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Luis Henrique Truzzi
A relação entre a cultura popular e a cultura erudita na obra Sagarana,
de Guimarães Rosa
Dissertação apresentada ao Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio
Preto, para a obtenção do título de Mestre em
Letras (área de concentração: Teoria da
Literatura).
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta
São José do Rio Preto 2007
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Truzzi, Luis Henrique.
A relação entre a cultura popular e a cultura erudita na obra Sagarana
de Guimarães Rosa / Luis Henrique Truzzi. - São José do Rio Preto :
[s.n.], 2007.
104 f. ; 30 cm.
Orientador: Sérgio Vicente Motta
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Rosa, João Guimarães,
1908-1967 - Crítica e interpretação.. 3. Cultura popular. 4. . Cultura
erudita. I. Motta, Sérgio Vicente. II. Universidade Estadual Paulista.
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. T.
CDU – 821.134.3(81).09
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AGRADECIMENTOS
Pelo aprendizado e incentivo recebido ao longo da graduação, agradeço a todos os
meus professores, em especial, ao Prof. Dr. Ismael Ângelo Cintra e ao Prof. Dr. Aguinaldo
José Gonçalves, pessoas singulares, pelos quais guardo profunda admiração.
À Nelson e Palmira, pais, que, com muita dedicação e apoio, criaram as condições
ideais para o meu crescimento social e intelectual.
Aos meus incansáveis irmãos José e Luciana pelo respaldo dado para a produção do
trabalho.
À Cecília, minha segunda mãe, pelo infinito carinho e cuidado a mim concedido.
Pelo companheirismo e compreensão, agradeço à minha namorada Ana Carolina e aos
meus amigos, conselheiros nas mais diversas ocasiões.
À Prof.ª Dr.ª Cláudia Maria Ceneviva Nigro e à Prof.ª Dr.ª Maria Celeste Tommasello
Ramos, pelas sugestões feitas durante o Exame de Qualificação, que enriqueceram este
trabalho.
Acima de tudo, agradeço ao Prof. Dr. Sérgio Vicente Motta, pela confiança depositada
em mim já há alguns anos. Sua dedicação e discernimento ao longo da orientação o tornaram
para mim, não apenas exemplo de profissionalismo e competência, mas também, espelho de
um grande homem.
Que arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade para
fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia e a
outra metade é canção.
(Oswaldo Montenegro, “Metade”)
RESUMO
Um dos iniciadores do terceiro momento do Modernismo brasileiro, João Guimarães
Rosa caracteriza-se como um escritor regionalista que tem como ponto de partida a
representação do universo sertanejo iletrado para fazê-lo transcender a uma esfera
mitopoética, por meio de uma sincrética prosa poética. Nesse sentido, o seu percurso artístico
deu continuidade à exploração dos princípios modernistas e inovou na linguagem e na
abordagem da matéria literária. Abordando os contrastes da realidade brasileira a partir da
relação de nossa diversidade cultural, o escritor não só propiciou um aprofundamento na
exploração da temática regional, como, também, soube gerar uma forma artística adequada,
tanto no processo de construção das intrigas quanto no gesto inovador no tratamento
lingüístico. Nessa proposta complexa de continuidade e inovação, a utilização da cultura
popular e a representação do universo sertanejo iletrado tornaram-se uma das bases a partir da
qual o escritor arquitetou o seu projeto literário, contemplando ou integrando elementos das
culturas popular e erudita como uma forma possível de adequar a sua arte à diversidade das
manifestações culturais do Brasil. Voltado, assim, ao "entrelugar" da literatura rosiana, busco
elucidar a partir da análise dos contos “O burrinho pedrês”, “São Marcos” e “A hora e vez de
Augusto Matraga”, da obra Sagarana, como o escritor, entrelaçando elementos místicos e
míticos em sua estrutura narrativa, figurativiza na riqueza da cultura popular, a projeção de
personagens míticas pertencentes ao universo das convenções literárias, conferindo uma
dimensão universal aos contos.
Palavras-chave: Guimarães Rosa; Sagarana; cultura popular; cultura erudita; mito;
filosofia cristã; regional; universal.
ABSTRACT
One of the central figures of Brazilian third phase Modernism, João Guimarães Rosa is a regionalist
writer who transcends the illiterate countryman’s universe representation into a mythical-poetic sphere,
by means of a syncretistic poetic prose. His artistic trajectory reinforced the modernist precepts and
innovated in language and in the ways of dealing with literary matter. Handling Brazilian reality’s
contrasts, not only did Guimarães deepen the discussion among the theme of regionalism, but also
managed to create a proper artistic matter. In this complex movement, popular culture and the
representation of the illiterate countryman became the basis for the writer’s literary project.
Contemplating elements of popular and scholastic cultures became a way of adequating his art to the
diversity of cultural manifestations in Brazil. Focusing, thereby, on the “between character of space” in
Rosa’s literature, my aim is to analyse the following short stories: “O burrinho pedrês”, “São Marcos”
and “A hora e vez de Augusto Matraga”, from Sagarana, in order to understand how the writer
represents the richness of popular culture interrelating mythical and mystical elements in his narrative.
The projection of mythical characters from the universe of literary conventions confers a universal
dimension to the short stories.
Keywords: Guimarães Rosa; Sagarana; popular culture; scholastic culture; myth; christian philosophy;
regional; universal.
SUMÁRIO
1. Introdução..............................................................................................................8
2. O místico e o mítico na trama narrativa de Sagarana...........................................12
2.1 “O burrinho pedrês”.....................................................................................13
2.2 “São Marcos”...............................................................................................30
2.3 “A hora e vez de Augusto Matraga”............................................................51
3. Síntese Comparativa.............................................................................................90
4. Considerações Finais............................................................................................99
5. Referências Bibliográficas..................................................................................102
1. INTRODUÇÃO
O escritor mineiro João Guimarães Rosa, com singular habilidade no tratamento
artístico do signo lingüístico, apresentou, com o lançamento de Sagarana, uma inovadora
perspectiva literário-regionalista para a prosa nacional.
Livre de intenções ufanistas ou paternalistas e com exato equilíbrio entre forma e
conteúdo, o autor uniu temas e linguagem no processo de recriação da matéria regional nos
nove contos que constituem a obra. Dessa maneira, retratou a realidade do homem sertanejo
de uma maneira complexa, recuperando não apenas o cenário de uma região, o sertão de
Minas Gerais, mas parte da riqueza “mística” e “ética” que rege a cultura popular.
Abordando os contrastes da realidade brasileira a partir da relação da diversidade
cultural, o escritor não só propiciou um aprofundamento na exploração da temática regional,
como também soube gerar uma forma artística adequada tanto ao processo de construção das
intrigas quanto ao gesto inovador do tratamento lingüístico, cujo resultado gerou uma
repercussão universal.
Assim, o presente estudo converge o seu foco para a captação do processo de
aproximação entre a diversidade cultural brasileira e a universalidade da obra literária,
buscando identificar elementos da cultura popular e da cultura erudita que, entrelaçados pelo
trabalho retórico, engendram uma parte do teor poético e inovador da arte rosiana. Do lado da
cultura popular, foi explorado o aspecto religioso, que será identificado como elemento
místico. Da cultura erudita, consideramos elementos da herança cultural greco-romana, que
entram na elaboração da ficção moderna como matéria mítica. Para tanto, foram tomadas
como objetos de estudo três narrativas: “O Burrinho Pedrês”, “São Marcos” e “A Hora e Vez
de Augusto Matraga”.
A escolha desses contos justifica-se não apenas pela semelhança temática e geográfica
que os aproxima, dentro do sertão das Gerais, revisitando as superstições, crenças e costumes
do universo sertanejo, mas, principalmente, por conjugarem, na profundidade e singularidade
características de seus enredos e dos protagonistas, o místico e o mítico, revelando a unidade
estética que sustenta Sagarana e torna suas narrativas universais. Um “mundo misturado”, na
definição de Davi Arrigucci (Arrigucci, 1994, p. 10), um amalgama de matérias literárias que
fazem do sertão rosiano um espaço tão vasto em que as mais distintas temporalidades, o
arcaico e o moderno, a experiência individual e a relação mítica, coexistem.
Contudo, é importante destacar que para percorrer esse espaço de convergência na
obra rosiana, para compreendermos como os elementos da cultura popular integram-se no
funcionamento geral dos contos em questão e na sua resolução erudita, foi necessário,
primeiramente, a leitura de alguns textos acerca de nossa diversidade cultural. Afim de
elucidar os princípios e conceitos particulares que regem a cultura erudita e os seus aspectos
unificadores foram consultados textos como “Plural, mas não caótico” (1987), “Cultura como
tradição” (1987), “Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras” (1992) e “Céu, inferno” (1988),
todos de Alfredo Bosi; bem como “Cultura do Povo e Autoritarismo das Elites” (1989) e
“Ainda o Nacional e o Popular” (1994) de Marilena Chauí; e “Nacional por Subtração”
(1987) de Roberto Schwarz.
Além disso, a leitura de ensaios críticos a respeito da literatura de Guimarães Rosa
contribuiu de forma ímpar para o desenvolvimento das análises propostas no presente estudo.
Textos como “Burrinho Pedrês” (1975) e “A Hora e Vez de Augusto Matraga,” (1975) de
Nelly Novaes Coelho; “Sagarana” (1946) e “Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães
Rosa” (1995), de Antonio Candido; “Uma Grande Estréia” (1991), de Álvaro Lins; “O Ritmo
em ‘O Burrinho Pedrês’” (1991), de Ângela Vaz Leão; “Guimarães Rosa e o Processo de
Revitalização da Linguagem” (1991), de Eduardo F. Coutinho; “A Bíblia e os Evangelhos”
(1976), “Sagarana” (1982), de Suzy Frankl Sperber; “Utopia Cristã no Sertão Mineiro”
(1997), de Paulo César Carneiro Lopes; “O Brasil de Rosa” (2004), de Luis Roncari; “O
Mundo Misturado” (1994), de Davi Arrigucci Junior, ilustram, entre outros estudos
consultados, a diversidade temática e a complexidade analítica a que se abre a obra rosiana.
Cabe, assim, ao leitor, antes de aprofundar-se no sertão místico e mítico de Guimarães Rosa,
ter o olhar preparado, liberto de seus preconceitos sócio-culturais e literários.
Antonio Candido, referindo-se a Grande Sertão Veredas, define o processo de
“(trans)formação do olhar” pelo leitor como a chave para a compreensão do estilo ou
“malícia” do romancista mineiro. “Ser jagunço e ver como jagunço” (Candido, 1977, p. 157),
segundo o crítico, estabelece uma cumplicidade entre o leitor e o narrador, o que possibilita ao
primeiro, vendo um mundo brutal através do próprio agente da brutalidade, denominar o
mundo de maneira mais cabal do que seria possível aos seus hábitos mentais. “A fluidez do
real leva o espírito a ir além da aparência, buscando ‘não o acaso inteirado em si, mas a sobre-
coisa, a outra coisa’”. (Candido, 1995, p. 157).
Portanto, por meio da leitura dos contos “O Burrinho Pedrês”, “São Marcos” e “A
Hora e Vez de Augusto Matraga” procuramos penetrar um pouco no universo sincrético de
Sagarana para, em contato com esse amalgama de culturas, analisarmos aspectos da
construção literária do autor. Revivendo a trajetória, a aventura de Sete-de-Ouros, de
João/José e de Augusto Matraga, respectivos protagonistas das narrativas citadas, veremos
como o sertão de Rosa concretiza-se a partir do contato como o mito cristão, recuperando em
sua forma narrativa a temática exemplar de parábolas bíblicas; assim como, pela realização de
mitos pagãos, do universo cultural grego-romano, que se revelam como matérias
transcendentes por meio da erudição do autor.
Com uma linguagem híbrida, um tanto formal, minuciosamente trabalhada na
aparência regionalista, Guimarães Rosa, respaldado pela contraditoriedade que rege a cultura
popular, integra artisticamente os elementos da cultura erudita no cenário místico do cotidiano
sertanejo, imprimindo à Sagarana, por meio de sua inovadora proposta estética literária, o
caráter universal referido.
2. O místico e o mítico na trama narrativa de Sagarana
2.1 “O BURRINHO PEDRÊS”
O burrinho pedrês”, conto de abertura de Sagarana, evidencia, desde a forma e a
estrutura narrativas ao desenvolvimento temático, o caráter unificador literário, que congrega
de modo exemplar elementos da cultura popular e da cultura erudita.
Transitando pelo universo sertanejo iletrado, o conto retrata a história do “velho e
sábio” burrinho Sete-de-Ouros, que vivia modorrando, solitário, no “umbigo do mundo”, na
Fazenda da Tampa, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. Certo dia, por
“equívoco que decide o destino e ajeita caminho à grandeza dos homens”, Sete-de-Ouros foi
encostar-se nos pilares da varanda do casarão. Neste instante é “visto e lembrado” pelo Major
Saulo, proprietário dessas terras, e escalado, na falta de melhores animais, para servir de
montada à vaqueirama ao longo da viagem de sua boiada ao arraial, onde seria embarcada em
um trem para o abate.
Acompanhado por doze vaqueiros, entre os quais destacam-se Francolim, “secretário”
do Major, João Manico e Raymundão, contadores de alguns dos “casos” que enriquecem a
narrativa central, além de Badú e Silvino, o Major Saulo parte, ao nascer do sol, com 460
reses rumo ao arraial. A viagem tem como ponto de partida e regresso, a Fazenda da Tampa, e
dura ao todo doze horas, transcorrendo, como observado pelo narrador, “das seis da manhã à
meia-noite”, o que evidencia no texto uma estrutura cíclica, fundamental ao desenvolvimento
temático da obra.
Dentro dessa trajetória “circular”, entre chuvas, estouro de boiada e desavenças
pessoais entre os vaqueiros Silvino e Badú, destaca-se um trecho de fundamental importância
para o desfecho do conto, o momento da travessia do “córrego da Fome”. Se no caminho de
ida ao arraial, ainda à luz do dia, o córrego não fora um grande obstáculo à boiada e aos
vaqueiros com suas montarias, que o cruzaram com razoável tranqüilidade, a travessia de
retorno torna-se dramática, pois, devido às chuvas de novembro que, segundo os vaqueiros, há
dias castigavam sua nascente, o nível de água do rio subira rapidamente, formando, já à noite,
uma forte correnteza. Assim, na volta à fazenda, após entregarem a boiada no arraial, a força
das águas inspira temor e merecido respeito em alguns dos vaqueiros, que se negam a cruzá-
las, como Manico e Juca.
Liderados, agora, por Francolim, pois o Major decidira pernoitar na cidade, diante da
dificuldade presente, os outros vaqueiros resolvem, com certo tom de ironia, dar a Sete-de-
Ouros a responsabilidade de decidir pela travessia do córrego, pois, de acordo com a
sabedoria popular “burro não se mete em lugar de onde ele não sabe sair!”. Posto pela
primeira vez, ao longo de todo o conto, à frente do grupo, Sete-de-Ouros, apesar da escuridão
que assombra o rio e da ferocidade da correnteza, procura “fazer parentesco com a torrente” e
adentra-o. Confirmando sua distinção em relação às demais personagens, o burrinho, passivo
e humildemente, entrega-se ao “córrego da Fome”, e com passadas cadenciadas cruza a
correnteza levando sobre sua cela o embebedado e inconsciente Badú.
No entanto, as demais personagens não tiveram a mesma “sorte” do protagonista, pois,
ao seguirem-no para a garganta do rio, restou-lhes apenas lutarem, inutilmente, contra a
selada morte, sendo engolidos e arrastados pela força da correnteza. Exceto Francolim, que,
num último esforço para sobreviver, conseguira agarrar-se ao rabo do burrinho. Completada,
heroicamente, a travessia, salvando a vida de Badú e Francolim, Sete-de-Ouros retoma sua
pacata e certeira caminhada para a fazenda, em busca de um pouco de milho para comer e um
canto qualquer para dormir. O herói recolhe-se humildemente à sua simplicidade cotidiana.
Embora a obra tenha como enredo central o “crescimento existencial” de Sete-de-
Ouros ao longo da viagem dos vaqueiros, Guimarães Rosa interrompe por vezes o discurso
narrativo-literário para dar lugar também à tradição oral da cultura sertaneja. Utilizando uma
estrutura narrativa de “encaixe” Rosa, por meio do narrador e das personagens Tote,
Raymundão e João Manico, alegoriza a figura do contador de histórias do sertão e insere no
eixo narrativo inúmeras historietas, “subistórias”, na definição do próprio escritor, que
quebram “a espinha da história principal”, rompem uma leitura linear e conferem ao conto um
andamento descadenciado, como o próprio vai e vem do caminhar da boiada.
Embora cada “subistória” possua uma autonomia estrutural com relação ao conto, elas
estão relacionadas ao enredo central. De acordo com Gerard Gennette (1979, p. 230-232), há
três formas de relação entre a “narração secundária”, relatada por uma personagem, e a
história principal: a) por relação direta de causalidade entre os acontecimentos da narrativa
segunda e da primária, conferindo ao relato da personagem uma função explicativa; b) por
relação temática, baseada apenas na analogia ou no contraste entre os textos, não havendo
nenhuma continuidade espácio-temporal entre os textos; c) pelo simples ato narrativo, não
apresentando função explicativa ou temática.
Em “O burrinho pedrês”, a relação entre os “causos” narrados pelas personagens e o
texto principal se dá, principalmente, por uma relação de ordem temática. Mesmo tendo
algumas historietas, como a primeira e a sétima, um aspecto explicativo, apresentando ao
leitor, no primeiro caso, a trajetória de Sete-de-Ouros até o tempo presente da fábula, e, no
segundo, a justificativa do temor de João Manico em “buscar boiada brava” (Rosa, 2001, p.
80) em terras distantes, devido à desgraça ocorrida no episódio com o negrinho; é por
retratarem o caráter místico da crença popular, da superstição que se mistura ao cotidiano
sertanejo, que elas dimensionam o seu “valor temático” com relação à história de Sete-de-
Ouros.
São exatamente sete “subistórias”. A primeira, na ordem do relato, contada pelo
narrador, como referido anteriormente, relata um episódio ocorrido na mocidade de Sete-de-
Ouros que revela ao leitor, na síntese da trajetória da personagem até o instante narrativo,
traços de contradição da crença popular transpostos em sua caracterização:
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado e
revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá,
baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto — coisa muito rara para essa raça de cobras
— uma jararacussu, pendurada do focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas,
da qual não morreu porque a lua era boa e o benzedor acudiu pronto. (...).
A marca-de-ferro – um coração no quarto esquerdo dianteiro – estava meio apagada:
lembrança dos ciganos, que o tinham raptado (...). Mas o roubo só rendera cadeia e pancadas
aos pândegos dos ciganos, enquanto Sete-de-Ouros voltara para a fazenda da tampa (...); e o
dono, Major Saulo (...). (Rosa, 2001, p. 30)
Seguindo a história, enquanto os vaqueiros aguardam a partida da boiada, Tote conta a
Zé Grande a fatalidade ocorrida com Josias, quando eles resolveram rodear a vaca fumaça que
estava no curral com sua cria “fungando forte e investindo até no vento” (Rosa, 2001, p. 46):
“Josias falou comigo: ‘Vamos dar uma topada, pra ver se ela tem mesmo coragem
conversada’. (...) Ficamos: eu da banda de cá, ele ali.
Mal a gente tinha botado os pés no chão e ela riscou de ar, sem negaça, frechada,
desmanchando o poder de espiar. (...). Foi a conta. Ela deu o tapa, não achou firmeza, e remou
as varas para fora...Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga...
(...)
Culpa eu tive?...Má sorte do companheiro. Era o dia dele, o meu não era!... (Rosa,
2001, p. 46)
Posteriormente, já durante a viagem da boiada, Raymundão, “o melhor contador de
casos”, segundo Ângela Vaz Leão (Coutinho, 1991, p. 250) relata mais quatro casos. Exímio
contador, “com uma fala viva e poética”, a personagem rompe o fluxo narrativo com o relato
de histórias “fantásticas”, corroborando o caráter místico presente na obra.
Em sua primeira intervenção, Raymundão narra o episódio do zebu Calundú, que fez
fugir uma “onça-tigre macho, das do mato-grosso”:
– Mas o Calundú cada vez ia ficando mais enjerizado e mais maludo, ensaiando para
ficar doido, chamando a onça para o largo e xingando todo nome feio que tem. Aquilo, eu fui
bobeando de espiar tanto para ele, como que nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão
assim! A corcunda ia até lá embaixo, no lombo, e, na volta, passava do lugar seu dela e vinha
pôr chapéu na testa do bichão. Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calandu mais do que as
outras coisas, por respeito...
(...)... Mas, então foi que eu fiquei sabendo que tem anjo-da-guarda de onça!... Você
sabe que, quando a tigre arma o bote (...) nunca que ela deixa de dar o pulo, não é? Pois, nesse
dia, o cangussu (...) desmanchou o dela, andando de rastro para trás um pedaço bom (...) Onça
esperta!... (Rosa, 2001, p. 57)
Em sua segunda história, Raymundão ilustra na obra uma tradição dos vaqueiros
sertanejos, contando ao Major Saulo como fôra sua primeira topada com “um boi retaco, que
caminha na gente por gosto” (Rosa, 2001, p. 67):
...Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha
força...
– Você pensou alguma coisa na hora, Raymundão? Que foi que você sentiu?
– Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era grande demais
(...). Mas isso foi assim num átimo, porque depois as mãos e o corpo da gente mexem por si, e
eu acho que até a vara se governa... Quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava me
dando um cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na vista
dele... E foi falando: -‘Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu sei’... (Rosa, 2001, p. 68)
Seguindo a conversa com Major Saulo, o vaqueiro novamente interrompe o
andamento da trama principal, mantendo-a em suspensão enquanto narra mais dois casos. O
primeiro, protagonizado por Calundú, que mais uma vez ganha vida no relato por meio da
“arte narrativa” de Raymundão, constitui uma das mais belas histórias que compõem “O
burrinho pedrês”, a morte do menino Vadico pelo Zebu:
(...). Seu Vadico gostava demais do Calundu , e o zebu também gostava dele, deixava
o menino coçar pêlo e bater palmada no focinho...
(...)... Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na mão.
(...)... Eu vi o Calundu abaixar a cabeça... Parecia que ele ia querer mais sal... E ai de
testada e de queijo, ele deu com o menino no chão, (...).
(...)... Seu Neco Borges virou um demônio, puxou o revólver... Mas seu Vadico, antes
de morrer, falou determinado, que nem pessoa grande: - “Não mata o Calundu, pai, pelo amor
de Deus! Não quero que ninguém judie com o Calundu!...”
– Seu Borges mandou levar para seu Lourenço, para ser vendido ou dado de graça...
Aí eu disse que levava, porque só eu era quem sabia fazer a simpatia do cambará. (...). Agora,
quando chegamos lá no Saco-do-Sobre, então fui que eu tive medo, porque a simpatia do
cambará só serve para quando a gente está indo na estrada. (...) O Calandu, aquilo ele berrava
um gemido rouco, de fazer piedade e assustar (...) Mas o velho Valô Venâncio, vaqueiro cego
que não trabalha mais, explicou para a gente que era um espírito mau que tinha se entrado no
corpo do boi. (Rosa, 2001, p. 70-1)
O segundo, em que é narrado um episódio ocorrido com um antigo fazendeiro
chamado Leôncio Madurêra, denota, novamente, a proximidade entre a materialidade
cotidiana/moral do sertão e o misticismo que sustenta a crendice popular:
Sei de um caso que se passou, há muitos anos, contado por meu pai, que quando moço
foi campeiro de um tal Leôncio Madurêra, no sertão. Leôncio Madurêra era um homem
herodes, que vendia gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada, para matar e
tornar a tomar os bois. Pois meu pai contava que, quando ele morreu, e os parentes estavam
fazendo quarto ao corpo, as vacas de leite começaram a berrar feio, de repente, no curral.
Coisa que garrote preto urrava:
– Madurêra!...Madurêra!...
E as vacas respondiam, caminhando:
– Foi p’r’os infernos!... Foi p’r’os infernos!... (Rosa, 2001, p. 72-3)
Por fim, a última “subistória” presente no conto é relatada por João Manico durante o
caminho de volta dos vaqueiros à fazenda. Em conversa com Sebastião, o contador do
“causo” revela o medo guardado diante do misterioso caso ocorrido. Trata-se de uma história
passada no tempo de mocidade do Major Saulo, em que o triste canto de um menino negrinho,
sofredor por ser obrigado a abandonar sua casa e sua mãe para seguir viagem com os
vaqueiros do Major a tocar boiada por terras distantes, lança no coração dos homens e do
gado uma inquietante angústia, encantadora, pondo em desgraça a campanha do “seu
Saulinho”. É a mais longa, comovente e enigmática de todas as histórias contadas:
...E foi aí, bem na hora em que o sol estava sumindo lá pelos campos e matos, que o
pretinho começou a cantar...
... “Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão...”
Aquilo saía gemido e tremido, e vinha bulir com o coração da gente, mas era forte
demais. (...).
...Aí, então, eu comecei a me alembrar de uma porção de coisas, do lugar onde eu
nasci, de tudo...
...E o pretinho ia cantando, e, quando ele parava pronto para tomar fôlego, sempre
alguma rês urrava ou gemia, (...) ... Então, o Binga me disse: - “Repara, sô, João Manico,
como boi aquerenciado não se cansa de sofrer”...
...Então, eu acho que cheguei a dormir, mas não sei... O canto do pretinho isso
havia!... E sonhei com uma trovoada medonha, e um gado feio correndo, desenbolado, todo
doido, e com um menino preto passar cantando, toda a vida, toda a vida, sentado em cima do
cachaço de um marruaz nambijú!...
...Foi de verdade? Foi visão de sonho? Eu estou velho para querer saber (...) Sei lá...
(...) – acordei, de madrugada, foi com os gritos do patrão. Qué é do gado?! Só o rastro da
arrancada, tinham arribado, de noite!... Mas, ainda foi mais triste: no lugar onde deviam de ter
ficado Aristides mais Octaviano, nem cadáver!: os bois tinham passado por cima, (...) estavam
pisados, moídos, tinham virado bagaço vermelho... (Rosa, 2001, p. 85-7)
Apresentados os sete casos que costuram a história de Sete-de-Ouros, é importante
notar que as narrativas encaixadas, ao mesmo tempo em que ilustram ao leitor o cotidiano do
homem sertanejo, seus costumes, suas crenças fundadas numa religiosidade sincrética que une
traços do catolicismo à mística popular, coloca-o próximo da oralidade originária da
identidade do texto. A partir do encontro entre a linguagem oral, expressa nas narrativas
secundárias, e a escrita literária, o narrador rosiano tece um emaranhado de histórias, as quais,
surgindo “uma de dentro das outras” conferem uma unidade estética à obra.
Todas as historietas são fundamentais para o desenvolvimento pleno da personagem
Sete-de-Ouros e, conseqüentemente, para a totalidade da narrativa. Segundo a crítica Ângela
Vaz Leão, mesmo podendo ser o conto “O burrinho pedrês” dividido em vários outros contos
menores, não significa “que haja falta de unidade de ação, falta de homogeneidade estilística”,
pois, história e “subistórias” se interpenetram:
A narrativa principal perderia, se despojada daqueles que, em aparência, são
secundários. Porque, na realidade, o burrinho só revela a sua personalidade, o ato do burrinho
só cobra a sua verdadeira dimensão, em relação com os outros episódios, num contexto
determinado. (Leão, in. Coutinho, 1991, p. 251)
Dada a relevância desse processo de “interpenetração” entre os casos narrados e a
história central no resultado final da obra, para realizar esses cortes narrativos que,
paradoxalmente, interrompem e dão continuidade ao enredo central, Guimarães Rosa articula
de modo peculiar a temática regional à estrutura narrativa de “O Burrinho Pedrês”.
Insinuando o molde fabular, Rosa inicia o conto com a expressão “Era um burrinho
pedrês”, que lembra a fórmula “Era uma vez”, conferindo inicialmente à narrativa uma
sugestão de atemporalidade que é reforçada pela desreferencialização espacial, presente logo
adiante no trecho “(...) vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no
sertão”. Essa combinação de afrouxamento espácio-temporal sugere à história de Sete-de-
Ouros, segundo Suzy Frankl Sperber, um aspecto exemplar característico dos contos de fadas,
dos mitos e dos “casos populares”, essencial à inserção das “subistórias” no eixo narrativo:
A exemplaridade do conto organiza a narrativa. Ela corresponde ao modo bíblico das
parábolas, incorporado nas religiões populares (tal como o esoterismo). (...) O que era
acessório no regionalismo passa a constituir elemento estruturador, fundamental, da narrativa.
(...) O fato de seu início surgir do mito, do a-histórico, atemporal, inespacial, está vinculado à
necessidade exemplar da narrativa, característica também dos relatos populares. (Sperber,
1961, 19-20)
No entanto, embora a modalização fabular, a atemporalidade e a indeterminação
espacial iniciais sejam fatores primordiais para a ordenação e abertura da estrutura narrativa
às referidas “subistórias”, esses aspectos estão relativizados apenas em relação à
“exemplaridade da estória”. De acordo com Sperber, Rosa, ao articular ao parágrafo inicial o
sintagma “Agora, porém, estava idoso, muito idoso”, esmaece, “com esta noção precisa e
presente de tempo”, o que havia de atemporal na narrativa, delimitando na macroestrutura da
obra o episódio vivido por Sete-de-Ouros.
Nota-se, portanto, que “O Burrinho Pedrês” é construído a partir da interação entre
uma estrutura fabular maior e uma narrativa regionalista pontual, tendo como ponto
unificador, fundamental para seu desenvolvimento, Sete-de-Ouros. Com isso, Rosa confere à
estória do burrinho, apesar de sua singularidade temática, por sua aspectualização exemplar,
uma dimensão universal, que transpõe os limites geográficos do cenário mineiro, fazendo do
seu sertão, na definição de Eduardo F. Coutinho, um “lugar comum”, onde são inseridos “não
os ‘homens do sertão’, mas homens em geral (...) que pela sua absoluta singularidade pode
falar em nome do outros” (Coutinho, 1991, p. 225)
Entrelaçando, pois, forma e conteúdo, o escritor, apoiado na pluralidade e na natureza
contraditória da cultura popular, une em “O Burrinho Pedrês” os aspectos místicos e materiais
da vida sertaneja à simbologia mítica oriunda da tradição erudita, dando à sua obra uma
caracterização literária-regional autêntica.
Voltado ao enfoque e tratamento inovador dado por Guimarães Rosa à cultura popular
em sua literatura, Alfredo Bosi, no texto, Céu, Inferno, afirma que o escritor atua no espaço
mágico da cultura popular, tratando a condição do homem sertanejo sob uma nova
perspectiva, instaurando meio à predestinada vida no sertão a ocorrência do “acaso”. Ou seja,
por meio da retórica discursiva, Rosa submete o destino das personagens a uma forma de ação
repentina, conferindo, assim, uma imprevisibilidade às ações e, conseqüentemente, ao
desfecho da obra, pois, dessa forma o narrador permite aos actantes, antes impossibilitados
pela predestinação e depreciação de sua condição sócio-cultural, interferirem nos próprios
destinos e alterarem o percurso narrativo, alçando, ao final, a concretização dos seus
“sonhos”.
Guimarães Rosa faz, portanto, de sua obra ficcional, da linguagem literária, na
definição de Nelly Novaes Coelho, “um importante instrumento de ação de realização”
(Coelho, in. Coutinho, 1991, p. 259) para as personagens, criando meio à natureza cíclica que
rege a cultura popular uma via de escape, isto é, de “libertação” para o homem do sertão.
Por meio da perspectiva literária, o autor de “O Burrinho Pedrês” faz da circularidade
natural do cotidiano sertanejo, de um povo que a cada estação, a cada ano renova as
esperanças no sertão, uma trajetória de retorno, imprimindo à seqüência do enredo (fazenda-
vila-fazenda) o desenho cíclico da natureza, que é o mesmo do mito, criando, assim, na
estrutura narrativa do conto, um meio transcendente, através do qual as personagens e a
estória podem ser “recontadas”:
(...) Era uma vez, era outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês
Mas, agora, maior, mais real, direto (...). Pressentindo a vida ruim de regresso, então
Sete-de-Ouros abriu bem os olhos, e lançou os beiços num derradeiro molho de capim. (Rosa,
2001, p. 76)
Apesar desse novo olhar dado à condição sertaneja, via ficção, possibilitar às
personagens transporem as limitações sociais e mesmo geográficas em que vivem, isso não
implica em um rompimento com suas raízes e tradições; ao contrário, essa perspectiva
literária criada por Guimarães Rosa confere ao mundo do sertão uma condição sublime. À
medida que a história de Sete-de-Ouros, a partir da base mítica de construção, sugere um
aspecto dogmático em sua totalidade semântica, ela passa a figurar não apenas como um
“causo” regional, mas também como uma história universal, comum ao ser humano,
acentuando as tradições, crenças e memória da cultura popular.
É justamente devido a esse processo construtivo que “O Burrinho Pedrês” revela ao
leitor, gradativamente, a figura singular de Sete-de-Ouros, que funde, na sutileza de sua
caracterização, traços da cultura erudita e da cultura popular, recuperados por meio da
singular formação intelectual de Rosa e pela rica vivência do escritor no sertão mineiro. Sete-
de-Ouros apresenta-se, portanto, como o elemento catalisador da inter-relação entre o mítico e
o místico no conto. A sua trajetória percorre um movimento progressivo, que vai do modo
irônico ao heróico, na terminologia de Northrop Frye. (Frye, 1973, p. 37-72)
Enquanto a história vai se desenhando no caminhar descadenciado da boiada, no ritmo
descritivo das personagens e no andamento dos “causos” narrados, o burrinho segue,
pacientemente, de sua condição animal inicial depreciativa à equiparação com o homem, por
seu ato heróico, o que o aproxima, ao final, da condição mítico-divina, por sua “predestinação
de salvador”. Como aponta Sperber, no seguinte trecho de seu ensaio sobre Sagarana:
Só o contorno inicial do burrinho exemplar é que flutua, para que possa ser
preenchido mais significativamente pela ação enaltecedora da personagem. (...) É como se o
foco narrativo iniciasse desfocalizado em um passado indefinido, impreciso, para criar maior
contraste com a nitidez e importância do presente: a
imagem
do burrinho é que varia. (Sperber,
1982, p. 19)
Esse desenvolvimento transitório da personagem ao longo do conto permite ao
narrador desconstruir o olhar preconceituoso lançado sobre o burrinho pelas demais
personagens, e possivelmente pelo leitor, e revelá-lo como um autêntico herói popular.
Sete-de-Ouros, portanto, é composto concomitantemente sob dois focos distintos. Um
primeiro, externo e superficial, em que a personagem é caracterizada propositadamente pelo
narrador, que já conhece o desfecho da história , de modo depreciativo, como um ser pacato,
humilde, mísero e velho (embora sábio), posto como motivo de vergonha em meio aos
vaqueiros e ridicularizado, quando comparado às demais montarias; e um segundo, voltado
para a interioridade do burrinho, pacífica, que em seus “reservatórios mais profundos” nos
mostra uma personagem dotada de uma sabedoria sublime, sustentada pelo verdadeiro
conhecimento popular.
Assim o autor constrói a singularidade de Sete-de-Ouros, compondo uma identidade
regionalista, unívoca e ao mesmo tempo plural, análoga à ambivalência da cultura brasileira
:
O país é subdesenvolvido, o povo também, mas a pertinácia consegue a superação,
através de meios próprios, de trabalho pessoal, percorrendo caminhos para dentro do país – e
não para fora. O burrinho pedrês penetra na terra, e nas águas, para poder voltar (...). é uma
forma espiritual da antropofagia. A penetração se faz pelo indivíduo adentro, consistindo na
descoberta de sua individualidade – brasileira – que, contudo, tem nas raízes portuguesas ecos
de outras culturas. (...). A civilização ( e neste sentido a metrópole) está, pois, dentro de nós.
Somos o outro. O outro é nós. Esta interpenetração corresponde à formação de nosso país e de
nossa nacionalidade. (Sperber, 1982, p. 21-22)
É importante notar, contudo, que a singularidade enaltecedora de Sete-de-Ouros,
exemplar e heróica, dá-se por meio dessa ambivalência narrativa e pelo recorte temporal do
conto, “a estória de um burrinho (...) é bem dada no resumo de um só dia de sua vida”, e não
propriamente por uma conquista nobre e grandiosa do burrinho, o que na visão de Nelly
Novaes Coelho, no livro Guimarães Rosa, sugere à obra traços “do novo épico que surge no
século XX” (Coelho, 1975, p. 19).
De acordo com a ensaísta, a obra rosiana enaltece a “heroicidade do dia-a-dia” posta
como lei básica da existência. “O Burrinho Pedrês” retrata não a individualidade do ato
heróico, concretizado pela tradição literária, mas “o frêmito de um heroísmo existencial” do
homem comum, coletivo.
No conto, Sete-de-Ouros em momento algum busca a glorificação, sequer almeja
maior reconhecimento por parte das outras personagens ou mesmo do leitor; pelo contrário, o
único e convicto objetivo desse herói está voltado para “o pátio, com os cochos, muito milho
na Fazenda: e depois o pasto; sombra, capim e sossego”. Um fim simples para um herói
paciente e perseverante, porém que alimenta ainda mais a oposição estabelecida em torno de
sua figura: humildade e glorificação.
O que confirma a importância, apontada anteriormente, do processo de construção
dessa personagem, que, como centro do desenvolvimento narrativo, é nomeada como ponto
unificador entre a temática regional-popular abordada e sua manifestação via arte erudita.
Pois, ao mesmo tempo em que Guimarães Rosa a compõe inserida no espaço místico da
cultura popular, da tradição e da natureza cíclica do sertão, ele lhe confere, pelo viés da sua
erudição, um outro saber, transcendente, paciente e libertador, permitindo-nos apontar, no
processo de composição da personagem, e por extensão da obra, a recorrência do autor a uma
matriz mítica e estabelecer, por analogia, uma relação entre Sete-de-Ouros e o mito de
Alétheia.
Segundo Marcel Detienne, em seu livro, Os mestres da verdade na Grécia Arcaica
(1989), Alétheia era uma das nove musas filhas de Mnémosyne (memória) com Zeus,
representantes da Memória Divina. Essa memória, que se tornou divina, simboliza a
imortalidade do ser, pois, na Grécia Arcaica, Vida é lembrança, e recordar significa transmitir
a todos, por meio das palavras, grandes feitos, grandes nomes, mitos e crenças. No entanto, a
Memória divina não pode ser confundida com a lembrança cotidiana. Ela seria privilégio de
poucos homens, os poetas, que, com o consentimento divino, detinham o poder de imortalizar
homens, mulheres, enfim, heróis, sendo os mediadores entre os mortais e os deuses. Dessa
maneira, quando o mortal alcança a eternidade, por meio da memória e da inspiração poética,
ele transcende o limite da morte e rompe com o seu ciclo de vida predestinado. Vencendo a
morte, ele eleva-se à condição dos deuses.
Daí a grande importância do mito de Alétheia, pois assim como a Vida está associada
à lembrança, para o grego antigo, a Morte está relacionada ao esquecimento, que é
representado por Léthe, a fonte do esquecimento. Localizado à porta do oráculo de Trofônios,
ao lado de uma segunda fonte, Léthe condenava todos os mortais, que bebessem de suas
águas, ao esquecimento pleno de sua vida terrena. Contrapondo-se a Léthe, na mitologia
grega, está, portanto, Alétheia (a + léthe), o não esquecimento, a memória divina, da qual o
poeta se vale para inspirar-se e conferir às suas palavras um caráter de verdade absoluta,
incontestável, conforme nos afirma Detienne: “Quando um poeta pronuncia uma palavra de
elogio, ele o faz por Alétheia, e em seu nome, ele é um “ Mestre da Verdade” (Detienne,
1989, p. 28)
Ainda sobre o mito de Alétheia, Alfredo Bosi, em seu texto Cultura Como Tradição
(1987), discorre:
Todas as almas têm sede de saber e já a tinham nas vidas pregressas. Acontece que os
deuses, cruéis em sua sabedoria, não se agradavam de ver que se desse um copo d’água para a
alma sedenta e sôfrega antes de ela fazer um sacrifício, ao menos o sacrifício da espera. O
conhecimento exige a purificação da paciência. As almas deveriam esperar um tanto para que
o desejo se interiorizasse e se espiritualizasse dentro delas; só assim o desejo se transformaria
em conhecimento, pois entre um e outro ocorreria o tempo necessário à memória. A água
oferecida pelos deuses era tirada de um rio chamado Lethe, rio do esquecimento. Se as almas,
arrastadas pela sede do desejo sem freio, bebessem a água do Lethe, sem a pausa do sacrifício,
ao invés de aprender, cairiam na letargia, que é um estado de sonolência, de embrutecimento,
de inconsciência. (...). Mas aquelas que esperassem e não tragassem sôfregas a água do Lethe
alcançariam o não-esquecimento, o des-ocultamento, a a-letheia, a alétheia. (Bosi, 1987, p. 53)
A correlação entre o mito de Alétheia e a figura de Sete-de-Ouros assume, portanto,
com base no foco de análise proposto, ou seja, a relação entre a cultura popular e a cultura
erudita, uma importância ímpar no processo de fragmentação e releitura do texto. Ao
aproximarmos a aventura de Sete-de-Ouros, por um processo de espelhamento, do mito,
confirmamos na experiência individual da personagem o caráter transcendente do texto.
Como referido anteriormente, sendo Sete-de-Ouros uma figura intermediadora entre a
instância mística e a mítica, Guimarães Rosa, por meio desse contato, possibilita à
personagem transpor o aspecto depreciado de sua condição animal inicial para equiparar-se à
condição humana. Ainda, pela sabedoria apresentada, aproximar-se da condição divina,
conferindo ao relato uma dimensão criadora universal, como a dos mitos, que “descrevem as
diversas e, algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo”.
(Eliade, 2002, p. 11)
Lançado, pois, um olhar vertical, interseccionando a caracterização de Sete-de-Ouros e
a simbologia temática do mito referido por Detienne e por Alfredo Bosi, nota-se como maior
atributo desse herói “sertanejo”, justamente, a paciência, a sabedoria divina, que atua como
ponto divisor entre o burrinho e as demais personagens. Sete-de-Ouros, assim como no mito,
alcança o verdadeiro conhecimento, necessário para a travessia do “córrego da Fome”, através
de um longo processo de purificação pela paciência.
O burrinho tem a sabedoria da espera, da reflexão, sabe guardar, passivamente, pelo
instante exato e “de repente” guiar-se, a cada fechar de olhos, por um saber interior, por uma
verdade contida em sua alma:
Sete-de-Ouros parara o chouto; e imediatamente tomou conhecimento da aragem, do
bom e do mau: primeiro, orelhas firmes, para cima – perigo difuso, incerto; depois, as orelhas
se mexiam, para os lados –, dificuldade já sabida, bem posta no seu lugar. E ficou. A treva era
espessa, e um burro não é gato e nem cobra, para querer enxergar no escuro. Ele não espiava,
não escutava. Esperava qualquer coisa.
E, quando essa chegou, Sete-de-Ouros avançou, resoluto. Chafurdou, espanadou água,
e foi. Então, os cavalos também quiseram caminhar.
Mas, aí soou o pio, que vinha da moita em cada minuto, justo:
– João, corta pau! João, corta pau!
(...). De curto, Sete-de-Ouros perdeu o fundo e rompeu nado; mas já tivera tempo de
escolher rumo e fazer parentesco com a torrente. De trás, veio o ruído de muitas patas,
cortando a água, e um chamado...
(...). Em cima, no céu, há um pretume sujo, que nem forro de cozinha. Noite ruim.
(...) – vão, devagar as braçadas de Sete-de-Ouros. (...). Nenhuma pressa. Aqui, por ora,
este poço doido, que barulha como fogo, e faz medo não é novo: tudo é ruim e uma só coisa,
no caminho: como os homens e os seus modos, costumeira confusão. É só fechar os olhos.
Como sempre.
(...). Mas, de repente, foi apenas uma pressão tesa em grande escachôo.
(...). Com um rabejo, a corrente entornou a si o pessoal vivo, enrolou-o em suas
roscas, espalhou, afundou, afogou e levou. (Rosa, 2001, p. 91-5)
O trecho destacado acima, a passagem de retorno dos vaqueiros pelo “córrego da
Fome”, altera a condução do enredo por meio dessa ação “de repente”, reordenando obra e
personagens, especialmente Sete-de-Ouros. Elevado à condição de “herói” pelo êxito da
travessia do córrego, o protagonista, que com isso transcende a delimitação de seu caráter
regional, ao mesmo tempo em que evidencia a sublimidade de sua trajetória transformadora,
deixa revelar, a partir do encontro entre o “popular” e o “erudito”, o caráter paradoxal do
processo de (re)construção do texto.
Observa-se, assim, na totalidade de “O Burrinho Pedrês”, desde as possíveis oposições
temáticas, como homem X animal, saber divino X ignorância mortal, vida X morte, ainda no
nível fundamental do texto, a coordenação entre o enredo central e as “subistórias” citadas.
No nível discursivo, uma espécie de “metamorfose textual” realizada pelo autor, por meio da
ação do narrador, irá alterar a perspectiva do leitor diante do relato. Posto em contato com as
matérias mística e mítica, ao longo da trajetória de Sete-de-Ouros, movimentadas pela ação
“do acaso” e da “providência divina”, que subvertem a condição das personagens e alteram o
rumo da história, o leitor é levado, conseqüentemente, a reordenar o seu “olhar”.
Dessa forma, Guimarães Rosa, ao mesmo tempo em que possibilita Sete-de-Ouros,
devido à analogia mítica apresentada ao transpor o “córrego da Fome”, transcender a
limitação de sua condição animal, torna o “sertão ficcional” singular expressão da diversidade
cultural brasileira, imprimindo ao texto a universalidade de seu regionalismo literário.
Ou seja, para fazer de “O Burrinho Pedrês”, mais do que o relato de um “causo”
regional, a representação de uma identidade cultural nacional, e de Sete-de-Ouros, ao final,
um autêntico herói popular, Rosa, por meio dessa “contaminação dos opostos” reflete acerca
dos costumes, das crenças, enfim, da diversidade de influências étnicas que compõem a
cultura popular brasileira para firmar a unicidade “plural” e “desconstrutora” de sua
perspectiva literária e (re)criar, com isso, a via ficcional de libertação, de transcendência para
o homem do sertão.
Apresentado, portanto, como o ponto de encontro dos diferentes temas do conto,
essencial ao desenvolvimento da obra, o burrinho revela ao leitor, já no nível narrativo da
composição, desde o início da viagem da boiada, o seu “querer”. Esse querer, imprescindível
para a reconstrução da personagem ao longo do enredo, limita-se ao anseio por retornar ao
sossego da fazenda; um objetivo simples, aparentemente, mas que, com a cheia do “córrego
da Fome”, encontra um grande obstáculo no trajeto de retorno.
Assim, diante da dificuldade presente, a transposição desse obstáculo requer do
protagonista uma “competência” muito particular, o que o singulariza em relação às demais
personagens. Afinal, se inicialmente, os adjetivos pejorativos do burrinho o colocavam em
segundo plano, numa condição disfórica diante das outras personagens, são essas mesmas
características, humildade e paciência que, agora, lhe dão a sabedoria necessária (matriz
mítica) para poder superar o imprevisto e obter uma “sanção” positiva: sobreviver ao rio e
chegar ao pátio da fazenda. A interferência da providência divina, do acaso, da ação “de
repente”, de origem mística da cultura popular, acaba impulsionando uma mudança na rotina
do protagonista, que, pela ponte da paciência, atinge a esfera heróica e, com ela, as paragens
míticas da herança cultural ocidental. Assim constrói-se a ponte que une a cultura popular,
ponto de partida da ambientação regionalista, e a cultura erudita: o ponto em que se ancora a
obra literária culta e de caráter universal.
Esse processo de reconstrução do protagonista, no entanto, somente alcança o efeito
final desejado devido à forma de construção do enredo. Uma vez que, em O burrinho pedrês,
o nível discursivo do texto, na tripartição da semiótica greimasiana, reforça a importância das
exemplares subistórias na definição do espaço e tempo da obra. Esses elementos levam a um
deslocamento da leitura, rompem com uma linearidade em torno do enredo central,
conferindo, assim, maior complexidade às ações, pois, se considerarmos apenas a história-
eixo do conto, a viagem da boiada, veremos que o espaço e o tempo formam um ciclo bem
delimitado: espaço (Fazenda Arraial Fazenda); tempo (seis da manhã à meia noite).
Concomitante e conseqüentemente à variação espácio-temporal, manipulado pelo narrador,
ocorre uma alternância no foco narrativo, que propicia ao leitor diferentes olhares em torno da
mística popular, confirmando, assim, a perspectivação regional do autor, de “libertação”,
composta a partir da união dos temas, com o enredo e as personagens.
2.2 “SÃO MARCOS”
Dentre os nove contos de Sagarana, “São Marcos” é um dos que melhor retrata o
enlace entre a linguagem literária rosiana e a temática regional. Motivado pela força da
superstição e pelo caráter contraditório que rege a crença popular e tendo como eixo
construtivo a palavra reveladora (o signo poético-literário), Guimarães Rosa une nessa obra de
forma meticulosa e autêntica as diversas situações experimentadas ao longo de sua vivência
no sertão mineiro, “uma quantidade de elementos míticos e cabalísticos”, que segundo Luiz
Roncari, ao defrontarmo-nos analiticamente com o texto, “faz-nos imaginar mexendo com
deuses, santos e demônios”. (Roncari, 2004, p. 106)
Em estudo sobre Corpo de baile, Eryalo Cannabrava, acerca dessa perspectiva literária
de Rosa, aponta para a relevância da justaposição temática no processo de construção de sua
narrativa:
O realismo mágico, tônica fundamental dessa obra de aspectos multiformes, faz com
que o escrito transfigure os temas da vida cotidiana em símbolos que participam da fantasia e
do mito. (Cannabrava, in. Coutinho, 1991, p. 265)
Deixando de lado a questão do realismo mágico, que precisaria ser melhor discutida, a
ponte entre a vida cotidiana e a simbologia mística e mítica, aludida pelo autor, tem em “São
Marcos” muita relevância no processo de construção do enredo, pois deixa revelar na
composição das personagens, no posicionamento e perspectiva do narrador, a estreita relação
entre o saber erudito e a vivência cultural-popular do escritor e a obra ficcional.
Advindos do “mesmo barro”, nas palavras de Cannabrava, obra (herói) e escritor
experimentaram as mesmas vivências, tendo como ponto comum e aproximador a cultura
sertaneja. Dessa maneira, Rosa, intermediado pela palavra, articula o erudito e o popular num
complexo jogo narrativo entre forma e conteúdo, fazendo das personagens de “São Marcos”
mais do que alegorias de um regionalismo arquetípico para se comportarem como porta-vozes
de sua expressão artística.
Embora “São Marcos” tenha, assim como os demais contos de Sagarana, o sertão de
Minas Gerais como cenário narrativo, opção feita pelo autor por crer que “o povo do interior –
sem convenções e ‘poses’ – dá melhor personagens de parábolas” (Rosa, 2001, p. 25), ele não
se limita à representação unívoca de uma região, tampouco de uma expressão cultural; pelo
contrário, o escritor, por meio da criação narrativa funde o erudito e o popular numa prosa
poética multifacetada e expressiva de um “sertão” literário universal.
Articulando diferentes estilos narrativos em “São Marcos”, a peça mais trabalhada de
acordo com o próprio escritor, Rosa faz da tradição oral popular (do “contador de histórias”) a
base para o desenvolvimento da escrita literária. Assim, a aventura relatada por João/José,
narrador-protagonista do conto, revelar-se-á uma alegoria metalingüística, em que a palavra,
princípio e fim do processo inventivo, intermediará a comunhão entre o terreno e o celestial.
Morador, na época do ocorrido, de Calango-Frito, uma pequena cidadezinha sertaneja,
em que a feitiçaria e a superstição eram hábitos do cotidiano dos moradores, José, homem
culto e de distintos hábitos, ao iniciar a narração, trata imediatamente de esclarecer ao leitor
que, ao contrário dos habitantes locais, não acreditava no “poder” dos feiticeiros, “Naquele
tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros” tanto que debochava
“dessa gente toda do mau milagre” (Rosa, 2001, p. 261).
Embora negue ao leitor a crença em feitiçarias, o protagonista, ironicamente, contradiz
suas palavras compartilhando, em alguns hábitos, do conhecimento e das crenças
supersticiosas dos demais moradores. José, por exemplo, carregava consigo alguns objetos
“mágicos” como uma fórmula gráfica de treze consoantes alternadas com treze pontos feita
em meia-noite de sexta-feira da Paixão, que lhe assegurava invunerabilidade a picadas de
ofídios. Havia também, dobrado na carteira, um escapulário em baeta vermelha sem o qual
José “não se aventuraria jamais sob os cipós ou entre as moitas” (Rosa, 2001, p. 262), mas o
principal elemento “mágico” que o protagonista levava consigo, mesmo que de certa forma
inconsciente e em tom de zombaria, era a reza de São Marcos, fundamental à personagem e
ao desfecho do conto.
Outro costume peculiar de José era, aos domingos, visitar as matas da região, o que
fazia com grande prazer, em longas caminhadas contemplativas, pois adorava observar,
captar, passivamente, as belezas mais minuciosas do sertão. Afinal, ele tinha na contemplação
da natureza, a companhia perfeita e sua maior riqueza. No caminho que o levava à mata havia
a casa de um feiticeiro, João Mangolô, “mestre em artes de despacho, atraso, telequinese,
vidro moído, vuduísmo, amarramento e desamarração” (Rosa, 2001, p. 262) respeitado e
temido pelos moradores de Calango-Frito, mas que, diante do deboche de José, era apenas um
velho negro, desdentado, de volumosos cabelos crespos amarelados que morava no fundo da
mata.
Certo dia, como de costume, ao passar pela casa de Mangolô, o protagonista diverte-se
fazendo piadas sobre o feiticeiro. No entanto, neste domingo, ao insultar o velho, proferindo
os mandamentos do negro, “todo negro é cachaceiro...”, “todo negro é vagabundo” e “todo
negro é feiticeiro...” (Rosa, 2001, p. 266), José deixa Mangolô muito irritado, o que lhe
acarretará sérios problemas.
Dando continuidade a sua caminhada, a personagem encontra Aurísio Manquitola, um
“capiau” local com quem conversa por algum tempo e ouve algumas histórias. Dentre essas, a
de Tião Tranjão, que tendo sido preso conseguiu escapar das grades, provavelmente, segundo
Aurísio, por ter proferido a reza de São Marcos.
Adentrando cada vez mais à mata, José, chegando a uns bambus, relembra os duelos
poéticos que realizava com um desconhecido poeta, nomeado pelo narrador de “Quem-Será”,
transcrevendo seus respectivos versos nos colmos do bambusal. Seguindo adiante por entre
bichos, lagos e árvores, José desce ao “sancto-dos-sanctos das Três Águas” onde pára afim de
apreciar toda a natureza que o cerca, quando, repentinamente, uma intensa escuridão rompe a
tranqüilidade de seu passeio, e por um feitiço do velho Mangolô, ele estava “cego”.
Neste momento, a personagem, sem compreender ao certo o motivo de sua cegueira,
desespera-se. Amedrontado e confuso, José, guiado até o momento pelo encantamento de seus
olhos, vê-se, agora, perdido no meio da mata. Voltando, então, toda a atenção para os
ouvidos, em meio a uma intensa captação auditiva que, dentre tantos sons, permite-lhe
“ouvir” seu amigo poeta (“para esquerda fui contigo. Coração soube escolher”) e também o
bramido (“Guenta o relance, Izé...”) que o faz recordar de Aurísio Manquitola e,
conseqüentemente, da reza de São Marcos, a personagem encoraja-se a seguir por caminhos
desconhecidos na mata, em busca de uma “nova” saída.
Guiado, assim, apenas por seus “ouvidos”, José, instintivamente, profere a reza de São
Marcos. Põe-se a brami-la sem pensar, sentindo uma vontade muito grande de derrubar, de
esmagar e de destruir. Tomado, agora, por uma loucura incontrolável, sai correndo pela mata,
ofegante, acompanhado por um horror que “riçava-lhe pele e pelos” (Rosa, 2001, p. 290). De
repente o mato cessa e José, seguindo sua fúria, é levado à casa de João Mangolô.
Percebendo, então, que sua cegueira era conseqüência de uma “bruxaria” do tipo vodu, feita
pelo feiticeiro, que amarrara uma tira de pano preto nos olhos de um boneco, o protagonista
dá uma surra no velho negro, obrigando-o a desfazer o feitiço.
Passada a raiva, o narrador acha por bem propor um acordo ao Mangolô e estende-lhe
a bandeira branca: uma nota de dez-mil-réis. Restabelecida a ordem, recobrada a visão, José
parte a apreciar a natureza novamente, agora, porém sob uma nova perspectiva, iluminada e
sublime:
Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a lúz andava à
roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao
longe, nas prateleiras do morro cavalgavam-se três qualidades de azul. (Rosa, 2001, p. 291)
Dado o breve relato da complexa aventura vivida por José, é importante atentarmos
para alguns aspectos semântico-estruturais da narrativa, como uma forma introdutória ao
objeto primordial dessa análise: a relação entre os elementos da cultura popular e da cultura
erudita no regionalismo rosiano.
Com uma linguagem muito bem articulada “antiacadêmica e antiintelectual” (Sperber,
1982, p. 31) e uma caracterização do ambiente extremamente detalhista, enaltecendo as
belezas do sertão mineiro, Guimarães Rosa (re)cria em “São Marcos”, por meio de sua
perspectiva literária, um autêntico conto popular regionalista, em que a fronteira entre o
misticismo e o materialismo do cotidiano sertanejo encontra-se abolida.
Apoiado assim, nessa matéria difusa e contraditória que embasa a cultura popular,
Rosa encontra os elementos ideais para criar uma figura interseccional, José, em que os
componentes mítico e o místico estão sintetizados. Embora percebida em toda a obra rosiana,
a associação entre esses dois sistemas “distintos, contrastantes, porém não opostos”, tem em
“São Marcos”, na visão de Luiz Roncari, uma particularidade:
As suas matrizes estão separadas e pertencem a sujeitos distintos (...). A referência
culta e universal faz parte da formação do herói-narrador-autor, e a popular regional aparece
como algo estranho do outro, da gente do lugar. (Roncari, 2004, p. 111)
Roncari afirma, ainda, que essa duplicidade do autor-narrador é o que torna possível
uma ida e vinda entre esses dois planos, permitindo, portanto, que o rústico e arcaico do sertão
seja narrado numa forma culta, assim como “os elementos e topos das narrativas universais,
revividos no meio rústico, ganhem novas roupagens e expressões.” (Roncari, 2004, p. 111).
Um bom exemplo para ilustrar esse contato entre o mítico-erudito e a mística-popular
em “São Marcos” é a antiga história de Saturnino Pingapinga contado por José:
Saturnino Pingapinga, capiau que – (...) – errou de porta, dormiu com uma mulher que
não era a sua, e se curou de um mal-de-engasgo, trazendo a receita médica no bolso, só porque
não tinha dinheiro para mandar aviar. (Rosa, 2001, p. 262)
Embora a história narrada por José denote, na experiência vivida por Saturnino, um
típico “causo” da superstição popular, Guimarães Rosa confere ao episódio, como também
fora notado por Roncari, “uma segunda camada de sentido”, pois, por meio da relação
imediata estabelecida entre o nome da personagem e o nome do deus mítico Cronos/Saturno,
nota-se que o escritor faz dessa historieta uma paródia ao mito que, em sua versão original,
conta que Saturno “teria se engasgado com uma pedra enrolada num cueiro, ao tentar engoli-
la pensando ser o seu filho Zeus.” (Roncari, 2004, p. 109).
O episódio de Saturnino Pingapinga, ao recorrer, pelo viés da ironia, ao mito de
Saturno/Cronos, revela, já no início da história, traços de riqueza simbólica que percorrem
toda a narrativa e fazem da linguagem textual uma espécie de metáfora do próprio processo de
construção literária, uma vez que revelam, por meio dessas estórias contadas, o caráter lúdico
do signo literário interferindo na composição. Esse jogo lúdico também colabora para a
criação da atmosfera mística que sustenta a aventura de José.
Um primeiro aspecto dessas ocorrências a ser apontado é a presença da supersticiosa
simbologia numérica nos “causos” narrados por algumas personagens e mesmo na
descrição/nomeação de alguns lugares pelo escritor. Tomo para tanto, as definições acerca da
simbologia de alguns números presentes do Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier:
“Três”
no campo ético, representa as três coisas que destroem a fé do homem: a
mentira, a imprudência e o sarcasmo. Por outro lado, simboliza as três coisas que
conduzem o homem à fé: o pudor, a cortesia e o temor ao Dia do Juízo.
“Sete”
marca a plenitude divina, que se constitui a partir do pacto do Deus criador e o
homem, criatura;
totalidade do espaço e do tempo;
nos contos e lendas, expressa os Sete Estados da Matéria, os Sete Graus da
Consciência, as Sete Etapas da Evolução:
a) consciência do corpo físico: desejos satisfeitos de modo elementar e brutal;
b) consciência da emoção: as pulsões tornam-se mais complexas com os
sentimentos e a imaginação;
c) consciência da inteligência: o sujeito classifica, organiza e raciocina;
d) consciência da intuição: as relações com o inconsciente são percebidas;
e) consciência da espiritualidade: desprendimento da vida material;
f) consciência da vontade: que faz com que o conhecimento passe para a ação;
g) consciência da vida: que dirige toda a atividade em direção à vida eterna e a
salvação.
“Treze”
é um número contraditório, pois, ao mesmo tempo em que simboliza um poder
gerador do “bem”, marcando, meio a um grupo, aquele eleito o mais virtuoso e
sublime, ele expressa uma força do “mal”, estando em desarmonia com o
equilíbrio universal.
Entrelaçando as definições dos números mencionados e aproximando-as da
caracterização dada pelo autor a José e, especialmente, ao desenrolar de sua aventura, nota-se
que o aspecto figurado de cada um deles contribui tanto na complementação do caráter
contraditório e fantástico da trama, quanto na composição estético-literária de Guimarães
Rosa.
Um exemplo interessante, devido à carga simbólica que confere à narrativa, é a
nomeação dada por Rosa à clareira em que José sofre a repentina cegueira: “Três Águas”. A
simbologia do número "três" confere à obra, dentre tantos outros traços que possui, uma
plenitude paradoxal; resta, portanto, para melhor elucidar a linguagem figurativa do escritor,
atentar para alguns aspectos simbolizados pela "água", destacados por Mircea Eliade em seu
livro Tratado de história de las religiones:
A imersão na água simboliza a regressão ao estado anterior à forma, à regressão total,
ao novo nascimento, (...), o contato com a água implica sempre regeneração; (...) porque a
imersão fertiliza e aumenta o potencial da vida e criação. (Eliade, 1964, p178)
A descida de José ao “sancto dos sanctos das Três Águas”, sua profunda cegueira,
alegoriza, portanto, por toda a riqueza mística que compõe esse episódio, um mergulho da
personagem em sua contraditória (in)consciência, uma "morte" em sua própria existência
para, então, ser recriado sob uma nova perspectiva, singular, transcendente.
Além desses aspectos simbólicos, contribui para essa ambientação mágica o emprego
de algumas “substórias” em “São Marcos”, as quais, a partir de uma relação de ordem
temática com a narrativa central, pois são contadas por outras personagens como Aurísio
Manquitola e pela cozinheira de José, Sá Nhá Rita Preta, contrapõem-se ao discurso
“descrente” e irônico do protagonista, representando a força da contraditória crendice popular
no material e no sobrenatural, como pode-se notar nos “casos exemplos” citados a seguir:
...e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um grito
horrendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)...A gente acudiu,
mas não viu nada (...). Aí, ela se alembrou de desfeita que tinha feito para a Cesária velha, e
mandou um portador as pressas, para pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá,
para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé do calunga
de cera, que tinha feito, aos pouquinhos, em
sete
voltas de meia-noite: “Estou fazendo
fulana!...Estou fazendo fulana !...”, e depois, com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou
espetando fulana!...”. (Rosa, 2001, p. 263)
E o Tião Tranjão? (....). Ele andou morando de-amigado com uma mulherzinha do
Timbó (...) que achou gente ainda mais boba do que o Tião para querer gostar dela na
imoralidade?! O Cypriano, aquele carapina velho veloso (...) e por amor de ficar sozinho no
bem bom inventaram um embendo – que tinha sido o Tião quem tinha ofendido o Felipe
Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de quem...
...Aí seu Antônio falou, na fé do falado, pelo direito e mandou o Tião se entregar
preso...
... Bom, eles trancaram o Tião.
... Ele deve de ter rezado a reza à meia-noite, da feição que o diabo pede, o senhor não
acha? Pois do contrário, me conte: quem foi que deu fuga ao preso, das grades, e carregou o
cujo de volta para casa – quatro léguas – que, de madrugadinha estava ele chegando lá, e
depois na casa do outro, e entrando guerreiro e fazendo o pau desdar, na mulher, no carapina,
nos trastes, nas panelas, em tudo quanto há...?! (Rosa, 2001, p. 270-272)
Assim como em “O Burrinho Pedrês”, “São Marcos” apresenta algumas narrativas
secundárias em que “causos” como os transcritos acima revelam, a partir da perspectiva
desses outros narradores, o desdobramento temático da narrativa central, pois, intermediados
pela palavra, “evocam dois distintos universos, o do gênero da fábula (mítico) e o do narrativa
oral do homem do povo (místico)” (Seidinger, 1999, p. 186).
Dando voz a outras personagens, portanto, Rosa apresenta ao leitor, não apenas
diferentes perspectivas acerca da dualidade temática que tange sua obra, como também, e
principalmente, destaca a importância da palavra enquanto força criadora tanto na realização
do objeto artístico, quanto no processo de formação e sublimação do ser humano. Valendo-se,
ainda, da estrutura narrativa de encaixe, voltado ao caráter gerador do signo lingüístico,
múltiplo e maravilhoso, Rosa faz mais um recorte na narrativa de “São Marcos” para compor,
certamente, uma das mais belas “substórias” de Sagarana, o duelo poético entre José e o
desconhecido poeta “Quem-Será”.
Luis Roncari, em ensaio sobre “São Marcos”, afirma ser essa historieta a discussão do
tema que mais interessa ao escritor, “o da perspectiva a ser assumida pela literatura”, aludindo
à delicada postura do artista diante da complexa relação, de transição, entre a tradição literária
e o, então, modernismo. No entanto, assim como Roncari, detenho-me, por uma questão de
foco analítico, a outros temas simbolizados nesse embate:
O desafio discorre sobre a escolha que o homem (e também a literatura) terá de fazer
um dia entre o céu e a terra, entre o eterno e a “pândega” (...). Só que essa escolha não era
simples, não implicava apenas a exclusão de um dos termos, mas se apresentava como uma
pergunta sobre o modo de apreciar as suas relações, como contemplar céu e terra como uma
unidade: reduzindo às dimensões terrenas os fenômenos celestes ou discernindo o divino nas
manifestações terrenas? (Roncari, 2004, p. 122)
As visitas domingueiras de José ao bambusal, o desafio com “Quem-Será”, ilustra,
portanto, em “São Marcos”, uma forma de teorização do signo lingüístico enquanto objeto
“vivo” e reflexível. Ao pensar a palavra livre de sua referencialidade arbitrária, dissociando
significado e significante, o escritor abre uma fissura em sua prosa narrativa para inserir toda
a riqueza e força expressiva da linguagem poética no conto. Assim torna o signo literário, na
comunhão entre o “celestial” (expressão erudita) e o “terreno” (crença popular), instrumento
libertador e transcendente.
Oswaldino Marques, em ensaio sobre “São Marcos” trata, com singular propriedade,
dessa função ‘intermediadora” da palavra:
Se na beleza dos cantos e da plumagem dos pássaros podemos contemplar a obra da
criação, “Deus pintou o surucuá [...]/Surucuá fugiu para cá”; nas das palavras, como criação
dos homens, foram por eles ordenadas para fazerem o caminho inverso, de modo a levar ao
divino os nossos apelos (...) talvez seja essa a maior função da poesia para Guimarães, a de
religar o homem ao divino, graças ao poder dado pela beleza, seja de encantamento, seja de
invocação. (Marques, 1957, p. 21)
Em “São Marcos”, a “prosa poética”, de Rosa dilui os limites entre Deus e o homem,
entre o mítico e o místico, tornando esse “entrelugar” a via para a construção de suas
personagens e, por extensão, de todo o enredo. O embate poético do bambusal configura,
portanto, no plano narrativo, a intersecção entre esses diferentes universos, tendo como força
motriz de sua criação o próprio signo poético:
Na viola do urubu
O sapo chegou no céu
Quando pego na viola
O céu fica sendo meu
(...)
Tempo de festa no céu,
Deus pintou o surucuá
Com tinta azul e vermelha
Verde, cinzenta e lilá
Porta do céu não se fecha:
Surucuá fugiu pra cá. (Rosa, 2001, p. 276)
Além da grande riqueza simbólica que permeia o duelo poético entre os dois textos
apresentados, deve-se ressaltar o fato de que, juntos, eles sintetizam a ponte entre o “céu” e a
“terra”. Seja o celestial, na quadra escrita por “Quem-Será”, profanado por seres terrenos,
como o sapo e o urubu, ou mesmo a terra, nos versos de José, agraciados com a beleza divinal
do surucuá, são as “palavras-pássaros” que possibilitam esse intercâmbio entre os “versos do
poeta violeiro” e a “criação divina”.
Acerca ainda do fantástico e multifacetado poder das palavras, José, num contínuo
fluxo narrativo, faz uma breve suspensão no relato de seu embate poético para narrar alguns
casos vivenciados por “moradores” da região, dentro os quais destaco os de seu “parceiro”
Josué Cornetas e o do menino Francisquinho.
Na primeira estória, Josué Cornetas, ensinando palavras complexas como “intimismo,
paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopopese, amnemosínia e subliminal”
(Rosa, 2001, p. 275) a um sujeito bidimensional, conseguiu ampliar-lhe os limites mentais,
dando-lhe “outra dimensão ao espírito, a terceira, invisível, porém profunda e verdadeira”
(Roncari, 2004, p. 126). Já o caso de Francisquinho, em contrapartida, conta que um dia, por
brincadeira boba, o menino após repetir quinze ou doze vezes a toada “patranha”, voltou a ser
selvagem.
Seguindo as definições de Gennette acerca das relações narrativas, nota-se em “São
Marcos” que, diferentemente dos relatos dados pelas outras personagens, como ocorre no
conto abordado anteriormente, tanto os poemas quanto as historietas citadas por José não
estabelecem nenhuma relação explícita com os acontecimentos do enredo central, inserindo-
se, assim, no terceiro tipo de encaixe narrativo definido pelo teórico. Como apontado
anteriormente, esses relatos ilustram o importante papel da palavra como instrumento criador
do objeto artístico e elemento sublimador do homem. Denotam, contudo, que a mesma
palavra que eleva ao “céu” aqueles que têm o saber para enxergar “à parte o sentido prisco, o
ileso gume do vocábulo pouco visto” (Rosa, 2001, p. 274), faz retornar à selvageria o
indivíduo leviano. Nesse caso, “é o próprio acto da narração que desempenha uma função na
diegese” (Gennette, 1979, p. 232).
Assim, voltado a uma profunda e intensa reflexão sobre o signo lingüístico, Guimarães
Rosa, com sua narrativa, insere no ponto medial dessa relação entre o divino e o terreno, a
personagem José. Apresentado como narrador-protagonista, manipulador, portanto, da
“palavra-ação”, José possui, mesmo inconsciente e involuntariamente, a competência e o
poder necessários para conduzir a narrativa e, como uma “palavra-pássaro”, unificar os
diferentes planos de expressão artístico e cultural presentes no enredo.
Guimarães Rosa faz, portanto, do relato da fantástica aventura de José uma grande
intermediação entre a matéria erudita e a popular. Da mesma maneira que o episódio com
“Quem-Será” auxilia, por meio da arte poética, a personagem em sua cega caminhada pela
floresta, aguçando-lhe o instinto, as palavras de Aurísio Manquitola e, principalmente, a reza
de São Marcos, destacando aspectos da crendice sertaneja, são decisivos para que José, em
sua irracionalidade, aventure-se no desconhecido e, aprofundando-se na mata, seja conduzido
à casa de Mangolô.
A dualidade temática, lúdica e paradoxal, articulada no enredo, dilui-se
gradativamente através de José, à medida que a própria personagem, num processo de
desconstrução ao longo da narrativa, revela em sua transição uma “pluralidade unificadora”.
Ou seja, se inicialmente o protagonista assume uma postura cética, debochada e sarcástica
com relação às crenças das demais personagens, bem como aos poderes do velho feiticeiro,
evidenciando uma perspectiva egocêntrica, unilateral e superficial, posteriormente, durante o
desespero de sua “cegueira”, confuso em suas aparentes convicções, José, captando a
totalidade expressiva do “mundo”, em busca da salvação, sintetiza, no fundo da mata, no
íntimo da sua natureza, a matéria erudita e a popular:
(...). Tomo fôlego. Rezo. Me enfezo. Lembro-me de “Quem-Será”. E então?:
“para a esquerda fui, contigo.
Coração soube escolher.” (Rosa, 2001, p. 288)
Mas, aí, outra vez, chegou a ordem, o brado companheiro:
– “Guenta o relance, Izé”...
E, justo, não sei por que artes e partes, Aurísio Manquitola, um longínquo Aurísio
Manquitola, brandindo enorme foice, gritou também:
– “Tesconjuro! Tesconjuro!”...
Dá desordem... Dá desordem...E, pronto, sem pensar entrei a bramir a reza-brava de
São Marcos. Minha voz mudou de som, lembro-me, ao proferir as palavras as blasfêmias, que
eu sabia de cor. (Rosa, 2001, p. 290)
Poesia e oração, crença e criação, o enlace entre essas distintas dimensões culturais
permitem à Rosa tornar o relato da aventura de José uma autêntica “saga sertaneja”,
evidenciando a recorrência à diferentes matrizes na base de composição do seu regionalismo
literário. O emprego da “reza-brava” de São Marcos, por exemplo, marca da tradição mística
popular, recupera na obra, ao avesso, um símbolo católico, O Evangelho de São Marcos, pois
insere na superstição popular o poder da oração católica.
A contraditória fé com que agora José profere a reza, ao mesmo instante em que
explicita uma difusão conceitual da personagem, revela a interação do escritor com a matriz
bíblica na construção da trama narrativa, permitindo-nos relacionar ao contexto da obra
algumas parábolas do Evangelho de São Marcos, como por exemplo, a “Fé em Deus e poder
da oração”.
Essa passagem bíblica narra o episódio em que Pedro, junto com Jesus e os outros
apóstolos, ao passar por uma figueira, vendo-a completamente seca, lembra-se de uma
maldição que o filho de Deus lançara sobre esta árvore, condenando-a a nunca mais dar
frutos. Então, Jesus, diante do espanto de seu apóstolo, profere as seguintes palavras:
Tende fé em Deus. Em verdade vos declaro: todo o que disser a este monte: Levanta-
te e lança-te ao mar, se não duvidar no seu coração, mas acreditar que sucederá tudo o que
disser, obterá esse milagre. Por isso vos digo: tudo o que pedirdes na oração, crede que o
tendes recebido, e ser-vos-á dado. (Mt 21,20ss)
Embora a “fé” mencionada na parábola possa ser atribuída ao fervor com que o
protagonista pronuncia a reza de São Marcos, essa transposição da temática bíblica no conto
ocorre de forma inversa. A salvação de José, seu retorno à “luz”, é alcançada justamente a
partir da contraditoriedade de suas crenças, pois ao romper com seu sarcástico ceticismo
inicial e recorrer a uma oração popular, a personagem subverte o caráter sublime-divino
presente na parábola e transfere a força da oração para a crença do homem no sobrenatural.
Pode-se dizer, portanto, que a passagem de José pela mata, que surge no texto como
um espaço mitológico e mágico, constitui, por meio da experiência vivida pela personagem
com o poético, com a feitiçaria, com a reza de São Marcos, uma espécie de ritual de iniciação,
que na visão de Suzy Frankl Sperber leva, por meio dessa interpenetração entre diferentes
manifestações sócio-culturais, não apenas ao acordo entre dois “jões” (José, que também se
auto-nomeia João e João Mangolô), mas também a uma passagem do individual ao coletivo,
do regional ao universal:
O narrador-protagonista se identifica às outras personagens. Para além desta
identificação, o narrador aprende a ter fé no poder do sobrenatural. Dentre as forças
sobrenaturais, a mais efetiva é a palavra. Ela permite a iniciação tanto no sobrenatural da
feitiçaria, como no da poesia. (...). A realidade precisa ser transcendida, vencida, por um
artifício da palavra, que provém desta mesma realidade. (...). A consciência da força da
palavra se apresenta como o modo de passagem do particular ao universal. (Sperber, 1982, p.
31)
Daí a importância da “instintiva” reflexão de José a respeito dos versos de “Quem-
Será” e das palavras de Aurísio Manquitola, pois ao ser guiado pelo conhecimento mítico-
erudito e o misticismo popular é que ele obtém uma sanção positiva, o êxito diante da
feitiçaria de Mangolô e, principalmente, a ascensão final transpondo os limites de sua
condição cultural e intelectual.
Contudo, para que não apenas a personagem, mas também, conseqüentemente, obra e
leitor transcendam cada qual suas perspectivizações unidimensional, regional e pragmática,
Rosa manipula minuciosamente a linguagem literária de modo a eliminar gradativamente as
delimitações entre essas três instâncias, integrando a estrutura, a narração e o receptor da obra.
No entanto, para criar uma totalidade literária “unívoca”, Guimarães Rosa, antes de
mais nada, rompe com a linearidade espácio-temporal da narrativa distinguindo, inicialmente,
o tempo da história, o tempo da fábula e o tempo da narração. Sendo a novela iniciada pela
expressão “Naquele tempo eu morava em Calango Frito” (Rosa, 2001, p. 261) tem-se
demarcado de imediato uma fragmentação espaço-temporal na narrativa, pois como observa
Salvatore D´Onofrio, o emprego de “Naquele tempo” cria, num primeiro momento, uma
tripartição temporal da obra:
Em “Naquele tempo” o pronome “aquele” aponta para (um ponto) a partir do sujeito-
narrador (...). Se do ponto de vista da fábula o pronome remete para trás (com relação ao
instante do ato de narrar), do ponto de vista da narração remete para frente. Cria-se assim uma
distância entre o tempo da história, da fábula e o tempo do discurso. (D´Onofrio, 1979, p. 65)
Esse afastamento, reforçado pela distância espacial estabelecida pelo emprego
pretérito do verbo “morava”, indicando que o narrador, diferente da personagem, não se
encontra mais em Calango-Frito, tem entre outras funções, segundo o crítico, a de assegurar
uma predisposição positiva no leitor, em fazê-lo crer em suas palavras:
De certa maneira, essa predisposição incute também no leitor a impressão de que o
narrador e a personagem são dois indivíduos autônomos; de tal maneira que o narrador passa a
isentar-se das culpas, por exemplo, imputáveis à personagem. (D´Onofrio, 1979, p. 66)
A imparcialidade obtida por esse distanciamento entre personagem e narrador,
conferindo a este uma credibilidade narrativa, estabelece uma espécie de “pacto de leitura”
entre o narrador e o leitor, imprescindível para o andamento do enredo. Sendo a estória
fabulosa contada por José, na falta de um relato concreto escrito, pautada na tradição oral que
sustenta os casos populares, sua verossimilhança depende diretamente de uma predisposição
do leitor em acreditar na versão relatada pelo narrador.
No entanto, à medida que José adentra a mata, aprofundando-se por suas trilhas, esse
distanciamento espácio-temporal neutraliza-se aos poucos. Por meio do emprego de advérbios
como “Hoje” e “Agora”, e valendo-se, por vezes, da primeira pessoa do plural na condução
do discurso, o narrador faz com que o leitor de “São Marcos”, mais do que a ler o conto,
ponha-se a ouvi-lo junto de si:
Hoje, vamos, primeiro, às Rendas da Yaia, para escutar de próximo os sete rumores do
riacho, que desliga em ebulição. (Rosa, 2001, p. 274)
Agora vamos retroceder, para as três clareiras, com suas respectivas árvores tutelares;
porque, em cada abertura do mato, há uma dona destacada, (...) (Rosa, 2001, p. 279)
Assim, o narrador-protagonista convida o leitor a descer consigo ao coração da mata,
ao ponto central e divisor de sua aventura: “lá embaixo, as águas das Três-Águas”. Uma
descida inebriada de acordo com a visão de Roncari, que tem a configuração da flora
transfigurada, como se estivesse encantada por seres antropomórficos, feéricos e sedutores, o
que nos sugere ser “uma floresta fantástica, com “moças cor de madrugada, encantadas,
presas no labirinto do mato.” (Roncari, 2004, p. 132) como se pode notar no seguinte trecho:
Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma
paisagem!...Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes
galga o corpo com espirais constrictas.(...).
Agora, outro trilho, e desço, pisando a humilde guaxina. Duas árvores adiantadas,
sentinelas; (...). Transponho um tracto de pântano. Conheço três sendas dedalinas, que
atravessam o tremedal (...). Escolhi a trilha B.
A caracterização labiríntica da floresta, análoga ao mítico labirinto de Dédalo, coloca o herói
protagonista diante de uma escolha determinante para seu destino e para o desfecho da obra.
Seguindo pela trilha central, José adentra um enigmático mundo maravilhoso, no qual, assim
como a mitológica aventura de Teseu, que com a espada e o novelo de linha dados pela
apaixonada Ariadne, consegue vencer o Minotauro e encontrar a saída do labirinto dedalino,
terá de flertar com o erudito e o popular para guiar-se pela mata e “derrotar” Mangolô.
A simbologia mágica conferida à vegetação local, o enigmático labirinto dedalino,
devem ser observados, contudo, segundo Roncari, não apenas como um ritual de iniciação e
pelos efeitos estéticos e psicológicos provocados no protagonista, mas também como
representações estético-ideológicas do autor. Por um processo de espelhamento, Rosa, assim
como em “O burrinho pedrês”, insere em “São Marcos” elementos que sugerem ao leitor que
tudo o que ocorre ao longo da história tem também outras dimensões: mítica, cósmica,
simbológica e alegórica, ou seja, “o mesmo que acontece no micro também se processa no
macro.” (Roncari, 2004, p. 132).
Assim, seguindo pela trilha central, ao chegar às “três clareiras, com suas respectivas
árvores tutelares” José, involuntariamente, inicia um processo de transformação na obra,
modificando concomitante a sua condição, a narrativa e, conseqüentemente, a perspectiva do
leitor. A passagem pelas três árvores tutelares, marca dos “três arquétipos fundamentais que
regem as várias dimensões da experiência amorosa” (Roncari, 2004, p. 134), sugere
metaforicamente, por meio de uma caracterização transitória de sua vegetação, seguindo de
um plano humano/carnal ao divino/espiritual, a sublime transcendência que opera em todo o
conjunto (personagem, narrativa e leitor) da obra.
A primeira árvore, “o ‘Venusberg’ – onde impera a perpendicularidade excessiva de
um jequitibá-vermelho” (Rosa, 2001, p. 279), marca a sexualidade carnal, fálica e pecadora,
aspecto este acentuado pela menção feita por José em levantar ali uma estatueta e um altar a
Pan. A segunda, a “colher de vaqueiro”, é caracterizada como um monumento perfumoso,
símbolo do amor, da sedução feminina, “representante do amor puramente humano, (...),
voltado para satisfazer os sentidos, os quais ela atiça e delicia com o uso de todos os
artifícios” (Roncari, 2004, p. 136). Ou seja, uma forma de amor a qual, segundo o ensaísta,
embora não mais animal, ainda não impera o caráter imortal divino.
A terceira árvore, “a suinã grossa”, dada sua sublime caracterização, mostra-se como
ícone do processo transcendente de toda a obra, pois é a partir dela que se desencadeia uma
série de transformações com a personagem e, por extensão, com a própria estrutura narrativa:
Agora, sim! Chegamos ao sancto-dos-sanctos das Três Águas. A suína grossa, com
poucos espinhos marca o meio da clareira. Muito mel, muito bojuí, jati, urucu, e toda raça de
abelhas e vespas, esvoaçando; (...). A sombra é farta. E há ramos, que trepam por outros
ramos. E as flores rubras, (...), vermelhíssimas, (...), cor de traíra, de sangue de ave, de boca e
batôn. (Rosa, 2001, p. 280)
A “grande eritrina”, protetora, bela e “não humana” esbanja em sua simbólica
descrição traços de um amor pleno, profundo e gerador de vida. Uma árvore de grande
bondade, “uma deusa, portanto”, que em sua plenitude perpetua “a continuidade de tudo, por
isso transcende, traz futuro, permanência e imortalidade.”(Roncari, 2004, p. 136).
É nela que José encontra abrigo para um contemplativo descanso. É exatamente aqui, em
“Paz”, que o narrador sintetiza tempo e espaço, configurando a expressão máxima da
neutralização entre esses dois aspectos narrativos. Nesse momento, “em que tudo converge
verticalmente” (D´Onofrio, 1979, p. 84), inicia-se uma “segunda” etapa.
A repentina cegueira de José interrompe sua tranqüila caminhada e põe em suspensão,
por um instante, o desenvolvimento narrativo: “Tempo assim estive, que deve ter sido longo.
Ouvindo”, “Tão claro e inteiro me falava o mundo (...)” (Rosa, 2001, p. 286). Cria-se, assim,
uma espécie de “marco zero” na história, um segmento intermediário estático em que a
personagem, redirecionando seu olhar, agora, num intenso processo de reflexão interior, capta
o mundo sob uma nova perspectiva. Começa, então, “um segundo momento que se abre como
uma ampulheta por meio da reação da personagem em busca da salvação.” (D´Onofrio, 1979,
p. 85).
A entrada nas “Três Águas”, o contato com a “grande suinã”, marca, portanto, a
recriação, o “renascimento” sublime e singular da personagem, assim como, principalmente, a
reestruturação da narrativa. Enquanto anteriormente a aventura de José, a trajetória até o
interior do mato era conduzida a partir de sua perspectiva unidimensional “pela vivência do
tempo material, físico” (D´Onofrio, 1979, p. 86), após o instante de reflexão e redescoberta de
si mesmo e do “outro”, ela segue o ritmo interior da personagem.
Voltado, então, ao aspecto espácio-temporal da obra, atentando para algumas marcas
presentes na narrativa, podemos notar a distinção entre as duas “etapas” (antes e depois das
“Três Águas”) em que se divide a aventura de José. Inicialmente, o emprego de termos como
“Corre o tempo”, “E assim também o tempo foi indo” mostram uma perspectivização
visual/referencial da personagem externa e superficial em relação ao controle da condução do
tempo e do espaço da história. Ou seja, há um distanciamento não apenas entre espaço e
tempo, mas também destes com relação ao narrador.
No entanto, no segundo momento, expressões temporais como “Mesmo sem os olhos.
Vamos!”, “Ando. Ando”, “Estou indo muito ligeiro” e “Corri”, demonstram claramente como
o desenvolvimento da história passa a seguir diretamente o ritmo da personagem. Guiando-se,
agora, por sua “memória auditiva”, ampliando não apenas sua captação do mundo, mas
também, num plano estrutural, da totalidade da obra, o narrador-protagonista sintetiza em si
as coordenadas de espaço e tempo, imprimindo uma gradual aceleração à narrativa, à medida
que o deslocamento espácio-temporal passa a acompanhar sua trajetória, que segue cada vez
mais rápido ao interior da mata, ao limite da razão.
Vê-se, portanto, que ao mesmo instante em que a experiência divina transcendente
vivida por José amplia-lhe o conhecimento, permitindo-lhe vivenciar a comunhão entre o
poético e a reza, entre a matéria erudita e a popular, o seu renascimento, no plano estrutural,
implica numa genial anulação entre forma e conteúdo.
Ao sintetizar espaço e tempo e integrá-los, não somente ao narrador, mas também à
personagem José, Guimarães Rosa torna seu protagonista a representação concreta do ritmo
narrativo na própria fábula. Com isso Rosa faz com que a personagem, deixando de figurar
apenas como criatura da história, torne-se, “ao seu lado”, criador do tempo narrativo, e por
extensão, da própria existência literária. No sincretismo de sua caracterização, tem-se também
o caráter simbólico da criação poético-divina.
Assim, o herói criador de “São Marcos”, no intermédio entre a matéria erudita e a
popular, entre “Deus” e o “homem”, ao mesmo tempo em que amplia os seus limites sócio-
culturais ao longo de sua aventura, transforma também sua condição enquanto criação
literária. Representando o próprio tempo artístico, elevando-se à imortalidade divina, ele
transcende a condição humana para, simbolicamente, como “senhor do tempo” personificar a
figura mítica de Cronos/Saturno na obra.
Segundo o relato de Junito de Souza Brandão (1991), a etimologia popular relacionou
Krónos com X
ρονο
s (Khrónos), “Tempo” personificado, sendo considerado, portanto, pelos
gregos como deus do Tempo. Crono é o filho mais jovem de Úrano e Géia na linhagem dos
titãs. Assim que nasciam os filhos, Úrano os devolvia ao ventre materno, temendo ser
destronado por um dos descendentes. Descontente, Géia resolve libertá-los, pedindo aos filhos
que a vingassem e a afastassem do esposo. Todos os titãs se recusaram, exceto o caçula
Crono, que odiava o pai. Géia, então, lhe entregou uma foice, e quando Úrano, “ávido de
amor”, à noite, deitou-se sobre a esposa, Crono cortou-lhe os testículos. Senhor do mundo,
Crono casou-se com a irmã Réia e se tornou um déspota pior do que Úrano.
Assim como os pais, Crono, detentor do conhecimento futuro, previu que seria
destronado por um dos filhos que teria de Réia; por isso passou a engoli-los, à medida que
iam nascendo. Somente Zeus escapou. Réia, quando ficou grávida desse, fugiu para a ilha de
Creta, onde, secretamente, deu à luz o caçula. Envolvendo uma pedra em panos de linho, deu-
a ao marido, como se fosse a criança, para ser engolida. Crescido, Zeus, com a ajuda de Métis,
ou pela própria Géia, fez com que Crono tomasse uma poção mágica que o obrigou a devolver
todos os filhos devorados. Sob o comando de Zeus, os deuses do Olímpo inciaram uma luta
de dez anos contra os Titãs, que culminou com a vitória de Zeus.
A aproximação apontada entre o mito e o contraditório narrador-protagonista de “São
Marcos” evidencia a unidade estética do “regionalismo universal” de Guimarães Rosa, pois
sintetiza na personagem a pluralidade sócio-cultural embasadora do seu projeto literário, que
unifica:
(...) dois universos distintos do pensamento mítico-mágico-religioso: o sincrético
brasileiro, no qual se misturam crenças de origem afro, indígena e popular ibérica com o
catolicismo, típico de uma região que ficou mais afastada dos movimentos imigratórios do
século XIX e XX, com um sincretismo universal, composto das mais diversas fontes: gregas,
romanas, hebraicas, assírio-caldaicas, egípcias, vedas etc. (Roncari, 2004, p. 110)
Portanto, embora a história de “São Marcos” apresente num primeiro momento uma
seqüência narrativa circular, de partida e retorno à cafua de Mangolô, de perda e recuperação
da visão de José, também revela, por trás do fantástico poder da prosa poética rosiana, a
“palavra viva”, intermediadora entre o mundo da oralidade sertaneja e o universo literário do
escritor. Reinventando o próprio “olhar”, em contato com a matéria erudita e a popular, o
protagonista, e, por meio dele, o leitor, ampliam “seus limites mentais”, elevando a obra
literária a uma condição subime e singular.
2.3 “A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA”
Integrando enredo e estrutura narrativa com muita propriedade, João Guimarães Rosa,
em “A hora e vez de Augusto Matraga”, não apenas corrobora a autenticidade da perspectiva
literária presente nos dois contos analisados anteriormente, como também revela uma
importante maturação no trato do objeto artístico.
Com uma trama muito bem elaborada, disposta em uma estrutura narrativa tripartida, o
conto, como reflexo de uma parábola bíblica, relata a história de Augusto Esteves,
personagem híbrida, cuja vivência nos revela uma trajetória de renovação. A passagem "de
um modo profano, simplesmente carnal de existência, à existência espiritual". (Sperber, 1982,
p. 36)
Contudo, como observa Sperber, embora contrários, o sacro e o profano não se
excluem na trama, sendo que é a partir desse tipo de oposição que o mundo ficcional se
renova e a personagem Augusto Esteves se transforma. Nesse processo de conversão, a
personagem surge como elemento unificador entre Deus e o Homem, confirmando não apenas
a exemplaridade de sua história, mas, principalmente, a importância da passagem de um
momento a outro de sua vida para a totalidade e consolidação da obra.
Para tanto, em "A hora e vez de Augusto Matraga", Rosa, por meio de uma relação
intrínseca entre forma e conteúdo, entrelaça enredo e personagem de modo que a pluralidade
simbólica de sua prosa-poética incida diretamente na construção de Augusto Esteves. Como
podemos notar logo na abertura do conto, por meio do importante jogo de nomeação do
protagonista.
Iniciando a narração com a negativa, “Matraga não é Matraga, não é nada” (Rosa,
2001, p. 363) o narrador ao abolir o significado imediato do nome “Matraga”, abre uma fenda
no processo de construção da personagem, gerando, de certa forma, um vazio de sentido em
sua caracterização que somente será preenchido, conhecido realmente, ao final da trajetória
transformadora de Augusto Esteves. Com isso Rosa sinaliza o complexo e árduo caminho a
ser percorrido por Matraga, e pelo olhar do leitor, para ter sua redenção consolidada na
unidade da obra.
Em seu ensaio crítico sobre “A hora e vez de Augusto Matraga”, Sperber também
atenta ao fato de o fenômeno da “passagem” vivida por Matraga ser assimilada, antes de mais
nada, pelo próprio nome da personagem. Da mesma maneira como a dicotomia sacro profano
move a trama narrativa, neste momento, a quebra entre o signo e o sintagma imprime um
caráter enigmático ao nome Matraga. Assim, como afirma a ensaísta, “a ruptura apresenta-se
como elemento rico para a fatura da narrativa” (Sperber, 1982, p. 43), como veremos no
decorrer da análise.
O "jogo" nominativo realizado pelo escritor, o questionamento criado em torno do
signo e, principalmente, da personagem Matraga, logo na abertura da narração, é um
indicativo de como Rosa redimensiona em seu sertão literário o tema cristão da conversão do
pecador em santo. Embora inserido nos moldes de uma história de salvação, que, segundo
Walnice Nogueira Galvão (1978, p. 44), “aparece (no cristianismo) como uma autêntica
parábola da vida trinitária, na qual se exprime a ação das três pessoas”, o Deus Pai, o Cristo,
seu filho e o Espírito Santo, a aventura de Matraga revela em sua pluralidade semântica todo o
sincretismo cultural que impulsiona e sustenta essa perspectiva literária de Guimarães Rosa.
Em “A hora e vez de Augusto Matraga”, Rosa, embaraçando com sua prosa-poética
elementos bíblicos, míticos e místicos, legitima sua “história inventada”, fazendo da trajetória
santificadora do protagonista a representação de uma trilogia mítico-religiosa. Pois, como
afirma Walnice Nogueira Galvão, em "A hora e vez de Augusto Matraga", a trilogia mítica
dos ritos de iniciação - morte, renascimento e vida - reaparece na forma cristã de pecado,
penitência e redenção, ou inferno, purgatório e céu, assim, a realização desse evento literário
confirma não apenas a trajetória de conversão do homem Augusto Esteves em "santo", mas
também, de consolidação do nome Matraga, transcendente ao indivíduo, mitificado.
Embora menos evidente no texto, o caráter mítico é tão importante quanto a motivação
religiosa para a realização do itinerário transformador da personagem rosiana. Enquanto a
declarada intenção do protagonista em aproximar-se do ideal cristão para obter a salvação
evidencia a recriação da matriz bíblica através do texto literário, o narrador, com pequenas
interferências na narração, confere autenticidade a alguns eventos narrativos organizados em
torno da confirmação da trajetória mítica.
Sônia Yoshie Nakagawa (2005), em sua Tese de Doutorado Contos de Clarice
Lispector e Guimarães Rosa, atenta a essa dualidade que percorre o texto rosiano, procura
demonstrar a partir de alguns momentos do conto como o narrador vale-se tanto do aspecto
ficcional quanto do "verossímil" para transmitir a sua “história verdadeira". Tomo,
primeiramente, como exemplo, dois trechos apontados pela autora em que o narrador busca
confirmar a autenticidade dos fatos narrados:
Essa era a conseqüência, de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo
de uma picada de vespa na orelha de um marruás bravio, combinada com a existência, neste
mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.
(Rosa, 2001, p. 386)
E, pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e até
hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.
Vindos do norte, (...), chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram
valentões: (....). (Rosa, 2001, p. 389)
Os fragmentos acima destacados, embora referentes a situações distintas, evidenciam a
ordenação providencial dos eventos da trama em torno do predestinado percurso do
protagonista. O fato de narrar um evento já consumado, tendo, portanto, conhecimento total
da história, permite ao narrador colocar-se não apenas como o "contador do causo", mas,
também, como o organizador da narrativa.
Devido a sua onisciência, o narrador articula minuciosamente todas as informações
que se apresentam no texto, facultando-as ao leitor somente quando são relevantes à trajetória
de Augusto Matraga. Assim, através da ação do narrador, Rosa estabelece uma espécie de
“subordinação narrativa” no conto, tornando, direta ou indiretamente, o desenvolvimento das
demais personagens, como aponta Nakagawa (2005, p. 188), mais do que simples
casualidade, parte integrante de um evento maior no conto, a conversão de Nhô Augusto.
Estrutura narrativa e narrador são postos, portanto, a serviço da trajetória da personagem.
Seja demonstrando a “simples” condução dos eventos em torno do destino de Nhô
Augusto, “E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi” (Rosa, 2001, p. 386)
ou enfatizando a viva lembrança dos moradores do Tombador, que “atuam como testemunhas
da existência do mito (...) perpetuando pela via oral o famigerado encontro” (Nakagawa,
2005, p. 188), o narrador tem como objetivo conferir autenticidade aos dois eventos citados.
Tornando-os “verdadeiros” aos olhos do leitor, o narrador, conseqüentemente, pretende
confirmar em “A hora e vez de Augusto Matraga” a conversão do protagonista, a construção
do mito.
No entanto, esse caráter verossímil, marcado nos fragmentos, ganha maior importância
quando contraposto a outros dois momentos do conto, em que o narrador declara
explicitamente a qualidade ficcional da história:
E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelentemente, porque era uma
brava criatura. (Rosa, 2001, p. 380)
E assim se passaram seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr,
sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não um caso acontecido,
não senhor. (Rosa, 2001, p. 383)
Apresentando ao leitor esses dois instantes da narrativa, Rosa tenciona chamar a
atenção para o fato de que a trajetória mítica do conto mostra-se também em sua totalidade
como resultante de uma criação literária, como constata Nakagawa:
Análoga à necessária predicação de autenticidade dos fatos que participam da
constituição do mito, há, em paralelo, o reconhecimento de uma verdade, igualmente legítima,
resultante da elaboração artística. (Nakagawa, 2005, p. 189)
Evidenciada a proposição ficcional do texto, cabe destacarmos alguns aspectos
narrativos estruturais importantes para o desenvolvimento do enredo e seu intento final. Sendo
a história de Augusto Matraga declarada inventada e manipulada pelo narrador, com um
conhecimento amplo de todos os fatos, podemos predicar sua focalização como onisciente, o
que, paradoxalmente, possibilita assegurar a veracidade dos eventos e, principalmente, da
regeneração do protagonista.
Contudo, apesar do caráter onisciente da narrativa, a maioria dos eventos relatados
pelo narrador são, como constata Débora Ferri (2002, p. 51), perceptíveis a qualquer
expectador comum. A introspecção do olhar narrativo com relação as demais personagens
somente ocorre quando relevante ao processo de transformação do protagonista. Como, por
exemplo, na passagem em que Dona Dionóra toma ciência através de Quim Recadeiro de que,
por mais uma noite, seu marido não retornaria à casa, permanecendo na boemia. Não bastasse
a humilhação explícita no ato de desdenho de Nhô Augusto pela esposa e mesmo pela filha, o
relato do íntimo e silencioso sofrimento de Dona Dionóra ao leitor, acentua, ainda mais, a
crueldade, a negatividade característica da personagem no início do conto:
Dona Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e não
deu ar de seus pensamentos ao pobre Quim. Mas muitos que eles eram, a rodar por lados
contrários e a atormentar-lhe a cabeça, e ela estava cansada, pelo que, dali a pouco, teve
vontade de chorar. (Rosa, 2001, p. 368)
Por meio de pequenas alternâncias na focalização narrativa, como no trecho em
destaque, o narrador confere ao protagonista o traço imprescindível à sua conversão: o mal, o
pecado. Com isso o narrador induz o leitor a posicionar-se, inicialmente, contrário a Nhô
Augusto, para então, ao longo de sua trajetória comover-se com sua conversão e, assim como
a personagem, transformar o próprio olhar. Como podemos notar na focalização dada pelo
narrador a Tião da Theresa no instante de sua repentina aparição no Tombador, em “que foi
logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido” a respeito de Dona Dionóra, de
Miminha e do falecimento do Quim Recadeiro, “morrido de morte-matada” pelos capangas do
Major Consilva:
– Pára, chega, Tião!.. Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço é para
fazer de conta que não me viu, e não contar p´ra ninguém, pelo amor de Deus, (...), ...Não é
mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo...Não tem mais
nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, Tião...
– Estou vendo, mesmo. Estou vendo...
E Tião da Theresa pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da boca, tanto nojo e
desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem adiantou pedir para si mesmo a
jaculatória do coração manso e humilde: teve foi de sair, pra trás das bananeiras, onde se
ajoelhou e rejurou: - P´ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... (Rosa, 2001, p. 384-5)
No trecho destacado, as notícias dadas por Tião de Theresa acentuam a penitência de
Augusto Matraga, pois o ferem “no mais profundo orgulho de ex-coronelzão” (Ferri, 2002, p.
53), pondo à prova a fé em sua redenção. Proferindo a emblemática frase “P´ra o céu eu vou,
nem que seja a porrete!...”, Matraga demonstra que a violência e a valentia perduram em sua
natureza sertaneja, mas agora dignificadas humildemente por uma causa nobre, a salvação da
alma. Ressaltando a humilhação sofrida pela personagem, e sua humildade, o narrador
pretende que, antes mesmo de obter a absolvição divina, Nhô Augusto seja “perdoado” pelo
leitor.
Ao facultar o conhecimento dos fatos a Matraga e ao leitor concomitantemente, o
narrador, apesar do distanciamento entre a história e o expectador, estabelece, portanto, uma
sincronicidade espáçio-temporal entre ambos. Ou seja, a leitura, o olhar do expectador segue
passo-a-passo a trajetória do protagonista vivenciando, de certa forma, juntamente com
Matraga, o milagre da “conversão do olhar”, como define Paulo César Carneiro Lopes:
Para o nosso catolicismo popular, Deus e o mundo estão misturados. De certa maneira,
tudo é milagre, e se assim não fosse, nada seria (...). O importante é abrir os olhos para ver que
assim o é. O milagre é basicamente, a capacidade de ver o milagre. (Lopes, 1997, p. 58)
É exatamente essa qualidade, a sensibilidade de viver o milagre, que Guimarães Rosa
exige de sua personagem, e também do leitor, para alcançar a redenção e assim, no
sincretismo de sua caracterização, unindo o sacro e o profano, consolidar o conto enquanto
uma matéria mítica transformada em ficção.
Dessa maneira, para melhor compreendermos a dualidade temática que sustenta a
criação de Augusto Matraga e, principalmente, a importância da “junção da figura do
Salvador com o homem do sertão”. (Nakagawa, 2005, p. 193) para a totalidade simbólica da
obra, é relevante citarmos algumas das definições dadas por Erich Auerbach (1971) em sua
obra Mimesis, a respeito de duas formas de captação da realidade pela linguagem literária, a
“representação figural” e o “realismo criatural”.
Na literatura clássica antiga havia uma evidente separação formal de representação de
realidade. O “estilo elevado”, expressão retórica da mais “sublime verdade”, era vivenciada e
voltada para uma delimitada classe senhoril, enquanto o “estilo baixo” tratava do cenário
quotidiano do povo sem um aprofundamento crítico-social ou mesmo uma contextualização
histórica. O que, segundo Auerbach, implica não somente num limite estético do realismo
antigo, mas também, e sobretudo, numa limitação da consciência histórica de uma sociedade.
No entanto, com o advento das escrituras cristãs na Idade Média, com a propagação do
Evangelho, esses aspectos estilísticos antitéticos começam a se fundir. A história dos “heróis”
bíblicos, como os apóstolos e, principalmente, Cristo, evidencia pela intervenção de Deus na
vida de homens comuns do mais baixo nível social a união do trágico e do sublime com o que
na Antiguidade somente poderia ser classificado como farsa ou comédia.
Caminhando entre a grandeza divina e a própria fraqueza humana, os textos bíblicos
fazem “um movimento pendular” (Auerbach, 1971, p. 36) entre os dois estilos, consolidando,
paradoxalmente, no aprofundamento dos conflitos pessoais relatados, um movimento
espiritual revolucionário universal, que serve como modelo mais tarde para todos os homens.
Portanto, essa natureza modificadora e historicamente transcendente é que possibilita aos
textos bíblicos formar “conceitos de ordem, tanto para épocas, como para estados interiores”
(Auerbach, 1971, p. 38):
Assim, por exemplo, a divisão dos tempos, em tempos da lei e tempos do pecado,
tempos da graça, da fé e da justiça, os conceitos “amor”, “força”, “espírito” e semelhantes.
(...). A isto está ligado a tudo aquilo que trata da transformação e renovação interna, pelo que
as palavras pecado, morte, justiça e outras não mais exprimem somente ação, acontecimento,
qualidade, mas estágios de uma transformação interna e histórica. Naturalmente não se deve
esquecer, com isto, que o caminho desta transformação leva para fora da história, para os
tempos finais, ou para a sempiternidade, ou seja, para cima (...). (Auerbach, 1971, p. 38)
Dessa maneira, como aponta o autor, dada a necessidade de assimilação do conteúdo
das Sagradas Escrituras por um grupo cada vez mais amplo de destinatários, os locutores e
novos redatores dos textos bíblicos adotam uma postura “descompromissada” com a história
pontuada, com o ato narrado em si. Inseridos num contexto exegético, os textos passam a ter,
então, um valor interpretativo, simbólico para o leitor ou ouvinte. Como podemos notar no
exemplo dado por Auerbach:
Deus cria a primeira mulher, Eva, da costela de Adão adormecido: trata-se de um
acontecimento sensivelmente intuível; o mesmo vale para o momento em que um soldado
crava a lança no corpo de Jesus, morto na cruz, de modo a fazer manar sangue e água.
Contudo, quando ambos os episódios são postos em correlação mediante a exegese, ensinando
que o sono de Adão é uma figura do sono mortal de Cristo, e que assim como da ferida no
lado de Adão nasce a mãe primordial da humanidade segundo a carne, Eva, do mesmo modo,
da ferida no lado de Cristo nasce a mãe dos vivos segundo o espírito, a Igreja – sangue e água
são símbolos sacramentais –, volatiliza-se o acontecimento sensível, sobrepujado pela
significação figurada. (Auerbach, 1971, p. 41-2)
De acordo, portanto, com a definição do autor, a interpretação figural, voltada à
representação simbólica dos fatos, dilui a demarcação histórico-cronológica dos eventos,
universalizando-os, isto é, adequando-os a diferentes contextos históricos a partir de uma
“conexão significativa”:
A interpretação figural “estabelece uma relação entre dois acontecimentos ou duas
pessoas, na qual um deles não só se significa a si mesmo, mas também ao outro e este último
compreende ou completa o outro. Ambos os pólos da figura estão separados temporalmente,
mas estão, também, como acontecimentos ou figuras reais, dentro do tempo. Ambos estão
contidos dentro do fluxo corrente que é a vida histórica, e somente a sua compreensão, o
intellectus spiritualis da sua relação é um ato mental. (Auerbach, 1971, p. 62)
Em seus estudos, Nakagawa observa que a propriedade figurativa destacada por
Auerbach revela-se, no conto de Guimarães Rosa, na propriedade mítica da personagem
Matraga. Segundo a ensaísta, o protagonista “evoca na narrativa sobre a sua origem a
interpretação de uma verdade histórica, inaugurada com a expansão do cristianismo”
(Nakagawa, 2005, p. 193). Assim, conclui Nakagawa, a narrativa não se esgota em uma
atemporalidade mítica, pois da mesma maneira como se apresenta cíclica na confirmação do
mito, o percurso de Matraga revela na base de sua elaboração um caráter histórico,
relacionando acontecimentos ou seres separados temporalmente:
Por essa via, eles não são mais compreendidos isoladamente, numa dimensão linear e
horizontal, em que os acontecimentos são dispostos sucessivamente e, sim, por uma
convergência vertical, que dissolve os níveis espácio-temporais. (Nakagawa, 2005, p. 193)
Entretanto, para esclarecermos em sua totalidade como Rosa aproxima sua obra
moderna das parábolas bíblicas medievais para compor a história redentora de seu “santo
sertanejo” Augusto Matraga, o aspecto figural, representante do Homem sublime e divinal,
deve ser complementado pela aspectualização do “realismo criatural”, ou seja, pelo retrato da
“fraqueza” do corpo, humanizado, levado por vezes à esfera do grotesco e do mundano.
De acordo com Auerbach o realismo criatural nada mais é do que um desdobramento
da representação figural. O figural, nos primeiros séculos da Idade Média, captava um ideal
de sociedade a partir dos conceitos e ensinamentos do Cristianismo, em que o homem,
representado de modo elevado, “tinha valor e metas (...) devendo tornar real, na terra, uma
determinada forma ideal, para prepará-lo para o reino de Deus.” (Auerbach, 1971, p. 214). Por
sua vez, o criatural, já nos últimos séculos do medieval, pautava-se no conceito modelar da
Paixão de Cristo como meio de salvação, retratando, assim, a imagem do filho de Deus, um
homem simples, sujeito à degradação do corpo e, principalmente, à morte como o caminho
para a ressurreição divina:
O que há de peculiar nesta imagem radicalmente criatural do homem (...) reside no
fato de que, por mais respeito que demonstre diante da roupa terrena e social que o homem
veste, perde todo o respeito diante dele mesmo, tão logo a despe; por baixo desta vestimenta
não há nada além da carne, que será ofendida pela idade e pela doença, que será destruída pela
morte e pelo apodrecimento. (...). Não é em relação mútua, nem “perante a lei” que todos os
homens são iguais, pelo contrário, Deus dispôs de tal forma que eles sejam desiguais na vida
terrena; iguais, eles o são diante da morte, diante da decrepitude criatural, diante de Deus.
(Auerbach, 1971, p. 214)
Apresentado os conceitos estilístico-literários estudados por Auerbach acerca da
representação “figural’ e “criatural” dos eventos históricos, veremos que o projeto de salvação
de Nhô Augusto, como também observado por Nakagawa (2005), se dá a partir do contato
com essas duas instâncias.
Em sua trajetória, o protagonista caminha na fronteira entre o mais sublime ideal
cristão, “recriando” os passos de Cristo, e a materialidade do cotidiano sertanejo. Assim,
como aponta Nakagawa, no longo e árduo período de penitência do corpo e da alma em busca
da absolvição dos seus pecados, Nhô Augusto necessita “reorientar a sua existência” e
“recuperar a sua integridade” (Nakagawa, 2005, p. 199) para alcançar a verdade divina, a
salvação.
A chegada do tempo das águas marca no conto o início dessa transformação. A
personagem “meio doido e meio santo”, que até então apenas trabalhava e orava, recluso em
si mesmo, volta a se relacionar, gradativamente, sob uma nova ótica ética e moral, “com o
mundo material, ruidoso, e transitório que o circunda” (Nakagawa, 2005, p. 199). Nhô
Augusto, aos poucos, sublimando o próprio olhar, entrelaçando o divino e o profano,
redimensiona o sertão literário e revela-se um novo indivíduo.
É, portanto, a partir de fatos como as pequenas concessões feitas pelo penitente Nhô
Augusto a si mesmo, como fumar e dormir; através do marcante encontro com Joãozinho
Bem-Bem, marca da violência imperativa do sertão; bem como pela comunhão entre a
personagem e os mais simples e belos milagres naturais de Cristo que “a historicidade
distensa e universal, na consumação dos passos de Cristo pelo penitente, combina-se aos
valores locais do sertão” (Nakagawa, 2005, p. 200), ou seja:
Pela afirmação das características mundanas aliadas à importância dos elementos da
natureza, a composição da personagem, que imita o Salvador, complementa-se : a sua
inscrição no mundo cotidiano, a sua criatulidade, comunica-se com a evocação da figura cristã
ou a sua substância figural. O pendor movimentado de um ponto ao outro, a oscilação entre o
penitente e senhor violento, leva-nos a considerar as duas formas de representação em linha de
desenvolvimento que conforma o conceito de figura e as particularidades do homem do sertão,
em especial, o prestígio decorrente da violência. (Nakagawa, 2005, p. 201)
A recuperação do ideal cristão por meio de Matraga confirma a importância da
religiosidade no conto rosiano. O elemento bíblico presente na composição da personagem se
revela e se completa também na base de sua trajetória, tanto sintetizado na simbologia do
emblema gravado à brasa em sua pele, o triângulo inscrito numa circunferência, quanto pela
disposição triádica de sua história em “pecado, penitência e redenção” (Galvão, 1987, p. 63).
O círculo e o triângulo, historicamente, apresentam uma grande riqueza simbólica, seja
do ponto de vista sociológico, filosófico ou religioso. Apesar de suas pluralidades semânticas,
dada a relevância da matriz cristã no processo de composição do conto, voltamo-nos
principalmente para a representatividade religiosa desses símbolos, visando demonstrar como
Rosa se vale da complexidade simbólica dessas figuras para estruturar a narrativa de “A hora
e vez de Augusto Matraga”.
Voltada para essa relação símbolo / obra, Walnice Nogueira Galvão (1978, p. 44) em
seus estudos destaca o fato de o triângulo ser para o cristianismo um sinal clássico da
Santíssima Trindade, ou seja, a união do Pai, do Filho e do Espírito Santo numa só pessoa. A
escritora destaca ainda que mesmo em civilizações pré-cristãs, o triângulo, enquanto símbolo
temático, representava duas linhas de força produzindo uma outra, a resultante da tensão entre
o positivo e o negativo, ou mesmo, a natureza tresdobrável do universo entre o divino, o
humano e o natural.
Quanto à circunferência em que se inscreve o triângulo, a escritora destaca a
ambivalência de sua forma geométrica. Na Geometria Plana, o círculo é a única das figuras
constituídas por uma única linha curva, em que todos os pontos constituintes são eqüidistantes
do centro, sendo, portanto, ao mesmo tempo o mais simples e o mais complexo polígono
possível, dado o maior número possível de lados.
Ainda com relação à circunferência, cabe considerarmos, embora não pertencente
necessariamente à doutrina cristã, outros significados atribuídos a essa figura que nos ajudam
a estabelecer uma simetria figurativa entre símbolo e personagem. Para algumas seitas
esotéricas, como a Cabala e a Alquimia, ou mesmo para os pensadores pitagóricos, a
circunferência é uma figura arquetípica que remete à divindade, à eternidade, à perfeição e à
totalidade. Ou seja, o círculo representa “a integração de todos os elementos básicos
constituintes do ser” (Lopes, 1997, p. 79).
Os valores atribuídos ao triângulo e ao círculo, a união desses elementos no emblema
de Matraga marca na pele da personagem o sincretismo de sua construção e, principalmente,
sua força unificadora. A personagem experimenta a santificação pelo martírio em uma
trajetória de vida trinitária que segue um movimento ininterrupto e circular, porém
transcendente, visto que “a composição do conto remete os eventos a um tempo mítico, (...), a
circularidade se expõe no já acontecido, no per-feito.” (Galvão, 1987, p. 62). Matraga, sob o
signo da Santíssima Trindade torna-se, então, a ponte entre a exemplaridade redentora da
história bíblica e a realidade “pecadora” do sertão. A redenção alcançada em seu ato final de
morte marca essa união entre o sacro e profano. A nobreza em doar-se pelo próximo, em
morrer em nome de Cristo, faz da violência de Matraga um ato transcendente, sublimador:
O signo visual vai se realizar em forma verbal exatamente na fração de segundo em
que Matraga reconhece sua hora e vez e avança para seu Joãozinho bem-bem e jagunços, (...).
é sob a invocação da Santíssima Trindade que assume o ato final de seu destino: “Êpa!
Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha
vez!...” Tal como os mártires dos primeiros tempos do cristianismo, a invocação das Três-
Pessoas-em-Uma é ao mesmo tempo um testemunho público de partido tomado e uma
imitação de Cristo, em que o mártir se submete ao martírio para chegar ao Pai, tal como Cristo
o fizera. (Galvão, 1987, p. 65)
Um ponto essencial, portanto, para a redenção final de Matraga é a sincronia
estabelecida no conto entre a circularidade temporal, que confere à narrativa tanto um caráter
referencial histórico quanto uma indeterminação mítica, e a circularidade espacial, marcando
uma trajetória de partida do Murici e retorno aos seus arredores. No entanto, embora cíclico, o
conto relata uma história de transformação do protagonista, que no cumprimento do seu
destino trava uma intensa batalha consigo mesmo e a cada etapa superada vai,
gradativamente, renascendo.
Um exemplo claro da relação entre a circularidade narrativa e a progressão da
personagem no conto é o trecho, já mencionado anteriormente, delimitado pelo tempo das
águas; período em que a personagem “aos poucos, afrouxa as amarras de seu sacrifício diário”
(Nakagawa, 2005, p. 184) em virtude do fortalecimento de sua fé em Deus, e, principalmente,
em si mesmo.
O ciclo das chuvas marca um período de maturação e transformação interna do
protagonista. A forma com que Matraga renova seu espírito e reordena seu olhar diante das
coisas mais simples de seu cotidiano evidencia como Guimarães Rosa opera o trabalho
literário da união entre o elemento mítico erudito e a mística popular sertaneja.
O caráter triádico e circular da obra é o que propicia, portanto, a Guimarães Rosa
recriar num contexto regional sertanejo, como citado anteriormente, “ritos míticos de
iniciação – morte, renascimento e vida – em sua forma cristã do pecado, penitência e
redenção” (Galvão, 1978, p. 63) configurando, assim, por analogia, três momentos distintos
em sua narrativa: inferno, purgatório e céu.
O primeiro momento da vida de Matraga, que se passa no arraial da Virgem Nossa
Senhora das Dores do Córrego do Murici, corresponde ao período do pecado / inferno. As
características da personagem nesse momento da narrativa são negativas. Matraga levava uma
vida desregrada moral e religiosamente, entregue aos prazeres físicos e à libertinagem, um
autêntico “valentão irresponsável, encarnando os valores de um grupo e, portanto, perdendo a
individualidade”. (Ferri, 2002, p. 7)
Nhô Augusto é nessa fase expressão de toda uma aristocracia rural “sacralizada”,
como aponta Lopes, por um catolicismo patriarcal, assim como fora em outras épocas os reis
e senhores feudais. Matraga freqüenta o leilão atrás da igreja, na “noitinha de novena”, faz o
sinal da cruz à porta da igreja, há, portanto, uma religiosidade que o cerca, mas “não
promotora da vida e sim legitimadora da morte” e “nesse catolicismo não há lugar para o
símbolo trindade, Deus é único e absoluto e os fazendeiros são os seus representantes.”
(Lopes, 1997, p. 90-1).
De fato, nesse período de sua vida, Nhô Augusto mostra-se extremamente egocêntrico,
prepotente e arrogante. Respaldado por suas posses e posição social considera-se superior às
demais pessoas, desprezando-as, e como um “deus pecador” evidencia toda a negatividade e
maldade enraizada dentro de si.
Retomando o tema da conversão de pecador em santo, e como nas histórias bíblicas de
salvação não há santo que não tenha pecado, como observa Ferri (2002, p. 60), esse momento
infernal de Nhô Augusto apresenta-se como condição inicial para sua conversão. Antes da
redenção há uma trajetória de queda e degradação do protagonista, marcando, assim, sua ida
ao “inferno”.
A queda de Nhô Augusto, que se inicia já na descida da “ladeira que a gente tinha que
descer quase correndo, porque era só cristal e pedra solta”, aproximando a personagem de
uma condição existencial mineral, tem o seu ápice no momento em que após ser surrado
violentamente pelos capangas do Major Consilva, num último sopro de vida, Matraga arranja
forças para saltar no precipício do Barranco.
A decadência de Matraga, o contato com a “morte” nas profundezas de seu “inferno
mítico-órfico”, como veremos mais adiante, é o que ironicamente o inicia no caminho da
salvação, da santificação. Salvo pelo casal de negros, Nhô Augusto humildemente renasce
para uma nova vida, tendo início o período nomeado por Galvão de penitência / purgatório.
A trajetória da personagem para o Tombador, embora acompanhado pelo casal de
negros que cuidaram de sua saúde nas profundezas do barranco, segundo Débora Ferri, é
“solitária”. A autora destaca que “um lugar de penitência deve, obrigatoriamente, ser
acanhado, isolado” (Ferri, 2002, p. 65). Assim, a viagem de Nhô Augusto cria a cada lugar
deixado para trás, “os muitos arraiais jazentes na reta das léguas”, “moendas e fazendas”,
“roçarias e sítios de monjolos” e “mesmo as grandes casas velhas, sem gente mais morando”,
um “isolamento” social, condição necessária para o protagonista refletir e cumprir sua
penitência.
Esse período narrativo relata um momento muito introspectivo da vida de Matraga.
Buscando esquecer os horrores que cometera, ocupava-se em trabalhar e ajudar aos demais
moradores locais e, na certeza de que sua hora e vez chegaria, rezava “isolado” em sua
intimidade. Mas a paz e absolvição da alma que Augusto Matraga buscava no esquecimento
de si mesmo se realizaria enviesada na afirmação de sua humanidade pecadora.
A personagem tenta fechar os olhos para o sertão, mas o mal e a violência social
negadas pelo penitente estão refletidas e enraizadas em sua mais profunda natureza. Portanto,
para alcançar a desejada redenção, Matraga precisa enfrentar os seus pecados, suas tentações,
para transpor o próprio “inferno”. Como afirma Lopes:
O Deus cristão não é um deus que quer o esquecimento da vergonha e da dor. Se ele é
o consolo dos aflitos, é, muito mais aflição dos consolados. O sacramento que deixou para os
seus foi o pão e o vinho como memória de seu corpo flagelado, do seu sangue derramado, do
assassinato violento que sofreu por causa de sua ação subversiva em busca de comunhão.
(Lopes, 1997, p. 108)
Daí o reencontro, pelo capricho do destino, com Tião da Thereza reavivando em sua
memória a humilhação sofrida e ferindo o ínfimo de seu orgulho. E, pouco depois, a chegada
ao Tombador de Joãozinho Bem-Bem, que oferece o poder, a força necessária para vingar-se
de todos aqueles que o tinham agredido.
Nessas situações, Matraga, “como produto do mesmo meio social” (Ferri, 2002, p.
66), o sertão, está diante de si mesmo, pois compartilhava dos mesmos valores e princípios de
Tião e Joãozinho, sendo que, o que o difere neste momento das demais personagens é a
reordenação, e não a negação, desses ideais pela fé. Daí o processo de salvação do
protagonista iniciar-se de dentro para fora, pois somente (re)conhecendo o próprio mal,
fazendo-se maior que ele, é que Matraga começa verdadeiramente a se redescobrir.
Seguro em sua fé, impulsionado pela valentia cabocla, Matraga humildemente supera
suas tentações. A transformação do olhar, vivenciada pela personagem a partir da integração
entre o divino e o cotidiano material, outorga-lhe a condição para, enfim, compreender a
essência de seu destino, de sua vida: a conversão pela morte.
Maurice Blanchot (1987), em O Espaço Literário, enfoca de maneira muito rica essa
relação entre os espaços interior e exterior e, principalmente, suas implicações no processo de
conversão do olhar do indivíduo diante da dicotomia vida e morte. Segundo Blanchot,
desconsiderando os aspectos religiosos que tocam a temática, o conceito de morte
convencionalizado socialmente, como algo amedrontador, como o fim da vida, é reflexo dos
limites impostos por uma visão, por uma consciência superficial e referencial da realidade.
Para que a conversão do olhar seja possível, de acordo com o autor, é necessário que
“o interior e o exterior se reúnam num só espaço contínuo” (Blanchot, 1987, p. 136). Para
tanto, devemos modificar a maneira como captamos o mundo que nos cerca, como o vemos:
Pela conversão, tudo fica voltado para o interior. Isso significa que nos voltamos para
nós mesmos, mas que voltamos também tudo, todas as coisas em que participamos. Esse é o
ponto essencial. O homem está ligado às coisas, está no meio delas e, se renuncia à sua
atividade realizadora e representativa, se se retira aparentemente para si mesmo, não é para
livrar-se de tudo o que não é ele, as humildes e caducas realidades mas, antes, para arrastá-las
com ele, fazê-las participar dessa interiorização onde perdem seu valor de uso, sua natureza
falseada, e onde perdem também seus limites estreitos a fim de penetrar em sua verdadeira
profundidade. (Blanchot, 1987, p. 137)
Augusto Matraga encontra em si mesmo o caminho para a redenção. Assim como o
ciclo das chuvas que cessa, Matraga encerra em sua alma e em sua carne o período de
penitência. “E deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o
mundo (...)” (Rosa, 2001, p. 399), o seu olhar mudara, o milagre da verdadeira conversão e
sublimação da alma estava acontecendo, “era a manhã mais bonita que ele já pudera ver”.
Matraga está pronto para partir em busca de sua hora e vez:
Agora não precisa mais negar o homem para afirmar a Deus, não precisa negar a terra
para afirmar o céu. Só na vida plena do homem Deus será louvado, e o céu será a criação do
reino da liberdade – na terra. (Lopes, 1997, p. 111)
Inicia-se assim, na narrativa, a etapa final da vida de Augusto Matraga, que Galvão
intitula como “céu”, fase em que a personagem obtém a redenção dos pecados e, como
“profetizado” ao longo do conto, eleva sua alma à imortalidade divina. Se na vinda para o
Tombador evidencia-se o abandono, o isolamento social e espiritual do protagonista, agora,
no trajeto de sua volta, montado em um jumento, acompanhando as “maritacas viajadoras”
que seguiam para o sul, aos poucos ele vai aparentando-se com a natureza, reencontrando as
pessoas, por fim, descobrindo um novo sertão, misturado, que revela na carcaça calejada do
sertanejo, no solo duro da terra batida a sublimação de Deus:
Cantar, só, não fazia mal não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava muitas
coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos caminhos do sertão.
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás
selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio, (...), para rezar perto de um pau-d’arco
florido e de um solene pau-d’óleo, que ambos conservaram muito de-fresco, os sinais da mão
de Deus. (Rosa, 2001, p. 401)
A evidente contraposição entre o percurso de ida e a de retorno da personagem
confirma o caráter ternário e circular de sua trajetória. Como afirmara Walnice Nogueira
Galvão (1978, p. 63), embora circular, o trajeto de Augusto Matraga é de transformação. De
volta aos arredores do Murici, Matraga nos mostra um sertão mais belo, “contemplado do
alto”, por um olhar despido do pecado, santificado através de um árduo e complexo processo
de reconhecimento de “Deus” em si mesmo, afinal, “só quando o homem se torna consciente
de ser “instrumento livre” do amor (divino) é que a vida pode caminhar para sua plenitude.”
(Lopes, 1997, p. 75).
Assim, Matraga chega, ao momento crucial de sua caminhada, o reencontro com
Joãozinho Bem-Bem. Apesar da violência imperativa dessa passagem, com uma condução
narrativa bem elaborada e uma ambientação espacial peculiar, Rosa emoldura um dos mais
belos momentos do conto. Transformando o próprio interior, Matraga “converte” o sertão que
o cerca. A morte, a violência imperativa do sertanejo torna-se parte de sua redenção. Então, na
mais sublime manifestação do amor pleno de Deus, Matraga morre para a salvação de seu
semelhante.
Diante da negativa do irmão-amigo Joãozinho Bem-Bem em poupar a vida do
morador local e dadas às súplicas misericordiosas do pobre velho pela vida de seu filho,
Matraga, que deixara no Tombador sua “fraqueza subserviente”, convicto em sua fé, não
hesita em enfrentar Joãozinho e seu bando:
– Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que
chegou minha vez!...
E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros,
com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio
preso e pulando como dez demônios soltos.
(...) E atroava, também, a voz de seu Joãozinho Bem-Bem
– Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!
(...) E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na
mão.
(...) A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis a boca do
estômago(...) seu Joãozinho Bem-Bem que caía ajoelhado, (...). (Rosa, 2001, p. 410)
No conflito entre “deuses”, o deus guerreiro representado por Joãozinho Bem-Bem e o
deus misericordioso personificado por Augusto Matraga, tem-se a unidade entre o bem e o
mal, entre o céu e a terra, expressão exata do caráter antitético que suporta a cultura popular.
O cristianismo popular vivenciado pelo protagonista acolhe a violência sertaneja em seus
princípios não como uma expressão indiscriminada do poder, mas sim como “força”
promotora da vida.
Augusto Matraga, como aponta Lopes, compreende a não-violência em toda sua
profundidade, que tem como base “a fraternidade universal, resultado da origem divina de
toda e qualquer vida.” (Lopes, 1997, p. 109). Com isso, Matraga transcende o mal que opera a
violência de seu ato para fazer da morte uma “celebração da vida”:
Nas Elegias, a afirmação da vida e da morte revelam-se como formando apenas uma.
(...). A morte é o lado da vida que não está voltado para nós nem é iluminado por nós; cumpre
tentar realizar a maior consciência possível de nossa existência que reside nos dois reinos
ilimitados e se alimenta inesgotavelmente dos dois. (Blanchot, 1987, p. 130)
Nota-se, portanto, que a religiosidade representada em “A hora e vez de Augusto
Matraga” é a expressão de todo o sincretismo cultural que atravessa a narrativa. Apesar de
respeitada a expressividade de cada cultura é na confirmação do comum, de uma “unidade
universal”, que a obra rosiana se realiza e que Augusto Matraga, ícone dessa síntese, obtém
sua redenção.
Daí percebermos, em diversos momentos do conto, a recorrência do autor a passagens
do cristianismo bíblico bem como a elementos da mitologia pagã para compor a “trilogia
mítica” de sua personagem. A presença, portanto, da matriz bíblica e da mitologia diluídas
simbolicamente na construção narrativa “regional” de Guimarães Rosa norteia a complexa
relação entre o erudito e o popular, entre o elemento mítico e o místico em “A hora e vez de
Augusto Matraga”.
Assim para compreendermos como o escritor mineiro processa e condensa toda essa
relação cultural em uma linguagem literária transcendente, destacamos, primeiramente,
algumas correspondências entre a sua obra e importantes figuras do texto bíblico e, num
segundo momento, a sua proximidade com a história de alguns mitos.
Com relação a referencialidade bíblica, a trajetória de Augusto Matraga, como
apontado anteriormente, recupera tematicamente algumas parábolas que narram histórias de
santos e, principalmente, passagens da vida de Cristo. Trechos, por exemplo, como a partida
de Matraga do Tombador para o derradeiro confronto com Joãozinho Bem-Bem. Montando
um burrinho, que só aceitou como empréstimo após mãe Quitéria “lhe recordar ser o jumento
um animalzinho meio sagrado, muito misturado às passagens de Jesus” (Rosa, 2001, p. 401),
esse trajeto da personagem retoma a passagem bíblica “Os últimos dias de Jesus em
Jerusalém” (Bíblia Sagrada, 1964, p. 1396), narrada no Evangelho de São Lucas, em que
Jesus pede a dois de seus discípulos que busquem um jumentinho para que o servisse de
montada em sua viagem para Jerusalém, onde, como já havia profetizado, seria crucificado e
morto. Matraga, tencionando imitar os passos de Cristo, segue, então, guiado pelo animal
para a sua morte e redenção.
Débora Ferri (2002, p. 120-31) em suas análises sobre a relação entre Matraga e as
histórias de santos trabalha de forma muito clara essa aproximação entre a matriz bíblica e a
obra rosiana estabelecendo relações muito pertinentes. Dentre os trechos referidos por Ferri,
destacam-se, dadas suas riquezas figurativas e relevância para o destino do protagonista, os
encontros de Matraga com Joãozinho Bem-Bem e com Tião da Thereza, durante o período de
penitência da personagem no Tombador.
Esse momento da vida de Matraga, em que ele parte para o Tombador em busca do
isolamento social e espiritual para cumprir sua penitência, nos faz recordar o episódio bíblico
narrado em São Lucas, em que Jesus se retira ao deserto para reflexão, jejuando por quarenta
dias e sofrendo as tentações do demônio:
Cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto,
onde foi tentado pelo demônio, durante quarenta dias. Durante este tempo ele nada comeu e,
terminados estes dias, teve fome.
Disse-lhe então, o demônio: “Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne
pão.” Jesus respondeu: “Está escrito (Deut. 8, 3): Não só de pão vive o homem, mas de toda a
palavra de Deus.”
O demônio levou-o em seguida a um alto monte, e mostrou-lhe num só momento todos os
reinos da terra, e disse-lhe: “Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me
foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu.”
Jesus disse-lhe: “Está escrito (Deut. 6, 13): Adorarás o senhor teu Deus, e a êle só servirás.”
O demônio levou-o ainda a Jerusalém ao ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és o
Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito (Sl 90, 11-12): Ordenou aos seus
anjos a teu respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o
teu pé nalguma pedra,” Jesus Disse: “Foi dito (Deut, 6, 16): Não tentarás o senhor teu
Deus.”
Depois de tê-lo assim tentado de todos os modos, o demônio apartou-se dele até outra
ocasião. (Lucas, Cap. 4 , p. 1372)
Assim como Cristo fora atormentado pelo demônio em seu momento de fome e
fraqueza, Augusto Matraga também enfrenta seus “demônios” antes de obter a salvação. No
caso do conto rosiano, Tião da Thereza e Joãozinho Bem-Bem representam o diabo e suas
tentações. O reencontro com o velho conhecido do Murici, as lembranças tristes e
humilhantes do passado, ferindo profundamente a sua honra, tentam Matraga a valer-se de sua
força, de seu ímpeto e poder de coronelão para mostrar sua grandeza vingando-se daqueles
que lhe fizeram mal. Essa passagem do conto remete-nos, de certa forma, à segunda tentação
sofrida por Cristo no deserto, em que é desafiado pelo demônio a provar os poderes de Deus
Pai saltando do monte.
Matraga sofre também a tentação da carne, isso é, sofre com as necessidades e desejos
do corpo, segundo Ferri (2002, p. 127). Enquanto no deserto, Jesus, com fome, é desafiado
pelo demônio a transformar pedras em pães, Matraga, no sertão “sofre” com a vontade de
beber, fumar e com as saudades de mulheres, ou seja, os prazeres mundanos.
Contudo, a tentação mais difícil de ser vencida por Augusto Matraga, segundo o
próprio, foram as ofertas feitas por Joãozinho Bem-Bem, seu alter-ego, o “anti-santo que
representa a objetivação da maldade ativa que o protagonista tenta expulsar de dentro de si”
(Ferri, 2002, p. 124). Joãozinho Bem-Bem, por três vezes, como o demônio na passagem
bíblica, põe à prova a fé do amigo penitente. A primeira oferta feita a Matraga tenta-o,
novamente, a se vingar de todos aqueles que o humilharam:
O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou lhe
prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho, pesado e pago, que o senhor é mas é
pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos combinaram, e isso para mim é o sinal que serve. A
pois, se precisar de alguma coisa, se tem um recado ruim para mandar para alguém... Tiver
algum inimigo alegre, por aí, é só dizer o nome e onde mora. (Rosa, 2001, p. 395-6)
A segunda oferta é feita quando Joãozinho Bem-Bem convida Matraga a se unir ao
seu bando:
– Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está se vendo que não viveu
sempre aqui nesta grota, capinado roça e cortando lenha...(...). Mas, comigo é que o senhor
havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
(...)
(...) O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em
copo grande! Ah que vontade de aceitar e ir também...(Rosa, 2001, p. 396-7)
No entanto, a maior de suas provações ainda estava por vir e, no reencontro com
Joãozinho Bem-Bem e seu bando, já nas vizinhanças do Murici, seu amigo-irmão reitera o
convite para que seguisse viagem com seus homens para o norte, afastando-o de sua trajetória
de salvação, que era para o sul. A forma com que os diálogos são conduzidos, conciliados à
ambientação do cenário, acentua todo o poder de Joãozinho Bem-Bem que, de maneira astuta,
atinge Matraga no seu ponto mais fraco, o seu orgulho e vaidade de coronelão. O “diabo”
tenta-o pela terceira vez:
Seu Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô Augusto,
cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de quem estivesse com a mente
muito longe.
– Escuta, mano velho...
Seu Joãozinho parou bem em frente de Nhô Augusto, e continuou:
– ...eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o senhor caminhou
para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não me
contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido brigador de ofício. Olha:
eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não há outro
homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. É só o senhor mesmo querer... (Rosa,
2001, p. 406-7)
Vencer as tentações, sufocar o seu orgulho e vaidade abrindo mão de todo o poder
oferecido por Joãozinho Bem-Bem faz com que Matraga, exorcizando o próprio mal,
consolide sua fé, não apenas pela humildade do amor ao próximo, mas também, dado o tom
irônico da narrativa, pela esperteza da sabedoria popular ao driblar as tentações do
“demônio”:
Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam – talvez
ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre – e, por fim, negou com a cabeça,
muitas vezes:
(...)
E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau ao
passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio. (Rosa, 2001, p. 407)
A exemplaridade presente em “A hora e vez de Augusto Matraga” devido a sua
aproximação às parábolas bíblicas, aos passos de Cristo, confirma a importância da temática
cristã da conversão do pecador em santo como um dos pilares temático-formais da obra
rosiana. São várias as correlações estabelecidas entre o conto e a história da conversão dos
santos, como a de Santo Ignácio de Loyola, apontado por D. Ferri (2002), ou mesmo a de São
Paulo, como fizera Walnice Nogueira Galvão (1978), sendo ambas, de fato, sustentáveis.
No entanto, consideramos, dado o grau de semelhança e de importância para a
completude da obra, a aproximação entre a trajetória de Augusto Matraga e a história da vida
de São Francisco a de maior significação para nossa análise. A história de São Francisco de
Assis oficializada pela Igreja registra-o como o primeiro santo a apresentar os estigmas de
Cristo, um fenômeno chamado pela Igreja de imitatio Christi que, como cita Walnice
Nogueira Galvão, prega o seguinte princípio:
(...) um verdadeiro cristão deve imitar Cristo, escolher a pobreza, o insulto, o
sofrimento, a privação, até, como no caso dos grandes místicos, conseguir sofrer o mesmo que
Cristo sofreu. E o sinal exterior dessa identificação final é a estigmatização. (Galvão, 1978, p.
55-6)
Mas são nas histórias não autorizadas pela Igreja, como a de São Francisco, de
Kazantzakis, que Walnice Nogueira Galvão (1978, p. 56-7) aponta outras correspondências
entre a vida desse santo e a trajetória da personagem rosiana.
Na versão de Kazantzakis, Francisco é apresentado como um jovem rico e libertinoso.
Confuso em seu interior, devido à contrariedade das influências recebidas do pai rico e
materialista e da mãe devota e pia, vive um intenso conflito ético-religioso entre o bem e o
mal, a carne e o espírito, Deus e o Diabo. Decide-se, então, por seguir o caminho de Deus,
mas é acometido por uma forte doença e, sofrendo profundas alucinações, é atormentado pela
morte, que lhe tenta convencer de que não havia mais tempo para a sua salvação.
No entanto, Francisco, ouvindo sua mãe que cantava uma canção de ninar, recupera a
consciência. Sente-se como um bebê, como se tivesse nascido novamente. Porém, ainda
continua muito doente e tem, então, outra visão, a de um pobre homem, imundo e ferido que
lhe ordena que cuide dele. Francisco obedece e vê, ao banhar o homem desconhecido, que o
mesmo tem marcas de ferro em brasa nas têmporas, chagas nas mãos e nos pés, e na testa uma
ferida em forma de cruz. Tratado por Francisco, antes de partir, o homem revela que eram
irmãos e que a face de um refletia a imagem do outro.
Restabelecida sua saúde, motivado pela mensagem recebida em sonho, como aponta
Galvão, Francisco decide partir, tornando-se um homem andrajoso, moribundo, coberto de
ferimentos. Chega a ficar quase cego devido a uma doença nos olhos e como tratamento
aplicam-lhe ferro em brasa nas têmporas. Por fim, a marca da cruz surge em sua testa quando,
após ser tentado por uma prostituta, a quem converte, Francisco retira-se para uma fria
montanha para enfrentar seus demônios. Debate-se dias e noites até desmaiar e, quando
desperta,o ferimento da cruz está em sua testa.
Próximo da morte, São Francisco lembra ao seu Irmão Leo que, de braços abertos, o
corpo humano é uma cruz, e nela Cristo fora crucificado. Roga a Cristo para que sinta no
corpo e na alma o sofrimento que Ele sentiu na Paixão. Morre estigmatizado.
Dado o relato da vida de São Francisco, do processo de transformação vivenciado
através da devoção divina, podemos estabelecer, claramente, um paralelo entre a experiência
vivida pelo santo bíblico e a trajetória redentora do “santo” literário rosiano. O ponto
primordial que os une é a intenção, o desejo profundo em se fazer à “imagem e semelhança”
de Cristo.
Francisco e Nhô Augusto partem das fraquezas de vidas pecaminosas, dos conflitos
internos entre a sublimação espiritual e a degradação carnal para, à beira da morte,
renascerem para uma vida de adoração a Deus. É interessante notarmos, como também
destacara Débora Ferri (2002, p. 128), que a transformação, a opção por seguir os passos de
Cristo ocorre quando ambos recebem em sonho uma “mensagem” divina:
E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele já viajou,
do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual um Deus valentão, o mais
solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava
ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido,
garantindo tudo. (Rosa, 2001, p. 397-8)
As correspondências entre São Francisco e Augusto Matraga não cessam aí. Outro
aspecto importante de aproximação entre eles é o fato de terem na abstinência a grande prova
de sua fé. São Francisco, o “segundo marido da Pobreza, viúvo desde a morte do Pobre da
Galiléia”, (Dante, in Grieco, 1950, p. 7), não tinha vaidade, trabalhava com grande prazer para
ajudar seus semelhantes, viveu e morreu para Cristo, crucificado na mesma “cruz”. Não por
acaso, é considerado o apóstolo “‘mais filial’ dos filhos de Jesus” (Grieco, 1950, p. 14).
Pregava a pobreza extrema e o amor universal, deixando a todos uma grande lição de
felicidade:
Aceitava, louvava e proclamava a beleza e o valor de tudo que existe, chamando de
irmãos não só os homens como também cada flor, cada pássaro, cada estrela, a Lua, o Sol, o
fogo. Consta que antes de morrer, pediu desculpas ao irmão Corpo por tê-lo mortificado com
vistas à salvação da alma. Deve ser lembrada a alegria com que recebeu a chegada da morte e
como o espantava que as pessoas presentes chorassem e se lamentassem. Diz-se que, nesse
momento seu rosto resplandecia. (Galvão, 1978, p. 57)
Assim como São Francisco, a personagem de Guimarães Rosa busca na abstinência e
na penitência do corpo o caminho para sua redenção. Matraga, como pedira o padre,
trabalhava humildemente para ajudar os outros, sem ganância nem vaidade, tampouco rendia-
se ao cansaço e aos prazeres da carne:
Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma
ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os outros.
Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir, dando de amor o que
possuísse. (Rosa, 2001, p. 382)
Convicto em sua fé, fazendo-se maior do que as tentações, Matraga parte para a morte.
Alegre, com a alma resplandecente, contempla Cristo, por meio de uma vida simples em
comunhão à natureza, como demonstra a seguinte cena:
E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que
caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as
pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem
num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. (Rosa, 2001, p.
402)
Apesar de se diferenciar de São Francisco por fazer uso da violência em seu derradeiro
ato de conversão, Augusto Matraga, pela nobreza e verdade cristã contida em seu coração,
torna-se digno da benção dos céus. Considerando, como já apontado, os papéis “divinos” de
Joãozinho Bem-Bem e Augusto Matraga no embate final, a “vitória” do protagonista,
evitando a morte do morador local e a desonra de sua família, simboliza, mesmo que por meio
da violência de sua natureza sertaneja, a vitória da virtude de um deus “manso e puro de
coração” sobre o deus dos exércitos.
Além disso, a alegria com que Matraga e São Francisco acolhem a morte do corpo,
crentes no perdúrio de suas almas no Reino de Deus, abençoando e perdoando os pecadores
até o último momento de suas vidas, dá a real dimensão “do grau de interiorização ou
exteriorização da luta para adquirir a santidade” (Galvão, 1978, p. 59).
As analogias apontadas entre a vida de Augusto Matraga e a de São Francisco, sem
dúvida confirmam a aproximação entre o texto bíblico e o conto rosiano. No entanto, chama-
nos a atenção, particularmente, outro aspecto da vida de São Francisco, talvez este o que mais
justifique a afeição de Rosa pelo santo franciscano, o fato deste ser, pela riqueza de seus
versos, o mais poético de todos os santos, o santo dos poetas e dos artistas.
“Poeta da contemplação e poeta da ação” (Grieco, 1950, p. 13), as palavras de São
Francisco refletem a simplicidade inspiradora de quem enxergava na alegria do canto dos
pássaros, na vivacidade colorida das flores ou mesmo na “insignificante” pequenez de um
inseto a grandeza da obra de Deus. Sem formação teológica ou doutoral, não preparava os
seus sermões, improvisava-os, pregando a pobres analfabetos os quais acreditava amar melhor
a Deus que qualquer professor de teologia, menciona Grieco.
Fora muito antes de Dante, como cita o escritor em sua obra, São Francisco de Assis e
a Poesia Cristã, o iniciador da poesia peninsular, tendo na pureza e lirismo de seus versos a
chave para compor um “poema para gente culta em que a alma popular se reconhece”
(Grieco, 1950, p. 17), como o fizera em sua obra prima o “Cântico do Sol”, pregando a
sublimação do amor universal.
De fato, talvez seja essa a maior identificação entre o conto de Rosa e a matriz bíblica,
a mescla entre a sublimidade da arte (criação) divina e a simplicidade da temática popular.
Não é apenas a personagem Matraga, ou sua trajetória, que está sendo comparada à figura do
santo franciscano. Nesse momento, a estética literária de Rosa é posta em contato com a
linguagem poética de São Francisco.
Assim como o santo cristão em seus cânticos de fé, o escritor mineiro faz de sua arte
erudita, de seu objeto literário, a expressão da “alma popular”, redimensionando os seus
valores culturais. E caminhando por uma estrada, no compasso poético das cantigas
populares, lado a lado com Deus e o Diabo, Guimarães Rosa lança a sorte de suas
personagens.
Em “A hora e vez de Augusto Matraga”, Nhô Augusto, “santo-pecador”, simboliza,
portanto, pela conversão de sua humilhante “marca de morte” em sinal de vida na Santíssima
Trindade, não apenas a transcendência temática do oprimido sertanejo em “santo”, mas
também, formalmente, o caráter universal da literatura rosiana.
Focado nesse aspecto de abertura da obra de Guimarães Rosa às mais distintas
expressões artístico-culturais, além da simbologia bíblica, que aproxima a trajetória de
Augusto Matraga das histórias de santos e do ideal cristão da Santíssima Trindade, o caráter
mítico que se revela implícito na narrativa é fundamental para a confirmação da
transformação do protagonista.
Se, pela via da cultura popular sertaneja, Matraga vivencia explicitamente a
religiosidade da fé cristã, através da literatura híbrida do escritor, o protagonista é posto em
“contato” também com a simbologia dos deuses míticos pagãos. Mesmo que
inconscientemente, Matraga revive no sertão, ao longo de sua trajetória, a história de algumas
divindades como Dioníso/Baco e Orfeu. O direcionamento da narrativa, em parte, pela
presença do elemento mítico e toda riqueza simlica que o cerca, é o que faz, concomitante à
figurativização bíblica do fim predestinado de Augusto Matraga, um ato de grandeza
transcendente.
Voltando-nos, primeiramente, à correlação entre o conto e o mito dionísico, faz-se
necessário relatarmos a história do “deus do vinho”, como também era chamado Dioníso, para
demonstrarmos como Rosa incute de forma sutil esse traço mítico na caracterização da
personagem Augusto Matraga. Vale destacar, antes de mais nada, que apesar de o mito
dionísico apresentar algumas variações dentre as inúmeras versões que o descrevem, para
melhor fundamentar nossa análise, adotamos a versão apresentada por Junito Brandão (1991,
p. 286-91), que relata de forma completa a trajetória do deus grego.
Fruto do sincretismo órfico-dionisíco dos amores de Zeus e Perséfone, nasceu o
primeiro Dioníso, chamado também de Zagreu. Para proteger seu filho do ciúme mortal de
Hera, Zeus o enviou para ser criado por Apolo e Curetes, escondido na floresta do monte
Parnaso. Mas Hera, esposa de Zeus, descobre o esconderijo e ordena aos titãs que o matem.
Disfarçando os rostos, polvilhados de gesso, para não serem reconhecidos, os Titãs atraem o
jovem deus com brinquedos místicos (ossinhos, pião e espelho). Tendo-o raptado, os enviados
de Hera despedaçam-no e o cozinham num caldeirão para devorá-lo.
Tomando conhecimento da “morte” de Zagreu, Zeus fulminou os Titãs e de suas
cinzas nasceram os homens. Daí os “dois lados”, o bem e o mal existentes no ser humano.
Pois, a parte titânica é a matriz do mal, e a remanescência de Zagreu, devorado pelos titãs, o
lado bom de cada um de nós. Zeus, então, engole o coração de seu filho e tendo um romance
com a princesa tebana Sêmele, fecunda-a com o segundo Dioníso. Mas o ódio de Hera ainda
persegue Dioníso. Ciente do romance entre seu esposo e a princesa, Hera decide matar a
amante.
Transformada na ama de Sêmele, Hera questiona a real divindade do homem que se
apresentava a ela como sendo o deus do Olimpo. Duvidosa, Sêmele é induzida pela deusa
grega a pedir a Zeus que se apresente com todo o seu esplendor, isto é, em sua forma divina.
Assim ela o faz. Zeus, que havia jurado pelas águas do rio Estige jamais contrariar-lhe os
desejos, tenta convencê-la a retirar o pedido, pois, como mortal, a princesa não resistiria à
“epifania” de um deus imortal, porém ela permanece irredutível. Então Zeus apresentou-se a
Sêmele em seu leito com seus raios e trovões. O palácio de Sêmele se incendiou e a princesa
morreu queimada.
No entanto, Dioníso, feto ainda vivo no ventre da amante, fora salvo por Zeus que,
num gesto dramático, retirou-o de Sêmele e o colocou em sua coxa para que completasse a
gestação. Quando Dioníso nasceu, Zeus ordenou a Hermes que levasse seu filho em segredo
para o reino de Átamas para ser criado pela esposa do rei Ino, irmã de Sêmele. Mas,
novamente, Hera descobre os planos de Zeus. Irritada com a acolhida ao filho adulterino do
esposo, enlouquece Átamas e sua esposa, levando-os a assassinar os próprios filhos.
Temendo um mal ainda maior de Hera ao seu filho Dioníso, Zeus transformou-o em
bode e mandou que Hermes, dessa vez, o levasse para o monte Nisa, sendo confiado aos
cuidados das Ninfas e dos Sátiros que viviam por lá numa profunda gruta. Crescendo
“anonimamente”, certo dia Dioníso nota, na úmida vegetação que se entrelaça nas paredes da
caverna, galhos de viçosas vides, onde pendiam alguns cachos de uva maduros. Espremendo,
então, as frutas em taças de ouro, extraindo-lhe o néctar, Dioníso inventa o vinho. Sátiros,
Ninfas e o próprio Dioníso bebiam exageradamente e dançavam vertiginosamente
embriagados do delírio báquico.
Porém, com a descoberta do vinho, o filho de Zeus desperta novamente a ira e o ciúme
de Hera, que lhe lança um encantamento, enlouquecendo-o. Delirando, ele vaga por um longo
tempo penetrando no Egito e na Síria, mas ao chegar à Frigia é purificado pela deusa Cibele,
que lhe ensina o seu culto orgiástico. Recuperado, Dioníso parte pelo mundo difundindo o
culto dionísico das orgias, do êxtase e da liberação. Foi um período de inúmeros conflitos com
reis que repudiavam suas práticas, mas valendo-se da ajuda do próprio Zeus e de seus
encantamentos e poderes místicos, o mais jovem deus do Olimpo consolida o seu culto por
toda terra.
Dioníso se tornara um deus poderoso, tanto que antes de escalar definitivamente o
Olimpo, desceu ao mundo dos mortos para buscar o “espírito” de sua mãe Sêmele para levá-la
consigo para o “monte” dos deuses imortais. Arrancada do Hades, Sêmele ascende ao Olimpo
como uma deusa. Na terra, o culto a Dioníso jamais teve fim, apenas modificou-se, pois,
atribui-se às ruidosas e libertinosas procissões que festejavam o deus do vinho a origem do
drama satírico, da tragédia e da comédia.
Apesar da brevidade, o relato do mito de Dioníso revela-nos importantes
correspondências com o conto rosiano. Um primeiro aspecto a ser destacado é a aproximação
que se pode estabelecer a partir de suas respectivas “simbologias” nominativas.
Considerando o fato de que Matraga somente é nomeado assim pelo narrador no ápice
de sua divina redenção e, ainda, dado à sonoridade contextual da “casa que matraqueou que
nem panela de assar pipocas” (Rosa, 2001, p. 410), do trecho que consolida o seu processo
transcendente, podemos identificar, como também fizera Walnice Nogueira Galvão (1978, p.
62), no nome Matraga, além do signo Matraca, objeto barulhento usado pelos penitentes
medievais e que até hoje é utilizado em algumas cidades do interior brasileiro levada à frente
das procissões na Sexta-Feira da Paixão, indícios do léxico grego τραγος (= trágos) presente
na base etimológica da palavra bode e também da palavra, τραγψδεω, que significa o ato de
cantar durante a imolação de um bode nas festas de Dioníso ou a representação de uma
tragédia.
O nome Dioníso, do grego ∆ιόωoos, de acordo com Juanito Brandão (1991, p. 286),
embora não esteja etimologicamente resolvido, possivelmente “é um composto do genitivo
∆ιο (Dio(s) – nome do céu em trácio e Νυσα (Nysa) que significa filho. Logo Dioníso seria “o
filho do céu”. Ao identificarmos, portanto, na decomposição do nome Matraga a raiz
nominativa tragos/bode, podemos estabelecer uma correlação com a figura mítica de Dioníso
e toda a carga simbólica de sua história, começando, assim a “reescrever”, pela via
mitológica, a saga sertaneja de Augusto Matraga.
Cabe reiterarmos que, conjuntamente às correspondências católico religiosas, a
presença do elemento mítico torna ainda mais fecundo o objeto artístico rosiano,
enriquecendo e ampliando os limites do seu “regionalismo” literário. Se, de uma maneira
consciente, Matraga segue os passos de Cristo, intencionalmente Rosa cruza sua trajetória
com a figura mítica de Dionísio. Embora Cristo e Dioníso representem na sociedade atual
“realidades” históricas distintas, o Deus único e verdadeiro e um deus fictício,
simbolicamente, ambos, são “filhos do céu”, do Deus maior com uma mortal.
Marcas da mais sublime prova de amor e devoção ou de um simples relacionamento
amoroso adultérico, o que mais importa ao escritor mineiro nessas matrizes são as dicotomias
divino X humano, sacro X profano que as sustentam. Rosa faz, portanto, de contraposições
temáticas como essas a matéria ideal para narrar a vida do coronelzão sertanejo Nhô Augusto
e os seus conflitos. Nota-se que, somente negociando com “Deus e o Diabo” é que o
protagonista supera suas crises e tentações. Reconstituindo, gradativamente, sua identidade,
Matraga confirma sua redenção; unindo o mítico e o místico, Rosa funde sua narrativa como
matéria universal.
Outro aspecto relevante entre o mito dionísico e o conto é o fato de ambos os
personagens, ao longo de suas vidas, passarem pelo rito iniciático do fogo. No mito, quando
ocorre sua primeira “morte” e cozimento, Dioníso é iniciado num processo de sublimação
divina, que irá se consolidar na imortalidade a partir de segunda “morte”, no episódio em que
Sêmele é queimada pelos raios de Zeus. Gestado, na coxa do grande deus, Dioníso, como
observa Brandão (1991, p. 290), se tornará uma emanação direta do pai, sendo-lhe outorgada
a imortalidade dos deuses.
Em “A hora e vez de Augusto Matraga”, Nhô Augusto também passa duas vezes pelo
“ritual das chamas” antes de ascender à imortalidade divina. A primeira é simbolizada pelo
momento em que é violentamente surrado e marcado a ferro em brasa pelos capangas do
Major Consilva. A partir desse trecho da narrativa, à beira da morte é que o protagonista tem
sua vida reordenada e iniciada num árduo e longo processo de resignação que o conduzirá à
redenção.
Contudo, essa transformação se completa, como no mito, apenas em sua segunda
passagem pelo fogo, simbolizado, agora, pela fumaça dos tiros das armas do bando de
Joãozinho Bem-Bem. Ao partir do Tombador, de volta ao Murici, Matraga caminha para sua
hora e vez, segue ao encontro da morte do corpo para, então, renascer numa forma superior de
existência, imortalizando seu espírito.
Revisitando a história de Matraga sob a óptica do mito dionísico, considerando o traço
etimológico de suas nomeações, assim como toda a simbologia da figura do bode dentro do
culto a Dioníso, é pertinente ilustrarmos a morte de Matraga para a salvação do próximo, pela
“absolvição” dos pecados alheios, como uma releitura sertaneja do ritual mítico de imolação
do bode em celebração ao “renascimento” do deus grego.
Pois, conforme aponta o Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier (1993, p. 133),
pela crença popular, o bode é um animal místico que capta o mal de todo um vilarejo para si,
protegendo, assim, seus moradores. Em “A hora e vez de Augusto Matraga”, o protetor
Matraga torna-se, pela escrita de Rosa, uma espécie de “bode expiatório” do sertão, pois,
“sacrificado”, morre levando consigo o mal que aflige o povo do local, seu Joãozinho Bem-
Bem.
A imagem do bode, atrelada simbolicamente à Matraga, contribui para a elaboração da
complexidade da personagem. Um animal de simbologia antagônica, cujo rito sacrifical
representa, na tradição cristã, “a expiação dos pecados, desobediências e impurezas dos filhos
de Israel” (Chevalier, 1993, p. 134) ao mesmo tempo também é associado à luxúria, aos
desregramentos sexuais e à violência da pujança genésica.
Em sua obra, Guimarães Rosa vale-se justamente dessa dicotomia simbólica do bode,
que harmoniza em sua figura o Bem e o Mal, para caracterizar o seu protagonista. A
importância desse animal no conto fica ainda mais evidente se observarmos como o escritor
apresenta-o. Detentor da grande sabedoria mítico-divina, ele é sobreposto ao homem, como
mostra o trecho em que Matraga, conduzido por seu burrinho, encontra, em pleno chapadão,
um bode amarelo e preto preso por uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego:
E explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que escapulira;
e teria roubado o bode também, se o bode não tivesse berrado e ele não investisse de porrete.
Agora, era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho...Sabia, sim, sabia tudo!
Ótimo para guiar... (Rosa, 2001, p. 403)
Apresentadas as semelhanças entre o “destino” dessas duas personagens, podemos
inferir que, assim como Nhô Augusto segue conduzido pelo jumentinho para sua hora e vez, o
cego também é guiado pelo bode. Nota-se que ambos percorrem semelhante jornada de
partida e retorno à terra natal. “Cegos pelo destino de Deus”, cruzam-se no trajeto de volta às
suas origens como uma forma de reconhecer, de resgatar suas verdadeiras “identidades”.
Assim, o encontro entre o burro e o bode, seres “divinizados”, seja pela proximidade à
matriz bíblica da vida de Cristo, ou pela analogia com o deus grego Dionísio, representa a
fusão matricial que move a narrativa rosiana. O sacro e o profano cruzam-se para conduzir
pelo sertão rosiano, como Caronte, nas histórias míticas, as almas penosas na travessia do rio
à porta do Hades (inferno), Matraga e o Cego a uma condição espiritual transcendente, à
imortalidade.
Da mesma maneira que o mito dionísico, com sua pluralidade simbólica, parece
contribuir no processo de composição do protagonista, estendendo-se, conseqüentemente ao
desenvolvimento narrativo, outra figura da mitologia grega parece ser lembrada: a figura de
Orfeu.
O mito órfico, como narra Brandão (1991, p. 196-215), é uma história lendária e muito
antiga. Filho de Calíope, a mais importante das nove Musas, e do rei Eagro, Orfeu sempre
esteve associado ao mundo da música e da poesia. Educador da humanidade, conduziu os
trácios da selvageria para a civilização. Retornando do Egito, divulgou os cultos de Dioníso e
os mistérios órficos, prometendo, a quem neles se iniciasse, a imortalidade.
Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice, seu grande
amor, ou como ele mesmo considerava, a metade de sua alma. Entretanto, um dia o apicultor
Aristeu tenta violar Eurídice que, fugindo do seu perseguidor, é picada por uma serpente e
morre. Inconformado com a morte de sua esposa, Orfeu desce às trevas do Hades para trazê-la
de volta e com sua cítara e sua voz divina encanta Plutão e Perséfone. Comovidos com
tamanha prova de amor, decidem devolver-lhe a amada.
No entanto, impuseram-lhe uma condição. Enquanto caminhasse pelas trevas
infernais, Orfeu, ouvisse o que ouvisse, penasse o que penasse, não poderia olhar para trás,
devendo crer que Eurídice o seguiria para fora do império das sombras. O poeta aceitou, mas
pouco antes de alcançar a luz, seu espírito fraquejou e, duvidoso quanto à honestidade dos
deuses do Hades, mordido pela impaciência, incerteza e saudade, olhou para trás. Ao ver
Eurídice, essa se esvaiu para sempre, “morrendo pela segunda vez”.
Inconsolável e fiel ao seu amor, Orfeu repelia todas as mulheres da Trácia. As
Mênades, ultrajadas por sua fidelidade, fizeram-no em pedaços. Como destaca Brandão
(1991, p. 197), há inúmeras variantes acerca da morte violenta de Orfeu. Uma delas conta que
o poeta das liras teria sido vítima do ódio de Afrodite por sua mãe.
Não tendo o belíssimo Adônis somente para si, que por decisão de Calíope também
ficaria uma parte do ano com Perséfone, Afrodite, não podendo vingar-se de Calíope, vinga-
se no filho. Afrodite teria inspirado às mulheres trácias uma paixão tão violenta por Orfeu que
cada uma desejava-o incontrolavelmente, o que as levou a esquartejá-lo e a lançar-lhe a
cabeça no rio Hebro. Rolando rio abaixo, seus lábios chamavam por Eurídice.
Esse terrível crime foi punido pelos deuses com uma grande peste que devastou a
Trácia. Conforme a profecia, essa somente cessaria quando encontrassem a cabeça do cantor e
lhe fosse prestada as devidas honras. Após longas buscas, um pescador a encontrou no rio
Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em honra a Orfeu, cuja entrada era proibida às
mulheres. A cabeça de Orfeu passou, então, a servir de oráculo.
Resumida a história de Orfeu, chama-nos a atenção, entre outros, dois aspectos
simbólicos retratados no mito de importância singular para a compreensão da trajetória mítica
de Nhô Augusto: a descida de Orfeu ao inferno e o desrespeito à ordem divina, e a
purificação/ascensão do cantor por meio da morte.
Brandão, em análise do mito grego, nomeia esses dois aspectos, respectivamente,
como a transgressão do “Tabu das direções” e o renascimento através de um “retorno
perfeito”. Segundo Brandão, o grande “pecado” de Orfeu no Hades fora olhar para trás, para o
passado. O apego à matéria, simbolizada por Eurídice, evidencia, na visão do autor, o
despreparo de Orfeu para a junção harmônica e definitiva com sua amada. Olhando para trás,
voltando-se para Eurídice ainda nas sombras do Inferno, Orfeu fere, transgride o “tabu das
direções”.
De acordo com Brandão, o “tabu das direções” sintetiza todo o simbolismo que regia a
dicotomia “matriarcado-patriarcado”, bem como a definição dos pontos cardeais nas culturas
antigas. Assim, o patriarcado, nobre e positivo, era associado ao leste, ao brilho do sol
nascente; já o matriarcado, ao oeste, portanto, por oposição, à escuridão, ao negativo:
É assim que olhar para a frente é desvendar o futuro e possibilitar a revelação; para a
direita é descobrir o bem, o progresso; para a esquerda é o encontro do mal, do caos, das
trevas; para trás é o regresso ao passado, às harmartíai, às faltas, aos erros, é a renúncia ao
espírito e à verdade. (Brandão, 1991, p. 199)
Desrespeitando à ordem divina, Orfeu perde Eurídice, “a metade de sua alma”,
perdendo-se também como indivíduo. Orfeu des-completou-se, des-individualizou-se. A
segunda parte do sýmbolon se fora. Porém, Maurice Blanchot (1987, p. 173-5), tomando
Eurídice como a figurativização da própria inspiração artística, vê no ato impulsivo e
impaciente de Orfeu, antes de um erro, a condição necessária para a dissimulação do olhar
diante do objeto artístico.
Ao mesmo tempo em que “o olhar inspirado e proibido condena Orfeu à perda
completa, e não somente ele próprio, (...) mas a essência da noite.” (Blanchot, 1987, p. 174),
esse movimento, segundo o autor, é o que possibilita à obra, no caso Eurídice, superar-se,
unir-se à sua origem revelando-se como a “outra noite”. Ou seja, Orfeu não busca no inferno,
na escuridão, a “verdade diurna” (Blanchot, 1987, p. 172) de sua amada, mas sim o invisível,
o desconhecido. O “outro lado” da vida.
De fato, ao perder Eurídice, Orfeu perde-se a si mesmo, mas a impaciência que o
derrota é “um movimento correto: nela começa o que virá a ser a sua própria paixão, sua mais
alta paciência, sua morada infinita na morte” (Blanchot, 1987, p. 173). Para o autor:
O olhar de Orfeu é, assim, o momento extremo da liberdade, momento em que ele se
liberta de si mesmo e, evento ainda mais importante, liberta a obra de sua preocupação, liberta
o sagrado contido na obra, dá o sagrado a si mesmo (...). Tudo se joga, portanto, na decisão do
olhar. (Blanchot, 1987, p. 176)
Movido pelo desejo, caminhando na noite, Orfeu transgride a norma divina. A
liberdade do olhar órfico que “condena” Eurídice o conduz para o “sagrado”, para a
imortalidade. Para tanto, tal evento somente ocorrerá se houver o que Juanito Brandão define
como o “retorno perfeito”, o fechamento do ciclo vida-morte-ressureição. E, neste caso, como
aconteceu com Dionísio, o retorno, a ascensão de Orfeu ocorre por meio do seu
despedaçamento, uma vez que assim perdura na eternidade como oráculo, detentor do saber
transcendente, divino.
A correspondência entre o mito grego e a trajetória de Matraga se dá num primeiro
momento, como apontado anteriormente, pela alegorização no conto rosiano da descida de
Orfeu ao inferno. Seja pela descida ao Hades ou pela queda nas profundezas do barranco,
ambos, em contato com o “deus” da morte, iniciam uma trajetória de retorno à vida, à
imortalidade. No entanto, tanto o herói mítico quanto o sertanejo ainda não estão prontos,
preparados espiritualmente para essa transcendência. Pois, como doutrinava o próprio culto
órfico, tal condição ideal somente é alcançada por aquele que liberto dos ciclos existenciais da
matéria, da carne, parte, enfim, para não mais regressar.
Assim como Orfeu ainda apega-se ao concreto, ao passado, olhando para trás, à saída
do inferno, Nhô Augusto, mesmo com o perdão do homem, absolvido pelo padre que o
confessou, carrega em sua alma, na partida do Murici, o tormento de seus pecados. Ambos
estão presos ao passado e necessitam da “interferência divina” para que seus destinos de
morte tornem-se, como no rito iniciático dionísico, celebração da vida.
Se Orfeu tem seu corpo despedaçado pelas Mênades antes de atingir a imortalidade
divina, Nhô Augusto, em seu período penitente no Tombador vê o seu orgulho pecador de
coronelão ser dilacerado pela lembrança da humilhação sofrida no Murici. Sucumbindo diante
de sua própria maldade, a personagem renascerá para a vida superior, sublime.
A Augusto Esteves não basta olhar apenas para frente, para o futuro, portanto. Como
Orfeu, somente “violando o interdito, olhando o invisível” (Brandão, 1991, p. 200) é que
descobrirá o caminho da santificação:
Assim, essa conversão apresenta-se como um trabalho imenso de transmutação, no
qual as coisas, todas as coisas, se transformam e se interiorizam, tornando-nos interiores e
tornando-se interiores a si mesmas: transformação do visível em invisível e do invisível em
cada vez mais invisível, lá onde o fato de ser não iluminado não exprime uma simples
privação mas acesso ao outro lado (...). (Blanchot, 1987, p. 136)
Voltando-se para o passado, para seus pecados e “demônios”, reconhecendo a
violência do sertão como parte natural de sua individualidade, Nhô Augusto reencontra sua
“outra metade”, integrando, à humildade santificadora que o move, o ímpeto e a valentia do
homem sertanejo.
Entretanto, para que a harmonia, a “junção das partes” se consolide como ato
transcendente no conto, é necessário que o ciclo narrativo se feche. Para que o “retorno
perfeito” referido por Brandão ocorra, Nhô Augusto deve voltar à sua origem, ao Murici.
Purificado pelo “ciclo das águas”, avisado pelos pássaros e guiado pelo burrinho, alegorias da
providência divina, ele segue para sua hora e vez, para o duelo final com seu amigo-irmão
Joãozinho Bem-Bem.
Neste momento o milagre da “conversão do olhar” transforma sua fé. Redescobrindo-
se como indivíduo unificador, ícone da comunhão entre o divino e o profano, Matraga
harmoniza-se, enfim. Reordenando seu destino, celebrando o “bem morrer” órfico, a
personagem é iniciada pelo “fogo” das armas dos jagunços na imortalidade dos deuses.
3. SÍNTESE COMPARATIVA
Analisando os aspectos particulares de cada trama narrativa, procuramos demonstrar
como Guimarães Rosa, de fato, encontra em sua arte literária a forma adequada para integrar a
diversidade contraditória da cultura popular à universalidade da tradição cultural mítica da
literatura ocidental e conferir ao conjunto de contos que compõem Sagarana uma unidade
estética.
Tal unidade, contudo, revelou-se muito além da similitude temática e estrutural dos
textos. Transpondo os limites do próprio olhar analítico proposto no início, encontramos no
vértice da união entre as matérias mística e a mítica abordadas, no “entrelugar” da linguagem
rosiana, um elo entre as três narrativas.
Para confirmarmos, assim, o processo de transposição do popular ao erudito ao longo
do desenvolvimento narrativo dos contos cabe, aqui, destacarmos os aspectos textuais
essenciais à consolidação da obra enquanto objeto artístico.
Considerando que “O burrinho pedrês”, “São Marcos” e “A hora e vez de Augusto
Matraga” têm como história central o relato da trajetória de “transformação” de seus
protagonistas, e que essas transformações são conhecidas em sua totalidade pelo narrador, o
foco narrativo assume um importante papel no sentido de “preparação” do texto e do leitor
para o relato das aventuras.
Embora diferente dos narradores de “O burrinho pedrês” e “A hora e vez de Augusto
Matraga”, que não participam da história, o narrador de “São Marcos”, mesmo
protagonizando o episódio relatado, conserva um distanciamento da história contada,
procurando também conferir uma certa objetividade à narração. Esse afastamento entre o
relato e o narrador pretendido em “São Marcos”, mais facilmente perceptível nos outros dois
contos, permite que o “narrador-focalizador se desdobre em observador e ouvinte” (Nogueira,
2002, p. 46) podendo, assim, orientar, por vezes, a narração a partir da perspectiva do receptor
/ leitor.
Esse sutil deslocamento do foco narrativo, aparentemente despretensioso, tem um
papel fundamental na realização do trajeto transformador dos protagonistas e na consolidação
do caráter mítico-exemplar dos textos. Aparentando-se com o leitor, o narrador, “ao invés de
compactuar com a personagem, (...), a partir do momento em que esmiúça as alterações
ocorridas no estado de espírito e na alma da personagem” (Ferri, 2002, p. 148), dada à
transparência e “sinceridade” de sua fala, cria uma certa afinidade, um elo de confiança com o
leitor, conferindo, assim, maior credibilidade ao relato.
Com isso, o narrador, articulando as informações e manipulando o olhar do leitor,
insere-o, gradativamente, no universo ficcional sertanejo. Identificando-se com as
personagens e com a história contada, naturalmente, o leitor é levado a reordenar os princípios
éticos e morais que vivencia para compactuar, por um momento, com os costumes e valores
que ordenam o cotidiano do sertão. Portanto, essa situação inicial estabelecida entre o
narrador, o leitor e a entidade ficcional, a partir da ordenação do foco narrativo, é o que torna,
por fim, aceitável pelo leitor o caráter “positivo” conferido à violência e à morte que surgem
nos três contos, como meios de ascensão para as personagens.
Por meio da mobilidade do narrador-focalizador, Guimarães Rosa faz com que a
percepção do leitor se abra para o sertão ficcional, tornando-o, mais do que um mero
expectador, testemunha viva do processo de transformação dos protagonistas e, por extensão,
de transcendência da obra. Atentando, assim, para o deslocamento espacial e as mudanças
substanciais ocorridas com Sete-de-Ouros, João/José e Augusto Matraga, ao longo de suas
trajetórias, notamos outra importante correspondência entre os textos analisados.
Para desenvolver o enredo e retratar as transformações das personagens, Guimarães
Rosa adota, de certa forma, uma estrutura narrativa “ideal”, tripartida e cíclica,
caracterizando, espacial e simbolicamente, três momentos distintos no percurso narrativo:
Retorno
Protagonista
(Positivo/Ascenção)
Espaço Inicial
Protagonista
(Negativo/Depreciado)
Deslocamento
Isolamento
Espaço Intermediário
Protagonista
(
Introspecção/Maturação)
É interessante notar, contudo, a dicotomia instaurada no processo de transformação
das personagens devido à circularidade de suas trajetórias. Nos três contos, a estreita relação
espácio-temporal estabelecida entre o processo de construção dos protagonistas e cada uma
das etapas do trajeto, permite-nos identificar uma duplicidade do foco narrativo: uma externa,
captando a riqueza natural cíclica do sertão, e outra interna, pontuando no enredo a
transformação íntima dos protagonistas.
Tal recurso retórico revela a habilidade com que Rosa tinge a matéria bruta do sertão
com a transcendência desejada como efeito em sua linguagem literária. Se num primeiro
momento, ao olhar mais desatento, a circularidade espacial sugere uma certa “imobilidade” às
personagens, limitando-as geograficamente, nós leitores, à medida que somos conduzidos
pelo narrador, adentramos esse mesmo espaço e nos aproximamos de Sete-de-Ouros, de
João/José e de Matraga. Com isso, absorvendo a essência do sertão que os cerca, vivenciando-
o e reordenando-o intimamente, as personagens revelam-se muito além de suas
caracterizações regionais.
Ou seja, embora circular, o percurso narrativo marca profundas mudanças nos
protagonistas. A circularidade do enredo, o retorno à “origem” espacial da história, evidencia,
na verdade, que as alterações de cada protagonista não implica, por fim, numa alteração direta
do meio social em que vive, ou mesmo num abandono das tradições sertanejas. O sertão, a
violência, a morte ao final das trajetórias são os mesmos. Ou seja, a matéria-prima do
conteúdo narrativo permanece intacta, a mudança se dá a partir da reordenação de valores
internos e, conseqüentemente, na maneira como passam a ser vistos pelas demais personagens
e pelo leitor. Trata-se, enfim, de uma transmutação do olhar.
Nesse sentido nota-se, por meio de análise dos três contos, concomitante ao olhar
imposto pelo narrador ao leitor, uma “transformação” formal. Em “O burrinho pedrês”, que
apresenta uma circularidade espacial explícita, marcada pelo percurso: Fazenda Arraial
Fazenda, transcorrido no período de um só dia, “das seis da manhã à meia-noite”, a aventura
de Sete-de-Ouros, embora tendo como catalisador deste processo metamórfico o próprio
burrinho, que se revela como a ponte entre a natureza mística do sertão e a realização mítica,
retrata uma mudança, principalmente no “meio externo”.
Como observado na análise do texto, a caracterização inicial negativa dada pela
depreciação do burrinho, necessária para a construção do caráter transcendente de sua
trajetória, se dá não por demérito de suas ações, mas por uma visão pejorativa, impiedosa e
equivocada das demais personagens e do leitor. A mesma humildade e passividade que a
princípio o condena, ao final, revelar-se-á como sua grande virtude.
No entanto, tal condição sublime e heróica, revelada no ato de travessia do “rio da
fome”, e que adquire o efeito de uma transubstanciação mítica, não implica diretamente em
uma mudança interna da personagem, que apenas tenciona retornar ao cocho e ao curral, em
busca de um canto escuro para dormir. A transformação resulta em uma reorganização de
alguns aspectos externos da história. Por meio da paciente sabedoria, conhecendo e
respeitando a força da natureza, Sete-de-Ouros, passivamente, desfaz o olhar diminuto que o
caracterizava, para tornar-se, ao final, fonte de admiração e fator de transcendência.
Em “São Marcos”, o caráter transcendente da obra ganha uma nova roupagem. A
trajetória circular e triádica do protagonista, construída no percurso: cafua do Mangolô
Mata cafua do Mangolô, a falta de indicadores ou delimitadores temporais e a poética que
Rosa imprime à sua linguagem no trato da tradição oral sertaneja somam-se na finalidade de
se construir o processo de transmutação do olhar.
Diferente de Sete-de-Ouros, em “São Marcos”, a postura debochada, ofensiva e
contraditória do protagonista é que o configura, inicialmente, de modo negativo. O belo duelo
com o poeta “Quem-Será” e a perda da visão, devido à feitiçaria de Mangolô, no interior da
mata, conduzem João/José, instintivamente, a experimentar a comunhão entre o traço
supersticioso da crença popular e a transcendência da arte. Somente “reconhecendo” em sua
intimidade a síntese das instâncias mística e mítica, revendo seus atos, é que a personagem
impulsiona a própria caracterização sertaneja regional para a expressão universal.
O mesmo ocorre com Nhô Augusto, em “A hora e vez de Augusto Matraga”, só que
de forma mais plena. Nesse sentido, o próprio Guimarães Rosa, em carta escrita para João
Conde, afirma ser este conto uma “História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas
as outras” (Rosa, 2001, p. 28). Mais do que no plano do conteúdo, essa condição estende-se
ao plano formal: “Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo
do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.” (Rosa, 2001, p. 28). De fato, Rosa
encerra Sagarana de maneira brilhante. A estrutura tripartida e cíclica do enredo fica sugerida
no percurso Buriti Tombador Arredores do Buriti. Há a mesma suspensão temporal,
rompida apenas por um “agora” indeterminado, que não só presentifica a história, como
também deixa transparecer traços da oralidade do contador de “causos” do sertão, na
linguagem narrativa do escritor. No entanto, a forma com que Rosa entrelaça esses aspectos e,
principalmente, a sutileza com que desfaz os limites entre o caráter místico da cultura
sertaneja e a representação mítica da obra é um dos fatores que singulariza o texto.
Devido à arrogância de coronelão, por seus atos violentos e abusivos relatados na
primeira parte da narrativa, Nhô Augusto recebe uma caracterização negativa, pesada. Após
sua “quase morte”, ao partir para o Tombador, penitente, em busca da absolvição dos
pecados, inicia o mesmo processo de maturação, pelo qual, observamos, passam
involuntariamente o burrinho Sete-de-Outos e, instintivamente, João / José.
Contudo, essa transição de Nhô Augusto não ocorre somente devido a uma mudança
de perspectiva do “outro”, ou mesmo, motivada por um castigo externo. Conscientemente,
Matraga lança-se num árduo e profundo processo de auto-reflexão, acabando por reconhecer
em si mesmo, na sua natureza mais íntima, o sertão que o agride e, assim, de dentro para fora,
passa a vivenciá-lo de modo renovado. A sublimação da personagem, que implica no efeito de
transcendência do conto ocorre, portanto, no momento em que Augusto Matraga,
transmutando o próprio “olhar”, e conseqüentemente o do leitor, integra em si a essência da
tradição sertaneja com a elevação dos valores míticos bíblicos e pagãos.
Os contos analisados não possuem apenas essas similaridades. Ao aproximarmos as
observações feitas em “O burrinho pedrês”, “São Marcos” e “A hora e vez de Augusto
Matraga”, pretendemos também delinear aspectos do estilo literário presente em Sagarana.
Assim, seguindo essa proposta, cabe destacar outro importante expediente estrutural
empregado por Rosa: a narrativa de encaixe. Como foi apontado pela fortuna crítica,
Guimarães Rosa opera a base de sua escrita com a técnica do romance. No entanto, para
captar na obra a complexidade e a pluralidade contraditória que norteia a mistura entre o
popular e o erudito no cotidiano sertanejo, o autor amplia sua linguagem, abrindo o objeto
literário a diferentes formas narrativas.
Vale lembrar, como aponta Gerard Genette (1979), que Virgílio faz uso dessa estrutura
de encaixe ainda no período das grandes narrativas épicas. Posteriormente, já no Barroco, essa
técnica reaparece, sendo então, consolidada na tradição romanesca. Portanto, “a estrutura
narrativa que, na literatura brasileira contemporânea, se tornou a marca definidora do “estilo
rosiano” (Coelho, in. Coutinho, 1991, p. 258), dialoga tanto com a tradição narrativa épica
quanto com a oralidade dos contadores de “causos” do sertão.Por isso, ao mesmo tempo que
podemos aproximar os textos, pela intimidade com a temática cristã, principalmente em “São
Marcos” e “A hora e vez de Augusto Matraga”, com formas narrativas tradicionais como a
legenda, utilizada para narrar histórias de santos, e a parábola, que devido ao caráter alegórico
de sua estrutura narrativa, melhor retrata, como confidencia o autor em carta a João Conde, a
simplicidade do povo do interior, “suas reações humanas e a ação do destino” (Rosa, 2001, p.
25). Assim, dada a complexidade latente do enredo e dos heróis-populares compostos por
Rosa, não é possível ajustarmos a linguagem do escritor à linearidade de um único estilo
literário.
Guimarães Rosa, constantemente, rompe a continuidade da narrativa principal para,
ora com o uso de ditados e provérbios, ora com casos relatados por “outros narradores”,
imprimir ao texto a exemplaridade “própria dos narradores anônimos que cruzam o sertão,
desde vaqueiros, os capiaus de moradia provisória, os fazendeiros, os cegos transeuntes, os
mesmos jagunços” (Arrigucci, 1994, p. 18). Por meio dessa alternância do foco narrativo, o
autor retarda o desfecho da história central. Cruzando diferentes perspectivas, Rosa desloca o
olhar do leitor para outras paisagens, levando-o a experimentar diferentes sensações.
Entretanto, esses “causos”, apesar da autonomia narrativa, estão intimamente ligados à
construção do enredo principal. Não há nos três contos, em especial em “O burrinho pedrês” e
“São Marcos”, uma narrativa principal senão composta por várias outras “subistórias”. Assim
podemos observar que “essa vasta matéria épica da tradição oral atua como uma espécie de
tecido conjuntivo do sertão, enquanto espaço ficcional, e do livro, enquanto discurso narrativo
(...)” (Arrigucci, 1994, p. 18).
Integrando essas variações narrativas na construção da trajetória transcendente dos
protagonistas, observamos que Guimarães Rosa possibilita a inserção do mito em sua
literatura regionalista. Os conflitos, os questionamentos internos do homem sertanejo
transpõem os limites culturais e geográficos de seu cotidiano e são direcionados para a
realidade comum, universal. A formação, portanto, desses heróis-míticos sertanejos reproduz
em sua base característica essa mescla de estilos narrativos, revelando, não apenas aspectos de
uma cultura popular mística, mas também traços tradicionais da exemplaridade do cavaleiro
romanesco e, principalmente, do herói mitológico.
A análise da construção de Sete-de-Ouros, de João/José e de Nhô Augusto, bem como
de suas trajetórias transformadoras conduzem-nos, enfim, ao que consideramos ser um dos
principais aspectos da estética de Sagarana: a linguagem narrativa “entreposta”. Ou seja, em
relação à diversidade e contraditoriedade de influências étnicas presentes na cultura popular
brasileira, à confluência de formas narrativas que recortam sua escrita, além das complexas
contraposições temáticas que caracterizam os três textos, podemos dizer que Guimarães Rosa,
com sua linguagem ficcional, atua como intermediador dos “opostos” ou um operador de
“sínteses” em meio a um universo dialético.
Assim, para compor a unicidade dentro da “pluralidade” de sua obra, para recriar no
interior do sertão o universo mítico, Rosa elege, nos três contos, os protagonistas como
figuras unificadoras. Tais personagens, ao longo de suas trajetórias transformadoras, integram
distintas instâncias estéticas e culturais, dando forma à retórica discursiva do escritor.
Vimos, nos textos analisados, que, caminhando no entremeio dessas contraposições,
diante de um profundo conflito entre o bem e o mal, a vida e a morte, o divino e o mortal,
emolduradas por uma oposição temática ainda maior, o popular e o erudito, essas personagens
redimensionam suas caracterizações, sendo elevadas à condição de heróis míticos,
confirmando a reconhecida universalidade que a obra rosiana reproduz.
Constatamos também que há, nas três narrativas, a delimitação de um “espaço mítico”,
que pontua o início da transformação na trajetória dos protagonistas. Esse instante narrativo, o
qual, devido à semelhança simbólica e funcional no processo de construção das personagens,
e do enredo como um todo, nomeamos como “a passagem das águas”, figura como uma
espécie de rito iniciático, introduzindo as personagens num árduo percurso de sublimação do
saber. Por meio dele, a simbologia mítica, cristã e pagã é recuperada em “O burrinho pedrês”,
na travessia pelo burrinho do “Rio da Fome”. Em “São Marcos” ele se manifesta na descida
de João/José ao “sancto-dos-sanctos” das “Três-Águas”. Em “A hora e vez de Augusto
Matraga”, ele é percebido devido à passagem do “tempo das águas”. Assim, esses momentos
permitiram-nos identificar nos textos a “releitura” da exemplaridade de algumas personagens
místico-cristãs emblemáticas e também de divindades mitológicas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise dos três contos selecionados, do contato com a matéria popular e
erudita entrelaçadas pela pluralidade discursiva do escritor, pretendemos ter elucidado um
pouco mais do projeto estético-literário de Guimarães Rosa presente em Sagarana. Seguindo
a trajetória de cada protagonista foi possível experimentar, de certa maneira, a profunda
transformação que Rosa imprime às personagens e à obra em sua totalidade semântica.
Ampliando os limites do próprio olhar analítico, observamos a beleza e a universalidade do
sertão ficcional de Sagarana.
Em “O burrinho pedrês”, o descadenciado percurso de Sete-de-Ouros revelou-nos,
entre um e outro “causo” contado, entre chuvas e estouros de boiadas, um sertão contraditório
em que a superstição e o misticismo estão presentes na materialidade do cotidiano sertanejo.
Pontuando a estrutura da narrativa regionalista, com componentes fabulares míticos, Rosa
imprime um aspecto dogmático à aventura de Sete-de-Ouros, que se torna expressão não
apenas da tradição cultural do sertão, mas, também, da universalidade mítica. Dessa maneira,
Sete-de-Ouros, posto como intermediador entre a matéria popular e a erudita, permitiu-nos
identificar, pela ambivalência de sua caracterização, em sua heroicidade casual, humilde e
paciente na travessia do “Rio da Fome”, o mito de Alétheia.
Em “São Marcos”, a forma com que Rosa articula o signo lingüístico-literário e a
temática regional-popular no processo de construção da narrativa evidenciou-nos a
importância da palavra enquanto intermediadora entre a intimidade sertaneja do escritor e o
saber erudito. Observamos, também que, conjugando o erudito e o popular numa prosa
poética multifacetada e expressiva de um “sertão” literário universal, Rosa fez da trajetória de
João/José uma reflexão metalingüística e da travessia do próprio protagonista, uma espécie de
“palavra” transcendente. Dessa forma João/José, enquanto narrador-protagonista e condutor
da “ação”, revelou-se ao longo da narrativa, pelo duelo poético vivido com “Quem-Será”, nos
colmos dos bambus, e pelo contato com a reza popular de São Marcos, uma verdadeira
“palavra-pássaro”, atuando como intermediador entre os diferentes planos de expressão
artístico e cultural presentes no enredo.
A experiência interior, mística e mítica, vivenciada pela personagem dentro da mata,
especialmente a passagem pelo “sancto-dos-sanctos das Três Águas”, evidenciou-nos, no
encontro entre a matéria erudita e a popular, uma reordenação do protagonista, que interferiu
não apenas no desenvolvimento da fábula, como também no plano estrutural da narrativa,
resultando uma combinação perfeita entre forma e conteúdo. Assim, João/José ao mesmo
tempo em que ampliou os limites de sua caracterização regional, transformou sua condição
enquanto criação literária. Simbolizando o tempo narrativo, atuando como “criador” da
própria “estória”, a personagem recuperou no conto o mito de Cronos/Saturno.
O último conto analisado, “A hora e vez de Augusto Matraga”, apresentou, em uma
estrutura narrativa tripartida, a trajetória de conversão de Augusto Matraga. Observamos
nesse percurso de transformação e de quase santificação, que Matraga sintetizou a dicotomia
temática característica da literatura rosiana. Comungando, com sua prosa-poética, elementos
míticos e místicos, compondo um verdadeiro amalgama de estilos narrativos, Guimarães Rosa
fez da aventura narrada no sertão mineiro a representação de uma trilogia mítico-religiosa.
Tendo como eixo unificador a matéria erudita e a popular, a história de Matraga revelou-nos,
implícitas e inter-relacionadas na composição do texto, a recorrência tanto à matriz cristã
quanto à procedência mítica. A primeira evidenciada, entre outros aspectos, pela releitura do
ideal cristão da conversão do pecador em santo e a segunda confirmada na identificação dos
mitos de Dioniso e Orfeu.
Concluímos, portanto, que, em Sagarana, o estilo literário de Guimarães Rosa, assim
como as personagens reveladoras que criou, têm como virtude uma exata e equilibrada
capacidade de síntese. Com propriedade, peculiar a quem de fato vivenciou a realidade do
sertão, Rosa integra à tradição rústica popular-sertaneja, por meio da poeticidade narrativa, o
caráter elevado de sua erudição literária.
O encontro entre a matéria mística e a mítica nos textos marca a transformação dos
protagonistas, gera a unidade que propicia o processo transcendente, e este propulsiona a
universalidade da obra. A complexidade e intensidade com que o autor compôs suas
narrativas transpõem as fronteiras do sertão mineiro e os limites do próprio texto. Sagarana
faz-se, então, permitindo-nos a metáfora, um rito iniciático à estética literária de Guimarães
Rosa. A travessia de suas “águas” revela, como bem observa Arrigucci, com relação à Grande
Sertão: Veredas, a dimensão da genialidade artística de Rosa:
Espécie de rito de passagem para a vida adulta, ela suscita o mito – latente no motivo
do encontro com a criação divina – sugerindo com essa dimensão arquetípica, a metafísica,
pela aproximação ao sagrado, como abertura à integralidade do ser. Mas se deixa ler também
no plano já deslocado do mito, como parte da estória romanesca, (...). Equivale , de qualquer
forma, no plano real, da experiência à passagem da ignorância ao conhecimento, em que se dá
a descoberta do que mal se pode formular, pelo poder de síntese de uma totalidade complexa,
abrangendo aspectos e contradições de toda a existência (...). (Arrigucci, 1994, p. 26)
Dimensão essa que, embora referida à obra Grande Sertão: Veredas, tida como a
expressão maior da estética literária de Guimarães Rosa, procuramos ilustrar já presente em
Sagarana.
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