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esse a mais, esse acréscimo de ser, se comparados àqueles encontrados na aldeia; em sua
representação eles revelam a essência destes últimos.
Para explicitar esse caráter distintivo da arte, em seu caráter ontológico de
conhecimento e reconhecimento, Gadamer toma como recurso o conceito grego de
“mimesis”, em sua específica função cognitiva. O hermeneuta então reabilita uma
compreensão sobre a arte, bastante antiga, que remonta a Platão. Imitar consiste, pois, em
representar o que é conhecido – “é imitando que a criança começa a brincar, fazendo o que
conhece e confirmando assim a si mesma”
211
. A arte é mimesis não pelo fato de simplesmente
imitar, copiar o já conhecido, mas, sobretudo, por trazê-lo à representação, tornando-o
presente. Que a representação só mantenha o representado, pois é só ele que ali deve ser
reconhecido
212
. Do ponto de vista da mimesis, o conhecimento constitui-se, pois, como
reconhecimento (Wiedererkennung), fenômeno fundamental e imprescindível, no entender de
Gadamer, para o esclarecimento do sentido do ser da representação.
Em sua configuração representativa, o que nos mobiliza diante da arte e aí nos permite
uma demora (Verweilen) é, nesse sentido, nossa predisposição de nela reconhecermos algo.
Contemplá-la significaria, desse modo, a permanência num reconhecimento. Reconhecimento
não no sentido limitado de conhecer mais uma vez o que, outrora, já fora conhecido –
reconhecer o conhecido −, mas tomando-o, em sua essência, como uma espécie de
“iluminação”, por meio da qual se identifica algo
213
. Assim, o que a relação mimética implica
não é somente que o representado esteja aí presente, mas, precisamente, que o conhecido seja
trazido à representação − a sua vinda no aí (ins Da) −, manifestando-se em sua plenitude de
sentido. Por isso não se trata de uma simples repetição de caráter demonstrativo, mas de
conhecimento, extração (Hervorholung), pôr em relevo aquilo que advém do próprio
espectador. É precisamente neste sentido que, para Heidegger, só no quadro os sapatos de Van
Gogh, ou mesmo a pessoa representada, chegam a seu ser verdadeiro e reconhecível. É graças
211
H.-G. GADAMER, WM, I, p. 119.
212
Nesse sentido, como muito bem lembra Gadamer, Aristóteles também nos ensina que o imitar é não só
inerente ao homem, como também um elemento diferencial de sua existência. Ao imitar, ele se compraz no
imitado. “Sinal disso é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas
daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância [...] Efetivamente tal é o motivo por que se deleitam
perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo,
‘este é tal’” (ARISTÓTELES, Poética, 1448b).
213
A análise do fenômeno do reconhecimento remete Gadamer a uma questão central do platonismo, presente na
doutrina da anamnesis. Diz-nos então: “Juntamente com sua doutrina da ‘anamnesis’, Platão concebeu a idéia
mítica da reminiscência como caminho de sua dialética, que procura nos logoi, isto é, na idealidade da
linguagem, a verdade do ser. Na realidade, um tal idealismo da essência é posto no fenômeno do
reconhecimento. O conhecido alcança seu verdadeiro ser, e mostra-se como o que ele é apenas por meio do
reconhecimento. Enquanto reconhecido, é aquilo que se mantém firme em sua essência, liberto da causalidade de
seus aspectos” (H.-G. GADAMER, WM, I, p. 119).