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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de pós-graduação em Psicologia
O LUGAR DO PAI:
UMA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA
José Maurício da Silva
Belo Horizonte
2007
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José Maurício da Silva
O LUGAR DO PAI:
UMA CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Psicologia, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Paulo Roberto Ceccarelli
Belo Horizonte
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Silva, José Maurício da
O lugar do pai: uma construção imaginária / José Maurício da Silva. – Belo
Horizonte, 2007.
150f.
Orientador: Paulo Roberto Ceccarelli
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Bibliografia.
1. Pai. 2. Figura paterna. 3. Patriarcado. 4. Família – Reorganização. I.
Ceccarelli, Paulo Roberto. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título
CDU: 159.964.2
S5861
José Maurício da Silva
O lugar do pai: uma construção imaginária
Dissertação apresentada ao Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Psicologia.
Belo Horizonte, 2007.
Profa. Dra. Ana Maria de Toledo Piza Rudge - PUC RJ
Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Moreira - PUC Minas
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli - Orientador
DEDICATÓRIA
Aos meus familiares pela vida e incentivo na busca do meu sonho e em especial
pelo meu pai patriarca, que nos últimos anos se deixou revelar na sua fragilidade,
mostrando-se mais humano e sensível.
Aos irmãos do Vicariato Nossa Senhora da Consolação, pelo apoio e compreensão;
em especial aos irmãos da atual comunidade: Jose Maria, Santiago e Agenor.
Aos membros do conselho pedagógico do Colégio Santo Agostinho de Contagem,
em especial Patrícia e Cida pelo apoio e incentivo.
Aos amigos especiais: Nely Nunes pelo apoio, estímulo; a Edson Júnior pelos
elogios, leitura e sugestões; a Wellington (Lê) pelos muitos chats.
Aos meus clientes.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em especial, a Paulo Roberto Ceccarelli,
pelo carinho, leveza, e exigência na condução deste trabalho; pela liberdade e
confiança e sobretudo, pela grande contribuição. E mais: pela amizade, pela
proximidade.
Agradeço a PUCMG - espaço de produção do saber – e em especial aos
professores do mestrado pela disponibilidade e presteza no atendimento e
orientação. A Jaqueline, Maria Inês (com carinho, Pitucha) e Márcia Stengel pela
presença maternal e cuidadosa.
Agradeço a Marília e Celso, secretários do mestrado e Flávio, pela acolhida
carinhosa e terna.
Aos companheiros do Mestrado e em especial, Jussara, Cristiano e Ângela, pela
maior proximidade e aos demais pela convivência e pelas lembranças que ficaram.
Agradeço a todos que contribuíram de forma direta ou indiretamente: Luis Antonio
Pinheiro, Félix Valenzuela, Aline, Marta, Tarcísio e Maria Luisa Atalia, professora da
Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro.
A Lucio Antunes e Flavia pela revisão dos textos em inglês.
Agradeço a João Carlos pela revisão do texto
e Adriene e Maria Inêz pela diagramação.
Por acaso, surpreendo-me no espelho: que é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, teu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim ?”
Eu, pai? Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!? Eu sou
ainda
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir, nestes cansados olhos, um orgulho triste...
(Mário Quintana)
RESUMO
“O lugar do pai: uma construção imaginária” discute a hipótese de que a
função paterna, independente de tempo e lugar, nunca deixou de existir. A pesquisa
aponta que a função paterna não está associada à figura biológica do pai
necessariamente, embora se perceba uma tendência em fazê-la; pode-se atribuir ao
sistema patriarcal esta concepção, pois estava fundamentada na autoridade do pai
da realidade. Ao dissociar a função paterna da figura do pai biológico e apontar
como função paterna aquele(a) que possibilita o encontro com a alteridade, alguém
através do qual um ato social se efetua ou aquele(a) que introduz o infans na
cultura e o configura simbolicamente, fala-se de uma mudança da circulação
pulsional; ou seja, muda-se a verticalidade do movimento e pontua a
horizontalidade.
Palavras chave: pai, função paterna, patriarcado, novas configurações.
ABSTRACT
“The father’s place: an imaginary construction” discusses the hypothesis
that the paternal function, regardless of time and place, has never ceased to exist.
This work points out that the paternal function is not necessarily associated with the
biological father figure, although that association tends to be made, which can be
attributed to the patriarchal system, since it was based on the authority of the reality
father. When the paternal function is dissociated from the biological father figure and
the former is pointed to as the one who allows for the encounter with alterity, the one
through whom a social act takes place or the one who introduces infans into the
culture - symbolically configuring it, then it indicates a change in the libidinal (trieb)
circulation, i.e., the verticality of movement is changed and its horizontality is
enhanced.
Key words: father, paternal function, patriarchy, new configurations.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 11
2 NOÇÃO DE PAI: ANTIGUIDADE E CONTEXTO BÍBLICO ................ 21
2.1 O pai na civilização egípcia e mesopotâmica .............................. 21
2.2 O pai no oeste semítico ............................................................... 22
2.3 O pai no mundo europeu e antiguidade greco-romana................ 23
2.3.1 Pai entre os gregos .................................................................. 24
2.3.2 O pai em Roma Latina - patris potestas .................................. 24
2.4 O uso religioso da imagem do pai................................................ 25
2.4.1 A antiga base indo-iraniana da idéia de Deus como pai .......... 25
2.4.2 Zeus pai e soberano................................................................. 25
2.5 O uso do termo pai no Antigo Testamento ................................. 28
2.5.1 Uso lingüístico.......................................................................... 28
2.5.2 A concepção de pai no Antigo Testamento.............................. 29
2.5.3 Pai e outros termos de relação na religião tribal ...................... 30
2.5.4 Pai como conceito de autoridade ............................................. 32
2.5.5 Deus como Pai......................................................................... 34
2.5.5.1 Nomes próprios................................................................... 34
2.5.6 Javé como pai do povo ............................................................ 34
2.5.7 Javé como pai do rei ................................................................ 35
2.6 O conceito de Pai no Novo Testamento ..................................... 36
2.6.1 O significado da crença no Pai para os discípulos................... 37
2.6.2 Pai, nos escritos paulinos......................................................... 38
2.7 O conteúdo do conceito de pai .................................................... 39
2.8 O pai no judaísmo........................................................................ 40
2.8.1 Deus como pai no judaísmo..................................................... 41
2.9 Conclusão.................................................................................... 42
3 NOÇÃO DE PAI – CONSIDERAÇÕES ANTROPOLÓGICAS ............ 46
3.1 Dimensão conceitual: teorias sobre a paternidade ...................... 46
3.2 Função paterna – uma contribuição da antropologia .................. 46
3.2.1 Teorias da concepção ............................................................. 46
3.2.2 Teorias do pós-parto ................................................................ 48
3.2.3 Dimensão paterna ................................................................... 50
3.3 Conclusão........................................................................................... 53
4 DO PAI EM FREUD À FUNÇÃO PATERNA EM LACAN ................... 56
4.1 O pai no complexo de Édipo........................................................ 56
4.1.1 A dissolução do complexo de Édipo no menino....................... 56
4.1.2 A dissolução do complexo de Édipo na menina ...................... 59
4.1.3 Freud e a herança arcaica ....................................................... 59
4.2 A função paterna no complexo de Édipo em Lacan..................... 60
4.2.1 Primeiro tempo......................................................................... 61
4.2.2 Segundo tempo ........................................................................ 61
4.2.3 Terceiro tempo ......................................................................... 62
4.3 O pai em Totem e Tabu............................................................... 63
4.4 O pai em Moisés e o monoteísmo .............................................. 67
4.5 A função paterna em Lacan ........................................................ 71
4.6 Conclusão ................................................................................... 75
5 PAI: UMA INSTITUIÇÃO EM GRANDE TRANSFORMAÇÃO ........... 81
5.1 A família no decorrer da História do Brasil................................... 81
5.1.1 Brasil colonial ........................................................................... 83
5.1.2 Medicina higienista................................................................... 88
5.1.3 Brasil república......................................................................... 93
5.2 Função paterna: uma contribuição do jurídico ............................. 98
5.3 Lugar do pai: uma construção social e ideológica .................... 101
5.4 O lugar do pai: uma construção imaginária ................................ 107
5.5 Conclusão.................................................................................... 113
6 CRISE, DECLINIO OU NOVAS CONFIGURAÇÕES?........................ 117
6.1 Crise da paternidade.................................................................... 117
6.2 Declínio da função paterna.......................................................... 123
6.2.1 O direito sobre a criança .......................................................... 125
6.2.2 O direito da criança ................................................................. 128
6.2.3 O direito à criança .................................................................... 129
6.3 Novas configurações .................................................................. 130
6.4 Conclusão.................................................................................... 136
7 CONCLUSÃO ..................................................................................... 139
REFERÊNCIAS .................................................................................. 145
O lugar do pai: uma construção imaginária 10
INTRODUÇÃO
O lugar do pai: uma construção imaginária 11
1 INTRODUÇÃO
O tema desta dissertação foi fruto de estudos, pesquisas, e discussões
que retratam um processo de amadurecimento do pesquisador. Com certeza, um
processo na sua fase inicial, sinalizando para um campo vasto e rico em
possibilidades de abordagens diversas. A temática trabalhada testemunha os
motivos de busca de compreensão das mudanças pelas quais passamos;
mudanças, estas que desfocaram o eixo a partir do qual giravam e explicavam o agir
das organizações familiares. Ou seja, o pai na condição do todo-poderoso
canalizava todo o movimento pulsional, constituindo e sacramentando toda uma
cultura falocêntrica.
Dada uma série de mudanças e mais precisamente a partir da década de
1960, o processo de derrocada do patriarcado foi mais acirrado, acelerando o
aparecimento de novos arranjos familiares, desafiando estruturas até então
entendidas como inabaláveis, e colocando em xeque o tradicional lugar ocupado
pelo pai.
E é neste contexto que surgiu a primeira questão de nossa pesquisa: a
paternidade está em crise? A primeira tentativa de resposta surgiu de um trabalho
realizado no quarto período de Psicologia versando sobre o tema. A atividade
consistia em escolher um trecho de uma obra, novela, jornal ou outros, em que se
retratasse um diálogo entre pai e filho (a) e, partindo da leitura do livro “O Manto de
Noé – ensaio sobre a paternidade”, de Philippe Julien (1997), fazer um estudo do
texto selecionado.
A temática estudada possibilitou-me uma reflexão sobre o grupo religioso
do qual faço parte. Em 1982, este grupo desmembrou-se de outro grupo de
religiosos espanhóis, formando um novo; no fundo havia questões ideológicas que
se opunham à concepção de mundo, de pastoral, de religião, de doutrina, de moral...
separar-se era a maneira de romper-se com o autoritário, o hierárquico, o
conservador; na euforia do momento, nos sentíamos um grupo de adolescentes
fugindo das garras do pai; parece que assumimos a máxima espanhola: “si hay
govierno, soy contra”. Talvez tenhamos matado o pai, mas não conseguimos criar a
fraternidade, tendo em vista a saída de um grande número de religiosos e a falta de
identidade grupal ainda reinante.
O lugar do pai: uma construção imaginária 12
Um terceiro motivo refere-se à prática como educador social em uma
Organização Não-Governamental (ONG) na cidade do Rio de Janeiro. Nesta
instituição, atendendo crianças e adolescentes em risco social de dezessete
comunidades empobrecidas, deparei com uma das difíceis tarefas da arte de
educar: apontar os limites. Havia uma contradição: no morro a lei era clara, todos a
conheciam e a figura do chefe do morro – exemplo do pai patriarca – era visível e
seu poder era do conhecimento não só da população da comunidade, mas também
do “asfalto.”
Neste momento, identifico a paternidade ou a função do pai como aquele
que limita, mas colado à figura do pai da realidade. Entendia que era necessário
trazer de volta o pai que estava desfocado, para que ele, uma vez revigorado,
pudesse aplicar a lei, impor o limite. Definida pelo Dicionário Novo Aurélio (1999), a
palavra "limite" indica a linha real ou imaginária de demarcação; a baliza; a fronteira
que separa territórios. O verbo "limitar" indica ação de restringir, de marcar, fixar,
estipular, de escolher. O pai, com certeza, faria exatamente isso.
Por outro lado, observando atentamente nossa realidade política,
econômica, social, religiosa, deparamos com eventos em que o Outro foi literalmente
apagado, sobressaindo aí um Eu que quer sempre gozar, e lendo “O Mal-Estar na
Civilização” (FREUD, 1930 [1929]/1998, em que Freud afirma que civilizar
pressupõe educar; e implica ter que se recalcar pulsões básicas, primitivas,
perversas; logo, entendidos como anti-sociais, nasce uma outra questão: podemos
falar de um retorno do recalcado que consegue furar a instância interditora? Ou com
um desejo de mais gozar, a função paterna deixa sua "missão" e se presta às forças
do Id? E assim todos se tornam "iguais", ambos querem gozar... e o Outro não
emerge como sujeito da castração, fazendo valer a lei: não pode, não deve; logo não
limita o gozo do Outro.
Recorrendo a Hélio Pellegrino (1983), que, ao falar de ruptura do pacto
social, o faz associando à ruptura do pacto edípico, diz:
A ruptura com o pacto social, em virtude de sociopatia grave – como é o
caso brasileiro –, pode representar a ruptura, ao nível do inconsciente, com
o pacto edípico. Não nos esqueçamos de que o pai é o primeiro e principal
representante, junto à criança, da Lei da Cultura. Se ocorre, por retroação,
uma ruptura, fica destruído, no mundo interno, o significante paterno, o
Nome-do-pai, e em conseqüência o lugar da lei. Um tal desastre psíquico
vai implicar o rompimento da barreira que impedia – em nome da Lei – a
emergência dos impulsos delinqüências pré-edípicos. Assistimos a uma
O lugar do pai: uma construção imaginária 13
verdadeira volta do recalcado. Tudo aquilo que ficou reprimido – ou
suprimido – em nome do pacto com o pai, vem à tona, sob forma de
conduta delinqüente e anti-social (PELLEGRINO, 1983, p. 203).
Entendo, neste momento, que a frouxidão da aplicação da lei é a que
permite os desmandos em todas as dimensões; a lei é que limita o sujeito e a função
paterna, em nível social, precisa resgatar seu lugar para que o caos se reorganize;
não identifico a função com o pai da realidade, mas concebo a função paterna como
exercida por todos aqueles que estão no lugar do representante da lei. Por esta
óptica lia o movimento do meu grupo: movimento marcado pela falta de liderança, o
medo de assumir o lugar do líder, seja em nível de grupo ou de igreja, ou
movimentos sociais. Escondíamos-nos atrás de um discurso democrático que hoje
identifico como omissão. Matáramos o pai, o antigo, e agora ficamos perdidos, pois
seu lugar ficou vazio.
Embebido nesta reflexão, leio “Playdoier pelos irmãos”, texto de Jurandir
Freire Costa (2000) que me conduz a outra reflexão. Diz:
Por que continuar descrevendo o pai, a palavra do pai ou o poder do pai,
como condição sine qua non da paz neurótica? Por que imaginar que onde
não há pai de horda, pai morto, pai simbólico, pai imaginário, pai real, deve
advir o caos, o gozo tranqüilo das montagens perversas, ou, o que é mais
trágico, as psicoses? Quem é o pai do qual tanto falamos em psicanálise?
(COSTA, 2000, p.11).
No contexto patriarcal em que Freud viveu, no imaginário cultural, pode se
dizer que havia uma equivalência entre os meios de subjetivação e ação física e
simbólica do pai. Assim, Deus, padre, professor, militar, médico e outros,
encarnavam os sinais da potência paterna masculina. Falar de função paterna, aqui,
é mais simples, pois tal conceito está embasado no poder concreto do pai de família,
isto é, a função paterna é mais bem assimilada, pois o pai visível é uma realidade
simbólica, real e imaginária.
A sociedade industrial e capitalista dispensou a mediação do pai, diz
Costa, e ela mesma gerencia os sujeitos e seus desejos, pois os interesses
econômicos e políticos são os que lhe interessam. E acrescenta Costa (2004, p.12):
a ordem piramidal, com o pai no topo, deu lugar à proliferação de instâncias
de controle e incentivo à produção de novas subjetividades. Desde, então,
seguiu-se o coro de vozes contra a “decadência da função paterna”, cujos
últimos ecos se encontram nas idéias da “personalidade” e “cultura”
narcísicas dos anos 70-80.
O lugar do pai: uma construção imaginária 14
Passados já mais de 40 anos, o mundo não se psicotizou como
profetizaram alguns psicanalistas. Então podemos nos perguntar: por que trazer de
volta o pai, se é que ele, realmente, se extraviou ou foi demitido de seu papel
cultural?
Esta questão levantada por Costa conduz-nos a outra reflexão, ou melhor
dizendo, a uma explicitação do que vem a ser função paterna e sobretudo entender
este lugar que comumente se identifica com figura do pai da realidade. Estudos
antropológicos sobre diversas culturas na Ásia, África e Brasil revelaram que a
função paterna não está ligada à figura masculina ou o pai propriamente dito.
Evidenciou que cada organização social das mais variadas culturas possui arranjos
internos em que sobressai a dimensão da função paterna, e que esta não está
necessariamente vinculada ao gênero masculino ou feminino. Função paterna,
entendida como alguém através do qual um ato social se efetua.
Recorrendo ao Complexo de Édipo e mais precisamente ao pai que aí se
apresenta, podemos afirmar que a função paterna se manifesta como aquela que
introduz o infans na cultura e lhe possibilita configurar-se simbolicamente, aquela
que promove a vida psíquica. Ou seja, pai é aquele que promove a alteridade, o
encontro com o Outro. Alteridade referida a algo externo a mim. Segundo Moreira
(2002, p. 21), “alteridade é qualidade do que é outro ou atributo de ser “outro” em
relação a “algo ou alguém”. O termo “alter” significa outro entre dois, ou é o que
introduz a diferença em relação a um”.
O encontro com a alteridade é a condição sine qua non do processo de
constituição do sujeito. O outro que aí se apresenta, na condição simbólica,
possibilitará e norteará as futuras relações do candidato a sujeito com o meio em
que construirá sua teia de relações. Esta é a concepção de função paterna que
elegemos e que permeará toda a nossa dissertação ou a lente pela qual se lerá este
trabalho. Do ponto de vista conceitual, Freud não fala de função paterna.
Tomaremos de Lacan, pois foi quem alcunhou esta expressão, que por sua vez é
tomada da matemática.
Feitas estas considerações terminológicas ou conceituais, ou melhor
dizendo, delimitando o chão a partir de onde estaremos pisando, pensando, resta-
nos agora apresentar o que nos move, o que nos propomos responder, qual a nossa
questão.
O lugar do pai: uma construção imaginária 15
Fala-se hoje em crise da paternidade; aliás, este discurso não vem de
hoje; o pai, como objeto de reflexão, tem ocupado um largo espaço na literatura
psicológica, na mídia, filmes... sobretudo quando associado a estrutura familiar,
dadas as grandes mudanças pelas quais ela tem passado.
A Constituição francesa, artigo 371-2, em 1970, ao declarar “a autoridade
parental pertencendo ao pai e à mãe” (HURSTEL,1999, p.25-26), inaugurou um
tempo novo, rompendo-se com o pai, enquanto representante do dogmático, do
autoritário, do arbitrário. Este evento histórico reduziu a noção de pai social, como
afirma Hurstel (1999), dificultando definir o que é ser um pai. Daí justifica-se a farta
literatura produzida neste campo, seja em forma de artigos, filmes, livros, debates,
programas de televisão e outros.
Historicamente falando, pode se verificar que a produção literária acerca
da paternidade passa por três fases bem distintas, segundo a mesma autora, na
França:
a. Pré-história: destacam-se as obras de Freud e as de seus discípulos.
Já em 1887, numa carta a Fliess, Freud (1887/1987) fala do pai como
aquele que interdita a criança de realizar o desejo de dormir com a mãe. De forma
sintética, o complexo paterno em Freud refere-se à figura do pai como sendo uma
pessoa aterrorizante e poderosa. Devido a esta imagem, a esse excesso de poder é
que ele pode resultar de sua idealização como figura dotada de perfeição absoluta.
É Lacan, segundo Hurstel (1999) quem por primeiro vai discutir a questão
paterna e que outros autores vão denominar “carência paterna”, carência entendida
como sendo, falta, defeito. Enquanto alguns autores falam da carência do papel do
pai ou carência da imagem paterna, Lacan estará falando de função paterna. Ao
falar de função paterna, Lacan faz uma ruptura epistemológica, fugindo de uma
descrição normativa dos fatos e imprimindo uma elaboração teórica que muda
radicalmente o campo de análise da paternidade. Assim, pode se repensar as
incidências subjetivas da carência do papel e da imagem.
O lugar do pai: uma construção imaginária 16
b. Segunda fase: compreendida entre 1918-1968.
Ao término da Segunda Guerra Mundial, os escritos referentes à
paternidade se multiplicam, porém enfatizando mais a dimensão pedagógica e
psicológica, tendo já como pano de fundo a “carência paterna”. Nesta segunda fase,
muito antes que pedagogos, psiquiatras e psicólogos, é o clero da ala mais
conservadora da Igreja Católica quem vai se preocupar com o papel do pai.
Preocupado com uma política de restauração da família, movido por um discurso
moral, tendo Deus Pai como modelo, modelo com que Jesus nos ensinou a designar
a onipotência de Deus. Daí nasce toda a moral que visa reestruturar a família e
corrigir os pais fracos e maus.
O conteúdo das publicações das revistas católicas refere-se à definição
do que significa ser um bom pai, boa mãe, amor e autoridade, mãe-mulher e esposa,
pai chefe religioso e educador. Em 1957, a revista católica Anel de Ouro, no. 74,
referindo-se à carência paterna, por primeira vez fala de derrota dos pais e inicia-se
um processo de reconstrução dos valores paternos naquilo que era fundamental.
A partir de 1960, aparece o tema dos valores fraternos, porém pensados
numa ótica cristã. Segundo Hurstel (1999, p.39), “[...] demissão do pai de família,
revalorização do seu papel, definição de um bom pai à imagem de Deus,
restauração de sua autoridade, valorização da mãe sobre a mulher [...]” foram os
principais temas que nortearam o pensamento católico naquele momento.
A produção psiquiátrica nesta fase se reporta à idéia de falta de
autoridade dos pais, tanto no que tange ao seu papel, tanto quanto à imagem que
este apresenta ao filho. Os pedagogos e psicopatologistas, diante da falta do pai,
questionam-se sobre o futuro da família, expressando o medo de que a criança
perca as identificações sexuadas. Esta ausência do pai no seio da família é
entendida como causa do enfraquecimento da imagem paterna da criança, que, por
sua vez, resulta nos conflitos psíquicos.
A partir de 1955, Lacan vai apresentar a elaboração teórica sobre os
fundamentos da função paterna. Afirma Hurstel (1999, p. 45):
seu trabalho teórico é um recentramento da noção de carência a partir das
noções de “inconsciente” e de “sujeito” constituídos pela linguagem, pela
fala e pela cultura. É também um trabalho preliminar no qual distinções
serão elaboradas entre os registros constitutivos da paternidade: os do
O lugar do pai: uma construção imaginária 17
“simbólico”, do “imaginário” e do “real”. O registro da ordem simbólica é
apresentado como aquele que dá origem a toda a psicopatologia paterna.
c. Terceira fase: de 1968 até hoje.
A identidade do pai e a fundamentação da função paterna constituem
uma vasta produção bibliográfica disponível no mercado.
A partir de 1968 a imagem paterna vai ganhando uma nova configuração.
De 1968 a 1972 – falou-se muito da “morte” do pai e, intrinsecamente, se
perguntava: o que era um pai? O campo tornou-se fecundo. Muito se escreveu. Os
escritos, desde 1980, visavam uma perspectiva histórica, explorando uma dimensão
comparativa presente-passado, ou uma perspectiva etnológica ou antropológica,
numa abordagem comparativa de sociedades. A psicanálise, por sua vez, partindo
de Freud e Lacan, explora e aprofunda a questão conceitual: o que é a função
paterna.
Até 1981, segundo Hurstel (1999), a noção de “novo” é repetitiva: “novo
pai, nova paternidade, nova mãe” Ou ainda a noção de paternagem que ocupa um
grande espaço. Todos estes temas desapareceram em 1988. A historiadora Y.
Knibielhler (apud HURSTEL, 1999, p. 53), sobre o desaparecimento do “novo”, diz:
“[...] houve no passado ‘novos pais’ a cada virada da civilização, porque a
paternidade é uma instituição sociocultural que se transforma sem cessar sob a
pressão de múltiplos fatores”. Em 1981 destacam-se temas como: paternidade no
caso de homens estéreis, cujas esposas tiveram filhos por inseminação artificial de
um doador: pai durante a gravidez e parto, enfim novas relações entre homens e
mulheres. Estes temas desapareceram completamente em 1988.
Hurstel (1999, p.55) diz que, das pesquisas sobre a paternidade, é
possível afirmar que há duas dimensões que são atualmente aprofundadas, a saber:
a. a que utiliza como ponto de partida o grupo ou a coletividade. Ela nos ensina
que o pai é uma instituição em grande transformação;
b. a que utiliza como ponto de partida o individuo, na qualidade de ser psíquico,
nos mostra estruturas em atividades no sujeito e a importância do pai no
desenvolvimento da criança.
O presente estudo, trabalhando a primeira dimensão, entendendo a
paternidade coletiva como ponto de partida, será enfocado como uma instituição em
grande transformação. Assim, pretende-se defender a hipótese que a função
O lugar do pai: uma construção imaginária 18
paterna, independente de épocas ou lugares, nunca deixou de existir. Do ponto de
vista pulsional, sim, mudou-se a forma de circular a pulsão. Propomos-nos refletir
este movimento, que a priori afirmamos não se tratar de crise da paternidade ou
declínio da função paterna como atestam alguns, mas sinalizar a existência de um
novo movimento.
Com este objetivo, nosso trabalho se estrutura em sete capítulos. Nos
três próximos a intenção se restringe ao campo conceitual: o que é um pai? O que é
função paterna? Em diálogo com a História, uma rápida visita pela Antiguidade:
Egito, Mesopotâmia, oeste semítico, Grécia, Roma, para visualizar o pai que aí se
apresenta. No mundo bíblico, dada a influência da cultura judaico-cristã no ocidente,
interessa-nos estudar a concepção de Deus Pai. No terceiro capítulo, em diálogo
com a Antropologia, certificamos que a função paterna não passa pela função de
gênero, mas por um arranjo cultural de cada organização humana. No quarto
capítulo, embasados na Psicanálise, discutiremos o conceito de pai. Em Freud,
estudaremos os três mitos: “Édipo”, “Totem e Tabu” e “Moisés e o Monoteísmo”
(FREUD, 1923/1987; 1913[1912-13]/1987; 1939[1934-38]/1987); não temos aí uma
teoria do pai propriamente dita, e sim três versões do pai. De Lacan, interessa-nos o
conceito de função paterna, nome-do-pai e a pluralização do nome (LACAN, 2005).
No quinto capítulo discutir-se-á que o lugar ocupado pelo pai é uma construção
socioistórica e ideologicamente sacralizado; para assegurar este lugar, exige-se um
tamanho dispêndio energético, sobretudo para o pai patriarcal. No sexto capítulo,
depararemos com dois discursos: um versando sobre a crise da paternidade e outro
sobre o declínio. Apresentar-se-á uma terceira via em que se dirá nem um nem
outro, e sim, uma nova configuração, um novo jeito de circulação pulsional. Ao
término de cada capítulo será apresentada uma pequena conclusão que servirá de
suporte para a conclusão final.
A temática estudada é marcada pela complexidade. Complexidade que
denuncia nossa fragilidade ao abordar o assunto. Dentre muitas, citamos a
dificuldade em dissociar o tema família do pai. Entendemos que é possível falar de
função paterna sem mencionar a família. Optou-se por esta associação por entender
que a descrição do ambiente familiar pudesse ajudar na reflexão e compreensão.
Diríamos que as referências à família se deveram a uma ilustração que ampliasse o
campo de estudo. Ou talvez por entender que para falar de pai há que se pensar na
experiência de ser filho de um pai.
O lugar do pai: uma construção imaginária 19
E, finalmente, gostaríamos de apresentar a metodologia de pesquisa
utilizada. Das muitas viagens realizadas por estradas brasileiras, e sempre lendo as
famosas frases em caminhões, uma delas me chamou a atenção: “para quem não
sabe para onde ir, qualquer caminho serve”. A palavra metodologia vem do grego
odós: caminho, estrada. Como caminho, escolhemos a pesquisa teórica.
Entendendo que na pesquisa teórica o pesquisador está voltado para satisfazer uma
necessidade intelectual de conhecer e compreender determinados fenômenos, e
neste caso, entender se se trata de crise, declínio ou nova configuração da função
paterna. Segundo Demo (2000, p.36), a pesquisa teórica é uma pesquisa que se
"[...] dedica a reconstruir teorias, conceitos, idéias, ideologias, polêmicas, tendo em
vista, em termos imediatos, aprimorar fundamentos teóricos". A pesquisa teórica
tende a reconstruir teorias, quadros de referência, condições explicativas da
realidade, polêmicas e discussões pertinentes.
O lugar do pai: uma construção imaginária 20
NOÇÃO DE PAI: ANTIGUIDADE E
CONTEXTO BÍBLICO
O lugar do pai: uma construção imaginária 21
2 NOÇÃO DE PAI: ANTIGUIDADE E CONTEXTO BÍBLICO
E ninguém em nossa casa há de colocar o carro à frente dos bois: colocar o
carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que
um empreendimento exige (NASSAR, 1989, p. 55).
Para falar de paternidade, a primeira indagação que se é chamado a fazer
inscreve-se no campo conceitual: o que é um pai? O que é paternidade? O que é
função paterna? O percurso neste capítulo passará pelas antigas civilizações, como
Egito, Mesopotâmia, oeste semítico, Grécia, Roma, história de Israel, rastreando a
concepção de pai nestas civilizações e realçando, sobretudo, a concepção de Deus
como pai. Ressalta-se, porém, que a intenção refere-se unicamente a restituir o
tema a um contexto mais amplo, o que o exime de um estudo histórico exaustivo.
2.1 O pai na civilização egípcia e mesopotâmica
Segundo Ringgren (1970), no Egito, a palavra para designar pai era it,
referindo-se a pai terrestre e também para designar ancestral, e freqüentemente no
plural. De maneira geral, a idéia que se tem de pai é a de provedor, o que supre as
necessidades do filho. No mundo religioso, encontra-se também o vocábulo pai
como epíteto divino. Osíris é conhecido como pai de Horus. Horus atua em nome do
Pai. Vários são os deuses conhecidos como pai de deus: Atum, Re, Num, Beb, Ptah.
Na literatura suméria
1
, encontram-se três expressões para pai, segundo Ringgren
(1970): 1) a, later a – a, pai, progenitor; 2) ab – ba – pai, chefe de família; 3) ad – da,
encontrados em textos do Nipur
2
, e para os quais a palavra Elamita para pai é
relacionada. A diferença entre o primeiro dos termos é evidente, nos dois epítetos de
1
Suméria (ou Shumeria, ou Shinar; na bíblia, Sinar; egípcio Sangar; ki-en-gir na língua nativa),
primeiro povo a habitar a região da Mesopotâmia, o atual Iraque. Responsável pelos primeiros
templos e palácios monumentais, pela fundação das primeiras cidades-estado e provavelmente
pela invenção da escrita (tudo no período de 3100 a 3000 a.C.) Disponível em:
http://pt.wikipedia.org
. Acesso em: 30 de junho de 2007.
2
Nippur (sumério Nibru, acádio Niburu, "lugar de passagem") era uma importante cidade dos
Sumérios
onde estava o templo do seu deus principal, Enlil. Disponível em> http://pt.wikipedia.org.
Acesso em: 01 de julho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 22
En-lil: ele e chamado ab-ba dingir-dingir-e-ne, “pai de todos os deuses”, isto é, o
Pater Familias do mundo dos deuses; e a-a-kalam-ma, “pai da terra”, isto é,
progenitor e o criador do mundo.
Entre os acádios
3
, abu(m) designa pai e ao referir-se a pai físico,
progenitor, utiliza-se bãnû. O mesmo termo abu pode ser usado para rei,
administrador, mestre ou oficial (RINGGREN, 1970).
Tanto no Egito como na Mesopotâmia, a educação era de
responsabilidade dos pais. E era dever dos filhos manter o culto do ancestral,
sobretudo aquele que recebia a herança paterna. De maneira geral, segundo
Ringgren (1970, p. 4-5):
[...] os deuses são chamados também de Abu, com a idéia de genealogia
dos deuses. Mas este título aparece também sem a conexão genealógica.
Anu, Enlil, Sin, Assur, como por exemplo, são chamados abu ilãni, “pai dos
deuses”: Nanna-Sin é designado simplesmente como pai, mas também é
referido como abu kibrãti, “pai das regiões do mundo”; Anu é chamado
abusâ ilani, bãnu kalãma, “pai dos deuses e criador de tudo”. Abu same-u
ersetim, “pai do céu e da terra”. Nota-se que o vocabulário pai está
associado a criador ou genitor, expressão de poder e autoridade.
A relação de Deus com o homem é descrita como uma relação de pai e
filho. Assim, Deus é apresentado como alguém que tem piedade da mesma forma
que o pai perdoa o filho. Marduk, deus dos babilônios, era anunciado pelas pessoas
como se estivesse falando de um pai ou uma mãe, ressaltando a bondade e o
cuidado da divindade. Era natural, então, que chamasse a Deus de abi, meu pai.
2.2 O pai no oeste semítico
No oeste semítico, o termo usado para pai no sentido de ancestral era
byt`t, sempre no plural e referindo-se à família e à dinastia. Diz Ringgren (1970) que
3
A Acádia (ou Ágade, Agade, Agadê, Acade ou ainda Akkad) é o nome dado tanto a uma cidade
como à região onde se localizava, na parte superior da baixa Mesopotâmia, (no atual Iraque, a
cerca de 50 km a sudoeste do centro de Bagdá
). Os acádios, grupos de nômades vindos do
deserto
da Síria, começaram a penetrar nos territórios ao norte das regiões sumérias, terminando
por dominar as cidades-estados desta região por volta de 2550 a.C. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org
. Acesso em: 30 de junho 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 23
em outros textos ugaríticos EL é invocado como pai, como por exemplo: “O Bull El
4
,
meu pai”. Como epíteto divino, ´b é acrescentado a El. Ele é chamado ‘b hn зl “pai
dos filhos dos deuses”; ´b ´dm, “pai da humanidade”; ´b snm – sem uma explicação
satisfatória; uns dizem “pais dos anos”, ou “filhos de El” ou habitação celestial de El.
´B aparece com freqüência como um elemento teofânico em nomes próprios e como
substituto de nomes divinos, segundo Ringgren (1970, p.7), como em: “´brm, abi –
rãmi – o pai é exaltado; ´brpз, abi – rapi - o pai cura; ´bmlk, abimilku, ´bb´l, tr´b, as-
tar-a-bi, rasap-abi, rsp, rsp´b ´brsp, referindo-se a deus como pai”.
[...] nomes contendo ´b e ´h são fenômenos que podem ser encontrado na
literatura semítica do norte, e conclui que eles originaram na mesma época
em que o território semita do norte era uma entidade completamente
autônoma. Gradualmente, este tipo de nome tornou-se mais e mais
infreqüente entre as pessoas, embora novos nomes usando ´b e ´h
apareceram. Mais tarde, pode se observar que ´lyd ocorre tanto como ´byd´,
e lkrb tanto como ´bkrb, o que indica provavelmente que ´b é atualmente um
elemento teofânico. Isto pode ser explicado dada a condição religiosa da
antiga tribo do nordeste semítico, visto que o deus tribal era considerado
como pai (ou irmão) da tribo. Mas como ancestral tribal, a divindade não era
somente progenitor da tribo, mas a chefe, líder e protetor. Isto não pode ser
determinado se a ênfase principal seria colocada no progenitor físico ou na
proteção e cuidado de deus. É provável que o segundo veio mais e mais
para o primeiro plano (RINGGREN, 1970, p. 7).
2.3 O pai no mundo europeu e antiguidade greco-romana
O vocábulo pater, segundo Schrenk (1970), parece estar associado a
uma gagueira infantil (pá-pá-pá - mã-mã-mã) e interpretado pelos adultos como
papá e mãmã. Tanto no mundo indo-europeu como grego, pater está associado a
pai de família. Pai que pode ser estendido a avô ou bisavô. O mesmo pode ser
aplicado para ancestral e genitor. Sua figura está relacionada espiritualmente como
fundador de uma ocupação, uma tendência ou grupo. Pater não está associado a
uma relação de sangue, mas trata-se de uma projeção para o passado. Pode
também referir-se à representação de estágio de vida: um homem idoso ou honrado.
4
EL: primeiro registro da comunicação do homem com a divindade; o encontramos no livro de
Gênesis (escrito em hebraico). EL é o mais primitivo nome semítico, e sua raiz provavelmente
significa "Forte". É encontrado em nomes compostos antigos, nomes próprios tais como Beth-EL
= casa de EL; IsraEL = provavelmente soldado de EL; Daniel = EL é meu juiz. Disponível em:
http://www1.uol.com.br/biblia/revista
. Acesso em: 01 d julho de 2007 .
O lugar do pai: uma construção imaginária 24
Pode ser chamado de pai, porque recorda-nos nosso pai físico. Aqui se percebe
uma ligação do costume judaico de chamar abba ao professores.
[...] o termo pitar denota, num primeiro momento, genealogia. Pótis, como
termo legal e sociológico, denota chefe da família. Os termos pósis (grego)
e pátis (sânscrito), ambos referem-se a marido e chefe da casa. Chefe da
casa entendido como autoridade suprema com direito de punir, com poder
de libertar e prender os que pertencem a sua casa. O cuidado e a provisão
estão relacionados a sua função. Há uma mistura de bondade e severidade.
O movimento indo-europeu para a Ásia e Mediterrâneo, por volta de 2000
a.C., acabou influenciando culturas e pessoas que receberam este influxo.
Isto promoveu uma organização social numa linha estritamente patriarcal
(SCHRENK, 1970, p. 948).
2.3.1 Pai entre os gregos
O controle patriarcal, na casa e família, também é encontrado entre os
gregos. E este traço patriarcal encontra-se na postura que deuses assumem perante
Zeus. Os filhos e filhas criados por ele, segundo Schrenk (1970, p.950),
[...] devem obedecer sua autoridade paterna sem contestação. Sua ameaça
despótica ilustra o quadro. O mesmo conceito fundamental de autoridade
doméstica é encontrado em Platão, Heráclito e Aristóteles. Heráclito ao falar
de guerra, vai tomá-la como modelo, (polemós pánton mén patér esti pánton
sé basileus) dizendo que esta peneira e clarifica, ordena todas as coisas,
selecionando e também restaurando. Esta ligação do pai e rei é digno de
nota. Esta referência está basicamente, determinada pela idéia de controle
do senhor pai. Tal concepção vamos encontrá-la em Platão (Plat- Leg; III,
69ª) e em Aristóteles (Arist. Plo. I,7, p. 1255b, 19) ressaltando o poder da
casa parental.” (949) Platão considera a educação como prática visível de
exemplo. Plut.lib.educ20 (II,4ª): “os filhos devem ser capazes de ver a
caminhada de seus pais como um espelho.”(949) Para Philo, “o aspecto
fisiológico afeta fortemente o conceito de pai, mas pode se ver como uma
alegoria em Spec. Leg. II, 29 que o ideal de uma boa educação, é que o pai
deveria engendrar boas respostas e ações corajosas e sustentá-las com
uma doutrina humana de disciplina e sabedoria.
2.3.2 O pai em Roma Latina - patris potestas
O que se experienciou no mundo grego, desenvolveu na lei civil na Roma
Latina, a condição de pater familias e o patris potestas. O conceito está ligado a
dominium in domo, como afirma Schrenk (1970, p. 50):
O lugar do pai: uma construção imaginária 25
Isto denota o poder e a autoridade do pai de família e como marido. A
esposa está submetida a seu poder. A lei sacra é a base. Além de chefe da
casa, também é sacerdote. O dominica potestas estende-se não somente
aos filhos todos e em todas as idades, aos adotivos e também aos casados.
Isto perdura até a morte do pai. Sua autoridade alcança também os
escravos. O pai tem o poder de disciplinar e punir. Ele pode casar e
divorciar seus filhos como bem lhe parecer. Ele pode dar em adoção ou
emancipar. Segundo a lei romana antiga, o que o filho produz o faz para o
pai. Com o código de Justiniano (535), diminui-se o poder paterno.
No primeiro século depois de Cristo a influência das leis romanas era
visível nas leis gregas e se estendia por todo o mundo conhecido, inclusive pais
judeus que eram cidadãos romanos exigiam de Roma patris potestas, diz Schrenk
(1970).
2.4 O uso religioso da imagem do pai
2.4.1 A antiga base indo-iraniana da idéia de Deus como pai
A invocação da divindade sob o nome de pai é um fenômeno comum na
história da religião, diz Schrenk (1970). E acrescenta:
Esta concepção é encontrada em povos e culturas primitivos e elevados ao
redor do Mediterrâneo, Assíria e Babilônia. Em documentos antigos da
religião na Índia, encontramos formas como dyaús pitá (pai celeste). A
pressuposição que temos aqui na crença indo-européia na pessoa de Deus
supremo e celeste, é rejeitado pela maioria dos pesquisadores, não há um
consenso. Se este ponto de vista é improvável, não se pode duvidar que na
vegetação da Índia antiga, (chuva = semente) e a vida às quais ela faz
possível, cresceu a apartir da concepção de terra e céu. Para Dyaús, o pai,
corresponde a terra (Prthivi) como mãe, e Dyaús pita é chamada de janitá,
criadora. Algo similar para os gregos, Zeus patér, e para os romanos, Diovis
pater genitor (SCHRENK, 1970, p. 951).
2.4.2 Zeus pai e soberano
Entre os gregos, o pai aparece como provedor e cuidador. Dada a
condição patriarcal da organização social, o pai é investido de um poder pessoal, a
exemplo de Zeus, Deus soberano, com poder de punição. Na “Teogonia” (LEAL,
O lugar do pai: uma construção imaginária 26
1986), Hesíodo vai apresentar a origem dos deuses da época primitiva grega.
Hesíodo não inventa este mito, apenas o transcreve. O aspecto marcante da
primeira fase da geração divina é uma hierogamia (hieròs gamos, casamento
sagrado – esta grafia, em grego, é mais aceita, – Urano + Gaia); desse casamento
procede uma numerosa descendência. O casamento de deuses tem um valor muito
importante dentro da perspectiva da mitologia clássica. O seu objetivo é a fertilidade
da mulher, dos animais e da terra. E é um evento que atualiza a comunhão entre os
deuses e os homens, sendo resultado dessa comunhão a santificação, a
prosperidade e a felicidade de um povo. Outro fim da hierogamia é a transmissão da
vida, visto que esta instituição é responsável pela propagação da espécie.
Dentre os filhos de Urano (o céu estrelado) e Gaia (a terra de amplos
seios), nasceu Cronos
5
(o tempo), que é o caçula dos Titãs. É desse Titã a grande
façanha dessa primeira geração. Com uma foice (instrumento sagrado usado para
cortar as sementes, (spérma), esperma, e é o primeiro objeto de metal e foi
fabricado por Gaia), Cronos corta os testículos de seu pai Urano no momento em
que, ávido de amor’, ele se deitou com Gaia. O sangue que escorreu do corte nos
testículos caiu sobre Gaia, gerando muitos filhos (JUNITO, 1991, p. 252).
Esta atitude da parte de Cronos aponta para o primeiro conflito entre pai e
filho, ao mesmo tempo que serve como vingança da mãe Gaia, que sofria, não
podendo dar à luz aos seus outros filhos, mas que com a castração de Urano são
libertos. Ao castrar Urano, Cronos o afasta do poder (a virilidade está associada ao
poder) e tira sua soberania. Pode-se compreender que há um acontecimento de vital
importância neste primeiro momento da criação, que é a separação entre o céu e a
terra, feita pelo tempo. Nesse momento da passagem de um estado de caos para
uma nova explicação da realidade, é imprescindível esse separar-se para que outros
elementos constitutivos sejam incorporados e não haja a infinita soberania de deus.
Com a castração de Urano e a sua separação, foi possível, por exemplo, a
interposição entre esses dois, do éter e do ar (LEAL, 1986).
Apesar do conflito entre os deuses, não há uma interrupção da sua
origem. Ao expulsar seu pai Urano do trono, Cronos assume o governo do mundo e
5
Krónos, Crono, não possui etimologia segura até o momento. A aproximação com o verbo kraínein,
"concluir, vibrar o último golpe"' é foneticamente difícil de comprovar. A etimologia popular
relacionou Krónos com Krhónos, Tempo personificado, mas a semelhante aproximação é destituída
de qualquer valor lingüístico (JUNITO, 1991, p. 252).
O lugar do pai: uma construção imaginária 27
dá início à segunda geração dos deuses, já que de seu casamento com Réia
descendem vários deuses, dentre os quais Zeus.
O Bem, como ser supremo e divino, entre os gregos, era chamado
também pai, mas o deus Zeus manifestava a sua paternidade tanto na benevolência
quanto na ira e na maldade. O Papa João Paulo II (1999), em audiência pública,
falando sobre o rosto de Deus, recorre à “Odisséia (1999, 201-203)” onde se pode
ler: “Pai Zeus, ninguém é mais funesto do que tu entre os deuses: dos homens não
tens piedade, depois de os teres gerado e confiado à desventura e a graves
sofrimentos”
Este Deus que aí se apresenta como testemunha, por exemplo, o “Hino a
Zeus” do poeta Cleantes citado por Leal (1986), é um Deus tirano e arbitrário. A
idéia de um pai divino, pronto ao dom generoso da vida e próvido em fornecer os
bens necessários à existência, mas também severo e punidor, e nem sempre por
uma razão evidente, liga-se, nas antigas sociedades, à instituição do patriarcado e
transfere a sua concepção mais habitual para o plano religioso.
Na terceira geração, Zeus, lutando e vencendo todos os Titãs, consolida
seu poder diante do mundo e assume o governo como o soberano – o pai dos
deuses e o pai dos homens. É a vitória definitiva sobre todos os conflitos. Zeus é
exaltado como deus universal. A palavra pai abarca tudo, ambos humano e divino.
Zeus é entendido como chefe da casa. Ele é como se fosse o melhor exemplo de
mestre da casa. Esta concepção corresponde à concepção indo-européia. Segundo
Schrenk (1970), alguns autores expressaram isto, chamando-o de Zeus patrós, isto
se explica porque ele protege os direitos dos pais e parentes.
Então Zeus é o pai por excelência no sentido de família. Como os conceitos
humanos influenciam e sustentam a concepção religiosa, pode ser visto de
todos os atributos distintos do chefe da casa, os quais são atribuídos a
Zeus. A arrogância dos olimpos é um lado do patris potestas. Se ninguém é
tão terrível como ele, se ele não e simpático com os próprios filhos, isto não
significa dizer que há uma rebelião contra autoridade e severidade do pai.
Há um aspecto despótico neste ponto de vista do pai. Ele exerce o poder de
punir. Assim entendem porque Zeus é retratado como humano. (SCHRENK,
1970, p. 952)
O lugar do pai: uma construção imaginária 28
A “Teogonia”
6
, em linhas gerais, quer apresentar como se formou a
consciência do grego clássico. Esta formação começa com conflitos de opostos,
rivalidade, com parto, dor, corte e sangue. Esse primeiro momento é o despertar da
separação necessária, e aqui se trata de um estágio infantil desse povo. O segundo
momento é marcado pela instabilidade, pelo medo e pela insegurança; há também
conflito, sacrifício, parricídio e filicídio. Pode se comparar à adolescência? E por fim,
com a vitória de Zeus, dá-se a emancipação da consciência e da autonomia do
homem.
2.5 O uso do termo pai no Antigo Testamento
2.5.1 Uso lingüístico
A palavra ´abh – hebraica – para designar pai terrestre, possui uma
infinidade de significados. Segundo Ringgren (1970), Pai referindo-se a avô (Gn
28,13; Gn, 49, 29); Pai no sentido de ancestral, pai fundador, patriarca (Gn 10, 21;
1Rs, 15, 11; 2Rs 14, 3; Dt 1, 8; 6, 10). Geralmente o termo “os pais” é usado no
sentido de ser as primeiras gerações ou anteriores das pessoas, como por exemplo,
Ex 3, 15: “Javé, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus
de Jacó me enviou a vós. Este é o meu nome para sempre, e é assim que me
invocarão de geração em geração.” E outros textos similares: Num 20, 15; 1Rs
14,15; Jr 7, 22.
Às vezes, diz o autor, ´abh refere-se ao fundador de uma ocupação ou um
jeito de viver como, por exemplo, Jabal em Gn 4,20, que morava em tendas e teve
gado e tido como pai dos músicos. Em Jr 35, 6-8, Jonadab, o filho de Raquel, é
chamado de pai, de fundador do movimento recabita. Também ´abh, referindo-se a
uma pessoa valiosa, honrosa, um homem mais velho (1Sam 24,12). Encontra-se a
mesma expressão para professor (2Rs 2, 12; 6, 21); padre (Js 17, 10; 18, 19).
6
Teogonia - também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico de Hesíodo
(séc. VIII a.C.). Trata da gênese dos deuses, descreve a origem do mundo, os reinados de Cronos,
Zeus e Urano, e a união dos mortais aos deuses, desta forma nascendo os heróis mitológicos.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org
. Acesso em: 29 de junho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 29
Algumas vezes, ´abh é usado como protetor, o que ocupa o lugar do pai
(Sl 68, 6; Ecl 4,10; Jo 29, 16, Is 22, 21). Ou como conselheiro (Gn 45, 8, Mac2, 65;
11, 32) Outras vezes, ´abh refere-se a criador (Jo 38, 28), diz Ringgren.
O uso de ´abh com diferentes significados no Antigo Testamento está
baseado no fato de usá-la referindo-se para diferenciar uma geração da
outra e não se trata de relação ou vínculo entre pessoas. Assim, cada
representante de uma geração antiga era chamada ´abh e cada
representante da nova geração era chamado de ben. Isto explica como ´abh
pode ser usado como título de honra (RINGGREN, 1970, p. 8).
2.5.2 A concepção de pai no Antigo Testamento
Abbá é uma palavra primitiva sem nenhuma conexão com tronco, diferente
de ít (Egito) cujo significado pai é ao mesmo tempo, nome de uma planta
que faz alimento. Abbá tem apenas um significado e nada de estrangeiro
parece estar associado a ele. Sua origem parece estar ligada a uma fala
infantil. O mesmo ocorre com termos hebraicos que designam irmão e
sogro, que estão relacionados em natureza e uso. Deve-se observar
também que abbá é usado para antepassado, ancestral, sobretudo no
plural, referindo-se a uma agregação de várias casas ou famílias maiores.
(QUELL, 1970, p. 960).
Segundo Quell (1970), a família hebréia é formada pela casa do pai e
uma comunidade de pessoas subordinadas ao macho. A carta de Amarna
7
atesta
esta conexão, em que a casa exerce um sentido básico nesta construção. Em Gn
24, 23 lê-se: “Haverá lugar na casa de seu pai para que passemos a noite?”
Reconhece, aí, uma supremacia do pai. Num casamento poligâmico, diz o autor
[...] que filhos e filhas do mesmo pai e suas esposas e concubinas
constituem, com estes e outras, a casa do pai ou simplesmente a casa, daí
então o conceito de tribo na qual a autoridade do pai repousa no senso de
relação fraterna com uma tendência democrática. Aqui se esboça um
desenho da organização social. Esta tribo está sob a autoridade paterna
(QUELL, 1970, p.961).
7
Cartas de Amarna é a designação dada a um conjunto de tabuinhas em escrita cuneiforme
encontradas em Amarna
, uma das várias capitais do Antigo Egipto, que faziam parte do arquivo de
correspondência do Egipto com os seus reis vassalos e governadores em Canaã
. A
correspondência diz respeito aos reinados de Amen-hotep III e de Amen-hotep IV (mais conhecido
como Akhenaton
), tendo sido escrita em acádico, língua diplomática da época. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org. Acesso em: Dia 30 de junho de 2007
O lugar do pai: uma construção imaginária 30
No Antigo Testamento, segundo Quell (1970), de maneira geral, os
autores estão certos que encontraram na dignidade paterna a fonte de uma genuína
humanidade, que é nascida de Deus. A concepção paterna está reconhecida por ser
uma forte salvaguarda da degeneração ética. Há algo divino no pai e há algo
paterno em Deus.
2.5.3 Pai e outros termos de relação na religião tribal
O conteúdo referente a Deus Pai consiste em sentimentos humanos, em
geral, enraizados na relação de sangue, sentimento de confiança, respeito e
sentimentos de amor para com o chefe da raça.
O pensamento de Deus Pai é muito antigo, possivelmente muito mais antigo
do que a ordem grega cúltica amphictyonic, pois El de Ugarith
8
já era
conhecido como pai da humanidade no décimo quarto século. Em Moab,
para o povo de Camos, deus tinha se revelado aos seus filhos e filhas como
um pai protetor. A idéia surgiu entre as tribos agrícolas e pastoris, muito
antes de ser aplicado ao Deus de Israel (QUELL, 1970, p. 966).
Esta concepção deve estar relacionada à fonte Javista
9
, em que o
narrador de Ex 4, 22, fala Israel como primogênito de Javé. Talvez a tradição,
referindo-se à origem da religião javista, usou a palavra “pai” em lugar secundário,
porque foi fortemente carregada com conteúdo mitológico antigo da religião tribal e
poderia crescer muito facilmente para idéias errôneas e pagãs, diz Quell (1970).
8
Ugarit (Ras Shamra), foi uma cidade-estado portuária perto da cidade actual de Latakia, habitada
por cananeus. É importante por causa de sua grande literatura, relacionada com a literatura bíblica e
sua língua, parente da hebraica. As escavações aí realizadas enriqueceram muito os estudos
bíblicos nos últimos tempos. Foi destruída pelos filisteus. Disponível em: http://gl.wikipedia.org
.
Acesso em: 29 de junho de 2007.
9
Há quatro fontes de escritura da tradição oral bíblica do Pentateuco: a do sul, JAVISTA (J):
construída por volta do ano 950 a.C no reino do sul; Deus era invocado pelo nome de Javé; a do
norte, ELOISTA (E): escrita ao redor do ano 586 a.C Deus era cultuado com o nome de Elohim;
DEUTERONOMICA (D), encontrada casualmente em 622, e a SACERDOTAL (P), compilação das
catequeses antigas de Israel, datada do século VI a.C. Disponível em:
http://ronildobrites.blogspot.com
. Acesso em: 30 de junho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 31
A origem da designação da divindade tribal como pai deve ser procurada
em visões específicas quando do crescimento dos laços de sangue. Toda
vida humana cresce pelas gerações. Similarmente, o início misterioso da
referência de gerações encontra-se na propagação do poder da vida, não
pelo homem, mas por Deus. No solo de Israel há traços do mito da vida na
tribo de Gad, se a realidade corresponde às aparências, o nome divino de
Gad é relacionado em Is 65,11. E está relacionado para a designação da
tribo como filhos de Gad como atesta o livro dos Números 1, 24 (QUELL,
1970, p. 967).
É possível que algo similar aconteça na tribo de Aser
10
quando se
combina a origem dos patriarcas com o mito tribal. Não há certeza em afirmar que,
na tradição bíblica a origem da idéia de ancestral tribal seja a base para pensar o
conceito de Deus pai da tribo.
Mesmo se pudesse ser mostrado que os pais mortos fossem
considerados como força divina, como por exemplo, em 1Sm 28,13 para quem
houve uma inclinação em oferecer presentes (Dt 26,14); e a palavra usada para
descrever o espírito do morto dá-nos uma notável e similar palavra para pai isto
simplesmente mostra que a investigação da origem da crença no pai leva-nos de
volta para sugestões, dicas de pesquisa do pensamento os quais devem estar
assentados em sub estruturas rudimentares da religião de Israel, nas quais não tem
uma conexão orgânica com a crença em Javé, diz Quell (1970).
Tudo isto mostra que o conceito de pai não procede de uma crença genuína
em Javé, mas foi importado e recebido dele. A descrição de Deus como Pai
enfatiza muito fortemente os significados de um conceito biológico o fato de
que a associação com a divindade é uma relação de sangue. O senso de
distância ente criador e criatura é notavelmente diminuído, pois ele é
simplesmente construído em termos de posição social e legal do pai como o
soberano e senhor (QUELL, 1970, p. 967).
Esta concepção é inadequada para falar de Deus, ou melhor, da maneira
de Deus se relacionar com os homens. Aliás, esta concepção nunca foi bem aceita,
e sempre houve pessoas que julgavam que levaria à adoração dos antigos deuses,
os quais foram abolidos desde Josué: “Lança fora, pois, os deuses estrangeiros que
estão no meio de vós e inclinai vosso coração para Javé, Deus de Israel” (Js 24, 23).
E paralelamente poderia conduzir a práticas de formas religiosas ultrapassadas, do
termo “deus dos pais”. Digno de nota é que o termo “filho de Javé” ocorre apenas
10
Tribos de Israel, (12 filhos de Jacó) Rúben, Simeão, Judá, Zebulom, Issacar, Dã, Gade, Aser,
Naftali, Benjamim, Manassés e Efraim. Disponível em: http://pt.wikipedia.org. Acesso em: 01 de
julho d e2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 32
uma vez na forma solene em Dt 14, 1: “sois filhos de Javé, vosso Deus. Isto não se
estabeleceu; o povo foi chamado filho de Israel”.
2.5.4 Pai como conceito de autoridade
A vida social de Israel, segundo Ringgren (1970), é mais rural e
caracterizada pelo nomadismo. O fator determinante na estrutura social era a tribo e
o clã. Neste contexto, a parentagem e a genealogia eram consideradas importantes.
Assim, o aspecto tribal ou o ancestral é muito significativo. Em Is 51, 2, Abraão é
invocado como “seu pai”, no sentido de ancestral, pai tribal e exemplo de homem
destemido a ser seguido.
No seio da família israelita, a autoridade do pai era quase ilimitada; ele
era o mestre, chefe da casa; as crianças eram ensinadas a honrá-lo e temê-lo; ele
controla outros membros da família como o oleiro controla a argila (Is 6, 4-7). Ele
não é um déspota isolado, mas o centro de tudo o que lhe pertence, e tudo gira ao
seu redor. Quando um homem é chamado de pai, isto deduz da mesma coisa,
parentesco e autoridade são expressos pelo mesmo nome de pai. Para o israelita, o
nome de pai resulta em autoridade.
Segundo Ringgren (1970), o material legal no Antigo Testamento, no que
se refere aos direitos do pai, são fragmentos. Assim, em Ex 21, 7, o pai podia vender
sua filha como escrava. Em Gn 49, 4 ou 1Rs 1, 11, o pai podia tirar primogenitura,
embora no Deuteronômio tal prática fosse proibida (Dt 21,15-17). Em Gn 38, 24,
Judá mesma pronuncia a pena de morte para a nora, ao passo que, no Dt 21, 18-21,
a punição para o filho rebelde é deixada para os mais velhos da cidade. Em Dt 21,
18 diz-se que o dever da criança é obedecer aos pais. O quarto mandamento
“Honrar pai e mãe” deve ser estendido não somente à criança, mas a toda a unidade
da casa.
A literatura sapiencial diz muito mais a este respeito do que o material
legal do Antigo Testamento. A ênfase maior é dada à mútua responsabilidade entre
pais e filhos. Neste contexto sapiencial, a autoridade paterna é incontestável. Em Pr
19,26 é uma desgraça para um filho ameaçar seus pais. Em Jo 5,4, a
responsabilidade do pai aparece indiretamente quando o filho de um homem tolo
O lugar do pai: uma construção imaginária 33
não tem protetor. O primeiro que se pede a um pai é o temor a Deus. Em Prov 14,
26, ele será um refúgio para a criança. A literatura sapiencial enfatiza mesmo é o
treino da criança: um pai deve disciplinar seu filho ou ele o destruirá (p.19,18).
Várias passagens indicam o castigo corporal como importante na educação dos
filhos (3, 12; 4,3; 6, 20-27; 13, 1-24, p.10).
Nestes dados bíblicos, o interesse é mostrar a relação filial de Israel com
Deus. Tem-se uma intenção pedagógica que é a de imprimir no ser humano a
obediência a Deus e reconhecer sua soberania. Fundamentando-se em Dt 14, 1:
“sois filhos de Javé, vosso Deus”, introduz-se uma regulação legal e uma
interpretação no contexto de eleição do povo, o ato de Deus fazer, do povo, sua
possessão.
Posteriormente, o profeta Jeremias, amparado neste texto, compara a
relação Deus-povo, como a argila e o oleiro. Em Jr 18, 6, “Eis que, como a argila na
mão do oleiro, assim sereis vós na minha mão, ó Casa de Israel”, o que demonstra a
passividade e dependência ao desejo divino; porém, não sem alguma luta do motivo
do pai, amplia-a. “E, no entanto, Javé, tu és nosso pai, nós somos a argila e tu és o
nosso oleiro, todos nós somos obras das tuas mãos”, diz Is 64, 7. O que se quer
enfatizar, aqui, não é a criação ou providência,
[...] mas o poder do educador que molda o homem imperfeito, como se ele
fosse uma massa disforme, que com um pequeno toque pode fazer a
impressão. Isto é tolice, ensina a metáfora, para resistir à ação formativa de
Deus. Isto é apenas tolice e frívolo, e como perguntar a um pai: “Por que me
gerou”? Se Deus não é mencionado na questão como pai, Ele está nas
entrelinhas; Is 45,11, diz: “querem dar-me ordens a respeito da obra das
minhas mãos (QUELL, 1970, p.971).
O lugar do pai: uma construção imaginária 34
2.5.5 Deus como Pai
11
2.5.5.1 Nomes próprios
A expressão ´abh aparece em nomes próprios no Antigo Testamento,
referindo-se, sobretudo, a elementos teofânicos.
Ex: ´abhi´ asaph = meu pai reuniu / ´abhighayil = meu pai tem alegrou /
´abhidhan = meu pai tem julgou / ´abhidha = o pai me tomou conhecimento /
´abhihudh = o pai é majestade / ´abhihayil = meu pai é medo / ´abhichayil =
meu pai é poder / ´abhitubh = meu pai é bondade (RINGGREN, 1970, p.
16).
Estas expressões e muitas outras podem ser rastreadas e encontradas
em nomes antigos, os quais falam de uma idéia de divindade tribal como um
ancestral de membros da tribo, embora na história israelita pareça incerta tal
afirmação.
Percebe-se que em alguns casos, certos deuses são chamados de “pai”
como talvez ´abhi´el = meu pai é EL (1Sm 9, 1; 14, 15); ‘eli abh, “meu Deus
é Pai”; abhimeleckh, meu pai é MILK (Molech ou Molekh ou rei); abhshalom,
que significa “o pai é paz”. Finalmente nos nomes yo´abh e abhiyyahu, Javé
é designado como pai, provavelmente no sentido de protetor (RINGGREN,
1970, p.17).
2.5.6 Javé como pai do povo
No Antigo Testamento, raramente Javé é invocado como Pai.
Ocasionalmente é comparado como um pai: como um pai se apieda de seus filhos
(Sl 103, 13, Pr 3, 12). E em Nm 11, 12, Javé é apresentado mais como mãe do
povo. De uma maneira geral, é aquele que cuida e é responsável pela existência do
povo. Em Ex 4, 22, é apresentado como pai do povo. No Cântico de Moisés (Dt 32)
11
Embora Deus não seja invocado como mãe na Bíblia, podemos encontrar textos que sinalizam esta
concepção e falam da função do ser mãe: Isaías 66, 7-14: “[...] pois sereis amamentados e
saciados pelo seu seio consolador, pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo.” Oséias,
11, 1-11: “Israel era menino, eu o amei [...] do Egito chamei meu filho [...] Fui eu quem ensinou
Efraim a caminhar [...] Eu os tomei pelo braço, mas não reconheceram que eu cuidava deles. Com
vínculos humanos eu os atraia, com laços de amor, eu era para eles como os que levantam uma
criancinha contra o seu rosto. Eu me inclinava para ele e o alimentava.” E outros textos: Is 43, 1- 7;
Is 46,3-4; Lc 13, 34 (Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002).
O lugar do pai: uma construção imaginária 35
a referência a Javé como criador e fundador de seu povo estabelece sua exigência
de reconhecimento. Em Jr 31, 9 enfatiza-se o amor paterno e o cuidado Dele. Há um
paralelo com Ex 4, 22, em que Israel é chamado de primogênito.
Em Is 45, 9-11, enfatiza-se a divina autoridade do pai: aqui o pai é
comparado ao oleiro: da mesma forma em que o barro está disponível para o oleiro,
assim os filhos de Israel devem estar à disposição de Javé para que sejam
moldados segundo seu desejo e eles não têm o direito de questioná-Lo. A mesma
idéia é expressa em Is 64, 7.
Em Is 63, 16, enfatiza-se o poder do pai celeste de salvar e redimir. Javé
é o único pai que pode salvar. Ele é o Goel
12
. Já em Ml 2, 10, o ato de Israel ser um
filho carrega consigo a idéia de comportar-se como filho.
[...] todas estas idéias de Deus como pai do povo como propriedade sua,
não ocupa lugar central na fé de Israel. E sobressai uma das muitas figuras
às quais o Antigo Testamento usa para descrever a amizade entre Javé e
Israel. Estas figuras parecem terem sido criadas geralmente ah hoc; raízes
mitológicas são difíceis de serem apuradas (RINGGREN, 1970, p. 18).
2.5.7 Javé como pai do rei
A idéia de rei como filho de Deus, segundo Ringgren (1970), não é
característica de Israel. Em Sl 89, 27 diz que o rei chamará a Javé “Pai, Deus, e
Rocha de sua salvação”, e Javé fará dele o seu primogênito e o mais importante rei
da terra. Esta maneira de expressar Javé como pai, não se trata de um nascimento
físico, mas de uma amizade do rei para com Javé em termos de adoção. Tanto em
Salmos 2 como em 89, Deus é invocado como pai pelo rei, exatamente quando a
autoridade do rei está ameaçada. Assim, a adoção divina do rei é considerada uma
garantia divina de seu poder e autoridade. É o poder divino quem dá ao rei seu
poder.
12
GOEL (redentor) exercia o direito de ‘vingador de sangue’ (Nm 35.19,21,27 - Dt 19.12). outra
palavra hebraica é empregada para significar a redenção do primogênito (Êx 13.13,15). No N.T. as
duas idéias que as palavras redenção e remir do A.T. sugerem, são compra (Gl 3.13 - 4.5, e Ap
5.9), e libertação (Lc 1.68 - 24.21 - Rm 3.24 - Ef 1.7 - Tt 2.14 - 1 Pe 1.18). Disponível em:
http://www.bibliaonline.net/scripts/dicionario
. Acesso em: 01 de julho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 36
2.6 O conceito de Pai no Novo Testamento
Sempre que o Novo Testamento usa a imagem do “pai”, é baseada no
conceito de patriarcado.
[...] as características fundamentais da totalidade e autoridade demandam
que a vontade do Pai seja feita em obediência: “nem todo aquele que diz
Senhor, Senhor, entrará nos reino dos céus; mas sim aquele que pratica a
vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7, 21). Israel nunca isola o
“meu” da “propriedade do Pai”. Permanecer convivendo com o Pai é o
presente que contém todos os outros. Jesus pode resumir tudo na palavra
“Pai” apenas porque a realeza de Deus está sempre implicada na Sua
paternidade (SCHRENK, 1970, p.984).
Segundo Schrenk (1970), tomando as bases sociológicas nos Sinóticos e
em João, constantemente encontramos o ancião como autoridade patriarcal no
contexto da ordem social doméstica. Deixar o pai e o barco de pesca para seguir
Jesus é algo que foge aos costumes da época (Mt 4, 22). Normalmente, o filho
segue o mesmo trabalho do pai; os filhos são obrigados a trabalhar juntos como
deseja o pai. O mesmo se diz a respeito da propriedade do pai em Lc 15, 17.
Ainda segundo o autor, nos Sinóticos
13
, Jesus clama primeiramente o
amor dos discípulos acima dos laços familiares. Às vezes o homem tem que deixar
seu pai (Mt 19: 29, Mc 10: 29). Esta exigência precisa ser entendida a partir da
urgência do anúncio do Reino (Mc 9, 60). E exigências maiores vão se encontrar em
Lc 14, 26. O verbo odiar, neste contexto, deve ser entendido como sendo amar
menos. O que se pede não é a renúncia da família na forma de um voto ou um
compromisso especial. O que é requerido é a total e irreversível renúncia de tudo
que é terreno para enfocar o Reino de Deus e o discipulado.
Outros textos bíblicos falam de conflitos entre pais e filhos – família – por
causa do anúncio do Evangelho (Mt 10, 35, Mc 13,12). O abalo das relações
familiares corresponde à expectativa escatológica judaica; porém, agora a crise é
trazida simplesmente pela confissão da crença em Jesus.
13
Chamam sinópticos, os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas; desde que a exegese começou a
ser aplicada à Bíblia
ainda no século XVIII que os especialistas perceberam que eles
apresentavam grandes semelhanças em si, de tal forma que se colocados em três colunas
paralelas - donde vem o nome sinóptico, do grego
συν, "syn" («junto») e οψις, "opsis" («ver») -, os
assuntos neles abordados correspondiam quase inteiramente. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org
. Acesso em: 30 de julho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 37
O termo autêntico para Deus nos ensinamentos de Jesus tem sido
preservado no Aramaico original: Abbá (Mc1 4, 36, Gl 4, 6, Rm. 8, 15). De acordo
com Schrenk (1970, p. 985):
[...] a evidência lingüística corresponde à idéia de que “abba” é o balbucio
da criança, como no grego páppa. Se o pedido da criança corresponde ao
choro da angústia urgente no Getsemâni, em Paulo, também, a explicação
do termo é controlada apenas e simplesmente pela imagem do choro
infantil.
Essa palavra é sempre o original de patér nas orações dos Evangelhos. A
novidade aqui é a aplicação de um som infantil do cotidiano, sem inibição, a Deus.
Isso é bastante familiar.
Para Jesus, esse é o mais simples e sincero termo concebível para
expressar a atitude divina, além de implicar uma rejeição da pretensão
religiosa. Portanto, abba é uma palavra básica de fé na revelação de Jesus
e na confissão da Sua comunidade. Porém, isso não implica uma banal
autoconfiança que toma as coisas por certo. Essa palavra básica nos
mostra que Deus não é um Legislador (Ruler) distante, transcendental, mas
um Ser que está intimamente próximo (SCHRENK, 1970, p.985).
2.6.1 O significado da crença no Pai para os discípulos
Segundo Schrenk (1970), o poder vivo da imagem natural das normas
patriarcais dá vida até mesmo ao que é dito sobre a relação entre Jesus e seu Pai.
Nos Sinóticos há uma determinação total da vontade de Jesus pelo Pai, um total
consentimento no serviço da salvação. Sujeição implica limitação – uma renúncia de
qualquer conhecimento ou poder maior do que é dado para o Filho. Em Mc 13, 32 lê-
se: “quanto à data e à hora, ninguém sabe; nem os anjos, nem o Filho, somente o
Pai”; Aqui, Jesus lida com a ignorância da data da parousia
14
.
14
Pa·rou·sí·a significa "presença". O Expository Dictionary of New Testament Words (Dicionário
Expositivo de Palavras do Novo Testamento), de Vine, diz: "PAROUSIA, . . . lit[eralmente],
presença, para, com, e ousia, o ser ou o estar (palavra derivada de eimi), indica tanto a chegada
como a conseqüente presença. Disponível em: http://www.bibliaonline.net / scripts/dicionario
.
Acesso em: 01 de julho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 38
Em Mt 20, 23 tem-se: “sentar-se à minha direita ou à minha esquerda,
não cabe a mim concedê-lo, mas àqueles aos quais o pai tem destinado”; o mesmo
texto em Mc 10,40 omite o vocábulo “Pai;” mostra-nos que Jesus é limitado no que
diz respeito às formas maiores de serviço no Reino. “A paternidade carrega consigo
o domínio sobre o filho, e isso é a tarefa do filho de afirmar esses limites em perfeita
união com a vontade do Pai”, diz Schrenk (1970, p.992).
Jesus quando ora na paixão mantém essa sujeição: “seja feita a Tua
vontade” (Mc 14, 36). O único e superior desejo do Pai é afirmado em detrimento de
toda a própria vontade.
Os discursos preocupados com a revelação e declaração do Pai no Filho
não estão completamente inteligíveis para nós hoje, a menos que
lembremos da relação entre pai e filho no patriarcado: qualquer autoridade
que o filho tenha, ele recebe do pai. Esse é o presente do Pai que o Filho
distribui. Ele permanece inteiramente no serviço ao Pai (SCHRENK, 1970,
p.992).
2.6.2 Pai, nos escritos paulinos
Nos escritos paulinos, segundo Schrenk (1970), as normas familiares em
Col. 3,18-4, 1 e Ef 5, 22-6, 9 dão instruções explícitas para o pai. Aqui se encontra a
tradição helênico-judaica combinada com o costume popular. O Antigo Testamento e
a prática comum ensinam o mesmo. Mas os elementos gerais e naturais em Col. e
Ef são apresentados profundamente pela referência a kýrios (Senhor). Esse é o
ponto determinante aqui. A medida e o controle devem ser encontrados na nova
relação de fé. Essa é a base no mandamento em Col. 3: 20: “pois isso é agradável
ao Senhor.” O mesmo é chamado díkaios (justo).
Em Ef 6, 4 e tb Col 3, 21: E vós pais, não deis a vossos filhos motivo de
revolta contra vós, mas criai-os na disciplina e na correção do Senhor”, “são
diretamente contra uma corrupção por capricho e brutal da patria potestas.
A pedagogia do Cristianismo primitivo, no entanto, não descarta a lógica e a
psicologia, como mostra o raciocínio em Col. 3, 21 (SCHRENK, 1970,
p.1004).
O lugar do pai: uma construção imaginária 39
Segundo o mesmo autor,
[...] a disciplina caracterizará o pai, no entanto, por mostrar o interesse de
amor pelo filho. Essa passagem, que é usada no serviço da teologia do
sofrimento, pode também ser reconhecida como uma aceitação cristã do
patria potestas e ainda como uma crítica à sua forma terrena – sub specie
patris coelestis. É importante notar que em um casamento misto (crente e
não crente), Paulo em 1 Cor 7,14 não dá o voto decisivo ao pai, mas ao
parceiro crente: “o marido não cristão é santificado pela esposa e a esposa
não cristã é santificada pelo marido.” O parceiro incrédulo e o filho são
consagrados pelo parceiro crente. Esse fato divino é visto como superior a
todos os elementos humanos. Em nenhum outro lugar em Paulo, há algo de
significado essencial acerca de pais terrenos. Respeito pela idade
avançada, em 1Tm 5,1: “não repreendas duramente o ancião, mas
admoesta-o como a um pai”, é tanto ancestral quanto judeu (SCHRENK,
1970, p.1004).
2.7 O conteúdo do conceito de pai
Em Paulo e em outros lugares no Cristianismo primitivo a menção do Pai
não é apenas uma declaração dogmática da fé.
É uma declaração de adoração suprema. É reservada principalmente para
bênção, louvor e oração. O sonoro "Pai do nosso Senhor Jesus Cristo", que
corresponde melhor à proclamação de Paulo, é também uma oração. Mas
qual é o conteúdo dessa ligação de divindade com o conceito de pai?
(SCHRENK, 1970, p.1010).
A ligação de patér com theós deixa claro que a paternidade de Deus está
sempre conectada com soberania. O Cristianismo primitivo não tem culpa pela
eliminação desse aspecto. É o Pai quem determina todas as coisas no trabalho da
salvação (Gl 1, 4: “segundo a vontade de nosso Deus e Pai”), é ele quem legisla. No
testemunho dos apóstolos, declarações acerca da autoridade divina estão
combinadas com essa palavra.
A eleição do Pai é o exercício de poder da comunidade (1Pd 1, 2). A
ênfase cai sobre a obediência ao desejo do Pai. O Pai santifica a comunidade
guiando-a para a obediência (1Pd 1, 2). O objetivo da santificação na parousia
coloca-a ante da face do Pai como Juiz, Ts. 3,13: “por ocasião da vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo, cuja finalidade está em Fl 2,10”: “a fim de que ao nome de
Jesus todo joelho se dobre.”
O lugar do pai: uma construção imaginária 40
Nos documentos apostólicos, segundo Schrenk (1970, p.1011),
[...] o uso de “Pai” para Deus é sempre, com poucas exceções, controlado
pela revelação em Cristo. Há prova convincente de que a base do uso de
patér em Mt e Jo é cristã. Patér se tornou um termo da revelação no
Cristianismo. Em saudações e ações de graça a referência voltada para o
Pai como a autoridade suprema sempre leva consigo uma ênfase na Sua
superioridade soberana. que primeiro torna possível a crença verdadeira no
Pai.
2.8 O pai no judaísmo
O significado de patriarca nem sempre é explicitado, embora o senso
predomine. O pai pode ser uma simples geração primitiva, um ancestral de Israel. O
termo também pode estar incluindo todos os homens notáveis de Deus na Escritura
até o presente momento. Destacam-se, entre eles, os patriarcas, Abraão, Isaac e
Jacó, para quem o título é dado num sentido especial. São considerados “pais” do
mundo. Entre eles, Abraão é considerado como um pai completo e supremo. Ele é o
pai dos pais, o grande do mundo. Geralmente na sinagoga se diz nosso pai Abraão.
A expressão ocorre incontáveis vezes em toda tradição e em todas as
épocas. Mas sem o pronome “nosso”, Abraão é o pai; o título tornou-se
parte do seu nome. Em Gn 17, 4, é também o pai das nações: “serás pai de
uma multidão de nações.” Comparando-o com Isaac, Abraão é muito mais
proeminente. Em contrapartida, Jacó ou Israel aparece como pai em
inumeráveis ocasiões (SCHRENK, 1970, p.972).
A instância de pais para ancestral, encontrado também no mundo grego,
é empregada com o significado único no judaísmo. Os pais são rochas em que os
israelitas estão apoiados. Para a sinagoga, eles incorporam o princípio da tradição
da exortação clássica de Eclo 8, 9: “não te afastes do discurso dos anciãos, porque
eles mesmos estiveram na escola de seus pais”. Este ponto de vista fez crescer a
formulação como “nós temos a tradição de nossos pais”. Além disso, os pais
garantem a graça da aliança divina. O mérito dos pais, mediatizado pela
descendência física, conduz o povo. Israel depende deles. Para a crença popular, a
intercessão deles é sempre bem sucedida, pois suas próprias preces foram eficazes
e seus trabalhos, além de comparação. Por esta razão, a invocação do Deus dos
O lugar do pai: uma construção imaginária 41
pais na prece litúrgica é uma característica de expressão da religião dos pais. Aqui
nós encontramos uma forma constante e recorrente: “Javé, nosso Deus e o Deus
dos nossos pais” (SCHRENK, 1970, p.977).
2.8.1 Deus como pai no judaísmo
No judaísmo anterior a Jesus, no segundo e primeiro séculos, a
invocação de Deus como pai é aparente, tanto no sentido coletivo como no
individual. Que a cultura helenística contribuiu para o fortalecimento deste conceito
no judaísmo, não é surpresa.
A única diferença, como pode ser visto, é que na Palestina, o acento não é
o cosmos e a genealogia, mas teocrático e nacional. Do fim do primeiro
século depois de Cristo, na religião, o uso do “pai” tornou-se mais comum
na sinagoga, sobretudo nos séculos segundo e quarto. A liturgia judaica
moderna reflete esta influência. Coube ao Cristianismo primitivo, expandir
esta concepção de Deus como pai (SCHRENK, 1970, p. 978).
No Antigo Testamento, as expressões em Dt 32, 6, “não é ele teu pai e
criador?” e em Is 63,16, “com efeito, tu és nosso pai”, em particular, promoveram na
religião o uso do nome do pai. Paternidade de Deus entendida como uma
disposição, atitude e ação. Há uma referência específica para Ele de proteção e
cuidado do seu povo.
Encontram-se expressões bíblicas como “pai que estás nos céus”, que,
na verdade, expressa ou uma maneira de descrever o pai divino ou uma maneira de
exaltá-lo em comparação com o pai terrestre. Esta expressão aparece após o ano
70 d.C., o que pode estar associado com a destruição do templo de Jerusalém,
significando que o que está no céu pode servir agora para substituir o que foi
destruído na terra (SCHRENK, 1970).
O lugar do pai: uma construção imaginária 42
2.9 Conclusão
Gostaríamos de comentar alguns pontos que nos chamaram a atenção ao
estudar a origem e concepção de pai na antiguidade e nas Sagradas Escrituras. O
primeiro deles refere-se aos nomes encontrados. A concepção de pai é expressa
nas mais variadas formas e com os mais variados nomes. Os nomes são vários,
porque várias são as funções. Um nome não abarca tudo, há algo que sempre
escapa na realidade, daí a necessidade de outro nome para completar, embora se
sabendo, não complementar.
Outro ponto refere-se à suposta origem do nome pai, ou seja, o balbucio
ou sussurrar de uma criança. Diante do desamparo, impotência e da fragilidade, o
bebê procura alguém que o ampare tanto do ponto de vista de sua imaturidade
biológica quanto do ponto de vista de sua “imaturidade pulsional”. Chamou-se isso
de Pai, em Freud, e função paterna em Lacan. O desamparo e a cena edípica
constituem um campo possível de encontro com a alteridade, encontro que
possibilita o aparecimento do sujeito.
15
Outro ponto significativo é a relação do filho-pai no Egito no pós-morte,
em que a veneração pelo pai, sobretudo pelo filho mais velho, é marcada por um
sentimento de exaltação. O pai morto, recorda-nos Freud (1913 [1912-13])/1987), dá
resposta que dera quando lhe perguntaram o que é um pai. Na Mesopotâmia, a
concepção de pai, seja a biológica ou de Deus, é a de um pai criador, genitor,
realçando o pai como figura de poder e autoridade.
A relação emocional pai-filho, independente da época ou lugar, não
deixou de expressar uma contenção e algo da ordem do desprazeroso. Pode-se
notar a ambivalência desta relação em que se misturam sentimentos de bondade e
severidade. Como afirma Freud, em “O futuro de uma ilusão”:
Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na
realidade, é somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos
em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em
relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente
nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos
que conhecíamos (FREUD, 1927/1996, p.26).
15
O conceito de sujeito é uma categoria moderna e seu surgimento é contemporâneo à ciência.
Embora este conceito integre o campo conceitual da psicanálise, podemos dizer que se trata de
um conceito lacaniano, já que esta categoria não se encontra em textos freudianos.
O lugar do pai: uma construção imaginária 43
Esta dimensão de autoridade é algo fortíssimo e constante na Bíblia,
sobretudo nos escritos sapienciais. Em Provérbios 19, 18, em paralelo com
Deuteronômio 21,18-21, fala-se em educar o filho antes que ele destrua o pai, o que
pode sinalizar a dimensão do pai como agente da castração; Freud
(1930[1929])/1987) fala da necessidade de contenção da pulsão livre dentro das
normas culturais; a pulsão precisa ser canalizada. Cabe aos pais, sobretudo no lugar
de posição de poder assimétrico referente à criança, detendo privilégios que
interditam a mesma, sustentar a função socializadora, isto é, o pai na condição de
Outro aponta a via da humanização pela inserção da cultura; o pai, o mediador. Para
fundar-se a si mesmo é necessária uma anterioridade e exterioridade simbólica.
Este pai, investido das insígnias do poder, polariza afetos intensos e ambíguos.
A concepção paterna entendida como salvaguarda da degeneração ética
- fonte de uma genuína humanidade -, é algo significativo, e pode-se ler aqui a
função do pai no Complexo de Édipo, em que este “retira e resgata” o sujeito do
campo da mãe. O pai interditor, aquele que opera o corte no vínculo incestuoso mãe
e filho, não é um pai qualquer. Não se trata exclusivamente do pai enquanto pessoa,
do pai da realidade, daquele que está ou não presente no universo familiar. Trata-se
de um pai que, mesmo ausente do universo familiar, deve estar presente no
Complexo de Édipo. Antecipa-se no desejo da mãe, como aquele que, além de
portar o objeto de seu gozo, é potente o suficiente para operar o corte e instituir a
falta simbólica no filho. Este pai, o pai imaginário, cuja imagem é apresentada ao
filho através do discurso materno, se materializa e se sustenta nos significantes
maternos. Este pai possibilita ao filho lugar na ordem simbólica como sujeito
desejante.
A concepção de Deus como pai é fruto de dois textos bíblicos: Dt 32, 6:
“não é ele teu pai, teu criador” e Is 63,16: “com efeito, tu és nosso pai”, externando a
paternidade de Deus como disposição de atitude e sempre vinculado ao pai protetor
e cuidador. O núcleo do livro de Deuteronômio provavelmente escrito por volta de
620-621 a.C. e o livro como um todo são atribuídos ao rei Josias (640-609 a.C.)
como motivo da reforma política religiosa. A concepção de pai e Deus se entrelaça
no contexto bíblico e toda imagem é sempre vinculada à figura de autoridade
No Novo Testamento, como vimos, Jesus anuncia, como valor absoluto e
intocável, a relação com Deus Pai e o serviço ao Reino. Este valor fará erigir a
independência em face da família de uma forma desconcertante tal como aconteceu
O lugar do pai: uma construção imaginária 44
com Jesus quando de sua perda no templo ao dar aos pais a seguinte resposta
diante da aflição de ambos: “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas do Pai?”
(LUCAS, 2,49,) Ao anunciar o Reino de Deus, Jesus coloca como condição aceitar a
Deus como Pai e, a todos, como irmãos e irmãs.
A crítica que Jesus faz ao pai e à família judaica é direcionada a uma
estrutura que perpetua o poder e o autoritarismo do pai, negando a dignidade da
mulher e filhos e fomentando uma lógica contrária ao Reino de Deus. Esta
percepção de família nega a novidade que Jesus traz com o Reino e para as novas
relações embasadas na fraternidade.
A novidade de Jesus reside aqui precisamente: em que a família por mais
natural e estranhável que seja não pode ir contra outra maneira de construir a família
mais radical e universal: a de serem todos filhos do único Pai do céu e a de serem
todos irmãos. Este é o mais importante, o primeiro e o absoluto. Qualquer família
contrária a estes princípios merece a reprovação de Jesus.
Uma vez que a concepção de pai e Deus se entrelaça, pode-se deduzir
qual a concepção de Deus naquele momento. É curioso porque, nas primeiras
pregações de Jesus, a concepção de Deus como pai consiste uma prioridade. E
partindo de parábolas como Filho Pródigo, Ovelha Perdida e Dracma Perdida (Lc
15), Deus é o Pai que reúne os filhos e vizinhos na CASA para festejar. O que difere
radicalmente do Deus pregado no templo de Jerusalém; pois, aí, este se apresenta
como o “Deus” do puro e do impuro, que separa os filhos, salvando uns e
condenando outros. Os impuros são os analfabetos, cobradores de impostos,
pobres, mulheres quando menstruadas, algumas profissões, tocar em mortos, sejam
animais ou pessoas. E para obter a purificação, precisam pagar uma taxa aos
dirigentes do templo. O perdão está condicionado ao econômico.
Nas civilizações antigas, estruturadas em sistemas patriarcais, embora o
pai apareça como todo-poderoso, tirânico como o patris potestas, a função paterna
não deixou de existir. “Bravo” ou não, temido ou admirado, o pai não deixou de ser
uma instância de recusa e referência ao mesmo tempo. Recusa no sentido de
castração e adiamento da satisfação pulsional imediata e referência porque fala de
uma identificação ao pai; este sinaliza a existência de uma lei que diz à criança que
mais tarde poderá desejar outra mulher.
O lugar do pai: uma construção imaginária 45
NOÇÃO DE PAI – CONSIDERAÇÕES
ANTROPOLÓGICAS
O lugar do pai: uma construção imaginária 46
3 NOÇÃO DE PAI – CONSIDERAÇÕES ANTROPOLÓGICAS
O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem
de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada
solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro
crepuscular (NASSAR, 1989, p. 22).
3.1 Dimensão conceitual: teorias sobre a paternidade
No capítulo anterior, a idéia principal consistia em uma rápida visita às
antigas civilizações e pensar, a partir daí, o lugar do pai. Neste terceiro capítulo
continuamos com nossa indagação primeira: o que é pai? O que é função paterna?
Grosso modo, a resposta que vem de imediato é que pai é aquele que gera um filho,
fruto da relação com sua parceira, ou seja, é o biológico que está determinando.
Acontece, porém, que visitando diferentes culturas e populações, verifica-se que
sustentar a paternidade, a partir do biológico, é algo para além do insustentável.
3.2 Função paterna – uma contribuição da antropologia
3.2.1 Teorias da concepção
Malinowski (apud PARSEVAL, 1986), ao falar dos Trobriandes, no que se
refere à concepção, afirma que o verdadeiro pai da criança era o tio materno.
Segundo Ernest Jones (apud PARSEVAL, 1986), psicanalista, e o antropólogo G.
Roheim (apud PARSEVAL, 1986), tanto os Trobriandeses quanto as tribos
australianas afirmam “[...] que estas encontram uma forma brilhante de bloquear o
Édipo e transferir para o tio materno os sentimentos naturalmente ambivalentes dos
filhos para com os pais e vice-versa” (MALINOWSKI apud PARSEVAL, 1986, p.23).
Entre os Gurmantchês (Alto Volta – África) a relação pai-filho é marcada pela frieza;
a educação da criança compete ao tio paterno e a este é endereçada toda a afeição.
Já entre os Txicaos, Mato Grosso, o sêmen paterno constitui o único componente do
O lugar do pai: uma construção imaginária 47
embrião. Entendem eles que, para preservar a criança, são necessárias várias
cópulas durante a gravidez; assim, o pai-genitor e co-genitores contribuem para que
não falte esperma. A mãe nada mais é do que um continente para a criança
(PARSEVAL, 1986).
Já entre os Mojaves, pai é aquele quem mais contribui com o esperma.
Neste sentido, se há dúvida em definir quem é o pai, o faz-se pelo maior tempo que
o homem coabitou com a mulher nos primeiros meses de gravidez. Assim, o
verdadeiro pai para os Monjaves (África) não é o que tem fecundado a mulher, mas
“[...] aquele com quem é socialmente reconhecido por todos, é aquele com quem
efetivamente seu filho se parece, seu pai nutriz (in utero)” (PARSEVAL, 1986, p. 25).
Os Samos, do Alto Volta – África –, entendem que a concepção é proveniente da
“água do sexo da mãe” (isto é, um coágulo de sangue que irá formar o corpo,
esqueleto e órgãos da criança) e a ”água do sexo do homem” (esperma que se
transforma em sangue dentro da mulher e forma o sangue da criança). Essa teoria
dual fala de uma divisão entre dois sexos não de forma eqüitativa. É o pai quem vai
perceber que houve a fecundação e é ele quem vai sentir a fadiga masculina da
concepção, acompanhada de sonolência, dores nos joelhos e cotovelos. Trata-se de
um verdadeiro resguardo, aliás, muito precoce. Nota-se uma aspiração muito forte
da semente do masculino (PARSEVAL, 1986).
Na América do Sul, entre os índios Tupis, embora sejam as mulheres que
levam no ventre as crianças e dão à luz, são os homens que têm um papel
importante; são eles que estão submetidos aos tabus alimentares e outros
comportamentos bem rígidos. Entende-se entre os Tupis que o esperma do pai é
que alimenta a criança durante a gravidez (PARSEVAL, 1986).
Entre os Chaggas e Kgtlas, a mulher pode ser acusada de adultério e o
pai de não-paternidade se a criança for concebida por uma única relação sexual.
Entre os Arapesh, a criança é entendida não como resultado de uma relação sexual
momentânea, e sim como todo um processo de cuidado. Em outras etnias, como,
por exemplo, os Davindas, pensam eles que a criança é formada por músculos e
sangue doados pela mãe, e o restante do corpo é oriundo do pai. Na África
Ocidental, algumas tribos entendem que o pai dá origem aos ossos e a mãe, à
carne.
Estas teorias, na verdade, são meios de explicar a formação dos corpos,
e diferentes concepções de paternidade e maternidade, segundo Parseval (1986).
O lugar do pai: uma construção imaginária 48
3.2.2 Teorias do pós-parto
Segundo Erikson (apud PARSEVAL, 1986), nas sociedades tradicionais,
o pós-parto é o período que coincide com a amamentação, momento em que o pai é
literalmente excluído da relação com a mãe e a criança.
Entre os Sioux, por exemplo, nesta fase inicial de três a cinco anos da
criança, o pai não se aproxima da mãe e a relação sexual é suspensa, pois o leite
poderá ficar aguado, provocando diarréia na criança e, conseqüentemente, sua
morte (PARSEVAL, 1986).
Para Menguet (apud PARSEVAL, 1986), entre os Txicaos, há uma
proibição de copular com mãe que amamenta. Esta norma se aplica ao genitor, aos
co-genitores, estendendo a proibição de relação sexual com todas as mulheres que
não a mãe. Caso isto aconteça, a criança começa a vomitar e se esvaziar,
culminando na morte.
Entre os Samos do Alto Volta, a proibição do ato sexual pós-parto deve-
se a uma crença que a introdução do esperma na matriz de uma mulher interfere na
produção do leite, secando-o. Entre os Massais e Kipsigis, a proibição da relação
sexual antes de seis meses vai no mesmo sentido; o esperma, ao passar para o
seio, provoca uma diarréia mortal (PARSEVAL, 1986).
No Senegal, há algo diferente. O pai está implicado no ato do desmame
que se inicia em torno dos dois anos. Rabain (apud PARSEVAL, 1986, p.28) relata
que: “É freqüente os pais descreverem o desmame por meio desta imagem: a
criança deixa o seio da mãe e acompanha o pai que compra biscoitos, bolinhos para
ele”. Assim o pai substitui a mãe no papel de nutridora da criança.
No Togo, entre os Kotokolis, o pai separa-se da mãe, voltando a residir na
cabana. Se neste período a mulher fugir com um amante e a criança morrer, o
amante é condenado e morto, por ter traído a mãe e a criança (PARSEVAL, 1986).
Cartry (apud PARSEVAL, 1986) estuda o comportamento do
Gurmantchês do Alto Volta no Markiagu (um ritual de paternidade), referente à
primeira relação sexual entre o pai e mãe, após a volta do parto. A mãe deve a
criança ao pai e é o que permite o retorno do pai para terminar a criança. Entendem
eles que é o pai quem dá olhos à criança. É o esperma do pai, via este ritual, que
permite à criança receber olhos e ter a possibilidade de enxergar. Segundo Cartry,
O lugar do pai: uma construção imaginária 49
trata-se de uma desplacentização da criança. Por este ritual é como se fosse
apagado todo vínculo da mãe com a criança e o pai se apresentasse na sua função
de pai. Em caso de morte do marido, é o irmão mais novo quem faz o ritual e
assume também a viúva.
Devereux (apud PARSEVAL, 1986), ao estudar os índios Mojaves,
verifica vários ritos paternos de resguardo propriamente ditos. Havia o costume de
dar um banho no pai, ato feito pela esposa ou pela mãe. Devereux entende que este
gesto é uma identificação do pai com o filho e, concomitantemente, uma maneira de
romper com a dependência para ser pai.
Na teoria ocidental moderna, segundo Parseval (1986), o pai é
literalmente bloqueado cabendo-lhe apenas o espaço na concepção. Ao contrário
das sociedades tradicionais, é também considerado perigoso manter relações
sexuais durante a gravidez. Após o nascimento, as relações sexuais são
aconselhadas e sentidas como positivas e benéficas para o casal e filhos. A
concepção ocidental de pós-parto não valoriza mais o leite materno que ao esperma
durante a gravidez. Isto porque os momentos maternos se reduzem à gravidez e ao
parto.
Na cultura ocidental, “o conhecimento biológico ou médico é sempre
utilizado por uma cultura em função dos seus objetivos ideológicos” (PARSEVAL,
1986, p.32). Assim, baseados em conhecimentos científicos em relação à fisiologia,
a concepção da criança ficou reduzida ao campo feminino e materno, excluindo o
pai de todo o processo, o que se pode afirmar é que sempre houve uma negação da
paternidade.
Concluindo essa temática relativa à concepção e ao momento pós-parto,
no sentido de responder à questão inicial, o que é um pai, pode-se continuar a
indagação:
[...] de que se está falando, quando se fala de paternidade? Do genitor, do
protetor durante a gravidez, do homem que pratica o resguardo, daquele
que se define em relação à gravidez, ou ao período após nascimento?
Trata-se do marido da mãe, ou daquele que cria os filhos e assegura-lhes o
sustento, ou é finalmente, aquele que dá seu sobrenome, ou até mesmo
seu nome? (PARSEVAL, 1986, p.33).
O lugar do pai: uma construção imaginária 50
3.2.3 Dimensão paterna
Entre os Wik Monkans, tribo autraliana, segundo estudos realizados por
Thonson (1936), há uma distinção entre paternidade biológica e paternidade social,
bem como a existência de uma série de vocábulos para nomear diversos papéis e
diferentes paternidades:
[...] entre os pais sociais fazem notadamente uma distinção entre irmãos do
pai biológico, com uma subdistinção entre os irmãos mais jovens e os
irmãos mais velhos, que são os pais no sentido classificatório do termo [...]
Em todos os casos o pai é considerado aquele que alimenta seus filhos (do
mesmo modo que os alimentou com seu esperma por meio de atos sexuais
regulares durante a gravidez) (THONSON, 1936, p. 35).
Entre os Nayars – Keral Central (Índia) há uma divisão de funções entre o
pai ritual e os amantes (genitores); vários homens desempenham um papel
puramente social. Em outras áreas da Índia, o pai ritual é aquele que, no sétimo mês
de gravidez, juntamente com a mulher, participa de um ritual, onde numa refeição dá
o nome à criança; este pai não precisa ser necessariamente o que teve relação
sexual com a mãe e a fecundou (PARSEVAL, 1986).
Para os Txicaos, embora a paternidade se estruture sobre a fisiologia -
para crescer o embrião, necessidade de muito esperma - a legitimidade do pai é
dada via casamento.
A legitimidade paterna precede o nascimento, e não é conseqüência. Aliás,
uma vez que o bebê nasce os co-genitores se eclipsam, e seus filhos
legítimos serão submetidos ao tabu do incesto em relação aos filhos para os
quais seu pai, pode-se dizer, “fez resguardo” (PARSEVAL, 1986, p.35).
Verifica-se, aqui, um primado do artificial sobre o natural
Nas tribos dos Guaiquis existem dois pais: apaete, pai verdadeiro do
recém-nascido segundo o casamento poligâmico e não segundo uma paternidade
biológica; e o pai apavai, meio pai. É a posição do casamento que indica qual dos
homens é o pai da criança: será sempre o marido principal, mesmo que o biológico
seja o marido secundário. Esta concepção é interessante, pois entre os Guaiquis, o
nascimento de um filho, sobretudo o primogênito, coloca o pai numa situação de
O lugar do pai: uma construção imaginária 51
risco mortal, risco este de que o pai precisa escapar assumindo alguns
comportamentos e evitamento (PARSEVAL, 1986).
Entre os Samos do Alto Volta, era como se a primeira paternidade fosse
bloqueada institucionalmente:
[...] o primogênito de uma mulher não é o filho do marido legítimo da mãe,
que é seu pai social, e sim o filho de um amante oficialmente reconhecido; a
criança nascida nessas condições deve sempre desconhecer a identidade
de seu genitor (PARSEVAL, 1986, p. 36).
Algo extremamente interessante acontece entre os Muer da África
Oriental, sistema patriarcal, onde a mulher estéril pode ser considerada pai. Héritier
diz:
Se uma moça casa e não tem filhos, ao fim de alguns anos, volta a sua
família de origem, com um estatuto de homem. Suas mulheres a chamarão
“meu marido”. Ela contrata um genitor, que será a um só tempo criado e
genitor [...] suas mulheres terão filhos que a chamarão de “pai” (HÉRITIER
apud PARSEVAL, 1986, p.37).
Algo similar ocorre entre os Bavendas – África do Sul. Se a mulher for
filha única, não pode suscitar descendência, pois o sistema de parentesco é
patrilinear. Neste caso, a mulher será pai, casando-se com outras mulheres que
terão filhos de amantes oficiais. Assim, os genitores da mulher pai terão uma
descendência, segundo o sistema patrilinear, seu nome, bens e filhos. Esta mulher,
além de pai, pode ser mãe, ter seus próprios filhos. Assim, tem-se uma mulher, pai-
mãe, ainda que o pai seja simbólico, ao mesmo tempo (PARSEVAL, 1986).
Em algumas tribos africanas, dado o sistema de crença, a criança que
nasce é o avô ressurrecto – a paternidade está ligada simbolicamente ao avô.
E o que dizer dos solteiros, estéreis e velhos? Entre os Gurmantchês não
há confusão entre relação física e relação social. Prova disso é o fato de que um
velho que se tornou impotente pode pedir a um mais moço de seu clã que tenha
relações sexuais com a sua esposa legítima, na esperança que ela procrie
novamente. Aos olhos de todos, o fruto de tal união será considerado filho
plenamente legítimo do velho. Esta criança é chamada bantolin, que quer dizer “eles
me ajudaram”. Desta forma, fica evidente que a paternidade nada tem a ver com
casal, fertilidade e juventude (PARSEVAL, 1986).
O lugar do pai: uma construção imaginária 52
Se uma família entre os Kitokilis do Togo não tem filhos, há algumas
soluções. O marido permite que a mulher saia e tenha um filho com outro homem e
volte para ele sem a criança. A mulher não foi privada de sua maternidade. Outra
saída é o adultério, em que a mulher concebe a criança, e esta é considerada “filha
do ladrão”. Compete ao pai social educá-la, amá-la, criá-la como filho. Para os
Kotokolis é o amante quem foi roubado e não o marido (PARSEVAL, 1986).
A história de Israel, nos seus primórdios, relatada no Antigo Testamento,
fala de leis tribais e de clãs, em que a paternidade social é evidenciada. No Antigo
Testamento, Dt 25, 5-10, encontra-se a Lei do Levirato: “Quando dois irmãos moram
juntos e um deles morre, sem deixar filhos, a mulher do morto não sairá para casar-
se com um estranho à família; seu cunhado virá até ela e a tomará, cumprindo seu
dever de cunhado. O primogênito que ela der à luz tomará o nome do irmão, para
que o nome deste não se apague em Israel. Se o irmão recusar... “Não quero
desposá-la”... então a cunhada se aproximará dele na presença dos anciãos, tirar-
lhe-á a sandália do pé, cuspirá em seu rosto e fará esta declaração: “É isto que se
deve fazer a um homem que não edifica a casa de seu irmão”; e em Israel o
chamarão com o apelido de “casa do descalçado”. Segundo esta lei, considera-se
pai o social e não o biológico.
No Novo Testamento, Jesus diz: “Não chameis ninguém de Pai sobre a
terra, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus.” Esta concepção de
paternidade concede a Deus e à sua Palavra o poder fecundante [...]. “No princípio
era o verbo” (Jo 1, 1), Pela Palavra tudo feito [...] pela Palavra Maria concebeu
Jesus.
Em síntese, pensar a paternidade traz, em si, pensar a reivindicação da
propriedade da criança. Há sociedades centradas nos laços de sangue, outras nos
laços de leite, outras ligadas à mãe, outras ainda, ligadas ao pai, onde a filiação é
patrilinear e outras ligadas ao clã. Assim, pode-se afirmar que a paternidade e a
maternidade não se sustentam em base natural: fisiologia, idade, sexo, são
paradigmas, referências para se pensar, reinterpretar e reelaborar todo um sistema
simbólico de representação de cada sociedade.
Diante de modalidades tão artificiais de atribuição a cada sexo de papéis no
processo de parentalidade, não se pode deixar de constatar que não são os
dados biológicos que determinam, e sim, a utilização que deles fazem as
diferentes ideologias. E a cultura é uma entidade social e fantasmática
O lugar do pai: uma construção imaginária 53
complexa, que passa por diferentes conceitos operatórios. (PARSEVAL,
1986, p. 43).
Os membros de um clã se caracterizam por ter um único e mesmo
sobrenome, proveniente de descendente, de um ancestral comum. Segundo Raviere
(
apud PARSEVAL, 1986, p. 44):
[...] talvez seja nas sociedades de base clânica, que fazem uma distinção
ente pater e genitor, sendo que o primeiro prevalece para decidir sobre o
estatuto social da descendência, que encontramos os exemplos mais
nítidos do primado do estatuto social do parente sobre todo vínculo físico.
Ou como afirma Rivers (apud PARSEVAL, 1986, p.44), “não é o
nascimento que permite determinar pertencimento da criança a uma família, mas a
realização de um ato social”.
Retomando a questão elaborada no início: o que é um pai, quem cumpre
a função paterna ou quem serve de referência para que a criança tenha um lugar na
sociedade? Pode-se recorrer a Parseval (1986) para as possíveis respostas. Assim
tem-se:
O(s) genitor(s); o amante oficial; o protetor da mulher durante a gravidez;
aquele que pratica o resguardo (pré ou pós-natal); aquele que desempenha
um papel no parto ou durante o pós-parto; o marido da mãe (principal ou
secundário); o(s) irmão(s) da mãe (tios maternos); o(s) irmão(s) do pai (tios
paternos); o avô; um homem da mesma linhagem; um homem pertencente
ao mesmo clã; aquele que cria a criança; aquele que dá sobrenome ou que
adota; aquele que reconhece a criança, legal e ritualmente; aquele que
transmite uma semelhança; um velho considerado impotente; um solteiro;
uma mulher estéril; um homem considerado estéril; Deus (PARSEVAL,
1986, p. 46-47).
3.3 Conclusão
Ao retomar a questão inicial “o que é um pai”, os estudos antropológicos
remetem à dimensão do pai como função, como aquele, ou aquela, através de quem
um ato social se efetua. Há culturas que se firmaram embasadas em laços de
sangue, de leite, outras à mãe, ao pai e outras, ao clã. A organização social de
diferentes culturas mostra um arranjo interno e externo que, independentemente da
questão biológica da figura do pai, sobressai a dimensão da função. Não se trata de
O lugar do pai: uma construção imaginária 54
uma questão de gênero – masculino ou feminino - mas de função. Pode-se dizer que
sempre haverá alguém que fará o papel de configurar a criança simbolicamente na
organização social e esta função não está ligada necessariamente à figura paterna
propriamente dita. Sobre o pai como função, diz a Psicanálise ser esta função
constituinte e condiciona o acesso do sujeito à sua própria conformação psíquica e
desejante. Assim, a paternidade sinaliza para algo totalmente diferente da dimensão
da natureza, pois é uma convenção, que para além do papel biológico, social ou
familiar, permite ao sujeito referir-se à sua própria ascendência simbólica.
O lugar do pai: uma construção imaginária 55
DO PAI EM FREUD À FUNÇÃO
PATERNA EM LACAN
O lugar do pai: uma construção imaginária 56
4 DO PAI EM FREUD À FUNÇÃO PATERNA EM LACAN
Talvez nem meu pai tenha existido para mim enquanto o tive, e só agora
está vivo: na sua distância, na minha liberdade de imaginá-lo como devo
desejar. As coisas perdidas ou inalcançadas foram as únicas que possuí
(CANÇADO, 1979, p. 27).
Neste capítulo nossa intenção, partindo da psicanálise freudiana e
lacaniana, esboçar os traços básicos da teoria do pai. A teoria freudiana acerca do
pai enraíza-se na história do mito de Édipo, o desejo pela mãe e o ódio pelo pai,
depois passando pelo nascimento da cultura a partir do assassinato do pai em
“Totem e Tabu” (FREUD, (1913[1912-13])/1996) e finalmente no romance histórico,
“Moisés e o Monoteísmo” (FREUD, (1939[1934-38])
(1996). Neste quarto capítulo
discutiremos o que é um pai e o que é função paterna. Embasaremos nossa
discussão em Freud e Lacan.
4.1 O pai no complexo de Édipo
4.1.1 A dissolução do complexo de Édipo no menino
O estudo do complexo de Édipo será baseado nos textos de Freud, “O
Ego e o Id” (1923/1996) e “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924/1996). Em
Ego e Id pode se ler:
O caso de uma criança do sexo masculino pode ser descrito do seguinte
modo. Em idade muito precoce o menininho desenvolve uma catexia objetal
pela mãe, originalmente relacionada ao seio materno, e que o protótipo de
uma escolha de objeto segundo o modelo anaclítico; o menino trata o pai
identificando-se com este. Durante certo tempo, esses dois relacionamentos
avançam lado a lado, até que os desejos sexuais do menino em relação à
mãe se tornam mais intensos e o pai é percebido como um obstáculo a eles
(FREUD, 1923/1996, p.44).
A identificação com a figura paterna se reveste de hostilidade e nasce aí o
desejo do menino de se livrar do pai e, assim, assumir o seu lugar junto à mãe. A
relação com o pai se expressa numa ambivalência de sentimentos, ou seja, amor e
O lugar do pai: uma construção imaginária 57
ódio. A identificação ambivalente pode concretizar-se tanto numa exteriorização
carinhosa como no desejo de supressão. Poderia falar de uma extensão da primeira
fase da organização da libido, a oral. “Uma atitude ambivalente para com o pai e
uma relação objetal de tipo afetuoso com a mãe constituem o conteúdo do complexo
de Édipo positivo simples no menino”, diz Freud (1923/1996, p.44-45).
A identificação paterna ou materna no complexo edipiano para ambos os
sexos, segundo Freud, seria, aparentemente, resultado das forças das disposições
sexuais. Por outro lado, o complexo de Édipo mais completo, positivo e negativo,
revela a bissexualidade originalmente presente na criança. Isto significa que:
[...] um menino não tem simplesmente uma atitude ambivalente para com o
pai e uma escolha objetal pela mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se
comporta como uma menina e apresenta atitude afetuosa feminina para
com o pai e um ciúme e uma hostilidade correspondentes em relação à mãe
(FREUD, 1923/
1996, p.46).
A fase de identificação com a figura paterna assume uma dimensão de
ambivalência – amor, ódio, e com o desejo de suprimir o pai – é o que constitui a
passagem do pai da pré-história do complexo de Édipo.
No centro do complexo de Édipo está a castração, que é o organizador
simbólico das pulsões. A castração coincide com o momento do reconhecimento da
diferença anatômica entre os sexos e da representação psíquica que a criança faz
em decorrência dessa diferenciação. Nesta fase, o interesse da criança volta-se
para os genitais, e tudo é dotado de pênis; o pequeno Hans (FREUD, 1909/1996),
por exemplo, dizia que a mesa tinha pipi, que as cadeiras tinham pipi. Em outro
momento, a criança distingue os seres inanimados dos seres vivos e posteriormente
fixa a atenção nos seres humanos, crendo que todos são dotados de pênis; porém,
não percebendo a diferença anatômica entre homem e mulher.
Freud (1924/1996) diz que a ameaça de castração é a que ocasiona a
destruição da organização genital fálica da criança. Como se processa? A mãe
percebe que a excitação sexual da criança está direcionada a ela mesma e daí a
proibição da masturbação; porém, esta proibição não é eficaz; “o menino não
acredita na ameaça ou não obedece absolutamente”, diz Freud (1924/1996, p.22).
Isto porque a mãe não é modelo e sim objeto de desejo. A mãe recorre então ao pai.
[...] geralmente é de mulheres que emana a ameaça; com muita freqüência,
elas buscam reforçar sua autoridade por uma referência ao pai ou ao
O lugar do pai: uma construção imaginária 58
médico, os quais como dizem, levarão a cabo a punição (FREUD, 1924/
1996, p. 194).
Freud mostra como a mãe introduz o pai, lembrando que o menino já o
tem como rival e modelo, ocupando este dois lugares contraditórios. Mediado pela
mãe, o pai é apresentado como modelo e juiz castigador. Esta concepção de pai, de
juiz castigador, segundo Freud, surge da impotência da mãe quando da ameaça de
castração. “A mãe invoca o nome do pai para manejar o filho. Não seria, pois, um
pai que impõe a lei, mas um juiz a serviço da mãe”, diz Aberastury (1985, p.21).
Para que a ameaça de castração surta efeito é necessário alguns
requisitos.
A observação que finalmente rompe sua descrença é a visão dos órgãos
genitais femininos. Mais cedo ou mais tarde a criança, que tanto orgulho
tem da posse de um pênis, tem uma visão da região genital de uma menina
e não pode deixar de convencer-se da ausência de um pênis numa criatura
assim semelhante a ela própria. Com isso, a perda de seu próprio pênis fica
imaginável e a ameaça de castração ganha seu efeito adiado (FREUD,
1924/
1996, p.195).
Ao término do Édipo, a catexia objetal deve ser também abandonada pelo
menino e aí ser preenchida ou por uma identificação com a mãe ou uma
intensificação de sua identificação com o pai. Assim, a dissolução do Complexo de
Édipo “[...] consolidaria a masculinidade no caráter de um menino e de forma
análoga, na menina, pode ser intensificação de sua identificação com a mãe,
resultado que fixará o caráter feminino da criança” (FREUD, 1923/1996, p.45).
E a autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí firma o núcleo do
superego, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste
contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal. As
tendências libidinais pertencentes ao complexo de Édipo são em parte
dessexualizadas e sublimadas e em parte são inibidas em seu objetivo e
transformadas em impulsos de afeição (FREUD, 1924, p.196).
O lugar do pai: uma construção imaginária 59
4.1.2 A dissolução do complexo de Édipo na menina
O complexo de Édipo na menina, segundo Freud, é muito mais simples
que o do menino.
Raramente ele vai além de assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude
feminina para com o pai. A renúncia ao pênis não é tolerada pela menina
sem alguma tentativa de compensação. Ela desliza do pênis para um bebê.
Seu complexo de Édipo culmina com um desejo, mantido por muito tempo,
de receber do pai um bebê como presente – dar-lhe um filho (FREUD, 1924/
1996
, p.198).
Estes desejos – ter um pênis e um bebê - não se realizam. Permanecem
catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para o
seu papel posterior.
Em termos conclusivos, além do exposto, Freud (1923/1996) sinaliza
outras possibilidades na dissolução do complexo de Édipo. Ele se refere à repressão
ao invés de identificação, como base patológica. Fala da possibilidade de
identificação invertida do menino com a mãe e da menina com o pai, também como
fonte patológica. Outra possibilidade é a renegação ou o repúdio da diferença dos
sexos.
Em linhas gerais, a organização resultante do complexo de castração e
complexo de Édipo é uma representação simbólica, o que possibilita o acesso à
cultura, dada a constituição do superego que se encarrega de manter a proibição do
incesto, a interiorização da lei e que, por meio do ideal do ego, facilitará a
identificação com os valores sociais. Todo este processo abre à criança a
possibilidade de se constituir como sujeito autônomo, que é portadora de um desejo
e um pensar, e concomitantemente, a possibilidade de constituição da noção de
alteridade.
4.1.3 Freud e a herança arcaica
Ao mesmo tempo, esta situação ( cena edípica) não é tão simples assim,
pois Freud vai falar também, ora da herança arcaica, transmissão das experiências
O lugar do pai: uma construção imaginária 60
ancestrais, ora, das fantasias originarias (Urphantasie) constitutivas do Eu em “O
Mal Estar na Civilização” (1930 [1929] p.129)/1988 vol. XXI, diz Freud:
[...] contudo, a influência genética, que conduz à sobrevivência do que
passou e foi superado, faz-se sentir como eram de início. O superego
atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à
espera de oportunidades para fazê-lo ser punido pelo mundo externo.
A experiência mostra, contudo, que a severidade do superego que uma
criança desenvolve, de maneira nenhuma corresponde à severidade de
tratamento com que ela própria se defrontou. [...] Isto significa que, na
formação do superego e no surgimento da consciência fatores
constitucionais inatos e influências do ambiente real atuam de forma
combinada. O que, de algum modo, é surpreendente; ao contrário, trata-se
de uma condição etiológica universal para todos os processos desse tipo
(p.133).
Na Conferência XIII – Vol. XV - Aspectos arcaicos e Infantilismo dos
Sonhos, diz Freud que no processo de elaboração do sonho há que se levar em
conta a pré-história do individuo e
de outro lado, até onde cada indivíduo de alguma maneira recapitula, em
forma abreviada, todo o desenvolvimento da espécie humana, também a
pré-história filogenética [...] Parece-me que as conexões simbólicas que o
indivíduo jamais adquiriu por aprendizado, podem, com razão, exigir serem
consideradas como herança filogenética (p.201).
A mesma temática é encontrada em textos de Freud como: “Totem e
Tabu” (1913[1912-13]/1996), “Os Instintos e suas Vicissitudes” (1915/1996);
“Conferência X: simbolismo nos sonhos” (1916-17[1915-17]/1996); “Conferência XI:
sobre a elaboração onírica” (1916[1915-16]/1996); “Conferência XXIII” (1917[1915-
17]/1996), “Uma Neurose Infantil” (1918[1914]/1996), “Interpretação dos Sonhos”
(1900-1901/1996), Uma criança é espancada” (1919/1996); “Ego e o Id”
(1923/1996); “Análise terminável e interminável” (1937/1996); “Moisés e
Monoteísmo” (1939[1934-38]/1996), “Além do princípio do prazer” (1929/1996).
4.2 A função paterna no complexo de Édipo em Lacan
Na estruturação edipiana, além dos três elementos principais, pai, mãe e
filho, Lacan (segundo Aberastury 1985) introduz o falo, significante da diferença;
O lugar do pai: uma construção imaginária 61
elemento que em nível simbólico virá preencher o vazio que marca a incompletude
do homem. Objeto entendido pela criança como aquele capaz de satisfazer o desejo
materno, cujo trânsito no complexo edipiano organizará a subjetividade. No
desenvolvimento libidinal, segundo a teoria infantil, todos os seres são portadores de
um pênis, essa é a premissa universal: crença no genital masculino. E como
articulador do Édipo, o falo é vivenciado em três tempos lógicos propostos por
Lacan.
4.2.1 Primeiro tempo
Neste primeiro momento, segundo Souza Pires et al. (2004), a criança se
identifica com o que é objeto de desejo da mãe: é desejo do desejo da mãe, ou seja,
a criança supõe ser o objeto de desejo da mãe susceptível de preencher a falta do
outro, o falo. Por outro lado, na mãe existe o desejo de algo mais do que a
satisfação do desejo da criança; por trás dela se alinha toda esta ordem simbólica, o
falo. Assim a criança está sujeita ao desejo da mãe. A questão que se coloca para a
criança é ser ou não ser o falo.
Segundo Aberastury, citando Lacan:
Nesta fase não se tem outro meio de satisfação do que chegar ao lugar do
objeto de desejo. Entende-se que neste estádio o eu não se vê forçado
designar-se como tal no discurso para ser suporte desse discurso. Para
coincidir com o objeto de desejo da mãe basta que esse eu da mãe se
converta no outro do menino, que o menino renuncie à própria palavra - o
que ainda não é muito difícil - e receba, no nível metonímico, a mensagem
bruta do desejo da mãe. O menino está destinado a ser submetido
enquanto assume inteiramente o desejo da mãe (LACAN apud
ABERASTURY, 1985, p. 31).
4.2.2 Segundo tempo
O pai entra em cena como privador da mãe, e o faz duplamente: priva o
menino do objeto do seu desejo e priva a mãe como objeto fálico. A mãe, ao
reconhecer a lei do pai, conduz a criança a um deslocamento do objeto fálico: o pai
O lugar do pai: uma construção imaginária 62
é suposto ter ou não ter – dialética do ter. Desta forma, o pai é levado à dignidade
de pai simbólico.
Segundo Aberastury (1985, p.31), “[...] aqui há uma substituição da
demanda do sujeito: ao dirigir-se ao outro, eis que encontra o Outro do outro, sua lei.
O desejo de cada um submetido à lei do desejo do outro”. O pai interditor, terrível,
segundo o autor,
[...] intervém a título de mensagem para a mãe e, portanto, para o menino, a
título de mensagem sobre sua mensagem: uma proibição, um não. Dupla
proibição. Com respeito ao menino: não deitarás com tua mãe. E com
respeito à mãe: não reintegrarás teu produto. Aqui o pai se manifesta
enquanto ou Outro? e o menino é profundamente sacudido em sua posição
de sujeição: o objeto de desejo da mãe é questionado pela interdição
paterna. A primeira relação ternária é quebrada por esta segunda etapa,
transitória e capital, que permite a identificação com o pai (ABERASTURY,
1985, p.31).
4.2.3 Terceiro tempo
O pai intervém como aquele que tem o falo e não como aquele que é tal,
e reinstaura a instância do falo como objeto desejado da mãe e não como objeto de
que pode privá-lo como pai onipotente. A criança percebe que há algo que a mãe
deseja no pai, o falo, então não se trata de ser privador. É a partir deste lugar que o
pai aparece para a criança como alguém a se espelhar, como o ideal do eu, pela via
da identificação. Nesta fase, o pai aparece como permissivo e doador.
A menina se subtrai da função de objeto de desejo da mãe e depara-se
com a dialética do ter sob a forma do não ter. Ela encontra a identificação possível
na mãe.
Segundo Souza Pires et al. (2004), a reposição do falo no seu devido
lugar é estruturante para ambos os sexos. O pai, como possuidor do falo, tem
preferência junto à mãe, atestando a passagem do registro do ser ao ter, prova
manifesta do funcionamento da metáfora paterna.
Em termos conclusivos, ao falar do lugar do pai no complexo de Édipo,
Hernández, citando Michel Silvestre, diz:
[...] a entrada no Édipo é desencadeada pelo pai, desencadeamento que é
sucessivamente denominado de obstáculo, detenção, interdição, ameaça,
O lugar do pai: uma construção imaginária 63
dirigidos tanto à mãe quanto à masturbação. A saída do Édipo, seu
“declínio”, tem uma única significação: a morte do pai, ou mais
precisamente, a entrada em cena do pai morto (SILVESTRE apud
HERNANDÉZ, 2004, p. 44).
4.3 O pai em “Totem e Tabu”
Em “Totem e Tabu” (FREUD, (1913[1912-13])/1996), segundo Marcos
(2006), a concepção de pai expressa é a daquele que introduz a rede simbólica, o
que assegura o nome e a lei. Tanto em “Édipo” como em “Totem e Tabu”, o pai
apresentado é o pai morto, isto é, só tem acesso a ele como morto, como simbólico.
Ele aparecerá como pai após o assassinato e os filhos o reconhecem como tal no
pós-morte.
Em “Totem e Tabu” (1913 [1912-13]/1996), Freud afirma que deve ter
havido em um certo tempo pré-histórico, um pai terrível, prepotente e possuidor de
todas as mulheres, um chefe incontestável; neste período, a humanidade se
organizava em bandos de fêmeas, estando estas sob o domínio de um macho, que
expulsava todos os filhos machos, quando atingissem a maturidade sexual. O filho
que não seguisse as regras do grupo seria castrado e morto.
Aconteceu, porém, que um grupo de filhos excluídos resolveu enfrentar o
pai; eles mataram e devoraram seu corpo; coube a cada filho um pedaço, o que
resultou num impasse: o desejo pelas fêmeas foi o motivo da morte do pai e, agora,
a quem competiria assumir o lugar do pai assassinado? Nenhum dos filhos tinha
forças suficientes para derrotar os demais membros e a luta entre todos não
resultaria em nada. O bando se confronta com um limite não imposto
arbitrariamente, mas oriundo de uma proibição verificada de uma espécie de limite
real a seu desejo incestuoso.
Do assassinato do pai, os irmãos são forçados a renunciar ao desejo de
ocupar o lugar do pai e gozar como ele; renunciar à onipotência e, sobretudo,
cumprir uma lei fundamental: não tocarás nas mulheres da horda. Há aí o advento
da castração, segundo a concepção lacaniana, uma parte de pacificação da pulsão,
bem como o aplacamento do gozo do Outro sobre o sujeito (CRESPO, 1998). Em
outras palavras, promove-se um assentamento da lei, um limite, onde antes reinava
O lugar do pai: uma construção imaginária 64
a desordem. Daí a proibição de casamento e de manter relações sexuais entre os
membros do mesmo clã. Segundo Enriquez (1983, p.35),
[...] a proibição do incesto não é apenas um elemento indispensável ao
funcionamento da família, à aceitação da aliança e da filiação (e logo, à
estruturação do indivíduo); ela se torna o elemento central em torno do qual
se organiza o socius e que, segundo Levi Strauss, permitirá definir a
fronteira entre natureza e cultura.
Freud, escrevendo a Jones, segundo Enriquez (1983) afirma que há uma
grande diferença entre o desejo de matar o pai e o ato. Lévi Strauss, seguindo esta
lógica freudiana, segundo Enriquez (1983), para que uma culpa surja, basta apenas
o sonho. Mas não existe sonho que não se ligue a um ato. Se ninguém houvesse
matado o pai, se ninguém houvesse cedido à tentação e não houvesse cometido o
que Redl chamara o “ato iniciador”, suscetível de exercer “uma influência maléfica”,
não se poderia compreender por que leis e regras tão severas foram promulgadas”
(ENRIQUEZ, 1983, p.44). Segundo o antropólogo James Frazer, inspirador de
Freud:
A lei só proíbe o que os homens seriam capazes de fazer sob a pressão de
alguns de seus instintos. Aquilo que a própria natureza proíbe e pune não
tem necessidade de ser proibido e punido pela Lei (FRAZER apud
ENRIQUEZ, 1983, p.44).
Contrariando este princípio, a Psicanálise nega a versão inata sobre o
incesto, aliás, admitir tal princípio seria negar a idéia fundante da constituição do
sujeito via Édipo. Daí Freud recorrer ao mito darwiniano, da horda primitiva. Para
explicar que o incesto não é algo da ordem da natureza, Freud (segundo MOREIRA,
2002) irá associar o mito da horda primitiva com o totemismo e o Complexo de Édipo
em que o Caso Hans será o intelector entre a psicanálise e as discussões
biossociológicas.
A fobia vivenciada por Hans expressa um deslocamento do medo do pai
para o cavalo, em que o pai representa o agente interditor na cena edípica. Freud
(1913[1912-13], 1996, p.134) afirma:
A análise também nos permite descobrir os motivos do deslocamento. O
ódio pelo pai que surge num menino por causa da rivalidade em relação à
mãe não é capaz de adquirir uma soberania absoluta sobre a mente da
criança. Tem de lutar contra a afeição e admiração de longa data pela
mesma pessoa. A criança se alivia do conflito que surge dessa atitude
O lugar do pai: uma construção imaginária 65
emocional de duplo aspecto, ambivalente, para com o pai, deslocando seus
sentimentos hostis e temerosos para um substituto daquele. O
deslocamento não pode dar cabo do conflito, não pode efetuar uma nítida
separação entre os sentimentos afetuosos e hostis. Pelo contrário, o conflito
é retomado em relação ao objeto para o qual foi feito o deslocamento: a
ambivalência é estendida a ele. Hans não apenas tinha medo de cavalos,
mas também se aproximava deles com admiração e interesse.
Para Freud, segundo Moreira,
a estruturação da organização totêmica segue a lógica do sintoma fóbico de
Hans. O Totem é geralmente um animal que demarca os limites, deveres e
direitos do grupo e entre os grupos e será a partir do totemismo que a
exogamia surgirá (FREUD apud MOREIRA, 2002, p. 86).
O que é um Totem? Freud (1913 [1912-13]/1996, p.112) diz: via de regra,
é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um
vegetal ou um fenômeno natural que mantém uma relação peculiar com o clã. Em
quase todos os lugares em que encontramos totens, encontramos também uma lei
contra as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem e, conseqüentemente,
contra o casamento. Trata-se então da exogamia, uma instituição relacionada com o
totemismo.
Pode-se verificar na organização totêmica que há uma lei a que todos
estão submetidos. Aqui, pode-se correlacionar o Totem ao Édipo, pois há, em
ambos, uma figura que representa e que dita uma lei de proibição do incesto.
Freud (1913 [1912-13]/1996), comentando Robertson Smith, fala de uma
refeição totêmica que tem a ver com a participação dos membros dos clãs ao
compartilharem uma parcela de algo que foi utilizado no sacrifício. “Todos os
animais sacrificatórios eram sagrados, sua carne proibida e só podia ser consumida
em ocasiões cerimoniais e com participação de todo o clã” (FREUD, 1913 [1912-13]/
1996, p.141). Tais sacrifícios marcavam a união entre membros de diferentes totens.
Freud vê neste animal totêmico a figura do pai que interdita a relação incestuosa,
quando afirma:
A Psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto
do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a
morte do animal seja uma regra proibida, sua matança, no entanto, é uma
ocasião festiva. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o
complexo-pai em nossos filhos e com tanta freqüência persiste na vida
adulta, parece estender-se ao animal totêmico e capacidade de substituto
do pai (FREUD,
1913 [1912-13]/ 1996, p.144).
O lugar do pai: uma construção imaginária 66
Qual a relação existente entre a refeição totêmica e o mito da horda
primitiva? Na horda, “[...] encontramos um pai violento e ciumento que guarda todas
as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem” (FREUD, 1913
[1912-13]/1996, p.145). O ódio a este pai provoca a ira dos filhos que se reúnem e
planejam a morte do tirano e devorá-lo num banquete, criando, assim, “[...] pelo ato
de devorá-lo, a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua
força” (FREUD, 1913 [1912-13]/1996, p.145). Segundo Moreira (2002, p. 222),
A morte do pai poderia destruir a estabilidade social, pois os irmãos são
rivais e não existe nenhuma autoridade que demarque os limites entre os
indivíduos. Entretanto, o banquete proporciona a introjeção da lei paterna
através da incorporação canibalesca. O sentimento de culpa proveniente do
ato será a base da moralidade, a nova organização social e da religião.
Ou como atesta Freud (1913[1912-13] 1996, p.145):
a refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria
assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e
criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das
restrições morais e da religião.
Segundo Gomes (2003), as formulações de “Totem e Tabu” mostram que
a morte do pai não liberou o acesso à satisfação pulsional, tendo, ao contrário,
intensificado a sua interdição. Após o assassinato, os filhos se viram em estado de
abandono e, devido a um anseio inextinguível pelo pai, criaram um substituto,
primeiramente encarnado na figura do totem e posteriormente na figura de Deus, um
pai glorificado.
A religião seria uma resposta ao anseio pelo pai, como atesta Freud
(1939/1996, p.123-124):
E pode começar a raiar em nós que todas as características com que
aparelhamos os grandes homens são características paternas, e que a
essência dos grandes homens, pela qual em vão buscamos, reside nesta
conformidade. A decisão de pensamento, a força de vontade, a energia da
ação fazem parte do retrato de um pai – mas, acima de tudo, a autonomia e
a independência do grande homem, sua indiferença divina que pode
transformar-se em crueldade. Tem-se de admirá-lo, pode-se confiar nele,
mas não se pode deixar de temê-lo, também. Deveríamos ter sido levados a
entender isso pela própria expressão: quem, senão o pai pode ter sido o
“homem grande” na infância?
O lugar do pai: uma construção imaginária 67
4.4 O pai em “Moisés e o Monoteísmo”
O tema do parricídio é tema central em Freud. Em “Moisés e o
Monoteísmo” (FREUD, (1939[1934--38])/1996), o pai é resultante de um trabalho de
escrita e de uma construção textual expressando a íntima relação entre pai e a
morte.
O parricídio é o núcleo da definição do que é um pai e de sua função no
desejo do sujeito. Mais do que a simbolização de um assassinato, a escrita
da morte do pai em Freud é uma teoria que coloca em seu centro o
recalcamento, o saber inconsciente, um saber que não se sabe; uma escrita
que exibe em sua forma o que ela diz (MARCOS, 2006, p.102).
Em “Moisés e o Monoteísmo”, o tema do assassinato do pai retorna ao
abordar o tema do assassinato de Moisés. Segundo Marcos (2006), as tentativas
para esquecer o crime cometido contra Moisés apagam também a concepção de
Deus transmitido por Moisés. O Deus Javé, cultuado pelos israelitas, nada tem em
comum com o Deus de Moisés. Com o passar do tempo, este Deus que estava
recalcado retorna e impõe suas características ao povo.
Freud (1939 [1934-38]/1996) apresenta Moisés como sendo um egípcio
que deixou sua terra após a morte do rei Akhenaten, que havia introduzido o
monoteísmo no Egito, por não concordar com um retorno ao politeísmo. Essa
experiência religiosa egípcia caracterizava-se por defender valores como justiça,
direito, ordem, liberdade. “Uma religião altamente espiritualizada, semelhante à
filosofia grega que rejeitava os princípios anímicos e os deuses egípcios,
prevalecendo um Deus único e invisível” (ROUDINESCO, 1994, p.83). O
monoteísmo judaico seria proveniente desta prática egípcia.
Após a morte de Akhenaten em 1350 a.C., Moisés teria levado um grupo
de migrantes com ele, pelo qual teria sido morto por querer impor sua devoção a seu
Deus. Como afirma Freud (1913 [1912-13]/1996, p.60),
Moisés derivando-se da escola de Akhenaten, não empregou métodos
diferentes dos que o rei usara; ele ordenou, forçou sua fé ao povo. A
doutrina de Moisés pode ter sido inclusive mais dura do que a de seu
mestre.
O lugar do pai: uma construção imaginária 68
Este grupo de migrantes saído do Egito teria se encontrado na Península
do Sinai com uma população semita que adorava um deus local, YHWH, um deus
vulcânico. Da união destes dois deuses, destes dois grupos, surge a religião
hebraica, e o conceito de Deus Pai único.
Para particularizar sua religião, Moisés impõe o rito da circuncisão. Diz
Freud (1913 [1912-13]/1996, p.40): “Moisés deu aos judeus não apenas uma nova
religião, como também o mandamento da circuncisão [...] neste caso, a religião
mosaica foi provavelmente uma religião egípcia [...] era a religião de Aten”. E noutro
trecho, acrescenta Freud (1913 [1912-13]/1996, p.136):
A circuncisão é o substituto simbólico da castração que o pai primevo
outrora infligira aos filhos na plenitude de seu poder absoluto, e todo aquele
que aceitava esse símbolo demonstrava através disso que estava
preparado para submeter-se à vontade do pai, mesmo que esta lhe
impusesse o mais penoso sacrifício.
Foi Moisés quem apresentou o Deus único como sendo o Deus que
escolheu e elegeu este povo, fazendo com ele uma aliança, como afirma Freud
(1913 [1912-13]/1996, p.136): “Foi o varão Moisés que imprimiu este traço no povo
judeu. Ele elevou sua auto-estima, assegurando-lhe ser o povo escolhido por Deus,
prescreveu-lhe a santidade”. Num ato de vingança coletiva, Moisés é assassinado,
como sinal de rejeição da nova religião, ato este recalcado que retorna com o
advento do Cristianismo. Diz Freud (1939 [1934-38] /1996, p.102):
O antigo Deus, o Deus pai, passou ao segundo plano. Cristo, seu filho,
tomou seu lugar como gostaria de tê-lo feito numa época remota cada um
dos filhos revoltados. Paulo, o seguidor do judaísmo, é também um
destruidor. Se foi bem sucedido, foi certamente em primeiro lugar porque,
graças à idéia de redenção, conseguiu conjurar o espectro da culpa
humana, e depois porque abandonou a idéia de que o povo judeu era o
povo eleito e renunciou ao sinal visível dessa eleição: a circuncisão. A nova
religião pode se tornar universal e se dirigir a todos os homens.
Segundo o princípio que a sociedade humana nasceu da morte do pai
pelos filhos, pondo fim a um período tirânico e que este pai é revalorizado pela
instauração da lei, Freud (1939 [1934-38] /1996) vai aplicar este mesmo princípio
para o monoteísmo. Com a morte de Moisés, o Judaísmo (religião do pai) cede lugar
para o Cristianismo (religião do filho), fundada no reconhecimento da culpa
associada a essa morte necessária. Desta forma, um Cristianismo que expia a morte
O lugar do pai: uma construção imaginária 69
do pai pela morte do filho abandona a prática da circuncisão, deixa de lado aquilo
que constituía a identidade do povo enquanto povo eleito, povo da aliança. Para
Roudinesco (1994, p.84), o monoteísmo, segundo Freud, “recapitulava a
interminável história da instauração da lei do pai e do logos separador sobre a qual
Freud construíra toda a sua doutrina da família edipiana”.
Freud, em “Moisés e o Monoteísmo” (1939 [1934-38] /1996), ao falar
comparativamente do que está em jogo na constituição do sujeito e na religião
judaica, diz de uma relação mantida pela religião monoteísta como uma “tradição
herdada”. Uma tradição marcada pelo trauma. Para Freud (1913 [1912-13]/1996,
p.89), “[...] os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou
percepções sensórias, principalmente de algo visto ou ouvido, isto é, experiências
ou impressões”. São experiências que não foram significadas, que não foram
articuladas. Freud vai falar de uma “herança arcaica”, feita de fragmentos de origem
filogenética. Segundo Ribeiro (2006, p.117), nesta herança arcaica, está “[...]
implicado o recalque originário como a instalação de um ponto irredutível que por ser
‘herdado’, resta opaco”. É desse modo que, nesse contexto, Freud (1939 [1934-38]
/1996) aborda esse ponto necessário à estruturação do sujeito.
Em ambas as histórias, a do sujeito e a do monoteísmo, o que se pode
dizer é que são construídas a partir desse ponto não representável.
É daí que se outorga o privilégio da figura paterna, a qual constitui o núcleo
do complexo de Édipo a partir da função de apresentar ao sujeito um lugar
Outro. O que está em jogo aí é a função do pai que instaura um campo que
se organiza em torno de algo não inscritível (ou de um real traumático)
(RIBEIRO, 2006, p.117).
Este lugar Outro, segundo Lacan (apud RIBEIRO, 2006), pode ser
comparado à condição do sujeito dividido, uma vez constituído pelo recalque, isto é,
por um ponto irredutível que não passa à representação. Segundo Freud,
(1913[1912-13]/1996, p.143):
Quando Moisés trouxe ao povo a idéia de um deus único, ela não constituiu
uma novidade, mas significou a revivescência de uma experiência da era
primeva da família humana, a qual havia muito tempo se desvanecera na
memória consciente dos homens.
O lugar do pai: uma construção imaginária 70
Quando Freud fala de revivescência de uma etapa da era primitiva -
herança herdada - pode-se dizer que se trata de uma tradição que se revive ou se
transmite no momento em que Moisés ocupa este lugar. Ou como afirma Freud
(1913[1912-13]/1996, p.138):
E foi essa tradição de um grande passado que continuou a operar em
segundo plano, por assim dizer, que gradativamente conquistou cada vez
mais poder sobre as mentes dos homens, e finalmente conseguiu
transformar o deus Javé no deus de Moisés e chamar de volta à vida a
religião de Moisés, que se estabelecera e fora depois abandonada muito
séculos antes.
E em se tratando do Deus que se revela a Moisés, ele diz: “Eu sou quem
eu sou”, segundo Ribeiro (2006) citando Lacan, este teria introduzido o eu como
ponto de emissão de uma enunciação. Deus, ao se manifestar assim, se apresentou
como um relato de uma enunciação que traz uma dimensão radical de alteridade.
Assim, continua Ribeiro (2006, p. 118),
[...] o Outro se constitui como um Outro que porta um enigma, um ponto de
opacidade que faz supor aí um desejo. O enigma que se apresenta por essa
articulação do desejo com um ponto de opacidade é um enigma que não
tem uma resposta já lá em algum lugar. Trata-se de um enigma que porta
uma abertura que se mantém, ou seja, que não se reduz a algo que possa
ser apreendido ou suposto a alguém.
A concepção de autoridade paterna proveniente na maneira como a
cultura judaica simbolizou este lugar Outro interfere diretamente no sistema familiar.
Se na cultura de uma religiosidade monoteísta é possível identificar este lugar como
algo irredutível à representação, pode-se dizer que algo é colocado aí para
preencher este vazio.
Em “Os nomes do pai”, Lacan (1963) diz que o lugar do pai na cultura
ocidental estabeleceu-se a partir da experiência religiosa em um Deus único da
cultura judaica e cristã. A cultura ocidental, pela tradição monoteísta, vai substituir a
figura do mestre tradicional pela figura da autoridade paterna, onde uma instância
simbólica é a fonte e seu poder. A força do pai primitivo estava, de fato, no poder
real. Na cultura ocidental a autoridade paterna está referenciada pela existência de
um Deus único e ausente. Este pai difere do pai primitivo, visto que seu poder não
emana dele mesmo e sim de um vazio. Percebe-se, portanto, que segundo Ribeiro
(2006, p. 116),
O lugar do pai: uma construção imaginária 71
[...] se vive com a idéia de que há um lugar Outro que se pode supor
habitado por alguém – alguém com quem se mantém um diálogo interior e
que é suposto saber sobre o que nos falta. O que importa destacar aqui é
que, neste contexto, a palavra tem valor por veicular uma enunciação, ou
seja, uma dimensão radicalmente heterogênea: a dimensão do Outro.
4.5 A função paterna em Lacan
Em “O Pai, do mito ao sintoma: montar a cavalo sobre o Nome-do-Pai,”
Lacadée (2006) discute o processo de passagem do Nome-do-Pai à pluralização.
Lacadée diz que em Hans, ao se apossar do nome do cavalo no lugar do Nome-do-
Pai, este se tornou para ele um significante mestre e suportou sua fobia,
propiciando, via nomeação, uma separação da angústia terrível, traduzindo-a.
Outro ponto importante, segundo Lacadée (2006), referindo-se a Hans, é
a conseqüência lógica entre o desejo de castração de Hans e o desejo de Freud,
isto é, a construção edipiana que ele deu ao caso, ao indicar o pai como agente
interditor e não o cavalo. Assim, Freud aposta no pai como o agente da castração e
apaziguador do sintoma do menino. Mas o pai continua no seu lugar de apagado,
não dando a Hans, segundo Lacan, a possibilidade de reconhecer o pai como
agente que porta a castração.
Hans não se pergunta sobre pai ou mãe, mas sobre sua sexualidade, esta
pulsão que provoca nele uma fenda, no seu eu. Em Freud, citado por Lacadée
(2006), em “A divisão do eu”, ele fala do conflito entre a reivindicação da pulsão e a
objeção feita pela realidade, com respeito à masturbação, que provoca uma fenda
no eu, fenda que nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa.
Eis aí o fato de estrutura fundamental no que diz respeito ao ser do
pequeno Hans. Esta fenda, ocasionada por seu gozo, lhe é estrangeira e
lhe causa medo, ela está no princípio da fobia (LACADÉE, 2006, p.22).
Hans não se dá conta desta fenda, esta lhe causa estranheza, medo, ela
é a causa do seu sintoma. Assim, Hans se dirige ao Outro para interrogar-lhe a
respeito de sua falta. Dada a fraqueza do pai, Hans nos escreve outra história da
fraqueza sintomática do pai, uma nomeação original. “Esta história revela muito cedo
O lugar do pai: uma construção imaginária 72
a Freud que o verdadeiro estatuto do pai no inconsciente do sujeito tem valor de
sintoma” (LACADÉE, 2006, p.22).
Posteriormente, Lacan (apud LACADÉE, 2006, p.22-23) diz que o sintoma
de Hans “[...] tem como função nomear com um Nome-do-Pai o porto do real ao qual
o sujeito se confronta, diferenciando, dessa maneira, a função do Nome daquele da
metáfora”.
No Seminário IV de Lacan, o nome do Pai é identificado como pai
simbólico:
A fobia de Hans vem suprir o enfraquecimento de seu pai real, seu não
estar à altura da função do pai simbólico. O pai de Hans é alguém gentil e
delicado, excessivamente benévolo, mas sua palavra não é levada em
conta pela mãe, e Hans fica aprisionado, à mercê do capricho materno.
Lacan propõe, nesse Seminário, uma articulação de R, S e I em função das
operações de castração, frustração e privação, situando, desse modo, a
perda do objeto no centro da constituição do sujeito (LACAN apud
DEREZENSKY, 2006, p. 158).
Hans está diante de algo que lhe escapa à compreensão, algo não
nominável, e por isso quer saber, quer nomeá-lo; apela ao pai pela castração e por
isso o substituto do pai, o cavalo, também morde. O desejo de castração que
desconhece o pai, como o agente real, entende a montagem pulsional e as
provocações de Hans em relação ao pai, provocações que não foram reguladas ao
término do tratamento, segundo Lacadée (2006).
Hans vive um desconhecimento. Não sabe o que é um pai, não sabe da
função do pai enquanto procriador e castrador. Não sabe que o pai pode intervir
diante de seu enigma sexual e existencial. Graças a Freud, na função de pai
simbólico é que Hans descobre que sua questão está relacionada com a figura do
pai, com seu pênis e seu cavalo.
Segundo Lacadée (2006), o caso Hans é paradigmático, pois evidencia
que, por estrutura, o poder do pai é limitado e que o Nome-do-Pai não dá conta de
tudo. Diante da fenda aberta, da falta de significação, da falta do elemento
adequado, é que Hans, de forma mítica, vai desenvolver todas as permutações
possíveis de um número limitado de significantes, descobrindo como estes
significantes se ordenam e com o qual ele poderia se resolver.
Isso é o que se pode identificar como um processo de tradução ao qual o
pequeno Hans se dedica para construir uma significação nova. Sua solução
O lugar do pai: uma construção imaginária 73
foi apostar no cavalo que se oferece a ele como um significante, mestre que
serve para tudo – aí onde, seja porque o pai não soube oferecer essa
solução a seu filho, seja porque o filho não consentiu em passar por aquilo
que o pai lhe oferecia, o significante cavalo é a solução metafórica de Hans.
Essa função metafórica esclarece a respeito de como Lacan pôde passar do
significante único no Nome-do-Pai à pluralidade dos Nomes-do-pai
(LACADÉE, 2006, p.24).
Lacadée diz que a análise põe em questão o pai, a função significante
que marca a entrada em jogo do desejo do pai. O sujeito, ao iniciar sua análise, traz
uma questão sobre o Outro, dirigida ao Outro. Esta questão vem disfarçada, às
vezes, em forma de censura, reprovação, queixa ou súplica, ausência do Outro ou
de seus interditos. Toda esta demanda é direcionada ao pai, pois a função deste é
apresentar a dimensão da Outra coisa, é isto que Lacan, segundo Lacadée vai
chamar de metáfora paterna: “o sujeito interpela, portanto, o pai, e até mesmo
interpela sobre o pai ou como pai. Mas de que pai se trata? De que função do pai o
sujeito se queixa?” (LACADÉE, 2006, p.26).
Derezensky (2006), em “Sobre pais e semblantes”, diz que a categoria
semblante permite pensar juntos o simbólico, imaginário, e esclarecer ou acentuar a
diferença do real. Citando Miller, Derezensky afirma que este apresenta o pai em
seu caráter de semblante, falando de sua importância na teoria e prática
psicanalítica.
O pai é um termo da interpretação analítica, a ele se refere algo. Os termos
real, simbólico, imaginário designam os diferentes modos de relação com o
pai, que podem ser estabelecidos, e em si mesmos eles são nomes do pai
tal como Lacan o afirmou em seu Seminário RSI de 1975. Podemos
reconhecer, então, uma chave na abordagem lacaniana da função paterna:
trata-se de abordá-la a partir dos três registros, RSI. Essa orientação se
conserva desde o começo de seu ensino até o seu fina (DEREZENSKY,
2006, p.156).
Segundo Derezensky (2006), em “O mito individual do neurótico”, Lacan
fala do pai neurótico a partir do desdobramento do pai imaginário, simbólico. “O pai
imaginário é o que se inscreve na relação dual imaginária, e o pai simbólico, a
encarnação de uma função simbólica, culturalmente determinada” (DEREZENSKY,
2006, p.156).
No seminário dedicado ao estudo da psicose, segundo Derezensky
(2006), Lacan enfatiza a questão do pai, tendo o Nome-do-Pai um lugar especial.
Neste seminário Lacan vai usar vocábulos como pai, ser pai e função paterna, e nos
O lugar do pai: uma construção imaginária 74
Escritos, o Nome-do-Pai é mencionado como metáfora paterna. Aí Lacan faz a
diferença entre copular e procriar; procriar enquanto significante é algo diferente, ou
seja, o que está em jogo não é o ato sexual em si, mas
[...] aquilo que torna possível ao sujeito se inscrever essa realidade em uma
ordem subjetiva. O pai introduz um corte, a diferença geracional, torna
possível uma ordenação na linhagem que constitui a série das gerações
(DEREZENSKY, 2006, p.157).
Segundo o mesmo autor, Lacan (2005), ao introduzir o Nome-do-Pai, o
faz para reordenar a clínica freudiana como se expressa nos casos Dora, O Homem
dos Ratos, O Homem dos Lobos, O Pequeno Hans, O Presidente Schreber. De fato,
a clínica freudiana foi criada em torno da questão do pai, e isso faz sentido porque o
pai, da maneira como Freud apresenta, é enfatizado como uma invenção neurótica.
É Lacan que vai introduzir o Nome-do-Pai na Psicanálise.
Ao analisar o sonho “Pai, não vês que estou queimando?”, na óptica
lacaniana, Derezensky (2006) se propõe a comentar a função do sonho e fazer uma
articulação entre o pai e o real. Lacan fala de um encontro não realizado no sonho.
Que encontro? Freud vai falar de culpa e foca sua interpretação na falta do pai, e
essa culpa em não poder salvar o filho. “Não há um saber no que se refere à culpa,
mas um impossível que se recorta: o que é um pai?” (DEREZENSKY, 2006, p.159).
Lacan, segundo Derezensky vai focar o real, real no sentido psicanalítico.
No sonho se pode verificar: há um sonho, uma representação e há um barulho
produzido pela vela que cai. O que acorda o pai não é o barulho da vela, e sim uma
reprovação que checa sua condição de pai confrontando-o com o impossível. Para
Freud, conforme Derezensky, o sonho tinha por função vigiar o sono e, neste caso
específico, ele provoca uma angústia, o que leva a afirmar que o sonho não cumpriu
sua função. “Produz-se a confrontação com a falta de representação, o real é o
buraco na representação, não se pode captar o que é um pai” (DEREZENSKY,
2006, p.160).
Derezensky afirma que Lacan entende o sono como possibilidade, a partir
da formação do inconsciente, de localizar o ponto da falta de representação, ou seja,
o real em jogo. Para Lacan, a função do sonho é despertar pelo real o sonho do pai,
o sonho do neurótico, e essa via é a angústia.
O lugar do pai: uma construção imaginária 75
Qual o lugar do pai no Seminário XXII, RSI, de 1957, indaga Derezensky
(2006, p. 161), ao introduzir um enunciado não-recíproco: “faz falta que alguém
estabeleça a exceção para que a função da exceção se torne modelo”. E Lacan
apresentou a exceção paterna nos três registros.
No simbólico, o Nome-do-Pai garante a exceção com respeito a todos os
nomes, é o pai simbólico que, por sua vez está fora do A e em seu interior.
O pai imaginário é aquele apresentado por Freud em Totem Tabu como pai
gozador, como aquele que pode gozar de todas as mulheres. O pai real é
um nome do impossível, por isso, é real, e a impossibilidade que está em
jogo é aquela de simbolizar ou de imaginarizar o ser do pai. É por isso que
não se pode ir mais além do pai real (DEREZENSKY, 2006, p.160-1).
4.6 Conclusão
Ao ler os três mitos em que Freud (1923)/1996; (1913[1912-13])/1996;
(1939[1934-38])/1996) estuda e tenta elaborar sua teoria sobre o pai, pode-se
perceber que não há uma teoria propriamente dita. O que se tem, na verdade, são
“três” versões de pais, um em cada mito. A morte do pai pelos filhos é o elemento
comum aos três; partindo da figura física do pai, elabora o conceito de superego,
resultante do pai morto, e mais precisamente em “Totem e Tabu”, em que se
ressalta a dimensão simbólica do pai; em “Moisés e o Monoteísmo”, o pai que se
reconhece como tal, a partir de ser filho de um pai.
No Édipo, a criança renuncia a gozar-se através da mãe. Assim, função
paterna é a que possibilita o aparecimento do desejo do sujeito em constituição. O
pai, no sentido de função, introduz a proibição do incesto e abre caminho para que o
sujeito entre no mundo da cultura. Graças à função paterna, o complexo de Édipo
será superado e, consequentemente, a lei é introjetada, fazendo com que o
superego se torne o herdeiro do complexo de Édipo.
Na cena edípica aparece a problemática do outro - o pai. E como
aparece? Como fantasia, sonhos e desejos do eu. O outro - pai - advindo da cena
edípica caracteriza-se por outro passivo, como afirma Moreira (2004, p.221), “[...]
digerido pelo eu e mencionado apenas através do mesmo eu. O ponto de partida é o
O lugar do pai: uma construção imaginária 76
eu já constituído, que recupera o outro no nível do seu aparelho psíquico, através
dos sonhos e fantasias”.
Embora a cena edípica anuncie a triangulação da relação que exige a
presença do outro, aqui este outro emerge no psiquismo do sujeito; portanto, numa
condição ad intra. A questão da alteridade aparece, porém, não na sua totalidade,
pois o Complexo de Édipo, neste momento, centra-se sobre o eu, diz Moreira
(2004).
Em “Totem e Tabu”, como foi visto, Freud (1913[1912-13])1996) inicia sua
construção partindo do fato de povos primitivos descreverem o totem como ancestral
comum. Partindo deste fato, Freud pensa o sistema totêmico com um pacto com o
pai. Neste contexto, a religião totêmica teria surgido com um sentimento filial de
culpa em que um substituto paterno teria assumido um lugar de destaque.
Em “Totem e Tabu”, Freud ((1913[1912-13])1996) reitera sua teoria
anterior em que a morte do pai liberaria a satisfação pulsional. Segundo mito
freudiano, o pai é assassinado pelos filhos que desejam ocupar seu lugar junto à
mãe. Esse pai, todo-poderoso, era um pai que identificava o desejo como sua lei.
Porém, algo paradoxal acontece: se a morte é condição para livrar-se dele, aqui
surtiu um efeito contrário. A morte reiterou sua presença. O pai morto tornou-se mais
forte do que quando era vivo. A lei não precisa mais ser mantida à força, pois está
agora internalizada; antes tinha-se um tirano, agora depois de morto, tem-se um pai;
o pai morto torna-se simbólico,por isso relaciona-se com a lei. A função do pai é
puramente simbólica, daí poder-se afirmar que não há necessidade de um pai para
que a lei se efetive, isto é, a existência de um pai da realidade não garante a função
estruturante em operação.
Após sua morte e identificação ao pai – via incorporação – surge o
sentimento de culpa, nascendo, entre os irmãos, a lei que proíbe o incesto e o
parricídio. Antes, a presença real do pai interditava o incesto e agora foi substituída
pela lei, pela via da obediência adiada.
Bem, num primeiro momento tem-se um pai que impede a satisfação
pulsional, que é assassinado e devorado pelos filhos que tentam incorporar sua
força e poder. Num segundo momento, tem-se um vazio provocado pela ausência
do pai que se manifesta como nostalgia. Então, os filhos anulam o ato e proíbem a
morte do totem. A lei se instaura. Porém, o pai exige sacrifício ao seu gozo. Faz se
O lugar do pai: uma construção imaginária 77
necessário apaziguar os restos – traços inextinguíveis – que não foram assimilados
no ato da incorporação.
Segundo Gomes (2003, p.279), “junto à lei permanece algo, um resíduo
do pai que não pode ser assimilado no ato da incorporação e que ameaça retornar
sob a forma de uma culpa sanguinária, muda, engendrando uma fantasia de
expiação e culpabilidade”. Segundo Freud ((1930[1929])1996, p.134-135), a morte
do pai primitivo deve ter deixado traços inextinguíveis que perduram com o decorrer
da história: “o que é esquecido não se extingue, mas é apenas “reprimido”; seus
traços mnêmicos estão presentes em todo o seu frescor” (p.109).
Referindo-se à transmissão desses traços inextinguíveis, Freud diz tratar-
se de uma transmissão biológica que vai passando de geração em geração, “[...]
restando como um vestígio atavístico que é responsável pelo retorno do pai”
(FREUD, (1913[1912-13]) 1996, p.79)
Em “Totem e Tabu”, Freud ((1913[1912-13])1996) depara com três
versões do pai: como animal totêmico, que é devorado cru numa reedição do crime
primordial em que o pai morto é incorporado e desse ato nasce a culpa universal;
como Deus onipotente que oferece abrigo e proteção aos filhos; “[...] como resíduo
do pai morto incorporado que se apresenta como algo desconhecido ligado à culpa
sangüínea, muda” (FREUD, (1913[1912-13])1996, p.148) É o pior do pai, o que
exige o castigo como sacrifício que, na verdade, é uma maneira de apaziguar o pior
do pai, isto é, sua dimensão cruel e feroz.
Quem é o pai em “Totem Tabu” sob a ótica da alteridade? Segundo
Moreira (2002, p. 222),
o pai totêmico não expressa ainda aquele que seria, por excelência, a
relação de alteridade; pois o pai violento não interroga o outro sobre sua
responsabilidade, não dirige nenhuma pergunta que possibilite o
reconhecimento do outro enquanto uma alteridade. A possibilidade da
relação com a alteridade nasce com a morte do pai totêmico, pois a partir
deste momento os irmãos perguntaram uns aos outros sobre sua
responsabilidade. A irmandade representa o primeiro indício da
possibilidade de reconhecimento da alteridade. Os irmãos são iguais entre
si e sua identificação é reforçada pela presença de um ideal comum que é o
pai introjetado.
Em “Totem e Tabu”, embora Freud (1913[1912-13]) 1996) fale de Pai da
horda, não se pode, a rigor, falar de pai. Pois é justamente aí que o tirano se
transforma em pai. Assassiná-lo deixou os filhos em estado de desamparo,
O lugar do pai: uma construção imaginária 78
desprotegidos. Daí, o tirano ser introjetado como pai, como aquele que cuida. Ele
não conhece o outro, porque, para ele, não existe o outro, que só é instaurado com
a diferença, com a alteridade. Não reconhece o outro como um diferente; portanto,
não tem consciência da alteridade, pois é a diferença que sinaliza este
reconhecimento. O outro, o estranho, o diferente, mobiliza sentimentos ambíguos, e
assim pode atrair como pode assustar; e nesta tentativa de entendê-lo há o risco de
eliminá-lo, negar a diferença. O Outro requer reconhecimento e não redução ao
mesmo. E é o que faz o pai da horda; não reconhece, e elimina o outro. Como diz
Moreira (2002, p.14): “para escutar o outro que pulsa em nós, é necessário calar o
“eu” que quer se impor como consciência controladora, que se arroga na crença de
um “eu” igual “a si mesmo”, recusando a abrir-se ao desafio da diferença.”
Em “O Futuro de uma Ilusão”, Freud (1927/ 1996) fala do papel ilusório da
religião afirmando que a condição terrificante de desamparo infantil despertou a
necessidade de proteção que foi proporcionada pelo pai. Uma vez que este
desamparo perpassa toda a vida, tornou-se necessário agarrar-se à existência de
um pai mais poderoso.
Assim, este lugar imaginário é figura ambígua, lugar de amor e ódio. A
proteção a este grito de desamparo provém da idéia de que este pai ama suas
criaturas. O retorno do monoteísmo traz consigo o retorno do patriarcado cujo poder
se fundamenta na presença desse lugar Outro. Deduz-se daí que o pai nesta cultura
religiosa monoteísta seria o representante de um pai simbólico, e isto implica em
dizer que sua autoridade é proveniente de lugar Outro simbólico. Enquanto a “mãe é
certíssima” o pai não tira o poder de si mesmo, de nenhuma evidência, mas de ser a
metáfora de uma instância que não tem nada de natural, diz Ribeiro, 2006.
Entende-se, então, que a função simbólica do pai é a do pai morto e é por
isto que o pai, nesta condição, se relaciona com a lei. Como afirma Lacan (1958,
p.152),
[...] para que haja alguma coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é
]preciso haver o assassinato do pai. As duas coisas estão estreitamente
ligadas – o pai como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o
símbolo do pai. O pai morto é o Nome-do-Pai, que se constrói aí sobre o
conteúdo.
O lugar do pai: uma construção imaginária 79
E rastreando ainda o lugar do pai na estrutura edipiana, diz Lacan (1958,
p.180):
Quem é o pai [...] Pois bem, o pai aí não é um objeto real, mesmo que tenha
de intervir como objeto real para dar corpo à castração [...] Ele tampouco é
unicamente um objeto ideal [...] O que lhes trago hoje, justamente, dá um
pouco mais de exatidão à idéia de pai simbólico. É isto: o pai é uma
metáfora.
A intenção do relator, neste capítulo, conceitualmente falando, era
responder às questões elencadas nas primeiras páginas acerca do ser pai,
paternidade, função do pai. Partindo do referencial teórico e do diálogo com a
História, Antropologia e Psicanálise, seja ela freudiana ou lacaniana, pode-se afirmar
que paternidade tem muito pouco de natural, é muito mais cultural. De acordo com
Lacan, é o nome-do-Pai que cria a função do pai. Mas como o pai não é uma figura
e sim uma função, não tem nome próprio, isto é, tem tantos nomes quantos suportes
têm sua função. E sua função, como já mencionado, é por excelência religiosa, ou
seja, re-ligare: ligar significante ao significado, ligar lei e desejo, pensamento e
corpo, isto é, unir o simbólico e o imaginário, na presença do real. É o que se espera
de um pai: ligar.
O lugar do pai: uma construção imaginária 80
PAI: UMA INSTITUIÇÃO EM GRANDE
TRANSFORMAÇÃO
O lugar do pai: uma construção imaginária 81
5 PAI: UMA INSTITUIÇÃO EM GRANDE TRANSFORMAÇÃO
Assumiste para mim esse caráter enigmático dos tiranos, cujo direito não se
fundamenta na reflexão, mas em sua própria pessoa... aparecendo apenas
uma vez por dia, causavas em mim uma impressão ainda mais profunda,
porque rara... nunca podia compreender como podias ser totalmente
insensível ao meu sofrimento e à vergonha que podias me infligir com tuas
palavras e teus julgamento. (Carta ao pai, por KAFKA, citado por Badinter,
1993, p.151).
5.1 A família no decorrer da História do Brasil
Neste capítulo, interessa-nos discutir o processo de estruturação das
famílias patriarcal e nuclear, tidas como modelo na sociedade brasileira, e ao
mesmo tempo discutir que este modelo é resultado de uma construção socioistórica,
portanto, passível de transformação. Não é nossa intenção um estudo propriamente
dito da temática, mas trazer alguns elementos que nos permitam contextualizar o
espaço onde se construiu, no imaginário social, uma concepção de homem e uma
concepção de pai.
Quando se fala em família brasileira ou família tradicional, no imaginário
social, aparece o tripé: pai, mãe e filhos. Este modelo – patriarcal - é o mais
difundido e estudado (ROMAGNOLI, 1996). Levando-se em consideração outras
formas alternativas de relação, este modelo dominante tem sido criticado, pois se
trata de uma facção da sociedade brasileira; retrata, na verdade, um modelo
estereotipado, idealizado e generalizado, diz Romagnoli (1996) e representa o ponto
de vista de uma classe social erigida e sustentada pela ordem e organização de
forma estática, contradizendo a concepção de sociedade mutável e plural e em
processo constante de devir.
Romagnoli, citando Corrêa, ao referir-se à incidência da família patriarcal
brasileira diz que,
este modelo era apenas um tipo determinado de organização familiar, que
ao ser colocado como fixo e genérico, se transforma no modelo utilizado
como referência, sendo que todos os outros modelos são classificados
como decorrentes ou inexpressivos em relação à primazia do patriarcado.
Contudo, sempre houve uma diversidade de tipos de organizações
familiares, inscritas em um espaço social aberto e flexível (CORRÊA apud
ROMAGNOLI, 1996, p. 46).
O lugar do pai: uma construção imaginária 82
Nesta perspectiva de leitura, Romagnoli fala de outros tipos de relações
sociais e econômicas vigentes na sociedade colonial que se desenvolveram para
além da casa-grande e senzala, tais como:
[...] as famílias de agentes encarregados de controle fiscal e
comercialização do açúcar; as famílias encarregadas do cultivo do tabaco e
do algodão; as famílias dos trabalhadores livres e assalariados
responsáveis pelo trabalho técnico do engenho; as famílias das fazendas de
criação de gado e as famílias que trabalhavam nas atividades extrativa
(ROMAGNOLI, 1996, p. 47).
Estes agrupamentos familiares se caracterizavam e se diferenciavam da
família patriarcal, pela cultura, região e produção. Geralmente se organizavam ao
redor de trabalhos individuais ou coletivos, ora produzindo para subsistência e para
a colônia, ora para exportação.
Romagnoli (1996) enfatiza a importância de um estudo que possa
contextualizar a família patriarcal e, sobretudo, grifar as diferenças no processo de
formação, levando-se em consideração o fator tempo, espaço e grupos sociais.
Na família patriarcal, dada sua condição de organização, o parentesco constituía a
base sólida do prestígio social. O sistema de parentesco garantia e orientava a vida
de seus membros, estabelecendo a posição na inserção social, econômica e política
e o destino dos mesmos, e ao patriarca, a condução de todo o processo.
No âmbito legal, a Igreja e o Exército foram as duas instituições que
construíram eficientes técnicas de controle dos indivíduos. Pela via do casamento, a
Igreja respondia a uma necessidade do sistema colonial que era a de povoar a
colônia, sacramentando a união como definitiva e incontestável. Com o objetivo de
manter os interesses econômicos, o casamento não se baseava numa decisão livre
dos nubentes e sim no desejo do pai. Os critérios giravam ao redor “[...] da riqueza,
raça, ocupação, origem e religião”, diz Romagnoli (1996, p.44).
A prática do casamento, visando a manutenção do patrimônio e status,
excluía as camadas menos abastadas pelos altos valores cobrados dos encargos
eclesiásticos. Tal prática acabava por incentivar e fundamentar o concubinato,
uniões esporádicas e o alto índice numérico de filhos ilegítimos.
Além dos concubinatos, Romagnoli (1996) registra a união de
homossexuais masculinos e femininos, algo contrário ao direito civil e religioso. Há
outras organizações familiares como solteiros, divorciados, celibatários, em que
O lugar do pai: uma construção imaginária 83
muitos viviam sozinhos em suas casas, auxiliados por escravos. Como afirma Costa
(2004, p.46):
[...] esta assimilação social de família ao universo religioso, somou-se a
atitude da Igreja que, através da discriminação de negros, mulatos e
mestiços salientou o parentesco entre o exclusivismo étnico e mandato
religioso. A família branca detinha o privilégio racial do ministério e da
palavra divinos.
Ao referir-se à família patriarcal e sua função como modelo ou não,
Romagnoli (1996) enfatiza a importância da representação social que a sociedade
construiu a partir de alianças, consangüinidade e do poder no contexto patriarcal.
Diz Romagnoli (1996, p.48-49):
O fundamental é a realidade simbólica, construída, que atua reproduzindo e
legitimando valores, formando padrões sociais morais que cercam a vida
social, ou seja, não interessa a realidade como ela é, mas como ela é
vivida. A família patriarcal, como construção simbólica, emerge como
parâmetro de relações afetivas, hierárquicas, sexuais, de solidariedade,
etc., funcionando como critério de medida de valor para a vida familiar de
toda uma sociedade, independente de se concretamente abrangesse todos
os estratos sociais.
E conclui Romagnoli (1996, p.49): “polêmica, questionada ou
reverenciada, certo é que a família patriarcal é sempre vinculada ao período colonial,
como grupo concreto ou como representação social, utilizada como ponto de partida
nos estudos sobre a família”.
5.1.1 Brasil colonial
Em função da colonização exploratória, Portugal deu autonomia aos
colonos, implementando uma política econômica e social que os beneficiasse.
Durante os três primeiros séculos, os proprietários de terra reinaram e governaram o
Brasil Colônia. Desta forma, a família latifundiária acumulou um poder que resultou
numa concorrência com a metrópole, que, por fim, não admitia discordância ou
contestação. Diz Costa (2004) que a família no Brasil Colônia era sinônimo de
organização familiar latifundiária. E em relação às outras organizações diz: “a família
O lugar do pai: uma construção imaginária 84
escrava foi destruída pela violência física e a dos homens livres pobres, pela
corrupção, pelo favor e pelo clientelismo” (COSTA, 2004, p. 37).
No período do Brasil Colônia formou-se uma sociedade agrária e
escravocrata, em que a família, como organização fundamental, desempenhava as
funções econômicas e políticas, num sistema marcado pelo latifúndio,
descentralização administrativa, com uma ampla dispersão populacional e
caracterizada por relações paternalistas. Os colonizadores impuseram sua cultura,
desconsiderando as organizações indígenas e somando a isto a importação de
escravos africanos.
Segundo Costa (1966), a estrutura familiar patriarcal era caracterizada
pela importância central do núcleo conjugal e pela autoridade masculina
consubstanciada na figura do patriarca, dono do poder econômico e político. É a
família, sobretudo nas unidades produtivas agrário-exportadoras, o grande fator
colonizador do Brasil. É uma família escravocrata, da casa grande, da senzala,
patriarcal, com amplo número de bastardos e dependentes em torno do patriarca,
embora estudos recentes atestem que apenas 26% dos domicílios eram oficialmente
constituídos por famílias extensas. Os filhos, mulheres, escravos constituíam parte
das posses do patriarca, como também suas terras. É uma estrutura rígida e
hierárquica na distribuição dos papéis, com grande controle da sexualidade feminina
e da procriação com vistas à herança e à sucessão, sendo inegável a força do
modelo patriarcal.
A mulher era confinada na casa e na família, mas tal fato não anulava
completamente seu poder, que era exercido de forma indireta, por trás dos
bastidores, no espaço da casa e da família. Este período se caracteriza pela
ocupação da mulher no interior da casa, junto aos filhos e escravos, dependendo
jurídica, moral, econômica e religiosamente do marido, zelando pelo seu patrimônio
doméstico, sendo mão-de-obra gratuita. O homem era uma figura envolvida com o
poder, que ocupava o espaço do público e uma figura muitas vezes distanciada da
família. Ao homem cabia o pulso forte sobre a mulher, considerada frágil diante das
tentações do mundo externo. A autoridade do marido e pai era reforçada e
permaneceu social e juridicamente intocável durante todo o Brasil Colônia e pelos
anos de Império e República que se seguiram. Desta forma, pais e maridos podiam
internar filhas e mulheres em conventos, por terem elas lhes dado algum motivo de
O lugar do pai: uma construção imaginária 85
desgosto ou mesmo para impedir casamentos que não eram de seu agrado, com
apoio das leis e da justiça (COSTA, 2004).
Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, no século XIX, esta
exercerá uma forte influência na vida da colônia. As mulheres começam a participar
da vida pública, freqüentando teatros, igrejas, festas, bailes. Na segunda metade do
século XIX, a organização sofreu fortes mudanças, entre as quais a integração
constante de trabalhadores assalariados nas plantações de café e nas cidades.
Estas transformações, entre outras, fortaleceram o poder do Estado e acabaram por
ocasionar o declínio da família patriarcal antiga. Embora houvesse esta
transformação, a figura do pai como cabeça da família continuou indiscutível, porém
dividindo seus poderes com outras autoridades e instituições como médicos,
comerciantes.
No âmbito da educação, percebe-se a distinção entre meninos e meninas.
Às meninas competia o ensino elementar e mais voltado para o aprendizado de
trabalhos direcionados para o lar, enquanto os meninos aprendiam a ler, escrever,
contar e tinham conhecimento de aritmética. O objetivo principal da vida da mulher
continuou a ser o casamento, sendo que as primeiras escolas de magistério
surgiram somente no final do século XIX. Nos cursos superiores, as mulheres só
ingressaram em 1881 (COSTA, 2004).
Com o surgimento das cidades, dos primeiros centros urbanos, transferiu-
se o absolutismo patriarcal do campo para a cidade. O funcionamento das cidades,
segundo Costa, era uma extensão do campo e das famílias rurais, não apenas na
organização econômica, arquitetônica e demográfica, mas também nas dimensões
políticas, administrativas e jurídicas.
Com a ampliação do sistema familiar, via consangüinidade, legitimidade
ou não, parentesco espiritual ou moral, compadrio ... criou-se uma ética orientada
para os interesses dos senhores proprietários. Segundo Costa (2004, p.42):
Política, justiça, administração passaram, então, a se tornar uma questão de
vingança, suborno, corrupção, assassinato de toda sorte de violências
perpetradas contra os opositores do patriarca rural. A submissão pela força
somou-se à sujeição afetiva dos dependentes para com os senhores. Essa
relação de pai-patrão para com filho-empregado, o latifúndio exportou de
seus engenhos e fazendas para as cidades.
O lugar do pai: uma construção imaginária 86
Desta forma, a organização das cidades confirmava e reforçava o poder
familiar patriarcal.
Como argamassa, a religião cimentou e associou a autoridade espiritual
ao poder físico e político do senhor. O catolicismo no Brasil nunca foi homogêneo
nas suas expressões doutrinárias e institucionais, porém justificou e sacralizou o
absolutismo dos senhores. A colonização e evangelização que estavam associadas
a colonizar (entenda: aportuguesar) eram sinônimas, diz Costa (2004). E acrescenta:
A ordem teológica que justificava a organização sócio-econômica da
Colônia era a mesma onde se inscrevia a função paterna. Desta forma o
lugar religioso que de direito cabia à família era reforçado. Pois, o que se
salienta neste texto não é tanto o fato do pai comandar a casa, mas a
aceitação implícita do modelo de organização da família portuguesa
colonizadora. O lugar e o direito do pai são inquestionáveis, e, por
conseguinte, também o são o de todos os outros membros da família
(COSTA, 2004, p. 44).
E falando do lugar do pai, diz Costa:
Quanto mais distante e inacessível, tanto mais autoridade possuía.
Mulheres e filhos ouviam-no, de tempos em tempos, para obedecer. Não
havia necessidade de contato permanente e prolongado para que a ordem,
na residência colonial, produzisse efeitos. O medo à punição bastava. As
relações sentimentais íntimas eram, em conseqüência, dispensáveis.
(COSTA, 2004, p. 96).
Por outro lado, os capelães dos engenhos e párocos de cidades e vilas
eram pagos pelos senhores ou recebiam seus favores. Em contrapartida, nos
sermões, aconselhamentos legitimavam o poder dos senhores. Como afirma Costa
(2004, p.45): “[...] quem manda na região, manda na religião [...] os padres
submetiam-se aos interesses da família e consolidavam a imagem religiosa que ela
queria ter de si mesma”. Somada a estes fatores, fortaleceu se a concepção do filho-
padre e a dimensão espiritual da família que se expressava na orientação e
religiosidade dos afilhados, o que resultou no fortalecimento do mito na natureza
religiosa da estrutura familiar, diz Costa.
Segundo Costa (2004), o latifúndio impunha seu poder em todos os
setores, interna e externamente. Em nome da autopreservação, auto-referência, a
família se constituiu como um verdadeiro clã. E tudo o que se fazia era voltado para
o bem- estar do mesmo. A família formava parentes e não cidadãos. Quando o
Estado convocava para algo de seu interesse, isto soava estranho, pois os membros
O lugar do pai: uma construção imaginária 87
da casa- grande não entendiam, pois o sentimento de pertencimento não ia além
das fronteiras do clã. Outro forte motivo de coesão foi a figura do pai. Este era o
chefe da casa-grande e exercia a função de militar, empresário e afetivo. Como
afirma Costa (2004, p.47):
Seu desejo e seu nome dava unidade às aspirações dos indivíduos. Havia
quase um vácuo de interesses próprios no restante dos membros. O desejo
correto era o desejo do pai; o interesse justo era o da manutenção do
patrimônio. Habituados a defender o pai para sobreviverem, os membros da
família demoraram a acreditar que a sociedade pudesse oferecer-lhes
meios de autonomia econômica, social e psicológica. A conversão a essa
tutela do Estado foi outro objetivo da higiene.
A família patriarcal, no campo ou na cidade, constituiu se como modelo
para qualquer tipo de família, seja ela proprietária de terra ou não, diz Costa (2004);
ela será sempre senhorial na sua estrutura, será modelada segundo cânones
patriarcais.
Dada a fragilidade política do governo colonial, a cidade e a população
ficaram fora do controle estatal. Neste sentido, a medicina terá como um de seus
objetivos submeter a população ao Estado. Diz Costa (2004, p.48): “a ordem médica
vai produzir uma família capaz de formar cidadãos individualizados, domesticados e
colocados à disposição da cidade, do Estado, da pátria”.
Com a vinda da família real para o Brasil, iniciou-se um processo de
mudança na estrutura familiar e paulatinamente foi-se deslocando o poder dos
senhores e da cidade para o Estado. O Estado português, utilizando instrumentais
jurídico-policiais, a lei e a punição, inicia o processo de controle da colônia. Como
exemplo, pela lei da aposentadoria, os funcionários da administração real tinham
direito de exigir casas particulares para cumprirem suas funções. Esta prática não
era comum na colônia. Com Dom João isto muda radicalmente. Segundo Costa
(2004, p. 54),
O beneplácito real permitiu que inúmeras residências fossem tomadas a
seus proprietários, que não tinham direito de indenização ou ressarcimento
de qualquer sorte. As famílias lesadas, naturalmente as mais ricas, nada
podiam fazer para conter o arbítrio. Só havia um caminho a seguir, curvar-
se a vontade do Príncipe.
O lugar do pai: uma construção imaginária 88
Diz Costa (2004, p.55): “o poder atacou a família frontalmente, destruindo
aquilo que publicamente refletia seu poderio. A ruptura com a tradição foi levada a
cabo sem nenhum respeito pelo costume social ou pela convenção jurídica”.
A política corretiva adotada por Dom João não surtiu o efeito desejado.
Segundo Costa, a família deixou-se modelar, porém não se integrou ao Estado.
Quanto mais as famílias secularizavam seus costumes, racionalizam suas
condutas e administravam melhor suas riquezas, mais reforçavam seus
vínculos de solidariedade interna. O aburguesamento citadino equipou-as
com instrumentos de combate aos portugueses. A espoliação e os
demandos da aristocracia fortaleceram-nas na defesa dos interesses
privados e na hostilidade contra o Estado (COSTA, 2004, p. 56).
Neste contexto, houve necessidade de redefinir as políticas e estratégias
para estatizar a vida privada colonial.
Segundo Costa (2004), até o século XVIII não havia uma consciência ou
sentimento de pátria ou nação. A identidade das pessoas se fazia pela origem
regional, geográfica, étnica ou religiosa:
Os indivíduos eram denominados de mineiros, paulistas, bahianos, etc.
(origem regional); ou de índios, negros, mamelucos, cabras, mulatos, etc.
(origem étnica); ou, mazombos, crioulos, reinóis (origem étnico-geográfica);
ou finalmente, cristãos velhos, cristãos novos, judeus, sefardins, mouros,
gentios, etc. (origem religiosa) (COSTA, 2004, p. 60).
5.1.2 Medicina higienista
Diante da ineficiência do Estado, a medicina higiênica, segundo Costa
(2004), tendo a família como objetivo, colabora no processo de urbanização,
desenvolvendo uma concepção de privacidade, conforto doméstico, interiorização do
indivíduo e, sobretudo, redescobrindo os novos papéis e funções de cada um no
grupo familiar.
Posteriormente, a partir do século XIX, o saber médico foi-se infiltrando no
seio da família e transferindo a atenção do patriarca para os filhos, em nome da
ordem e da educação em prol da saúde. O discurso médico, munido de uma moral
supostamente religiosa, combateu a falta de higiene e pregava o cuidado do corpo,
da alimentação, da casa, vestuário. Neste contexto, o escravo era entendido como
O lugar do pai: uma construção imaginária 89
um estorvo à saúde, era um elemento nocivo. Por outro lado, a mulher era elogiada
no seu papel de mulher, mãe e esposa. Paulatinamente, o médico foi-se se
incorporando à vida familiar e a família foi-se enclausurando e se caracterizando
como uma família privada e interiorizada.
Para que a lógica higiênica ganhasse caução e credibilidade científica,
fontes de seu poder sobre a moral, era preciso que o amor se convertesse
em sinônimo de “instinto de propagação”. A partir desse suporte biológico, a
higiene, livre de escrúpulos teóricos, podia então investir seus verdadeiros
objetivos (COSTA, 2004, p.65).
O amor era concebido como instinto de propagação e como paixão
impetuosa da alma para o outro sexo. O instinto não pode ser educado, mas a
paixão sim e reorientada para fins sociais. Ao definir o amor como paixão, pretendia-
se reduzi-lo a um fenômeno manipulável pelo saber médico.
O amor antigo, impessoal, sopro de Deus ou dádiva das musas, tornava os
homens irresponsáveis por seu sentido ou direção. O amor higiênico, em
oposição, era humano, filho da biografia burguesa e da biologia médica.
Essa recondução do amor ao espaço do corpo era prenúncio de seu futuro
deslocamento para o Estado (COSTA, 2004, p.65).
O recurso à alma foi o que possibilitou à higiene infiltrar-se na moral da
família sem fraturar suas antigas crenças e valores e, simultaneamente, reorientar o
prestígio da religião em seu beneficio. Fingindo respeitar o sagrado, na verdade, a
medicina facilitava sua difusão na atmosfera familiar (COSTA, 2004). A religião
entendia alma como algo exterior ao corpo; a medicina, por sua vez, a concebia
como raízes do corpo.
A alma era definida ora como sede das paixões, ora como algo sensível e
vulnerável aos efeitos mortíferos destas mesmas paixões. O que ameaçava
a alma higiênica não eram os vícios e fraquezas da carne, mas os vícios e
fraquezas do corpo. A alma pecadora rompia o pacto com Deus e perdia o
dom da Graça; a alma apaixonada desobedecia à regra médica e perdia a
saúde. Esta alma mundana, medicamente secularizada, nada tinha em
comum com a alma católica. A higiene integrou-a a seu vocabulário pelo
valor que ela tinha no processo de transferência dos indivíduos da órbita
familiar para a órbita do Estado. Através dela procurava-se fazer crer que o
amor à nação não era obrigação política mas impulso espontâneo do corpo
e do espírito (COSTA, 2004, p.67).
O tripé – saúde, prosperidade familiar e submissão ao Estado – foi o
resultado das ações dos higienistas. Dirigindo-se às famílias de elite, alfabetizada,
O lugar do pai: uma construção imaginária 90
que podia educar os filhos e aderir-se ao Estado, segundo Costa, enaltecia a função
da mulher na formação da nova família e do novo Estado. Diz Costa, citando
Meirelles:
Quanto não sois responsáveis, ó mães, perante a natureza e a sociedade,
vós que podeis transmitir com vosso leite nobres e excelentes virtudes e dar
à sociedade homens fortes, capazes de suportar todos os trabalhos!
Lembrai-vos que nosso futuro, costumes, paixões, gostos, prazeres, e até
nossa felicidade dependem de vós; corrigi este abuso, e os homens tornar-
se-ão verdadeiros filhos, maridos e pais; isto feito, uma reforma geral
sucederá na sociedade, a natureza reconquistará seus direito (MEIRELLES
apud COSTA, 2007, p. 73).
Através do controle da sexualidade da mulher, garantia-se também a
legitimidade de sua prole e, conseqüentemente, que seus bens permanecessem na
família. Segundo Martorelli (2004, p. 41),
os médicos higienistas tiveram um papel fundamental para a eficácia do
controle do homem sobre a sexualidade da mulher. Ao mesmo tempo que
abriram novas possibilidades para a mesma, libertando-a um pouco do jugo
do poder do patriarca, também a aprisionaram, através de novas formas de
controle social. Ainda no século XIX, os higienistas foram os grandes
aliados da Família Real no processo de modernização que ocorreu no Rio
de Janeiro, com a tentativa de colocar o poder do Estado acima do poder
dos grandes senhores que detinham as terras. Os higienistas acabaram por
inferiorizar a "natural" condição feminina com a mistificação da mulher como
mãe, o que a submeteu a uma nova forma de controle: o amor aos filhos, ao
marido e ao lar.
Paulatinamente foi se desestruturando a hierarquia e poder familiar
colonial. Polindo a embaçada figura do adolescente, a higiene desfocava a
importância de velhos e adultos e fazia brilhar a infância. Realçando o papel da
mulher, recalcava o poder do marido. A família colonial era celeidoscopicamente
mudada e cada nova combinação servia de trampolim para novas investidas
médicas (COSTA, 2004).
A nova família, privatizada, interiorizada, foi educada, entendendo que
amar a pátria era o mesmo que ser saudável, instruído e organizado. Família
saudável, eis a base de um Estado saudável. Educada pelo saber médico, a família
foi-se constituindo em célula mater da sociedade. Mas uma célula bem diferente da
estrutura colonial; agora não mais centrada no pai, mas realçando o amor aos filhos,
fruto de um matrimônio construído na liberdade de escolha do casal; não mais um
O lugar do pai: uma construção imaginária 91
casal cuja função era a preservação da descendência e patrimônio, mas na busca
da felicidade e embasada no afeto.
A família interiorizada é uma família em que filhos e pais valorizam o
convívio íntimo entre eles; os pais educam os filhos interessados mais no
desenvolvimento físico e emocional, realçando a individualidade de cada um e
levando e educando para uma maior consciência desta singularidade e, finalmente,
amor entre os pais e filhos será a base da coesão familiar.
Em síntese, o que resultou da ação da medicina higiênica foi uma
crescente intimização e estatização dos indivíduos, como afirma Costa (2004, p.150-
151):
A higiene acoplou seus próprios interesses aos do Estado e aos da família,
produzindo indivíduos extremamente preocupados com sua intimidade física
e emocional. Também os ajudou a se desprenderem de suas raízes
familiares extensas para colocá-los sozinhos, face ao mundo e a este
espaço absolutamente saturado de cuidados físicos e sentimentais que é a
família nuclear.
A família que entra no século XX como modelo nuclear, conjugal,
intimista, atuando no espaço privado, centrada no indivíduo como valor social, é uma
família que se ocupa da construção da afetividade, com a procriação e a
disciplinarização.
Segundo Costa (2004), a família urbana e burguesa, ao se deparar com a
incapacidade de solucionar seus problemas, recorre a cada dia a novos
especialistas neste afã de resolução de seus conflitos. Costa atribui esta
dependência à medicina higienista.
A medicina higienista, ante as condições de vida precária na colônia,
impôs à família seus conceitos de educação física, moral, intelecto e sexualidade.
Catequizada pela medicina higiênica, a família deixou-se moldar familiar e
socialmente, resultando num modelo, a burguesa. Este modelo aliou-se aos destinos
políticos de uma classe social em que o sexo, o corpo e sentimentos conjugais, pais
e filhos, foram usados como instrumentos de dominação política e como classe
social discriminatória e sob uma ética burguesa que moldou o convívio familiar.
Como síntese e resultado na atuação dos higienistas, percebe-se uma
fusão entre saúde individual, status social e uma dominação política e econômica
dos indivíduos, segundo Costa (2004). E mais:
O lugar do pai: uma construção imaginária 92
a. o modelo de corpo difundido pelos higienistas – branco e burguês – constituiu-
se como fonte de racismo e preconceito social; todo corpo que não se
conformasse ao molde era excluído;
b. o corpo burguês, higienizado, urbanizado e disciplinado e com consciência de
classe, se constituiu como superior biológica e socialmente falando. Seus
membros eram educados desde a infância a conceberem tal superioridade em
relação àqueles que estavam situados abaixo, segundo a escala de valores
estabelecidos;
c. a medicina higiênica fomentou uma moral do indivíduo contido, reprimido,
disciplinado e com um rígido autocontrole, intolerante para com as fragilidades
pessoais e alheias, fragilidades estas, causadoras de sofrimento psíquico;
d. a educação intelectual resultou numa discriminação social em que os cultos
eram superiores aos incultos e, ao afirmar que o cérebro do homem o
capacitava paras as atividades intelectuais, enclausurava a mulher nos
aposentos domésticos para as atividades caseiras;
e. a educação sexual, ao produzir homens e mulheres reprodutores da vida e
corpo saudáveis, transforma a sexualidade em um instrumento repressor e
discriminatório, dando ensejo para atitudes e comportamentos como
machismo, repressão à masturbação infantil e intolerância aos solteiros e
homossexuais. O sexo tornou-se símbolo de poder;
f. a relação pai e filho atingiu o objetivo dos higienistas. Porém, o cuidado
preconizado por eles deixou os pais num vazio, pois sempre havia algo que
escapava ao conhecimento dos pais, algo da ordem do científico. Os
especialistas são os assessores de plantão das famílias ao apontar as faltas e
os excessos da educação dos filhos.
De fato, a medicina higienista produziu uma estrutura familiar dependente
da presença externa, de algum especialista que sempre fizesse as necessárias
intervenções disciplinares. Esta dependência é a responsável pela desagregação de
muitos fatores que incidem sobre a família que seguiram à risca as normas e ordens
médicas.
A medicina higienista, ao tutelar a família, tornou-a um instrumento de
regulação política dos indivíduos por meio do controle do corpo, da sexualidade e
das relações afetivas na família como veículo de conservação e reprodução da
ordem social burguesa.
O lugar do pai: uma construção imaginária 93
Que a família necessita de ajuda, é claro, diz Costa (2004), porém há que
se discernir se a solução apresentada sana o problema ou simplesmente traz um
fortalecimento e manutenção da doença. E acrescenta:
O problema começa quando percebemos que a lucidez científica das
terapêuticas dirigidas às famílias esconde, muitas vezes, uma grave miopia
política. Miopia que tende a abolir, no registro do simbólico, o real adjetivo
da classe existente em todas estas lições de amor e sexo dadas à família
(COSTA, 2004, p.17).
No final do século XIX, com a abolição da escravatura e proclamação da
República, junto com as primeiras imigrações, o Brasil entra num período de
transição de uma economia agrária para uma economia de mercado.
5.1.3 Brasil república
A industrialização, segundo Romagnoli (1996), trouxe profundas
transformações na sociedade, mudando o foco da economia do mundo rural,
agrícola para o industrial. A concepção de família, antes estática, agora se
caracteriza pela mobilidade social e geográfica. O avanço tecnológico desvinculou a
produção da família e focalizou a eficiência e a racionalidade dos meios de
produção. Desta forma, a família extensa foi-se desestruturando, visto que perde o
controle sobre o indivíduo e núcleos familiares que passam a gozar de autonomia
econômica e moradia. Neste processo de transição, a família nuclear conjugal
transfere a outra instituição suas responsabilidades sobre produção, educação e
assistência.
Verificam-se, então, a existência de dois pólos: a vida doméstica, privada,
e a vida pública. A sociedade moderna estabelece a família conjugal como modelo
de organização privada. Há uma cisão. Perdem-se os laços que a caracterizam
como unidade de produção e pela relação com a parentela, e está, agora, à mercê
das circunstâncias do mundo industrial e do isolamento da vida privada. A família
desponta como uma unidade preparada para o consumo, como afirma Romagnoli
(1996). Consumidora de bens, de educação, saúde e lazer.
O lugar do pai: uma construção imaginária 94
Neste contexto, a família é definida, segundo Romagnoli (1996, p.96), “[...]
como uma sociedade composta pelo casal, unidos em matrimônio, e os filhos
decorrentes desta união, caracterizando um grupo social restrito em estrutura,
função e hierarquia”. Por estrutura se caracteriza pela existência de uma pequena
prole: pela função, restringe-se à procriação e criação dos filhos; por hierarquia,
nota-se uma flexibilidade e divisão do trabalho entre sexos e conflitos de geração.
Neste novo contexto social, o status social não se caracteriza pelo sistema de
parentesco e sim pela posição econômica que determina e confere poder a um
indivíduo e ou família.
Analisando o período do Brasil República, afirma Neder (apud
MARTORELLI, 2001, p.42).
O projeto republicano dos militares inspirava-se no positivismo de Augusto
Comte que penetrou no país, nas últimas décadas do século XIX e deitou
raízes no imaginário social. Assim como projetavam as modificações que
adquiriam um caráter de modernização conservadora no plano econômico,
mantendo contudo um padrão de controle político e social excludente,
pensavam também na organização da família moderna, chamada nova
família.
Neste contexto, o homem considerado como chefe de família deve amar
sua esposa e tê-la acima de tudo, suprindo-a em suas necessidades, uma vez que é
o único provedor.
Com a economia voltada para o mercado, o capitalismo incipiente não
derruba a família patriarcal; ao contrário, incorpora-a como sendo o outro lado da
moeda. Como atesta Bruschine (apud MARTORELLI, 2001, p.44):
A expansão da economia situa a produção da casa para o mercado e
conduz a mulher a um novo papel, o de consumidora. A pressão pelo
consumo de bens de serviços, anteriormente produzidos no espaço
doméstico, aperta os orçamentos familiares. Alteram-se os valores em
relação ao trabalho assalariado, que começa a ser aceito para as mulheres
[...]. Apesar da valorização da independência da mulher, em nenhum
momento os novos tempos caminham no sentido de uma alteração nos
papéis de gênero e na estrutura da família tradicional.
Houve uma violenta transformação das relações. Os trabalhadores foram
expropriados de seus instrumentos e de meios de trabalho - terras comunais e
ferramentas - monopólio das corporações, até que ficassem disponíveis para serem
O lugar do pai: uma construção imaginária 95
contratados, em troca de salários, pelo empresário que lhes fornecia os
instrumentos.
No início do século XX, com um processo crescente da industrialização, o
trabalho do homem passa a ser visto como fundamental para os meios de produção,
e o tempo de permanência em casa com os filhos passou a ser vivido nas fábricas.
Como conseqüência, percebeu-se um afastamento do homem de sua família,
competindo à mulher a educação dos filhos. A família deixou de ser extensa para ser
conjugal, com privilégio para as questões afetivas. Os casamentos começam a ser
realizados muito mais por interesses individuais. O grupo familiar se nucleariza e a
casa passa a ser cenário do amor conjugal, da autoridade paterna e do amor
materno, que inclui o aleitamento e os cuidados higiênicos. Neste contexto, o
homem ainda é visto como detentor do poder, ocupando a esfera do racional, o
espaço do público, e o superprovedor econômico e financeiro. Assim, temos a
imagem de um pai emocionalmente distante e preocupado com o prover.
Na década de 50, o ambiente familiar é descrito assim por Coutinho (apud
MARTORELLI, 2001, p. 47):
O lar deveria ser considerado um lugar sagrado por ele, seu chefe e
representante máximo e, ironicamente, o guardião das honra e da moral e
dos bons costumes. O verdadeiro homem deveria ser o dono e fiscal da sua
mulher e de seus filhos, não lhes deixando faltar nada, mas também não
medindo esforços para manter a ordem dentro de casa, para guardar e
proteger sua família de toda sorte de abusos e tentações, bem como
reprimir toda conduta não condizente com os padrões considerados
corretos na época. Essas condutas eram, sem dúvida, diferentes para seus
filhos homens e mulheres. Aos homens era dada maior liberdade, não era
cobrada a participação nas coisas da casa, era estimulado a se iniciar na
arte do sexo e do prazer.
No século XX, grandes transformações aconteceram no âmbito cultural e
científico. Segundo Romagnoli (1996, p.69),
transformações radicais que trouxera, o incremento e o poder dos meios
dos comunicações, a destreza da informática, o controle da genética, o
perigo da guerra nuclear, a força do feminismo, o prazer do lazer, a
liberação da sexualidade, a segurança dos métodos contraceptivos, a
polêmica do aborto, e rebeldia da juventude.
Tais mudanças provocaram rupturas possibilitando o aparecimento de
novas formas de ser e estar no mundo.
O lugar do pai: uma construção imaginária 96
A década de 60 foi marcada por uma grande revolução cultural. O
movimento feminista buscou questionar os padrões estabelecidos entre mulheres e
homens, como o direito à diferença e com o advento da pílula anticoncepcional,
separando, pela primeira vez, a sexualidade da procriação. Começa, então, a
separação entre público e privado. Esta distinção passou a ser vista como de caráter
político e não puramente biológico, como era visto até então. A mulher entra com
grande força no mercado de trabalho, porém sendo ainda a responsável pelos
trabalhos domésticos.
[...] a distinção de funções que se erguia como um dualismo radical de
caráter hierárquico, subsistiu desde princípios do século XIX até a década
de 60, prevalecendo como coibida pela natureza, pela religião e por alguns
costumes considerados milenares. Dessa família emergiu uma forma
particular de ser mulher e mãe, ou melhor, de ser mulher-mãe, e uma forma
específica de ser homem e pai (MARTORELLI, 2001, p.49).
Segundo Muzio, a estrutura familiar foi sendo modificada pelos impactos
sociais que foram paulatinamente transformando os papéis.
Ser mãe e pai implica apropriar-se de um papel construído historicamente
por uma cultura e uma estrutura social de poder que coloca o homem dentro
de um mandato de ser a partir do ter, do poder e do saber, num espaço
público de competição. Este papel deixou o homem expropriado de uma
ligação próxima com o filho, colocando-o numa posição periférica. A atitude
da criação foi excluída seletivamente das funções esperadas para o homem
(MUZIO apud MARTORELLI, 2001, p. 49).
A partir da década de 60, a família nuclear, conjugal e modelo da
sociedade moderna foi sofrendo as influências e cedendo espaço a novas
configurações de casamento e família, em que “[...] heterogeneidade, a pluralidade,
a instabilidade e a incerteza tornaram-se a regra” (ROMAGNOLI, 1996, p.71).
Podemos observar, atualmente, as mudanças na estrutura familiar: novas
uniões entre sexos, um crescente número de mães solteiras, de divórcios, de
separações, casamentos não legalizados, famílias morando em casas separadas; o
que nos fala de novos arranjos ou modelos alternativos.
Segundo Lobo (1999, p.42), há três características básicas que
determinam a configuração de uma entidade familiar: “1) afetividade: como
fundamento e finalidade da entidade; 2) estabilidade; 3) ostensibilidade: pressupõe
uma unidade familiar que se apresente assim publicamente”.
O lugar do pai: uma construção imaginária 97
Lobo (1999, p.41), ao pesquisar “entidades familiares
constitucionalizadas: para além do numerus clausus”, indagando quais modelos
estariam amparados juridicamente, sobretudo números (g, h, i, j, k), apresenta-nos
onze modelos alternativos de entidade familiar na sociedade brasileira; entre outros,
diz ele:
a. par andrógeno, sob regime de casamento, com filhos biológicos;
b. par andrógeno, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos
adotivos, em que sobrelevam os laços de afetividade;
c. par andrógeno, sem casamento, com filhos biológicos (união estável);
d. par andrógeno, sem casamento, com filhos biológicos e adotivos ou apenas
adotivos (união estável);
e. pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);
f. pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade
monoparental);
g. união de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem
pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, após falecimento
ou abandono dos pais;
h. pessoas em laços de parentesco que passam a conviver em caráter
permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade sexual
ou econômica;
i. uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual;
j. uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou ambos
companheiros, com ou sem filhos;
k. comunidade afetiva formada com filhos de criação, segundo generosa tradição
brasileira, sem traços de filiação natural ou adotiva regular.
Lobo (1999, p. 41, nota de rodapé) observa ainda que:
A tipicidade é aberta, exemplificativa, enriquecida com a experiência de
vida. Orlando Gomes (O novo direito de família. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1984, p. 66) refere-se às famílias derivadas “da mãe com
filhos de sucessivos pais, ausentes ou invisíveis, comuns nas camadas
mais baixas da população”; às que reúnem crianças sem pais, criadas e
educadas por “genitores convencionais”; às comunidades extensas e
unificadas; ao grupo composto de velhas amigas aposentadas que,
refugando o pensionato, unem-se para proverem juntas suas necessidades.
Ceccarelli cita ainda como novos arranjos,
O lugar do pai: uma construção imaginária 98
[...] modificações nas condições de procriação, embriões congelados,
procriação artificial, barriga de aluguel, doador de esperma anônimo;
mudanças nas formas de filiação e criação dos filhos: famílias recompostas,
famílias expandidas, alterações no sistema de atribuição do sobrenome,
pais adotivos, monopaternidade e homopaternidade (CECCARELLI, 2007,
p.313, em nota de rodapé).
Esses modelos alternativos de família se caracterizam por serem “[...]
grupos sociais flexíveis e singulares em estrutura, função e hierarquia”
(ROMAGNOLI, 1996, p.72). Em relação à estrutura, constituem-se por pequenos
grupos e composição variada; no que se refere à função, o objetivo é a busca da
realização e do bem- estar proveniente do relacionamento; são flexíveis em relação
à hierarquia.
Podemos concluir que a família, independente do conceito que se tenha,
assume o lugar como "produtora" da subjetividade. É a função por excelência,
incluindo a premissa do ser humano inacabado em seu nascimento, o desamparo
originário que o liga a um outro, e esta relação com o outro que o marcará como ser
de linguagem. Dizer isto não significa desconhecer que como instituição de cultura,
ou núcleo social fundamental, a família cumpre outras e variadas funções e que, ao
estar contextualizada em uma determinada época e lugar, sofre os avatares de sua
pertença histórica. Neste sentido, a questão que se apresenta é em que medida
estes avatares históricos podem influenciar sobre esta produção da subjetividade?
Ou formular a mesma questão de uma outra maneira: que novas subjetividades as
famílias produzem hoje?
5.2 Função paterna: uma contribuição do jurídico
Qual o lugar do pai no contexto jurídico, tendo em vista as mudanças
pelas quais o texto tem passado? A pergunta faz sentido, lembrando que a
paternidade constitui a base do Direito, uma vez a lei precisa ser veiculada,
transmitida.
Até 1916, o código jurídico que regia a vida familiar brasileira era o
Código Civil Português, que por sua vez era inspirado no Código das Ordenações
O lugar do pai: uma construção imaginária 99
Filipinas de 1603, que, também por sua vez, repetia o Código Romano. Este código
colocava o pai, como centro da instituição familiar (BARROS, 2001). Assim, o pai é o
patriarca, o dono da família, dos filhos e dos bens. Costa (2004, p. 95) afirma que
a família colonial fundou sua coesão num sistema piramidal cujo topo era
ocupado pelo homem, em sua polivalente função de pai, marido e chefe de
empresa e comandante de tropa... O pai representava o princípio de
unidade da propriedade, da moral, da autoridade, da hierarquia, enfim, de
todos os valores que mantinham a tradição e status quo da família... Era o
pai que, defendendo o grupo, determinava o grau de instrução, a profissão,
as escolhas afetivas e sexuais de seus dependentes.
Este código era chamado de Código Civil Pátrio, daí, pátrio poder: o pai
era chefe, juiz, legislador e executor da lei:
Em sentido geral, o Pátrio Poder é todo o que resulta do conjunto dos
diversos direitos que a lei concede ao pai sobre a pessoa e bens do filho de
família. Compete exclusivamente ao pai e perdura enquanto não é
dissolvido por algum dos motivos estabelecidos em lei, qualquer, aliás, que
seja a idade do filho (BARROS apud BONIFÁCIO, 2001, p. 53).
No que se refere à mulher, eis o que diz Facchin (apud BARROS, 1996, p. 55):
O marido pode bater na mulher, cortá-la de alto a baixo e aquecer seus pés
no seu sangue desde que a torne a coser e ela sobreviva, já dizia um texto
jurídico do século XIV [...]. O imperador Napoleão, que impôs em 1804 o
seu código, bradava que a “natureza fez das nossas mulheres as nossas
escravas” [...]. O texto das Ordenações Filipinas de 1603 [...] admitia que o
marido se tivesse causa e testemunhas, matasse a mulher adúltera.
Com o Código de 1916, pode se verificar um declínio do pátrio poder, pois
este estabelecia que competia à mãe o poder de educar os filhos até a maioridade
na falta ou impedimento do pai. O artigo 380 deste Código reduz o poder do pai à
menoridade dos filhos e divide o poder com a mãe (BARROS, 2001).
Quem é o pai, segundo o novo código de 1916? Em 1919, José Bonifácio,
fazendo algumas adaptações no texto referente ao casamento, diz:
filiação é a relação que o fato da procriação estabelece entre duas pessoas,
das quais uma é nascida da outra. Considerada com respeito ao filho, esta
relação toma particularmente o nome de filiação; com respeito ao pai, o de
paternidade e com respeito à mãe o de maternidade (BONIFÁCIO apud
BARROS, 2001, p. 56).
O lugar do pai: uma construção imaginária 100
No que se refere à filiação legítima, estabeleceu-se um período de 180
dias depois do casamento e 300 depois da dissolução do vínculo conjugal. Assim, o
pai é entendido como aquele que “[...] estivesse casado com a mãe que deu à luz o
filho na constância do casamento” (BARROS, 2001, p.57).
Dado o caráter de a paternidade ser sempre oculta e incerta, apelou-se
para o princípio da presunção legal, determinando que o pai é o marido da sua mãe.
Aonde nos conduz esta via? Pergunta Julien (1997, p. 45): “o que se produz deste
fato? Pretender fundar a paternidade sobre a ‘verdade’ biológica, é fazer evidenciar
ainda mais sua fragilidade”. Segundo o Código Civil (apud BARROS, 2001, p. 59),
artigo 344, “cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos
filhos nascidos de sua mulher”.
Com a Constituição de 05 de Outubro de 1988, houve um deslocamento
da função do pai para o Estado, ao anunciar o novo estatuto de filiação. No artigo
226, lê-se: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (apud
BARROS, 2001, p.61). Assim, a proteção das relações familiares é de competência
do Estado.
O princípio de igualdade defendido na Constituição de 1988 “[...] produziu
uma revolução no direito de família, pois atribuiu à mãe direitos iguais ao pai na
administração da família, guarda e manutenção da estrutura familiar e extinguiu
qualquer ação discriminatória no que diz respeito aos filhos” (BARROS, 2001, p. 62).
O princípio de isonomia, na verdade, já estava presente na Constituição de 1891,
artigo 113, proibindo a discriminação em relação ao sexo. Tal princípio não foi
respeitado até 1962, quando da promulgação do Estatuto da Mulher, Lei 4.121,
determinando a emancipação da mulher casada. Segundo Brito (apud BARROS,
2001), embora a mulher estivesse numa situação agora diferenciada pela lei, ainda
persistia a figura do homem, como pai, chefe, responsável pela família: vide artigos
9, 380, 385, 233. Há um princípio de hierarquia em confronto com o de isonomia. Diz
a Constituição de 1988, artigo 5:
Todos são iguais perante a lei, discriminação de qualquer natureza,
garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade... Homens e Mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição (BARROS, 2001, p.64).
O lugar do pai: uma construção imaginária 101
Com as grandes mudanças ocorridas a partir da década de 1960 -
movimentos feminista, uso de anticoncepcionais, liberação sexual, emancipação da
mulher, entrada da mulher no mercado de trabalho, lei do divórcio (1977), novas leis,
novos códigos estatutos (da criança e do adolescente), – a figura do masculino, na
qualidade de pai, foi sendo apagada. O desembargador Campos Oliveira, ao julgar a
Apelação Cívil 48974-0, assim diz:
É inconveniente à boa formação da personalidade do filho ficar submetido à
guarda dos pais, separados, durante a semana, alternadamente; e se estes
não sofrem restrições de ordem moral, os filhos, principalmente durante a
infância, devem permanecer com a mãe, por razões óbvias, garantindo ao
pai, que concorrerá para as suas despesas dentro do princípio necessidade-
possibilidade, o direito de visitas. (OLIVEIRA apud BARROS, 2001, p.67).
Deduz-se do corpo jurídico, que o pai que imperava e gozava como rei,
hoje simplesmente é evocado como pai de finais de semana. E nos tribunais, como
afirma Barros (2001, p.68):
o tribunal se atrapalha quando a questão do processo é uma pergunta sobre
a filiação, sobre a paternidade. Ele não sabe responder, na letra da lei, o
que é um pai, quem é o pai e qual a sua legítima função, exceto a de
provedor e procriador.
A confusão no campo jurídico, naturalmente, deve-se a uma questão
conceitual: o “sujeito” do jurídico não é o da psicanálise. Por outro lado, com a
evolução histórica, as leis vão se modificando e se adaptando a novas realidades e
por conseqüência, vai mudando a circulação do falo.
5.3 Lugar do pai: uma construção social e ideológica
Nas páginas acima interessava-nos pensar a família como suporte para
refletir a relação entre esta história e a posição do pai: qual o lugar do pai nestas
organizações familiares? Ele mudou? O que define um pai nestas situações?
Podemos notar que, embora houvesse mudanças, de certa forma, o modelo
patriarcal prevaleceu. Interessa-nos pensar, agora, sobre este imaginário que
sustenta a "família oficial".
O lugar do pai: uma construção imaginária 102
Parece-nos evidente que o modelo familiar considerado a célula mater da
sociedade estabeleceu dois mundos claros e distintos para homens e mulheres. Ao
homem era reservado o espaço público, o espaço da dominação e reprodução e o
exercício de provedor de sua prole. Em contrapartida, à mulher era reservado o
espaço privado, ou seja, o lar, e submissa ao marido, reprodutora, e cuidadora do
lar.
Na estrutura familiar desenhada acima, o homem configura como peça
central, o responsável pelas decisões, administração do patrimônio, ocupando o
topo de uma hierarquia com poderes sobre mulher e filhos. Embasado numa
ideologia religiosa, o sacramento do matrimônio sustentava este lugar, conferindo ao
homem o status de único identificador familiar. Assim, na família conjugal, na
condição de chefe e cabeça da família, o homem dispõe de instrumentais civis e
religiosos para manter, controlar a unidade familiar.
Interessa-nos, aqui, pensar este lugar simbólico ocupado por este senhor,
todo-poderoso, que no imaginário social sustenta a família tida como modelo e
oficial. Nesta óptica, uma reflexão pertinente e necessária, nos conduz a pensar o
processo de construção da representação na sociedade brasileira; representação
como produção de imagens, idéias, conceitos como sendo expressão de uma
própria realidade.
Toda sociedade possui instrumentais para assegurar a coesão social, a
regulação dos vínculos entre os indivíduos, a distribuição de papéis (SOUSA FILHO,
2003). Há uma ideologia que assegura e cimenta a coesão grupal. Ideologia que
[...] traduz o temor de toda ordem à sua desagregação e torna-se uma
resposta metafísica a esse temor. Ou seja, a ideologia tem sua gênese e
função determinada diretamente pelo ser de toda ordem social em sua
“aflição” de se preservar como ordem. Do ponto de vista de sua
determinação ontológica, a existência da ideologia e a existência de
organização social são inseparáveis (SOUSA FILHO, 2003, p.73).
Em toda sociedade há um conjunto de convenções onde seus membros
são inscritos e tais convenções são culturais, históricas e tem por finalidade
conformar seus membros a algo já preestabelecido, como por exemplo, o exercício
de papéis ou lugar social a ser ocupado. A inscrição é algo do campo do
desconhecido. O indivíduo não sabe que está sendo inscrito. A ideologia atua neste
espaço do desconhecimento, como afirma Souza Filho (2003, p.73):
O lugar do pai: uma construção imaginária 103
Um desconhecimento que é fonte da produção de representações que
autonomizam como natural, única, inevitável, universal, sagrada, eterna e
imutável a ordem instituída. Esse desconhecimento e essa autonomização
do instituído caracterizam a situação de alienação e de sujeição vividas
pelos sujeitos humanos na própria experiência da cultura, independente de
modo de produção e de realidades sociais específicas (existência de
classes, Estado, etc.).
Assim, o desconhecimento possibilita que a cultura se apresente não
como construção social, humana, particular e histórica, mas como algo natural,
universal e eterno. Ou seja, há uma inversão da imagem cultural no que se refere à
sua origem, natureza e funcionamento. A ideologia é um instrumento que impede a
tomada de consciência por parte dos indivíduos do caráter convencional da cultura e
da ordem.
Pode-se dizer que o indivíduo, aprisionado por uma ilusão,
[...] acredita ser aquele eu a quem vê existir na representação e no
reconhecimento do Outro. Trata-se, porém, de um engano, pois o discurso
desse eu é um discurso consciente, que se toma por único, todavia
atravessado pelo discurso não controlável do sujeito do inconsciente
(SOUSA FILHO, 2003, p.75).
Ou seja, estamos dizendo que ideologia constitui, portanto, a forma
simbólica da dominação a que todos os sujeitos sociais estão submetidos no espaço
da cultura, sabendo que “[...] a ordem simbólica funciona como uma imensa máquina
simbólica que tende a ratificar a dominação” (BOURDIEU apud SOUSA FILHO,
2003, p.75).
Na “Conferência XXXI”, Freud (1933[1932]/1996), fala da herança cultural
que desempenha um papel importante na vida da humanidade. Esta herança cultural
é operada pelo superego. Diz Freud (1933[1932]/1996, p.72):
A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradição
da raça e do povo, vive nas ideologias do superego e só lentamente cede
às influências do presente no sentido de mudanças novas; e, enquanto
opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do
homem, independente de condições econômicas.
Segundo Sousa Filho (2003), Freud pensará a herança cultural em termos
de ideologia do superego e fala de sua força como responsável pela manutenção do
comportamento social duradouro. O superego para Freud é portador de uma longa
memória cultural, como afirma:
O lugar do pai: uma construção imaginária 104
Assim, o superego de uma criança é, com efeito, construído segundo o
modelo não de seus pais, mas do superego de seus pais; os conteúdos que
ele encerra são os mesmos, e torna-se vínculo de tradição e de todos os
duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitiram de
geração em geração (FREUD, 1933[1932]/
1996, p.72).
Para Sousa Filho, a esta herança cultural corresponde o que ele
considera ideologia.
A ideologia se caracteriza por sua capacidade de inversão da realidade.
O que caracteriza essencialmente o ser da ideologia é promover a inversão
da realidade social, através de representações que afastam inteiramente
sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar
uma representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda
natureza. Assim, o que é próprio da ideologia é converter os objetos de
natureza social em objetos de natureza natural (SOUSA FILHO, 2003,
p.77).
Ela transfigura os processos históricos construídos em dados naturais,
eternos e sagrados. A ideologia apaga a imagem da construção e no seu lugar “[...]
institui uma imagem que seja sua consagração simbólica como algo cuja existência
não é histórica nem produto da ação humana” (SOUSA FILHO, 2003, p.78). Ou seja,
por meio de uma representação social, os indivíduos vivenciam a dominação como
dado cultural.
A ideologia é um canal que ingressa o indivíduo na cultura.
Toda endoculturação é resultado de um processo de socialização que, em
última instância, significa a interiorização das convenções culturais, sociais,
morais, através de diversos ritos e instituições, tornando-se a via pela qual
se tornar membro da sociedade é não apenas a efetivação de uma
destinação forçada a que o ser humano está obrigado (para se constituir
como humano), mas também a via de sua constituição na alienação e na
sujeição, sem que o sujeito disso se dê conta (SOUSA FILHO, 2003, p.78).
A ideologia funda o consensus omnium, ou seja, “como a “consciência
coletiva” da sociedade, funda o “conformismo lógico” e o “conformismo moral” que
transformam os sujeitos sociais em prisioneiros daquilo que, no entanto, eles são os
criadores e os modelos (SOUSA FILHO, 2003). E ao relacionar representação e
ideologia, afirma que
[...] a força da representação advém do fato de que ela é capaz de incluir
como fazendo parte da realidade a representação que dela se faz. Isto é, a
representação é capaz de produzir imagens, conceitos, idéias, etc. de modo
O lugar do pai: uma construção imaginária 105
a fazer com que, no pensamento dos sujeitos, torne-se possível passar da
representação da realidade para a realidade da representação como sendo
a própria realidade (SOUSA FILHO, 2003, p.78-79).
E acrescenta: “as representações se tornam visões e práticas duradouras
de sujeitos que estão investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo,
a si próprios e os outros, embora desconheçam a história dessas mesmas crenças e
práticas” (SOUSA FILHO, 2003, p.79).
No processo de inversão da realidade, do construído historicamente pelo
natural,
homens e mulheres, em todas as sociedades, vivem a ilusão de que o são
por uma definição natural, ignorando que são produtos de construções
sociais. Que não se nasce homem nem mulher, mas que se vem a sê-lo,
homens e mulheres seguem modelos de gênero e vivem suas sexualidades
sob o domínio de convenções culturais e históricas, mas ignoradas como
tais, passando a representar preconceituosamente tudo o que foge às
convenções estabelecidas (SOUSA FILHO, 2003, p.80).
Sob essa óptica de que ser homem e ser mulher é fruto de um processo
histórico, recorremos a Ceccarelli (1998) para pensarmos a base de construção do
masculino e feminino em nossa cultura. Em “As bases mitológicas da normalidade”,
Ceccarelli, falando sobre os ideais, afirma:
Os ideais são construções sintagmáticas atrelados às referências
simbólicas, sempre sujeitas ao imaginário, da sociedade onde eles
emergem: cada sociedade cria, a partir do sistema representativo que lhe é
próprio, as representações dos Ideais (CECCARELLI, 1998, p.49).
Evidencia-se, portanto, que não há um ideal fixo e universal e sim ideais;
não há verdade, mas verdades.
Historicamente falando, a cultura ocidental é fortemente influenciada e
determinada pela cultura judaico-cristã. Como legado, temos um modelo e um ideal
de família como lemos no texto acima: a família patriarcal, tradicional; este modelo
tornou-se a lente por onde deve ser lida toda e qualquer realidade. E neste modelo:
O Édipo é o paradigma por excelência: a criança deve ter imagos
identificatórias e representações simbólicas do masculino e do feminino; o
pai é importante para introduzir a lei, e assim por diante (CECCARELLI,
1998, p.50).
O lugar do pai: uma construção imaginária 106
Juntamente com este modelo tido como único, lê-se e entende-se
também como único todo o processo de subjetivação.
Embasado no mito da criação bíblica – Adão e Eva – construiu-se toda
uma teoria da sexualidade, sobretudo a partir de Santo Agostinho, em que a
sexualidade é entendida como pecaminosa, feia e vergonhosa, e por extensão, a
mulher como fonte demoníaca. O homem é concebido como bom, porém seduzido
por uma mulher inescrupulosa e diabólica.
Eva oferece o fruto proibido e Adão o aceita - na visão sexualizada do
pecado original, o homem é colocado como vítima indefesa de uma mulher
inescrupulosa e sem princípios que, através da sedução, o leva a pecar,
pecado este que é sempre da ordem da sexualidade. É desta interpretação
que surge a concepção, presente até hoje na cultura ocidental, da imagem
negativa da mulher como a responsável pela queda, em contrapartida à
imagem do homem, espiritual na sua origem, mas vítima indefesa da mulher
diabólica. Ainda sobre a mulher, por ter acreditado na serpente ela era
considerada "naturalmente ingênua". Como conseqüência (1Tim 2:11-15), a
única coisa que poderia ser-lhe confiada era a criação dos filhos e os
cuidados domésticos: vemos uma utilização ideológica do mito do Paraíso
terrestre para justificar, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a
estrutura patriarcal vigente até os nossos dias (CECCARELLI, 1998, p.51).
Os mitos de origem fornecem toda uma filosofia que embasa a vida social
de uma cultura e, em nosso caso, trata-se de um dado verdadeiro de revelação de
Deus. “O relato bíblico da criação, assim como as concepções das origens de
qualquer outra cultura, transmite valores sociais e religiosos que são apresentados
como universalmente válidos” (PAGELS, 1989, p.23).
Encontramos aqui as bases "filosóficas" que construíram a Igreja dos
primeiros séculos; bases estas que subjazem na formação dos Ideais em
nossa cultura. Também entendemos por que o encontro de sistemas de
valores - Ideais - divergentes gera conflitos. A força dos mitos de origem nos
processos de subjetivação, cuja falência pode gerar uma angústia
insuportável, é tão grande que para mantê-los há quem morra para que o
mito seja preservado - exemplos não faltam sobretudo no fanatismo
religioso. A necessidade humana de certeza e permanência é tão forte que,
na maioria das vezes, as bases que sustentam de nossas crenças só são
questionadas quando nosso referencial de valores entra em colapso
(CECCARELLI, 1998 p.51).
Evidencia-se, portanto, que os referenciais éticos e morais são
necessários a todo e qualquer processo civilizatório embora a sustentação dos
ideais seja sempre mítica. A rigidez ou flexibilidade do sistema de valores é sempre
vinculado à rigidez pulsional do não, do mito de origem. O mito é uma construção a
O lugar do pai: uma construção imaginária 107
partir do imaginário para explicar a origem do mundo, do homem, do antes, da
organização do caos. A interpretação de um mito de origem, por exemplo, é
simplesmente uma, não abarca uma verdade toda, universal. Ou como atesta Freud
(1921/1996, p.147): “Assim, o mito é o passo com o qual o indivíduo emerge da
psicologia de grupo. O primeiro mito foi certamente o psicológico, o mito do herói; o
mito explicativo da natureza deve tê-lo seguido muito depois.”
5.4 O lugar do pai: uma construção imaginária
Para falar do lugar que o pai ocupa no imaginário social, gostaríamos de
fazê-lo partindo do livro “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar (1989). “Lavoura
arcaica” retrata a vida de uma família patriarcal em que André, sufocado pela lei do
pai e o afeto da mãe, apaixona-se pela irmã; realizada a paixão, ele se desespera e
foge de casa. A pedido da mãe, o filho mais velho, guardião da autoridade paterna,
busca o filho fugitivo. O retorno de André denuncia o retorno do suposto equilíbrio da
família patriarcal baseada em princípios bíblicos, que culmina no assassinato de
Ana, pelo pai, que dançava para os convidados, na festa que o pai preparara, com
trajes de prostitutas trazidos por André.
Selecionaremos parte do discurso do pai, que sentado à mesa da
refeição, o pronunciava exortando a família à paciência e a unidade. A mesa da
refeição – era um lugar simbólico - ambiente em que se configuravam e teciam as
relações familiares. Assim se organizavam:
Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições ou na hora
dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha
primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a
mãe e em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um
desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda
trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde
começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância
mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto. O
avô, enquanto viveu, ocupou a outra cabeceira. Depois de sua morte, seria
exagero dizer que sua cadeira ficou vazia (NASSAR, 1989, p.156-157).
Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela
mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra
sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo como
os sinos marcando as horas (NASSAR, 1989, p.49).
O lugar do pai: uma construção imaginária 108
Referindo-se ao espaço, André conversando com o irmão mais velho,
Pedro, diz: “você verá então que esses lençóis, até eles, como tudo em nossa casa,
até esses panos tão bem lavados, alvos e dobrados, tudo, Pedro, tudo em nossa
casa é morbidamente impregnado pela palavra do pai” (NASSAR, 1989, p.43).
Referindo-se à figura do avô que com sua postura patriarcal conduzia a família, diz
André:
Pedro, ninguém amou mais, ninguém conheceu melhor o caminho da nossa
união sempre conduzida pela figura do nosso avô, esse velho esguio
talhado com a madeira dos móveis da família; era ele Pedro, era ele na
verdade nosso veio ancestral, ele naquele seu terno preto de sempre,
grande demais para a carcaça magra do corpo, era ele na verdade que nos
conduzia, era ele sempre, era esse velho asceta, ele era o guia moldado em
gesso, não tinha olhos esse nosso avô, Pedro, nada existia nas duas
cavidades fundas, ocas e sombrias do seu rosto (NASSAR, 1989, p.45-46).
Sentado à mesa o pai profere o discurso:
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora
incomensurável, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é, contudo nosso bem de maior grandeza; onipresente, o
tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu
primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos
sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada
pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras [...]
móveis da família [...] paredes da nossa casa [...] na água [...] na semente
que germina [...] nos frutos [...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e
humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não
contrariando suas disposições, não se rebelando contra o curso, não
irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo [...] o equilíbrio da
vida depende essencialmente deste bem supremo [...] por isso, ninguém em
nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna; dar o passo
mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário a
nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à
frente dos bois; colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a
quantidade de tempo que um empreendimento exige; o mundo das paixões
é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das
nossas cercas e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito e
sobre este crivo emaranhar um sebe viva, cerrada e pujante, que divida e
proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos
olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum de nós há de
transgredir esta divisa, nenhum de nós há de estender sobre ela sequer a
vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana,
onde uma química frívola tenta dissolver e recriar o tempo; ai daquele que
brinca com fogo:terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa
arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele
que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os
dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne
viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por
seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá
as mãos cheias de sangue [...] Cuidem-se os apaixonados, afastando dos
olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os
O lugar do pai: uma construção imaginária 109
escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das
glândulas o visgo peçonhento e maldito; ninguém em nossa casa há de
cruzar os braços quando existe terra para lavrar, ninguém em nossa casa
há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém, ainda
em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer;
caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do
tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade,
abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só
agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o
tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto, é
sempre abundante em suas entregas; na doçura da velhice está a
sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o
exemplo: é a memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se
alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo
asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões
da natureza; nenhum de nós há de apagar da memória a formosa senilidade
dos seus traços; nenhum entre nós há de apagar da memória sua
descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; a
paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o
suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas, por isso
é que digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia
feliz que custa a vir nem pelo dia funesto que de súbito se precipita, nem
pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que
incendeiam nossas colheitas; e quando acontece um dia de um sopro
pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as
cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas de
nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família,
mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão
acometido; os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram,
serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para
este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar,
deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para
ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos
transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai,
a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o
acabamento dos nossos princípios; hão de ser esses, no seu fundamento,
os modos da família: baldrames bem travados, paredes bem amarradas, um
teto bem suportado; a paciência é a virtude das virtudes, não é sábio quem
se desespera, é insensato quem não se submete (NASSAR, 1989, p.53-62).
Ao relatar a tragédia do assassinato de Ana, André assim descreve o pai:
[...] não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se outro
membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava –
essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada como eu
pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família nossa,
prisioneira de fantasmas tão consistentes!), e do silêncio fúnebre que
desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto, um
vagido primitivo.
Pai! e de outra voz, um uivo cavernoso, cheio de desespero.
Pai! e de todos os lados, de Rosa, de Zuleika e de Huda, o mesmo gemido
desamparado.
Pai! Pai! onde está a nossa segurança? Onde a nossa proteção? Pai! e de
Pedro, prosternado na terra.
O lugar do pai: uma construção imaginária 110
Pai! e vi Lula, essa criança tão cedo transtornada, rolando no chão – Pai!
Pai! onde a união da família? E vi a mãe, perdida no seu juízo, arrancando
punhados de cabelo, descobrindo grotescamente as coxas, expondo as
cordas roxas das varizes, batendo a pedra do punho contra o peito Iohána!
Iohána! Iohána! (NASSAR, 1989, p.193-194).
“Lavoura arcaica” traduz de forma exemplar a organização familiar
patriarcal na qual o pai encarna o guardião do falo imaginário.
Chama-nos atenção em “Lavoura arcaica” a disposição dos lugares à
mesa. Sentar-se à direita ou à esquerda, como sinalizado por André, fala do papel
de cada um na organização familiar. Embasado no texto bíblico, referindo-se ao
julgamento final (Mt 25,31-46 – dirá aos que estiverem à sua direita: “vinde benditos
de meu Pai;” e aos que estiverem à sua esquerda dirá: “apartai-vos de mim, malditos
para o fogo eterno”) no imaginário popular, sentar-se à direita é o mesmo que dizer:
está salvo, é querido, é santo; sentar-se à esquerda é sinônimo de rebeldia,
condenado.
O lugar do avô – lugar vazio – mas plenificado pelo simbólico, tornou-se
uma assombração - uma ausência que se faz presente - que assusta e ao mesmo
tempo mantém coesa a estrutura familiar. Recorda-nos “Totem e Tabu” (FREUD,
1913[1912-12])1996) quando da morte do pai, este passa a ser idolatrado pelos
filhos; aqui, avô-pai morto transformou-se num fantasma cuja memória jamais será
apagada; aliás, há uma proibição neste sentido; uma presença desencarnada que vê
sem olhos; a figura do avô, internalizada como o pai devorado em “Totem e Tabu”,
ronda pelos corredores da casa e desde a parede onde se encontra pendurado
(quadro) até os móveis da casa espalhados pelos cômodos, retorna como o resto
inextinguível do pai que exige sacrifício em reparação.
Semelhante ao avô, o pai encarna este papel e o reproduz. André fala-
nos deste lugar simbólico ocupado pelo pai quando diz que a casa está impregnada
pela sua palavra; quando André fala do pai ou do avô, escutamos como se fossem
grandes fortalezas, muralhas concretadas, impassíveis – simbólico ou imaginário,
pois não permite fluidez pulsional – mas ao mesmo tempo apresenta-nos a
realidade: o avô é trazido na figura de um ancião esguio, uma carcaça magra
enfurnado num terno preto maior do que ele; fala-se aqui da fragilidade do ancião. O
mesmo ocorre com o pai: antes é o todo-poderoso, onipresente (guia, tábua, lei) e
ao término apresenta-se um pai de carne e osso, que, tomado de ira, perde o
controle e assassina a própria filha. André fala do pai simbólico afirmando crer ser
O lugar do pai: uma construção imaginária 111
ele um ser descarnado e que representava junto com o avô – ancestral – um
fantasma ao qual ele e a família estavam submetidos e aprisionados.
O pai, em “Lavoura arcaica” (NASSAR, 1989), no encontro travado no
retorno do filho, deixa transparecer seu amor paterno. Assim diz o pai:
Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho;
você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve desesperar-se, muitas
vezes é só uma questão de paciência, não há espera sem recompensa,
quantas vezes eu não contei pra vocês a história do faminto? Faça um
esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu
pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua
cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem
em suas idéias. Palavra com palavra, meu filho. Você sempre teve aqui um
teto, uma casa arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento,
proteção e muito afeto. Nada te faltava. Quero te entender, meu filho, mas
já não entendo nada. Refreie tua costumeira impulsividade, não responda
desta forma para não ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós
sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos
sempre para vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem
necessitasse, o apoio da família. Não receba com suspeita e leviandade as
palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com o
nosso amor! Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz
nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando
depressa a mágoa que você causou ao abandonar a casa, apagando
depressa o pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um
instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou
ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava
cego e recuperou a vista. Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi
longa, a emoção foi grande, vai descansar querido filho (NASSAR, 1989,
p.158-171).
O pai se revela, aqui, como um pai humano, sensível, provedor, com o
coração ferido, machucado ante a dor do filho, que vive em função do filho, da
família, pai compreensivo e aberto ao diálogo, pronto para perdoar, esquecer as
mágoas e, sobretudo, demonstra sua alegria e seu amor ao promover a festa. Se
contrastarmos o discurso primeiro da mesa com o do retorno do filho, teremos, na
verdade, dois pais, ou duas dimensões do mesmo pai, ou em outras palavras, no
primeiro o pai na sua função simbólica, e no segundo o pai da realidade. Talvez
pudéssemos ressaltar aqui, na dimensão topográfica, o papel deste pai como
mediador diante do ódio que André sente não pelo pai como ser humano, e sim pelo
papel que ele desempenha como guardião da tradição, da conservação, como
expressão do que a linguagem faz dele. Na verdade, é um ódio expresso por dois
papéis, por dois lugares à mesa, por duas linguagens, ódio pelo pai em contraste
com o afeto da mãe. André é vida, sem nome, sem posto, sem direção, que não
quer, não quer ser contido pelos grilhões do sentido, mas o pai aponta a terra, a
O lugar do pai: uma construção imaginária 112
lavoura, a realidade, limita-lhe o prazer, pois o filho é prisioneiro das palavras, dos
nomes, dos postos. André parte para fugir de ser filho, ser lavrador e, sobretudo, ser
irmão, destino maldito que o impede de amar. “Nesta casa ninguém falará com
palavras confusas”, vocifera o pai, ou seja, mostra-lhe o princípio de realidade.
André se nega a abrir mão de seu desejo, cujo objeto é Ana, sua irmã. Ao
sentir-se castrado pelo pai, não vacila em ferir o pai, o ancião que o tortura, não
apenas por causa da irmã, mas porque como chefe de um bando de mulheres o
mantém afastado, abandona a casa e se recusa a ter a paciência que o pai tanto
pregava. André não permite que o pai roube o que ele aspira, mas o pai, por simples
presença, mesmo virtual, funciona como interditor do tabu para evitar o incesto. E a
função é isto: é uma função de mediação constitutiva, ou seja, liga o desejo à lei.
Ao mesmo tempo em que o pai na sua função de interditor sinaliza para o
filho o limite, é prisioneiro da mesma armadilha; André como Édipo foge para evitar a
tragédia, a relação incestuosa com a irmã; o pai, ao acolher o filho de volta, detona a
tragédia, ou seja, o pai descobre seu afeto pela filha e vê o filho como um rival.
Por outro lado, podemos supor, do ponto de vista econômico, o alto custo
para este pai manter-se no lugar do detentor do falo. É o lugar da solidão, pois o que
possui o falo é completo e não pode dar-se ao luxo de emoções. Quando do
assassinato de Ana, o grito dos filhos clama ao pai por este lugar: “onde está a
nossa segurança? A nossa proteção? Onde está a união da família?” O pai não tem
o direito de falhar; o lugar construído para que ele ocupe é permeado pela solidão do
poder e, aí, aprisionado pelas cadeias da representação social, como algoz e vítima,
não se permite falar de suas emoções, de seus sentimentos, suas dores; precisa
manter as aparências, mostrar-se homem e pai. “O homem, duro, solitário”, escreve
Badinter (1993, p.134), “[...] porque não precisa de ninguém, impassível viril a toda
prova. Um mutilado de afetos, feito mais para morrer do que para se casar e ninar
bebê.” Sentar-se neste lugar, poderíamos imaginar, o peso que isto implicaria, as
cobranças, as expectativas, o medo de não dar conta ... e o pior, não poder falar
com alguém de suas angústias... Uma solidão narcísica!
O lugar do pai: uma construção imaginária 113
5.5 Conclusão
A partir do que apresentamos neste capítulo sobre "Pai: uma instituição
em transformação”, acreditamos ser pertinente estabelecer relações entre o senhor-
de-engenho e o Deus trazido pelos portugueses. O Deus colonial é o Deus da
religiosidade popular da Idade Média, um senhor feudal e juiz amedrontador.
Autoritário, ele governa o mundo. Nada escapa de seu domínio. Ele prevê tudo,
marca o decorrer da história. O ser humano nasce com um destino pronto; sua vida
está sob uma lei implacável e, ao mesmo tempo, incompreensível. Ao homem não
resta alternativa senão aceitar a vida como sina, perceber que Deus é sempre o
mais forte e que não adianta revoltar-se contra ele. Ressuscita-se o pai da horda. Lei
é o desejo de Deus Pai.
Esta concepção de um Deus feudal é compatível com os interesses das
oligarquias dominantes do Brasil Colônia. Os senhores faziam tudo para igualar-se a
Deus aos olhos de seus familiares, servos e escravos. Em nome de Deus, exerciam
o poder sobre a vida e sobre a morte: Deus no céu e o senhor na terra. Juntos
viviam numa grande família sob o mando do pai, detentor único e inquestionável do
falo. A estrutura patriarcal encobria, pela familiaridade ostentada, a extrema
violência que regia a convivência entre pai e familiares, patrão e súditos e senhor e
escravos. E não se esquecendo dos fatores econômicos que mantinham esta
organização, é claro.
O Deus do senhor feudal provindo da Península Ibérica assumiu diversas
faces na Colônia, dependendo do momento histórico. Sob influência das oligarquias
açucareiras, reveste-se de traços do senhor de engenho e, como tal, exige
obediência e submissão incondicionais; torna-se depois Pai-Patrão, inspirado na
figura do coronel, Pai-fazendeiro espalhado pelo sertão brasileiro, Pai privatizado na
família nuclear...
Podemos notar que o primeiro movimento de transição do modelo familiar
se deu pela migração do campo para cidade e mais precisamente pela atuação dos
médicos higienistas. Na família patriarcal a figura do pai é o eixo em que se
centraliza todo o desejo do grupo. Vontade do pai, vontade do grupo, como já
afirmado. Parafraseando um texto bíblico, dizemos: “nele pensamos, movemos e
somos” (Atos 17,28).
O lugar do pai: uma construção imaginária 114
Temos, portanto, uma concepção de Deus que se estabeleceu como
onipresente – onisciente – onipotente, criando uma relação de dependência e
passividade com os fiéis seguidores. Temos uma concepção de família herdada da
medicina higienista marcada pela dependência de especialistas no cuidado e
manejo dos conflitos domésticos. Esta dupla concepção de dependência, atrelada a
outros fatores, aprisionou homens e mulheres a um imaginário popular que
estabeleceu um modelo, um padrão de família, de masculino, de feminino e, o que
nos interessa, de pai. Em quase cinco séculos foi-se passando uma mentalidade,
um conceito, uma imagem de pai como algo natural; porém, nos dias atuais com as
mudanças todas em nível global, detona-se esta imagem e nos é assegurada que a
função de pai nada mais é do que o resultado de uma construção histórica, fruto de
interesses políticos, econômicos, religiosos e ideológicos. E por ser construção,
passível de mudanças.
Na década de 1980, a questão não era mais enfrentar a mãe. “Todos os
olhares se voltam para o pai, tão pouco habituado a receber censuras. É ao
julgamento do pai que se assiste em toda parte. Ele é declarado culpado pela
desvirilização do filho. Historiadores, psicólogos, sociólogos e romancistas hoje
apontam um dedo acusador para ele. Multiplicam-se os estudos sobre o pai
“impedido”, ausente, agressivo, frio, cheio de ressentimento contra o filho, e que o
abandona às garras maternas. Invoca-se a mitologia (Cronos, que devora seus
filhos, ou Laio, que ordenou a morte do filho Édipo) e a religião (Abraão, pronto a
sacrificar Isaac; as últimas palavras de Cristo na cruz: “Pai por que me
abandonaste?, para acentuar que a crueldade paterna vem de longe” (BADINTER,
1993, p.150).
Os novos arranjos familiares questionam profundamente este tradicional
lugar do pai. A autoridade paterna soberana transforma-se numa certa igualdade
entre pai e mãe e a desinstitucionalização do poder do pai leva a questionar os
desequilíbrios causados pelas mudanças. Há um movimento que suprime as
diferenças na relação de autoridade pais-filhos. Os papéis e princípios hierárquicos –
pai é o provedor e mãe a socializadora – cedem espaço para posturas mais
individualistas e mais igualitárias dos membros da família. O cenário doméstico
modificou-se. O pai não está mais no palco. E podem se ouvir os gritos, os lamentos
de vários lugares: “Pai, pai, por que me abandonastes?”
O lugar do pai: uma construção imaginária 115
Pode-se dizer que há certa confusão entre pai e função paterna.
Convencionou-se atrelar à figura do pai da realidade a responsabilidade pela saúde
psíquica dos filhos. A função paterna não passa necessariamente pelo biológico,
genitor; qualquer sujeito, independente do lugar onde esteja, pode se apresentar, via
discurso da mãe, como outro na constituição do sujeito. O importante é ter a lei
paterna como referência, isto é, proibição do incesto e assassinato e, sobretudo
acessar a alteridade e ser reconhecido pela mesma. O reconhecimento da alteridade
é condição para se inserir no social e criar laços comunitários. A função paterna é a
que sinaliza a existência do outro. Assim, independente da “cara” do pai, se cópia ou
não de um Deus terrível, ela não deixou de existir, não se deixou de inserir no social
ou na cultura.
O lugar do pai: uma construção imaginária 116
CRISE, DECLINIO OU NOVA
CONFIGURAÇÃO?
O lugar do pai: uma construção imaginária 117
6 CRISE, DECLINIO OU NOVA CONFIGURAÇÃO?
A terra, o trigo, o pão, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos
seus sermões, amor, trabalho, tempo (NASSAR, 1989, p.183).
6.1 Crise da paternidade
Dentre as várias instituições na sociedade brasileira, a Igreja Católica
representa um peso significativo, dado seu papel no processo de colonização e
evangelização. A descoberta da Brasil coincide praticamente com o Concílio de
Trento (1545-1563), que foi uma tentativa de refrear a expansão do “protestantismo”.
É fruto deste concílio o modelo de família introduzido no Brasil. Em 1563, na sessão
XXIV definiu-se a doutrina sobre o matrimônio. Fundamentados em Gn 2,24; Ef 5,
30; Mc 10,6; Mt 19,5-6 e Mc 10,8-9, definiu-se o casamento com vínculo perfeito e
indissolúvel (PIO IV, 1562)
[...] afirmou-se assim um modelo de família legitimamente constituída a
partir dos efeitos civis do matrimônio, onde pai, mãe e filhos ficavam em
evidência e com papéis definidos. No pai, a representação da autoridade e
da virtude, senhor de seu corpo; na mãe, a encarnação da ordem
doméstica, da devoção ao marido e sua maternidade; nos filhos, a
obediência ao pai e dispostos a aceitar suas escolhas (LODOÑO, 1994,
p.103).
Ao introduzir o modelo tridentino de matrimonio embasado na
indissolubilidade e da coabitação dos casados, no Brasil, impôs-se um modelo: pai e
mãe, filha e filhos e mais seus filhos na mesma moradia. Assim, pretendiam eliminar
as grandes vivendas onde residiam até duzentas pessoas.
[...] foi surgindo no imaginário social colonial, um ideal de família constituída
com base no sacramento do matrimônio e onde se distinguiam
perfeitamente os papéis dos esposos, dos pais e dos filhos. Família
construída sobre a legitimidade, a indissolubilidade, a fidelidade e a
autoridade paterna. Família solução para os abusos com relação ao sexto
mandamento. Família cristã ordeira. Família que estaria longe das
inseguranças, da ilegitimidade, das instabilidades, do abandono, da
existência de crianças expostas e sem pai. Consagração de uma família
ideal representada pela família dos senhores. Família que se podia
reconstituir facilmente por gerações através dos livros de batismo e de
casamento ordenado pelas constituições (LONDOÑO, 1994, p. 118).
O lugar do pai: uma construção imaginária 118
Neste sentido, a título de curiosidade, foi o Concílio de Trento quem
determinou que toda criança, para ser batizada na igreja católica, deveria possuir um
nome cristão e um sobrenome de família, desta forma, as famílias que ainda não o
possuíam foram obrigadas a assumir o termo que as identificasse, o uso de
sobrenomes familiares foi então implantado definitivamente.
Este modelo de família estabelecido por Trento vem sendo mantido de
geração a geração. Recorreremos a alguns documentos papais no sentido de
enfatizar que o modelo adotado foi concebido como imutável, natural, universal e
eterno.
Em 1880, Leão XIII em “Arcanum Divinae Sapientiae” (sobre a família)
(LEAO XIII, 1880) afirmava que a finalidade da família em primeiro lugar era a
procriação e educação do povo para o culto e religião do Deus verdadeiro e a Cristo
salvador; e em segundo lugar fala-se dos direitos e deveres dos cônjuges,
sinalizando que o marido é chefe da família e cabeça da mulher como Cristo é
cabeça da Igreja; assim como a Igreja está submissa a Cristo, estejam as mulheres
submissas aos maridos em tudo, não como escravas, mas companheiras. Aos filhos
aconselham obediência e submissão aos pais. E referindo-se à autoridade da Igreja,
entende que o matrimônio por virtude e natureza é algo sagrado, competindo
somente à Igreja, que possui o magistério das coisas sagradas, legislar e governar
sem intromissão do poder civil.
Em 1929, Pio XI em “Divini Illius Magistri” (sobre a educação cristã da
juventude) (PIO XI, 1929), falando da importância da educação da juventude diz que
esta se deplora por falta de claros e sãos princípios até para os problemas mais
simples. Interessa-nos apontar alguns conceitos que referidos à família nos orientam
na compreensão da função paterna da imago parental nesta instituição.
Pio XI entende a família como sociedade natural; diz ele:
Ora, são três as sociedades necessárias, distintas e também unidas
harmonicamente por Deus, no meio das quais nasce o homem: duas
sociedades de ordem natural, que são a família e a sociedade civil; a
terceira, a Igreja, de ordem sobrenatural. Primeiramente a família, instituída
imediatamente por Deus para o seu fim próprio que é a procriação e a
educação da prole, a qual por isso tem a prioridade de natureza, e portanto
uma prioridade de direitos relativamente à sociedade civil (Pio XI, 1929).
Ao conceber a família como algo divino, identifica o pai, na sua condição
de procriador a Deus, o criador, quando diz:
O lugar do pai: uma construção imaginária 119
O pai segundo a carne participa dum modo particular da razão de principio
que, dum modo universal se encontra em Deus... O pai é princípio da
geração, da educação e da disciplina, de tudo o que se refere ao
aperfeiçoamento da vida humana (PIO XI, 1929).
E segundo Leão XIII, “[...] os filhos são alguma coisa do pai e como que
uma extensão da pessoa paterna” (LEAO XIII, 1880,). E nesta mesma dimensão
atribui-se aos pais o dever de educar os filhos a partir da fé cristã. Pois “a estultícia
está no coração da criança e a vara da disciplina dali a expulsará” (PIO XI, 1929). E
referindo-se à sexualidade, afirma:
Tal e tão grande é a nossa miséria e a inclinação para o mal, que muitas
vezes até as coisas que se dizem para remédio dos pecados são ocasião e
incitamento para o mesmo pecado. Por isso importa sumamente que um
bom pai quando discorre com o filho em matéria tão lúbrica, esteja bem
atento, e não desça a particularidades e aos vários modos pelos quais esta
hidra infernal envenena uma tão grande parte do mundo; não seja o caso
que, em vez de extinguir este fogo, o sopre ou acenda imprudentemente no
coração simples e tenro da criança. Geralmente falando, enquanto perdura
a infância, bastará usar daqueles remédios que juntamente com o próprio
efeito, inoculam a virtude da castidade e fecham a entrada ao vício (PIO XI,
1929).
E continua convocando os pais:
Cuidem por isso os pais e com eles todos os educadores, de usar
retamente da autoridade a eles dada por Deus, de quem são
verdadeiramente vigários, não para vantagem própria, mas para a reta
educação dos filhos no santo e filial ”temor de Deus, princípio da sabedoria”
sobre o qual se funda exclusiva e solidamente o respeito à autoridade (PIO
XI, 1929).
Em 1930, Pio XI em Casti Connubii, (sobre o matrimônio cristão), citando
Santo Agostinho (PIO XI, 1929), fala da ordem do amor na sociedade doméstica, ou
seja, a superioridade do marido sobre a esposa e filhos de um lado, e da pronta
sujeição e obediência em nome do Senhor, por outro lado. Salvaguardando os
contratempos que possam aparecer, pede-se que não mude a estrutura
estabelecida quando diz: “[...] mas em nenhum tempo e lugar é lícito subverter ou
prejudicar a estrutura essencial da própria família e a sua lei firmemente
estabelecida por Deus” (PIO XI, 1929).
A encíclica fala das invenções e progressos da modernidade como
perigosos à vida familiar citando peças teatrais, romances, novelas, leituras,
O lugar do pai: uma construção imaginária 120
discursos radiofônicos, as descobertas científicas, livros que se apresentam como
científicos defendendo as maravilhas do espírito moderno, que na verdade, segundo
o documento, são laços perigosos que prendem facilmente suas presas. E apoiados
nestes princípios modernos, chamam de abominações todas as novas formas de
uniões, quando afirma:
[...] chegam alguns a inventar formas de união, adaptadas, segundo crêem,
às atuais condições dos homens e dos tempos, e que apresentam como
novas formas de matrimônio: casamento temporário, casamento de
experiência e casamento amigável, que reclamam para si a plena liberdade
e todos os direitos do matrimônio (PIO XI, 1929).
E no que se refere à emancipação da mulher, diz Pio XI dirigindo-se aos
mestres do erro:
[...] facilmente destroem a fiel e honesta sujeição da mulher ao marido; de
uma parte, defendem com arrogância certa emancipação da mulher, já
alcançada ou por alcançar; estabelecem que esta emancipação deve ser
tríplice: no governo da sociedade doméstica, na administração dos bens da
família e na exclusão e supressão da prole, isto é, social, econômica e
fisiológica. Fisiológica por quererem que a mulher, de acordo com sua
vontade, seja ou deva ser livre dos encargos de esposa, quer conjugais,
quer maternos (esta mais do que de emancipação deve apodar-se de
nefanda perversidade, como já suficientemente demonstramos).
Emancipação econômica por força de que a mulher, ainda que sem
conhecimento e contra a vontade do marido, possa livremente ter, gerir e
administrar seus negócios privados, desprezando os filhos, o marido e toda
a família. Emancipação social, enfim, por se afastarem da mulher os
cuidados domésticos tanto dos filhos como da família, para que,
desprezados estes, possa entregar-se até às funções e negócios públicos.
(PIO XI, 1929).
E acrescenta: “[...] a emancipação é antes a corrupção da índole feminina
e da dignidade materna e a perversão de toda a família, porquanto o marido fica
privado de sua mulher, os filhos de sua mãe, a casa e toda a família de sua sempre
vigilante guarda” (PIO XI, 1929).
Em 1968, Paulo VI publica a encíclica Humanae Vitae (Paulo VI, 1968).
Interessa pontuar neste documento o que ele define por paternidade responsável em
frente a mudanças e desafios da vida moderna, apontados por ele quando diz:
[...] deve-se sobretudo considerar que o homem fez progressos admiráveis
no domínio e na organização racional das forças da natureza, de tal
maneira que tende a tornar extensivo esse domínio ao seu próprio ser
global: ao corpo, à vida psíquica, à vida social e até mesmo às leis que
regulam a transmissão da vida (PAULO VI, 1968).
O lugar do pai: uma construção imaginária 121
Neste contexto, falando do matrimônio e amor conjugal, afirma que estão por
si mesmos ordenados para a procriação e educação dos filhos. Neste sentido, o
amor conjugal requer dos esposos uma consciência da sua missão de "paternidade
responsável".
E define assim a paternidade responsável:
Em relação com os processos biológicos, paternidade responsável significa
conhecimento e respeito pelas suas funções: a inteligência descobre, no
poder de dar a vida, leis biológicas que fazem parte da pessoa humana. Em
relação às tendências do instinto e das paixões, a paternidade responsável
significa o necessário domínio que a razão e a vontade devem exercer
sobre elas. Em relação às condições físicas, econômicas, psicológicas e
sociais, a paternidade responsável exerce-se tanto com a deliberação
ponderada e generosa de fazer crescer uma família numerosa, como com a
decisão, tomada por motivos graves e com respeito pela lei moral, de evitar
temporariamente, ou mesmo por tempo indeterminado, um novo
nascimento. Paternidade responsável comporta ainda, e principalmente,
uma relação mais profunda com a ordem moral objetiva, estabelecida por
Deus, de que a consciência reta é intérprete fiel. O exercício responsável da
paternidade implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os
próprios deveres, para com Deus, para consigo próprios, para com a família
e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores
(PAULO VI,
1968).
O Documento 79 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre a
pastoral familiar 2005, embasado nos documentos acima citados e em João Paulo II
- Familiaris Consortio - fala da degradação de alguns valores que afetam
brutalmente a família. Diz:
[...] uma errada concepção teórica e prática da independência dos cônjuges;
as graves ambigüidades acerca da relação de autoridade entre pais e filhos;
as dificuldades concretas que a família muitas vezes experimenta na
transmissão dos valores: o número crescente do divórcio: a praga do
aborto; o recurso constante a esterilização; a instauração de uma
verdadeira e própria mentalidade contraceptiva (DOC 79, 2005, p.32).
Segundo o documento 79, as mudanças técnicas e sociais favoreceram o
surgimento de uma nova cultura que interfere em hábitos, costumes e valores dos
povos e, em decorrência disso, a família tem modificado suas funções. São citados
vários exemplos destas mudanças, como por exemplo: “[...] existência ou
superposição de diferentes modelos de “família”; novas concepções técnicas de
procriação; redução do número de filhos, emancipação da mulher e seu trabalho fora
do lar” (DOC 79, 2005, p.34). Como conseqüência, deterioram-se os valores
fundamentais da família e desintegra-se a comunhão familiar.
O lugar do pai: uma construção imaginária 122
Além dos exemplos citados acima, somam-se os fatores psicológicos,
econômicos e sociais responsáveis por irregularidades nas famílias. Afirma o
documento:
[...] aumenta a desestruturação da família, com a emergência de vários
modelos de contrato nupcial (grifo nosso), uniões livres, tendência à
difusão do homossexualismo, à profissionalização da prostituição, a difusão
do rompimento do vínculo conjugal, as produções independentes, aumento
da gravidez na adolescência, a distribuição maciça de contraceptivos,
aumento da prática de esterilização, fecundação artificial, falhas dos pais na
responsabilidade de educadores, negligente omissão paterna, que deixa à
mulher o inteiro cuidado pelo sustento e educação dos filhos, o que gera
graves prejuízos na formação e desenvolvimento das suas personalidades
(DOC 79, 2005, p.36-37).
Podemos perceber que, no evoluir da história da Igreja Católica, a
concepção de família pouco mudou. Até o início da Idade Moderna, o casamento
religioso era único. Iluminada pela luz da mensagem bíblica, a Igreja considera a
família como a primeira sociedade natural, titular de direitos próprios e originários, e
a põe no centro da vida social
16
.
Pio XII, na década de1940, diante de uma família numerosa, vai falar de
redução do número de filhos, e aponta os métodos naturais como caminho. Paulo
VI, pós-Vaticano II, fala de paternidade responsável: cabe aos pais decidir quantos
filhos querem ter. E em contrapartida, condenou o uso de métodos contraceptivos,
alegando serem contrários à lei natural. A paternidade responsável constitui, então,
um segundo avanço.
Na aprovação da lei do divórcio 1978 no Brasil, dada resistência da Igreja
Católica, Nelson Carneiro a acusa de divorcista. Se a Igreja não reconhecia o
casamento civil e celebrava casamento de separados civilmente, era uma hipocrisia
seu discurso anti-divórcio. A partir daí, a Igreja vai reconhecer o casamento civil e o
colocará como pré-requisito para o religioso. A concepção de família como algo da
natureza e querido por Deus foi e continua sendo defendido pela Igreja Católica
16
O casamento civil surgiu no século XVI, na Holanda, pois até então era regido totalmente pelo
Direito Canônico, como um sacramento. No Brasil, o casamento civil constituiu objeto de estudo
em abril em 1855. Como lei propriamente dita, será introduzida somente na República. Este foi
criado no Brasil, somente em 1890, pelo Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890. A fim de
conciliar interesses conflituosos entre Igreja e Estado, surgiu o decreto de separação da Igreja do
Estado, Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. O princípio da Separação da Igreja é afirmado
nos mesmos termos das Cartas de 1891, 1934, 1937 e 1946, 1988, com pequenas alterações.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org
. Acesso em: 30 de julho de 2007.
O lugar do pai: uma construção imaginária 123
como modelo e oficial. E curioso porque a família tida como modelo – Jesus, Maria
e José – foge aos padrões do modelo apresentado. Jesus não tinha “pai biológico.”
José se apresenta como pai nutridor, afetivo; diríamos, pai social.
6.2 Declínio da função paterna
São vários os fatores que contribuíram para uma mudança acelerada dos
novos arranjos familiares. Poderíamos listá-los, não segundo uma ordem em que se
processaram, mas como ilustração: movimento feminista, entrada da mulher no
mercado de trabalho, liberação sexual, anticoncepcionais, divórcio, novas técnicas
de reprodução e fertilização, legitimidade de uniões extracasamentos “oficiais”,
clonagem reprodutiva etc.
Dentre os fatores acima, podemos mencionar que a separação entre a
paternidade adotiva e biológica desvinculou sexo da reprodução e do casamento e o
que acontece entre os amantes é da ordem do privado. Porém, o nascimento de
uma criança ou adoção coloca em cena a ordem pública. A criança precisa ser
reconhecida legalmente e, a partir deste ato, ser reconhecida a autoridade parental.
Como afirma Brandão (2003, p. 7),
A disjunção entre sexo e aliança inscreve-se na fronteira entre público e
privado, pois se o amor e os prazeres são contratuais, dependendo
exclusivamente dos parceiros, a aliança parental está vinculada às leis do
Estado em nome dos direitos dos filhos.
Ao desvincular sexo da reprodução e relações contratuais, Giddens
(1993) discute a questão da sexualidade num movimento que ele conceitua de
“relacionamento puro”; entende-se por relação pura
[...] uma situação em que se entra em uma relação social apenas pela
própria relação e que só continuam enquanto ambas as partes
considerarem que extraem dela as satisfações suficientes para cada um
individualmente, para nela permanecerem (GIDDENS, 1993, p. 68-69).
A nova concepção de sexualidade, de intimidade, segundo Giddens, foi
responsável pelas mudanças na autonomia da sexualidade feminina e o
O lugar do pai: uma construção imaginária 124
florescimento do homoerotismo. Ao desvincular-se da heterossexualidade a
sexualidade plástica liberta a sexualidade da regra do falo, da importância
jactanciosa da experiência sexual masculina. Os contratos tradicionais são
extremamente modificados via revolução feminista. Assim, os novos laços sejam
entre marido-mulher ou pais-filhos, antes sustentados pela autoridade paternidade,
são agora deslocados para uma negociação partilhada das funções e compromissos
embasados, é claro, na intimidade e muito menos na tradição.
Segundo Brandão (2003), comentando Zafiropoulos, no Discurso de
Roma de 1953, Lacan só formularia o valor simbólico de função paterna que
acompanha o nome do pai, porque abandona a sociologia de Durkheim e se embasa
no estruturalismo de Lévi Strauss. Até esta data, a concepção de declínio da
imagem social do pai prevalecia, como defendido por Lacan, em 1938, em
“Complexos Familiares”. Segundo Brandão (2003, p. 13),
Em termos gerais, tal tese é deduzida da lei de contração familiar de
Durkheim, hoje em dia completamente obsoleta não somente por ser
historicamente falsa, mas também porque “induce además um llamado
notalgico al padre, o sea, a una figura autoritária y hasta tiranica
(Zafiropoulos, 2002, p.211).
Em “Complexos Familiares”, Lacan (1938) pensa a crise da autoridade
paterna como causa do nascimento da psicanálise, entendendo que Freud é fruto do
patriarcado judeu vienense no final do século XIX. Diz Brandão
(2003, p. 13):
Do mesmo modo, a decadência das estruturas familiares e do poder do pai
está na origem da evolução das formas clínicas das neuroses clássicas aos
chamados transtornos atuais de caráter. Há uma associação entre a
degradação das figuras identificatórias familiares e as deficiências das
estruturas subjetivas das novas gerações, relacionadas às patologias
narcísicas toxicomanias, anorexias, bulimias, depressões, assim como aos
transtornos psicossomáticos, suicídios e estados-limítrofes. Do núcleo
caracterial desses estados mórbidos se deduz a carência de um pai
humilhado.
Em “O Manto de Noé – ensaio sobre a paternidade”, Philippe Julien
(1991) aborda a questão do declínio da paternidade propriamente dito. Partindo
desta leitura, gostaríamos de pinçar os elementos básicos para uma compreensão
desta vertente teórica. Ao abordar a questão do ser pai, ele fala em termos de
direitos: direito sobre a criança, direito da criança e direito à criança.
O lugar do pai: uma construção imaginária 125
6.2.1 O direito sobre a criança
Como já mencionado, a primeira definição do ser pai no Ocidente estava
associada ao ser soberano, isto é, a paternidade é política e religiosa. Neste
contexto, pai, Deus e o Rei são figuras soberanas.
[...] nas civilizações indo-européias, o adjetivo patrius, refere-se não ao pai
físico, mas ao pai do parentesco classificatório. Assim a patris potestas é a
descendência social e jurídica, vindo dos pais fundadores. Ser cidadão é
fazer parte da linha dos pais. Desse modo, na cidade romana, o imperador
(Pater patriae), os senadores (patres), os nobres (patricii), encaram a
paternidade instauradora, como laço social, à medida que, esta é
fundadora, essencialmente, não pelo sangue, mas pela palavra, palavra dita
justamente “paternal”, (sermo patrius), ou seja, trata-se da linguagem
paterna (JULIEN, 1991, p. 38).
Esta mesma ideologia pode ser vista, dentro das diferenças culturais, em
expressões como "pais fundadores" nos USA, "pais dos povos" na Rússia de Stalin,
no Cristianismo, “pais da Igreja”. Conceber o pai como soberano, político e religioso,
no espaço familiar, é entender o pai como o chefe da casa, o dono (dominus). Dono
da casa, da mulher, da criança. “Esposar, neste contexto, é conduzir a mulher à
casa, fazê-la conformar-se ao matrimônio, ou seja, à condição legal de mãe”
(JULIEN, 1991, p. 38). Da mesma forma que o soberano se autoriza dono da nação,
assim o pai, na família.
A paternidade, neste contexto, é sempre adotiva. Na antiga cultura
romana, depois de um nascimento de uma criança, a mesma era colocada no solo, e
um homem publicamente dizia: “Eu sou o pai”. Evocava em público a paternidade;
era como se houvesse um segundo nascimento. O que definia a paternidade era um
ato com declaração pública e não o sangue.
Que direito o pai tinha sobre a criança? De vida e morte, de correção, de
prisão. O pai decidia sobre casamento dos filhos em função do patrimônio. O Estado
não intervinha neste processo. Esta concepção vai perdurar até o século XVIII,
quando ocorre uma revolução significativa, mudando o eixo sobre o qual a
sociedade estava fundada (JULIEN, 1991). Os teóricos da monarquia absoluta
tinham procurado justificar pelo direito a autoridade do rei, ligando-a a de Deus e à
do pai. Assim Bossuet, recolhendo e sistematizando a lição de São Paulo,
comparando o soberano ao pai de família, fazia da monarquia um direito natural
O lugar do pai: uma construção imaginária 126
(JULIEN, 1991). Para torná-la mais indiscutível, ele erigiu a autoridade política em
direto divino.
Deus, dizia ele, é o modelo perfeito de paternidade. Ora, o rei é a imagem
de Deus sobre a terra, o pai dos seus súditos. O simples pai de família é, portanto,
sucedâneo da imagem divina e real junto aos seus filhos. Cada um ganhava com
estas analogias sucessivas: o pai da família, em magnificência e em autoridade, o
rei, em bondade e em santidade. O próprio Deus tornara-se mais próximo de suas
criaturas (BADINTER, 1993, p.169).
Ligando estreitamente Deus, rei e pai, o destino de um comandava o dos
outros dois. E assim sucedeu. Matando o rei, os revolucionários franceses deram um
golpe decisivo no poder de Deus e do pai: "a condenação à morte do rei é um
simulacro do assassinato de Deus, ele próprio simulacro da morte do pai"
(BADINTER, 1993, p.169).
Como afirma o filósofo Jean Lacroix:
[...] a democracia é incompatível com o poder paterno de outrora. Toda
emancipação é primeiro uma liberação em relação ao pai. A soberania
popular nasceu do parricídio. Matando o rei-pai, o povo, por muito tempo
considerado como menor, ganha a autonomia do adulto. Para chegar a isso
foi preciso guilhotinar o soberano em praça pública para que cada um
tomasse realmente consciência da mudança de Estado (BADINTER, 1993,
p.170).
Realizado o ato, a derrubada dos valores tornava-se efetiva. O lema da
revolução: liberdade, igualdade e fraternidade, substituía o antigo: submissão,
hierarquia e paternidade. No período republicano, a amizade fraternal entre os
cidadãos substitui o sentimento de respeito que une os filhos aos pais. Os laços
verticais cedem lugar a laços horizontais. Como afirma Jean Lacroix: "a democracia
moderna apresenta-se como uma busca de fraternidade acompanhada de uma
recusa da paternidade” (LACROIX apud BADINTER, 1993, p.170).
A fraternidade revolucionária, selada pelo parricídio real, dá um outro
sentido à noção de sagrado: "em lugar do sagrado, que procede de uma
participação numa realidade superior, há aquele que nasce da comunhão dos iguais"
(BADINTER, 1993, p.170).
Como conseqüência, podemos verificar uma restrição à função paterna:
de pai soberano, num contexto amplo – político, religioso e familiar - centra-se agora
sobre a família; seu poder se restringe agora a uma mulher e é aplicado às crianças.
O lugar do pai: uma construção imaginária 127
O ser pai vai ser designado pelo casamento, pelo jurídico: “pai é aquele que o
casamento designa”. Assim, a criança tem, por pai, o marido da mãe. A mudança é
significativa: é autoridade no interior da família.
Podemos perguntar: de onde vem o declínio da função paterna?
Juntamente com a monarquia são rejeitados o absolutismo político e a realeza
doméstica. Não é limitação apenas da autoridade paterna, e sim qualidade do poder
no interior da família.
O Estado e a Igreja, mormente o Cristianismo, são os grandes
responsáveis pelo declínio da paternidade. Com a introdução do batismo, a criança
é introduzida numa outra filiação, da qual o pai não é mais soberano, e sim servidor;
e por isso o batismo é público. Pelo batismo, a Igreja tinha poder de educar o sujeito,
possui a legislação sobre a educação da criança e do adolescente. O batismo
introduz a criança num campo mais amplo, não mais o campo da família nuclear. Em
caso de conflito, o pai se submeteria à autoridade da Igreja.
Outra mudança muito significativa refere-se ao casamento dos filhos e
filhas, algo até então restrito ao poder paterno. Ao ser estendido à Igreja, reduz
ainda mais a função paterna.
Este destronamento progressivo da realeza doméstica teve uma marca
significativa: apoiar-se sobre o consensualismo do direito romano existindo
para transformá-lo, e conferir, assim, ao casamento valor de sacramento.
Quer dizer: não há sacramento sem o dom de uma palavra livre da parte de
cada um dos cônjuges: condição necessária uma vez que são eles
mesmos, um para o outro, os ministros do casamento que se concedem,
para suas vidas, através de uma união indissolúvel. Desse modo, um
casamento secreto entre cristãos, sem que os pais saibam, é reconhecido
como perfeitamente válido (JULIEN, 1997, p. 41).
Criou-se um conflito entre Igreja e senhores feudais, o que foi resolvido
pela introdução de um terceiro elemento nesta relação entre pais e filhos, o Estado,
constituindo o primeiro declínio do poder paterno. Paulatinamente o Estado
Moderno, a partir do século XIX, vai substituindo a Igreja na função de garantir as
liberdades. Neste contexto, tanto a Igreja como o Estado vão preocupar-se, não
apenas com o direito paterno sobre os filhos, mas com o direito da criança.
O lugar do pai: uma construção imaginária 128
6.2.2 O direito da criança
A partir do século XIX nasce um segundo conceito de ser pai, uma
definição mais burguesa, quando se consolidam os direitos da criança. Toda criança
tem direitos em função de seu bem, interesse e bem-estar. E para que possa se
desenvolver, toda criança tem direito a uma filiação paterna. Com o fortalecimento
da vida burguesa, determinou-se que a vida é um bem e que se tem o direito à
manutenção deste bem. E isto é estendido à criança: a criança tem todo o direito de
ter um pai.
Se a criança tem direito, pode se definir o ser pai em função de papéis a
cumprir e tarefas a desempenhar. É dever do pai manter a condição de vida do filho,
cuidar da educação... A criança não é mais criada num bando como as dos gregos,
mas a partir da burguesia temos um pai que educa, cuida e prepara para o futuro.
Esta é a imagem do pai, do início do século XIX até o presente momento.
Desenvolve-se no século XX, com aquilo que se denomina o “novo pai”:
aquele que conduz a criança, que troca as fraldas, que brinca, que fala
bebezinho com o recém nascido. Não é mais aquele cuja mãe fala, mas
aquele a quem a criança fala e que chama de pai (JULIEN, 1997, p. 43).
Esta concepção de pai é por demais frágil, pois está alicerçada em função
de direitos e deveres, ou seja, de funções a desempenhar. Estamos diante de um
novo pai: pai que pega a criança, alimenta e cuida; pai, um homem que tem deveres.
A fragilidade deste pai consiste exatamente em ser alguém que desempenha
funções. E por ser função, facilmente pode ser desenvolvida por outros igualmente
capazes. Esta nova definição de ser pai é mais um declínio de quem detinha esta
função, pois se o pai tem deveres, significa o Jurídico intervindo sobre a criança. A
lei garante o direito de filiação.
Nota-se que a história produziu um saber sobre a criança: o saber sobre o
bem e o bem-estar da criança. Isto ultrapassa o poder paterno e o reduz. Deste
modo,
[...] um saber suposto adquirido e possuído por todos que intervêm junto à
criança, constitui uma opinião feita de dados médicos, psicossociológicos,
pedagogos, implicando uma ética subjacente, reconhecida ou não. Este
saber determina um trabalho de assistência médica, materna, social,
educativa, jurídica [...] dossiês de todos os tipos (JULIEN, 1997, p. 43-44).
O lugar do pai: uma construção imaginária 129
Neste sentido, podemos falar hoje de uma paternidade compartilhada.
Assistimos, mais uma vez, a um declínio do poder paterno.
Por outro lado, ainda segundo Julien (1991), no século XX, entra em cena
a figura da Mãe. A lei civil determina isto. Existe para a criança algo mais importante
do que o amor materno? Literalmente não. Se ao pai se aplicam algumas funções, à
mãe não se pode dizer o mesmo. Se o pai é uma função adotiva, declaração
pública, a mãe é única e imutável; e, além disso, a mãe não precisa se declarar, ela
é. Mãe é igual a certeza absoluta e pai, sempre dúvida. Então, como definir pai?
6.2.3 O direito à criança
Ser pai é ser o genitor da criança. Assim se diz da paternidade biológica.
Este conceito arruína o que se concebia anteriormente por paternidade e filiação:
“Pater is est quem nuptiae demonstrant” (JULIEN, 1991, p.45), isto é, o pai é aquele
que o casamento determina.
Se definir a paternidade em função de deveres resultou numa fragilidade
ímpar, o mesmo pode-se afirmar da verdade biológica. Tal avanço na reflexão
promoveu outro direito da mulher à criança.
Do ponto de vista jurídico, durante muito tempo, a paternidade era
presumida: legalmente, o pai era o marido da mãe. Pela lei, ela não podia ter filho de
pai desconhecido. Em 3 de janeiro de 1972, a lei francesa determinou que a mãe,
casada ou não, tenha o poder de declarar a criança sob seu nome de solteira, e ter
somente ela a autoridade parental. Se o pai não aceitar, cabe a ele provar o
contrário. A lei não assegura, para o homem estimado pela mãe, a condição de
genitor (JULIEN, 1991).
Com a inseminação artificial, o conceito biológico de paternidade
fragilizou-se ainda mais, tornou-se insignificante. Julien, num congresso em Viena,
em 1985, afirmava:
[...] se para procriar o homem precisa da mulher, a mulher poderia não ter
necessidade do homem para tal fim. O direito à vida parece bem implicar o
direito de todo ser humano e à liberdade de escolher os meios pelos quais
poderá vir a conceber (BADINTER apud JULIEN, 1997, p. 41).
Assim, o discurso médico determina a paternidade.
O lugar do pai: uma construção imaginária 130
Por outra parte, algo fica em aberto. A ciência pode falar-nos
pormenorizadamente de todo o processo de fecundação, gestação, nascimento, de
“tornar” fecunda a mulher tida por estéril..., mas
[...] por mais que o saber científico inteligibilize a relação entre
espermatozóide e óvulo, esse mesmo saber indica como impossível que a
verdade sobre a paternidade seja da ordem daquilo que este saber aí
demonstra. Pode-se dizer, com efeito, que se é filho ou filha de um
espermatozóide? Uma falha abre-se neste ponto. Esta falha já estava aí,
certamente, mas com o avanço do saber é colocada de forma clara. Por
isso, só se pode entender como abuso do uso da linguagem a alusão à
expressão “paternidade biológica(JULIEN, 1991, p. 47-48).
Concluindo: o que resta ao pai? A tarefa de emprestar espermatozóide à
mãe; assim a responsabilidade paterna se restringe a doador de espermas, porque
sem estes a ciência ainda não conseguiu criar filhos. Este tríplice declínio, segundo
Julien (1991), foi responsável pelo esvaziamento da função paterna na atualidade.
6.3 Novas configurações
Retomando a questão do modelo familiar, no imaginário coletivo, a família
nuclear tornou-se um símbolo impregnado de idealizações. Espera-se deste modelo,
como diz Carvalho (2003, p. 16),
[...] que ela produza cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção
de identidades e vínculos relacionais de pertencimento, capazes de
promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetiva inclusão
social na comunidade e sociedade em que vivem. Estas expectativas são
possibilidades e não garantias.
Segundo Szymansky (2005), desde Freud, a relação mãe e bebê tem sido
interpretada como decisiva para o desenvolvimento emocional da criança. Essa
concepção põe em evidência a família como lugar potencial e privilegiado de
produção de subjetividades saudáveis, estáveis e felizes, ou ao contrário, espaço de
desequilíbrios, inseguranças e desvios de comportamento.
A concepção de família como instituição natural dificulta a compreensão
desta instituição como algo que evolui, que está em movimento constante; como diz
O lugar do pai: uma construção imaginária 131
Carvalho (2005, p.16), “precisamos compreendê-la como grupo social cujos
movimentos de organização-desorganização-reorganização, mantêm uma estreita
relação com o contexto sociocultural”.
Neste contexto, como já sinalizado, a autoridade de pai se fundamentava
na sua condição de pai provedor financeiro da família, na figura que fazia a ligação
entre passado-presente e acenava para o futuro, e se destacava no topo da
pirâmide na condição de marido e pai e representação da instituição familiar. E
somadas a estas dimensões, ressalta-se a dimensão cultural das representações
constituídas acerca de papéis de masculino e autoridade.
Como já mencionado, a autoridade paterna estava legitimada no âmbito
das representações como algo natural. Esta naturalidade da autoridade masculina,
paterna, fundamentava-se na religião e no jurídico. Assim, o pai permaneceu como
força imbatível ao longo dos séculos, pois além de comandar os filhos,
[...] pressupunha a transmissão de orientações compatíveis com uma
realidade em que o interesse coletivo predominava sobre vontades
individuais, configurando uma modalidade de ordenação doméstica que
Aries (1981) denominou de familismo (ROMANELLI, 2005, p. 85).
Com as mudanças na contemporaneidade, verifica-se uma redução da
legitimidade da autoridade do pai como chefe da família e seu poder, além de
questionado, tende a ser mais igualitário. Como afirma Romanelli (2005, p. 87),
[...] ocorre um declínio da autoridade do chefe de família e mesmo da
capacidade dele de exercer seu poder sobre a esposa e os filhos, enquanto
amplia-se o controle das mães sobre a prole, deslocando o centro da família
da autoridade patriarcal para a afeição maternal (RYAN, 1981, apud
GIDDENS, 1993, p.53).
Como vimos acima, via documentos da Igreja Católica Romana,
configurou-se um modelo de família e por extensão um modelo de homem e pai. Na
contemporaneidade, deparamos com novos arranjos familiares que põem em xeque
o modelo tradicional, e como diz Ceccarelli (2006), obrigam-nos a rever os papéis de
gênero e, conseqüentemente, a ordem simbólica. Romper com algo historicamente
acostumado como natural implica em perda da referência, ou mais precisamente,
pode-se constituir numa “crise identitária.” Não podemos esquecer, por outro lado,
que crises sempre ocorreram na história da humanidade e crise simbólica idem, pois
O lugar do pai: uma construção imaginária 132
estas são frutos de uma construção socioistórica e por ser construção está implícita
a possibilidade da mudança com o fervilhar dos acontecimentos.
Paira no ar certo temor de que tais mudanças nas relações de gênero
interfeririam negativamente no Complexo de Édipo. Em face deste temor, diz
Ceccarelli (2006, p. 317),
O Édipo, representação fantasmática sustentada por um relato mitológico,
é, ao mesmo tempo, universal e singular: universal, pois marca o que é
próprio do humano: a interdição do incesto; particular, pois o que determina
a circulação dos afetos é a ordem simbólica onde o recém nascido está
inserido. O Édipo discutido por Freud traduz a dinâmica pulsional do modelo
familiar de sua época. Nela, os papéis do marido e da mulher eram
claramente definidos e o agente castrador era o representante do modelo
patriarcal: o pai que detinha – imaginariamente o falo.
E acrescenta Ceccarelli (2006, p.318) que o mais importante na cena
edípica não são tanto os protagonistas, e sim os “[...] caminhos da pulsão e as
escolhas do objeto”. Neste contexto edípico, o pai é apenas o porta-voz de algo que
o antecede: segundo Freud, o complexo de castração,
[...] parece-me bem possível que todas as coisas que nos são relatadas
hoje em dia, na análise, como fantasia foram, em determinada época,
ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana, e que as
crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade
individual com a verdade pré-histórica (FREUD, (1917[1916-17])/1996,
p.373).
Segundo Ceccarelli (2006), as representações sociais de masculino e
feminino que são apresentadas à criança como naturais nada têm a ver com o sexo
da criança e muito menos com o daquele que os apresenta. Isto quer dizer que as
representações de gênero apresentadas à criança tanto faz serem apresentadas por
um homem ou por uma mulher.
Assim, conclui Ceccarelli (2006, p. 322):
[...] evocar razões naturais que expliquem as diferentes organizações
sociais e as relações de gênero que elas estabelecem corresponde a
procurar estas razões fora da história. Com esse expediente, o movimento
científico se transforma em movimento ideológico, e a ordem social, que é
sempre construída, é tratada como um fato natural indiscutível, fazendo-nos
esquecer que as relações que os sujeitos estabelecem entre si são sempre
imaginárias.
O lugar do pai: uma construção imaginária 133
Na cultura brasileira, como vimos acima, adotou-se um modelo de
estrutura familiar e neste repousou a confiança de que é a garantia segura de
produção de subjetividades saudáveis, “normais”. Sabemos, de antemão, que em
nenhuma estrutura tem-se a garantia que se crê. Segundo Ceccarelli (2002), a
“sobrevivência psíquica” do sujeito não depende de um arranjo familiar particular
mas sim, de como, na posição do Outro, uma determinada organização familiar,
qualquer que sejam os protagonistas, sustentará o bebê, candidato potencial a
tornar-se sujeito, na travessia de duas “violências” incontornáveis, fundamentais e
fundantes: a violência primária e a violência simbólica.”
Criou-se, no imaginário social, que a família “con-jugo-(al)” é a única
referência possível, capaz de produzir e assegurar uma ordem social e
subjetividades saudáveis. Lembra-nos Ceccarelli (2007, p. 311) que,
[...] não é uma organização social suposta “natural” que cria o modelo. Mas,
ao contrário, é o modelo que, construído para manter tanto a organização
social criada, quanto o universo discursivo daí advindo, cria uma ordem que
é apresentada como natural.
Isto é tão verdadeiro que o próprio histórico familiar informa-nos a
respeito, ao evidenciar que o papel de pai e mãe é algo construído em cada cultura.
No capítulo segundo, quando do diálogo com a antropologia, tal concepção se
confirmou. Entendemos que estamos falando de algo que está no coração da
discussão, ou seja, dos fundamentos que estruturam a ordem social. Aqui reside um
ponto nevrálgico, isto é, o imaginário que sustenta a estrutura que é concebida como
imutável eterna e natural.
A construção do imaginário encontra-se vinculada ao Estado. No Brasil,
como vimos, sobretudo com a medicina higienista, associada ao Estado, criaram e
sacralizaram este imaginário. A partir daí, definiu-se o que é família e o que se
espera desta organização. Ao longo do século XIX, fruto da urbanização
desencadeada pela vinda de D. João VI e da Corte para o Brasil, da penetração do
capitalismo industrial europeu e a preocupação com o fortalecimento do Estado,
aliada à ação da higiene (movimento higienista), houve uma remodelação
significativa do espaço familiar. Este novo modelo consolidou-se no seio da família
nuclear burguesa, e depois se expandiu para as camadas populares, num processo
O lugar do pai: uma construção imaginária 134
em que a Igreja Católica teve papel ativo ao se aliar e reforçar a ação da higiene
(WINCKLER, 1983).
Como afirma Ceccarelli, este modelo, criado pelo Estado e sacramentado
pela Igreja, é defendido como modelo, ideal:
[...] a moral cristã sustenta a indissolubilidade do casamento, a monogamia,
a fidelidade e se posiciona contra tudo que ameaça esse modelo:
contracepção, aborto, uniões livres, homopaternidade. Isto significa que a
família e o casamento, tais como os conhecemos hoje no mundo Ocidental,
nem sempre foram como são, e o que levou a ritualizar a união entre duas
pessoas foram motivações socioeconômicas. Além disto, esta união nem
sempre teve um valor sagrado como para o cristianismo: nos primeiros
séculos de nossa era a luta foi intensa entre a moral cristã incipiente e as
práticas ditas "pagãs", de concubinato e divórcio, tão comuns no Mundo
Antigo (CECCARELLI, 2007, p.313).
Neste sentido, nossa cultura impregnada deste modelo judaico cristão se
contrapõe a qualquer mudança que ameace este imaginário.
Como temos falado, ser masculino e ser feminino não são dados, mas
construídos no tempo e no espaço e sujeitos a mudanças constantes; e na
contemporaneidade fala-se de uma “crise” do masculino. Segundo Badinter (1993,
p.11-12),
[...] as transformações contemporâneas, pelas quais vêm passando o papel
masculino, não constituem as primeiras na história, nem tão pouco gozam
de originalidade em seu conteúdo. Existiram, na Europa e América do
Norte, do século XVII ao final do século XIX, crises relativas ao papel
masculino que, apesar de seus limites, alteraram a organização da família e
do trabalho, abrindo caminho para as mudanças que assistimos hoje. Entre
elas, a que se configuraria como mais extensa e profunda, que se inicia ao
final do século XX, decorrente da industrialização, da democracia, e da
maior escolarização da mulher, que deram novo alento às reivindicações
feministas.
Para Ceccarelli (2007), tais mudanças atestam o caráter imaginário de
nossas certezas, o que está levando a família tradicional a passar pelo que podemos
chamar de “crise das referências simbólicas”: por ser sempre uma construção
atrelada a um momento histórico-político, as referências simbólicas que definem o
modelo familiar são passíveis de remanejamento e reorganização.
O Estado e a Igreja podem estabelecer normas, regras, que definam a
família, mas do ponto de vista psicológico, não temos nenhuma garantia ou
segurança no sentido de que o modelo familiar tal vai ou não produzir desvios.
Como afirma Ceccarelli (2007, p. 315),
O lugar do pai: uma construção imaginária 135
as famílias são sempre construídas e os filhos sempre adotivos, pois, as
relações afetivas que unem os sujeitos são o resultado de investimentos
objetais que, como todo investimento, comportam movimentos pulsionais
ambivalentes de diversas ordens. Não existe uma forma de organização
familiar ideal que, inequivocamente, garantiria um desenrolar mais sadio, ou
mais patogênico, para a constituição do sujeito.
Como já mencionado, o sujeito que cumpre a função de separação da
simbiose mãe-filho varia de cultura para cultura, o que é certo é que o complexo de
castração impõe limites para constituição de sua psicossexualidade: pois, já o
dissemos, o Complexo de Édipo é concomitantemente universal e singular e a
circulação pulsional que ele suscita é resultante da ordem social que organiza os
elementos desse complexo. E acrescenta Ceccarelli (2007, p. 315):
Dentre esses está o sistema de valores da cultura em questão que,
introjetados, passam a fazer parte do superego. O Édipo discutido por Freud
reflete a dinâmica pulsional do modelo familiar de sua época, na qual a
figura detentora do falo - evidentemente imaginário - era o pai. Os textos
freudianos nos mostram que, mais importantes que os protagonistas da
cena edípica são os caminhos da pulsão e as escolhas de objeto que levam
à constituição do sujeito.
Ao discutir ideologia e representação, falávamos que a entrada do sujeito
na cultura é marcada por uma violência simbólica, isto é, há um discurso que
sustenta um modelo de sistema de valores que são apresentados ao sujeito como
natural. E é aqui que reside o ponto de criação da representação cultural de
masculino e feminino, função esta rigidamente amarrada pela ideologia. De acordo
com Ceccarelli (2007, p. 316),
[...] para a criança em constituição, os atributos de gênero que lhe são
apresentados como naturais não guardam nenhuma relação de
continuidade com o sexo anatômico da criança, e, muito menos, com o de
quem os lhe apresenta. Isso significa que os atributos que determinada
cultura outorga ao feminino e ao masculino podem ser apresentados à
criança tanto por uma mulher quanto por um homem. (A mulher que diz ao
menino: “homem que é homem não faz isso”. “Se o seu pai estivesse
aqui...” e assim por diante.) Entretanto, por serem criações culturais
impostas ao sujeito, estes atributos podem ser recebidos, por aquele em
constituição, como algo traumático, senão persecutório.
Recorda-nos Freud em “O Mal Estar da Civilização” que são os laços
afetivos que propiciam ao sujeito um lugar simbólico no social. Diz Freud
(1930[1929]/1987, p. 125-126):
O lugar do pai: uma construção imaginária 136
Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo a serviço
de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois
famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande
unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não
sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de
homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade,
as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas.
Segundo Freud (1930[1929]/1987), por meio da economia de amor e
frustração, ou seja, do frágil equilíbrio entre Eros e Anánke, a civilização encontra
seus meios de, ao mesmo tempo, restringir a vida sexual e ampliar a unidade
cultural; tal movimento, contudo, não se desdobra impunemente, mas carrega no
seu cerne uma condição trágica, a da sua própria extinção. Diz Ceccarelli (2007, p.
323) que é
[...] a força de Eros, que sustenta os investimentos libidinais e a circulação
pulsional. Sem o equilíbrio das moções pulsionais ambivalentes, presentes
em toda e qualquer ligação objetal - amor ou ódio em excesso são
igualmente destrutivos - não há acolhimento possível para a criança que
acaba de nascer.
6.4 Conclusão
Neste sexto capítulo, deparamos com três discursos: o discurso da crise,
do declínio e o de uma nova configuração da função paterna. Partindo do princípio
de que cada ponto de vista é visto de um ponto, compete-nos agora pontuar estes
pontos de vista. O primeiro deles, o que apregoa que estamos vivendo uma crise da
paternidade, retrata segmentos ou instituições que concebem o lugar do pai, da
mãe, do masculino, feminino, como algo da ordem da natureza, isto é, a paternidade
é algo dado e entendido como natural; assim foi e assim será ad aeternum.
Podemos dizer que se trata de discurso falocêntrico, ou seja, tem-se um eixo –
Deus-todo-poderoso: tudo conhece, tudo sabe, tudo controla – ao redor deste eixo
gira o universo, e Deus é ponto de convergência como o era o pai no sistema
patriarcal. A pulsão se movimentava, diríamos, em círculo, ao redor deste Deus, do
pai, do rei. Na morte de Luis XIV sepultou-se também a concepção de Deus e de
pai. A partir daí a pulsão circula de outro jeito, não tem mais um foco; talvez
O lugar do pai: uma construção imaginária 137
pudéssemos falar, em termos de movimento, de dispersão; não tem mais um único
jeito de circular, mas vários e nenhum dele é o jeito.
Há uma crença numa estrutura concebida como produtora de
subjetividades saudáveis; assim, toda e qualquer possibilidade de mudanças é
entendida como ameaça, logo requer medidas enérgicas e, sobretudo, um
enrijecimento do discurso.
Por outro, lado fala-se do declínio do poder paterno. Segundo Ceccarelli
(2002, p. 02), o que podemos verificar é um declínio do patriarcado, resultado de
mudanças, sobretudo econômicas, responsáveis pelo surgimento do homem
moderno. Neste sentido, o que está em xeque é o que até então era tido como única
via para subjetivação, ou seja, a referência do pai. Aqui se conjuga a crise do
masculino com a crise fálica, entendida como organizadora do sócio. O que se
evidenciou, com a mudanças econômicas, políticas e sociais, foi a dimensão
imaginária de uma maneira de organização social onde o homem ocupava o centro.
Philippe Julien (1991) concebe a crise contemporânea da família pelo viés
do declínio. Entende ele que é pela família que se transmite a lei do desejo e que faz
um sujeito conjugar-se a outro. Ou seja, para que isto ocorra é mister que pai e mãe
tenham sido e continuem sendo homem e mulher um para o outro: “a verdadeira
filiação é ter recebido dos pais o poder efetivo de abandoná-los para sempre, porque
a conjugalidade deles era e continua sendo primeira” (JULIEN, 1991, p. 46).
Toda e qualquer organização familiar, esteja onde estiver, em qualquer
cultura será fruto de um imaginário social e só se manterá graças a “eros”. Cada
concepção de filiação de uma sociedade traz no seu bojo seus valores simbólicos e,
como já mencionamos, não são a consangüinidade e o genealógico que ditam as
proibições de casamento. Por este motivo, diz Ceccarelli (2007, p. 323) que,
[...] qualquer novo arranjo familiar é, num primeiro momento, tratado como
algo ameaçador, pois remete em questão a idéia de uma família “natural”,
tal como aquela sociedade a concebe [...] fazendo esquecer que as bases
que sustentam a família são sempre imaginárias.
Pode-se verificar, então, que a produção da alteridade não está vinculada,
necessariamente, ao modelo tradicional. Não há um modelo único de produção de
alteridades "sadias".
O lugar do pai: uma construção imaginária 138
CONCLUSÃO
O lugar do pai: uma construção imaginária 139
7 CONCLUSÃO
Propôs-se, nesta dissertação, pensar o pai como uma construção
imaginária. Em nosso trajeto pudemos constatar que este lugar não é natural, e sim
uma construção. Também pudemos certificar que, independente das mudanças, o
que se convencionou chamar de função paterna não deixou de existir. Em nenhum
momento registrou-se uma maior manifestação de fenômenos psicóticos devido às
mudanças ocorridas ao longo da historia. Evidenciou-se que cada organização
social cria seus mecanismos internos e externos e estes são responsáveis pela
introdução do infans na cultura. Ou seja, a função paterna como promotora do
encontro com a alteridade, em cada cultura, é fruto de uma construção socioistórica
e, portanto, passível de transformações.
Iniciamos nossa pesquisa fazendo um tour pela antiguidade. E aí nos
deparamos com o mundo patriarcal; mundo em que a forma de família se baseia no
poder do masculino e do chefe da casa; o patriarcado fala de uma estrutura de
sociedade nascida do poder do pai. Segundo vimos, da cultura judaico-cristã
bebemos toda uma cultura religiosa que, partindo da interpretação do mito da
criação – Adão e Eva –, fundamenta uma estrutura social com sua filosofia e valores
patriarcais. A religião judaica é a religião dos patriarcas. Na Bíblia deparamos com
um modelo de família: “endogâmica, patrilinear, patriarcal, patrilocal, ampliada e
poligâmica” (BADINTER, 1986, p.79). A exemplo do Deus que ordena o sacrifício do
filho do Abraão, assim os pais tinham plenos poderes sobre a mulher e filhos como
suas propriedades.
No terceiro capítulo, em diálogo com a antropologia, evidenciou-se que a
função paterna é uma convenção, desvinculada da natureza e que permite ao infans
referir-se à própria ascendência simbólica. Percebeu-se também que a função
paterna não está associada à figura do pai biológico, necessariamente.
Em seguida, embasado na psicanálise freudiana, afirmamos que o pai é
aquele(a) que aponta para a alteridade, para o encontro com o outro como condição
necessária para a constituição do sujeito. E, partindo de Lacan, pudemos afirmar
que é o Nome-do-Pai que cria a função do pai. Mas, como o pai não é uma figura e
sim uma função, não tem nome próprio, isto é, tem tantos nomes quantos suportes
têm sua função.
O lugar do pai: uma construção imaginária 140
No quinto capítulo, a partir de um diálogo com a História, elaborou-se uma
síntese da vida da família no Brasil e aí certificamos que o modelo patriarcal e
depois nuclear, com uma estrutura patriarcal, foi padronizado; Percebemos mui
claramente que o jogo ideológico transforma conceitos, valores, filosofias, levando o
sujeito a crer que a estrutura em que vive ou que o assegura são dados da natureza
e não produção histórica. Sob esta óptica, falamos da dificuldade de pensar a
instituição paterna como passível de mudanças, pois significa romper com modelos
e padrões tidos como oficiais, únicos e eternos; falamos da descentralização da
cultura falocêntrica e de um novo jeito da pulsão circular.
E finalmente, à luz do entendimento de que a função paterna é uma
construção socioistórica, apresentamos três discursos: o da Igreja Católica Romana,
que concebe a instituição paterna como natural, e numa postura de resistência faz o
discurso da crise; e o discurso dos que sustentam a tese do declínio da função
paterna. Concluímos defendendo a hipótese da existência de novas configurações
da função paterna e que em toda cultura esta será fruto de um imaginário social e
que só se manterá graça a eros.
Ao término de nossa pesquisa, gostaríamos de refletir sobre a relevância
e implicações da temática na psicanálise e no social.
A função paterna, entendida como promotora da alteridade, é algo da
ordem cultural e indispensável para a inserção da criança na cultura. Sob o olhar
materno, o pai é o que se apresenta como outro - alteridade - na relação mãe-
criança e abre a possibilidade de se criar um vínculo com a criança. E como vimos
este outro pode ser apresentado como pai, avô, tio, mãe, companheiro.
Sob a óptica do imaginário, a paternidade se apresenta no discurso de
quem acolhe a criança no mundo, e a introduz no simbólico. E para ocupar este
lugar, a forma como o pai o faz, acena para sua identidade familiar de origem, ou
seja, para ser pai, se faz necessário reconhecer-se filho de um pai. Simbolicamente
falando, a função paterna se efetiva para além do genitor, na figura de um Outro que
estabelece vínculos afetivos significativos para a criança.
Ser reconhecido por aquele(a) que encarna a função paterna é o que
propicia ao recém-nascido a experiência de pertencimento a um grupo. Pela
filogênese, o sujeito se apropria daquilo que o constitui na cadeia geracional e pela
ontogênese, o sujeito, embasado em suas experiências, se abre para as
transformações que ocorrerão no decorrer de sua existência.
O lugar do pai: uma construção imaginária 141
Sob a óptica social, nossa pesquisa colocou-nos em contato com os mitos
de origem. E a partir daí, percebemos como um mito determina a estrutura de uma
sociedade com suas crenças e valores.
Muraro (1997) refletindo sobre os mitos de origem, citando alguns
mitólogos, diz que eles se dividem em quatro grupos: nos primeiros mitos, o mundo
é criado somente por uma deusa; nos segundos, por um casal, um par andrógeno;
nos terceiros, um deus macho toma o poder da deusa ou cria o mundo a partir do
corpo da deusa; e finalmente nos mitos do quarto grupo, um deus macho cria
sozinho o mundo, como nos mitos persa, meda e judaico-cristão; no mundo judaico
sobretudo a partir do segundo milênio a.C.
No mito judaico-cristão da criação, o Deus Criador – Javé – é concebido
como todo-poderoso, um deus que tem nas mãos o poder de vida e morte sobre
suas criaturas. Como convida o salmista: “servi a Javé com temor, beijai seus pés
com tremor, para que não se irrite no caminho, pois sua ira se acende depressa” (Sl
2,10). Javé Deus cria o mundo sozinho, cria o homem e do homem faz a mulher.
Coloca-os no jardim onde a vida transcorre na tranqüilidade e harmonia até que a
mulher, induzida pela serpente, seduz o homem e ambos são expulsos do paraíso.
O Deus que aqui se apresenta, segundo Muraro (1997, p.9):
[...] é um deus único, centralizador, dita rígidas regras de comportamento
cuja transgressão é sempre punida. Nas primitivas mitologias, ao contrário,
a Grande Mãe é permissiva, amorosa e não coercitiva. E como todos, os
mitos fundantes das grandes culturas tendem a sacralizar os principais
valores, Javé representa bem a transformação do matricentrismo em
patriarcado.
O patriarcado em nossa história, como se pode verificar, sempre esteve
fundamentado no Cristianismo. A concepção de Deus se materializa no seio familiar,
no pai centralizador; como o mundo girava ao redor do Deus criador, assim a “vida
pulsional” ao redor do pai. A mulher é vista a partir do homem como símbolo da
tentação, a que perturbava a relação com o divino e a que conflitua as relações
entre os homens. Ela está associada à natureza, à carne, ao sexo, ao prazer; algo
que precisa ser mantido sob rigoroso controle. Bebemos esta cultura. Cultura
entendida segundo Geertz (1989, p.66) como um “padrão de significados
transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções
herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
O lugar do pai: uma construção imaginária 142
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em
relação à vida”. Como fonte de informação, comparativamente falando, padrões
culturais são semelhantes às bases de ADN - programa codificado – que fornecem
tais informações “para a instituição dos processos sociais e psicológicos que
modelam o comportamento público” (p.68).
O mito bíblico da criação determinou, ideologicamente, o lugar do
feminino e do masculino em nossa cultura. E, como já mencionado, esta concepção
de mundo está carimbada, registrada e entendida como algo da ordem da natureza:
nasceu assim, e assim será.
As grandes mudanças ocorridas nas últimas décadas testemunham o
inverso; com uma inversão de 180 graus, diríamos que a cultura tradicional virou-se
pelo avesso, e o que era padronizado, certo, cedeu lugar à fragmentação de
sentidos, à multiplicidade de direções de comportamentos e à uma pluralidade de
conhecimento. O mundo não gira ao redor de um eixo, de uma só verdade.
Giddens (1997, p.80), comentando a cultura tradicional em que o ritual é
condição de preservação da tradição, dos valores como meio de identidade pessoal,
coletiva, diz:
[...] a identidade é a criação da constância através do tempo, a verdadeira
união do passado com o futuro antecipado. Em todas as sociedades, a
manutenção da identidade pessoal, e sua conexão com identidades sociais
mais amplas, é um requisito primordial de segurança ontológica. As
ameaças à integridade das tradições são, muito frequentemente, se não
universalmente, experimentadas como ameaças à integridade do eu.
Neste sentido, entendemos que as mudanças ocorridas têm sido
assustadoras para alguns segmentos sociais ou pessoais, pois rompem com o
costumeiro. A tradição requer repetição, ritual, entendido como maneira de ficar no
mundo conhecido, um meio de evitar a dispersão e exposição de valores a
estranhos ou maneiras de ser. O novo é abertura para o desconhecido.
Num contexto de tradição, a função paterna era entendida como algo
dado, natural; neste processo de destradicionalização, simplesmente se rompe. Ser
pai era uma repetição. O pai era o responsável pela conservação e transmissão da
tradição de geração a geração. Podíamos falar deste papel analisando as famosas
famílias tradicionais.
Com a mudança da concepção de tempo e espaço, o pai entendido como
guardião da tradição vê escorrer, pelos vãos dos dedos, anos a fio de história;
O lugar do pai: uma construção imaginária 143
instituições tidas como sólidas nos seus preceitos e doutrinas aos poucos vão se
entrincheirando e cheirando a mofo e sendo desafiadas a se modernizarem ou
caírem no descrédito; rapidamente, sem nos darmos conta deixamos de “pertencer”
a uma cultura local para fazer parte da aldeia global.
Na contemporaneidade, o sujeito não mais se encontra localizado num
ponto no tempo-espaço; ao contrário, é “multiplicado por bancos de dados,
dispersado por mensagens e conferências em computador, descontextualizado e
reidentificado por anúncios de TV, dissolvido e materializado continuamente na
transmissão eletrônica de símbolos”, diz Kumar (1977, p.138). Neste novo tempo-
espaço onde se pode comunicar com o mundo, sentado na sala da sua casa, dando
e coletando informações, vendendo, comprando, anunciando, controlando, a
questão que se coloca, segundo Kumar, é: onde estou e quem sou? Não se pode
mais considerar uma subjetividade centrada, racional, autônoma; mas depara-se
com o novo sujeito: “despedaçado, subvertido e dispersado pelo espaço social” (p.
139).
O pai era referência para o filho, para a família. Com o rompimento do
tempo e do espaço, as fronteiras se ampliaram ou simplesmente deixaram de existir.
O pai concorre agora com outras referências: não é mais só a palavra do pai, o
exemplo do pai, a presença do pai ... pode-se falar em múltiplas faces do pai. E com
certeza, novas formas de se exercer a função paterna. Os novos arranjos familiares
– novas referências – nos desafiam a repensar o modelo genealógico de filiação;
não se pode mais pensar a criança como sendo filha apenas de um pai ou de uma
mãe; faz-se necessário reconhecer a multiplicidade de ligações, como as existentes
em algumas tribos africanas ou asiáticas, nas famílias recompostas ou adotivas e
homoparentais. Embora haja um modelo tido como referência, herdado
historicamente, não se pode deixar de criticar a naturalização da cultura e do direito
que impuseram um modelo como único e legítimo.
Do ponto de vista conceitual, constatamos ao longo de nosso trabalho, a
dificuldade em definir o que é pai, pois nesta definição há de levar em conta,
variáveis como a herança arcaica, o simbólico, experiência de ser filho de um pai e
as relações construídas no cotidiano. Ao mesmo tempo, as mudanças
contemporâneas problematizam ainda mais uma definição satisfatória do que
chamamos pai, ou em outras palavras, o que define os elementos presentes no
significante pai. Tem-se um vasto campo para pesquisar e, sobretudo diante dos
O lugar do pai: uma construção imaginária 144
vários elementos citados, cabe uma releitura da teoria psicanalítica a fim de rever
aquilo que é conjuntural e o que é universal. Ou, como o universal se adequa ao
conjuntural.
Finalmente, julgamos relevante outro ponto que diz respeito à própria
psicanálise e aos psicanalistas. Como pensar as mudanças significativas no campo
da sexualidade, das estruturas familiares e outras tantas, a partir do lugar do
psicanalista? Ou seja, estamos inseridos numa cultura, imbuídos de ideologias, de
pressupostos teóricos e de representação de família. Queremos pontuar aqui um
desafio: como separar o que é fruto de um momento histórico, mutável, do que é
realmente entendido como conceito, diríamos, que transcende estas mesmas
construções? E mais: existiria o risco do psicanalista usar seu instrumental de
análise em prol da manutenção de estruturas tidas como padronizadas, sobretudo
no campo do sexual e do familiar? Os novos arranjos familiares, por exemplo, a
homoparentalidade: como abordar esta questão sem dissociar de uma concepção
pessoal na clínica, de outra quando exigida pela sociedade?
Neste sentido, os novos arranjos nos colocam diante de questões cruciais
(CECCARELLI, 2002). A psicanálise pode se pronunciar sobre ou pode sentar-se na
cadeira do suposto saber e em alto e bom som, dizer como deveria ocorrer a
dinâmica da filiação. Neste caso, teríamos duas saídas: por um lado a psicanálise
pode se apresentar como guardiã de uma velha ordem simbólica – imutável,
padronizada, uma ordem que responda por uma única forma de subjetivação,
segundo normas vigentes – e determinar o que é ou não do campo patológico. E
outra saída consiste em seguir Freud. Ou seja, conceber a psicanálise a partir
daquilo que as mudanças sociais e clínica nos sinalizarem e aí então, certificar a
reação de como determinados pressupostos teóricos reagem frente às novas
configurações da contemporaneidade. Diríamos que este é o ponto em que mais
fomos questionados e com certeza, desafiados, e que nos estimulam a continuar
nossa pesquisa.
O lugar do pai: uma construção imaginária 145
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