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Assim,afraturainteriordeZanaprocessa-seemumadimensãotãoprofunda,aoser
apartada de seus amados – o pai, o esposo e o filho predileto –, desenvolvendo para os
primeirosotrabalhodolutoeparacomofilhoamelancolia
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.
SeparaZanaamortedoesposofazviràtonaosprimeirosmomentosdaconquista
amorosa,poroutrolado,amortedeHalimconstróiparaOmaraimagemdalembrançadesua
humilhação,quandoopaiocorrigecombofetadascerteirasedepoisoacorrentaaummóvel
dasala,emumadascenasmaisfortesdoromance:
Gandaiavacomonunca,ecertanoiteentrouemcasacomumacaloura,umamoçadocortiço
daruadosfundos,irmãdoCalisto.Fizeramumafestinhaadois:dançaramemredordoaltar,
fumaramnarguiléebeberamàvontade.Demanhãzinha, do alto da escada,Halimsentiuo
cheirodepupunhacozidaejaca;viugarrafasdearakeroupasespalhadasnoassoalho,caroços
ecascasdefrutassobreaBíbliaabertanotapeteemfrenteaoaltar,eviuofilhoeamoçanus,
dormindo no sofá cinzento. O pai desceu lentamente, a moça despertou, assustada,
envergonhada,eHalim,nomeiodaescada,esperouqueelasevestisseefosseembora.Depois
seaproximoudofilho,quefingiadormir,ergueu-opelocabelo,arrastou-oatéabordadamesa
eentãoeuvioOmar,jáhomemfeito,levarumabofetada,umasó,amãozorradopaigirando
ecaindopesadacomoumremonorostodofilho.TodosospedidosqueHalimlhefizeraem
vão,todasaspalavrasrudesestavamconcentradasnaqueletabefe.Foiumestalodemartelada
em pau oco. Que mão! Que pontaria! O valentão, o notívago, o conquistador de putas
estateladosobreotapete.OCaçulanãoselevantou.Opaioacorrentounamaçanetadocofre
deaço,sentou-seunsminutosnosofácinzento,tomoufôlegoesaiudecasa.Sumiupordois
dias. Zana não pôde interferir, não teve tempo de socorrer o filho. Ela esbravejou, gritou,
sentiu-semalaoverofilhoacorrentado,apoiadoaocofreenferrujado,afaceesbofeteadaem
alto-relevo.Nomeuíntimo,aqueletabefesoavacomopartedeumavingança.(Doisirmãos,p.
91,92)
NomomentoemqueOmarvêocorpoinertedopaisentadonosofádasalareagecom
ummistoderaivaedesespero,irrompendoemimpropériosdirigidosaofalecido:
Nãosuportouveropaimorto emcasa,sentadonosofácinzento,deondecostumavavero
filhoembriagadoougroguedesononaredevermelha.OmesmosofáemqueHalimsesentara
porunsminutos,ofegante,exausto,depoisdeteresbofeteadoeacorrentadoofilho.Eledeve
ter se lembrado disso, o Caçula, na noite em que despertou com o choro convulsivo das
mulheresdacasa.Logoquedesceuaescada,Omarnãoentendeu,nãoqueriaentenderoque
acabaradeacontecer.Viunosofácinzentooúnicohomemqueodesonroucomumbofete.
Começouagritar,criançaincendiadadeódiooudealgumsentimentoparecidocomoódio.
Gritava,foradesi:“Elenãovaiacorrentarofilhodele?Nãovaipassaramãonorostosuado?
Porqueelenãosemexeefalacomigo?Vaificaraí,comesseolhardepeixemorto?”.(...)
Omarnossurpreendeucomseugestoirado,odedoemristeapontadoparaorostodeHalim,
paraosolhosquasefechados,semvida,dopaicabisbaixo.(Doisirmãos,p.217)
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ArelaçãoafetivadesenvolvidaporZanaparacomOmar terádesdobramentosemoutrosprocessostambém
estudados pela psicanálise freudiana, oque nãoé meu objeto de estudo. Apenas para mencionar,entre esses
processos, oque obviamente é demonstrado envolve o chamado complexo de Édipo, podendo ser visto pela
exasperadaaversãodopaipelaintromissãodofilho“noleitoconjugal”.