles que deveriam recorrer aos meios sobrenaturais disponibilizados pela
Igreja para a solução de seus problemas. Por isso, o co-fundador da IURD, o missionário
R.R. Soares, quando interrogado sobre a função dos médicos respondeu: Alguém uma vez
me disse, ‘mas Deus não colocou os médicos no mundo?’ Eu respondi: É verdade. Ele é tão
bom que pensou nos crentes incrédulos.”
1106
Soares apresenta sua própria experiência como
argumento:
Um dia li o l ivro 'O Nome de Jesus', de Ke nneth Hagin. Acabe i de
lê-lo no dia 2 de dezembro de 1984 e de lá par a cá nunca mais tomei
um comprimido sequer, com exceção de um antiácido que tomei
quinze dias após, numa madrugada, por causa de uma indisposição
estomacal.
1 1 0 7
Também está associado a essa mensagem de “vida abundante”,
fundamentada na teologia da prosperidade, o fato de que gastar o dinheiro com médicos e
remédios é algo profano, afinal esse recurso teria melhor utilidade se destinado às finalidades
da Igreja. Assim, nas práticas da IURD os médicos acabam desempenhando um papel
importante apenas em duas circunstâncias: para diagnosticar a doença e, posteriormente,
constatar a cura. Em relação ao primeiro caso, os profissionais da medicina servem para
demonstrar os limites da ciência, emitindo pareceres de que alguém está “desenganado” pela
medicina. Isto fica bastante evidente quando, depois de ter procurado a Igreja e recebido o
“milagre”, o fiel enfatiza em seu “testemunho” que conseguiu êxito quando “não mais havia
recursos humanos” para a solução do problema. No segundo caso, a figura do médico é
novamente utilizada como prova do “milagre alcançado”, ou seja, é comum se observar
afixados nos templos ou expostos nos programas de TV laudos ou atestados médicos
comprovando que determinado fiel não mais é portador da antiga enfermidade que o
acometia.
Outro aspecto diz respeito às representações que envolvem o cemitério.
Tido como “campo santo” ou extensão da própria igreja no Brasil colonial ou imperial
sendo por isso mesmo agregado aos templos na longa tradição do Brasil católico este
espaço passa a ser visto pela IURD como “lugar de maldição”. Para detectar a origem do mal
ou dos trabalhos de feitiços praticados contra as pessoas que recorrem aos seus templos em
busca de ajuda, a Universal emprega com freqüência os seguintes diagnósticos: “foi feito um
1106
SOARES, R. R. Como tomar posse da benção. São Paulo: Graça Editorial, 1987, p. 40.
1107
Id., ibid., p. 16.
331
trabalho espiritual com terra de cemitério”; “alguém, tomado de inveja e de maldade, pegou
terra de cemitério e jogou no quintal da sua casa ou no pátio da sua empresa” costumam
alertar os pastores. Assim, como parte de sua atividade, pastores e obreiros periodicamente
deslocam-se até aos cemitérios, especialmente à noite, para travar uma “batalha espiritual” e
desfazer os trabalhos de feitiçaria realizados naquele local contra a vida de pessoas que
passaram a freqüentar os seus templos.
Também por essas razões no túmulo de adeptos da IURD não se observa
nenhuma representação imagética que lembre, por exemplo, os costumes católicos. Por isso,
uma sepultura comum, sem inscrições lapidais e ornamentação sacra é o modelo
normalmente adotado. A ida ao cemitério no Dia de Finados, outro costume religioso
presente no contexto brasileiro, também ocorre com um propósito: entregar panfletos
evangelísticos e fazer convite para que as pessoas compareçam à Igreja. O cemitério é visto
como representação viva das mazelas realizadas por aquele que “veio para matar, roubar e
destruir”, o Diabo.
332
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Igreja Universal do Reino de Deus consiste num fenômeno
absolutamente inaugural no campo religioso brasileiro. Estabeleceu reconfigurações, criou
práticas e promoveu mudanças tão radicais no cenário religioso do país a ponto de se poder
dividi-lo em antes e depois da IURD. Ao contrário do que comumente ocorre na formação de
novas denominações, é uma Igreja que não surge de um cisma ou dissidência e nem é apenas
extensão de segmentos que migraram de outros contextos para o solo brasileiro: ela é criada,
irrompe com a força de processos históricos. “Sindicato de Mágicos” é, assim, uma expressão
que traduz bem a capacidade de um movimento de atuar eficazmente em níveis que o capital
cultural do campo permite, cujos recursos outros segmentos não tiveram a ousadia, a
coragem e nem a habilidade para operacionalizar.
Entre as características que notabilizaram as práticas iurdianas no
transcorrer das três últimas décadas no Brasil está o desenvolvimento de uma religiosidade
liminar, folclórica, interior, pessoal, que não necessita de oficialização, mais associada ao
imaginário do mundo rural que migrou para a cidade, nesse período. No contexto urbano,
marginalizada, essa cultura religiosa folclórica exerceu pressão sobre a cultura clerical,
católica ou protestante, que não soube acolhê-la ou absorvê-la. Foi a IURD, portanto, que
surgiu e passou a trabalhar com essa religiosidade, conseguindo chegar às bases, às massas
onde o protestantismo e o catolicismo institucional não conseguiram alcançar. Ela representa
um cristianismo que deu certo no contexto religioso brasileiro; obteve uma eficácia que as
outras ramificações cristãs não atingiram porque não souberam utilizar as regras do campo
nem interagir com os elementos nele constituídos.
Nos capítulos desta pesquisa, anteriormente desenvolvidos, foram
abordados aspectos que fizeram do movimento iurdiano o mais impactante fenômeno
religioso ocorrido no Brasil, nas últimas décadas. Alguns desses elementos serão pontuados,
a seguir, à guisa de considerações finais.
Primeiro, a Igreja Universal se caracteriza como um “sindicato”.
“Sindicato” é a expressão mais apropriada para identificar um movimento que emergiu do
povo, conseguiu traduzir os anseios das massas, colocar-se como uma organização paralela à
instituição religiosa hegemônica e operar habilmente suas práticas com regras coletivamente
construídas no campo. E mais: à liderança do líder carismático fundador, juntaram-se outros
magos, como agentes autônomos, igualmente livres das sanções institucionais que, pela força
333
do habitus, conseguem reproduzir estilo e semelhante carisma de seu líder principal,
conquistando com isso maior legitimidade perante o grupo ao qual dirigem suas funções.
Esse sindicato religioso conseguiu, de fato, chegar às massas. Para isso,
desenvolveu a habilidade de integrar em suas práticas configurações classicamente tidas
como paralelas, concorrentes ou opostas no interior do campo religioso, presentes nas
instituições oficiais e nos movimentos liminares. Ostentando títulos clericais de “bispos”, os
agentes iurdianos interativamente atuam como profetas autônomos de salvação ou
empresários individuais de socorro e ajuda, emergindo do povo e prestando atendimento a
fiéis que, muitas vezes, parecem configurar-se como clientes. Um jogo de imagens e
representações que transcende fronteiras e limites conceituais. Denominando-se “igreja”, a
IURD desenvolve simultaneamente práticas caracterizadas por magia, messianismo e
profetismo. Vale dizer que, desde o período colonial, a Igreja Católica institucional o
conseguiu chegar aos grandes estratos do país - o que permitiu que se desenvolvesse um
catolicismo folclórico, montado em rezas, magia, messianismos. O protestantismo, inserido
no Brasil a partir do século XIX, semelhantemente, não conseguiu penetrar nas grandes
camadas sociais, rejeitando também todo o substrato cultural configurado em solo brasileiro
por considerá-lo, à luz de sua mensagem racional, idolátrico, demoníaco. Da liminaridade à
prioridade, o movimento iurdiano percorreu um caminho inverso, promovendo a consagração
de elementos “heréticos” existentes no campo, enfatizando elementos da que o catolicismo
e protestantismo consideraram “marginais”, como são os casos do Diabo, do exorcismo, do
transe, da magia e do messianismo. Edir Macedo tornou esses assuntos prioritários: ele se
apossou deles e os trouxe para o centro das práticas da sua Igreja.
Também se tem convencionado explicar que, inicialmente organizados fora da
estrutura de igreja, os movimentos liminares, com o passar do tempo, podem cristalizar-se,
crescer e solidificar-se, para eventualmente formarem a sua própria ortodoxia. Desse modo, a
institucionalização do carisma permitirá que se constituam novos sacerdotes, os quais
sistematizarão a mensagem profética em forma de doutrina e criarão novos rituais, o que se
pode chamar, na linguagem de Bourdieu, de “banalização da profecia”. É dessa forma que
ocorre a transformação da seita em igreja, que no futuro pode ser alvo da contestação de
novos profetas. As aparentes contradições ou paradoxos vivenciados no âmbito iurdiano
emblematicamente ganham sentido e coerência a partir de regras que o campo religioso é
capaz de promover. Por isso, esse segmento passou a requerer o emprego de novos
334
parâmetros explicativos, daí a atribuição do título “sindicato de mágicos” para o
desenvolvimento da tese aqui elaborada.
O uso da representação do “sindicato”, portanto, é plausível para a
compreensão do segmento iurdiano. Primeiramente, porque esse movimento congrega
anseios de expressivas camadas sociais, o qual desenvolveu um grau de organização e, tendo
surgido com proposta profética, passou a se aproximar de uma instituição, não deixando
ocorrer, entretanto, a rotinização do carisma nem a institucionalização de suas práticas.
Operacionaliza suas práticas e representações a partir de regras do campo religioso, as quais
permitem o avanço de fronteiras convencionalmente estabelecidas para as funções dos tipos
ideais de agentes religiosos, identificados, por exemplo, por Weber. No movimento iurdiano,
os líderes - denominados pastores ou bispos - assumem para os fiéis simultaneamente
diferentes representações e cumprem funções de mago, profeta ou messias. Isso demonstra
que, na verdade, o campo religioso não opera por fronteiras estanques, por limites bem
definidos ou puros, havendo magia no que se convenciona classificar como religião clerical e
um certo grau de institucionalização em movimentos de vocação liminar.
Outro elemento que torna a IURD um sindicato religioso está na construção
coletiva do líder carismático. Nesse caso, fica evidente que não é plausível pensar o seu
carisma a partir da valorização da figura do “herói”, ou pela excepcionalidade de uma
imagem isolada. A dimensão é coletiva pela atribuição de forças sociais e históricas. O poder
que se acerca do líder baseia-se na força do grupo. Assim, as relações entre os líderes
iurdianos e seus seguidores se dão à medida que “aspirações que existiam antes dele” vêm
à tona “por causa de seus discursos, conduta exemplar ou palavra de ordem”. São “falas
exemplares” perante o grupo de seus seguidores.
1108
É o poder das regras do campo que
permite a quebra do “monopólio dos instrumentos de salvação” por pessoas simples,
tornando-as líderes com notória grife religiosa. Esses novos produtores religiosos se tornaram
possíveis, portanto, porque havia condições históricas e sociais favoráveis à sua construção.
Nesse sentido, no contexto brasileiro, criou-se uma situação que clamava pelo advento de
uma nova teodicéia, uma vez que as formas de entender e explicar a vida não mais estavam
em sintonia com as condições sociais, gerando novas demandas, as quais podiam ser
atendidas por uma palavra profética, messiânica. Nesse momento de crise e de latência do
campo, Edir Macedo surgiu como um “profeta que conseguiu dizer o que é para ser dito”,
1108
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, p. 92.
335
catalisando os elementos do campo e indicando novos caminhos para a superação da crise
estabelecida.
1109
E, por fim, em termos de mecanismos mais propriamente externos, um
“sindicato de mágicos” inserido na dimensão da cultura tornou-se também um espaço
alternativo para a busca de mudanças da realidade na qual grandes setores da sociedade
estavam imersos. Num contexto de controle e repressão política por que passava o país nas
décadas de 1960 a 1980, um segmento religioso que propõe soluções por meios não políticos,
mas espirituais, evidentemente não apresentava maiores preocupações aos órgãos
controladores de manifestações populares, até porque a mensagem iurdiana também acenava
para a possibilidade de se obter a ascensão social e prosperidade financeira em consonância
com o próprio sistema econômico vigente. Os fatores geradores da miséria e do sofrimento
não são atribuídos à dimensão política ou econômica, mas sim ao Demônio e às forças
espirituais do mal nele representadas. Dessa forma, enquanto outras modalidades sindicais
sofriam repressões, um “sindicato de mágicos” encontrou mecanismos históricos que
permitiram a propagação de sua mensagem, ainda que não deixasse de ser, mesmo que
sutilmente, uma forma de resistência, no nível da cultura: por mais que o sistema político
vigente insistisse em propagar um espírito de otimismo, o simples surgimento de um espaço
de socorro e ajuda para as massas denuncia que problemas existentes em tal contexto e
que os caminhos de natureza intra-histórica buscados para superá-los têm a preferência
popular.
Segundo, a Igreja Universal se caracteriza como um movimento de magia.
O catolicismo e o protestantismo desenvolvidos no campo religioso brasileiro empreenderam
inúmeros esforços visando proteger-se da magia, pois consideravam-na algo incompatível
com a “verdadeira religião”. Porém, ritos “mágicos” realizados pelos leigos, por profetas,
magos ou feiticeiros, situados à margem da instituição eclesial e de suas normas, nunca
deixaram de existir, pois quaisquer que tenham sido as pretensões dos clérigos, os ritos
eclesiásticos nunca foram os únicos capazes de garantir exclusiva e totalmente a
comunicação entre os devotos e as potências sagradas. Foi essa incapacidade dos ritos
clericais, para satisfazer aos pedidos dos fiéis, que contribuiu para a recorrência às práticas
mágicas liminares pelos devotos com o objetivo, por exemplo, de se “devolver a saúde a um
doente ou para desviar os malefícios de alguém mal-intencionado”,
1110
e também para o
1109
Id., ibid., p. 76.
1110
SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques ; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Op. cit. p. 423,
424.
336
surgimento de um movimento que percorreria um caminho inverso daquele adotado por
católicos e protestantes: a Igreja Universal do Reino de Deus, que se apropriou do
instrumental mágico, vindo a constituir-se num “sindicato” de sua propagação.
Com esse diferencial, a IURD estabeleceu um “divisor de águas” no campo
religioso, pois consegue não apenas chegar à matriz cultural, recuperando práticas que lhe
são próprias desde longa duração, mas também manter-se atualizada na oferta de respostas a
novos anseios propiciados pelo dinamismo do campo. Não estando presos a controle
institucional e nem à rotina litúrgica do sacerdote, os líderes iurdianos criam e recriam
permanentemente novos ritos, empregam novos símbolos para atender à demanda de seus
adeptos e com isso conseguem responder na mesma agilidade com que os dramas existenciais
e sociais também se multiplicam no mundo urbano.
Outro aspecto que caracteriza a presença da magia nessa Igreja está em sua
capacidade de reverter em seu favor aspectos que se apresentam como adversidade ou
obstáculo. Conforme visto, a IURD experimentou em sua trajetória histórica as mais variadas
formas de conflito, perseguição, ataques e denúncias, sobretudo de setores da mídia e de
outros segmentos religiosos, mas teve, em tais contextos, a capacidade de obter os maiores
êxitos de projeção e recrutamento de novos fiéis. Sua história parece fazer jus e tornar lógicas
as palavras de Edir Macedo quando declara que “a igreja é semelhante ao omelete: quanto
mais batem nela mais ela cresce”.
1111
Enquanto outros empreendimentos religiosos, surgidos
na mesma época, caíram no anonimato, a Universal superou todos os desafios, mantendo uma
capacidade mágica de arregimentação de fiéis. Em meio a uma grande crise econômica, que
leva à falência diferentes estabelecimentos comerciais ou empresariais, essa denominação
parece demonstrar imunidade frente às adversidades, avançando de forma escalonária na
ocupação de espaços cada vez maiores.
Esta pesquisa não se propôs investigar se a IURD teria êxito em contextos
sem crises, mas o oposto disto foi possível aferir: o movimento iurdiano nasceu e cresceu
num quadro social profundamente marcado por crise e se alimenta desse ingrediente.
1112
Esse
é um componente externo de seu funcionamento. A explosão urbana dos anos 1970 e 1980, a
violência, o tráfico, a globalização, que desencadeia uma extensão de problemas econômicos,
sociais e políticos, o alguns dos fatores geradores do agravamento das condições de vida.
1111
Revista Veja, São Paulo, 17 out. 1990.
1112
Uma análise sobre o crescimento da IURD em outros países, em diferentes contextos, pode ser encontrada na
obra: CORTEN, André; DOZON, Jean-Pierre; ORO, Ari Pedro (Orgs.). Igreja Universal do Reino de Deus: os
novos conquistadores da fé. Op. cit.
337
Tal quadro social evidentemente gera uma busca desenfreada por respostas mais rápidas,
pelos meios “sobrenaturais”, criando-se, então, um terreno fértil para a operosidade da magia.
Porém, mecanismos internos que garantem o funcionamento dessa
Igreja, independentemente de crises externas: um universo de crenças que concebe o Diabo
como um agente causador de permanente ameaça à vida pessoal e familiar; a prática do
exorcismo e conseqüente proteção em face do mal; a proposta de vida mais longa e feliz; a
antecipação das benesses do paraíso para o mundo presente; a construção de identidade no
âmbito de um grupo; ou então, a necessidade de se legitimar o acúmulo de dinheiro e a posse
de bens, pois como observa Max Weber, “os ricos não se contentam em serem poderosos e
felizes: querem ser assegurados que sua felicidade terrena é a recompensa celeste por sua
prática de virtudes”.
1113
Por toda a abordagem desenvolvida ao longo desta investigação
historiográfica constata-se que a IURD, evidentemente, não é apenas magia. Ela opera
eficazmente a combinação de vários elementos presentes no campo religioso brasileiro.
Desafiando os instrumentos conceituais explicativos, a alquimia iurdiana faz que o conjunto
de elementos, alguns inclusive aparentemente contraditórios, funcione com êxito e nisto
reside o seu principal segredo. Esses elementos que dão sustentação às suas práticas estão
culturalmente constituídos, daí a necessidade de se pontuar as raízes históricas de suas
práticas, como especificado, a seguir.
Terceiro, o movimento iurdiano exige novos parâmetros conceituais
explicativos. novidades, rupturas apresentadas pela Igreja Universal que definem a
vivência de novas tipologias em relação ao sagrado. Essa inovadora e emblemática
configuração religiosa no Brasil contemporâneo extrapola os instrumentos conceituais
normalmente utilizados para análise do campo religioso em suas manifestações. Desse modo,
a IURD desafia historiadores, antropólogos e sociólogos, convocando-os inclusive a rever
conceitos ou categorias de análise até então empregadas para a compreensão das expressões
de fé. A Universal, por exemplo, inovou no emprego da magia. Suas práticas quebraram
paradigmas clássicos, a saber: “a magia tem uma clientela, não se constituindo, portanto, em
“igreja”;
1114
nos procedimentos do mago algo de profundamente anti-religioso”, sendo
por isso necessário “encontrar o ponto em que se distingue”.
1115
Convencionalmente, religião
e magia também têm sido separados em relação à garantia do efeito desejado: na religião, o
1113
Apud OLIVEIRA, P. A. R. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. Op. cit., p. 100.
1114
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa, p. 76.
1115
Id., ibid., p. 75.
338
pedido feito em oração depende de a divindade aceitar ou não a solicitação; já no magismo, o
efeito só depende de o agente seguir à risca o ritual, pronunciar corretamente a fórmula:
Todas as vezes que, em vez de prostrar-se para suplicar um favor
aos céus, o age nte dito religioso exigir de um deus ou de um santo o
efeito sobrenatural pretendido, podendo por isso prometer com
segurança que o efeito buscado fatalmente se dará, esta remos diante
de um ato de magia , não de religião. Promessa de efeito garantido é
promessa de mago.
1 1 1 6
Seguindo essa proposição clássica, Antônio Flávio Pierucci, por exemplo,
mesmo admitindo que o ritual religioso contém certos componentes mágicos - fazendo que
sacerdotes ajam, às vezes, como se fossem magos, curandeiros ou exorcistas - adverte que o
procedimento adotado por alguns pesquisadores, de usar o termo hifenizado, “mágico-
religioso” para designar práticas mágicas e religiosas como um sintagma, é algo
generalizante e abusivo, que “mal disfarça a operação traiçoeira e empobrecedora de reduzir
magia e religião”. Por isso, segundo esse autor, esses dois conceitos “devem ser separados
analiticamente”:
Hoje, na pesquisa social, não dá mais par a abrir mão dos ganhos
teóricos trazidos para a distinção entre este par de conceitos, magia
e religião, e este outr o correlato, mago e sacerdote. Magia ou
religião? É fundamenta l entender os termos dessa di sjuntiva
cultural. É uma diferença que realmente conta no estudo das
sociabilidades contemporâneas. E que de resto é adequadamente a
atual rel igiosida de do povo brasileiro. E os ganhos cognit ivos ficam
ainda ma iores quando ma gia e religião são encara das da perspe ctiva
do desenvolvimento hi stórico de sua conflituosa relação na cultura
ocident al.
1 1 1 7
As práticas da Igreja Universal, entretanto, exigem que esses procedimentos
metodológico-clássicos utilizados por pesquisadores do campo religioso - que distinguem
magia de religião - sejam absolutamente revistos. Rompendo clichês, os líderes desse
segmento se tornaram empresários individuais de salvação, agentes de socorro e ajuda,
conseguindo uma aproximação das massas, fundando uma igreja, com títulos, teologia e
organização. Porém, com capacidade mágica, essa instituição não permitiu a
institucionalização da magia.
Outro elemento importante reside na prática da magia por pessoas dos mais
variados estratos sociais e econômicos, prevalecendo o elemento cultural, o qual não está
acorrentado aos trilhos daquelas respectivas clivagens e não permite o estabelecimento de um
recorte entre erudito e popular, conforme se costuma às vezes classificar. No movimento
iurdiano, a magia se tornou um caminho que perpassa todos os níveis sociais, ultrapassando
1116
Id., ibid., p. 86.
1117
PIERUCCI, A. F. Magia. Op. cit., p. 9, 10.
339
os limites convencionalmente estabelecidos entre o que é folclórico e o que é clerical,
evidenciando-se que para o elemento mágico não existem fronteiras. Nessa Igreja, magia e
instituição não se excluem, mas eficazmente andam juntas.
Essa instigação de revisões epistemológicas, reivindicadas pela IURD, faz
que se processe um movimento nos domínios do próprio saber historiográfico, possibilitando
que a historiografia mantenha o dinamismo de mudança na mesma medida com que também
mudam ou ampliam seus objetos, personagens e espectros espaço-temporais.
Quarto, a IURD realiza um dinâmico processo de apropriação e
resignificação de compósitos culturais estabelecidos no campo religioso brasileiro. Antes do
surgimento da Universal, a umbanda chegou a ser vista como a religião mais propriamente
brasileira: “Para muitos a umbanda era a religião que melhor encarnava a tradição sincrética
nacional; pensava suas raízes como plenamente brasileiras”.
1118
Mais do que qualquer outro
segmento evangélico, soube aproximar-se dos elementos culturais e operar a partir das
respectivas regras dispostas no campo. Neste aspecto, vale citar as observações de um
jornalista e líder da umbanda, na cidade do Rio de Janeiro, comentando, com um certo tom
de espanto e de denúncia, as práticas de “apropriação” feitas pela Igreja Universal:
Paradoxalme nte, essa igreja utiliza métodos e terminologias que
pelo me nos teor ic am ente são contrários a seus ensinamentos e
convicç ões, fazendo uma adaptação, tentando dar uma r oupage m a
prática s que há muitos anos são usadas por religiões de cunho
espiritualista que eles combatem.
1 1 1 9
Destacando sobretudo as terças-feiras, em que se a reunião denominada
“descarrego”, quando os pastores se vestem de branco e usam terminologias umbandistas,
esse depoimento destaca ianda que “há pouco tempo, estavam distribuindo ‘sabão de arruda’
para tirar as coisas ruins do corpo e da alma”. A inovação é evidente até mesmo para o meio
umbandista, “pois nunca eu tinha visto falar de ‘sabão de arruda’” - observa.
Nota-se que a IURD acaba se beneficiando de elementos que se propõe a
combater: ao mesmo tempo em que se opõe veementemente às crenças afro-brasileiras, por
exemplo, delas depende para a constituição de suas práticas, reeditando-as, inclusive, com
outros nomes. No simbolismo empregado nos ritos iurdianos, o uso de objetos típicos de
cultura folclórica, tais como panos coloridos, chás de sete dias, galhos de arruda molhados
1118
Id., ibid., p. 25.
1119
Palavras de Ricardo Machado. Trecho transcrito de artigo publicado na Revista Ultimato, citado na
conferência proferida por Ariovaldo Ramos, no CONGRESSO BRASILEIRO DE EVANGELIZAÇÃO, em
2003, na cidade de São Paulo. (Material em CD-ROM, disponível no acervo do Centro de Documentação e
Pesquisa Histórica CDPH, da Faculdade Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina
PR.).
340
em bacias cheias de água benta e sal aspergidos nos fiéis para que sejam libertos, o que indica
uma apropriação desse universo de uma magia popular difusa, mas muito comum nos rituais
de umbanda. O simbolismo do fogo também está presente numa relação com os rituais afro-
brasileiros. A arruda às vezes é conduzida pelo fiel para captar o mal existente em casa e nos
moradores, sendo depois levada de volta ao templo para ser queimada. Envelopes contendo
dinheiro e os pedidos dos fiéis iurdianos escritos num papel também são levados para a “terra
santa de Jerusalém”, onde são queimados ritualmente. Nos ritos de encenação praticados esse
segmento religioso entende ocorrer a vivência do Evangelho. A emoção compartilhada se
numa plenitude de sentido, num eixo “vertical” que liga os homens às potências sagradas que
o mobilizam. O mito está inextricavelmente misturado ao “rito”, cujo desenrolar desempenha
funções. E vale considerar que o mito encontra-se imerso na história e também nas
transformações inerentes à duração histórica, por isso, o seu sentido reside, antes de tudo, no
seu desempenho no presente e se torna real e eficaz quando é recriado. Com isso, modifica-se
a cada ocorrência, que a forma, as circunstâncias e os agentes nunca são exatamente os
mesmos – razões por que na IURD sofreram mutações.
Quinto, a Igreja Universal conquistou um capital simbólico decisivo no
campo religioso brasileiro: o transe. Quando são analisados os dados estatísticos de filiação
religiosa no Brasil, surge uma inevitável questão: por que a IURD escolheu o candomblé, a
umbanda e o espiritismo como principais alvos de seu ataque, considerando-se que, juntos
segundo o Censo Demográfico do IBGE de 2000 – essas expressões religiosas somam apenas
1,7 da população, enquanto que o catolicismo representa, segundo estas mesmas fontes, 73%
do cenário nacional? Esse combate às religiões afro-brasileiras parece operar, então, como
uma estratégia às avessas, ou seja, objetiva-se tomar posse de um dos principais bens
simbólicos para um grande segmento da população, que é a experiência do transe religioso,
transformando-os em um valor interno do sistema iurdiano.
um capital simbólico de crenças mediúnicas constituídas no campo e a
IURD empreendeu a conquista desse valor cultural. Na configuração religiosa do país, o
transe ocupa um papel histórico central na mediação entre os grupos étnicos e sociais
portadores, a princípio, de diferentes patrimônios culturais que entraram em contato. Mircea
Eliade
1120
utiliza o termo xamã para se referir ao mago ou ao feiticeiro que acredita, através
do estado de transe, entrar em contato com seres sobrenaturais sejam eles as almas dos
antepassados ou diferentes tipos de espíritos. Este é caso da maioria dos líderes espirituais
1120
ELIADE, Mircea. El chamanismo y las técnicas arcaicas de extasis. México: Fondo de Cultura Económica,
1994.
341
indígenas.
1121
A maior parte do trabalho do xamã consiste em efetuar curas por meio do
controle dos espíritos que provocam as doenças e, até mesmo, a morte. Durante o ritual de
cura o pa entra em transe ao receber o espírito. “É durante esse transe, enquanto está
possuído pelo espírito, que o pajé cura”.
1122
Foi também por meio do transe que deuses
africanos romperam suas linhagens e se “abrasileiraram” ao descerem nos corpos dos seus
filhos na nova terra - negros, mestiços e, finalmente, brancos; ou que índios e escravos, na
condição de divindades veneradas, puderam voltar à terra para a remissão das injustiças
sociais e habitar os mais diferentes corpos na forma de caboclos e pretos-velhos. O
pentecostalismo clássico, pela experiência do “batismo com o Espírito Santo” - evidenciado
pela capacidade de se falar em “outras línguas” reintroduziu no campo das religiões cristãs
uma relação de proximidade do indivíduo com o sagrado, mediada pelo corpo em êxtase, que
muito vinha sendo combatida em virtude da proposta de conversão racional e
desencantamento. A possibilidade de receber “na pele” o próprio espírito de Deus recupera a
experiência extática no cristianismo, das devoções folclóricas mais próximas que descartam
os intermediários e enfatizam o monoteísmo na figura do Espírito Santo. Daí a importância
do episódio de pentecostes como mito bíblico legitimador desse movimento, nomeando-o,
inclusive.
Em relação ao transe religioso, observa-se, entretanto, que na
operacionalização desses elementos a IURD promove uma ruptura com práticas do próprio
pentecostalismo: as divindades da umbanda assumiram lugar na cosmogonia do culto,
inclusive em detrimento do transe do próprio Espírito Santo. O ápice desse transe ocorre no
momento das sessões de exorcismo, com aqueles que “manifestam possessão por “espíritos
malignos”, com os quais o líder fala diretamente entrevistando-os, num “diálogo do além”.
Às vezes, o pastor não se contenta com a resposta e pergunta novamente ao demônio se ele é
o espírito mais forte entre os inúmeros que estão ocupando aquele corpo. “Quem é o mais
forte?” “Quem é o chefe?” - enfatiza. Nota-se que a língua utilizada para esta comunicação
entre o mundo terreno e o mundo do “além”, neste caso, não é mais a “dos anjos”, e sim, a
língua dos homens e de sua cultura, no vernáculo dos líderes e fiéis.
Dessa forma, a IURD pretende monopolizar a experiência do sagrado,
vivenciada no próprio corpo, característica que tradicionalmente esteve sob o controle das
religiões afro-brasileiras e do espiritismo. Com tal estratégia, o movimento iurdiano objetiva
1121
A palavra tupi-guarani que designa xamã significa pai, grafada em português como pajé.
1122
LARAIA, Roque de Barros. Religiões indígenas. Revista USP, Religiosidade no Brasil, São Paulo, n. 67, p.
9, set./nov., 2005.
342
criar uma forma de atrair fiéis ávidos pela experiência com forte apelo mágico e extático,
retirando fiéis daquelas expressões de, com a vantagem da legitimidade social conquistada
pelo campo religioso cristão. Da apropriação de certos termos da linguagem, dos ritos, dos
símbolos, produzem-se alquimias que se transformam em instrumentos de combate em favor
da constituição e do monopólio do capital simbólico disposto no campo. Quando a Universal
admitiu o transe, recriando-o de forma específica, cravando-o no centro de seu ritual mais
elaborado, as entidades puderam irromper no seu universo religioso. Mais que o transitar de
entidades, o que de fato transitou e adquiriu uma nova fórmula foi o próprio transe,
conseguindo por meio de um processo de aculturação conjugar o pluralismo religioso do
campo religioso brasileiro. Nesse sentido, a Igreja Universal combate aquilo que, em parte,
ajudou a criar.
Sexto, também, nas práticas iurdianas, um procedimento de
“desnaturação” de crenças existentes no campo. O termo “desnaturação” é utilizado por Le
Goff para se referir ao processo de luta da cultura clerical contra a cultura folclórica no
período medieval, quando “os temas folclóricos mudavam radicalmente de significado nos
seus substitutos cristãos”.
1123
Um exemplo disso pode ser observado na experiência de
“audição de vozes”, identificada pela IURD como um dos dez sintomas que caracterizam a
possessão demoníaca. A Igreja rompe com práticas da tradição cristã, católica ou pentecostal,
que classifica tal elemento como recepção de sinais ou mensagens divinas, envolvendo
geralmente místicos, monges, ou santos.
Outro exemplo de desnaturação tem relação com os deuses das crenças
afro-brasileiras, pois uma das características da teologia da batalha espiritual empregada pela
IURD está na identificação dos demônios ou forças operantes do mal nas práticas daqueles
segmentos religiosos. O livro mais impactante de Edir Macedo deixa isso bem claro ao
apresentar em seu título uma provocativa questão: Orixás, caboclos e guias: deuses ou
demônios?
Também pode ser classificada como mudança de natureza a atitude
apresentada pela Igreja Universal em relação à morte. Nas práticas adotadas por católicos,
protestantes e outras religiosidades que operam no campo religioso brasileiro, diversas
atitudes voltadas à preparação e às formas de “bem morrer”. Philippe Ariès situa na longa
duração os comportamentos preparatórios ocidentais em face da morte, destacando que entre
os séculos XI e XVI o indivíduo fazia o aprendizado da “morte de si”, numa representação
1123
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no ocidente, p. 214.
343
mais individualizada, e depois, entre os séculos XV e XVI, preparações para a morte passam
a revelar sentimentos comuns e práticas coletivas. No mundo contemporâneo, porém,
mudanças de atitudes promoveram um “novo consenso [que] exige que se esconda aquilo que
antigamente era preciso exibir e mesmo simular, o seu sofrimento”.
1124
Por isso, na
civilização ocidental, passou-se “da exaltação da morte na época romântica, começo do
século XIX, à recusa da morte hoje”. Ariès destaca alguns fatores que contribuem
diretamente para isso. Inicialmente, os “novos donos” do domínio da morte não são mais os
familiares e os religiosos, mas a equipe do hospital, médicos e enfermeiros. Depois, o local
de se morrer não é mais a residência: “a morte recuou e deixou a casa pelo hospital”; esse
espaço restrito e privativo dificulta o ajuntamento de familiares e amigos. Em seguida, o
tempo previsto de chegada da morte se tornou muito mais “imprevisível”: em meio a
modernos recursos técnicos, o moribundo não mais sente a morte chegar; o seu tempo de vida
pode ser prorrogado por aparatos que “prolongam a vida”, “a morte não chega na hora
prevista, na hora certa”, o que dificulta a realização de cerimonial preparatório de “bem
morrer”. E por fim, além do individualismo que permeia as sociedades contemporâneas,
Ariès usa a expressão “os moribundos não têm mais status” para se referir ao abandono do
costume que as sociedades tradicionais tinham de rodear o moribundo e de receber suas
comunicações até seu último suspiro.
1125
Rompendo com comportamentos culturais de longa duração em relação à
morte, a IURD se aproxima das atitudes de escamoteamento típico da sociedade urbana e
industrial, indo, inclusive, além dessa indiferença: concebe a morte, o ambiente de hospital e
o cemitério como representações do mal, elementos que procura combater em suas práticas e
discursos. Ao contrário de preparativos para o “bem morrer”, luta-se para afugentar essa
ameaça por completo, pois é vista como uma presença demoníaca, sendo preciso, portanto, o
exercício da para o permitir que prevaleça. A morte se torna, portanto, símbolo de
derrota ou fracasso que confronta diretamente a mensagem, a proposição teológica e a função
dos ritos realizados pela Igreja: assegurar vida abundante e longa aos seus fiéis na dimensão
da existência terrena.
Sétimo, essa Igreja promoveu mutações ou revoluções culturais no campo
religioso brasileiro ao inovar as práticas de leitura dablia. Mesmo recebendo identificação
de igreja evangélica ou protestante, a IURD rompe com procedimentos adotados por essas
tipologias na maneira de ler a Bíblia. Do modo tradicional de leitura pelo protestantismo - a
1124
ARIÈS, P. Op. cit., p. 149.
1125
Ibid., p. 293, 294.
344
religião do livro, que a Bíblia como um conjunto de inscrições da palavra divinamente
inspirada, cuja leitura sistemática e racional permite a conversão - pouco sobrou nas práticas
iurdianas. O biblicismo protestante - leitura pessoal das Escrituras pelo fiel como parte
fundamental de sua espiritualidade - é substituído pela insistente recitação de alguns
versículos bíblicos pelos líderes, durante as reuniões, visando a um efeito mágico: um
“ecumenismo popular negativo, única cosmologia em operação ao longo de todo o rito
francamente mágico que é ali executado”.
1126
Logo, o ato de ler iurdiano tem basicamente
uma função ritualística: os textos fundamentam a representação dos ritos, descrevendo-os e
dando a sua interpretação razão porque o maior apego ao Antigo Testamento, dada à sua
maior riqueza de simbolismos.
Ao recuperar, por meio das Escrituras Bíblicas, a dimensão das tradições
orais, como agente mágico-religioso transformador da realidade, que pode servir como
balizas para condutas rituais, a IURD estabelece maior aproximação do contexto afro-
brasileiro no qual a palavra falada também é revestida de semelhantes poderes simbólicos. É
o caso do candomblé, em que a palavra pronunciada é considerada emanação de axé,
importante mecanismo de movimentação de forças sagradas. Semelhantemente, a força da
fala, mais do que um meio privilegiado de pregação dos escritos divinos, tornou-se, na
Universal, emanação de um poder mágico. Nas sessões de cura, por exemplo, é comum o
pastor ou o bispo pedir às pessoas que fechem os olhos, enquanto ele recita versículos
bíblicos, usando termos carregados de ênfase e veementemente ordenando, “em nome de
Jesus”, que os males saiam do corpo dos enfermos. É no momento dessa “ordem verbal” que
Deus, acredita-se, opera a cura. E as pessoas que acreditam estar curadas são convidadas a
dar pública e oralmente um testemunho sobre o milagre alcançado. O mesmo uso de palavras
bíblicas com efeitos mágicos se observa nos rituais de exorcismo, tanto no momento em que
o pastor ordena que os demônios se manifestem no corpo dos fiéis, quanto no instante em que
são expulsos do corpo do endemoninhado. Nesse momento, inclusive um ato de
efervescência coletiva quando a multidão também efusivamente grita: “Sai! Sai! Ou
“Queima! Queima!”
Nessa prática de leitura, que visa a recepção do efeito mágico do texto,
pode se observar algo semelhante às atitudes que se tinham para com os “almanaques”,
1127
no
1126
MONTES, M. L. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). Op.
cit., p. 123.
1127
DUTRA, Eliana R. Freitas. O Almanaque Garnier, 1903 – 1914: ensinando a ler o Brasil, ensinando o Brasil
a ler. In: DUTRA, Eliana R. F. et al. Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras,
2000, p. 477–504. O Almanaque Garnier, lançado no Brasil em 1903, através da publicação de especialistas nas
ciências ocultas, como astrologia, por exemplo – vista como uma “ciência de desvendar o porvir” oferecia aos
345
início do século XX, os quais, segundo Bourdieu, eram vistos como “depositários de
segredos mágicos climáticos, de um saber para iniciados, com uma aura sacralizada”.
1128
Ou
ainda, algo semelhante à leitura paradigmática,
1129
identificada por Roger Chartier em
estudos que realiza sobre maneiras de ler ocorridas na Europa Ocidental, no século XVIII.
Naquele contexto também se adotavam “estilos de leitura religiosos e espirituais” que
promoviam “o acesso à verdade absoluta”,
1130
sendo responsáveis pela orientação da vida em
diferentes dimensões. De igual modo, pela “freqüentação intensa dos mesmos textos lidos e
relidos” que “molda os espíritos, habituados pelas mesmas citações”,
1131
a leitura mágica
iurdiana orienta a busca de proteção, prosperidade financeira nos negócios, saúde,
estabelecendo os ritos para guerrear e vencer o demônio. Por essa prática são criadas as
regras de comportamento, elaborados os argumentos para a entrega de “dízimos” e ofertas; é
ela que também sustentação ao poder exercido pelo líder e legitimação aos títulos que
ostenta, conferindo-lhe autoridade perante o grupo a fim de conduzi-lo.
Outra característica que se notabiliza é a prática de leitura coletiva,
1132
que
transforma a Igreja Universal numa comunidade de leitores”.
1133
Diferentemente do
protestantismo clássico, ou mesmo do pentecostalismo - cujos fiéis prezam pela leitura
individual do texto bíblico, mantendo também o hábito de conduzir a Bíblia nas mãos quando
se dirigirem aos seus cultos - na IURD, os fiéis não costumam levar a Bíblia ao templo e nem
cultivam o hábito de ler individualmente as Escrituras como regra de sua espiritualidade. O
ato de ler possui, como principal característica a prática coletiva, mediada por uma leitura em
voz alta, feita pelo pastor ou bispo dirigente da reunião. Esta condução pelo líder se de
maneira participacional: os fiéis incansavelmente respondem à incitação do pregador para
que repitam os versos bíblicos no momento em que desenvolve a sua prédica. Transliterando
Chartier, pode-se dizer que nessa Igreja a leitura coletiva
visa engajar mesmo os mais humildes, mesmo os a nalfabetos que só
podem receber o esc rito por inte rm édio de uma fala ( ...) mistura na
fé aquele s que lêem e os que ouvem. (...) Reunindo homens e
mulhe res, letrados e analfabetos, fiéis de profissões e de bairros
diferentes, os cultos [iurdianos] são um dos luga res em que se
opera, em comum, a apre ndiz agem do livro.
1 1 3 4
leitores a garantia da “exatidão incontestável das suas revelações e predições”.
1128
BOURDIEU, P. A Leitura: uma prática cultural. Debate com Roger Chartier. In: CHARTIER, R. (Org.).
Práticas da leitura, p. 241.
1129
CHARTIER, Roger. A ordem dos livros, p. 131.
1130
Id., In: Leitura, História e História da Leitura, p. 26.
1131
Id., Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 217.
1132
Id.,. A História Cultural: entre práticas e representações, p. 131.
1133
Id., ibid.
1134
Id. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, p. 101.
346
Nesse sentido, notável é também a habilidade iurdiana de conjugar
eficazmente esses antigos modos de ler com recursos ultra-modernos. Nos programas
realizados pelos pregadores radiofônicos ou televisivos, em que empregam insistente e
sistematicamente a leitura e exposição de textos bíblicos, também prevalece a forma coletiva.
Nesse sentido, o rádio e a TV não romperam necessariamente com o estilo de leitura do
passado, quando grupos de artesãos, no século XIX, por exemplo, “revezavam-se, lendo ou
ouvindo um leitor para se manterem entretidos, enquanto trabalhavam” - observa Robert
Darnton, que acrescenta:
Até hoje, muitas pessoa s tomam c onhecimento das notícia s através
da leitura de um locutor de televisão. A televisão pode ser menos
um rompimento do passado do que geralmente se supõe ( ...) para a
maioria da s pessoas através da maior parte da hist ória, os livros
tiveram mais ouvintes que leitores. Foram mais ouvidos do que
lidos.
1 1 3 5
Os meios de comunicação de massa, portanto, ampliaram o aspecto
instrumental da leitura, intensificando sua capacidade comunicacional. Como já dito ao longo
desta pesquisa, a IURD utiliza de forma intensiva recursos do rádio e TV para veiculação de
suas mensagens. Assim, ela apropriou-se de um meio capaz de não apenas instrumentalizar o
modo de ler, mas também de tornar a leitura uma prática mais familiarizada à grande parcela
da população, uma vez que é vantajosa a preferência popular pelos dispositivos de
comunicação áudio-visual no contexto brasileiro, como observa Antonio Cândido:
A maioria da população brasileira ouve rádio e vê televisão, sendo
minor itária a parc el a que lê revistas, livros ou jornais (...) o que se
observa é a maior audiência conquista da pelo r ádio e pe la televisão,
permanecendo a leit ura c ir cunscrita à queles segmentos da população
que freqüenta m a obriga ção de ler.
1 1 3 6
A IURD, nesse aspecto, mais uma vez consegue atingir com eficácia um
dos elementos que marcam a sociedade brasileira, fazendo que a leitura se torne viável
mesmo a quem não dispõe de tal habilidade lingüística, como observa Sérgio Miceli, ao dizer
que “a televisão brasileira é integrada a uma função paraescolar”, tendo como um dos fatores
para o sucesso de audiência com esta qualificação, o “alicerce do analfabetismo”.
1137
Pode-se dizer, então, que em suas práticas de leitura, a IURD promove a
vivência da mediante a reatualização de um processo histórico de longa duração, cortado
por novas técnicas ultra-modernas, que atingem a vida privada e o cotidiano. Com isso, em
tempos de novos e agressivos recursos de comunicação e expressão, a leitura
1135
DARNTON, R. História da leitura, p. 216.
1136
Apud BARZOTO, Valdir H. (Org.). Estudo da leitura. Campinas: Mercado das Letras, 1999, p. 65.
1137
Folha de S.Paulo, São Paulo, 18 set. 2005, p. E1.
347
emblematicamente resiste, sobrevive e continua a ser um elemento-chave para promover a
sedução do sagrado, retraduzindo um fertilíssimo passado cultural que faz incursões no
mundo contemporâneo.
Oitavo, um novo modo de fazer teologia nas práticas iurdianas: a
teologia do vivido. Na IURD, a despertada é avessa à teologia formal e às instituições
teológicas formadoras de um clero intelectualizado. Com isso, a religião iurdiana torna-se
prática, associada aos problemas da vida cotidiana, aos quais procura apresentar soluções
espirituais. O bispo Edir Macedo faz questão de estabelecer uma diferença entre o que
entende ser “fé e religião”: “Durante toda minha vida ministerial, tenho ensinado sobre a
diferença entre e religião; entre o que é espírito e verdade, e a simples emoção, isto é, a
diferença entre a letra que mata e o poder vivificante do espírito” ressalta Macedo.
Comentando ainda esse aspecto, afirma que:
religião é algo que está presente em toda s as civilizações,
adaptando-se do fetiche à idola tria, incorporando le ndas locais e
costumes. A religião sempre se vendeu para t odos os gostos, e
fideliza o cl iente, em alguns casos o escraviza, levando-o ao
fanatismo, que é o afastamento da reali dade. Para a religião e os
religiosos va le mui to o que pode ou não ser comprova do por
descobert as científicas. Vale muito ta mbém, o que dizem os
intelectuai s de qualquer corrente. A religião é passada de geração
em geração como tra dição e valore s históricos a se preservar.
1 1 3 8
Em relação ao que denomina “fé”, Macedo afirma: “a é uma experiência
pessoal medida pelos frutos que produz. É a verdade que liberta de maneira consciente e
inteligente. Ela vem preencher a fome da alma, que é naturalmente mística, porque viemos de
Deus. O antídoto para as religiões continua sendo uma experiência pessoal com o Espírito
Santo” – finaliza o bispo.
1139
Diferentemente do catolicismo e do protestantismo, a ênfase dada em sua
mensagem não é mais no cristocentrismo - Cristo no centro do culto e das expressões de -
mas sim, o teocentrismo - Deus no centro algo semelhante ao proposto pela espiritualidade
judaica descrita e vivenciada no Antigo Testamento. Em relação ao pentecostalismo, a ênfase
não mais recai na glossolalia como evidência do batismo com o Espírito Santo e seus
respectivos carismas que envolvem todos os fiéis; os carismas ocorrem não em forma de
experiência pessoal dos fiéis, mas numa dimensão coletiva através dos rituais.
Nono, a IURD recria práticas religiosas do campo religioso brasileiro em
relação às representações do dinheiro. Voltados à teologia da prosperidade,
os pregadores
1138
Folha Universal, Rio de Janeiro, 30 abr. 2006, p. 18.
1139
Id., ibid.
348
iurdianos não cansam de enfatizar que “é dando (dinheiro) que se recebe”, destacando
inclusive uma relação eqüitativa entre a quantia doada e a proporção do milagre desejado. O
caminho de acesso a uma vida próspera e economicamente bem-sucedida, passa
necessariamente pelo ato de ofertar. Nesse sentido, a Igreja opera de acordo com as regras do
campo, promovendo modificações em relação ao protestantismo. Maria Isaura de Queiroz,
quando aponta para um substrato religioso que configurou o catolicismo rural no Brasil,
afirma que o culto dos santos, a festa da novena, as orações têm por objetivo assegurar a boa
vontade dos seres sobrenaturais e “uma retribuição”. Desta forma, a relação religiosa básica
entre os homens e o sobrenatural é a do ut des, ou seja, dou para receber em troca”.
1140
É o
princípio da reciprocidade e da troca, observado, por exemplo, no catolicismo folclórico, com
suas promessas individuais ou coletivas aos santos. Vale notar que essa prática de oferecer
algo para se obter o socorro divino, ou o pagamento pelos serviços do feiticeiro, é também
um componente do repertório simbólico das crenças afro-brasileiras.
O protestantismo, quando de sua inserção no Brasil, trouxe consigo uma
prática diferente: o chamado “evangelho da graça”, o qual pedia nada ou quase nada em
troca. Aliás, preocupou-se mais em oferecer gratuitamente literaturas, serviços religiosos tais
como educação, atendimento em hospitais e outros projetos de cunho social. a IURD, ao
contrário, o rompe com as regras culturalmente estabelecidas no campo: enfatiza a oferta
ou o sacrifício financeiro como mediação dos serviços religiosos que presta. Ao agir com
essas regras do campo religioso brasileiro, pela denegação da alquimia da oferenda, o
segmento iurdiano acaba se protegendo e se defendendo de acusações de charlatanismo ou
exploração financeira dos fiéis.
Mas a teologia da prosperidade, surgida inicialmente nos Estados Unidos,
com pregadores e autores de auto-ajuda, também ganha evidência nas práticas iurdianas por
modificar radicalmente um habitus católico: enquanto que para o catolicismo a ascese ou
abstinência de bens é vista como preparação para salvação, na IURD se enfatiza o mundo, ou
seja, ter bens é sinal ou prova da salvação alcançada. Sendo a miséria vista como sinônimo de
atuação do Demônio na vida das pessoas e conseqüente sujeição ao pecado e ao mal; obter
prosperidade e sucesso material representa estar mais próximo de Deus ou ser pertencente ao
seu reino. Enfaticamente, os pastores proclamam que ao crente está destinado não apenas ter
um bom emprego, mas tornar-se patrão ou empregador, ser rico e não pobre.
1140
QUEIROZ, Maria Isaura P. de. O campesinato brasileiro. Petrópolis / São Paulo: Vozes / EDUNESP, 1973,
p. 94.
349
Décimo, e último item, uma inovação nas práticas iurdianas em relação
ao messianismo e ao milenarismo. A Igreja Universal realiza uma vivência da escatologia
no tempo presente. um reino de paz anunciado e trazido para a terra sob a liderança de
Edir Macedo. No âmbito do grupo iurdiano se propõe o alcance imediato de benesses
milenaristas tradicionalmente projetadas para o devir apocalíptico; promove-se a
materialização de uma esperança em relação à modificação benéfica do mundo para um
estado ideal.
E, diretamente relacionado a esse aspecto do milenarismo, no âmbito do
grupo iurdiano configura-se um tipo de messianismo localizado não mais no contexto rural, e
sim no mundo urbano. Como observado, as manifestações messiânicas que historicamente
marcaram o Brasil ocorreram em tempos de crise ou de desagregação social, constituindo-se
normalmente em mecanismos que visam a reorganização de sociedades camponesas: “quanto
mais a estrutura e a organização dessas sociedades camponesas forem frágeis, mais existem
possibilidades para que tais movimentos surjam”.
1141
Neste aspecto, vale citar Roger Bastide,
quando afirma: “Se me permitirem levar até ao extremo essa tese, da eficácia dos surtos
messiânicos, diria que o campesinato brasileiro, ao qual é recusada uma Reforma Agrária,
como que a realiza por si mesmo, sob inspiração de seus líderes carismáticos, e segundo
valores que lhe são peculiares”.
1142
A expulsão da mão-de-obra do campo, evidenciada no Brasil, sobretudo a
partir da década de 1970, possibilitou o rápido crescimento das cidades, onde contingentes
esperavam encontrar melhores condições de vida. Nas áreas marginais dos centros urbanos
“surgiram então, da noite para o dia, as favelas com todos os seus problemas nas áreas de
educação, saúde, habitação, comunicação, lazer, transporte, aumentando com isso a fome, a
marginalização, a violência e insegurança”.
1143
Formava-se, desta forma, um contexto
propício para que aflorassem representações milenaristas:
Os movimentos mil enarista s baseados em sonhos utópicos de
salvação são bastante freqüentes, sobretudo entre grupos
marginaliza dos das populações rurais brasileiras cuja vida,
normalmente difícil foi ameaçada por mudança s econômicas ou
1141
Também neste aspecto, generalizando, Eric Hobsbawm afirma que “a história dos vinte anos após 1973 é a
de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e a crise” cf. HOBSBAWM, E. A era
dos extremos: breve século XX, p. 393.
1142
BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. 5 ed. São Paulo: Difel, 1973, apud QUEIROZ, Renato da
Silva. Mobilizações sociorreligiosas: os surtos messiânico-milenaristas. Revista Usp, Religiosidades no Brasil,
n. 67, p. 133, 2006.
1143
Folha de Londrina, Londrina, 12 fev. 1976, p. 01 (Material disponível no acervo de Jornais da Biblioteca
Pública de Londrina).
350
polít icas, ou então entre grupos profundamente rel igiosos mas que
foram afa stados da igre ja institucional.
1 1 4 4
Ao migrarem para as cidades, os contingentes rurais carregaram consigo
crenças messiânicas das quais está impregnado o imaginário folclórico brasileiro. O
catolicismo ao qual estavam nominalmente vinculados, quase que na totalidade, dada a sua
liturgia burocratizada - com uma ortodoxia que tenta aprisionar o sagrado, transformando-o
de selvagem em dominado - não foi capaz de articular respostas ao nível desse imaginário
devocional e encantado. E nem tampouco o protestantismo, com seu discurso racional, teve
habilidade de fazê-lo. Foi então a IURD que se configurou como espaço de acolhimento,
apropriando-se, pelo habitus, desse imaginário da massa de pressão camponesa, apresentando
uma forma de resposta em nível cultural. Em um período de mobilidade populacional,
urbanização e aumento do mal-estar e sofrimento para grandes estratos sociais estabelecidos
sobretudo nas periferias das grandes cidades, pessoas que se encontram afastadas de suas
raízes e abandonadas à própria sorte, em meio a condições sociais adversas e sem sentido,
aderiram ao movimento iurdiano pelo fato de terem encontrado espaço para a reafirmação de
princípios e valores que o deslocamento do mundo rural para o urbano ameaçou usurpar-lhes.
Os espaços da Igreja propiciam um modo mais pessoal de contato e “algum tipo de
proteção”.
1145
Ao infundir “segurança em pessoas traumatizadas pela privação, pelas
vicissitudes e pela incerteza econômica”,
1146
a IURD exerce funções sociais e psicológicas
sobre os crentes, orientando-os quanto à conduta, proporcionando-lhes apoio emocional e
satisfazendo aspirações quanto a uma visão espiritual e mágica do mundo, no sentido de
muni-los de mecanismos de superação das crises e mazelas à que passaram a estar
submetidos. Desses se pode dizer algo semelhante ao que afirmou Pierre Bourdieu sobre
camponeses da Argélia: optaram pela “esperança mágica” por ser esta “a mira de futuro
próprio daqueles que não têm futuro”.
1147
O desenvolvimento de práticas messiânico-milenaristas no contexto urbano,
configuradas não mais no contexto rural - como tradicionalmente se denotou nos movimentos
com tais perfis faz que as fronteiras convencionalmente estabelecidas entre o que é rural e
urbano sejam rompidas, o que torna a cidade - teoricamente definida como lugar de
1144
LEVINE, R. O sertão prometido: o massacre de Canudos, p. 330.
1145
OLIVEN, Ruben G. A antropologia de grupos urbanos. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 42.
1146
Robert Levine, referindo-se à experiência vivida pelos participantes do movimento de Canudos. Cf.
LEVINE, R. O sertão prometido: massacre de Canudos, p. 321.
1147
BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais, p. 102.
351
“desencantamento” - em local de magificação do sagrado em suas expressões mais
folclóricas e encantadas.
Finalizando, de se ressaltar que o principal segredo do êxito da Igreja
Universal do Reino de Deus, em termos de projeção e constituição de um fenômeno sem
precedentes, promotor de remodelagens do campo religioso brasileiro, reside na alquimia do
conjunto. Ao fazer uma reinterpretação da teoria weberiana da religião, Pierre Bourdieu
destaca a oposição entre mágicos” e “sacerdotes”,
1148
levantando instigantes questões:
mágicos não poderiam construir comunidades? Ou seja, uma clientela da magia não poderia
evoluir na direção de práticas comunitárias, tipo igreja, sistematizando visões de mundo,
dando origem a doutrinas, gerando até mesmo um clero especialista no manuseio de ritual
apropriado? De igual modo, profetas e sacerdotes o poderiam lançar o de uma visão
mágica da vida e de seus rituais para atender as necessidades dos que a eles recorrem na
condição de “clientes”? Não poderiam também praticar atos mágicos para aumentar a
capacidade de atração de seu templo? No caso iurdiano, a resposta é emblematicamente
“sim” a todas essas questões.
A alquimia do conjunto, nas práticas da IURD, permite a combinação de
elementos tidos como opostos ou contraditórios e a recuperação de um capital simbólico
retrabalhado numa mensagem como as outras expressões religiosas contemporâneas não
conseguiram fazê-lo. É por esse aspecto emblemático, que demonstra funcionalidade, que
outras categorias do conhecimento - embora contribuam - não dão conta de explicar os
mecanismos internos e externos que engendram e fornecem sustentabilidade ao
funcionamento dessa Igreja. Assim, não obstante possuir uma história recente, as raízes de
suas práticas estão fincadas na longa duração e nisto reside o ponto de partida para a
compreensão de suas práticas. Por isso, ela não é apenas uma religião de pobres, fruto de
crises sócio-econômicas desencadeadas nas últimas cadas, como tentaram classificar os
sociólogos; não é apenas uma religião que responde aos anseios emocionais das massas,
como querem às vezes categorizar os psicólogos; não é somente fruto de um eficaz
empreendimento de marketing e bom uso de recursos midiáticos de comunicação; não é
apenas uma continuidade das crenças afro-brasileiras, como uma espécie de “versão
evangélica da macumba”, como rotularam alguns segmentos evangélicos; não é meramente
uma nova tipologia de pentecostalismo. Por tais aspectos, o avanço em busca de uma
1148
Id., A economia das trocas simbólicas, p. 79.
352
compreensão plausível do fenômeno iurdiano requer abordagem pelo viés de uma história
cultural, como destacado nesta pesquisa.
A partir de parâmetros da História Cultural aqui utilizados foi possível
perceber mais profundamente que o êxito da Igreja Universal do Reino de Deus está na
combinação de elementos produzidos como capital simbólico no campo religioso brasileiro.
Nessa igreja, magia e instituição deixam de ser elementos opostos e se tornam
complementares. Enquanto “sindicato de mágicos”, a IURD não opera apenas com a magia.
Em sua alquimia, faz a combinação de elementos que a tornam simultaneamente também
igreja, movimento profético, com caráter messiânico-milenarista. No espaço iurdiano, bispos
e profetas, magos e messias, complementam-se no exercício de sua função. O conjunto de
seus ritos agrega compósitos culturais-religiosos legados pelo protestantismo,
pentecostalismo, catolicismo folclórico, religiosidade afro, tradições judaicas. O sagrado, em
seu estado mais encantado, é transversalmente cortado pelo emprego de recursos
ultramodernos. Sofisticadas estratégias de arrecadação financeira são adotadas sem que se
perca o aspecto emblemático da economia da oferenda em atos coletivos que transfiguram as
especulações meramente mundanas. A posse e o usufruto de riquezas materiais são obtidos
com mecanismos “sobrenaturais”. A geografia do “Além” pode ser alterada. O devir
escatológico se torna presente. O messianismo também ocorre nas grandes metrópoles. A
cidade pode ser lugar de encantamentos em seu estado mais verticalizado. Enfim, a história
recente esconde raízes profundamente fincadas em substratos estabelecidos na longa duração;
a religiosidade pode ser historicamente construída, articulada a lugares sócio-econômicos e
políticos específicos, permitindo ser compreendida a partir de suas transformações no interior
das experiências vivenciadas pelos indivíduos e grupos sociais.
Portanto, nas práticas dessa Igreja, flutuações históricas criaram outros
deuses, propagados por novos agentes, seguidos por antigos e novos fiéis, que transformam o
campo religioso na mesma dimensão com que também são por ele transformados. Desse
modo, o cristianismo - que é uma religião de mistério - o revive na sua intensidade, com o
emblema do encanto, da força recriativa e da riqueza cultural historicamente estabelecidos e
perpetuados no folclórico contexto brasileiro.
353
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DOCUMENTÁRIO em vídeo gravação sobre bastidores da Igreja Universal do Reino de
Deus, feita pelo ex-pastor iurdiano Carlos Magno de Miranda e levada ao ar pela Rede Globo
de Televisão, no Jornal Nacional, em dezembro de 1995. Cópia disponível no acervo do
Centro de Documentação e Pesquisa Histórica CDPH, da Faculdade Teológica Sul
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FREITAS, Georgino Matias de. Entrevista concedida em 17 jul. 2003. Material em CD-
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Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.
João Luís M. Depoimento concedido a Wander de L. Proença, Londrina, ago. 2004.
Gravação em K7, transcrita para uso como fonte. Arquivo pessoal.
L. M. S., pastor da IURD na cidade de Londrina. Depoimento concedido a Wander de L.
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Maria A. S., membro da IURD na cidade de Londrina. Depoimento concedido a Wander de
L. Proença, out. 2004. Gravação em K7, transcrito para uso como fonte. Arquivo pessoal.
PRADO, Oswaldo, secretário executivo da Associação Evangélica Brasileira (AEVB).
Depoimento concedido a Wander de L. Proença, ago. 2004, sobre a visita que fez ao bispo
Edir Macedo na prisão, em maio de 1992. Gravação em K7, transcrito para uso como fonte.
Arquivo pessoal.
R. A., bispo da IURD em Londrina. Depoimento concedido a Wander de L. Proença,
Londrina, set. 2004. Gravação em K7, transcrita para uso como fonte. Arquivo pessoal.
STULTZ, Uzias. Entrevista concedida em 10 out. 2003. Material em CD-ROM, disponível
no acervo do Centro de Documentação e Pesquisa Histórica CDPH, da Faculdade
Teológica Sul Americana, à Rua Martinho Lutero, 277, Londrina – PR.
358
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Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 16 maio 2003. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 10 mar. 2004. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante no templo central na cidade de Londrina, 20 mar. 2004. Registro em
diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, 20 abr. 2004.
Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 22 ago. 2004. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo de Londrina, 30 ago. 2004. Registro em diário
de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, out. 2004.
Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Santo Amaro, São Paulo, 30 nov.
2004. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, set. 2004. Registro em
diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 11 nov. 2004. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observações participantes realizadas no templo da IURD em Santo Amaro, fev. 2005.
Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 27 mar. 2005. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, 20 maio 2005. Registro
em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD em Londrina, ago. 2005. Registro em
diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observação participante realizada no templo da IURD no Brás, em São Paulo, 05 mar. 2006.
Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
Observações participantes realizadas nos templos da IURD em Santo Amaro e Londrina,
mar/abr. 2006. Registro em diário de campo, catalogação e análise. Arquivo pessoal.
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