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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
SECRETARIA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
NÍVEL DE MESTRADO EM LETRAS
DE SINHAZINHA A JAGUNÇA / DE SENHORINHA A SENHORA:
Uma leitura de Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina
JERRI ANTONIO LANGARO
CASCAVEL
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2006
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
SECRETARIA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
NÍVEL DE MESTRADO EM LETRAS
DE SINHAZINHA A JAGUNÇA / DE SENHORINHA A SENHORA:
Uma leitura de Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina
Dissertação a ser defendida junto ao
Programa de Pós-graduação Stricto sensu,
nível de Mestrado, em Letras, com área de
concentração em Linguagem e Sociedade,
na UNIOESTE - Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, sob a orientação da
Professora Doutora Rita Felix Fortes, como
exigência parcial à obtenção do tulo de
Mestre em Letras.
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CASCAVEL
2006
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca da UNIOESTE - campus de Marechal Cândido Rondon - PR, Brasil)
Langaro, Jerri Antonio
L271d De sinhazinha a jagunça / De senhorinha a
senhora:uma leitura de Memorial de Maria Moura e Dôra,
Doralina / Jerri Antonio Langaro. - Cascavel, 2006.
180 p.
Orientadora : Prof.ª Dr.ª Rita Felix Fortes.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, campus de Cascavel, 2006.
1. Literatura brasileira. 2. Análise sociológica.
3. Memorial de Maria Moura. 4. Dôra, Doralina. 5.
Imagem feminina. 6. Regime patriarcal. 7.
Transgressão de valores. I. Universidade Estadual do
Oeste do Paraná. II. Título.
CDD 21.ed. B869.309
CDU 82.091
CIP-NBR 12899
Ficha catalográfica elaborada por Helena Soterio Bejio CRB-9/965
JERRY ANTONIO LANGARO
DE SINHAZINHA A JAGUNÇA, DE SENHORINHA A SENHORA: UMA
LEITURA DE DÔRA
Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do título
de mestre em Letras - área de concentração em Linguagem e Sociedade e linha de
pesquisa: Funcionamento dos Mecanismos Lingüísticos - à comissão julgadora da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Profª. Drª. Rita das Graças Felix Fortes (Orientadora) UNIOESTE - PR
_________________________________________________________________
Prof. Eduardo José Tollendal (1ª titular) UFMG - MG
_________________________________________________________________
Profª. Dra. Antonio Donizeti da Cruz (2ª titular) UNIOESTE - PR
A Deus,
embora muitos digam que Ele não exista.
Se é verdade, não sei.
Porém, nos momentos de aflição,
quando me volto a Ele,
sinto a Sua presença em meu alívio
e percebo que o mundo passa a ser melhor
quando se acredita nEle.
AGRADECIMENTOS
A consecução de todas as etapas percorridas ao longo desses últimos dois anos,
nos quais estive matriculado no curso do Mestrado em Letras da UNIOESTE, devo a
inúmeros amigos e companheiros, a quem venho, publicamente, manifestar a minha
gratidão.
Primeiramente, agradeço a Deus. A Ele reverencio, destinando, inclusive, a
dedicatória deste trabalho. Pode parecer piegas demais, entretanto, sinto a certeza de que,
se não fosse por Ele, eu, dificilmente, teria conseguido vencer essa etapa. Quero
agradecer, também, à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Rita Felix Fortes, uma grande amiga,
difícil de se encontrar hoje em dia, pois a sua sinceridade é ímpar. Até quando adverte,
ela consegue se expressar de uma maneira que não constrange, ao contrário de muitos
que, detentores de um grau de instrução maior, enaltecem-se, ao humilhar a quem julgam
não estar no mesmo patamar intelectual. O apoio, o carinho e a compreensão da Rita
motivaram-me a prosseguir nessa caminhada, pois, diante das maiores dificuldades
enfrentadas durante o Mestrado, foram as suas palavras de encorajamento que não
permitiram que eu me entregasse aos muitos empecilhos encontrados.
Não poderia deixar de agradecer à minha família. Mesmo distantes, os meus pais,
Natalio e Marlene, nunca deixaram de me apoiar nesses dois anos. Jiani, o meu único
irmão, enfrentou dificuldades similares nesse período, por também ter cursado o
Mestrado na mesma época, porém em área e instituição diversas. Entretanto, um irmão
(re)conhecia as dificuldades do outro e ambos se incentivavam para que percorressem o
árduo caminho que, agora, chega ao seu final.
Desejo agradecer aos professores Antonio Donizeti da Cruz, Roselene Fátima
Coito, Maria Beatriz Zanchet, João Carlos Cattelan e Clarice Nadir von Borstel que,
integrantes ou não do corpo docente do Mestrado, sempre dispensaram sua cordial
atenção, auxiliando-me na medida do possível e torcendo pela obtenção do título de
Mestre de quem, na graduação, havia sido seu aluno.
Agradeço, também, à amizade e ao companheirismo dispensados pelas colegas de
curso: Clarice Braatz Schimidt Neukirchen, Ana Paula Doebber e Rosana Ferreira Terra.
Ao longo desses dois anos, essas amizades firmaram-se ainda mais, fortalecendo os laços
mantidos desde a graduação. Também sou grato ao professor João Carlos Cattelan que,
muito atenciosamente, empenhou-se na correção textual e discursiva da presente
Dissertação, confirmando a sua competência nessa área.
Não poderia deixar de agradecer à UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, especialmente ao campus de Marechal Cândido Rondon - PR, do qual sou
colaborador. Sou grato à direção desse campus pelo afastamento de vinte horas semanais
concedido para cursar o Mestrado. Sem esse valioso auxílio, eu não teria conseguido
conciliar os créditos das disciplinas com a atuação profissional.
Agradeço, mais que devidamente, aos colegas da biblioteca da UNIOESTE de
Marechal Cândido Rondon - PR, que muito me motivaram para a conclusão do curso.
Dentre eles, merece um agradecimento especial a coordenadora/colega/amiga Márcia
Sbaraini Leitzke que, além de ter facilitado o horário de trabalho para que este não
afetasse a freqüência nas aulas, muito me auxiliou, ao dirimir dúvidas quanto às normas
da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, assim como na consulta de artigos
científicos junto ao Portal da Capes.
Não poderia deixar de mencionar os acadêmicos/2005 do 3.º Ano do Curso de
Letras da UNIOESTE de Marechal Cândido Rondon - PR, com quem tive o privilégio de
efetuar as atividades pertinentes ao Estágio de Docência requisitado pelo Programa do
Mestrado. A interação mantida com a turma confirmou a perspectiva favorável que eu
tinha acerca da docência universitária, viabilizando a aquisição de uma experiência que,
até então, eu nunca havia vivenciado. O meu agradecimento estende-se, também, a todos
os usuários da biblioteca da UNIOESTE de Marechal Cândido Rondon - PR: acadêmicos,
professores e funcionários com quem, a cada ano, firma-se uma amizade que parece
compensar todos os contratempos do cotidiano acadêmico.
Sou grato, também, às secretárias do Programa do Mestrado, Ruti Rosane go e
Nilva Teresinha Cartieri Dalsasso que, muito gentilmente, sempre se esmeraram, ao
atender as solicitações que se faziam necessárias, além de sanar dúvidas de ordem
burocrática.
Enfim, desejo agradecer a todos que, de uma maneira ou de outra, colaboraram
para a elaboração de mais este trabalho. A todos, o meu mais sincero “obrigado”.
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
PRADO, Adélia. “Com licença poética”.
In: Bagagem. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
RESUMO
Neste estudo, objetiva-se analisar a representação da imagem feminina nas obras
Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz, considerando o
universo patriarcal e semi-patriarcal ficcionalizado em cada romance. É característico da
sociedade patriarcal disponibilizar ao homem todas as possibilidades, ao mesmo tempo
em que exige da mulher reclusão e dependência ao espaço “da casa”. Procurou-se, ao
enfocar as contingências sociais e familiares nas referidas obras, analisar como essa
ideologia se faz presente em Memorial de Maria Moura e como os seus vestígios ainda
permanecem na obra Dôra, Doralina. Em Memorial de Maria Moura, obra ambientada
no sertão nordestino do século XIX, a protagonista, Maria Moura, necessita romper com a
submissão feminina e transmigrar da posição de sinhazinha à de líder de um bando de
jagunços. A personagem, ao se travestir em homem, provoca uma transgressão dos
valores vigentes. Essa transgressão, contudo, ocorre pelo continuísmo da ideologia
patriarcal, visto que Moura reproduz o modelo masculino nas relações de poder. Na obra
Dôra, Doralina, cuja trama se desenrola nos anos trinta, também no sertão nordestino,
percebem-se, ainda, resquícios da ideologia patriarcal, principalmente na personagem
Senhora, mãe de Dôra: a protagonista e narradora do romance. A Senhora, após a viuvez,
reproduz o modelo patriarcal - já decadente -, ao ocupar o lugar que fora de seu marido na
condução da fazenda Soledade. Dôra, cuja relação com a mãe sempre foi de confronto,
abandona a fazenda após perder o primeiro esposo e viaja pelo país, com uma companhia
de teatro mambembe. Depois de encontrar um novo companheiro - o Comandante -, ela
assume o mais tradicional dos papéis femininos, ao se tornar uma clássica dona-de-casa.
Após a morte da Senhora e, posteriormente, da do Comandante, Dôra retorna à fazenda
Soledade para tomar posse de sua herança, legitimada por sua condição de viúva, assim
como o era a sua mãe. A partir de então, a protagonista incorporará, em certa medida, o
papel da Senhora - que ela tanto abominara na mãe -, perpetuando o continuísmo
patriarcal, agonizante nos anos trinta. Em ambas as obras, constata-se a ocorrência do
incesto. Em Dôra, Doralina, observa-se um adultério incestuoso, envolvendo a Senhora e
seu genro Laurindo. Essa situação se inverte em Memorial de Maria Moura, visto que,
nesse caso, é a enteada, Maria Moura, que comete um incesto com Liberato, o seu
padrasto. Apesar da inversão de papéis entre os envolvidos, são as razões econômicas
que, nas duas obras, subjazem à motivação dos envolvimentos incestuosos.
PALAVRAS-CHAVE: Memorial de Maria Moura; Dôra, Doralina; imagem feminina;
regime patriarcal; transgressão de valores.
ABSTRACT
The purpose of this study is to analyze the representation of the female image in the
worksMemorial de Maria Moura and Dôra, Doralina, by Raquel de Queiroz, have been
considered the patriarchal and semi patriarchal universe fictionalized in each novel. It is
typical from de patriarchal society disposes to the man all the possibilities, at the same
time it’s required from the woman confinement and “house space” dependence. It was
looked for to analyze how this ideology is present in Memorial de Maria Moura and how
its traces are still in the work Dôra, Doralina, upon focalizing the social and familiar
contingence in the reported works. In Memorial de Maria Moura, work situated in the
backwoods of the northeast in the XIX century, the principal, Maria Moura, needs to
burst with the female submission and transmigrate from the colonel’s daughter to the
leader of a foremen band. The character, when she dressed herself like a man, provokes
a transgression in the valid values. This transgression, though, happens because of the
continuousness of the patriarchal ideology, because Moura reproduces the male model
in the power relations. In the work Dôra, Doralina - that scene happens in the thirty
years, also in the backwoods in the northeast - it’s noticed that traces of the patriarchal
ideology, mainly in the character Senhora, mother of Dôra: the principal and novel
narrator. The Senhora, after the widowed, reproduces the patriarchal model - that is
already decadent - when occupies the place that was from her husband, delegating
Soledade farm. Dôra, that relation with her mother was always with fights, after to loose
the first spouse, leaves the farm and travels around the country, with a street theater’s
company. After finding a new fellow - the Comandante - she assumes the most traditional
of the female papers, when becoming a classic housekeeper. After the Senhora died and,
then, of the Comandante died, Dôra returns to Soledade farm to take over her heritage,
legitimated by the widowed condition, as her mother. Hereafter, the principal will
incorporate, in parts, the Senhora’s role - that she abominated in her mother so much -
perpetuating the patriarchal continuousness, that it was already reduced after the thirty
years. In both of novels it’s verified the occurrence of the incest. In Dôra, Doralina, there
is an incestuous adultery involving and the Senhora and her son-in-law Laurindo. This
situation has reversed in Memorial de Maria Moura, in as much as, in this case, is the
step-daughter, Maria Moura, that commits incest with Liberato, her step-father. Despite
the papers inversion between the wrappers, are the economic reasons that, in two works,
motivate the incestuous involvements.
KEY WORDS: Memorial de Maria Moura; Dôra, Doralina; female image; patriarchal
system; values transgression.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................13
l. DE SINHAZINHA A JAGUNÇA................................................................................25
1.1 - Copiando o patriarca e transgredindo o patriarcalismo..........................................25
1.2 - Família, honra e terra..............................................................................................39
1.3 - Poder versus sentimento.........................................................................................51
2. DE SENHORINHA A SENHORA.............................................................................65
2.1 - Senhora: a matriarca da Soledade...........................................................................66
2.2 - A bastardia no modelo patriarcal............................................................................70
2.3 - Caos e jaguncismo no sertão..................................................................................76
2.4 - Uma senhorinha e sua dor......................................................................................84
2.5 - Uma senhorinha no palco.......................................................................................92
2.6 - De Dôra a Doralina.................................................................................................99
2.7 - De volta à dor de Dôra..........................................................................................104
3. O INCESTO E AS RELAÇÕES AFETIVAS E FAMILIARES..............................115
3.1 - O impacto do incesto na ordem social..................................................................116
3.2 - O medo imemorial do incesto...............................................................................120
3.3 - Dôra versus Senhora: um conflito freudiano........................................................126
3.4 - A família na transição do modelo patriarcal ao semi-patriarcal...........................130
3.5 - Os interesses econômicos e o incesto em Dôra, Doralina...................................135
3.6 - O incesto e a economia patriarcal no Memorial...................................................140
3.7 - Da sociedade à literatura: de volta ao tabu do incesto..........................................151
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................155
PROPOSTA DE ESTUDO FUTURO...........................................................................167
A constituição do tempo em Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura.................167
A configuração espacial em Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura.................169
REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS.............................................................................171
ANEXO I:
BREVE FORTUNA CRÍTICA DE RACHEL DE QUEIROZ.....................................177
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, objetiva-se analisar a representação da imagem feminina nas obras
Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz (1910-2003),
considerando os universos patriarcal e semi-patriarcal ficcionalizados, respectivamente,
em cada romance. Analisam-se, também, as contingências sociais e familiares nas
referidas obras, com o intuito de verificar como a ideologia patriarcal se faz presente em
Memorial de Maria Moura e como os vestígios herdados dessa ideologia ainda
permanecem na obra Dôra, Doralina.
Em Memorial de Maria Moura, obra ambientada no sertão nordestino do século
XIX, a protagonista Maria Moura necessita romper com a submissão feminina e
transmigrar da posição de sinhazinha à de líder de um bando de jagunços. A personagem,
ao se travestir em homem, cortando os cabelos e, de início, vestindo as calças que foram
de seu pai, provoca uma transgressão dos valores vigentes. Essa transgressão, contudo,
ocorre pelo continuísmo da ideologia patriarcal, visto que Moura reproduz o modelo
masculino nas relações de poder.
A personagem torna-se o oposto da mulher típica da sociedade patriarcal ao
encarnar o papel, tradicionalmente masculino, de senhor de baraço e cutelo. Embora
incorpore esse papel ao longo de toda a sua trajetória, o amor funciona como uma
armadilha da qual Maria Moura não terá como se furtar. Ao se apaixonar por Cirino, ela
não se torna vulnerável, como ameaça o seu mundo, cuidadosamente construído.
Portanto, será o amor o seu único ponto vulnerável e ele está na base de sua luta
derradeira e provável morte, insinuada no final do romance.
Na obra Dôra, Doralina - cuja trama se desenrola nos anos trinta, também no
sertão nordestino -, percebem-se, ainda, resquícios da ideologia patriarcal, principalmente
na personagem Senhora, mãe de Dôra: a protagonista e narradora do romance. A Senhora,
após a viuvez, reproduz o modelo patriarcal, decadente, ao ocupar o lugar que foi de
seu marido na condução da fazenda Soledade. Dôra, cuja relação com a mãe sempre foi
de confronto, abandona a fazenda após perder o primeiro esposo e viaja pelo país com
uma companhia de teatro mambembe, contrapondo-se à tradição patriarcal representada
pela Senhora. A protagonista, depois de encontrar um novo companheiro - o Comandante
-, assume o mais tradicional dos papéis femininos, ao se tornar uma clássica dona-de-
casa. Após a morte da Senhora e, posteriormente, da do Comandante, ela retorna à
Soledade para tomar posse de sua herança, legitimada por sua condição de viúva, assim
como o era a sua mãe. A partir de então, a protagonista incorporará, em certa medida, o
papel da Senhora, que ela tanto abominava na mãe, perpetuando o continuísmo patriarcal,
já agônico nos anos trinta.
Neste trabalho, não é seguida a ordem cronológica da publicação das obras, mas a
dos períodos históricos a que estas se reportam. Dôra, Doralina, romance publicado em
1975, mesmo ambientado um século depois, retoma os aspectos discutidos acerca de
Memorial de Maria Moura, cuja publicação data de 1992.
Considerando-se o atual contexto acadêmico, quando estão em evidência os
estudos de obras escritas por mulheres, esta análise comparativa de duas obras literárias
se justifica na medida em que aponta para a concepção do feminino de Rachel de
Queiroz, uma literata marcante ao longo de todo o século XX. Apesar de o objeto deste
estudo ser ficcional, esta pesquisa se propõe a analisar os indicadores culturais e sociais.
Candido (2000), um dos maiores expoentes da crítica literária brasileira, aponta
para essa relação entre a literatura e a sociedade na qual e para a qual ela é produzida. Ao
enfocar o recorte social da obra literária, quando a sociedade se mistura ao texto, o autor
avalia que, até aproximadamente o primeiro quartel do século XIX, o valor agregado à
obra pela crítica literária era proporcional à medida que ela refletia os aspectos da
realidade. O condicionamento social se fazia essencial à literatura. Contudo, a crítica veio
a assumir uma postura diametralmente oposta. O conteúdo de uma obra passou a ser
secundário e sua importância passou a derivar dos aspectos formais. Estes, por conferirem
uma peculiaridade à literatura, a isentariam de um condicionamento social, por exemplo,
entendido como irrelevante à assimilação do texto.
Para o autor, estudar literatura não demanda a adoção dessas duas teorias de modo
dissociado, como outrora se procedeu. Assim, não a teoria que considera os fatores
externos ao texto literário, mas também aquela que se respalda na sua estrutura interna
devem ser assimiladas de modo a fornecer uma interpretação equilibrada. A integridade
de uma obra somente pode ser entendida, quando se fundem o texto literário e o contexto
no qual ele é criado, pois o produto literário é resultante do ato de criação inserido em um
determinado contexto social, político, econômico e espacial.
A linguagem evidencia a influência social sobre a obra. Transportada da esfera
real, ela desempenha o mais importante papel no processo de interação entre o autor, a
obra e o leitor. Sem a linguagem, não haveria a noção de sentido compartilhada entre o
escritor e o público para quem a literatura é elaborada, já que o texto literário não termina
no ponto final inserido no texto pelo autor, mas se completa na interpretação de seus
possíveis leitores. São estes que podem vir a garantir a perenidade da literatura.
Mesmo partindo de uma perspectiva diversa da de Candido (2000), o teórico russo
Bakhtin (2000) não deixa de relacionar o texto ficcional à realidade dentro da qual o
mesmo é criado. Ao estudar os recursos estéticos da linguagem, o pesquisador salienta
que o conjunto interno de uma obra literária exprime o contexto cultural no qual ela foi
produzida. Ao invés de se correlacionar determinados aspectos da obra à realidade social,
como cogita Candido (2000), o teórico postula que somente o estudo da estrutura literária
como um todo revelaria uma visão externa ao texto. Esta, no entanto, é entendida por
Candido (2000) como também integrante da estrutura de uma obra.
Segundo Candido (2000, p. 4), um aspecto externo, como o contexto social, pode
ser considerado, na obra literária, o “elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno [grifo do autor]. São esses
aspectos externos convertidos em elementos internos, de que fala o pesquisador, que
sustentaram o presente estudo.
Valendo-se da verossimilhança, a literatura cria uma espécie de “camuflagem da
realidade de um período histórico, sem deixar de revelá-lo ao leitor. Ao se analisar as
obras literárias em estudo, detectaram-se, em seus eixos narrativos, elementos que
denunciam a ideologia patriarcal, que perdurou no Brasil do início da colonização às
primeiras décadas do século XX, mas cujos vestígios podem ser percebidos ainda hoje.
No ocidente, as raízes do patriarcalismo remontam à tradição da cultura helênica
clássica. Com a invasão da Grécia pelos romanos, o regime patriarcal foi assimilado por
estes e difundido na Península Ibérica. À colonização, deve-se a sua inserção na
sociedade escravista dos trópicos, na qual o homem branco comandou o extenso círculo
parental, que transcendeu as fronteiras consangüíneas, ao abranger um grande número de
dependentes, dos mais diversos patamares. Em decorrência dessa amplitude, o poder
patriarcal significava, para a mulher, a “superioridade normal da energia física e espiritual
do homem. Para o filho jovem, sua necessidade natural de ajuda. Para o escravo, sua falta
de proteção fora da jurisdição do senhor, a serviço do qual se encontra(va) desde a
infância por circunstâncias da vida” (MALERBA, 1994, p. 57).
Com o intuito de explorar aspectos específicos dos romances em análise, divide-
se a dissertação em três capítulos. No primeiro, intitulado De sinhazinha a jagunça,
discute-se, fundamentalmente, a questão da mulher na sociedade patriarcal, ao se abordar
como, no romance Memorial de Maria Moura, a protagonista Maria Moura rompe com
os padrões de comportamento rigidamente demarcados pelo gênero na estrutura
patriarcal. Aborda-se como a temática do cangaço se faz presente na referida obra e como
Maria Moura, ao se travestir em homem e liderar um bando de jagunços, incorpora a
tradicional donzela-guerreira, cujas aparições são notáveis desde a literatura medieval
européia. Procura-se perceber, também, como os imemoriais ritos de passagem
desempenham um papel crucial na composição da personagem central da obra, além de
atentar, ainda, para o seu maior conflito, decorrente das abdicações que Moura necessita
fazer para manter a liberdade e o poder arduamente conquistados.
Esta proposta não apresenta uma revisão teórica inicial. A teoria é discutida ao
longo da análise. Assim, o primeiro capítulo fundamenta-se, principalmente, nas obras
Casa-grande e senzala e Sobrados e mucambos, de Freyre (1984; 2000). Sob um viés
sociológico, analisa-se como, no patriarcalismo, as relações de poder estão vinculadas ao
gênero. A dupla moral patriarcal legitimou a exploração feminina frente aos interesses
masculinos. No entanto, a protagonista em questão passa a se beneficiar dessa moral, ao
reproduzir o modelo masculino nas relações.
Para estudar o processo da formação ideológica que está na base do patriarcalismo,
partiu-se da obras O individualismo, de Dumont (1985), e O que é ideologia, de Chaui
(1991). Também as obras Estigma, de Goffman (1988), e Os estabelecidos e os outsiders,
de Elias e Scotson (2000), foram aplicadas na análise da prepotência masculina,
representada no romance pelos primos da protagonista. Utilizam-se as obras Microfísica
do poder, de Foucault (1993), e A invenção do cotidiano, de Certeau (2000), para discutir
a origem do poder na sociedade e as formas de resistência a este. Tais aspectos são
analisados, principalmente, quando Moura rompe com a submissão feminina, mas,
contraditoriamente, repete os mecanismos de imposição a que tinha resistido e com que
tinha rompido, ao passar a reproduzir o modelo masculino.
Também integra esse suporte uma leitura mítica alicerçada na obra O sagrado e o
profano, de Eliade (2001), estudioso que analisa a situação do homem num mundo
repleto de valores religiosos, bem como as suas heranças imemoriais que ainda permeiam
o imaginário. A referida obra pôde ser aplicada na questão mítico-simbólica dos rituais de
passagem. Estes se fazem marcantes no Memorial, principalmente quando Maria Moura
corta seus cabelos e se traveste em homem, pondo fim à sua condição de sinhazinha e
enveredando no cangaço. Igualmente, vale-se do teórico supracitado para discutir como a
protagonista, ao ordenar a construção da Casa Forte, funda o seu lugar “no mundo”, que
pode ser relacionado a uma herança esmaecida do que, de acordo com Eliade (2001), foi,
para o homem religioso, a imago mundi.
Para estudar o movimento do cangaço, enfocado na narrativa quando a
protagonista se insere no universo caótico dos jagunços, tomou-se como amparo as obras
A derradeira gesta, de Barros (2000), e O cangaço, de Dória (1981). Tais obras apontam
as principais causas desse movimento, que surgiu, preponderantemente, da exclusão e das
injustiças sociais, fatores que, vinculados ao contexto feminino do Nordeste brasileiro do
século XIX, também ocasionam a inserção criminal da personagem central do Memorial.
Deve-se referenciar, também, o estudo de Galvão (1998), na obra A donzela-
guerreira, que permite associar a protagonista em questão ao mito da mulher que se
traveste em homem para poder lutar, alternativa tradicionalmente vedada ao gênero
feminino. É essa transformação que permite à Maria Moura que ela adentre no
banditismo, área que, no contexto do romance, está restrita ao elemento masculino.
Respalda-se, também, na obra O segundo sexo, de Beauvoir (1980). Nesta, é
analisado o conflito do qual padece a mulher independente e que prescinde da figura
masculina, situação similar à de Maria Moura na sua árdua luta para manter o poder,
principalmente após ela se apaixonar por Cirino, o homem que a trai.
Recorre-se, não apenas nesse capítulo, como também ao longo de toda a
dissertação, ao artigo Mulheres do sertão nordestino, de Falci (2000), integrante da obra
História das mulheres no Brasil, organizada por Del Priore (2000), pelo fato de este
fornecer um panorama do cotidiano feminino do sertão brasileiro do século XIX:
universo similar àquele no qual a protagonista do Memorial está inserida.
Fazem-se referências a artigos que se detêm em analisar especificamente a obra
em estudo, como Lé com lé, cré com cré? Fronteiras móveis e imutáveis em Memorial de
Maria Moura, de Schpun (2002), e Rachel de Queiroz: invenção do Nordeste e muito
mais, de Chiappini (2002), textos que fazem parte da obra Linguagem e cultura no Brasil,
organizada por Bresciani e Chiappini (2002). Os mesmos foram elucidativos para a
compreensão da importância, para o enredo da narrativa, da relação entre Maria Moura e
Duarte: seu meio-primo mulato e eventual amante. Em termos sexuais, a protagonista,
após se travestir, também reproduz o comportamento masculino. Ela usa sexualmente o
mulato, como sempre fizeram os senhores de terras com as negras e mulatas no Brasil
colonial e imperial.
Outro estudo relevante para esse capítulo foi o trabalho de Barbosa (1999),
professora da Universidade Federal do Ceará, cuja dissertação de Mestrado originou a
obra Protagonistas de Rachel de Queiroz. Esta é constantemente referenciada pela
riqueza das informações que traz a autora, ao analisar comparativamente cinco romances
de Rachel de Queiroz: Memorial de Maria Moura, Dôra, Doralina, As três Marias,
Caminho de pedras e O quinze.
No segundo capítulo, intitulado De senhorinha a senhora, analisa-se como, na
obra Dôra, Doralina, surgem vestígios do patriarcalismo e do cangaço. Estuda-se como o
romance se reporta à bastardia: questão marcante ao longo de toda a época patriarcal.
Aborda-se, também, a dolorosa trajetória percorrida por Dôra, desde a indiferença de sua
mãe até a morte do Comandante, passando pelo adultério incestuoso de seu primeiro
marido. Discute-se como a protagonista, que, mesmo após o seu primeiro casamento,
sempre foi dependente da mãe, consegue uma relativa autonomia quando, viúva, integra-
se ao meio artístico, em uma espécie de ritual de passagem. Enfim, procura-se perceber
como o continuísmo patriarcal é perpetuado por Dôra quando ela, após perder o segundo
marido, assume a Soledade em franca decadência.
Assim como se procedeu no primeiro capítulo, também no segundo, parte-se das
obras Casa-grande e Senzala e Sobrados e mucambos, de Freyre (1984; 2000). Como a
obra Dôra, Doralina é voltada para o declínio do patriarcalismo, a abordagem de Freyre
(1984; 2000) é aplicada nos vestígios do regime patriarcal, ainda remanescente no enredo
do romance. Para estudar o contexto da decadência rural nordestina, recorre-se,
principalmente, ao estudo A família brasileira, de Candido (1951).
A obra em análise é ambientada nas primeiras décadas do século passado, época
em que o coronelismo, principalmente no meio rural, dava continuidade às condutas
patriarcais decadentes, algumas das quais se encontram ficcionalizadas no romance,
como, por exemplo, a permuta de favores entre o setor público e o privado. Ao longo do
patriarcalismo, a combinação dos interesses particulares com o poder público
fundamentou a extensão do controle pessoal a toda a esfera pública, devido à escassez de
recursos do Estado. A mentalidade vigente contribuía para essa prática, já que “havia uma
homologia estrutural entre a casa e o Estado, entre o privado e o público. O senhor da
casa era o soberano em seu domínio; ou seu duplo: o soberano da nação a dirigia como
sua família” [grifo do autor] (MALERBA, 1994, p. 78). Para analisar como a narrativa se
reporta ao coronelismo, respalda-se nas obras Os donos do poder, de Faoro (2001), e
Coronelismo, enxada e voto, de Leal (1975).
Para perceber os vestígios do cangaço, recorre-se às obras vistas no capítulo
anterior - A derradeira gesta, de Barros (2000), e O cangaço, de Dória (1991) -, além de
se utilizar A coluna Prestes, de Drummond (1985), e As táticas de guerra dos
cangaceiros, de Machado (1978). O intuito dessa amostragem é apontar para como a
perspectiva do romance Dôra, Doralina condiz com fatos históricos, ao se reportar, o
somente ao cangaço, como também à Coluna Prestes: rebelião militar ocorrida entre abril
de 1925 e março de 1927. O enredo da narrativa tem início na época em que tais fatos se
faziam marcantes em todo o sertão.
Para discutir como os resquícios dos imemoriais ritos de passagem também estão
presentes na trajetória percorrida por Dôra, retoma-se a obra O sagrado e o profano, de
Eliade (2001). Nos dois romances, as protagonistas têm de romper determinados limites
e, para fazê-lo, precisam passar por um ritual. Este se encontra vinculado à violência, que
se revela no assassinato do esposo de Dôra, assim como na inserção de Maria Moura no
banditismo. Do mesmo modo com que se procedeu no primeiro capítulo, também se
recorre à obra do teórico supracitado para se abordar como a fazenda Soledade representa,
para Dôra, o seu lugar “no mundo”. A Soledade, assim como a Casa Forte, também pode
ser relacionada à imago mundi analisada por Eliade (2001).
Para discutir a questão da independência feminina nas primeiras décadas do
século XX, dispôs-se do artigo Trabalho feminino e sexualidade e da obra Do cabaré ao
lar, ambos de autoria de Rago (2000; 1985), além d’A mochila do mascate, obra de Ratto
(1996), diretor e cenógrafo teatral. Essas pesquisas apontam para a intrínseca relação
entre degeneração moral e mão-de-obra feminina, que se evidenciam no romance, quando
a narradora, durante um curto lapso de tempo, faz parte de um grupo teatral. Recorre-se,
novamente, à obra O segundo sexo, de Beauvoir (1980), para analisar como Dôra, na
esteira do que ocorre com Maria Moura, também passa a prescindir da proteção
masculina quando, viúva, ela incorpora o papel de atriz. Porém, ao se apaixonar pelo
Comandante, ela abre o de sua autonomia, mostrando que, para manter sua
independência, teria que fazer renúncias ligadas ao gênero feminino.
A obra Protagonistas de Rachel de Queiroz, de Barbosa (1999), é também
referenciada nesse capítulo, principalmente no que se refere à análise do perfil das
personagens Dôra e Senhora, cuja relação conflituosa culmina no adultério incestuoso
protagonizado pelo primeiro marido da narradora e a sua mãe, tema retomado no capítulo
seguinte, intitulado O incesto e as relações afetivas e familiares. Neste, tem-se o intuito
de estudar, a partir de uma perspectiva sócio-antropológica, a questão do incesto presente
no eixo narrativo das duas obras em análise.
Primeiramente, estuda-se o impacto do incesto na ordem social e, em seguida,
como o interdito do incesto é imemorial entre os mais diversos povos. Ao se analisar a
obra Dôra, Doralina, aborda-se a relação conflituosa entre a protagonista e a sua mãe,
passando pelo incesto, no contexto da decadência rural nordestina. Na análise de
Memorial de Maria Moura, procura-se perceber como eram freqüentes as uniões
incestuosas na época contemplada pelo eixo narrativo do romance. Objetiva-se analisar,
também, como, em ambos os romances, o incesto vincula-se a razões econômicas
difundidas por sociedades que beneficiam o homem nas relações de poder.
Buscando demonstrar que o maior problema implícito ao incesto é a subversão da
ordem, é efetuada uma leitura preponderantemente sociológica, respaldada nas obras A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels (2000), A imaginação
simbólica, de Durand (1995), e O complexo de Édipo, de Goldgrub (1989).
O medo imemorial do incesto está na base de diversas esferas culturais como
forma de precaução à subversão da ordem social. Para discutir esse aspecto, vale-se de
um viés antropológico, alicerçado nas obras O cru e o cozido, de Lévi-Strauss (1991),
Totem e tabu, de Freud (1999), As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim
(1978), e Algumas formas de classificação, estudo desenvolvido por Durkheim e Mauss
(1999), integrante da obra Ensaios de sociologia, organizada por Mauss (1999).
Ao se analisar a relação conturbada entre Dôra e a Senhora, vale-se do conceito do
complexo de Electra, inferência possível no conflito que atingirá o ápice no incesto. Para
tanto, recorre-se a uma leitura psicanalítica, pautada na obra Esboço de psicanálise, de
Freud (1978). Analisa-se, também, como a constante tensão em que vivem a protagonista
e a sua mãe deixa implícito que, no período em que transcorre a narrativa, o
patriarcalismo deixou de se sustentar, principalmente no que se refere à severidade das
relações entre pais e filhos. Para abordar esse aspecto, alicerça-se nas obras Os parceiros
do Rio Bonito e, principalmente, A família brasileira, ambas de autoria de Candido
(2001; 1951).
Para analisar a razões econômicas que, em ambos os romances, subjazem às
relações incestuosas, recorre-se a Casa-grande e Senzala e Sobrados e mucambos, de
Freyre (1984; 2000), e a “Mulheres do sertão nordestino”, de Falci (2000). Tais estudos
desvelam como a sociedade baseada no modelo patriarcal beneficia o homem nas
relações de poder, fato que, nas duas obras, motiva a consumação do incesto.
Este, portanto, é mais um trabalho que se reporta à obra de Rachel de Queiroz,
expoente da Literatura Brasileira entre os anos trinta, quando debutou com o romance O
quinze, e os anos oitenta. Mesmo tendo falecido quase três anos, sua vasta obra não
permite que ela seja esquecida, como atesta a freqüência com que é referenciada nos mais
diversos trabalhos científicos, culturais e artísticos. Uma amostra desse fato figura na
breve referência sobre a fortuna crítica da autora, disponibilizada no Anexo I desta
dissertação.
1. DE SINHAZINHA A JAGUNÇA
Publicado em 1992, o romance Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz,
centra seu eixo narrativo nas reminiscências das personagens Maria Moura, Marialva,
padre José Maria, Tonho e Irineu, ancorando narrativas paralelas que se entrelaçam no
processo de constituição do todo da obra. A narrativa posta em destaque e que tem
preponderância é a que parte da enunciação da personagem-título.
Após a morte da mãe viúva, para sobreviver em um universo patriarcal e
conservador - cujo cenário é o sertão nordestino do século XIX -, Maria Moura necessita
romper com a submissão feminina e transmigrar da posição de sinhazinha à de líder de
jagunços.
1.1 - Copiando o patriarca e transgredindo o patriarcalismo
Antes de adentrar à organização patriarcal, torna-se necessário elucidá-la.
Primeiramente, deve-se atentar para o conceito de ideologia, respaldando-se nos estudos
de Dumont (1985, p. 202):
Considerando a antropologia dos últimos 30 anos, podemos rejubilar-
nos, em primeira aproximação, com o lugar crescente atribuído, no
conjunto, aos sistemas de idéias e de valores ou ideologias. O fato
sugere imediatamente, a título complementar, uma reflexão sobre a
ideologia própria da antropologia no duplo sentido da de sua
especialidade e da sociedade ambiente - entendendo a sociedade
moderna de que fazemos parte como antropólogos, qualquer que possa
ser, por outro lado, a nossa nacionalidade, o nosso lugar ou cultura de
origem [grifo do autor].
Em consonância com Dumont (1985), ideologia é o conjunto de valores
difundidos por uma sociedade e atribuídos às várias condutas pertinentes a esta. Contudo,
ao atribuir valoração negativa a determinadas práticas que lhe pareçam adversas, uma
ideologia pode vir a legitimar condutas desiguais, tornando-se parcial e cruel. Sob esse
aspecto, o patriarcalismo é modelar. Sociólogo do século XX, Freyre (2000, p. 125)
explicita as condutas pertinentes ao universo patriarcal - similar ao criado ficcionalmente
por Rachel de Queiroz em Memorial de Maria Moura - no que se refere à desigualdade
das relações estabelecidas entre os gêneros:
À exploração da mulher pelo homem, característica de outros tipos de
sociedade ou de organização social, mais notadamente do tipo
patriarcal-agrário (...) convém a extrema especialização ou
diferenciação dos sexos. Por essa diferenciação exagerada, se justifica
o chamado padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as
liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a
cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a
procriar. Gozo acompanhado da obrigação, para a mulher, de conceber,
parir, ter filho, criar menino. O padrão duplo de moralidade,
característico do sistema patriarcal, também ao homem todas as
oportunidades de iniciativa, de ação social, de contatos diversos,
limitando (...) a mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato
com os filhos, a parentela, as amas, as velhas, os escravos.
O padrão duplo de moralidade de que fala Freyre (2000) serviu - desde o início da
colonização - para legitimar a exploração feminina face aos interesses masculinos. A
repressão feminina esteve na base de sustentação do regime patriarcal e, pressuposta nela,
estava a reclusão da mulher ao ambiente “sagrado” do lar. O homem, ao contrário,
sempre gozou da liberdade de transitar entre o espaço “da casa” e o espaço “da rua”, bem
como do privilégio de usufruir de todas as possibilidades sociais.
A legislação da época corroborava a dependência da mulher. A pesquisadora
Barbosa (1999), ao analisar o perfil de várias protagonistas criadas por Rachel de
Queiroz, aborda as leis vigentes no país durante o período em que Memorial de Maria
Moura é ambientado. Ao dialogar com a obra de Stein (1984), Barbosa (1999, p. 49)
discute sobre como a organização jurídica brasileira sustentou a discriminação feminina
até o final do século XIX.
Até 1890, como assinala Ingrid Stein (1984: 28), o código civil
brasileiro foi regido essencialmente por leis portuguesas, as
Ordenações Filipinas e, no que se refere à associação conjugal, elas
estabeleciam ser o marido o cabeça do casal. Cabia a ele determinar o
domicílio da família, permitir à mulher o exercício de uma profissão e
orientar a educação dos filhos. Diante do caráter discriminatório da lei
em relação à mulher, “considerada inferior e incompetente para dirigir
livremente sua pessoa”, lhe restava viver sob o domínio do pai ou do
marido, ou se enclausurar em uma instituição religiosa.
As leis da época legitimaram as condutas da organização patriarcal que, como o
próprio nome diz, centra o poder de decisão no patriarca: o chefe da família. Assim como
na família, o homem detinha o poder de liderança e decisão na sociedade.
No sertão brasileiro do século XIX, essa ideologia se fez muito marcante. No
artigo “Mulheres do sertão nordestino”, Falci (2000, p. 241-2) analisa o tratamento
dispensado à mulher sertaneja daquela época.
Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres
ou escravas do sertão. Não importa a categoria social: o feminino
ultrapassa a barreira das classes. Ao nascerem, são chamadas “mininu
fêmea”. A elas certos comportamentos são impostos, mas também
viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas. As mulheres no
tempo (século XIX), no espaço (o sertão, as províncias de Piauí e
Ceará) aparecem cantadas na literatura de cordel, em testamentos,
inventários ou livros de memórias. (...) Ali se gestou uma sociedade
fundamentada no patriarcalismo. Altamente estratificada entre homens
e mulheres. (...) Dizer então que o sertão nordestino foi o mais
democrático em suas relações sociais (...) é basear-se em uma
historiografia ultrapassada, não mais confirmada pela pesquisa
histórica.
De acordo com a estudiosa, a mulher sertaneja do século XIX estava tão
subordinada ao homem que a sua natureza passou a ser vista como uma espécie de
“variedade” masculina. Era negado aos “mininu fêmeas”, quando de seu nascimento, o
título de mulher, diante da vergonha e exclusão implícitas à condição do gênero feminino
e impostas pelo sistema social vigente.
Na obra Memorial de Maria Moura, percebe-se que, apesar de essa ideologia
fazer-se determinante na vida da protagonista, esta não aceita o papel social destinado à
mulher no século XIX, confessando os desejos adversos à reclusão que lhe é imposta:
O mundo fora era grande e eu não conhecia nada para além das
extremas do nosso sítio. E tinha loucura por conhecer esse mundo.
Quando menina, ainda, saía pela mata com os moleques.(...) Mas,
depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes da casa.
O mais que saí é até o quintal para dar milho às galinhas, uma
fugidinha ao roçado antes do sol quente. (...) O curral é proibido, vive
cheio de homem. E ainda tem o touro, fazendo pouca vergonha com as
vacas. Fica até feio moça ver aquilo (p. 62).
Apesar de apresentar uma temática rural, o romance desvela uma organização
espacial rigidamente delimitada pelo espaço “da casa”, que se contrapõe ao espaço “da
rua”, representada pelos locais mais abertos do sítio do Limoeiro onde, inicialmente,
desenrola-se a trama. Ao espaço “da casa”, destina-se, por excelência, a moça de família e
a esposa, não lhes sendo permitido o trânsito pelo espaço “da rua”, reservado, quase que
exclusivamente, ao homem. Em sintonia com a moral patriarcal, não é permitido à Moura
que ela freqüente alguns locais, mesmo dentro da sua propriedade.
O sonho de Maria Moura de conhecer o “mundo” é mais forte que a moral que lhe
é imposta. Sua trágica história familiar implicará a transgressão dos valores vigentes.
Órfã de pai, Moura perde a mãe na adolescência, provavelmente assassinada por Liberato,
o amante de sua mãe. Visto que Maria Moura está sozinha, Liberato a seduz. Embora se
envolva com o “padrasto”, Moura teme que ele esteja também pretendendo matá-la para
apossar-se de suas terras, como, possivelmente, tinha feito com a mãe dela. Diante de tais
acontecimentos, a personagem não hesita: trama a morte do “padrasto”.
Com a morte de Liberato, Moura está sozinha no mundo e os seus primos
aproveitam esse momento de fragilização, tencionando se apropriar de suas terras. Irineu,
um dos primos, pretende casar-se com ela à força, visto que o casamento, além de lhe dar
o direito de uso sobre uma moça jovem, torná-lo-ia senhor de todos os bens da família de
Maria Moura. Ante tal situação, Moura rompe com a submissão feminina, incendeia sua
casa e parte - com alguns agregados da família e seus futuros jagunços - para tomar posse
da Serra dos Padres: terras encravadas no sertão, muito tempo compradas por seu avô,
das quais ele jamais tinha tomado posse.
A protagonista, portanto, recusa o destino imposto à mulher pela sociedade
patriarcal. Ao transmigrar da posição de sinhazinha a líder de jagunços, Maria Moura
assume um papel notadamente masculino, também na aparência, como atesta a citação:
[...] então apareceu a Dona [Maria Moura]. Calçava botas de cano
curto, trajava calças de homem, camisa de xadrez de manga
arregaçada. O cabelo era aparado curto, junto ao ombro. Alta e
esguia, podia parecer um rapaz, visto de mais longe. A cara fina seria
mais bonita não fosse o ar antipático, a boca sem sorriso (p. 10).
Paradoxalmente, Maria Moura transgride os valores vigentes por meio do
continuísmo da ideologia patriarcal. Ao se travestir em homem e lutar pela posse de suas
terras, ela reproduz os padrões de comportamento masculino, inadmissíveis para uma
mulher daquela época e naquele contexto. Nesse sentido, convém atentar para a análise de
Freyre (2000, p. 129):
O domínio de um sexo pelo outro afasta-se dessa tendência, tão das
sociedades primitivas, para a figura comum ou única da mulher-homem
ou do homem-mulher, e acentua de tal modo a diferença de físico entre
os sexos que, dentro do sistema patriarcal, torna-se uma vergonha o
homem parecer-se com mulher, e uma impropriedade, a mulher
parecer-se com homem.
Inicialmente, a continuidade da ideologia patriarcal, através da masculinização de
Maria Moura, é concretizada pelo uso das calças que foram de seu pai e pelo corte do
cabelo. Para a protagonista, esses instrumentos têm uma função que extrapola a pura
aparência. Eles representam a supremacia nas relações de poder, tradicionalmente
atribuída à figura masculina. Bakhtin (1999, p. 31-2) analisa como certos instrumentos,
que podem ser relacionados à personagem em questão,visam a expressar uma ideologia:
Em si mesmo, um instrumento o possui um sentido preciso, mas
apenas uma função: desempenhar este ou aquele papel na produção. E
ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra
coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo
ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como emblema
da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido
puramente ideológico. Todo instrumento de produção pode, da mesma
forma, se revestir de um sentido puramente ideológico.
Para Maria Moura, um sentido ideológico em se travestir em homem. Os
atributos masculinos lhe dão independência e autoridade, qualidades que lhe haviam sido
negadas. A simbologia desses atributos se evidencia no corte de cabelos.
Eu levantei a mão, avisando: - Vou prevenir a vocês: comigo é capaz
de ser pior do que com cabo e sargento. Têm que me obedecer de olhos
fechados. Têm que se esquecer de que eu sou mulher - pra isso mesmo
estou usando estas calças de homem. Bati no peito: - Aqui não tem
mulher nenhuma, tem o chefe de vocês. (...) Não sei que é que tinha
na minha voz, na minha cara, mas eles concordaram, sem parar pra
pensar. eu me levantei do chão, pedi a faca de João Rufo, amolada
feito uma navalha - puxei o meu cabelo que me descia pelas costas
feito numa trança grossa; encostei o lado cego da faca na minha nuca
e, de mecha em mecha, fui cortando o cabelo na altura do pescoço (p.
83-4).
A protagonista, ao cortar seus cabelos, realiza um ritual de passagem, pondo fim a
um estágio de sua vida e dando início a outro. Moura passa da condição de sinhazinha à
de jagunça, bem como do universo cósmico da casa ao espaço caótico e sem regras do
sertão: um espaço preponderantemente masculino, onde imperam a violência e o
banditismo. Eliade (20001, p. 147), ao estudar o homem religioso, para o qual o mundo
era repleto de valores simbólicos, analisa o valor mítico implícito aos ritos de passagem.
Toda forma de “Cosmos” - o Universo, o Templo, a casa, o corpo
humano - é provida de uma “abertura” superior. Agora se compreende
melhor o significado desse simbolismo: a abertura torna possível a
passagem de um modo de ser a outro, de uma situação existencial a
outra. (...) Convém precisar que todos os rituais e simbolismos da
“passagem” exprimem uma concepção específica da existência
humana: uma vez nascido, o homem ainda não está acabado; deve
nascer uma segunda vez, espiritualmente; torna-se homem completo
passando de um estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito,
de adulto. Numa palavra, pode-se dizer que a existência humana chega
à plenitude ao longo de uma série de ritos de passagem [grifo do autor].
A auto-afirmação é um dos pressupostos básicos implícitos ao ritual de passagem.
É por meio dele que o ser humano tenciona alcançar seus ideais em uma nova etapa da
vida que, simbolicamente, tem início após a efetivação do ritual. No caso da personagem
em análise, isso se torna mais evidente pela forma com que é realizada essa passagem:
cortando os cabelos. Estes, em diversas esferas culturais, são dotados de simbologia.
Chevalier e Gheerbrant (2002, p. 153) analisam a representação conferida aos cabelos:
Acredita-se que os cabelos, assim como as unhas e os membros de um
ser humano, possuam o dom de conservar relações íntimas com esse
ser, mesmo depois de separados do corpo. Simbolizam suas
propriedades ao concentrar espiritualmente suas virtudes: permanecem
unidos ao ser, através de um vínculo de simpatia. (...) Na China, o ato
de cortar os cabelos correspondia não só a um sacrifício, mas também a
uma rendição: era renúncia - voluntária ou imposta - às virtudes, às
prerrogativas, enfim, à própria personalidade. (...) O corte de cabelo e
a disposição da cabeleira sempre foram elementos determinantes, não
da personalidade, como também de uma função social ou espiritual,
individual ou coletiva [grifo do autor].
No Memorial, o corte dos cabelos implica, simbolicamente, uma mudança, tanto
na personalidade, quanto na posição social de Maria Moura na sociedade. Ao cortá-los,
ela põe fim à condição de sinhazinha, dando início à saga de uma jagunça. É o que se
depreende, quando Moura, ao terminar de cortar sua cabeleira, declara: “Agora se acabou
a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria Moura, chefe de vocês, herdeira de
uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na Serra dos Padres. Vamos lá, arreiem os
animais” (p. 84).
Bakhtin (1999, p. 46), ao abordar a questão dos signos, alerta para os diferentes
modos por meio dos quais o homem pode se manifestar: “O ser, refletido no signo, não
apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser
no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma e mesma
comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes” [grifo do autor]. Ou seja, o homem, por
meio do signo, pode tanto se expressar, como se alterar.
Essa duplicidade ocorre com Moura. Ao cortar seus cabelos e usar roupas
masculinas, ela expressa a sua nova condição, rompendo com a submissão feminina. No
entanto, como não é possível eliminar as questões de gênero implícitas à sua condição de
mulher, ao serem sublimadas, elas são ocultadas. Esse conflito atravessado pela
personagem desempenha grande importância na estrutura da obra, ilustrando o
favorecimento na luta de classes vinculada aos gêneros, principalmente no que se refere
aos valores morais agregados ao homem na cultura patriarcal. Ao incorporar o modelo
masculino, Maria Moura transmigra da condição de dominada - representada pela
sinhazinha - à de dominante, metaforizada pelo jagunço.
A estigmatização da mulher, típica do sistema patriarcal, também se faz presente
no Memorial. Esta é evidenciada por Tonho e Irineu, primos de Moura, que estigmatizam
as mulheres e tratam-nas como seres inferiores, desvelando a mentalidade machista
vigente na época. É o que se percebe, principalmente, no tratamento que eles dão à sua
irmã Marialva:
- A gente leva ela [Maria Moura] à força e se espalha que roubamos a
prima pra casar. (...) - Mas é mal falada. Falaram dela a com o
Liberato. - A mãe também era mal falada. Titia. Daí, não foram elas
nem as primeiras. Essas mulheres da nossa família sempre foram
escandalosas. Se lembra da Tia Vivinha? Fugiu com aquele mulato,
cabra forro, vindo das bandas do Maranhão! - É. O mulherio da nossa
raça parece que nasceu com fogo no rabo. É mesmo raça de índia: não
enjeita homem. O Irineu parece que não estava gostando da minha
conversa: - Na mão de um marido macho mesmo, ela se aquieta. Nem
que seja a poder de relho. (...) A nossa é nossa - minha, do Tonho e da
Marialva. Essa se pode dizer que vai acabar moça velha. Vive
encostada na nossa casa. E tem o ditado: quem come do meu pão,
leva do meu cinturão. Tem que fazer o que se mandar (p. 46-9).
Segundo Barbosa (1999, p. 46), “a família de Marialva, prima de Moura, é um
exemplo de ambição desmedida: os irmãos a mantêm prisioneira, para impedi-la de casar,
pois, assim, não terão que dividir as terras”. Tonho e Irineu se sentem superiores em
relação à irmã, achando-se no direito de controlar sua vida e de enclausurá-la ao espaço
“da casa”.
A narração dos primos, contudo, indica uma tradição de rebeldia nas mulheres da
família de Moura. Se eles estigmatizam a irmã - até então, uma típica sinhazinha -, essa
rebeldia das parentas só vem a acentuar, ainda mais, a estigmatização que eles atribuem à
mulher, embora também venha a revelar a insubordinação de algumas das familiares de
Maria Moura. A esse respeito, Barbosa (1999, p. 47-8), amparada nos estudos de Rocha-
Coutinho (1994), faz a seguinte análise:
Nas primeiras páginas do romance, o primo Tonho comenta que o
mulherio de sua raça “nasceu com fogo no rabo. É mesmo raça de
índia: não enjeita homem”. De modo que não nos causa nenhuma
surpresa Moura admitir sua necessidade sexual, numa época em que
sexo e prazer eram destinados ao homem. Ainda recentemente, “a
mulher considerada verdadeiramente feminina, destinada a ser esposa e
mãe, era aquela passiva sexualmente” (ROCHA-COUTINHO, 1994:
107). O sexo devia ser tolerado apenas para procriação, e o desejo era
considerado coisa de homem e de prostituta.
Embora sejam personagens ficcionais, Moura e algumas de suas familiares
indicam que, mesmo no período mais duro do patriarcalismo, sempre houve mulheres que
se opuseram à opressão. De modo similar ao das personagens, determinadas mulheres que
viveram nesse período também se destacaram em meio à dominação. É o que se percebe,
ao se atentar para a análise apresentada por Candido (1951, [s.n.]):
A dominação do marido não era o absoluta, nem suas atividades
sexuais eram tão desimpedidas que ele não respeitasse as sensibilidades
femininas. Após o período inicial de relativo caos é provável que as
técnicas de transgressão conjugal se tivessem tornado
institucionalizadas de uma maneira mais ou menos regular, e logo isto
deve ter se relacionado com a mesma preocupação com o conformismo
e respeito às aparências que a caracterizam hoje em dia. (...) Havia
mulheres que incitavam represálias de seus pais e irmãos contra os
companheiros infiéis, e ordenavam que a amante do marido fosse
açoitada sem que o marido pudesse impedir; que não raramente
ordenavam que a amante fosse morta e às vezes também o marido.
Durante a metade do século XIX, houve um caso famoso na província
de São Paulo: o julgamento de uma fazendeira que, na ausência de seu
marido, ordenou que os órgãos genitais de sua concubina fossem
marcados a ferro quente, causando-lhe a morte.
O processo de estigmatização - evidente na fala dos primos da protagonista -,
geralmente, está associado ao poder. A partir do momento em que se discrimina a mulher,
suas chances de ascender se reduzem. Goffman (1988, p. 150), sociólogo canadense,
concorda com essa abordagem. Ao estudar determinados grupos estigmatizados, o autor
conclui que a estigmatização “tem funcionado, aparentemente, como um meio de afastar
essas minorias de diversas vias de competição”.
Elias e Scotson (2000) constataram o acerto da teoria de Goffman (1998). Ao
estudarem uma comunidade inglesa, os sociólogos se pautaram nas desigualdades sociais
geradas pela presunção de superioridade de um grupo em relação ao outro. Elias e
Scotson (2000, p. 145) desvelam relações de poder decorrentes dessas desigualdades
naquela comunidade, em que as relações mantidas entre os moradores mais antigos - os
estabelecidos - e aqueles que eram os recém-chegados - outsiders - apontam para a um
processo de estigmatização que, ao excluir os outsiders do direito à cidadania local,
beneficiam os estabelecidos em termos de competição social:
O grupo estabelecido sente-se compelido a repelir aquilo que vivencia
como uma ameaça a sua superioridade de poder (em termos de sua
coesão e monopólio dos cargos oficiais e das atividades de lazer) e a
sua superioridade humana, o seu carisma coletivo, através de um
contra-ataque, de uma rejeição e humilhação contínuas do outro grupo.
(...) Dentre os aspectos mais reveladores da estratégia dos grupos
estabelecidos, figura a imputação aos outsiders, como motivo de
censura, de algumas de suas próprias atitudes usuais, as quais, no caso
deles, freqüentemente são motivo de louvor.
Esse exemplo evidencia como o estigma é resultante da luta pelo poder. O jogo do
poder continua evidente entre as classes dominantes, as quais não pretendem perder o
lugar conquistado. Devido a isso, elas passam a estigmatizar determinados grupos para
não se sentirem ameaçadas por estes. Há, portanto, por meio desse processo, uma
diminuição expressiva no número de adversários que poderão vir a ocupar o lugar que
lhes pertence na atualidade.
Na sociedade patriarcal, os grupos estigmatizados têm, nas mulheres, uma
representação crucial. Freyre (2000, p. 125), ao analisar a condição da mulher no regime
patriarcal, coaduna com a abordagem empreendida por Elias e Scotson (2000), no que
concerne à relação entre o estigma e o poder:
[...] a beleza que se quer da mulher, dentro do sistema patriarcal, é uma
beleza meio mórbida. (...) Nada do tipo vigoroso e ágil de moça,
aproximando-se da figura do rapaz. O máximo de diferenciação de tipo
e de trajo entre os dois sexos. Talvez nos motivos psíquicos de
preferência por aquele tipo de mulher mole e gorda se encontre mais de
uma raiz econômica: principalmente o desejo, dissimulado, é claro, de
afastar-se a possível competição da mulher no domínio, econômico e
político, exercido pelo homem sobre as sociedades de estrutura
patriarcal.
Tendo por base o que é relatado por Freyre (2000), bem como a teoria defendida
por Elias e Scotson (2000), é possível depreender que o poder, na estrutura patriarcal, é
objeto de posse do gênero masculino. Este, não desejando perder sua posição dominante,
estigmatiza a mulher, o que implica em reduzir suas chances de ascensão ao poder,
afastando o risco de ela vir a ocupar uma posição de destaque.
Foucault (1993), ao estudar a origem do poder na sociedade, destaca que, nela,
criam-se redes de poder. Estas condicionariam os indivíduos a certos tipos de
comportamento. Para o autor, todo tipo de poder é relacional. Existem relações de poder
que estão presentes em toda a sociedade. Historicamente, o homem ocidental constituiu
micro-redes de relações de poder, visando impedir que ocorram transformações sociais
significativas, a ponto de destruir as relações estabelecidas. Consoante Foucault (1993, p.
85-6), vários mecanismos de controle para que os indivíduos não consigam romper
com as redes constituídas:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como
algo que funciona em cadeia. (...) O poder funciona e se exerce em
rede. Nas suas malhas os indivíduos não circulam, mas estão sempre
em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em
outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não
se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo
elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder
golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou
estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que se faz com que um corpo,
gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto
indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo
não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é
um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um
efeito, é seu centro de transmissão.
O estudioso observa que o poder atribuído à classe dominante apenas existe
porque os dominados se subordinam a ela. A dominação não ocorre porque uma classe
domina, de fato, as demais, mas porque existe, no corpo social, uma série de convenções
que vêm a justificar e legitimar o poder que a ela é facultado. Na sociedade, o poder
partiria dos dominados em direção aos dominantes e não o oposto, como
costumeiramente se pensa. Assim, os subordinados, ao permitirem sua dominação, seriam
os responsáveis pela perpetuação da classe dominante no poder.
A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que o poder patriarcal é facultado ao
homem, porque a mulher assim o consente. Ao não resistirem à dominação, as mulheres
da sociedade legitimariam sua submissão, exploração e conseqüente estigmatização.
Embora uma classe subordinada possa legitimar a dominação que lhe é imposta,
ela também pode resistir aos mecanismos dominantes. Certeau (2000) tem uma visão que
difere da de Foucault (1993). Ao estudar o binômio dominação-resistência, Certeau
(2000, p. 79) argumenta que, diante da imposição determinada pela organização social,
podem se dar formas de resistência e não apenas as formas passivas de consumo, como
aquelas postuladas por Foucault (1993):
Falando de um modo mais geral, uma maneira de utilizar sistemas
impostos constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e as
suas legitimações dogmáticas. (...) Mil maneiras de jogar/desfazer o
jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a
atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio,
devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações
estabelecidas. Tem que “fazer com”. Nesses estratagemas de
combatentes existe uma arte de golpes, dos lances, um prazer em alterar
as regras do espaço opressor. Destreza tática e alegria de uma
tecnicidade. Scapin e Fígaro são apenas ecos literários desse modo de
agir.
Maria Moura pode ser considerada como outro eco literário que se ajusta a essa
perspectiva. Segundo Certeau (2000), o ser humano pode desenvolver táticas que lhe
permitem romper com a dominação de sistemas impostos. Seguindo essa abordagem, a
tática desenvolvida pela protagonista é a de subverter o instrumento de dominação,
pondo-o a seu favor, reproduzindo as relações de poder que beneficiam o homem e
incorporando a postura masculina. A personagem, inclusive, diante da possibilidade de os
primos lhe tomarem as terras, admite que será essa a sua forma de resistência:
Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava os meus
cabras - os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado
as suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas,
na hora da precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher
resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem como ele,
serve pra dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E se eu sinto que
perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas me retiro
atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim [grifo nosso] (p. 40).
A protagonista repete os mecanismos de imposição a que tinha resistido e com
que tinha rompido. Ao liderar um bando de jagunços, ela desenvolve uma micro-rede de
poder, na qual sua força resulta da submissão voluntária dos jagunços à sua liderança e ao
seu poder de mando.
A exceção de obediência a essa voz de comando é Cirino, que não faz parte do
bando. Ele é filho de família abastada, sendo acolhido por Maria Moura, que o recebe
para lhe dar coito. Portanto, ele é um elemento estrangeiro às normas da líder. Cirino usa
seu poder masculino de sedução e, após conseguir que Moura se apaixone, ele a trai. Sua
traição, contudo, não pode ser considerada como resistência ao domínio de Moura. Como
é o dinheiro que motiva a deslealdade de Cirino, o que ele faz é dar vazão à sua sede
individual de poder. É pelo processo de sedução que se evidencia a sua resistência, o que
será mais bem delineado adiante.
A protagonista, portanto, supera o estigma patriarcalista, aliás, usa-o a seu favor
ao reproduzir o modelo masculino. Apesar da rigidez típica do sistema patriarcal, Freyre
(2000, p. 126-7) cita casos de mulheres que, assim como Maria Moura, repetiram com
sucesso o modelo masculino para sobressaírem numa sociedade que privilegiou o
homem.
Mas através de toda época patriarcal - época de mulheres franzinas o
dia inteiro dentro de casa (...) houve mulheres, sobretudo senhoras de
engenho, em quem explodiu uma energia social, e não simplesmente
doméstica, maior que a comum dos homens. Energia para administrar
fazendas como as Donas Joaquinas do Pompeu; energia para dirigir a
política partidária da família, em toda uma região, como as Donas
Franciscas do Rio Formoso; energia guerreira, como a das matronas
pernambucanas que se distinguiram durante a guerra contra os
holandeses, não nas duas marchas, para as Alagoas e para a Bahia,
pelo meio das matas e atravessando rios fundos, como em Tejucupapo,
onde é tradição que elas lutaram bravamente contra os hereges.
Langsdorff, nos princípios do século XIX, visitou uma fazenda no
Mato Grosso, onde o homem da casa era uma mulher. (...) Era uma
machona. Junto dela o irmão padre é que era quase uma moça.
Tanto a personagem do romance em questão quanto as mulheres citadas pelo
sociólogo, são exemplos de resistência à subordinação imposta pelo grupo social. Elas
subvertem sua feminilidade em prol da cópia do masculino como forma de resistência à
dominação que o patriarcalismo lhes impõe.
1.2 - Família, honra e terra
A maneira encontrada por Maria Moura de jogar e desfazer o jogo da dominação
patriarcal - nas palavras de Certeau (2000) - é o banditismo. A ex-sinhazinha passa a
personificar o cangaceiro e, como conseqüência, agrega para si a força daqueles que,
assim como ela, também transitam pela criminalidade.
A sinopse da obra Memorial de Maria Moura, adaptada para a tevê por Jorge
Furtado e Carlos Gerbase, com a colaboração de texto de Renato Campão e Glênio
Povoas, e levada ao ar em forma de minissérie pela Rede Globo de Televisão no ano de
1994, lança luz sobre o processo da inserção criminal da protagonista. Essa sinopse é
disponibilizada por Xavier (2005b, [s.n.]):
Família. Honra. Terra. Estas eram as três únicas justificativas para uma
mulher brasileira viver no século XIX e Maria Moura tinha apenas 17
anos quando perdeu, uma a uma, as razões de sua existência. Primeiro,
encontrou sua mãe morta. Depois, foi seduzida pelo padrasto e provável
assassino de sua mãe. Finalmente, teve a posse de suas terras ameaçada
por primos gananciosos. Se Maria Moura fosse uma mulher comum,
sua vida teria terminado. Mas ela não gostava de tragédias. Pelo
contrário, amava tanto a vida que foi capaz de transformá-la numa
grande aventura, rompendo as regras da sua época. Maria Moura foi
uma menina apaixonada pelo pai perdido na infância, seduzida pelo
padrasto e enganada pelo amante. Mesmo diante dessa situação, ela se
recusou a aceitar o papel submisso, reservado à mulher da sociedade
patriarcal e opressora do Nordeste brasileiro do século passado. Ela
passou, então, a fazer o jogo violento dos homens, não sendo perfeita
nem estando sempre do lado certo.
Apelos folhetinescos à parte, a sinopse evidencia como a família, a honra e a terra
eram os três sustentáculos fundamentais não somente para a mulher, mas para toda a
estrutura patriarcal. Nessa representação social, esses sustentáculos propiciavam para a
mulher o estatuto de depositária dos valores típicos do poder masculino. Com a perda
destes, poucas opções restaram para Maria Moura sobressair frente à ordem vigente. Fora
desta, contudo, resta-lhe a opção pelo banditismo e ela, então, passa a liderar um bando
de jagunços. Arendt (1976, p. 97), ao analisar as diferentes formas em que o poder é
exercido, discorre sobre a formação de grupos criminosos, como o criado por Maria
Moura:
Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade - os fracassados, os
infelizes, os criminosos - de qualquer obrigação em relação ao Estado e
à sociedade, se o Estado não cuida deles. Podem dar rédea solta ao seu
desejo de poder, e são até aconselhados a tirar vantagem de sua
capacidade elementar de matar, restaurando assim aquela igualdade
natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de
conveniência. Hobbes prevê e justifica que os proscritos sociais se
organizem em bandos de assassinos, como conseqüência lógica da
filosofia moral burguesa.
Amparada no Leviatã, de Hobbes (2003), a pesquisadora avalia que as relações de
poder estabelecidas na sociedade se fazem propícias para o surgimento de grupos
criminosos, constituídos por aqueles que são excluídos pelo sistema. A criminalidade
surge como um meio possível para os excluídos alcançarem os seus objetivos. Segundo
Hobbes (2003; 1993), que, no Leviatã e no De Cive, discute a formação do Estado e do
poder inglês do século XVII, o perigo dos excluídos vem da condição de não terem nada
a perder.
Deslocando esse conceito do contexto inglês do século XVII para o contexto
patriarcal rural do século XIX, pode-se afirmar que a passagem que Moura faz de
sinhazinha a cangaceira resulta da perda da família, da honra e da terra. A marginalização
se torna uma via de inserção no mundo, bem como uma tentativa de ingresso na esfera
organizada, tentativa que, embora se realize no romance, não aponta para a sua
perpetuação, que, ao que tudo indica, a protagonista, no final da obra, caminha em
busca da morte.
Contraditoriamente, o cangaço é o caminho pelo qual Maria Moura tenta retornar
ao mundo oficial, buscando recuperar o tripé família-honra-terra, do qual ela se encontra
alijada. Apossando-se da Serra dos Padres, ela consegue a terra, que é legada, no final do
romance, ao seu afilhado Alexandre, em troca do fato de o pai dele, Valentim, ter
assassinado Cirino.
Além do valor dado à terra, o fato de a mesma ter pertencido aos antepassados de
Moura e a herança deixada a Alexandre apontam para a preocupação com relação à
família, visto que, no que se refere ao afilhado, Maria Moura declara: “É a única criatura
do meu sangue que eu considero neste mundo. Por ser filho de Marialva, minha prima
legítima (p. 451). A honra é evidenciada no que motivou a herança: a morte
encomendada de um traidor, em sintonia com o código dos jagunços.
Embora busque a família, a honra e a terra, Maria Moura é impossibilitada de
retornar ao mundo organizado. Esse retorno dependeria da ordem vigente, que não admite
a re-inclusão social da personagem, ao menos, não sem as devidas punições legais
decorrentes de suas infrações. Ademais, a indicialidade da morte provável de Moura
indícios de que essa volta não se efetiva.
Ao se ater às informações históricas sobre o cangaço, percebe-se que o romance
corrobora as análises de Hobbes (2003) e Arendt (1976). Um grande número de
indivíduos ingressou no movimento por falta de opção, vitimado pelas injustiças sociais,
marcantes ainda hoje no contexto nordestino brasileiro. Segundo Barros (2000, p. 41), o
cangaço - de acordo com o depoimento de cangaceiros e amigos e familiares deles -
resultou, preponderantemente, da exclusão social.
As lembranças evocadas por ex-cangaceiros, seus familiares, amigos e
protetores trazem imagens destacadas da maldade da polícia e das
volantes. Nessa categoria de informantes, aqueles cuja memória se
baseia em lembranças de imagens vívidas, separam Corisco, Baiano
e Sabino como sujeitos perversos” e “uns perdido de Deus”,
identificando os demais cangaceiros numa categoria de vítimas de
injustiças, gente que fugia das misérias da polícia, ou pessoas tragadas
pela sorte ruim, muitas até inocentes que entraram no cangaço muito
jovens, por espírito de aventura, e depois, “já com a vida estragada, não
tendo mais o que fazer, era o jeito de ficar no grupo até a morte. Fazer
o que, já marcado pelas volantes, cheio de inimigo?”.
A pesquisa do estudioso aponta para uma distinção entre os integrantes do
cangaço. os que se tornaram cangaceiros por falta de alternativas, mas há, ainda, os
“perdido de Deus”: aqueles que, detentores de uma inclinação para o mal, encontraram
prazer em serem violentos e matar. uma trova sobre Dioguinho, um famigerado
cangaceiro, que ilustra bem esse prazer: “Domingos Martins Vilela/ da província da
Bahia./ O dia que não matava/ não comia nem bebia”.
Uma vez que o cangaço é um dos temas do eixo narrativo de Memorial de Maria
Moura, faz-se necessário atentar para o conceito desse movimento. Dória (1981, p. 7),
historiador que se ocupa em analisar o cangaço, define-o como “uma forma de
banditismo ocorrida no Nordeste brasileiro entre 1870 e 1940, data em que morreu
Corisco, o último cangaceiro”.
Classificado pelo historiador como um movimento de banditismo social, o
fenômeno do cangaço tem sua ocorrência registrada num tempo e espaço precisos. O
cangaço desponta no momento de transição entre dois séculos: XIX e XX. No que
concerne ao espaço de sua abrangência, Barros (2000, p. 39) detalha as áreas do Nordeste
brasileiro em que atuaram os maiores cangaceiros.
Percorrendo o espaço físico da confluência entre Sergipe, Bahia,
Pernambuco e Alagoas, Lampião e seus cabras retornaram sempre ao
lócus original. Paraíba e Ceará, por suas fronteiras, pela origem de
vários cangaceiros, as brigas com Quelé e Pereira de Princesa, a
amizade com muitos poderosos e a existência do Juazeiro do padre
Cícero eram, no imaginário das facções em combate, extensões de suas
marchas, campos de saques, de repouso ou de batalhas sangrentas.
Partindo de seu centro vital, Paraíba e Ceará, os cangaceiros deram vazão às suas
práticas ilegais e violentas em uma vasta região do sertão do Brasil. A agressividade com
que permaneceram nesse espaço foi tão marcante que ria (1981, p. 24) afirma que o
termo cangaço, “segundo os folcloristas, vem de ‘canga’, nome dado ao armamento do
indivíduo que andava de bacamarte passado sobre os ombros, tal qual um boi no jugo.
(...) Cangaceiro, portanto, era a pessoa que andava debaixo do cangaço’ ou da canga’”.
Apesar de terem existido cangaceiros que agiram livremente pelo sertão, houve, também,
os que se submeteram às ordens dos grandes proprietários rurais. Eles se empenhavam em
fazer o “serviço sujo” para o fazendeiro, agredindo e matando quem se opunha a ele.
Além do modo violento com que eles agiram, essa típica subordinação ao patrão rendeu
aos cangaceiros a comparação com animais.
A maneira com que Rachel de Queiroz concebe Maria Moura e as personagens do
bando, bem como a forma de atuação deste, é idêntica à dos cangaceiros analisados por
Barros (2000) e Dória (1981). É o que se percebe, por exemplo, quando Moura narra um
dos primeiros assaltos feitos pelo bando:
Com a cara coberta, as armas apontadas, rodeamos os três. João Rufo
engrossou a voz: - Soltem as armas! Os homens nos olharam
assustados. Nenhum dos três portava arma de fogo. - Joguem as facas
longe! - Gritou João Rufo. O homem de barba atirou no chão uma faca
de bainha de prata, que pendia de uma corrente, presa numa casa da
camisa. Os outros dois largaram as facas de ponta, afiadas de mais de
dois palmos de comprido. - Agora passem pra os mantimentos. As
redes. Isso! Assim! (p. 112).
Embora a infração da lei faça com que o cangaceiro se confronte com a ordem
vigente, como o faz o bando de Maria Moura, freqüentemente, ele não é visto pela
comunidade de que provém como um transgressor qualquer. É esse aspecto que faz com
que os cangaceiros sejam vistos como bandidos sociais. A esse respeito, Dória (1981, p.
11-2) afirma:
O bandido social é, em geral, membro de uma sociedade rural e, por
várias razões, encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado e
pelos grandes proprietários. Apesar disso, continua a fazer parte da
sociedade camponesa de que é originário e é considerado como herói
por sua gente, seja ele um “justiceiro”, um “vingador” ou alguém que
“rouba aos ricos”. Quer dizer, na prática os membros da sociedade não
reconhecem no Estado e na classe dominante a legitimidade para dizer
quem está ou não agindo segundo a “lei” e os costumes reconhecidos
pelo povo simples. Este tipo de bandido nada tem a ver com o “bandido
comum”, isto é, com aquele tipo de criminoso que a própria
comunidade se esforça por entregar à polícia. Pelo contrário, é um
camponês comum que por algum motivo “caiu em desgraça” perante os
poderosos locais, ou um rebelde, e que por isso mesmo merece ser
admirado, ajudado e protegido na luta contra seus inimigos [grifo do
autor].
A análise do autor condiz com o fenômeno do cangaço. Lampião, por exemplo,
até os anos oitenta, era visto, em grande parte do sertão nordestino, como uma espécie de
salvador, um Robin Hood brasileiro, que roubava dos ricos para dar aos pobres.
Difundiu-se no imaginário popular nordestino que, assim como o padre Cícero seria um
santo, Lampião era o herói sertanejo.
O banditismo social, contudo, não é um fenômeno exclusivo do Nordeste
brasileiro. Dória (1981, p. 12) analisa, ainda, como as raízes do banditismo social se
desenvolveram a partir de regiões que, embora geograficamente distintas, apresentaram
uma similaridade econômica e social:
Esse tipo de banditismo social é um dos fenômenos mais universais da
História. Existiu na China, no Peru, na Sicília, no Nordeste brasileiro,
na Ucrânia, na Espanha, na Indonésia, etc. Do ponto de vista
organizacional, as sociedades onde ele surge possuem alguns traços
comuns: são sociedades rurais que vivem a transição entre a
organização tribal ou de clã (onde o principal laço de solidariedade
social é a família extensa) e a moderna sociedade capitalista em fase de
industrialização, quando o avanço do capitalismo no campo destrói a
predominância dos laços de família [grifo do autor].
O cangaço, a exemplo de outras manifestações de banditismo social, surge em
uma sociedade que se encontra em transição entre o arcaico e o moderno. A época em
que, no sertão nordestino, os cangaceiros começam a proliferar, entre o final do século
XIX e início do século XX, é marcada por essa peculiaridade.
Essa transição entre o arcaico e o moderno se faz presente em vários temas
literários, não apenas no que se refere ao cangaço. Por exemplo, Carlos Drummond de
Andrade reporta-se, de passagem, a esse momento, nas obras Boitempo e Menino antigo
(Boitempo II). Fortes (1994, p. 61-2), ao analisar tais obras, salienta que “Carlos
Drummond de Andrade, em Boitempo (1968) e Menino antigo (Boitempo II) (1973) não
contrapõe o Brasil arcaico, herança do século XIX, ao Brasil tecnológico do século
XX, como resgata a estrutura semi-patriarcal, vigente ainda, nos primeiros decênios desse
século”. Pela análise dos poemas drummondianos, a pesquisadora desvela o momento de
transição atravessado pela sociedade brasileira que se fez propício ao surgimento do
cangaço.
Na transição entre os séculos XIX e XX, ocorre, principalmente, no sertão
nordestino, um outro fator que, segundo Dória (1981), vincula-se ao surgimento do
banditismo social: o declínio da predominância dos laços de família na sociedade. É
nessa época que o sistema patriarcal, caracterizado por concentrar o poder dentro do
círculo familiar, entra em decadência, pois, como destaca Fortes (1994), é nas primeiras
décadas do século XX que começa a não mais se sustentar a organização social de então,
cuja estrutura já se transformava num sistema semi-patriarcal.
Embora o ciclo do cangaço seja dado por encerrado em 1940, quando morre
Corisco, sucessor de Lampião e o último grande líder dos cangaceiros, o movimento é,
até hoje, perpetuado pelo imaginário popular, tal a dimensão de sua difusão. Contrapondo
cangaceiros brasileiros ao lendário Robin Hood inglês, Dória (1981, p. 8-9) frisa que
é a bravura inerente à figura desses bandidos sociais que faz com que eles, mesmo
transitando na ilegalidade, sejam cultuados como heróis:
Os fantasmas de Lampião, de Corisco, de Antônio Silvino, etc., de
alguma forma ainda se encontram entre nós, apesar de o último
cangaceiro ter morrido mais de 40 anos. Robin Hood, que viveu na
Inglaterra do século XVII, também povoou nossas infâncias através de
incríveis aventuras. Ou seja, assim como o camponês europeu do século
XVII ou o cabra nordestino do começo deste século,s continuamos a
ver naqueles bandidos históricos qualidades excepcionais que os
credenciam a se perpetuarem no tempo.
Rachel de Queiroz recorre à perpetuação no tempo das qualidades excepcionais
dos cangaceiros de que fala Dória (1981), para escrever Memorial de Maria Moura.
Valendo-se de suas memórias, a escritora resgata o cangaço, condição social com a qual
ela esteve em contato, principalmente por ter nascido e se criado no Nordeste brasileiro.
No que se refere ao tratamento dispensado por Queiroz ao cangaço, bem como às demais
contingências sociopolíticas do sertão nordestino do século XIX, torna-se relevante
atentar para a pesquisa desenvolvida por Chiappini (2002, p. 167-8):
Não nenhuma idealização do Sertão na literatura de Rachel, pelo
contrário, uma desconstrução dos mitos, mostrando a crueza das
relações entre as famílias que detêm a posse da terra e destas em
relação aos negros escravos e forros; aos índios e mestiços pobres, por
elas dominados. Tampouco se idealiza o cangaço, como não se
idealizava na peça de teatro, Lampião, onde o que se evidencia é o
arbítrio e o roubo legitimados pela força e pelo prestígio do chefe.
Maria Moura, Lampião de saias, confirma tudo isso, apenas com o
complicador da sua ambigüidade masculino-feminina que vem à tona
quando ela se apaixona pelo homem que a trai e terá de matar.
Rachel de Queiroz, cearense nascida em 1910, conhece bem as contingências
sociais do cangaço e havia se reportado a elas em 1953, com a peça Lampião. A
escritora retoma esse tema em 1992, com Memorial de Maria Moura e, mesmo não o
idealizando, como frisa Chiappini (2002), revela o heroísmo agregado ao cangaceiro pelo
imaginário popular. Conseqüentemente, esse caráter heróico desempenha um papel
relevante na constituição da personagem central do romance. É o que destaca Barbosa
(1999, p. 55), ao analisar o perfil da protagonista do Memorial:
O pensamento imaginário parte muito mais do desejo, da esperança de
mudanças no nível emocional (individual e coletivo) do que de
qualquer expectativa de transformação racional baseada numa doutrina,
seja ela de que natureza for. Quando não existe nada a se apresentar em
oposição a essa dessimetria social, a única opção é o mito. (...) Assim
se a construção e configuração de Maria Moura, num nível
elementar de ingresso no social por via do imaginário, como é o caso de
Lampião, peça de estréia da escritora. Ainda que os objetivos de Moura
restrinjam-se a seu projeto pessoal, suas atividades ilegais
transformam-na, aos olhos dos sertanejos da região, em uma heroína,
que lhes dá a ilusão de esperança, por representar a oposição ao poder
constituído.
Além do cangaço, outra inferência possível, não entre o arcaico e o moderno,
mas que povoa o imaginário ocidental desde a Idade Média e que envolve Moura numa
áurea de encantamento. Trata-se do mito da donzela-guerreira, presente, também, em
outras personagens da Literatura Brasileira, dentre as quais Diadorim, personagem criada
por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.
Galvão (1998, p. 11-2), ao estudar especificamente o mito da donzela-guerreira,
fornece uma visão panorâmica acerca dos aspectos que integram o perfil dessa
personagem. A abordagem da autora permite relacionar Maria Moura a esse mito:
Filha de pai sem concurso de mãe, seu destino é assexuado, não pode
ter amante nem filho. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse
um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por
inviabilidade. Sua potência vital é voltada para trás, para o pai,
enquanto ela for do pai, não tomará outro homem. Mulher maior, de
um lado, acima da determinação anatômica; menor, de outro, suspensa
do acesso à maturidade, presa do laço paterno, mutilada nos múltiplos
papéis que natureza e sociedade lhe oferecem. (...) Sua posição é
numinosa na série filial, como primogênita ou unigênita, às vezes a
caçula; o pai não tem filhos homens adultos ou, o que é quase regra,
não os tem de todo. Ela corta os cabelos, enverga trajes masculinos,
abdica das fraquezas femininas - faceirice, esquivança, sustos -, cinge
os seios e as ancas, trata seus ferimentos em segredo, assim como se
banha escondido. Costuma ser descoberta quando, ferida, o corpo é
desvendado; e guerreira; e morre.
Ao se travestir em homem, cortando os cabelos e, inicialmente, vestindo as calças
que foram de seu pai, Moura incorpora a tradicional donzela-guerreira, cujas aparições
são notáveis, tanto na história, quanto na mitologia e na literatura. Para cada uma dessas
esferas, Galvão (1998, p. 11-2) menciona donzelas-guerreiras recorrentes, confirmando o
fascínio que elas exercem sobre a humanidade:
Ei-la que ressurge a nosso lado em carne e osso, tal como Mu-lan, a
chinesa do século V indo à guerra contra os tártaros para substituir o
velho pai carente de filho. Ou volta pouco na Márgara assombrando
as noites da cidadezinha mineira - “a clandestina veste inconcebível” -,
num poema de Carlos Drummond de Andrade. Invoque-se santa Joana
d’Arc, Palas Atena, Durga-Parvati ou Iansã - a que roubou o raio de
dentro da boca de Xangô, tornando-se senhora das tempestades e das
mulheres de cabeça forte -, a padroeira de todas elas nunca falta em
qualquer panteão. Está no céu, como Bellatrix, a Guerreira, estrela
gama da constelação de Órion. (...) Atlanta, a donzela-guerreira da
Grécia antiga, filha única, nasceu mulher para desgosto do pai desejoso
de herdeiro homem. Por isso, foi abandonada numa montanha para
morrer, mas uma ursa a aleitou e uma horda de caçadores a criou,
vestida de homem, destra em armas e caça.
O interesse que a donzela-guerreira desperta nas civilizações torna-se ainda mais
evidente, quando ela transcende o plano literário ou mitológico. Sua inserção no mundo
real deriva, como o próprio nome pelo qual é tratada sugere, da disponibilidade para o
combate, que lhe é peculiar. O disfarce masculino não a impede de lutar, mas, ao
contrário, serve de estímulo para que não seja descoberta a sua verdadeira identidade. Ao
estudar as personagens históricas que incorporaram o papel de donzela-guerreira, Galvão
(1998, p. 82) enumera várias, dentre as quais, Joana d’Arc se faz modelar:
Deborah Sampson, natural de Boston, lutou nas campanhas pela
independência norte-americana, foi descoberta quando, ferida,
ganhou a patente de tenente e foi condecorada. Também soldado foi
Rosa La Bayamesa, reverenciada hoje em Cuba, heroína da guerra de
libertação nacional de 1868 contra os espanhóis, ex-escrava que se
tornou capitão, fundadora de um hospital de sangue onde utilizava seus
conhecimentos de ervas medicinais para tratar feridos. Mais tarde,
inspirou e deu nome aos pelotões femininos de combate em Sierra
Maestra. Semelhante à Mu-lan chinesa, hoje cultuada como heroína
nacional, é a Vasilissa defendendo seu país contra a invasão dos
cavaleiros teutônicos no século XIII, a quem, no filme Alexandre
Nevski, Eisenstein não corta as longas tranças, embora ela envergue a
armadura e à guerra para vingar o pai executado pelo inimigo. Esta
se casa, mas só depois de cumprida a tarefa. Uma outra Vasilissa atuará
na expulsão da Grande Armée em 1812: Tolstoi a ela alude de
passagem em Guerra e paz.
Assim como nas donzelas-guerreiras referenciadas pela estudiosa, verifica-se em
Maria Moura uma predisposição para lutar. É esse aspecto que faz com que ela, mesmo
diante do risco, enverede pelo cangaço. Ao adentrar num universo notadamente
masculino, a personagem corrobora a abordagem de Galvão (1998, p. 83), quando esta
afirma que as donzelas-guerreiras “mostram o desejo bastante compreensível de invadir
uma área vedada à experiência feminina, área que, em momentos de grandes causas
públicas como é a convocação para a guerra, está sendo excepcionalmente valorizada”.
Moura encontra-se numa situação similar a essa. No banditismo, ela busca a autonomia
negada à mulher do século XIX, autonomia que, na batalha contra o inimigo, é consentida
com apreço. Nem o perigo representado pela morte a faz recuar da área vedada à
experiência feminina em que ela se inseriu.
Ao empreender, junto com seu bando, a viagem rumo à Serra dos Padres, Maria
Moura concretiza seu sonho de conhecer “o mundo”, correspondente aos locais para além
do sítio ao qual sempre tinha estado confinada. No Limoeiro, Moura estava restrita ao
espaço “da casa” propriamente dita. Mesmo dentro dos limites do sítio, não lhe era
permitido o trânsito pelos espaços mais abertos.
Ao tomar posse das terras que tanto deseja, Maria Moura ordena a construção da
Casa Forte, o seu lugar “no mundo”. Para a personagem, a sua Casa Forte pode ser
relacionada ao que Eliade (2001) classifica simbolicamente como imago mundi. Esta
representaria o “centro do mundo”, que reproduz o universo em escala microscópica. Do
mesmo modo que o universo se desenvolve para várias direções, a partir de um centro, o
homem também projeta os caminhos que seguirá em sua vida a partir de um núcleo
central, pois, de acordo com o referido teórico, a criação do mundo é o arquétipo do gesto
criador humano.
Estabelecendo-se na Casa Forte, a protagonista vive, como vinha ocorrendo
desde o rito citado, o papel, tradicionalmente masculino, de senhor de baraço e cutelo.
Foi duro e foi devagar. Mas agora estava eu no alpendre da minha
Casa Forte, olhando o mundo em redor. (...) Os meus meninos, os que
eu chamava ‘a primeira ninhada’,o tinham a experiência e os usos
de quem faz a vida na luta. (...) E aos poucos é que foram se chegando
outros, a fama da Casa Forte e de Maria Moura se espalhando e
chamando cabras mais feitos na arte (p. 293-4).
A personagem-título funda, na Serra dos Padres, o seu espaço “da casa” que,
diferentemente do que afirma a ideologia patriarcal, não revela o ambiente da ordem e da
moral. A Casa Forte, ao contrário, se configura como o espaço da transgressão dos
valores vigentes, vindo a concretizar os desejos reprimidos de Maria Moura.
1.3 - Poder versus sentimento
A realização dos desejos reprimidos da protagonista, contudo, tem o seu preço: ao
encarnar um papel, tipicamente masculino, Maria Moura reprime sua feminilidade e,
apenas às escondidas, mantém relações com Duarte, um mulato, filho bastardo de seu tio,
que, oficialmente, é apenas mais um jagunço do bando.
A relação entre Moura e Duarte não é recíproca. Enquanto ele a ama, ela apenas
se sente atraída por Duarte, referindo-se ao relacionamento como uma amizade. Esse
desencontro de sentimentos entre os dois resulta do preconceito racial, muito marcante na
sociedade brasileira até o início do século XX.
A protagonista Duarte como um amigo, mas também como um objeto sexual
que, dada a sua condição de mulato, não poderia ambicionar mais que isso com uma
sinhazinha branca. Esta seria mais uma subversão de Maria Moura em relação aos
costumes vigentes. Os relacionamentos sexuais entre senhores e escravas foram moeda
corrente ao longo de todo o período escravista, no entanto o relacionamento entre negros
e brancas foram incomuns e violentamente reprimidos. A personagem em análise, ao se
travestir, torna-se, inclusive, senhora dos seus desejos e, em relação ao sexo, ela também
imita o comportamento masculino patriarcal: Apesar daquela grande amizade que nos
ligou, nunca ninguém pensou que eu chegasse a casar com Duarte. Acho que nem ele
pensaria. Afinal, era filho de escrava alforriada e a gente não se casa com filho de
cativo, mesmo que tenha nosso sangue nas veias” (p. 324).
A perspectiva de Moura evidencia a mentalidade preconceituosa da época, legada
por uma sociedade escravocrata. Como ex-sinhazinha, Moura tem consciência dos
padrões matrimoniais estabelecidos pela aristocracia rural brasileira. Disto, decorre o
motivo de ela afirmar: “[…] a gente não se casa com filho de cativo” (p. 324). De acordo
com Falci (2000, p. 242-3), essa desvalorização étnica resulta da estratificação branca
com vistas a menosprezar as demais etnias, especialmente a negra, enquanto estratégia de
manutenção da sua superioridade:
O pior de tudo era ser escravo e negro. Entre as mulheres, a senhora,
dama, dona fulana, ou apenas dona, eram categorias primeiras; em
seguida ser “pipira” ou “cunhã” ou roceira e, finalmente, apenas
escrava e negra. O princípio da riqueza marcava o reconhecimento
social. O princípio da cor poderia confirmá-lo ou era abafado, o
princípio da cultura o preservava. Ser filha de fazendeiro, bem alva, ser
herdeira de escravos, gado e terras era o ideal de mulher naquele sertão.
Afinal, apenas 25% de toda a população do Piauí, pelo Censo de 1826,
eram de cor branca, perto de 50% eram pardos e o restante eram
negros. E as avós, preocupadas com o branqueamento da família - sinal
de distinção social -, perguntavam às netas, quando sabedoras de um
namoro firme, minha filha, ele é branco? Primeira condição de
importância naquela sociedade altamente miscigenada.
A sociedade à qual o Memorial se reporta cultuava, nas palavras da pesquisadora,
um branqueamento nas famílias e se evitava, ao máximo, a mescla com o sangue negro.
Como conseqüência, negros e mestiços eram excluídos do casamento oficial. Maria
Moura reflete essa preocupação, ao afirmar que, com Duarte, era possível, apenas, os
encontros fortuitos, nos quais ela buscava satisfazer seus desejos. Ou seja, também em
termos sexuais, a personagem, após se travestir, reproduz o comportamento masculino.
Como os patriarcas, ela usa sexualmente o mulato, como sempre fizeram os senhores de
terras com as negras e mulatas no Brasil colonial e imperial. Em Casa-grande & senzala,
Freyre (1984, p. 10) analisa como, desde a colonização, a mulata foi explorada
sexualmente pelo branco.
A mulher morena tem sido a preferida dos portugueses para o amor,
pelo menos para o amor físico. A moda da mulher loura, limitada, aliás,
às classes altas, terá sido antes a repercussão de influências exteriores
do que a expressão do genuíno gosto nacional. Com relação ao Brasil,
que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para f..., negra para
trabalhar”, ditado em que se sente, ao lado do convencionalismo social
da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a
preferência sexual pela mulata.
No Brasil colonial e imperial, assim como a mulata, a negra também foi vítima da
exploração sexual. Apesar de o ditado popular citado, por mais chulo que ele possa
parecer, ser condizente com a mentalidade tanto do colonizador português, quanto do
senhor de terras, ao longo de todo o período escravista, e mesmo após a abolição, a negra
não esteve restrita ao trabalho doméstico. Sob o aval da escravatura, muitos senhores,
embora casados com mulheres brancas, transformaram as negras por eles compradas em
seu objeto sexual.
A esse respeito, Freyre (1984, p. 447-8) observa que “Comte - não o filósofo, (...)
mas outro, Charles, (...) salientou este fato de grande significação para o estudo da
formação brasileira: a ampla oportunidade de escolherem os senhores, nas sociedades
escravocratas, as escravas mais belas e mais sãs para suas amantes”. É esse
comportamento destinado pelos senhores patriarcais às mulatas e às negras de que fala
Freyre (1984) que Moura reproduz na sua relação com Duarte: o filho de uma escrava
com um tio da protagonista.
Após Maria Moura ordenar a morte de Cirino, por quem era de fato apaixonada,
outros empecilhos impedem que ela reinicie o seu envolvimento com Duarte. Um dos
obstáculos, novamente, encontra-se vinculado ao preconceito racial. Este é de tal forma
intransponível que, quando Moura conhece Cirino, Duarte não se atreve a fazer qualquer
comentário ao ser preterido e, após o assassinato daquele, este não ousa fazer qualquer
reivindicação ou ter qualquer expectativa em relação à ex-amante.
Cirino usou seu poder de sedução, ao enredar Maria Moura para, então, traí-la. No
entanto, pode-se considerar a sedução de Cirino uma forma de resistência. Ele não era um
“cabra”, como Duarte, nem estava no mesmo patamar dos demais membros do bando.
Cirino era a única personagem que estaria no mesmo nível social do da dona da Casa
Forte. Enquanto Duarte aceitou, de forma submissa, ser usado sexualmente por Moura,
Cirino empreendeu sua sedução para conquistá-la e, conseqüentemente, tê-la sob o seu
poder.
Embora o relacionamento com Duarte, se comparado com o de Cirino,
representasse menos perigo para a protagonista, uma das impossibilidades dos amantes
reatarem suas relações está ligada à discriminação racial. É o que considera Schpun
(2002, p. 185), ao analisar as fronteiras móveis e imutáveis em Memorial de Maria
Moura:
A relação de Maria Moura com Duarte acrescenta mais uma variante na
complexidade existente naquela (...) com Cirino. Mesmo
apaixonando-se por Cirino, quando Maria Moura chega a hesitar em
seu favor, sofrendo de amor, a aspiração mais forte é manter sua
posição de poder e a de não se deixar subjugar vencer, e ela acaba
fazendo matar o ex-amante. Duarte parece apresentar-lhe uma situação
menos arriscada, pois todos sabem, a começar pelos dois envolvidos,
que nunca haverá casamento nem publicidade naquela amizade. A
fronteira extinta da escravidão, separando negros e mulatos de brancos,
o impede. (...) Além disso, Cirino é branco e deixa claro a todos - com a
exceção, incerta e ambígua, de Maria Moura -, que a posição de Duarte
é intrinsecamente inferior. (...) De fato, Duarte nunca reage como se
Cirino fosse um rival; e cede orgulhosa e dignamente seu lugar, sem
nunca mais o querer, mesmo após a prisão e morte daquele, traidor de
Maria Moura.
Tecendo um contraponto entre as distinções raciais e as sexuais que permeiam o
romance, Schpun (2002, p. 186) conclui que, por não desejar perder seu poder, Maria
Moura recria, após o assassinato de Cirino, as mesmas barreiras que anteriormente
haviam impedido que ela oficializasse sua relação com Duarte:
Duas fronteiras atravessam a cena narrativa. A primeira, numa
construção talvez utópica, provocadora, mas em todo caso
paradigmática, traz Maria Moura ameaçando e efetivamente
atravessando os limites que separam o masculino e o feminino
enquanto territórios do social. A segunda, que vem à tona através da
relação entre Moura e Duarte, traz a marca de uma impossibilidade e de
uma unanimidade maior, pois não integra o universo de fortes desejos
de insubordinação da protagonista.
A pesquisadora não deixa de atentar para o poder que distancia Moura do meio-
primo; esse mesmo poder que esteve subjacente às causas que inviabilizaram as relações
entre Moura e Cirino e implicaram o fim deste. Embora, no discurso de Maria Moura,
fique evidente o peso do preconceito - não só por Duarte ser mulato, mas pelo fato de ser
filho de escrava e, conseqüentemente, bastardo -, percebe-se em suas declarações que o
preconceito não passa de um pretexto. A verdadeira razão para a personagem não se casar
oficialmente com Duarte não está na etnia, mas no risco de o casamento por fim à sua
soberania:
E talvez fosse mesmo pelo impossível da idéia de um casamento entre
nós, que aos poucos foi havendo o que chegou a haver. Além do mais,
eu tinha horror a casamento. Um homem mandando em mim,imagine;
logo eu, acostumada, desde anos a mandar em qualquer homem que
me chegasse perto. Até com Liberato, que era quem era - perigoso -,
achei jeito de dar-lhe a última palavra. Um homem me governando, me
dizendo - faça isso, faça aquilo, qual! Considerando também dele tudo
que era meu, nem em sonho - ou pior, nem em pesadelo. E me usando
na cama toda vez que lhe desse na veneta. Ah, isso também não(p.
324).
No contexto em que Moura consegue a liberdade, esta demanda uma série de
renúncias ligadas ao gênero feminino que a personagem necessita fazer. Nesse sentido,
são esclarecedoras as palavras de Barbosa (1999, p. 49) sobre a postura preconceituosa
assumida por Maria Moura em relação ao amante:
É claro que Moura tenta esconder-se sob o velho preconceito, que,
embora corresponda à verdade, não é a causa principal, uma vez que ela
nunca respeitaria convenções sociais; o motivo verdadeiro é que, além
de não existir amor de sua parte, o casamento era contrário aos seus
projetos de vida. Seu espírito independente, seu caráter dominador não
se submeteriam ao jugo de um homem.
Na eventualidade de tornar pública a sua união com Duarte, Maria Moura estaria
abrindo a possibilidade de ter que dividir com ele o poder de decisão na Casa Forte.
Tendo consciência da importância de manter sua independência e poder sobre o bando,
ela não abre mão da autonomia arduamente adquirida, mesmo porque a protagonista,
como bem frisa a estudiosa, além de nunca seguir os valores sociais vigentes, dentre os
quais figuram aqueles que privilegiam os brancos, jamais esteve apaixonada pelo meio-
primo, apesar de nutrir por ele um pouco de afeição e atração sexual, bem nos moldes
masculinos patriarcais.
Como conseqüência da autonomia de Moura, sua carência afetiva se faz presente
em várias passagens do romance, deixando transparecer que o poder conquistado não
implica a realização em termos emocionais e afetivos:
E eu gosto de ser a senhora deles. Eu gosto de comandar: onde eu
estou, quero o primeiro lugar. Me sinto bem, montada na minha sela,
do alto do meu cavalo, rodeada dos meus cabras, meu coração parece
que cresce, dentro do meu peito. Mas, por outro lado, também queria
ter um homem me exigindo, me seguindo com um olho cobiçoso, com
ciúme de mim, como se eu fosse coisa dele(p. 202).
A declaração de Maria Moura aponta para o conflito do qual padece a mulher
independente e que prescinde da figura masculina. Beauvoir (1980, p. 452), em estudo
sobre a condição feminina na França do início do século XX, discorre acerca dessa
relação conflituosa que envolve, nas suas palavras, a mulher libertada:
O privilégio que o homem detém, e que se faz sentir desde sua infância,
está em que sua vocação de ser humano não contraria seu destino de
homem. A assimilação do falo e da transcendência resulta que seus
êxitos sociais ou espirituais lhe dão um prestígio viril. Ele não se
divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-
se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações
de sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a
situação de mulher libertada.
Maria Moura, embora se situe, enquanto personagem, em um tempo anterior ao
analisado pela estudiosa, enquadra-se nos moldes da mulher libertada. A personagem não
abdica da sua soberania, arduamente conquistada, nem tampouco se faz de objeto ou
presa de qualquer homem, mesmo que, na intimidade, confesse o desejo de ser como uma
coisa pertencente a um varão. Ao imitar os padrões masculinos nas relações de poder, a
protagonista renuncia à histórica condição de “complemento do homem”.
Conseqüentemente, caberá a ela se defender sozinha para sobreviver no meio hostil em
que se encontra inserida, como evidenciam suas divagações: Nem pai tenho. No que
toca à minha vida - minha vida particular - me resta ser eu mesma o meu pai e a
minha mãe. E quem sabe o meu marido” (p. 227).
Apesar da postura independente, como um senhor de baraço e cutelo, Maria
Moura terá, também, seu ponto vulnerável: o amor, para o qual ela, como o líder do
bando, está despreparada. Ao se apaixonar por Cirino, Moura se divide: terá de escolher
entre renunciar às suas reivindicações de sujeito soberano, fazendo-se objeto e presa de
um homem, como expõe Beauvoir (1980), ou manter seu domínio nas relações. O motivo
para esse impasse reside no fato de o seu amado, Cirino, por ambição e despeito, traí-la e
ao bando, ameaçando, inclusive, a Casa Forte, centro vital na constituição do poder de
Maria Moura:
Se eu perdoar e aceitar ele de volta, estou perdida de vez. Ele pode
jurar, bater nos peitos, se arrepender - mas como é que eu vou
acreditar? Como é que posso acreditar? E o mal que ele já me fez, que
não tem remédio? Eu tenho é que dar um castigo completo, pra todo
mundo ficar sabendo, no sertão: que ninguém trai Maria Moura sem
pagar depois. E pagar caro. E nesse momento enfrentei pela primeira
vez o pior: ele tem que pagar com a vida. De novo me vejo na situação
que começou com a morte de Liberato: ou é ele, ou sou eu [grifo da
autora] (p. 421).
O amor de Maria Moura por Cirino funciona como uma armadilha da qual ela não
tem como escapar. A protagonista vê-se diante do maior dilema de sua vida: elimina seu
amado e traidor ou perde o poder que detém, bem como o espaço duramente fundado.
Como, desde o princípio, seu lema foi ou é ele, ou sou eu, após uma árdua luta interior,
Moura manda matar Cirino. Novamente, a exemplo do que tinha feito com o padrasto, a
personagem trama a morte de quem desperta seus desejos, mas representa uma ameaça à
sua soberania. O fato de Cirino ser a grande paixão de Maria Moura não o isentará de
pagar com a vida pela traição cometida, como manda a lei dos jagunços:
E então, pensei comigo: e se a gente soltar o Cirino, deixar ele ir
embora. (...) Eu alego que não estou querendo briga com o pai dele. E,
quando ele já houver atravessado o portão, você que está escondido na
sombra da cerca, manda-lhe aquela mesma facada. (...) Esperei que
Valentim, passado o primeiro susto, remoesse bem a proposta. Estava
botando o compadre naquela tal situação: ou era ele, ou nós (p. 452).
Por mais que Maria Moura tente copiar o modelo masculino, tornando-se o oposto
da típica mulher patriarcal, ela não pode, contudo, deixar de ser uma fêmea. Esse é o
paradoxo crucial vivenciado por ela. Nas relações de poder, ela desempenha um papel
masculino; já, no plano afetivo, afloram os desejos femininos. A situação da personagem
vai de encontro ao que é apregoado por Beauvoir (1980, p. 452), quando ela pondera que,
“recusando atributos femininos, não se adquirem atributos viris; mesmo a travestida não
consegue fazer-se de homem; é uma mascarada”. As palavras da autora elucidam o perfil
da protagonista do Memorial, principalmente em sua luta para manter o poder.
Rachel de Queiroz resgata, no universo do século XIX, um tipo de mulher que,
para sobreviver, ajusta-se ao arquétipo masculino da violência. No entanto, em virtude da
sua condição feminina, Maria Moura capitula ao se enredar “nas tramas do coração”.
É a relação poder versus sentimento que desencadeia a dolorosa luta interior de
Maria Moura, quando ela se divide entre a “mulher apaixonada” e o “cangaceiro traído”.
Esse dilema é ilustrado na cena em que, após capturar Cirino, Moura afirma: Foi um
amor desesperado, furioso, que doía e machucava; amor de dois inimigos, se mordendo
e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em morte” (p. 447). Pela enunciação
da personagem, percebe-se que o sentimento, concretizado na relação sexual, mistura-se à
hostilidade e ao ódio na disputa pelo poder.
O sofrimento de Maria Moura, contudo, não é atenuado pela morte de Cirino. Se,
antes da morte, sua dor provinha da traição, agora, é da perda do amado que resulta seu
grande padecimento. Após o assassinato, ao pensar no meio-primo, do qual tinha sido
amante, a personagem afirma: Nem queria recomeçar a amizade com Duarte, se eu
ainda estava gemendo e sangrando pelo Cirino” (p. 469).
A morte de Cirino, a mando de quem mais o amava, é prenunciada no
agradecimento à rainha da Inglaterra, Elisabeth I, que abre o romance: A S. M.
ELISABETH I, Rainha da Inglaterra (1533-1603), pela inspiração (p. 5). A inspiração
na rainha inglesa, a quem a autora agradece, deve-se ao fato de ela, assim como Moura,
ter vivido cercada de homens e, entre o amor e o poder, ter optado pelo segundo. Maria
Moura ordenou a execução de Cirino, por quem estava perdidamente apaixonada, assim
como a rainha o fizera com o Conde Essex, a quem ela amava.
O motivo da condenação foi similar ao de Cirino: a traição. De acordo com a
história, dentre os abusos cometidos pelo conde em sua disputa pelo poder, estaria a
tentativa de um golpe para destronar Elisabeth I. Schpun (2002, p. 179) aborda a questão
da abdicação amorosa em troca da manutenção do poder, condição que aproxima a
personagem ficcional em questão da personagem histórica inglesa e que justifica o
agradecimento de Rachel de Queiroz à rainha, por ter-lhe inspirado em relação ao tema
do romance:
Tanto Elisabeth quanto Maria Moura unem poder pessoal e recusa de
vida conjugal. Não sabemos por que Elisabeth teve seus preferidos, e
nunca seu rei. Quanto a Maria Moura isso fica muito claro: sua atração
pelo padrasto Liberato traz o risco de morte e de confisco dos bens; sua
atração pelo primo Irineu traz o risco de perda da propriedade, senão o
de morte também. (...) Assumir a paixão que Cirino lhe desperta seria
uma fraqueza fatal, aquela que ele mesmo espera para inverter os
papéis e reinar não somente em seu lugar, mas sobre ela. Moura não se
deixa levar, sabe o preço de seu poder duramente conquistado, sabe
bem que este depende de sua solidão, de não transformar preferidos em
esposos, ainda que informalmente. Trazer a público bastaria. Enfim,
sua atração pelo meio-primo Duarte é bem diversa: ele é filho da negra
Rubina e do tio Xandó. Rubina é forra e (...) a barreira neste caso é
intransponível.
Chiappini (2002, p. 167), ao analisar a relação poder versus sentimento em
Memorial de Maria Moura, salienta como os conflitos decorrentes da luta pelo poder são
desencadeados pela postura contrastante de Moura em relação ao regime patriarcal:
O confronto dessa personagem “carregada de crueza”, com os seus
“preferidos”, Duarte e Cirino, exprime primorosamente o caráter
intrínseco das relações de poder, ligado a homens e mulheres em toda
sua complexidade, assim como a fragilidade das situações de ruptura,
as ambigüidades profundas que envolvem a fissura encontrada por
Maria Moura para ocupar um espaço social de poder, escapando ao
triste destino que lhe estaria reservado enquanto mulher não submissa,
disposta a defender com a vida a posse incerta da terra, num tempo e
lugar em que se gestava a tradição da grilagem em vigor até hoje no
Brasil.
O amor de Maria Moura por Cirino está na base da luta da protagonista e,
também, de sua provável morte, insinuada no final do romance. Após assinar um
testamento no qual deixa como maior beneficiário seu afilhado, a personagem parte em
uma missão suicida. O intuito é roubar o dinheiro que um grupo de marchantes utilizaria
na compra de um grande carregamento de gado no Piauí:
- Duarte, eu quero aquele dinheiro dos marchantes. A gente não pode
deixar passar tanto dinheiro assim. Duarte nem entendia direito: - A
Sinhá está falando é nos tais marchantes que vão comprar gado no
Piauí? - Deles mesmo. Que é que você acha? - Impossível. Loucura. Os
homens vêm a bem dizer num bando, com escolta poderosa de
capanga, tudo armado até os dentes (p. 474). - Não brinque, Sinhá. É
risco demais. Essa gente não brinca em serviço, primeiro atira, depois
pergunta quem é (p. 478).
Antes do referido roubo, Maria Moura, numa situação similar à de Elisabeth I,
repassa os bens que conseguiu amealhar para um parente próximo, uma vez que ela não
constituiu família. O assalto aponta para a morte da protagonista. Também em vários
trechos que antecedem os momentos finais de Memorial de Maria Moura, é insinuado o
possível fim da personagem, conforme atestam os fragmentos seguintes:
E se eu não agüentar, paciência; se o sangue pisado aqui dentro me
matar envenenada - pois bem, eu morro! Vou morrer um dia, afinal.
Todo mundo morre. Mas quero morrer na minha grandeza(p. 421). -
Mas um dia vem um imprevisto e aí vai-se tudo por água abaixo! E não
é uma “parelha” metida no fogo: é a sua vida que está arriscando,
Sinhá! - E eu estou me importando em salvar esta desgraça de vida,
Duarte? (p. 479). Saltei na sela. Mas, antes de dar partida, me dobrei
sobre o pescoço do cavalo e disse, olhando nos olhos de Duarte: - Se
tiver que morrer lá, eu morro e pronto (p. 482).
Coerentemente com sua condição de jagunça, Maria Moura afronta a morte sem
temor: Mas ficando aqui eu morro muito mais. Saí na frente, num trote largo. mais
adiante, segurei as rédeas, diminuí o passo do cavalo, para os homens poderem me
acompanhar (p. 482). Ao cavalgar gloriosa rumo ao seu provável fim, a protagonista
encerra a sua saga dentro do melhor estilo heróico. Bakhtin (2000, p. 145) analisa os
elementos estéticos que, na obra literária, permitem relacionar o herói à sua morte:
Quanto mais profunda e perfeita for a encarnação, melhor ouviremos os
sons intensos do acabamento operado pela morte, ao mesmo tempo que
a vitória estética sobre a morte, o combate da memória contra a morte
(a memória entendida como tensão que se exerce sobre os valores e
como fixação e aceitação que se operam sem levar em conta o sentido).
Uma tonalidade de réquiem acompanha ao longo de toda a vida o herói
que se encarnou.
Sob esse prisma, Maria Moura se encaixa nos moldes do herói literário analisado
pelo teórico. A encarnação da sinhazinha que se transformou em jagunça foi profunda e
perfeita, pois os sons intensos da morte ecoam em vários momentos de sua jornada. A
morte, contudo, não representa o fim para o herói. Ela é concebida como uma das etapas
da vida, fato evidenciado por Moura, quando anuncia: Vou morrer um dia, afinal. Todo
mundo morre. Mas quero morrer na minha grandeza” (p. 421).
Bakhtin (2000) alude ao poder da palavra em perpetuar o narrado. Esse poder é
evidenciado na obra de duas maneiras: primeiramente, na enunciação de Maria Moura
acima reproduzida, em que ela afirma que deseja morrer na grandeza, ou seja, perpetuada
por seus feitos de bravura, na memória daqueles com os quais conviveu; e, também, no
próprio tulo do romance. Este, por ser um memorial, provoca a lembrança no leitor,
lembrança de uma personagem cuja morte provável se eternizou na grandeza de sua
história narrada, mesmo esta sendo ficcional, assim como a sua protagonista.
O epílogo da obra resgata, novamente, o mito da donzela-guerreira, acentuando o
heroísmo de Maria Moura. A cena final do romance, na qual a protagonista lidera o seu
bando de jagunços, cavalgando gloriosamente, é similar à histórica passagem em que
Joana d’Arc, a mais famosa das donzelas-guerreiras, comanda, no culo XV, o exército
francês contra a Inglaterra. É o que se apreende da abordagem de Galvão (1998, p. 13):
É notável sua atuação de liderança na guerra contra o invasor inglês do
século XV, quando, em atenção às vozes que ouvia, corta os cabelos e
conduz as hostes francesas vestida de soldado. Hoje é impossível
pensar em Joana d’Arc sem o cavalo branco e a armadura também
branca, empunhando o estandarte.
Essa similaridade entre Maria Moura, heroína ficcional, e Joana d’Arc, histórica
donzela-guerreira, torna-se ainda maior, quando se depara com a perpetuação do narrado
por meio da palavra, tal qual sugere Bakhtin (2000). De maneira semelhante ao que
ocorre com a personagem do Memorial, com sua morte, Joana d’Arc se eternizou no
imaginário popular pela grandeza de sua história narrada. É o que se constata, quando
Galvão (1998, p. 13) menciona a grande freqüência com que a heroína francesa não
somente é lembrada, como também estudada e referenciada em obas literárias,
perpetuando, assim, a célebre história da guerreira que, após a morte, foi declarada como
santa por seus executores.
Em nosso horizonte, o caso mais divulgado é, sem dúvida, o de Joana
d’Arc, a Donzela de Orléans, cujo epíteto acentua pureza e virgindade.
Eça de Queirós, examinando a evolução de sua legenda, fala em
cerca de três mil trabalhos a ela dedicados. (...) Voltaire, autor do
poema La Pucelle d’Orléans, ainda conseguiu vê-la de modo diferente
no Setecentos. Cumprindo uma missão, como típica donzela-guerreira,
foi excomungada pela Igreja e queimada na fogueira como bruxa aos 19
anos, para mais tarde virar santa e ser canonizada pela mesma Igreja.
Ao se analisar a obra Memorial de Maria Moura, é possível constatar que a
ideologia patriarcal impregna o seu eixo narrativo. A protagonista, ao romper com a
submissão feminina típica da organização patriarcal, transmigra da posição social de
sinhazinha à de jagunça, ocasionando a transgressão dos valores vigentes. Transgressão
esta, contudo, que se dá pelo continuísmo da ideologia patriarcal por meio de uma mulher
que reproduz o modelo masculino nas relações de poder, principalmente ao encarnar o
papel de senhor de baraço e cutelo.
2. DE SENHORINHA A SENHORA
Em 1975, Rachel de Queiroz publica Dôra, Doralina, romance narrado em
primeira pessoa pela personagem-título. A obra é dividida em três partes - O livro de
Senhora, O livro da Companhia e O livro do Comandante -, sendo o sertão nordestino da
primeira metade do século XX o cenário em que é ambientada a maior parte da trama.
Seu eixo narrativo contempla a trajetória de Dôra, órfã de pai, que vivencia, desde
menina, um relacionamento conflituoso com a mãe, a Senhora: tema recorrente ao longo
de toda a narrativa. A protagonista, após perder de maneira trágica o primeiro marido,
abandona a fazenda Soledade, no sertão do Ceará, e parte rumo à capital, onde, numa
espécie de rito de passagem, atua temporariamente como atriz de teatro mambembe e
conhece o Comandante, que será seu segundo marido. Com a morte deste, ela retorna
para a fazenda em que nasceu.
Apesar da trama de Dôra, Doralina transcorrer na primeira metade do século XX,
é possível observar como os resquícios da ideologia patriarcal ainda permanecem na
sociedade da época, especialmente no universo sertanejo, ao qual a obra se reporta. A
herança dessa ideologia se faz presente, principalmente, na enunciação das personagens.
Estas, ao relatarem suas experiências ou expressarem conceitos machistas, desvelam as
convicções típicas do patriarcalismo.
Bakhtin (1999, p. 128-9), ao abordar o tema da enunciação, discorre acerca das
convicções que, a exemplo da obra em análise, são abarcadas pela enunciação:
O tema da enunciação é determinado não pelas formas lingüísticas
que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou
sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não
verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da situação,
estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se
perdêssemos suas palavras mais importantes. O tema da enunciação é
concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence.
Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como
fenômeno histórico, possui um tema.
Considerando o que afirma o pensador, não são unicamente as palavras, quando
em sua exteriorização, que integram a enunciação. algo subjacente a elas que se faz
determinante para a sua compreensão. São os chamados elementos da situação que, num
momento histórico, fazem-se cruciais para a condução dos enunciados, vindo a compor o
tema da enunciação. Este, ao mesmo tempo em que se “esconde” nos diálogos, também
os estimula. Os resquícios ideológicos herdados do regime patriarcal, subjacentes à
enunciação das personagens em Dôra, Doralina, apontam para o tema da enunciação
discutido por Bakhtin (1999).
2.1 - Senhora: a matriarca da Soledade
Nessa obra, os vestígios do patriarcalismo são marcantes, principalmente na figura
da Senhora, a mãe da protagonista, que, após a viuvez, continuidade ao modelo
patriarcal, ocupando, então, o lugar que tinha sido de seu marido na condução da fazenda,
da família e dos agregados. É o que se depreende das lembranças de Dôra:
Senhora era na sua lida, determinando o trabalho dos homens junto
com Antônio Amador; ou na queijaria botando o coalho no leite,
serviço que ela não confiava a ninguém; ora ralhando com as cunhãs:
- Menina, varre esse terreiro direito, menina manda Xavinha botar
abaixo a barra da tua saia que já estás andando com os gorgomilos de
fora! Zeza, vai mudar a água das flores no jarrinho da santa na
sala, Luzia, me um caldo, Luzia me côa um café. (...) Sábado de
tarde Senhora ficava horas e horas na salinha das contas preparando
a féria dos homens, anotando os dias de trabalho, descontando os
adiantamentos e as compras na caderneta do Fornecimento,
decifrando os garranchos e de Antônio Amador (p. 47).
O poder da Senhora na condução da família e na administração da fazenda advém
da sua condição de viúva. O seu discurso reproduz os chavões populares a respeito dessa
condição: “- Nisso tudo, peço que se lembrem de que eu não tenho quem chore por mim;
sou uma viúva sozinha. (...) - Mulher viúva é o homem da casa. (...) - e viúva é mãe
e pai” [grifo da autora] (p. 24-5).
Barbosa (1999, p. 71) afirma, a propósito de Dôra, Doralina, que a organização
da fazenda cabe à Senhora, donde advém a sua importância na constituição desse espaço:
“Quem administrava Soledade era Senhora e o fazia com grande habilidade. Sabia como
lidar com a terra, tirando da agropecuária os meios de subsistência. Era através dela que
mantinha com simplicidade, mas com conforto, a casa e a educação da filha”.
Enquanto matriarca da família, a Senhora incorpora o papel de um coronel. Essa
semelhança remete à análise de Faoro (2001, p. 713-4) a respeito das práticas coronelistas
no Brasil:
O homem do sertão, da mata e do pampa sabe que o chefe manda e ao
seu mando se conforma, sem que o socorra, para levantar o quadro de
domínio, a idéia de representação. (...) Quem tem chefe não delibera,
ouve e executa as ordens. O dissenso não se abrigará na liberdade
reconhecida de opinião, senão que caracteriza a traição, sempre
duramente castigada.
Em Dôra, Doralina, é evidente a conformidade e a aceitação dos subalternos em
relação às ordens impostas pela Senhora, de maneira muito similar à dos camponeses em
relação aos governantes e coronéis, conforme o relato do autor. De maneira análoga, os
agregados da fazenda Soledade não se opõem às vontades da chefe. As represálias para os
que ousarem se opor à opinião da Senhora são muito semelhantes ao tratamento dado
pelos coronéis aos castigados, como se evidencia na seqüência:
Embora de certa forma eu confiasse na interferência de Senhora, e ela
era muito mulher para obrigar o delegado a aplicar uma dúzia de
bolos na maldizente, apesar de agora não ser como nos velhos
tempos, quando ela fez darem uma surra numa cunhã que fugiu da
Soledade e andou falando mal da casa. Mas ainda hoje o delegado era
amigo dela, vinha na fazenda aos domingos trazendo a arapuca
debaixo do braço, apanhar canários-da-terra para as suas gaiolas (p.
108).
Esse exemplo evidencia como a Senhora, de modo semelhante ao dos coronéis,
não admite a liberdade de expressão às cunhãs, nem aos demais subalternos. A
enunciação da protagonista revela ainda uma relação de cumplicidade entre a Senhora e o
delegado. O relacionamento mantido entre ambos aponta para mais uma prática
coronelista: a permuta de favores entre o setor público e o privado. É em nome da
amizade da Senhora que o delegado castiga quem se opõe a ela. A matriarca, por seu
turno, retribui o gesto, afrouxando a intransigência que lhe é típica, ao permitir que ele
faça suas caçadas na fazenda. Essa troca de favores mantida entre o setor público e o
privado, inerente à estrutura coronelista, é analisada por Leal (1975, p. 20), na obra
Coronelismo, enxada e voto:
O “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos
entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente
influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras.
Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa
estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações
de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.
Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são
alimentados pelo poder público, e isto se explica justamente em função
do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode
prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é
incontestável.
Em sintonia com a abordagem do pesquisador, as intenções eleitoreiras do
governo subjazem à relação entre o público e o privado que ele mantém com o coronel.
Essa relação confere ao coronel o poder que ele cobiça. O referido estudioso trata essas
manifestações de poder exercidas pelos coronéis como remanescentes de privatismo. Elas
se configuram como resquícios deixados pelo sistema privatista. No que concerne à fase
áurea do privatismo, Leal (1975, p. 251) observa que “o sistema peculiar a esse estágio, já
superado no Brasil, é o patriarcalismo, com a concentração do poder econômico, social
e político no grupo parental” [grifo nosso].
Ao qualificar as práticas coronelistas como remanescentes da esfera privatista e ao
conceituá-las como peculiares ao patriarcalismo, o teórico atribui ao sistema coronelista
um caráter de continuísmo das condutas herdadas do regime patriarcal. Tendo por base
essas afirmações, pode-se afirmar que a postura coronelista assumida pela Senhora resulta
do continuísmo da ideologia patriarcal, ainda remanescente na obra.
O que mais evidencia a postura coronelista da Senhora é a maneira com que ela
determina o voto de seus agregados nas eleições municipais. De acordo com Dôra, sua
mãe não admite o sufrágio universal aos seus subordinados, impondo o seu voto a todos
eles: Ela [Senhora] não gostava de Governo, mandava sempre votar na oposição, ai do
eleitor seu que se atrevesse a dar um voto ao nosso inimigo, o prefeito das Aroeiras.
Senhora costumava até mandar recados ao homem: ‘A revolução vem aí!’” (p. 34).
A conduta da Senhora se aproxima da análise de Leal (1975, p. 23), quando ele se
refere ao poder de influência do coronel sobre o voto dos camponeses que lhe são
subordinados:
Qualquer que seja (...) o chefe municipal, o elemento primário desse
tipo de liderança é o “coronel”, que comanda discricionariamente um
lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe
prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação
econômica e social de dono de terras. Dentro da esfera própria de
influência, o “coronel como que resume em sua pessoa, sem substituí-
las, importantes instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla
jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e
proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados
respeitam [grifo do autor].
Exercendo sua autoridade na Soledade, a Senhora também se vale do voto de
cabresto. Essa mazela política brasileira é ilustrada no romance pelo jogo de interesses da
política municipal. A Senhora manipula seus agregados e persegue os que não se
comportam como “eleitores de cabresto”, como explicita o tom de ameaça supracitada.
A oposição da Senhora e, conseqüentemente, de todos os seus agregados em
relação ao prefeito de Aroeiras funciona de forma análoga às rixas políticas criadas pelos
coronéis. Essa semelhança torna-se ainda maior, quando Leal (1975) frisa que, ao
articular estratégias eleitorais, o coronel tenciona ter benefícios que atendam aos seus
interesses. Dôra, Doralina desvela, pelas práticas da Senhora, a estreita ligação entre o
setor público e o privado, em sintonia com o fenômeno coronelista. A Senhora, além de
manter uma relação de cumplicidade com o delegado local, articula uma rixa política, ao
manipular “votos de cabresto” contra o prefeito a quem ela se opõe. O motivo pelo qual a
Senhora se vincula ao poder público é a busca de obtenção de algum privilégio.
2.2 - A bastardia no modelo patriarcal
Outro resquício da organização patriarcal é desvelado, quando Dôra se recorda do
tratamento dispensado por sua mãe ao agregado Antônio Amador, seu provável primo
bastardo:
Antônio Amador tinha juízo, acostumado à dura disciplina de Senhora.
Falavam que ele era nosso parente, filho natural de um irmão de meu
pai, tio Jacinto, o estróina que tinha morrido de beber. Se era verdade
não sei, mas o menino foi criado de pequeno na casa de minha avó, e
meu pai, quando se casou e tomou conta da fazenda, o fez vaqueiro da
Soledade. E se ele era filho de tio Jacinto então a mãe devia ser muito
escura, porque Antônio Amador era de cor fechada, apesar do cabelo
bom. Aliás, mesmo que ele tivesse sangue nosso nunca alegou isso; e
então depois de cair nas unhas de Senhora, debaixo da lei que ela
decretava toda vez que falava que Fulano ou Sicrano tinha sangue de
família tal: - Filho das moitas não tem família(p. 186).
Na esteira da rigorosa moral patriarcal, a fala coronelista da Senhora contrapõe o
universo familiar e o mundano. Essa dicotomia é ilustrada pela metáfora “cama versus
moita”. Sob essa perspectiva, a cama representa a verdadeira descendência do patriarca,
fruto dos trâmites conjugais socialmente convalidados. A moita, ao contrário, vincula-se
aos relacionamentos extraconjugais que, resultando em filhos bastardos, como Antônio
Amador, não confere nenhum direito à paternidade e aos bens.
O intuito da postura da Senhora é manter o poder conquistado dentro do seu grupo
parental. Neste, a personagem não admite a intromissão de quem, socialmente, não
representa a verdadeira descendência da família tradicional. A moral que exclui o
bastardo, não somente do círculo familiar, mas também da organização social da elite, é
abarcada pela enunciação da Senhora, embora ela deposite grande apreço em Antônio
Amador, seu agregado de confiança.
Na fala da Senhora, são concretizados os anseios de conquista e manutenção de
poder. Vogt (1989, p. 80) afirma que “as diferenças sociais resolvem-se na língua por
uma necessidade comum a todos os homens, a necessidade de comunicar”. A postura da
personagem revela a conduta inerente aos “nobres senhores de terra” que, ascendendo ao
poder patriarcal, nele querem se manter. Subjacente à enunciação da Senhora, encontra-se
a busca da classe dominante pelo benefício que pode usufruir por meio das relações que
mantém. Ao mesmo tempo em que busca o benefício, tal classe propaga valores
excludentes na sociedade, que, reproduzidos pela linguagem, afastam a possível
competição dos grupos menos privilegiados, como o dos filhos bastardos, no domínio
econômico e político.
A Senhora, ao manter o poder estritamente dentro do círculo familiar, no qual é
soberana, corporifica a preocupação central do patriarcalismo. É característico do regime
de economia patriarcal concentrar o poder econômico, social e político unicamente dentro
da família do patriarca. A Senhora, ao negar qualquer direito ao filho das moitas, reduz as
chances de ele ascender a uma posição privilegiada, numa sociedade que ainda conserva
no grupo parental o principal fator de projeção sócio-político-econômica.
O não reconhecimento da paternidade dos filhos ilegítimos é herança do sistema
patriarcal escravista, no qual tal conduta foi uma constante, conforme atestam os estudos
de Freyre (1984, p. 372):
Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de
conservar filhos maricas ou donzelões. (...) O que sempre se apreciou
foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro,
como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não
tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital
paternos.
Por uma questão econômica, o senhor de engenho era estimulado, desde menino,
a ter filhos ilegítimos com as escravas. Como os negros eram tidos como uma
mercadoria, a prole das escravas só viria a aumentar o patrimônio da família patriarcal ou,
como destaca o sociólogo, o seu “rebanho”. Contudo, o destino dos filhos bastardos nem
sempre foi engrossar a mão-de-obra das senzalas. Ainda, conforme mostra Freyre (1984,
p. 122-3), houve os que receberam um tratamento similar ao da prole oficial do senhor,
mas houve, também, muitos filhos ilegítimos que foram abandonados, em decorrência,
principalmente, do descaso do pai.
O intercurso sexual de brancos dos melhores estoques - inclusive
eclesiásticos, sem dúvida nenhuma, dos elementos mais seletos e
eugênicos na formação brasileira - com escravas negras e mulatas foi
formidável. Resultou daí grossa multidão de filhos ilegítimos -
mulatinhos criados muitas vezes com a prole legítima, dentro do liberal
patriarcalismo das casas-grandes; outros à sombra dos engenhos de
frades; ou então nas “rodas” e orfanatos.
Pela abordagem do teórico, percebe-se que, dentro do regime escravocrata, os
filhos ilegítimos não foram gerados exclusivamente pelos senhores de engenho. A
existência, inclusive, de padres como genitores vem a reforçar a exploração sexual da
negra e da mulata, aspecto marcante do contexto patriarcal brasileiro.
A mentalidade difundida durante a escravatura isentava o homem branco da
responsabilidade pela paternidade dos seus filhos bastardos. Mesmo com a abolição da
escravidão, a responsabilidade pelo filho ilegítimo incidiu somente sobre a mãe. Era
facultado ao homem reconhecer a paternidade dos bastardos somente se ele assim o
desejasse. As leis vigentes não o obrigavam a reconhecer os filhos oriundos de seus
freqüentes relacionamentos extraconjugais.
Em Sobrados e mucambos, Freyre (2000) relata como, após o regime
escravocrata, a responsabilidade sobre os filhos bastardos foi atribuída apenas às mães.
Na maioria dos casos, eles continuaram a ser gerados por mulheres negras e mulatas,
mesmo após a abolição. Em sintonia com a análise de Freyre (2000, p. 640), as vítimas do
abuso sexual do homem somente trocaram de condição social, passando de escravas para
mulheres livres, mas pobres:
L. Couty, no seu L’Esclavage au Brésil, registra o caráter maternal de
famílias que conheceu no Brasil, entre as mesmas camadas de
população: filhos que só conheciam a mãe, ignorando os pais
biológicos. Eram criados pela mãe. De algumas dessas se sabe que
fizeram dos filhos doutores ou bacharéis; e o conseguiram vendendo
doces ou frutas em tabuleiro ou quitanda, cozinhando em casa ou
sobrados de ricos, ou, menos, puritanamente, aceitando o amor de
brancos opulentos que as enchiam de regalos. Parte desses regalos é
que as mais profundamente maternais souberam destinar à educação
dos filhos, principalmente daqueles mais brancos que elas, mães. Esses
filhos mais brancos que as mães, Wetherrell, na cidade de Salvador,
notou serem objeto de orgulho materno das negras.
No relato do pesquisador, percebe-se que, mesmo não dispondo do auxílio
masculino, muitas mães pobres se esmeraram em criar os filhos. Muitas delas, inclusive,
foram bem sucedidas nessa tarefa, conseguindo garantir um futuro promissor aos seus
filhos.
Em Dôra, Doralina, Rachel de Queiroz volta-se para uma característica muito
comum ao longo de toda a tradição patriarcal. De modo análogo ao da Senhora, muitos
chefes de família se responsabilizaram por criar os filhos ilegítimos de seus parentes,
principalmente quando estes perdiam os pais. É o que relata Candido (1951, [s.n.]) em
estudo sobre a família brasileira:
Uma prática que favorecia o reconhecimento de filhos ilegítimos e
institucionalizou o abastardamento em certa extensão foi a criação de
filhos de outros parentes. Nas velhas famílias, era freqüente que os
avós criassem seus netos, os tios aos sobrinhos e, as pessoas em geral,
criar crianças de parentes. Não eram casais sem filhos que cuidavam
de órfãos, mas pais com prole davam uma criança e tomavam outra,
numa espécie de troca que indicava a ampla estrutura do sistema de
parentesco, e talvez funcionasse para reforçá-la. Os filhos ilegítimos se
beneficiavam com isso diretamente, pois em alguns casos era quase
uma obrigação criar e educar a prole de um parente. (...) A prova disto
é a freqüência relativa com que, em algumas partes do país, são
encontrados membros de velhas e importantes famílias que têm traços
indígenas e negros. São famílias tais como aquela originada pelo
consórcio de um oficial português com a filha ilegítima mulata de um
extremamente rico Vaz de Barros, em São Paulo, durante o século
XVII; ou do casamento de João Pires de Campos, nas mesmas
condições.
Candido (1951, [s.n.]) avalia que, no período patriarcal, a despeito dessa
obrigação moral dos familiares cuidarem da prole ilegítima, a exclusão social não deixou
de ficar implícita à condição do bastardo:
Na maioria dos casos, porém, os frutos de uniões irregulares eram
excluídos do círculo doméstico. Ou permaneciam escravos como suas
mães, ou estabeleciam famílias humildes, mas regulares como no caso
muito significativo, relatado por Manuel da Fonseca, do filho ilegítimo
de Amador Bueno, casado com uma escrava índia ou mameluca que,
deste modo, adquiriu sua liberdade e estabeleceu uma casa honrada. Se
não prevalecia nenhuma destas alternativas, os filhos ilegítimos, como
os libertos, eram excluídos da periferia do grupo familiar e eram
incluídos aos elementos menos considerados da população,
contribuindo para a formação da grande massa dos degradados
socialmente, os vagabundos e elementos desordeiros, que constituíram
grandes porções de nossa população no século XIX. Com a cessação
das bandeiras e a corrida do ouro, a massa dependente de homens livres
desempregados, a maioria deles mestiços, ficaram gradualmente
separados dos grupos que mantinham, isto é, das famílias patriarcais às
quais serviam como agregados e tornaram-se um estrato social amorfo e
anônimo que encontramos mencionado com apreensão nas cartas dos
capitães generais da segunda metade do século XVIII.
A adoção do filho ilegítimo pelos familiares de seu genitor não era obrigatória.
Mesmo quando esta ocorria, o bastardo não passava a ser considerado um parente, mas
somente um agregado, o que ocorre no romance em estudo.
Um outro exemplo de bastardia, mas, ainda, no contexto da escravidão, é o do
personagem Duarte, de Memorial de Maria Moura. Conforme discutido no capítulo
anterior, um dos impedimentos para que Maria Moura veja Duarte como um possível
marido, e não apenas como um amigo e amante eventual, é o fato de ele ser mulato, filho
ilegítimo de um tio de Moura com uma escrava. Portanto, Duarte, além de ser mestiço, é
bastardo, ou seja, um filho das moitas, sem nome ou direitos, assim como Antônio
Amador.
A distinção entre filhos legítimos e ilegítimos presente no eixo narrativo das obras
em estudo se fez marcante em toda a época patriarcal e os vestígios dessa distinção
permaneceram na estrutura social brasileira até pouco tempo atrás. Apenas na
Constituição de 1988, por meio do Art. 227, § 6.º, a prole oriunda de relacionamentos
extraconjugais passou a ser reconhecida em termos de igualdade com os filhos tidos
como legítimos: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,
terão os mesmos direitos e qualificação, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação” (BRASIL, 1999, p. 126). A ratificação dessa lei foi ainda mais
recente. Ela se deu somente no ano de 2000, pelo Art. 1607, caput, do Código Civil
Brasileiro.
2.3 - Caos e jaguncismo no sertão
O movimento do cangaço, que permeia o eixo narrativo de Memorial de Maria
Moura, deixa vestígios em Dôra, Doralina. Estes são marcantes, principalmente em
Delmiro, que um dia apareceu no terreiro da fazenda, febril e com grave ferimento à bala
no ombro direito. Dôra, à revelia da autoridade da Senhora, abriga-o, trata de seu
ferimento e ele passa a viver nas terras da Soledade, retribuindo esse gesto com carinho e
uma fidelidade absoluta. Ante a atenção e os cuidados dispensados por Dôra, Delmiro lhe
“confessa” que havia sido jagunço e que o ferimento que quase o matara resultou do
confronto com a polícia.
O grupo com quem [Delmiro] andava é verdade que se aliou com os
provisórios, mas logo se fizeram de bandidos, aproveitando a ocasião,
a munição e as armas. Começaram roubando uns cavalos, depois se
passaram a roubar gado, começou a perseguição e se viram
obrigados a largar os animais e entrar a na caatinga. Assaltaram
uma bodega, e então a polícia formou um volante, expresso para dar
caçada a eles; brigaram muitas vezes com os soldados, escapavam,
mas sempre perdendo um companheiro, e dos nove que eram em
começo, no fim só estavam em quatro (p. 36).
A conduta de Delmiro, bem como do bando ao qual ele pertencia antes de se
refugiar na Soledade, aponta para o banditismo. São recorrentes, ao longo de toda a
história social e política do meio rural brasileiro, vários tipos de banditismo. Dentre estes,
destacaram-se, além do cangaceiro livre, o jagunço e o cangaceiro manso. Dória (1981, p.
23-4) esquematiza um breve histórico de como se chegou a esse quadro criminal no
sertão brasileiro do século passado:
Durante um longo período os grandes proprietários sertanejos se
digladiaram para conquistar o direito de figurarem como autoridade
governamental em sua área de domínio, para serem os coronéis da
Guarda Nacional. (...) A autoridade dos coronéis fundava-se,
basicamente, na capacidade de fazer cumprir suas decisões e impô-las,
ainda que pela força, às demais facções ou parentelas. (...) Tais
situações resultavam freqüentemente na formação de bandos armados,
em especial quando o coronel que liderava contava com as boas graças
do governo e, por isso, conseguia mobilizar mais gente e gozar de
impunidade perante o poder. A formação de milícias privadas era,
nestas circunstâncias, o recurso de poder mais visível. Elas, além dos
parentes, reuniram dois tipos de elementos. Em primeiro lugar, o
jagunço, uma espécie de guarda-costas do senhor, que em geral era um
trabalhador com antecedentes criminais, ou um pistoleiro profissional,
que vivia sob a proteção do coronel em troca de serviços de natureza
militar. Em segundo lugar, o cabra ou cangaceiro manso - um
morador comum, que trabalhava na terra ou na lida com o gado, cujo
contrato de trabalho implicava a defesa incondicional do senhor [grifo
do autor].
Além dos cangaceiros livres, que não se submetiam à ordem, havia os bandidos
contratados pelos coronéis. A autoridade facultada pelo governo a alguns bandos
contribuiu para a expansão do banditismo nesse período, o que evidencia como a
criminalidade no Brasil se deu, muitas vezes, com a conivência dos representantes da lei e
com o apoio do poder coronelista dos membros da Guarda Nacional.
O estudioso supracitado ressalta que Lampião teve a sua inserção criminal
facultada pela sua condição anterior de jagunço. Antes de se tornar um cangaceiro
autônomo e líder de um poderoso bando, Lampião tinha sido um jagunço contratado pela
família Pereira, detentora de grande área de terras no sertão pernambucano do início do
século XX. Dória (1981, p. 24) analisa, também, a relação mantida entre o coronel e os
seus bandidos:
A formação dessas milícias nos dão a dimensão exata das relações de
dependência do homem livre e pobre em relação à sociedade patriarcal
dominante: o compromisso do jagunço ou cangaceiro manso com a
violência desencadeada pelo coronel, em contendas que visavam fins
pessoais, tinha, como contrapartida, a certeza de impunidade e a
proteção contra os inimigos e as autoridades públicas [grifo do autor].
Tanto o cangaceiro manso quanto o jagunço, ambos citados pelo autor, eram
subordinados aos caprichos dos coronéis, devido à falta de perspectivas na organização
patriarcal, motivo idêntico para o ingresso na criminalidade de muitos cangaceiros livres.
Pela abordagem do historiador, percebe-se que o banditismo se configura como um
fenômeno que está mais relacionado às injustiças sociais do que à ambição pelo poder ou
à maldade inerente à figura do bandido, aspecto este ficcionalizado por Rachel de
Queiroz nas obras em estudo, principalmente por meio da personagem Delmiro e,
também, Duarte e Valentim, no Memorial.
A temática do jagunço está presente em outras obras da Literatura Brasileira,
como em Chapadão do bugre, de Mário Palmério; em Angústia, de Graciliano Ramos, na
personagem José Bahia; em Fogo morto, de José Lins do Rego, no bando do Cabo Preto e
na personagem Antônio Silvino, além de boa parte da obra de Guimarães Rosa. Grande
sertão: veredas, por exemplo, tem no cangaço o mote principal para que o autor discuta,
além das mazelas sociais, a temática do bem e do mal: aspecto relevante na discussão
efetuada pelo romance.
Outro vestígio do cangaço se refere ao sargento que tenta prender Delmiro: O
sargento do volante era um sujeito, além de muito perverso, opinoso; antes de entrar na
polícia tinha andado pelo cangaço, foi preso e, para ser perdoado, sentou praça” (p. 36).
Dentro da ordem vigente, o sargento representa a força oficial. Entretanto, no passado, ele
integrou o cangaço, o que ilustra a tênue barreira entre a legalidade e a ilegalidade na
formação da sociedade brasileira.
A segunda parte do romance, intitulada O livro do Comandante, transcorre, quase
toda, no Rio de Janeiro, onde Dôra passa a viver em companhia do Comandante. Ali, sob
outro prisma, evidencia-se o tênue limite entre a legalidade e a ilegalidade, tema
paradigmaticamente exemplificado pelo policial Bigode: muito mal-encarado e mal-
afamado (p. 205), que transita pelas vias ilegais, envolvendo-se com contrabandos e
extorsões do jogo do bicho. Bigode, inclusive, tenta persuadir o Comandante a lhe pagar
propina para não apreender as mercadorias contrabandeadas por este.
A intenção do policial é explicitada, quando Dôra narra a proposta que ele faz ao
seu marido na academia de tiro ao alvo, onde o Comandante é instrutor: o emprego
funciona como um disfarce para a sua verdadeira atividade, que é a de contrabandista. O
Comandante, em verdade, tinha sido expulso da Marinha pelo mesmo motivo: ele usou
seu cargo de comandante de um navio que atravessava o Rio São Francisco, onde Dôra o
conheceu, para contrabandear pedras preciosas.
O cara [Bigode] nesse dia entrou na Academia, nem se deu mais ao
trabalho de apanhar arma e ir pro galpão de tiro - devia estar
convencido de que jamais seria capaz de acertar num bonde a dois
metros de distância. Era o pior atirador do mundo, e assim mesmo se
dizia policial! - mas chegou-se ao Comandante com uma proposta -
que havia alguns “cabeça-vermelha” que estavam abusando muito
desse negócio de proteção, achavam que podiam arrastar tudo
sozinhos, mas também havia muita gente com vontade de entrar no
bolo... Gente que tinha igualmente o seu direito, gente de fiscalização,
os responsáveis por certos setores de vigilância da entrada de
mercadoria legal... E vinha agora o pior: O pessoal dele tinha sido
informado da chegada para breve, de uma grande partida de
penicilina, e exigiam o seu quinhão. Senão apreendiam (p. 206-7).
Como não consegue suborná-lo, Bigode denuncia o Comandante. De negociações
ilícitas como essa, ao que tudo indica, resultou a morte do policial. É o que se depreende,
quando o Chefe Conrado conta a Dôra sobre a morte de Bigode, atribuindo-a aos
bicheiros a quem o policial extorquia.
- Aquele Bigode! Coitado, acabou mal, vocês souberam? O
Comandante se sabia não deu mostras e o Chefe Conrado continuou: -
Sumiu, levou mais de semana desaparecido; afinal pescaram um corpo
na baía, identificaram, era ele; aliás, quase não se podia fazer a
identificação, estava todo comido de siri. O Comandante comentou,
meio engasgado: - Que coisa! E o Chefe Conrado: - Você sabia
também, não é? Ele vinha achacando o pessoal do jogo do bicho no
morro de São Carlos. Um dia a turma se encheu, lá se foi (p. 225).
Várias personagens de Dôra, Doralina ilustram a sutil fronteira existente entre o
legal e o ilegal na sociedade brasileira. Além do sargento cearense e do policial carioca, o
próprio Comandante personifica o trânsito pela ilegalidade mantido pela força oficial. Ele
transgredia as leis vigentes, mesmo sendo integrante das Forças Armadas. O Chefe
Conrado também atua pelas vias ilegais. Apesar de ser capitão da polícia, Conrado se
torna cúmplice do Comandante, encobrindo o contrabando em troca de dinheiro.
Voltando à questão do jaguncismo, o universo caótico do sertão fica evidente no
relato que Delmiro, por exigência da Senhora, faz sobre como chegou à fazenda.
Delmiro, meio gaguejando, contou a Senhora o que me contara:
(...) os revoltosos passaram pelo Piauí e se encontraram com ele. Foi
iludido com as conversas dos revoltosos, lhe jurando que o Governo
tinha perdido a guerra, que a revolução estava vencedora e que até
mesmo o padre Cícero tinha mandado o seu pessoal combater ao lado
da Coluna Prestes. Ele se entusiasmou, entregou os burros (recebeu
um papel de requisição), deram-lhe arma e munição e ele seguiu
acompanhando o bando. Mas na viagem, até a chegada ao Ceará, foi
descobrindo as mentiras: a Coluna não estava vencendo nem nada,
estava era sendo perseguida, tinham até prendido o Juarez que todo o
mundo tinha grande nele, e agora estava tudo desanimado. E o pior
é que o Padre Cícero continuava contra os revoltosos e tinha mesmo
abençoado os provisórios do governo para combaterem a Coluna (p.
33).
O episódio narrado por Delmiro condiz com os fatos históricos. A Coluna Prestes
foi uma rebelião militar liderada por Luiz Carlos Prestes contra o presidente da
República, ocorrida dentro de um movimento chamado tenentismo. A Coluna passou por
várias fases, entre abril de 1925 e março de 1927, e trouxe conseqüências marcantes para
o contexto militar brasileiro até o início da década de trinta.
A narração de Delmiro vai de encontro, principalmente, à postura assumida pelo
padre Cícero em relação à Coluna. Ele não esteve ao lado dos rebeldes. Inclusive, foi por
intermédio do padre Cícero que, ironicamente, Lampião recebeu do governo o título de
capitão, com o objetivo de combater os revoltosos da Coluna Prestes, fato que nunca veio
a ocorrer.
Ao estudar esse embate entre cangaceiros e tenentistas, Machado (1978, p. 58-9)
descreve os esforços empreendidos por Padre Cícero na luta contra a Coluna Prestes:
Ao que tudo indica, Padre Cícero, que a princípio não queria
envolvimento nessa luta, começou a ver as coisas, sob o ponto de vista
político. (...) Ora, sendo muito amigo de Lampião, como dos
cangaceiros de um modo geral, viu a possibilidade de reintegrá-los à
sociedade, fazendo deles homens que iriam defender o governo contra
os rebeldes. Resolveu, então, em acordo com Floro Bartolomeu, dar ao
Rei do Cangaço o título de capitão. E foi para Pernambuco que
Lampião se dirigiu, para receber o título, que lhe seria fornecido pelo
Governo Federal. (...) Faltava, entretanto, ali, para dar cunho de
legalidade ao ato, a presença de um representante do Governo Federal.
Padre Cícero tomou as providências, mandando dois cangaceiros à
residência de um funcionário federal, do Ministério da Agricultura.
A enunciação do ex-jagunço revela mais uma característica desse período
histórico conturbado, quando declara ter tomado conhecimento de que o padre Cícero
tinha mandado o seu pessoal combater ao lado da Coluna Prestes (p. 33). É aos
cangaceiros que ele está se referindo, embora estes não tenham aderido à Coluna. No
entanto, os revoltosos eram, a exemplo do que informaram a Delmiro, confundidos com
eles. A esse respeito, Drummond (1985, p. 66) afirma: “[…] em todo o Nordeste, a
Coluna carregou fama equivalente à de bandoleiros ou cangaceiros; o povo temia a
aproximação dos rebeldes, pois deles esperavam saques, assassinatos e atrocidades”.
A visão do autor é ratificada por Barros (2000, p. 236-7), quando ele ressalta que,
na cidade de Nazaré, no sertão nordestino, a união entre os rebeldes da Coluna e os
cangaceiros era a tal ponto dada como certa, que “os boatos espalhavam, duma coluna
imbatível, porque Lampião estava junto com os revoltosos, e iam tocar fogo no povoado”.
Delmiro recebe informações fantasiosas, oriundas do imaginário popular. Além do
fato de os jagunços e cangaceiros não terem ingressado na Coluna Prestes, alguns deles,
inclusive, lutaram contra ela. É o que destaca Drummond (1985, p. 72-3):
Foram os jagunços da Bahia que melhor combateram a Coluna. (...) Os
jagunços foram inimigos tenazes e eficientes, mas nem por isso
deixaram de cair numa das rias ciladas que o gênio tático de Prestes
soube armar. (...) Nos depoimentos de época publicados pelos
participantes e simpatizantes enorme confusão na identificação dos
inimigos civis dos rebeldes: “jagunços”, “patrióticos”, “cangaceiros”,
“bandidos”, “capangas”, são alguns dos termos usados para designá-
los.
Conforme afirma Barros (2000, p. 240-1), alguns cangaceiros, como os do bando
de Lampião, até tiraram vantagem da rebelião, aproveitando a ausência da polícia,
enquanto esta combatia a Coluna:
Os nazarenos se declararam contrários à Coluna Prestes, que se achava
entre Nazaré e Floresta. Relataram ao comandante do partido que
Lampião estava tirando de todo aquele movimento, incendiando
propriedades, matando e roubando solto, porque as tropas tinham sido
todas requisitadas para combater os revoltosos.
Em Memorial de Maria Moura, o cangaço é o tema central, inclusive, é a
condição de mulher e cangaceira que propicia a Maria Moura o estatuto de uma
personagem notável. Em Dôra, Doralina, o tema principal é a relação conflituosa entre
mãe e filha, que passa mesmo pelo incesto no contexto da decadência rural nordestina,
conforme será discutido no terceiro capítulo. No entanto, de forma subliminar, o tema do
cangaço se faz presente no período no qual está situada a obra, entre o início da década de
1930 e o final da década de 1940, período em que a temática ainda era marcante no
sertão.
Esse enfoque voltado para o cangaço dado pela Literatura Brasileira é também
abordado por Dória (1981, p. 94-6), que enumera uma série de obras significativas no que
concerne à imortalização do movimento no imaginário nacional:
Os folhetos de cordel, vendidos nas feiras nordestinas, continuaram a
cantar as proezas daqueles heróis, tendo inclusive expandido seu raio
de difusão, atingindo os grandes centros urbanos do sul do país, onde se
concentravam as grandes levas de migrantes nordestinos. (...) Mais do
que isso, o cangaço conseguiu, aos poucos, se impor à própria
sociedade culta e letrada, seja como temática da literatura regional, seja
como elemento de um esforço consciente de se construir uma cultura
nacional popular. O primeiro romance em que o cangaço figura como
tema é de 1876. O cabeleira, de Franklin Távora. Depois dele, na
literatura regional nordestina, seguir-se-ão Coiteiros, de Jo Américo
de Almeida; Os cangaceiros, de José Lins do Rego; e vários outros de
menor importância, até se culminar com a obra monumental de
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.
O cangaço, além de ser tema recorrente na literatura, como frisa o autor, é ainda
retomado, normalmente associado ao coronelismo, pelas telenovelas: versão moderna dos
folhetins difundidos desde o Romantismo, como exemplificam as seguintes produções: O
bem amado, de Dias Gomes, novela levada ao ar pela Rede Globo de Televisão em 1973
e retomada em forma de seriado entre 1980 e 1984; Roque santeiro, também de Dias
Gomes, inicialmente produzida pela TV Globo em 1975, mas que, devido à censura
imposta pelo regime militar vigente no país naquela época, foi retomada e exibida dez
anos mais tarde, com o fim da ditadura militar; Cabocla, de Benedito Ruy Barbosa,
novela inspirada no romance homônimo, de Ribeiro Couto, produzida originalmente pela
Rede Globo em 1979 e que dispôs de um recente remake, levado ao ar em 2004 pela
mesma emissora; Lampião e Maria Bonita, minissérie de Aguinaldo Silva e Doc
Comparato, exibida também na tevê Globo, em 1982; Chapadão do bugre, produção
adaptada por Antônio Carlos Fontoura do romance de Mário Palmério e exibida em
forma de minissérie pela Rede Bandeirantes de Televisão em 1988; além de Mandacaru,
novela de Carlos Alberto Ratton, inspirada no romance Dente de ouro, de Menotti Del
Picchia e exibida entre 1997 e 1998 pela extinta Rede Manchete de Televisão. Nesta
última, a temática do cangaço se fez marcante, com alusões a passagens de obras como
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e, principalmente, Os sertões, de Euclides
da Cunha. Acrescente-se, também, o romance Memorial de Maria Moura que, conforme
mencionado anteriormente, foi transformado em minissérie.
2.4 - Uma senhorinha e sua dor
Ao se analisar a relação entre Dôra e a Senhora, é possível afirmar que esta é
essencialmente conflituosa. Com a arrogância que lhe é característica, acentuada por sua
postura coronelista, a Senhora não perde oportunidade de desfazer da filha nas mais
variadas circunstâncias. Mãe e filha vivem em conflito constante, numa clara disputa pelo
poder. Um dos episódios que elucida essa disputa está vinculado ao ex-jagunço Delmiro.
Para acolhê-lo, Dôra tem que enfrentar a mãe e fazer valer a sua vontade, ou seja: na
suave senhorinha, subjaz a futura senhora.
Claro que Senhora não gostou de saber que eu tinha tomado a ousadia
de acudir aquele passante sem nome e sem cara, botá-lo num quarto,
tratá-lo - e tudo sem ordem dela. E me interpelou quando eu vinha do
quartinho do paiol com as coisas da farmácia na mão: - Você
agora está dando coito a todo cigano extraviado que aparece, e nem
ao menos me pediu licença? Passei por ela sem responder, como ia
ficando meu costume. E no que lhe dei as costas ela se virou para
Antônio Amador(p. 32). Tive a briga com Senhora e garanti a tapera a
Delmiro (p. 38).
Valendo-se da condição de filha e, principalmente, de herdeira de parte da
fazenda, em virtude da morte do pai, Dôra, constantemente, opõe-se às vontades da
Senhora, o que seria impensável aos agregados da Soledade. Reciprocamente, esse atrito
também provém da Senhora, que não hesita em prejudicar Dôra, apropriando-se das suas
melhores reses, alegando a necessidade de vendê-las para a quitação das despesas
médicas da filha, quando esta abortou e teve que ser hospitalizada:
- Mandei vender um gado solteiro pra pagar suas despesas de doença.
(...) Não discriminou que gado tinha sido nem eu perguntei. Falei só: -
Está bem. Fez bem. Mas eu conhecia o meu gado, entre vacas, bois,
bezerros e garrotes. E ela conhecia o gado todo, meu e dela, ainda
melhor do que eu. Podia ter me dito, foi o boi esse, a novilha aquela,
vendi a Fulano de Tal. Mas não lhe perguntei, não queria dar o gosto.
Deixei pra saber de Antônio Amador, mais tarde, nas costas dela.
Tinham vendido três reses solteiras, sim, mas a quarta era a minha
melhor vaca de leite, raceada de holandês vermelho, parida de novo e
por nome Garapu. E o engraçado é que o comprador do lote todo -
quem seria? - era Senhora mesma (p. 50).
O ápice do conflito entre mãe e filha se após o casamento de Dôra. Antes
mesmo do matrimônio, havia boatos de que o agrimensor Laurindo, seu futuro esposo,
um homem maduro e primo distante da Senhora, tinha se interessado mais pela mãe do
que pela filha. Três anos após o casamento, ra, juntamente com Delmiro, ouve, numa
certa madrugada, uma conversa entre a Senhora e Laurindo, descobrindo, então, que sua
mãe e seu marido eram amantes:
De repente se ouviu um som abafado, um som de voz, no quarto
defronte - que era o quarto de Senhora, pegado à sala. E escutei a fala
dela (que nunca na vida tinha conseguido falar baixinho), sim era a
fala dela: - embora! E depois a voz de Laurindo, protestando: -
Ela [Dôra] tomou o remédio. Não tem jeito de acordar (p. 53).
A Senhora subverte a ordem estabelecida inerente ao universo “da casa”, o qual,
por excelência, representa a moral e a ordem estabelecida. Ao se tornar amante do genro,
a matriarca transporta para a casa a promiscuidade e a degradação típicas do espaço “da
rua” e comete um incesto moral. O adultério incestuoso acentua ainda mais os conflitos
entre Dôra e sua mãe, embora ela não tenha revelado à Senhora que a tinha flagrado com
seu marido.
Nessa relação conflituosa, pesa contra Dôra a ausência de autoridade. Embora
tivesse herdado do pai metade da fazenda, o poder de decisão na Soledade é facultado
apenas à Senhora. Barbosa (1999, p. 72), ao atentar para os distintos papéis assumidos
por Dôra e pela Senhora na fazenda, destaca como a frente de comando exercida pela mãe
serve de barreira à autonomia da filha.
Afora os cuidados com o marido, Dôra entretinha-se podando, aguando
e adubando as plantas, cuidando de sua criação de paturis, lendo
romances, fazendo renda de almofada, ou, “em último caso”, bordando;
Senhora determinava a tarefa dos homens, comandava o trabalho das
domésticas e ocupava-se, pessoalmente, da queijaria. (...) Dôra era,
ainda, somente esposa, não tinha, sequer, o comando da casa, pois era
sua mãe que decidia tudo.
Mesmo depois do casamento, Dôra continua agindo como uma sinhazinha e não
como uma sinhá, posição possível para uma mulher casada. Ela não tinha liberdade para
fazer valer sua vontade nem no espaço “da casa”, onde, historicamente, as mulheres, após
o casamento, passavam a ter um poder relativo. Candido (1951, [s.n.]) avalia essa
autonomia concedida à mulher casada nos limites domésticos:
Embora ela estivesse submetida ao marido e o respeitasse muito, e
embora os costumes a condenassem a um sistema de reclusão, o fato é
que no cuidado dos assuntos da casa ela desempenhava sempre um
papel tão importante que não a podemos imaginar com capacidade
insuficiente para o comando e a iniciativa. (...) A mulher dirigia o
trabalho dos escravos tanto na cozinha como na fiação, tecelagem e
costura. Ela dirigia a confecção de roupas para os escravos, o marido e
os filhos. Supervisionava o complicado trabalho artístico de feitura de
rendas e bordados. Era sua tarefa de providenciar alimento para os
escravos e partidários, de cuidar da conservação da criação, do cultivo
das frutas, jardins e flores - embora fossem pouco desenvolvidos na
maior parte do país. A mulher devia cuidar das crianças e dos animais
domésticos. Ela cooperava, não freqüentemente, com o marido na
abertura de novas fazendas, na derrubada de florestas e na plantação. E
ela dirigia todas as atividades comemorativas, com as quais
observavam e reforçavam as relações sociais no sistema familiar.
Um outro atrito também permeia o enredo da narrativa. Laurindo, por pura
impertinência de marido, implica, sempre, com Delmiro: “- Além de ser capanga de
Dôrinha, de onde ele é e quem é?(p. 42). Apoiado pela sogra, ele abusa do poder que a
condição de genro da Senhora e marido de Dôra lhe confere. Não raro, prefere caçar os
animais que Delmiro cria na tapera que lhe foi cedida.
Laurindo procura demonstrar sua “superioridade” nos limites da Soledade e, nessa
relação, prevalece a condição de “genro da Senhora” sobre a do “protegido de Dôra”.
Laurindo dispõe do aval da sogra - e amante - para fazer suas caçadas, como atesta a fala
da Senhora: “- Aqui não tem marreca de ninguém, bicho da fazenda é da fazenda,
mormente bicho do mato. Quando é que Seu Delmiro teve ordens pra fazer criação de
marreca em que ninguém pode tocar?” (p. 43).
Há, no romance, um entrelaçamento de conflitos em torno dos quais o enredo está
articulado. Ao mesmo tempo em que uma disputa entre Dôra e a Senhora, ocorre,
também, uma relação conflitante entre Laurindo e Delmiro. Entretanto, no emaranhado de
embates ocorrem alianças entre os pólos opostos de cada conflito. Essa união de forças é
ilustrada, por um lado, pelo incesto entre a Senhora e Laurindo e, por outro, pela amizade
e carinho entre Dôra e Delmiro.
Esses conflitos culminarão no assassinato de Laurindo: tragédia que encerra O
livro de Senhora. Quando, por fatalidade, Dôra descobre que seu marido e sua mãe são
amantes, Delmiro está presente e percebe a profunda dor de sua protetora, que ele, de
fato, venera:
Delmiro não sei se escutou tão bem quanto eu, mas vi que entendeu. E,
eu saí correndo pelo terreiro, descalça e de pijama, no pavor de que os
dois me descobrissem. Do lado de dos quartos do paiol, caí sentada
num monte de tijolo e rompi num choro todo e me vinha aquele engulo
violento - eles dois, eles dois. (...) Chegando perto de mim o velho me
tocou no ombro, de leve - eu tinha me dobrado de novo sobre os
joelhos com o rosto entre as mãos - e me aconselhou num sussurro
rouco: - Entre pra casa. Olhe o frio. Vá. Deu um puxão no cabresto,
fez um passo, voltou-se: - Deus um jeito. Eu levantei o rosto a essa
palavra e disse as minhas palavras também. - Jeito, só a morte (p. 53).
Quando Delmiro tenta consolar Dôra, dizendo-lhe: - Deus um jeito”, ao que
ela retruca: - Jeito, a morte”, a protagonista está, involuntariamente, condenando de
fato o marido à morte. Há, nesse episódio, um tom claramente fatalista, ou seja, de que o
destino humano é inexorável. A frase de Delmiro é uma frase feita, dita, em geral, quando
não se sabe o que dizer ante o absurdo de uma situação. Dôra, ao retrucar que para sua
dor não remédio, a não ser o esquecimento final, não pôde avaliar que seu protegido a
leria como uma sentença de morte, até porque Delmiro havia jurado a Dôra que ele
jamais voltaria a pegar uma arma, nem matar alguém. No entanto, naquele contexto, ele
interpreta a frase ditada pelo desespero de acordo com sua perspectiva de jagunço,
totalmente fiel à sua benfeitora.
Laurindo é encontrado morto próximo à tapera do ex-jagunço, poucos dias depois
de este presenciar a revelação do incesto. A sua morte ocorre de maneira supostamente
acidental. Entretanto, fica evidente que Delmiro assassinou-o, acreditando estar
cumprindo uma ordem de Dôra. É o que se depreende da perspectiva da narradora: “Sirva
Deus de testemunha, eu naquela noite não pedi a morte de ninguém. Se disse alguma
palavra, foi de dor, não foi de ira. O final que houve eu nunca esperei (p. 62).
Além da citação acima, o temor de Dôra, quando ela está morando no Rio de
Janeiro e casada com o Comandante, também evidencia o assassinato. Xavinha, agregada
da Soledade, escreve-lhe contando que o povo de Aroeiras acredita que o túmulo de
Laurindo seja assombrado. A protagonista, então, teme que Delmiro ouça a estória, pois,
como ele estava cada vez mais alucinado, poderia revelar seu crime:
E se acaso Delmiro tivesse notícia da história dos gemidos, sendo
embora mentira e se assombrasse também? Se fosse bater no peito e
confessar os seus pecados? Do jeito queera, com o juízo baldeado -
será que eu podia esquecer o dia em que ele me fez a confissão [de que
foi jagunço]? Gente como ele é comum, às vezes lhe a mania da
confissão (p. 108).
Baccega (2000, p. 82), ao estudar as ações que se desencadeiam a partir da língua,
salienta que “toda palavra precisa de alguém que a assuma, de outro que a ouça e tem por
finalidade persuadir”. A análise da autora aponta para o poder de persuasão inerente à
linguagem. Mesmo que proferida inconscientemente por Dôra, uma frase curta, de quatro
palavras, foi suficiente para decretar a morte de Laurindo.
Cabe aqui destacar a abordagem de Baccega (2000, p. 22), quando ela pondera
que “é da natureza da palavra, ao mesmo tempo que reflete, refratar, desviar - pouco ou
muito - o ‘sentido’ da realidade”, observação que vai de encontro à enunciação proferida
por Dôra e interpretada equivocadamente por Delmiro. Apesar de a personagem ter se
expressado manifestando sua revolta contra o adultério, com as mesmas palavras, ela
também provocou um assassinato, fato que jamais tinha intencionado. O desvio da
realidade provocado pela palavra, conforme explana a pesquisadora, torna-se mais
evidente no romance, quando implica a morte de Laurindo e as conseqüências que esta
trouxe para a narrativa.
Com a morte do primeiro marido, Dôra abandona a fazenda, conhece novos
lugares, ao viajar pelo país com uma companhia de teatro, e, enfim, descobre o
significado de uma verdadeira paixão. A narrativa toma um novo rumo. Portanto, a frase
“- Jeito, a morte é o ponto nodal do enredo de Dôra, Doralina. No entanto, as
melhores partes do romance são aquelas que transcorrem na Soledade, de onde tudo
irradia e para onde tudo converge.
O assassinato de Laurindo tem profundas implicações na trajetória da narradora
enquanto reminiscência dos antigos ritos de passagem. De acordo com Eliade (2001), os
ritos de passagem visam fazer com que os iniciados passem, simbolicamente, para um
outro estágio da vida, deixando para trás o estado anterior. É o que ocorre com Dôra a
partir da morte do marido, inicialmente de forma traumática e, posteriormente, libertária.
Tanto Dôra, na década de trinta, quanto Maria Moura, no século XIX, têm de
romper determinados limites e, para fazê-lo, precisam passar por um ritual. No contexto
patriarcal do século XIX e semi-patriarcal do século XX em que as duas protagonistas
estão inseridas, o ritual de passagem está vinculado à violência. Esta se revela tanto na
inserção de Moura no banditismo, quanto no assassinato do esposo de Dôra.
Segundo Barbosa (1999, p. 62), “os nomes próprios, neste romance, têm grande
poder sugestivo”. Assim, o nome de Dôra encontra-se associado à dor, numa alusão à
sofrida situação que ela vivenciou na relação com a mãe e, por conseguinte, no casamento
com Laurindo. Rachel de Queiroz desrespeita convenções do sistema ortográfico para
enfatizar a sonoridade da dor, não somente no nome de Dôra, como nos outros apelidos
pelos quais ela é tratada, tais quais rinha e Dôrita. Todos esses nomes são repudiados
pela personagem:
- Eu tenho ódio, mas ódio desse meu nome e de todos os seus apelidos:
Maria das Dores, Dôra, Dasdores, Dôrinha, Dôrita. Se eu pudesse, ia
no cartório do registro e riscava, ia no livro do batistério e rasgava.
Senhora não respondeu, ficou mordendo os lábios e me olhando,
parecia até esperar que eu me afundasse mais para ela então punir. E
eu ainda arrisquei: - Esse nome - esse nome - a senhora botou em
mim pra me castigar. Maria DAS DORES! Como dizendo que eu sou
suas dores!Senhora falou baixo e me admirou, porque a voz dela era
mais triste do que zangada: - O nome foi promessa, disse tantas
vezes. Me vali de Nossa Senhora das Dores para não morrer de parto.
Não sei se você sabe, mas quase me matou [grifo da autora] (p. 18-9).
Maria das Dores, nome de batismo da protagonista, alude a mais uma Maria,
enquanto arquétipo feminino, que nasceu para sofrer. Destacado pela escritora, o nome é,
claramente, uma alusão à dor, tanto de Dôra, quanto da Senhora, que, além de sofrer
muito para ter a filha, tem sempre uma relação dolorida com ela e vice-versa.
O único nome ao qual Dôra não faz objeção é aquele que seu pai ternamente lhe
chamava: Doralina. Além de não carregar o acento gráfico, que enfatiza a sonoridade da
dor, o nome Doralina se contrapõe, no título, à dolorosa trajetória da protagonista. Por
meio desse recurso gráfico, Dôra, Doralina sugere que os dois sentimentos
- sofrimento e afeto - caminham, lado a lado, na composição do perfil da narradora.
A maneira pela qual o pai lhe chamava é uma das poucas informações que Dôra
consegue obter sobre como ele a tratava. No confronto travado com a Senhora, esta se
nega a falar do pai para a filha. Barbosa (1999, p. 27), ao analisar essa conturbada relação
entre mãe e filha, expõe como o referencial paterno da protagonista é, também, bloqueado
pela Senhora:
Ao saber que o pai não usava nenhum dos nomes que ela detesta (Maria
das Dores, Dôra, Dasdores, Dôrinha, Dôrita), mas a chamava
carinhosamente de “Doralina, minha flor!”, a moça se emociona e é
castigada pela e. A lembrança do pai é seu único referencial afetivo,
mas Senhora escamoteia as informações de que ela precisa para seu
crescimento interior, negando-se a falar sobre ele. (...) Dôra, além de
não ter pai, sentia-se também órfã de mãe, uma vez que sabia ter sido,
desde o nascimento, um estorvo para Senhora, em cuja presença não
ficava à vontade. A morte da mãe significou, para Dôra, o alívio de um
peso, o desfecho de uma situação dolorosa, o fim de um travo na boca.
O conflito entre mãe e filha se faz determinante no enredo de Dôra, Doralina. É
esse conflito que está na base da frustração afetiva da protagonista. O início dessa
frustração tem origem na indiferença com que Senhora a trata, agravada pela ausência de
informações sobre o pai e essa falta de referência afetiva masculina atinge seu ápice com
a traição do primeiro marido.
O crescimento pessoal de Dôra ganha projeção quando ela, viúva de Laurindo,
deixa Soledade. A partir de então, se acentua o processo de transformação da
personagem, iniciado com a descoberta do adultério e com o conseqüente assassinato do
esposo. Todavia, Dôra, no final da narrativa, e de maneira diversa, retornará à sua via
dolorosa. É o que atesta a fala do Comandante, transcrita pela narradora no parágrafo que
abre o romance: Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. não dói depois
de morto, porque a vida toda é um doer (p. 9).
2.5 - Uma senhorinha no palco
Após a morte de Laurindo, Dôra, dando continuidade ao seu processo de
transformação, abandona a casa da mãe e vai para Fortaleza, renegando, dessa forma, a
condição de “viúva da Soledade”, similar à da Senhora, para se tornar uma mulher
anônima na capital. Essa renúncia à condição de viúva tem um duplo sentido: por um
lado, Dôra não pode mais conviver com a mãe, visto que, embora não tenha sido
explicitado, a Senhora sabe que a filha descobriu seu caso com Laurindo; ra também
não se sente confortável, uma vez que, indiretamente, ela provocou a morte do marido.
Para negar sua história presente, ela vai embora acintosamente, sem se despedir da mãe e
vestida de azul, não de preto, como mandava a tradição:
Tirei o luto para a viagem. Se pudesse tirava a pele, arrancava os
cabelos, saía em carne viva. Senhora protestou ao me ver com o meu
costume azul: - Você faz questão de causar escândalo? Cerrei a boca
com força, não respondi, mas não mudei de roupa. Atravessei toda
Aroeiras, comprei passagem, esperei, tomei o trem, vestida de azul.
Fim do livro de Senhora(p. 63).
Inicia então O livro da Companhia, a segunda parte do romance. Em Fortaleza,
Dôra se hospeda na pensão de sua parenta, Dona Loura, pois, conforme os vestígios da
velha ordem patriarcal, “as pensões familiares eram as únicas opções para mulheres
casadas ou solteiras que viajassem sozinhas” (BARBOSA, 1999, p. 92). Ali, ela conhece
o Sr. Carleto Brandini e sua companheira, a atriz Estrela. Proprietários de uma companhia
de teatro mambembe, eles se hospedam na mesma pensão durante a temporada na capital
cearense. Por falta de opção, a narradora ingressa na companhia do Sr. Brandini.
A exemplo do que ocorre com Maria Moura, o drama da mulher libertada, tal
qual expõe Beauvoir (1980), também integra a saga de Dôra. Viúva em circunstâncias
escusas, a personagem, ao incorporar o papel de atriz, nesse período, passa a prescindir da
proteção masculina. Como conseqüência, Dôra tem de se defender sozinha. É o que se
constata, por exemplo, quando ela se obrigada a reagir diante da tentativa de abuso de
um de seus “fãs”:
Seu Brandini queria tomar conta de mim como se eu fosse filha dele,
cumprindo a promessa feita a D. Loura. E até achou ruim quando eu
aceitei dar uma volta de carro com um admirador, um rapaz do Banco
do Brasil que não faltava a um espetáculo. Eu fui, depois ceei com ele,
mas era desses homens que avançam em cima da gente de dente
trincado, até parou o carro, e então eu disse que se ele não tocasse o
carro pra frente eu gritava; e voltamos sem novidade para o hotel(p.
82).
Diante da prepotência masculina, resta à protagonista defender-se com suas
próprias forças. Isso se torna ainda mais evidente quando ela é atacada por Seu Jota, o
pianista da companhia:
um dos homens no quarto vizinho se levantou, ouvi que ele abria a
porta para ir fora; e voltou passando um pouco, pisando leve no
chão de tijolo do corredor. E minha porta que estava cerrada,
porque não encontrei chave nela, abriu-se rangendo devagarinho. (...)
Eu podia ter dado um grito - quase dava, mas tranquei a boca. Ia ser
um espalhafato, todo o mundo se levantando, o homem correndo -
quem seria? E me deu outro impulso. Segurei a mão que me
tateava pelo seio, o sujeito quando sentiu meus dedos deu um aperto
neles e se deixou levar e eu puxei aquela mão para a boca, como
para um beijo, o sujeito tirava a outra mão do punho da rede e me
segurava o joelho. Apertei de encontro à minha boca aquela mão
peluda que cheirava a fumo e cravei-lhe os dentes na carne, com toda
força que eu tinha. (...) Eu fui que silvei entre os dentes, como uma
cobra: - Vá-se embora já, senão eu grito! E ele saiu correndo com os
pés descalços e tomou pelo corredor sem se preocupar de fechar a
porta (p. 115).
Para Dôra, o teatro desempenha uma função libertadora, pelo menos no período
imediatamente após a viuvez. Ela, fora do espaço da fazenda e sem um homem que a
represente socialmente, tem que arcar com o próprio destino, como fizera Maria Moura,
ao cortar os cabelos e se vestir como homem, mesmo que, em comparação a Moura, isso
tenha se dado numa dimensão bem menor. Como afirma Beauvoir (1980, p. 169) a
propósito da mulher até as primeiras décadas do século XX, ela “em se casando, recebe
como feudo uma parcela do mundo, garantias legais que protegem-na contra os caprichos
do homem, mas ela torna-se vassala dele (...) fica sendo sua metade”. Um marido pode
até conferir proteção à protagonista, mas é pela ausência do casamento que ela se torna
mais independente.
Ao desempenhar a função de artista, deslocando-se de cidade em cidade, Dôra
contrapõe-se à Senhora, bem como às marcas da tradição patriarcal representada pela mãe
e pela fazenda Soledade:
Senhora, em casa, me trazia prisioneira de canto chorado: um passeio
de mês e mês à rua para fazer compras, e alguma rara, raríssima
dormida nas Aroeiras, em casa de Genu e Peti Miranda, duas irmãs
solteironas. (...) E assim mesmo com Xavinha me acompanhando. As
ocasiões eram a coroação de Nossa Senhora no fim do mês de maio, a
festa da padroeira em agosto, a missa do galo no Natal. E então
podia eu me atrever a um cinema - por sorte Xavinha também adorava.
Baile nunca fui, tinha o clube e nos mandava os convites, mas vai ver
se Senhora admitia filha dela botar oem bailes daqueles, onde todo
o mundo entrava e qualquer molecote caixeiro de loja podia me tirar
para dançar! num casamento, num aniversário ou numa bodas de
prata, se dançava em casa dos parentes; então eu ia e brincava, mas
não seriam essas festinhas de família que iriam me consolar. O que
meu coração pedia era conhecer o mundo (p. 67).
Os preceitos sustentados pela Senhora exigem da mulher reclusão e dependência
ao universo “da casa”. A conduta da Senhora em relação à filha se aproxima do relato de
Falci (2000, p. 246-7) acerca da reclusão da mulher nordestina no patriarcalismo: “No
sertão, muito quente, vivia-se em fazendas. Ia-se à cidade por ocasião das festas
religiosas locais - uma ou duas vezes por ano. Famílias ricas tinham uma casa na cidade
só para passar a Semana Santa e os festejos de fim de ano”.
Apesar do confinamento, da mesma forma que ocorre com Maria Moura no
Memorial, o sonho de Dôra é conhecer o mundo (p. 67), sonho tornado possível pelo
trágico desenlace do casamento, que impõe a Dôra a ruptura com o mundo familiar.
Como afirma Barbosa (1999, p. 92), “transformada em atriz de variedades, usando
o nome artístico de Nely Sorel, Dôra vai completar sua aprendizagem num ambiente
totalmente oposto a seu universo existencial”. A arte funciona para a personagem como
um outro ritual de passagem. É por meio da carreira artística que ela realiza a transição de
moça de família para mulher parcialmente independente. Essa mudança é ilustrada pela
adoção do nome artístico.
A oposição de Dôra ao universo tradicional, ao qual ela sempre esteve presa,
torna-se ainda mais evidente, quando ela é alvo do preconceito direcionado aos artistas.
Ratto (1996, p. 289), diretor e cenógrafo teatral, que, ao se valer da metalinguagem,
dirigiu e cenografou em 1959, no Rio de Janeiro, a peça O mambembe, de Artur Azevedo,
relata como a sociedade do começo do século passado discriminava o artista mambembe,
bem como as dificuldades enfrentadas por essa classe naquele período:
A esta altura tínhamos definido qual seria nosso primeiro espetáculo:
O mambembe, de Artur Azevedo. Quando li a peça, entre tantas outras
disponíveis, ela me chamou a atenção não por suas qualidades
dramatúrgicas indiscutíveis, mas também - e este foi um fator
fundamental para a escolha - por ser ela um atualíssimo retrato da
condição de quem, naquele momento, estava fazendo teatro:
dificuldades para formar companhias, vedetismos incipientes,
necessidade de perambular constantemente para encontrar uma sede de
trabalho, mambembar para sobreviver, nenhuma, ou pouca,
consideração para com a condição do artista.
A contraposição entre Dôra, como atriz de teatro mambembe, e sua mãe ganha
realce graças à tradição de família da Senhora, que tivera uma tia avó baronesa “de cujo
pai provinha toda a herança, inclusive as terras, concedidas a uma certa D.
Emerenciana, tronco da família” (BARBOSA, 1999, p. 70). Evidencia-se um grande
contraste entre a nobre família tradicional, da qual provém a Senhora, e o meio artístico
no qual ra se insere. Barbosa (1999, p. 61-2) sugere até que O livro da Companhia
poderia ser intitulado de “‘O Livro dos Malandros’, pelo grande número de
contraventores que ali se encontra”.
Quando Dôra assume a profissão de atriz, os resquícios da ideologia patriarcal
podem ser detectados na sociedade fortalezense da época. Apesar de essa etapa do
romance se situar entre o final dos anos trinta e início dos anos quarenta, percebe-se que a
sociedade provinciana, ainda marcada pela herança patriarcal, não aprova a autonomia da
mulher. Essa independência conta, além do mais, com um agravante, quando
concretizada na profissão de artista, a qual seria, ainda por muito tempo, discriminada
socialmente. É o que evidencia o furor da sociedade fortalezense a respeito de uma moça
de família tradicional - Dôra - que teria se integrado a uma trupe mambembe:
Uma coisa chata em Fortaleza foi um boato que se espalhou, imagine,
que eu era uma herdeira rica do interior, rompida com a minha família
e por isso entrara para o teatro. Me botavam como sendo dos Fulano
do Crato, dos Beltrano de Sobral, e o jornal dos padres publicou um
artigo lamentando a maléfica influência dos costumes modernos nas
famílias cearenses, se acaso fosse verdade que uma senhorita
tradicional, de estirpe alencariana havia trocado o seu lar católico
pelas luzes do “teatro ligeiro” - usando de uma metáfora caridosa(p.
92).
Segundo Rago (2000), no artigo “Trabalho feminino e sexualidade”, a
mentalidade vigente no Brasil nas primeiras décadas do século XX era a de que na família
proletária a mulher não disponibilizaria de formação suficiente para driblar seus instintos
à luz da razão. Devido a isso, as trabalhadoras eram consideradas menos racionais que as
mulheres das camadas média e alta, que, apesar de reclusas no ambiente “sagradodo lar,
também sofriam discriminação ao não serem intelectualmente igualadas ao homem.
Ao analisar as profissões da mulher, Rago (2000, p. 589) tece algumas reflexões
sobre a relação intrínseca mantida entre degradação moral e mão-de-obra feminina:
Desde a famosa “costureirinha”, a operária, a lavadeira, a doceira, a
empregada doméstica, até a florista e a artista, as várias profissões
femininas eram estigmatizadas e associadas a imagens de perdição
moral, de degradação e de prostituição. “Entre as classes
desafortunadas é que se deve proporcionar tal educação, pois que é
delas que sai o grosso das prostitutas: são as operárias, modistas, etc.
que contribuem maiormente para a classe das meretrizes”. Essa era a
declaração do Dr. Potyguar de Medeiros em seu estudo “Sobre a
Prophylaxia da Syphilis”, de 1921 [grifo nosso].
A análise da estudiosa, em termos históricos, é similar à perspectiva do romance
Dôra, Doralina em termos ficcionais. Ratto (1996, p. 289), ao atentar especificamente
para a artista de teatro mambembe, relata como, até o final dos anos cinqüenta, ela ainda
era tida como prostituta pela sociedade brasileira: “[…] as atrizes [de teatro mambembe]
eram obrigadas a ter uma carteira que as equiparava às prostitutas, tendo a obrigação,
durante qualquer viagem de trabalho, de se apresentar às delegacias de polícia locais”.
A moral legada pelo sistema patriarcal associava a prostituição a muitos dos
trabalhos femininos. Em Do cabaré ao lar, Rago (1985, p. 63) afirma que a intenção
dessa moral era a de manter a mulher o mais restrita possível ao espaço “da casa”.
Às mulheres pobres e miseráveis, as fábricas, os escritórios comerciais,
os serviços em lojas, nas casas elegantes ou na Companhia Telefônica
apareciam com alternativas possíveis e necessárias. A invasão do
cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um
abrandamento das exigências morais. (...) Ao contrário, quanto mais ela
escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade
burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento
de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido
extenuado pelas longas horas de trabalho. Todo um discurso moralista
e filantrópico acena para ela, de vários pontos do social, com o perigo
da prostituição e da perdição diante do menor deslize.
A mentalidade burguesa da época corroborava a marginalização da mulher
trabalhadora. A narração de Dôra evidencia os vestígios dessa moral, principalmente no
momento em que a sociedade e a imprensa consideram inadmissível o fato de uma moça
de família tradicional vir a se tornar atriz. Ou seja, para a sociedade da época, essa ainda é
uma profissão estigmatizada, podendo até ser tolerada, quando desempenhada por uma
mulher pobre, motivada pela miséria, mas jamais por uma “senhora de família”, como é o
caso de Dôra. Embora ela encontre a libertação por meio da arte, ela se depara com a
discriminação social proveniente da condição de artista.
A mentalidade vigente no começo do século XX era de oposição à autonomia
feminina. A dependência da mulher em relação ao seu marido, ainda muito difundida
nessa época, é também percebida nas reminiscências de Dôra, quando ela relembra a
ocasião em que freqüentava o colegial:
Fiquei até aos dezessete anos e era sempre a menor da classe,
magrela e calada; as outras quase todas eram moças formadas,
boas de casar. No primeiro ano saiu uma para se casar com um viúvo;
e no último ano, que era o quarto, deu aquela epidemia de casamento,
três alunas deixaram o colégio antes de receberem o diploma - os
noivos achavam que elas já estavam sabidas o bastante e, mesmo, para
criar menino não se exige anel de grau(p. 28).
No bojo do patriarcalismo, os noivos citados por Dôra visam restringir a mulher
ao matrimônio e à maternidade. O grau de instrução das pretendentes não é valorizado,
pois não existe independência profissional para as futuras esposas. A narração de Dôra
expõe a moral que procura alocar a mulher em um elevado grau de dependência marital,
seja econômica ou socialmente. Em relação à perspectiva das noivas, Barbosa (1999, p.
72) afirma que “as moças se submetiam a esses padrões patriarcais de comportamento
com satisfação, porque o que lhes interessava mesmo era o casamento”.
2.6 - De Dôra a Doralina
Em sua trajetória artística, Dôra conhece Asmodeu, sempre denominado por ela
de Comandante, por quem se apaixona. A sugestividade dos substantivos próprios, tal
qual expõe Barbosa (1999), também é perceptível no nome do Comandante. Quando ele
explica para Dôra o significado de seu nome, indicativos do poder que o Comandante
exercerá sobre ela: Asmodeu, entidade diabólica que figura no livro de Tobias como
sendo o demônio dos prazeres impuros. Também tem sido chamado ‘o diabo coxo’.
Levanta os telhados das casas e descobre os segredos íntimos de seus habitantes (p.
133). Dôra sente que o Comandante pode dominá-la e se ele quem a fará se sentir
realizada como mulher.
Os resquícios da ideologia patriarcal também integram o perfil desse novo
companheiro de Dôra, a quem ela amará de fato. Em sintonia com a mentalidade da
época, o Comandante não vê com bons olhos a emancipação de Dôra, nem o fato de ela
ser atriz. Ele, então, faz com que a mulher abandone a carreira artística e viva às suas
expensas, cuidando apenas dele e da casa, da qual Dôra, finalmente, sente-se dona e
senhora, realizando-se em todos os papéis, inclusive o da dependência econômica:
O Comandante queria me dar dinheiro, pagar a pensão, eu não aceitei,
não era preciso. A temporada em Belo Horizonte ia boa, Seu Brandini
tirava o pé da lama, e logo na primeira semana nos foi pagando um
pouco por conta dos atrasados. Ele [o Comandante] abanou a cabeça:
- Você é minha mulher, eu tenho o direito de lhe sustentar. (...) - Claro
que sou sua mulher, mas acontece que também estou ganhando a vida
(p. 148). o Comandante se endireitou na cadeira, de repente muito
sério: - Desculpe, Brandini, mas Dôra não volta a trabalhar em teatro.
- Por quê? Você ainda é do tempo das cômicas? Qual é a vergonha de
trabalhar em teatro? - Não é vergonha, mas eu não gosto. Mulher
minha se rebolando em cima no palco e tudo quanto é macho
embaixo, de boca aberta. Tenha paciência. Pra mim não (p. 165-6).
A enunciação do Comandante conserva o ranço da moral que imperou no Brasil
até o início do século XX a propósito do trabalho feminino, conforme foi discutido. O
Comandante, mesmo tendo sido expulso da Marinha por contrabando e, no tempo da
narração, viver na ilegalidade, reitera a mentalidade conservadora vigente em relação a
Dôra. Ele se mostra como um marido conservador: o único provedor da família; mas é
também terno, gentil e amoroso.
O fato ilustra a dependência da mulher frente ao homem em sintonia com os
vestígios do regime patriarcal. Na trajetória percorrida por Dôra, essa dependência é
articulada em dois momentos: quando solteira, ela se encontra sujeita aos mandos da mãe,
a qual reproduz o modelo patriarcal na relação com a filha; quando casada, ela se
novamente condicionada à dependência do Comandante, mas que, ao contrário de
Laurindo, encarna em todas as dimensões seu papel de marido.
Dôra, ao contrário de Maria Moura, abdica de sua autonomia, abandonando a
carreira artística e, finalmente, assumindo o papel de esposa, tornando-se dependente das
vontades do marido. Apesar de ela não ter se casado legalmente com o Comandante, visto
que ele era desquitado e o divórcio não era permitido na época, ele lhe dedicará o amor
conjugal que ela nunca conheceu com Laurindo. É com o Comandante que Dôra encontra
a satisfação sexual e se sente completa, tanto que ela parece se sentir como sendo uma
parte dele:
A protagonista, em contato com uma realidade mais ampla, modifica
sua perspectiva em relação aos valores morais conservadores,
assumindo seu direito à sexualidade, sem que seja necessário o
casamento, mas desiste de assumir uma profissão (o que a tornaria
independente) para se dedicar ao companheiro. (...) Suas conquistas
advém do envolvimento sentimental com o Comandante; estando com
ele, qualquer lugar lhe parecia maravilhoso. Não é a cidade grande que
lhe propicia felicidade, ou mesmo bem estar, e sim ele. No entanto, a
instabilidade econômica e a sensação de iminente perigo, devido ao
“trabalho” do Comandante, permeiam a convivência dos dois
(BARBOSA, 1999, p. 96-7).
A análise de Barbosa (1999) a dimensão do grau de dependência de Dôra em
relação ao novo companheiro. A personagem deixa de ser uma mulher libertada, nas
palavras de Beauvoir (1980), quando assume a sua relação com o Comandante. Ao fazer
as vezes de marido, ele passa a intervir por Dôra, como atesta o episódio em que o
Comandante, ao saber que o pianista da companhia tentara seduzi-la, vinga-se, mesmo o
fato tendo ocorrido antes de ele conhecer a sua então companheira:
E Seu Jota, que devia estar mesmo de juízo completamente toldado,
tirou o copo mais cheio da sua escala musical, exibindo bem a mão
onde ainda se via a marca dos meus dentes e brindou: - À saúde das
piranhas! O Comandante - achava Odair - parece que tinha bebido
antes de chegar ali, porque estava alto, o que não seria possível
com aquelas poucas cervejas. E quando Seu Jota, terminado o brinde,
entortou o copo de cerveja até revirar o pescoço, o Comandante ficou
olhando para ele, como esperando que o outro acabasse de beber; e no
que Seu Jota afinal botou o copo vazio na mesa, o Comandante com a
maior calma estendeu o braço por cima dos copos e garrafas, e deu
dois tapas na cara do pianista; um com a palma, outro com as costas
da mão. (...) O Comandante não tirava os olhos dele, mas também não
se mexia. Passado um pouco, explicou com a maior tranqüilidade: -
Não gostei do brinde (p. 146).
Se, antes de se unir ao Comandante, Dôra se defendeu sozinha do abuso de Seu
Jota, mordendo-lhe violentamente a mão, agora ela delega ao seu homem a defesa. Ou
seja: a protagonista vive um período de mulher liberada apenas em função das
circunstâncias, mas não por escolha.
Assim como Maria Moura, Dôra também conseguiu, mesmo que por alguns
momentos, libertar-se do poder patriarcal. Em contrapartida, ambas as personagens se
depararam com a solidão, evidenciando-se como, para a mulher, a busca da autonomia se
opõe à necessidade do amor. Nas duas obras, as vias de independência feminina se
configuram como marginais, seja com Moura enveredando no cangaço, ou com Dôra
inserindo-se, temporariamente, na trupe mambembe.
Ao voltar para o espaço “da casa”, Dôra, motivada pelo amor do Comandante,
sente-se realizada. É o que se constata quando ela se esforça, mesmo sem experiência,
para aprender a cozinhar, atividade impensável para uma sinhazinha de fazenda:
De comida de sal eu não sabia nada, moça de fazenda não faz coisa
grosseira, isso se deixa pras cunhãs; moça faz bolo e doce fino. E o
queijo era segredo de Senhora com seu mulherio, na queijaria. Agora
a minha cozinha parecia casa de boneca com as suas panelas de
alumínio pequeninas, para nós dois, e o fogão de gás esmaltado
como porcelana que eu trazia espelhando, e o mosaico do chão branco
que nós mandamos botar com seus desenhos azuis. O Comandante
brincava que a minha cozinha parecia uma farmácia; mas podia-se
ver que ele adorava se sentar num banco (também branco e
esmaltado!) na minha mesa de cozinha, coberta com um oleado de
xadrez, e comer os omeletes que eu tinha aprendido a fazer com a
receita no rádio. Mas o meu carro-chefe, e era o prato predileto do
Comandante, eu fui aprender com o cozinheiro do botequim de
cima, no Largo, onde nós éramos fregueses: caldo verde à portuguesa
(p. 184).
Na citação, Dôra espelha a clara distribuição das funções domésticas dentro das
famílias tradicionais. Nestas, a sinhazinha não aprendia a preparar as refeições do dia-a-
dia, que, como a protagonista frisa, era serviço de cunhã. Os dotes culinários das moças
de família se resumiam a alguns doces ou compotas de frutas, pois, como futuras esposas,
o ofício de cozinhar não caberia a elas. Na condição de suburbana, ra se presta a essa
atividade, mas, como faz questão de destacar, é para o Comandante que ela se esmera na
cozinha, aprendendo a preparar os seus pratos favoritos.
Freyre (2000, p. 67-8) analisa como, de forma parecida com a da família de Dôra,
as senhoras patriarcais se dedicavam, na cozinha, apenas às inovações culinárias,
deixando os demais serviços a cargo das mucamas:
Mas que haviam de fazer as senhoras de sobrado, às vezes mais sós e
mais isoladas que as iaiás dos engenhos? Quase que lhes permitiam
uma iniciativa: inventar comida. O mais tinha que ser o rame-rame da
vida de mulher patriarcal. Várias inventaram comidas, doces, conservas
com os frutos e as raízes da terra. (...) Também o caju foi europeizado
pela senhora de engenho em doce, em vinho, em licor, em remédio. Da
castanha ela não tardou a fazer “todas as conservas doces que
costumavam fazer com as amêndoas, o que tem graça, na suavidade e
no sabor”. (...) Do sumo “de bom cheiro e saboroso” do caju, o vinho
adocicado que se tornou o vinho oficial das casas-grandes: quase
símbolo de sua hospitalidade. (...) O mesmo que com o caju, a banana e
o cará se terá dado com o jenipapo, com o araçá, com o mamão, com a
goiaba, o maracujá, com o marmelo, (...) frutas que misturadas com mel
de engenho, com açúcar, com canela, com cravo, com castanha,
tornaram-se doce de calda, conserva, sabongo, marmelada, geléia,
enriquecendo de uma variedade de sabores novos e tropicais a
sobremesa das casas-grandes de engenho e dos sobrados burgueses.
O que mais sobressai na relação de Dôra com o Comandante é a vazão que ela
ao seu poder de sedução. A relação, narrada de forma quase impessoal, quando do
casamento com Laurindo, ganha um tom passional e de realização, quando se reporta ao
Comandante. Dôra sente que, finalmente, pode se realizar como mulher.
O poder de sedução de Dôra é explicitado no romance, quando ela, recém-
chegada ao Rio de Janeiro, conhece o carnaval. Em meio a uma festa historicamente
profana e sensual, Dôra entra num jogo sedutor, insinuando-se, apenas pelo jogo, para
alguns foliões. Esse jogo perigoso é percebido por Estrela, que a previne de que é
arriscado fazer isso com homens da cepa do Comandante. Ela, no entanto, se conta
do risco que tinha corrido mais tarde, ao chegar em casa, quando o Comandante a
esbofeteia - única vez em que ele a agride e apenas a título de exemplo - e a avisa para
nunca mais voltar a se insinuar para outro homem:
Eu que também tinha bebericado os meus chopes, achei aquilo um
colosso, continuei de frente, puxando o Comandante pelo braço e
provocando: - Olha aquele ali, botando olho mau em nós! O
Comandante ia adiante, abalroava o sujeito, deixava ver o revólver e
dizia abusado: - Achou ruim? Eu soltava uma risada. Ninguém reagia,
ele era maior do que todo o mundo, e forte, e armado - e doido. Nunca
tinha me divertido tanto, não ligava aos beliscões que Estrela me dava
por detrás, me sentia cada vez mais atrevida ao lado do meu capanga.
(...) E então, outro conhecido do Carleto que já antes falara conosco
da sua mesa, e até hoje não lhe sei o nome, veio me tirar para dançar.
(...) Aí, o sujeito que naturalmente estava nos seus copos, me apertou a
cintura e começou a se exibir numas tais figurações de maxixe que
podia ser bailarino profissional. (...) Mas enquanto eu e o criatura
dançávamos, o Comandante tinha voltado com três garrafas de
cerveja; e no que me aproximei da mesa estava (...) o Comandante,
duro na cadeira, nos olhando fixo e lívido. (...) Quando chegamos em
casa (...) ele parece que de repente se lembrou da cena. Porque me
arrancou o vestido da cabeça e me deu um tapa forte na face que
deixou marca dos seus quatro dedos: - Isso é pra você se lembrar de
nunca mais na vida sair dançando com outro homem (p. 173-5).
O ponto máximo da realização afetiva de Dôra é indicado no romance através do
nome pelo qual o Comandante passa a chamá-la na intimidade: Doralina. Ao tomar
conhecimento da forma carinhosa com que o pai a chamava, o Comandante passa,
também, nos momentos de ternura, a chamá-la desse modo:
Quanto a mim, eu do passado contava coisas de menina, dizeres de
meu pai que Xavinha repetia, e um dia falei no nome de Doralina; ele
[o Comandante] entendeu logo. (...) E então - o foi mais naquela
noite, foi no outro dia de manhã. Ao voltar para casa às doze, hora do
almoço, ele trazia na mão um botão de rosa vermelho, lindo; e
fechando os meus dedos em redor no seu talo comprido, me deu um
beijo na face e disse sorrindo: - Doralina, minha flor. E desde então
ficou me chamando de Doralina. Mas nas horas do amor e nunca
nas vistas dos outros, nunca - exatamente como eu gostava (p. 181).
A carga afetiva implícita ao nome Doralina, pronunciado nas cenas mais
românticas ou, como descreve a protagonista, nas horas do amor(p. 181), subverte
o teor doloroso associado ao nome Dôra, que, segundo a Senhora, remeteria à sua dor
durante o parto, mas também à longa e dolorosa convivência com a filha. Essa é a forma
encontrada por Rachel de Queiroz para explicitar que será o carinho do Comandante que
ajudará Dôra a superar parcialmente os ressentimentos e traumas advindos de sua relação
com a mãe, bem como aqueles vinculados à traição e morte de Laurindo.
2.7 - De volta à dor de Dôra
O Comandante, que vivia de contrabando vindo pela Baía da Guanabara, morre
por contrair a febre tifóide, que, eventualmente, assolava o Brasil. Mesmo próxima da
morte do Comandante, fica evidente a realização afetiva e sexual que Dôra conseguiu
graças a ele. A dimensão dessa realização pode ser medida, quando o Comandante
muito fraco em virtude do tifo pede a Dôra para que ela atue sozinha na última relação
sexual mantida pelo casal:
- Tire essa roupa, venha para cama. Quero você aqui, comigo. Fiquei
assustada: - Mas meu bem você está doente... é uma maluquice...
depois vo piora. Ele insistia, me puxava, com a mão incerta tentava
desabotoar os botões do meu vestido. (...) Beijei a mão que eu
segurava, tirei depressa a roupa, me deitei do outro lado da cama,
ajudei o pobre do meu amor a se despir também. Quando nos
abraçamos, a pele dele ardia junto da minha que chegava a
incomodar, era um fogo; a boca cheirava mesmo a remédio, forte; e
ele teve um risinho humilde: - Ah, hoje você... Hoje eu não tenho
forças para nada... Fiz tudo que ele queria - eu, como ele disse. E
quando acabou, ele ficou muito tempo descaído, olhos fechados,
respirando fundo, como se saísse debaixo d’água. (...) me vesti e
fui lá para dentro, chorar escondido (p. 245).
Contrapondo-se as cenas de sexo analisadas nas duas obras, depreende-se que,
tanto em Dôra, Doralina, quanto em Memorial de Maria Moura, as mesmas antecipam a
morte dos parceiros das protagonistas. Entretanto, se, no Memorial, o sentimento que
prevalece na relação é o ódio na disputa pelo poder, que culmina não só no assassinato de
Cirino, mas também na provável morte de Moura, em Dôra, Doralina, é o amor que
sobressai, o qual torna Dôra, enfim, uma mulher realizada. Enquanto a relação sexual
mantida por Dôra concretiza a sua auto-afirmação, a de Maria Moura, pelo contrário,
pode ser considerada sua maior fraqueza, visto que ela não consegue deixar de se entregar
para Cirino nem após a traição deste.
Depois do sexo, Dôra e Moura se entristecem diante da certeza que perderão seus
amantes. Ao contrário de Maria Moura que, diante da tristeza, não come, nem dorme,
mas, mesmo assim, ordena a execução do parceiro, Dôra se compadece muito, tudo
fazendo para salvar o companheiro. Consciente de que não lhe resta mais nada a fazer,
Dôra, então, entrega-se aos prantos, mas apenas às escondidas, para que o Comandante
não sofra ainda mais.
Em consonância com Barbosa (1999, p. 97), “depois da morte do companheiro,
Dôra não mais suporta a cidade, sente-se uma estranha, impedida de comunicar-se”. De
fato, a morte do Comandante faz com que Dôra sofra profundamente, pois, conforme
discutido antes, não era o Rio de Janeiro que a fazia feliz, mas sim, ele:
E passados os dias piores do choque, eu olhava tudo em meu redor
como casas e gente de uma cidade estrangeira, e ouvia a língua do
povo como uma língua estrangeira, e o meu instinto me pedia para
ir embora, voltar pra longe, onde a dor que me podia doer era uma dor
que eu conhecia, não aquela dor de abandono, naquele lugar que pra
mim só tinha sido dele, só dele e nada mais (p. 235).
O sofrimento de Dôra é explicitado pela maneira com que ela reitera a dor em sua
narração: “[…] onde a dor que me podia doer era uma dor que eu conhecia, não aquela
dor de abandono [grifo nosso] (p. 235). Em busca de aplacar a dor e o desespero, a
protagonista decide, então, voltar para a fazenda Soledade, agora sua, em virtude do
falecimento da Senhora, ocorrido algum tempo, pois, sem a presença do Comandante,
nada mais fazia sentido para ela. Novamente, a exemplo do que fizera ao deixar a casa da
mãe e, posteriormente, ao ingressar na companhia de teatro, Dôra só assume seu destino
por falta de opção.
Após a morte da Senhora, a Soledade passou a ser precariamente conduzida por
Xavinha e Antônio Amador, agregados em quem tanto Dôra quanto sua mãe sempre
depositaram confiança. Como conseqüência, a fazenda entra em franca decadência e,
quando Dôra retorna, depois da morte do Comandante, encontra-a em péssimo estado:
Tudo ali livre - ou privado? - da mão dela [da Senhora], começava a se
deteriorar, devagarinho. Xavinha no fundo da rede, sem mais serventia
de nada como zeladora ou como vigia. As galinhas fazendo ninho
pelas salas, os pombos morando na queijaria. Luzia e seu filho
apanhado ocupando o quarto pegado ao de Xavinha, que era dantes o
de costura, numa desordem de cordas com cueiros estendidos, redes
atadas em pleno dia, garrafa de mamadeira com leite azedo rolando
por cima da máquina Singer, que substituía a velha New-Home
aposentada (p. 233).
Essa precária situação da Soledade conduzida pelos agregados aponta para um
contraste em relação ao método pelo qual a mãe de Dôra administrava a propriedade:
como uma verdadeira senhora patriarcal. A contraposição maior é ilustrada pela queijaria
que, num total abandono, serve de morada aos pombos. Antes, o local era visto pela
Senhora como uma espécie de santuário, que ali ela fazia o serviço que não confiava
a ninguém” (p. 47).
Apesar da decadência da fazenda, Dôra, muito sofrida e desnorteada pela morte
do Comandante, decide retornar à sua terra, pois, conforme analisado, com a perda do
marido, nada mais tem sentido para ela na cidade do Rio de Janeiro. A protagonista,
então, volta para Soledade, que, apesar dos conflitos com sua mãe e da história trágica do
seu primeiro casamento, é o único lugar no mundo que ainda tem algum sentido:
Ali eu não tinha de lutar com ninguém - ali era meu - e, acima de tudo,
eu era dali. Não havia uma folha de mato que me fosse estranha, um
bicho, um inseto, um passarinho, um peixe, que me fosse estranho - e
que me estranhasse. Os velhos caducando eram meus pra zelar, aturar
e acompanhar na hora da morte. As filhas das cunhãs velhas eram
minhas cunhãs novas. O povo me recebia como se não tivesse havido
ausência, emendava um tempo com outro e os anos de separação eram
esquecidos(p. 236).
No plano simbólico, esse regresso à Soledade representa uma volta esmaecida
para aquilo que ficou como herança da imago mundi, abordada por Eliade (2001). É ao
voltar para o seu lugar no mundo, deixado com tanta mágoa quando da morte de
Laurindo, que Dôra supera, parcialmente, a perda do Comandante.
A sugestividade que os nomes propiciam em Dôra, Doralina, conforme
mencionado, também se aplica à fazenda. Em espanhol, soledade significa solidão. Esse
sentimento remete ao estado em que Dôra sempre se sentiu ali, seja quando menina, moça
e esposa de Laurindo, seja como viúva do Comandante, viuvez que, a despeito da dor e
da profunda tristeza e solidão, confere-lhe dignidade e um pouco de serenidade, ao
contrário do horror implícito à morte do primeiro marido, promovidas, também, pela
inexorabilidade do fluir do tempo, já que “não tem dor que não se acalme” (p. 9).
Outra herança patriarcalista desvelada pela obra reside na condição de viúva,
discutida a propósito da Senhora. Somente após a morte do Comandante, Dôra volta para
sua terra e assume a fazenda. O comando de Soledade até então nunca estivera ao seu
alcance. Quando viva, era a Senhora quem administrava a fazenda e, entre a sua morte e a
do Comandante, foram os agregados que dirigiram Soledade, pois Dôra continuou a viver
no Rio de Janeiro. Na eventualidade de Dôra assumir seu patrimônio enquanto o
Comandante estivesse vivo, seria ele quem tomaria a posição de chefe de família, como
fizera até então em relação à sua casa e à sua mulher.
Ademais, o Comandante nunca quis assumir o direito que Dôra, como sua mulher,
conferia-lhe sobre a fazenda, pois, quando a protagonista, após a morte da mãe, visitou
Soledade, ele preferiu ficar em Fortaleza, para que não pensassem, na fazenda, que ele
estaria interessado nas terras. A preocupação do Comandante fica evidente, quando ele
anuncia a Dôra que não vai à Soledade: “[…] podem se escandalizar, logo na primeira
vez em que você vai depois da morte de sua mãe, chegar com um homem de lado... E
podem pensar também que eu estou interessado na herança” (p. 212).
Para a narradora, a viuvez desencadeia conseqüências que se distinguem nos dois
momentos em que ela ocorre. Quando da perda de Laurindo, a condição oficial de viúva
lhe possibilita a libertação, por meio da ruptura com a tradição a que sempre esteve
subjugada. Após o falecimento do Comandante, quando Dôra, apesar de não ser casada,
sente-se viúva de fato, ela retorna ao seu lugar ou, como ela mesma diz:
O círculo se fechou, a cobra mordeu o rabo: eu acabei voltando para a
Soledade. Voltava sozinha, voltava de vez. E era diferente. Antes,
quando vim, passado pouco tempo da morte de Senhora, ainda ali se
sentia o bafo da presença dela espalhado pela casa e pela terra, assim
como uma quentura do corpo ou marca de mão ou eco de voz - a
sombra de Senhora continuando a encobrir e tomar conta das coisas,
dos bichos e das pessoas. Agora, percebi logo que isso tudo ficara
esmorecido. Mal cheguei, fui sentindo que a cinza de Senhora estava
fria; ferida e maltratada como eu vinha, não precisava de me
esconder, podia me agasalhar no borralho velho, sem medo das brasas
vivas (p. 232).
É a viuvez, portanto, que reconduz Dôra às origens que ela teve que abandonar
com a perda do primeiro marido. Embora sofra profundamente com a morte do
Comandante, a independência de Dôra é decorrente desta. Apesar de o ter se casado
legalmente, visto que o Comandante era desquitado, é com sua morte que Dôra realmente
sente-se viúva, enlutada no mais profundo sentido da palavra. No entanto, ao voltar para
Soledade, sozinha e entorpecida de dor, sua condição de viúva lhe confere autonomia
para a condução da fazenda e da própria vida: O luto, ali, ainda era o passaporte de
viúva; me garantia o direito de viver sozinha sem ninguém me perturbar em nada, de
mandar e desmandar no meu pequeno condado - tão feio e tão decadente. O condado de
Senhora! - sendo que agora a Senhora era eu (p. 236-7).
Dôra, após a viuvez, conduz a fazenda de forma muito similar à da Senhora,
admitindo: “[…] agora a Senhora era eu (p. 237). Ou seja, fecha-se o círculo. Ela
incorpora o comportamento da mãe, que tanto abominara:
Procurava a todo instante me lembrar de como Senhora fazia; e tudo
se repetia agora como no tempo dela, porque mesmo que eu quisesse
não sabia fazer nada diferente, e então era a lei dela que continuava
nos governando. E aos poucos eu também ia me endurecendo na
couraça do meu vestido preto. Meu doce coração cada vez me ocupava
lugar menor dentro do peito, e de noite, sozinha, é que eu lhe
afrouxava a prisão (p. 239).
Essa continuidade do papel desempenhado por Senhora é também sugerida na
cena do nascimento de uma bezerra, a qual encerra a obra:
Antônio Amador se chegou a mim no alpendre, vindo do seu posto na
janela da cozinha, me convidou para ir ao curral ver a vaca parida: -
Foi esconder a bezerra na capoeira velha do finado Delmiro. É a
novilha, de primeira cria, tem-se que botar nome nela. Assim
vermelha, que tal Garapu? E ainda é capaz de ser neta daquela outra
Garapu - aquela que a finada Senhora comprou na sua mão, o se
lembra? E nós saímos no sol quente para ver a Garapu nova que
mugia zangada sem querer passar pela porteira aberta. Fim do livro
do Comandante (p. 247).
O epílogo sugere a continuidade da vida, que se renova seguindo o ciclo do
tempo. Conforme foi frisado no decorrer da análise, a Senhora havia tomado para si as
melhores reses de Dôra, inclusive Garapu, a favorita. Entretanto, com o transcorrer do
tempo, o gado, a exemplo de toda a propriedade, retorna à personagem principal. Uma
Garapu nova (p. 247) exemplifica que o fluir do tempo fez com que os bens voltassem
para a protagonista. No entanto, nem a novilha, nem sua dona, eram mais as mesmas.
Dôra, modificada pela vida e pela dor, e a bezerra, neta de outra, apenas dão continuidade
à sucessão da natureza, que a tudo destrói, mas também renova, perpetuando assim o
ciclo vital.
Tecendo um paralelo entre as duas obras analisadas, verifica-se que, no final de
ambas, um contraste nos destinos das protagonistas. Enquanto Rachel de Queiroz
articula um final heróico para Maria Moura - nele, ela caminha, de forma gloriosa, para
sua provável morte -, Dôra, ao mesmo tempo em que a vida seguir seu curso normal,
ocupa o lugar da Senhora do sertão, caminhando, de forma melancólica, para a velhice.
Em ambas as obras, elementos que corroboram a ideologia patriarcal,
principalmente no que concerne à reclusão da mulher ao espaço “da casa”. Embora, nos
dois romances, ocorram momentos de transgressão dos valores vigentes, verifica-se o
continuísmo patriarcal. Maria Moura, por meio do banditismo, transgride a velha ordem,
mas reproduz o modelo patriarcal, ao assumir um papel notadamente masculino. Dôra
liberta-se da reclusão pela arte mambembe, opondo-se aos valores tradicionais, porém,
com a morte da mãe e após perder o companheiro, ela passa a perpetuar o continuísmo
semi-patriarcal, ao ocupar o lugar da Senhora na fazenda e se espelhar na mãe para
administrar a Soledade.
Maria Moura tem a seu favor o fato de ser a protagonista criada por Rachel de
Queiroz que mais se aproxima da realização pessoal. Barbosa (1999, p. 101), ao comparar
cinco romances da escritora, conclui que “Maria Moura é uma personagem-afirmação,
uma vez que as etapas percorridas pelas protagonistas anteriores têm em Moura seu
coroamento”. Se comparada às personagens principais de outras obras - cuja publicação é
anterior ao Memorial -, Moura é a que mais consegue superar as dificuldades comuns a
todas elas.
As demais personagens, em determinada fase da vida, renunciam seus anseios
para se integrarem ao grupo social. Essa decisão implica a permanência dos problemas
pessoais, que são retomados pela protagonista do romance seguinte. É o que se evidencia,
quando Barbosa (1999, p. 102) contrapõe Maria Moura não a Dôra, mas também a
Guta, de As três Marias (1939), Noemi, de Caminho de pedras (1937), e Conceição, de O
quinze (1930):
Conceição, mesmo não superando a idéia de maternidade como destino
último da mulher, conseguiu impor sua decisão de permanecer solteira,
mas não inútil, realizando um trabalho que a satisfazia; Noemi
descobriu que o casamento não preenchia suas expectativas de auto-
realização, abandonou o marido por outro, mas pagou muito caro por
sua ousadia; Guta procurou, sem sucesso, realizar-se através do
trabalho, do amor e da maternidade; coube a Dôra superar essa
frustração, ao iniciar uma profissão condenada pela sociedade de um
modo geral e, particularmente, pela Igreja, e viver sua sexualidade, sem
culpa ou intenção de reproduzir; por fim, Maria Moura, a guerreira
intrépida, foi capaz das maiores transgressões para tornar-se
independente, livre das imposições sociais que funcionam como peias,
para, palmilhando o caminho do risco, ir em busca de sua verdade
interior, da auto-realização.
Apesar de essas protagonistas, a exemplo de Maria Moura, também contrariarem
os valores patriarcais, percebe-se que é somente Moura quem consegue buscar a
realização pessoal pela via da transgressão. Dôra, Guta, Noemi e Conceição também
assumem condutas atípicas para a moral vigente na época em que os romances são
ambientados, o que as levará a uma conseqüente decepção.
Dôra, mesmo conseguindo a despeito da moral burguesa uma relativa autonomia
como artista, opta por retornar a uma situação de dependência na relação com o segundo
marido. Com a morte deste, retorna à fazenda em que nasceu para assumir, por falta de
opção e de interesse pela vida, o lugar que fora de sua mãe. Guta, embora não
corresponda às expectativas da madrasta, cuja maior preocupação era ensinar à enteada os
afazeres domésticos, para casá-la “bem”, não consegue viver no amor o seu “conto de
fadas” e regressa, desolada, para a casa do pai. Essas frustrações são parcialmente
compensadas por Dôra que, além de vivenciar uma grande paixão com o Comandante,
retorna, em companhia deste, realizada para o espaço “da casa”, ao contrário de Guta.
Noemi, insatisfeita com o casamento, troca o marido pelo amante. Devido a isso,
passa a ser estigmatizada, perdendo o emprego e passando por necessidades. A prisão do
amante contribuiu para que a sua satisfação interior não fosse alcançada. O único
indicativo para sua realização provém, nas palavras de Barbosa (1999), do destino último
da mulher: a maternidade. Conceição rompe com os padrões sociais do início do século
XX, ao manifestar a sua vontade de não se submeter aos mandos de um homem. Por não
se casar, sua frustração decorre da impossibilidade de ter filhos, frustração esta que ela
tenta superar adotando um afilhado.
Embora tenha sofrido profundamente com a traição de Cirino e com a decisão de
mandar matá-lo, Maria Moura é a única, dentre as cinco protagonistas, a caminhar para
um crescimento individual, tanto que ela prefere perder o amor a arruinar o poder e a
fama de senhora de baraço e cutelo, dando por encerrada a sua trajetória, ao cavalgar,
com esplendor, rumo a uma missão suicida. Seu espírito independente, seus anseios de
liberdade e a necessidade de romper com o estreito espaço ao qual tinha estado destinada
foram de vital importância para que ela atingisse seus objetivos. Segundo Barbosa (1999,
p. 102-3), a auto-realização de Maria Moura começa a ser construída, quando a
personagem rompe com sua submissão:
A caminhada de Moura em direção à Serra dos Padres representa os
caminhos singulares percorridos pelas demais protagonistas que, por
sua vez, simbolizam o caminhar da mulher em sua tentativa de crescer,
transcendendo os limites do social, em busca de um espaço para o
singular.
A trajetória percorrida por Moura equivale à soma de todas as tentativas de
liberdade buscada, sem muito sucesso, pelas demais protagonistas de Rachel de Queiroz.
Assim, no que se refere à auto-realização da mulher na obra queiroziana, Barbosa (1999,
p. 103), alicerçada nos estudos sociológicos de Paiva (1989), afirma:
Rachel de Queiroz, ao apresentar conflitos e situações que dizem
respeito à condição feminina, sugere novas possibilidades e abre
diferentes perspectivas para a mulher na busca de integração pessoal e
social. Nos últimos anos, as mulheres têm procurado uma nova
compreensão de seu papel, investindo cada vez mais em uma atividade
profissional, a fim de tornar menos delimitados os papéis de pai, mãe e
filhos, impostos pela velha ordem patriarcal. É fundamental a busca de
um modelo que atenda aos interesses de homens e mulheres. Como
afirma Vera Paiva (1989: 240), o ideal seria uma sociedade em que
houvesse “liberdade e igualdade para ser diferente”, na qual uma
mulher pudesse escolher seu caminho pessoal para, depois de uma
maior harmonização consigo mesma, conviver mais criativamente com
a coletividade.
Mais do que Dôra e as outras personagens analisadas pela pesquisadora, Maria
Moura exemplifica a difícil luta da mulher pela conquista de seu espaço. Na sociedade
brasileira, apesar de terem existido mulheres que, assim como a personagem, lutaram pela
sua auto-realização, as conquistas femininas começam a se tornar concretas somente a
partir da década de trinta e, ainda hoje, são dificultadas pelos vestígios da moral
patriarcal. Nesse sentido, Moura se configura como uma precursora da luta por fazer valer
escolhas pessoais tradicionalmente negadas à mulher brasileira desde o início da
colonização.
Ao se analisar a obra Dôra, Doralina, constatam-se vestígios herdados do
patriarcalismo, principalmente na personagem Senhora que, após a viuvez, reproduz o
modelo patriarcal, ao ocupar a função de administradora da fazenda Soledade que, até
então, fora exercida pelo marido. Com a morte da Senhora, Dôra, sua filha, herda a
fazenda a que tem direto, mas somente a conduz, de fato, após perder o segundo marido,
legitimada pelo luto de viúva, assim como sua mãe. A partir de então, a protagonista
continua, de certo modo, a reproduzir o modelo patriarcal deixado por Senhora e que,
paradoxalmente, ela tanto tinha repudiado na mãe.
3. O INCESTO E AS RELAÇÕES AFETIVAS E FAMILIARES
Objetiva-se, neste capítulo, analisar comparativamente as obras Dôra, Doralina e
Memorial de Maria Moura, a partir de uma perspectiva sócio-antropológica, com o
intuito de discutir a questão do incesto: um dos temas presentes no eixo narrativo dos
dois romances. A temática do incesto é recorrente, não somente na literatura, como
também na história e na mitologia. Édipo Rei, de Sófocles, é o expoente no qual tal tema
é discutido. A tragédia de Sófocles é tão marcante na cultura ocidental que Freud recorre
a ela quando elabora a teoria da Psicanálise.
Apesar de o incesto ser um comportamento combatido na grande maioria das
culturas, ele ocorre com freqüência e Rachel de Queiroz se reporta a ele nas obras em
estudo. Em Dôra, Doralina, um adultério incestuoso, envolvendo Laurindo - o
primeiro marido de Dôra - e a Senhora, mãe da protagonista narradora do romance. Essa
situação aparece invertida em Memorial de Maria Moura, quando Moura se relaciona
com Liberato, seu padrasto. Entre os dois casos de incesto, uma diferença
fundamental, visto que, no Memorial, a mãe de Maria Moura havia morrido, quando o
incesto foi consumado. Embora haja essa distinção, a motivação econômica subjaz ao
incesto nos dois romances. Enquanto esta é apenas insinuada em Dôra Doralina, no
Memorial, ela é explícita.
Neste capítulo, objetiva-se perceber como são as razões econômicas ditadas pelas
sociedades que beneficiam o homem nas relações de poder que estão subjacentes aos
envolvimentos incestuosos, quando estas reproduzem o modelo patriarcal. A ideologia
peculiar à sociedade patriarcal é marcante em Memorial de Maria Moura e subjaz às
razões que motivam o relacionamento incestuoso. Os vestígios legados pelo
patriarcalismo ainda podem ser percebidos em Dôra, Doralina, apesar de a obra se situar
temporalmente na primeira metade do século XX. Tais vestígios motivam a ocorrência do
incesto, sustentados por uma ideologia semelhante àquela que se faz marcante no
Memorial.
Partindo da relação entre a literatura e a sociedade, esta análise se aterá ao vínculo
estabelecido entre o incesto e razões sócio-econômicas. Embora o objeto deste estudo
seja ficcional, propõe-se a analisar os seus indícios como indicadores culturais de
sociedades que privilegiam o homem nas relações de poder, visto que,
Certas manifestações da emoção e da elaboração estética podem ser
melhor compreendidas (...) se forem referenciadas ao contexto social.
(...) Sobre a unidade fundamental do espírito humano, as diferenças de
organização social e de nível cultural determinam formas diferentes de
arte e literatura (CANDIDO, 2000, p. 69).
Consoante Candido (2000), para a compreensão de uma obra literária, torna-se
necessário relacioná-la ao contexto social em que foi produzida, pois a literatura não se
encontra desvinculada da realidade. É essa relação entre o texto literário e o contexto em
que o mesmo é criado que dá sustentação ao presente estudo.
3.1 - O impacto do incesto na ordem social
Na sociedade contemporânea, as relações incestuosas são, ainda, consideradas um
tabu. Atualmente, o incesto ainda é muito combatido, embora a punição para a sua
ocorrência não seja mais tão enérgica, se comparada à aplicada por alguns povos antigos
que, em determinados casos, penalizavam os transgressores com a morte. O espanto
ocasionado por um envolvimento incestuoso, mesmo que ficcionalizado pela literatura,
evidencia esse caráter polêmico inerente ao incesto.
A subversão da ordem é o maior problema implícito às relações incestuosas. Caso
o relacionamento resulte em um filho, este desencadeará uma série de incertezas quanto
ao seu parentesco, além de ocasionar dúvidas, também, no parentesco de seus genitores
em relação a ele. Engels (2000, p. 39-40), sociólogo alemão do século XIX, considera que
a ordem social começa a se desenvolver quando se abandonam as práticas incestuosas,
que predominaram no estágio inicial da formação familiar.
Se o primeiro progresso na organização da família constituiu em
excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a
exclusão dos irmãos. Esse progresso foi infinitamente mais importante
que o primeiro e, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas
idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente
começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é, irmãos por parte
de mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como
regra geral (no Havaí ainda havia exceções no presente século [séc.
XX]) e acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos
colaterais (quer dizer, segundo nossos atuais nomes de parentesco,
entre primos carnais, primos em segundo e terceiro graus). (...) Até que
ponto se fez sentir a ação desse progresso o demonstra a instituição da
gens, nascida diretamente dele e que ultrapassou de muito seus fins
iniciais. A gens formou a base da ordem social da maioria, senão da
totalidade, dos povos bárbaros do mundo, e dela passamos, na Grécia e
em Roma, sem transições, à civilização [grifo do autor].
Segundo o teórico, no processo da evolução social humana, a aquisição da noção
do incesto foi um dos fatores implícitos à passagem da barbárie à civilização. No que se
refere a essa evolução, Durkheim (1978, p. 237-8), sociólogo francês do século XIX,
postula que
Apenas porque a sociedade existe, também existe, fora das sensações e
das imagens individuais, todo um sistema de representações coletivas
que gozam propriedades maravilhosas. Por elas os homens se
compreendem, as inteligências penetram umas nas outras. Elas têm em
si um tipo de força, de ascendência moral em virtude da qual se
impõem aos espíritos particulares. Desde então o indivíduo se dá conta,
pelo menos obscuramente, que acima de suas representações privadas
existe um mundo de noções-tipo, segundo as quais ele é obrigado a
regular suas idéias: entrevê todo um reino intelectual de que ele
participa, mas que o ultrapassa.
De acordo com a ótica durkheimiana, para viver em sociedade foi necessário criar
e seguir uma série de normas que funcionam como reguladoras da vida social. O tabu do
incesto se ajusta a essa perspectiva. A fim de evitar que os homens subvertam a ordem a
que deram origem e procuram manter, a permanência do tabu regula o comportamento de
cada indivíduo. Assim, ele não compromete a organização coletiva da qual é parte
integrante.
Ao dialogar com Lévi-Strauss (1991) e Freud (1999), o pesquisador Goldgrub
(1989, p. 46) pondera, especificamente acerca dessa relação mantida entre a proibição do
incesto e a manutenção da ordem social, que
A sexualidade humana, regulada (ou melhor, desregulada) pelo desejo e
o prazer, exige, para não desagregar o grupo, os freios da repressão (e o
volante da sublimação); a procriação, objetivo da natureza, pode ser
desejada mas não se trata de um instinto conducente a
comportamentos obrigatórios. (...) Lévi-Strauss endossa a descoberta
freudiana, descartando o mito no qual vem involucrada, ao ver na
proibição do incesto a regra universal instauradora da vida social.
Em conformidade com o estudioso, a proibição do incesto está na base das
sociedades para não desagregá-las. Se esse tabu não houvesse se difundido, a incerteza do
grau de parentesco entre os indivíduos abalaria os alicerces da estrutura familiar: cerne da
organização social. Essa preocupação, entretanto, não é exclusiva da sociedade
contemporânea. Mesmo dentro do antigo sistema classificatório do totemismo, tão
distinto do método de parentesco atual, verifica-se a condenação do incesto com o intuito
de não se desestruturar a ordem constituída a partir da família. É o que constata o teórico
Durand (1995, p. 86-7), em sua leitura sócio-mítica sobre o incesto:
É neste nível do desenvolvimento da função sexual que se formam as
categorias adjectivas do “materno”, do “paterno”, do “ancestral”, do
“fraterno”, etc. Categorias mais ou menos dramatizadas, consoante os
usos do grupo, pela elaboração da repressão e das “regras de jogo”.
Surgem então o “autorizado”, o “regular” e o “proibido”. Porque a
mística do totem não provém do tabu do incesto, mas, pelo contrário, o
tabu do incesto, artificialmente educado, vem anexar-se a um
totemismo fundamental. O que convém repetir é que a categoria do
“proibido” vem sobrepor-se à do “materno”, do “sororal”, do “familiar”
com a única finalidade de salvaguardar a ordem cultural familiar, ou
melhor, a “regra do jogo” das trocas sociais.
Ao direcionar a sua perspectiva para os aborígines que seguiram o sistema
totêmico na Austrália e na América do Norte, Durkheim (1999), no estudo que realizou
em conjunto com Mauss (1999), corrobora a análise de Durand (1995). Durkheim e
Mauss (1999, p. 439) explicitam a importância fundamental do parentesco totêmico
dentro do grupo social que o segue:
Nas sociedades cuja organização apresenta um caráter totêmico, é uma
regra geral que os grupos secundários da tribo, das frátrias, dos clãs e
subclãs se disponham no espaço conforme suas relações de parentesco
e as semelhanças ou as diferenças que suas funções sociais oferecem.
Porque as duas frátrias têm personalidades distintas, porque cada uma
exerce uma função diferente na vida da tribo, elas se opõem
espacialmente: uma se estabelece de um lado, a outra, do outro: uma é
orientada num sentido, a outra no sentido oposto. No interior de cada
frátria, os clãs são tanto mais vizinhos, ou, ao contrário, tanto mais
afastados entre si, quanto as coisas em seu âmbito são mais aparentadas
ou mais estranhas entre si.
Pela abordagem dos sociólogos, é possível depreender que, dentro do que regem
os princípios totêmicos, os casos de incesto implicariam um complicador para a
organização do grupo. As funções sociais, bem como a ocupação do espaço físico dos
aborígines, são definidas a partir do parentesco totêmico. Assim, a demarcação dos papéis
sociais para os indivíduos que fossem gerados incestuosamente se tornaria imprecisa. Tal
fato comprometeria a estrutura grupal como um todo.
A questão do incesto como um tabu, cujo intuito é evitar dúvidas quanto ao
parentesco, é, também, abordada por Freud (1999, p. 17), que salienta: “[...] se existisse
um certo grau de liberdade de relações sexuais fora do casamento, o parentesco de sangue
e, conseqüentemente, a proibição do incesto, tornar-se-iam tão incertos que a proibição
teria necessidade de uma base mais ampla”. O autor sugere que, se o tabu não fosse
difundido na sociedade, haveria dúvidas, inclusive, quanto à ocorrência - ou não - do
incesto. Não mais se conseguiria definir o parentesco dos parceiros sexuais, quando estes
também fossem oriundos de casos incestuosos.
Assim, ter-se-ia uma grande dificuldade de caracterizar uma relação incestuosa,
pois não se poderia identificar com precisão o grau de parentesco dos envolvidos. Freud
(1999) supõe que, caso o incesto não fosse tratado como um tabu pelas sociedades, elas
encontrariam outras maneiras de proibir o relacionamento sexual entre parentes, a fim de
evitar a desestruturação familiar e a conseqüente subversão da ordem.
3.2 - O medo imemorial do incesto
O incesto entre a Senhora e o seu genro Laurindo é um fato marcante na estrutura
de Dôra, Doralina. Conforme se analisou no capítulo anterior, Dôra, desde menina,
mantém um relacionamento conflituoso com a Senhora, a sua mãe. O ápice desse conflito
se após o casamento de Dôra com Laurindo, quando ela descobre que o esposo havia
se tornado amante de Senhora:
De repente se ouviu um som abafado, um som de voz, no quarto
defronte - que era o quarto de Senhora, pegado à sala. E escutei a fala
dela (que nunca na vida tinha conseguido falar baixinho), sim era a
fala dela: - embora! E depois a voz de Laurindo, protestando: -
Ela [Dôra] tomou o remédio. Não tem jeito de acordar (p. 53).
Ao se tornar amante do genro, a Senhora comete incesto moral. A relação entre
sogra e genro, que ocorre no romance, era tida como causa de aversão em vários povos
indígenas. Uma dessas aversões está presente na tribo dos índios Bororo, que habitou o
território compreendido entre o vale do alto Paraguai e para além do vale do Araguaia.
Apesar de o romance Dôra, Doralina não se ater à estrutura familiar dos Bororo, ele
ficcionaliza o incesto entre sogra e genro, tão abominado por tais índios. Rachel de
Queiroz se reporta a um contexto cultural e social muito distinto ao da referida tribo, mas
os mitos sobre os interditos sexuais são imemoriais e, com formas variáveis, recorrentes
nos mais diversos povos, independentemente das diversidades culturais.
Uma característica fundamental na cultura dos Bororo residia na organização
familiar. A tribo era dividida em duas metades, subdivididas em clãs. Os índios que
viviam numa metade se casavam somente com mulheres pertencentes à outra. Quando se
casavam, os homens da tribo transmigravam para a metade oposta àquela na qual haviam
nascido e sido criados, passando a integrar o clã da esposa. Neste, a sogra passava a ser
vista pelo Bororo como uma espécie de mãe, ao mesmo tempo em que as cunhadas
passavam a ser tratadas como irmãs. Conseqüentemente, a evitação, não somente da
sogra, mas também de todas as parentas maternas da parceira, era tida como uma das
principais normas de conduta moral dentro do clã. Essa norma deveria ser seguida à risca
por todo índio da tribo, sob pena de retaliação.
Lévi-Strauss (1991, p. 92), ao estudar os mitos difundidos entre a tribo dos
Bororo, aborda essa delimitação rígida de contatos:
Essa parece ter sido também a situação dos Bororo no início da
evangelização, como atesta uma passagem importante do primeiro livro
de Colbacchini: “É absolutamente prohibido aos homens de uma
dynastia [= metade] falarem, rirem ou somente repararem, ou olharem
as mulheres de outra dynastia. É isso observado meticulosa e
escrupulosamente. Os homens de qualquer edade, encontrando-se por
acaso no caminho ou em qualquer logar com uma ou mais mulheres,
não somente deixarão de estar parados, não as olharão ou voltarão
mesmo olhar, para o lado opposto, como para indicar que querem até
fugir ao perigo e occasião de encontrarem-se os olhares. A falta desse
tradicional preceito é considerada gravíssima, e o culpado cahiria na
indignação geral, na censura de todos, pois que é geralmente julgado
máo e immoral qualquer olhar ou sorriso entre pessoas de sexo
differente e diversa dynastia”.
A instituição dessa evitação do marido em relação às parentas maternas de sua
esposa tinha por finalidade evitar um incesto. Além dos Bororo, várias tribos brasileiras
manifestaram repulsa pelas relações sexuais incestuosas, embora o europeu, no início da
colonização, tenha pensado o contrário no que se refere a esse aspecto. Por não entender a
cultura indígena, tanto o colonizador quanto o jesuíta consideraram-na promíscua,
principalmente, por haver marcantes diferenciações sobre a concepção do incesto. Os
primeiros colonizadores não conseguiram perceber que, a despeito da diversidade, os
interditos eram uma marca cultural fundamental.
Algumas tribos, como a Tupinambá, provocaram espanto ao colonizador por ele
não compreender o sistema de parentesco que elas adotavam. Conseqüentemente, o
europeu rotulou como incestuosa a cultura indígena, especialmente a Tupinambá.
Entretanto, esse rótulo não condiz com os padrões de comportamento seguidos pela
referida tribo. É o que salienta Freyre (1984, p. 101) em Casa-grande & Senzala:
O ensaísta do Retrato do Brasil recorda dos primeiros cronistas as
impressões que nos deixaram da moral sexual entre o gentio.
Impressões de pasmo ou de horror. É Gabriel Soares de Souza dizendo
dos Tupinambá que são tão luxuriosos que não pecado de luxúria
que não cometam”; é o padre Nóbrega alarmando com o número de
mulheres que cada um tem e com a facilidade com que as abandonam;
é Vespúcio escrevendo a Lorenzo dei Medici que os indígenas “tomam
tantas mulheres quantas querem e o filho se junta com a mãe, e o irmão
com a irmã, e o primo com a prima, e o caminhante com a que
encontra”. (...) Da predominância de relações incestuosas de que fala a
carta de Vespúcio, algumas dezenas de anos depois do italiano um
observador mais exato, o Padre Anchieta, daria informações
detalhadas. Notou o missionário que os indígenas tinham para si como
“parentesco verdadeiro” o que vinha “pela parte dos pais que são os
agentes”; e que as “mães não são mais que uns sacos [...] em que se
criam as crianças”; por isso usavam “das filhas das irmãs sem nenhum
pejo ad copulam”.
O autor analisa também que, embora parecessem libertinas ao olhar europeu, as
várias culturas ameríndias eram impregnadas de restrições. Dentre estas, destacavam-se
as que, da perspectiva das tribos, impediam o intercurso sexual entre os descendentes.
Seguindo uma organização familiar semelhante à bororo, diversos indígenas brasileiros
impuseram limitações aos seus relacionamentos a fim de evitarem o que, para eles, era
tido como incesto É o que se constata na abordagem de Freyre (1984, 101-3):
O intercurso sexual entre os indígenas desta parte da América não se
processava tão à solta e sem restrições como Vespúcio dá a entender;
nem era a vida entre eles a orgia sem fim entrevista pelos primeiros
viajantes e missionários. (...) A exogamia era restrição seguida por
quase todos: cada grupo por assim dizer dividindo-se em metades
exógamas, que por sua vez se subdividiam em menores grupos ou clãs.
(...) Fora da noção, embora vaga, do incesto e da unilateral, da
consangüinidade, havia mais entre os indígenas do Brasil, como
restrição ao intercurso sexual, o totemismo segundo o qual o indivíduo
do grupo que se supusesse descendente ou protegido de determinado
animal ou planta não se podia unir à mulher de grupo da mesma
descendência ou sob idêntica proteção. Sabe-se que a exogamia por
efeito do totemismo estende-se a grupos os mais distantes uns dos
outros em relações de sangue. Esses grupos formam, entretanto,
alianças místicas correspondentes às do parentesco, os supostos
descendentes do javali ou da onça ou do jacaré evitando-se tanto
quanto irmão e irmã ou tio e sobrinha para o casamento ou a união
sexual.
Aliado à exogamia, que proibia ao índio se casar com as mulheres do seu clã, o
sistema classificatório do totemismo também servia de empecilho para as uniões
conjugais. Este, conforme será visto a seguir, se fez marcante não somente entre as tribos
brasileiras, mas também na estrutura social de diversos povos aborígines, especialmente
na Austrália e na América.
Freyre (1984, p. 103) sugere que tais restrições se fizeram propícias para o
intercurso sexual entre o europeu e o indígena brasileiro e a conseqüente miscigenação.
Com tantas restrições, vê-se que não era de desbragamento a vida
sexual entre os indígenas desta parte da América, mas ouriçada de
tabus e impedimentos. Não seriam tantos nem tão agudos esses
impedimentos como os que dificultam entre os europeus as relações
amorosas do homem com a mulher. Davam, entretanto, para criar um
estado social bem diverso do de promiscuidade ou de deboche. É aliás
erro, e dos maiores, supor-se a vida selvagem não neste, mas em
vários outros dos seus aspectos, uma vida de inteira liberdade. Longe
de ser o livre animal imaginado pelos românticos, o selvagem da
América, aqui surpreendido em plena nudez e nomadismo, vivia no
meio de sombras de preconceitos e de medo; muitos dos quais nossa
cultura mestiça absorveu, depurando-os de sua parte mais grosseira ou
indigesta.
Diante da dificuldade ocasionada pelos tabus da prevenção do incesto, o
colonizador surgiu, para o indígena, como uma alternativa de união sem maiores
restrições. O europeu era um elemento alheio ao clã, sem qualquer traço totêmico. De
acordo com o sociólogo, ele era até estimulado ao intercurso sexual com as mulheres que
o indígena lhe oferecia, como prova de sua hospitalidade. Além disso, a poligamia era um
comportamento quase unânime entre as tribos brasileiras, facultando ao colonizador se
relacionar com várias índias dentro da moral vigente dos clãs, mesmo que ele fosse
casado em sua terra natal. O branco, evidentemente, soube tirar proveito desse aspecto da
cultura indígena, ao explorar a índia e, posteriormente, desencadear o genocídio dos
índios brasileiros.
Em Totem e Tabu, Freud (1999) aborda, com mais precisão, a polêmica que
envolve as relações incestuosas. Ao direcionar seu enfoque para as tribos aborígines que
habitaram a Austrália, o estudioso afirma que o horror ao incesto é marcante em tais
grupos.
Uma das características inerentes às tribos estudadas pelo autor é, também, o
totemismo. Esse sistema, conforme discutido acerca das tribos brasileiras, consiste,
geralmente, na escolha de um animal utilizado para nomear o clã. Simbolicamente, este
passa a ser considerado o antepassado comum daquele grupo. Assim, os laços sangüíneos
dos aborígines passam a ser substituídos por laços totêmicos. Tal substituição, contudo,
não implica a liberação do incesto. Pelo contrário, mesmo dentro do totemismo, as
relações incestuosas são abominadas, implicando, em alguns casos, a punição com a
morte de seus praticantes.
Aparentemente, o totemismo causa estranheza diante do sistema de parentesco
adotado na contemporaneidade. No entanto, são perceptíveis algumas semelhanças entre
ambos. No sistema de parentesco atual, determinados indivíduos também passam a
integrar uma família sem qualquer laço sangüíneo, mas tão somente simbólico. É o caso
dos cunhados, genros e sogros que, após o casamento dos envolvidos, tornam-se
depositários do mesmo respeito que estes direcionariam a seus irmãos, filhos ou pais.
Evidentemente, esse laço simbólico implica, também, a condenação do incesto entre o
membro do casal e seu novo parente, independente da inexistência de consangüinidade.
Este, denominado incesto moral, é ficcionalizado por Rachel de Queiroz nas obras em
análise.
No romance em questão, a relação vivenciada pela Senhora e Laurindo aponta
para a temática discutida por Freud (1999). Ao analisar o incesto cometido entre sogra e
genro, Freud (1999, p. 22) chama a atenção para as formas de precaução deste, existentes
entre diversos aborígines australianos e brasileiros, por exemplo.
A evitação mais difundida e rigorosa (e a mais interessante, do ponto de
vista das raças civilizadas) é a que impede relações de um homem com
a sogra. É bastante generalizada na Austrália e estende-se também à
Melanésia, Polinésia, e às raças negras da África, onde quer que traços
de totemismo e do sistema classificatório de parentesco sejam
encontrados e provavelmente mais além ainda. Em alguns desses
lugares proibições semelhantes quanto a relações inocentes entre
uma mulher e o sogro, mas são muito menos comuns e severas.
A prevenção do incesto entre genro e sogra e a conseqüente evitação desta não
foram, portanto, fenômenos exclusivos da tribo Bororo. Essas práticaso recorrentes na
história de diversos povos. De acordo com o teórico, os vestígios da imemorial evitação
da sogra ainda permanecem na sociedade contemporânea, principalmente na idéia
difundida pelo imaginário popular, segundo a qual ela seria para o genro um integrante
desagradável na família. O genro, então, passaria a repelir sua sogra para se esquivar da
sua suposta prepotência. Os livros de piadas corroborariam essa premissa, ao
reproduzirem o arquétipo da sogra arrogante, que causa aversão ao genro e vice-versa.
Freud (1999, p. 24) salienta que “as relações entre genro e sogra são também um
dos pontos delicados da organização familiar nas comunidades civilizadas (...), mas
muitas discussões e desentendimentos poderiam freqüentemente ser eliminados se a
evitação ainda existisse (...) e não tivesse de ser recriada pelos indivíduos [grifo do
autor]. De acordo com a perspectiva freudiana, atualmente essa espécie de aversão ainda
se faz presente nos vários elementos culturais que induzem o genro a repudiar a sogra. O
motivo para essa recriação da evitação estaria no medo imemorial do incesto, marcante na
estrutura social de povos ancestrais.
3.3 - Dôra versus Senhora: um conflito freudiano
Em Dôra, Doralina, o adultério incestuoso torna insustentável a relação entre
Dôra e a Senhora que, por sinal, sempre foi muito conflituosa. Elas personificam o que
seria, de acordo com a Psicanálise, o complexo de Electra. Segundo esse conceito, a filha,
em uma das fases iniciais de sua vida, se apaixonaria pelo pai, vendo na mãe a sua maior
rival. É o que postula a teoria de Freud (1978, p. 234-5):
A filha, sob a influência de sua inveja do pênis, não pode perdoar à mãe
havê-la trazido ao mundo tão insuficientemente aparelhada. Em seu
ressentimento por isto, abandona a mãe e coloca em lugar dela outra
pessoa, como objeto de seu amor - o pai. (...) A filha se põe no lugar da
mãe, como sempre fizera em seus brinquedos; tenta tomar o lugar dela
junto ao pai e começa a odiar a mãe que costumava amar, e isso por
dois motivos: por ciúme e por mortificação pelo pênis que lhe foi
negado. Sua nova relação com o pai pode começar tendo por conteúdo
um desejo de ter o pênis dele à sua disposição, mas culmina noutro
desejo - ter um filho dele como presente. (...) É interessante que a
relação entre o complexo de Édipo e o complexo de castração assuma
forma tão diferente - uma forma oposta, na realidade - no caso das
mulheres quando comparada com a dos homens. Nos indivíduos do
sexo masculino, (...) a ameaça de castração fim ao complexo de
Édipo; nas mulheres, descobrimos que, ao contrário, é a falta de um
pênis que as impele ao seu complexo de Édipo. Pouco prejuízo é
causado a uma mulher se ela permanece em sua atitude edipiana
feminina (O termo “complexo de Electra” foi proposto para esta).
Como o pai de Dôra morreu quando ela ainda era quase um bebê, a imagem
paterna se configura como uma névoa encantatória que, em virtude da morte, ela não tem
como superar. A Senhora, por sua vez, agrava esse sentimento, ao negar à filha qualquer
informação sobre o pai, estabelecendo entre elas uma disputa pelas lembranças do
falecido. “- E meu pai, como é que me chamava? De repente eu tinha que saber como é
que meu pai me chamava, seria a palavra de meu pai contra a palavra de Senhora. Mas
Senhora não respondeu (p. 19). Essa relação conflituosa envolvendo mãe e filha, ao
invés de esmaecer, como seria o processo natural, agrava-se com o tempo, conforme
evidenciam as reminiscências abaixo:
Senhora, aos poucos, quase sem querer, fui me acostumando a dizer o
nome dela como todo o mundo; o nome de mãe que eu tentei e ela não
me obrigou; e depois se tivesse viva e me forçasse e eu mesma me
forçasse, não me haveria de sair da boca [grifo da autora] (p. 10). Eu
tive vontade de dizer: “O seu mal é um só: foi eu ter nascido; e, depois
de nascer, me criar”. Mas tive medo. Por esse tempo eu tinha
deixado de chamar Senhora de “mamãe”. Ainda não tomara coragem
para dizer “Senhora” como nome próprio, na vista dela - dizia “a
senhora”, o que era diferente. Mas de mãe não a chamava. Se ela
percebeu, não sei. Nas ausências, quando dava um recado para os
outros ou contava um caso em que Senhora comparecia, eu dizia
“Ela”. Todo o mundo entendia (p. 16). Com Senhora, sempre me tinha
parecido desde pequena que eu tinha de brigar até pelas horas de sono
(p. 28).
A maneira com que a Senhora sonega à Dôra os referenciais paternos evidencia a
disputa acirrada entre mãe e filha e a relação entre elas é, sempre, a de duas rivais, seja
pelo espaço, pela posse da fazenda ou pelas lembranças do pai de Dôra. Essa disputa se
faz presente, por exemplo, no episódio em que Dôra enfrenta a mãe e, fazendo valer seus
direitos de herdeira, guarida a Delmiro, o ex-jagunço, que terá um papel fundamental
no enredo do romance. “Tive a briga com Senhora e garanti a tapera a Delmiro (p. 38).
Como a lembrança paterna é o único referencial afetivo para ra, e a Senhora,
além de desprezá-la, não compartilha com a filha o que ela anseia saber sobre o pai, a
protagonista não consegue alcançar um crescimento individual. As poucas informações
paternas que Dôra consegue “garimpar” em meio aos ásperos diálogos que mantém com a
Senhora não são suficientes para que ela componha uma imagem precisa sobre o pai e
sobre como foi o comportamento dele em relação a ela.
Contrapondo-se Dôra a Maria Moura, percebe-se que o referencial paterno
desempenha diferentes papéis para cada protagonista. Enquanto para Maria Moura, a
lembrança do pai lhe serve de inspiração e encorajamento, para ra, a falta de
informações sobre ele contribui para a sua frustração, acentuada pela sonegação e pela
indiferença materna. Além de faltar a Dôra um referencial masculino, o relacionamento
com Laurindo, desde o namoro, é frio e culmina no adultério com a Senhora e,
conseqüentemente, na viuvez da narradora.
Essa disputa entre Dôra e a Senhora - que atinge seu ápice no relacionamento
incestuoso - é uma constante entre mãe e filha, como exemplifica o momento em que
Dôra, ainda adolescente, deixa de tomar a bênção à mãe:
Laurindo tornou a abrir e fechar o sorriso: - Acho mais jeito em dizer
Prima Senhora. Pensei nele tomando a bênção a Senhora. Eu, por
mim, deixara disso muito tempo antes; uma vez dormi e acordei,
quando passei por Senhora dei bom-dia e ela não reclamou e quando
fui dormir dei boa-noite; no dia seguinte, na mesa, mexendo o café,
foi que ela disse: - Que história é essa de bom-dia? Cadê a bênção?
Olhei nos olhos de Senhora e sabia que estava sendo insolente; fiquei
parada assim um instante, depois baixei a vista para o pão de milho: -
Maria Milagre conta que negro cativo era que tomava bênção de
manhã e de noite. Senão levava peia. - E você se regula pelo que lhe
conta a negra velha? - Também li nos livros. (...) - O meu mal foi ter
gasto o dinheiro que gastei botando você em colégio, pra aprender
essas besteiras (p. 16).
Em Os parceiros do Rio Bonito, Candido (2001, p. 313) analisa o significado
simbólico implícito ao ato de pedir a bênção e ser abençoado, ainda em vigor na primeira
metade do século XX, época à qual se reporta a narrativa em questão:
Os filhos, em muitos casos, juntam as mãos e dizem - “Louvado”;
noutros, porém, juntam as mãos e dizem - “A bênção!” - respondendo o
pai - “Deus abençoe”; mas em qualquer caso continua-se a designar o
ato como “dar louvado”. Devia-se dar louvado também aos avós e tios,
fazê-lo em relação a qualquer adulto, marcando-se deste modo a
separação de direitos e deveres das diferentes categorias de idade. (...)
Em 1827, Hércules Florence registrava: “Dar louvado” é pôr as mãos
juntas e pronunciar as seguintes palavras: “Seja louvado Nosso Senhor
Jesus Cristo”, ao que responde o senhor: “Para sempre seja louvado” ou
simplesmente “Para sempre”. É o bons dias do escravo para o amo, do
filho para o pai, do afilhado para o padrinho, do aprendiz para o mestre
[grifo do autor].
Além do cunho religioso, o pedido da bênção implicava a distinção de direitos e
deveres dos membros da família nas diferentes faixas etárias e sociais. Abençoar,
dizendo-se “Deus seja louvado” ou “Deus abençoe”, como relata o autor, era facultado,
apenas, a quem detinha a supremacia nas relações de poder. Ao deixar de pedir a bênção
à Senhora, Dôra passa a negar o respeito inerente à figura materna: única autoridade na
fazenda, visto que o pai já havia morrido. A afronta é a forma de Dôra responder de igual
para igual, acentuando os atritos na relação com sua mãe.
3.4 - A família na transição do modelo patriarcal ao semi-patriarcal
A relação entre Dôra e a Senhora se respalda num modelo familiar que, hoje, não
se sustenta mais. Ao se reportar a esse modelo, Candido (1951, [s.n.]) destaca a rigidez
hierárquica das relações da família patriarcal, em especial, no meio rural:
O núcleo legal era o centro da organização doméstica e desde o
começo, ele se desenvolveu de acordo com moldes que persistiram até
poucas décadas atrás. A dominação do chefe era quase absoluta,
correspondendo às necessidades da organização social de um imenso
país sem polícia e caracterizado por uma economia que dependia da
iniciativa em larga escala e do comando sobre uma numerosa força de
trabalho de escravos. Era um tipo de organização social na qual a
família necessariamente era o grupo dominante no processo de
socialização e integração, um grupo no qual as distâncias estavam
rigidamente marcadas e reguladas pela hierarquia. O filho chamava o
pai e a mãe: Senhor pai e Senhora mãe, e se dirigia a eles como Vossa
Mercê, e mais tarde, por Senhor e Senhora. Os filhos pediam as
bênçãos dos pais de manhã, de noite e sempre que os encontravam. A
forma mais comum, que desapareceu inteiramente, consistia em dizer
de cabeça baixa e mãos entrelaçadas: “Louvado seja ou “Louvado”,
em abreviação de Louvado Nosso Senhor Jesus Cristo. A isto o pai
respondia “Para sempre seja louvado”. Mais tarde, mais simplesmente:
“Bênção” e o pai respondia - “Deus o abençoe”.
Segundo o autor, esse modelo familiar - adotado desde o início da colonização
brasileira e vigente até os primeiros decênios do século passado - foi implantado com
base na influência européia medieval. O pesquisador enfatiza que a maioria dos
colonizadores que se aventurou em solo brasileiro era oriunda das camadas médias ou
desfavorecidas na sociedade portuguesa da época. De origem quase exclusivamente rural,
os colonizadores difundiram uma cultura ainda mais conservadora que a das classes
abastadas e urbanas portuguesas do século XVI.
De acordo com o teórico, esse comportamento conservador começou a dar
indicativos de mudança a partir dos reinados de D. João II e de D. Manuel I. Antes disso,
porém, o padrão de liderança do modelo familiar vigente concentrava-se na figura do
pater-famílias. Este, representado exclusivamente pelo gênero masculino, era
característico por sua rudeza e truculência no desempenho da autoridade que lhe era
conferida, como ilustram a Literatura, os mitos e as tradições medievais, que comumente
se reportavam a esse tipo de líder.
O estudioso considera que o colonizador pouco foi influenciado pelas mudanças
culturais nos reinados de D. João II e de D. Manuel I. Em solo brasileiro, o português
continuou seguindo o modelo do pater-famílias. Essa prática rendeu atrocidades
marcantes ao longo de todo o período patriarcal. É o que destaca Candido (1951, [s.n.]):
A autoridade paterna era praticamente ilimitada, pois os filhos
permaneciam submetidos ao pai enquanto este vivesse, moravam
freqüentemente em sua casa ou em outra que ele lhes dava. Por direito
a iniciativa econômica e política era sua e, em alguns casos extremos é
que está a prova de sua onipotência, pois ele proferia sentenças contra
seus descendentes rebeldes, assim como julgava seus agregados e
adversários - sem dirigir-se à justiça real. Por exemplo, no século XVII,
Fernão Dias Pais condenou o enforcamento de seu filho ilegítimo que
era acusado de rebelião em sua bandeira. Na Bahia, Pedro Vieira
ordenou que fosse morto um de seus filhos legítimos, casado, que o
traíra com uma amante; no culo XVIII, Antonio de Oliveira Leitão,
em Minas Gerais, executou com suas próprias mãos, uma filha que
acenara um lenço para alguém que ele julgara ser seu amante; no século
XIX, um filho ilegítimo de um fazendeiro de Minas Gerais, fugiu com
uma das amantes de seu pai e este ordenou que seus dependentes
matassem os dois. (...) Estes são casos excepcionais, mas eles ilustram
o fôlego do poder paterno na família patriarcal e a violência com a qual
ele reagia à ameaça de ruptura da honra doméstica.
Conforme relata o teórico, o exercício desse tipo de liderança familiar vigorou, no
Brasil, até o início século XX, período em que transcorre a narrativa de Dôra, Doralina.
Ao se atentar para esta, depreende-se que é a esse modelo de família que a Senhora se
reporta, ao tentar imitar, após a sua viuvez, os padrões de comportamento destinados ao
tradicional pater-famílias.
Embora legitimasse a violência e o assassinato, esse modelo familiar se fez
propício desde a colonização, principalmente por ser uma alternativa para a resolução dos
problemas típicos de uma nação em formação. Assim, esse sistema familiar contornou as
necessidades que se fizeram mais urgentes, quando ocorreu a estruturação inicial da
sociedade brasileira. Nesse sentido, Candido (1951, [s.n.]) afirma:
A estrutura da família patriarcal e a mentalidade nela formada
constituíram então, durante quase três séculos, os pontos de apoio sobre
os quais se assentavam as bases de nossa civilização. A estrutura do
tipo romano era uma organização necessária, a fim de erguer e pôr em
ação uma força centrípeta que reagrupasse e harmonizasse todas as
particularidades e todas as discordâncias e revelasse o surpreendente
poder de adaptação para envolver e prender em seus tentáculos não
membros da família, mas todos os tipos de agregados e a turbulenta
senzala de africanos. Era um instrumento de disciplina que produzia a
ordem que não se teria estabelecido no caos de um povo em formação,
sem estas poderosas instituições automaticamente centralizadas.
Do modelo familiar legado pelo europeu, desenvolveu-se a família brasileira que,
transformando-se paulatinamente, alcançou o estado em que hoje é conhecida. Dentro
desse processo, Candido (1951, [s.n.]) avalia as principais mudanças no contexto familiar
durante a transição do modelo patriarcal ao semi-patriarcal:
Num panorama econômico limitado pelas perspectivas de atividade, o
filho e o neto desempenhavam as mesmas atividades que o pai e o avô
e, neste caso, o sucesso dependia da experiência adquirida com o
tempo. O filho de um fazendeiro era um fazendeiro por força das
circunstâncias. Entretanto, a evolução da economia conseqüente
sobretudo da vinda da família real portuguesa ao Brasil, e a
conseqüente abertura dos portos às nações amigas (1808) enriqueceu a
vida social com um número muito maior de possibilidades,
principalmente por suas repercussões no setor político e pelo
aparecimento de novos tipos de líderes. A liderança tornou-se
dependente não da força e prestígio econômico, mas também das
capacidades intelectuais. Abriu-se perante o filho da família, como
perante uma pessoa consumida pela ambição, tais perspectivas que ele
podia se separar da esfera quase sufocante da vida familiar e,
conseqüentemente da tutela do pai de cujas atividades ele não tinha
mais necessariamente que participar.
Como o autor demonstra, uma tímida mudança na estrutura da família brasileira
começou a se dar apenas após três séculos de jugo patriarcal. Mudanças mais
significativas ocorreram, de fato, a partir dos primeiros decênios do século XX,
período em que o regime de economia patriarcal deixou de se sustentar, entrando, assim,
em decadência. Ao abordar os fatores mais propícios à evolução cultural da família,
Candido (1951, [s.n.]) atribui à urbanização um peso decisivo, visto que foi a partir desta
que
A elite rural começou a procurar a cidade para residir e, mais tarde,
para trabalhar e desenvolveu-se principalmente durante o século
presente [século XX], aumentando sucessivamente em cada
desenvolvimento industrial. Não enormes massas de trabalhadores
rurais e habitantes de pequenas cidades migraram para centros maiores,
mas também os traços da cultura urbana material e não material se
difundiram por extensas áreas.
No Brasil, a primeira metade do século XX foi marcada pela peculiaridade das
mudanças nas relações familiares. Estas se evidenciam quando Candido (1951, [s.n.])
traça um paralelo entre os hábitos constatados na família brasileira durante o regime
patriarcal e aqueles verificados por ele em meados do século passado.
No âmago das relações domésticas, as mudanças de status do homem e
da mulher trouxeram conseqüências diretas sobre o comportamento das
crianças. Os pais tratados com maior cordialidade e intimidade, o uso
de você em lugar de senhor (embora este tratamento permaneça nas
zonas rurais e entre as pessoas comuns) e a prática de beijar - que
substitui a bênção - ou se combina com ela. Em troca, os pais reduzem
gradualmente os excessos de severidade que prevaleciam inicialmente.
Na burguesia urbana, a punição física é rara, tanto com a mão, régua,
bastão ou vara, antes comumente usada.
É nesse período de transição que Rachel de Queiroz ambienta o romance Dôra,
Doralina, especialmente a primeira e última partes que, inseridas no sertão cearense,
desvelam uma organização social semi-patriarcal. A obra possibilita inferir que, nesse
período, o patriarcalismo não mais se sustentou, principalmente no que se refere à
severidade das relações entre pais e filhos. Essa tensão está implícita à postura de Dôra,
quando ela deixa de se submeter aos mandos da Senhora, como ilustra o episódio no qual
a narradora não toma mais a bênção da mãe sob os protestos desta.
Um dos aspectos mais marcantes do modelo familiar patriarcal foi a dupla moral
sexual. Enquanto a esposa deveria ser fiel ao marido, o adultério masculino, de tão
comum, beirava o convencional. Este ocorria com freqüência, envolvendo até parentes,
como o que está ficcionalizado em Dôra, Doralina.
Enquanto ao homem era facultado o livre trânsito entre a casa e a rua, à mulher
infiel penalizava-se, algumas vezes, com a morte, pois, conforme os valores patriarcais,
permitia-se ou até se exigia do homem lavar sua honra com sangue. Damatta (1991, p.
57-61), ao contrapor as representações sociais conferidas ao espaço “da casa e ao “da
rua”, discorre a propósito do trânsito entre o universo familiar e o mundano permitido ao
homem nesse contexto:
O interior das casas, reservado às mulheres, é um santuário em que o
estranho nunca penetra. (...) Na rua devem viver os malandros, os
meliantes, os pilantras e os marginais em geral - ainda que esses
mesmos personagens em casa possam ser seres humanos decentes e até
mesmo bons pais de família.
Mesmo durante a época patriarcal, houve, a despeito da moral vigente, o descaso,
também, em relação à infidelidade feminina, pois, em geral, o que prevalecia no
casamento e, conseqüentemente, nas relações conjugais, era o peso sócio-econômico e o
jogo de interesses familiares. É o que relata Candido (1951, [s.n.]):
Não as mulheres, mas os maridos, pais e irmãos, percebiam, e
ficavam calados. Parece que a explicação deve ser procurada na
circunstância (...) de que a família brasileira dos tempos coloniais
desempenhava uma função que era primeiramente econômica e política.
Por esta razão, a estabilidade e a continuidade eram tão importantes que
as escapadas nos aspectos emocionais não eram suficientes para
justificar o rompimento da família. Desde que não era, como o é hoje,
um sistema primeiramente afetivo e sexual, estava em certa extensão
imunizada contra os desajustamentos naquela esfera. Os traços
indicados correspondem ao tipo de família que existiu no Brasil do
século desenvolvido XVI ao XIX e que, como um sistema de
integração, em muitos aspectos era originalmente desenvolvida pela
necessidade dos colonos europeus de se acomodarem numa economia
tropical baseada no latifúndio e na escravidão. Em certa extensão,
pode-se dizer que ela constituiu a organização fundamental do período
colonial, sendo que a produção, administração, defesa e status social do
indivíduo dependiam dela.
De maneira similar ao que é abordado por Candido (1951), os interesses
econômicos também estão na base do casamento entre Laurindo e Dôra, assim como no
adultério. A afetividade é adversa ao modelo familiar vigente seguido pelo casal,
principalmente da perspectiva de Laurindo, conforme será discutido a seguir.
3.5 - Os interesses econômicos e o incesto em Dôra, Doralina
Em relação a Laurindo, pode-se presumir - partindo da voz popular - que foi por
interesse que ele se casou com Dôra, ao invés de fazer a corte à Senhora, o que teria
contribuído para que ele se tornasse amante da sogra, uma mulher ainda viçosa, feminina
e saudável, a despeito de sua maturidade. É o que se depreende dos comentários dos
moradores de Aroeiras que, durante o namoro entre Laurindo e Dôra, haviam feito
apostas sobre se Laurindo se casaria com ela ou com a sua mãe.
Laurindo teria se casado com Dôra, apenas, por uma questão de conveniência
financeira, visto que, com o tempo, ela herdaria não a parte legítima - sua metade por
direito com a morte do pai -, como também a parte da Senhora, que Dôra era a única
herdeira. Contudo, seu esposo, valendo-se da condição masculina, é que passaria a
administrar o patrimônio herdado. Essa intenção é evidenciada na fala da agregada
Xavinha, quando ela revela a Dôra os comentários que ouviu na cidade de Aroeiras
acerca de seu casamento:
E então D. Dagmar disse que na rua foi a maior admiração com o
resultado do casamento, tinha gente nas Aroeiras que até fez aposta
como casava a velha e não a moça. Seu Carmélio de Paula foi um.
Mas o tabelião, aquele Esmerino, tinha dito ali mesmo no balcão da
farmácia que cobria a aposta: Laurindo casava era com a moça: -
Não que casando com a viúva ele pega metade da meação dela,
porque a outra metade é a herança da filha? Mas casando com a moça
leva logo a legítima do pai e depois vem a herança da mãe, direta, sem
repartimento... E Seu Carmélio disse que podia ser, de herança ele não
entendia, mas entendia de gente, e duvidava muito que de qualquer
jeito o agrimensor botasse a mão num vintém de nada, a não ser por
morte da velha... (p. 26).
De acordo com a voz popular, Laurindo reproduz um comportamento muito
comum no Nordeste brasileiro até a primeira metade do século XX, universo similar ao
criado ficcionalmente por Rachel de Queiroz. Nesse sentido, Falci (2000, p. 256-7) reitera
a análise de Candido (1951), ao relatar como, na sociedade sertaneja da época, eram
freqüentes os casamentos motivados exclusivamente por interesses econômicos:
O casamento da elite do sertão nordestino sempre foi antes de tudo um
compromisso familiar, um acordo, mais do que um aceite entre
esposos. Assim, pai e mãe, conhecedores das famílias da sociedade
local e com a responsabilidade de “orientar as filhas”, ao propiciarem
alegres festas e saraus na casa da fazenda - transcritos em livros de
memórias e diários do século passado -, estavam cuidando da
manutenção e solidificação dos laços de amizade, do patrimônio
territorial, e da inter-relação de famílias poderosas oligárquicas locais.
A autora considera que o plano econômico se sobrepôs ao afetivo no casamento
da mulher sertaneja. Esta, desde menina, era estimulada - ou forçada - a contrair
matrimônio levando em consideração apenas as posses de seu pretendente. Em Sobrados
e mucambos, Freyre (2000, p. 160-1) salienta que os casamentos por interesse eram
comuns em todo o Brasil até a metade do século XIX:
Os pais nobres, no maior número dos casos, não queiram saber de
casamentos senão entre iguais étnica, social e economicamente. E os
iguais eram quase sempre os primos, o tio e a sobrinha, os parentes
próximos. As filhas, porém, as iaiás dos sobrados, as sinhás das
próprias casas-grandes de engenho, deixando-se raptar por donjuans
plebeus e de cor, perturbaram consideravelmente, desde os começos do
século XIX, o critério patriarcal e endogâmico de casamento. (...) Sellin
assinalou o grande número de moças raptadas dos sobrados e das casas-
grandes, na segunda metade doculo XIX. (...) Esses raptos marcam,
de maneira dramática, o declínio da família patriarcal no Brasil e o
começo da instável e romântica. Patriarcas arrogantes ficaram
reduzidos quase a reis Lear. A ascensão do mulato e do bacharel (...)
acentuou-se através desses raptos; mas também a ascensão da mulher.
Seu direito de amar, independente de considerações de classe e de raça,
de família e de sangue. Sua coragem de desobedecer ao pai e à família
para atender aos desejos do sexo ou do “coração” ou do “querer bem”.
Geralmente impulsionados por interesses financeiros, com vistas a evitar a
dispersão do patrimônio familiar, os casamentos, em sua maioria consangüíneos, foram
recorrentes ao longo de toda a época patriarcal, como será discutido no próximo sub-
capítulo. Conseqüentemente, a grande maioria das uniões conjugais oficiais esteve
limitada não pelo círculo social, como também pela etnia, o que é explicitado, em
Memorial de Maria Moura, na relação de Moura com Duarte, o mulato com o qual ela se
relaciona sexualmente sem qualquer pretensão matrimonial, conforme discutido no
primeiro capítulo.
De acordo com Freyre (2000), os casamentos sem fins econômicos começaram
a ocorrer com freqüência, quando os pretendentes, na maioria mulatos e brancos pobres,
passaram a raptar as sinhazinhas diante da desaprovação do critério patriarcal para o
namoro. Estas, não mais se subordinando à escolha do marido pela família, fugiam com
os homens de sua predileção, a quem os pais não consentiam o casamento, na maioria das
vezes, devido à sua situação financeira, inferior à da família da jovem ou, também, por
possuírem tez mais escura do que elas.
A postura dessas moças evidencia o início da insustentabilidade patriarcal,
especialmente nas severas relações familiares, como já se analisou na relação entre Dôra e
Senhora. A partir de meados do século XIX, o poder do patriarca começou a diminuir
paulatinamente na sociedade. Segundo o teórico supracitado, um dos motivos para essa
diminuição foi a introdução da magistratura do Império nas questões anteriormente de
domínio exclusivo da autoridade patriarcal, como, por exemplo, os raptos das filhas. No
que se refere a estes casos, Freyre (2000, p. 162) afirma: “[...] solução favorecida pela
intrusão da ‘justiça de juiz’ em zona outrora exclusivamente dominada (...) pela ‘justiça’
do patriarca de casa-grande ou de sobrado”.
A despeito do poder patriarcal, vários casamentos de jovens raptadas foram
legalizados pelos juízes. A indignação da imprensa da época diante dessas condutas
jurídicas possibilita inferir o início do declínio do patriarcalismo. É o que se constata pela
matéria do Diário de Pernambuco, de julho de 1854, referenciada por Freyre (2000, p.
161): “[...] apparece o supprimento desse consentimento dado por juizes. (...) E qual o
resultado de tão graves abusos? O enfraquecimento da autoridade paterna, a dissolução
dos mais poderosos vinculos da família e consequentemente a desmoralisação e o
anniquilamento da sociedade”. Portanto, somente com a decadência do patriarcalismo as
escolhas individuais passaram a ter peso no casamento, baseadas na atração e no amor
romântico.
Em Dôra, Doralina, as razões financeiras difundidas pelo meio familiar ficam
claras quando, durante o namoro com Dôra, Laurindo recebe uma carta de sua mãe: a
“prima” Leonila, como ela é tratada pela narradora.
Ele trazia as cartas que Prima Leonila lhe escrevia de São Luís. Nunca
pensei que mãe longe escrevesse tanta carta. Tinha uma delas que
dizia: “Meu filho, espero que trabalhe e vença na vida, faça fortuna e
realize minhas esperanças que me sacrifiquei tanto pelos seus estudos”.
Fosse eu não mostrava, também não sei se ele mostrou por engano;
Senhora leu aquelas linhas em voz alta, Laurindo ficou meio corado e
disse depressa: - Não, o recado para a senhora é mais embaixo... (p.
27).
O constrangimento de Laurindo, diante da leitura da carta, deixa implícita a
motivação econômica de suas pretensões. Em sintonia com a mentalidade capitalista
vigente, ele teria se aproveitado da situação financeira de sua futura esposa. Como
conseqüência, seu casamento se igualaria àqueles analisados por Falci (2000, p. 269):
Havia um intenso nível de violência nas relações conjugais no sertão.
Não violência física exclusivamente (surras, açoites), mas violência do
abandono, do desprezo, do malquerer. Os fatores econômicos e
políticos que estavam envolvidos na escolha matrimonial deixavam
pouco espaço para que a afinidade sexual ou o afeto tivessem grande
peso nessa decisão.
A relação do casal, narrada por Dôra de maneira fria e impessoal, indicativos
da falta de sintonia conjugal, que atingirá o auge no incesto, conforme se percebe na
citação seguinte:
Gente nova não adivinha nem quer adivinhar certas coisas; e mesmo
quando tem um aviso, dez avisos, não acredita. Eu confesso que
comigo, então, era aquela arrogância: achava que podia levar tudo do
meu gosto, viesse Xavinha com as suas histórias, sentisse Laurindo me
escorregar entre os dedos sem que eu tivesse como prender a criatura.
No entanto - que sinal mais sério, por exemplo, do que os mexericos
que Xavinha dizia andavam fervendo nas Aroeiras? Ou, pior que tudo,
aquela frieza de mim pra ele - e dele pra mim? Eu pensava que
casamento não tem jeito, uma vez a gente casando é igual à morte,
definitivo; ou não: eu pensava que casamento era como laço de
sangue, como pai e filho - a gente pode brigar, detestar, mas assim
mesmo está unido, ruim com ele, pior sem ele, o sangue é mais grosso
que a água, essas coisas. Com o nó do padre e do juiz eu teria ganho a
minha vitória para sempre e ele agora era meu assinado no papel. E
assim ia notando mas não me alarmava - ou não me alarmava muito
[grifo da autora] (p. 44-5).
A perspectiva da narradora em relação ao casamento se ajusta aos moldes
patriarcais. Ao perceber a frieza, não a do marido como também a sua, Dôra se
conforma, por acreditar que, uma vez efetivado, o enlace deveria ser eterno,
independentemente da satisfação conjugal. O provérbio “casamento e mortalha no céu se
talha” vai ao encontro dessa perspectiva, evidenciando o conformismo, crucialmente o
feminino, em relação ao matrimônio. Se a postura de Dôra é de conformismo, o interesse
financeiro de Laurindo é, também, característico da ordem patriarcal, a não ser pelo
agravante do adultério incestuoso. A despeito da transgressão, o comportamento de
Laurindo evidencia a conjuntura de uma sociedade machista.
O romance em questão desvela uma organização social conservadora que ainda
privilegia o homem nas relações de poder. São as razões econômicas, difundidas por esse
tipo de sociedade, que incitaram Laurindo a se cassar com Dôra e não com a Senhora, o
que teria colaborado para que ele viesse a cometer incesto moral. Essas razões também
subjazem ao caso de incesto em Memorial de Maria Moura, mas de maneira mais
acentuada, visto que a obra se reporta ao período mais radical do patriarcalismo,
conforme será explanado na seqüência.
3.6 - O incesto e a economia patriarcal no Memorial
Na obra Memorial de Maria Moura, é Liberato, o amante da mãe da protagonista,
que, após a morte desta, seduz a enteada. Ao se deixar seduzir pelo padrasto, Maria
Moura também protagoniza um episódio de incesto.
Na sociedade patriarcal do século XIX - à qual a obra em estudo se reporta -, o
incesto era um comportamento comum, sendo, em alguns casos, tolerado e estimulado,
conforme discutido. Candido (1951, [s.n.]) discorre acerca da freqüência com que os
envolvimentos incestuosos eram oficializados nesse tipo de sociedade.
Em muitos casos, os casamentos eram contratados no sentido de
estreitar os grupos de parentesco. (...) Preferiam mesmo uniões dentro
do mesmo grupo - casamento entre primos, sobrinhos e outros parentes
eram freqüentes - porque “de um bom estoque não pode vir coisa
ruim”, e também para garantir a preservação do status e dos bens
econômicos numa sociedade cheia de raças misturadas e aventureiros.
Assim, a nova família se ligava de perto, por suas origens, às famílias
da noiva e do noivo; os sogros e sogras (freqüentemente irmãos e
irmãs, tios e tias, primos ou avós) entravam (...) no exercício de uma
supremacia delineada ou prevista pelo parentesco prévio. E o casal
(primos ou parentes) também prolongava na união um laço pré-
existente; talvez o relativo bom senso das situações tão anormalmente
criadas, sem que as partes se tivessem visto ou acolhido.
O incesto envolvendo não primos, mas também tios e suas sobrinhas - tão
freqüentes na sociedade patriarcal - não foi um fato inédito na história do Brasil.
Conforme se discutiu anteriormente, o mesmo era observado entre os índios no início
da colonização. O que os colonizadores acrescentaram a esse comportamento foi um
profundo interesse econômico nas relações. Manter o patrimônio amealhado dentro do
próprio círculo familiar, evitando, assim, a divisão dos bens com famílias estranhas ao
grupo foi fator determinante para a consumação dessas relações incestuosas oficialmente
reconhecidas.
Freyre (1984) corrobora a análise de Candido (1951), ao se reportar às condutas
incestuosas observadas dentro do patriarcalismo. Segundo Freyre (1984, p. 341),
subjacentes à legalização de tais condutas, encontravam-se os interesses financeiros.
Modinhas e canções, era ainda com as mucamas que as meninas
aprendiam a cantar - essas modinhas coloniais tão impregnadas do
erotismo dos ioiôs nos seus derreios pelas mulatinhas de cangote
cheiroso ou pelas priminhas brancas; voluptuosas modinhas de que Elói
Pontes reconheceu uma tão expressiva do amor entre brancos e
mulatas: Meu branquinho feiticeiro,/ Doce ioiô meu irmão,/ Adoro teu
cativeiro,/ Branquinho do coração,/ Pois tu chamas de irmãzinha/ a
tua pobre negrinha/ Que estremece de prazer,/ E vais pescar á
tardinha/ Mandi, piau e corvina/ Para a negrinha comer. Em nenhuma
das modinhas antigas se sente melhor o visgo de promiscuidade nas
relações de sinhô-moços das casas-grandes com mulatinhas das
senzalas. Relações com alguma coisa de incestuoso no erotismo às
vezes doentio. É mesmo possível que, em alguns casos, se amassem o
filho branco e a filha mulata do mesmo pai. Walsh, nas suas viagens
pelo Brasil, surpreendeu uma família brasileira francamente incestuosa:
irmão amigado com irmã. (...) É verdade que para escandalizar o padre
inglês não eram precisos casos extremos de incesto: bastavam os
casamentos, tão freqüentes no Brasil desde o primeiro século da
colonização, de tio com sobrinha; de primo com prima. Casamentos
cujo fim era evidentemente impedir a disposição dos bens.
O espanto do padre Walsh diante das uniões consangüíneas, tal qual menciona o
teórico, evidencia a postura da Igreja Católica frente às relações incestuosas. Ela condena
o incesto, considerando-o como pecado. Conseqüentemente, a sua prática é vedada aos
seguidores do catolicismo, isso porque, historicamente, o incesto passou a ser combatido,
com maior ênfase, a partir do cristianismo. Assim, o tabu do incesto faz parte das normas
sociais e religiosas. No entanto, esse combate não impediu que muitos casamentos
incestuosos entre primos consangüíneos, bem como entre tios e sobrinhas fossem
oficializados em troca de alguma data de terra, doação em dinheiro ou algum outro bem
substancial doado à paróquia ou à diocese onde atuavam os bispos que, na época,
autorizavam tais casamentos.
A Igreja Católica, portanto, precisou assumir um caráter mais maleável, ao tratar
do tabu do incesto. Durante a colonização, ela teve que se adequar à nova realidade
constatada pelos jesuítas, quando ocorreu a catequização dos índios, especialmente no
que se refere à moral sexual das tribos anteriormente analisada. Como a Igreja viu a
possibilidade de aumentar o número de fiéis por meio da inclusão do indígena, ela então,
reconsiderou algumas de suas restrições.
A esse respeito, convém atentar para abordagem de Freyre (1984, p. 101), quando,
baseado nas declarações do Padre Anchieta, ele se reporta à maneira pela qual a Igreja
Católica passou a oficializar o casamento das índias brasileiras, mesmo quando a união
conjugal era considerada incestuosa:
A estas os padres casavam “agora [meados do século XVI] com seus
tios, irmãos das mães, se as partes são contentes, pelo poder que teem
de dispensar com eles...”. O que mostra ter a moral sexual dos índios
afetado logo aos princípios da colonização à moral católica e às
próprias leis da Igreja relativas a impedimentos de sangue para o
matrimônio.
Esse novo posicionamento da Igreja, menos enérgico com relação ao incesto,
estendeu-se do índio ao colonizador e senhor de engenho, indo ao encontro das
pretensões financeiras dos dois últimos. No entanto, apesar de grande parte dos senhores
de terra optar por concentrar sua propriedade dentro dos estreitos laços familiares,
mantidos via casamentos consangüíneos, houve, também, aqueles que se opuseram à
frouxidão católica diante de alguns casos de incesto.
Mas quem ao referir-se à freqüência dos casamentos consangüíneos no
Brasil levantava a voz, indignado contra a Igreja e os padres, é o
Capitão Richard Burton. “Licenças para cometer incesto”, chama ele às
dispensas da Igreja. Mas confessa não ter deparado casos em que se
revelassem “os resultados terríveis” do horroroso pecado
(FREYRE, 1984, p. 342).
Esse comportamento incestuoso - comum e, ao mesmo tempo, polêmico - é
também ficcionalizado, em Memorial de Maria Moura, por meio do envolvimento de
Moura com Duarte, o seu primo por parte de pai. Apesar de ela não pretender oficializar a
união com o meio-primo - para não perder o poder de mando na Casa Forte, conforme
analisado no primeiro capítulo -, o casamento entre ambos, aparentemente, não se
efetivaria em virtude de Duarte ser filho de escrava forra e não por ele ser seu parente. O
parentesco entre os dois é até visto por Moura como um fator favorável ao enlace: “[...] a
gente não se casa com filho de cativo, mesmo que tenha nosso sangue nas veias (p.
324).
O enunciado da protagonista possibilita medir o grau de apreciação do casamento
consangüíneo naquele período histórico, além de indicar que o preconceito em relação à
cor, nesse caso, suplanta o interdito do incesto, na contramão do que afirma Freyre (2000,
p. 159): “Mais depressa nos libertamos, os brasileiros, dos preconceitos de raça do que
dos de sexo. (...) Sexo fraco. Belo sexo. Sexo doméstico. Sexo mantido em situação toda
artificial para regalo e conveniência do homem, dominador exclusivo dessa sociedade
meio morta”.
Além do relacionamento entre Maria Moura e Duarte, a pretensão de Irineu se
casar com a sua prima - Moura - reforça a recorrência a essa conduta no contexto ao qual
a obra se reporta.
A tolerância das uniões incestuosas não é característica exclusiva da sociedade
patriarcal brasileira. Segundo Candido (1951, [s.n.]), outros povos que imigraram para o
Brasil, ao longo dos séculos XIX e XX, reforçaram essa conduta:
Contrariamente ao que pode parecer ser o caso, a imigração
freqüentemente contribuiu para manter os velhos padrões, não
porque os imigrantes adotam os traços semi-patriarcais através de
contato cultural, mas porque, em muitos casos, eles próprios são os
portadores de traços análogos. É, por exemplo, o caso dos italianos da
parte sul da península, com suas tendências fortemente paternalistas e,
sobretudo, os sírios, ainda imersos na organização semi-patriarcal que
eles defendem tenazmente pela segregação e procriação consangüínea.
Embora alguns casos de incesto fossem permitidos em virtude dos interesses
econômicos, a velha ordem não deixou de existir com vistas a manter a moral familiar.
Essa moral, ao mesmo tempo em que era desconsiderada em função de interesses
financeiros, condenava certos comportamentos similares ao de algumas tribos indígenas
no começo da colonização. Contudo, essas práticas condenáveis não deixaram de ocorrer
e, a despeito da rigidez patriarcal, elas se configuraram fora da ordem vigente:
O resultado era que a organização da família patriarcal abrigara, em
maiores proporções que se possa imaginar, uma profunda contra-
corrente de irregularidades na qual os desejos e sentimentos
procuravam compensar os obstáculos aos quais estavam submetidos
pelo sistema impessoal de casamento. Um trabalho paciente e corajoso
de investigação indica a freqüência com que moças solteiras tinham
filhos; mostra a ocorrência de casos secretos entre cunhados e
cunhadas, primos e primas, tios e sobrinhas, padrinhos e afilhadas e
mesmo sogras e genros. Sob o manto pesado de austeridade patriarcal,
desenvolvia-se um sistema desobstruído de relações compensatórias
(CANDIDO, 1951, [s.n.]).
Tanto Memorial de Maria Moura quanto Dôra, Doralina refletem os casos de
incesto condenáveis pela moral patriarcal. No Memorial, a relação incestuosa entre Maria
Moura e Liberato conta com o atenuante de ele não ter se casado legalmente com a mãe
de Moura e de ter seduzido a enteada somente após a morte da concubina. No entanto, ao
invés de cumprir o seu papel de padrasto, Liberato se aproveita da situação por estar
interessado nas terras de Maria Moura, levando-a, inclusive, a suspeitar que ele pretenda
matá-la como, provavelmente, fizera com sua mãe. Portanto, a indicação de interesses
econômicos subliminares ao caso de incesto, assim como se tem no adultério em Dôra,
Doralina.
No modelo familiar contemporâneo, o casamento consangüíneo deixou de ser
freqüente, com raras exceções, e o incesto - motivado por razões preponderantemente
financeiras - foi sendo, paulatinamente, abandonado. Como conseqüência, se, por um
lado, a afetividade se sobrepôs ao materialismo nos casamentos contemporâneos, por
outro, praticamente se extinguiram os laços de solidariedade dentro do grupo familiar,
marcantes nas uniões consangüíneas na família patriarcal. É o que considera Candido
(1951, [s.n.]):
O parentesco, como um sistema de prestígio e retribuição não mais
existe fora do grupo conjugal. A designação de parente e primo
praticamente desapareceu; compadre e padrinho persistem nas zonas
rurais, despidos, porém de sua importância e reduzidos a uma mera
fórmula normativa, pois os padrinhos raramente funcionam como pais
de seus afilhados. Não se presta mais o antigo respeito às tias e aos tios,
nem se pede suas bênçãos, e a hierarquia de relações entre irmãos e
irmãs desapareceu quase inteiramente com a diminuição do tamanho da
família e o desaparecimento da liderança familiar.
No Memorial, a atração de Maria Moura por Liberato existia, ainda quando sua
mãe estava viva. Após a morte desta, os desejos da protagonista não se aplacam e, aliados
às investidas do padrasto, culminarão no relacionamento incestuoso. É o que se
depreende das lembranças de Moura.
Bem, a noite escura é traidora. Como é que Mãe dizia para afastar a
tentação? “Valha-me a Virgem Puríssima!” Mas a Virgem Puríssima
não me valeu. Afinal, ele [Liberato] era um homem bonito; devia ser
mais novo do que Mãe. Pelo menos parecia, e era o que dizia todo
mundo. Sempre no escuro, nunca de dia - isso era ele. Ah, bem se diz,
carinho não dói. E talvez, desde menina, no fundo do coração, eu
tivesse inveja de Mãe: aquele homem enxuto de corpo, branco de cara,
cabelo crespo, mostrando os dentes sem falha quando se ria. Começou
mais como uma brincadeira. E, aos poucos, bem aos poucos, é que foi
ficando uma brincadeira perigosa. Devagar, devagar. Os carinhos se
tornando cada noite mais atrevidos, se adiantando, indo longe demais.
E eu sei que nem cheguei bem a ter remorso, parecia tudo a
natural (p. 20-1).
Barbosa (1999, p. 30), pesquisadora que analisa as relações incestuosas nos
romances em estudo, argumenta que a situação de Moura “assemelha-se à de Senhora, do
romance Dôra, Doralina, apenas os papéis foram invertidos: ao invés da mãe que
mantém um relacionamento com o marido da filha, aqui é a filha que divide o leito (o
mesmo que fora de sua mãe) com o ‘padrasto’”. Os triângulos abaixo esquematizados
permitem visualizar essa inversão de papéis.
DÔRA, DORALINA
SENHORA
ção incesto
ÔRA C A S A M E N T O LAURINDO
MEMORIAL DE MARIA MOURA
ÃE DE C O N C U B I N A T O LIBERATO
MOURA
ção incesto
MARIA
MOURA
Apesar da inversão de papéis frisada por Barbosa (1999), o motivo do incesto é
semelhante nas duas obras. Partindo da narração de Maria Moura, o relacionamento com
o padrasto é similar ao que ocorreu em Dôra, Doralina. Também aqui, tomando a
perspectiva de Liberato, as razões econômicas subjazem à relação incestuosa. É possível
depreender que o padrasto se aproximou de Moura com o intuito de se apossar de suas
terras, visto que ela seria a herdeira legítima do sítio do Limoeiro, em virtude da morte da
mãe, porque Liberato não se casou “de papel passado”. Naturalmente, há, também, que se
considerar a presença de uma mocinha, ainda virgem, sem proteção familiar e em um
ambiente misógino, como o do romance, o que é sempre um elemento a aguçar o desejo
masculino.
O eixo narrativo do romance sugere que o padrasto, mal-intencionado, também
tinha essa mesma pretensão em relação à sua amásia. Ele tencionava lhe tomar as terras e
se tornar o administrador do sítio. Por não conseguir convencê-la a se casar legalmente,
ou persuadi-la a transferir a escritura do sítio para o seu nome, Liberato teria assassinado
a mãe de Moura. Segundo a declaração de Maria Moura, o padrasto, assim como fizera
com sua mãe, pretende convencê-la a passar-lhe a posse das terras ou, caso contrário,
matá-la:
Certa noite, ele [Liberato] chegou trazendo um papel enrolado, que
era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo eu de
menor idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. Daí,
Mãe também não entendia de negócios; e de teimosia, não
concordou em casar com ele e lhe passar a propriedade. (...) O pior é
que eu, tal como Mãe, não queria assinar nada. (...) Pois no que eu me
neguei a assinar a tal procuração, que é que ele fez? Começou a me
ameaçar encoberto. Dizia - “Quando uma pessoa se mata, sempre
haverá um motivo... Tua mãe, teria um motivo?” Mais tarde voltava ao
assunto: “Por acaso, teria sido ela mesma que se matou? Talvez nem
fosse”. Eu ia ficando muito assustada com aquelas charadas do
Liberato (p. 21-3).
Se, em Dôra, Doralina, observam-se os resquícios da sociedade patriarcal, que,
inclusive, subjazem ao adultério incestuoso, em Memorial de Maria Moura, a ideologia
peculiar a esse tipo de sociedade é ainda mais marcante, uma vez que o romance é
ambientado no sertão nordestino do século XIX. De forma análoga ao que ocorreu em
Dôra, Doralina, percebe-se como a sociedade à qual o Memorial se reporta privilegia o
homem nas relações de poder. De forma mais acentuada que Laurindo - uma personagem
sem grande poder de mando na fazenda Soledade - Liberato tenciona valer-se da condição
masculina para dirigir a propriedade da enteada, legitimado pelos rígidos padrões de
comportamento demarcados pelo gênero na estrutura patriarcal-agrária.
Nesse contexto, cabe ao homem a frente de comando das organizações, estando a
mulher limitada ao ambiente “sagrado” do lar. Tal fato é evidenciado na fala de Moura,
quando ela declara que, segundo o padrasto, sua mãe de teimosia, não concordou em
casar com ele e lhe passar a propriedade(p. 21). Ao se casar “de papel passado” com
Liberato, a mãe de Maria Moura entregaria a ele a administração de suas terras que, por
sinal, lhe foi legitimada apenas em virtude de sua viuvez, assim como ocorreu com a
Senhora em relação à Soledade.
Em Sobrados e mucambos, Freyre (2000, p. 127) discorre acerca desse poder
auferido pela mulher patriarcal em decorrência da viuvez:
Várias famílias guardaram a tradição de avós quase rainhas que
administraram fazendas quase do tamanho de reinos. Viúvas que
conservaram e às vezes desenvolveram grandes riquezas. Quase
matriarcas que tiveram seus capangas, mandaram dar suas surras, foram
“conservadoras” ou “liberais” no tempo do Império. Tais mulheres que,
na administração de fazendas enormes, deram mostras de extraordinária
capacidade de ação - andando a cavalo por toda parte, lidando com os
vaqueiros, com os mestres-de-açúcar, com os cambiteiros, dando
ordens aos negros, tudo com uma firmeza de voz, uma autoridade de
gesto, uma segurança, um desassombro, uma resistência igual à dos
homens - mostraram até que ponto era do regime social de compressão
da mulher, e não do sexo, o franzino, o mole, o frágil do corpo, a
domesticidade, a delicadeza exagerada. Mostraram-se capazes de
exercer o mando patriarcal quase com o mesmo vigor dos homens. Às
vezes com maior energia do que os maridos já mortos.
O destino previsto para a mãe de Maria Moura - na eventualidade de ela se casar
novamente - seria ainda de maior dependência que o da Senhora, caso ela tivesse se
casado com Laurindo. Ambas perderiam a autonomia na administração legal de seus
bens, mas a situação da mãe de Moura seria de maior subordinação, pois o Memorial se
reporta ao período mais empedernido do patriarcalismo. A Senhora também passaria a
depender de seu segundo marido, mas de forma menos radical, que, entre o final do
século XIX e o início do XX, o patriarcalismo enfraquecera.
Sobre esse aspecto, são elucidativas as palavras de Falci (2000, p. 259), quando
ela se refere ao controle sobre a herança da mulher - permitido apenas ao marido desta -
dentro dos casamentos que seguiam o modelo patriarcal no sertão nordestino:
Por ocasião do casamento, o pai costumava adiantar parte da herança da
filha ao genro - em muitos inventários do século passado [século XIX],
observa-se o desconto do monte desse adiantamento feito pelo sogro.
Tios e avós esperavam para ofertar, como doação, uma “cria escrava,
conforme se vê no que D. Lisbela da Silva Moura, no casamento de sua
sobrinha, Rosa Umbelina da Silva Moura, faz doação “pela muita
estima e amizade que a ela consagra”. (...) E o valor da doação ficava
expresso: 30 mil réis. Os dotes em bezerros, ou uma vaca parida com
cria, ou um casal de carneiros, também foram comuns na sociedade
piauiense. Vale lembrar que os maridos tinham “poder marital” sobre
tais heranças, que, em muitas circunstâncias foram totalmente
destruídas ou dilapidadas em detrimento do desejo das suas esposas.
Cabia ao marido administrar os bens da esposa e a esta proibia-se
alienar até mesmo suas propriedades imóveis através de hipotecas ou
vendas.
Usualmente, a viúva, ao se casar novamente, retornava à condição de dependência
à qual estivera submetida no casamento anterior. Diante dessa eventualidade, a herança
da mulher patriarcal apenas mudava de fonte legal, deixando de ser aquela que fora
adiantada por seu pai, em função do óbito do primeiro esposo. A administração desta,
contudo, continuava restrita ao chefe da família.
Em Casa-grande & Senzala, Freyre (1984, p. 51) explicita essas condutas
recorrentes na sociedade patriarcal, principalmente no que se refere às relações
estabelecidas entre os gêneros:
Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre
conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado
naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal,
da mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do
abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da
sombra do pai ou do marido.
A sociedade patriarcal sustenta a repressão e a dependência feminina em relação
ao homem. É a ideologia ligada à circunstância econômica da formação patriarcal, tal
qual explana o autor, que subjaz à relação incestuosa mantida entre Liberato e sua
enteada, em Memorial de Maria Moura.
Ao se atentar para a abordagem do sociólogo, pode-se perceber, também, como a
herança deixada por tal ideologia ainda está implícita às possíveis motivações que, em
Dôra, Doralina, levaram Laurindo a se casar com Dôra, contribuindo para que ele
protagonizasse um incesto com sua sogra. Embora transcorra praticamente um século
depois da época em que Memorial de Maria Moura é ambientado, essa narrativa também
desvela as típicas condutas patriarcais, ainda remanescentes nesse período. Portanto, nas
duas obras em estudo, razões econômicas difundidas pela sociedade incitam a
consumação do incesto.
3.7 - Da sociedade à literatura: de volta ao tabu do incesto
Voltando à questão do incesto e da subversão da ordem, se, em Memorial de
Maria Moura, Liberato tivesse engravidado Moura, o fruto desse relacionamento, além
de ser filho dele, também poderia ser confundido com seu neto, visto se tratar da prole de
sua enteada. Maria Moura, por seu turno, além de ser a mãe da criança, também poderia
ser considerada sua irmã, que se trataria de um filho de seu padrasto, uma situação
similar se, em Dôra, Doralina, a Senhora tivesse dado à luz a um filho de Laurindo. Este,
além de filho de Senhora, poderia ser considerado seu neto, por se referir à prole de seu
genro. Laurindo, além de pai, poderia ser confundido com o cunhado da criança. Dôra,
por sua vez, seria sua irmã e, também, a sua madrasta, por se tratar de um filho do esposo.
Na esteira dos exemplos anteriores, aqui também o fruto de um incesto desencadearia
uma rede de dúvidas em relação aos laços de parentesco.
Como se pode perceber por meio desses exemplos hipotéticos, a tolerância do
incesto pela sociedade acarretaria a desestruturação familiar nos casos em que o mesmo
viesse a resultar em filhos. É justamente para evitar tal desestruturação visando à
regularização da vida social, como frisaram Engels (2000), Durkheim (1999), Goldgrub
(1989), Lévi-Strauss (1991), Durand (1995) e Freud (1999), que, historicamente, o
incesto foi combatido na maioria das sociedades, sejam estas antigas ou mais recentes.
O enfraquecimento sangüíneo das gerações também justifica a persistência desse
tabu na sociedade atual. São recorrentes, nos indivíduos gerados a partir de relações
consangüíneas, problemas físicos e/ou mentais, o que implica o enfraquecimento do
grupo. Como definiu Goldgrub (1989), a reprodução é o objetivo da natureza, e a
perpetuação da espécie estaria à sombra de uma ameaça, caso os envolvimentos
incestuosos não fossem proibidos. Em Casa-grande & Senzala, Freyre (1984, p. 342)
também atenta para esse complicador, quando se reporta ao olhar estrangeiro lançado
sobre a freqüência com que se davam as uniões consangüíneas no Brasil patriarcal:
Maria Graham ficou encantada com certos aspectos da vida de família
no Brasil: um apego, uma intimidade, uma solidariedade entre as
pessoas do mesmo sangue que lhe recordavam o espírito de clã dos
escoceses. Mas notou esta inconveniência: dos casamentos se
realizarem entre parentes. Principalmente tios com sobrinhas.
Casamentos, escreve ela, que em vez de alargarem as relações da
família e de difundirem a propriedade, concentravam-nas, estreitando-
as e limitando-as. Além de “prejudicarem a saúde”.
Se, por um lado, Graham ficou fascinada com o espírito de solidariedade dentro
do grupo familiar brasileiro, por outro, ela se horrorizou com a sua constituição
preponderantemente incestuosa, a despeito dos riscos biológicos, bem como da pressão
social e moral. No entanto, como assinala Freyre (1984, p. 341-2), a distinção das classes
sociais também justificava o perigo da consangüinidade.
Casamentos cujo fim era evidentemente impedir a dispersão dos bens e
conservar a limpeza do sangue de origem nobre ou ilustre. Tudo indica
ter sido este o intuito de Jerônimo de Albuquerque, o patriarca da
família pernambucana, ao casar seus dois primeiros filhos varões,
havidos de Dona Maria do Espírito Santo Arcoverde - a princesinha
índia - com duas irmãs de sua mulher legítima, Dona Filipa de Melo,
filha de Dom Cristóvão de Melo. A mulher que lhe recomendara para
esposa a Rainha Dona Catarina, horrorizada com a vida muçulmana de
polígamo do cunhado de Duarte Coelho. Não foram uniões
consangüíneas, mas de indivíduos que, casando-se, apertavam os laços
de solidariedade de família em torno do patriarca. Era esse o fim dos
casamentos de tios com sobrinhas.
Os resquícios dessa conduta ainda permanecem na sociedade atual, mesmo tendo
rareado as uniões incestuosas. A distinção social continua restringindo o casamento, o
mais ao grupo parental, mas ao círculo social, como exemplifica a maioria dos
matrimônios recorrentes na alta sociedade brasileira. Também nos casamentos das classes
menos privilegiadas, é comum, diante da desaprovação paterna, o argumento de que as
famílias do casal não devam se “misturar”, ou pela suposta imoralidade da família do
pretendente, ou, também, pela classe social desta, ainda menos favorecida. Ao não se
consentir a introdução de grupos indesejáveis nos laços familiares, recria-se a
conservação da limpeza do sangue pelo casamento, não mais restrito à mesma família,
mas aos grupos social e moralmente conceituados. De maneira subliminar, o círculo
familiar ainda está subordinado aos valores econômicos e morais marcantes no regime
patriarcal.
Ao se analisar as obras Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura, constata-se
a ocorrência do incesto em ambas as narrativas. Em Dôra, Doralina, observa-se um
adultério incestuoso, envolvendo Senhora e o genro Laurindo. Essa situação se inverte em
Memorial de Maria Moura, visto que, nesse caso, é a enteada, Maria Moura, que comete
um incesto com Liberato, o seu padrasto. Apesar da inversão de papéis entre os
envolvidos, percebe-se que, em ambas as obras - embora estas transcorram em diferentes
épocas -, são as razões econômicas que subjazem à motivação dos envolvimentos
incestuosos. Tais razões são difundidas por sociedades machistas e conservadoras - de
acordo com o seu tempo - que, ao reproduzirem o modelo patriarcal, beneficiam o
homem nas relações de poder. Quanto aos casamentos consangüíneos, recorrentes no
patriarcalismo, além da continuidade do poder familiar altamente segregado, a principal
motivação era manter o patrimônio: motivação indiscutivelmente econômica, como a dos
romances em análise.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluir esta dissertação, pôde-se constatar que, Rachel de Queiroz, na obra
Memorial de Maria Moura, resgata, no universo do século XIX, um tipo de mulher que,
para sobreviver, ajustou-se aos arquétipos masculinos da violência. Porém, em virtude da
sua condição feminina, a protagonista Maria Moura capitulou ao ter se enredado “nas
tramas do coração”. Já, na obra Dôra, Doralina, a protagonista Maria das Dores - Dôra -
se libertou, ainda que parcialmente, quando, viúva do primeiro marido e envolta em
uma trama de adultério e incesto, viu-se obrigada a deixar a casa da mãe, à qual
retornou quando perdeu o segundo esposo, para ter que, enfim e a contragosto, assumir o
próprio destino e a administração da sua fazenda. É o que se depreendeu das análises
efetivadas ao longo dos três capítulos que integraram este estudo.
O primeiro capítulo, intitulado De sinhazinha a jagunça, reportou-se à obra
Memorial de Maria Moura. Este foi dividido em três sub-capítulos. No primeiro deles,
denominado Copiando o patriarca e transgredindo o patriarcalismo, constatou-se que a
protagonista Maria Moura, paradoxalmente, transgrediu os valores vigentes por meio do
continuísmo patriarcal. Ao se travestir em homem e lutar pela posse de suas terras, ela
reproduziu os padrões de comportamento masculino, inadmissíveis para uma mulher
daquela época e naquele contexto.
Também, nesse sub-capítulo, pôde-se averiguar que Maria Moura, ao cortar seus
cabelos, realizou um ritual de passagem. A auto-afirmação é um dos pressupostos básicos
implícitos aos ritos. Através deles, o homem tenciona alcançar seus ideais em uma nova
etapa da vida que, simbolicamente, tem início após a efetivação do ritual. A personagem,
após a efetivação do ritual, passou da condição de sinhazinha à de jagunça, bem como do
universo cósmico da casa ao espaço caótico e sem regras do sertão.
No segundo sub-capítulo, intitulado Família, honra e terra, verificou-se que a
passagem que Moura fez de sinhazinha a cangaceira resultou da perda da família, da
honra e da terra. Órfã de pai, Maria Moura, ainda adolescente, também perdeu a mãe,
assassinada, provavelmente por Liberato: amante da mãe de Moura e que seduziu a
protagonista. Maria Moura, após mandar assassinar o padrasto e amante, sentiu-se
ameaçada pelos primos Tonho e Irineu. Vitimada pela perda da família, da honra e da
terra, os três sustentáculos fundamentais, não somente para a mulher, mas para toda a
estrutura patriarcal, à protagonista restaram as opções de se tornar, ou refém dos primos,
ou uma bandoleira, traçando o próprio destino. Contraditoriamente, o cangaço foi o
caminho pelo qual Maria Moura tentou retornar ao mundo oficial, buscando recuperar o
tripé família-honra-terra, do qual ela estava alijada.
Ainda no segundo sub-capítulo, além do cangaço, efetuou-se outra inferência
possível na obra em estudo: o mito da donzela-guerreira. Este povoa o imaginário
ocidental desde a Idade Média e envolve Moura numa áurea de encantamento. Assim
como as tradicionais donzelas-guerreiras, que, envergando trajes masculinos, aderiram ao
combate, verificou-se em Maria Moura uma predisposição para lutar. É esse aspecto que
fez com que ela, mesmo diante do risco, tivesse enveredado pelo cangaço, nele buscando
a autonomia negada à mulher do século XIX.
Ao final desse sub-capítulo, pôde-se constatar que, para Maria Moura, a sua Casa
Forte poderia ser relacionada à imago mundi, a qual, para o ser humano, representaria o
“centro do mundo”. A imago mundi reproduziria o universo em escala microscópica,
visto que, da mesma maneira que o universo se desenvolve para várias direções, a partir
de um centro, o homem também projetaria os caminhos que seguiria em sua vida a partir
de um núcleo central.
No terceiro sub-capítulo, Poder versus sentimento, foi possível averiguar que, por
mais que Maria Moura tenha tentado copiar o modelo masculino, tornando-se o oposto da
típica mulher patriarcal, ela não pôde, contudo, deixar de ser uma fêmea. Esse foi o
paradoxo crucial vivenciado por ela. Nas relações de poder, ela desempenhou um papel
masculino; já, no plano afetivo, afloraram os desejos femininos. Ao encarnar um papel,
tipicamente masculino, Maria Moura reprimiu sua feminilidade e, apenas às escondidas,
manteve relações com Duarte, um mulato, filho bastardo de seu tio, que, oficialmente, era
apenas mais um jagunço do bando.
Na eventualidade de ter tornada pública a sua união com Duarte, a protagonista
teria aberto a possibilidade de dividir com ele o poder de decisão na Casa Forte. Tendo
consciência da importância de manter sua independência e poder sobre o bando, ela não
abriu mão da autonomia arduamente adquirida. Da perspectiva de Maria Moura, apenas
os encontros fortuitos eram possíveis com Duarte, nos quais ela buscou satisfazer seus
desejos. Também em termos sexuais, a personagem, após ter se travestido, reproduziu o
comportamento masculino. Como os patriarcas, ela usou sexualmente o mulato, como o
fizeram os senhores de terras com as negras e mulatas no Brasil colonial e imperial.
Nesse sub-capítulo, também se concluiu que, apesar da postura independente,
Moura teve seu ponto vulnerável: o amor, para o qual ela, como líder do bando, estava
despreparada. O amor de Maria Moura por Cirino funcionou como uma armadilha da
qual ela não tinha como escapar. A protagonista se viu diante do maior dilema de sua
vida: eliminava seu amado e traidor ou perdia o poder que detinha, bem como o espaço
duramente fundado. Após uma árdua luta interior, Moura ordenou a morte de Cirino. O
fato de ele ter sido a grande paixão de Maria Moura não o isentou de pagar com a vida
pela traição cometida, como manda a lei dos jagunços. Portanto, foi o amor de Maria
Moura por Cirino que esteve na base da luta da protagonista e, também, de sua provável
morte, insinuada no final do romance.
O segundo capítulo, intitulado De senhorinha a senhora, ateve-se à obra Dôra,
Doralina. Devido à diversidade de itens analisados, foi dividido em sete sub-capítulos.
No primeiro, denominado Senhora: a matriarca da Soledade, abordou-se como os
vestígios do patriarcalismo se fizeram marcantes, principalmente na figura da Senhora, a
mãe da protagonista Dôra, que, após a viuvez, deu continuidade ao modelo patriarcal,
ocupando, então, o lugar que tinha sido de seu marido na condução da fazenda, da família
e dos agregados. Enquanto matriarca da família, a Senhora incorporou o papel de um
coronel. No romance, ficou evidente a conformidade e a aceitação dos subalternos em
relação às ordens impostas pela Senhora, de maneira muito similar à dos camponeses em
relação aos governantes e coronéis. O que mais evidenciou a postura coronelista da
Senhora foi a forma com que ela determinava o voto de seus agregados nas eleições
municipais. Dôra, Doralina desvelou, pelas práticas da Senhora, a ligação entre o setor
público e o privado, em sintonia com o coronelismo.
O segundo sub-capítulo, A bastardia no modelo patriarcal, possibilitou inferir
que um outro resquício da organização patriarcal foi desvelado pela obra em questão, no
tratamento dispensado pela Senhora ao agregado Antônio Amador, seu provável sobrinho
bastardo. Ao negar qualquer direito a Antônio Amador - o filho das moitas -, a Senhora
reduziu as chances de ele ascender a uma posição privilegiada, numa sociedade que ainda
conservava no grupo parental o principal fator de projeção sócio-político-econômica. A
Senhora, ao manter o poder estritamente dentro do círculo familiar, no qual era soberana,
corporificou a preocupação central do patriarcalismo, embora ela tenha depositado grande
apreço em Antônio Amador, seu agregado de confiança. Foi característico do regime de
economia patriarcal concentrar o poder econômico, social e político unicamente dentro da
família do patriarca. O não reconhecimento da paternidade dos filhos ilegítimos foi uma
herança do sistema patriarcal escravista. Nas obras em estudo, um exemplo de bastardia
no contexto da escravidão se refere ao mulato Duarte, do Memorial de Maria Moura. Ele
era filho ilegítimo de um tio de Maria Moura com uma escrava, ou seja, um filho das
moitas, sem nome ou direitos, assim como Antônio Amador.
No terceiro sub-capítulo, intitulado Caos e jaguncismo no sertão, pôde-se
observar que, apesar de, na obra Dôra, Doralina, o tema principal ser a relação
conflituosa entre mãe e filha, de forma subliminar, o cangaço também se fez presente,
uma vez que a obra se situou no período em que a temática ainda era marcante no sertão,
em decorrência da presença constante de bandos formados por jagunços. No romance em
questão, os vestígios do cangaço são perceptíveis, principalmente na personagem
Delmiro: ex-jagunço e fugitivo da polícia que, ao aparecer baleado e delirante na fazenda
Soledade, passou a contar com o carinho e proteção de Dôra.
A conduta de Delmiro, bem como do bando ao qual ele pertencia antes de se
refugiar na Soledade, aponta para o banditismo. Houve, até as primeiras décadas do
século XX, vários tipos de banditismo no meio rural brasileiro. Além dos cangaceiros
livres, que não se submetiam à ordem, havia os bandidos contratados pelos coronéis. A
autoridade facultada pelo governo a alguns bandos contribuiu para a expansão do
banditismo nesse período, o que evidenciou como a criminalidade no Brasil se deu,
muitas vezes, com a conivência dos representantes da lei e com o apoio do poder
coronelista dos membros da Guarda Nacional. Vários bandidos foram subordinados aos
caprichos dos coronéis, devido à falta de perspectivas na organização patriarcal, motivo
idêntico para o ingresso na criminalidade de muitos cangaceiros livres.
Assim, percebeu-se que o banditismo se configurou como um fenômeno que
esteve mais relacionado às injustiças sociais do que à ambição pelo poder ou à maldade
inerente à figura do bandido, aspecto este ficcionalizado por Rachel de Queiroz nas obras
em estudo, principalmente por meio da personagem Delmiro e, também, Duarte e
Valentim, no Memorial.
O quarto sub-capítulo, Uma senhorinha e sua dor, possibilitou constatar que o
conflito entre mãe e filha se fez determinante no enredo de Dôra, Doralina. Foi esse
conflito que esteve na base da frustração afetiva da protagonista. O início dessa frustração
teve origem na indiferença com que a Senhora a tratava, agravando-se pela ausência de
informações sobre o pai e essa falta de referência afetiva masculina atingiu seu ápice com
a traição e conseqüente morte do primeiro marido.
Verificou-se, também que, involuntariamente, Dôra provocou a morte de
Laurindo, o seu primeiro esposo, quando descobriu que ele e sua mãe eram amantes.
Delmiro, que percebeu a profunda dor de sua protetora, tentou consolá-la, dizendo-lhe
que Deus daria um jeito na situação, mas Dôra, sem uma intenção consciente, retrucou
que somente a morte resolveria aquilo. Naquele contexto, Delmiro interpretou a frase
ditada pelo desespero da narradora a partir da sua perspectiva de jagunço, totalmente fiel
à sua benfeitora e, ao que tudo indica, assassino do primeiro marido de Dôra.
O assassinato de Laurindo teve profundas implicações na trajetória da narradora
enquanto reminiscência dos antigos ritos de passagem. Estes visam fazer com que os
iniciados passem, simbolicamente, para um outro estágio da vida, deixando para trás o
estado anterior. É o que ocorreu com Dôra a partir da morte do marido, inicialmente de
forma traumática e, posteriormente, libertária.
No quinto sub-capítulo, intitulado Uma senhorinha no palco, concluiu-se que,
para a protagonista, o teatro desempenhou uma função libertadora, pelo menos no período
imediato após a viuvez. Ao incorporar o papel de atriz, Dôra passou a prescindir da
proteção masculina. Como conseqüência, ela teve que se defender sozinha. Fora do
espaço da fazenda e sem um homem que a representasse socialmente, ela teve que arcar
com o próprio destino, como fez Maria Moura, ao cortar os cabelos e se vestir como
homem, mesmo que, em comparação à Moura, isso tenha se dado numa dimensão bem
menor. Um marido poderia até lhe conferir proteção, mas foi pela ausência do casamento
que, naquele momento, Dôra se tornou mais independente.
Percebeu-se, ainda, que, quando Dôra assumiu a profissão de atriz, os resquícios
da ideologia patriarcal puderam ser detectados na sociedade fortalezense da época.
Apesar de aquela etapa do romance ter se situado entre o final dos anos trinta e início dos
anos quarenta, a sociedade provinciana, ainda marcada pela herança patriarcal, não
aprovava a autonomia da mulher. Essa independência contou, também, com um elemento
agravante: a liberdade sendo concretizada na profissão de artista, a qual foi, ainda por
muito tempo, discriminada socialmente. Embora Dôra tenha encontrado a libertação por
meio da arte, ela também se deparou com a discriminação social proveniente da condição
de artista.
No sexto sub-capítulo, De Dôra a Doralina, constatou-se que, em sua trajetória
artística, Dôra conheceu o Comandante, por quem ela se apaixonou. Os resquícios da
ideologia patriarcal também integraram o perfil do novo companheiro de Dôra, a quem
ela amou de fato. Em sintonia com a mentalidade da época, o Comandante não viu com
bons olhos a emancipação de Dôra, nem o fato de ela ser atriz. Ele, então, fez com que
Dôra abandonasse a carreira artística e vivesse às suas expensas, cuidando apenas dele e
da casa, da qual Dôra, finalmente, sentiu-se dona e senhora, realizando-se em todos os
papéis, inclusive o da dependência econômica.
Se, antes de se unir ao Comandante, Dôra se defendeu sozinha, depois do
casamento, ela passou a delegar sua defesa ao novo companheiro. Ela viveu um período
de independência apenas em função das circunstâncias, mas não por escolha. Também se
indicou, nesse sub-capítulo, o ponto máximo da realização afetiva de Dôra através do
nome pelo qual o Comandante passou a chamá-la na intimidade: Doralina. Ao tomar
conhecimento da forma carinhosa com que o pai a chamava, o Comandante passou,
também, nos momentos de ternura, a chamá-la desse modo.
No sétimo sub-capítulo, intitulado De volta à dor de Dôra, concluiu-se que,
depois da morte do Comandante, Dôra não mais suportou a cidade do Rio de Janeiro. Em
busca de aplacar a dor da perda do marido, a protagonista decidiu, então, voltar para a
fazenda Soledade, pois a Senhora havia falecido. Apesar da decadência da fazenda,
Dôra, muito sofrida e desnorteada pela morte do Comandante, decidiu retornar à sua
terra, que, sem a presença dele, nada mais fazia sentido para ela. No plano simbólico,
esse regresso à Soledade representa uma volta esmaecida para aquilo que ficou como
herança da imago mundi. Voltando para o seu lugar no mundo, deixado com tanta mágoa
quando da morte de Laurindo, Dôra superou, parcialmente, a perda do Comandante.
Observou-se, também, que a protagonista, após a viuvez, passou a conduzir a fazenda de
maneira muito similar à da Senhora, incorporando, de certa forma, o comportamento da
mãe, que ela tanto abominou.
O último capítulo, intitulado O incesto e as relações afetivas e familiares, comporta
uma análise comparativa entre as duas obras em estudo. Dividiu-se o mesmo em sete sub-
capítulos. No primeiro deles, O impacto do incesto na ordem social, constatou-se que a
subversão da ordem é o maior problema implícito às relações incestuosas. Caso o incesto
resulte em um filho, este desencadearia uma série de incertezas quanto ao seu parentesco,
além de ocasionar dúvidas, também, no parentesco de seus genitores em relação a ele.
Assim, pôde-se perceber que a proibição do incesto está na base das sociedades para não
desagregá-las, além de, evidentemente, evitar os riscos biológicos e psíquicos que rondam
a endogamia.
No segundo sub-capítulo, denominado O medo imemorial do incesto, pôde-se
verificar que a relação incestuosa entre genro e sogra, ficcionalizada em Dôra, Doralina,
foi tida como causa de aversão entre vários povos indígenas, como a tribo dos Bororo,
por exemplo. A prevenção do incesto entre genro e sogra, e a conseqüente evitação dessa
ocorrência, foram práticas recorrentes na história de diversos povos ancestrais. Percebeu-
se que os vestígios da imemorial evitação da sogra permaneceram na sociedade
contemporânea, principalmente na idéia difundida pelo imaginário popular, segundo a
qual ela seria para o genro um integrante desagradável da família.
No terceiro sub-capítulo, intitulado Dôra versus Senhora: um conflito freudiano,
observou-se que, no romance Dôra, Doralina, o adultério incestuoso tornou insustentável
a relação entre a Dôra e a Senhora, que sempre havia sido muito conflituosa. Elas
personificaram o que seria, de acordo com a Psicanálise, o complexo de Electra. Segundo
esse conceito, a filha, em uma das fases iniciais de sua vida, apaixonar-se-ia pelo pai,
vendo na mãe a sua maior rival. Essa relação conflituosa envolvendo mãe e filha, ao
invés de esmaecer, como seria o processo natural, agravou-se com o tempo. A maneira
com que a Senhora sonegou à Dôra os referenciais paternos evidenciou a disputa acirrada
entre mãe e filha. A relação entre elas foi, sempre, a de duas rivais, seja pelo espaço, pela
posse da fazenda ou pelas lembranças do pai de Dôra. Essa disputa entre Dôra e a
Senhora atingiu seu ápice no relacionamento incestuoso.
No quarto sub-capítulo, A família na transição do modelo patriarcal ao semi-
patriarcal, foi possível averiguar que a relação entre a Dôra e a Senhora se respaldou em
um modelo familiar que, hoje, não se sustenta mais. Ao atentar para a narrativa de Dôra,
Doralina, depreendeu-se que é ao modelo familiar patriarcal que a Senhora se reporta, ao
tentar imitar, após a sua viuvez, os padrões de comportamento destinados ao tradicional
pater-famílias. Entretanto, a primeira metade do século XX foi marcada pela
peculiaridade das mudanças nas relações familiares. Foi nesse período de transição que a
obra em estudo foi ambientada, especialmente a primeira e a última parte que, inseridas
no sertão cearense, desvelaram uma organização social semi-patriarcal. O romance
possibilitou inferir que, nesse período, o patriarcalismo não mais se sustentava,
principalmente, no que se referia à severidade das relações entre pais e filhos. Essa tensão
esteve implícita, por exemplo, na postura de Dôra, quando ela deixou de se submeter aos
mandos da Senhora.
No quinto sub-capítulo, denominado Os interesses econômicos e o incesto em
Dôra, Doralina, concluiu-se que, durante a época patriarcal, prevaleceu no casamento e,
conseqüentemente, nas relações conjugais, o peso sócio-econômico e o jogo de interesses
familiares. Na obra em análise, observou-se que, a exemplo dos casamentos patriarcais,
os interesses econômicos também estiveram na base do enlace entre Laurindo e Dôra,
assim como do adultério.
Em relação a Laurindo, pôde-se presumir, partindo da voz popular, que foi por
interesse que ele se casou com Dôra, ao invés de fazer a corte à Senhora, o que teria
contribuído para que ele se tornasse amante da sogra. Laurindo teria se casado com Dôra,
apenas por uma questão de conveniência financeira, visto que, com o tempo, ela herdaria
não a parte legítima, sua metade por direito com a morte do pai, como também a parte
da Senhora, que Dôra era a única herdeira. Contudo, seu esposo, valendo-se da
condição masculina, passaria a administrar o patrimônio herdado.
O romance em questão desvelou uma organização social conservadora, que ainda
privilegiava o homem nas relações de poder. Foram as razões econômicas difundidas por
esse tipo de sociedade que incitaram Laurindo a se cassar com Dôra e não com a Senhora,
o que teria colaborado para que ele viesse a cometer incesto moral.
No sexto sub-capítulo, O incesto e a economia patriarcal no Memorial, concluiu-
se que, na sociedade patriarcal do século XIX - à qual a obra Memorial de Maria Moura
se reporta -, o incesto foi um comportamento comum, sendo, em alguns casos, tolerado e
estimulado pela ordem vigente. No Memorial, Maria Moura também protagonizou um
caso de incesto, ao ter se deixado seduzir por Liberato, o seu padrasto. Nas duas obras em
estudo, o motivo do incesto foi semelhante. Tomando a perspectiva de Liberato, as razões
econômicas também estiveram subjacentes à relação incestuosa. Foi possível depreender
que o padrasto se aproximou de Moura com o intuito de se apossar de suas terras, visto
que ela era a herdeira legítima do sítio do Limoeiro, em virtude da morte da mãe, porque
Liberato não se casou “de papel passado”.
Se, em Dôra, Doralina, observaram-se os resquícios da sociedade patriarcal, que,
inclusive, estiveram subjacentes ao adultério incestuoso, em Memorial de Maria Moura,
a ideologia peculiar a esse tipo de sociedade foi ainda mais marcante, uma vez que o
romance foi ambientado no sertão nordestino do século XIX. De forma análoga ao que
ocorreu em Dôra, Doralina, percebeu-se como a sociedade à qual o Memorial se reportou
privilegiava o homem nas relações de poder. De forma mais acentuada que Laurindo,
também Liberato - em sintonia com a época à qual se reporta o romance - tencionou se
valer da condição masculina para dirigir a propriedade da enteada, legitimado pelos
rígidos padrões de comportamento demarcados pelo gênero na estrutura patriarcal-
agrária.
No sétimo sub-capítulo, intitulado Da sociedade à literatura: de volta ao tabu do
incesto, exemplificou-se como o incesto implicaria a subversão da ordem nos casos em
que ele resultasse em filhos. Para tanto, recorreu-se às obras em análise, supondo-se que,
em Memorial de Maria Moura, Liberato tivesse engravidado Moura, bem como a
Senhora, em Dôra, Doralina, tivesse dado à luz um filho de Laurindo. Nos dois casos, o
suposto filho desencadeou uma rede de dúvidas em relação aos laços de parentesco.
Ao se analisar a obra Memorial de Maria Moura, foi possível constatar que a
ideologia patriarcal impregnou o seu eixo narrativo. A protagonista, ao romper com a
submissão feminina típica da organização patriarcal, transmigrou da posição social de
sinhazinha à de jagunça, ocasionando a transgressão dos valores vigentes. Contudo, essa
transgressão se deu pelo continuísmo patriarcal, visto que Maria Moura reproduziu o
modelo masculino nas relações.
Em Dôra, Doralina, constataram-se vestígios herdados do patriarcalismo,
principalmente na personagem Senhora, viúva que reproduziu o modelo patriarcal, ao
ocupar o lugar que foi de seu marido na administração da fazenda Soledade. Com a morte
da Senhora, a sua filha Dôra herdou a fazenda a que tinha direto, mas somente tomou
posse de fato da sua herança, após ter perdido o segundo marido, legitimada pelo luto de
viúva, assim como o era sua mãe. A partir de então, a protagonista continuou, em certa
medida, a reproduzir o modelo patriarcal deixado pela Senhora e que, paradoxalmente,
ela tanto tinha repudiado na mãe.
Ao comparar as obras Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina, constatou-se
a ocorrência do incesto em ambas as narrativas. Em Dôra, Doralina, observou-se um
adultério incestuoso, envolvendo Laurindo - o primeiro marido - e a Senhora, mãe de
Dôra. Essa situação se inverteu em Memorial de Maria Moura. Nesse caso, foi Maria
Moura, a enteada, quem cometeu um incesto com Liberato, o seu padrasto. Em ambas as
obras, a motivação econômica esteve subjacente aos envolvimentos incestuosos.
PROPOSTA DE ESTUDO FUTURO
Como encaminhamento para um trabalho futuro, pretende-se analisar a
organização do tempo e do espaço nas duas obras em estudo. Inicialmente, tinha-se por
objetivo transformar esse estudo em um capítulo desta dissertação. Contudo, isso não foi
possível, dada a exigência do Programa de Pós-graduação de não extrapolar o prazo de
permanência do discente no Mestrado, o qual equivale a vinte e quatro meses a contar da
data de matrícula.
A constituição do tempo em Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura
Na obra Dôra, Doralina, um tempo circular, representado pela metáfora
utilizada por Dôra, quando ela retorna à fazenda:O círculo se fechou, a cobra mordeu o
rabo: eu acabei voltando para a Soledade (p. 232). A narração da protagonista
contempla a imagem mítica da uróboro: “serpente que morde a própria cauda e simboliza
um ciclo de evolução encerrado nela mesma. Esse símbolo contém ao mesmo tempo as
idéias de movimento, de continuidade, de autofecundação e, em conseqüência, de eterno
retorno” (CHEVALIER; GHEERBRANDT, 2002, p. 922).
Entretanto, há, também, no desfecho da obra, uma contraposição entre a
efemeridade dos indivíduos e a perpetuação da vida por meio da natureza. Como destaca
Barbosa (1999, p. 64), “o final do romance é simbólico. Amador, o novo vaqueiro,
filho do velho vaqueiro, Antônio Amador, conduz uma novilha que acabou de dar a
primeira cria e seu bezerro. Por causa da cor vermelha, ela parece ser ‘neta’ da vaca
Garapu. (...) É o ciclo da renovação da vida”. Se, por um lado, a fazenda Soledade está
decadente, tem velhos caducando (p. 236), a natureza à sua volta aponta para a
renovação infinita.
Outro aspecto em relação ao tempo em Dôra, Doralina é a questão dos rastros, de
que fala Ricoeur (1997, p. 200-1):
A origem do rastro se estendeu de um homem ou de um animal a uma
coisa qualquer; em compensação, desapareceu a idéia de que se passou
por ali; subsiste apenas o registro de que o rastro é deixado. É esse o
do paradoxo. Por um lado, rastro porque antes um homem, um
animal passou por aí; uma coisa agiu. No próprio uso da língua, o
vestígio, a marca indicam o passado da passagem, a anterioridade do
arranhão, do entalhe, sem mostrar, sem fazer aparecer, aquilo que
passou por ali. (...) A passagem não existe mais, mas o rastro
permanece. (...) Alguém passou por ali; o rastro convida a segui-lo, a
voltar, por meio dele, se possível, até o homem e até o animal que
passaram por ali; o rastro pode ser perdido; pode ele próprio perder-se,
levar a lugar nenhum; pode também apagar-se: pois o rastro é frágil e
exige ser conservado intacto, senão, a passagem realmente ocorreu, mas
simplesmente ficou no passado; podemos saber por outros indícios que
homens e animais existiram em algum lugar: eles permanecerão para
sempre desconhecidos, se nenhum rastro levar a eles. Assim, o rastro
indica aqui, portanto no espaço, e agora, portanto no presente, a
passagem passada dos vivos; ele orienta a caça, a busca, a investigação,
a pesquisa [grifo do autor].
Seguindo a perspectiva do teórico, é possível depreender que Dôra passou a vida
inteira tentando encontrar algum rastro que a conduzisse ao seu pai. Estes são tênues e
fugidios. No entanto, os rastros da Senhora também se apagaram de tal maneira que, sua
presença, sempre tão marcante na fazenda Soledade, praticamente se apagou.
Em Memorial de Maria Moura, o tempo está em progressão. Não há uma volta
para trás, como a que se tem em Dôra, Doralina. Cada ação de Moura implica uma
mudança para a qual não retorno, inclusive o final do romance, que prenuncia a
provável morte da protagonista.
Essa proposta de trabalho se pautaria nas obras O tempo no romance, de Pouillon
(1974), e Tempo e narrativa, de Ricoeur (1997), além das concepções sobre o tempo de
Santo Agostinho (1984) e de Paz (1993).
A configuração espacial em Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura
Em relação ao espaço, é marcante, em Dôra, Doralina, a configuração da fazenda
Soledade. Esse espaço está de tal maneira “colado” à Dôra que a parte mais densa do
romance é a que se passa na fazenda. No entanto, a relação da protagonista com a
Soledade é ambígua: ela se sente presa à fazenda por sua condição de sinhazinha, mas
também é expulsa dali pelo adultério da mãe e pela morte do marido. Contudo, é para
esse espaço que Dôra retorna, quando nada mais na vida faz sentido. Indiscutivelmente, a
fazenda Soledade remete à esmaecida idéia de imago mundi, herdada do homem
religioso, cujos vestígios ainda podem ser encontrados na sociedade rural brasileira.
No Memorial, há, sempre, um afã de conquistar novos espaços. Porém, em meio a
essa busca, Maria Moura apaga os rastros deixados para trás como quando incendeia o
sítio do Limoeiro e parte rumo à Serra dos Padres, onde a Casa Forte, construída por
Moura, é, definitivamente, o seu lugar “no mundo”. A Casa Forte, a exemplo da fazenda
Soledade, remete, também, à idéia da imago mundi estudada por Eliade (2001).
A Casa Forte, todavia, ainda não é um espaço cósmico. Ao contrário, ela se
configura como um universo caótico, dado ser uma praça de guerra. Contudo, o empenho
de Maria Moura em deixá-la para Alexandre - seu primo e afilhado - tem subjacente o
desejo de que esse espaço venha a se tornar um lugar organizado e civilizado, deixando
de ser caótico como a vastidão do sertão à sua volta. O empenho da protagonista bem
reflete o que apregoa Bachelard (2003, p. 36), quando ele afirma que “a casa é um corpo
de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”.
A base para a discussão desse item se concentraria nas obras O sagrado e o
profano, de Eliade (2001); A poética do espaço, de Bachelard (2003); Visão do paraíso,
de Holanda (1994), e A cristandade colonial, de Azzi (1987).
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