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LUCIANO DANIEL DE SOUZA
AUTORIDADE E PODER: os limites do poder temporal e
espiritual no século XIV, segundo o pensamento de
Guilherme de Ockham
Dissertação apresentada à Faculdade
de Ciências e Letras de Assis –
UNESP para obtenção do título de
Mestre em História (Área: História e
Sociedade).
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Basto
de Albuquerque
ASSIS
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Souza, Luciano Daniel de
S729a Autoridade e poder: os limites do poder temporal e espiri-
tual no século XIV, segundo o pensamento de Guilherme de
Ockham / Luciano Daniel de Souza. Assis, 2007
151 f.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Okham, Guilherme de, 1280?-1349. 2. Franciscanos. 3.
Igreja. 4. Política – História. 5. Idade Média. I. Título.
CDD 271.3
320
940.1
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LUCIANO DANIEL DE SOUZA
AUTORIDADE E PODER: os limites do poder temporal e espiritual
no século XIV segundo o pensamento de Guilherme de Ockham
Dissertação apresentada à Faculdade
de Ciências e Letras – UNESP para
obtenção do título de Mestre em
HISRIA (Área: História e
Sociedade).
Data da Aprovação: 07/02/2007
BANCA EXAMINADORA
Presidente: DR. EDUARDO BASTO DE ALBUQUERQUE – UNESP/Assis
Membros: DRA. ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES – USP/São Paulo
DR. RICARDO GIÃO BORTOLOTTI – UNESP/Assis
4
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Eduardo Basto de Albuquerque, por me orientar no desafio desta
Dissertação; sua confiança e indicações precisas foram fundamentais nesta
pesquisa. Obrigado pela amizade e atenção sempre disponível.
Aos professores Ana Paula Tavares Magalhães e Ricardo Gião Bortolotti que
me acompanharam com interesse desde a Qualificação e aceitaram participar desta
banca.
Aos companheiros de estudos de nossa linha de pesquisa na Unesp: Claudia
Neves, Elói Gomes, Fernando Cândido, Raquel Parmegiani, Vanessa Fantacussi e
Ronaldo Amaral. Unidos a princípio pelo tema da religião e depois pela amizade e
colaboração mútua.
Aos meus confrades e amigos que souberam compreender este tempo
importante e exigente para o desenvolvimento da Dissertação.
Àqueles que nutriram meu interesse pelos temas medievais e incentivaram o
desenvolvimento desta pesquisa: Frei Hermógenes Harada (por ter despertado em
mim, no tempo da graduação, a admiração e o estranhamento diante dos temas
medievais), Edson Lopes, Wagner Stefani, Josiane Nanussi, Katia.
Aos funcionários da pós-graduação, do departamento de História e das
bibliotecas de Assis e Marília que me auxiliaram neste tempo. À Capes pelo
financiamento.
5
AUTORIDADE E PODER: os limites do poder temporal e espiritual no século
XIV, segundo o pensamento de Guilherme de Ockham.
RESUMO
A dissertação tem como objetivo compreender a teoria política medieval no século
XIV, tendo como referencial as obras sobre o tema elaboradas pelo franciscano
Guilherme de Ockham (1280?-1349). A abordagem feita por nós da política medieval
do século XIV concentrou-se na pesquisa sobre a relação entre o poder espiritual
(Igreja) e o poder temporal (Reino), visando entender qual era a posição de Ockham
diante da discussão da plenitudo potestatis. Analisamos como o franciscano
interpretou os argumentos, os termos e os textos que eram utilizados para provar a
proeminência do poder espiritual sobre o poder temporal. Para ele, competia à
teologia, em primeiro lugar, sondar que tipo de poder deviam exercer os sacerdotes
dentro da sociedade cristã. Procuramos compreender o motivo que levou Ockham a
colocar a questão da pobreza evangélica das ordens mendicantes, especialmente a
posição defendida pelos franciscanos entre os temas políticos. Nas discussões
sobre o poder temporal e espiritual, Ockham defendeu posições que o aproximam
de outros teólogos do século XIV e de teorias mais antigas. Porém, sua posição
política possui elementos de originalidade que reintroduzem os princípios teológico-
cristãos no centro das discussões sobre o poder.
Palavras-chave: Ockham; teoria política medieval; franciscanismo; século XIV;
Igreja Medieval.
6
AUTHORITY AND POWER: the limits of the temporal power and the spiritual
power in the fourteenth century according William of Ockham’s ideas.
ABSTRACT
This dissertation has as objective to comprehend the medieval political theory in the
fourteenth century regarding to the work about this theme done by the Franciscan
William of Ockham (1280?–1349). In the approach that we made about the medieval
politics of the fourteenth century, we focused our research in the relation between the
spiritual power (Church) and the temporal power (Kingdon) aiming to understand
which was the Ockham’s position referring to the discussion of plenitudo postestatis.
We analyzed how the Franciscan interpreted these arguments, term and texts which
were used to prove the superiority of the spiritual power over the temporal power. He
believed it was the theology role to tell what sort of power the clergyman should exert
in the Christian society. We try to comprehend the reason that took Ockham to insert
the evangelical poverty in the beggar orders, especially in the view of the Franciscan.
In the discussions about the spiritual and the temporal power, Ockham supported the
opinions which approach from others fourteenth century theologian and more ancient
theories. Nevertheless his position has original elements which reintroduce the
theological-christian principles in the center of the discussion about the power.
Key words: Ockham, medieval political theory, Franciscan, fourteenth century,
Medieval Church.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1
DA SOLICITUDE À PLENITUDE DO PODER PAPAL ............................................. 12
1.1 Considerações iniciais ................................................................................... 13
1.2 Entre a fé e a obediência: vida de Guilherme de Ockham
e seus conflitos com os papas ................................................................................ 16
1.3 O primado apostólico e a sucessão papal ..................................................... 27
1.3.1 O primado da Igreja de Roma sobre as outras igrejas
como primeiro argumento para a plenitude do poder papal .................................... 27
1.3.2 O apóstolo Pedro e o primado papal ............................................................. 31
1.3.3 Ockham e o primado papal ............................................................................ 35
1.4 A Reforma Gregoriana: separação dos poderes e predomínio do espiritual .... 38
1.4.1 Aspectos reformadores do pontificado de Gregório VII ................................. 39
1.4.2 O Dictatus Papae ........................................................................................... 41
1.5 A contestação da teoria da translatio imperii de Inocêncio III ....................... 42
1.6 Ockham e a Donatio Constantini ................................................................... 51
1.7 A situação política e religiosa no pontificado de Bonifácio VIII ...................... 54
1.7.1 A situação interna da Igreja ........................................................................... 55
1.7.2 O reino da França, Filipe IV, o Belo (1285-1314) e o
conflito com BonifácioVIII ......................................................................................... 56
1.7.3 Bonifácio VIII e os espirituais ......................................................................... 58
1.7.4 O franciscano Jacopone de Todi e Bonifácio VIII .......................................... 60
1.7.5 A tentativa de transformar a plenitude do poder em dogma de fé
pelo papa Bonifácio VIII através bula Unam Sanctam ............................................ 61
1.7.6 A Unam Sanctam e Ockham ......................................................................... 67
1.8 A coroação e a unção dos reis como argumento para a
plenitude do poder ................................................................................................... 69
1.9 Considerações finais....................................................................................... 71
CAPÍTULO 2
GUILHERME DE OCKHAM E A POBREZA EVANGÉLICA .................................... 75
2.1 Considerações iniciais ................................................................................... 76
2.2 O retorno ao evangelho ................................................................................. 78
2.3 São Francisco de Assis: o novo cavaleiro de Cristo e a
pobreza evangélica ................................................................................................ 81
2.3.1 O trabalho e a pobreza dos franciscanos ..................................................... 88
2.3.2 Alter Christus: a interpretação de Ockham da Regra franciscana ................ 94
2.4 O abade Joaquim de Fiore ........................................................................... 98
2.4.1 Os franciscanos: sob a inspiração de Joaquim de Fiore? .......................... 100
2.5 A pobreza evangélica e o fim dos tempos: interpretações
franciscanas da escatologia, da Regra franciscana e da Igreja ........................... 103
2.5.1 Pedro de João Olivi .................................................................................... 105
2.5.2 Ubertino de Casale ..................................................................................... 110
8
2.5.3 Angelo Clareno ........................................................................................... 113
2.6 Considerações finais .................................................................................. 117
CAPÍTULO 3
O PENSAMENTO POLÍTICO DE GUILHERME DE OCKHAM
CONFRONTADO COM TEÓLOGOS DO SÉCULO XIV ....................................... 120
3.1 Considerações iniciais ................................................................................ 121
3.2 Egídio Romano: o batismo como instaurador da ordem social .................. 122
3.3 João Quidort: fortalecimento dos reinos ..................................................... 127
3.4 Marsílio de Pádua: a Igreja instituída por necessidade humana e a
serviço dos monarcas .......................................................................................... 134
3.5 A liberdade cristã como prática política ...................................................... 140
3.6 Considerações finais .................................................................................. 145
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 148
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 150
9
INTRODUÇÃO
Na Alta Idade Média, a concepção de uma sociedade regida pela fé cristã,
pensada, defendida e planejada em séculos anteriores conseguiu tornar-se, em
grande parte, uma realidade. A esta sociedade cristã se deu o nome genérico
cristandade. A intenção de unir, sob a fé, as diversas áreas da vida comum e do
indivíduo gerou contínuas divergências. Tendo peculiaridades conforme o tempo e a
localização geográfica, as divergências não se manifestaram do mesmo modo.
A fé de modo geral, não era apenas uma manifestação particular e intimista
para o homem medieval. Ela se desdobrava em estruturas coletivas e visava tornar
sacras “instituições” que articulavam a vida social. Chamamos de instituições a
política, o direito e a cultura. Por isso, a questão central que se inseria em cada uma
das instituições era definir exatamente qual era a melhor compreensão dada para
elas pela revelação e pela razão humana, ou seja, qual era, segundo a fé cristã, a
melhor forma de se organizar a política, o direito e a cultura. Neste contexto,
entendemos porque perguntar, pelo alcance dado por Cristo, ao poder espiritual
representou um tema constante entre os medievais, estando presente em diversos
textos da época.
Os textos teológico-políticos que tratam do tema, chamavam as formas
concretas que tomaram a política e a religião de poderes, nomeando
respectivamente a um de temporal e a outro de espiritual. Ainda que não houvesse
discordância quanto à nomenclatura adotada, não havia consenso quanto à
essência e finalidade de cada um dos poderes.
A falta de consenso, presente durante todo o período da cristandade, assumiu
formas características no século XIV. Foi formulado o termo plenitudo potestatis pela
tradição medieval para expressar a posição que defendida por alguns papas e
prelados para a função que os mesmos deviam exercer na cristandade. Nossa
pesquisa tem o objetivo de compreender como a plenitudo potestatis, tomando como
parâmetro a posição do franciscano Guilherme de Ockham, foi defendida e
contestada no século XIV. Situamos nossa abordagem nas discussões realizadas
pelos medievais, procurando definir a competência dos poderes espiritual e
temporal, descrevendo e analisando as principais elaborações teóricas sobre a inter-
relação entre os poderes.
10
Afirmar com certeza a causa dos eventos na história, não nos parece algo
fácil e coerente como tem sido demonstrado pelas observações feitas pela Nova
História e a história dos Annales. Assim optamos, como ponto de partida, considerar
mais a influência de certos movimentos, teólogos, reis e papas de modo conjunto na
definição sobre o que competia a cada poder a insistir em definições que privilegiem
“grandes heróis”, resultando na compreensão de que um indivíduo por si só seria
capaz de mudar uma sociedade. Os personagens históricos que são utilizados
nessa pesquisa não são interpretados como capazes de sozinhos mudarem uma
sociedade, mas participam e contribuem cada qual a seu modo nas questões
pesquisadas por nós.
Escolhemos Guilherme de Ockham como personagem principal para análise
da inter-relação entre os poderes no século XIV porque encontramos em suas obras,
de maneira completa, a dimensão que havia tomado a teoria da plenitudo potestatis.
As várias obras de Ockham nos possibilitam uma visão abrangente sobre o tema.
Entendemos que o pensamento político de Ockham é ainda pouco explorado por
causa das edições críticas terem sido publicadas recentemente e também pelo fato
da maioria das pesquisas, sobre este medieval, basearem-se na lógica ou na
chamada “navalha de Ockham”.
Como fontes desta pesquisa utilizamos as bulas papais e as dos concílios —
compostas em diversas épocas e versam sobre a função da Igreja na cristandade
, as obras político-teológicas de Ockham e de outros teólogos do período em que se
concentra esta pesquisa. Para a interpretação do pensamento de Ockham sobre a fé
e o poder temporal, utilizamos, preferencialmente, as obras chamadas de políticas,
publicadas a partir da edição crítica de H. S. Offler cotejadas com traduções em
vernáculo e outros idiomas, conforme constam nas referências bibliográficas. Outras
fontes são, ainda, as obras de contemporâneos de Ockham que trataram sobre os
limites dos poderes no gerenciamento da sociedade medieval.
Fizemos, nesta pesquisa, escolhas terminológicas que necessitam de
esclarecimentos. Utilizamos diversos nomes como sinônimos para a palavra papa —
como, por exemplo, bispo de Roma, pontífice, soberano pontífice, sucessor de
Pedro, entre outros — sem levar em conta a distinção que compreende a etimologia
e a interpretação dada a cada um dos termos.
A questão central dessa pesquisa foi chamada por alguns pesquisadores
como relação entre Igreja e Estado. Preferimos utilizar os termos poder temporal,
11
poder espiritual e respectivamente reino e Igreja por serem os termos mais
recorrentes entre os textos medievais. Entendemos que o uso do termo Igreja e
Estado, ainda que seja recorrente, pode levar a associações com sistemas de outros
períodos históricos dificultando o entendimento da dinâmica particular do período
medieval.
Outro termo que julgamos importante e que intencionalmente evitamos foi religião.
Os medievais não utilizam o termo com o sentido contemporâneo. Para eles, o
termo religião era utilizado para designar um grupo de homens ou mulheres reunidos
sobre uma regra de vida com inspiração cristã, constituindo, especialmente, o que
se chamava de ordem — como por exemplo ordem beneditina, ordem dominicana,
etc... Para manifestar a crença na existência de forças ou seres sobrenaturais, a
prática de culto interno ou externo prestado a Deus ou à divindade, o termo preferido
nas fontes utilizadas é fé. Para os medievais, o termo religião (religione) é mais
restrito do que fé.
Esta pesquisa está divida em três capítulos. No primeiro capítulo,
demonstramos e discutimos os principais momentos do desenvolvimento histórico da
concepção de poder temporal e espiritual dos papas até chegar na plenitudo
potestatis. Neste primeiro capítulo, procuramos perceber como Ockham fez a
interpretação dos conceitos, textos bíblicos e patrísticos que estavam presentes na
abordagem da posição da Igreja frente aos reis e imperadores. O tema desemboca
no envolvimento dos franciscanos na questão dos poderes pela defesa do ideal da
pobreza evangélica.
No segundo capítulo, demonstramos como surgiu a compreensão da pobreza
evangélica defendida pelos franciscanos e os motivos que levaram alguns papas a
classificarem esta pobreza como heresia. Pesquisamos, também, porque Ockham
enumerou a pobreza evanlica como um argumento contra a plenitudo potestatis .
No terceiro capítulo, discutimos as posições dos principais teóricos do século
XIV sobre o tema desta pesquisa. O objetivo é descobrir se existem e onde estão as
diferenças entre Guilherme de Ockham e seus contemporâneos, assim como
demonstrar os diversos pontos de convergência entre eles.
12
CAPÍTULO 1
DA SOLICITUDE À PLENITUDE DO PODER PAPAL
Para o honesto homem contemporâneo, a Idade Média parece ser
ao mesmo tempo e contraditoriamente a época dos intelectuais e a
época do sacrifício do intelecto, a era do supremo engajamento
político e a era da mais completa recusa do mundo. Entre as chamas
das fogueiras, as minutas dos processos, os terríveis veredictos e as
violências serenas, o viajante da história não sabe o que pensar
desses dez séculos que, bizarramente, o fascinam e o decepcionam
em igual medida: romances fabricados com imagens contrastantes,
ele pensa conhecer o nome da coisa - o eco, aliás, o deixa de
chegar a ele: a coisa chama-se “política”, pois tudo é político -, mas,
precisamente, a vida política da Idade Média parece-lhe mais opaca,
mais incompreensível, mais estranha que a de qualquer outra época
da história. Como considerar como “políticas” as querelas entre
ordens religiosas ou as rixas entre um papa e um rei, mesmo quando
este fosse maldito? A presença intensiva do fato religioso, a
realidade social da Igreja, a dimensão política do teológico, tudo isso
parece hoje excessivamente exótico para ainda poder ter um sentido
político. (LIBERA, 1998, p. 447).
13
1.1 CONSIDERÕES INICIAIS
A doutrina do poder papal, também chamado de sacerdotal ou espiritual,
provém de um longo período anterior aos séculos XIII e XIV, tempos estes nos quais
se concentra esta pesquisa. O entendimento sobre o poder temporal, chamado
também de real, terreno ou secular, encontra na Idade Média uma fundamentação
que vem do tempo dos apóstolos. Na epístola aos romanos, São Paulo afirma que:
“Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que
não venha de Deus e as que existem, foram estabelecidas por Deus.” (Carta aos
Romanos 13,1)
1
. Provindo de Deus, o poder estava ligado ao mistério e ao sagrado.
Este é o ponto de partida desta pesquisa: o poder legítimo no cristianismo medieval,
seja da forma que for — espiritual ou terreno — provém de Deus. Embora
imperadores, reis e papas discutissem a forma desta proveniência e a hierarquia
entre os poderes, todos partiam da origem divina do poder. Imperadores e papas,
reis e cardeais tinham, em suas discussões sobre o modo de governar a cristandade
(cristianitas), “instrumentos” comuns: a Sagrada Escritura, o ensinamento dos
Santos Padres e as aplicações do direito canônico e romano.
A teoria do poder do papa não subsistia sem que a origem divina de sua
função fosse demonstrada claramente. Por isso, as discussões teológicas — e que
são, ao mesmo tempo, políticas — partiam dos versículos bíblicos que sustentavam
a existência de um bispo que exercia um governo espiritual e disciplinar sobre todos
os outros bispos. A autoridade do bispo de Roma, o papa, foi estabelecida
concomitantemente à definição da importância do bispo para as igrejas.
Nos primeiros séculos do cristianismo, encontramos, na hierarquia da Igreja
2
,
a preocupação em definir a competência de cada bispo, ou seja, aquele sacerdote
designado para o cuidado de uma comunidade, num determinado espaço
geográfico. A tarefa do bispo era também zelar pelas definições e pela prática da fé.
Para zelar pela fé, os bispos e o papa perceberam a necessidade de combater as
chamadas heresias, isto é, o desvio — segundo a versão oficial — do ensinamento
cristão. As heresias quebravam a unidade que devia existir naquilo que se devia
1
Os textos bíblicos que serão citados têm como fonte A Bíblia de Jerusalém (1991).
2
Utilizamos nesta pesquisa o termo “igreja” com inicial maiúscula ou minúscula. Quando
empregamos o termo “Igreja”, referimo-nos à instituição católica de modo abrangente, sem levar em
conta as diferenças regionais, rituais ou administrativas. Quando empregamos “igreja”, referimo-nos
às igrejas de um determinado território ou reino, ou destacamos a diversidade da Igreja.
14
acreditar. Indiretamente, foram as investidas contra a fé oficial que contribuíram para
firmarem a escala de hierarquia. Com as afirmações contra as heresias, firmou-se a
sé de Roma como parâmetro em questões de consultas sobre a fé.
No século XIV, período de Ockham, já estava definido que o bispo de Roma
era quem presidia, de modo universal, a totalidade dos cristãos. Mas os primeiros
passos desta primazia foram conquistados com a oposição de vários grupos internos
da Igreja que entenderam diferentemente o mandato de Cristo a Pedro: “apascenta
minhas ovelhas.” (João 15,15).
Com a união entre o Império Romano e a fé cristã com Constantino Magno
(272-337), a defesa do que julgavam a autêntica fé cristã frente às heresias contou
com o suporte oferecido pelo imperador. Após cessar o domínio romano, os reinos
que ocuparam seu lugar, em traços gerais, continuaram oferecendo suporte para
que a hierarquia da Igreja mantivesse o controle sobre os desvios da fé. A proteção
dos reis e imperadores gerou, como conseqüência, a interferência direta nos
assuntos da Igreja. Somente na Reforma Gregoriana, com seu auge no pontificado
de Gregório VII (1073-1085), foi contestada a manipulação da Igreja pelos reis. Sem
esta posição contrária à ingerência, não seria possível uma elaboração teórica e
prática da plenitude do poder.
Para abordar o desenvolvimento da teoria da plenitude do poder,
consideramos que a Reforma Gregoriana defendeu a autonomia do poder espiritual,
abrindo, assim, a possibilidade da formulação explícita da submissão de poder
temporal.
Argumentos contrários à primazia papal, utilizados nos primeiros séculos do
cristianismo, foram retomados no século XIV quando a Igreja Ocidental quis fazer
dos reis vassalos papais. O século XIV conheceu ainda um fato diferente: a sede
papal em Avinhão. A idéia da primazia apostólica do papa, defendida pelos teólogos,
unia a sé de Roma a São Pedro e São Paulo. Argumentavam eles que o bispo
daquela cidade estava ocupando a sede que antes fora de São Pedro e São Paulo.
A transferência do papa e da administração da Igreja (cúria papal), de Roma para a
cidade de Avinhão, abriu espaço para a contestação do argumento que sustentava a
união entre a cidade de Roma — sede comumente aceita dos dois mais importantes
apóstolos — e o papa.
A mudança da sede papal gerou a possibilidade de existir, ao mesmo tempo,
mais de um papa, conforme veremos adiante nesta pesquisa. Um, estabelecido em
15
Avinhão, e outro, em Roma, pois ocupava a Cathedra Petri na direção dos fiéis. A
expressão Cathedra Petri (Cátedra de Pedro) era uma referência direta ao múnus de
ensinar com autoridade.
O papa Inocêncio III (1198-1216) justificou a liberdade da Igreja frente aos
monarcas através da interpretação de alguns acontecimentos conhecidos pelos
medievais. Aos anseios da Reforma Gregoriana, que eram alicerçados em base
moral e espiritual, Inocêncio III juntou argumentações históricas e jurídicas
defendendo que a origem do poder temporal exercido pelos imperadores e reis
dependia da concessão do poder espiritual.
A teoria da plenitudo potestatis atingiu seu cume através da bula Unam
Sanctam, de 1302, escrita pelo papa Bonifácio VIII (1294-1303), o qual, por
contraditório que possa parecer, não conseguiu exercê-la, tal como descrevia aquele
documento, em função de situações adversas dentro (e fora) da organização da
Igreja. Entretanto, a interpretação dada por ele dessa teoria ultrapassou a de outros
pontífices, o que será demonstrado neste capítulo. Contribuíram para o surgimento
das idéias contidas nessa bula, os enfrentamentos entre o papa e o rei Filipe IV, o
Belo; bem como a disputa contra os franciscanos, os quais, com linguagem
semelhante à do abade Joaquim de Fiore (1135-1202), falavam de um “novo tempo
e de uma nova Igreja”.
Este capítulo foi construído com base nas seguintes questões orientativas,
observando, sempre, a interpretação dada aos temas por Guilherme de Ockham:
Qual era o ponto em que se situava, nos séculos XIII-XIV, a doutrina da plenitudo
potestatis? Como foi desenvolvida a idéia da plenitude dos poderes em seus
momentos principais durante os séculos? Como aconteceu durante os séculos
iniciais do cristianismo a supremacia do bispo de Roma sobre os outros bispos?
16
1.2 ENTRE A FÉ E A OBEDIÊNCIA: VIDA DE GUILHERME DE OCKHAM E SEUS
CONFLITOS COM OS PAPAS
Guilherme de Ockham nasceu por volta de 1280, no vilarejo homônimo,
pertencente ao condado de Surrey na Inglaterra. É provável que tenha entrado na
ordem franciscana em 1306, data em que consta seu nome entre um dos
franciscanos ordenados subdiáconos na igreja de St. Mary em Southward. Entrou
para a ordem franciscana no momento em que se acirrava um conflito interno entre
os espirituais e a comunidade. Supõe-se que tenha chegado para estudar em Oxford
no ano de 1307 (GHISALBERTI, 1997, p.15-17).
Oxford era a terceira maior universidade medieval, e desenvolveu-se nesta
cidade em detrimento de outros lugares da Inglaterra. Era administrada por um
representante escolhido pelo bispo de Lincoln, chamado de chanceler. Os papas
consideravam a universidade um importante local de preparação de seus teólogos,
daí preocuparem-se com as idéias defendidas em Oxford (ULLMANN, 2000, p.109-
111).
Um testemunho datado entre 1258 a 1261, escrito por Tomás de Eccleston
(2004, p. 1308), narra o início da ordem franciscana em Oxford. Os franciscanos
foram recebidos cordialmente em Oxford por Roberto le Mercer, que alugou uma
casa para eles. Através de doações, os franciscanos conseguiram obter um terreno
e uma casa que servia para receber aqueles que pretendiam entrar na ordem
franciscana. Esta notícia confirma que em Oxford existia uma casa preparatória para
os franciscanos. Mas a casa em Oxford não era uma casa comum, era chamada de
studium. O studium era a própria casa onde se estudava a teologia, como também
onde havia a atividade de estudar. Tomás de Eccleston (2004, p. 1326-1335)
testemunha que a ordem franciscana na Inglaterra primava pela dedicação aos
estudos, tornando respeitados os studium de Londres, Cambridge, Oxford e
Cantuária. Ele deixou uma lista contendo mais de 70 nomes de professores somente
em Oxford, o que demonstra que a atividade de ensino e estudo dos franciscanos foi
17
constante e intensa. Alguns franciscanos foram chanceleres da universidade de
Oxford.
É infundada a tradição que defendeu que Ockham teria sido discípulo de
outro filósofo franciscano chamado Duns Scotus (1208-1326). Baudry (1949)
pesquisou sobre o assunto e concluiu que essa é uma tradição tardia, apresentada
no século XVI. Ghisalberti (1997, p.16), bem como a maioria dos pesquisadores
sobre Ockham, no momento, aceitam que ele não foi discípulo (aluno) de Duns
Scotus.
Guilherme de Ockham permaneceu em Oxford até 1324. A tradição lhe
chamou de Inceptor Venerabilis, fazendo alusão ao fato de que ele estava preparado
para exercer suas atividades como mestre em teologia, mas não recebeu a
autorização oficial. Alguns estudos de Brampton defendem que ele tenha se tornado
doutor (doctor) em teologia, ou seja, atingido o mais alto grau dos estudos em
teologia. Na linguagem medieval doutor e mestre coincidem como grau máximo em
teologia, aparecendo nos estudos de Brampton mestre como sinônimo de doutor.
Brampton apóia-se em documentos em que Ockham se atribui o título de mestre e
nos Septem Quodlibeta escritas por ele. Uma quodlibeta reunia debates entre
mestre e alunos, e sua escrita era reservada aos mestres. Segundo Brampton
(1963, p. 53-59), Ockham não faria o texto Septem Quodlibeta caso não fosse um
mestre. Brampton defende que Ockham teria conseguido o título de mestre entre
1324 e 1328, quando residiu em uma escola dos franciscanos, ensinando,
debatendo e compondo os Quodlibeta. Apesar do autor citado discordar, a maior
parte das pesquisas defende que Ockham não foi doutor (doctor) ou mestre em
teologia, tendo recebido na universidade o título de magister in sacra pagina – em
tradução livre: mestre em sagradas escrituras (BAUDRY, 1949, p. 82-85;
CAMASTRA, 2002, p. 7; MÜLLER, 1999, p. 88).
Os estudos, nas universidades medievais, prescreviam uma formação de 8
anos antes de poder se comentar as sentenças dos quatro livros de Pedro
Lombardo (1100-1160). Segundo o esquema da universidade de Paris, de onde
proveio grande parte dos professores de Oxford, o teólogo deveria totalizar um
período de 14 anos de formação para atingir o grau de doutor (doctor). A
universidade de Paris reservava o título de doutor somente aos teólogos, enquanto a
posição máxima alcançada por um filósofo era a de mestre em artes ou
18
simplesmente mestre (magister artium). Em Oxford, no tempo de Ockham, a
denominação parece ser usada indistintamente, uma vez que os teólogos que
atingiam a maior titulação eram chamados de mestres (ULLMANN, 2000, p.169-
170).
Várias obras foram escritas por Ockham durante o período em que ele esteve
em Oxford. Estas obras tratam de diversos temas nas áreas da filosofia e da
teologia. Ele mostra uma predileção pela pesquisa de questões da lógica. O
destaque de seus trabalhos com a lógica está especialmente na posição que tomou
na polêmica da questão dos universais. O próprio Ockham descreve o motivo que o
levou a ocupar-se da lógica com tanto afinco:
Com efeito, a lógica é, dentre todas as artes, o instrumento mais
apto, aquele sem o que nenhuma ciência pode ser perfeitamente
conhecida; [uma arte] que não é consumida pelo uso freqüente, à
maneira dos instrumentos materiais, mas que, pelo exercício
diligente de qualquer outra ciência, recebe um incremento contínuo.
De fato, assim como o artesão que carece de um conhecimento
perfeito do seu instrumento, usando-o, adquire um conhecimento
maior, assim também o instruído nos sólidos princípios da lógica,
quando se dedica com empenho às outras ciências, adquire
simultaneamente uma perícia maior nesta arte. Assim, considero que
o dito vulgar “A arte lógica é uma arte frágil” aplica-se somente
àqueles que negligenciam o estudo da sapiência. (OCKHAM, 1999e,
p.117).
A vida de Ockham em Oxford e na ordem franciscana alterou-se em 1323, em
função de denúncia de seu ex-chanceler da universidade ao papa João XXII (1316-
1334). Jacques Duèse, cardeal do Porto, fora escolhido e eleito papa com o nome
de João XXII, substituindo Clemente V (1305-1314). A administração da Igreja pelo
papa João XXII foi bastante conflituosa. A demora de dois anos e três meses na
escolha do papa, entre os anos de 1314 a 1316, servira para aumentar a
instabilidade do Sacro Império Romano-Germânico. Segundo G. Mollat (1949, p.
45), a análise pormenorizada dos atos registrados da Santa Sé em Avinhão (em
francês Avignon) demonstra que João XXII pode, com razão, ser chamado de
grande jurista e administrador: centralizou a administração da Igreja, cortou
19
despesas e aumentou a influência da Igreja junto aos reinos. Mas G. Mollat (1949, p.
46) aponta que o modo de agir de João XXII abriu a possibilidade de que as
preocupações com o “espírito do mundo” fizessem negligenciar o cuidado das
“almas”. O pontificado de João XXII foi contestado politicamente pelos conflitos de
sucessão do Sacro Império Romano-Germânico.
Com a morte de Henrique VII, chamado de Henrique de Luxemburgo em
1313, surgiu uma disputa pela sucessão entre Luís de Wittelsbach, chamado
também de Ludovico ou Luís IV da Baviera (1283-1347) e Frederico de Habsburgo,
chamado também Frederico, o Formoso, da Áustria. Os príncipes eleitores se
dividiram e cinco apoiaram Luís IV e dois apoiaram Frederico de Habsburgo. Os
dois foram coroados em 1314. Não havia uma lei específica que dava direito ao
trono àquele que obtivesse a maioria dos votos. Para alcançarem a legitimidade,
ambos queriam um posicionamento do papa, aprovando um ou outro como
imperador do Sacro Império Romano-Germânico. O papa, a princípio, queria manter
a neutralidade, mas, diante do confronto entre Luís IV e Frederico de Habsburgo,
reclamou para si o direito de decidir a eleição. O papa recordava aos reis em
confronto, que cabia a ele confirmar a eleição do imperador. O imperador que fosse
confirmado por ele deveria aceitar a autonomia do papa como governante dos
territórios pontifícios na Ilia, conhecidos como Patrimônio de Pedro
3
.
Os confrontos entre Frederico de Habsburgo e Luís IV aconteceram desde
1317, mas se tornaram mais violentos entre 1320 e 1322. Luís IV, em 1322,
derrotou Frederico de Habsburgo fazendo-o seu prisioneiro. Logo após, os príncipes
confirmaram Luís IV como imperador. O papa não reconheceu a eleição e a
confirmação de Luís IV. Segundo Garcia-Villoslada (1988, v. 2, p.78), o papa
3
Os papas na Idade Média participavam de uma realidade dupla: eram monarcas (poder temporal),
nos territórios pontifícios e chefes da Igreja (poder espiritual) espalhada nos territórios pontifícios e
nos lugares onde os cristãos estavam presentes. Nos territórios pontifícios, eles possuíam o poder
temporal e o exerciam de forma direta ou através de representantes. Não era sob o aspecto do
governo temporal do papa exercido nos estados pontifícios que se desenvolveram as críticas à
plenitude do poder. A tese a que se contrapõem os adversários da plenitude do poder era a que
estendia o governo temporal do papa para todo o mundo e não só para os territórios pontifícios.
Alguns teólogos e juristas da Idade Média contestaram a suposta origem dos estados ponticios.
Outras vezes, contestaram não a origem dos estados pontifícios, mas as idéias de domínio universal
que partiam dos mesmos argumentos que sustentavam a origem dos estados pontifícios. Não era
uma preocupação grande por partes dos pensadores medievais que a Igreja tivesse ou não
territórios, mas prevalecia a preocupação com a “autonomia” dos poderes e que o papa não
ambicionasse a posse direta ou indireta de todos os reinos.
20
possivelmente tinha intenção de prolongar a vacância do império para continuar
administrando-o.
Luís IV, da Baviera, não esperou a confirmação de sua vitória pelo papa.
Autonomeou-se rei dos romanos (imperador) e escolheu um administrador para a
Itália, o que contrariava explicitamente as intenções do papa. O papa pediu uma
retratação de Luís IV, pois este havia escolhido, sem o consentimento papal, um
administrador para a Itália. Mas este não o fez.
O confronto entre os dois assumiu proporções maiores: Luís IV declarou-se
súdito da Igreja, afirmando que a venerava como mãe e que era fiel aos seus
deveres de cristão. Mostrou reverência ao papa, mas lhe suplicava que lhe desse o
que era de direito: a confirmação como imperador. O papa preferiu puni-lo com a
excomunhão (GARCIA-VILLOSLADA, 1987, v. 3, p. 79-80). Luís IV, em resposta ao
papa João XXII, acusou-o pela heresia contida na Constituição Cum inter nonnullos,
de 12 de novembro de 1323, sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos, e
publicada diretamente contra os franciscanos (DENZINGER, 1996, p. 508-510). Ele
acusou publicamente o papa de agir como um juiz injusto, não lhe confirmando o
que era de direito e que a ganância de João XXII mergulhava os reinos em guerras.
Luís IV julgou que, com o argumento de heresia, podia depor o papa; por isso, ele
pede a convocação de um concílio geral da Igreja para depor o papa herege. Como
reação à atitude de Luís IV, João XXII ameaçou com a excomunhão todos que o
apoiassem e declarou-o interditado para exercer tanto a função de imperador, como
a de rei. Como Luís IV julgara João XXII um herege, escolheu como papa um
franciscano, sob o nome de Nicolau V (1328-1330). Em Roma, o anti-papa Nicolau
V, coroou Luís, o Bávaro, imperador.
O papa João XXII estava tamm em litígio com os franciscanos. O problema
com os franciscanos foi motivado pelas discussões sobre a pobreza de Cristo e a
interpretação da Regra aprovada em 1223 pelo papa Honório III (1216 – 1227). As
primeiras ações de João XXII contra os franciscanos foram com as bulas Sancta
Romana Ecclesia, de 30 de dezembro de 1317, e Gloriosam Ecclesiam, de 23 de
janeiro de 1318. Nestas bulas, o papa condenou os chamados valdenses e a
dissidência dos franciscanos chamada de Fraticelli ou “Pobres Eremitas” e não os
autorizava a existirem como agremiação aceita pela Igreja. A linguagem das duas
igrejas, uma carnal e outra espiritual, que segundo o papa, os Fraticelli usavam, foi
condenada juntamente com as afirmações dos valdenses, que colocavam em
21
dúvida a função e ministério do sacerdote católico (DENZINGER, 1996, p. 504-507).
O papa, diante da resposta hostil dos Fraticelli e dos franciscanos sobre a questão
da pobreza de Cristo, lançou em 1322 outras duas bulas: Quia nonnumquam, em
março, e Ad conditorem canonum, em dezembro. Na primeira bula afirmava que
Cristo e os apóstolos, como chefes da Igreja, tinham propriedades, mas
individualmente podiam renunciar a elas. Os franciscanos, descontentes,
manifestaram-se novamente. Na segunda bula, em repressão à posição
franciscana, o papa devolvia a posse de todos os bens que os franciscanos
utilizavam aos próprios frades. Tais bens, conforme o direito, antes pertenciam ao
papa e à cúria romana. Esta devolução objetivava demonstrar a contradição dos
franciscanos. Se Cristo viveu a pobreza absoluta, o que o papa João XXII negava,
os franciscanos não a viviam, pois tinham bens. Foi uma manobra que deixou os
franciscanos defensores da pobreza absoluta ainda mais descontentes com os
procedimentos do papa.
João XXII, em 12 de novembro de 1323, publicou a bula Cum inter nonnullos
(DENZINGER, 1996, p. 508-511). Nela, ele demonstrou claramente sua posição
frente à questão da pobreza. Declarou que é errôneo e herético afirmar que Cristo e
seus apóstolos não possuíram nada, nem em caráter privado ou em comum.
Afirmou ainda que Cristo e os apóstolos tinham o direito de comprar, vender e doar.
Com esta bula, os frades que discutiam com o papa, em Avinhão, a questão da
pobreza procurando uma solução para a situação, passavam a ser tidos como
hereges. Os franciscanos partidários da absoluta pobreza de Cristo e dos apóstolos
ou se submetiam à bula ou deveriam enfrentar a sorte reservada aos hereges.
Em 10 de novembro de 1324, nova bula foi lançada: Quia quorundam
(KILCULLEN; SCOTT, 2006a). João XXII condenava, na Quia quorundam, a
tentativa de distinção entre chave de poder, relacionada à questão administrativa, e
chave de ciência, sobre a fé e os costumes. Em 1326, o papa condenou a obra
Postilla super Apocalypsim, do franciscano Pedro de João Olivi (1248-1298).
O líder da oposição ao papa João XXII, na questão da pobreza franciscana,
foi o teólogo e ministro geral da ordem franciscana, Miguel de Cesena (1270-1342).
Ele afirmou que o ensinamento do papa era falso, sendo a pobreza de Cristo
absoluta. O papa o convocou a Avinhão para que se explicasse. Em 1327 chegou à
Avinhão Miguel de Cesena para defender os franciscanos junto ao papa.
22
Até o ano de 1324 não se encontra documentado nenhum envolvimento
direto de Guilherme de Ockham com o papa João XXII, seja no caso de Luís IV ou
da pobreza absoluta de Cristo. A influência de Miguel de Cesena é um fator
importante sobre a posição que Ockham tomou perante o papa João XXII. Não
entendemos com a afirmação anterior que antes de Cesena, Ockham não tivesse
uma posição perante as questões políticas e religiosas que movimentavam o seu
tempo, mas que o envolvimento se tornou decisivo com a chegada de Cesena em
1327.
A influência de Miguel de Cesena é um fator importante sobre a posição que
Ockham tomou perante o papa João XXII. Até o ano de 1324, não se encontra
documentado nenhum envolvimento direto de Guilherme de Ockham com o papa
João XXII, seja no caso de Luís IV ou no da pobreza absoluta de Cristo. Não
entendemos com a afirmação anterior que antes de Cesena, Ockham não tivesse
uma posição perante as questões políticas e religiosas que movimentavam o seu
tempo, mas que o envolvimento se tornou decisivo com a chegada de Cesena em
1327.
Como já visto, Ockham estava afastado de Oxford por suspeita de heresia
em 1324. Ele fora denunciado por um ex-chanceler da universidade de Oxford,
chamado João Lutterrell. Foram extraídas 51 teses de seu Comentário às
Sentenças e submetidas a uma comissão especial. Segundo descrevem as
pesquisas de Ghisalberti (1997, p. 19) e Baudry (1949, p.100), a condenação
explícita de suas teses nunca foi pronunciada pela citada comissão e confirmada
pelo papa.
A condenação de Ockham aconteceu por causa dos escritos políticos, após
seu envolvimento na sucessão do Império e na questão da pobreza de Cristo e dos
apóstolos. Ockham estava em Avinhão, aguardando ser chamado para responder à
acusação feita contra ele. A polêmica entre o papa e os franciscanos sobre a
pobreza de Cristo se acirrava cada vez mais. Miguel de Cesena, quando vai para
Avinhão, em 1327, para defender os franciscanos junto ao papa, passou a morar no
mesmo convento que Ockham. Ambos, acreditando nos mesmos argumentos,
defenderam conjuntamente a pobreza franciscana, afirmando ser ela a única
imitação legítima da pobreza de Cristo. Porém, percebendo que o papa estava
prestes a condená-los e prendê-los; em 1328, eles fugiram e pediram proteção a
Luís IV da Baviera. Ockham passa a residir em Munique.
23
Os franciscanos que defendiam a pobreza absoluta de Cristo e dos apóstolos
perceberam que o papa estava prestes a condená-los e prendê-los em Avinhão.
Não restando mais argumentos, Ockham fugiu com Miguel de Cesena pedindo
proteção a Luís IV da Baviera. Após a fuga em 1328, Ockham residiu em Munique,
provavelmente no convento franciscano, até sua morte entre 1347 e 1349. Em
Munique, ele compôs a maioria dos textos que demonstram sua posição sobre a
plenitudo potestatis que o papa João XXII e outros papas reivindicavam como algo
concedido por Cristo ao seu vigário na terra.
Nova reprovação aos franciscanos surgiu em 1329 com o documento papal
chamado Quia vir reprobus. O nome de Miguel de Cesena aparece nas primeiras
linhas, sendo condenado por heresia, condenação que se estendia àqueles que
partilhavam de suas idéias sobre a pobreza de Cristo (KILCULLEN; SCOTT,
2006b).
O papa João XXII manteve uma administração sempre conflituosa. Em 1327
condenou a Marsílio de Pádua (1280-1342/1352?). Em 1329 condenou o teólogo
Mestre Eckhart (1260-1328) com a bula In agro dominico. Foi também o papa que
canonizou, em 1323, Santo Tomás de Aquino (1224/1225?-1274).
A sorte de Ockham e dos franciscanos dissidentes, por causa da pobreza de
Cristo e da pobreza franciscana, não se modificou no pontificado de Benedito XII
(1334-1342). Benedito XII não só reafirmou a condenação aos franciscanos dada
por João XXII como instigou Luís IV a não dar mais proteção a hereges que
perseguiam a Igreja. A nova condenação aos franciscanos rebeldes aconteceu com
a bula Redemptor Noster, de 26 de novembro de 1336. Mas em nada resultou a
instigação de Benedito XII. Como o papa e também seus aliados, o rei Filipe VI da
França e o rei Roberto de Anjou, não assinanaram em 1336 o tratado de aliança e a
aceitação de Luís IV como imperador do Sacro Império Romano-Germânico, este
continuou dando proteção a Ockham e outros condenados de heresia.
De 1328 até sua morte, Ockham produziu diversos textos sobre a questão da
administração do poder temporal e espiritual, sendo os mais importantes Dialogus,
em 1333; Tractatus Contra Benedictum, em 1337; An Princeps, em 1339;
Breviloquium de potestate papae, em 1341; Octo Quaestiones, em 1342; De
imperatorum et pontificum potestae, em 1346; e De imperatorum et pontificum
potestate, em 1347. Ghisalberti (1997, p.23-36) elaborou uma lista completa e
atualizada conforme as novas pesquisas das obras de Ockham, com suas
24
respectivas edições críticas. A edição crítica do Dialogus encontra-se em
andamento desde 1995, sendo empreendida por John Killculen, George Knysh,
Vollper Leppin e John Scott.
Os comentadores de Ockham usam algumas nomenclaturas para classificar
as obras. Ghisalberti (1997, p.23-36) classificou-as em três grupos : filosóficas e
teológicas; obras duvidosas, e obras polêmico-políticas. Todisco (1998, p. 179-184)
e Merino (2003, p. XXIV) ignoram as obras de autoria duvidosa de Ockham,
dividindo todas as obras dele em dois grupos: no primeiro colocando as obras
filosóficas e teológicas, e no segundo, as obras políticas.
Julgamos que a nomenclatura utilizada para a divisão das obras não seja
adequada, segundo os critérios que os mestres das universidades medievais
utilizavam para organizar as áreas do conhecimento humano. Separar o que hoje se
chama de “política” da filosofia e da teologia, não faz parte do modo como o homem
medieval entende o conhecimento humano e o mundo. A “política” – e toda ação no
mundo –, no seu grau maior, para os pensadores medievais, deveria ser conduzida
a partir de princípios teológicos baseados nas Sagradas Escrituras, ou seja, pela fé
cristã. A teologia é a “ciência” mais nobre no sistema medieval e a ela se submetem
as demais ciências, especialmente a filosofia. O objeto de estudo é a fé, e a partir
dela, o teólogo interpreta o mundo e o ser humano. Entretanto, a concepção de fé
cristã para os teólogos não tem a acepção de algo irracional, ou seja, de uma “fé
cega”. A teologia é, na sua etimologia, “ciência” ou “conhecimento de Deus”. Assim,
o teólogo não poderia desprezar a razão humana, mas sondar ao máximo o mistério
de sua fé. O teólogo não sondaria por ter dúvidas de sua fé, mas é a fé que o
conduziria à pesquisa. Santo Anselmo (1033/34-1109) definiu o que impulsionava o
teólogo na sua pesquisa e como ele lidava com a fé e a vontade de compreender:
Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de
maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela,
mas desejo, ao menos, compreender a tua verdade, que
o meu coração c e ama. Com efeito, não busco
compreender para crer, mas creio para compreender.
Efetivamente creio, porque, se não cresse, não
conseguiria compreender. (SANTO ANSELMO, 1988, p.
101).
25
As obras de Ockham classificadas de políticas demonstram, na verdade, a
sua preocupação teológica sobre o exercício do poder, o que se poderá perceber
durante essa pesquisa. O teólogo não é definido exclusivamente pelo seu objeto de
estudo (seja Deus ou os seres criados), mas pelo modo como interpreta o seu
objeto de estudo. A análise do tlogo parte da fé e chega a ela. Assim, tamm é
tarefa da teologia estudos sobre administração das coisas comuns (reino), do direito
dos povos e da legalidade de governos. Por isso, julgamos que foi sempre com uma
visão teológica que Ockham escreveu as obras classificadas por vários
comentadores de “políticas”. Logo, teamos somente duas divisões segundo o
esquema medieval: obras filosóficas e obras teológicas. A edição crítica de Offler
(1997) optou por chamar de obras políticas, as obras escritas sobre os temas dos
poderes temporal e espiritual; é daí que os comentadores retiraram a nomenclatura
para as obras de Ockham. Durante esta pesquisa, optamos — por questão de
padronização — por utilizar a linguagem comum dos tradutores e da edição crítica
quanto às obras de Ockham.
De Boni (2003, 283-286), comentarista e tradutor para o português de obras
de Ockham, usa a expressão teólogo-filósofo para definir o pensamento político de
Ockham. Segundo ele, os textos chamados políticos de Ockham seriam todos
circunstanciais e não uma elaboração ou comentário completo às idéias
aristotélicas sobre o tema. O autor exemplifica seu pensamento, comparando os
textos de Ockham com os de Tomás de Aquino, e mostrando que nesse, e não
naquele, há uma elaboração acadêmica distanciada dos fatos do cotidiano. De Boni
defende que Ockham foi primordialmente um teólogo, opinião com a qual
concordamos e que embasa toda essa pesquisa. Assim, consideramos que quando
ele citou e comentou os temas da administração da Igreja a partir da filosofia, da
história e da teologia, seu ponto de chegada era o melhor modo para o fiel cristão
viver neste mundo e alcançar a vida eterna.
Como teólogo, Ockham tratou da idéia fundamental para a plenitude do
poder que é o primado papal para toda a Igreja. Essa é a idéia teológica que está
na base da construção dos argumentos da plenitude do poder.
Alguns comentadores de Ockham, percebendo o quanto ele se dedicou à
lógica, analisam os textos relacionados aos seus envolvimentos políticos como uma
continuação de sua preocupação lógica. Outros estudiosos procuram demonstrar a
origem das idéias políticas de Ockham sob outro viés. Camastra (2002) interpreta
26
que a originalidade política de Ockham estava ligada à sua teoria do conhecimento e
à teologia. Libera (1998), por outro lado, defende que as idéias políticas de Ockham
partiram de sua solução para o problema dos universais. Os filósofos medievais
discutiram sobre a possibilidade da existência ou não-existência dos universais e
que tipo seria esta existência ou não-existência. Estudos atuais defendem que
Ockham foi um “terminista”, e não nominalista, na solução do problema dos
universais. O nominalismo era a teoria da não-significação do universal, reduzindo o
universal a flatus vocis, ou seja, a puro som sem qualquer conteúdo. O franciscano
seria terminista no sentido de que formulou “uma teoria do uso rigoroso dos termos
(mentais ou conceitos, orais e escritos), que respondem às características peculiares
da lógica e da linguagem.” (GHISALBERTI, 2001, p. 45). Independente da
classificação de Ockham como terminista ou nominalista, os defensores da base
ontológica para as idéias de Ockham defendem que elas partiram da solução da
questão dos universais.
Há uma outra posição que parte diretamente das questões teológicas e
históricas entre Ockham, os franciscanos espirituais e os defensores da plenitude
dos poderes. Mcgrade (2002) e Souza (1980) interpretam as idéias políticas de
Ockham sem fazer referência direta à sua posição sobre os universais ou sobre sua
teoria do conhecimento. As interpretações dos autores citados concentram-se nos
aspectos da função do poder entre os medievais, nas correntes canonistas dos
papas e juristas dos reis, nas posições teológicas e em outros aspectos que não
remetem à questão ontológica.
Entre as duas interpretações, optamos pela posição que aborda o
pensamento teológico e político de Ockham, sem fazer referência às questões
ontológicas. Motivaram-nos, nessa tomada de posição, as próprias obras teológicas
e políticas do autor, pois nelas Ockham não faz referência alguma aos aspectos
ontológicos ao tratar os limites dos poderes temporal e espiritual. Não defendemos
que, mesmo sem as referências explícitas do autor, não seja possível uma
confrontação com a metafísica de Ockham. Partimos do princípio que a pesquisa
pela origem das idéias políticas não alteraria o resultado de sua posição política.
Julgamos que a relação entre política e ontologia (questão dos universais) ainda
seja uma questão aberta.
27
Um dos primeiros pontos da posição política de Ockham é discutir o
primado papal, como ele foi constituído e qual seria sua finalidade.
1.3 O PRIMADO APOSTÓLICO E A SUCESSÃO PAPAL
1.3.1 O PRIMADO DA IGREJA DE ROMA SOBRE AS OUTRAS IGREJAS COMO
PRIMEIRO ARGUMENTO PARA A PLENITUDE DO PODER PAPAL
O patriarcado
4
de Roma foi tomando posição de destaque frente aos outros
patriarcados existentes desde o início da propagação do cristianismo. A sede
episcopal de Roma, para defender sua importância, em primeiro lugar, apoiava-se
em alguns textos bíblicos:
Simão Pedro, respondendo disse: ‘Tu és o Cristo, o filho do Deus
vivo’. Jesus respondeu-lhe: ‘Bem-aventurado és tu, Simão, filho de
Jonas, porque o foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim
meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e
sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca
prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e
o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na
terra será desligado nos céus. (MATEUS 16, 16-19).
Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos
peneirar como trigo; eu, porém orei por ti, a fim de que a tua fé não
desfaleça. Quando, porém, te converteres, confirma os teus iros.
(LUCAS 22, 31-32, grifo nosso).
4
A palavra patriarcado era utilizada para as sedes episcopais antigas do cristianismo. O sentido para
a palavra vem de patriarca que, no Antigo Testamento, significava um descendente importante e
antigo. Patriarca estava ligado à palavra pai, no Antigo Testamento, origem (pai) de um povo.
28
Outro fator de destaque dade Roma foi a importância e influência desta
cidade, marcada após o século IV com o reconhecimento do cristianismo como a
religião oficial. O bispo da cidade de Roma, importante como capital e centro cultural
do império, pode exercer uma força determinante sobre os rumos do cristianismo e
do ocidente após o fim do Império Romano.
As outras sedes patriarcais de Jerusalém, de Antioquia, Alexandria, Corinto,
Éfeso, argumentavam serem igrejas dignas de fé e importantes, porque cada uma
delas havia sido fundada por um apóstolo. Internamente havia entre as igrejas dos
primeiros três séculos do cristianismo uma aceitação da proeminência dessas cinco
sedes frente às outras igrejas fundadas e dirigidas por um bispo.
Os concílios atestam não só a aceitação das sedes patriarcais como sendo
emanadoras da doutrina e dos costumes para toda a Igreja, como vão lentamente
aceitando a primazia da sede de Roma.
Com as disputas sobre a doutrina cristã, a consulta ao bispo de Roma
cresceu e sua palavra tornou-se relevante. Uma destas disputas foi o surgimento da
questão dogmática sobre as naturezas de Cristo, com a qual dividiu as igrejas de
Alexandria e Antioquia no século V. O problema gerado era a definição da natureza
de Cristo. O bispo de Constantinopla, Nestório, formado na linha teológica de
Antioquia, desde o ano de 428, perguntava como podia Jesus Cristo ser uma
divindade e ao mesmo tempo criatura humana. Nestório afirmava que em Cristo não
havia uma só pessoa, mas duas. Em Alexandria, o bispo Cirilo denunciou Nestório
ao papa e ao imperador, em 430. A divisão, provocada pelos dois bispos, fez com
que o papa Celestino I manifestasse seu zelo em manter a unidade das duas igrejas
e reivindicasse para si a definição desta questão de fé. Foi convocado o Concílio de
Éfeso em 431 para discutir a questão, tendo de um lado Nestório e, do outro, Cirilo,
este, com os legados papais que continham a decisão do papa. A posição do papa
beneficiava Cirilo e trouxe ainda mais divisão ao oriente cristão. O Concílio de Éfeso
terminou por condenar Nestório, afastando-o da “[...] dignidade episcopal e de
qualquer colégio sacerdotal.” (DENZINGER, 1996, p. 150, tradução nossa).
O desfecho entre a disputa de Alexandria e Antioquia, dois importantes
patriarcados, causou problemas no oriente. A participação dos legados papais foi um
fator determinante demonstrando o poder que a sé de Roma havia adquirido em
questões de fé.
29
Esta explicação para a primazia da igreja de Roma sobre as outras quer
demonstrar como foi surgindo a necessidade da hegemonia de Roma para
assegurar a unidade dos cristãos. Não se pode pensar meramente que a igreja
romana tenha usurpado os problemas de doutrina da fé, mas na necessidade de um
dirigente, ao invés de muitos. As próprias igrejas importantes da antiguidade cristã
vão reconhecer a ajuda do “irmão de Roma”, referindo-se ao bispo de Roma.
No segundo século, encontramos a fundamentação teológica para justificar a
primazia da sede de Roma entre os que tentam sistematizar a fé cristã. Santo Irineu
de Lion (1997), escrevendo contra os hereges, afirmou a primazia da sé de Roma e,
da mesma forma, São Cipriano (1979, p.182-187) defendeu esta primazia.
Importante é a observação que Ribeiro (1995, p. 51) fez sobre a história da sé de
Roma. Para o autor, a primeira fase — em que há a aceitação da sé de Roma como
digna de muito respeito — pode ser chamada de primado honorífico; ele afirma
também que o uso da palavra “papa” enquanto vocativo – forma que os bispos se
chamavam – é costume dos séculos III ao VI
.
Os motivos principais, que firmaram a supremacia da sé de Roma,
transformaram-se em uma questão que divide historiadores. A exegese católica
afirmava que o principal motivo da supremacia da sé de Roma era a associação de
São Pedro a Roma. Nesta mesma cidade, São Paulo, entre os anos de 64-67,
sofreu seu martírio. Assim Roma possuía as prerrogativas de ser fundada pelos dois
grandes apóstolos. O bispo de Roma, tido como um irmão numa sé especial, trouxe
para si, e tamm lhe foi concedido, espontaneamente, a tarefa de zelar pelos
cristãos como chefe universal.
O oriente cristão se ergueu diversas vezes contra a pretensão romana. Um
exemplo do que afirmamos aqui é um dos cânones do Concílio de Calcedônia do
ano de 451. Os bispos reunidos para debater sobre a questão das duas naturezas
de Cristo, nas atas de conclusão do Concílio, afirmavam que Constantinopla era a
“nova Roma”, ou seja, fizeram alusão tanto ao domínio imperial, exercido por Roma,
como à importância da sede episcopal aí instalada (TAPIE, 1972, p. 131-132). Mas o
papa Leão Magno (440-461) contestou, em carta ao imperador bizantino Marciano, a
vontade da sé de Constantinopla de ser considerada a primeira, em importância,
após Roma, menosprezando as outras sés apostólicas.
Os bispos reunidos em Calcedônia, para provarem a validade de suas
decisões, evocaram para Constantinopla a paridade com Roma. Os motivos para
30
essa paridade estavam tanto na presença do imperador bizantino Marciano na
cidade de Constantinopla, como na influência desta igreja sobre o oriente. A
necessidade desta afirmação de paridade fez, de forma indireta, com que se
reconhecesse a sede episcopal de Roma como a “cabeça das outras igrejas.
Encontra-se na primeira parte do Concílio de Calcedônia um testemunho da
estima que as igrejas orientais mantinham pela sé de Roma — mesmo existindo
algum desacordo com todas as pretensões romanas. O Concílio de Calcedônia
buscou mostrar a força que a igreja de Calcedônia representava para decidir
questões de fé. Ele demonstrou a unidade, naqueles anos, entre a sé de Roma e os
orientais. O concílio reconheceu a importância do bispo de Roma para o zelo da fé
legítima. O termo que o concílio preferiu aplicar ao bispo de Roma foi “coluna
fundamental contra os heterodoxos.” (DENZINGER, 1996, p. 166-168).
Outro testemunho antigo sobre a autoridade da igreja romana está numa
carta do bispo Clemente I ou Clemente Romano. Há divergências quanto à data do
exercício episcopal de Clemente I em Roma. As datas que constam em documentos
antigos são de 92 a 101 e de 88 a 97. As duas datas são citadas em fontes antigas
(DENZINGER, 1996, p. 48). Mesmo com data imprecisa, a carta figura entre os
textos mais antigos do exercício do primado do bispo de Roma. O bispo Clemente I
escreveu à comunidade de Corinto o seguinte texto:
Escrevemos tudo isto para te repreender. Mas se alguns não
obedecem a isto que por meio de nós ele [Cristo] disse, sabemos
que estão implicados em uma culpa e em perigo e que não são
inocentes. Nós seremos inocentes deste pecado. De fato serão
motivos de felicidade e alegria, se, obedecendo a tudo que nós
expusemos pelo Esrito Santo, arrancarem, na raiz, a fúria ilegítima
da vossa inveja, conforme à exortação que fazemos na paz e na
concórdia. (DENZINGER, 1996, p. 50, tradão nossa).
O texto acima citado, hoje existente em versão grega e latina, não tem o tom
imperativo de quem governa, mas o tom de uma exortação zelosa. O motivo da
carta seria a revolta de alguns presbíteros da igreja de Corinto, afastados
injustamente do seu ofício. Mas, apesar do tom pouco imperativo presente na carta,
trata-se de uma intervenção da sede de Roma em problemas de outras igrejas,
intervenção esta que se tornou cada vez mais freqüente.
31
A aceitação do primado da sé de Roma teve, desde os primeiros séculos do
cristianismo, a oposição no ocidente e no oriente. Porém a maior oposição foi da
igreja de Bizâncio, tamm chamada de Igreja Oriental ou Igreja Grega. A Igreja
Oriental não aceitou a pretendida centralização romana e procurava sempre
demonstrar sua autonomia. Esta autonomia culminou com a ruptura definitiva entre o
oriente e o ocidente cristãos, no período da centralização romana no século XI. A
igreja de Bizâncio reconhecia a importância da Cathedra Petri, ou seja, a
importância do bispo que ensinava na cátedra do apóstolo Pedro, mas não a
imposição que o bispo romano requeria como governante absoluto dos cristãos.
Ribeiro (1995, p. 50) afirma que, com a figura do papa, o regime instaurado
na igreja era romano na forma e bíblico na fundamentação. Isto é confirmado
especialmente pelo modo como a igreja se organizou no sistema de dioceses
termo utilizado pelo império romano para a organização territorial. Tamm os
princípios do direito romano foram incorporados ao direito canônico, aumentando
ainda mais a proximidade com o estilo romano de legislar.
A autoridade dade Roma desenvolveu-se, gradualmente, apoiada tanto na
identificação papal com São Pedro, o príncipe dos apóstolos, que fundara a igreja de
Roma, como nas obrigações de pastor conferidas a esse. Tal identificação foi
reforçada pelos termos medievais sollicitudo e principatus. A palavara sollicitudo
sendo entendida como cuidado. A palavra principatus significando a primeira
(princípio) das igrejas a ser fundada pelo primeiro entre os apóstolos, Pedro, a quem
Cristo teria concedido o poder de ligar e desligar. Convém perceber mais
detalhadamente como era entendido o primado do papa a partir da sucessão do
apóstolo Pedro.
1.3.2 O APÓSTOLO PEDRO E O PRIMADO PAPAL
Vimos que a base da autoridade papal surgia da interpretação da sucessão
do apóstolo Pedro. Sucessão aqui significa a passagem do ofício de governar a
igreja do próprio Cristo para Pedro. Este, por sua vez, teria escolhido alguém para
sucedê-lo. A doutrina da sucessão apostólica era, e é, aplicada não só para o papa,
mas também para todo bispo e sacerdote. Por isso as árvores genealógicas dos
32
bispos são algo comum na Alta Idade Média. Estas “árvores genealógicas”
consistiam em retroceder no tempo até encontrar de qual apóstolo proviria a
sucessão.
A sucessão apostólica foi uma forma encontrada para garantir a legitimidade
dos chefes das igrejas. É difícil precisar quando a sucessão apostólica passou a
vigorar na Igreja. Fatores importantes foram as disputas teológicas dos primeiros
cinco séculos. À medida que se definia a explicação considerada correta dos
elementos próprios da crença cristã como as naturezas de Cristo, a encarnação e a
eucaristia, concomitantemente surgiam grupos divergentes. Estes grupos, na
medida em que se rebelavam contra a chamada ortodoxia, foram considerados
hereges, apóstatas ou cismáticos.
O atual Código de Direito Canônico da Igreja, ligado à tradição dos antigos
códigos de direito canônico, define “heresia como a negação pertinaz, após a
recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica,
ou a dúvida pertinaz a respeito dela; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a
recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de comunhão com os membros da Igreja a
ele sujeitos.” (Código de Direito Canônico, 1983, p. 347). Os que divergiam se
declaravam ou sentiam-se legítimos e verdadeiros cristãos; surgindo a necessidade
dos bispos que se consideravam ortodoxos de definir em que consistia a sucessão
apostólica. Somente com a doutrina da sucessão, poder-se-ia definir quem eram os
sucessores dos apóstolos e somente eles podiam argumentar com mais veracidade
sobre questões da fé. A sucessão apostólica, entretanto, não era suficiente para
resolver as disputas internas e a separação que começava a existir na Igreja cristã
dos primeiros séculos. Para ajudar à comunidade cristã a definir quem ensinava de
modo legítimo as verdades da fé, os tlogos formularam a idéia de unidade.
A unidade servia para garantir, também, a continuidade apostólica. Estava na
unidade da Igreja quem aceitava as definições de fé, a sucessão apostólica e o
bispo de Roma como “cabeça da Igreja” (Colossenses 1,18; Efésios 1,22). Assuntos
polêmicos, quando ainda estavam em processo de discussão, poderiam ter opiniões
diversas; mas quando definidos, através dos concílios ou de outras formas, deviam
ser acatados por todos os cristãos (fiéis, bispos, sacerdotes) que, a partir de então,
ensinavam pela nova posição. Quem não aceitasse a definição, quebrava a unidade
e tornava-se cismático, com o sentido de separado da Igreja. Grande parte dos
teólogos ocidentais passou a defender o bispo de Roma como o primeiro vínculo da
33
unidade dos cristãos. Estar contra a sé de Roma significava, também, estar
separado da comunidade cristã. O bispo de Roma servia como elo entre as diversas
igrejas cristãs espalhadas pelo mundo.
A sucessão apostólica era concretamente definida na imposição das mãos e
pela oração feitas sobre os escolhidos para liderar a comunidade. O gesto da
imposição das mãos sobre a cabeça do eleito, na simbologia bíblico-cristã possuía
vários sentidos: conferia uma missão especial, uma bênção, operava uma cura, e
ainda se consagrava para uma particular missão cristã. O gesto de impor as mãos
não estava ligado exclusivamente à comunidade cristã, mas era um gesto universal
de bênção e cura. A definição de que o gesto de imposição das mãos marcava a
ordenação de um bispo e presbítero consta num texto da metade do século V,
chamado de Statuta Ecclesiae Antiqua (DENZINGER, 1996, p. 184). O costume da
imposição das mãos era praticado antes deste tempo, mas este é o primeiro registro
da forma detalhada do gesto. O escolhido ou eleito, conforme a palavra mais
utilizada para designar aquele que seria ordenado, ao receber a imposição das
mãos em sua cabeça e a oração que o consagrava, tornava-se participante da
sucessão apostólica. Todavia, no primeiro século do cristianismo, não estava
expressamente definido quem podia, de modo legítimo, realizar a cerimônia com o
gesto e a oração da imposição das mãos.
A sucessão apostólica foi, a partir do século III, confiada especificamente aos
bispos e não aos presbíteros. Era o bispo quem devia realizar o rito de impor as
mãos sobre o escolhido, transmitindo-lhe a sucessão apostólica. Os bispos
diferenciavam-se dos presbíteros pela função exercida. Ao bispo cabia o governo de
uma comunidade local, enquanto o presbítero estava sob a sua obediência. A
distinção entre bispos e presbíteros foi sendo firmada gradualmente e no primeiro
século ainda era confusa, assim como a distinção entre paróquia e diocese.
Os presbíteros, aqueles que auxiliavam o bispo em sua tarefa, participavam
da sucessão apostólica através do bispo. Seria o bispo quem, através de uma
cerimônia chamada ordenação, tornava o escolhido apto ao exercício do ministério
sacerdotal. Segundo a tradição, o bispo era sucessor dos apóstolos, por isso devia
cuidar pela ortodoxia da fé. Como dirigente da comunidade cristã, o bispo devia
escolher e preparar aqueles que julgasse aptos a exercerem o serviço nas igrejas
confiadas a ele. O bispo não devia permitir nas igrejas o serviço daqueles que
quebrassem a unidade com a hierarquia e com os artigos de fé, ou seja, aqueles
34
leigos ou sacerdotes que ensinassem diferente daquilo que foi definido como artigo
de fé.
Somente os sucessores legítimos, fiéis à sé de Roma e às definições dos
concílios ecumênicos, podiam exercer de fato a autoridade de ensinar sobre a fé.
Esse controle permitia que a Igreja — que desde o início contou com grupos que
entendiam a fé de várias maneiras — pudesse manter alguma unidade doutrinal. Por
isso, foram adotados termos para classificar aqueles que divergiam dos
ensinamentos definidos nos concílios ecumênicos da Igreja. É necessário afirmar
que as classificações de pessoas e movimentos, segundo os termos citados, eram
definidas pelos bispos, teólogos e outros cristãos do grupo dominante. Cabia ao
bispo em união com a sé de Roma, a tarefa de encontrar e afastar os hereges,
cismáticos e apóstatas.
A Igreja presente no oriente, apesar do respeito prestado à Cathedra Petri,
expressou diversas vezes sua autonomia diante da sé de Roma. Esta condição
especial de autonomia do oriente cristão prevaleceu forte durante toda a antiguidade
cristã e, no início da Idade Média, seria refoada pela queda de Roma.
Constantino Magno, imperador romano, uniria fé cristã e império, assumindo
funções também de administrador da fé cristã, convocando concílios e interferindo
na escolha de bispos. Entretanto a unidade entre fé e império foi sempre conturbada
nestes anos de Constantino. As fontes antigas que nos chegaram são controversas
e os comentadores enumeraram diversos pontos de apoio para a propagação do
cristianismo nos anos de Constantino como a fé oficial. Bem ou mal realizada para
proveito cristão, a experiência seria curta; sucederam-se avanços e recuos na
aliança entre império e cristianismo, conforme os imperadores. Circulou na Idade
Média um documento atribuído a Constantino, um texto jurídico chamado Donatio
Constantini. Este suposto documento que concedia privilégios à Igreja foi
amplamente divulgado e utilizado para demonstrar que Constantino Magno doava
Roma, Itália e as províncias orientais ao papa Silvestre I (314-335).
Se o apoio dos imperadores romanos à fé cristã fortaleceria o papado, a
chegada de povos que os romanos consideravam bárbaros, com a seqüente tomada
do poder, suscitaria a autonomia do oriente. Foi a Igreja de Bizâncio que exerceu
uma maior pressão pela autonomia frente à Igreja romana, aproveitando-se da sede
imperial também instalada na cidade de Bizâncio. Por outro lado, o esfacelamento
do império romano serviu para fortalecer a Igreja Ocidental. O bispo de Roma e as
35
divisões da Igreja em dioceses, seguindo o sistema de divisão romano,
preencheriam o vazio de poder causado pelo término do Império Romano.
A pressão oriental não foi capaz de impedir que fosse firmada lentamente a
identificação entre Pedro e o bispo de Roma. Após a aceitação interna da
supremacia do bispo de Roma sobre qualquer outro bispo, estava preparado o
caminho para afirmações mais universais sobre o poder papal.
1.3.3 OCKHAM E O PRIMADO PAPAL
Ockham fez menção indireta ao primado da igreja de Roma na obra Oito
questões sobre o poder do papa. O contexto dos argumentos de Ockham era a
discussão se o império proviria do papa antes ou depois da vida de Cristo. Para
afirmarem que o império provinha do papa após a vinda do Cristo, os opositores de
Ockham (2002, p. 117) utilizavam um argumento do papa Nicolau II (1058-1061) que
afirmou que somente a igreja romana seria fundada e instituída pelo apóstolo Pedro,
ou seja, as igrejas como a de Jerusalém, Antioquia e outras antigas sedes não foram
instituídas por Cristo. Ockham, porém, recordou que a igreja de Antioquia, conforme
o pensamento da primazia do apóstolo Pedro, foi a primeira igreja fundada pelo
apóstolo. Com estes argumentos, Ockham não questionou a legitimidade da igreja
romana e de seu bispo na administração da Igreja. Seu posicionamento foi no
sentido de que os argumentos para definir a primazia de Roma sobre as outras
igrejas necessitavam ser colocados sobre outros fundamentos. Ockham mostrou
que não servia de fundamento, por inverídico, o argumento de Roma ser a primeira
e única igreja fundada pelo apóstolo Pedro ou a mais antiga sede.
Ockham conhecia e usou os termos técnicos teológicos sollicitudo e
principatus para definir a função do papa dentro da Igreja. A solicitude e principado
apostólico do papa foram definidos por Ockham (1999d, p. 194) como voltados
primordialmente para ações espirituais, ou seja, “leitura da Escritura, à pregação da
palavra de Deus, à organização do culto divino, e tudo aquilo que é necessário e
próprio dos cristãos, a fim de que possam vir a alcançar a salvação eterna.” Nestas
36
ações consideradas estritamente espirituais, o papa seria responsável em primeiro
lugar e possuiria a plenitude do poder. Mas, mesmo esta plenitude espiritual era
limitada, pois o papa não podia agir contra a fé cristã e o direito dos fis.
A ação do papa, na visão de Ockham (1999d, p. 193-194), naquilo que fosse
específico do poder temporal seria uma ingerência. Esta ingerência só poderia
acontecer quando não pudessem ou não quisessem agir aqueles a quem de direito
competia substituir ou corrigir um soberano. As ações temporais do pontífice deviam,
no caso acima citado, serem ocasionais, suprindo-lhes a negligência, porém sem
retirar-lhes definitivamente o direito de ação.
Ockham (1999b, p. 106) fez uma menção direta ao primado do apóstolo
Pedro na obra Pode um príncipe, inclusive com a utilização do termo com sua
conotação teológica. Concordou que o primado vem do texto bíblico “eu te digo que
tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja” (Mateus 16,18) e não
contestou a interpretação que dava o governo espiritual de toda a Igreja ao bispo da
sé de Roma. Ockham reconheceu que a função do papa como chefe da Igreja era
importante para a administração e foi instituído pelo próprio Cristo. Para ele, a
função do papa não seria só uma convenção humana, visando a um bom governo,
mas foi algo desejado pelo próprio Cristo, pois Cristo quis que o apóstolo Pedro
fosse o primeiro (primado) entre os outros apóstolos. Também em nenhum momento
Ockham contestou a sucessão entre o apóstolo Pedro e os papas. Para ele, Cristo
quis a sucessão apostólica para sua Igreja. Logo, o teólogo de quem se trata,
recusou o argumento da Igreja Oriental que a sucessão de Pedro estaria presente
em cada bispo legitimamente escolhido e ordenado para exercer o ministério.
Pode-se concluir que Ockham confirmou que o papa possuía a sucessão do
apóstolo Pedro, não testando através da negação desarticular na origem a idéia
plenitudo potestatis. A origem do argumento da plenitude era exatamente o Cristo
escolhendo o apóstolo Pedro e supostamente lhe dando o poder sobre tudo. Poder-
se-ia afirmar que Cristo dera somente ao apóstolo Pedro seu pleno poder, isto é,
que nada constava nos textos bíblicos sobre possíveis sucessores participando do
mesmo poder de Pedro. Se Ockham tivesse se posicionado dessa forma, estaria
aceitando que Cristo deu ao apóstolo a plenitudo potestatis. Porém, o argumento de
Ockham é ainda mais abrangente, pois para ele nem o apóstolo Pedro nem os seus
sucessores receberam de Cristo a plenitude do poder.
37
Para Ockham, a plenitude do poder não foi utilizada por Cristo quando esteve
neste mundo, porque o próprio Cristo se sujeitou aos juízes seculares. Para provar
isto, ele citou o seguinte texto bíblico de João 18,36: “O meu reino não é deste
mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus súditos teriam combatido para que
eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui.” Cristo, no seu
julgamento, não teria contestado a autoridade temporal de Pilatos e Herodes, mas
aceitado a autoridade temporal sobre ele (OCKHAM, 2002). Cristo definiu que veio
ao mundo para servir e não para ser servido, portanto não podia possuir a plenitude
do poder (OCKHAM, 1988, p. 59-60).
O texto principal sobre o primado de Pedro (e do papa) presente em Mateus
16,19 foi contestado por Ockham através de outros textos bíblicos que limitavam seu
alcance. Um dos textos utilizados por ele para a melhor compreensão da missão
confiada ao apóstolo Pedro e seus sucessores encontra-se em Lucas 22,25-26:
“Sabeis que os governantes das nações as dominam e os grandes as tiranizam.
Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que desejar tornar-se grande
entre vós seja aquele que serve.” (OCKHAM, 2002).
Ele concluiu, do texto acima, que Cristo vetou o poder temporal ao papa.
Ockham utilizando tal versículo diversas vezes para limitar a compreensão dos
textos bíblicos abaixo, nos quais Cristo teria confirmado o apóstolo Pedro como
chefe dos apóstolos. Entretanto, esses mesmos textos contestados por Ockham
faziam parte predominante das argumentações dos partidários da plenitude do
poder. São eles:
a) “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: devo conduzi-las tamm;
elas ouvirão minha voz; então haverá um só rebanho, um só pastor.” (João 10,16);
b) “Depois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro; ‘Simão, filho de João, tu me
amas mais do que estes’? Ele lhe respondeu: ‘Sim, Senhor, tu sabes que te amo’.
Jesus lhe disse: Apascenta os meus cordeiros.” (João 21,15);
c) o evangelho, texto de Mateus 16, 16-19, já citado aqui, e mais conhecido, sobre a
sucessão papal; e,
d) Jesus respondeu: “Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste
mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus.
Mas meu reino não é deste mundo” (João 18,16).
38
O último texto de João 18,36, para o Venerabilis Inceptor, declarou
explicitamente que Cristo não foi rei aqui neste mundo. Caso fosse rei, Pilatos o teria
condenado, entretanto a condenação aconteceu em função da insistência dos
judeus. Foi por medo que Pilatos o condenou, quando os judeus lhe disseram que
“se o libertas, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei, opõe-se a César”.
Segundo a interpretação de Ockham, Pilatos temia os judeus e não considerava
Cristo, o rei. Com este argumento bíblico, ele procurou demonstrar que o
entendimento que os defensores da plenitude do poder faziam da Sagrada Escritura
era falho (OCKHAM, 2002, p. 172). Em outro momento, Ockham (1988, p.146-148)
afirmou que Cristo reconheceu que o poder humano de julgá-lo pertencia aos chefes
romanos e não contestou esse poder. O franciscanoo perdeu a oportunidade de
menosprezar e zombar a compreensão dos que eram favoráveis ao papa.
Daí, alguns se admirarem de que Pilatos, homem mundano e sem fé,
tenha compreendido o verdadeiro significado das palavras de Cristo
acerca de seu reino, e de que, ao contrário, alguns cristãos, que
também querem ser doutores da lei, não o entendam do mesmo.
Daí, conforme o parecer dessas mesmas pessoas, não haver uma
outra explicação para tal atitude, senão que eles eso obcecados
por um mau sentimento. (OCKHAM, 2002, p. 44).
Pode-se concluir na questão do primado, que Ockham não foi contra a
instituição chamada papado, mas contra papas específicos e contra a idéia que
ampliava o poder pontifício para além do limite que foi instituído por Cristo. Ele,
também, condenou a plenitude do poder como pensamento herético e foi contra a
finalidade da instituição do papado.
Usando como base a interpretação ampliada do que seria o primado papal,
vários pontífices procuraram fundamentar suas pretensões no plano temporal.
Consideram-se momentos especiais da supremacia papal nos séculos posteriores,
os períodos dos papas Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII, aspectos que
serão examinados nos próximos itens.
39
1.4 A REFORMA GREGORIANA: SEPARAÇÃO DOS PODERES E PREDOMÍNIO
DO ESPIRITUAL
Com a fundação em 952 do Sacro Império Romano-Germânico tendo como
primeiro imperador Oton, o Grande, abrangendo parte da França, a Alemanha e
parte da Itália, o papado passou a ser tutelado pelo imperador (CHELINI, 1968, p.
190). Na Alemanha era onde se encontrava a maior força do império e seu centro
“administrativo”. Havia entre o primeiro imperador e os que se seguiram, o
pensamento de que os poderes instituídos eram dois: o espiritual e o temporal.
Embora os imperadores considerassem o poder espiritual como secundário.
Com o Sacro Império Romano-Germânico, iniciou-se um modo de relações
entre o império e o papado, onde o papado colocava-se como submisso aos
soberanos do império. O papa João XII (955-964), contemporâneo de Oton (912-
973), o Grande, em troca da defesa dos reinos da Igreja (Patrimônio de Pedro)
ameaçados pelo rei Alberico, aceitou que a eleição do pontífice pelos cardeais fosse
sempre aprovada e confirmada pelo soberano do império. A influência dos
soberanos do império na Igreja estendia-se para todas as suas ações, quer de
natureza estritamente espiritual (sacramentos, bênçãos, escolha de bipos, etc.) ou
terrena (bens das igrejas, taxas e dízimos). Chelini (1968, p. 185) chamou esta fase
de “cesaropapismo otoniano”. Pacaut (1976, p. 98-100) preferiu caracterizar este
tempo iniciado com Oton I de “declínio do poder pontifício”.
Um século após a fundação do Sacro Império Romano-Germânico, com a
conseqüente submissão da Igreja cristã do ocidente ao imperador, reis e príncipes,
cresceu um movimento de contestação da tulela do poder temporal (PACAUT, 1976,
p. 126; CHELINI, 1968, p. 206-211). Este movimento recebeu o nome de reforma
gregoriana por causa das dimensões que a reforma tomou no pontificado de
Gregório VII.
1.4.1 ASPECTOS REFORMADORES DO PONTIFICADO DE GREGÓRIO VII
Em 1073, o monge arcediácono Hildebrando foi eleito papa e assumiu o nome
de Gregório VII. Hildebrando serviu nos anos anteriores ao papado como emissário
40
especialmente na França e na Alemanha. Esteve a serviço da cúria romana por
diversos anos. Sua primeira aparição notória na política do papado aconteceu no
ano de 1054 na Alemanha, quando foi chamado para corrigir uma heresia
eucarística, segundo os critérios da teologia corrente, promovida por Berengário
(CHELINI, 1968, p. 207). Serviu aos papas Gregório VI (1045-1046) e Leão IX
(1049-1054), totalizando vinte anos de serviço à Igreja junto aos problemas da
administração geral.
O papa Gregório VII trouxe consigo idéias de reforma da Igreja aos moldes do
Mosteiro de Cluny, sendo por isso chamada por alguns historiadores como reforma
cluniacense (PACAUT, 1970, p. 75-78).
Foram três os pontos principais que Gregório VII anunciou como intenção de
corrigir dentro da Igreja: o nicolaismo, a simonia e a investidura de cargos
eclesiásticos feita por leigos. O nicolaismo consistia no grande número de bispos e
padres que não viviam o celibato, estando o maior número na Alemanha e por isso
protegidos pelos soberanos germânicos. A simonia era a venda de “coisas”
sagradas ou dos sacramentos, como por exemplo, a compra de ordenações de
bispos por parte tanto de clérigos como leigos. A investidura segundo a definição
mais sucinta é o “ato físico de investir um clérigo com as insígnias do cargo.” (LOYN,
1997, p. 209). O problema com a investidura acontecia porque era um leigo (rei ou
nobre) quem empossava um prelado no seu cargo. No gesto de investidura estava
claro que era o poder temporal que legitimava o poder espiritual.
Gregório VII, nestas propostas de reforma, participa das idéias de renovação
surgidas há quase um século inspiradas em Cluny. Seus antecessores próximos
tentaram a autonomia da Igreja frente ao poder temporal, mas não alcançaram
sucesso. Seu contexto histórico permitiu que tomasse medidas severas proibindo as
investiduras e disciplinando moralmente o clero, ou seja, trazendo-os para a
obediência da cúria romana e do papa. O papa aproveitou da pouca idade e
inexperiência do novo imperador Henrique IV (1050-1106) para anunciar as medidas
reformadoras.
Apoiavam o papa na reforma grande parte da cúria romana, os movimentos
espirituais de renovação da vida monástica, alguns bispos que desejavam sair da
tutela do poder temporal, vários príncipes e nobres que estavam fora da área
geográfica que constituía o Sacro Império Romano-Germânico. Os opositores da
reforma foram os bispos germânicos e o próprio imperador Henrique IV.
41
Parte do programa de reforma de Gregório VII encontra-se num texto
chamado de Dictatus Papae (HENDERSON, 1965, p. 366-367). O texto conciso tem
a forma de um programa de administração de Gregório VII com algumas das suas
idéias e da cúria romana.
1.4.2 O DICTATUS PAPAE
O texto legislativo de Gregório VII é composto de 27 preposições. São
preposições diretas, todas referentes à função e proeminência do “romano pontífice”.
Nelas Gregório VII defendeu que o poder espiritual exercido pelo papa era superior
ao poder temporal exercido pelos imperadores. Esta afirmação contrariava a prática
dos imperadores do Sacro Império Romano-Germânico. O texto pretendia por força
de lei retirar a Igreja do governo dos leigos e devolvê-la aos sacerdotes. Todo o
Dictatus Papae é o ponto de chegada dos anseios da reforma cluniacense e do
espírito de autonomia que procuram os reformadores. Para que o papa pudesse
retomar sua autonomia frente ao imperador e conseguisse exercer de fato a
administração da Igreja, especialmente conseguir obediência dos bispos, deveria
investir contra as “igrejas nacionais” ou territoriais.
Estas “igrejas nacionais” acostumadas ao sistema de investidura tinham um
compromisso muitas vezes maior com os príncipes e com o rei do que com os fiéis
ou com a administração exercida pelo papa e pela cúria romana. No sistema de
investidura eram os senhores feudais quem nomeavam e removiam bispos e padres
de suas sedes eclesiásticas. Desobedecer a um senhor local significava
conseqüentemente a perda do cargo, uma sanção bem mais forte do que o pontífice
e a cúria romana podiam fazer. Por isso os n. 13 e 14 do Dictatus pretendiam
ampliar o poder de sanção do pontífice afirmando que: “Que a ele é lícito, segundo
as necessidades, transferir os bispos de uma sede para outra” (HENDERSON, 1965,
p. 366). As igrejas nacionais eram um grande obstáculo à vontade de moralização
pretendida pelos reformadores, sendo necesrio um processo de centralização do
poder. O Dictatus foi o caminho para centralização do poder dentro da Igreja.
42
Entendemos que o Dictatus Papae teve por idéia principal a plenitudo
potetatis. Não há uma fundamentação das proposições e o texto não fez discussões
teológicas e históricas sobre as motivações de cada uma das 27 proposições.
Permeia em todo o texto a compreensão de que o poder espiritual está acima de
qualquer outro. A maior ruptura com a pretendida equivalência dos dois poderes
temporal e espiritual está na afirmação “é lícito depor e imperador” (HENDERSON,
1965, p. 366). Era uma inversão na prática, então, costumeira em que a eleição do
papa era confirmada pelo imperador. O Dictatus não só queria acabar com esta
prática, como colocava o imperador na dependência do papa.
O Dictatus é mais que uma elaboração de objetivos para o governo da Igreja
pelo papa Gregório VII do que uma meta alcançada. Entretanto julgamos um passo
importante para a autonomia da Igreja no século posterior. A disciplinação do clero
através do fim da investidura, do casamento dos clérigos e da simonia contribuiu
para Igreja buscar a unidade necessária para impor sua vontade de supremacia.
Não entendemos que isso seja resultado de uma moralização do clero decadente,
segundo os critérios dos reformadores, mas que o papado conseguiu abalar com a
reforma gregoriana seu principal fator de enfraquecimento: o poder das igrejas
nacionais.
A novidade do texto está na afirmação que a Igreja não erra. É um argumento
novo dentro das discussões teológicas. A fundamentação que Gregório deu ao
argumento que a Igreja não erra, é que o argumento era de acordo com as
Sagradas Escrituras e não esclareceu nada além disso. Há lacunas não resolvidas e
o texto só não é suficiente para resolvê-las.
Julgamos que a reforma gregoriana com seu auge no período de Gregório VII,
abriu a possibilidade de uma maior autonomia da Igreja frente ao poder temporal. O
seu Dictatus Papae é um documento que pode ser incluído entre os textos que
apóiam a plenitude do poder papal.
1.5 A CONTESTAÇÃO DA TEORIA DA TRANSLATIO IMPERII DE INOCÊNCIO III
Então não sabeis que os santos julgarão o mundo? E se é por vós
que o mundo será julgado, seríeis indignos de proferir julgamentos
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de menor importância? Não sabeis que julgaremos os anjos? Quanto
mais então as coisas da vida? (1Coríntios 6,2-3).
Inocêncio III, antes cardeal Lotário de Segni, natural de Anagni, nascido em
1160, foi eleito papa em 08 de janeiro de 1198. Terminou seu pontificado em 1216.
Inocêncio III foi conhecido e respeitado, em seu pontificado, como um homem sábio.
Os hagiógrafos de São Franciscano destacaram a sabedoria de Inocêncio III:
No tempo em que se apresentou com os seus diante do papa
Inocêncio para pedir a regra de vida, como o papa visse que o
propósito de vida dele era além das forças, sendo homem dotado do
maior discernimento, disse-lhe: Filho, reza a Cristo para que por
meio de ti nos mostre a sua vontade e, sendo esta conhecida,
anuamos mais seguramente aos teus piedosos desejos. (CELANO,
2004b, p. 312, grifo do autor).
E o Vigário de Cristo, o senhor Inocêncio III, homem realmente
famoso pela sabedoria, vendo no homem de Deus a admirada
pureza e simplicidade de ânimo, a firmeza de propósito e o inflamado
fervor de santa vontade, inclinou-se interiormente a conceder
piedoso assentimento ao que lhe suplicava. (SÃO BOAVENTURA,
2004a, p. 568, grifo do autor).
Inocêncio III foi formado na célebre universidade de Bolonha que primava
pela qualidade do ensino de Direito Canônico e Romano (ULLMANN, 2000, p.128-
129). Esta sua formação técnica aparece no seu epistolário a reis e cardeais.
No pontificado de Inocêncio III despontaram vários grupos que queriam viver
uma nova espiritualidade. Estes grupos de renovação foram os albigenses, cátaros,
valdenses, beguinos e pseudo-apóstolos. Pretendiam viver uma vida simples e
reivindicavam a pregação leiga – que era reservada aos sacerdotes e religiosos
pertencentes às ordens reconhecidas pela Igreja. Alguns membros destes grupos
foram condenados, como no Concílio de Latrão de 1215, no papado de Inocêncio III,
em que foram condenados os albigenses, cátaros, valdenses e a interpretação da
trindade do abade Joaquim (DENZINGER, 1996, p. 453-460). As condenações,
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iniciadas com Inocêncio III, aos movimentos chamados de hereges foram
reafirmadas por seus sucessores (LAMBERT, 1977, p. 95-107).
O papa julgou necessário reafirmar frente ao poder temporal e para os
próprios fiéis, a teoria da plenitudo potestatis. Inocêncio III foi chamado, ainda que
de modo exarcebado, de “campeão da teocracia papal” (GROSSI, 1995, p. 212).
Encontramos suas idéias sobre a plenitudo potestatis na bula Venerabilem escrita
em 1202.
A bula Venerabilem foi lançada no momento em que se vivia uma crise dentro
do Sacro Império Romano-Germânico:
Desde a morte do imperador Henrique VI em 1197, dois príncipes
alemães vinham disputando pelas armas e pelo voto a coroa
imperial. Eram eles, Filipe Staufen, filho de Frederico I, e Oton,
duque de Brunsucick. A guerra entre eles vinha causando o só a
morte de muitos homens, mas também a destruição e a ruína de
cidades, castelos, plantações e propriedades, tanto na Alemanha
quanto na Itália. Ademais, o sistema eleitoral então em voga no
Império não previa a solução face ao impasse provocado por dois
candidatos ao trono. (SOUZA, 1989, p. 112).
A instabilidade exigia do papado uma postura frente à situação de divisão no
trono do império. Havia o perigo de Inocêncio III ser condenado por intromissão
demasiada nos assuntos seculares, por isso escolheu como tom da Venerabilem um
reconhecimento da autonomia dos príncipes eleitores. O regime de escolha do
imperador era por voto de sete príncipes, porque o voto deles era considerado uma
representação de todos do império, especialmente dos nobres. Inocêncio III não
pretendia interferir na forma pela qual era escolhido o imperador. Havia no momento
em que ele escreveu a Venerabilem, uma acusação contra o bispo de Palestrina de
interferir nos assuntos dos sete príncipes eleitores. Na defesa do bispo, Inocêncio III
justificou que ele não usurpava o direito dos eleitores ao escrever a carta (bula)
Venerabilem aos príncipes. Inocêncio justificou que apenas cumpria sua missão de
pastor, zelando pela missão confiada ao próprio imperador que seria eleito (SOUZA,
1989, p. 114).
Havia uma lacuna no sistema de escolha do imperador do Sacro Império
Romano-Germânico que era como responder ao impasse nas questões em que o
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resultado da eleição não fosse conseguido de forma lícita ou ainda o eleito fosse
condenável para a Igreja. Dessa forma, Inocêncio III julgava necessário recordar a
missão do imperador cristão.
Ao imperador não cabia somente o cuidado do seu império nas questões da
lei, da manutenção da paz e da promoção do bem de seus súditos, por estar
intimamente ligado à Igreja devia ser o protetor da fé cristã. Seria impossível, nestas
condições, uma escolha de imperador que não respeitasse os critérios da Igreja.
Escreveu Inocêncio III:
Por conseguinte, se os príncipes em consenso ou em desacordo
entre si escolherem como rei uma pessoa sacrílega ou
excomungada, um tirano ou um idiota, ou um herege ou um pagão,
nós deveremos ungir, consagrar e coroar tal pessoa?
Absolutamente não! (SOUZA, 1989, p. 114).
No texto acima, Inocêncio III citou a tirania como um dos impedimentos para o
ritual da unção, coroação e sagração do imperador. Ockham (1999a, p. 54)
apresentou uma parte da Venerabilem na obra Tratado contra Benedito até o trecho
em que o papa cita a tirania como obstáculo para a unção. Ser classificado como
tirano era um defeito para qualquer rei ou governante, mas o uso do termo estava à
mercê das disputas políticas. O tirano podia ser quem usurpasse um reino que não
lhe pertencia ou ações que desrespeitassem os direitos dos súditos. Alguns
medievalistas observam que, se o termo tirano possuía uma definição, seu uso na
Idade Média não era preciso, servindo como elemento de acusação entre
opositores:
O termo tyrannus designava na antigüidade um usurpador que
se opunha a um chefe político legítimo, mas rex tyrannus
tornou-se na Idade Média quase contraditório. É o caso de
Rogério II, da Sicília, coroado por um antipapa, o que lhe valeu
o nome de tirano e foi visto como sucessor dos tiranos
sicilianos da Antigüidade, levando a Sicília a ser chamada
pátria tyrannorum. Mas após seu reconhecimento pelo papa
Inocêncio II, em 1139, ele se torna rex utilis et valde
necessarius [“rei útil e muito necessário”]. (SCHMITT; LE
GOFF, 2002, v. 2, p. 407).
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Foi Santo Tomás de Aquino (1224/1225?-1274) quem sistematizou o que
seria a tirania na obra Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao rei de Chipre. Para
Santo Tomás a tirania era classificada entre os três tipos de governos injustos: a
democracia, a oligarquia e a tirania. A base dos três tipos de governo era o mesmo:
buscava-se o bem de um (tirania), de alguns (oligarquia) ou de vários (democracia) e
não o bem da multidão a que devia estar sujeito o governo (SANTO TOMÁS DE
AQUINO, 1997, p. 129).
O tirano é definido por Tomás de Aquino como oposto em sua finalidade ao
rei. Para Santo Tomás não há “rei tirano”, para ele isso seria uma contradição: ou é
rei ou é tirano. O governo do rei seria conduzido pela justiça, o que significava
governar para todos. Costa (2005, p. 110) em seu comentário à política de Santo
Tomás de Aquino interpreta que o conceito de justiça está indissociavelmente ligado
à lei, sendo ela em três níveis: divina, natural e humana.
Santo Tomás defendia que o melhor governo seria o exercido por uma só
pessoa. Ilustra sua posição com o texto bíblico de Jeremias 12,10: “Pastores em
grande número destruíram a minha vida, pisaram minha possessão, transformaram
a minha possessão preferida em um deserto de desolação”. Como defendia que o
governo melhor devia ser exercido por uma só pessoa, o desvio mais fácil de
acontecer para o mau governo seria da tirania (SANTO TOMÁS DE AQUINO, 1997,
p. 132-133). O governo do tirano afasta-se do direito, semeia a discórdia entre os
súditos, impede que os súditos enriqueçam para que a riqueza deles não prejudique
seu governo tirano. O tirano levaria os súditos a se afastarem da perfeição das
virtudes.
As iias políticas de Aquino têm raízes em Santo Agostinho como mostram
De Boni (2003, p.108) e Costa (2005, p. 109). Assim aproximamos a interpretação
da tirania de Santo Tomás de Aquino e Inocêncio III.
Ockham, contrariando grande parte dos pensadores medievais, utilizou o
termo “principado tirânico”, sendo até título de uma obra sua. Ele colocou o
principado tirânico como contrário ao reino legítimo. O principado tirânico seria
usurpado com todo o sentido que o termo latino usurpatum possuía: apoderar-se
injustamente de algo (OCKHAM,1988, 2002).
Diante da possibilidade da tirania e de outros desvios, o papa Inocêncio III na
Venerabilem reservou para si o julgamento da idoneidade do eleito pelos príncipes
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eleitores. Não era uma interferência qualquer; o papa deixava para si a última
palavra sobre o escolhido. Era uma pretensão grande que necessitava de
argumentos definitivos para isso. Um dos argumentos escolhidos pelo papa para
legitimar sua capacidade de confirmar o eleito foi a translatio imperii.
Souza traduz em português, nas obras políticas de Ockham (1999d),
translatio imperii como translação ou transferência do império. Optamos por traduzir
translatio imperii somente por transferência do império.
O argumento que Inocêncio apresentava para legitimar a interferência no
Sacro Império Romano-Germânico era supostamente histórico, chamado de
transferência do império. O papa Leão III (795-816), segundo a interpretação dos
curialistas, havia transferido o Império que estava com os gregos para os germanos
na pessoa de Carlos Magno (SOUZA, 1989, p. 114).
Se o papa Leão III podia transferir o império, o império havia passado para
suas próprias mãos neste espaço de tempo. Portanto, em situações extremas em
que o império sofria risco de estar sendo conduzido por pessoa indigna (tirano ou
herege), o governo do império retornava às mãos do pontífice. Sustentava-se ainda
que a origem do império e sua legalidade dependia do papado. Esta era a teoria da
transferência do império que fora elemento de discussão nas universidades
medievais, sendo assumida oficialmente pelo papado.
O segundo argumento, para justificar a intervenção papal no império, era a
unção, coroação e consagração. Cabia ao papa ou a seu representante realizar este
rito sagrado que revestia de sacralidade a função real. Sobre este argumento,
Inocêncio III não oferece muitos detalhes.
Inocêncio III retomou o argumento do “vicariato de Cristo”, exercido pelo
papa, ou seja, já que Cristo é senhor de todas as coisas e sobre todo o mundo; o
papa, seu representante, teria seu poder de jurisdição em todo o mundo (SOUZA,
1989, p. 108-110).
Cristo não estava sujeito a nada, o papa como seu vigário não podia estar
sujeito ao poder temporal. Também os sacerdotes estariam fora da jurisdição
temporal, cabendo somente aos seus pares julgamentos sobre eles.
Inocêncio III pensava por analogias para explicar porque o poder espiritual era
superior ao temporal. Um exemplo de analogia está na sua epístola Sicut
universitatis ad Acerbum consulem Florentinum:
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Assim como Deus criador de todas as coisas colocou dois grandes
astros no céu: o astro maior para presidir o dia, o astro menor para
presidir a noite. Do mesmo modo, no firmamento da igreja universal,
que é chamada com o nome de céu, foi constitda duas grandes
dignidades: a maior que, assim como nos dias, presidisse a alma e a
menor, como nas noites, presidisse os corpos, esteso
respectivamente a autoridade pontifícia e a autoridade real. Além
disso, assim como a lua recebe a sua luz do sol e por isso é na
realidade menor em quantidade e também em qualidade, igualmente
pela posição e por efeito, da mesma forma o poder real recebe
esplendor da sua dignidade da autoridade pontifical. Quanto mais
adere o poder real ao pontifical, mais é ornado de luz maior. Quanto
mais se afasta de seu olhar, mais diminui seu esplendor.
(DENZINGER, 1996, p. 424, tradução nossa).
Inocêncio III retomou, com seus escritos sobre a teoria da plenitudo
potestatis, dois conceitos fundamentais: a transferência do império e o “vicariato de
Cristo”. Estes argumentos tornavam o papa o real possuidor de todo e qualquer
poder neste mundo. O poder temporal também estaria em suas mãos, mas, para
melhor ser exercido, ele o subdelegava aos reis e aos imperadores. O papa só podia
subdelegar porque quem delegava em primeiro grau o poder era Deus.
Ockham analisou como Inocêncio III e outros papas fundamentaram a
transferência da administração do império para as mãos do papa e também para
outro povo.
O primeiro argumento sobre a possibilidade do papa transferir ou ocupar a
administração do poder temporal do imperador viria da ausência do imperador. Esta
ausência poderia ser causada pela heresia e conseqüente abandono da fé cristã por
parte do imperador. Para resguardar o império que tem por ponto de unidade a fé
cristã, a ausência da fé cristã deixaria o Sacro Império Romano-Germânico
totalmente esvaziado de sua finalidade. Um imperador herege seria uma contradição
interna inviabilizando a idéia de cristandade.
O segundo argumento sobre a possibilidade de deposição do imperador
estaria ligado a um ou mais crimes cometidos pelo imperador e que segundo a razão
de todos (cristãos e não cristãos) tornava ilegítimo o exercício do poder temporal.
Também a tirania estava neste argumento.
Ockham (2002, p. 198-199) citou novamente a bula Venerabilem em outra
obra e discutiu os argumentos que Inocêncio III encontrou para afirmar que o
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imperador era um servo do papa, exercendo em nome do papa a função de
administrador do império. Para ele havia um erro fundamental na abordagem de
Inocêncio III que era esquecer a finalidade para a qual o império teria sido fundado.
Ockham (2002, p. 215-216, grifo nosso) insiste que o império foi “instituído para a
utilidade de todos os mortais.” Chama nossa atenção que ele não restringe aos
cristãos a finalidade do império.
Ockham afirmou que não era claro que a transferência do império devia ser
feita pelo papa. Ele lembrou que cabia aos leigos fazer a transferência do império
em primeiro lugar e somente se estes não fizessem, deveria o papa proceder a
transferência. O papa não teria jurisdição para transferir o poder temporal. Caberia
ao papa apenas adverti-los da necessidade de depor o imperador que contrariasse
os fundamentos do Sacro Império Romano- Germânico.
Ockham discutiu a transferência do império dos gregos para os germânicos
pelo papa Leão III. Esta transferência é um argumento histórico utilizado pelo papa
Inocêncio III para afirmar, que após este fato, o império teria sido restituído ao poder
pontifício. A expressão utilizada é “restituído” porque subjaz a idéia que o império
provém do papado. Quanto a estes argumentos, o Inceptor questionou que já não
havia prova se a transferência do império tenha sido feita pelo papa Leão III ou por
algum juiz (leigo). O papa Leão III só teria agido com justiça se os romanos lhe
autorizassem ou se não quisessem fazer essa transferência ou deposição do
imperador. Ele concluiu: “Portanto, se o império tiver de ser transferido, o papa o
poderá fazer apenas casualmente, não regularmente.” (OCKHAM, 2002, p. 127).
Ockham (1988) esvaziou o argumento da transferência do império
questionando sua autenticidade. Para ele a transferência do império é mais uma
afirmação que parte da defesa da plenitude do poder papal e não contém qualquer
fundamento real. Ockham sempre deu aos leigos, ou seja, ao próprio povo, a
legitimidade para escolher e depor seus governos. A intermediação do poder
espiritual, sendo considerado o mesmo acima do povo, não é aceito por Ockham. No
pensamento de Ockham ao mesmo tempo em que limitou as pretensões do poder
espiritual, a Igreja (poder espiritual) não é menosprezada ou ignorada. Ele buscou
uma retomada da função espiritual que pertencia em primeiro lugar à Igreja, sem lhe
negar a possibilidade de ações no plano temporal. Porém, toda ação no campo
temporal, por parte do poder espiritual deveria ser breve, legítima (exercida por
quem competia fazer ou não fazer) e extraordinária. A ação do poder espiritual no
50
plano temporal deve cessar assim que corrigido o problema e o poder devia retornar
àqueles a quem de fato pertencesse.
Na obra Contra Bendito, o franciscano argumenta que se o papa Leão III
transferiu o império dos gregos para os germânicos não o fez pela autoridade que
Cristo deu ao apóstolo Pedro, mas através da autoridade dos romanos concedida a
ele. Neste caso, o poder da transferência não veio de proveniência divina, mas seria
uma concessão do povo romano (OCKHAM, 1999a, p. 61). O poder de transferir o
império pela negligência dos imperadores gregos pertencia de fato ao povo romano
por causa da própria razão de existir o império, a finalidade do império era, para ele,
o bem comum, porque o bem comum significava o bem dos súditos do reino. Se
esta era a finalidade, o poder de fato não pertencia ao papa ou ao imperador, mas
ao povo. Era buscando gerir melhor o povo do reino que os príncipes eleitores
escolhiam o imperador.
Na obra Sobre o poder dos imperadores e dos papas, na qual Ockham fez
diversas acusações à igreja de Avinhão, afirmando que ela prejudicava o império
quando ela afirmava que ele provinha do papa. Ele apresentou um argumento
simples dizendo que o império antecedeu legitimamente o papado, ou seja, existiu
antes e exercia um direito legítimo (OCKHAM, 1997, p. 206-207). Ele usando
constantemente a expressão “igreja de Avinhão” quer distinguir entre a verdadeira
Igreja e aquela guiada pelos papas João XXII, Benedito XII e Clemente VI (1342-
1352).
Ockham recordou outro acontecimento histórico no reino de Aragão. Em 1283
o papa Martinho IV (1281-1285) fez a transferência do reino de Aragão. Nesta
transferência o papa Martinho IV excomungou ao rei Pedro III e como o papa
afirmava que Aragão era feudo pontifício, destituiu seu rei e entregou-o qualquer rei
católico que quisesse conquistá-lo (GARCIA-VILLOSLADA, 1988, v. 2, p. 541-545).
Ockham (2002, p. 128) não podia contestar a realidade do acontecimento, afirmou
que foi uma agressão, ato iníquo e que não deveria ter acontecido. Ele recusou tanto
as interpretações da transferência de reino de época mais próxima como outras
possíveis transferências que tenham ocorrido. Para ele, estas interferências papais
feriam a própria essência da função do papa na cristandade. O papa teria a função
predominantemente de ordem espiritual, ou seja, para o bem da salvação dos fiéis.
O que se chamou aqui de “bem da salvação” tem também seu alcance no poder
temporal, mas isto só poderia ocorrer quando o governante fosse ou se tornasse
51
herege ou injusto, quebrando com isto a unidade pretendida do império erigido sob a
fé cristã.
Ockham julgou que, com os argumentos apresentados, teria esvaziado o
argumento da transferência do império usado por Inocêncio III, na Venerabilem. A
idéia da transferência do império foi retomada pelos papas João XXII e Benedito XII.
Sobressai nestas discussões que Ockham defendia que o poder temporal que
provém de Deus de modo imediato, ou seja, sem intermediários, para o povo. Essa
é uma interpretação que confrontava tanto os partidários do papa como, dos
imperadores.
A transferência do império possuía um texto de suposto caráter histórico
citado pelos papas medievais para juridicamente comprovar a posse do Patrimônio
de Pedro e a submissão dos imperadores ao papa. Este texto é a Donatio
Constantini.
1.6 OCKHAM E A DONATIO CONSTANTINI
Ockham e seus opositores, na questão do poder pontifício, conheceram o
texto da Donatio Constantini (Doação de Constantino) tamm chamado de
Constitutum Constantini, que desde o século XV já se duvidava de sua autenticidade
(GARCIA-VILLOSLADA, 1988, v. 2, p. 60). Ockham (1988, p. 183-194) apontou a
possibilidade da falsificação do texto da Doação de Constantino, ele usou a
expressão “apócrifo” para este texto, embora não afirme diretamente o que seja.
Hoje, não resta nenhuma dúvida quanto à falsidade deste texto. Estudos recentes
mostram divergências sobre o ano de composição do texto da Doação de
Constantino e o local.
Baronio defendeu que a Doação de Constantino foi composta em Bizâncio
entre os anos de 750-850. J. Friedrich defendeu que foi composto entre os anos de
638-754 sem mencionar local de composição. Ignácio Doellinger, L. Duchesne, W.
Levison, R. Holtmann e A. Schoenegger defendem que foi escrito em Roma. H.
Grauert e P. Kirsch defenderam a origem francesa da Doação Constantino, sendo o
texto composto na abadia de Saint-Denis entre os anos de 840 a 850. Max Buchner
defendeu que a origem do texto está em Reims na França (GARCIA-VILLOSLADA,
52
1988, v. 2, p. 59-60). Parece mais plausível a teoria que defende sua origem nos
meios romanos durante o século VIII porque há, no texto, uma preocupação
constante em mostrar que Roma teria sido doada ao papa.
Julgamos que era importante para Ockham tratar estes argumentos da
Doação de Constantino, por isso ele citou quase literalmente o texto por duas vezes,
uma, na obra Oito questões sobre o poder do papal e outra, no Brevilóquio sobre o
principado tirânico (OCKHAM, 1988, 2002). A leitura do texto da Doação de
Constantino mostra o imperador Constantino Magno submetendo-se à Igreja cristã,
prestando juramento de fidelidade ao papa Silvestre, fazendo doações de terras ao
papa e aparecem também referências indiretas ao império que estava instalado em
Bizâncio. Consta, no texto da edição crítica da Doação de Contantino feita por
Fuhrmann (1968), o primado do papa sobre as sés de Jerusalém, Alexandria,
Antioquia, Constantinopla e todas as outras igrejas como sendo concedido pelo
imperador Constantino. O franciscano, após apresentar o texto da Doação de
Constantino, fez um resumo sobre seu conteúdo:
Deste texto deduz-se que, ao menos após a doação de Constantino,
o império é reconhecido como vindo do papa, porque sendo Roma a
cabeça do império, se a partir de eno o papa teve a dignidade
imperial de Roma, segue-se que teve o principado e o poder sobre o
império romano. Por isso, ao menos a partir de eno, qualquer
imperador devia reconhecer o império como vindo do papa.
(OCKHAM, 1988, p.192).
A definição das motivações que levaram à composição do texto da Doação de
Constantino é assunto controverso. Bertelloni (1995, p. 113-131) preferiu, nas suas
pesquisas sobre as motivações da composição falsária do texto, apontar três pontos
comuns entre os historiadores: 1) confirmar o primado do papa; 2) assegurar a
soberania do papado no Império Ocidental; 3) submeter ao papado à rebeldia
política e religiosa do Império Oriental. Bertelloni defendeu tamm que com o texto
da Doação de Constantino acrescentava-se um suposto “fato histórico” às
discussões sobre a legitimidade da coroação de Carlos Magno (768-814) como
imperador pelo papa Leão III. Havia argumentos teóricos e teológicos suficientes
para defender a legitimidade, mas o compositor do texto quis acrescentar a
53
confirmação histórica, buscando assim coincidir a história com a doutrina. A
falsificação de textos, algo presente constantemente na Idade Média, provém da
idéia que a falsidade legítima de um texto viria não da realidade dos fatos, mas se o
que se quer demonstrar com os textos coincide ou não com o que se julga como
verdadeiro.
Ockham não comentou aspectos relacionados ao Império do Oriente que
constavam na Doação de Constantino. Ele preferiu contestar os aspectos em que a
Doação era usada como prova para a plenitude do poder do papa. Bartelloni (1995,
p. 118) afirmou que a Doação de Constantino pode ser a primeira expressão formal
do propósito do papa de tornar-se soberano absoluto. Logo, Ockham teria
contestado um argumento importante dentro da doutrina da plenitude do poder, se
concordarmos com Bartelloni.
O suposto gesto dos bens concedidos ao papa, a instituição do primado de
Roma e a entrega de toda a cidade de Roma, a província de Roma e outros lugares
da Itália que se encontram na Doação de Constantino não demonstravam, segundo
Ockham, que o poder temporal se considerasse menor que o poder espiritual. Ele
utilizou o mesmo texto que os partidários da plenitude do poder evocavam para
provar seus argumentos e deu-lhe uma nova interpretação. Para ele, a Doação de
Constantino reafirma que a função papal é, em primeiro lugar, “promover o culto
divino e a solidez da fé cristã.” (OCKHAM, 2002, p.74-77).
Ockham fez uma inversão nos argumentos de seus adversários que queriam
defender que o poder temporal pertencesse ao papa.
Os adversários de Ockham partiam de afirmações do papa Inocêncio IV
(1243-1254) para afirmarem a plenitude do poder sobre a chamada “restituição” do
poder temporal que Constantino Magno fizera ao papa Silvestre. Para Ockham não
aconteceu qualquer restituição do poder, como se o poder antes fosse da Igreja,
tivesse sido usurpado pelos romanos e depois devolvido (restituído) por Constantino.
Ockham reconheceu que os soberanos que exerceram e que na época em que está
escrevendo (1342) exercem o poder temporal fizeram-no e fazem-no de modo
legítimo. Outros defendiam que existiam governos legítimos somente após o papa.
Havia, entre os defensores da plenitude do poder, a idéia de que todos os
bens (terras e províncias) pertenciam ao papa já que era o “Vigário de Cristo”. Esse
pensamento estava na base da Doação de Constantino. Por isso, nenhum bem de
um rei ou de um imperador poderia ser dado ao papa, mas só restituído. Somente a
54
palavra restituição (restituere) caberia para explicar a passagem de um bem de
qualquer pessoa para o papa. Essa era a idéia de Inocêncio IV quando cita a
“Restituição ou Doação de Constantino.” (OCKHAM, 2002, p.175). Ockham não
aceitou o termo restituição para os bens concedidos ao papa. Para ele, na Doação
de Constantino, o imperador ofereceu os bens à Igreja por sua vontade e pela
primeira vez, ou seja, não foi uma restituição. O gesto da Doação de Constantino
não diminuiu o poder do imperador, mas confirmou o imperador como legislador em
primeiro grau do poder temporal.
Ockham questionou ainda que o texto da Doação de Constantino não listava
as chamadas regiões orientais. Assim o poder papal, pelo próprio texto da Doação
de Constantino, foi limitado porque o papa Silvestre não recebeu todas as terras do
império, mas uma parte. Se o papa fizesse a concessão da administração dos reis,
só poderia fazer a concessão na Itália e nos reinos ocidentais. Ockham teria
recusado, exatamente, a função subliminar, segundo as pesquisas citadas, de
colocar o Império Oriental e especialmente Bizâncio sobre a tutela papal. Assim a
abrangência geográfica do poder temporal do papa ficava limitado.
A transferência do império, a Doação de Constantino e o Dictatus Papae
estavam na base dos argumentos dos curialistas (partidários do papa). Bonifácio VIII
acrescentou ainda outras sustentações para a doutrina política dos papas.
1.7 A SITUÃO POLÍTICA E RELIGIOSA NO PONTIFICADO DE
BONIFÁCIO VIII
O período que compreende a presença dos papas, em Avinhão, de 1305 a
1378 pode ser classificado como o do enfraquecimento da influência papal nos
reinos. Sintomática foi a disputa entre o papa Bonifácio VIII e Felipe IV, o Belo, no
período que antecedeu a mudança para Avinhão. Inicia-se um novo tempo em que o
papado não disputa forças somente com o imperador. São os reinos com seus
príncipes que agora contestarão as ações dos papas e cardeais. É o período do
declínio do Sacro Império Romano-Germânico e o fortalecimento de uma política
descentralizada. A unidade pretendida de um rei, uma fé, um território, tão
característica da Alta Idade Média, foi sendo substituída por diversos reinos
55
autônomos e insubmissos. Foi um período decisivo para a contestação das
pretensões papais.
1.7.1 A SITUAÇÃO INTERNA DA IGREJA
Os anos de Bonifácio VIII (1294-1303), antes cardeal Benedetto Caetani,
começaram com crise interna e externa na Igreja.
O século XIII perturbou a estabilidade alcançada pela Igreja no ocidente nos
dois séculos anteriores. Esta estabilidade era muito mais que a possibilidade dos
clérigos cuidarem dos assuntos religiosos como conversão, expansão do
cristianismo ou oficiarem o culto sagrado; era uma situação mais favorável ao
papado que se firmava como interventor nos problemas e situações especiais dos
reinos nascentes e do Sacro Império Romano-Germânico. Os reis se rebelaram
contra a vontade dos papas de se colocarem acima de qualquer poder instituído.
Nas questões internas da Igreja, o papa Celestino V (07/1294-12/1294),
antecessor de Bonifácio VIII, depois de um período de vacância de dois anos e cinco
meses, renunciou no mesmo ano, ato incomum para um romano pontífice. Os dois
anos sem um papa haviam contribuído para o aumento das divergências na Igreja.
Os cardeais italianos e franceses estavam em discórdia, motivados por seus
próprios reis e buscando interesses pátrios.
Outra situação conflituosa para Bonifácio VIII surgiu com os Cardeais Pedro e
Tiago Colônia. Há duas versões para o conflito entre o papa e os cardeais. Na
primeira versão, narra-se que os Colônia eram aliados do papa e apoiaram-no para
assumir o pontificado. Esta aliança terminou por problemas internos da família dos
Colônia. Os bens da família Colônia eram administrados por Tiago Colônia. Os
sobrinhos de Tiago Colônia sentiram-se lesados e recorreram ao papa que acusou
Tiago Colônia de estar lesando seus sobrinhos. Os cardeais Pedro e Tiago Colônia,
como resposta ao papa, denunciaram que a renúncia de Celestino V havia sido
anticanônica, resultado de uma manobra de Bonifácio VIII, cuja eleição era ilegítima,
e que havia aprisionado Celestino V até a morte.
56
A outra versão nos diz que a contenda entre os cardeais Colônia e Bonifácio
VIII começou com um grande assalto aos bens transportados pelo sobrinho do papa.
O assalto foi organizado pela família dos Colônia
(GARCIA-VILLOSLADA, 1988, v. 2,
p. 583).
Após o desentendimento entre o papa e os cardeais Colônia, o papa convidou
os dois cardeais para resolverem a questão. Os cardeais se reuniram, em 10 de
maio de 1297, para debater o problema. Possuímos a decisão da reunião que
terminou pedindo que os Colônia entregassem o assaltante, restituíssem os bens
roubados e que as fortalezas de Zagaroli e Palestrina passassem ao governo do
pontífice – já que eram controladas pela família Colônia (POTTHAST, 1957, v. 2, p.
1961). Após a decisão papal, os Colônia divulgaram que Bonifácio VIII não era
verdadeiro papa e sua eleição fora contra os costumes da Igreja. No dia 23 de maio
de 1297, em tom mais forte, Bonifácio VIII os excomungou, classificando-os de
cismáticos e blasfemos. Bonifácio VIII tencionou ainda confiscar seus bens e os
afastar do colégio dos cardeais (POTTHAST, 1957, v. 2, p. 1962). Os cardeais
Colônia formaram um exército contra o papa para defenderem seus interesses. Os
cardeais foram vencidos, obrigados a pedir clemência, excomungados e exilados.
Seus bens foram confiscados e divididos entre os nobres e aliados do papa. Os
cardeais aliaram-se a Filipe IV e ao rei da Sicília.
1.7.2 O REINO DA FRANÇA, FILIPE IV, O BELO, (1285-1314) E O CONFLITO
COM BONIFÁCIO VIII
O rei da França procurava a expansão de seu reino lutando com os ingleses e
ampliando seu poder. Cercou-se de conselheiros que apoiavam o absolutismo do rei
e que se inspiravam no Direito Romano. Para manter as guerras, o rei necessitava
cada vez mais de recursos. Para isso, taxou o clero e ainda suprimiu a Ordem dos
Templários, acusando-os de heresia e imoralidades, apreendendo suas posses e
tesouros.
57
Os conselheiros do rei da França o aconselharam a taxar o clero de seu país.
As taxas para o clero levantaram a oposição de Bonifácio VIII. Os conselheiros do
rei defendiam a autonomia e supremacia do poder temporal. Bonifácio VIII escreveu
a decretal Clericis Laicos em 1296 em resposta a Felipe IV. A decretal condenava à
excomunhão toda ação por parte dos seculares e também clérigos que entregassem
bens da Igreja sem a permissão do papa, ou seja, uma ação diretamente contra o
rei. Filipe IV ameaçou o papa. Diante da ameaça, o papa voltou atrás e publicou o
documento de Etsi de statu sobre a canonização de Luís IX da França. O recuo do
papa frente ao rei da França com a canonização de Luís IX foi uma ação necessária
porque as lutas com as famílias Aragon, família siciliana, e Colônia o deixaram
enfraquecido. Atrair mais um inimigo, ainda forte como Filipe, seria algo perigoso.
Mas Filipe IV e Bonifácio se enfrentaram novamente por causa da nomeação do
bispo de Pamiers. O rei ignorou o direito pontifício de escolher os bispos. A resposta
de Bonifácio VIII veio através da bula Unam Sanctam.
No ano de 1300, o papa resolveu convocar os cristãos para o chamado
jubileu. Esta convocação provocou muitas peregrinações à Basílica de São Pedro
em Roma. Incentivando a peregrinação, o papa instituiu a chamada “indulgência
plenária”. A indulgência consistia na possibilidade dos peregrinos serem perdoados
de todos os seus pecados desde que, segundo as palavras da bula de convocação
chamada Antiquorum habet, “de modo respeitoso, façam penitência e se confessem”
(DENZINGER, 1996, p. 492, tradução nossa). O pontífice percebeu a força de sua
convocação para o jubileu com a vinda de muitos peregrinos a Roma. RAPP (1973,
p. 7) afirmou que a vinda de tantos peregrinos trouxe novo incentivo ao papa. O
papa interpretou que a resposta obtida com a convocação do jubileu confirmava que
ele reinava unânime e vigorosamente sobre os seus fiéis, sendo o grande líder
espiritual e temporal do ocidente cristão.
Em 1300, no mesmo ano do jubileu, a família Colônia passou a “acusar”
Bonifácio VIII de ter matado Celestino V. A abdicação causou uma situação estranha
na Igreja, pois existiam ao mesmo tempo dois papas. Com medo de que se
desenvolvesse algum cisma, Bonifácio VIII prendeu seu antecessor até a morte. Um
piedoso cardeal, historiador contemporâneo, procurando amenizar o gesto de
Bonifácio, disse: “Para afastar o perigo de um cisma, Bonifácio mandou fechar
Celestino, até a morte, no castelo Fumone, cercando-o, no entanto, de todo o
respeito.” (CÂMARA, 1957, p. 176).
58
O novo ânimo dado pelo jubileu trouxe confiança ao papa para mais uma vez
atacar o rei da França. O conflito ressurgiu em 1301 por causa da escolha feita pelo
rei do bispo para a cidade de Pamiers. Como o papa insistia em se opor ao rei, ele
convocou uma assembléia no seu reino para julgar os atos de Bonifácio VIII. Na
assembléia, Filipe acusava o papa de heresia, de haver usurpado o pontificado e
pedia a convocação de um concílio geral com a intenção de destituir o papa e
escolher outro. A reação de Bonifácio VIII não demorou, entre outras coisas, veio
através da bula Unam Sanctam. Filipe não aceitou as posições do papa, e ainda,
instigado pelo conteúdo da Unam Sanctam, resolveu atacar o pontífice.
As tropas do rei, chefiadas por Guilherme de Nogaret, chegaram a Agnani em
1303, terra natal do papa. Fizeram do papa um prisioneiro e insultaram-no. Tirar a
vida do papa seria perigoso, além do mais tencionavam levá-lo preso para que
pudessem começar o concílio, mas seus compatriotas expulsaram as tropas do
rei. O papa faleceu pouco tempo depois.
1.7.3 BONICIO VIII E OS ESPIRITUAIS
A situação de Bonifácio VIII com os franciscanos faz parte das dificuldades
internas da Igreja, mas foi dado destaque porque por nós consideramos importante
para o seu pontificado e para a história do papado a oposição que alguns
franciscanos desenvolveram diante da Igreja cada vez mais ligada ao poder
temporal.
O papa Celestino V recebeu, em 1294, uma comissão de franciscanos
espirituais descontentes com os rumos que a ordem estava tomando. O papa
Celestino V era um eremita e não conseguiu se adaptar às exigências que o papado
requeria. A passagem da vida de eremita para o governo geral da Igreja exigiu um
grande esforço que Celestino não conseguiu realizar. Quando Celestino V pediu
renúncia, os adversários de Bonifácio VIII o acusaram de convencer o papa a
abdicar para assumir seu lugar. Denunciaram ainda que o próprio Bonifácio VIII
escreveu a fórmula de renúncia e fizera Celestino assinar. Potthast (1957, v. 2, p.
59
1921) registrou a fórmula da renúncia em que Celestino V afirmou que abdicou
livremente. Celestino V depois da renúncia retornou à vida eremítica.
Os franciscanos descontentes pediram ao papa a possibilidade de se
separarem da comunidade franciscana. Celestino V acolheu os franciscanos
descontentes e concedeu-lhes o que pediam. Permitiu-lhes fugir dos conflitos
causados pelos superiores da ordem franciscana. Ele lhes permitiu viver à regra
franciscana e passaram a se chamar “Pobres Eremitas de Celestino” ou
“Celestinos”. Os franciscanos que se dirigiram ao papa foram Ângelo Clareno e
Pedro de Macerata. A aprovação de Celestino V lhes deu uma esperança nova. Os
Celestinos, impulsionados por idéias joaquimitas, cognominaram Celestino de “papa
angélico”. O “papa angélico” ou “pastor angélico” aparecia como profecia nos
escritos de Joaquim de Fiore e de franciscanos como Pedro de João Olivi, Jacopone
de Todi e Ubertino da Casale (1259-1328)
5
. Com a aprovação da nova ordem,
outros franciscanos se uniram aos Celestinos para fugir da perseguição da
comunidade. Porém, a experiência foi breve. Bonifácio VIII, logo após a eleição,
cancelou a aprovação de Celestino.
A desaprovação dos franciscanos ao novo papa foi imediata. Acusações não
demoraram a aparecer. A primeira acusação foi a de articulação do cardeal
Benedetto Caettani para assumir o papado. Uma profecia, atribuída a Celestino V
sobre Bonifácio VIII que se espalhou durante o período, dizia que: “Entraste como
um lobo, reinaste com um leão e morreste com um cão.” (GARCIA-VILLOSLADA,
1988, v. 2, p. 563, tradução nossa). Os historiadores Falbel (1995, p. 115) e Garcia-
Villoslada (1988, v. 2, p. 583) atribuíram as acusações de manipulação para a
abdicação de Celestino V aos cardeais Colônia e à propaganda de Filipe, o Belo.
Parece-nos muito mais forte a tese de que foram os franciscanos espirituais e outros
religiosos favoráveis às idéias joaquimitas, os responsáveis principais pelas
acusações de pseudo-papa e heresia à Bonifácio VIII. A eleição de Celestino V, um
asceta, havia suscitado uma grande empolgação nos meios joaquimitas, por isso
sua rápida renúncia foi considerada uma artimanha dos inimigos de Celestino
6
. De
5
Estes franciscanos, radicais na questão da pobreza e influenciados por idéias joaquimitas, ora estariam de
acordo com os papas e em outros momentos seriam eles quem anunciavam que chegaria um novo tempo, em
que a igreja espiritual tomaria o governo no lugar de uma igreja carnal e pecadora. Esta igreja carnal seria muitas
vezes identificada com a igreja sob a tutela do papa e da cúria romana. Os reis e imperadores se aproveitariam
das idéias espalhadas pelos radicais franciscanos para tornarem ilegítimo o governo papal sobre o ocidente
cristão, podendo assim contestar a vontade papal de exercer os poderes espirituais e temporais.
6
Os inimigos de Celestino seriam os mesmos dos franciscanos chamados de espirituais. Estes estavam
descontentes com a perseguição sofrida por eles. O motivo da perseguição, segundo os espirituais, era porque
60
Boni (2003, p. 127-138) descreveu com o título de “Aventura de um Pobre Cristão” a
passagem de Celestino V pelo pontificado. Na interpretação de De Boni destacou-se
o contraste entre uma Igreja como grandeza política e a simplicidade de um monge
que interpretava a Igreja pela simplicidade do evangelho.
O papa Bonifácio VIII ampliava seus adversários: os cardeais Colônia, os
espirituais franciscanos, o clero e o rei francês. Esta proliferação de inimigos
contribuiu para a perturbação geral de seu pontificado.
1.7.4 O FRANCISCANO JACOPONE DE TODI E BONIFÁCIO VIII
Entre os franciscanos descontentes com os rumos tomados pela Igreja com
Bonifácio VIII destaca-se Jacopone de Todi. Várias fontes sobre os anos de
Bonifácio VIII omitem este franciscano, o que dificulta encontrar mais informações
sobre ele.
Garcia-Villoslada (1988, v. 2, p. 579-581) mostrou, com riquezas de detalhes,
a participação Jacopone nas acusações a Bonifácio VIII. Jacopone foi um poeta,
místico e fervoroso acusador de Bonifácio. A Frei Jacopone o papa castigou com
severidade. Foi preso até a morte do papa em 1303.
Jacopone nasceu em Todi (Itália) em 1236 e estudou na universidade de
Bolonha dedicada especialmente ao direito. Bonifácio VIII exerceu serviços jurídicos
na cidade de Todi onde conheceu seu futuro opositor.
A vida itinerante de Jacopone começou com um acidente em que perdeu a
esposa. Segundo consta, ao vê-la morta, encontrou em seu corpo um cilício de
penitência. Após o fato, ele abandonou suas coisas e saiu pelo mundo pregando
contra a veleidade da vida mundana e convidando todos a se afastarem do pecado.
Depois de 10 anos vivendo itinerante, entrou, em 1278, na ordem de S.
Francisco. Assumiu a absoluta pobreza franciscana com todo o rigor. Poeta e
místico, deixou escritos que mostram sua devoção ao Cristo no Calvário, ao Cristo
sofredor e à dor de Santa Maria diante do Cristo na cruz:
buscavam uma vida mais pobre e longe dos palácios. Estes inimigos não somente do papa e dos espirituais,
mas na interpretação deles, representavam a força da igreja “carnal” profetizada por Joaquim de Fiore.
61
Ó filho, filho, filho,/ filho, amoroso filho,/ filho, quem consola/ ao meu
coração angustiado?/[...] Filho, quem te feriu?/ Filho, quem te
espoliou?/... Oh filho branco e louro,/ filho, rosto feliz/ Filho, porque o
mundo,/ Filho, te desprezou assim. (GARCIA-GARCIA-
VILLOSLADA, 1988, v. 2, p. 580, tradução nossa).
Colocou sua pena, tamm, para acusar Bonifácio VIII com versos
contundentes:
Ó papa Bonifácio/você jogou muito no mundo;/penso que feliz/não
poderá partir./cio inveterado/converte-se em natureza;/de ajuntar
coisas/o teve cura;/não te basta o lícito /à tua fome dura./(...)
Como a salamandra/vive dentro do fogo,/assim para quem o
escândalo/te seja divertido e alegre;/da alma redimida/para que te
cure pouco”. (GARCIA-VILLOSLADA, 1988, v. 2, p. 580-581,
tradução nossa).
Há indícios de que Jacopone se uniu aos Colônia na publicação do Universis
praesens, este texto era um ato de protesto que pedia um novo concílio, a
destituição do papa ilegítimo e a não obediência a seus decretos. O texto Universis
praesens era a união de todas as acusações que circulavam na cidade de Roma
contra Bonifácio VIII.
Mesmo com a oposição interna e externa de suas ações, o pontífice, em
questão, não deixou de editar um documento contra todos os seus adversários: a
bula Unam Sanctam.
1.7.5 A TENTATIVA DE TRANSFORMAR A PLENITUDE DO PODER EM DOGMA
DE FÉ PELO PAPA BONIFÁCIO VIII ATRAVÉS BULA UNAM SANCTAM
A bula Unam Sanctam está organizada numa estrutura hierárquica. Todas as
coisas por natureza, ou seja, não por vontade humana, mas por instituição de outra
ordem, seja esta cósmica ou divina, estão escalonadas numa ordem do inferior para
62
o superior. Tudo o que existe pode ser escalonado em subordinado e subordinante.
O texto da bula usa o termo unicitate, ou seja, unidade. Esta unidade é uma variante
da subordinação de tudo a um único princípio, única Igreja, único poder, um único
governante (o papa), um só batismo, uma só fé.
Bôer (1983, p.125-143) comentou que esta hierarquia provém do pensamento
de Dionísio Aeropagita, filósofo convertido ao cristianismo no século I. Na hierarquia
cósmica de Dionísio Areopagita tudo podia ser classificado em subordinado e
subordinante. Para Dionísio Areopagita havia entre os poderes uma hierarquia na
qual o poder espiritual ocupava o ponto mais alto. Dionísio defendia que a ordem do
“cosmo” devia ser instaurada nas relações sociais.
A bula afirma que o vigário de Cristo (o papa) é a “cabeça” da Igreja. Faz uma
menção clara aos textos bíblicos de São Paulo que afirmam que Cristo é a cabeça
da Igreja. Este vigário foi escolhido por Cristo na pessoa de Pedro e continua em
seus sucessores. É a tradicional doutrina da sucessão apostólica e do primado de
Roma. A insistência de Bonifácio VIII na tese de que só pode haver um governante,
“cabeça” de tudo, é clara. Assim se pronuncia: “Há uma única igreja onde há um
corpo, uma só cabeça e não duas cabeças como um monstro, ou seja, Cristo e o
Vigário de Cristo, Pedro e o sucessor de Pedro.” (DENZINGER, 1996, p. 495,
tradução nossa). A identificação do vigário com Cristo e de Pedro com o sucessor é
fundamental para a pretensão papal.
A bula retomou a nomenclatura do “vicariato de Cristo” utilizada por Inocêncio
III. O papa como “vigário de Cristo” foi encarregado de “apascentar as ovelhas de
Cristo.” (João 21,15). Estas ovelhas significavam todas as pessoas. Por isso, os
gregos (a Igreja Oriental) e outros que não aceitavam o papa, não eram, segundo a
bula, do rebanho de Cristo.
A bula definiu que existem dois poderes, ou seja, duas espadas na linguagem
de inspiração bíblica comumente empregada pelos medievais. Há uma espada
espiritual e uma espada material e estas duas estão no poder da Igreja. A primeira
espada, segundo a bula, estava nas mãos dos sacerdotes e a outra nas mãos dos
reis e soldados, mas o poder espiritual é superior a qualquer outro. Cabe ao poder
espiritual “instituir o poder terreno e julgá-lo quando não for bom”. A bula declara que
nenhum poder julgaria o poder espiritual, ou seja, ele estava acima de qualquer
poder. Sendo o papa quem exercia o supremo poder espiritual, ele se encontraria
63
acima de qualquer poder instituído e podia julgar e depor qualquer governante que
não cumprisse bem sua função no exercício do poder temporal.
A bula afirmou que o supremo poder espiritual, mesmo sendo exercido por um
homem (o papa), não é poder humano, mas divino. Somente os hereges e os
maniqueus podiam duvidar de que existia um princípio para todas as coisas,
inclusive para o poder.
Bonifácio VIII termina a bula afirmando que: “Declaramos, afirmamos e
estabelecemos que ser submisso ao Romano Pontífice é necessário para a salvação
de toda humana criatura.” (DENZINGER, 1996, p. 494, tradução nossa).
A bula de Bonifácio VIII foi a mais forte afirmação da vontade absolutista de
Bonifácio VIII. Representou a tomada de posição contra a interferência do poder
terreno (dos reis) na administração da Igreja. Não pedia uma separação entre os
poderes espiritual e material, mas reivindicava uma hierarquia.
O poder espiritual, segundo o pensamento dos curialistas, seria instituído
diretamente por Deus e sem intermediários. O poder temporal seria em primeiro
lugar concedido aos sacerdotes e papas, porém o poder temporal seria um poder
subdelegado aos seculares – àqueles que não fazem parte do sacerdócio
institucional da Igreja – para que o exercessem visando ao bem da comunidade. O
ponto fundamental da posição dos curialistas era, neste caso, julgar o poder
temporal um poder subdelegado.
Todo poder subdelegado pode ser retomado por aquele que o concedeu ou
subdelegou. Deus concedeu os dois poderes a um único homem, a uma “única
cabeça” à qual Bonifácio VIII fez menção. Seria o papa quem possuiria os dois
poderes em suas mãos: as duas espadas. A expressão “duas espadas” é, segundo
Bôer (1983, p. 139), proveniente de São Bernardo de Claraval (1090-1153). Mas a
linguagem das duas espadas foi mencionada por Santo Agostinho (354-430). A
figura das duas espadas vem de um texto bíblico: “Disseram eles: ‘Senhor, eis aqui
duas espadas’. Ele respondeu. ‘É suficente’ (Lucas 22, 38)”!
A subdelegação do poder temporal poderia ser retomada pelo papa quando o
rei deixasse de cumprir a finalidade do poder a ele confiado. Esta era uma cláusula
que não agradava qualquer rei. Mesmo com alguns critérios instituídos pelos juristas
papais para esta interferência direta do papa no governo dos fiéis, a intervenção
papal não seria aceita.
64
Os conflitos entre os reinos e a Igreja eram constantes: problemas com
legitimação de casamentos que marcavam as alianças entre os reinos eram
constantes – nesta questão a Igreja tinha voz importante já que legislava sozinha
sobre o matrimônio. A disputa por territórios entre reinos e famílias estava
acontecendo neste período por diversos lugares, sendo o mais forte entre
Inglaterra e França. O clima não era propício para que reis aceitassem a
intervenção papal, já que esta poderia ser motivada pelos seus próprios inimigos.
Os bispos e sacerdotes reivindicavam privilégios perante as demais pessoas.
Eles queriam ser tratados pelos reis de forma diferenciada no pagamento de
impostos e nas leis do reino. A diferenciação que os sacerdotes requeriam era
atitude lógica diante da defesa da proeminência do espiritual sobre o terreno. Mas
nem sempre esta vontade foi aceita pelos reis. Um exemplo claro foi a disputa entre
Filipe IV e Bonifácio VIII, já citada. A taxação dos clérigos foi a forma encontrada por
Filipe IV para continuar sua expansão territorial. O protesto dos clérigos não sendo
ouvido pelo rei e seus conselheiros, fez Bonifácio VIII colocar-se frontalmente contra
o rei francês. A Unam Sanctam surgiu diretamente contra o rei Francês e por
extensão, contra todos os que queriam sobrepor-se ao poder da Igreja.
A diferença da Unam Sanctam de outros escritos que defendem a plenitudo
potestatis é a tentativa explícita de fazer da doutrina política um dogma de fé.
Embora alguns papas tenham chegado a defender a proeminência do poder
espiritual, não tinham colocado explicitamente a idéia como um dogma.
O dogma para a Igreja Católica é uma definição considerada legítima e definitiva sobre algum aspecto da fé. O
dogma é, a princípio, uma idéia discutida pelos fiéis e sacerdotes. Quando se chega a uma clareza e consenso entre os bispos,
as discussões são encerradas e declara-se uma verdade de fé”. Os dogmas fazem parte das verdades consideradas
essenciais para ser um fiel cristão católico. Os dogmas, segundo a definição da própria Igreja, são os conhecimentos que
pouco a pouco a comunidade dos fiéis obteve da sua própria fé e foi solenemente confirmada pelos bispos reunidos com o
papa. Segundo o teólogo Mansini (1994, p. 234), o dogma é uma declaração sobre o que e como se deve crer: “refere-se a
uma declaração dogmática, a uma proposição da revelão divina, proposta como tal pela Igreja e a que se deve prestar
assentimento de fé”. Para Mansini, uma declaração dogmática deve estar fundamentada nos textos bíblicos, na tradão da
Igreja e ser formalmente declarada como tal pelo magistério da Igreja:
Uma declarão dogmática estará ligada à Escritura e a expressões
anteriores da tradição, enquanto interpretação normativa destas;
então a função do magistério, na produção de tal interpretação será
simplesmente a de reconhecer infalivelmente, segundo o dom
recebido do Esrito Santo, que a interpretação é absolutamente
correta. (MANSINI, 1994, p. 238).
65
A Igreja medieval não utilizava a palavra dogma, preferia a expressão artigos
de fé (articulus fidei). Os artigos de fé representam cada uma das verdades de fé
contidas no credo cristão. Santo Tomás de Aquino e outros teólogos medievais
utilizavam com freqüência o conceito “artigos de fé” com o mesmo significado de
dogma (KASPER, 1993, p. 191).
A proclamação de um dogma segue uma formulação específica na qual
o papa e os bispos, reunidos, usam sua autoridade de ensinar para anunciar uma
verdade que deve ser aceita por todos os católicos. Esta formulação específica
percebe-se na conclusão da Unam Sanctam.
Um dogma, já reconhecido pela Igreja da época, é a mediação da
Igreja Católica para a salvação. Bonifácio VIII tenta dar um passo além: formula que,
sem a submissão ao romano pontífice, não podia haver salvação. A doutrina, já
difundida, da plenitudo potestatis assume uma fórmula ainda não conhecida: a
perfeita identificação entre papa e a Igreja. Para o cristão se salvar pela definição de
Bonifácio VIII, não poderia contestar a plenitude do poder supostamente concedido
aos sucessores do apóstolo Pedro. Pacaut (1969, p. 317-318) defendeu que o
processo que levou Bonifácio VIII a ameaçar com a condenação eterna aqueles que
não aceitassem a plenitude do poder seria a estreita ligação entre heresia e
condenação eterna. Uma das concepções claras entre os teólogos medievais é que
o herege não se salvaria. Quem não aceitasse o dogma que Bonifácio tentou
implantar na fé cristã seria um herege, ou seja, perderia a salvação.
A formulação final do documento que defendeu a necessidade de submissão
ao romano pontífice foi feita em tom solene e visando a um fechamento das
discussões sobre a questão do poder papal. É necessário interpretar a formulação
final da bula para que se entenda o seu objetivo. Este sentido objetivo seria a
vontade papal de fechar as discussões sobre a plenitudo potestatis e definir um
dogma de fé. Para isso, ele evocava a autoridade papal de ensinar e confirmar – em
linguagem teológica a cathedra Petri – os cristãos na fé. Na análise das disputas
entre o papa e o rei da França, percebe-se que a submissão pretendida pelo
pontífice não é somente na “questão de fé” ou referente aos artigos da fé. A
submissão política tornava-se motivo de fé. Não aceitar a plenitudo potestatis
66
significava, segundo Bonifácio VIII, não ser cristão e conseqüentemente estar com a
salvação comprometida.
Assim a tentativa de definição dogmática do papa Bonifácio VIII marcou, ao
mesmo tempo, o ponto mais alto da elaborão teórica da teocracia medieval e a
acentuação da separação entre reino e Igreja. Não se entende com isso que o
papa Bonifácio tenha constituído uma obra de sutileza e profundidade teológica
sobre o tema da plenitude do poder, mas que teoricamente quis encerrar as
discussões. Os papas anteriores ligavam a plenitude do poder ao melhor modo de
organizar a vida política da cristandade. Embora por vezes acenassem que a
plenitude do poder fazia parte da correta interpretação de certos versículos
bíblicos, não haviam afirmado claramente que crer na plenitude do poder do papa
era elemento fundamental para se alcançar a salvação, ou seja, a vida eterna.
Outro ponto importante é que se a definição dogmática fosse defendida e aceita,
todos aqueles que discutissem uma limitação do poder temporal dos papas seria
considerado herege. O dogma se fosse aceito, marcaria o fechamento da
discussão amplamente realizado nas universidades medievais desde o século XI
(ULLMANN, 2000, p. 63-68).
A atuação de Bonifácio VIII foi importante, pois marcou o apogeu de uma
idéia teocrática e o período de passagem da sede papal de Roma para Avinhão. É
importante notar que os reinos começaram a mostrar sua força, podendo impor sua
posição sobre a política do papado. Com a nova força que os reinos conquistaram, a
posição adotada pelos pontífices e pela cúria foram duas: ou se tornariam
subservientes aos reis ou afirmavam a plenitude do poder papal. Com a morte de
Bonifácio VIII, as relações entre os reis franceses e o papado se alteraram
definitivamente. De um papado que se opunha às pretensões de Filipe IV, teremos
os papas sucessores como defensores integrais da política dos reis franceses. O
motivo principal desta mudança foi a mudança da sede papal para Avinhão.
67
O início do período da sede da Igreja em Avinhão foi em 1305 quando
Clemente V aceitou todos os termos de Filipe IV, o Belo. Clemente V, francês,
anteriormente cardeal de Bordéus, fortaleceu na cúria a predominância francesa,
quebrando o equilíbrio entre os cardeais italianos e franceses no governo da Igreja.
Foi a vitória do rei francês contra o já falecido Bonifácio VIII.
1.7.6 A UNAM SANCTAM E OCKHAM
Ockham não citou o nome do papa Bonifácio VIII, mas analisou as idéias
bases da bula Unam Sanctam, ou seja, que o governo perfeito só poderia ser feito
por um uma única pessoa que centralizasse todos os poderes. O modo que Ockham
escolheu para confrontar as idéias da Unam Sanctam foi através da Sagrada
Escritura, dos escritores da patrística e dos textos do Filósofo (Aristóteles) que
abordam a organização política quanto à forma do exercício do poder, ou seja, se
ele deve estar nas mãos de uma pessoa ou de várias (OCKHAM, 2002, p. 141-144).
A posição de Bonifácio VII partia da premissa que o poder só poderia estar
bem organizado quando um único governante pudesse governar sem que houvesse
alguém acima dele. Ockham rejeitou esta posição fundamentando-se em textos
bíblicos que, na interpretação dele, recusavam o exercício do poder coercivo que
pudesse ser utilizado pelos apóstolos.
O franciscano preferiu textos dos evangelhos de Cristo em que ele orientava
os apóstolos como agirem em determinadas situações. Ele escolheu estes textos
porque sabia que a hierarquia defendia a continuidade (sucessão) entre os
apóstolos e ela, por isso textos diretamente relacionados aos apóstolos tinha uma
força maior de convencimento que outros textos. O texto citado por Ockham foi
Mateus 20, 25-26: “Sabeis que os governadores das nações as dominam e os
grandes a tiranizam. Entre vós não deverá ser assim”. Ockham citou constantemente
este texto bíblico tanto a partir de Mateus como em seus paralelos de Lucas e
Marcos. No texto, Cristo anularia qualquer pretensão de exercício do poder coercivo.
Os apóstolos e seus sucessores seriam “pastores e servos”. Ockham (2002, p. 151;
68
1999d, p. 187) fundamentou a reflexão com o texto bíblico de 1Pedro 5,2-3:
“Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, cuidando dele, não como por
coação, mas de livre vontade, como Deus o quer, nem por torpe ganância, mas por
devoção, nem como senhores daqueles que vos couberam por sorte, mas, antes,
como modelos do rebanho.
Para Ockham o exercício do poder temporal estava inseparavelmente ligado à
coerção. O ato de coerção (repressão) estava vetado aos apóstolos no citado texto
de Mateus. Ockham não questionou a legalidade do exercício da coerção
(OCKHAM, 2002, p. 148-149), mas pelo seu pensamento a coerção deveria voltada
estar também para o bem comum. O crime ou ação condenável deveria ser julgado
não a partir de critérios que beneficiassem a pessoa que exercesse o poder, seja
qual for ele, mas visando à finalidade última que seria a justiça e a paz. Algumas
vezes Ockham (2002, p. 153-166) expressou o poder coercivo como a capacidade
de punir através da força (violência). Esta força (violência) podia ser justa quando
usada para o bem comum e em conformidade com as leis. A finalidade justa da
coerção era punir os transgressores e injusta quando utilizada em proveito próprio,
contra inocentes ou ferindo os direitos dos súditos. Ockham defendeu que o poder
coercivo justo ou injusto não podia ser utilizado pelo papa. Cristo havia condenado
por diversas vezes a vontade dos apóstolos de agir de modo coercivo. Ele concluiu
que a coerção somente pode ser utilizada pelo poder temporal. O papa estando
impossibilitado de exercer este poder, não podia ser governante único. Ockham não
só recusou a pretensão do papa, mas perguntou sobre a veracidade de um governo
perfeito ser possível somente quando uma só pessoa governa como “juiz e cabeça”.
O Venerabilis Inceptor recusou a teoria que devia existir um só governante e
juiz supremo. Para ele não seria algo ruim para a comunidade que sob determinados
aspectos um governante não estivesse fora da tutela de outro, algo como uma
autonomia de poderes de modo moderado
7
. Esta autonomia moderada permitiria ao
papa nas questões espirituais que visassem à salvação (sacramentos), ter uma
autonomia que não permitisse interferência do poder temporal. E se por acaso, a
prática do pontífice demonstrasse heresia, a correção e interferência deviam ser
7
Utilizamos o termo “autonomia moderada” tentando expressar que durante a Idade Média não é
possível separar de forma completa a fé e o reino, ou seja, por mais que se queira tentar na análise
uma separação, ela é somente metodológica e não prática. A própria palavra autonomia em seu
sentido etimológico é um conceito estranho às idéias políticas dos medievais sendo um termo mais
apropriado para outros períodos históricos.
69
aplicados pelos próprios critérios internos do poder espiritual e não seria direito
legítimo do poder temporal interferir somente por ser poder temporal, mas o mesmo
estaria também sujeito aos critérios internos da fé cristã (OCKHAM, 1999d, p. 197-
198). Foi um passo importante para buscar o equilíbrio dos poderes aceitar uma
autonomia regida por critérios internos de cada poder em questão. O equilíbrio
criava a possibilidade de se evitar governos absolutos.
1.8 A COROÃO E A UÃO DOS REIS COMO ARGUMENTO PARA A
PLENITUDE DO PODER
Nas argumentações favoráveis à plenitude do poder papal, o rito de coroação,
unção e sagração dos reis e imperadores utilizado algumas vezes para marcar o
caráter sagrado da função desempenhada por eles dentro da cristandade, foi
considerado como uma prova da subdelegação do poder temporal de Deus para
conduzir o povo cristão, ou seja, passando pelo papa, ou seja, o poder temporal dos
reis era um poder subdelegado. Embora fosse um único rito que conferia o caráter
sagrado ao poder temporal, este era divido em três partes: coroação, unção e
sagração. Algumas vezes este rito apareceu descrito pelos medievais apenas como
rito de unção dos reis. O óleo sagrado utilizado para ungir foi a parte que mais se
destacou dentro do rito, pois, especificamente, esta parte do rito levava o nome de
unção real.
Nos textos de São Paulo aparece claramente a afirmação que todo poder
provém de Deus. Este tipo de compreensão da Idade Média contrasta com
afirmações de outros séculos que procuraram explicar a origem de poder sem fazer
qualquer menção a seu aspecto sobrenatural. O texto de São Paulo que fizemos
menção se expressa assim:
Todo homem se submeta às autoridades constitdas, pois não
autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram
estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a
autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se
opõem atrairão sobre si a condenação. (Romanos 13, 1-2).
70
A coroação, unção e sagração de reis pelo papa não eram gestos meramente
religiosos. Se os primeiros papas agiram pensando apenas em conferir um caráter
sagrado à função real, papas posteriores utilizavam este ritual como um argumento
para afirmarem que era o poder espiritual que conferia legitimidade ao poder
temporal.
Segundo Schmitt e Le Goff (2002, p. 398), nem todos os reis eram ungidos.
Esta unção era reservada aos imperadores, mas nem todos os imperadores na
Idade Média foram ungidos.
A unção encontrou sua fundamentação no Antigo Testamento. A monarquia
da Idade Média usou como fonte inspiradora o modelo da monarquia judaica
presente nos livros do Antigo Testamento. Foi na unção dos reis e dos juízes da
monarquia judaica que veio a idéia deste gesto. Segue a narração da primeira
unção, no Antigo Testamento, que foi repetida sobre os reis judeus:
Então Samuel pegou o frasco de azeite e o derramou sobre a caba
de Saul, beijou-o e disse-lhe: “Não foi Iahweh que te ungiu como
chefe do seu povo, Israel? Tu és quem julgará o povo de Iahweh e o
livrarás das mãos dos seus inimigos ao redor. E este é o sinal de que
Iahweh te ungiu como chefe da sua herança”. (1Samuel, 10, 1).
A unção dava ao imperador uma característica que o destacava frente aos
outros homens. A unção colocava o imperador entre os sacerdotes, sem ser um
deles. Apenas os sacerdotes eram habitualmente ungidos. Nesta unção era
conferida ao sacerdote uma missão especial na Igreja: a de zelar pela fé e expandi-
la.
Foram os próprios sacerdotes (especialmente o papa) que, ao prosseguirem
no costume da unção, criaram nos imperadores mais uma prerrogativa para
poderem interferir na Igreja. Os imperadores se sentiam revestidos de uma natureza
sagrada peculiar, por isso não aceitavam a convocação de um concílio da Igreja
para julgar um imperador, considerando este ato uma intromissão.
Importante obra para entender esta tendência de sacralizar a função do rei e
dos imperadores é “Os Dois Corpos do Rei” de Kantorowicz (1998). Segundo
Kantorowicz, na definição sobre a função do rei utilizou-se dos esquemas da
71
teologia, como, por exemplo, as duas naturezas de Cristo e a teoria do corpo místico
da Igreja, para descrever o rei e o reino. A linguagem teológica foi preferida nos
tratados de direito, com isso ocorreu uma divinização do direito e do rei:
Quem quer que esteja familiarizado com as discussões cristológicas
dos primeiros séculos da era cristã ficará surpreso com a
similaridade de discurso e pensamento nas escolas de direito, por
um lado, e nos primeiros Concílios da igreja, por outro; da mesma
forma, com a fidelidade com a qual os juristas ingleses aplicavam,
mais inconsciente que consciente, as definições teológicas correntes
ao definirem o caráter da realeza. (KANTOROWICZ, 1998, p. 29).
De outra forma, Kantorowicz (1998, p. 120) demonstrou que o papado
assumiu cada vez mais a fisionomia de uma monarquia. O resultado foi um processo
de inversão contínuo, no qual ocorreu a imperialização do papado e a sacralização
do estado secular.
Ockham (2002, p. 73) citou as unções do Antigo Testamento. Ele começou
citando e demonstrando que a fonte inspiradora das unções que os papas
realizaram que estavam nas unções do povo judeu. A unção tornou-se um
argumento para afirmar que só o papa podia confirmar a eleição do imperador.
Ockham não aceitou essa posição, o poder de governar era conferido pela escolha
legítima e não pelo ritual de unção, coroação e sagração do escolhido. O Inceptor
Venerabilis defendeu que como o império tinha origem na vontade do povo romano,
representado pelos seus príncipes, a escolha do imperador valia por si só. O
franciscano estava sempre apontando em seus argumentos a finalidade do império,
por isso afirmou que para evitar problemas sucessórios que prejudiquem a todos, a
eleição devia conferir direito de administração plena (OCKHAM, 2002, p. 220).
Apesar da vontade, manifestada pelos papas, de exercer a supremacia, o
próximo século conheceu o fortalecimento dos reis e seus reinos, quebrando uma
estrutura de governo da cristandade elaborada e querida pelos partidários do papa.
1.9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
72
Enquanto Guilherme de Ockham permaneceu em Avinhão aguardando a
comissão que julgaria suas teses, envolveu-se na disputa entre o papado e a
sucessão imperial. Os argumentos que o papa João XXII usou para defender sua
postura frente ao poder temporal foram retirados do pensamento teológico e político
de seus predecessores. O primeiro dos argumentos era o que dava sustentação à
primazia papal partindo de alguns versículos bíblicos que têm o apóstolo Pedro
como personagem.
Ockham procurou demonstrar que os versículos bíblicos que os curialistas e
os papas interpretavam deviam ser tomados em sentido mais restritivo. O principado
que Cristo ofereceu ao apóstolo Pedro estava direcionado para as coisas
necessárias à salvação (OCKHAM, 1999d, p. 194). Se o próprio Cristo não exerceu
a plenitude dos poderes, mas se sujeitou aos magistrados deste mundo, o papa na
condição de seu “vigário” estava sujeito às mesmas condições. Suas observações
buscavam teologicamente diminuir o alcance dos versículos bíblicos da primazia
papal no poder temporal.
A afirmação da primazia da sé de Roma foi um passo necessário para a
unidade da fé cristã, sempre ameaçada pelas discussões teológicas sobre
elementos ainda não definidos nas questões de fé. Estes elementos (natureza de
Cristo, missão e função do bispo) causaram as primeiras divisões entre o ocidente e
o oriente cristãos. As soluções da Igreja Oriental preferiam uma autonomia maior
para cada bispo frente às tentativas de centralização romana. Importante foi a
interpretação dos versículos bíblicos evocados pela sé de Roma para fundamentar a
liderança romana.
Ockham percebeu que não bastava uma discussão teológica para reduzir as
pretensões dos papas e da cúria romana. Estavam entrelaçados às interpretações
dos papas supostos fatos históricos que segundo a interpretação dos mesmos:
legitimavam a posse de territórios; mostravam os reis e imperadores que
prometeram a fidelidade à Igreja; a concessão do exercício do poder temporal
aparecia como concedido pelo papa em favor da cristandade. Julgamos fatos
supostamente históricos a transferência do império dos gregos para os germânicos,
a Doação de Constantino e a unção e coroação dos reis e imperadores. O
franciscano defendia que os fatos supostamente históricos teriam outra
73
interpretação, diferente da posição papal e mais conforme a finalidade salvadora da
fé cristã.
As idéias da transferência do império e o reforço do papa como vigário de
Cristo pretendiam caracterizar o poder temporal como um poder subdelegado.
Ockham retirou esse aspecto de subdelegação do poder temporal, preferindo
caracterizar o poder temporal exercido pelos reis e imperadores como um
subdelegação do povo, ou seja, de Deus para o povo e deste para os reis e
imperadores.
Nota-se tamm na explicação das questões políticas uma estrutura apoiada
nos princípios jurídicos da Idade Média para explicar a organização e função da
Igreja. Ockham discutiu estes princípios, mas sem se deter nestes tipos de
argumentos (mesmo sendo grande o número dos princípios jurídicos evocados pelos
partidários da plenitude do poder). Ele preferiu não discutir a lei formulada, mas a
gênese da lei. Os argumentos jurídicos eram formados pelas leis do direito canônico
e romano. Se Ockham limitasse a discutir os cânones e a aplicação dos mesmos,
ficaria preso nos próprios argumentos. Ockham (1988, p. 37-41) esclareceu o seu
modo de proceder afirmando que era função do teólogo e não dos canonistas, dos
especialistas em legislação imperial ou outros, pesquisar sobre o poder do papa. O
motivo de ser prioridade do teólogo era porque o poder espiritual provinha do direito
divino, estando este direito definido nos textos bíblicos. Com esta afirmação, ele
desclassificou os argumentos jurídicos evocados pelos canonistas e afirmou que
competia aos teólogos (sendo ele um teólogo) dirimir as questões sobre o direito
divino. A plenitude do poder era evocada como um direito divino, por isso, a defesa
dos canonistas era nula. Assim terminavam agindo em causa própria:
Além disso, como, segundo os direitos canico e civil, ninguém
pode criar direito para si mesmo, nem ser juiz em causa própria,
também ninguém que tem uma causa contra outro pode alegar em
próprio favor as leis que ele mesmo estabeleceu, e por este motivo
não pode alegar também as leis de seus antecessores, quando não
são de autoridade maior que as dele. Aquelas coisas, porém, que
parecem ser de igual autoridade, parece que devem ser igualmente
alegadas em favor do mesmo. (OCKHAM, 1988, p. 39).
74
Ockham não aceitou o argumento baseado na teoria política de Aristóteles
que julgava que o melhor governo (ótimo governo) seria exercido por uma só
pessoa. Ele julgou perigoso para a fé e contra os ensinamentos bíblicos que toda a
cristandade tivesse um único chefe (“uma só cabeça”, na linguagem de Bonifácio
VIII) centralizando os poderes. Para ele, não seria contrário ao ótimo governo que
fossem mantidos dois governantes, um para cada poder. Mas como agir quando os
que exercessem o poder o fizesse de modo injusto ou contra os princípios de cada
um dos poderes? Ockham respondeu que através da finalidade específica de cada
poder, aquele que agisse contrariamente, deveria ser julgado em primeiro lugar, por
seus pares através de legislação própria. Interferências só podiam acontecer quando
os que tivessem competência para julgar não o fizessem. Resolver problemas
próprios da vida espiritual cabia ao papa, mas nem sempre este podia estar sendo
impulsionado pelos ensinamentos bíblicos, como aconteceu na questão da pobreza
de Cristo.
Ockham servindo-se da polêmica sobre a pobreza de Cristo e dos apóstolos
defendida por alguns franciscanos, encontrou, nesta posição aparentemente de
ordem somente espiritual, elementos contra os papas de seu tempo e contra a
plenitude dos poderes.
75
CAPÍTULO 2
GUILHERME DE OCKHAM E A POBREZA EVANGÉLICA
Conduzindo-o (cf. Mt 4,1), [São Francisco] ao entrar nela [o
Damião] para rezar, para rezar, prosternando-se suplicante e devoto
diante do Crucificado e tocado por visitações insólitas, sente-se
diferente do que entrara. Imediatamente, a imagem do Cristo
crucificado, movendo os lábios da pintura, o que é inaudito desde
séculos (cf. Jo 9,32), fala-lhe, enquanto ele estava assim comovido.
Chamando-o, pois, pelo nome (cf. Is 40,26), diz: “Francisco, vai e
restaura minha igreja, que como vês, está toda destruída.” (CELANO,
2004b, p. 307-308, grifo do autor).
76
2.1 CONSIDERÕES INICIAIS
O surgimento dos franciscanos no século XIII, - e tamm dos dominicanos,
mas estes em menor grau –, teve para a Igreja um sentido duplo: eles ao mesmo
tempo representavam a Igreja oficial, vivendo o que os movimentos populares de
renovação espiritual queriam, como exemplo: viver de modo simples, a pregação
itinerante e um modo de vida mais próximo da imagem transmitida na Idade Média
pelas primitivas comunidades cristãs; e por outro lado, acolhendo os franciscanos, a
Igreja aceitou oficialmente, isto é, uma ordem religiosa aprovada pelos papas e
cardeais, com elementos contestadores e para os quais a Igreja ainda não estava
bem adaptada.
Underhill (1958, p. 792-800) classificou os franciscanos da primeira geração –
mais próximos a São Francisco – e os da segunda geração como um movimento
místico, colocando-os do lado de Mestre Eckhardt e de Santa Gertrudes, a Grande
(1256-1301). Nossa abordagem é feita com outro parâmetro que não considera os
franciscanos apenas como um “fenômeno místico”.
O movimento franciscano não é somente um “fenômeno místico”, entendendo
aqui a expressão místico como algo puramente da esfera pessoal. Os homens que
aderiram aos ideais do “Pobre de Assis” não pensavam apenas numa renovação
pessoal ou individual, através de uma vida ascética. Eles, com o seu modo de
comportar, mostravam o tipo de sociedade que almejavam. No princípio os
franciscanos se autonomeavam de “penitentes” querendo se afastar de seus
pecados e erros, mas logo quiseram que a mesma penitência fosse vivida por todos
os fiéis e tamm pela hierarquia cristã. A prática da penitência que os franciscanos
faziam não estava apenas ligada a gestos que evitassem o pecado ou às punições
que se impunham por terem pecado. Algumas vezes para eles fazer penitência era
sinônimo de viver como cristão em uma ordem religiosa.
A penitência que os franciscanos viviam era, tamm, uma proposta de como
devia ser a posição mais perfeita para a Igreja, seja para as ações internas ou para
o poder temporal que ela exercia. O modo de vida dos franciscanos e outros fatores
fizeram que com que alguns franciscanos contestassem o poder temporal exercido
pelos prelados.
77
Os franciscanos descontentes no questionamento das ações temporais da
hierarquia cristã terminaram numa postura contra a teoria da plenitudo potestatis. Os
argumentos dos franciscanos contra a plenitudo potestatis estavam imbricados em
questões teológicas, em interpretações bíblicas e na prática radical de ascese. Pelas
questões teológicas que estavam na raiz dos argumentos dos franciscanos, eles
foram interpretados apenas como místicos e não “homens de política”.
O século do surgimento dos franciscanos foi bem caracterizado pelo
historiador Barracloug (1972, p. 137-212) como monarquia política. O período de
declínio do poder temporal da Igreja coincidiu com o aumento de disputas sobre a
interpretação da regra de vida franciscana. Estes fatos simultâneos — as disputas
franciscanas e do declínio do poder temporal dos papas — não permitem concluir
que as disputas franciscanas foram os fatores determinantes do declínio do poder,
mas propõem a questão se existiu ou não influência dos franciscanos na mudança
acontecida na Igreja dos séculos XIII e XIV.
As disputas franciscanas, no século XIV, sobre o que seria a pobreza
evangélica, levaram Ockham a opor-se à posição papal. Outros franciscanos
discutindo sobre a correta interpretação da Regra franciscana antecederam Ockham
na oposição ao papa. Para eles, a pobreza evangélica era um ponto fundamental no
próprio evangelho e não poderia ser desprezado pela Igreja.
As discussões sobre a Regra franciscana e a pobreza evangélica
influenciaram Ockham em sua elaboração teórica sobre o poder papal. Neste
capítulo, procuraremos demonstrar em que consistiam as discussões sobre a
pobreza evangélica e quem foram os principais defensores da pobreza evanlica.
Interessa-nos saber qual foi a influência que Ockham sofreu nos debates
sobre a pobreza. Existiria alguma ligação entre a pobreza evangélica e a plenitudo
potestais?
A principal fonte de divergência entre os franciscanos nasceu da interpretação
da intenção de S. Francisco ao prescrever a necessidade de que seus irmãos
vivessem na pobreza. Para alguns franciscanos, a intenção de S. Francisco
coincidia com o que Cristo viveu e que estava contido nos evangelhos. Partimos da
premissa que interpretar o evangelho era, neste contexto, interpretar a Regra
franciscana e vice-versa. Interpretar S. Francisco, considerado por seus frades como
perfeito seguidor do evangelho, seria interpretar o Cristo. É necessário, diante das
afirmações precedentes, começar perguntando sobre quais foram as influências que
78
S. Francisco teve em sua espiritualidade e quais aspectos ele destacava quando
pensava em pobreza evangélica.
2.2 O RETORNO AO EVANGELHO
Os séculos XII-XIII foram marcados por um retorno aos evangelhos. Na
época anterior, a leitura e citação de textos do Antigo Testamento estavam em
igualdade numérica – e muitas vezes em maior número - com os textos do Novo
Testamento. A leitura predominante dos textos bíblicos do Antigo Testamento tinha
por finalidade observar como se constituiu a monarquia judaica. A leitura dos textos
que citam o modo de governo dos judeus e a interpretação destes, objetivavam
servir como modelo para as monarquias que começavam a se fortalecer nestes
séculos. Diversas vezes encontramos Ockham citando e debatendo os textos
bíblicos que fazem menção à monarquia. Estes textos serviam para a discussão
sobre o modo de governo e de como o rei cristão devia exercer a autoridade. Com o
retorno aos textos dos evangelhos, apareceram questões motivadas pelo contexto
do século XII e analisadas segundo estes mesmos textos. Uma das questões era o
que os evangelhos entendiam por pobreza.
Nos evangelhos, Jesus chamou os pobres de bem-aventurados. Mas há
uma diferença entre os textos dos evangelistas. Em Mateus 5, 3 aparece o termo
“pobre de espírito” ou “pobre de coração”, variando conforme a tradução: “Felizes
os pobres de coração: deles é o Reino dos céus.” Já em Lucas 6, 20 aparece:
“Felizes, vós, os pobres, o Reino de Deus é vosso”. O termo “pobres de coração”
motivou questionamentos sobre o que significava a pobreza evangélica.
Questionava-se se não poderia ser a pobreza algo mais interno, ou seja,
capacidade de ser livre perante os bens materiais e não uma pobreza no sentido de
não possuir qualquer coisa. Estes questionamentos foram intensos nos séculos XI a
XIV levando os papas a se manifestarem sobre a pobreza de Cristo e dos
apóstolos. De qualquer modo, os textos bíblicos apresentam a possibilidade de uma
dupla compreensão da pobreza. Segundo Albuquerque (1983, p. 37): “Não há uma
resposta única à questão, [pobreza literal e pobreza de coração] principalmente
porque leva a ilações de ordem prática.” Os franciscanos em sua maioria
79
entenderam que a pobreza evangélica não era apenas uma liberdade espiritual
frente aos bens. A pobreza de coração permitiria possuir bens, porém mantendo
uma postura interna de pobreza que se identificaria com humildade. A pobreza
literal não permitia qualquer tipo de posse. Uma parte dos franciscanos entendia
que a pobreza de coração estava dentro da pobreza literal, ou seja, sem a absoluta
ausência de bens não se poderia falar de pobreza de coração. Assim como persiste
biblicamente a dupla interpretação da pobreza, os franciscanos trouxeram as duas
interpretações para a definição do que era a pobreza prescrita pela Regra vivida por
eles. Embora, em alguns momentos, parte da ordem optasse pela pobreza literal,
persistiam frades que interpretavam a pobreza de forma mais branda. A questão da
pobreza constituiu num dos problemas mais presentes nos primeiros séculos do
franciscanismo, tendo conseqüências internas e para toda a Igreja.
Todo o esforço dos franciscanos na questão da pobreza, deve ser
interpretado como a necessidade de renovação que acolheu a espiritualidade
medieval do século XII e XIII. Esta renovação partia da vontade de uma prática dos
preceitos contidos no evangelho. Sabatier (1920) julgou que São Francisco com sua
vontade de renovação a partir dos evangelhos (evangelismo), sofreu uma oposição
da Igreja que era na época inspirada no modelo monacal. Sabatier insistiu que S.
Francisco se submeteu à Igreja institucional, embora fosse sua intenção viver de
forma diferente. Os comentários de Sabatier à vida de S. Francisco demonstraram
uma tendência de opor o carisma e a instituição, não estando isentos de uma
posição previamente contrária à Igreja institucional. Concordamos com Sabatier em
vários aspectos, a vida franciscana se diferenciava da vida monacal, o que
poderemos perceber durante esta pesquisa.
O retorno aos evangelhos dos séculos XI a XIV propiciou que diversos
grupos de cristãos desejassem uma vida mais simples. Na medida em que surgiam
os movimentos espirituais, alguns acabavam sendo considerados hereges pela
Igreja. O que queriam era o retorno ao espírito das comunidades primitivas,
buscando ter a vida e tudo em comum, sempre inspirados nos evangelhos. Os
franciscanos não foram uma completa novidade na espiritualidade do século XIII,
estando inseridos em suas linhas gerais nos movimentos laicos dos séculos XII-XIII.
Acompanharam este período de mudança religiosa também mudanças na
economia. A economia, centrada no meio rural, expandiu-se para as pequenas
comunas espalhadas na Itália através dos mercadores (burgueses). Dentro da
80
sociedade tripartida da Idade Média, despontaram os comerciantes como um grupo
que buscava sua autonomia e queria, também, a possibilidade de exercer o poder.
A família de São Francisco pertencia à “classe” dos comerciantes. O fortalecimento
dos comerciantes marcou uma inovação no sistema feudal:
De elemento notável, mas secundário, de uma sociedade
predominantemente agrária como era a sociedade de icios da Idade
Média, o mercador transformou-se gradualmente numa figura de
primeiro plano, no criador de novas relações que minavam os
alicerces tradicionais do feudalismo. (GUREVIC, 1989, p. 165).
Outro aspecto, que sofreu alterações no século XI a XIII, foi a compreensão
de santidade. Os séculos XI–XIII tinham a vida dos santos como protótipo de
conduta para o cristão. Eles encarnavam tudo o que os medievais buscavam dentro
de uma sociedade marcada pela presença da fé cristã. Mas sabemos que a
narração da vida dos santos era baseada no que os hagiógrafos julgavam
adequado à vivência cristã, destacando, por isso, certos elementos morais e
espirituais. Sabemos que a imagem do santo foi se desenvolvendo dentro de toda a
Idade Média. A princípio, os santos foram os mártires que derramaram o sangue
pela fé, testemunho incontestável de sua fidelidade religiosa. A partir do século IV, a
figura do anacoreta com a sua fuga de todos, fuga mundi, sua luta contra o
demônio, causaram espanto aos fiéis e seriam aclamados pelo povo como os novos
santos. Logo depois dos anacoretas, foram considerados sucessivamente como
santos, os cristãos que foram bispos, nobres, reis e monges de vida comum. A
mudança na definição da santidade pode ser percebida na canonização de S.
Francisco. Pode-se afirmar que São Francisco foi um dos primeiros santos a ter seu
processo de canonização dentro dos novos critérios de santidade do século XIII. O
retorno ao evangelho, à primitiva comunidade cristã, que diversos movimentos
reivindicavam, não passaram despercebidos dos cristãos dos séculos XI-XIII. Estes
movimentos de renovação conseguiram impor sua figura de cristão ideal, ou seja,
ser santo nos séculos XI-XIII passou a estar ligado à vivência das práticas da nova
espiritualidade.
O modo utilizado para os cristãos definirem seus santos — futuramente
chamado de processo de canonização — mudou durante os séculos. Até o século
81
XII, a santidade era proclamada pelos próprios fiéis e não pela hierarquia religiosa.
Ainda não acontecia um domínio formal da hierarquia religiosa sobre a questão. O
processo de canonização de São Francisco, que aconteceu no ano de 1228 sob o
pontificado de Gregório IX (1227-1241), marcou o início do domínio formal da
hierarquia religiosa sobre os processos de santificação. Foram ouvidas
testemunhas que conheceram o santo; perguntou-se pela ortodoxia de seus
ensinamentos e foram verificados os milagres atribuídos ao santo; estes
procedimentos passaram a ser controlados pela hierarquia. A partir de São
Francisco, iniciou-se um novo modo de canonizar um santo e também,
indiretamente, assumiu que os movimentos espirituais — alguns futuramente
condenados por heresia — em alguns elementos gerais, expressavam a vontade
profunda de uma renovação da cristandade. Os movimentos espirituais praticavam
a pregação dos evangelhos de modo itinerante, vida pobre, formavam comunidades
de ajuda mútua para a vivência cristã. Os anseios da nova espiritualidade, nascidos
quase sempre de grupos de fiéis leigos, terminaram impondo também à Igreja
hierárquica, os critérios para julgar a santidade. O movimento iniciado por São
Francisco apresentava todos os aspectos que os movimentos de renovação viviam,
o que o diferencia era insistência do fundador para que os seus frades
permanecessem sempre fiéis à igreja de Roma. No modo como S. Francisco vivia a
pobreza, pode-se perceber que em nenhum momento contestou-a com a palavra a
Igreja ou a hierarquia religiosa.
2.3 SÃO FRANCISCO DE ASSIS: O NOVO CAVALEIRO DE CRISTO E A
POBREZA EVANGÉLICA
As fontes para se conhecer São Francisco se encontram nas diversas
hagiografias surgidas pouco tempo após sua morte em 1226. Elas seguem o
sistema tradicional de escrita de hagiografias, já consagradas na Alta Idade Média.
Elas sobrepõem a vida mundana e pecadora a uma vida totalmente exemplar,
dentro dos padrões de santidade de cada época. As hagiografias mostram ainda o
santo em luta interior e exterior com o próprio demônio, autor e princípio do mal.
82
Elas apresentam os milagres do Poverello de Assis realizados em vida e após a
morte, atestando a veracidade de sua santidade.
Em cada uma das hagiografias de São Francisco que chegaram até nós,
aparece de maneira clara a intenção que levou o autor a redigi-la. Celano escreveu
duas hagiografias sobre o santo. A primeira hagiografia que foi escrita por Celano
(2004a) a pedido do papa, motivada pela sua canonização. Na segunda hagiografia,
segundo Celano (2004b), inserem-se “fatos admiráveis” que chegaram depois de
terminada a primeira hagiografia, acrescentando ensinamentos de S. Francisco
para seus frades e ummero maior de milagres. A segunda hagiografia datada de
1244, escrita 18 anos depois da morte de São Francisco, trouxe aspectos novos do
cotidiano que a ordem franciscana enfrentava e outros que na primeira hagiografia
foram ignorados.
São Boaventura, ex-ministro geral dos franciscanos, foi outro dos antigos
hagiógrafos de S. Francisco. Nas suas duas hagiografias, chamadas de legendas,
São Boaventura (2004a, 2004b) quis acalmar os ânimos já acirrados entre os
defensores de uma vida pobre, sem pertences e itinerante, e os defensores da vida
nos conventos com maiores comodidades. São Boaventura apresentou duas
hagiografias aos franciscanos reunidos em Pisa no ano de 1263. O sucesso
alcançado pela chamada Legenda Maior, fez que em 1266 fosse declarada o único
texto oficial sobre a vida de S. Francisco. No mesmo ano foi mandado destruir tudo
o que havia sido escrito antes sobre S. Francisco com o objetivo de conter as
divisões que surgiam na ordem, especialmente por causa de posse de
propriedades.
Numa das hagiografias de Celano se encontra um relato mostrando que
São Francisco não queria que a ordem fundada por ele tivesse propriedades:
Ensinava os seus a constrrem pequenas habitações pobrezinhas,
de madeira e não de pedra, e a erigirem as cabanas com aparência
desprezível [...] Numa ocasião, quando se devia realizar um
Capítulo em Santa Maria da Porcncula e como o tempo estivesse
próximo (cf. 2 Tm 4,6), considerando o povo que ali não havia casa,
ignorando e, ao mesmo tempo, estando ausente o homem de Deus
(cf. 2Rs 4,42), eles constroem muito rapidamente uma casa para o
Capítulo. Finalmente, voltando o pai para lá, viu a casa e,
indignando-se, ficou intensamente amargurado. Imediatamente se
levanta para eliminar por primeiro a construção, sobe ao teto e
coloca abaixo as placas com as telhas (cf. Lc 5,19) com mão forte
83
(cf. Ez 20,34). Manda também que os irmãos subam e retirem para
longe o monstro contrário à pobreza. (CELANO, 2004b, p. 339, grifo
do autor).
A Legenda dos Três Companheiros (2004), outra hagiografia, acentuou
fortemente que a comunidade primitiva dos franciscanos não tinha e nem queria
qualquer privilégio ou posse. Estas observações são necessárias, pois os textos
que possuímos sobre a vida de São Francisco são sempre — como todo escrito
biográfico — a visão de um grupo ou de uma pessoa, tendo um objetivo, seja este
manifestado pelo seu escritor ou não. Após estas observações, pode-se descrever
alguns aspectos da vida de S. Francisco.
Na comuna de Assis nasceu e viveu um homem chamado Francisco. Filho
de Pedro Bernardone e Joana (Pica), pequenos mercadores de tecidos. A decisão
de Francisco deixar a vida familiar e aventurar-se guiado pela fé e na absoluta
pobreza influenciou inúmeras pessoas.
Amante da cavalaria, ansiando pelas honras dos nobres, ainda jovem,
Francisco se aventurou em guerras para conquistar fama e poder. No ano de 1202,
partiu para a guerra que os burgueses de Assis travaram contra os nobres de Assis
e contra a cidade de Perúgia. Seu intento de conquistar a honra dada aos bons
guerreiros foi frustrado pela derrota dos burgueses de Assis e pela sua captura.
Passou preso todo o ano de 1202, aguardando o seu resgate. Adoeceu na prisão.
O jovem Francisco tentava ascender da “classe” que ocupava como
pequeno burguês, procurando assim fazer parte da nobreza. Pertenciam à nobreza
os pequenos proprietários de terra. Estes cuidavam da administração das terras
através dos servos e da defesa de seus domínios. Através de bons serviços
militares prestados aos nobres, os homens de outra “classe” esperavam conseguir
algumas das honras que eram conferidas aos nobres. A nobreza do século XIII não
pode ser confundida com a nobreza de séculos posteriores, especialmente nos
séculos XVI-XVII. Esta nobreza tardia estava ligada a palácios e a um estilo de vida
faustoso, diferentemente da nobreza do século XIII.
O pai de Francisco de Assis era um próspero comerciante. Apesar de
possuir recursos —vivia-se a retomada da cultura monetária —, não podia usufruir
da honra que os nobres possuíam. Havia uma nascente contradição entre
burgueses e nobres: o primeiro possuía o dinheiro e movimentava a economia e o
84
segundo exercia de fato o poder. Francisco não poupava esforços para alcançar o
que almejava, mesmo tendo uma experiência fracassada em Perúgia, o jovem
Francisco não havia desistido de partir para a guerra novamente, procurando
sempre reconhecimento e status social.
Depois de um período de convalescença entre 1202 e 1204, Francisco de
Assis pensava em partir para os combates que se anunciavam contra a cidade de
Apúlia. Segundo narraram seus hagiógrafos, no fim de 1204 ou início de 1205,
enquanto pensava sobre a guerra na Apúlia, dois sonhos lhe inquietaram. O
primeiro dos sonhos ele tomou como um bom presságio:
Parecia-lhe, pois ter toda sua casa cheia de armas militares, a
saber, de selas, de escudos, lanças e outras armaduras; e
alegrando-se muito, [pensava] consigo mesmo o que seria aquilo e
admirava-se em silêncio. Pois não estava acostumado a ver em sua
casa tais coisas, mas antes pilhas de tecidos para vender. E como
estivesse não pouco estupefato diante do súbito acontecimento das
coisas, foi-lhe respondido que todas aquelas armas seriam suas e
de seus cavaleiros. Despertando de manhã, levantou-se com
espírito alegre e, julgando a visão um presgio de grande
prosperidade, assegura-se de que sua viagem à Apúlia será
coberta de êxito. (CELANO, 2004a, p. 201).
O seu segundo sonho, interpretou-o como a resposta de que necessitava:
E, pouco depois, tendo partido em viagem, como tivesse chegado
até à cidade próxima, de noite, ouviu o Senhor que lhe dizia em
linguagem familiar: “Francisco, quem pode fazer-te o melhor, o
senhor ou o servo, o rico ou o pobre?” Como Francisco lhe tivesse
respondido que tanto o senhor quanto o rico podem fazer-lhe o
melhor, concluiu imediatamente: “Eno, por que deixas o Senhor
pelo servo e o Deus rico pelo homem pobre? E Francisco
[disse]:“Senhor que queres que eu faça?”E o Senhor disse-lhe (cf.
At 9,6): “Volta para tua terra (Gn 32,9) [...] E assim, quando
amanheceu (cf. Jo 21,4), retornou às pressas para Assis, sereno e
alegre, e, tornando-se já modelo de obediência, aguardava a
vontade do Senhor. (SÃO BOAVENTURA, 2004a, p. 556, grifo do
autor).
85
Com os sonhos, Francisco iniciou um caminho diferente, ou seja, seu
processo de conversão. Deixou as armas e tornou-se “novo cavaleiro de Cristo.”
(CELANO, 2004a, p. 204) Essa nova opção gerou a fúria de seu pai, já que era o
pai quem custeava seu projeto de cavalaria. Abandonando os ideais da cavalaria se
perdia todo o investimento realizado. Em sua primeira tentativa de sair vitorioso nos
combates, o resultado foi a derrota e a prisão, tendo sua família de pagar o resgate.
No retorno para Assis, Francisco trocou suas vestes com um pobre cavaleiro, o que
significava esbanjar todo o investimento feito pelo pai:
Num certo dia, encontrou um cavaleiro pobre e quase nu, a quem
deu com generosidade, movido por compaixão e por amor de
Cristo, as próprias vestes cuidadosamente confeccionadas com que
estava vestido [...] Aquele, cavaleiro, mas pobre, cobriu o pobre
com a veste cortada; este, o cavaleiro, mais rico, vestiu com
veste inteira o cavaleiro. (CELANO, 2004b, p. 303-304).
Desta vez, Francisco desistia da cavalaria resultando em novo prejuízo à
sua família. Ter uma armadura e outras coisas necessárias ao guerreiro custavam
uma quantidade expressiva de recursos. Para mostrar o espírito de
despreendimento de São Francisco, o haggrafo narrou a doação de suas vestes,
possivelmente a armadura. A atitude do santo representava um grande prejuízo à
família, daí ser possível compreender o motivo da ira do pai pelas atitudes do filho.
Francisco de Assis frustrava os sonhos de nobreza e gastava os recursos da
família. A reação paterna foi violenta frente às atitudes que Francisco tinha com os
bens familiares:
E o pai, vendo que não podia trazê-lo de volta do caminho iniciado,
empenha-se totalmente em arrancar-lhe o dinheiro. O homem de
Deus desejava oferecê-lo e gastá-lo todo em alimento aos pobres e
na restaurão daquele lugar [igreja]... E assim, tendo encontrado o
dinheiro, [o pai] em seguida, leva-o à presença do bispo da cidade
para que, renunciando nas mãos dele a todos os bens, restituísse
tudo o que tinha. Ele o apenas não recusou a fazê-lo, mas
também, alegrando-se muito, apressou-se com espírito pronto a
fazer o que lhe for pedido. (CELANO, 2004a, p. 207-208).
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Francisco de Assis participou, como se pode notar em seus projetos de
ascensão cavalheiresca, da contradição entre as “forças sociais” presentes em seu
tempo. Abandonando a vontade de ser cavaleiro (nobre), ele buscava uma vida
pobre e sem qualquer glória. Se antes ele buscou o poder pela nobreza, após sua
conversão quer viver como os mais simples. A vida dos camponeses e de outros
deserdados do século XIII chamou a atenção de São Francisco. Eles foram os
pobres do século XIII e era esta pobreza que S. Francisco procurava. Nos primeiros
anos de conversão, S. Francisco e seus companheiros viviam do trabalho diário,
sem poderem ajuntar recursos para si como demonstra o texto da Regra: “Quanto
ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias
ao corpo, exceto moedas e dinheiro; e isto humildemente, como convém a servos
de Deus e a seguidores da santíssima pobreza.” (REGRA BULADA, 2004, p. 159).
Quando a Regra prescrevia o trabalho estava pensando no auxílio que os frades
prestavam especialmente aos camponeses. Se os camponeses tinham uma vida
pobre, os frades queriam ser ainda mais pobres, pois não podiam acumular nada
que lhes proporcionasse garantias ou benefícios. A pobreza que S. Francisco e os
primeiros frades da ordem viveram possuía, tamm, outras características.
Albuquerque (1983, p. 305-324) diferenciou as modalidades de pobreza
dentro dos textos franciscanos, classificando-as em dois pares: involuntária e
voluntária; exterior e interior. A pobreza involuntária era aquela vivida por todos os
homens e mulheres privados de alimento, moradia e outros recursos necessários à
subsistência. A pobreza voluntária consistia na opção de deixar todos os bens,
distribuí-los aos pobres e viver na imitação de Cristo “pobre e nu”. O modelo era
acima de tudo o Cristo, a forma específica era a vivida pelos pobres involuntários. A
diferença única e exclusiva estava nos pobres involuntários desejarem deixar a
pobreza; já os pobres voluntários — os franciscanos — alegravam-se na medida em
que se tornavam cada vez mais despojados de qualquer coisa. Logo, a pobreza
voluntária consistia na recusa de qualquer bem e dos privilégios que eles
proporcionavam. Quanto à pobreza interna e externa, remetia ao problema, já
mencionado anteriormente, da pobreza literal e pobreza de coração que surgia da
ambigüidade dos textos dos evangelistas. Sabatier (1920) defendeu que a vida de
S. Francisco foi uma oposição à Igreja hierárquica. A leitura dos textos do próprio S.
Francisco e dos hagiógrafos não demonstra esta perspectiva direta de choque entre
87
ele e a hierarquia. A pobreza que S. Fancisco experimentou em sua vida, não foi
por ele usada como contestação. A crítica à Igreja envolvida com o poder temporal
não era uma preocupação do santo de Assis, conforme argumenta a citação abaixo:
Mas a ênfase dada por o Francisco à pobreza involuntária ou
efetiva seria uma forma de protesto social? Os poucos textos
primários que tratam da queso parecem não autorizar uma
interpretação de que o elogio da pobreza involuntária fosse uma
maneira de criticar o estado social de eno. (ALBUQUERQUE,
1983, p. 310-311).
Viver de maneira despojada, sem possuir qualquer coisa desnecessária,
não era algo desejado somente no movimento franciscano das origens. Os monges
cristãos dos primeiros séculos, na sua consagração a Deus, abdicavam de
possíveis posses e viviam como pobres afastados de todos. Mas no século XII,
tempo de S. Francisco, embora cada monge, em particular, estivesse livre de
posses, o mosteiro; no qual estava podia receber doações e ter extensas faixas de
terra. São Francisco conhecia bem que a vida monacal, com o voto de estabilidade,
precisava de condições econômicas firmes para ser vivida. A estabilidade
significava residir sempre no mesmo lugar, salvo quando um monge saia para
fundar outro mosteiro. A estabilidade era entendida também como uma
característica da personalidade do monge, ou seja, uma atitude de tranqüilidade
frente às diversas precariedades que poderiam advir. As doações colaboravam na
estrutura interna e contribuíam para o monge viver sua regra de vida. As diversas
Regras que organizavam a vida dos mosteiros, traziam a ambigüidade para a
prática da ascese monástica: o monge queria uma vida pobre e simples; mas
também ansiava pela tranqüilidade e paz, para isso ele se exercitava na oração, no
trabalho e na prática da caridade. Como o monge podia encontrar a tranqüilidade na
agitação e na penúria dos que não tinham nenhuma posse e faltava-lhes o
essencial para viver? O monge vivia entre os apelos da alma e as necessidades do
corpo, conforme afirmou Miccoli:
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Creio que será difícil negar que o monge não é, então, apenas uma
alma em busca de Deus na orão e na solidão, mas também um
homem que necessita da tranqüilidade e da paz, num mundo cada
vez mais hostil e difícil... De facto, a tendência é fazer do mosteiro
um mundo à parte, auto-suficiente e perfeitamente organizado em
todos os seus aspectos: um centro de oração, de trabalho e
também de cultura. (MICCOLI, 1989, p. 36).
Apesar da discussão sobre a posse ou não de propriedades particulares,
não se tem muita notícia de como se dava juridicamente a posse de uma
propriedade na região de Assis. O sistema feudal enfraquecido, mas presente, não
permitia a muitos a posse da propriedade. Eram extensas áreas de terra
pertencentes ao senhor e este as distribuía aos vassalos na forma de benefício. O
“proprietário”, de fato, era o senhor feudal. Assim esta preocupação com a posse de
propriedades pode ser entendida somente dentro dos esquemas jurídicos feudais.
Era procurando superar a necessidade de possuir qualquer propriedade que
S. Francisco queria viver a pobreza. S. Francisco desejava alcançar a tranqüilidade
vivendo a extrema pobreza, ainda que isso pudesse ser contraditório ao estilo
monacal. A pobreza como ausência de qualquer propriedade coletiva ou particular,
só seria possível com um grupo de religiosos itinerantes. O estilo de vida monacal,
com a estabilidade geográfica, não impossibilitava os monges, de modo coletivo, a
terem propriedades.
A pobreza que as primeiras gerações de franciscanos viviam estava ligada
à ausência de propriedades e ao trabalho servil. É o que poderemos perceber
melhor abordando a compreensão sobre o trabalho do século XIII.
2.3.1 O TRABALHO E A POBREZA DOS FRANCISCANOS
É herança da tradição judaico-cristã uma postura contraditória sobre o
trabalho. O livro de inspiração destas duas vertentes é o mesmo: o Gênesis. A
criação do ser humano segundo a narração do Gênesis é um fato extraordinário,
porque o ser humano “é imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26) e “criado
para cuidar do jardim que Deus tinha plantado.” (Gênesis 2,15). O trabalho
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realizado pelo ser humano, é obra que atualiza a própria criação de Deus. No
mesmo livro do Gênesis, o trabalho é visto como uma maldição ao homem e à
mulher pecadores (Gênesis 3, 17-19). O livro é um ajuntamento de tradições
judaicas que mostravam a dualidade da compreensão do trabalho conforme
demonstraram os estudos sobre o livro do nesis organizado por De Pury (1996).
O trabalho, especialmente o realizado com as próprias mãos, era sinal de
pobreza na interpretação de S. Francisco. São Francisco seguiu as inspirações
sobre o trabalho presentes na Regra de São Bento adaptando-as a seu contexto e
forma de vida. Na sociedade tripartida dos séculos XII-XIII são os camponeses
(laboratores) que ocupam uma posição inferior dentro da sociedade medieval
italiana. Viviam sobre a proteção de um senhor. Os camponeses deviam ao senhor
a proteção e a concessão do campo em que trabalhavam. Embora as estruturas
feudais sejam mais frouxas na Itália ou nem mesmo tenham existido, conforme
defendeu Le Goff (2001), elas estavam presentes em alguns elementos. A presença
da nobreza guerreira estava por toda a Itália e movimentavam guerras. No século
XIII, as principais lutas aconteceram entre os partidários do papa ou do imperador.
As fábulas dos cavaleiros estavam na mente dos jovens, fazendo-os sonhar com a
honra que viria dos combates. Nos desejos do jovem cavaleiro Francisco de
Bernardone estava a vontade de possuir honra através de combates.
São Francisco escolheu o trabalho com as próprias mãos como uma das
principais características da pobreza que queria seguir, recomendando aos seus
irmãos de ordem que trabalhassem fiel e devotamente:
Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar,
trabalhem fiel e devotamente, de modo que, afastando o ócio que é
inimigo da alma, não extingam o esrito (cf 1Ts 5,19) da santa
oração e devoção, ao qual devem servir todas as demais coisas
temporais. Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para
seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e
dinheiro; e isto humildemente como convém a servos de Deus e a
servidores da santíssima pobreza. (REGRA BULADA, 2004, p.
161).
A expressão “ócio que é inimigo da alma” provém literalmente do capítulo
48 da Regra de São Bento, pertencendo à herança monástica que exerceu
90
influência profunda na concepção franciscana de trabalho. A Regra de São
Francisco assumindo a expressão beneditina, demonstrava que o trabalho
representava dois pontos importantes: afugentava o ócio e era expressão de
pobreza. O ócio era o tempo livre em que o espírito seria perturbado pelas
tentações. O biógrafo oficial de São Francisco, Celano, descreveu que:
Dizia que osbios, que não se ocupam habitualmente com nenhum
trabalho, deviam ser logo vomitados da boca de Deus. Nenhum
ocioso podia aparecer diante dele sem ser asperamente corrigido.
Como ele mesmo era excelente exemplo de perfeição, estava
sempre ocupado e trabalhava com as próprias mãos, sem deixar
que se perdesse nada do valioso dom do tempo. Disse uma vez:
“Quero que todos os meus frades trabalhem e estejam sempre
ocupados, e os que o sabem, que aprendam algumas artes”. E
deu o motivo: “Para sermos menos pesados para as pessoas e
para que não fiquem vagando na ociosidade o coração e a língua”.
Mas não deixava o pagamento ou gratificão pelo trabalho com
quem os recebia: tinham que os entregar ao guardião ou à família.
(CELANO, 2004b, p. 401).
Este pensamento sobre o ócio, muito espalhado no tempo de São
Francisco, tinha origem, sobretudo, nas abadias e nos mosteiros. Na vida do
monge, o ócio devia ser ocupado a qualquer custo, evitando que o monge fosse
tentado. A oração e o trabalho pilar do espírito monástico se insere numa luta
contínua contra o mal e o pecado. Os monges cristãos entendiam o trabalho como
um meio para afastar o ócio. O ócio era o “inimigo da alma”, ou seja, a ausência de
atividades fazia com que a mente ficasse vaga e assim os maus pensamentos, isto
é, o pecado, nela se alojava. S. Francisco ligava o trabalho à pobreza, mas sem
esquecer o ócio como “inimigo da alma”. Para S. Francisco não se separavam, o
trabalho com as próprias mãos e a pobreza evangélica.
O trabalho para os franciscanos não podia ser realizado para acumular
dinheiro ou outros bens, como S. Francisco demonstrou em seu Testamento:
Éramos iletrados e submissos a todos. E eu trabalhava com as
minhas mãos e quero trabalhar; e quero firmemente que todos os
outros irmãos trabalhem num ofício que convenha à honestidade.
91
Os que não sabem trabalhar aprendam, não pelo desejo de receber
o salário do trabalho, mas por causa do exemplo e para afastar a
ociosidade. E quandoo nos for dado o salário, recorramos à
mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta. (Testamento,
2004, p. 187-188).
O texto citado provém do Testamento de São Francisco. Não é um texto
legislativo dos franciscanos, mas contém as últimas vontades e o “tesouro” que
Francisco quer deixar para seus confrades. O Testamento retomou recomendações
da Regra aprovada em 1223 pelo papa Honório III, continuando os temas do
trabalho contra o ócio e a insistência em não receber dinheiro. A novidade do
Testamento estava na frase “trabalhava com as minhas mãos”. O texto nos recorda
a diferenciação entre trabalho manual e outros tipos de trabalho desempenhados
pelos nobres. O trabalho com as próprias mãos seria um ofício servil; destinado aos
pequenos e pobres. Já o trabalho intelectual exercido pelos mestres das
universidades, embora tenha sido considerado um trabalho pelos mesmos, gerou a
desconfiança de São Francisco. O que nós faz chegar a essa afirmação é a frase
que antecede o trabalho manual: “éramos iletrados e submissos a todos”. Foi com
relutância que São Francisco aceitou os estudos na sua ordem. Embora no
Testamento ele afirmasse: “E a todos os teólogos e aos que ministram as
santíssimas palavras divinas devemos honrar e venerar com quem nos ministra
espírito e vida.” (TESTAMENTO, 2004, p. 189). Ele já havia intuído que as
universidades nascentes constituíam um novo centro de poder.
Desde que as universidades medievais surgiram como uma progressão das
escolas catedrais durante o século XI, os principais dirigentes das igrejas e do
governo geral (bispos, papas e abades) haviam cursado seus estudos numa das
universidades. Juristas e outros auxiliares dos reis tamm eram escolhidos entre
os formados nas universidades. Por isso, tanto os pontífices como os reis
contribuíam para a manutenção, criação e melhoria das universidades, como
descreve Ullmann (2000, p. 106-107). A vontade de receber os possíveis benefícios
freqüentando as universidades era comum entre os alunos. S. Francisco quando se
colocou com desconfiança frente aos estudos, não estava pensando propriamente
no saber possivelmente adquirido nas faculdades, mas na ávida vontade de honras
e poder, manifestação que seria contrária à pobreza.
92
Le Goff (1988), afirmou que os mestres das universidades dos séculos XII-
XIII haviam destacado o valor do trabalho e os mesmos se consideravam
trabalhadores. Os nobres e o clero não se consideravam trabalhadores, embora os
dois pudessem desempenhar atividades que podem propriamente ser classificadas
de trabalho, esta não era sua função principal. Aos camponeses, cabia-lhes
propriamente o nome de trabalhadores.
O trabalho do camponês era um ofício difícil. Até o ano de 1200, a maioria
das ferramentas de trabalho eram feitas de madeira com alguns pontos ou
extremidades importantes de ferro. Segundo Heers (1980, p. 27) havia uma
preocupação com os pobres pois o costume não permitia que se cortasse a colheita
até o solo, deixando assim uma parte que podia ser ajuntada para a cobertura das
casas e para a alimentação dos animais. A utilização do arado era caro para o
camponês podendo ser utilizado somente pelos mais ricos. Segundo Heers (1980,
p. 28) a utilização do arado (lavra) diferenciava os camponeses em dois grupos: os
lavradores (que eram mais ricos e usavam o arado) e os braçais (que não tinham
condição de ter arados). Pode se perceber que S. Francisco ao descrever o
trabalho com suas próprias mãos no seu texto chamado Testamento, não só se
identificava com os camponeses, mas com os pobres camponeses desprovidos de
riquezas e seguranças. Trabalhar com as próprias mãos era a primeira vontade de
S. Francisco para se sustentar, mas ele prescreveu ainda outra possibilidade: pedir
esmolas como prova de pobreza.
No Testamento (2004, p. 188) S. Francisco recordou que ele e seus
primeiros companheiros viveram, quando o trabalho com suas próprias mãos não
foi suficiente, da esmola: “E quando nos for dado o salário, recorramos à mesa do
Senhor, pedindo esmola de porta em porta.”
Os franciscanos tamm chamados de mendicantes pelo hábito de pedirem
esmola; a si mesmos não atribuíam este título. Pedir esmola está presente na
Regra Bulada — aprovada pelo papa — quanto na Regra Não Bulada escrita por
São Francisco. Pedir esmola aparece no texto citado com vários detalhes como se
verá abaixo. O nome de penitentes foi o que São Francisco e seus primeiros
companheiros preferiram para designar a sua fraternidade. Era por penitentes que
gostavam de ser chamados, entendendo a palavra de uma forma ampla.
A penitência era a principal tarefa de cada frade: “Se em algum lugar não
forem aceitos, fujam para outra terra para fazer penitência com a bênção de Deus”.
93
São Francisco, no fim de sua vida, recordou que tudo o que lhe aconteceu foi
motivado pela vontade de fazer penitência: “Foi assim que o Senhor concedeu a
mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados,
parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu
entre eles, e fiz misericórdia com eles.” (TESTAMENTO, 2004). Ele pregou a
penitência ao povo, sendo esta sua missão como pregador itinerante: “A partir deste
momento, o homem de Deus começou, por inspiração divina, a tornar-se imitador
da perfeição evangélica e a convidar os outros à penitência.” (SÃO BOAVENTURA,
2004a, p. 564).
Sua preocupação com a penitência era constante. Não bastava falar da
penitência, era preciso ensiná-la de todos os modos, por isso escreveu duas cartas
cada uma chamada de Carta aos fiéis (2004a, 2004b). Nelas exortou a todos para
que se afastassem dos pecados e cultivassem as virtudes que venciam o mal. Para
Albuquerque (1983, p. 78) as virtudes que venciam o mal eram: a devoção à
eucaristia, renunciar a si mesmo, confessar os pecados, julgar com miserirdia,
lutar contra o excesso de alimentos e bebidas, visitar as igrejas com freqüência,
praticar a obediência, simplicidade, humildade, pureza, observar os preceitos e
conselhos de Cristo.
Vimos que S. Francisco e seus primeiros companheiros preferiam ser
chamados de penitentes, sendo que um dos modos de fazer a penitência era a
mendicância. Mas qual a razão da mendincia? Não era somente para satisfazer
as necessidades corporais. Eles relacionavam a mendicância à própria ação que
Cristo realizou:
E quando for necessário, vão pedir esmolas. E o se
envergonhem, mas antes se recordem de que Nosso Senhor Jesus
Cristo, Filho do Deus vivo (Jo 11,27) e onipotente, expôs sua face
como pedra duríssima (Is 50,7) e não se envergonhou; e ele foi
pobre e hóspede e viveu de esmolas, ele e a bem-aventurada
Virgem e seus dispulos. E quando os homens lhe causarem
vergonha e não lhes quiserem dar esmola, dêem por isso graças a
Deus; porque pela vergonha receberão grande honra no tribunal de
Nosso Senhor Jesus Cristo. (REGRA NÃO BULADA, 2004, p. 172).
94
A mendicância prescrita na Regra levaria o frade a quebrar o orgulho, logo
não se devia envergonhar dela porque o próprio Cristo a havia praticado. A
mendicância podia ser prescrita como uma forma de mostrar a pobreza do frade.
M. Mollat (1989) mostrou como a indigência era considerada um pecado no
Antigo Testamento, passando a ser interpretada no século XII como um símbolo de
humilhação. O indigente do tempo de S. Francisco unia-se na humilhação, ao Cristo
pobre e nu, ou conforme a fórmula latina “nudus nudem Christum segui” (seguir a
nu a Cristo nu). A mendicância podia ser uma ação condenada quando feita por
vadiagem. S. Francisco dizia que o trabalhador devia buscar seu sustento no
trabalho e não se aproveitar das ofertas para os outros pobres:
E eu trabalhava com as minhas mãos (cf. At 20,34) e quero
trabalhar; e quero firmemente que todos os outros irmãos trabalhem
num ofício que convenha à honestidade [...] E quando nos for dado
o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta
em porta. (TESTAMENTO, 2004, p. 189-190).
A esmola era vista como um bem para quem a oferecia. Deus teria pena de
quem oferecesse esmolas aos pobres, perdoaria as ofensas e pecados. S.
Francisco acrescentou a este aspecto, o benefício para aquele que pedia a esmola.
A humilhação de pedir esmola servia para quebrar o espírito ganancioso.
2.3.2 ALTER CHRISTUS: A INTERPRETAÇÃO DE OCKHAM DA REGRA
FRANCISCANA
Ockham em suas obras que discutem o alcance do poder do papa não fez
referências à S. Francisco. As interpretações das hagiografias de S. Francisco, o
chamavam de “outro Cristo” (alter christus), ou seja, semelhante a Cristo, tendo
essa razão o mérito de receber os estigmas de Cristo (SÃO BOAVENTURA, 2004a,
p. 635-638).
Manselli (2004, p. 48-49) destacou que a imagem de S. Francisco como outro
Cristo, apresentou diversas situações conflituosas para os franciscanos. As outras
95
ordens com seus fundadores foram entendidas como menos perfeitas se
comparadas aos franciscanos, pois só eles teriam sido fundados por “outro Cristo”.
Acrescentamos à reflexão de Manselli que uma ordem fundada por “outro Cristo”
atualizava o evangelho e por isso podia usar da pessoa de S. Francisco para
interpretar o próprio evangelho. Se Cristo era o modelo de S. Francisco — que
segundo a interpretação dos hagiógrafos foi cópia fiel —, o pensamento inverso que
partia da interpretação dos atos de S. Francisco para se entender o Cristo não
deixava de ter fundamento. Manselli interpretou o tema do alter Christus ligando-o
ao símbolo do anjo do sexto selo, presente no livro do Apocalipse. A simbologia do
anjo do Apocalipse no século XIII estava ligada à renovação da Igreja,
conseqüentemente gerando polêmicas. Segundo Potestà (2005) os estudos
contemporâneos não nos permitem afirmar que o alter Christus e a imagem do anjo
do sexto selo sejam provenientes única e exclusivamente de Fiore. Os dois temas
foram importantes na interpretação da vida de S. Francisco e estavam na base
interpretativa da regra franciscana daqueles que insistiam que ele era a renovação
esperada para a fé cristã.
Para os seguidores de S. Francisco, ele renovou a Igreja, assim como
indicava o sonho do papa Inocêncio III em que um pobre, vestido como os
franciscanos, sustentava a igreja de Latrão que ameaçava ruir. Para alguns
franciscanos, o sonho representava a importância da pobreza evangélica para a
católica.
Os franciscanos defendiam que a pobreza de Cristo e dos apóstolos era algo
possível e que S. Francisco e os primeiros franciscanos tinham vivido uma pobreza
evangélica. Esta pobreza evangélica era diferente da pobreza dos monges que
tinham a posse dos bens de forma comum. Os franciscanos não queriam a posse
de bens nem em particular e nem em comum. A discussão sobre a pobreza
evangélica assumiu uma importância vital para os franciscanos. Para Falbel (1976,
p. 48) era “a pobreza, a sancta paupertas, espinha dorsal dos ideais de S.
Francisco.” Confirma a posição de Falbel a gravidade que a questão da pobreza
evangélica tomou dentro da ordem franciscana conduzindo a mortes e prisões.
Manselli (1997, p. 213-235) defendeu que a pobreza para S. Francisco não pode
ser considerada em si mesmo, mas ela era em primeiro lugar a vontade do santo de
conformar-se a Cristo.
96
Nas descrições que faziam de S. Francisco, as hagiografias estavam repletas
de elementos que podiam ser usados para defender que a pobreza evangélica era
possível numa ordem religiosa, sendo benéfica para a Igreja. O modelo de S.
Francisco era Cristo e a comunidade do tempo dos apóstolos. O pobre de Assis
anunciou os pecados e chamou a todos para a fé. Trocou os ideais de ascensão
social sonhada com a vitória nas guerras, para viver com o trabalho de suas
próprias mãos, assim como faziam os camponeses pobres. Mas trabalhar como os
camponeses pobres não era algo novo, porque os monges já cultivavam áreas
pertencentes ao mosteiro. Os monges também arrendavam a terra a ser cultivada
aos camponeses. Por causa da forma de propriedade as ordens mendicantes
(franciscanos e dominicanos) em suas origens eram diferentes tanto dos monges
como dos camponeses.
Ockham não usou a vida de S. Francisco como argumento para defender a
pobreza de Cristo e dos apóstolos que a ordem defendia perante o papa João XXII.
Ockham julgou mais importante demonstrar a fundamentação teológica da pobreza
de Cristo e dos apóstolos.
Ockham (2002, p. 299) citou S. Francisco de modo indireto, quando
reinterpretou a Regra franciscana contra o que chamou de interpretação da igreja
de Avinhão. A Regra constituía a norma fundamental para a organização da vida
dos franciscanos. A discussão sobre qual era a correta interpretação da Regra era o
ponto teórico das discussões entre os franciscanos espirituais e o grupo opositor
chamado de comunidade.
A divisão entre a comunidade e os espirituais tinha passado por diversos
pontificados, mas prevalecia, na maior parte do tempo, uma conciliação entre as
partes. Este equilíbrio, muitas vezes momentâneo, fora conseguido através da
mediação dos papas e dos ministros gerais da ordem. A situação ficou desfavorável
aos franciscanos espirituais, desde os anos de pontificado de Bonifácio VIII. A
perseguição e condenação sistemática destes grupos foi a posição tomada pelos
papas. O papa João XXII não só perseguiu e condenou os franciscanos espirituais,
como posicionou-se contra a absoluta pobreza de Cristo e dos apóstolos, tema
controverso entre os franciscanos. Com as bulas Cum inter nonnullos e Quia
quorundam afirmava-se devia ser considerado herege aquele que considerasse que
Cristo e os apóstolos não tinham possuído nada quando estavam neste mundo.
97
Sobre a pobreza de Cristo, Ockham afirmou que na verdade, a heresia
estava na posição do pontífice. Sendo herege, o papa João XXII era ilegítimo.
Ockham (1999d, p. 220-253) enumerou vinte e nove erros na definição de João XXII
sobre a pobreza de Cristo. Ockham confrontou a bula Exiit qui seminat do papa
Nicolau III (1277-1280) com as idéias de João XXII, demonstrando que este
contradisse seu antecessor. O papa João XXII, segundo Ockham, defendia que o
uso dos bens pelos franciscanos, ainda que a posse particular ou comunitária não
fosse deles, fazia com que eles não fossem considerados pobres. A argumentação
do papa consistia em afirmar que eles utilizando (usus pauper) os bens,
apropriavam-se dos benefícios do uso. O Inceptor Venerabilis contestou João XXII
defendendo que a simples posse sem direito de domínio, ou seja, sem a
possibilidade de exercer o direito de venda, não fazia com que alguém ou os
franciscanos não pudessem ser chamados de pobres. O papa procurava provar que
o argumento do uso pobre ou simples uso (usus pauper) dos bens era inútil na
discussão da pobreza de Cristo. Ockham (1999d, p. 235) afirmou que a propriedade
comum ou coletiva dos bens tamm seria contra a plenitude da pobreza
evangélica: “Por conseguinte, possuir bens em comum, ainda que sejam poucos,
minimiza a pobreza evangélica”. Entre os graus de pobreza, não possuir bens em
comum ou em particular, seria o auge da perfeição evangélica porque estava mais
próximo do modo de Cristo.
A Regra franciscana que para Ockham buscava a perfeão evangélica, devia
ser interpretada a partir da pobreza de Cristo e dos apóstolos que fora completa, ou
seja, não possuíam nada em comum nem em particular. Apesar das discussões
constantes contra o papa João XXII sobre a plenitudo potestatis, a acusação de
heresia que Ockham repetiu constantemente contra ele e contra Benedito XII, partia
com mais veemência da questão da pobreza evangélica. Na carta ao capítulo de
Assis escrita em 1334, Ockham acusou o papa João XXII de estar revogando as
decisões de seus predecessores (BAUDRY, 1949, p. 169-171). O papa João XXII
havia revogado as bulas Exiit qui seminat e a Exivi de paradiso de Clemente V
(1305-1314). Outra questão polêmica foi a posição adotada por João XXII sobre o
destino da alma humana após a morte contrariando a doutrina comum sobre a visão
beatífica de Deus, isto é, que as almas dos justos só poderiam ter a visão plena de
Deus após o juízo universal. Na carta ao capítulo de Assis, Ockham condenou que
a visão beatífica era outra heresia de João XXII. O papa se retratou um dia antes de
98
sua morte na bula Ne super his que consta na obra de Denzinger (1996, p. 518-
520), assumindo que errou a posição tradicional da Igreja sobre a visão beatífica
dos falecidos.
A posição de João XXII contra a pobreza evangélica perseguia,
explicitamente, os franciscanos espirituais. Conforme Davis (1975) demonstrou,
com a publicação de diversas bulas por João XXII, já citadas aqui, os espirituais
terminaram sendo considerados hereges e amplamente perseguidos. As idéias de
renovação da Igreja partindo dos espirituais, profetizavam o surgimento de uma
igreja chamada de espiritual contraposta à igreja do período chamada de carnal. A
fonte dos espirituais seriam as obras e o pensamento de um abade calabrês
chamado Joaquim de Fiore. Interessa-nos saber porque a interpretação do
pensamento joaquimita pelos franciscanos gerou a oposição cada vez mais forte
dos papas a partir de 1300.
2.4 O ABADE JOAQUIM DE FIORE
Os pesquisadores dos primeiros séculos do franciscanismo afirmam que
houve uma influência dos escritos do abade Joaquim de Fiore nos frades de São
Francisco (FALBEL, 1995; MANSELLI, 2004; MERLO, 2003). As idéias do abade
foram registradas principalmente nas obras: Concordia Novi ac Veteris Testamenti,
Expositio in Apocalypsim, Psalterium decem Chordacum e De contemplatione
Trinitatis. As três primeiras obras foram reunidas por seus discípulos e publicadas
com o nome de Evangelium aeternum. O abade Joaquim, conforme se pode
perceber nos escritos que chegaram até os nossos dias, possuía um modo de
escrever que atraía pela capacidade de analogicamente ligar os textos bíblicos, pela
linguagem retórica refinada e pelo forte espírito de profecia, ou seja, descrevia o
futuro numa linguagem carregada de conteúdo e símbolos religiosos. Por seu estilo
de linguagem, o abade calabrês deve ter sido educado, provavelmente, nas escolas
monásticas como defendeu Rossato (2004, p. 12-13) e não seria de família simples.
O abade Joaquim foi considerado também um milenarista. As teorias
chamadas milenaristas surgiram na passagem do ano 1.000 e preferencialmente
escolhiam os textos bíblicos do Apocalipse como fonte de inspiração. O tempo
99
cronológico liga-se às adivinhações e continha ainda, nestas interpretações,
elementos considerados místicos.
Segundo pesquisas de Falbel (1976, p.105) e Rossato (2004), Joaquim de
Fiore nasceu em Celico, na Calábria, em 1135, ingressou na ordem Cisterciense em
1160. Tornou-se mais tarde, em 1177, abade do mosteiro de Corazzo, porém, com
o tempo, sentiu que a sua vocação era outra, indo a Roma para que o papa Lúcio III
o liberasse dessa função. Viveu algum tempo como eremita e em 1188, fundou a
ordem Florence em San Giovanni de Fiore, cuja regra foi aprovada por Celestino III,
em 1196. Em 30 de março de 1202, morreu o “profeta” calabrês, sendo sepultado
no convento de São Martinho, em Pietralata.
Joaquim de Fiore foi uma figura polêmica e as interpretações sobre sua
biografia são variadas. Considerado por alguns como monge ortodoxo e
disciplinado; foi considerado por outros como profeta e incitador de heresias contra
a Igreja. No entanto, é preciso destacar as suas idéias e as interpretações que lhe
foram atribuídas durante o tempo.
Um dos temas polêmicos do pensamento de Fiore, partiu de sua
contestação à tese sobre a trindade divina (um Deus em três pessoas) de Pedro
Lombardo. Rossato (2004) demonstrou que a diferença entre a compreensão da
trindade do abade Joaquim e Pedro Lombardo representava a própria discussão
teológica e filosófica da Alta Idade Média. A posição do abade Joaquim sobre a
trindade privilegiava a proposta agostiniana a qual sublinhava “a necessidade de
afirmar a unidade no plural, e não no singular.” (Rossato, 2004, p. 155). Outra
vertente sobre a trindade divina contestava a unidade no plural (múltiplo),
chamando esta posição de contrária à fé. Fiore escreveu uma contestação à teoria
trinitária de Pedro Lombardo numa obra chamada De unitate Trinitatis. Em 1215 o
IV Concílio de Latrão condenou somente a contestação a Pedro Lombardo
composta pelo abade Joaquim. Para Rossato (2004, p. 293-304) essa condenação
póstuma foi influenciada pela vitória da interpretação de Pedro Lombardo e quando
a citada obra de Fiore foi composta, não havia uma posição oficial aceita sobre a
explicação do singular e múltiplo na trindade. No capítulo chamado De errore
abbatis Ioachim, o Concílio de Latrão tomou posição a favor de Pedro Lombardo,
não houve uma condenação ao mosteiro fundado por Joaquim e os conciliares
elogiaram a submissão dele por apresentar seus textos à apreciação e aprovação
da sé romana (DENZINGER, 1996, p. 456-460). Mesmo com a observação feita
100
pelo concílio a certas idéias de Fiore, não foi diminuído o interesse pelas obras de
Fiore. A obras de Fiore possuíam termos comuns da mística e da teologia medieval
que podem ser encontrados tamm entre os franciscanos.
Os franciscanos espirituais retiraram sua linguagem dos textos do abade
Joaquim. Alguns termos comuns da linguagem dos espirituais podem ser
encontrados no livro Introdução ao Apocalipse de Joaquim de Fiore (2002, p. 453-
471), traduzido por Rossato: termos como “nova ordem de monges”, “homens
espirituais” contrapostos aos “homens carnais” e “nova era do espírito”.
A afirmação do abade Joaquim que mais suscitou interpretações na
posteridade está presente na obra Introdução ao Apocalipse:
O Primeiro Testamento então diz respeito a Deus Pai, pois foi
através dele que Deus Pai se revelou aos pais. O segundo refere-
se ao Filho, porque foi através dele que Cristo se manifestou aos
filhos dos patriarcas, quer dizer, a nós. O Espírito Santo, que é a
terceira pessoa da Santíssima Trindade, na verdade, foi dado aos
apóstolos de forma extraordinária no dia da Páscoa (cf. Jo 20,25).
(Joaquim de Fiore, 2002, p. 454).
Os franciscanos espirituais retiraram do texto acima a idéia das três eras
do mundo com a predominância de uma das pessoas da trindade cristã. Alguns
franciscanos julgaram que a época que eles viviam era a terceira era ou do Espírito,
era em que surgiriam os homens espirituais que pertenciam a uma nova ordem de
monges, sendo os franciscanos esta nova ordem. Esta nova ordem, segundo os
espirituais, constituía uma nova igreja, a espiritual.
2.4.1 OS FRANCISCANOS: SOB A INSPIRAÇÃO DE JOAQUIM DE FIORE?
Salimbene de Parma (2004), escreveu uma crônica cheia de acusações
contra Frei Elias e contra os frades que não eram sacerdotes. Frei Elias foi ministro
geral dos franciscanos após a morte de São Francisco e responsável pela
construção da Basílica de São Francisco em Assis. Segundo Teixeira (2004, p. 59-
101
60), a crônica de Salimbene, é de difícil datação. A crônica trata de um período que
vai de 1168 até o ano de 1287. Sabe-se, entretanto que deve ter sido concluída em
1288. Mesmo com a imprecisão, Salimbene mostrou que as profecias joaquimitas
foram abundantemente conhecidas e apropriadas pelos frades, sendo ele mesmo
um partidário das idéias joaquimitas.
Na crônica de Salimbene as ordens franciscana e dominicana foram
prefiguradas em diversos textos bíblicos. Numa das analogias, ele comparou o
texto da ressurreição de Cristo à fundação das ordens. Usando o texto bíblico de
João 20,4 — que descreve como os apóstolos Pedro e João correram até a gruta
da ressurreição e um chegando primeiro não entrou — comparou os franciscanos
ao apóstolo João que embora chegando primeiro ao papa Inocêncio III, foi São
Domingos (fundador dos dominicanos) quem iniciou primeiro a sua ordem em 1216,
conforme o texto abaixo:
Nestes tempos, surgiram duas Ordens, a saber, a dos Frades
Menores e a dos Frades Pregadores. Sobre elas o abade Joaquim
predissera sob muitas figuras contidas no Antigo e no Novo
Testamento, como: a figura do corvo e da pomba, porque aquele é
todo negro e aquela é toda variegada; dos dois anjos enviados de
tarde para destruir Sodoma; de Ese Jacó; de José e Benjamim;
de Manasses e Efraim; de Moisés e Aarão; de Caleb e Josué; dos
dois exploradores enviados a Jericó por Jos; de Elias e Eliseu;
de Jo Batista e do homem Jesus Cristo; dos dois que iam a
Emaús; de Pedro e João que iam ao sepulcro, dos quais se diz que
corriam juntos os dois; igualmente dos mesmos que subiam ao
templo para a nona orão.[...]. (SALIMBENE DE PARMA, 2004, p.
1373-1374).
No texto acima, o autor descreveu cada uma das comparações, sempre
ligando a origem das duas ordens mendicantes às profecias do abade Joaquim.
Chama-nos atenção como se deu a apropriação de Salimbene, não abrindo
qualquer possibilidade das profecias joaquimitas não se referirem aos franciscanos
e aos dominicanos (pregadores).
Salimbene citou o Comentário de Jeremias escrito pelo abade de Fiore,
texto que será utilizado mais tarde como acusação ao papado. Na acusação que
102
alguns franciscanos espirituais e que outras pessoas fizeram à Igreja sobre a tutela
de alguns papas, ela seria a prostituta Babilônia do texto do abade Joaquim:
O abade Joaquim disse muitas coisas boas das duas Ordens. E
sobre os Frades Menores e os Pregadores diz o abade Joaquim no
comentário sobre Jeremias: “Estas duas Ordens nascerão para a
Igreja na simplicidade e na humildade, mas, no decorrer do tempo,
repreenderão e censurarão duramente a prostituta da Babilônia.”
(SALIMBENE DE PARMA, 2004, p. 1376).
Na citação acima, o autor não titubeou em aplicar as profecias de Fiore à
sua ordem. Ele parece ignorar completamente a primeira ressalva feita ao abade
Joaquim pelo Concílio de Latrão. A causa desta despreocupação com as idéias de
Fiore pode ser porque ainda estava no começo as preocupações que as idéias de
Fiore, especialmente a divisão tripartida da história, trariam ao papado.
A divisão tripartida da história feita por Fiore em tempo do Pai, do Filho e
do Espírito Santo consistiu num bom instrumento para a acusação da igreja
romana. O último período chamado de “tempo do Espírito Santo”, seria marcado
pelo nascimento de uma nova ordo monachorum. Esta nova ordo monachorum
levaria a Igreja de volta às suas fontes e venceria a “Babilônia”.
A associação entre “nova ordem dos monges” (viri spiritualis) e franciscanos
foi um passo ainda intermediário, a conclusão de tal processo chegou à afirmação
de que seriam os legítimos franciscanos, aqueles partidários das idéias dos
espirituais.
Conforme os papas acirraram a perseguição aos espirituais, eles acusaram a
Igreja sob o domínio do papa e da cúria romana de ser uma “igreja carnal”, ou seja,
governada por homens carnais. O termo homens carnais era sinônimo de uma vida
segundo o mundo, ou seja, vida luxuosa, preocupação com o poder, apego a
dinheiro e a propriedades.
É preciso afirmar que, conforme pesquisas de Falbel (1995), Garcia-
Villoslada (1988) e Delumeau (1997), não foram os ensinamentos de Fiore que
resultaram na condenação papal de suas obras, mas as diversas interpretações ou
textos escritos sob a influência de Fiore que perturbaram a hierarquia eclesiástica.
103
O movimento dos espirituais atingiu tanto a frades letrados como iletrados,
mas destes últimos não possuímos fontes suficientes. Algumas regiões foram mais
influenciadas pelos espirituais como a Provenza e o norte da Itália. Na Provenza,
conforme Manselli (1959), além da presença dos espirituais que tinham como líder
Pedro de João Olivi, nasceu uma forte comunidade beguina. Possuímos as
biografias e escritos de alguns importantes líderes franciscanos do período. Através
destes líderes, poderemos entender como se deu a oposição entre os franciscanos
e a Igreja oficial e qual foi a conseqüência para a doutrina política dos papas.
Foi por causa das disputas entre os espirituais e os papas na questão da
pobreza, que Ockham envolveu-se diretamente contra o papa João XXII. Nos
interessa saber em quais aspectos as idéias dos franciscanos comumente
chamados de espirituais contribuíram para Ockham contestar a plenitude do poder.
Entre os franciscanos considerados como espirituais ou que mantêm alguma
proximidade com o pensamento do abade calabrês, destacamos Pedro de João
Olivi, Ubertino de Casale e Angelo Clareno.
2.5 A POBREZA EVANGÉLICA E O FIM DOS TEMPOS: INTERPRETAÇÕES
FRANCISCANAS DA ESCATOLOGIA, DA REGRA FRANCISCANA E DA
IGREJA
O respeito ao abade Joaquim esteve presente entre os pontífices que
sucederam após o Concílio de Latrão. Por diversas vezes os papas e os concílios
pronunciaram sobre as idéias surgidas a partir dos textos de Joaquim de Fiore, mas
as condenações proferidas foram aos interpretadores e às obras inspiradas em
Fiore. O abade Joaquim ficou isento de uma condenação explícita da Igreja oficial,
porém o mesmo não aconteceu com seus interpretadores.
Os espirituais fizeram uma interpretação na qual São Francisco era
considerado “outro Cristo”, especialmente por causa de seus estigmas e sua
pobreza, despertando as interpretações sobre o “fim dos tempos” e a renovação da
Igreja. Os espirituais afirmavam que S. Francisco era o sexto anjo do livro do
Apocalipse, prenunciando o fim dos tempos. Esta posição dos franciscanos
levantou suspeitas quanto à ortodoxia da ordem. Na universidade de Paris surgiram
104
queixas contra os franciscanos feitas por outros religiosos e mestres. Guilherme de
Saint-Amour (1200-1272), mestre na universidade de Paris, atacava os
mendicantes (franciscanos e dominicanos) em seu modo de vida, questionando a
permanência deles na universidade. Guilherme de Saint-Amour escreveu um libelo
chamado Tractatus brevis de preculis novissimorum temporum condenando as
ordens mendicantes. Outro problema, levantado contra os mendicantes, era que
eles não podiam exercer a cura animarum, ou seja, ministrarem os sacramentos
aos fiéis em detrimento do clero secular. O papa Alexandre IV, no documento
chamado Romanus Pontifex de Summi de 5 de outubro de 1256, garantiu os
direitos das ordens mendicantes:
Nós juntamente com o conselho de nossos irmãos, na força da
autoridade apostólica, rejeitamos este panfleto que se inicia assim:
“Ecce videntes clamabunt foris” e que segundo otulo e chamado
de Tractatus Brevis de Periculis novissimorum temporum. Nós para
sempre o condenamos como iníquo, ímpio e detestável; a doutrina
e os ensinamentos que ele contém, condenamos como errônea,
falsa e infâmia. (DENZINGER, 1996, p. 480).
Na universidade de Paris ocorriam discordâncias constantes sobre os mais
diversos temas. Segundo Ullmann (2000, p. 157-160), em menos de cinqüenta
anos, a fama da universidade de Paris tinha se espalhado pela Europa. Estudantes
de diversas partes da Europa chegavam a Paris ávidos por participarem deste
grande centro do saber. A influência de estrangeiros, no início de 1200, terminou
com o regionalismo próprio dos “sistemas de ensino”, que antecederam a criação
das universidades, tornando a universidade centro de discussão sobre todos os
aspectos da vida social e religiosa. Os contrastes não eram só étnicos como
econômicos.
Os mestres da universidade de Paris não se posicionavam contra o abade
Joaquim. Segundo Delumeau (1997, p. 51), a única condenação aos três estágios e
as obras que contêm essas idéias, aconteceu em 1263 no Concílio de Arles.
Mesmo assim, a condenação foi à forma que os espirituais ensinavam os três
estágios, sem ser citado o nome de Fiore. Esta separação entre Joaquim de Fiore e
105
seus interpretadores é importante para entender como as idéias joaquimitas
perduraram por mais de um século. As idéias joaquimitas encontravam-se bem
vivas até os anos que Ockham escreveu seus últimos tratados políticos em 1341.
A crítica à Igreja de seu tempo está presente na obra de Joaquim de Fiore,
mas de forma bem atenuada conforme apresentou Delumeau:
Joaquim, em outros pontos de sua obra – mas, repetimos, pouco
numerosos –, criticou as ordens religiosas de seu tempo, infiéis,
segundo ele, às formas antigas da vida monástica. Foi severo com
as abadias apegadas aos bens deste mundo e poucos voltadas à
contemplação. Indignou-se de ver a Igreja “transformada em
comércio”. Deplorou a presunção da escolástica. Mas na época,
essas recriminações eram moeda corrente. (DELUMEAU, 1997, p.
47).
A crítica levemente presente na obra de Fiore foi ampliada ou acentuada
por franciscanos que utilizaram linguagem retirada dos escritos ou parecida com a
de Joaquim de Fiore. Estes franciscanos foram: Pedro de João Olivi, Angelo
Clareno e Ubertino de Casale. Cada um destes contribuiu, a seu modo, para
colocar os franciscanos partidários de uma vida mais pobre e austera, em oposição
à hierarquia da Igreja e aos frades que queriam uma pobreza mais ponderada.
Convém examinar os franciscanos citados para se entender a progressão
da interpretação da pobreza de Cristo e dos apóstolos dentro da ordem franciscana
e em que esta interpretação de aspectos religiosos terminou em questionamento à
Igreja oficial.
2.5.1 PEDRO DE JOÃO OLIVI
Segundo Delumeau (1997, p. 48) Pedro de João Olivi nasceu no Sul da
França possivelmente em 1248, entrou na ordem franciscana entre os anos de
1260 ou 1261, falecendo em 1298.
106
Foi um zelante observador da Regra franciscana, especialmente nos
preceitos relacionados à obediência. Para Falbel (1995, p. 126), Olivi demonstrou a
importância que dava à obediência quando foi questionado por suspeita de ter
escrito algumas afirmações contra a ortodoxia, submeteu à apreciação de seus
superiores todas as suas obras suspeitas.
Cursou a formação teológica na universidade de Paris, o que lhe deu uma
sólida formação teológica, especialmente conhecimentos dos textos bíblicos e seus
comentários. Na universidade de Paris sofreu, junto com outros franciscanos, a
perseguição por parte do clero secular e de alguns professores.
Os problemas de interpretação da intenção de São Francisco com a Regra
e o Testamento escritos por ele haviam começado antes da morte de S. Francisco.
A ordem franciscana obteve um crescimento muito rápido já que se narra um
número de cinco mil religiosos presentes no Capítulo Geral de Santa Maria da
Porciúncula em 1217 (SÃO BOAVENTURA, 2004a, p. 576). Mesmo com a
imprecisão do número de cinco mil frades, a ordem franciscana com suas idéias de
vida itinerante, retorno ao evangelho, vida em fraternidade, afastamento das
riquezas, oferecia aos homens e mulheres do século XIII a renovação que eles
pretendiam para a fé cristã. Pedro de João Olivi fez uma opção mais próxima dos
anseios de renovação religiosa do século XIII na interpretação da Regra e do
Testamento de São Francisco. Olivi insistia, especialmente, na vida simples e pobre
como a intenção real de S. Francisco.
Olivi escreveu algumas obras, são elas: Postilla [ou Lectura] in
Apocalypsim, Tractatus de Septem Sentimentis Christi Ieshu, Expositio in Canticum
Canticorum, Tratado sobre as compras e vendas e outros textos reunidos pelos
editores de Grottaferrata.
As obras de Olivi procuram manter o respeito à hierarquia representada
pelo papa. Olivi sofreu diversas perseguições por causa de seus escritos. Foram
condenadas 56 proposições de seus escritos por frades da chamada comunidade
entre os anos de 1283 e 1284. Segundo Falbel (1995, p.126-129), Olivi foi acusado,
em 1284, de ser dirigente de seita herética e provocar divisões na ordem. A seita a
que se referiam eram os beguinos que se inspiraram nele e cultuaram-no como
santo. As várias perseguições despertaram a ira dos partidários de Olivi, assim
como trouxe prestígio para ele.
107
Olivi foi um líder espiritual não só para os franciscanos, mas também para
os leigos que o consideravam um santo. Após sua morte, a tumba de Olivi recebia a
visita dos fiéis, especialmente dos beguinos. Manselli (1959) demonstrou que o
culto a Olivi foi propagado na região da Provenza, fortemente marcada pela
presença dos beguinos e dos espirituais. Os beguinos e os espirituais esforçaram-
se espalhando as obras de Olivi. Os beguinos partiam para a peregrinação do
jubileu do ano 1300 tendo as obras de Olivi entre seus objetos devocionais.
Segundo Manselli (1965, p. 96), a idéia mais condenada de Olivi era a que
distinguia entre a igreja do tempo presente e a igreja futura. A conclusão de Olivi
era que a Igreja do seu tempo era imperfeita e seria superada. Sua interpretação
sobre a Igreja abria a possibilidade da contestação do papado e da cúria pontifícia.
Mas o que se mostrou ainda mais perigoso para a Igreja foram as interpretações
que partiram das obras de Olivi.
Na sua obra Postilla in Apocalypsim, Olivi usou de imagens presentes no
livro do Apocalipse para comparar a igreja do tempo presente a uma “nova
Babilônia”. Outra figura do Apocalipse que ele utilizou foi o Anti-Cristo, ao qual ele
acrescentou o adjetivo “místico”.
Manselli (1965) escrevendo sobre o Anti-Cristo místico destacou que Olivi
não esclareceu se este Anti-Cristo místico seria um pseudo-papa ou um alto
dirigente da Igreja. Foi Ubertino de Casale quem identificou o Anti-Cristo místico a
um papa concreto. Para ele, o Anti-Cristo místico era Bonifácio VIII.
Os escritos de Olivi descreviam um novo tempo que seria iniciado com o
Anti-Cristo místico e que seria perigoso para os cristãos que permanecessem fiéis
buscando uma vida simples e fugindo das tentações da igreja carnal. O fiel devia
armar-se da fé como um guerreiro que enfrenta o inimigo. A linguagem que
comparou o fiel ao guerreiro (cavaleiro) está num texto chamado de Miles armatus.
Somente o cavaleiro armado podia escapar às investidas do Anti-Cristo místico.
Olivi recomendou para escapar às tentações:
A humildade, a discrição, a fuga de tudo o que possa dar a
impreso de ter um particular dom espiritual: toda a sua pequena
obra [Miles armatus] resulta no perfil de um cristão silencioso,
paciente e remisso. O cavaleiro armado se defende contra o mundo
e suas tentações, na interioridade e no sincio da sua consciência
contra os que crêem possuir especiais dons e graças divinas,
108
revelões e visões, contra quem, por qualquer motivo, insinua
soberba na alma. (MANSELLI, 1959, p. 50, tradão nossa).
Olivi desconfiava daqueles que diziam ter dons espirituais para tirar
proveito deles. Por isso, não aceitava ser chamado de visionário ou profeta. Para
ele, a realização do fiel estaria na quietude e resistência frente às tentações. Para o
franciscano, era a Regra que podia fortalecê-lo contra o mal.
A interpretação da Regra que prescrevia a pobreza evangélica continuava
sendo um ponto de divisão entre os franciscanos. Para Olivi, a correta interpretação
da Regra assumia a pobreza evangélica e recusava qualquer privilégio. Para ele, a
Regra dos franciscanos era a perfeição do evangelho, sendo o ponto de chegada
de todas as outras regras de vida que surgiram na Igreja.
As idéias de Olivi e dos espirituais estavam espalhadas por muitos lugares
da Europa. Esser afirmou que as regiões de mais divergências entre os ideais
primitivos “eram o centro da Itália e o sul da França”, mas ele não reconheceu a
importância dada aos espirituais pelos estudiosos da ordem franciscana dos
séculos XII e XIII:
No século XII e o começo doculo XIII essas reges eram a área
principal (sic) da disseminação dos movimentos heréticos de
pobreza e dos taros. Evidentemente havia ligações entre estes e
os “Espirituais” e “Fraticelli” posteriores na Ordem dos Frades
Menores, os quais tinham os seus centros no mesmo espaço
geográfico [...] Sempre se necessário ter em conta o fato de que
a maior parte da Ordem não foi atingida pelas controvérsias
agitadas aí, até que sob João XXII a discussão se alastrou por toda
a Ordem. Como porém as lutas dos Espirituais deixaram um
extenso espólio literário, até hoje são tratadas com prolixidade
descabida na história da Ordem. (ESSER, 1972, p. 11).
Não concordamos com Esser, pois a querela dos “espirituais” e da
“comunidade” teve início com grande vigor antes do pontificado de João XXII. As
hagiografias compostas nas primeiras décadas após a morte de S. Francisco,
comprovam a divisão entre os frades quanto ao rumo que os franciscanos deviam
seguir. Os diversos documentos da ordem franciscana e dos papas, procurando
definir a pobreza entre os franciscanos, demonstram a importância dos espirituais
109
na história da ordem franciscana e da Igreja. Logo, tratar a história dos espirituais
não constitui uma “prolixidade” efêmera. Oficialmente foram publicados vários
documentos dos papas sobre a citada questão, como por exemplo a bula Fidei
catholicae.
A bula Fidei catholicae, do Concílio de Vienne de 1312, realizado após a
morte de Olivi, condenou-o como herege. Segundo o concílio, as heresias estariam
presentes na sua Postilla in Johannem. Estas heresias seriam quanto às duas
naturezas de Cristo, ao efeito do batismo e suas afirmações sobre a alma e o corpo
(DENZINGER, 1996, p. 498-502). A condenação de parte das idéias de Olivi, no
Concílio de Vienne, preanunciava que a perseguição estava se acirrando para uma
parte da ordem franciscana.
Embora Olivi tenha sido considerado um joaquimita pela historiografia da
ordem franciscana, difere fundamentalmente das idéias joaquimitas na concepção
da história do mundo. Olivi destacou o Cristo (idade do Filho em linguagem
joaquimita) como o ponto de chegada da plenitude do mundo e do homem. Fiore
defendeu que a fase definitiva da Igreja, do homem e do mundo estava na idade do
Espírito Santo. Segundo Magalhães (2003, p. 167), novos estudos têm tomado
posição contrária a nomear Pedro de João Olivi e outros personagens do século
XIII como “espirituais”. Assim para entender o pensamento de Olivi e de outros
franciscanos do século XIII sem os vincular demasiadamente aos espirituais ou a
Joaquim de Fiore, seria melhor interpretar que os espirituais e Fiore foram uma das
fontes de inspiração, sem fazer deles elementos determinantes. Interpretamos João
Pedro Olivi segundo os estudos que apontam as diferenças entre Olivi, Fiore e os
espirituais. Para nós, Olivi nos seus comentários ao Apocalipse participou do
grande interesse despertado por este livro bíblico, interpretando-o conforme a
teologia bíblica da época e outros comentadores anteriores.
Outro aspecto importante de Olivi foi o respeito demonstrado às
autoridades, sejam elas da Igreja em geral ou dos franciscanos. Seus textos, por
ele, foram submetidos à apreciação de seus superiores. Julgamos que Olivi
entendeu que a obediência representava a maneira concreta de demonstrar
também a simplicidade. A perfeição evangélica, buscada por ele, tinha em Cristo o
modelo da perfeita obediência. A obediência em Cristo não era uma passividade
frente às situações, no caso de Olivi uma aceitação dos rumos perigosos para a
Igreja, mas uma atitude crítica dentro da obediência. Esta postura supõe um
110
equilíbrio nem sempre possível. Ubertino de Casale, admirador e defensor de Olivi,
não conseguiu permanecer no equilíbrio de seu mestre evitando atritos diretos com
a autoridade. Ubertino de Casale desenvolveu especificamente as idéias contidas
na Postilla e contribuiu para questionar a posição que os papas de seu tempo
haviam tomado na relação da Igreja com o poder temporal.
2.5.2 UBERTINO DE CASALE
Nascido em 1259, Ubertino de Casale entrou na ordem franciscana em 1273.
Foi estudar em Paris, mas consta que deixou logo os estudos na universidade para
retornar à Itália. Retornando teve contato com Pedro de João Olivi quando este
ensinava em Florença entre os anos de 1287-1289. Esteve Ubertino ainda com os
frades da chamada ala espiritual, como João de Parma e Angelo Clareno. Existem
algumas discordâncias sobre as datas e a ordem dos fatos citados, sendo as datas
utilizadas encontradas nos artigos de Falbel (1995), Encyclopaedia Universalis
France Sa (1996) e em Garcia-Villoslada (1988).
Ubertino foi considerado um dos líderes dos espirituais na Toscana. Ele
ensinou com entusiasmo as idéias de uma “nova igreja” que surgiria, guiada pelo
rigor e pobreza de seus líderes. Possivelmente em 1304, pregou contra os pseudo-
apóstolos considerados hereges pela Igreja. Foi preso em 1304 pelo papa Bendito
XI (1303-1304) por causa de suas idéias sobre a Igreja, sendo libertado no mesmo
ano.
Ubertino de Casale recebeu uma censura papal que lhe proibiu de pregar. No
ano de 1305 enquanto permanecia num estado de semi-prisão, escreveu sua obra
mais importante Arbor Vitae Crucifixae Iesu. Na Abor Vitae reuniu as idéias de suas
pregações, suas concepções de Igreja e defendeu a pobreza original vivida por São
Francisco. Afirmou claramente que Bonifácio VIII era o “Anti-Cristo” místico que
anunciava a chegada do verdadeiro “Anti-cristo”. Ubertino citou textos literais da
Postilla in Apocalypsim de Pedro de João Olivi. Para ele, existiam duas igrejas em
111
luta, a “igreja carnal” e a “igreja espiritual”. Esta igreja espiritual seria representada
pelos verdadeiros pobres evanlicos.
Na Arbor Vitae, Ubertino identificou os personagens que Olivi havia deixado
de modo impreciso. Ubertino se deteve nos temas da função escatológica dos
franciscanos, na Igreja e suas vicissitudes, o Anti-Cristo místico e a igreja espiritual.
Ubertino de Casale (1961) interpretou que os franciscanos seriam os novos
portadores da verdadeira interpretação do evangelho. Por isso, os franciscanos
deviam permanecer alheios à tentações que sofria a igreja carnal (ecclesia carnalis).
Somente a pobreza evangélica, entendida como ausência de privilégios
eclesiásticos, podia ser o escudo para os fiéis enfrentarem as tentações. Ubertino de
Casale (1961) escreveu no livro V da Arbor Vitae que o desprezo da pobreza
evangélica pelos franciscanos significava um novo desprezo do Cristo. Para ele, os
franciscanos ao aceitarem uma vida menos austera deixariam de ser o pequeno
resto que não faria parte da igreja carnal.
Ubertino identificou o Anti-Cristo místico e a nova Babilônia dos textos de Olivi
ao papa Bonifácio VIII e à cúria papal respectivamente. Olivi devido ao seu
temperamento não havia feito esta identificação direta. Ubertino atraiu, com a sua
postura na Arbor Vitae, a condenação de sua obra.
Manselli (1965, p. 98) defendeu que o conhecimento que Ubertino tinha de
Joaquim de Fiore provinha de Olivi. Foram as citações de Olivi do abade calabrês
que constituíram o conhecimento que Ubertino teve das idéias joaquimitas. Para
Manselli até as citações de Fiore no livro Arbor Vitae seriam provenientes das obras
de Olivi. Segundo Manselli, não seria correto entender o pensamento de Ubertino
através de Fiore ou entendê-lo como um mero repetidor das idéias joaquimitas.
Manselli discordou de Callaey (1910) que afirmava que Ubertino conhecia
profundamente a obra de Joaquim de Fiore. Manselli não encontrou elementos
dentro da obra de Ubertino que demonstrassem que ele conhecia a fundo a obra de
Joaquim de Fiore.
Segundo os estudos de Magalhães (2003) e Manselli (1965) a preocupação
principal da obra Arbor Vitae era o projeto de S. Francisco que estava ameaçado
pela ruptura da pobreza evangélica e o relaxamento dos costumes entre os
franciscanos. Todavia, Ubertino por meio de uma interpretação cristocêntrica da
Igreja, de uma escatologia mediada pela importância de S. Francisco, fez sua obra
112
desdobrar-se em vários temas tendo como ponto unificador a renovação da Igreja
pretendida pelo próprio Deus através do santo de Assis.
Ubertino de Casale compareceu, em 1309, a uma audiência solicitada pelo
papa Clemente V. O papa queria entender qual era o caráter da discussão entre os
franciscanos da comunidade e os espirituais. Ambos os grupos franciscanos
trocavam acusações de heresia. Gonçalo de Balboa representou a comunidade e
Ubertino de Casale, os espirituais. As questões feitas pelos cardeais encarregados
de ouvir os franciscanos na audiência foram:
a) a presença de elementos na Ordem Franciscana que denominavam
a si mesmo “Irmãos de Livre Esrito” (Secta Spiritus Libertatis) e sua
relação com a Ordem; b) a observância da Regra e a interpretação da
pobreza; c) a doutrina e os escritos de Pedro João Olivi; d) as
perseguições dos Espirituais. (FALBEL, 1995, p. 122).
As discussões acima não encontraram uma conciliação, excetuando-se a
primeira cujos dois grupos alegaram nenhum envolvimento com o grupo herege
chamado de Irmãos de Livre Espírito. A situação, após a audiência, continuou tensa.
Ubertino escreveu em 1311 a apologia Sanctati apostolicae notum fiat quod
em defesa de seu mestre Pedro de João Olivi. Porém, Ubertino não conseguiu
convencer o papa e os cardeais da ortodoxia de seu mestre, sendo algumas idéias
de Olivi condenadas em 1312 no documento conciliar, chamado de Fidei catholicae.
Devido às inúmeras perseguições, Ubertino deixou a ordem franciscana e entrou na
ordem beniditina em 1317. Em 1321, o papa João XXII constestou as idéias de
Ubertino sobre a pobreza no documento Responsio circa quaestionem de paupertate
Chrisri et Apostolorum.
O pensamento de Ubertino, especialmente na Arbor Vitae, não pode ser
considerado simplesmente uma repetição de Olivi. Ubertino interpretou o
franciscanismo como o modo correto de seguir o Cristo; descreveu a situação da
Igreja de modo ainda mais dramático que Olivi e deu nome aos personagens da
interpretação do Apocalipse de Olivi.
Não seria possível aos pontífices defender seu poder no âmbito temporal com
a contestação do exercício da função deles no interior da própria Igreja. A idéia de
uma igreja carnal contradiz a vontade de constituir o poder pontifício como o poder
113
fundamental dentro da cristandade. A igreja carnal recusaria a pobreza evangélica,
segundo os textos comentados, procurando aumentar seu poder econômico, moral e
legal sobre todo o mundo. Para Ockham os pontífices do seu tempo haviam
recusado a pobreza evanlica por dificultar suas pretensões no poder temporal. Os
papas João XXII e Bendito XII teriam se confundido nos debates sobre a pobreza
evangélica, a questão do uso pobre e do que constituía o direito de domínio sobre
um bem, para atacar a impossibilidade da pobreza que requeriam Ubertino e Olivi.
Outro franciscano que confrontou os papas na questão da pobreza evangélica
e na definição da eclesiologia foi Angelo Clareno.
2.5.3 ANGELO CLARENO
Angelo Clareno nasceu entre 1255 e 1260, em Fossombrone, na região de
Marche, na província de Pesaro e Urbino. Segundo Potestà (1990, p. 5), o nome
Clareno teria sido assumido por Angelo por causa do eremitério chamado Chiarino.
Entrou na ordem franciscana em 1270, possivelmente em sua região de nascimento.
Sobre a sua formação, não se sabe se ele estudou teologia em uma das famosas
universidades da Idade Média ou se aprendeu teologia nos centros de estudos dos
próprios franciscanos, mas ele demonstra em seus escritos um bom conhecimento
da Sagrada Escritura, dos textos dos Padres da Igreja e da hagiografia franciscana.
Angelo Clareno escreveu obras em que transpareceu sua compreensão da
ordem franciscana e da Igreja. Suas principais obras são: Liber Chronicarum sive
Tribulationum ordinis minorum, Expositio super regulam fratrum minorum e Apologia
pro vita sua, uma coleção de 83 cartas e Breviloquium super doctrina salutis ad
parvulos Christi.
No Líber Chronicarum sive Tribulationum ordinis minorum, Angelo Clareno
(1998) descreveu a divisão dos franciscanos como uma das tribulações dos
franciscanos, acentuada após o Concílio de Lion, em 1274. Angelo Clareno
descreveu tamm que em 1280 recebeu uma dura sanção juntamente com outros
frades que defendiam a vida simples e pobre.
114
O problema da divisão franciscana piorou por causa de um boato espalhado
após o Concílio de Lion. Espalhou-se que o papa Gregório X (1271-1276) queria
obrigar todas as ordens mendicantes a aceitarem a propriedade comum de bens e
ainda suprimir a ordem franciscana. Bastou a divulgação para que o grupo espiritual
se agitasse. Segundo Falbel (1995, p. 112) e Farias de Souza (2006, p. 9) a divisão
entre espirituais e comunidade após o Concílio de Lion resultou na tentativa de
prisão perpétua para aos frades Tramundo, Tomes de Tolentino e Pedro de
Macerata. As prisões foram canceladas pelo então ministro geral Raimundo de
Gaufridi, porém com as prisões, a perseguição tinha chegado a uma forma cruel.
Segundo os textos reunidos por Denzinger (1996, p. 494-490) e Potthast
(1957, p. 1677-1681), as atas do Concílio de Lion demonstram que as preocupações
principais dos conciliares e do papa eram: a Terra Santa (cruzadas), a uno com os
gregos e a reforma da Igreja, não passando de boato a preocupação dos
franciscanos. Fischer-Wollpert (1999, p. 224-225) reduz as preocupações do
Concílio de Lion a duas: a Terra Santa e a reforma da Igreja. A união com os gregos
visava fortalecer os cristãos para enfrentar os muçulmanos. Logo, para Fischer-
Wollpert, a questão dos franciscanos e suas disputas internas não foram as
preocupações do Concílio de Lion.
Angelo Clareno sofreu perseguição da comunidade juntamente com outros
frades por causa de sua interpretação da Regra franciscana. Fugiu para a Armênia
procurando ficar longe de seus adversários. Quando percebeu uma situação melhor,
retornou com seus companheiros para a Itália. Sendo nomeado o papa Celestino V,
aproveitou para apresentar-lhe a sua situação e a de seus companheiros. Do
encontro com o papa, surgiu a ordem dos Pobres Eremitas que segundo Farias de
Souza (2006, p.16) eram, na verdade, franciscanos, já que pediram permissão ao
papa para viverem a Regra franciscana de um modo literal. A paz não durou muito
tempo, pois Bonifácio VIII suprimiu a ordem dos Pobres Eremitas. Eles fugiram para
a Grécia porque sentiram que podiam ser presos.
Os fugitivos em 1311 foram para Avinhão querendo discutir a situação deles
com o pontífice. Em 1316, no pontificado do papa João XXII, eles compareceram em
uma audiência para apresentarem a situação em que estavam. Conforme o próprio
Angelo Clareno (1998) relatou que, no final da audiência, foi preso por acusação de
heresia sendo libertado somente em 1317. No pontificado de João XXII parecia não
115
ser possível a conciliação entre os franciscanos, pois ele assumiu uma posição de
perseguição aos espirituais ou aos que discordassem da interpretação da pobreza
que propusera em suas bulas. Clareno precisou fugir constantemente. Segundo
Farias de Souza (2006, p. 43-44), Clareno morreu em 1337 no convento de Santa
Maria de Aspro, situado na cidade de Marsico Nuovo, na região da Basilicata,
província de Potenza. Clareno recebeu a devoção dos fiéis que visitavam sua
sepultura e chamavam-no de “beato”. Foram muitos anos de perseguição –
aproximadamente 40 anos –, nos quais ele manteve sua vontade de viver uma vida
pobre e simples. Tanta obstinação rendeu-lhe a estima dos espirituais e do povo.
Clareno na obra Expositio super regulam fratrum minorum teve como tema
principal o conceito da “não-apropriação”, ou seja, da pobreza em seu sentido mais
abrangente que significava, segundo Farias de Souza (2006, p. 58), “não apropriar-
se de nada, nem de pessoas e nem de coisas.” Para Angelo Clareno (1995) seguir a
Regra franciscana era aceitá-la literalmente e sem comentários que amenizassem
ou encontrassem subterfúgios para uma vida cômoda. Clareno citou João Pedro
Olivi diversas vezes na Expositio super regulam fratrum minorum. Clareno
reconheceu a autoridade de Olivi e o defendeu das perseguições que julgava
injustas.
Angelo Clareno e Ubertino de Casale tiveram como inspiração o pensamento
e as obras de Pedro de João Olivi. Os três franciscanos compartilhavam da idéia
que a pobreza evangélica era o que prescrevia a Regra franciscana. O preceito da
pobreza não devia ser somente uma escolha, mas como ela fora reconhecida pela
Igreja, tinha força de obrigação, quando aprovada.
As discussões sobre a pobreza evanlica foram acompanhas pelos papas.
As posições dos pontífices, conforme percebemos nesta pesquisa, foram variadas.
Permitir que discussões de caráter aparentemente interno às ordens mendicantes
acontecesse sem a mediação institucional, poderia resultar na seqüela temida pelos
medievais que era a quebra da unidade através da heresia. Os hereges podiam
quebrar a unidade através de crença diversa daquela defendida pelo magistério da
Igreja (bispos e papa). A heresia configurava uma ameaça à autoridade no
cristianismo ocidental e se permitida, configuraria o surgimento de “igreja
autônomas” ou “seitas”. Ainda que se possa perguntar sobre o que consistiria a
unidade mencionada, o princípio da autoridade foi um ponto unificador uma fé que
se autodefinia de calica (universal). Sem o exercício da autoridade, segundo este
116
modo de entender, a Igreja em seu sentido etimológico de “convocação ou
assembléia dos que têm a mesma fé”, não existiria. Se as autoridades eclesiásticas
permitissem a contínua separação entre ordens expressivas em número de
integrantes e influentes nos séculos XIII e XIV, como foram os franciscanos e
dominicanos, teriam um problema que poderia ameaçar a unidade da Igreja. A
preocupação dos século anteriores com os não-cristãos (muçulmanos e judeus) por
ameaçar o cristianismo voltou-se para os próprios cristãos sendo expressada na
observação, punição e controle dos desvios da fé. Aceitar a proposta rigorista dos
franciscanos podia representar uma discreta contestação à maior parte dos
religiosos e autoridades da Igreja que não queriam ou não viviam a pobreza em sua
forma absoluta. Em outras palavras, Lambert (1977, p. 183) expressou bem em que
resultaria a contestação franciscana “passiva” da Igreja através da pobreza: “passiva
desobediência, pode estimular respostas violentas.”
Definindo as teorias da pobreza evanlica como uma contestação indireta à
autoridade exercida na Igreja e diretamente contra a riqueza, percebemos a razão
que levou Ockham a alinhar-se aos defensores da pobreza evangélica. Ockham
julgou que a interpretação da Regra franciscana concordava mais com a
interpretação dada por Olivi, Clareno e Ubertino do que a dada pela comunidade ou
pelos papas a partir de João XXII. Ockham defendeu o respeito aos direitos dos fiéis
e uma interpretação dos textos bíblicos baseada na moderação do poder, sendo o
poder conferido por Cristo a seus discípulos, ministrativo (de serviço) e não
dominativo.
Ockham seguiu a Olivi, Ubertino e Clareno na preocupação com a Regra
franciscana que para ele estava sendo interpretada contra o próprio evangelho.
Ockham considerava que entre a Regra franciscana e os evangelhos, ou seja, a vida
de Cristo, havia uma estreita ligação. A corrente interpretativa espiritual ou rigorista
da Regra franciscana a equiparava a um resumo do evangelho, isto é, na Regra
estavam contidos os aspectos principais do evangelho. Por isso, para os defensores
da vivência literal da Regra, interpretá-la de modo restritivo era contradizer o
evangelho, consistindo numa atitude herética. Ockham (1998, p. 442-469)
escrevendo aos frades reunidos em Assis enumerou todos os erros interpretativos
da Regra feitos por João XXII. Ele recusou por completo a interpretação que o papa
João XXII impôs aos franciscanos.
117
Ockham só se envolveu na questão franciscana da pobreza evangélica a
partir de 1323 quando estava em Avinhão. Por que Ockham não se envolveu antes
nas questões franciscanas? Uma das possíveis respostas seria a ausência de
discussão sobre a pobreza evangélica em Oxford e na Inglaterra. Não encontramos
referências a frades ingleses envolvidos nas discussões franciscanas. Os grupos
que defendiam a pobreza evangélica absoluta, estavam geograficamente situados
em regiões da Itália e da França. Como franciscano, Ockham teria conhecimento da
questão, pois seria improvável que a desconhecesse. A questão franciscana da
pobreza evangélica não produziu perseguições ou prisões nas terras inglesas, assim
Ockham não teria a motivação necessária para se envolver na citada questão.
Segundo o próprio Ockham (1998, p. 443) na sua Epistola ad fratres minores, ele só
tomou conhecimento das idéias do papa João XXII por ordem de seu superior
Miguel de Cesena que pediu para que lesse e comentasse as bulas de João XXII.
Foi a partir da pobreza franciscana que Ockham chegou à preocupação com a
plenitudo potestatis.
2.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos recentes sobre a polêmica medieval da pobreza de Cristo e dos
apóstolos entre os franciscanos e a hierarquia demonstraram que a suposta
influência direta de Joaquim de Fiore sobre os líderes franciscanos deve ser
atenuada. Mesmo existindo linguagem comum a Fiore como “igreja carnal”, “igreja
espiritual”, “homens espirituais”, entre outros, houve uma reelaboração em Olivi,
Ubertino e Clareno o que não possibilita classificá-los simplesmente como
joaquimitas. O modo de interpretação teológico do tempo presente e da história da
Igreja com inspiração e termos provenientes do livro do Apocalipse fez parte de um
costume difundido nos centros de estudos teológicos. Por isso, pode levar ao
equívoco por interpretar que todas as obras e correntes teológicas que a partir do
século XII utilizaram linguagem e símbolos representativos do Apocalipse, seguem o
abade calabrês.
Se para os franciscanos que utilizaram linguagem algumas vezes próximas a
Fiore não lhes cabe o adjetivo de joaquimitas, muito menos com Guilherme de
118
Ockham. Nas obras teológicas-políticas de Ockham aqui tratadas, não há qualquer
referência direta ou indireta a Joaquim de Fiore. Ockham não utilizou linguagem
alegórica ou de analogias na interpretação dos textos bíblicos. A linguagem
alegórica foi utilizada por Fiore e outros teólogos medievais. No Brevilóquio
comentando que o império não provém do papa e sobre o uso do sentido alegórico,
Ockham afirmou que:
[...] o sentido místico [ou alegórico] da Escritura – que o é
contrário à verdade – não pode e o deve ser alegado para
provar e confirmar questões duvidosas e disputadas, das quais
há divergência entre os cristãos, se não estiver expresso na
Escritura em si ou em seu antecedente, embora possa ser
aduzido para edificão e exortação. [...] Alguns contudo,
tentam demonstrar tudo o que lhes agrada pelos sentidos
sticos que o compõem, e querem que de tal demonstração
seja recebida como fora de qualquervida. (OCKHAM, 1988,
p. 160).
Ockham não condenou o uso da interpretação alegórica, mas apontou seus
limites. O método alegórico foi o mais utilizado por Fiore e alguns franciscanos.
Aproximar Ockham a Fiore e aos franciscanos Ubertino, Olivi e Clareno quanto à
método exegético na interpretação dos textos bíblicos, não esclarece suas intenções
quanto à plenitudo potestatis.
Os franciscanos que defenderam uma prática radical da pobreza não
romperam com a fé cristã. As críticas que eles fizeram referiam-se a elementos
determinados. A pobreza evangélica defendida pelos franciscanos não atingia os
aspectos dogmáticos da fé cristã. Os franciscanos foram condenados pela
desobediência quando João XXII tomou posição contra o que eles defendiam como
pobreza evangélica. Os descontentes com a posição de João XXII não contestaram
a instituição do papado ou a necessidade dele para a Igreja, suas críticas foram
contra a pessoa do papa e suas posições. As críticas dos franciscanos podiam
conduzir para a separação (cisma) por causa da desobediência, por isso a reação
do papa e da cúria foi violenta. Ockham foi perseguido por confrontar as posições de
João XXII, porém mais grave para a mentalidade que defendia o predomínio do
poder espiritual sobre o temporal, era sua constante necessidade de recolocar de
modo evangélico a doutrina política cristã, isto é, com novas interpretações dos
119
textos bíblicos que fundamentavam o poder que era exercido na Igreja e no mundo
cristão.
Os franciscanos que defendiam a pobreza evangélica não queriam
diretamente que todas as ordens religiosas ou que toda a Igreja seguissem a
pobreza evangélica. Porém, era pela adesão à pobreza que os mesmos
franciscanos escalonavam como mais ou menos perfeita a ordem e seus
integrantes. O termo perfeição era utilizado em referência à proximidade maior com
o modo de pobreza de Cristo e dos apóstolos. Aceitar a pobreza evangélica, ainda
que fosse para ordens religiosas específicas, traria uma divisão que poderia
influenciar no exercício da administração da Igreja. Ockham (1999d, p. 235)
reproduziu a idéia de graus de perfeição cristã provenientes da pobreza. Para ele, o
topo da perfeição seria ocupado pelos franciscanos.
Os defensores da pobreza evangélica tiveram como elemento gerador de
suas idéias a suposta prática de S. Francisco de Assis. Pela análise de seus
escritos, percebemos que S. Francisco não queria propriedades, entendia a pobreza
como trabalhar com as próprias mãos e praticava a mendicância para quebrar o
orgulho. A nova espiritualidade de origem laica nos séculos XIII e XIV, estimava e
incentivava a vida pobre e itinerante. A nova espiritualidade vinculou a interpretação
da vida de Cristo e dos apóstolos à pobreza com conseqüências na forma da Igreja
entender a santidade de um fiel. A Regra franciscana , entendida literalmente, era
uma das formas da nova espiritualidade receber aprovação oficial da Igreja. Ockham
seguindo Olivi, Ubertino e Clareno, defendeu que a Regra franciscana era a
realização concreta dos evangelhos.
Não encontramos explicitamente nos líderes franciscanos um debate sobre os
argumentos que fundamentam a plenitudo potestatis. Eles negam a teoria sem que
façam um tratado nos moldes filosóficos e teológicos da época. Foi uma negação
baseada no apelo a uma vida simples e sem posses. Para eles, uma Igreja que
fosse contra viver a pobreza evangélica, não podia ser uma verdadeira Igreja de
Cristo de seus apóstolos.
Ockham compartilhou com Olivi, Ubertino e Clareno a preocupação com os
caminhos escolhidos pela Igreja. A ação destes franciscanos preocupava-se com
uma orientação mais evanlica da fé cristã. Entende-se evangélica no sentido de
uma acentuação dos aspectos contidos nos textos bíblicos dos evangelhos,
120
substituindo e confrontando os textos do Antigo Testamento, especialmente os
relacionados à monarquia judaica.
Ockham foi influenciado pelos franciscanos descontentes com as bulas de
João XXII contra a pobreza evanlica. O Inceptor Venerabilis herdou a
preocupação de uma exegese mais evangélica, correspondendo aos anseios de
uma Igreja que respeitasse o que competia aos governos temporais.
Ockham construiu suas argumentações em oposição a alguns teólogos e
juristas de seu tempo. Essas argumentações, como se pode notar, encontram-se
espalhadas nas diversas obras que escreveu durante sua vida. O próximo capítulo
dessa pesquisa procurará demonstrar se existem e quais são os pontos do
pensamento político de Ockham que podem ser classificados como singulares
quando comparados a outros teólogos do século XIV.
121
CAPÍTULO 3
O PENSAMENTO POLÍTICO DE GUILHERME DE OCKHAM CONFRONTADO
COM TEÓLOGOS DO SÉCULO XIV
O homem medieval o tinha nenhum sentido de liberdade segundo
a concepção moderna. Para ele, a liberdade era o privilégio, e a
palavra era usada freqüentemente no plural. A liberdade era um
estatuto garantido, era, segundo a definição de G. Tellenbach, “o
justo lugar diante de Deus e diante dos homens”, era a inserção na
sociedade. Nenhuma liberdade sem comunidade. Ela não podia
residir senão na dependência, o superior garantindo ao subordinado
o respeito a seus direitos. O homem livre era aquele que tinha um
senhor poderoso. Quando, na época da Reforma Gregoriana, os
clérigos reclamavam a “liberdade da Igreja”, entendiam por isto
substrair-se (sic) à dominação dos senhores terrenos para exaltar
diretamente apenas o senhor mais alto, Deus. (LE GOFF, 2005, p.
282).
122
3.1 CONSIDERÕES INICIAIS
Na primeira metade do século XIV foram compostas várias obras procurando
repensar a sociedade cristã, a finalidade e a função dos monarcas e do papa. Os
tratados da patrística, especialmente o pensamento agostiniano, necessitaram de
novas interpretações que os adaptassem ao que acontecia no ocidente cristão.
Consideramos que a contínua insubmissão dos monarcas ao domínio dos prelados
e a necessidade de que eles justificassem suas ações, fizeram eclodir uma
preocupação constante sobre a legitimidade do poder temporal.
Percebemos, nos capítulos anteriores, que as críticas feitas ao poder
espiritual, não foram direcionadas contra a fé ou contra a mediação da Igreja entre o
sagrado e as pessoas de fé. Não se questionava se seria melhor para o ser humano
ter ou não a fé, este tipo de posicionamento refere-se mais a outros períodos
históricos e não à Baixa Idade Média. A preocupação dos teólogos e de outros se
concentra em compreender o alcance da fé na vida cristã e a competência dos
poderes.
As obras escritas nas primeiras décadas do século XIV, em grande parte, não
foram uma visão afastada dos problemas reais enfrentados na organização política e
espiritual dos reinos cristãos. Era necessário compreender qual a importância da
Igreja na organização política dos reinos que começavam a se firmar como
entidades com certa autonomia dentro do Sacro Império Romano-Germânico.
O objetivo deste capítulo é perceber em que o pensamento político de
Ockham difere de outros pensadores do século XIV que procuraram pensar sobre a
finalidade dos poderes numa sociedade cristã. As análises dos contemporâneos de
Ockham serão realizadas sob os aspectos que interessam a esta pesquisa, não
tendo a intenção de apresentar todos os detalhes referentes aos autores medievais
que serão abordados.
Escolhemos os que julgamos serem os mais conhecidos e importantes
teóricos do pensamento político do século XIV, decisão apoiada por grande parte
dos comentadores sobre o tema. Iremos comparar aspectos do pensamento de
Egídio Romano, João Quidort e Marsílio de Pádua com a posições defendidas pelo
franciscano inglês.
123
3.2 EGÍDIO ROMANO: O BATISMO COMO INSTAURADOR DA ORDEM SOCIAL
Egídio Romano (1243/1247-1345) foi um dos defensores da plenitude do
poder. Influenciou com sua obra Sobre o Poder Eclesiástico os argumentos que os
papas e os curialistas formularam visando estender o domínio do poder espiritual a
toda dimensão da vida humana, do caráter particular à vida pública nos reinos
cristãos.
A obra Sobre o Poder Eclesiástico de Edio Romano dedicada ao papa
Bonifácio VIII fundamentou as idéias da bula Unam Sanctam. Egídio Romano (1989,
p. 45), assim como a bula Unam Sanctam partiram da idéia da hierarquia cósmica
de Dionísio Areopagita. Unindo a idéia da hierarquia cósmica aos versículos bíblicos
interpretados a favor do poder papal, Egídio Romano concluiu que o pontífice
romano julgava a todos e por ninguém podia ser julgado. Ockham havia discutido a
afirmação precedente, dizendo que o papa pode ser julgado por heresia, por
desrespeitar os direitos dos fiéis, por erros pessoais e não tinha jurisdição para
julgar o poder temporal. Egídio Romano não fez qualquer menção à possibilidade de
um julgamento papal, ignorando possíveis falhas de qualquer ordem.
O poder temporal, segundo Egídio Romano, era exercido por consentimento,
instituição e permissão do poder temporal. O poder temporal estaria a serviço da
Igreja e com ela devia organizar a vida pública visando a salvação e o bem-estar dos
fiéis. Os dois gládios (espadas) citados por Cristo no evangelho de Lucas 22,38
pertenciam à Igreja. Era com a concessão do poder espiritual que os príncipes e reis
podiam exercer a autoridade sobre os fiéis. Ockham reconheceu que todo poder
provém de Deus, como afirmou Egídio Romano (1989, p. 45) e todos os teólogos do
ocidente cristão, porém ele defendia que os dois poderes conferidos por Deus
estariam orientados para o bem comum. Entendemos o bem comum para o poder
espiritual como a salvação oferecida por meio dos sacramentos para os fiéis. O bem
comum no poder temporal visava à aplicação da justiça entre os súditos e para o
bem deles. Ockham recusou, em todos os momentos, que Deus oferecesse os
poderes para o bem e proveito particular daqueles que o exercessem.
A capacidade de exercer o poder temporal para o bem comum e da Igreja,
segundo Egídio Romano, era conferida pela unção e coroação do imperador e dos
reis realizadas pelos sacerdotes (papa ou bispo). O argumento da unção e coroação
124
fora utilizado por outros teólogos para afirmar a maior dignidade do poder espiritual.
Ockham não aceitou o argumento da unção e coroação que fazia do poder temporal
um poder subdelegado ao poder espiritual. O rito para ele nada interferia no
exercício do poder. Seria a vontade soberana dos príncipes eleitores, no caso do
imperador ou dos súditos no caso dos reis, que legitimava o poder temporal.
Nota-se que Egídio Romano preferiu os textos do Antigo Testamento para
fundamentar sua visão sobre o poder régio. Ele recorreu a analogias e comparações
nas quais o povo judeu prefigurava os reinos cristãos. Foi através dos textos do
Antigo Testamento, ou melhor, da interpretação dada aos textos do livro dos Juízes
e a história de Moisés que Egídio Romano tentou fundamentar que a Igreja teria os
dois poderes (gládios) em suas mãos. Assim expressou Egídio Romano (1989, p.
61): “A Igreja tem, pois, ambos os gládios, mas não de igual modo: detém o
espiritual para o uso e o material à disposição.” A distinção entre uso e disposição foi
a tentativa de Egídio Romano evitar, ainda que de forma tênue, que os dois poderes
fossem na verdade um só. O perigo constante que os defensores da plenitude do
poder papal incorrem era a dissolução entre o sagrado e o profano. A dissolução
comprometia a necessidade e a existência da Igreja como representante do
sagrado. O próprio teólogo percebeu que seria prejudicial à organização da
cristandade que o poder temporal fosse desvalorizado ou desautorizado em suas
ações. Egídio Romano (1989, p. 163-170) tentou salvar a autoridade do poder
temporal afirmando que a Igreja embora pudesse, para manter a tranqüilidade entre
os príncipes, não devia constantemente intervir nas decisões do poder temporal.
Para desempenhar melhor as funções mais importantes do sumo pontífice que eram
as espirituais, Egídio Romano aconselhou que o sumo pontífice deixasse as
decisões comuns para os juízes e outros legisladores do poder temporal.
Egídio Romano julgou importante rebater a posição daqueles que defendiam
que o uso, domínio e posse de bens não eram recomendados aos sacerdotes ou até
proibidos. A inspiração principal para a proibição da posse de bens estaria no texto
bíblico do envio dos apóstolos para a pregação no evangelho de Lucas 22,35: “E
disse-lhes: ‘Quando eu vos enviei sem bolsa, alforje, nem sandálias, faltou-vos
alguma coisa?” Outros textos que seriam contrários à posse de bens pelos
sacerdotes eram os que descrevem a tribo de Levi no Antigo Testamento. A tribo de
Levi do Antigo Testamento, formada de sacerdotes, estava voltada somente para o
culto judaico. Na separação das terras (bens materiais) dos judeus, a tribo de Levi
125
não recebeu nada, conforme o texto narra o texto seguinte: “Iahweh disse a Aarão:
‘Não terás herança alguma na terra deles e nenhuma parte haverá para ti no meio
deles. Eu sou a tua parte e a tua herança no meio dos filhos de Israel’.” A tribo de
Levi prefigura, segundo alguns teólogos, os sacerdotes do Novo Testamento. Por
isso, os sacerdotes não podiam possuir bens sendo “descendentes” da tribo de Levi.
O teólogo romano não aceitou os argumentos, mas defendeu que a posse dos bens
temporais eram permitidos e com eles a Igreja podia alcançar os bens espirituais:
Por isso, os bens temporais são instrumentos de apoio e de utilidade
aos bens espirituais, de modo que, se deixam de servir, deixam de
ser bons, pois os bens temporais não relacionados aos espirituais e
se não lhes servem, embora sejam bens em si, não são bens em si.
(EGÍDIO ROMANO, 1989, p. 85).
Egídio Romano utilizou grande parte de sua defesa do poder papal
escrevendo sobre a posse dos bens temporais. O problema da posse dos bens foi
debatido pelos franciscanos com abundância, mas Egídio Romano ignorou a
questão defendida pelos frades. Os franciscanos defendendo a pobreza evangélica,
pensavam primeiro no modo de vida que eles escolheram. O conflito entre o
pensamento dos franciscanos e a posição de Egídio estava principalmente na ordem
cósmica dionisiana. Para os franciscanos a perfeição estava ligada à pobreza
evangélica. O papa possuindo bens temporais e dispondo deles conforme as
necessidades, segundo as idéias franciscanas, seria menos perfeito que um
franciscano. A teoria dionisiana da hierarquia do inferior para o superior, do
imperfeito para o perfeito chocava-se com a pobreza evangélica que o papa e outros
prelados eram impedidos de viver. Ockham não contestou ao papa a posse de bens
temporais, mas recusou com veemência a idéia de que todos os bens temporais
pertenciam à Igreja. Essa Igreja nascida pelo sacramento do batismo.
O sacramento do batismo, segundo a interpretação cristã, fazia “nascer” os
fiéis para a Igreja. Egídio Romano considerava que a ordem social, que chamava de
república, nascia pelo sacramento do batismo. A compreensão da associação dos
fiéis na ordem temporal pelo batismo, expandia-se para além dos critérios de
território ou raça que delimitavam um reino. Se a verdadeira república, seguindo as
idéias de Santo Agostinho, só existiria sob a égide da Igreja, sendo o papa o
126
primeiro nesta república. Egídio Romano (1989, p. 120) recomendava aos príncipes
que considerassem o direito de exercer o poder temporal como um bem concedido
pela Igreja, mais do que por herança de seus pais. A Igreja com o batismo dos
príncipes reconhecia a legitimidade e o direito à sucessão no poder temporal.
Na sociedade criada através do batismo, cabia ao papa, segundo o teólogo
romano, orientar, julgar, instituir e destituir os soberanos temporais que não
satisfizessem a finalidade da distribuição da justiça e não cuidassem do bem
espiritual de seus súditos. De Boni (2003, p. 157) considerou que a
sacramentalização da ordem social constitui a parte mais original da obra do teólogo
romano. Julgamos que o argumento do batismo como unificador da cristandade, sob
o domínio da Igreja e conseqüentemente do papa, trazia sua própria antítese. A
antítese era a confusão entre o espiritual e o temporal, fazendo desabar os
fundamentos da própria cristandade. Sem a possibilidade clara de distinguir o
espiritual e o temporal, podia ruir a cristianitas que tinha o caráter sagrado com seu
fundamento.
Nas teorias de Egídio Romano nas quais a cristianitas se formava pelo
batismo, o que cabia nessa sociedade aos chamados infiéis, ou seja, os que não
foram batizados ou que recusaram sua fé? A posição do teólogo romano sobre os
infiéis foi polêmica, mas uma conclusão lógica de seu pensamento. O termo infiel foi
definido por Egídio Romano de forma alegórica:
os infiéis são filhos de Belial e os fiéis, enquanto estão sujeito à
Igreja, servos de Cristo [...] E porque, conforme a sentença do
Apóstolo, não há nenhuma comparação entre Cristo e Belial, nem
entre luz e trevas, o haverá nenhuma comparação entre os fiéis e
os infiéis. (EDIO ROMANO,1989, p. 131).
A condição de infiel para Egídio, como se percebe acima, não foi clara, mas
observando sua teoria da ordem social constituída pelo sacramento do batismo,
pode-se inferir que seriam os hereges e os pagãos.
Os infiéis não possuiriam, nos argumentos do teólogo romano, a posse ou o
domínio dos bens de modo legítimo, sendo os bens dos infiéis possuídos por
usurpação e injustiça. As palavras exatas de Egídio Romano (1989, p. 133) foram:
“Por isso os infiéis, nem são retamente donos de si mesmos, nem podem ter
127
devidamente suas propriedades.” Os infiéis (pagãos e hereges) podiam ter seus
bens confiscados. Ockham tratou do tema do governo e da posse dos bens entre os
infiéis. Para Ockham, o argumento defendido pelos papas e representado por Egídio
Romano sobre os bens dos infiéis contradizia-os outros argumentos que os
defensores da plenitude do poder papal defendiam para afirmar que os imperadores
cristãos sucediam por intermédio da Igreja, os imperadores romanos pagãos. A fé
cristã, para Ockham (2002, p. 114-115), não suprimia direitos de ninguém, como
expressa o texto seguinte: “[...] pois Cristo não veio suprimir nem tampouco impedir
o domínio dos reis ou dos imperadores [...] Além disso, a religião cristã não priva
nenhum pagão do seu direito.” Essa posição de Ockham estava ligada à sua idéia
de que a vinda de Cristo levava as coisas deste mundo à perfeição, sem desprezar
os direitos de posse dos bens inerentes à pessoa humana desde a criação
8
. Egídio
Romano defendeu juntamente com os teólogos franciscanos Alexandre de Hales,
Scotus e Ockham que no princípio os bens eram propriedade coletiva, surgindo a
propriedade particular como uma necessidade após o pecado.
Os bens dos infiéis possuídos ilegitimamente pertenciam à cristandade, em
primeiro lugar ao poder espiritual. Egídio Romano percebeu que seria prejudicial à
organização da cristandade, que o poder temporal fosse totalmente desvalorizado
ou desautorizado em suas ações. Egídio Romano (1989, p. 163-170) tentou salvar a
autoridade do poder temporal afirmando que a Igreja embora pudesse, para manter
a tranqüilidade entre os príncipes, não devia constantemente intervir nas decisões
do poder temporal. Para desempenhar melhor as funções mais importantes do sumo
pontífice que eram espirituais, Egídio Romano aconselhou que o sumo pontífice
deixasse as decisões comuns para os juízes e outros do poder temporal.
A contribuição de Egídio Romano para a defesa da plenitudo potestatis pode
ser percebida na retomada dos argumentos recorrentes entre os teólogos papais. Os
argumentos que ele retomou foram a ordem cósmica dionisiana, a supremacia do
direito canônico sobre outros códigos de leis, a invulnerabilidade do sumo pontífice
frente aos juízes temporais.
A obra de Egídio Romano contém muitos elementos que foram contestados
por Ockham. O teólogo romano não fez menção contínua à figura do imperador
como a maior autoridade do poder temporal. Ockham mencionou constantemente o
8
Sobre o tema da posse dos bens no estado paradisíaco do ser humano relatado no livro bíblico do
Gênesis conferir Boehner (1958) e De Boni (2003).
128
imperador definindo sua função na cristandade. Seria o motivo de Egídio Romano
não citar o imperador, ele ter percebido os sinais da passagem da força do ideal de
cristandade unificada sobre um só governante temporal ou ter compreendido o
movimento do século XIV que Pacaut (1969) chamou de “inadaptação do Império”?
A resposta à questão dificulta-se por Egídio Romano tomar posições movido por
benefícios. Ele passou do apoio ao rei da França para o papa motivado pelos
benefícios recebidos.
3.3 JOÃO QUIDORT: FORTALECIMENTO DOS REINOS
Nos anos de 1302 e 1303 surgiu uma obra de um teólogo de Paris chamado
João Quidort ou João de Paris (1270-1306) com o título De regia potestate et papali
(Sobre o poder Régio e Papal) na qual o autor tratou as relações da Igreja e do
poder.
João Quidort (1989, p. 41-43) preferiu um caminho intermediário entre as
posições em confronto sobre o poder papal. Ele sintetizou em duas as posições
sobre o poder papal: posição valdense e Herodes. A primeira destituía todo e
qualquer poder sobre coisas ou bens materiais do papa e das autoridades da Igreja.
Para ele, a Igreja, desde o momento em que aceitou a suposta Doação de
Constantino, deixou de ser legítima. A segunda posição, que Quidort citou,
identificava o papa e as autoridades eclesiásticas como as verdadeiras detentoras
de todo e qualquer poder material. Na segunda posição o poder exercido pelos reis
seria um poder mediado pelo papa, ou seja, Deus, fonte de todo poder e autoridade,
concedeu ao papa o poder temporal e este para melhor organização, concedeu aos
reis o poder temporal.
Quidort soube diferenciar, com clareza, a situação em que se encontravam,
no seu tempo, as disputas sobre a natureza e a finalidade do poder pontifício. Para
ele, era necessário esclarecer a questão, pois prejudicava a própria finalidade da
Igreja enquanto mediadora para a salvação dos fiéis. Ele começou os seus
comentários procurando demonstrar que sua posição buscava um equilíbrio na
questão do poder temporal:
129
Entre essas duas opiniões tão contrárias, a primeira das quais todos
julgam errônea, creio que a verdade encontra-se no meio termo, isto
é: aos prelados da Igreja não é proibido ter a posse a jurisdição nas
coisas temporais, contra a primeira opinião; mas isto não cabe a
eles de per si, em razão de seu estado e por serem vigários de
Cristo e sucessores dos astolos, e sim por conceso ou
permiso dos príncipes, quer estes lhes oferecem algo, quer
porque de algum outro modo o obtiveram. (JOÃO QUIDORT, 1989,
p. 43-44).
De Boni (2003, p. 168-169) defendeu que a obra de Quidort segue uma linha
tomista. O pensamento de Quidort é também autônomo e suas conclusões não
coincidem de maneira rigorosa ao pensamento de Tomás de Aquino. Para De Boni,
o método tomasiano está claramente presente na obra de Quidort. Ele seguiu
Aquino especialmente na definição sobre o poder régio. Ponto comum entre Aquino
e Quidort – e também nos pensadores da Alta e Baixa Idade Média – foi a utilização
contínua dos textos do Filósofo (Aristóteles) para esclarecer a definição de poder
régio. Quidort diferenciou rei e tirano seguindo a definição de Tomás de Aquino
presente na obra e já tratada nesta pesquisa.
Quidort foi o único na definição do poder espiritual, numa obra de objetivo
teológico-político, a unir a origem e necessidade do poder espiritual aos
sacramentos. Sacramentos para ele eram os sinais visíveis de realidades invisíveis
ou sobrenaturais, deixados por Cristo como elemento de continuação da salvação
divina. Para ele, a função dos ministros – palavra preferida por Quidort para
representar os sacerdotes – seria oferecer aos fiéis os sacramentos para a salvação
dos mesmos. Estes sacramentos seriam “remédios” para curar o homem e a mulher
separados de Deus. Enquanto Ockham descrevia que a função espiritual estava
orientada para a salvação, o mestre de Paris foi mais preciso afirmando que a
função principal dos sacerdotes, que exerciam o domínio sobre o poder espiritual,
estava intimamente vinculada à aplicação dos sacramentos.
Quidort declarou que o poder espiritual se sobrepõe ao poder temporal dos
reis. Mas para ele, o poder espiritual não é, sob todos os aspectos, superior ao
poder temporal como expressou no texto abaixo:
130
A relação entre ambos corresponde mais à existente entre o poder
do pai de família romano e o do comandante de tropas, pois entre
amboso há uma relão de depenncia, mas ambos derivam de
um poder superior. Assim, pois, o poder secular é superior ao
espiritual em algumas coisas, isto é, nas coisas temporais, e neste
assunto o se encontra em nada sujeito ao espiritual, pois não
procede dele, mas ambos provêm imediatamente de um só poder
supremo, que é o divino, e por isso o poder inferior não está sujeito
ao poder superior em todas as coisas, mas apenas naquelas em
que o poder supremo o colocou sob o superior. (JOÂO QUIDORT,
1989, p. 54).
O teólogo parisiense preocupava-se em preservar a autonomia dos poderes.
Buscou diminuir a pretensão dos teólogos da plenitudo potestatis freando o interesse
dos reis que queriam o poder espiritual como um “departamento” a serviço de seus
interesses.
Quidort desenvolveu uma explicação jurídica sobre os bens e a pessoa do
sacerdote. Ele fez a distinção jurídica contra o uso “particular” dos bens
eclesiásticos. Para João Quidort (1989, p. 56): “[...] deve-se dizer que os bens,
enquanto eclesiásticos, são concedidos às comunidades e não à pessoa individual.”
Sua posição jurídica sobre os bens eclesiásticos partiu da vontade de proteger a
comunidade dos fiéis, verdadeira detentora do domínio dos bens, da cobiça e da
ganância de possíveis autoridades eclesiásticas. Dentro do pensamento da
plenitudo potestatis, a distinção entre o indivíduo e a função (ministério, nos termos
de Quidort) que este exercesse, significava uma determinada limitação de suas
ações. A limitação referente ao uso e propriedade dos bens, colocava a lei jurídica
acima das pretensões pessoais.
Segundo Quidort, os papas extrapolavam o uso real do poder espiritual
quando afirmavam que os bens dos fiéis leigos pertenciam ao pontífice. O papa só
lhes era superior enquanto fiéis, ou seja, nas questões da fé. Cristo não havia
exercido a posse ou administração dos bens e, por conseqüência, não deu ao
apóstolo Pedro ou ao papa este suposto benefício.
Uma citação bíblica de João Quidort (1989, p. 69), da carta de S. Paulo aos
Romanos 13, 4 esclarece o que pensa da finalidade do poder temporal: “Não é em
vão que levam a espada, pois são ministros de Deus.” Ele retomou o tema das duas
espadas chamando aos reis de ministros de Deus. Ockham também utilizou a
linguagem figurativa das espadas como poder. Assim como Quidort, Ockham
131
recusou que as duas espadas (os dois poderes) pudessem estar nas mãos de uma
só pessoa. Para o teólogo de Paris, o poder temporal devia ser exercido para o
serviço da fé. O rei seria necessário para distribuir a justiça e recolher o que fosse
necessário para o cuidado da vida comum. Consideramos que Quidort, de modo
simples e preciso, defendia que o rei estava a serviço do bem comum nas questões
econômica, jurídica e espiritual: na economia, o rei devia recolher os tributos para
aplicá-los onde a comunidade necessitava; nas leis, o rei devia atuar como juiz,
promulgando leis que defendessem a comunidade das injustiças; no espiritual, como
auxiliar do poder espiritual. Mas ainda que o poder temporal fosse auxiliar do poder
espiritual, ele insistiu na tese da proveniência direta de Deus:
Portanto, o poder real não depende do papa nem em si mesmo,
nem quanto à execução, mas provém de Deus e do povo que
elegeu e continua elegendo o rei, indicando uma pessoa ou uma
família para o cargo. Dizer, pois, que o poder real vem primária e
imediatamente de Deus e de modo mediato do papa, é algo muito
riculo, e só poderia ser verdadeiro se Cristo houvesse dado a
Pedro, o poder de conferir a dignidade real. (JOÃO QUIDORT, 1989,
p. 73).
Ockham recusou a mediação do poder temporal pelo papa. O papa, o maior
em dignidade dos sacerdotes, só podia exercer de fato o poder temporal e espiritual
na área do Patrimônio de Pedro. Neste território, o papa era chefe espiritual e
reinava com legítimo poder temporal. Mesmo nas terras do papa (Patrimônio de
Pedro), ele exercia o poder temporal não por ser bispo da Sé de Roma, mas por ser
rei temporal.
Quidort reuniu 42 argumentos que apóiavam o pleno poder papal. Os
argumentos foram construídos com textos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento,
supostos fatos históricos, com textos de Santo Agostinho , Hugo de São Vitor e São
Bernardo. Muitos dos argumentos reunidos por Quidort foram repetidos nas obras
Ockham. Julgamos que a maior contribuição de Quidort foi juntar estes argumentos
numa única obra e sequencialmente apresentá-los para serem contestados.
Diferentemente, o pensamento político de Ockham se encontra espalhado em várias
obras, algumas compostas para responder situações especificas, por isso não se
132
pode encontrar, numa só obra, todos os argumentos que defendem a plenitude do
poder papal como em Quidort.
João Quidort (1989, p. 106) seguindo Aristóteles, definiu que o poder temporal
devia ser exercido para o bem . Mas não defendeu que o não cumprimento da
administração para o bem comum seria motivo de deposição de um soberano.
Quidort (1989, p. 91) afirmou que a única maneira legítima do poder espiritual atuar
na deposição do príncipe, seria o papa excomungando o soberano, aplicando-se
também a excomunhão a todos que obedecessem ao soberano excomungado. Os
súditos diante da excomunhão seriam levados a depor o soberano. A excomunhão
devia ser aplicada ao príncipe herético incorrigível e desprezador das censuras
eclesiásticas.
O príncipe só indiretamente podia punir um papa “criminoso, que escandaliza
a Igreja.” (JOÃO QUIDORT, 1989, p. 91). O papa só poderia ser deposto pelo povo
(fiéis). O príncipe sendo o primeiro representante do povo deveria agir contra o papa
criminoso impedindo seus cardeais e súditos de o considerarem como seu pastor.
Os erros que podiam levar um papa a punição segundo João Quidort (1989, p. 135),
seriam quatro: sobre a condão, o poder, o abuso de poder e a falta pessoal. O
termo condição para ele referia-se, primeiramente, à heresia. O poder significava a
possibilidade de discutir o que pode ou não legitimamente fazer ou dispensar um
papa. O abuso de poder pontifícios e a falta pessoal estariam ligadas a crimes como
homicídio, furto, uso ou distribuição indevida das prebendas. O Concílio Geral, no
caso de punição, seria uma forma importante de administração. O Concílio Geral
seria, em questões difíceis, uma forma mais perfeita de gerenciar a Igreja por contar
com a opinião e consentimento de um número maior de prelados. Recordar a
importância do Concílio Geral para o governo da Igreja, na intenção de Quidort, era
um cerceamento de atitudes arbitrárias.
Em suma, pode-se dizer que os poderes não podiam interferir diretamente em
nenhum caso sobre o outro, mesmo as ações corretivas deviam ser realizadas de
modo indireto. Quidort estabeleceu uma certa autonomia entre os poderes, sem
contudo deixar de especificar quando um podia ser julgado pelo outro. Na autonomia
e complementaridade, o poder espiritual devia exercer seu poder coercitivo,
somente, por meio das coisas espirituais, como escreveu João Quidort (1989, p. 93)
no texto seguinte:
133
Fica claro, de quanto foi visto, que toda censura eclesiástica é de
cunho espiritual, cabendo-lhe excomungar, suspender e interditar, e
nada mais pode a Igreja, a o ser de modo indireto e
acidentalmente, como foi dito [...] Observe-se que o apóstolo,
mesmo em faltas graves, não vai além da excomunhão; e instruindo
os bispos diz em Tt 3,10-11: “Depois da primeira e segunda
admoestação a um herege, evita-o, certo de que um homem destes
é perverso”. Anote-se que não diz: “Queima-o, mas: “Evita-o”.
Para ele, como toda sanção do poder espiritual seria de modo espiritual, a
Igreja não podia imputar castigos e prisões a hereges. A unidade da fé não podia ser
defendida de qualquer maneira, como escreveu o teólogo. O teólogo de Paris
interpreta o texto bíblico que cita o herege sem recorrer a alegorias que podiam ser
manipuladas.
Ockham ao relatar a posição curialista tinha condenado a interpretação
alegórica (ou mística) para textos que pudessem gerar polêmicas. João Quidort
(1989, p. 96) condenou também o uso que fazia de textos bíblicos, interpretando-os
de modo místico para tentar confirmar a plenitude do poder do papa. Um exemplo é
o texto bíblico do Gênesis 1,16 condenado por Ockham e Quidort por ser
interpretado alegoricamente. Neste texto a interpretação era como o papa sendo o
sol, e por isso mais importante; e a lua, o poder temporal que depende do luminar
maior para ter sua luz. No sentido alegórico, a interpretação era manipulada para
destacar interesses e não representava argumento lógico ou teológico que
procuravam Quidort e Ockham. Bonifácio VIII utilizou o mesmo texto bíblico citado.
A bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII foi contestada como argumento para
a plenitude do poder. Quidort foi contra a bula, mas aceitou em parte a teoria de
“uma só cabeça” para a perfeição dos poderes. Para ele cada poder devia ter “uma
só cabeça” e não uma única para os dois. Se a Unam Sanctam afirmava que “duas
cabeças” formava um monstro e não um corpo, para Quidort seria outro monstro
unificar os poderes nas mãos do papa, onde a cabeça não correspondia ao corpo.
Para ele mesmo nos territórios pontifícios, frutos da suposta Doação de Constantino,
o papa devia exercer os poderes sem confundi-los.
Quidort em diversos momentos citou e contestou a Doação de Constantino.
Quidort restringiu a Doação de Constantino a alguns territórios e não a todos os
territórios existentes. Quidort não lançou a hipótese de que o texto da Doação
134
pudesse ser apócrifo, como fez Ockham. Baseando-se na finalidade do imperador
como alguém a serviço do império e de seus cidadãos, o teólogo de Paris afirmou
que não houve legitimidade na Doação de Constantino, pois ela desmembraria o
império fazendo-o ruir. Alguns evocavam a Doação para argumentar que os leigos
(os príncipes e outros soberanos) tinham direito ao benefícios da Igreja, aspecto
fortemente recusado pela Reforma Gregoriana.
Quidort tratou dos temas importantes da Reforma Gregoriana como o
gerenciamento de igrejas pelos leigos com o recolhimento de benefícios (dízimos), a
obediência dos bispos mais aos reis do que ao papa ou à cúria papal e a recepção
de doações por leigos feitas às igrejas. Ele considerou que os sacerdotes deviam
ser os primeiros responsáveis por toda a ação da Igreja que visasse o bem espiritual
dos fiéis. Ele defendeu que fossem os próprios sacerdotes que cuidassem dos bens
e recursos necessários à manutenção e expansão da fé cristã, concordando com a
reivindicações feitas pela Reforma Gregoriana. Discutindo os temas descritos acima,
Quidort elaborou uma contestação ampla à plenitude dos poderes, mas preservou o
que julgou ser o direito das igrejas espalhadas pelo mundo.
O direito das igrejas e do papa não provinha da chamada transferência do
império. Ockham, por diversas vezes, contestou a transferência do império dos
gregos para os germânicos. Ockham contestava a transferência quando utilizada
para afirmar que o papa realizou a transfencia porque ele possuía a plenitude do
poder. Ockham defendia que o império pertencia ao povo romano e este havia
concedido ao papa para que a realizasse. Em nenhum momento, Ockham julgou
que o poder espiritual pudesse ser guardião do poder temporal, mas devolveu ao
povo o poder de depor ou nomear imperadores. João Quidort (1989, p. 125-130)
rebateu o argumento da transferência defendendo que de fato passou a existir dois
imperadores, sem existir a suposta transferência de Carlos Magno.
As idéias contidas na obra Sobre o Poder Régio e Papal assinalam a
percepção de uma mudança política que pode ser percebida nos próprios termos
utilizados. Percebemos um uso preferencial pelos termos príncipe e rei para indicar
o soberano. Quidort seguiu seu mestre Tomás de Aquino, que tamm preferiu os
termos rei e príncipe para indicar os soberanos. Notamos uma quase ausência do
termo imperador. Para De Boni (2003, p. 176-180), a obra Sobre o Poder Régio e
Papal demonstra a perda da força que representou o Sacro Império Romano-
Germânico na cristandade. A análise do texto da obra citada confirma a constatação
135
de De Boni de que Quidort percebeu o momento terminal do sonho do império
cristão. Por sua vez, Ockham não demonstrou claramente a “agonia” do império
cristão. Suas obras apresentam títulos que demonstram mais sua confiança no
restabelecimento do império cristão. Enquanto Ockham escolheu como título Sobre
o poder dos imperadores e dos papas, Quidort preferiu o título Sobre o poder régio e
papal.
Nos textos de Ockham que tratam da plenitude do poder, ele preferiu utilizar
constantemente o termo imperador e não rei ou príncipe. A convivência de Ockham
com os problemas do imperador Ludovico IV com os papas poderia ser uma
resposta a sua preferência pelo termo imperador. Outra possível causa do uso do
termo imperador por outros seria a tese de que suas obras estavam a serviço do
imperador em troca de sua proteção. Julgamos que Ockham represente a passagem
do período “monárquico” da Igreja rebatendo as pretensões dela no campo temporal.
Ele não fez menção direta à passagem do poder centralizado do imperador para o
surgimento de diversos principados autônomos. Interpretamos que no período de
Ockham houve um fortalecimento dos príncipes aproveitando a disputa entre os
papas e os imperadores, criou-se o espaço necessário para os principados
ocuparem, de fato, o lugar hegemônico do santo império, ainda que este
formalmente continuasse a existir.
Na comparação que realizamos entre Ockham e Quidort encontramos
diversos pontos em comum, mas um dos pontos no qual se manifestou uma
diferença importante foi na percepção do ponto de mutação vivido no início XVI com
a conseqüente pulverização do poder temporal.
3.4 MARSÍLIO DE PÁDUA: A IGREJA INSTITUÍDA POR NECESSIDADE
HUMANA E A SERVIÇO DOS MONARCAS
Com a bula Licet iuxta doctrinam ad episc. urbis Worcester em 1327, o papa
João XXII condenou o livro O Defensor da Paz de Marsílio de Pádua (1280-1243).
Marsílio de Pádua foi um dos principais oponentes da plenitudo potestatis.
Envolveu-se diretamente nas disputas de Luís da Baviera e o papa João XXII,
136
tomando posição a favor do imperador. Para Marsílio, o papa João XXII cometeu um
ato injusto recusando coroar a Luís da Baviera, eleito com a maioria dos votos dos
príncipes eleitores
9
.
As obras de Marsílio de Pádua têm despertado o interesse dos pesquisadores
de política, que julgam perceber nas idéias de Marsílio, o nascimento da noção de
estado. As posições são diversas sobre o tema da noção de estado e a leitura de
Marsílio como precursor da política moderna. Chelini (1968) situou Marsílio como
participante de um movimento de recusa à Igreja e que anunciava a Reforma. Pisier
(2004) defendeu que Marsílio anunciou o estado moderno. Libera (2004) defendeu
que as interpretações que defendem o nascimento do estado moderno no momento
em que a teologia perde seu vigor não podem se sustentar dentro do século XIV.
Tôrres (2003) recusou as interpretações que procuraram separar Marsílio de Pádua
do pensamento medieval escolástico.
Na diversidade de opiniões sobre o autor em questão e tamm dos temas
que Marsílio abordou em suas obras, escolhemos abordar sua compreensão sobre a
Igreja (eclesiologia) porque é neste tema que se encontram as maiores
discordâncias entre Guilherme de Ockham e Marsílio.
Marsílio de Pádua (1995, p. 84) ao descrever a origem das relações humanas
a partir do livro do Gênesis afirmou que os dirigentes religiosos foram instituídos pela
própria comunidade e não por vontade divina. A afirmação dele contrariava
profundamente a explicação que grande parte dos teólogos dava para a origem da
Igreja. Os ministros sagrados, na explicação aceita pela Igreja na época, tinham sido
instituídos por Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Cristo instituiu
novos sacerdotes conforme testemunhavam os versículos de Mateus 16, 18-19.
Reduzindo os sacerdotes a mera instituição da comunidade, Marsílio afrontava os
textos bíblicos que defendiam a preeminência do poder espiritual sobre o temporal
na interpretação da cúria papal e do romano pontífice. Na maior parte da obra
citada, Marsílio expressou a idéia de que os sacerdotes seriam importantes para
administração da Igreja, mas não seriam uma instituição divina. Entretanto, Marsílio
não definiu com clareza se o sacerdócio tinha sido pretendido por Deus ou se era
necessidade. Em alguns momentos, Marsílio afirmou que era vontade divina que os
9
Sobre a biografia de Marsílio de Pádua e seus conflitos com a Igreja ver Souza (1995) e Floriano
(1995).
137
sacerdotes fossem mediadores entre Deus e o ser humano decaído por causa do
pecado.
O sacerdócio cristão teria uma causa final dentro da comunidade dos fiéis. Os
termos causa final e causa eficiente provêm de Aristóteles, como grande parte das
idéias estruturantes de Marsílio de Pádua. Entretanto as idéias peripatéticas foram
modificadas visando adaptar-se à sociedade cristã. A causa final do sacerdócio para
Marsílio de Pádua (1995, p. 95) estava inserida na cidade, conforme expressa o
texto seguinte: “Seu objetivo consiste em moderar os atos humanos imanentes e
transitivos, dirigidos pela inteligência e vontade, através dos quais as pessoas se
preparam para viver melhor no outro mundo.” Para ele, os sacerdotes ao preparem
as pessoas para receberem a vida eterna pela prática das virtudes neste mundo
faziam com que a justiça na convivência comum — na cidade — fosse respeitada. A
força coercitiva da lei exercida pelo poder temporal, que se baseava na lei
evangélica, era reforçada pela possível sanção divina. O poder temporal e o
espiritual unidos na finalidade e não na pessoa tornavam possível a paz ou a
tranqüilidade na vida comum dos fiéis.
Marsílio entendia que a necessidade fez com que fosse escolhido um entre os
sacerdotes para que governasse sobre os demais, surgindo assim os bispos e o
bispo de Roma que governaria toda a Igreja. Marsílio de Pádua (1995, p. 199) incluiu
que foi por vontade divina que a Igreja se organizou através dos bispos, mas afirmou
que foi “principalmente através da vontade e da razão humanas, da mesma maneira
que os demais ofícios da cidade.” Essas afirmações de Marsílio, feitas reiteradas
vezes, reduz a Igreja a uma instituição formada pela necessidade humana em
contraposição à tese teológica aceita pelos papas que a Igreja tinha uma função
primordial na salvação, sendo assim desejada por Deus desde o começo.
A teoria do primado papal foi apresentada pelo patavino com um aspecto
novo. Na versão do patavino, após a ressurreição do Cristo, o apóstolo Pedro teria
sido aclamado bispo pelo povo de Antioquia. Ele citou que a aclamação do apóstolo
Pedro estava numa fonte antiga, sem nomeá-la. Citando o fato do povo antioqueno
ter escolhido o apóstolo Pedro como bispo, Marsílio demonstrava que os fis tinham
importância na escolha do bispo, destacando o caráter humano desta escolha. Se
Cristo havia dado o primado a Pedro, conforme o que a leitura de certos textos
bíblicos supõem, não necessitaria do consentimento do povo. Segundo esta posição
de Marsílio, Deus teria aceitado a medião da totalidade dos fiéis para suas
138
realizações na história humana. A idéia da mediação dos fiéis interferia na plenitudo
potestatis, pois retira o grau imediato do poder supostamente recebido por Deus.
Marsílio fez ainda outra contestação ao primado do apóstolo Pedro.
Para ele, os apóstolos tiveram uma autoridade igual entre si. Nenhum dos
apóstolos teria exercido algum tipo de poder sobre o outro. A posição tomada por
Marsílio frente ao primado papal recorda as interpretações dadas pelos teólogos
orientais para a questão do primado. Ele, tamm, não conferiu uma maior
dignidade ao bispo frente aos sacerdotes: o bispado foi erigido para a organização
dos fiéis e dos sacerdotes. Retirando o caráter de vontade divina que os bispos
fossem os líderes das igrejas, igualando em honra e função todos os bispos, Marsílio
procurava esvaziar a plenitudo potestatis.
Ockham não contestou o primado papal. Ele preferiu contestar a explicação
que dilata a compreensão dos textos bíblicos e da patrística, resultando num
excesso de poder que prejudicava a Igreja e o equilíbrio entre os dois poderes
instituídos por Deus. Nas últimas obras de Ockham (1999d), ele utilizou o termo
“igreja de Avinhão” para delimitar que não se opunha ao papado ou à Igreja, mas
aos papas hereges que se instalaram em Avinhão prejudicando toda a cristandade.
Marsílio preferiu usar constantemente o termo “Bispo de Roma” para se referir ao
papa, manifestando que ele era um entre os demais e não o único sucessor do
apóstolo Pedro.
Marsílio concluiu que o bispo de Roma não tendo a primazia que alguns
teólogos definiam, não podia definir as interpretações dos textos bíblicos ou as
questões polêmicas sem o Concílio Geral, ou seja, sem a reunião representativa de
todos os fiéis. O Concílio Geral devia ser convocado pelo chefe do poder temporal,
do mesmo modo que foram convocados os antigos concílios. Ockham defendia e
convocava a realização de um Concílio Geral para, entre outras coisas julgar,
especialmente, ações contra a fé realizadas por um papa. A convocação do Concílio
Geral, para Ockham, cabia em primeiro lugar aos cardeais, e se eles se recusassem
a realizá-lo, deveria intervir o poder temporal. Parece-nos uma diferença importante
entre os dois pensadores medievais. Marsílio insistiu na participação coletiva dos
fiéis nas definições da Igreja, mas não estendeu esta participação coletiva para as
ações do poder temporal. Ockham se preocupou com a participação dos súditos na
administração, apresentando os motivos que poderiam levar os súditos do império
ou do reino a depor seu monarca. Insistiu na necessidade da administração dos
139
poderes visarem ao bem comum. As análises que afirmam que Marsílio de Pádua foi
o grande expoente da idéia de “democracia” que está na origem do estado moderno
na Baixa Idade Média, não resistem à comparação, como vimos acima, com o
pensamento de Ockham.
O Concílio Geral, para o patavino, seria um instrumento de governo de caráter
extraordinário para o poder espiritual. No cotidiano, os prelados conduziriam as
igrejas de modo a contribuir para o bem da cristandade. A Igreja com seus
governantes, escolhidos pelo povo, seria necessária para a fé cristã, mas a plenitude
do poder seria para Marsílio prejudicial à fé, aos príncipes e ao imperador do Sacro
Império Romano-Germânico. A plenitude do poder seria a maior causa da
intranqüilidade, da discórdia, de litígios e de várias outras coisas que contribuíam
para a ruína do reino ou da cidade.
O próprio termo “Igreja”, como Marsílio observou, constituía uma diversidade
de interpretações, terminando por desvalorizar a totalidade dos fiéis. Marsílio julgou
que os que dirigiam a comunidade dos fiéis ao atribuírem a si mesmos e não a todos
os fiéis o termo “Igreja”, apropriavam-se da santificação doada por Cristo a todos os
batizados. Os dirigentes da Igreja queriam tamm se apropriar do poder temporal.
Marsílio constantemente foi contra a apropriação do poder temporal pela
Igreja. Para Marsílio (1995, p. 231-251), a Igreja devia estar sujeita aos poderes
temporais porque Cristo, os apóstolos e os textos patrísticos demonstraram que o
poder espiritual estava sujeito ao poder temporal. O poder espiritual, segundo as
mesmas fontes citadas anteriormente, seria impedido de exercer o poder coercitivo.
O poder temporal necessitava usar da coerção para aplicar a justiça, se a Igreja foi
impedida de usar a coerção, logo não podia exercer o poder temporal. O autor
patavino apontou qual era, exatamente, a função do poder espiritual.
A função do poder espiritual seria legislar nas questões da alma através do
sacramento da penitência e segundo a lei divina. Marsílio destacava constantemente
os sacramentos do batismo e da penitência, ligados, segundo a explicação da Igreja,
à restauração do ser humano sujeito ao pecado. Para Marsílio (1995, p. 273) os
versículos de Mateus 18, 19-20 deviam ser interpretados como somente
relacionados ao sacramento da penitência, entendendo penitência como a
devolução da graça divina que o fiel perdia por causa do pecado. Ele defendeu que
a Igreja foi criada para a salvação pelos sacramentos. Imiscuir-se no poder temporal
seria prejudicial à Igreja e ao bom andamento da vida no reino.
140
Marsílio ligou a vontade dos sacerdotes de exercerem o poder temporal como
contrária a pobreza incentivada pelos textos bíblicos. Ele usou de argumentos que
poderíamos chamar de morais, para afirmar que alguns ministros eclesiásticos
usavam o poder temporal para benefício próprio esquecendo-se dos pobres, como
expressa o texto abaixo:
E além disso, com que consciência, face aos ensinamentos da
religião cristã, exigimos que respondam, esses ministros
eclesiásticos levando uma vida mundana dilapidam os bens dos
pobres ao adquirirem inúmeras coisas desnecessárias, entre outras,
cavalos e serviçais domésticos, ao se banquetearem, ao
desfrutarem doutros prazeres e vaidades, diante de todos ou às
escondidas, quando, pelo contrário, de conformidade com o
ensinamento do Apóstolo, proposto na Epístola a Timóteo, último
capítulo [1Tm, VI,8] deviam se contentar em receber apenas a
alimentação e o vestuário, ao exercerem o ministério da Palavra?
(MARSÍLIO DE PÁDUA, 1995, p. 334-335, grifo do autor).
Marsílio de Pádua condenava a opulência dos sacerdotes, porém justificava
como uma necessidade do reino que os príncipes fossem ricos. Como se pode notar
no seguinte texto:
Aos príncipes, pelo contrário, não convém as situações de pobreza
exterior e humilde, pois é necessário que desfrutem duma condição
tal que seus bons súditos os respeitem e os maus tenham medo
deles, e gras à qual possam também, se for preciso, usar do
poder coercivo contra os rebeldes e os transgressores da lei, o que
não poderiam fazer adequadamente, se fossem pobres e humildes.
(MARSÍLIO DE PÁDUA, 1995, p. 336).
Ockham condenou a opulência dos sacerdotes e dos príncipes. Para ele, o
imperador ou príncipe não podiam se apropriar dos bens temporais doados ou
devidos por meio de impostos. Os bens dos súditos adquiridos pelo reino estariam
para o bem comum. A apropriação constituiria uma ofensa à justiça e à eqüidade no
reino. O Venerabilis Inceptor parece preservar uma maior imparcialidade na questão
do uso dos bens pelos dois poderes. Mesmo, quando Ockham citava a disputa dos
franciscanos pela pobreza evangélica, não usou o argumento que a Igreja não
141
queria aceitar a pobreza evangélica porque as autoridades da Igreja temiam que
tivessem de deixar seus bens.
Nas comparações que fizemos entre a posição de Ockham e Marsílio sobre a
Igreja pode-se afirmar que o primeiro permaneceu mais imparcial em suas análises
sobre os poderes, acreditando na possível convivência entre eles segundo o que
defendiam as teorias do início da Idade Média. Ockham não recusou a autoridade
espiritual da Igreja acreditando que o bem do império ou dos reinos, necessitava de
uma Igreja direcionada ao respeito da liberdade cristã.
3.5 A LIBERDADE CRISTÃ COMO PRÁTICA POLÍTICA
O tema da liberdade cristã aparece constantemente nos textos teológicos-
políticos de Ockham. Seria mais compreensível que o tema da liberdade cristã
aparecesse situado entre os assuntos éticos ou morais, tomando ética no sentido de
orientações individuais para a conduta. Mas não parece ser esse o ponto de
abordagem do pensamento medieval sobre o tema. Em Santo Agostinho, teólogo e
filósofo que influenciou grande parte do pensamento medieval, aparece a
preocupação constante com o tema da liberdade. Sua preocupação era com a
ligação entre a liberdade, o livre arbítrio e a predestinação. Assim o debate sobre o
tema da liberdade cristã não foi algo novo no contexto de Guilherme de Ockham.
Na obra Brevilóquio, Ockham (1988, p. 77) definiu que a lei evangélica do
cristão o retirava do peso da servidão imposta pela lei antiga. Ele entendia por lei
antiga os preceitos, as normas e os rituais presentes no Antigo Testamento e
levados à perfeição com a vinda do Cristo. Na nova lei, os fiéis não podiam ser
obrigados a praticar aquilo que não constava no direito natural e divino. Qualquer
prescrição, além do que constasse no Novo Testamento, não impediria a quem
desobedecesse de alcançar a salvação. Ele não só questionou a validade de
preceitos que fossem contra a nova lei, como afirmou que quem prescrevia estas
leis não teria direito de afastar da comunidade dos fiéis àqueles que
desobedecessem. A posição de Ockham retirando a autoridade do legislador sobre
pontos que fossem contra a nova lei, pensava claramente na ação que estes
legisladores eclesiásticos que infringiam nomeando de hereges com certa facilidade
142
àqueles que lhes desobedeciam. Procurando exemplificar o que entende por
excesso frente a nova lei, ele citou o jejum. Ainda que o jejum fosse um preceito
apontado por alguns nomes da patrística, ele não tinha força de obrigação, como
descreve o texto abaixo:
Como, pois, os bispos romanos podem aconselhar os fiéis a um
jejum e abstinência especial, maso podem regularmente obrigar,
suas leis nestes casos e em semelhantes não são obrigatórias se
não houver o consentimento dos súditos e por isso, mesmo se o
papa não quiser, são revogados pelos costumes contrários dos
usuários. (OCKHAM, 1988, p. 78).
Para Ockham o que não fosse de direito divino e natural, só podia ser aceito
após anuência dos fiéis. Estava para além da jurisdição papal obrigar os fiéis contra
sua vontade nos casos mencionados. A interdição nomeada pelo franciscano impõe
mais um limite ao poder espiritual. Por isso, mesmo nos aspectos estritamente
espirituais, o papa ou qualquer sacerdote o possuíam a plenitude do poder. Por
que a lei cristã, no entendimento de Ockham, configurava-se como uma protetora
dos fiéis?
O fiel era um ser humano salvo pelo Cristo que fez passar a lei antiga,
fazendo o ser humano deixar a servidão do pecado. Cristo não fizera passar a lei
antiga da servidão para colocar os cristãos na servidão do papa ou de qualquer
outro prelado. Ockham citou diversos textos bíblicos, especialmente textos de S.
Paulo, e fez a interpretação dos mesmos para provar sua posição. O contexto em
que aparecem os textos da liberdade cristã nos textos paulinos, é sempre de
oposição àqueles cristãos que insistiam em permanecer com certas práticas rituais
do judaísmo, como por exemplo a circuncisão e a proibição de certos alimentos.
Especialmente na carta de S. Paulo aos Gálatas encontram-se os textos que
Ockham fez referência. Para melhor compreensão, citamos alguns destes textos:
É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes,
portanto, e o vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão.
[...] Vós fostes chamados à liberdade, iros. Entretanto que a
liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pela caridade
colocai-vos uns a serviço dos outros. (GÁLATAS 5, 1.13).
143
No texto de Gálatas, a liberdade cristã desonerava os fiéis das exigências
supérfluas que alguns cristãos do tempo dos apóstolos queriam tomar como norma.
Ockham fez a comparação entre os teólogos favoráveis à plenitudo potestatis aos
cristãos que insistiam em permanecer com práticas da lei antiga. Estes teólogos
suprimiam a novidade evangélica e levavam os fiéis à servidão.
Na obra Pode um príncipe, Ockham (1999b, p. 82-87) retomou a idéia da
liberdade cristã como contrária à plenitudo potestatis. Se a plenitudo potestatis fosse
aceita, ela oprimiria todos os cristãos, tanto leigos como clérigos. Ockham citou
Santo Agostinho como contrário às normas que pudessem limitar a liberdade cristã.
Segundo ele, nem os judeus que viveram sob a lei mosaica teriam exercido a
plenitudo potestatis. Sendo a lei mosaica considerada pelos cristãos a lei menos
perfeita, não podia a liberdade cristã existir concomitantemente à plenitudo
potestatis.
Na obra Sobre o poder dos imperadores e dos papas, Ockham (1999d, p.
174-178) colocou a liberdade cristã entre os primeiros argumentos contra a plenitude
do poder.
Na obra Oito questões sobre o poder do papa comentando a plenitude do
poder, Ockham escreveu que:
O primeiro argumento, que algumas pessoas consideram o mais
sólido é o seguinte: conforme os textos sagrados, a lei evangélica,
se comparada a lei mosaica, é uma lei de liberdade e isso deve ser
entendido ao menos negativamente no sentido que, seja nas coisas
temporais, seja nas espirituais, ela não implica em tanta servio
quanto houve na lei mosaica no que concerne às cerimônias e às
práticas exteriores. (OCKHAM, 2002, p. 41).
Em várias obras Ockham iniciou sua contestação à teoria papal do poder
mencionando a liberdade cristã. Desta premissa, pode-se inferir que o argumento da
liberdade cristã seria o princípio interpretativo da autoridade (auctoritas termo
aplicado ao papa) e do poder (potestas termo aplicado ao rei), que na distinção
formulada pelo papa Gelásio I corresponde aos dois poderes. O argumento da
144
liberdade cristã é eminentemente teológico, estreitamente ligado à salvação do ser
humano corrompido pelo pecado e resgatado pelo Cristo. O evento salvífico da
encarnação, paixão e ressurreição do Cristo eleva-se à categoria fundamental para
a interpretação de todo ato ou relação humana seja de ordem espiritual ou temporal.
Não seria possível que o mundo criado por Deus e recriado em Cristo, na concepção
de Ockham, pudesse ser concebido sem partir da salvação. Neste sentido, Ockham
concedeu a teologia a primazia na interpretação dos poderes e seus limites, porque
somente ela cabia em primeiro lugar, sondar e manifestar a todos os fiéis a salvação
eterna. Partindo destes pressupostos, podemos compreender sua preocupação em
afirmar que competia aos teólogos saber que poder o papa teria por direito divino,
como defendeu no Brevilóquio.
Se a liberdade cristã servia para limitar o poder do papa, tamm, diminuía a
possibilidade de um principado tirânico se estabelecer com a anuência dos fiéis. A
nova criatura surgida em Cristo não podia ser submetida à servidão como observou
o franciscano:
E muito menos, por força dessa mesma lei, um homem pode ser
submetido a tamanha servidão, especialmente se não houver uma
culpa ou um motivo evidente e razoável, e se qualquer um, pouco
importa quem seja, ousar impô-la, automaticamente, por força da lei
divina, tal determinação será nula. (OCKHAM, 2002, p. 41-42).
Apesar do tema da liberdade sugerir uma preocupação que poderíamos
chamar de moral, segundo a atual interpretação do termo liberdade, Ockham a
compreendeu como uma categoria teológica. Sobre o tema da liberdade, no
pensamento de Ockham, as posições são variadas.
Camastra (2002) situou seus comentários ao que Ockham entendia por
liberdade, somente no aspecto moral (filosófico) deixando escapar que a chave de
leitura se encontra no evento sobrenatural e somente aceito pela fé. Assim não
concordamos com Camastra que interpretou a lei evangélica em Ockham sem
remetê-la para sua origem que é a salvação em Cristo.
Todisco (1998), comentando o que seria liberdade para Ockham, usou de
categorias da filosofia medieval sem contextualizá-las nas preocupações teológicas
de Ockham. Se o franciscano utilizou a filosofia e o direito para explicar a lei cristã,
145
seu ponto de partida foi o elemento indemonstrável da renovação humana em
Cristo.
Biard (2000), em seus estudos sobre a teologia de Ockham, escreveu que
para ele os “artigos de fé” seriam todos indemonstráveis pela razão. A posição de
Ockham, pelos comentários de Biard, estaria em confronto com as tentativas de
outros teólogos medievais de unir fé e razão. Mas Biard parece ignorar a dimensão
cristológica da teologia de Ockham.
Merino (1993) foi mais amplo na sua interpretação de Ockham defendendo
que nem mesmo um conhecimento da existência de Deus, o que se chamava de
teologia natural, poderia ser alcançada pela razão. Para ele, Ockham teria separado
fé e razão, no sentido de que as todas as “verdades de fé” são indemonstráveis pela
razão.
As análises acima citadas não comentam de modo claro à liberdade cristã no
pensamento de Ockham, pois desconsideram os aspectos cristológicos, não a
relacionam às categorias teológicas medievais.
Não encontramos nos outros teólogos do século XIV abordados nesta
pesquisa, uma leitura dos poderes que partisse da lei renovada pelo evento salvífico
da presença de Cristo entre os seres humanos, sendo esta outra particularidade de
Ockham.
Nos teólogos do século XIV, notamos uma grande valorização da lei como
organizadora da vida humana, protetora das relações dos seres humanos entre si e
até mesmo com o sobrenatural. Concluímos que outro ponto comum entre todas as
posições sobre os poderes era a grande confiança na lei (divina, natural ou
humana); sem ela qualquer convivência humana não era possível. Acrescente, como
ponto comum, uma constante procura por justificar os fundamentos das leis que os
teólogos defendem.
A preocupação com o entendimento das leis, com a delimitação do que seria
direito comum e particular, com a definição do que fosse o justo, demonstrava um
interesse em pensar em modos concretos de resolver problemas enfrentados pela
sociedade cristã no século XIV.
Ockham interpretou a lei cristã, fundamentalmente uma lei da liberdade, como
fundamental para a instituição do bem comum.
146
3.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As teorias desenvolvidas pelos pensadores medievais presentes neste
capítulo demonstraram que o século XIV foi marcado por uma diversidade de modos
de compreender o ser humano na sua integração com a vida social da qual fazia
parte como ponto unificador a fé cristã.
A diversidade de conclusões a que chegaram os autores tratados neste
capítulo a partir dos mesmos legados da tradição mostra-nos uma capacidade de
reelaborar a herança de séculos anteriores adaptando-a às novas situações vividas
por eles. Em alguns momentos, os termos e conceitos utilizados pelos autores do
século XIV mantêm uma pequena ligação com a origem dos mesmos. Eles
desenvolveram uma hermenêutica própria, seja dos textos bíblicos, de outros textos
e até mesmo de supostos fatos históricos. Por esses motivos, julgamos que não são
procedentes as análises que afirmam que todo o século XIV foi um período de
decadência, já que, nele, nada de novo e importante foi realizado seja para a
teologia ou para a filosofia.
O século XIV para as questões políticas, a partir das obras e autores que
abordamos, não pode ser considerado como dominado por uma única interpretação
sobre o tema. Conviviam lado a lado e com contínuas desavenças duas posições
principais que se desdobravam em várias outras:
a) a confiança que somente unificando os poderes, centralizando-os com um único
chefe limitado pela obediência ao direito divino e natural, podia conduzir cada um
que pertencia à comunidade para o seu fim último: a vida justa no mundo terrestre, e
como conseqüência, a confirmação da salvação pela fé;
b) a recusa da centralização do poder e como alternativa confiam que núcleos de
governos unificados “sobrenaturalmente” pela mesma fé, orientados para o bem
comum proveniente do direito, podiam produzir uma sociedade organizada —
Ockham chamava a este estado político ideal de “ótimo governo”.
147
As limitações de uma sociedade que se constituía pelo batismo — entendido
como adesão formal e definitiva à fé e claramente expressado por Egídio Romano —
, estavam, entre outras coisas, na contínua necessidade de definir como tratar o
“elemento estranho”, os “extra-comunitários” nesta sociedade ideal. A preocupação
com os que não pertenciam à comunidade cristã ou que rompiam com ela pela
negação da versão oficial sobre os temas da fé, atingiram a teologia, a filosofia e o
direito medieval. Partindo da idéia teológica da posse e domínio divino de todas as
coisas e do senhorio de Cristo, uma vertente de interpretação preferiu juridicamente
negar aos pagãos e aos hereges qualquer possibilidade de domínio real sobre as
coisas ou exercício do poder temporal. Para esta vertente, os pagãos possuiriam o
poder temporal e bens somente por usurpação, pois estes pertenciam aos cristãos.
Apesar da posição de rejeição dos pagãos na cristandade, ela pode ser
atenuada pela utilização nas universidades de autores gregos e árabes, entre os
quais, Aristóteles que teve seus textos políticos lidos e comentados. Ockham por
diversas vezes citou e interpretou as idéias políticas do filósofo grego.
No pensamento de Ockham, sem negar a como unificadora da sociedade
ideal, era possível a convivência dos pagãos entre os cristãos. Para ele o direito à
posse e a justiça foram instituídos por Deus para todos e antes da fé cristã. O direito
natural dos pagãos não foi suprimido por Cristo. O franciscano defendia que a força
do direito superava a tutela da Igreja. O direito estaria acima dos prelados e
obrigava-os a medir suas ações a partir dele. Ockham ao considerar o direito natural
como um dos elementos que regia as relações na sociedade cristã dava um passo
diferente de vários outros teólogos, especialmente de Egídio Romano.
Na explicação da origem do direito — tendo lei e legitimidade como sinônimos
— Ockham utilizou, seguindo outros franciscanos, a figura bíblica do estágio
paradisíaco. No estado paradisíaco não havia o direito, sendo ele uma necessidade
para frear o ímpeto humano de oprimir uns aos outros desencadeado com o término
do estado paradisíaco. Por isso, Ockham ao comentar o regime ideal de convivência
entre os cristãos, insistiu que o direito devia impedir que o interesse particular
prevalecesse sobre o bem comum. Esta interpretação de Ockham pode ser
considerada como contestadora das opiniões que classificam genericamente o
período medieval como uma estrutura hierárquica onde os que ocupavam o topo,
legislavam puramente em proveito próprio, sem receberem contestações.
148
Para Ockham o fundamento do direito na sociedade cristã em que vivia, não
podia conter só alguns aspectos da fé, mas devia provir da liberdade cristã
instaurada pelo Cristo, isto é, o princípio teológico da liberdade cristã aplicado ao
direito e à vida social era a novidade trazida por Cristo e à qual os poderes estariam
submetidos. Ockham pensou que um império cristão legítimo seria orientado pela
liberdade cristã.
Percebemos que as diferenças de nomenclatura entre reino e império
utilizados pelos autores tratados aqui manifestam a insatisfação e a transição no
século XIV. Interpretamos que a utilização dos termos reino e império manifestam a
convivência simultânea de duas estruturas políticas.
Independentemente das posições que se confrontavam no século XIV,
podemos afirmar que os debates contribuíram para trazer à política na Baixa Idade
Média aspectos novos dentro da tradição política dos séculos anteriores.
O caloroso debate sobre os poderes, que ocuparam o século XIII até a
primeira metade do século XIV, perdeu sua força na segunda metade do século XIV.
Há várias opiniões para o esfriamento das questões entre o poder temporal e
espiritual. Destacamos duas hipóteses para a interrupção das discussões:
a) o início da Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França;
b) a Peste Negra que devastou a Europa no século XIV — algumas biografias de
Ockham levantam a hipótese que ele morreu vítima da epidemia.
No século XIV, os princípios estruturadores que unificaram o ocidente cristão
por um longo tempo davam claros sinais de enfraquecimento.
149
CONCLUSÃO
O pensamento político expressado por Guilherme de Ockham sobre as
relações entre os poderes espiritual e temporal contém elementos que contestam a
posição de proeminência de um sobre o outro apontando para um resgate das
teorias mais antigas como a defendida pelo papa Gelásio I.
Ockham defendeu que a análise da questão em foco devia partir não de
pressupostos históricos ou de costumes estabelecidos pelos povos. Ainda que estes
fossem importantes, não seriam a fonte que originava a interpretação cristã do
mundo. Ele se esforçou por buscar a explicação da sociedade cristã a partir do que
julgava mais primordial, isto é, a própria salvação realizada em Cristo para a
humanidade. Ele devolveu à teologia de sua época a legitimidade para tratar sobre o
poder espiritual.
A pesquisa demonstrou que, na Alta e Baixa Idade Média, os temas
relacionados à fé cristã mantêm constantemente uma estreita ligação com a
teologia, entendida em seu sentido mais restrito, apontando aqui para a sua parte
dogmática. Trabalhar com os conceitos utilizados pelos autores, devolvendo-os ao
contexto de origem, mostrou-se para nós capaz de estabelecer princípios mais
seguros para a interpretação podendo diminuir a possibilidade de anacronismo.
Julgamos que as pesquisas históricas medievais podem ser auxiliadas quando não
ignorarem a importância que a teologia cristã exerceu no ocidente. As fontes
mostraram que a teologia estava presente fundamentando as mais variadas
concepções sobre os temas tratados.
Na teologia medieval, a parte dos estudos das Sagradas Escrituras — Sacra
Pagina, conforme o nome dado pelas universidades medievais —, interpretada
conforme o período, contribuiu profundamente para situar o objeto da discussão. A
abordagem dos textos bíblicos necessitou de cuidados uma vez que tomamos o
mesmo texto que para os teólogos era objeto de devoção e fé, lendo-os como
expressão hermenêutica de uma época. Ignorar ou desconhecer textos bíblicos que
motivaram calorosos debates, pode limitar a pesquisa de alguns temas no mundo
medieval. Sabemos que não é possível definir a sociedade medieval do século XIV
como inteiramente fruto de inspirações cristãs, esquecendo-se portanto do influxo de
costumes e de diversas tradições religiosas. Porém, as raízes cristãs desempenham
150
uma influência predominante. Foi com um argumento de raiz unicamente cristã que
Ockham colocou o primeiro argumento contra a plenitudo potestatis.
O tema da liberdade cristã defendido por Ockham como o primeiro dos
argumentos contra a plenitudo potestatis, abre a possibilidade de se estender a
leitura de seus textos a partir do núcleo dos textos bíblicos citados. Os textos citados
por ele para apresentar a liberdade cristã como princípio para a vida comum dos
fiéis são de fonte cristológica. Sendo de fonte cristocêntrica, o pensamento de
Ockham para a sociedade em que vive parte de princípio sobrenatural. Por isso, sua
visão sobre o mundo é altamente sacralizada sem constituir uma teocracia —
entendendo teocracia como predomínio do governo temporal pelas pessoas
consideradas ministras de Deus. Ao mesmo tempo que Ockham parte do princípio
cristocêntrico e que por isso não pode ser demonstrado, não deixou de submeter o
governo utópico dos cristãos a certos princípios da razão humana, como o respeito
aos direitos de posse e a possibilidade de rebelar-se contra a opressão de um tirano.
A pesquisa demonstrou que a primeira metade do século XIV levou muitos a
repensarem a estrutura na qual a sociedade cristã estava politicamente sustentada,
podendo ser percebido na concentração de obras e autores do período preocupados
com o tema. Os próprios cristãos encontram-se divididos quanto ao modo de
responder ao mundo, isto é: trazer todo o poder para os dirigentes cristãos ou
aceitar o governo leigo colocando para tanto normas que defendam a liberdade e a
individualidade cristã. São duas posições dentro da fé cristã tendo a mesma
finalidade: garantir que o sobrenatural não seja esquecido ou desvalorizado. Foi o
que podemos concluir a partir das tentativas, repetições e polêmicas presentes nas
obras políticas de Ockham. Para nós, abriu-se um ponto de investigação onde os
dois lados da questão política, respeitadas algumas diferenças, podem ser
novamente interpretados.
A partir da segunda metade do século XIV, o contexto medieval não permitiu
que continuassem os debates político-teogicos. A diminuição dos debates não
significou que a questão sobre o poder temporal e espiritual tenha, definitivamente,
perdido seu vigor. Sabe-se que ela renasceu em outros períodos sob enfoques e
contextos diferentes e que permanece viva.
151
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