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EXÍLIOEMEMÓRIANANARRATIVADEMILTONHATOUM
Dissertação apresentada ao Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista, Campus de
SãoJosédoRioPreto,paraobtençãodotítulo
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2007
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Orientadora:
ProfªDrªSusannaBusato
Co-orientadora:
ProfªDrªCláudiaMariaCenevivaNigro
SãoJosédoRioPreto
2007
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Vieira,NoemiCamposFreitas.
ExílioememóriananarrativadeMiltonHatoum/NoemiCampos
FreitasVieira.-SãoJosédoRioPreto:[s.n.],2007.
154f.:il.;30cm.
Orientador:SusannaBusato
Co-orientador:CláudiaMariaCenevivaNigro
Dissertação(mestrado)–UniversidadeEstadualPaulista,Institutode
Biociências,LetraseCiênciasExatas
1.1.LiteraturaBrasileira–Séc.XX–Históriaecrítica.2.Memória
(Literatura)3.Exílio(Literatura)4.Hatoum,Milton,1952--Relato
deumcertoOriente–Doisirmãos–Críticaeinterpretação.I.Busato,
Susanna.II.Nigro,CláudiaMariaCeneviva.III.UniversidadeEstadual
Paulista.InstitutodeBiociências,LetraseCiênciasExatas.IV.Título.
CDU–821.134.3(81).09
COMISSÃOJULGADORA
Titulares
ProfªDrªSusannaBusato–Orientadora
ProfªDrªJoanaLuizaMuylaertdeAraújo
Prof.Dr.AguinaldoJoséGonçalves
Suplentes
ProfªDrªIreneZanettedeCastañeda
Prof.Dr.MarcosAntonioSiscar
Dedico
AoFlávioCésar,
irmão,amigoeesposoamado
aliançadeamor,cumplicidade,incentivo
AosmeusfilhosEstêvãoeFlávia,
horizontedeesperança
paciência,motivação,carinho
ADeus,
Porquedele,poreleeparaelesãotodasascoisas
OAlfaeoÔmega.
Agradeço
AosamadosirmãosemCristo,famíliasemprepresentecompalavrasdeestímuloeorações.
ÀminhamãeAurora,quesabecalarnocoraçãopalavrasdeamor.
AosmeussogrosCarlosVieiraeMariaHelena,peloapoioecarinho.Aosirmãos,cunhadose
sobrinhos–grandetorcida!
ÀsorientadorasSusannaeCláudia,peloincentivoabuscarnovoshorizontes...
AosprofessoresMarcosSiscareAguinaldoGonçalvespelospreciososcomentáriosepelas
sugestõesnaQualificação.
ÀprofessoraJoanaMuylaertpormeajudaradescortinaromundodaliteraturaedocaminho
crítico.
Aoscolegas,pelaacolhidaeorespeitoepelasconversasprazerosasaoredordeinquietações
literárias...
ÀJakeline,sempreporpertodesdeagraduaçãonaUFU.
ÀequipedasecretariadaSeçãodePós-graduaçãopeloatendimentogentileprofissionaleà
bibliotecáriaMariaLuizapelasorientações.
AoCNPqpelaconcessãodabolsadeestudosapoiandoefomentandoapesquisa.
“(...)tantascosas.
Ahorapuedoolvidarlas.
Llegoamicentro,
AmiÁlgebraymiclave,
Amiespejo.
Prontosabréquiensoy.”
“(...)tantascoisas.
Agorapossoesquecê-las.
Chegoaomeucentro,
ÀminhaÁlgebra,meucódigo,
Aomeuespelho.
Logosabereiquemsou.”
“Elogiodasombra”,JorgeLuisBorges
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................
10
CAPÍTULOI.........................................................................................................................
20
PELOSMEANDROSDAMEMÓRIA:LEMBRANÇA,ESQUECIMENTO,
MORTE
1.1Sobreamemória.................................................................................................
26
1.2Éimportanteesquecer........................................................................................
29
1.3Diantedamorte,inquietaçõesidentitárias:lutoemelancolia............................
34
1.4Doteardamemóriaàescrita..............................................................................
46
CAPÍTULOII........................................................................................................................
53
RELATOSDEUMCERTONARRAR
2.1Aartedonarrar:Sherazadeeanarradorahatouniana........................................
57
2.2Dorelatoàescritadamemória...........................................................................
60
2.3Entrerelatosencadeados,encaixesdehistórias.................................................
63
CAPÍTULOIII......................................................................................................................
77
ENTREVOZESEREMANSOS
3.1Oespaçodasvozes.............................................................................................
83
3.2Rededecitações.................................................................................................
90
3.3EntreosfalaresdoRelato,pontosdevista.........................................................
92
3.4Relatodeambigüidades,umobservadordeDoisirmãos..................................
101
CAPÍTULOIV......................................................................................................................
110
ENTREMEMÓRIASEEXÍLIOS:IDENTIDADESFLUTUANTES
4.1Estrangeiridadecambiante.................................................................................
113
4.2Territóriosplurais...............................................................................................
116
4.3Territóriosdevivências:encontroseerrância....................................................
121
4.4Liçõesdoexílio..................................................................................................
126
4.5Alinguagemdoexílio........................................................................................
131
4.6Identidadesflutuantes.........................................................................................
138
CONSIDERAÇÕESFINAIS................................................................................................
141
DEMEMÓRIASEEXÍLIOS,ALGUMASCONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS...................................................................................
149
RESUMO
AobradeMiltonHatoum,escritoramazonensedeascendêncialibanesa,caracteriza-sepela
recorrentebuscaidentitáriadeseusnarradoresqueprocuramexplicaçõessobresuasorigens.
Em Relato de um certo Oriente (1989)e Dois irmãos (2000) há, em primeiro plano, o
trabalho da memória, que tem como força motriz o esquecimento, transitando entre dois
mundosque semesclamequese dãoaconhecer,no texto,pormeiodas experiênciasdos
personagens.Essesmundosqueseinterpenetram,omanauaraeodoimigrante,inscrevemum
“certo oriente” no ambiente amazônico traçando a história da família libanesa radicada na
ManausimagináriadeHatoum.Atrajetóriasinuosadamemóriapercorridapelosrespectivos
narradoresmanauaras,filhosagregadosdessesimigrantes,procurareestruturaropassadopor
meiodosrelatosdaspersonagens,cujasvozessãoemolduradasnasvozesdosnarradores.Em
facedaindeterminaçãodessasidentidadesperseguidas,essessujeitosencontram-seàderiva,
experimentandoumsentimentodealienaçãoedeexíliointerior.Paraoestudodessatrajetória
dosnarradoresnabuscaidentitária,articulam-seosconceitossobreamemória(H.Bergson;
W. Benjamin); o esquecimento (H. Weinrich); a melancolia (Freud); o dialogismo (M
Bakhtin);aestrangeiridade(J.Kristeva);oexílio(H.Bhabha;E.Said).
Palavras-chave:MiltonHatoum;memória;esquecimento;identidade;exílio.
ABSTRACT
The work of Brazilian writer Milton Hatoum, who’s born in Manaus and descendant of
Lebanese family, is characterized by recurrent search for origins by the narrators in both
novels studied Relato de um certo Oriente (1989) and Dois irmãos (2000). The strongest
influence on memory work is the forgetfulness on rebuilding narrators’ childhood on
searchingtheiridentity.Memory’sworktransitsbetweentwomethaforicalworldsconcerning
the immigrants and the manauara’s life, revealling a “certain Orient” in an Amazonian
ambiance that traces a Lebanese family history in the imaginary Manaus of Hatoum. The
character’svoicesretakingthepastarecommandedbynarrators’voiceswhofaceasinuous
trajectory of the memory. The indetermination of their identity carries the narrators to a
fellingofalienationandanintimateexile.Bystudyingthenarrators’wayonsearchingtheir
origins, the following concepts are articulated: memory (H. Bergson; W. Benjamin);
forgetfulness (H. Weinrich); melancholy (Freud); dialogism (M Bakhtin); foreignism (J.
Kristeva);exile(H.Bhabha;E.Said).
Keywords:MiltonHatoum;memory;forgetfulness;identity;exile.
INTRODUÇÃO
AobradeMiltonHatoum,escritoramazonensedeascendêncialibanesa,despontano
cenáriodaliteraturabrasileiracontemporâneanofinaldoséculoXX,estreandocomRelatode
umcertoOrienteem1989.Sualiteraturarompecomumaherançatemáticaemqueaimagem
douniversoregionalrecaisobreoexóticoeonatural,quandoexploraasregiõesinterioranas
brasileiras,colocandoemcenaadurarealidadedoagreste,dosseringais,doslatifúndiosde
cacauoudogarimpo;ou,focandoavidanoscentrosurbanos,expõeosembatesvividospelo
homem citadino que parece perder suas referências individuais em face do sentimento de
isolamento, ansiedade e alienação diante do turbilhão de inovações aceleradas da vida
moderna.
Neste contexto, Alfredo Bosi bem observa as novas tendências da ficção brasileira
produzidanofimdoséculoXX,entreasquaisapontaaobradeHatoumcomoexemplode
umaaberturaàdiversidadeculturalassistidanoBrasil.
Apotencialidadedaficçãobrasileiraestánasuaaberturaàsnossasdiferenças.Nãoaesgotam
nemosbas-fondscariocasnemosrebentospaulistasemcrisedeidentidade,nemosvelhos
moradores dos bairros de classe média gaúcha, nem as histórias espinhentas do sertão
nordestino.Hálugartambémparaoutrosespaçosetempose,portanto,paradiversosregistros
narrativoscomoosquederivamdesondagensnofluxodaconsciência.Quemsupunha,por
exemplo, que da Amazônia só nos viessem episódios de seringueiros ou de índios
massacrados,porcertorecebeucomsurpresaotextoemsurdinadeMiltonHatoum,Relatode
umcertoOriente(89),emqueavidadeumafamíliaburguesadeorigemárabe,enraizadaem
Manaus,sedáaoleitorcomoumtecidodememórias,umaseqüênciaàsvezesfantasmagórica
11
de estados de alma, que lembraa tradiçãodo nosso melhor romanceintrospectivo. (BOSI,
2001,p.437)
Asnarrativashatounianasaquiestudadas,RelatodeumcertoOriente(1989)eDois
irmãos (2000), são alocadas em Manaus, cujos aromas e mistérios envolvem o leitor na
viagem da memória de seus narradores. Contudo, a inserção das ações na paisagem
amazônica não se dá por causa do exotismo das belezas naturais do lugar, nem se atém à
exploraçãodafiguradoíndiomassacradopelatiraniacolonizadora,nemmesmoàpresença
marcantedoimigranteeuropeuembuscadeenriquecimentoemterrasestrangeiras.
Embora todos esses elementos possam ser percebidos ao fundo, o autor ultrapassa
esses tópicos a favor de outra tematização literária. Há, em primeiro plano, o trabalho da
memória,emconfrontocomoesquecimento,quepercorredoismundosquesemesclameque
sedãoaconhecer,notexto,atravésdasexperiênciasdospersonagens:omundomanauaraeo
do imigrante. Esses mundos interpenetram-se e delineiam-se pela saga da família libanesa
radicada em Manaus inscrevendo no ambiente amazônico um “certo oriente”. O passado
dessafamíliaéreestruturadopelosrelatosdaspersonagens,cujasvozessãoemolduradasnas
vozes dos respectivos narradores manauaras, filhos agregados desses imigrantes. Como
contorno dessa moldura há uma trajetória sinuosa da memória percorrida pela narradora
inominadadoRelatoedonarradorNael,deDoisirmãos,embuscadesuasorigens.
Nesse contexto, a Manaus onde se encenam as histórias de Hatoum projeta-se nas
narrativasmuitomaiscomoolugardodesejoquecomoespaçogeográfico.Oterritóriotão
bem delimitado pelo autor, com características tão peculiares ao lugar em que convivem
nativosdaAmazônia,imigranteseregatões
1
,ultrapassaaformulaçãoregionalistaexóticaque
é relativizada pela ambiência em um território muito particular construído pela memória,
sustentadaaomesmotempopelalembrançaepeloesquecimento.

1
Nalinguagemregional amazônicarefere-sea mercadores quepercorrem oriodebarco, parando emvários
povoados.(cf.dicionárioeletrônicoHouaiss)
12
Essesnarradoresvivemodramade,simultaneamente,pertenceremenãopertencerem
aosdoismundosdequefazemparte,oamazônicoeolibanês.Assim,arelaçãomútuaentre
essesterritóriosresultanaimagemdemundosencaixados,segundoTâniaPellegrini:
Sãocomoterritóriosconcêntricos,umdentrodooutro:aManausrealeseuduplo,aManaus
imaginária;dentro,acolônialibanesa,nocentrodaqualascasasdasfamíliasavultamcomo
espaço privilegiado. Desses territórios fecundos – aos quais corresponde a própria forma
narrativa, montada com relatos que brotam uns de dentro dos outros – Hatoum extrai sua
matéria, constituída por uma malha cultural variada e típica, baseada na interrelação entre
imigrantes,estrangeirosenativos,queestabelecemrelaçõesdeidentidadeedeestranhamento
com um mundo diverso, no qual um difuso sentido de perda está sempre presente.
(PELLEGRINI,2004,p.128)
ParaalémdessaManausenigmática,oquepercorreambasasnarrativaséumdesejo
deautoconhecimentoqueimpeleanarradorasemnomedeRelato deumcertoOrienteeo
narradorNael deDois irmãos.Ambos buscamconhecersua gênese,mergulhando emuma
“complexaviagemdamemória”,nodizerdeArrigucciJr.,reedificandoacasafamiliarpor
meiode
(...) uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir, no lugar das lembranças e vãos do
esquecimento, a casa que se foi. Uma casa, um mundo. Um mundo até certo ponto único,
exóticoeenigmáticoemsuaestranhapoesia,mascapazdeseimporaoleitorcomaltopoder
deconvicção.(ARRIGUCCIJR.,1989)
2
Esse poder de sedução do texto de Hatoum pode ser apreendido no processo de
construção das narrativas, que se dá pela confluência de vários relatos na escrita das
memórias, auxiliando na reconstituição identitária dos narradores impulsionados por uma
busca que esbarra sempre com a alteridade, o estranhamento, o desenraizamento e a
estrangeiridade,entreoutrosaspectosvinculadosàcondiçãohumana.
Levandoemcontaasituaçãodosnarradorescomomembrosagregadosdasfamíliasde
imigranteslibaneseseoconstantedescompassoentrealembrançaeoesquecimento,entreo
quesecalaeoqueéreveladoarespeitodopassado,perpassaosenredosacondiçãodeexílio
interior desses narradores e personagens que decorre de uma marcante e peculiar

2
Cf.textodeDaviArrigucciJr.naorelhadeRelatodeumcertoOrienteemqueocríticoapresentaaslinhas
mestras da obra de estréia do autor. De forma coesa, o trecho acima citado pode ser estendido também ao
segundoromancedeHatoum.
13
desterritorialização: seja ela vivida pelos imigrantes libaneses e pelos nativos manauaras
aculturados, distantes de suas terras de origem; seja ela do âmbito das experiências da
memória, marcadamente vivenciadas pelos narradores, cuja trajetória sinaliza as
instabilidadesdosindivíduosembuscadaprópriaidentidade.
Há, portanto, um jogo de oscilações que imprime ao discurso narrativo um tom
desconcertante regido pelo trabalho de sondagem realizado pela memória. Nisso reside o
estilodeHatoum:apreocupaçãoemmanternonúcleonarrativoopensamentodonarrador
paraoqualconfluemasváriasvozesquefazemreviverotempodainfância.Interessaaquio
queobservaPellegrini,aodizerque
Os dois romances executam um mergulho vertical nos meandros da memória, sondandoas
inconclusõesdopassadoetentandorefazerodesfeito,pormeiodeumexamepreciosistade
cadaelementoquedelesbrota:perfumeseodores,sonsesilêncios,luzesesombras,palavras
ditas e caladas, gestos concluídos ou esboçados, vozes e passos que se estendem
horizontalmentepormuitosanosdeatosefatos.Overticaleohorizontaltecemumatramade
tempospormeiodeumadelicadíssimacomposiçãolingüísticaquenãopermiteestabelecerum
sentido único e definitivo, pois trabalha com dois eixos, o anúncio e osegredo, que se
alternamecomplementam.(PELLEGRINI,2004,p.123)
Desse modo, tendo essas coordenadas, vertical e horizontal, que formam a trama
textualdosromances,abuscaidentitáriasóéconhecidanodiscursonarrativoàmedidaqueos
narradoresvãotecendosuashistóriascomoauxíliodeváriosrelatosarespeitodeumpassado
queexplica,decertaforma,seupresenteedelineiasuasidentidades.Énessediscursoquese
expõem os fragmentos de vidas e de experiências, quando a palavra é cedida a outros
personagensimbricados noenredoe noatodetecer,ponto a ponto,a malhadiscursivado
romance.
Assim, a relação desses narradores com suas origens se tece com o trabalho da
memóriaenquantodepositáriadeexperiênciaseinformações,estabelecendoumjogoentreo
lembrar,oesquecereoinventar.Nessecampodetensões,abuscaidentitáriadosnarradoresé
estruturada notexto a partir dos relatos queemergemdeum emaranhadode vozes quese
14
interpenetramemumprocessodeencadeamentodehistóriasencaixadasquedáprofundidade
eaomesmotempodinamismoàsnarrativas.
Porsetratardehistóriasdefamíliasdeimigranteslibaneses,osnúcleosfamiliaressão
muitocarosaoautor,remetendoinclusiveàsuaascendênciaorientaleaconvivênciadesdea
infânciacomalínguaárabe.SegundodepoimentosdeHatoumemdiferentesentrevistaseem
artigospublicados,houvesempreumapreocupaçãonoseiodafamília,estimuladapelamãe,
depreservaraculturaderaizárabemantendoalgunscostumesgastronômicoseaprendendoa
línguadopaísnataldosparentesancestrais.Aomesmotempo,eratambémnecessárioabraçar
a ngua e os costumes do país que os acolheu, onde viviam, moravam, estudavam,
trabalhavamecontribuíamparaodesenvolvimentoeconômico.
Assim, desde tenra idade Milton Hatoum aprendeu a conviver com as dualidades,
necessáriasedesafiadoras,dalínguaedoscostumesculturais.Valedestacarumapassagem
deartigoseupublicadonoiníciodacarreiracomoescritor.
QuandodeixamosaPensãoFeníciaparairmorarnumpequenosobrado,algunsobjetosnos
acompanharam: um tapete, um mapa do Oriente, um narguilé
3
e alguns livros. (...) Nesse
espaço/tempoqueéacasadainfâncianasceosentimentoquenóstemosdoDiverso:gênese
domundoexterior,percepçãodoOutro,aberturaparaoinfinito.NaPensãoFeníciaenaoutra
casadainfância,oOrienteeraalgoaomesmotempomuitopróximoemuitodistantedemim.
De certo modo, eu convivia com um Oriente real, revelado através de crenças e conflitos
religiosos, da comida, do comportamento e hábitos sociais e da língua árabe. (HATOUM,
1993,p.165,166–grifosdoautor)
Essaconvivênciacomodiversoéreiteradapeloautorenfatizandoseuconvíviocoma
diversidadeculturalqueocercavadesdeainfância:
Na minha infância,a convivência com o Outro exterior aconteceu na própria casa paterna.
Filho de um imigrante oriental com uma brasileira de origem também oriental, eu pude
descobrir,quandocriança,osoutrosemmimmesmo.Ou,comoafirmaTodorov:“Umapessoa
podedar-secontadequenãoéumasubstânciahomogêneaeradicalmenteestrangeiraatudo
que não é ela própria”
4
. A presença e a passagem de estrangeiros na casa da infância
contribuíramparaampliarumhorizontemulticultural.Minhalínguamaterna éoportuguês,
mas o convívio com árabes do Oriente Médio e judeus do norte da África me permitiu

3
Cf.Dicionário EletrônicoHouaiss:Narguilé:espéciede cachimbo muito usado por hindus,persaseturcos,
constituídodeumfornilho,umtubolongoeumpequenorecipientecontendoáguaperfumada,peloqualpassaa
fumaçaantesdechegaràboca.
4
Acitaçãoremeteaestanota:Cf.TzvetanTodorov,Laconquêtedel’Amérique,laquestiondel’Autre,Paris,
Seuil,1982.
15
assimilar um pouco de sua cultura e religião. De forma semelhante, a cultura indígena se
impunhacomapresençadenativosquemoravamnaminhacasaefreqüentavamobairrode
imigrantesorientaisdacapitaldoAmazonas.(HATOUM,2001,p.4)
O cenário das histórias hatounianas é a Manaus banhada pelo rio e cercada pela
floresta,queassiste,noiníciodoséculoXX,aépocadadecadênciadoperíododeouroda
borrachaetentaadaptar-seaoprocessodemodernizaçãoassistidonopaís,especialmentena
regiãonorte.ÉestaManausqueacolheimigrantesdetantospaíses–particularmenteesobo
focodeHatoum,asfamíliasvindasdoLíbano–,exímioscomerciantesquetrazemumlegado
culturalquesemesclaàricatradiçãoamazonense.
Astintasutilizadaspeloautorparatraçarumretratomínimo deseusnarradoressão
retiradas de sua própria história familiar, cuja ascendência libanesa com raízes na capital
amazônica, oferece ao leitor uma imagem híbrida transposta, pela ficção, aos seus
personagens. No entanto, não se deve esperar dos romances hatounianos uma carga
autobiográfica, tampouco uma expressão regionalista inspirada no exotismo amazônico,
menosaindaumanarrativadeexpatriado.
Unidostodosesseselementos:araizorientaldeculturaárabe,ahistóriadafamíliaem
Manaus,aimaginaçãoeamemóriadeseuspersonagens,temosumesboçodoprojetoliterário
deMiltonHatoum.UmcertoOrientequeseinstalaetransitanoterritóriodesteOcidente,a
Amazônia, região brasileira que é ao mesmo tempo passadouro efixação dacultura e dos
costumesquealisemesclam.É naconvivênciadessesdoispólos,orientaleocidental,que
essasculturasdísparesinstalam-senoterritóriomanauara.
Para além de uma representação regionalista tardia, ou revisitada, conforme Tânia
Pellegrini (2004), a Manaus hatouniana é metonímia de uma mescla cultural, em que o
estrangeiroeonativoaculturadointercambiamseusvalores.Issoficaretratadonasrelações
familiares assistidas nos dois romances, em que os próprios narradores estão intimamente
envolvidos.Sãonarradores-personagense,também,escritoresdosrelatossobresuasvidas,ao
buscaremnainfânciaahistóriadesuasorigens.
16
Para a arquitetura dos dois romances em estudo, o tempo mostra-se um pilar de
sustentação sobre o qual apóiam-se as narrativas. Ainda com Pellegrini, ao colocar em
primeiroplanoasexperiênciasindividuaisdosnarradores,oautorrompecomumatendência
danarrativacontemporâneaquepriorizaaação,impostapelaagilidadedomercadoeditorial
soboinfluxodanovaordempragmáticadosmodosdeproduçãocultural.Segundoaautora,
A concepção de tempo que tal ritmo impõe, acelerada, superficial e genérica, parece não
condizer com o critério fundante da narrativa romanesca, a fidelidade a uma experiência
individual,sempreúnica,novaeoriginal,masnãoefêmera,sobretudopelograudeatenção
necessárioàsuaparticularização.Então,talveznãoporacaso,nosdoisromancesemquestão
[Relato de um certo Oriente e Dois irmãos], o tempo é a viga principal a sustentar a
arquitetura da narrativa. Aquele tempo, descoberta da modernidade, cujo fluir permite ao
indivíduomantercontatocomocontinuumdesuaprópriaidentidade,pormeiodalembrança
defatos,atosepensamentospassados,seusedeoutrem.Éofluxodamemória,criandouma
cadeia de causas e efeitos, elaborando a realidade por meio de um processo mental,
fecundando-acomumfermentodefantasiae,assim,reconstituindoocernedoindivíduoque
narra.(PELLEGRINI,2004,p.122)
Esseindivíduoquenarraprojeta-senotexto,procurandomanter-seem contatocom
seupassadodando vazãoaofluxoda memória.Aescritadalinguagem damemória,como
modusoperandiemambososromances,lança-secomoumaespéciedeâncoraemmeioàs
águas turbulentas em que se debatem os personagens que se descobrem em constante
dissonânciaemrelaçãoasupostasverdadesbuscadascomorefúgioàinquietantebuscadesi
mesmos.Aescritaapresenta-se,portanto,comolugardeinscriçãodeumsujeitoproblemático
emangústia constante,entregue aotrabalhodeinterpretaçãodesi mesmo, poisse debruça
sobreoplanoinstáveldamemória.Cria-se,assim,umsujeitofragmentado,nanarrativa,na
tentativadeabarcarassimultaneidadesafluentesdamemóriaedotempo.
Paraodesenvolvimentodoestudodosromancesemquestão,apesquisabibliográfica
incluiudissertaçõeseteses,publicaçõescríticas,entrevistasereportagensarespeitodoautor
edesuaprodução.Umagamadeoutrostextosensaísticos,crônicasecontosdeautoriade
Hatoum,alémdeentrevistasdadasporele,tambémcompuseramoarcabouçodeleituraspara
17
aexecuçãodotrabalho.Ofatodeestudaraobradeumautorcontemporâneo,emplenacarga
produtiva,exigiuatençãoredobradasobreaproduçãocríticavoltadaparaseustextos
5
.
Comoobjetivodetraçarumaverticalizaçãotemáticaparaoestudodaconstruçãodas
narrativasem questão, épossível visualizarcomo eixoestruturante: abuscaidentitáriados
narradores,regidapelatensãoentreamemóriaeoesquecimento,queéestruturadanotexto
por meio do discurso desses narradores como vozes ordenadoras de vários relatos
retrospectivosemprocessodeencadeamentoecessãodevozes.
Tendo em vista tal temática, esta dissertação organiza-se da seguinte maneira: No
Capítulo Itrato especificamente sobre amemória, o esquecimento, a lembrançae amorte,
tendo como aporte teórico os estudos de H. Bergson, W. Benjamin, H. Weinrich e Freud.
Estes sãopontos cruciaispara otraçado inicialdas reflexõessobre anatureza damemória
que, sendo uma forma de conhecimento fundada na subjetividade, se sustenta pela dupla
contribuiçãodalembrançaedo esquecimento.Comoelementomotivadorparaa escritada
memória,desiedeoutros,analisoofatodamortedeentespróximosediretamenteligados
aosnarradores,comoquestãoligadaaoesquecimento.
No Capítulo II, trato da composição da narrativa tendo os relatos de outros
personagens como fundadores do discurso da memória ligada à infância dos narradores.
Demonstrotambémosprincípiosfundadoresdanarrativaoriental,tendocomomodeloaarte
de narrar de Sherazade, traçando um paralelo com o procedimento narrativo hatouniano,
focalizandoanarradoradoRelato.Paraoconhecimentodopassadodessesnarradores,emseu
retorno à infância, os outros relatos que se entrelaçam às suas histórias trazem cenas e
experiências que contribuem para a construção, presentificada no texto, desse quadro

5
Emrelaçãoàobradoautoraindahápoucostrabalhosacadêmicosepublicaçõesdosquaissepodelançarmão
parafazerconfluiroutrosolharesnoprocessodeanálise.Apesardisso,todoomaterialaquetiveacessofoide
fundamentalimportânciaparaodesenvolvimentodotrabalhocríticosobrealiteraturadeHatoum.Éimportante
assinalarquenodecorrerdoperíododapesquisaMiltonHatoumlançouseuterceiroromance,CinzasdoNorte,
pelo qual venceu o prêmio Jabuti, oferecido pela Câmara Brasileira do Livro, e o prêmio Portugal Telecom,
amboscontemplandoaobracomomelhorromancede2005.Asobrasaquiestudadastambémconquistaramo
Jabuti de melhor romance: Relato de um certo Oriente em 1990 e Dois irmãos em 2001. Ambos foram
traduzidosparaváriaslínguas,entreelasoinglês,oalemão,ofrancês,oespanholeoárabe.
18
constitutivodaidentidadebuscada.Aoenfocaraimportânciadessasoutrasmemórias,aponto
o procedimento de escrita, efetuada pelos narradores, como forma de materialização da
memória, revestida também da imaginação criadora, e como resistência à força do
esquecimento, adotado principalmente por Nael de Dois irmãos. Como aporte teórico W.
Benjamin(1975)elucidaaslinhasquetransitamdanarrativaoralàconstruçãodoromance.
Dos princípios fundadores da memória, constituída pela lembrança e pelo
esquecimento, passando pela utilização dos relatos e de seu registro, a construção das
narrativastemcomocomponentedatessituradosrelatosamultiplicidadedevozesquesão
requisitadas para a composição da malha discursiva em ambos os romances. Assim, no
Capítulo III analiso o lugar discursivo ocupado pelos personagens que dividem o mesmo
espaçofamiliar:acasadosimigranteslibanesesedosnarradores,agregadosdessasfamílias.
Esselugardiscursivoévistocomolocaldeconfluênciadesaberesedediferentespontosde
vista sobre os fatos que envolvem os narradores dos relatos. Para o estudo do processo
dialógiconasnarrativashatounianas,lanceimãodaobradeM.Bakhtin,principalmentesua
abordagemàestéticaliterária(2002)esobreaprosadeDostoiévski(1981),comotambémdo
estudoelucidativodeIreneA.Machado(1995)sobreoautorrusso.
NoCapítuloIV,valendo-medasreflexõesdeE.Said(2003)edeH.Bhabha(2005),
tratodanoçãodeterritórioquetransitadascasasdosimigrantes,ondetambémviveramos
narradores,paraumâmbitomaisamploqueabarcaaconvivênciaentrevaloresdísparesdas
culturas ditas centralizadoras. O sentimento de “estrangeiridade” e de deslocamento na
própria terra é estudado sob a perspectiva de J. Kristeva (1994), que enfoca a recorrente
condiçãodeestranhamentovividanacontemporaneidade.Abuscaidentitáriafaz-setantopela
perspectivadosnarradores,comoagregadosnativos,quantopeloolhardosimigrantes,como
estrangeiros.
19
Emdecorrênciadoangustiantetrabalhodamemóriaaqueselançamosnarradores,a
questão do exílio é tratada para além dos deslocamentos da terra natal para uma terra
estrangeira.Otermofraturainterior, recorrentenotexto, apontaparaaperspectivadeSaid
queentendeoexíliocomo“umestadodeserdescontínuo.Osexiladosestãoseparadosdas
raízes,daterranatal,dopassado.”(2003,p.50).Assim,procurodemonstraracondiçãoaque
seprendemosnarradoresepersonagensdosromancesemestudo,quesesentemestranhosem
sua própria terra ou, como estrangeiros, desenraizados de seu local de origem, de seus
costumes e tradições e, ainda, distanciados das verdades pertinentes à sua origem sob a
imposiçãodoesquecimentooudamortedamemória.
CAPÍTULOI
21
PELOSMEANDROSDAMEMÓRIA:LEMBRANÇA,ESQUECIMENTO,MORTE
“Eunãoavimorrer,eunãoquisvê-lamorrer.”
(Doisirmãos,p.12)
Os narradores das histórias de Milton Hatoum lançam-se ao processo de
autoconhecimentopor meio darecuperação, mesmo que parcial,de relatos de experiências
que estariam retidas em suas memórias e nas de outros personagens. Estes últimos, com
histórias guardadas como em relicário, escreveriam, digamos assim, juntamente com os
narradores, um texto de memórias em que nada poderia ser considerado inteiriço, pois ao
discurso da memória mistura-se outro ingrediente: a imaginação. Tal ingrediente contribui
para a construção das narrativas, isso porque ao lado da lembrança de fatos e de relatos
sempreexistemaslacunascavadaspeloesquecimento,oquedávazão àinventividadedos
narradoresnomomentoemqueconstroemsuasnarrativas.
EmRelatodeumcertoOriente(1989)anarrativaseconstróidopontodevistadeuma
narradora tão enigmática quanto a própria história que, aos poucos, procura tecer. Sua
identidade,buscadanainfância,éoenigmaqueperpassatodooromanceequebalançasobre
o fio maleável da memória. O esquecimento, ao construir lacunas em meio às passagens
lembradas,incuteasforçasdetensãoexperimentadasporessanarradorainominadanabusca
desuasorigens.Aspassagensdainfânciasãopequenaspeçasqueapriorinãoseencaixam,
poisotempoimpõebarreirasporvezesintransponíveis.
22
Tão surpreendente quanto o trabalho de tensão entre o esquecer e o lembrar, é a
exploração das várias vozes que, à maneira dos fios que formam o tecido no tear, se
entrecruzamesesobrepõem,formandoumaredediscursivacompostapelosrelatosdeoutros
personagens,queparaanarradorasurgiamcomo“(...)confidênciasdeváriaspessoasemtão
poucosdias[e]ressoavamcomoumcoraldevozesdispersas.”(Relato,p.166).Essasvozes,
portanto,
ganham status de narradores de uma história familiar de imigrantes libaneses
alocadosemManausemcontatocomaculturabrasileira.
Já em Dois irmãos (2000) o tear da linguagem opera outro nível de discurso, não
menosintriganteetãotensoquantonoprimeiroromance;aqui,onarradordecideescreverum
textodememóriaspartindodelembrançassobresuainfância.Dessaslembrançasbrotamos
relatos de personagens que o cercavam na casa familiar onde nascera. A busca do
autoconhecimentodá-setambémdopontoemqueoesquecimentotravalutacomamemória,
impondoumdiálogoinstiganteentreopresenteeopassado.
Assim,anarradoraretornaparaManausembuscadesuasorigens,tentandovencera
forçadoesquecimento.OnarradorNael,doquartinhodosfundosdacasaondeviviadesdea
infância,revisitaopassadonaprocuradesuagênese,históriaqueprosseguenabuscadesi
mesmo.
A passagem escolhida para servir de epígrafe para este capítulo vem sinalizar o
posicionamentodo narradordiantedeum fato:a morte.Aiminente ausênciasinalizadana
faladonarradorensejaodesenvolvimentodealgumasreflexõesemtornodafraturainterior
dosujeitocomoreflexodeexperiênciasmarcantesemrelaçãoàmorte.Essesujeito,quese
projeta em uma busca de autoconhecimento, se expressa por meio da escrita como
representaçãodoprocessoderememoração,queerigeumsujeitooutro,pormeiododiscurso
damemória.
23
Buscando-se a si mesmo, nessa operação de trazer à tona o passado, esse sujeito
cindidopersegueincessantementeexplicaçõessobreseusereestarnomundo,soboimpacto
de uma indefinição que marca o homem moderno. Homem este também marcado pela
angústiadoautoconhecimentopormeiodatensalutacontraofluxodotempocronológicoe
histórico. Essa fragmentação do sujeito leva a um enfrentamento com a pluralidade e a
diferença,decorrentesdasoscilantestransformaçõesporquepassaoindivíduonotranscorrer
dotempo.Osujeitoé,portanto,omesmoeooutro,contradiçãoidentitária.Trabalhandocom
alembrançacomotentativadenortearaidentidade,cresce,paraosnarradores,umdesejode
explicações,poiscomoasseveraEcléaBosi:
Conhecemosatendênciadamentederemodelartodaexperiênciaemcategoriasnítidas,cheias
de sentido e úteis para o presente. Mal termina a percepção, as lembranças já começam a
modificá-la:experiências,hábitos,afetos,convençõesvãotrabalharamatériadamemória.Um
desejodeexplicaçãoatuasobreopresenteesobreopassadointegrandosuasexperiênciasnos
esquemaspelosquaisapessoanorteiasuavida.Oempenhodoindivíduoemdarumsentidoà
suabiografiapenetraaslembrançascomum“desejodeexplicação”.(BOSI,1987,p.340)
Portanto, asexperiências dopassado remodeladaspelo presentelançam oindivíduo
diante de um quadrode indefinição e angústia, alocando o sujeito em um “espaço-tempo”
moldadopor umatensão entreasubjetividadeindividual eacoletiva.Estapareceseruma
lógica que demanda do sujeito uma tomada de consciência de seu lugar no mundo e da
irremediável recuperação do passado, no que diz respeito ao trabalho da memória como
campodeescavaçãoembuscadasbasesqueosustentamcomoindivíduoidentificadocomo
gruposocialemqueseinsere.
Sendo entrelaçado, vertical e horizontalmente, pela lembrança e pelos relatos
retrospectivos,odiscursodamemóriapassaatersentidocoletivo,poisotrabalhodaescrita
resulta na socialização desse relicário dos narradores. Diante da morte e por meio da
memória, constituída pelo esquecimento e pela lembrança,são traçados os caminhos pelos
quaisasnarrativasdeRelatodeumcertoOrienteeDoisirmãossetecem.
24
Comoguiateóricoelucidativodessestraços,buscoarespeitodotemadamemóriaos
estudosdeHenriBergsonedeWalterBenjamin.Sobreoesquecimento,recorroaobelíssimo
estudodeHaraldWeinrichresgatandoumanoçãoinscritanatradiçãoclássicasobreaartedo
esquecimentoedalembrançacomoelementosconstituintesdamemória.
Outropontoimportante,quemotivaaescritadosrelatosqueproduzemosnarradores,
na tentativa de compreenderem suas identidades, é o impacto causado pela morte de
personagensdiretamenteligadosaeles.Aausênciacausadapelodistanciamentooupelaperda
desempenhaumpapelimportanteemrelaçãoaoresgatedereminiscênciasnosromances.
Diversos são os estudos já realizados sobre memória, tema instigante e que tem
demandado a produção de inúmeros colóquios e ensaios acadêmicos e científicos, sendo
objetodepesquisadapsicologia,dapsicanálise,dafilosofia,dafenomenologia,dahistória,
daliteratura,entretantasoutrasáreasdoconhecimento.
É importante salientar que o enfoque dado à memória no presente estudo visa o
trabalhodosnarradoresepersonagenscomamemória,nãocabendorelaçõesimediatascoma
realidade,tampoucocom a vida do próprio MiltonHatoum porser ele de origem libanesa
com família radicada em Manaus há anos. O próprio autor afirma,em várias entrevistase
ensaiossobreamotivaçãooriginaldesualiteratura,queemnenhummomentoseusparentes
sereconheceramemqualquerdeseuspersonagens,poisseutrabalhoficcionalpartedeum
mundoparticular,járedimensionadopelaimaginação,parainvocarouniversal.
Não é demais frisar, também, que a produção hatouniana não se enquadraria na
literatura memorialista, se comparada com a obra de Pedro Nava, por exemplo. Para não
restardúvida,aliteraturamemorialista,comoadeNava,carregaemsiumcritériofundante
muitoarraigadoàvidadoautoreaexperiênciaspessoaisdainfânciadistantequeéreavivada
namemória etransformadaemnarrativa.Como nemtudoqueamemóriaguardapode ser
totalmenterecuperadoeexpressodeformainteiriçanodiscurso,notempopresentedequem
25
narra,aimaginaçãoprotagonizaboapartedanarrativanaformadecriaçãoficcionaldefatos,
lugaresedepersonagens,emborainspiradosempassagenseempessoasreaisligadasàvida
doautor.Paraesclareceraindamais,vejamosotrechoaseguirde“Móbiledamemória”,de
DaviArrigucciJr:
[Nava] foi acumulandoaos poucos uma ampla e profundaexperiência,amadurecidadepois
sem pressa, pacientemente, puxando pela memória raízes distantes, da infância, de outrora,
parasóentãocomeçaranarrar.(...)Certodiapôsmãosàobra,entregando-seinteiramenteà
tarefaderecriaropassado,àatividademanualdeescrever,quedeimediatooarrebatou,com
tudooquecomportavadeprazeredor:Nava,conformeesclareceu,iasesentindorealizado
comaqueleatoprazerosoelibertador,mesmosabendooquantodoíairlargandopedaçosseus
pelocaminho.(...)Àbeiradoesquecimento,põe-seentãoarecordarquasecomfúriacomona
antigaimagemdopoetaépicoquetivessebebidodaságuasdeMnemosina,fonteedeusada
memória,musadetodasasformasdenarrativa.(ARRIGUCCIJR.,1987,p.67-69)
Além de passagens de sua história pessoal, as Memórias de Pedro Nava são
fecundadaspelopassadofamiliaremsuaterranatal,MinasGerais,epelocontextohistórico-
socialdopaís.AssimprossegueArrigucci:
Desentranhar do passado e da terra onde cresceu o filão de sua história pessoal leva-o,
portanto,areanimarcomaseivavivadamemóriaagrandeárvoredavidafamiliarenterrada
notempo,comtodooemaranhadodesuasraízesqueaprendiamaumcontexto histórico-
socialconcretoeaindamaisfundo.Paraisto,tevededevassarumblocoenormedahistóriado
país,embuscadoconhecimentodesimesmo,comosefosseobrigadoaencararahistóriada
naçãoparareconhecerseupróprioretratoepodersituar-seemfacedomundo.(ARRIGUCCI
JR.,1987,p.76)
Essabrevecomparaçãoobviamentenãosubstituiumaanáliseaprofundadadaobrade
Pedro Nava para descobrir em seus textos memorialistas supostos pontos de contato e de
divergênciacomalgumaslinhasdeforçadanarrativadeHatoum,principalmentenoquediz
respeitoàficcionalizaçãodeeventosdopassadodoautorassociadosamomentosdahistória
dopaís,tendocomovigadesustentaçãootempoeamemória.Certamentequenãoéesseo
propósito desta dissertação. Pontuo ainda, que o cerne da literatura do autor amazonense
encontra-sena construçãodanarrativaregida pelotrabalhoda memóriados narradoresem
tornodeumdramafamiliar.Sãoelesqueestãoembuscadesimesmos,enãooautor.Não
busco,portanto,estudaraquioteorautobiográficonosescritosdeHatoum.
26
Comoobjetivodecompreenderalgunsmecanismosdamemóriaquantoàpercepção
de eventos e de objetos, bem como o papel da imaginação associada a lacunas no ato de
lembrar,passoaoestudodamemóriapropriamentedita.
1.1Sobreamemória
Tendoemvistaamemóriacomoumaartecapazderegistrarimagensede,pormeio
dalinguagem,presentificaressasimagensdopassadoredimensionadasnopresenteatravésdo
discurso,tem-sequeaperformanceda memóriatrabalha essencialmentecom oespaço e o
tempo.
Se recorrermos aos primórdios da arte da memória inventada pelos gregos como
capacidade de registro das lembranças, estaremos diante do episódio de um banquete
oferecido pelo herói esportivo Scopas, vitorioso boxeador, que seria honrado pelo hino
laudatóriodopoetaSimônidesdeCeos(cercade557a467a.C.).
Durante a festa, repentinamente, o teto do salão desaba sobretodos os convidados,
com exceção de Simônides, que havia sido chamado para fora do aposento pelos deuses
esportistas Castor elux, também homenageados emsua poesia de louvor.Após escapar
afortunadamente desse trágico acidente, o poeta é requisitado pelas famílias a auxiliar na
identificaçãodosmortos.Comsuamemóriavisual,foicapazdelembrar-seexatamenteem
que local da mesa cada um se sentara. Assim Harald Weinrich resume este fato: “Essa
memória espacial permite-lhe identificar os mortos segundo sua localização no aposento.
Desde essa façanha de memória, o poeta Simônides passa por inventor da mnemotécnica,
consideradaumaartequepodevenceratémesmooesquecimento.”(WEINRICH,2001,p.
30)
27
Soboutraperspectiva,temosacontribuiçãodofilósofofrancêsHenriBergson(1859-
1941), que como estudioso da fenomenologia da lembrança centraliza em sua obra, entre
outros aspectos, impressões sobre a experiência dapercepção. O que Bergson se propõe a
examinaremsuaobraMatériaememóriaéaconcepçãoemtornodamemória,passandopor
uma complexa especulação sobre matéria e espírito
1
. Para ele, em linhas bem sucintas, a
matériaéconcebidacomoumconjuntodeimagens,éalgoqueextrapolaasconvençõesquea
reduzemaumcampoderepresentação;jáoespíritoéentendidocomoapercepção–podendo
significar,também,memória–,comaqualoindivíduoatuasobreamatéria.
Esteconjuntocomplexo,formadopelasconcepçõessobrematériaememória,formao
eixo do postulado do pensador francês, que vê na memória o “lado subjetivo de nosso
conhecimentodascoisas.”(BERGSON,1999,p.31).Opensamentobergsonianofunda-sena
distinçãoentreapercepção,quedependedaatualidadedocorpo,nopresente,ealembrança,
entendidacomofenômenoquepenetra,sempreedeváriasmaneiras,apercepção.Emsuas
palavras,
Naverdade,nãohápercepçãoquenãoestejaimpregnadadelembranças.Aosdadosimediatos
epresentesdenossossentidosmisturamosmilharesdedetalhesdenossaexperiênciapassada.
Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não
retemos então mais que algumas indicações, simples signos” destinados a nos trazerem à
memóriaantigasimagens.(BERGSON,1999,p.30)
Sendoassim,amemóriadefineasrelaçõesdopresentecomaquiloqueseconservaem
termosdeimagensnocampopsíquicodoindivíduo.Nessarelação,mediadapelamemória,o
passadovemàtonaemistura-seàspercepçõesimediatasdopresente.
Outro ponto importante a considerar do postulado bergsoniano é que a lembrança
responde a um chamado vindo do presente, trazendo para a camada da atualidade as
experiênciastranscorridasefixadas,ouconservadas,nasmalhasdamemória.

1
Bergson,noprefáciodasétimaediçãodeMatériaememória,colocando-secomoquemignoraasdiscussões
entreosfilósofos,asseveraqueasposiçõesintransigentesdosidealistasedosrealistasprovocaramdificuldades
para o entendimento do dualismo entre espírito e matéria. Para ele, “idealismo e realismo são duas teses
igualmenteexcessivas,[poisumapretende]reduziramatériaàrepresentaçãoquetemosdela[eaoutraquer]
fazer da matéria algo queproduziria em nós representações mas que seria de uma natureza diferente delas.”
(BERGSON,1999,p.1)
28
Amemóriadesempenhaumpapelsubjetivodeentrecruzaraspercepçõesimediatasàs
lembranças, contraindo uma gama enorme de momentos. Assim prossegue Bergson
discorrendo sobre a hipótese do prolongamento subjetivo dos momentos realizado pela
memória:
Por mais breve que se suponha uma percepção, com efeito, ela ocupa sempre uma certa
duração, eexige conseqüentemente um esforço da memória, que prolonga, unsnos outros,
uma pluralidade de momentos. Mesmo a subjetividade” das qualidades sensíveis (...),
consiste sobretudo em uma espécie de contração do real, operada por nossa memória. Em
suma,amemóriasobestasduasformas,enquantorecobrecomumacamadadelembrançasum
fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de
momentos,constituiaprincipalcontribuiçãodaconsciênciaindividualnapercepção,olado
subjetivodenossoconhecimentodascoisas.(BERGSON,1999,p.31)
Comrespeitoàpercepção,ocorpocumpreafunçãoessencialdelimitar,selecionando,
as representações, e com relação à memória, o papel do corpo não é o de armazenar as
lembranças, mas simplesmente escolher, para trazê-las à consciência, porque nossa
experiênciapassada,segundooautor,
(...)éumaexperiênciaindividualenãomaiscomum,porquetemossempremuitaslembranças
diferentescapazesdeseajustaremigualmenteaumamesmasituaçãoatual,etambémporquea
naturezanãopodeteraqui,comonocasodapercepção,umaregrainflexívelparadelimitar
nossas representações. Uma certa margem é portanto necessariamente deixada desta vez à
fantasia;(...)daíosjogosdafantasiaeotrabalhodaimaginação–liberdadesqueoespírito
tomacomanatureza.(BERGSON,1999,p.210)
Essa brecha deixada para as intervenções da fantasia coaduna com a perspectiva
apontada no estudo dos romances hatounianos segundo a qual a imaginação procura
preencher aquilo que a memória não foi capaz de trazer para a consciência por meio da
lembrança; ou ainda, aquilo que pelo processo de seleção executado, foi substituído pelo
trabalhocriativodaimaginação.ValeaquicitaroquedizopróprioMiltonHatoumsobrea
hesitaçãopresentenoplanodamemóriaemconstantejogocomaimaginação:
(...)háincongruênciaedúvidaemtudo,poisamemórianãorecuperaopassadocomexatidão:
lembraedeslembra,dizedesdiz,afirmaparanegarou contrariar.Amemóriaéolugarda
hesitação,omóveldaimaginação.Omovimentoésinuoso,construídoporfragmentos:uma
técnicademontagemeorganização(...).Movimentodeumaorigemágrafa–adaignorância
selvagem–àleituraeàescrita,quesetornamapuradascomotempoeseconstroemcomo
visãocríticadesimesmoedosoutros.(HATOUM,2006,p.26,27)
29
Otrabalhodamemóriatrazmuitomaisincertezasqueconvicções,umavezque,sendo
ummovimentofragmentado demontagem,incorre sempreorisco dasincertezasplantadas
pelaimaginação.
1.2Éimportanteesquecer
Sendo aimaginação uma maneirade preencher aslacunas da memória,há também
outro fator interveniente no que diz respeito àquilo que vem à tona nesse trabalho da
rememoração.Tãoimportantequantoalembrança,oesquecimentoproporcionaumequilíbrio
entreasforçasdetrabalhodamemória,quesesustentapelaexistênciadessespólostensose
complementares.DeacordocomIvánIzquierdo,estudiosodamemória,
Oesquecimentoé“aoutracara”damemória(...),oaspectomaissalientedamemória:émuito
mais o que esquecemos que o que recordamos (...). Não há dúvida que algum grau de
esquecimentoénecessárioparapoderterumavidaútil.Éprecisoesquecerparapoderpensar;
para poder fazer generalizações, sem as quais é impossível desenvolver qualquer atividade
cognitiva.(IZQUIERDO,1989,p.103)
O esquecimento ganha importância, deste modo, ao lado da lembrança. Há uma
função atribuída ao esquecer como ponto de equilíbrio das atividades mnemônicas.
Recorrendo ao estudo de Harald Weinrich, constata-se que a idéia da luta travada entre o
esquecer e o não-esquecer já era cultivada entre os gregos da Antigüidade, por meio da
simbologia de duas divindades femininas, uma que representa a memória e a outra, que
conduzaoesquecimento.
NosgregosLeteséumadivindadefemininaqueformaumparcontrastantecomMnemosyne,
deusadamemóriaemãedasmusas.Segundoagenealogiaeteogonia,Letevemdalinhagem
daNoite(emgregoNyx,Noxemlatim),masnãopossodeixardemencionaronomedesua
mãe.ÉaDiscórdia(emgrego,Eris,emlatim,Discordia)–opontoescuronesseparentesco.
(WEINRICH,2001,p.24)
Deacordocomoautor,napassagemacima,háumadiscórdianaraizdoesquecimento
queestáligadointimamenteàescuridãodanoite.Oesquecimentoentrasempreemdesacordo
30
comalembrança,poisprocuraimporseuespectrosombrioàlucidezdascoisaslembradas.A
noçãodeescuridãoligadaàpalavraesquecimentoéassimobservada:
(...) talvez o esquecimento também seja apenas, dito de forma mais trivial, um buraco na
memória,dentrodoqualalgocai,oudoqualalgocai.Alémdisso,termosadequadoscomo
emportuguês,cairnoesquecimento;oinglêstofallintooblivion,francêstomberdansl’oubli,
estão difundidos em muitos idiomas. O esquecimento que está escondido ou abrigado na
profundeza,é,pois,escurosegundosuanatureza.(WEINRICH,2001,p.21,22–grifosdo
autor)
Duasfigurasdaliteraturaclássicapodemserevocadascomosímbolosdalutacontrao
esquecimento:UlissesePenélope.EnquantoUlissesenfrentabravamenteosmaioresperigos
naviagemdevoltaacasaemÍtaca,suaesposaPenélopeteceduranteodiaamantaquea
liberta dos pretendentes, adiando a cada noite, ao desmanchar o tecido, a finalização do
trabalhoqueacomprometeriacomoutrohomemquetomariaolugardoreiausente.Enquanto
tece a peça no tear, entretece, em seu íntimo, a memória de seu amado, vencendo o
esquecimento.
Duranteo retornoparacasa,Ulissesélançadodeperigoemperigodiantedomaior
inimigo:oesquecimento.Pordiversasvezesédesafiadoaesquecersuailhanataleoamorde
Penélope,enredadopelasartimanhasdoslotófagosedassedutorasarmadilhasdeCirceede
Calipso.
Oesquecimentodesempenhaumpapelimportanteparaoequilíbriodamemória.Se
não nos esquecêssemos de boa parte das informações arquivadas em nossa consciência,
certamentenãosobreviveríamosaopesodetantasverdades.Somentenaimaginaçãolaboriosa
deJorgeLuisBorgesumcerto“memorioso”lidacomainexistênciadoesquecimento,mas
acabapornãosobreviverexatamenteporexcessodememória:Funes,personagemquepossui
amemóriamaisprodigiosa,nãoseesquecedenada.Nodiálogocomonarrador,IrineuFunes
declara:“Maisrecordaçõestenhoeusozinhoqueasquetiveramtodososhomensdesdequeo
mundoémundo.(...)Meussonhossãocomoavigíliadevocês.(...)Minhamemória,senhor,
é como despejadouro de lixos.” (BORGES, 1998, p. 543). O narrador do conto diz que o
31
“memorioso”viviamergulhadonomundodesuaconsciênciapovoadadepormenores,pois
todasascoisasestãoemconstantedegradaçãoemfunçãodotempo;porisso,cadainstanteé
uminstantenovo,umanovamemória:
(...)aborrecia-oqueocãodastrêsecatorze(vistodeperfil)tivesseomesmonomequeocão
das três e quatro (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos,
surpreendiam-notodasasvezes.(...)Funesdiscerniacontinuamenteostranqüilosavançosda
corrupção,dascáries,dafadiga.Notavaosprogressosdamorte,daumidade.Eraosolitárioe
lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente exato.
(BORGES,1998,p.545)
AclaracertezaquenorteiaasimpressõesdeFunesestáenvoltaemumaverdade:nada
escapaàaçãodotempo,porisso,paraeletudoémemória,recordação;nãohálacunasque
possamsignificaresquecimentoparaele.Averdadeaquiassumeumpapelinteressantequeé
trazidoàluznasreflexõesdeWeinrich:
Merece um exame especial nesse contexto a língua grega (antiga). Nela recebemos para a
históriadoconceitodoesquecimentoumainteressanterevelaçãosobreumapalavraqueno
começo parece estranha aqui. Refiro-me à palavra aletheia, “verdade”, que naturalmente
assume uma posição central no pensar dos filósofos gregos. O primeiro elemento dessa
palavra,oa-,ésemdúvidaumprefixodenegação(alphaprivativum).Oelementoseguinte,-
leth-, negado pelo a-, designa algo encoberto, oculto, “latente” (essa palavra latina é
aparentada com ela), de modo que a verdade do significado da palavra aparece – com
Heidegger – como o não-encoberto, não-oculto, não “latente”. Mas como esse elemento
significativo -leth- negado pelo a- aparece também no nome Lethe dado ao mítico rio do
esquecimento,podemosconcebertambém,daformaçãodapalavraaletheia,averdadecomo
“inesquecido”, “inesquecível”. Com efeito, por muitos séculos o pensamento filosófico da
Europa, seguindo os gregos, procurou a verdade do lado do não-esquecer, portanto da
memória e da lembrança, e só nos tempos modernos tentou mais ou menos timidamente
atribuirtambémaoesquecimentoumacertaverdade.(WEINRICH,2001,p.20,21–grifosdo
autor)
Dessaforma,oqueseencontraguardadonaescuridãodamemóriaseriamasverdades
maisprofundamentevinculadasaoindivíduoquetraçamsuahistóriaesuanoçãode“ser”.É
dessaverdadecomo“inesquecido”quesealimentao“memorioso”deBorges.
Na busca do autoconhecimento empreendido pelos narradores hatounianos é
imprescindível fazer vir à tona as lembranças das escuras águas do esquecimento. No
contextodosromancesemestudo,oesquecimento,comaquelevalorde“verdade”indicado
porWeinrich,coloca-seaoladodamemóriacomoformaderesistência,paraqueoindivíduo
possa,simbolicamente,re-encenarseu passadoa partir dostraçosidentitários gravadosnas
32
camadasmais recônditas damemória.Retomando aspalavrasdeHatoum,“(...)amemória
nãorecuperaopassadocomexatidão:lembraedeslembra,dizedesdiz,afirmaparanegarou
contrariar.Amemóriaéolugardahesitação,omóveldaimaginação.”(HATOUM,2006,p.
26–grifomeu).Háumaconvivência,aindaquediscordante,eumadependênciarecíproca
entreamemóriaeoesquecimento,comoobservaSeligmann-Silva:
Amemória–assimcomoalinguagem,comseusatosfalhos,torneiosdeestilo,silêncios,etc,–
não existe sem a sua resistência. (...) A memória só existe ao lado do esquecimento: um
complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve. Esses
conceitosnãosãosimplesmenteantípodas,existeumamodalidadedoesquecimento(...)tão
necessáriaquantoamemóriaequeépartedesta.(SELIGMANN-SILVA,2003,p.52,53)
Essaidéiaaparece,decertaforma,eguardadasasdevidasproporçõesmetodológicas,
noraciocíniodeBergsonqueenfatizaapresençadalembrançadopassadocomoumaforma
dememóriaobscurecida,oesquecimento.Issoénotadopelaexplanaçãometiculosasobrea
consciênciapresente,queseriaumresumodaexperiênciavividanopassado.Assimelediz:
Mas comoopassado,queporhipótese,cessoudeser,poderiapor simesmo conservar-se?
Nãoexisteaíumacontradiçãoverdadeira?(...)aquestãoéprecisamentesaberseopassado
deixoudeexistir,ouseelesimplesmentedeixoudeserútil(...).Aconsciênciailumina(...)
aqueles dos nossos estados mais recuados no passado que se organizariam utilmente com
nossoestadopresente,istoé,comnossopassadoimediato;orestopermaneceobscuro.Énessa
parteiluminadadenossahistóriaqueestamoscolocados,emvirtudedaleifundamental da
vida,queéumaleideação:daíadificuldadequeexperimentamosemconceberlembranças
queseconservariamnasombra.(BERGSON,1999,p.175-176–grifomeu)
Bergsonprefere, então,aexpressão“lembranças queseconservariamna sombra”a
utilizarotermoesquecimento;emsuaperspectivaoesquecido,ouopassado,nãodeixade
existir, mas é recuperado pelo indivíduo quando lhe for útil para o “estado presente”. De
qualquerforma,parao pensador francês, nosso caráterseria o resultadode umacadeia de
experiênciasdopassadoquepermanecemguardadasemnossoíntimo.Assim,
Se examinarmos de perto, veremos que nossas lembranças formam uma cadeia do mesmo
tipo,equenossocaráter,semprepresenteemtodasasnossasdecisões,éexatamenteasíntese
atualdetodososnossosestadospassados.Sobessaformacondensada,nossavidapsicológica
anteriorexisteinclusivemais,paranós,doqueomundoexterno,doqualnuncapercebemos
mais do que uma parcela muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a totalidade de
nossaexperiênciavivida.Éverdadequeapossuímosapenascomoumresumo,equenossas
antigaspercepções,consideradascomoindividualidadesdistintas,nosdãoaimpressão,oude
teremdesaparecidototalmente,oudesóreapareceremaosabordeseucapricho.(BERGSON,
1999,p.170-171–grifodoautor)
33
É certo que o passado não pode ser recuperado em sua integridade. Há, além da
compressãodotemponoprocessoderememoração,umainterferêncianotóriadomomento
emquesevive,comtodasasforçasinterpretativaseafetivas.Opassado,aoserconvocado
pelo presente, é nada mais que uma reinscrição fragmentada, uma tradução. Isso é o que
postulaWalterBenjamin,paraquematraduçãoestásempreatravessadapelaimaginação.Ao
refletirsobreopensamentobenjaminiano,Seligmann-Silvaasseveraque
(...) é evidente que não existe a possibilidade de uma tradução total do passado (...). Já
Benjaminrefletiutantosobreanossamodernaincapacidadedenarrarestóriasemummundo
urbano onde o perigo espreita a cada segundo como também descreveu, e de certo modo
incorporou no seu procedimento historiográfico o princípio proustiano da mémoire
involontaire,quesedeixaguiarnãopelacontinuidadedotempoabstratovazio,massimpelas
associaçõesdominadaspeloacaso.(SELIGMANN-SILVA,2003,64-70–grifosdoautor)
Ecomotradução,otrabalhodamemória,somadoaodaimaginação,encenaumtexto
nãomaiscomo“original”,pois“todaescrituradopassado(...)éuma(re)inscriçãopenosae
nuncatotal.”(SELIGMANN-SILVA,2003,p,76).
Diantedasincertezascomasquaislidaoindivíduoaotentarconhecersuaorigem–já
pensandonosenigmassobreapaternidadedosnarradoreshatounianos–delineia-seoembate
quesetravacomaconcepçãohistóricaecomasexperiênciasindividuaisdessesujeito.Sabe-
se que é da história e da memória, individual e coletiva, que depende a identidade. Deste
modo,comore-inscreverumpassadoarraigadonaslembrançasindividuaissempovoá-lasde
outrasexperiênciasexternas,docontextoemqueseviveeseviveu,comosefossemneutrasa
históriaeamemóriaenvolvidasnessaoperaçãodasreminiscências?
Essaexperiênciadebuscadesimesmoéestruturadanotextocomoumaarquitetura
engendradasobreaspassagensdevidadosfamiliares,supostosconhecedoresdaverdadetão
insistentementebuscada.Osnarradoresemquestãovivemumaexperiênciadeexíliomuito
particular, a do desenraizado no sentido mais subjetivo. A busca dessa raiz leva
inevitavelmente ao conhecimento do outro, de sua história com suas memórias. Sabe-se,
porém,quenãoépossívelexercercontrolesobreasforçasdalembrançaedoesquecimento,
34
tendoemvistaqueotraçadodaidentidadepassanecessariamentepelamemória,nuncatida
emsuatotalidade,semprefragmentária.
Se,diantedofatodamortedefamiliaresquedetémgrandepartedossegredosligados
àsorigensdessesnarradores,oesquecimentoimpõe-secomoformaderesistênciaàsverdades
buscadas,restaaessesnarradoresmantervivaaexpressãodessabuscaregistrandoosrelatos
daquelesquetestemunharammaisdepertoseupassado;dessestestemunhosafloratambémo
significadodaperdaedaausênciaenvolvidasnamorte.Assim,háumaforçamotivadorade
relatosdiantedofatodamorteque,simbolicamente,alia-seaoesquecimento.
1.3Diantedamorte,inquietaçõesidentitárias:lutoemelancolia
Considero como ponto de reflexão importante esse movimento dos narradores
hatounianosemdireçãoaumajornadaangustiadaembuscadoautoconhecimento.Umdos
pontoscruciaisparaessamobilizaçãodosnarradoresdeRelatodeumcertoOrienteedeDois
irmãoséamortedosentesmaispróximos,poisédiantedelaqueestessujeitosmostram-se
fragilizados pela impossibilidade de recuperação dos mistérios guardados na memória do
outro,quesimbolizaumrelicáriodopassado.Impossibilidadequeacenaparaoesquecimento
daspassagensdainfânciadessesnarradores,primordiaisparaacompreensãodopresenteem
relação às suas origens, não fosse o insistente trabalho da memória em luta contra o
esquecimento.
Paraestaanálise,partideumpontonodalemambasasnarrativasqueéaincursãodos
narradorespelosmeandrosdamemóriaemembateconstantecomexperiênciasfrenteàmorte,
como elemento motivador do trabalho de rememoração e de busca identitária, movida
segundocondiçõesepropósitosnascidosnasubjetividadedecadaumdosnarradores.
35
OsnarradoresdeHatoumnosdoisromancesqueanalisoprocuram,emumretornono
tempoenoespaço,nãooatoderevigorarumainfância,jáperdidanasmalhasdotempo,mas
abuscadeexplicaçõesainquietaçõesdiantedasruínasdopresente.Umpontodepartida,para
ambososnarradores,éoimpactocausadopelamorte.
Refletindosobrearelaçãoestabelecidaentreoindivíduoeotempodesuaexistência,
esbarro em uma questão de tradição milenar que é a relação do indivíduo com a morte.
Condição a que estamos entregues,a morte não só distancia pessoas do caloroso convívio
costumeiro,masimpõeumafraturairrecuperável.Amorteétratadadediversasmaneirasnas
inúmeras culturas ao longo da história da humanidade e seu alcance simbólico ganha
proporçõesdiversas,noOrienteenoOcidente,poistrazumacargamítica,místicaetambém
ritualística,consoanteovínculoafetivoereligiosodevotadoaela.
Considero, porém, importante enfocar essa questão sob duas perspectivas que, na
verdade, se entrelaçam: a perda e a ausência. Tomo como apoio teórico o ensaio Luto e
melancolia”, em que Freud (1996) discorre sobre a sutil distinção entre esses termos e de
comoseprocessa,em algunscasos, aelaboração da perdaemdecorrênciadamorte oudo
distanciamento de um alvo de pulsão afetiva. Mais adiante analiso passagens dos dois
romancesdeHatoum,tendoessasconsideraçõesfreudianasemmeuhorizonte.
Soboutraperspectiva,tambémoenfrentamentodosujeitoemfacedaausênciaque
decorredasprofundasfraturasvivenciadascomasperdas.Aausênciatomafeiçõesderuínas,
pois diante de traços daquilo que se quer presença sobrepõe-se o seu oposto, lançando o
sujeito ao embateentre o trabalho de lembrar e o de esquecer. Como exemplo desse fato,
veremos adiante as experiências de Zana e de Hakim ao enfrentarem a ausência de entes
muitopróximos.
Sobesseenfoque,emambasasnarrativas,osnarradoresprocuramdarvisibilidadea
essainquietantebuscaidentitária,quepassapeloprojetoestético,resultandojustamentenos
36
romances.Aexperiênciadeangústiadaperdaedodistanciamentoresidenasnarrativasna
medidaemque,paraconheceraprópriaorigem,osnarradoresescavamaquiloquerestasob
asruínasdiantedamortedeentesqueridos.
Aomencionarolutoeamelancolia,pensonasnarrativasemestudoqueexpõemas
experiências do sujeito para com a morte como motivadoras de relatos. Neste sentido, a
memóriaérequisitadacomotentativaderecuperaçãodealgovividooucitadoporalguéme,
ao esbarrar com o esquecimento, como algo temido e diretamente ligado à passagem do
tempo.Ummeiodedarformaaumconteúdotãocomplexoéalinguagem,comobuscade
conciliaçãoentregestosepalavras,entreasimagensdalembrançaeosespaçosdopresente
paradoxalmentepovoadospelaausência.
Aquestãodamorteinteressa aqui, noque concerneàconstruçãodos relatos,como
elementogeradordelembranças,comopropósitodetrazeràmemóriaoqueoesquecimento
pareceestarprestesatragar.Diantedofatodamorte,háumaforçaqueimpeleoindivíduoa
umadireçãoparadoxal,poisacargadeesquecimentoporelatrazidaprocuraserrevertidaem
recordaçãoperene,comonosmemoriaisaosmortosqueseerguemcomotraçodeumavida
queexistiunopassado.IssoéobservadoporWeinrichdaseguinteforma:
Amorteéomaispoderosoagentedeesquecimento.Masnãoéonipotente.Poisoshomens
desdesempreergueramtrincheirasderecordaçãocontraoesquecimentonamorte,demodo
querastrosquefazemconcluiraexistênciadeumamemóriadosmortossãoconsideradospor
arqueólogos e estudiosos da história os mais seguros sinais de que existiu uma civilização
humana.(...)Masosmonumentosfúnebresfitamosvivosexortando-osanãoesqueceremos
seus mortos, e mesmo assim às vezes a esquecê-los um pouco, porque “a vida continua”.
(WEINRICH,2001,p.49)
Deparando-secomasperdasprofundamentemarcantescomoamortedeavósadotivos
oudae,ouaseparaçãodeumfilhoextraviado,osnarradoresdosromancesepersonagens
maisintimamenteligadosaeleslutamcontraoesquecimentoconstruindoanarrativadesuas
vidas que seliga à lembrança, mantendo a “verdade como ‘inesquecido’, ‘inesquecível’ ”,
comoasseveraWeinrich(2001,p.21).Nestesentido,éinteressantenotarqueacapacidadede
esquecerosseusmortos,paraosnarradores,significaparaelesumaespéciedesalvação.Ou
37
seja,Nael ea narradorainominada erigempara seusentes ummemorial naforma deuma
escrita-memória,sendocapazesdecontinuaravidaapesardasperdassofridas.Assim,esses
narradores são os que de fato conseguem fazer o luto de seus mortos, ao contrário dos
personagens que são para eles portadores da memória do passado, que não conseguem
elaborartal luto, prendendo-seàs lembranças e sucumbindo namelancoliadessas perdas e
ausências.
Paradoxalmente, a verdade (alethea)sobre asorigens dos narradores reside naquilo
quepermanecenoesquecimento,naságuasdoLete,evocandoaimagemdoriomítico.Issose
confirma nos romances, pois para ambos os narradores a revelação de sua paternidade,
imprescindível a eles para completar sua busca identitária, fica em aberto, deixando-os à
deriva.
Ambososnarradoresdeparam-secomperdasàsquaisreagemdeformasemelhante:
registramorelatodesuasmemórias.Anarradorainominada,aosaberdamortedeEmilieno
diadesuachegadaaManaus,vê-sediantedaausênciadaquelaquedetinha,emprimeiramão,
ossegredosligadosàsuaorigem.Paraquesuahistóriadevidanãocaíssenoesquecimento,
recorreaosrelatosdepessoasligadasaelaparamantê-laviva,pelofiodamemória.ORelato
é, aofinal, uma espécie de diário, anotícia damorte da avó adotivaendereçada ao irmão
distante:
Paraterevelar(numacartaqueseriaacompilaçãoabreviadadeumavida)queEmiliesefoi
para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as
cantigas,osconvívios,afaladosoutros,anossagargalhadaaoescutaroidiomahíbridoque
Emilieinventavatodososdias.(Relato,p.166)
AmortedamatriarcageraanarrativadeHakim,filhodeEmilie,herdeirodahistória
familiarporter sidoo únicona casa a aprenderalíngua árabe,preservandoamemória da
famíliadeimigrantes.Ahistóriadanarradorainominadaedoirmão,destinatáriodorelato,
depende em grande parte dessa narrativa que se estrutura a partir de uma perda afetiva
profunda e irreparável e é movida pelo exasperado desejo de manutenção das lembranças.
38
Depoisderecobraraserenidade,Hakimsepropõeanarrarpassagensdavidadamãe“coma
cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da
memória.” (Relato, p. 32). O ritual fúnebre de Emilie, descrito no final do romance,
contracenacomaimagemdeoutrospersonagensvestidosdeluto,remetendoaoutrastantas
perdassignificativasparaanarradora:
(...)comoseamortedeumamigodespertasseumasucessãointermináveldelembrançasdos
quejáconviveramconosco.Talvezporisso,opesardolorosoquenosenvolve,nãosabemos
discernir se é fruto da perda de alguém ocorrida ontem ou há muito tempo, de modo que
outros corpos sem vida reaparecem com intensidade na nossa memória, ampliando o seu
horizontemelancólico.(Relato,p.157)
ParaHindiéConceição,amigaíntimadafamíliaimigrante,amortedeEmiliemotivao
relatodeoutrasfacetasdosmistériosqueenvolvemamatriarca,comoosobjetosguardados
em um cofre que poderia revelar pistas sobre o passado da única filha de Emilie, Samara
Délia,mãedacriançasurda-mudaSorayaÂngelamortaemumacidenteduranteainfânciada
narradora.Comosevê,háumfioligadoàmortequeperpassaashistóriasdospersonagens
ligados à narradora e que encobre as supostas verdades sobre sua gênese. Sob o olhar de
Hindié,acasavaziadaamigaabrigaamudezdasolidãoqueevocaaausênciaeaperda:
No fim da manhã do domingo, nada mais acontece, o rosto de Hindié continua mudo, a
desordemdocorpoedafalaparecepróximadofim,talvezelaaindaevoqueestaperda,na
solidãodavelhicevive-sedeausências,hátantasverdadesparaseremesquecidaseumafonte
de fábulas que podem tornar-se verdades. Às vezes imagino Hindié sozinha, vagando na
fronteiradiminuta,quaseapagada,queseparaamortedanoite,eamemóriadamorte.(Relato,
p.155,156)
OnarradordeDoisirmãosviveodramadasperdasquesãoconhecidasaolongodo
enredo.Acena-prefáciodoromance,queantecedeaoprimeirocapítulo,trazamortecomo
forçapropulsoradorelato.Considerointeressantepartirdessacenaparaexplorarasseguintes
consideraçõesdeFreudsobreolutoeamelancolia:
Oluto,demodogeral,éareaçãoàperdadeumentequerido,àperdadealgumaabstraçãoque
ocupouolugardeumentequerido,comoopaís,aliberdadeouoidealdealguém,eassimpor
diante.Emalgumaspessoas,asmesmasinfluênciasproduzemmelancoliaemvezdeluto.(...)
a melancolia também pode constituir reação à perdade umobjeto amado. Onde as causas
excitantessemostramdiferentes,pode-sereconhecerqueexisteumaperdadenaturezamais
ideal.Oobjetotalvezotenhamorrido,mastenhasidoperdidoenquantoobjetodeamor.
(FREUD,1996,p.249,251)
39
Para esta análise, aponto os três elementos que representam as perdas sofridas por
Zanaque a conduzemàs reaçõesrelatadaspelo narrador,que tentadarexpressãoàdor da
matriarca vendo-se diante de um panorama completamente estilhaçado. Panorama que,
também para ele, apresenta-se como ruínas. Esses elementos são, respectivamente, e de
acordocomo queapontaFreud:o esposocomoobjeto deamor;opai,mais ligadoauma
abstração voltada à raiz natal; e o filho preferido: um objeto de amor perdido, pelo qual
desenvolveumprocessomelancólico.
Ao tentaroperar otrabalho do luto pela perda de Halim, Zana temna memória os
momentosdeprazer,buscadosnatentativaderevitalizaroslaçosdepulsão,nocaso,odesejo
amorosoquealigavaaomarido.Odesligamentodesseobjetodedesejonãosefazdemaneira
imediata,levando-aamomentosdealucinações,comoformadeapegoaumarealidadeque
nãomaisexiste,masqueperduraconstruídanaalmadeZana.Aesserespeitoopsicanalista
asseveraque
(...)oobjetoamadonãoexistemais,passandoaexigirquetodaalibidosejaretiradadesuas
ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível – é fato
notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal (...). Esta
oposiçãopodesertãointensa,quedálugaraumdesviodarealidadeeaumapegoaoobjeto
porintermédiodeumapsicosealucinatóriacarregadadedesejo.(FREUD,1996,p.250)
NoconjuntodasimagensrememoradasporZana,osofácinzentodasalaremeteaos
longosmomentosdeprazerquevivenciaracomoesposo.Esteobjetodamobíliasugere,nesta
cenainicial,sinteticamente,outrosespaçosdeprazerparaocasalcomoarede,agramado
quintalsobafrondosaseringueira,oquartinhodedepósitodalojadeHalim.Aindanacena-
prefácio,onarradordá expressãoà angústiadamatriarca, revelandoque
“Elaimaginava o
sofácinzentonasalaondeHalimlargavaonarguiléparaabraçá-la(...)”(Doisirmãos,p.12).
Essaangústiasópoderátomarproporçõescompreensíveisparaoleitoraposteriori,
pois os impulsos apaixonados do casal são dados a conhecer pelo narrador em outros
momentosda narrativa,principalmenteem conversascom Halim,dequem vaifisgando as
40
lembranças que guarda de Zana. Vejamos algumas passagens em que esses espaços são
explorados:aseringueira,árvorenativadaflorestaamazônica;oquintal;otapeteparaorações
deHalimeoscantosdacasasãocomotestemunhasdoslancesamorososdocasal.
[Halim](...)reconquistouZana,masdeuadeusaotempoemquesearrepiavamdeprazerem
qualquer canto da casa ou do quintal. (...) a cabeça se voltou para o quintal, o olhar na
seringueira, a árvore velha, meio morta. E só silêncio. (...) Era um preâmbulo, e Zana se
excitavacomaquelavozgrave,cheiademelodia,quedeviatocaraalmadelaantesdaloucura
doscorpos.(Doisirmãos,p.69,90–grifosmeus)
Em outrosmomentos, arede, peçamuito presente nas casasamazonenses, demarca
umespaçoíntimodeHalimeZana:
Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor com a maior
naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de
suor,molhadopelalembrançadasnoites,tardesemanhãsemqueosdoisseenrolavamna
rede,oleitopreferidodoamor,aliondeospoderesdeZanasedesmanchavamemmelopéiade
gozo e riso. (...) “Um filho é um desmancha-prazer”, dizia ele, sério. “Três, querido. Três
filhos,nemmaisnemmenos”,elainsistiamanhosa,armandoaredenoquarto,espalhandoas
almofadas no chão, como ele gostava. “Vão mudar a nossa vida, vão desmanchar a nossa
rede...”,lamentavaHalim.(Doisirmãos,p.54,66)
O tapete, lugar de oração na cultura muçulmana, cede lugar para as investidas
apaixonadas dos donos da casa, como lembra o narrador:
“Ela falava aos pedaços, e ela
mesmafazia as perguntas:‘No tapete?Se namoramosnotapete ondeelerezava?Ora,mil
vezes...Tunãoespiavasagente,rapaz?’.”(Doisirmãos,p.251).Assimtambémeracomo
quartinho de depósito da loja que guarda um espaço de prazer longe da casa e das
interferênciasindesejadas:
NasrarasvisitasdeZanaàloja,elemandavaemboraosfregueseseosjogadores,trancavaas
portas e subia com ela para o pequeno depósito, onde uma janelinha dá para o rio Negro.
Passavam horas ali, longe dos três filhos e da órfã que os pajeava, longe das manhas e
intromissões.Osdoisasós,comoelegostava.Umabrisasopravadorio,trazendoopitiúde
peixe,ocheirodefrutasepimenta.Elegostavadessecheiro,quesemisturavacomoutros:o
suordoscorpos,omofodostecidosencalhados,dassandáliasdecouro,dasredesdealgodão,
dos rolos de tabaco de corda. Ao reabrir a loja, comemorava o encontro fazendo uma
liquidaçãodastralhastodasespalhadasnocubículo.Era uma festa, cada vezmaisrara. Os
filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e ele nunca se conformou com isso. No
entanto,eramfilhos(...)”(Doisirmãos,p.70,71)
Como laço profundamente arraigado na relação pulsional entre Zana e o esposo, a
ausênciadosofá,nasalajádesocupada,empurra-aaumaconstataçãofunestaaqueseopõe
41
angustiadamenteemseuíntimo,emumatentativadereverteraausênciafísicaematerialdo
esposo e do sofá, em imagens dinâmicas revigoradas em sonhos, como expresso pelo
narrador:“Duranteodiaeuaouviarepetiraspalavrasdopesadelo, ‘Elesandamporaqui,
meupaieHalimvierammevisitar...elesestãonestacasa’(...)”(Doisirmãos,
p.11)
Osofácinzento éapeça-chavepara trazerdoesquecimentoaspassagens dolorosas
ligadasàmortedeHalim.Curiosamente,éaausênciadovelquecolocaemevidênciaa
ausênciadoesposo.Nofinaldoromance,onarradordetalhaacenadamortedeHalim,que
expirasentadonosofá.ÉdiantedamortequeZanatrazàlembrançaosversosdeamorquea
conquistaram:
(...) Halimestavaali,debraçoscruzados,sentadonosofácinzento.Zanadeuumpassona
direção dele, perguntou-lhe por que dormira no sofá. Depois, menos trêmula, conseguiu
iluminarseucorpoeaindatevecoragemdefazermaisumapergunta:porquetinhachegado
tãotarde?Entãocomsotaqueárabe,ajoelhada,gritouonomedele,jálhetocandoorostocom
asduasmãos.Halimnãorespondeu.Estavaquietocomonunca.Calado,parasempre.(...)As
filhasdeTalibabriramumlençolparacobrirosofácinzentoondeestavaestendidoofinado
Halim.(...)QuandoTalibeasfilhassaíram,Zanatrancouaportadacasa,sedebruçousobre
Halim,chorando,depoistirouolençolquelhecobriaocorpoepôsasmãosdelenorosto,nas
costas,comoseoestivesseabraçando.“Nãopodessairdestacasa...nemdepertodemim”,
murmurou. (...) durante o velório continuou a falar de Halim, lembrando-se dos versos de
amor,doolharextasiado,docorpodeleexalandovinho,daspausassofridaspararecuperaro
timbreadequadodavoz.(...)comoteriasidoavidadelasemaquelaspalavras?Ossons,o
ritmo, as rimas dos gazais. E tudo o que nasce dessa mistura: as imagens, as visões, o
encantamento.Jadeeeternidade,alcovaeamorosa,aromaeesperança.Elaespremiaoslábios,
recitava,curvando-sesobreomaridomorto.(...)DepoisdamortedeHalim,acasacomeçoua
desmoronar.(Doisirmãos,p.213-220)
Outraimagemnosonhodamatriarcaéavisitadopai,quepodeserentendidatambém
comoumapresentificaçãooperadapelaresistênciaaoabandonodoobjetoamado,segundoo
pensamento freudiano sobre oqual me apóio. A casa vazia leva também à constatação da
ausênciadeGalibemarca,namemóriadeZana,umretornoaomomentoemquerecebea
notíciatardiadamortedopai.Quandovoltadalua-de-melcomHalim,Zanasugereaopai
queviajeparaoLíbanoparareverosparenteseaterranatal:
EraoqueGalibqueriaouvir.Epartiu,abordodoHildebrand,umcolossodenavioquetantos
imigrantestrouxeparaaAmazônia.Galib,oviúvo.(...)Zanarecebeuduascartasdopai:que
estavamorandoemBiblos,namesmacasaemqueela,Zana,havianascido.(...)Duascartas,
depoisnada.EmBiblos,dormindonacasapertodomar,elemorreu.Masanotíciatardoua
chegar,e,quandoZanasoube,setrancounoquartodopai,comoseeleaindaestivessepor
42
ali.Depoisbalbuciouparaoesposo:“Agorasouórfãdepaiemãe.Querofilhos,pelomenos
três”. “Chorava que nem uma viúva”, disse-me Halim. Se esfregava nas roupas do pai,
cheiravatudooquetinhapertencidoaoGalib.Elaseagarrouàscoisas,eeutentavadizer
queascoisasnãotêmalmanemcarne.Ascoisassãovazias...maselanãomeouvia.”(Dois
irmãos,p.55,56–grifosmeus)
Zanaagarra-seàscoisascomofugaàverdadeirreversíveldamortedopai,lembrando
aassertivadeFreudemque“estaoposição[aodesligamentodoobjetodedesejo]podesertão
intensa,quedálugaraumdesviodarealidadeeaumapegoaoobjetoporintermédiodeuma
psicose alucinatória carregada de desejo.” (FREUD, 1996, p. 250). Do mesmo modo, ao
caminhar pela casa vazia, figura das ruínas em que se transformou a vida da família, a
matriarcatem,pormeiodosonho,umareaçãodeapegoàimagemdopai,nomesmoquarto
emquechorouasuamorte.
Oespaçodaintimidadereflete,destemodo,umaambivalênciamarcanteparaosujeito
quetemdelidarcomaslembrançasdasperdasduplamenteimpostas:nopresente,aperdada
propriedade,osobradodafamília,oquelevaàre-apresentação,pormeiodasreminiscências,
dasperdaspelolutoocorridasnopassado.
OoutroelementosobreoqualZanalamentaprofundamentenosúltimosmomentosda
vidaéaperdadofilhoOmar,opreferidoentreosgêmeos.Nanarrativa,elefoioquemais
atençõesecuidadosrecebeudamãe,porternascidomaisfrágil:
YaqubeOmarnasceramdoisanosdepoisdachegadadeDomingasàcasa.Halimseassustou
aoverosdoisdedosdaparteiraanunciandogêmeos.Nasceramemcasa,eOmarunspoucos
minutosdepois.OCaçula.Oqueadoeceumuitonosprimeirosmesesdevida.Etambémum
poucomaisescuroecabeludoqueooutro.Cresceucercadoporumzeloexcessivo,ummimo
doentiodamãe,quevianacompleiçãofrágilamorteiminente.(Doisirmãos,p.66,67)
Esseapegoexcessivo pelofilhotransformou-sena rivalidadequeconcentraocerne
dos embates assistidos ao longo do romance, aquele duelo a que o pai se referia, dizendo
“melhorchamarderivalidade,algumacoisaquenãodeucertoentreosgêmeoseentrenóse
eles.”(Doisirmãos,
p.62).
Halimadvertiaaesposasobreoexcessodemimoscomofilhoque,recém-nascido,
porpouconãomorreradepneumonia,masamãenãodesgrudavadocaçuladedicandoaele
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maisqueamordemãe,umadevoção:“‘Meumico-preto,meupeludinho’,ZanadiziaaOmar,
paradesesperodeHalim.Opeludinhocresceu,eaosdozeanosjátinhaaforçaeacoragem
deum homem.”(Doisirmãos,p.71). NafaladeZana,na cenainicial,em queanseiapela
reconciliaçãoentre osfilhos, podemos ver aausênciacomo marca da melancolia: “‘Meus
filhosjáfizeramaspazes?’.Repetiuaperguntacomaforçaquelherestava,comacoragem
quemãeaflitaencontranahoradamorte.”(Doisirmãos,p.12).
Segundoopensamentofreudianojámencionado,oqueocorrecomoreaçãoàausência
dofilhocomoelementoperdidoparaZana,diantedaredevermelhadoalpendre,ondevárias
vezesoreceberaparaoscuidadosdemãe,éumprocessomelancólicoqueaarrasta,pormeio
daslembranças,aumdesligamentoproteladoatéosseusúltimosmomentosdevida:“(...)ali
noalpendrelembravaaredevermelhadoCaçula,ocheirodele,ocorpoqueelamesmadespia
naredeondeeleterminavasuasnoitadas.‘Seiqueumdiaelevaivoltar’(...).”(Doisirmãos,
p.12).
Aelaboraçãodaperdadoobjetoprocessa-sesegundodiferentescausasmotivadoras,
emqueosujeitopoderáterconsciênciadaquilo que perdeu,sem,no entanto,teramesma
certezasobreoqueperdeudesseobjetoamado.Acausadamelancolianemsempreseprende
àmortedealguém,masaumaperdadeoutranatureza,maisideal.Vejamosissonaspalavras
doprópriopsicanalista:
(...)amelancoliatambémpodeconstituirreaçãoàperdadeumobjetoamado.Ondeascausas
excitantessemostramdiferentes,pode-sereconhecerqueexisteumaperdadenaturezamais
ideal.Oobjetotalveznãotenharealmentemorrido,mastenhasidoperdidoenquantoobjetode
amor (...) não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo de todo razoável
suporquetambémopacientenãopodeconscientementereceberoqueperdeu.Isso,realmente,
talvezocorradessaforma,mesmoqueopacienteestejacônsciodaperdaquedeuorigemàsua
melancolia,masapenasnosentidodequesabequemeleperdeu,masnãooqueperdeudesse
alguém.(FREUD,1996,p.251–grifosdoautor)
44
Assim,afraturainteriordeZanaprocessa-seemumadimensãotãoprofunda,aoser
apartada de seus amados – o pai, o esposo e o filho predileto –, desenvolvendo para os
primeirosotrabalhodolutoeparacomofilhoamelancolia
2
.
SeparaZanaamortedoesposofazviràtonaosprimeirosmomentosdaconquista
amorosa,poroutrolado,amortedeHalimconstróiparaOmaraimagemdalembrançadesua
humilhação,quandoopaiocorrigecombofetadascerteirasedepoisoacorrentaaummóvel
dasala,emumadascenasmaisfortesdoromance:
Gandaiavacomonunca,ecertanoiteentrouemcasacomumacaloura,umamoçadocortiço
daruadosfundos,irmãdoCalisto.Fizeramumafestinhaadois:dançaramemredordoaltar,
fumaramnarguiléebeberamàvontade.Demanhãzinha, do alto da escada,Halimsentiuo
cheirodepupunhacozidaejaca;viugarrafasdearakeroupasespalhadasnoassoalho,caroços
ecascasdefrutassobreaBíbliaabertanotapeteemfrenteaoaltar,eviuofilhoeamoçanus,
dormindo no sofá cinzento. O pai desceu lentamente, a moça despertou, assustada,
envergonhada,eHalim,nomeiodaescada,esperouqueelasevestisseefosseembora.Depois
seaproximoudofilho,quefingiadormir,ergueu-opelocabelo,arrastou-oatéabordadamesa
eentãoeuvioOmar,jáhomemfeito,levarumabofetada,umasó,amãozorradopaigirando
ecaindopesadacomoumremonorostodofilho.TodosospedidosqueHalimlhefizeraem
vão,todasaspalavrasrudesestavamconcentradasnaqueletabefe.Foiumestalodemartelada
em pau oco. Que mão! Que pontaria! O valentão, o notívago, o conquistador de putas
estateladosobreotapete.OCaçulaoselevantou.Opaioacorrentounamaçanetadocofre
deaço,sentou-seunsminutosnosofácinzento,tomoufôlegoesaiudecasa.Sumiupordois
dias. Zana não pôde interferir, não teve tempo de socorrer o filho. Ela esbravejou, gritou,
sentiu-semalaoverofilhoacorrentado,apoiadoaocofreenferrujado,afaceesbofeteadaem
alto-relevo.Nomeuíntimo,aqueletabefesoavacomopartedeumavingança.(Doisirmãos,p.
91,92)
NomomentoemqueOmarvêocorpoinertedopaisentadonosofádasalareagecom
ummistoderaivaedesespero,irrompendoemimpropériosdirigidosaofalecido:
Nãosuportouveropaimorto emcasa,sentadonosofácinzento,deondecostumavavero
filhoembriagadoougroguedesononaredevermelha.OmesmosofáemqueHalimsesentara
porunsminutos,ofegante,exausto,depoisdeteresbofeteadoeacorrentadoofilho.Eledeve
ter se lembrado disso, o Caçula, na noite em que despertou com o choro convulsivo das
mulheresdacasa.Logoquedesceuaescada,Omarnãoentendeu,nãoqueriaentenderoque
acabaradeacontecer.Viunosofácinzentooúnicohomemqueodesonroucomumbofete.
Começouagritar,criançaincendiadadeódiooudealgumsentimentoparecidocomoódio.
Gritava,foradesi:“Elenãovaiacorrentarofilhodele?Nãovaipassaramãonorostosuado?
Porqueelenãosemexeefalacomigo?Vaificaraí,comesseolhardepeixemorto?”.(...)
Omarnossurpreendeucomseugestoirado,odedoemristeapontadoparaorostodeHalim,
paraosolhosquasefechados,semvida,dopaicabisbaixo.(Doisirmãos,p.217)

2
ArelaçãoafetivadesenvolvidaporZanaparacomOmar terádesdobramentosemoutrosprocessostambém
estudados pela psicanálise freudiana, oque nãoé meu objeto de estudo. Apenas para mencionar,entre esses
processos, oque obviamente é demonstrado envolve o chamado complexo de Édipo, podendo ser visto pela
exasperadaaversãodopaipelaintromissãodofilho“noleitoconjugal”.
45
Estacenamarcaparaonarradoroseudesejodeacertarascontascomosupostopai.
Nael queria que sua paternidade, encoberta pelos familiares, fosse revelada. No entanto, a
idéia de que poderia ser filho do Caçula o irritava profundamente, talvez levado pela
rivalidadejáenraizadaentreHalimeofilho.Onarradormencionaissonaseguintepassagem:
Pressentiquenão veria mais Yaqub. Perguntei à minha mãe o que eles tinhamconversado
quandoeleentrounoquartodela.Oquehaviaentreosdois?Tivecoragemdelheperguntarse
Yaquberaomeupai.EunãosuportavaoCaçula,tudooqueviaesentia,tudooqueHalim
haviamecontadobastavaparamefazerdetestaroOmar.Nãoentendiaporqueminhamãe
nãoodestratavadevez,oupelomenosnãoseafastavadele.Porquetinhaqueaturartanta
humilhação?(...)Domingasdisfarçoucomopôde,quismeconsolarcomaúltimafraseque
pronunciouantesdesairdoquarto.(Doisirmãos,p.202,203)
EssainquietantedúvidasomadaàsatitudesdeOmarlevavaNaelaquerervingar-se
dele,devê-lohumilhadoedeenfrentá-lo.OímpetodeódiodoCaçulainvestindocontrao
corpo de Halim, morto sobre o sofá cinzento da sala, foi a oportunidade para que Nael
golpeasseoorgulhosoOmar:
(...)expulseioCaçuladasalaearrastei-oatéoquintal.Eleseenfureceu,pegouumterçado,
me ameaçou. Gritei mais alto do que ele: que me enfrentasse de uma vez, que me
esquartejasse, o covarde. O terçado tremia-lhe na mão direita, enquanto eu repetia várias
vezes: “Covarde...”. Ele calou, empunhando o facão que usava para brincar de jardineiro.
Tinhacoragemdeolharparamim,eoolhardeleaumentavaaminharaiva.Elerecuou,
ficouacocoradodebaixodavelhaseringueira,orostoespantadovoltadoparaaportadasala,
deondeDomingasnosobservava.Elamechamou,meabraçouepediuqueeuvoltasseparaa
sala.(Doisirmãos,p.218)
Como vimos, o impacto da morte de entes queridos faz vir à tona, das águas do
esquecimento, as passagens da vida desses personagens que estão ligados intimamente ao
narrador.Odiscursonarrativocontaemsuaconstruçãocomoqueseelaboraapartirdessa
experiênciaimpactante.Ofiodamemóriaquesevaidesenrolandotece,aomesmotempo,a
narrativa da origem de Nael, em meio à história da família imigrante onde nascera. A
expressãodessetrabalhodolembrarganhalugarnaescritacomomeiodeintegraramemória
individualeadogrupofamiliar.
46
1.4Doteardamemóriaàescrita
NashistóriasdeHatoum,aescritacoloca-secomomaterializaçãodarememoração,à
maneiradoprocessodetecerdePenélope,motivadapelaausênciadoamadoUlisses.Assim
comoseproduzotecidonotear,otextoengendra-secomofrutodalutadalembrançacontra
oesquecimento.AessepropósitoelucidaWalterBenjaminem“AimagemdeProust”:“Não
seria esse trabalho de rememoração espontânea, em que a recordação é a trama e o
esquecimentoaurdidura(...)?”(BENJAMIN,s.d.,p.37).Aperformancedosujeitorevela-se
nessatensãoentreatramaeaurdidura,orelembrareoesquecer.
AnarradorainominadadeRelatodeumcertoOrienteviveodramadaordenaçãodas
diversasvozesquecompõemagrandemalhadiscursiva,comoquetemdelidarparaobter
umsentidocapazdeaproximá-ladaincógnitaqueamoveabuscarseupassado,perdidona
cidadenatalparaonderetorna.
Quando conseguia organizar os episódios em ordem ou encadear vozes, então surgia uma
lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a
seqüência de idéias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez imperativoque é o de
ordenarorelato,paranãodeixá-losuspenso,àderiva,moduladopeloacaso.(Relato,p.165)
Para o narrador de Dois irmãos, foi preciso reconhecer que as palavras parecem
aguardarachegadadoesquecimentoparasemostraremcúmplicesdotempo.
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a
morteeoesquecimento;permanecemsoterradas,petrificadas,emestadolatente,paradepois,
emlentacombustão,acenderememnósodesejodecontarpassagensqueotempodissipou.E
otempo,quenosfazesquecer,tambémécúmplicedelas.(Doisirmãos,p.244)
Diantedalacunaqueseestabeleceentreopresenteeopassado,oconhecimentodesi
éprimordial,impondoumabuscado“outro”comolugardiscursivopotencialmentedetentor
de vestígios reveladores de possíveis respostas para os questionamentos sobre a própria
identidade.Seainfânciadessesnarradoresguardaosmistériosdetodaumavida,éparalá
que se voltam, como o arqueólogo busca no solo repisado pelo tempo os traços de uma
história extemporânea, mas supostamente real. Sobre esse trabalho “arqueológico” da
47
memória,ligado àinfância, háumaobservaçãode Seligmann-Silvaem tornodopostulado
benjaminiano:
Asruínasdamemória,empartesoterradas,guardamoesquecido,quechocaaquelequese
recorda com o segredo que ele (isto é, o esquecido) encerrava. “Talvez o que (...) faça [o
esquecido]tãocarregadoeprenhe–afirmoueleemseulivroInfânciaemBerlim–nãoseja
outra coisa que o vestígio de bitos perdidos,nos quais não poderíamosnos encontrar.
Talvez seja a mistura com a poeira de nossas moradas demolidas o segredo que o faz
sobreviver”(OE,II,105;IV,267).(SELIGMANN-SILVA,2003,p.410-411)
Escavar as ruínas do passado implica, então, revolver experiências dolorosas ou
gratificantes, recuperar imagens, ainda que distorcidas pela ação do tempo, mobilizar
sentimentosadormecidosoupropositalmenteenterradosnojazigodoesquecimento.
Estarecuperaçãodainfânciadá-seaotransformaremdiscursoaquiloqueestáimerso
namemória,acessadanãocomoinstrumentoparaconheceropassado,mas,deacordocom
Walter Benjamin, como meio onde se alojam as experiências passadas, como ruínas que
denunciamapresençadopassadonopresente.Oautorafirmaque
(...)amemórianãoéuminstrumentoparaaexploraçãodopassado;é,antes,omeio.Éomeio
onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão
soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um
homemqueescava.(BENJAMIN,1995,p.239).
Nessa aproximação do passado esses narradores revolvem o que está latente na
misteriosaescuridãodamemória,reservadaaoesquecimento,queéjustamenteoquemaisos
inquieta: as respostas às indagações sobre sua identidade, seu lugar no mundo e as
perspectivasparaumfuturoaindaincerto.
Sendoaidentidadealgoporescrever,umprocessolentoecontínuo,queencontraao
longo de seu percurso o entrelaçamento com outras vias (outras vidas!), os narradores
hatounianos lidam sempre com a problematização da representação da memória e com as
intermitênciasdoesquecimento,forjandoumjogoderelaçõesoscilanteedesafiador.
Comorecursoeminentementeválidoparaoregistrodasexperiênciasdoindivíduo,a
escritacoloca-se como umprincípio fundadordaartedamemória edoesquecimento (...)
comovisão críticadesi mesmoedos outros.”(HATOUM,2006,p.27). Essepensamento
48
sobreaescritacomoartedamemóriaedoesquecimentoocorredesdeaAntigüidade,onde
escreverserviamuitomaisparaesquecerqueparalembrar.SegundoHaraldWeinrich,
De outra forma, novamente em correlação com a metáfora da memória, que desde Platão
tambémapreciaaimagemdolivroedomaterialdeescrever,oesquecimentoaparececomo
lacuna no texto, que se pode preencher com escrita e pensamento, mas que talvez seja
exatamenteoquetornaotextolacunosoenigmáticoeinteressante.Nofinaldotextoentão,o
(querer)esquecerfazumgrossorisco,umriscofinal.(WEINRICH,2001,p.22–grifosdo
autor)
Impõe-se,portantoumdesafiodaescrita,colocadosobreumplanomovediçoqueédo
trabalho da memória, operando sob a passagem ostensiva do tempo que avança em um
processoirremediavelmenteintocável.Essetempo,queseprecipitasobresimesmo,despeja
no presenteos acontecimentos, as conquistas e asperdas que,em formade lembrançasde
experiênciasvividas,serãoresgatadaspelamemória,que“podepercorrerumlongocaminho
devolta,remandocontraacorrentezadotempo”(BOSI,1987,p.342).
Na busca desse tempo perdido, o eu” é visto como instância que se repensa e
enquantomododerepresentação.Tempoqueseadensanesserepensardosujeito,porqueas
lembrançasestãoimpregnadasderepresentação.AindacomEcléa,aoestudaropensamento
deBergson,temosque:
(...) a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,
interferenoprocesso“atual”dasrepresentações.Pelamemória,opassadonãosóvemàtona
das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“desloca”estasúltimas,ocupandooespaçotododaconsciência.Amemóriaaparececomo
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.
(BOSI,1987,p.9)
Estatensãoapontaparaoperfiltransitóriodaidentidadecomoprocessoemcurso.O
indivíduo, ao inquirir sobre a identidade, esbarra sempre no fugidio, depara-se com a
diferençaecomasdominaçõeshierarquizantesqueoalocamemdeterminadosnichossociais,
equetêmsempreemvistaosparâmetroshegemônicos.Aesterespeito,BoaventuradeSouza
Santos,sociólogoportuguês,traçaasseguinteslinhasdereflexão:
Sabemoshojequeasidentidadesculturaisnãosãorígidasnem,muitomenos,imutáveis.São
resultadossempretransitóriose fugazesdeprocessosdeidentificação.(...)Identidades são,
pois, identificações em curso. Sabemostambémqueas identificações,alémdeplurais, são
dominadaspelaobsessãodadiferençaepelahierarquiadasdistinções.Quemperguntapela
49
suaidentidadequestionaasreferênciashegemônicasmas,aofazê-lo,coloca-senaposiçãode
outroe,simultaneamente,numasituaçãodecarênciaeporissodesubordinação.(...)É,pois,
crucialconhecerquemperguntapelaidentidade,emquecondições,contraquem,comque
propósitosecomqueresultados.(SANTOS,1997,p.135–grifosmeus)
Porseraidentidadeumprocessoemqueseoperamdistinçõespeladiferença,ocampo
dalinguageméummodopeloqualosujeitopodetomarconsciênciadaprópriafragmentação.
Essequestionamentosobreaidentidade,feitopelosnarradoreshatounianos,comopropósito
primordialnabuscadaidentificaçãodesuasorigens,nascejustamentedolugarocupadona
família, como agregados que estão, ambiguamente, dentro e fora do parentesco. Nessa
condiçãoambivalenteéquesemovemnoscaminhostraçadospelosrelatossobresuasvidas,
queoslevamàconstataçãodequenãohárespostasdefinitivassobresuasorigens.Assim,os
narradoresnãoresolvemaquiloqueosinquietaemsuabuscaidentitária.Nestesentido,éna
expressãoescritaqueosnarradoresdosromancesdeMiltonHatoumprojetamoedifícioda
memóriaqueseerigenotrabalhodetensãoentrealembrançaeoesquecimento,olutoea
melancolia,aausênciaeapresença.
Diantedo vertiginoso trabalhode narrar as memórias dispersasdos vários relatosa
quetêmacesso,osnarradoresdeHatoumnecessitamlançarâncoranopassadoparatrazerà
tona os resquícios de um solo movediço, cheio de escombros, na difícil compreensão da
identidade.Nestesentido, osnarradoresexploram experiênciasrecorrendoàlinguagemdas
imagensinscritasqueficaramcomotraçonamemória.CabeaquioqueobservaAlfredoBosi
emOsereotempodapoesia:
Nesta perspectiva, a instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à
existência; não de um passado cronológico puro – o dos tempos já mortos –, mas de um
passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de ser da infância e do
inconsciente.Aépicaealíricasãoexpressõesdeumtempoforte(socialeindividual)quejá
se adensou o bastante para ser reevocado pela memória da linguagem. (BOSI, 2000, p.
131,132–grifodoautor)
Interessante ressaltar que o fluxo da memória nas narrativas estudadas compõe um
belo cenário paradoxalmente construído pela diferença – marcada pelo convívio entre o
orienteeoocidente,nafiguradeimigranteslibanesesradicadosemManauseosnativos–,
50
comotambémpelaausência,marcaindelévelemambososromances,impostapelamorte.O
sujeito,emcadaumadessashistóriastecidaspelosfiosdamemória,érepresentadopelavoz
dosrespectivosnarradores,queescavamasruínasdeumaManausimaginária,deumtempo
perdido.CondizestareflexãocomoqueobservaFranciscoFootHardman:
Mas mais forte, mesmo,é o fluxo dessa prosa da memória prenhede lirismo melancólico,
capazderestituir(...)apresençadessasvozesfugazesgalgandoanoiteeosilêncioquejá
anunciam sua próxima ausência. Nos labirintos enredados que traçam o mistério de cada
memória,quandoapontedopassadoperdidolevaaoplanodoimagináriolírico-melancólico,
têm-seosmomentosdealtoenlevodaprosadeHatoum.(HARDMAN,2000,p.8-9)
EssasvozesfugazesreferidasporHardmanpodemsermaissentidasqueouvidasno
delicadofluxodanarrativahatouniana.Osfatosrememoradossãosutilmenteescamoteados
pelainvençãoeperpassadospelosrelatosrecolhidosdaquelesquefizerampartedavidados
narradores,deixandoahistóriadeslizarsobreoplanodamemóriatransformadaemdiscurso.
Assim,otempooriginaldodiscursoficaperdido,poisosfatosnarradosentramemconflito
com as lembranças revisoras já contaminadas pelas impressões do presente e também
impregnadaspelaimaginação.
Certamente que a angústia de Zana no crepúsculo da vida aponta para as fraturas
irreparáveis do sujeito exilado em si mesmo; sujeito que busca na memória, como réstia
primitiva, algo que traga elementos supostamente permanentes. No entanto, esta memória,
tambémdesmoronada,procuraestabelecerumoutrosolo“sobreasruínas”quedenunciama
presençadopassadonopresente,deacordocomBenjamin,aotransformaremdiscursoaquilo
queestáimersonomeioondesealojamasexperiênciaspassadas.Oquerestoudafamília,as
ruínasdetodauma vida,reveladoras deprofundos conflitosexistenciais aolongode anos,
ganhamlugar,metonimicamente,namortedeZana,comorevelaonarrador:“Euaprocurei
portodososcantosesófuiencontrá-laaoanoitecer,deitadasobrefolhasepalmassecas,o
braçoengessadosujo,cheiodetiticadepássaros,orostoinchado,asaiaeaanáguamolhadas
deurina.Eunãoavimorrer,eunãoquisvê-lamorrer.”(Doisirmãos,p.12).
51
AsolidãodeZana,emmeioaosdestroçosdopassado,traçosdaausênciadospontos
desuasustentação,desenhaumisolamentorepresentadoporumexíliodecaráterexistencial.
O drama da cena final da sua vida, colocada estrategicamente para abrir a narrativa,
prenuncia,aomesmotempoemquearremata,oquedemaisforteseimprimenoenredodo
romance:asdesavençasentreos gêmeos,osdoisirmãosemconstanteconfronto.Oanseio
pelareconciliaçãodosirmãosseexpressanasúltimaspalavrasdamãeaflita:
Masalgunsdiasantesdesuamorte,eladeitadanacamadeumaclínica,soubequeergueua
cabeçaeperguntouemárabeparaquesóafilhaeaamigaquasecentenáriaentendessem(e
paraqueelamesmanãosetraísse):“Meusfilhosjáfizeramaspazes?”.Repetiuapergunta
comaforçaquelherestava,comacoragemquemãeaflitaencontranahoradamorte.(...)“O
queeumaisqueroépazentreosmeusfilhos.Querovervocêsjuntos,aquiemcasa,pertode
mim...Nemquesejaporumdia.”(Doisirmãos,p.12,224)
Aexpressãodointeriordessespersonagenssósefazpresentenotextopormeiodos
procedimentosdiscursivosexpostospelonarrador,comoveículodasvozesqueconstroema
narrativa. E, enquanto construção, a narrativa hatouniana está arquitetada sobre a base do
discursodamemóriaindividualecoletiva,quetransitadesdeoâmbitodosujeitodiantedas
perdas até uma exposição materializada, no texto entregue pelo narrador, socializando a
memóriaindividual.
Cabem aqui alguns apontamentos da visão benjaminiana sobre a experiência, tanto
individual quanto coletiva, impressa na memória e transmitida como relato. Para ele, é
fundamentalque taisexperiências sejamconsideradas maisdo que passagens estanques de
uma vida, mas como uma comunicação, por meio do relato do narrador, de experiências
oferecidas como um legado transmitido aos seus ouvintes, daí a noção de tradição de
experiências.Emsuaspalavras,
Naverdade,aexperiênciaéumfato detradição,tantonavidacoletivacomonaparticular.
Consistenãotantoemacontecimentosisoladosfixadosexatamentenalembrança,quantoem
dadosacumulados,nãoraroinconscientes,queconfluemnamemória.(...)Nasubstituiçãoda
maisantigarelaçãopelainformação,dainformaçãopela“sensação”,reflete-seaprogressiva
atrofiadaexperiência.Todasessasformasseafastamporsuavezdanarração,queéumadas
maisantigasformasdecomunicação.Estanãovisa,comoainformação,comunicaropuroem
sidoacontecimento,masofazpenetrarnavidadorelator,paraoferecê-loaosouvintescomo
52
experiência.Assimaíseimprimeosinaldonarrador,comoodamãodooleironovasode
argila.(BENJAMIN,1975,p.36,37)
Anarração,comoformaartesanaldecomunicação,temcomomeiodeconservaçãoda
matérianarradaoslaçosdeinteresseentreonarradoreseuouvinte.Comofaculdadeépica
por excelência, a memória pode deslizar do individual para o coletivo; da experiência
dolorosadonarrador,oouvinte/leitorextrailiçõesvaliosas.Assim,onarradorsocializaseu
relicáriodelembrançaspormeiodonarrarmaterializadonaescrita,refletindoa“progressiva
atrofiadaexperiência”,naspalavrasdeBenjamin.
Esquecimento,morte,memóriaeimaginaçãosãoelementosqueconstroemoespaço
narrativo.Sendoamemóriaolugarondeestãosoterradasaslembranças,ondesederamas
vivências que possivelmente explicariam o presente, os narradores hatounianos vasculham
suasorigenstendocomopontodepartidaamemóriadesieodiscursodamemóriadeoutrem.
Quanto à construção da grande malha narrativa dos romances em estudo, sua
arquiteturaprincipalestábalizadapelanarrativadamemória,provenienteemgrandemedida
de personagens ligados às origens dos narradores que lhes transmitem suas experiências.
Destemodo,anarradorainominadadoRelatoeonarradorNaeldeDoisirmãoscontamcom
umamultiplicidadedevozesqueconfluemparaotexto.Estatramadiscursivadáfeiçãoaos
relatosquecircundamanarrativacomoestruturadodiscursodamemória.Pontuo,assim,o
teordocapítuloqueseseguetendocomofundoosváriosrelatosqueconstroemum“certo”
narrardashistóriasdeHatoumaquianalisadas.
CAPÍTULOII
54
RELATOSDEUMCERTONARRAR
Para o conhecimento de fatos ocorridos na infância, que escapam à nitidez das
lembrançasevocadasematizadasnasprópriasexperiências,osnarradoresrecorremaorelato
de outras personagens que possam traduzir aquilo que, nessas lembranças, aparece como
lampejos fugazes,muitas vezesdispersos em sensações etraços inscritos naintimidadedo
indivíduo.
Écertoqueemnossaconstituiçãosubjetiva,experimentamosomundopormeiodos
sentidos,dointelectoedoespírito,comoprojeçõesintimamenteligadasànossamemóriada
qual não épossíveluma desvinculação.Por isso,“é positivo queela se construa enquanto
releitura e ‘invenção’, ao invés de nos conduzir ao pretensamente autêntico espaço da
origem.”(CURY,2000,p.170).
Nossopassado,constitutivodenossaidentidade,estáancoradoemumportodedupla
margem:anossamemória,dereminiscências,eamemóriadooutro,derelatos.Eporquenão
dizerdeuma“terceiramargem”,adaimaginação,poisoatocriador,aarte,tambémfazparte
denossaformação,individualecoletiva.Comoreleituraeinvenção,portanto,anarrativada
origem dos narradores hatounianos se tece mediante a impossibilidade de apreensão dessa
origem como um ponto estável e imaculado do passado e de uma suposta identidade sem
fraturas,sempreidênticaasimesma.
55
Há,portanto,umterritórioaserexplorado,sobreoqualsedebruçamosnarradoresdas
histórias de Hatoum: a memória, cercada de incertezas e de enigmas, apresenta-se como
campofecundoparaaescavaçãodosescombrosdopresente,figuradasfamíliasestilhaçadas
porexperiênciasdolorosas.
Assimdelineia-seapropostadestecapítulo:lançarumolharsobreacomposiçãoda
narrativa em ambos os romances, tendo em vista o processo de encadeamento de várias
históriasqueprovémdepersonagensquetestemunharampassagensvivenciadasemtempos
remotosdavidadosnarradoresdoRelatoedeDoisirmãos.Taisexperiênciasreveladasna
superfície do texto representam verdadeira escavação memorialista, misturada a revelações
melancólicas de ausências e ressentimentos, contribuindo para a tessitura dos enredos
engendradospelosnarradores.
Essaspersonagens-testemunhasseriamcomonarradoresauxiliaresparaotrabalhode
recuperaçãodopassadodosnarradoresprincipais.Comojápontueianteriormente,hásempre
lapsosnamemóriaeessatarefade“releitura”do passadosefazsobaforçaimperativado
esquecimento,regidopelapassagemdotempo.
Assim, ao retornar a sua terra natal, a narradora do Relato espera recuperar da
matriarcaEmilie,osfiosqueteceriamograndepaineldesuavida,buscandoacompreensão
da origem e da própria identidade. Expectativa frustrada logo de início, pois no dia da
chegadaaManausEmiliefaleceidosaedoente.Nacasadainfância,suaincursão,agora,dá-
sepormeiodeváriasvozesquerelatam,aseumodo,opassadodafamíliaimigrantelibanesa
ondeforacriada.NaspalavrasdeMariaZildaFerreiraCury,“amortedeEmilie,queeraa
fonteda vida,transformaem ruínasa casa,como ruínao sãotodas ascasas quetentamos
inutilmentereconstruircomaslembrançasquenosvêmdainfância.”(CURY,2000,p.173).
Nael,diferentemente,nãovemdeoutracidade,massitua-senopresentecomoquem
regressa de um passado prenhe de histórias, reconstruindo, a partir do relato de outros, e
56
também daquilo que testemunhou na infância, as passagens vividas na casa da família
libanesa onde nascera. Seu ponto de observação é o quartinho dos fundos, no quintal do
sobrado de Zana e Halim, onde vivia com a mãe Domingas, índia manauara aculturada e
empregadadacasa.
Sobre o fio maleável da memória, os narradores movem-se em busca de uma
afirmaçãoidentitária,levadosaumalutaincessantecontraacorrentezadotempo,enfrentando
asondasobscurasdoesquecimentoeasvagasfunestasdamorte.
Diantedetalquadro,emolduradopelasincertezasepelalutatravadaentreolembrare
o esquecer e, ainda, pelos embates vividos diante da morte de pessoas que lhes seriam
verdadeiros relicários do passado, o questionamento interior desses narradores leva-os a
recorreraoutrosnarradores,personagensdashistóriasvividas,participantesdasexperiências
queconservam,dealgumaforma,traçosefiosquevãotecendo,pontoaponto,outrosrelatos,
outrasexperiências,outrasmemórias.
Asnarrativasauxiliaresvêmàtonaparaosnarradoresdosromancescomomateriais
emsuspensão,quepedemumregistro,umaformadeedificaçãoquesirvacomoespéciede
memorial, na tentativa de escapar ao inexorável esquecimento. No entanto, as lembranças
constitutivasdessasnarrativassãotambéminterpretações,poisessespseudonarradoresestão
também submetidos à ação do tempo e dos escapes providenciais fornecidos pelos
mecanismosdoesquecimento.
Obviamente, há um distanciamento entre o tempo da história e o tempo da escrita
dessahistória,oquelevainevitavelmentealacunas.Oconteúdodosrelatosdessesnarradores
auxiliaresestápresoàmemóriadosnarradoresprincipais,poissãoelesqueprocuramordenar
edaruma formamaiscoesa ao discursodos relatosque recolhem.Deste modo,oproduto
finalaquechegamasnarrativasdemonstraotrabalhointerpretativoeafetivodanarradora
inominada e de Nael. Tanto aquela como este lidam com os retalhos de histórias que vão
57
costurandoaolongodoprocessodeconstrução,tendoemmãosumadiversidadedemateriais.
No caso do Relato, a narradora tenta dar ordem às transcrições, gravações, fotos e
depoimentos e, no caso de Dois irmãos, Nael resolve criar sua narrativa partindo de sua
memória.
Diante disso, o procedimento de “contar” para não esquecer parece ser a base
estruturaldasnarrativasnatentativademantervivaamemóriadaorigemdessesnarradores.
Cabeaquiumaproposiçãocolocandoemlinhasparalelasoprocedimentonarrativonotexto
deHatoumeaartedecontarhistóriasdeSherazade,umaexímianarradora,figuraclássicana
literatura.
2.1Aartedonarrar:Sherazadeeanarradorahatouniana
AssimcomoosdoispersonagensdeHomero,citadosnocapítuloanterior,lutampara
vencer o esquecimento, essa figura lendária, a da narradora mais prodigiosa da arte da
memória,talvezamaisconhecidanomundodasnarrativas,lançamãodaartedapalavrapara
escapar da morte. De outra forma, a morte da memória, ou seja, o esquecimento, atua na
confecçãodasnarrativashatounianas.
Sherazadeteceosfiosdaobraquesetornarácânonedaliteraturaocidental,oscontos
deAsmileumanoites.Seuprocedimentonarrativosustentaaartedaimaginaçãoligadaà
lembrançadehistórias,formandoumanteparoderesistênciaaointuitodeseualgoz.
Ahistóriadessanarradoraéaseguinte:oreiShahriár,depoisdatraiçãodaesposacom
umescravo,decidematartodasasmulherescomquemsecase,namanhãseguinteàprimeira
noitedenúpcias,nointuitodepreservar-sedaperversidadedasmulheres.
Sherazade,filhadovizirmaisimportantedoreino,aoserentreguecomoesposaaorei
vingativo, arquitetaum plano que,se bem sucedido, a libertariae a todas as mulheres,da
58
imposição homicida do rei. Curiosamente, Sherazade tinha atributos intelectuais que a
credenciavam para ser colocada à frente desse perigoso projeto: “(...) tinha lido livros de
compilações,desabedoriaedemedicina;decorarapoesiaseconsultaraascrônicashistóricas.
(...) Conhecedora das coisas, inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e aprendido.”
(CODENHOTO,2006,p.60)
Comsuapródigamemória,essanarradoraperspicazcoloca-sesobreotênuefioquea
prendeàvida:anarração,noiteapósnoite,dehistóriasquesãosuspensasemseuclímaxao
aproximar o romper da manhã. Assim, as histórias contadas de cor, elaboradas com tal
coerência e astúcia, encantam o rei Shahriár que, “esquece” e por fim, revoga a violenta
medidaquedecretara.(Cf.CODENHOTO,2006,p.58)
Emumavisadasobreatradiçãoliterárianaculturaárabe,constata-sequeaoatribuira
essa literatura, em seus primórdios, um caráter estritamente oral pode-se incorrer em
equívocoseatémesmoemanacronismo.Essepontodevistaéesclarecidoporumdoscríticos
etradutoresdaliteraturaárabe,MamedeMustafaJarouche,quetraduziuAsmileumanoites
diretamentedoárabeparaoportuguês.Dizocríticoque
Trata-sedeumaconstataçãohistóricaquesoaamerabanalidade,masarealidadeéquetoda
tribo,todoclã,possuíapoetas,cujométododetrabalhopodeserdescrito,graçasàminúciados
historiadoresecronistasantigos,comrazoávelprecisão:depoisdeconquistaralgumrenome
graças à qualidade de seus versos, o poeta os transmitia a um determinado círculo de
discípulosourecitadores,quedessamaneirasetornavamvozesporassimdizer“autorizadas”
relativamenteatalprodução;eracomumqueelesmesmos,porsuavez,setornassempoetas,
transmitindoentãoseusprópriosversos,bemcomoosdopoetaqueostornararepositóriosde
seusversos,aoutrogrupodediscípuloserecitadores,eassimpordiante,numprocessode
multiplicaçãoquasegeométrica.(JAROUCHE,2006,p.48)
Comisso,Jaroucheapontaparaumprocessodetransmissãoencadeadadeversosque
teriamprimeiramenteconquistadorenomenasociedadeemqueforamdifundidos,paradepois
serem repassados oralmente aos demais “repositórios dos versos”. Nesse contexto, o
desempenho da memória é crucial. Porém, não se deve partir para uma classificação
apressada, adverte o crítico, atribuindo à literatura árabe características ligadas a
manifestaçõesespontâneasdeimprovisação.
59
Antesde lançar-seà narrativadoscontos queencantaram o rei,Sherazadehavia se
munidodeumarsenaldeconhecimentocontidonoslivrosecoletâneasestudadas.Deacordo
comessaperspectiva,deve-seressaltarque
(...) consideraressa[literatura árabe]produção“oral”,comtudoqueessetermoatualmente
implica, é um rematado anacronismo. No período que a cultura ocidental unifica
problematicamentecomo“IdadeMédia”,amemóriaeraumsuportetãooumaisválidoqueo
papelparaosdiscursos,quaisquerquefossemeles,inclusiveosquehojeclassificamoscomo
“literários”.(...)[Há,portanto,um]parâmetroparaacategorizaçãodoletrado:eleserátanto
maisvalorizadoquantomaislivrostrouxerdecor,ouseja,quantomaiorforseurepertóriode
saberesconsolidados,doqualamemória,convenha-se,éumindicativomuitomaissegurodo
que a simples posse material dos livros, diferença indiscutível entre o ser e o ter.
(JAROUCHE,2006,p.50-51)
A pródiga memóriada moçaprometida aorei Shahriárestava, portanto, alimentada
pelosaberadquiridodisciplinadamentee,dentrodosparâmetrosdaépoca,comoletrada,foi
capaz de memorizar um volume enorme de conhecimento, encantando o rei com suas
histórias. A arte da palavra envolta de suspense de que lança mão Sherazade acaba
derrubando a sentença funesta impetrada contra as mulheres tomadas como esposa por
Shahriár.
Nessesentido,traçandoumparalelocomanarradoradoRelato,osaberadquiridopor
elanãoestáligadoaoslivros,masàsuahistóriaparticularquesópoderiaserdesvendadano
seiodafamíliaimigrantequeacriara.Enquantoanarradoraorientalmantémofiodonarrar
presoaosuspense,ahatounianapuxaofiodesuahistóriaamarradaaoenigmadesuaorigem.
À medida que ela recolhe os fragmentos dessa história, vai formando o retrato de sua
identidade. Sua memória não é tão prodigiosa quanto a da narradora oriental, tanto que
dependiadeoutrosrelatosparaaconstruçãodesuanarrativa.
Há,noentanto,umpontocomumentreessasnarradorasequenãopodeserignorado.
Ambasgovernamsuasnarrativasquesãoconstruídascomoauxíliodeoutros“contadores”
quepassamafazerpartedesuashistórias.Destemodo,areuniãoderiosrelatospassapela
habilidosavozordenadoradessasnarradorasmovidasporumpropósitodefinido:Sherazade,
para vencer a morte; a narradora sem nome, para vencer o esquecimento. Este aspecto
60
constitutivo como elemento de elaboração do Relato conta com várias passagens que
elucidam seu passado em um processo encadeado de histórias encaixadas, como logo
veremos; quanto à elaboração das histórias da narradora oriental, este aspecto é assim
explicitado:
Shahrazádelaboraenarra,habilmente,suashistóriasespantosas,plenasdesuspense;masnão
é a única contadora do livro. Ela cede, muitas vezes, sua voz aos, não menos hábeis,
contadoresquepertencemàsuapróprianarrativa(...).Aoconcederavozàssuaspersonagens,
Shahrazádmantém-secomoeixocondutor,doqualpartemeaoqualretornamassucessivas
histórias,e,assim,Asmileumanoites,emtermosestruturais,compõem-seporumasériede
narrativasinseridasumasdentrodasoutras.”(CODENHOTO,2006,p.60,61–grifomeu)
ProcedimentoparecidoéadotadoporNaelparanarrarahistóriadesuaorigemqueé
permeadade segredos. Aliás,segredos que confluem noenigma dasua paternidade.Se há
segredos,háumavariedadedehistóriasquedeslizam“umasdentrodasoutras”natentativade
evitaramortedessamemóriasobresuagênese.
2.2Dorelatoàescritadamemória
OnarradordeDoisirmãosmergulhaemumretrospecto,procurandoreconstruir,com
oquerestoudahistóriafamiliar,asuaprópriahistóriaeidentidade.Enraizadonaterranatal,
estáemcontatomaisíntimocomseulugardeorigem.Esseenraizamentoénotório,atépelo
ponto de observação que o aloca a curta distância do núcleo onde ocorriam as tensões
familiares que testemunhava: a moradia no quartinho dos fundos do sobrado dá a ele o
privilégiodaexperiênciacompartilhadanocontextodeocorrênciadosfatos.
Doquartinho,onarradorrecorda...Ofatodeocuparumpequenocômodonosfundos
dacasadafamíliafazlembrarumapassagemproferidaporMarcelProust:
Paramim,nãomesintoviverepensarsenãonumquartoondetudoéacriaçãoealinguagem
de vidas profundamente diferentes da minha, de um gosto oposto ao meu, onde eu não
reencontre nada de meu pensamento consciente, onde minha imaginação se exale e sinta
mergulhada no seio do não-eu (...) onde cada ruído não faz senão evidenciar o silêncio,
deslocando-o,ondeosquartosguardamumperfumedeambientefechadoqueoardeforavem
lavar,masnãoapaga,equeasnarinasaspiramcemvezesparaconduzi-loàimaginação,que
61
seencanta,queofazposarcomoummodeloparatentarrecriá-loemsimesmacomtudoque
elecontémdepensamentosedelembranças(...)(PROUST,2001,p.18,19)
O rapaz que crescera como neto natural do casal de imigrantes, luta e sofre com a
memóriadainfância,passadaaoladodamãe,serviçalnacasadoslibaneses.Naelcaracteriza-
secomoobservadordosfatospresenciadosnessacasa:“Masmuitacoisadoqueaconteceueu
mesmovi,porqueenxergueideforaaquelepequenomundo.Sim,deforaeàsvezesdistante.
Masfuioobservadordessejogoepresencieimuitascartadas,atéolancefinal.”(Doisirmãos,
p.29)
Embora seu ponto de observação esteja alocado no espaço solitário do quarto, a
relação com a memória é uma questão social, pois a coleção de histórias que traz no seu
íntimo só pode ser reconstituída em decorrência de experiências vividas dentro da casa
familiar,comosmembrosdessafamíliaemediantetodosdesdobramentosdecorrentesdessa
relação.São“vidasprofundamentediferentes”dadele,retomandoProustnapassagemacima,
quesãorecriadaspelalinguagemeimaginação.
Deacordocomoprincípiobenjaminiano,“opassadoéumaimagemmutilada,torso:
ummistoindissociáveldelembrançaetrabalhodo tempo,esquecimento.”(SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 408). Quanto à memória, esbarra-se sempre com a impossibilidade de
apreensãodesuatotalidadeedeordenaçãodoseuconteúdo.Issoépontuadonopensamento
de Walter Benjamin, em que os mecanismos da reminiscência atuam como modo de
articulaçãodopassado.
Nesse sentido, a narração apresenta-se como imagem transposta para o texto como
discurso.Emambososromances,onarrador-escritor(anarradorasem nomeeNael)vê-se
diantedaimpossibilidadedeinteirezadopassadoqueprocurarecriar”,poisoconteúdoda
memóriadissolve-seaolongodotempo,arrojando-ocontraarealidadepresenteeimpondo
quelanceâncoranoterritóriodoimaginárioparaaelaboraçãododiscursodorelato.Nesse
processo,háummovimentocíclicoderetornoaopontodepartidaemfacedabuscafrustrada
62
porrespostas,aorevolverosescombrosdamemóriadevidasqueseesvaemsobaégidedo
tempo.
A experiência a ser relatada pelo narrador, seja por ele vivenciada ou dela tendo
tomado conhecimento, é a matéria da qual se nutre a narrativa. Conseqüentemente, tal
experiênciapoderásercompartilhadacomosqueouvem(elêem)ahistória.Énesseponto
queWalterBenjaminindicaoquedistingueanarrativaoral(paraeleagenuínaartedenarrar)
doromance.Segundoele,écomoadventodoromance,quedependeinteiramentedolivro
como suporte, que começa a ser marcada na história a decadência da narrativa. Assim, o
críticoalemãoatestaodivisordeáguasentreanarrativaoraleoromance.
Aquilo que é característico do gênero épico é a transmissão oral e esta é fenômeno bem
distinto daquilo que étípico do romance... Este sedistingue de todas as demais formas de
literaturaemprosa–lenda,sagaemesmonovela–pornemprocederdatradiçãooralenem
provocá-la. E distingue-se, assim, principalmente da narrativa. A experiência propicia ao
narrador a matéria narrada, quer esta experiência seja própria ou relatada. E, por sua vez,
transforma-senaexperiênciadaquelesqueouvemaestória.(...)Olocaldeorigemdoromance
éoindivíduonasuasolidão,quejáosabediscutir,deformaexemplar,osseusassuntos
mais prementes, que precisaria de ajuda, sem tê-la, e que ele próprio não sabe transmitir
conselhosdequalquernatureza.Escreverumromancesignificachegaraopontomáximodo
incomensurávelnarepresentaçãodavidahumana.Depermeiocomaplenitudedaexistênciae
atravésdarepresentaçãodessaplenitudeoromanceatestaaperplexidadeprofundadetodosos
sereshumanos.(BENJAMIN,1975,p.66)
Ao focar o trabalho realizado pelo narrador Nael, cujo intuito de escrever suas
experiênciasresultounoromance,vejo-ocomoaqueleescritornasuasolidãoaquesereferiu
o crítico alemão,que não podecontar comninguém mais, a nãoser com amemória, pois
aquelesqueocercavamnopassadojámorreramouestãodistantes.Noentanto,onarrador-
autor dos escritos dessas passagens da vida, não prescinde das memórias desses outros
narradores-personagens, que encerram em si parte da própria existência; mesmo que essas
reminiscênciasapareçamnotextomisturadascomaimaginação.Amatériadanarrativanasce
daânsiaporestabelecer-secomumaidentidadeprópria,firmando-seemumlugarnomundo,
procurandoreconstruir-sesobreosdestroçosdopassado.
63
Dentro da perspectiva bejaminiana, um valor inegável do narrar, e que se mostra,
segundo ele, em franca decadência na modernidade, é a partilha de experiências que só é
possívelpelatransmissãodeconhecimentosquesetornamsabedoria.Ouseja,oterrenoda
experiênciaprecisasercomum,compartilhado,paraqueoconselholigadoaessaexperiência
vividatorne-sesaber.NaspalavrasdeBenjamin,
(...)dequalquerforma,onarradoréumaespéciedeconselheirodoseuouvinte.E,sehojeesta
expressão “conselheiro” tem um sabor antiquado, mesmo neste sentido, então é porque
diminuiumuitoahabilidadedetransmitiroralmenteouporescrito,algumaexperiência.Por
isso mesmo não temos conselhos a dar, nem a nós mesmos, nem aos outros. Pois “dar
conselho”significamuitomenosresponderaumaperguntadoquefazerumapropostasobrea
continuidadedeumaestóriaquenesteinstanteestáasedesenrolar.(...)Umconselho,fiadono
tecidodaexistênciavivida,ésabedoria.Aartedenarraraproxima-sedoseufimporextinguir-
seoladoépicodaverdade,asabedoria.(BENJAMIN,1975,p.65)
Seoverdadeirovalordonarrar,segundovimos,éatransmissãodeconhecimentopor
meio do compartilhamento de experiências, o saber que resulta disso, nas narrativas em
estudo,seriao desvendamentodosmistérios quetantoafligemessesnarradores e aslições
quepoderiamtirardessaexperiênciaasercompartilhada.Se,segundoBenjamin,oindivíduo
solitário que escreve o romance não tem conselhos a dar por não saber discutir de forma
exemplar as questões mais importantes da vida, os narradores dos romances hatounianos
enquadram-se,inevitavelmente,entreosnarradoresmodernosquebuscamexplicarosentido
da vida, mais do que dar conselhos. O sentido que buscam para suas vidas está fiado na
descobertadesuasorigens,oqueterminaemderiva,emindefinição.Comoromances,esses
textos vêm atestar, de conformidade com o pensamento benjaminiano, “a perplexidade
profundadetodosossereshumanos.”(BENJAMIN,1975,p.66).
2.3Entrerelatosencadeados,encaixesdehistórias
Osromanceshatounianostêmcomoprocedimentorecorrentearadicalizaçãodanoção
edo valor daidéia dadiferença eda alteridade, poisse valorizao dar voz aooutro edar
64
ouvido à voz do outro. Nas duas obras estudadas, destaco a seguir os personagens
“contadores”querepresentamosuportedosrelatosdequesevalemosnarradoresprincipais
para o propósito, já mencionado, a que ambos se lançam. Esses narradores auxiliares são:
Hakim,HindiéConceição,Halim,DomingaseGustavDorner.
Os discursosde Hakime Hindié(Relato) ede Halim eDomingas(Dois irmãos),a
partirdolugardevivêncianoseiodacasafamiliar,apontamparanarradorespresosaolugar
cotidianoeconhecedoresdosembatesediferençasdaordemdodia.Jáofotógrafoalemão
Dorner (Relato), exímio conhecedor da flora amazonense, além de observar o cotidiano
manauara, reflete a visão do estrangeiroinserido na terra exótica, atento àsdiferenças dos
costumesmescladosdaManausretratada.Vejamoscomoessesnarradoresatuamnostextos
estudados.
Diante daimpossibilidade do reencontro com a avó adotiva, amatriarca da família
imigrante que a adotara, a narradora recorre ao tio Hakim, o filho mais velho e o mais
achegadoaEmilie,personagemqueirádesencadearumacorrentedenarraçõesencaixadas,na
qualsedestacamtambémcomonarradoresoalemãoDornereHindiéConceição,amigosda
família.
EsseencontrodanarradoracomopassadoatravésdorelatodeseutioHakim,fazdela
umaouvinteansiosaporconhecerosfragmentosdevidaqueviriamàtonapelodiscursodo
outronarradorqueagoratomaoseulugarnaseqüênciadoenredo.
Anarradorarecorre,assim,aosrelatosdeoutraspessoasenvolvidascomsuavidana
casaondecresceu,perseguindo,emmeioaosfragmentosdashistóriasouvidaseregistradas,o
fioquepuxasseonovelodesuaidentidade.Paraanarradora,apessoaqueocupariaaposição
deprivilegiadoguardiãodetaismemóriaspassouaserotio,recémchegadodoLíbano,que
ignoravaofalecimentodamãe.Ochoquedanotíciafazemergirumturbilhãodelembranças,
como se Hakim quisesse segurar com os fios da memória o tênue fio da vida, há pouco
65
rompidoparaEmilie.Acenadachegadaàcasamaternaeoreencontrocomanarradorasão
aschavesparaoencadeamentodassucessivasnarrativasquevirãoemseguida:
Sabiaqueentreostios,apenasHakimeraumafontedesegredos.Nomomentoemqueele
desembarcou,Emiliejátinhaexpirado.(...)Chegoutambémcomumpoucodeesperança,pois
tioEmílio,discretoecomedido,evitoufalaraverdadeaosobrinho.Avisouportelefoneque
Emilieestavamaistristeesaudosaqueidosa,eimplorouapresençadeleantesdopôr-do-sol
daquelasexta-feira.(...)Quandovoltamosdocemitérionoiníciodanoite,nósoencontramos
sozinho no jardim deserto do casarão fechado. (...) A saudação que teria sido efusiva e
calorosaportantotempodeausência,nãopassoudeumapertodemãooudeumabraçode
pêsames.(...)Porfim,tioHakimcomeçouafalar,eletambémjácontaminadopeladorsúbita,
eláforaeuescutavasuavozaintervalos,umavozqueindagavaerespondiaaomesmotempo
(...)Disse-lhe,então,quegostariadeconversarcomele,longedotumulto,longedetodos.(...)
– Posso passar o resto da minha vida falando do passado – disse, com uma voz mais
descansada.Oencontroaconteceunanoitedodomingo,sobaparreiradopátiopequeno,bem
debaixodasjanelasdosquartosondehavíamosmorado.Namanhãdasegunda-feiratioHakim
continuavafalando,esóinterrompiaafalaparareverosanimaisedarumavoltanopátioda
fonte, onde molhavao rosto e oscabelos; depois retornavacommais vigor, com a cabeça
formigandodecenasediálogos,comoalguémqueacabadeencontrarachavedamemória.
(Relato,p.28-32)
A passagem acima transcrita é o fecho do capítulo I do romance, podendo até ser
substituídoopontofinalpordoispontos,indicandoquetodooconteúdodocapítuloII,aberto
e encerrado por aspas duplas, refere-se ao relato de Hakim. Nesse relato, encaixa-se o de
HindiéConceiçãoque,amigaíntimadeEmilie,contarapassagensreveladorasdasdesavenças
entre os pais de Hakim, as brigas por diferenças religiosas, o tratamento dado aos
empregados.
Anosdepois,aoarrancaralgumaspalavrasdeHindiéConceiçãoéqueacoisaficoumaisou
menosclara.ElamecontouumapassagemobscuradavidadeEmilie.Minhamãeeosirmãos
EmílioeEmirtinhamficadoemTrípolisobatuteladeparentes,enquantoFadeleSamira,os
meusavós,aventuravam-seembuscadeumaterraqueseriaoAmazonas.Emilienãosuportou
aseparaçãodospais.(...)Ela[Hindié]sóparavadematraquearparatomarfôlegoeenxugaro
suor do rosto com a ponta da saia, sem se importunar em mostrar a folhagem de panos
transparentesqueseparavaapeledoalgodãofloridodatúnicaquenuncatirava.(Relato,p.33,
35)
Destemodo,aexperiênciadonarradorHakimdeslizaparaadanarradora,queouveos
relatos,registraecompila,transformando-osemmatériaescrita.
Tantasconfidênciasdeváriaspessoasemtãopoucosdiasressoavamcomoumcoraldevozes
dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro
gigantescoefrágilsobreasoutrasvozes.Assim,osdepoimentosgravados,osincidentes,e
tudooqueeraaudívelevisívelpassouasernorteadoporumaúnicavoz,quesedebatiaentre
ahesitaçãoeosmurmúriosdopassado.(Relato,p.165)
66
Hindié é quem revela a oposição religiosa entre Emilie, cristã, e o marido,
muçulmano, relembrando uma festa natalina organizada com grande excitação pela amiga,
que,comodecostume,recebiaváriosconvivasparaacelebração.Airritaçãodomaridocom
tanto frenesi por causa de uma ceia religiosa, a ponto de quase torna-la uma festa pagã,
motivaramopaiàsaídadecasaemplenanoitedeNatal,marcandonamemóriadeHakim,
confirmadopelorelatodeHindié,atensãoexistenteentreospaisdevidoàsdiferenças.
Aovê-loentrar,altivomascomorostosisudo,semcumprimentarninguém,desconfiamosque
aquelanoite,normalmentepropensaàfestaeàcomilança,estavaameaçadaporumfiofrágile
tensoquebempodiaromper-se(...).Emiliecontinuouabsorvidaporafazeresdiversos,embora
soubesse que as pessoas ao seu redor se moviam com preocupação, pressentindo um
transtornoiminente.
–Aconselheituamãeairfalarcomele,maselanãoédeaturarninguém–disseHindié.
–Pergunteioquetinhacontrariadoomaridodela.–DeveserumadasproibiçõesdoLivro–
ironizouEmilie–,mashojequemditaoquepodeeoquenãopodesoueu,nãoumanalfabeto
guerreiroquesedizProfetaeIluminado.
Acasajáfervilhavadegentequandoouvimosospassosnoassoalhoeoestalidosecodeuma
portafechadacomviolência.(...)Eleatravessouasduassalaseoespaçodalojacomamesma
altivezecumprimentoucomacabeçaaspessoasquenãoenxergava.(...)Elaparoudefalar,
escondeuorostocomolequeerecostou-senacadeira.Permaneceucaladaporummomento:
parareavivaramemória?Tomarfôlego?Amainarorancorquelhetraziaalembrançadaquele
dia? E sem afastar o leque do rosto, passou a enumerar com uma voz carregada de ira e
vexame os santos de gesso pulverizados, os de madeira quebrados barbaramente, a Nossa
Senhora da Conceição espatifada e o Menino Jesus destroçado. Mas as iluminuras raras e
preciosasqueEmilieadquiriranapenínsulaibéricaforampoupadas,bemcomoooratóriode
caobaeaimagemdeNossaSenhoradoLíbano;amboscontinuavamintactos,alheiosàfúria
domeupaiduranteocrepúsculoeumapartedanoite.Oquartopareciatersidoassoladopor
umcataclisma,umfuracãoouumúnicogritovindodoTodo-Poderoso.(Relato,p.37-46)
Anarraçãodotiodominaamaiorpartedahistória,representando,paraanarradora,
aquelequedetémamemóriamaislúcida,opontodeconvergênciadasoutrasvozesquesão
solicitadasparaaconstruçãodanarrativa.
OdiscursodeDornertrazparaHakimorelatoqueseupaifazsobreahistóriadesua
vindacomoimigrantelibanêsparaManaus,alémderevelarascircunstânciasdamortedeseu
tio Emir, irmão de Emilie. Hakim considera o rapaz de Hamburgo, além de amigo, seu
confidente.Assiméapresentadoofotógrafoalemão:
FoiatravésdeDornerqueconheciaprimeirabibliotecadaminhavida.Eraformadaporoito
paredes de livros, que felizmente só conheci anos mais tarde, pois caso contrário teria me
inibidoparasempreohábitodaleituraqueatéentãoadquirira.Suavozeratãogravequanto
seu nome, e falava um português rebuscado, quase sem sotaque e que deixava um nativo
67
desconcertado(...).Atadanumcinturãodecouro,pendiadesuacinturaumacaixapreta;os
queaviamdelongepensavamtratar-sedeumcoldreoucantil,eficavamimpressionadoscom
asuadestrezaaosacardacaixaaHasselbladecorreratrásdeumacenanasruas,dentrodas
casas e igrejas, no porto, nas praças e no meio do rio. Possuía, além disso, uma memória
invejável:todoumpassadoconvividocomaspessoasdacidadeedoseupaíspulsavaatravés
da fala caudalosa de uma voz troante, açoitando o silêncio do quarteirão inteiro. Mas a
memóriaeratambémevocadapormeiodeimagens;elesediziaumperseguidorimplacávelde
“instantesfulgurantesdanaturezahumanaedepaisagenssingularesdanaturezaamazônica”.
(...)DornerfotografouEmirnocentrodocoretodapraçadaPolícia.FoiaúltimafotodeEmir,
umpoucoantesdesuacaminhadasolitáriaqueterminarianocaisdoportoenofundodorio.
AhistóriadesseretratomecontouopróprioDorner,anosdepois,compalavrasmedidas(...)
Numdos nossosúltimos encontros, Dorner relembrou aquela manhã, e me mostrou alguns
cadernoscomanotaçõesquetranscreviamconversascommeupai.(Relato,p.59,60)
OqueDornerrelatadasconversascomopaideHakim,ocasamentocomEmilie,os
lances dos últimos momentos e da trágica morte de Emir, ficam destacados no capítulo
seqüente, também contido entre aspas duplas, indicadoras do relato do fotógrafo. Dorner
refere-se ao pai de Hakim, inominado na narrativa, como um solitário a quem era difícil
arrancar do mutismo, que preferia a reclusão de um quarto ou as horas passadas na loja
Parisiense,ondecomercializavaasquinquilhariasvindasdoSul(comodiziamaosereferirem
aoscentroscomerciaisdosudestebrasileiro).Eranobalcãodaloja,nosmomentosemque
estavadeserta,queseentregavaàsleituras.NaspalavrasdeDorner,
Anfitriãomudo,ascetamesmocercadoporpessoas,eleteriapreferidose evadirnoquarto,
compactuarcomosilênciodasparedesbrancas,e,comolivroempunho(...).Quemovisse
ali, atrás do balcão maciço, com olhar concentrado nas páginas de um livro espesso, bem
podiasuporqueentreaquelehomemeasvitrinasexistiaumabismo.Eumabismotambémo
separavadosdesconhecidos;comestes,eleseportavadeumamaneirasilenciosaoulacônica.
Comigo, era mais indulgente, talvez por eu conhecer Emilie e ter sido amigo de Emir, ou
presenciar,delonge,asuasolidão.(Relato,p.69,70)
Acorrentezaformadapelasvozesqueseentrelaçamnosrelatoscomportaainda,por
meio de Hakim e de Dorner, a história do avô adotivo da narradora, em um providencial
momentodedisposiçãodovelhoparaseretirardomutismoerevelaraofotógrafoalemãoa
históriadasagadeimigrantelibanês.Assim,Dorneraproveitaadisposiçãodovelhoparauma
conversa,“(poisnãopoucasvezeselesentenciouqueosilêncioémaisbeloeconsistenteque
muitaspalavras),e[tentou]sondaralgodoseupassado.Porummomentoele[ovelho]calou,
68
sem deixar depercorrer com os dedos aquase infinita malhade rios, que trai o rigor dos
cartógrafoseincitaoshomensàaventura.”(Relato,p.70)
As reflexões em que mergulham os vários narradores destacados em Relato de um
certo Oriente dão à estrutura da narrativa uma configuração de história-puxa-história, à
maneiradeSherazade,quelutapelamanutençãodavida,contandoasmileumahistóriasnas
noitesqueaaproximavamdamorte.Esseprocedimentosustenta-secommaiorvigornessa
obra,dando-lheotoquepeculiardecolagemdasváriasnarrativasrecolhidaspelanarradora
semnome.
EmumadaspassagensfinaisdoRelatootrabalhofeitoàmão,comtecidoepapel,nos
últimosdiasnaclínica,poderiasertomadocomofigurarepresentativadabuscaempreendida
pelanarradoraporsuaidentidade,emmeioafragmentosepedaçosdevidasrecortadasdas
vozesqueemergiriamdotrabalhodecompilaçãoeescrita.
Nessaépoca,talvezduranteaúltimasemanaquefiqueinaquelelugar,escreviumrelato:não
saberiadizerseconto,novelaoufábula,apenaspalavrasefrasesquenãobuscavamumgênero
ouumaformaliterária.Eumesmaprocureiumtemaquenorteasseanarrativa,mascadafrase
evocavaumassuntodiferente,umaimagemdistintadaanterior,enumaúnicapáginatudose
mesclava(...).Penseiemteenviarumacópia,massemsaberporquerasgueiooriginal,efiz
do papel picado uma colagem; entre a textura de letras e palavras colei os lenços com
bordadosabstratos:amisturadopapelcomotecido,dascorescomopretodatintaecomo
branco do papel, o me desagradou. O desenho acabado não representa nada, mas quem
observacomatençãopodeassociá-lovagamenteaumrostoinforme.Sim,umrostoinforme
ouestilhaçado,talvezumabuscaimpossívelnestedesejosúbitodeviajarparaManausdepois
deumalongaausência.(Relato,p.163)
Em Dois irmãos, Halim representa para Nael o móvel da memória, um impulso à
buscapelosantecedentesdavidanacasadainfância.Éelequemsobressainanarrativacomo
principalrelicáriodaslembrançasdeumavidainteiraequeimprimeumamarcaemrelevoao
queonarradorvaitecendoaolongodoromance.Halimgeraparaonetoofioqueoataráà
vidasolitáriaapartirdaqualproduziráaescritacomoexperiênciacomunicável,cujoterreno
compartilhadoéodacasafamiliar,ondeosdesajustesentreosgêmeos,apaixãoirrefreadade
ZanapeloCaçulaeasrelaçõesdepoderesubserviênciaditadospeladomesticaçãosutildos
nativosmanauensesconduzemasrelaçõesàruína.
69
OpequenoterritóriointeriordeHalimérepassadonanarraçãoque faz aoNaelpor
meiodaslembranças,queexigedamemóriaexímiaprecisãoparaarecuperação,omaisfiel
possível, das imagens do passado. Porém, as imagens do passado são evanescentes, o
conteúdo da memória é representação e, o texto do narrador-autor, interpretação dessas
lembrançasrevisadas.
AcondiçãodeisolamentodeHalimpode-secompararàdosolitáriovivendoemmeio
a pessoas que lhe são caras, mas com as quais não consegue firmar laços suficientemente
profundosparaestabelecerrelaçõesdeinteiracumplicidade.Halimeaesposaposicionam-se
emrelaçãoassimétrica:elamantémsuaprimaziaeseudomíniosobreomaridoeosfilhos–
seus desejos e seus caprichos sempre prevalecem. Zana conduz a ação, Halim detém a
palavra.ÉdabocadeHalimqueonarradorouvegrandeparte,senãoaquasetotalidade,do
material para a construção do relato. Os lances de memória do pai dos gêmeos, suas
impressõessobre suasvivênciasnafamíliaque constituiucom amulherque sempreamou
revelam,aolongodanarrativa,seusdissaboreseinquietações.
ArelaçãodonarradorNaelcomosmembrosdafamíliacomoumagregado,nãofora
tão estreita como com Halim, que o tinha como “filho da casa”, não como “um filho de
ninguém”(Doisirmãos,p.250).Onarradorrevelaquetinhaacessoaointeriordacasaeque
oavôpermitiaquesesentasseparacomeràmesadafamília:
Podiafreqüentarointeriordacasa,sentarnosofácinzentoenascadeirasdepalhadasala.Era
raroeusentaràmesacomosdonosdacasa,maspodiacomeracomidadeles,bebertudo,eles
nãoseimportavam.(...)EunãopodiacomeràmesacomoCaçula.Elequeriaamesasópara
ele,almoçavaejantavaquandotinhavontade.Sozinho.Umdia,euestavaalmoçandoquando
ele se aproximoue deu a ordem: que eusaísse, fosse comer na cozinha.Halimestava por
perto,medisse:“Não,comeaímesmo,essamesaédetodosnós”.(Doisirmãos,p.82,88)
OrelatodeNaeltambémdependiadeimpressõesdeHalimemrelaçãoàesposa,Zana,
quantoaosfilhosgêmeos,YaqubeOmareàfilhamaisnova,Rânia.ParaHalim,lembrarera
doloroso, pois traria à tona experiências amargas sobre a vinda dos filhos, a interferência
70
deles na vida apaixonada do casal e dos conflitos que daí vieram como desdobramentos
surpreendentes,poréminevitáveis.
Para Halim, ter filhos significaria trocar a vida a dois, ardente e apaixonada, pelos
trabalhos e intromissões pelo resto da vida, acreditando que os filhos mudariam os rumos
dessapaixão.Eleconvencia-secadavezmaisdequeosfilhoshaviam“desmanchadoarede”
docasal,haviaminterferidonarelaçãomaisíntimaeapaixonadaqueosenvolviadesdeos
temposdeconquistacomosgazaisdeAbbas:
Quandoosmeninosnasceram,HalimpassoudoismesessempodertocarnocorpodeZana.
Elemecontoucomosofreu:achavaumabsurdooperíododeresguardo,emaisabsurdaainda
a devoção louca da esposa pelo Caçula. (...) Por fim,convencidodequeonascimentodos
filhoshaviainterferidoemsuasnoitesdeamortantoquantoamortedeGalib,lançoumãoda
mesma manha, dos mesmos galanteios que tinha usado quando da morte do sogro.
ReconquistouZana,masdeuadeusaotempoemque se arrepiavamdeprazeremqualquer
cantodacasaoudoquintal.(Doisirmãos,p.68,69)
Certanoite,Halim explodiuem fúriaaoencontraro filhoaninhado na camacom a
mãe,depoisdeteracordadocomumcheirodefumaçanoquarto:
(...)sentiucheirodefumaçaepensouqueomosquiteiroardialentamenteaoladodele.Saltou
da cama e viu o Caçula aninhado no corpo de Zana. Expulsou-o do quarto aos gritos,
acordando todo mundo, acusando Omar de incendiário, enquanto Zana repetia: “Foi um
pesadelo,nossofilhonuncafariaisso”.Discutiramnomeiodanoite,atéqueelesaiudacasa
batendo a porta com fúria. (...) Dormiu duas noites no depósito da loja, não suportava a
presençadofilhonacama,nãosuportavaumaintromissãonoleitoconjugal.(Doisirmãos,p.
70)
Referindo-seaOmar,Halimressente-sedadevoçãoexageradadamulherpelofilhoe
revela sua amargura em relação ao rememorar, preferindo calar-se sobre alguns fatos que
guardavaemseuíntimo.
“Fezosdiabos,oOmar...masnãoquerofalarsobreisso”,disseele,fechandoasmãos.“Medá
raivacomentarcertosepisódios.E,paraumvelhocomoeu,omelhorérecordaroutrascoisas,
tudooquemedeuprazer.Émelhorassim:lembraroquemefazvivermaisumpouco.”Calou
sobreoepisódiodacicatriz.CaloutambémsobreavidadeDomingas.(Doisirmãos,p.71)
Relataonarradorque Halim “não queriaterfilhos;aliás, se dependessedavontade
dele, não teria nenhum. Repetiu isso várias vezes, irritado, mordendo o bico do narguilé.
Podiamviversemchateação,sempreocupação,porqueumcasalenamorado,semfilhos,pode
resistir à penúria e a todas as adversidades.” (Dois irmãos, p. 66). Mesmo depois do
71
nascimentodosfilhos,aindaalimentavapaixãopelaesposaequandoaoportunidadesurgia,
nas visitas que Zana fazia à loja, os dois se entregavam, como nos primeiros anos do
casamento, reabrindo a loja com uma festiva comemoração, liquidando mercadorias
encalhadas.Paraovelhoapaixonado,definitivamente“(...)osfilhoshaviamseintrometidona
vidadeHalim,eelenuncaseconformoucomisso.”(Doisirmãos,p.71)
AoteceranarrativaapartirdosrelatosdeHalim,onarradorvê-sediantedeumafonte
ambíguaemqueoslapsosdamemóriaabremumjogocomainvençãoeaomissão.

Talvezporesquecimento,eleomitiualgumascenasesquisitas,masamemóriainventa,mesmo
quando quer ser fiel ao passado. (...) Desta vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não
queriafalar.Contavaesseeaquelecaso,dosgêmeos,desuavida,deZana,eeujuntavaos
cacosdispersos,tentandorecomporateladopassado.“Certascoisasagentenãodevecontara
ninguém”,disseele,mirandonosmeusolhos.(Doisirmãos,p.90,134)
O narrador imprime na narrativa um movimento que é ditado pela vacilação entre
querer conhecer sua origem e o desejo de saber-se órfão. A hesitação acompanha esse
narrador que no fundo prefere o enigma a defrontar-se com a realidade, pois sabe da
impossibilidadedeencontrarsuaverdadeiraidentidade.SegundoGermanaH.P.deSousa,ao
estudar a construção das vozes narrativas neste romance, o narrador hatouniano não conta
comapossibilidadedeaçãosobreosfatosqueconstataequestiona.Aele,comotestemunha,
restaorelato,nãodailusãosobreumaidentidadeuniforme,massobreasruínasquemarcam
ofimdeumtempoparaafamília.Assim,Naeldependedasvozesalheiasparadarformaao
seuprópriodiscurso.Naspalavrasdaautora
Arelaçãoentreoestatutodonarradortestemunhaeodescentramentodesuaidentidadetêm
umaligaçãoóbviaedireta.Issopodeserdemonstradopelosseguintesfatos:opercursodesse
narrador é elaborado a partir da construção da forma narrativa, ou seja, o relato
memorialístico,noqualumpassadoéreconstituídonatentativadeneleencontrarumlugar
para si mesmo; a tensão entre a impossibilidade desse lugar ser encontrado (visto que o
narrador“presentemente”,nomomentodaescrita,nãooconhece)eodesejodecompreender
o porquê dessa falta de localização, que é responsável pela tensão espácio-temporal da
narrativa,peloprópriofazerliterário,poisareflexão,apossibilidadedesevoltarnotempo,
enfim, a literatura é a única forma de navegar nesse rio caudaloso (e traiçoeiro) que é a
memória.(SOUSA,2001,p.35)
72
AlémdeHalim,Domingastambémexerciapapelfundamentalenquantorelicáriovivo
das experiências passadas. O narrador recorre à memória da mãe revelada no discurso
mostradonorelato.Dependetambémdelaoslancesdosjogosentreotempoeasvozesdo
passado para chegar aos fatos desconhecidos. O narrador reitera, em uma passagem, a
importânciacrucialdeDomingascomodetentoradessecampodelembrançasqueoajudama
construir sua história. A importância do relato da mãe está mais associada ao fato de o
narrador ser ainda criança quando do acontecimento de várias passagens, além de ser ela
testemunhadecenasedeconversasnãopresenciadasporele.
FoiDomingasquemmecontouahistóriadacicatriznorostodeYaqub.Elapensavaqueum
ciuminho relestivesse sido a causa da agressão.Vivia atenta aos movimentos dos gêmeos,
escutavaconversas,rondavaaintimidadedetodos.Domingastinhaessaliberdade,porqueas
refeições da família e obrilho da casadependiam dela. Aminhahistória tambémdepende
dela,Domingas.(...)IssoDomingasmecontou.Masmuitacoisadoqueaconteceueumesmo
vi,porqueenxergueideforaaquelepequenomundo.Sim,deforaeàsvezesdistante.Masfui
oobservadordessejogoepresencieimuitascartadas,atéolancefinal.(Doisirmãos,p.25,29)
Adúvidaplantadapelaprópriamãe,queesconde/revelaapaternidadedeNael,impõe
aeleoterritórioambíguosobreoqualtentamover-seefirmar-se.Oquerealmenteointrigae
queolevaatentarrecuperarainfânciaéjustamenteaânsiapeloconhecimentodesuagênese,
motivando-oaumquestionamentointensodopassado,comonotrechoquesegue:
Eunãosabianadademim,comovimaomundo,deondetinhavindo.Aorigem:asorigens.
Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu
sabia.Minhainfância,semnenhumsinaldaorigem.Écomoesquecerumacriançadentrode
umbarconumriodeserto,atéqueumadasmargensaacolhe.Anosdepois,desconfiei:umdos
gêmeoserameupai.Domingasdisfarçavaquandoeutocavanoassunto;deixava-mecheiode
dúvida,talvezpensandoqueumdiaeupudessedescobriraverdade.(Doisirmãos,p.73)
Háumarelaçãocomopassadoqueseprojetasobaformadebuscaporumaresposta,
porparte donarrador, travandoumdiálogocom oqueestá “palpitando navidados [seus]
antepassados”,poisoquesupostamentesedesenhaparaelecomo“sinaldaorigem”cala-se
nosilênciodamemória,suaedaquelesqueocercam:Halimdizque“certascoisasagente
não deve contar a ninguém” e Domingas, dizia Nael, “disfarçava quando eu tocava no
assunto;deixava-mecheiodedúvida”.
73
Ainquietaçãosobreaorigemtransbordananarrativaedálugaraoconhecimentoda
infânciadeDomingas,acondiçãoservilearelaçãocomZanaeHalim,queaacolheramdo
orfanato.Oconhecimentoquedetémdessafasedavidadamãelheéreveladoporela,em
situaçõesquepropiciamcontatocomelementosativadoresdamemória,fazendocomqueas
lembrançasrelatadasbrotassememformadediscurso.
No trecho a seguir, o narrador descreve um episódio em que Domingas expressa,
envolvidapelavidaexuberantedanaturezaamazônicaaolongodorio Negro(noprimeiro
passeioquefezcomofilho),sualigaçãocomonativamanauaracomolugardenascimentoe
comosedeuarupturacomavidanaaldeia,passandoavivernacidade:
Umavez,nanoitedesábado,enervada,enfadadapelarotina,elaquissairdecasa,dacidade.
Pediu a Zana para passar o domingo fora. A patroa estranhou, mas consentiu, desde que
Domingasnãovoltassetarde.FoiaúnicavezquesaídeManauscomminhamãe.(...)Durante
aviagem,Domingassealegrou,quaseinfantil,donadesuavozedoseucorpo.Sentadana
proa,orostoaosol,parecialivreediziaparamim:“Olhaasbatuíraseasjaçanãs”,apontando
essespássarosquetriscavamaáguaescuraouchapinhavamsobrefolhasdematupá;apontava
as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos aturiás e os jacamins, com uma gritaria
estranha,cortandoembandoocéugrandioso,pesadodenuvens.Minhamãenãoseesquecera
dessespássaros:reconheciaossonseosnomes,emirava,ansiosa,ovastohorizonterioacima,
relembrando o lugar onde nascera (...). “O meu lugar”, lembrou Domingas. (Dois irmãos,
p.73,74)
Com uma história de vida também marcada pelo drama de separações precoces, a
moça perdera o pai muito cedo vivendo a partir daí em um orfanato, onde passou pelos
trabalhoseobrigaçõesreligiosasimpostospelasfreiras.Acondiçãoserviçaljásedelinearana
infância, pois “ajudava as mulheres da vila aralar mandioca ea fazer farinha, cuidavado
irmãomenorenquantoopaitrabalhavanaroça.”(Doisirmãos,p.74).Aoperceberemque
Domingas pretendia fugir do orfanato, as freiras decidiram entregá-la a uma família de
imigrantes,paraZanaeHalim,ondetambémdeveriafazertodasastarefasdomésticas,mas
agoracommaisliberdade.Assim,apequenacunhantãpassouafazerpartedavidadafamília
libanesa.
Naépocaemqueabriramaloja,umafreira,IrmãzinhadeJesus,ofereceu-lhesumaórfã,já
batizadaealfabetizada.Domingas,umabelezadecunhantã,cresceunosfundosdacasa,onde
haviadoisquartos,separadosporárvoresepalmeiras.“Umameninamirradaquechegoucom
74
acabeçacheiadepiolhoserezascristãs”,lembrouHalim.“Andavadescalçaetomavabênção
da gente. Parecia uma menina de boas maneiras e bom humor: nem melancólica, nem
apresentada.Duranteumtempinho,elanosdeuumtrabalhodanado,masZanagostoudela.”
(Doisirmãos,p.64)
Halim e Domingas representam, portanto, os narradores que detém um saber que é
compartilhado estando inseridos emum territóriocomum aodo ouvinte,a casa familiar, o
lugar da infância do narrador. Como mais velhos, possuem experiências de vida como
verdadeirostesourosdesabedoria,àesperadeumouvinteatentoeciosopelaconstruçãoda
história de sua vida. O tempo da memória é antes de tudo, o tempo da experiência, da
consolidaçãodesaberescolhidosaolongodavida.
Destemodo,hámuitomaislapsosquecertezasemrelaçãoaoconteúdorelatado.Háo
lapso temporal que alimenta o esquecimento e há a invenção, que alinhava a tessitura da
narrativa. Assim, não há passagem amena dessas experiências relatadas por Halim e
Domingas,poisentreoqueélembradoeoqueseesquece,hálacunasquetraçamopercurso
entreaorigem(reveladoradaidentidade)eaderiva.
Nesseponto,otioHakimdoRelatoune-seaessesdois,porseravozpreponderante
(comoporta-voz)acatalisarosdiscursosdosoutrosnarradores,comojávimos.Porém,oque
o distingue do avô e da mãe de Nael é o fato de ter optado pelo distanciamento, por
determinadotempo,doconvíviofamiliar.Hakimretomaopassadoaoenfrentaradordiante
damortedamãe,nomesmodiaemquedesembarcaemManaus,vindodoSul,paraondefora
aosvinteanosdeidade.Nestepontodavida,Hakimreúneaangústiadoperíododeausência
ao turbilhão de lembranças que guarda de Emilie e seus mistérios. Há também aí lapsos
nutrindooesquecimentoedandovazãoàimaginação.Osnarradoreshatounianoslançammão
dessesarquivosvivos,cravandoocinzelnavelhasuperfíciedessasseringueirassimbólicas,
fazendodestilaraseivaquenutresuasnarrativas.
Háumamatéria-primaconstituídapelaexperiência,noatodenarrar,quealimentao
trabalho artesanal de tecelagem das malhas do passado. Como forma de materializar seu
75
passadoederecuperaradignidade,Domingaslança-seaotrabalho artístico;suadignidade
parece projetar-se para outro tipo de registro da memória, esculpindo seus bichinhos
amazônicos em pedaços de madeira típica do lugar. No fim da vida, falta-lhe força para
manusearafaquinha,usadanotrabalhoartístico.Otrabalhodearte,paraDomingas,parece
serofioquesustentaaesperançadeliberdade,aomenosnamemóriaquepreservadeseu
lugardeorigem.Osbichosesculpidossãocriaturassuas,feitaspelasprópriasmãos,nãosão
projetosdosoutrosaelaimpostospeloslaçosdasubserviênciasutil.Assimrelataonarrador
sobreosúltimosmomentosdavidadamãe:
EuviaDomingasesmorecer,cadavezmaisapáticaaoritmodacasa,indiferenteàsorquídeas
que antes borrifava com delicadeza, aos pássaros que contemplava nas copas e palmas e
depoisesculpia.Asmãosmalconseguiamtirarlascasdamadeiradura,eelanemseanimavaa
fazertrançadoscomfiosdepalmeira.(...)Osbichinhosesculpidosemmuirapirangaestavam
arrumadosnaprateleira.Lustrados,luziamaliospássaroseasserpentes.Obestiáriodeminha
mãe:miniaturasqueasmãosdelahaviamforjadodurantenoitesenoitesàluzdeumaladim.
As asas finas de um saracuá, o pássaro mais belo, empoleirado num galho de verdade,
enterradonumabaciadelatão.Asasbemabertas,peitoesguio,bicoparaoalto,avequedeseja
voar.Todaafibraeoímpetodaminhamãetinhamservidoaosoutros.(Doisirmãos,p.239,
244)
Retomandoosprincipaisaspectos abordadosnestecapítulo,vimosqueasnarrativas
aquiestudadassãoatravessadasporvozes.Hávozesqueprocuramrelataroqueviverame
outras que relatam o que ouviram de outros. Há, no fundo desses “falares”, um elemento
importanteparaaexposiçãodasmemórias,queéotestemunho.Porém,comovimos,não
sóotestemunhodesupostosfatosocorridos,mastambémaqueleformadoporumacorrenteza
porondefluiaimaginação.
À medida que os narradores submetem lembranças em relação dialógica com as
lembranças de outras testemunhas, a matéria dessas memórias vai adquirindo solidez,
porquanto “se assim não fosse, talvez nossas lembranças deslizassem para a ilusão e nos
deixassem em dúvida, o que é comum, quando nos dedicamos a pesquisar lembranças
remotas.”(BOSI,1987,p.330)
76
Diantedisso,anarrativadopassadofaz-sepeloentrelaçamentodemuitaslembranças,
quedeixam deseroriginaisà medidaquese inspiramemconversascomos outros,dando
lugaraumaheterogeneidadediscursivaenriquecidaporexperiênciasdeváriospersonagens
participantes da vida desses narradores dos romances. Assim, as lembranças da infância
podemserconstruídaspor
(...) muitas recordações que incorporamos ao nosso passado [que] não são nossas:
simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e depois lembradas por nós. (...) É
preciso reconhecer que muitas de nossas lembranças, ou mesmo de nossas idéias, não são
originais:foraminspiradasnasconversascomosoutros.Comocorrerdotempo,elaspassam
a ter uma história dentro da gente, acompanham nossa vida e são enriquecidas por
experiênciaseembates.(BOSI,1987,p.331–grifodaautora)
Destemodo,oquesetemnosromancesemestudoéumentrelaçamentodehistórias
dopassadoemrelaçãodialógica,comoveremosnocapítulo aseguir.Há,sim,umconflito
entre o tempo e a memória e dessa memória surge um descompasso com os fatos que
persistem como enigmas, instaurando um campo fértil para a ficção, para o trabalho da
imaginação. Esse fio maleável da narrativa faz oscilar as passagens relatadas ligadas ao
passadoimpondoumjogoentreotempoeosfatos,perpassadospelasinvestidasdamemória.
Assim,orememorardecadaumdosnarradoresestáimbuídodeumamescladeafetividade,
depaixão,deressentimentosedeincertezas.
CAPÍTULOIII
78
ENTREVOZESEREMANSOS
OsnarradoresdashistóriasdeHatoum,nosdoisromancesanalisados,comojávimos,
compartilham experiências marcantes em torno da busca de uma infância distante. Essa
infância,gravadacomoumtextonopalimpsestodamemóriaquesubsisteparaacomposição
do tecido narrativo, é como se fosse passada a limpo na tentativa empreendida por esses
narradoresdecompreenderemsuasorigens,suasidentidades.Otextodopassadoapresenta-
se,portanto,comotextorasurado,raspadopelotempo,masquepermanececomotraçoquese
traduz,ousedeixatraduzir,nasuperfíciedanarrativa,comoumaconfluênciadecitações.
Nesse sentido, há umatensão pendular percebida na estreita relação entre espaço e
tempo delineada, por um lado, pelas contingências da memória em relação ao
presente/passadoe,poroutro,pelanoçãodeterritórioemqueseinterpenetramosvalorese
saberesdosnativosmanauarasedosimigranteslibaneses,quedividemomesmoespaçoda
Manausficcionaldashistóriashatounianas.
Assim,asnarrativassãoerigidaspelamultiplicidadedevozesquerepresentamesses
valores, seja regida pela voz da narradora inominada que paira sobre todo o processo do
narrar do Relato de um certo Oriente, seja pela escritura como procedimento eleito pelo
narradordeDoisirmãos,ambosembuscadeexplicaçõessobresuagênese.
79
Nopercursodessabuscaacasafamiliarsimbolizaaespacializaçãodamemória,das
vivênciastraduzidasno“coraldevozesdispersas”,aqueanarradoradoRelatorefere,eaos
dramáticos relatos de Halim e Domingas ao narrador de Dois irmãos. Assim, o que esses
narradoresviveramebuscamrecuperarestáguardadonointeriordascasasdainfânciae,no
plano subjetivo, no interior das memórias de si e daqueles que se esvaem ao longo da
narrativa.
Essasvozesrevelamsobváriasperspectivasasverdades”buscadaspelosnarradores.
Sãovozesquesósãoaudíveisemsituaçãodecomunicação,emprocessodialógico(tomando
o postulado de Bakhtin), no engendramento criativo do texto, tal como sublinha Irene A.
Machado,dizendoque“éprecisoouviropronunciamentodohomemdosubsoloapartirdo
discurso queele reproduz deseus interlocutores,porque ambosfalam, discutemem tempo
presente – o presente real do processo criativo.” (MACHADO, 1995, p. 134). Esses
interlocutores, no caso dos romances, são os vários narradores (a que chamo
pseudonarradores),cujasvozessão“audíveis”notextoenquantoreproduçãodediscurso.Os
narradores principais (Nael e a narradora inominada) tecem as narrativas a partir desses
relatos,ouseja,diantedoesquecimentodepassagensdainfância,necessitamdamanifestação
daslembrançasefetuadapelotrabalhodamemóriadeseusinterlocutores.
De acordo com Bakhtin, a base do dialogismo está na “lei do posicionamento”
segundoaqualopontodevisãoemrelaçãoaumobjeto,sobreoqualincidemfocalizações
simultâneas,determinaasdiferentespercepçõeseinterpretaçõesdirigidasaele.Transpondo
essaleiparaaanáliseestética,Bakhtinfundamentaoconceitododialogismoedasrelações
discursivasinternasdoromance.IreneA.Machadovemesclarecerdizendoque
ParaBakhtin,apercepçãohumanaécomandadaporumaleidoposicionamentoquedetermina
o prisma do campo visual de focalização. (...) não só o conceito de dialogismo enquanto
sistemateórico,comotambémosaspectosgeraisdateoriadoromancedeBakhtinorientados
pela metalingüística, mostram-se impregnados dessa nova postura crítica. Tanto a relação
entre o autor e seus personagens, como a autonomia que os personagens conquistam com
relaçãoaodiscursodonarrador,foramdefinidosporBakhtinapartirdaleidoposicionamento
80
e das relaçõesde tempo e espaçoque ela pressupõe. (MACHADO,1995, p. 37 – grifo da
autora)
Tomocomopontodepartida,paraaanálisedasvozesnosdoisromances,ascasasdos
imigrantes libaneses, onde crescem os narradores como filhos agregados, e onde tudo
acontececomonúcleocentraldosenredos.Ascenasiniciaisdasnarrativasprojetamoponto
devistadessesnarradores,comoumpequenofioquedespontadonovelodamemóriaquevai
se desenrolar. É interessante notar, ainda, que o percurso escolhido pelos narradores para
contarahistóriademonstraumaperspectivaparticularizada,poiscadaumtemummodode
olharopassadoedearquitetareconstruiranarrativa.
Consideremos que para o trabalho da memória confluem as imagens e os locais
registradosnointeriordamentebemcomoorelatoquetranspõeessasimagensemformade
discurso; tem-se, assim, a presentificação do passado (imagens) que se dá pela voz
(linguagem)evocandooconjuntoconstituintedessasimagenspormeiodegestosepalavras.
Certamentequeessasduasinstânciasdacomunicação,agestualeavocal,estãomais
ligadas à oralidade, pois requer a presença ostensiva dos interlocutores no momento da
realização do fato discursivo. Esse aspecto também é valorizado pelo autor russo, pois “o
dialogismo se constitui, assim, também pelo não-dito, o contexto extraverbal que é uma
realizaçãoformadaapartirdeumaoutrafocalização.”,conformeapontaMachado(1995,p.
39).Destemodo, junta-se,àspoucas lembranças dopassado,oconteúdodos relatosque é
dadoaconhecerpelosnarradoresprincipaisaocitaremaquiloqueouviram. Os gestoseas
palavrasfaladascedem lugaràpalavraescritanotexto das memóriasnasnarrativas.Neste
ponto,épertinenteareflexãodeIreneAMachado:
Nãosepodedeixardeconsiderarosmuitoselementosquenosremetemàestéticadacriação
verbal de Bakhtin. O conceito de palavra poética como memória vocalizada e,
conseqüentemente,comocitação,sereportaàteoriadodiscursocitado,mediadopelodiscurso
interior.Amemóriacomoespaçovirtualdatradiçãodimensionaanoçãodediscursointerior
pleno de palavras, mesmo levando em consideração a distinção de tradição como espaço
coletivoediscursointeriorcomoespaçoindividual,emboradialógico.(MACHADO,1995,p.
221)
81
DeacordocomessepostuladoeretomandooepisódiodeSimônides
1
,amemórialiga-
se intimamente ao espaço onde ocorreram os fatos rememorados. Enquanto voz, ou seja,
como palavra poética,a memóriamanifesta-se como registro discursivo deimagens.Neste
sentido,amemóriaremetetantoaoespaçoindividualquantoaocoletivo.Asaladobanquete
transformadaemruínasrepresentaumespaçocoletivoemqueváriasaçõesocorriam;apósa
destruiçãodolocal,ascenasdessasaçõespassamaserimagensquepoderãoserrecuperadas
somente por meio da memória. Como única testemunha do passado, mesmo que de um
passadoimediatamentepróximoaopresente,opoetadetémachavedeentradanesseaposento
por meio da técnica de localização dos objetos e de pessoas no espaço rememorado. Essa
chaveencontra-senointeriordoespaçoindividualdessatestemunhaque,apriori,podeser
tãofielaopassadoquantoseupoderdelembrarpermitir,podendo,inclusive,imaginar(criar
imagens) no ato de recomposição dos fatos. Neste ponto, as imagens da memória
transformam-seemdiscurso,àmedidaqueolembrareoesquecerfazemanarraçãooscilar
obscurecendoaorigemdorelato,emqueoindividualeocoletivosãoapenasmemóriasque
serelacionam.
Analisando as cenas de abertura sob tal perspectiva, há uma operação metonímica,
maisperceptívelemDoisirmãos,emqueasduaspáginasiniciaiscondensamumasíntesedos
dramasaseremreveladosaolongodoromance,comovimosnaanálisedacena-prefácioem
capítulo anterior. Nessas primeiras páginas fica sinalizada a relação do narrador com a
matriarca Zana que, no fim da vida, simboliza a ruína da própria família. A solidão da
matriarcaeaangústiafaceàconvivênciaimpossívelentreosdoisirmãosgêmeos,aausência
marcada pela morte do marido e do pai, a casa empoeirada, prestes a ser entregue ao
esquecimento,tudoissoindicaa confluênciadeelementosquesedesdobrarãoaolongoda

1
Retomo aqui o que já expus em capítulo anterior (cap. I, 1.1) sobre a concepção de memória visual e à
invençãodamnemotécnicaatribuídaaopoetagregoSimônidesdeCeos.
82
escritura,orquestradapelotrabalhodamemória,dasvozesrequisitadaspelonarradorparaa
composiçãodomosaicodiscursivo.
JánoRelatodeumcertoOrienteoprimeirocapítuloabre-sesobosignodaincerteza,
doindefinido,doenigmaquetambémpercorre,comomarcaprofunda,todaanarrativa.No
Relatonãoháumtextopreliminarqueantecedeoprimeirocapítulo,comoocorreno outro
romance,porémasquatroprimeiraspáginas(9a12)abremasportasparaopassadobuscado
pelanarradora.Seuretornoàcasadainfânciaindicaaretomadadessepassadoquesedáa
conhecer por meio das histórias que passam de um contar a outro, de boca em boca,
instaurando uma “tagarelice”, cujas vozes particularizadas dos cinco narradores
(pseudonarradores)envolvidossãoaudíveisnoremansodotexto,nodiscursoqueanarradora
procuraordenar,tratandoderelatoselembrançasembaralhadas.
Acasadafamíliaimigranteéumpontoemcomumentreosdoisromances,lugarde
vivência das experiências desses narradores e, ao mesmo tempo, ponto de observação
privilegiadonopercursodamemóriaemdireçãoàinfância.Acasadafamílialibanesafigura
comoolugardeadoçãodessaspersonagensagregadasquebuscamcompreenderashistóriase
conhecer as origens, e que fazem diferentes opções para revelar suas visões de mundo,
conformereforçaMariadaLuzP.Cristo,emseuestudosobreaobradeHatoum:
Os dois romances de Hatoum têm também em comum a questão dos agregados. (...) Uma
grandetensãonosromancesgiraemtorno destes personagens, masporviasdiferentes.No
Relato,anarradoraéumaagregadaquenãosepermiteescrever,mascolhertestemunhos.Jáo
narradordeDoisirmãospertenceàfamília masseulugarédeagregadotambém,opta por
escrever.(CRISTO,2005,p.144)
Há, portanto, uma noção de território intrinsecamente explorada pelo autor,
demarcandoasperspectivasdosdiscursosemrelaçãodialógicanopanoramamescladodesses
romances.Esseaspecto passaatersignificadosubstancial sevistodentro da concepçãode
transitoriedadedasfronteirasqueseapresentam,nacontemporaneidade,muitomaisporosase
intercambiantes. Esses aspectos ligados à circunscrição de território e identidade serão
exploradosnopróximocapítulo;porhora,atendendoaosobjetivosaquidelineados,focalizoa
83
questãodoespaçoligadoaoâmbitodiscursivo,tomandocomopontoreferencialascasasdas
famíliaseseuentorno,ondeseencenamasjámencionadasrelações.
3.1Oespaçodasvozes
ParaanarradorainominadadoRelato,queretornaaManausapóslongaausência,a
casaondecresceracomoirmão,destinatáriodistanteaquementregaomaterialrecolhidodos
relatos,representaolugardainfânciaondeseinscreveotextodesuaorigem,rasuradopelo
tempo.Em Doisirmãos,a casaabandonada eaangústiade Zanafrente atantasausências
ensejamotrabalhomemorialistadonarradorque,mesmopertencendoàfamília,cresceraà
margem, vivendo com a mãe no quartinho dos fundos, de onde observava os embates
familiares.
Nas cenas que abrem as narrativas esboça-se o contexto em que se inserem esses
narradores, pois a casa da infância abriga suas memórias individuais e as lembranças dos
familiares e amigos que compõem as diferentes perspectivas que engendram o discurso.
Portanto,oconhecimentodopassadodessesnarradoresnãodependesomentedeseusrelatos
individuais,cujasversõessedariamaconhecerapenasporsuasprópriasperspectivas.Édo
interior dessas casasdainfância, comoespaço coletivo, quebrotam asvozes daquelesque
estãodiretamenteligadosaosnarradores.
Comovimosnocapítuloanterior,cadapersonagemenvolvidonosváriosrelatosfeitos
aos narradores toma seu turno discursivo e é valorizado como detentor de uma visão de
mundoparticularizadaeintimamenteligadaàhistóriadosnarradoresprincipais.Comoforma
de representação do passado, o discurso dos narradores cresce em importância, pois se
relacionadialogicamentecomodiscursodosautores(nocaso,anarradorasemnomeeNael,
comoordenadoresdosrelatos).Nessesentido,aocontarcomoutrosfalares,outrashistóriase
84
comasmuitasmemórias,otextodeHatoumémarcadoporumprocessoemqueasmuitas
vozes colaboram para a construção das narrativas. Esse multivocalismo leva a pensar no
princípiopolifônicoestudadoporBakhtin.
Oprincípiodapolifoniadiscursiva,largamenteexploradaporBakhtin,éexpressoem
seuestudosobreaprosaliteráriadeDostoiévski,autorrussoqueseconsagroupelautilização
doprocessoderepresentaçãooral,tendocomofocoalinguagemdohomemquefalaeque
provoca a fala do outro, instaurando o debate de idéias. Bakhtin aponta na obra de
Dostoiévski, entre outros elementos, a importância do diálogo como plano de expressão
comunicativa do “homem no homem”, como meio de obter, da visão do outro, uma
representaçãodesimesmo.
Dominar o homem interior, ver e entendê-lo é impossível fazendo dele objeto de análise
neutraindiferente,assimcomonão sepodedominá-lofundindo-secomele,penetrandoem
seuíntimo.Podemosfocalizá-loepodemosrevelá-lo–oumelhor,podemosforçá-loarevelar-
seasimesmo–somenteatravésdacomunicaçãocomele,porviadialógica.Representaro
homeminteriorcomooentendiaDostoiévskisóépossívelrepresentandoacomunicaçãodele
comumoutro.Somentenacomunicação,nainteraçãodohomemcomohomemrevela-seo
“homemnohomem”paraoutrosouparasimesmo.(BAKHTIN,2005,p.256)
ÉnotóriaautilizaçãodoprocessodialógicoemambososromancesdeHatoumcomo
via percorrida entre os personagens, ou seja, entre os narradores principais e seus
interlocutores.Contudo, acomunicação representada quese emum texto de memórias,
hesitaentreolembrareoesquecerelida,ainda,comasintermitênciasdaimaginação.
A “interação do homem com o homem” é modulada, ou melhor, moldada pelo
discursodaúnicavozqueorquestraasdemaisvozesdosrelatos.Assim,aquestãopolifônica
– vista por Bakhtin como debate de idéias entre as várias vozes no campo discursivo –
subordina-seàmemóriamonovalente,porcausadapresençadessaespéciedefiltro,nafigura
dosnarradoresprincipais.
Sehánoromancepolifônicoumembatedeidéiasemqueosinterlocutorespolemizam
entresiparaqueasubjetividadedonarradorquecentralizaodiscursosejaconhecida,esse
aspecto da polifonia em Hatoum não se sustenta, visto que as vozes que se expõem nas
85
narrativaspassam,emprimeiramão,porumtratamentomodalizadorporpartedosnarradores.
Estes,nafeituradoenredo,trabalhammuitomaiscomasconseqüênciasdoesquecimentoem
relaçãoàmemóriaquelhesdáfeição.Oque,noentanto,nãosepodenegaréapresençado
dialogismo,comooentendeBakhtin.IreneA.Machadoexplicaque
Parao teórico russo, a definiçãodo romance enquanto gêneropassa,necessariamente, pelo
confrontoentredoissistemasdesignos:falaeescritura.Aliás,nolimitedestatensãoéque
Bakhtinsituaanoçãodedialogismocomofenômenoelementardodiscursoromanescoede
todarelaçãoqueohomemmantémcomomundoatravésdalinguagem.(MACHADO,1995,
p.48–grifodaautora)
Oqueocorreemabundância,principalmentenoRelato,éumencadeamentodefalares
emquecadapseudonarradorexternaoespaçoindividualdamemória,citandoodiscursode
outremecedendolugarparaopróximonarrador,eassimsucessivamente,noespaçocoletivo,
queéacasadainfância.
No Relato de um certo Oriente, a técnica de narrar mostra-se particularmente
intrigante e ricamente enigmática. A começar pelo mistério emtorno de quemnarra e seu
nome. Somente na terceirapágina danarrativa é que o leitortoma conhecimentode quea
pessoaquenarra é umamulher:“Fiqueiintrigada
com esse desenhoquetantodestoavada
decoraçãosuntuosaque ocercava(...)”(Relato, p.11–grifomeu).É possívelidentificara
narradoraapenaspormeiodavozqueflutuasobreanarrativa,poispermanece,otempotodo,
inominada.Ninguémachamapelonomeeestetraçodesuaidentidadeficaocultoaoleitor,
pois mais importante que um nome, que individualizando dá uma “marca” identitária, a
construção dessa narradora faz-se sobre um projeto discursivo, cujo esboço arquitetônico
apresenta-senosprimeirosmomentosdanarrativa.
Oretornodanarradoratemumamotivaçãoespecífica:recolherosrelatosqueseligam
àexploraçãodopassadoejuntá-losàslembranças,cujodestinatáriocertoéoirmãoquevive
emBarcelona.Essamotivaçãoéconseqüênciaevidentedoesquecimentoimpostopelotempo
epeladistânciaemrelaçãoàinfânciaeaoespaçodessaexperiência.
86
Aprimeirafrasedocapítuloinicial,“Quandoabriosolhos(...)”,marcananarrativa
em primeirapessoa aposição deum narrador-testemunha, quevê osacontecimentos àsua
volta,poisestápresentenocontextodasõesquepassaanarrar.Destemodo,opontode
observaçãoé,aomesmotempo,opontodecontatoentreodiscursodonarradoreaquiloque
observaelheservirácomomatériadorelato.Noentanto,nemtodososfatossãoconhecidos
ou foram vivenciados pela narradora, por isso o seu projeto de montagem de um mosaico
discursivo a partir dos depoimentos colhidos dos vários narradores envolvidos no relato.
Vejamos,apartirdaslinhasiniciaisdanarrativa,oprimeirocontatodessavozquenarracom
oespaçoeotempoque,paraoleitor,servirãodeentradaparaoenredo.
Quandoabriosolhos,viovultodeumamulhereodeumacriança.Asduasfigurasestavam
inertesdiantedemim,eaclaridadeindecisadamanhãnubladadevolviaosdoiscorposao
sono e ao cansaço de uma noite mal dormida. Sem perceber, tinha me afastado do lugar
escolhidoparadormireingressadonumaespéciedegrutavegetal,entreoglobodeluzeo
caramanchãoquedáacessoaosfundosdacasa.(Relato,p.9)
Aimagemdescritaocorrenojardim,espaçoexternodareferidacasa,oladodefora,
umaextensãodointeriordacasa.Ofatodeanarradoradepararcomovultoeemseguida
retomarosono“deumanoitemaldormida”,dáaidéiadequeestádiantedeumaimagemque
oscilaentreo“real”eoimaginado,estabelecendoumatênuelinhafronteiriçaentreosonoea
vigília,oqueprenunciaadelicadafronteiraentrealembrançaeoesquecimento;momento
sutilemqueanarradorapassadeumestadodesonolência,ligadoànoiteeaoesquecimento,
paraumestadodelucidez,deiluminaçãodiáfanada“claridadeindecisadamanhãnublada”,
imagemmuitopróximadolembrarquehesitadiantedoesquecimento.
Na expressão “claridade indecisa da manhã nublada”, os atributos dados à manhã
indicam,poranalogia,aturvaçãodoolhardanarradoradiantedovultodasfigurascomquese
deparaaoabrirosolhos.Atéestemomento,nasduasprimeirasginasdotexto,aindanãoé
possível definir se a voz de quem narra é masculina ou feminina. O mistério é reforçado
quandoseocultadoleitor,adiandoumpoucomais,arevelaçãodeumaidentificaçãonesse
sentido, gerando um clima de suspense e, até certo ponto, uma sensação de desconforto.
87
Desconfortoproposital,poisasindagaçõesquecomeçamapairardesdeasprimeiraslinhasda
narrativavãoganhandoespaçonamentedoleitorjuntamentecomasinquietaçõesexpressas
pelavozquenarra.
Para a narradora, o rosto da mulher que permanece inerte não ajuda a recobrar o
passado,poisdeclara:“Euprocurava reconhecerorostodaquela mulher.Talvezemalgum
lugar da infância tivesse convivido com ela, mas não encontrei nenhum traço familiar,
nenhum sinal que acenasse ao passado. Disse-lhe quem eu era, quando tinha chegado, e
pergunteionomedela.”(Relato,p.9)
Aoentrarnacasa,anarradora,conduzidapelamulherqueapareceracomovultoeque
seapresentaracomo“filhadeAnastáciaeumadasafilhadasdeEmilie”(Relato,p.10),passa
agoraà descriçãodetalhada doambiente interno.A atmosferados aposentos,os objetos,o
aromadasfrutas,alimpezaimpecáveldosmóveisfazviràtona,revigorando,ostraçosdo
passadoimpregnandoosrecantosdasalaemquepermaneciamguardadoseconservadosos
pertencesdeumafamíliaquesedesfizera.Emmeioaos“tapetesdeKasheredeIsfahan”e
“cortinasdeveludovermelho”,umcantodeumaparedeatraioolhar.
Naquelecantodaparede,umpedaçodepapelmechamouaatenção.Pareciaorabiscodeuma
criançafixadonaparede,apoucomaisdeummetrodochão;delonge,oquadradocolorido
perdia-seentrevasosdecristaldaBohemiaeconsolosrecapeadosdeônix.Aoobservá-lode
perto,noteiqueasduasmanchasdecoreseramformadaspormilestrias,comominúsculos
afluentes de duas faixas de água de distintos matizes; uma figura franzina, composta de
poucostraços,remavanumacanoaquebempodiaestardentroouforad’água.Incertotambém
parecia o seu rumo, porque nada no desenho dava sentido ao movimento da canoa. E o
continenteouohorizontepareciamestarforadoquadradodepapel.(Relato,p.10)
O romance inicia-se sob o signo da incerteza, da indefinição, como uma imagem
enigmática que se vai decifrando aos poucos aos olhos do leitor. Todos os elementos da
narrativaestãopresentesnoprimeirocapítulo,mesmoqueaindanãoperfeitamenteexplícitos
edelineados.SegundoMarleineToledo,estudiosadaobradeMiltonHatoum,
Não se pode esquecer que Hatoum é arquiteto. Um arquitetofaz primeiro o desenho meio
genéricodafuturaconstruçãoedepoisvaipuxandoosdetalhes.ÉassimaestruturadoRelato,
seuestilo.Enquantofalaanarradora,noprimeirocapítulo,primeiraesegundaseções,Hatoum
estáapresentandooesboçodaobra,que,aumaprimeiraleitura,nãoénemumpoucoclaro–
88
exatamente como um primeiro desenho arquitetônico. Mas, como num primeiro esboço
arquitetônico,estátudolá,emgerme;faltaapenasaexplicitação.(TOLEDO,2006,p.127)
A postura dialógica da narradora é reconhecida, inicialmente, ao referir-se ao
destinatáriodorelato,seuirmão,motivadordotrabalhoinquiridordopassado.Maisadiante,
esse dialogismo estabelece-se claramente, ao requisitar os vários relatos dando voz aos
narradores do passado familiar com suas perspectivas e modos de transmitir suas
experiências.
Quissaberquandonossamãetinhaviajado,masnãotoqueinoassunto.Apenasdissequeia
sairparavisitarEmilie.(...)Jáeramquasesetehorasquandoresolvisairdecasa.Retireido
alforjeocaderno,ogravadoreascartasquemeenviastedaEspanha.(...)Antesdesairpara
reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o
Mediterrâneo,talvezsentadoemalgumbancodapraçadoDiamante,quemsabepensandoem
mim,naminha passagempelo espaço da nossainfância:cidadeimaginária,fundadanuma
manhãde1954...(Relato,p.11,12–grifosmeus)
Éanarradoraquevaidesvendandoosmistériosdopassadoàmedidaqueexploraa
casada mãebiológica, emcujo jardim passara anoite desua chegada aManaus. Há uma
trajetóriaquepassadojardimaodesenhointrigantequeafaz remeteraopassado,entreos
traçosindefinidosdopersonageminfantilremandoacanoa,quetantopodeestar dentroou
foradaágua;passandodovultodafiguradamulheredacriança,diantedoolharvacilante
entreosonoeavigília,àconversaquasemudacomafilhadaempregadaAnastáciaSocorro–
maisuma,entretantasafilhadasdeEmilie,cujacondiçãodeagregadaaidentificacomada
própria narradora. A marca da ambigüidade apresenta-se neste modo de identificação de
elementosqueespelhamofatoinexoráveldequeessesagregados,osnarradoresdeHatoum,
estãoaomesmotempodentroeforadacasaedafamília.
Aoserindagadapelanarradorasobreavidadacidadeesobreacriançaquetransitava
pela casa, a empregada apenas balbucia algo e recolhe-se “novamente no seu mutismo
ancestral”. Ao mencionar Emilie, a mulher abre-se ao diálogo, porém sua fala é expressa
textualmenteemduaspequenasréplicasqueveremosaseguir.
Passeientãoaindagar-lhesobreavidadacidade,seacriançaerasuafilhaouenteada,masao
bombardeiodeperguntaselasoltavaumgrunhidoeconfinava-senovamentenoseumutismo
89
ancestral. Quis saber quando nossa mãe tinha viajado, mas não toquei no assunto. Apenas
dissequeiasairparavisitarEmilie.Pelaprimeiravezamulher meencaroucomumolhar
serenoedemorado;eenfimpronunciouasfrasesmaislongasdabrevetemporadaquepassei
nacidade.–Levaumpoucodemeldointeriorparaela,éoquemaisgosta–disseenquanto
davacordanorelógiodeparede.–Emiliejáestáacordada?–perguntei.–Dizemquetuaavó
hámuitotemponãodorme;elasonhadiaenoitecontigo,comteuirmãoecomospeixesque
vaicomprardemanhãzinhanomercado;aessahorajádeveestardevoltaparaconversarcom
osanimais.(Relato,p.11)
Depois,asdemaisinformaçõesrevelam-seindiretamentepelanarradoraquesintetiza
oteordodiscursodaempregada.
Aconversacomosanimais,ossonhos de Emilie, opasseioaomercadonahoraqueosol
revela tantos matizes do verde e ilumina a lâmina escura do rio. Na fala da mulher que
permaneceradiantedemim,haviaumapartedavidapassada,uminfernodelembranças,um
mundoparalisadoàesperademovimento.Sim,comcertezaEmiliejálhehaviacontadoalgoa
nossorespeito.AmulhersabiaqueéramosirmãosequeEmilenoshaviaadotado.(Relato,p.11)
A posição da narradora é a de quem não conhece todos os fatos, não é onisciente.
Necessitafirmar-senoconhecimentoqueosoutrostêmsobreosfatosedaquiloqueretêmna
memória. Deste modo, o trabalho da memória diz respeito muito mais a esses
pseudonarradoresqueànarradorainominadapropriamente.Nestepontoéqueavoltaàcasa
dainfânciaétambémumavoltamemorialistaparaaconstruçãoidentitária.
Essaconstruçãofaz-seaolongodanarrativa,poisénodiscursoquesedáaconhecero
sujeitoeosacontecimentosligadosaele.Énoprocessodialógico,estabelecidoentreasvárias
vozesqueemergemdessacasadainfância,queanarradorasemnomevaimontandoaspeças
queaospoucosvaitecerateladesuaprópriafeição.Esseprocessodemontagememmosaico
ficaexpressosimbolicamentenaspalavrasdanarradoraaolembrar-sedosinúmerostrabalhos
manuaisquefazianaclínicaondeforainternada,supostamentepelaprópriamãe.Durantesua
permanêncianaclínica,tentaraescreverumrelato,massuatentativafrustradaresultouemum
amontoadodepapéispicadoscoladosapedaçosdetecidosrasgados.Assimdizanarradora:
Oquartoeraolugarprivilegiadodasolidão.Ali,aprendiabordar.(...)Emcertosmomentos
danoite,sobretudonashorasdeinsônia,arrisqueiváriasviagens,todasimaginárias:viagens
da memória. (...) Nessa época, talvez durante a última semana que fiquei naquele lugar,
escreviumrelato:nãosaberiadizerseconto,novelaoufábula,apenaspalavrasefrasesque
nãobuscavamumgêneroouumaformaliterária.(...)Penseiemteenviarumacópia,massem
saberporquerasgueiooriginal,efizdopapelpicadoumacolagem;entreatexturadeletrase
palavrascoleioslençoscombordadosabstratos:amisturadopapelcomotecido,dascores
90
comopretodatintaecomobrancodopapel,nãomedesagradou.Odesenhoacabadonão
representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um rosto
informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível neste desejo
súbitodeviajarparaManausdepoisdeumalongaausência.(Relato,p.162,163)
Essa colagem dos fragmentos de diferentes materiais aponta para uma tentativa de
fazerconfluir em umúnico materialpedaçosde outrashistórias, destoantes,resultando em
uma composição fragmentada, emque os elementos unem-se para formar um todo, porém
essenovo elemento não pode sertido como inteiriço.Para tornar mais claro,esse original
rasgadoporela seria o relato daslembranças criadasem sua viagem imaginária, um texto
julgado por ela desacreditável. O “rosto informe ou estilhaçado” representaria, portanto, a
identidade buscadapela narradora,por isso seu desejode retornar àcasa da infância onde
estaria mais próxima da verdade. A composição narrativa de Relato de um certo Oriente
traduzessaarquiteturaidentitária,cujoscontornosvãosendotraçadosàmedidaquecadaum
dospersonagensenvolvidosnorelatodeixafluirsuanarraçãodopassado.
3.2Rededecitações
Como já pontuado, os romances em estudo caracterizam-se pela valorização dos
discursosexpressosemplenoprocessodialógico,ondeépossívelconhecerooutro,emplena
exposição comunicativa. Há, portanto, um lugar ambíguo, ocupado pelo narrador, pois ao
mesmo tempo em que se distancia enquanto testemunha, inclui-se enquanto personagem.
SegundoapesquisadoraMariadaLuzP.Cristo,
NoRelato,asoluçãoencontradaparaoperarestelugarambíguoéaconstruçãodeumavoz
que ganha consistência através de outras vozes.Tudo que a narradora não presenciou, não
participou,nãolembra,ouseja,aslacunasdasuavidasãopreenchidasporoutrasvozesque,
atravésdamemória,tecemahistóriadafamília.(CRISTO,2005,p.112)
Há no Relato um poder de autonomia conferido aos cinco narradores que ocupam
espaço amplo no projeto discursivo do romance. Uma voz não é preponderante sobre as
outras, pois cadaum dos narradores expõe seuponto de vista sobre aquilo que narra. Um
91
narradorpuxaahistóriadooutro,semprenoprocessoderelembraropassado.Dessemodo,
oscapítulos sãocitaçõesde citações,montados deformaatornar audíveisessasvozes, no
remansodotexto,comoaságuasturbulentasdascorredeirasdorioencontramcalmarianos
desvãosdassuasmargens.
O fluxo dos relatos compõe os textos que ganham importância de manifestação
potencialdos discursos de seusemissores,dando dinamismo à correntezada memória que
escoadessesrelatos.OcríticofrancêsAntoineCompagnonassinalaqueotextoéaomesmo
tempo sentido e fenômeno, instâncias inseparáveis, e que a malha textual é superfície
dinâmicadecitações:
Quanto ao texto, o sentido e o fenômeno são inseparáveis; e a citação constitui um pólo
estratégico,olugarondesecruzam,ouoseupontodetangência(...).Fenômeno,otextoéum
trabalho da citação, uma sobrevivência ou, antes, uma manifestação do gesto arcaico do
recortar-colar(acanetareúneaspropriedadesdatesouraedacola);sentido,eleéumaredede
forçasquetrabalhamedeslocam.(...)Acitação,umamanipulaçãoqueéemsimesmauma
forçaeumdeslocamento,éoespaçoprivilegiadodotrabalhodotexto;elalança,elarelançaa
dinâmicadosentidoedofenômeno.(COMPAGNON,1996,p.41)
A definição de citação trazida pelo teórico francês coaduna com o processo de
montagemdanarrativadoRelato,emqueotrabalhodereunirosdepoimentosàslembranças
pressupõeumaseleção,umrecorteeumaacomodaçãodosdiversostextosdentrodeumtexto
maior que os comporta, operando um reconhecimento das muitas vozes que revolvem o
passadodanarradora.Deacordocomoautorfrancês,Acitaçãoéumelementoprivilegiado
daacomodação,poiselaéumlugardereconhecimento,umamarcadeleitura.(...)Acitaçãoé
umlugardeacomodaçãopreviamentesituadonotexto.Elaointegraemumconjuntoouem
umarededetextos(...).”(COMPAGNON,1996,p.19).
Como procedimento de montagem, a citação é, de acordo com Compagnon, “uma
manipulação que é em si mesma uma força e um deslocamento”. Sendo assim, as “vozes
dispersas”queconfluemparaotextodanarradoradoRelatoeasvozesquevêmdamemória
deNaelsãoforçasdiscursivasmanipuladaspelosnarradoresaoteceremasnarrativas.
92
Compreende-se, assim, que se há cessão de vozes que surgem da memória, campo
instávelpornatureza,pode-sepensarnãoempolifoniacomocampodedebatedeidéias,como
postulaBakhtin,masemumusodessasvozesquesãorequisitadasefiltradaspelosnarradores
quepairamsobreessesdiscursos.
3.3EntreosfalaresdoRelato,ospontosdevista
Comoonúcleocentraldocontextoemqueosenredosdosromancesserealizaméa
casadosimigranteslibaneses,eradeseesperarqueospersonagenshatounianosconservassem
ostraçosmaisrepresentativos,comoimigrantesdeorigemoriental.Oqueoscaracterizaria
seriamoshábitossociais,gastronomia,expressõesreligiosaseartísticase,principalmente,a
línguaárabe.Noentanto,quantoàtranscriçãodosfalaresnanguaestrangeiraesseintento
nãoseconcretizounaescrituradosromances.Issoseconfirmaaoconsideraroprocessode
mediaçãodasvozesaquevenhomereferindo.
Como texto de memórias, o Relato é uma rede de textos composta pelo material
recolhidopelanarradora,comojáenfatizado,querecebeotratamentodeumaúnicavozque
paira sobre todas as outras vozes sem, porém, retirar delas sua autonomia. Recorrendo à
pesquisa de Maria da Luz P. Cristo, que trabalhoucom os manuscritos de Hatoumpara o
estudodesuaobra,aautoraassinalaqueumapossívelintençãoinicialdeconstruiranarrativa
conservandoa“fala”incompreensíveldosestrangeirosfoideixadaemfavordeumavozque
mediasseamultiplicidadedevozes:
A primeira tentativa de escrita do Relato contemplava a fala engrolada das personagens.
Tentativaquenãodeucertoeoescritoroptouporumanarradoraquemediassetodasasfalas.
(...)NosmanuscritosdoRelato,nãoaparecemgrandesalteraçõesnafeituradanarradorasem
nome.Nodossiêdoromancenãoháaprimeiratentativadeescritaemqueoscriptor
2
tentou

2
Paraestetermo,scriptor,aautoraescreveumanotaexplicativaquetranscrevonaíntegra:“Tomooconceitode
scriptorexatamentecomoodescreveAlmuthGrésillon:‘aquelecujamãotraçaoescritosobreumsuporte;por
extensão,aquelequeescreveuàmáquinaounocomputador.’In:Pino,CláudiaA.Aficçãodaescrita.SãoPaulo:
Ateliê Editorial, 2004, p. 95. Tomo-o também como uma função exercida durante o processo de escrita.”
(CRISTO,2005,p.64,65–notaderodapé)
93
reproduziralínguaengroladadaspersonagens,todavia,sabemosqueestepontodepartidafoi
abandonadoemfavordamediaçãodanarradora.(CRISTO,2005,p.111,113)
Esteprocedimentoéaindareforçadopelapróprianarradora,quandojustificaaoseu
destinatárioadificuldadedelidarcomasconfidênciasecomumalínguaincompreendidae,
porvezes,inventada:
Quantasvezesrecomeceiaordenaçãodeepisódios,equantasvezesmesurpreendiaoesbarrar
nomesmoinício,ounovaivémvertiginosodecapítulosentrelaçados,formadosdepáginase
páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com outro problema: como
transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias
pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então
recorreràminhaprópriavoz,queplanariacomoumpássarogigantescoefrágilsobreasoutras
vozes. (...) Comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as
cantigas,osconvívios,afaladosoutros,anossagargalhadaaoescutaroidiomahíbridoque
Emilieinventavatodososdias.(Relato,p.165,166)
Há um aspecto interessante a considerar em relação à “fala engrolada de uns e o
sotaquedeoutros”apontadospelanarradora.Oquestionamentoquantoàimpossibilidadede
transcrição dessas falas baseia-se na própria natureza da oralidade: o fluxo espontâneo do
falar associado aos gestos corporais compõe um texto peculiarmente intraduzível para o
registroescrito.Há,assim,umconflitoentreatarefadaescrituracomaespontaneidadeda
fala.Ochoque entreesses veis da línguanão se restringe,portanto, à incompreensão da
língua estrangeira, no caso o árabe, mas abarca outra natureza de intraduzibilidade, a da
passagemdossignoscorporaisaoarranjoencadeadodaspalavrasnotextoescrito.Nocampo
da oralidade, sua natureza faz-se impermeável, como forma de resistência à escrita. (Cf.
SANTOS,2000,p.47)
Quanto à expressão dialógica inscrita na perspectiva bakhtiniana, o lingüista russo
adverte que “o problema não está na existência de certos estilos de linguagem, dialetos
sociais, etc., existência essa estabelecida por meio de critérios meramente lingüísticos; o
problema está em saber sob que ângulo dialógico eles confrontam ou se opõem naobra.”
(BAKHTIN, 2005, p.182 – grifo do autor). Desse modo, importa mais à construção do
discursooconteúdo,quesesobressaiàforma“meramentelingüística”;coloca-seemrelevoo
94
plano em que o concerto de vozes dissonantes expõe as diferentes perspectivas sobre as
experiênciasvividaspelosnarradores.
Citandoeacomodandoasváriasvozes,anarradorainominadaviveumalutaentrea
memória e o esquecimento e a orquestração dos desencontros dessa dispersão discursiva,
optandopelotrabalhode“ordenação”domaterialcoletadoedasexperiênciasvividas.
Nofinaldoprimeirocapítulo,anarradoradelegaaoseutioHakim aexposiçãodos
mistériosemtornodamatriarcaEmilie,falecidanodiadasuachegadaedoregressodotioa
Manaus,depoisdedezanosnoLíbano.
Oencontroaconteceunanoitedodomingo,sobaparreiradopátiopequeno,bemdebaixodas
janelasdosquartosondehavíamosmorado.Namanhãdasegunda-feiratioHakimcontinuava
falando,esóinterrompeuafalaparareverosanimaisedarumavoltanopátiodafonte,onde
molhavaorostoeoscabelos;depoisretornavacommaisvigor,comacabeçaformigandode
cenasediálogos,comoalguémqueacabadeencontrarachavedamemória.(Relato,p.32)
Estecapítulo liga-seao último,em queanarradoradescreveospreparativosparao
funeral de Emilie e expressa também a decisão de permanecer à distância, observando de
longeosmovimentosmelancólicosdadespedidaàmatriarca.
Noiníciodatardedesexta-feira,Yasminemetelefonouparacontarqueosparenteseamigos
permaneciamreunidosnacasa;tioHakimdesembarcariaaqualquermomento,ecomaajuda
dosvizinhostioEmíliohaviaprovidenciadotudoparaenterrarocorpodairmã.Essasnotícias
soavamcomoumaintimação: eu deviacomparecerà despedidade Emilie, às três datarde
serviriamumcafédepoisdamissadecorpopresente,oficiadapeloarcebispodeManaus.(...)
Preferichegarnofimdetudo,apósoenfadodoadeus,masaindapudeobservar,naportada
casa,oséquito.(...)Preferinãosairdocarro,afimde permaneceràmargemdacerimônia
fúnebre.AquelatardeextenuanteterminounacasadeEmilie,ondeencontramostioHakim,
sozinho e imóvel comoumaestátua, perto dacopaescuradojambeiro. Sónodia seguinte
retorneiparavisitarojazigo.(Relato,p.156,157)
Nota-seapresençadegrandesaspasduplascomomarcaqueserepetenoinícioeno
finaldecadacapítulo,dosegundoaooitavo,cujoteorindicaorelatodecadaumdoscinco
narradores.Emcadaumdessescapítulos,osnarradorescomandamaconstruçãodosrelatos,
decidindo sobre a utilização de discursos diretos ou indiretos, introduzindo o trabalho de
citaçãoedeacomodaçãodeoutrasvozesdentrodostextos.
95
O procedimento de montagem, de recorte e colagem, cumpre também a tarefa do
encadeamentodefalares,comoumcontadordehistóriasaopédofogonarodadeamigose
familiares, no fim deuma jornada de trabalho. É como sublinha Walter Benjamin sobre a
transmissão oral da experiência: “A experiência transmitida oralmente é a fonte de que
hauriramtodososnarradores.E,entreosquetranscreveramasestórias,sobressaemaqueles
cuja transcrição pouco se destaca dos relatos orais dos muitos narradores desconhecidos.”
(BENJAMIN,1975,p.64)
Sob o impacto da notícia da morte da mãe, Hakim dá início à cadeia de relatos, a
pedidodanarradora,comopretextodedesvendaromistériodorelógionegroveneradopor
Emilie. Esserelógio,que há anos permanecia pendurado na parede daParisiense,primeira
moradia da família onde tocavam uma loja de variedades importadas, fora adquirido por
Emilie de um comerciante marselhês em troca de um papagaio que pronunciava com
perfeiçãoalgumaspalavrasemfrancês.Quandoafamíliamudou-separaosobrado,orelógio
ocupoulugardedestaquenasala.
Anoçãodotempomarcadopelaluminosidadesolarcaracterizavaoscostumesdeum
lado e do outro do oceano que separa os dois continentes; um hábito natural dos nativos
manauarasedopovooriental.Naspalavrasdanarradorainominada,
(...) em Manaus como em Trípoli não era o relógio que impulsionava os primeiros
movimentos do dia nem determinava o seu fim: a claridade solar, o canto dos pássaros, o
vozeriodaspessoasquepenetravanorecintomaisafastadodarua,tudoissoinauguravaodia;
osilêncioanunciavaanoite.Emilieacompanhavao percursosolar,indiferenteàshorasdo
relógio,àsbadaladasdossinosdaNossaSenhoradosRemédioseaotoquedeclarimquelhe
chegava aos ouvidos três vezes ao dia. (...) Por isso nosso avô estranhou que Emilie se
empenhassetantonaaquisiçãodorelógio;elafezquestãodetrazê-loaosobradologoqueeste
foi inaugurado; os espelhos e a mobília vieram mais tarde, quando a Parisiense se tornou
apenasumlugardetrabalho.Eutambémsemprefuiávidadedesvendaromotivodointeresse
de Emilie pelo relógio. Sabia que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos.
(Relato,p.28)
Hakim,comofontedesegredos,iniciasuarememoraçãodopassadorecorrendoaoque
lhehaviacontadoHindiéConceição,umadasamigasmaispróximasdamãe.Comorecurso
96
discursivo, o que Hindié relata aparece em forma de discurso indireto, sob o comando de
Hakim.Sobreacuriosidadeemtornodorelógioestenarradordiz:
Tiveamesmacuriosidadenaadolescência,ouatéantes:desdesempre.Pergunteiváriasvezes
àminhamãeporqueorelógioe,depoisdemuitasevasivas,elamepediuquerepetisseafrase
queeupronunciavaaoolharparaaluacheia.(...)Anosdepois,aoarrancaralgumaspalavras
deHindiéConceiçãoéqueacoisaficoumaisoumenosclara.Elamecontouumapassagem
obscuradavidadeEmilie.MinhamãeeosirmãosEmílioeEmirtinhamficadoemTrípoli
sobatuteladeparentes,enquantoFadeleSamira,osmeusavós,aventuravam-seembuscade
uma terra queseria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos pais. Na manhã da
despedida,emBeirute,elasedesgarroudosirmãoseconfinou-senoconventodeEbrin(...).
FoiaVice-Superiora,IrmãVirginieBoulad,quematribuiuàEmilieatarefadepuxardoze
vezesacordadosinopenduradonotetodocorredorcontíguoaoclaustro.Essaatribuiçãofora
frutodofascíniodeEmilieporumrelógionegroquemaculavaumadasparedesbrancasda
saladaVice-Superiora.Aoentrarpelaprimeiraveznesseaposento,exatamenteaomeio-dia,
Emilieteriaficadoboquiabertaeextáticaaoescutarosomdasdozepancadas,antesmesmode
ouviravozdareligiosa.HindiéConceiçãome repetiuváriasvezesqueaamigacerravaos
olhosaoevocaraquelemomentodiáfanodasuavida.(Relato,p.33,34)
Outra revelação que se faz no relato de Hakim, sob a perspectiva de Hindié, diz
respeitoaoseupai,opatriarcainominadoqueseincomodavacomaaglomeraçãofreqüente
emsuacasa.Preferiaestarreclusoemseuquartoouafastar-separaaCidadeFlutuante,onde
passava horas e até dias, conversando com amigos e compadres. O mutismo do pai
muçulmanosósetraduziaquandoexpressavaemaçõesarepulsapelasreuniõesdafamíliae
amigoscomcomilançasnasfestascristãsquesomenteaesposavenerava.Hakimcontinuaa
descriçãodaquelanoiteapartirdasobservaçõesdeHindiéqueoajudamarecomporocenário
daquelafestanatalinaedeseudesfechoquesónãofoitrágicoporqueEmiliecontornaraa
situaçãoetambémpelachegadadeumvisitanteinesperado.
OfatoéquedesdeaquelenatalmeupaieHindiéseestranharam.Atéhojenãoseicomoele
descobriuqueasgalinhaseosperustinhamingeridocachaçaantesdeseremestrangulados.
Hindié,quetambémerainclementecomele,medisseduranteaconversa:–Teupaitemo
olfatomaisaguçadoqueumcão.Sentiuocheirodeaguardentelánoquintal,ondeoaromado
jasmimbrancoémuitoforte.(...)Teriasidoumanoitedesastrosa,nãofosseporEmilieeuma
visitainesperada.Meupaipermaneceunoquartoduranteocrepúsculoeumapartedanoite;
todos sentimos que no silêncio do homem que se confinara havia uma revolta calada que
extravasavaacircunspecção.(Relato,p.37,38)
Essaposturaarrediadopaiesuarevoltapeloshábitosfestivospromovidospelaesposa
sãolembradoscomtristezapelonarradorHakimaosaber,pelaamigadamãe,dadestruição
97
dosídolosnaquelanoite.HindiérelataquenamanhãseguinteelaeEmiliepassaramhorasno
trabalhoderecuperaçãodosídolosdegessoedemadeiradestruídospelafúriadopai.
Oquartopareciatersidoassoladoporumcataclisma,umfuracãoouumúnicogritodoTodo-
Poderoso.(...)Elasnãosabiam(talvezsómeupaisoubesse)quenaqueletapeteondecatavam
fragmentos de gesso e estilhaços de madeira para reconstruir as estátuas dos santos, a
geometriadosdesenhossimbolizavaacriação,osolealua,aprogressãocósmicanotempoe
noespaço,ociclodasrevoluçõesdotempoterrestre,eaeternidade.Equebemnocentrodo
tapete, num meio círculo desbotado pelocontato assíduo deum corpo agachado para orar,
haviaumacaixaouumcofrequeencerraoLivrodaRevelação,representadoporumpequeno
quadradoamarelo.(Relato,p.44)
AvisitainesperadaquechegaranaquelanoiteeraadeDorner,fotógrafoalemãoque
tinhaohábitodeenchercadernosdeanotaçõesdetudoquetestemunhavaedetranscriçãodas
falasdosoutros.IssopossibilitouqueseregistrasseodepoimentodomaridodeEmilie,soba
óticado amigoDorner. Um capítulo inteiro, o denúmero quatro,encerra o relato do“avô
postiço”danarradora,quecontasobresuavindaparaoBrasil,fascinadoereceoso,dianteda
terra estrangeira, sem deixar de mencionar, melancolicamente, as reminiscências da terra
natal. No final do terceiro capítulo, o alemão percebe que na disposição para falar
demonstradapelopatriarca,haviaumachancedeconhecerumpoucodahistóriadachegada
daquelesimigrantesnessaterramanauara.
Aproveitei sua disposição para uma conversa (pois não poucas vezes ele sentenciou que o
silêncioémaisbeloeconsistentequemuitaspalavras),etenteisondaralgodoseupassado.
Porummomentoelecalou,semdeixardepercorrercomosdedosaquaseinfinitamalhade
rios,quetraiorigordoscartógrafoseincitaoshomensàaventura.Naextremidadeocidental
domapatraçouumcírculoimagináriocomoindicador,e,aocomeçarafalar,tudopareciatão
bemconcatenadoearticuladoquefalavaparaserescrito.Amaniaquecultiveiaqui,deanotar
o que ouvia,me permitiu encher algunscadernos com transcriçõesda fala dosoutros. Um
dessescadernosencerra,compoucasdistorções,oquefoiditoporteupainoentardecerdeum
diade1929.(Relato,p.70)
Apalavraédadaaoancião,quecontacomdetalhesoqueseriaseuúltimoimpulso
aventureiro ao vir para o Brasil onde decidiu fixar-se e acabou por conhecer a jovem por
quemseapaixonou.
A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou
comodidade,seushabitantesteimavamemsituá-lonoBrasil;ali,nosconfinsdaAmazônia,
trêsouquatropaísesaindainsistememnomearfronteiraumhorizonteinfinitodeárvores(...).
TervindoaManausfoimeuúltimoimpulsoaventureiro;decidifixar-menessacidadeporque,
aoverdelongeacúpuladoteatro,recordei-medeumamesquitaquejamaistinhavisto,mas
98
queemconstavanashistóriasdoslivrosdainfânciaenadescriçãodeumhadji
3
daminha
terra.(Relato,p.71,75,76)
O homem lacônico, consagrado ao silêncio e à leitura, revela que a vinda ao
Amazonasnajuventudetornara-oexímiocomercianteesuaexperiênciacomadiversidadeo
aproximoudaterranatal.Decidiufixar-senessacidadeporqueseimpressionoucomacúpula
doteatrodeManausqueparaeleevocavaumamesquitaimaginária“quejamaistinhavisto,
mas que constava nas histórias dos livros da infância (...).”. A aproximação dessas terras
manauaras com as orientais dá-se também pelos portos, pela beira de um rio ou pela orla
marítima,poisparaoslevantinos,“emqualquerlugardomundoaságuasqueelesvêemou
pisamsãotambémaságuasdoMediterrâneo.”(Relato,p.76).
Tais depoimentos dados pelo pai da família imigrante recebem atenção do amigo
estrangeiroqueestranharaadisposiçãoparafalaremumvelhoacostumadoaomutismoeà
reclusão;mesmonobalcãodalojapermaneciaabsortoemleiturasdoLivro–oAlcorão–ou
dehistóriasdenarradoresárabes.Dessehábitodeleituraoalemãoconfessa-seestimuladoa
lerAsmileumanoites,oquefortaleceuaamizadeentreosdois.Dornerdecidiraabandonara
profissãodefotógrafoemontarumagrandebibliotecacomlivrosdeváriasnacionalidadese
“obras raras editadas em séculos passados”, às quais juntara os livros que adquiriu “dos
alemães que fugiram de Manaus na época da guerra”, observa ele. Para o alemão, arguto
observador,opaideHakimrevelara-seumexímionarrador,depoisdeconcluídaaleiturada
milésimanoite.
Quandoaagênciaconsularfoireativada,mandarambuscarlivrosdetodasasliteraturasefoi
entãoquetiveacessoàsobrasorientais,emtraduçõeslegíveis.Oconvíviocomteupaime
instigoualerAsmileumanoites,natraduçãodeHenning.Aleituracuidadosaemorosadesse
livrotornounossaamizademaisíntima;pormuitotempoacrediteinoqueelemecontava,mas
aospoucosconstateiquehaviaumacertaalusãoàquelelivro,equeosepisódiosdesuavida
eramtranscriçõesadulteradasdealgumasnoites,comoseavozdanarradoraecoassenafala
domeuamigo.Noiníciodenossaamizadeelesemostraracircunspectoereservado,masao
concluiraleituradamilésimanoiteelesetornaraumexímiofalador.Àsvezesaleituradeum
livrodesvelaumapessoa.Masocuriosoéqueelesempredeixavaumapontadeincertezaou

3
Cf.DicionárioeletrônicoHouaiss:Hadji:s.m.muçulmanoquefezperegrinaçãoaMeca.
99
descrédito no que contava, sem nunca perder a entonação e o fervor dos que contam com
convicção.(Relato,p.79,80)
EssaperspectivaarespeitodomaridodeEmilieficatotalmenteobscurecidadoponto
devistadeoutrospersonagensesóchegaaoconhecimentodanarradoradoRelatopormeio
deHakimqueosouberaporDorner.Ouseja:citaçãosobrecitação,malhadediálogosque
revelam o sujeito em pleno processo comunicativo, na superfície dinâmica desse texto de
memórias.
Interessante, ainda, é a percepção de Dorner a respeito deuma espécie de discurso
híbridocriadopelovelho,entreashistóriasdafamíliaedepessoasconhecidaseosepisódios
quegravaranamemóriadeleitorperspicaz.Nessesentido,aarteliteráriaeavidapermutam
papéis nanarrativa, na visão do paiimigrante.Sob o signo da representação, do poder do
“poeta fingidor”, como diria Fernando Pessoa, o ancião celebra o encontro do seu viver
cotidianocomaimaginaçãocriadora.Naspalavrasdoalemão,
OsfatoseincidentesocorridosnafamíliadeEmilieenavidadacidadetambémparticipavam
dasversõesconfidenciadasporteu paiaosvisitantessolitáriosdaParisiense.Oque mefez
pensar nisso foi a coincidência entre certas passagens da vida de outras pessoas, que
mescladasatextosorientaiseleincorporavaàsuaprópriavida.Eracomoseinventasseuma
verdadeduvidosaquepertenciaaeleeaoutros.Fiqueisurpresocomessascoincidências,mas,
afinal,otempoacababorrandoasdiferençasentreumavidaeumlivro.(Relato,p.80)
Há aqui, também, recorrendo a Compagnon, uma acomodação de discursos e um
posicionamentodialógico,naacepçãobakhtiniana,emqueostextossecruzamedeixamfluir
diferentes ângulos de visão sobre os fatos conhecidos por diferentes pessoas. Para Hindié
Conceição,omaridodeEmilienãopassavadeummuçulmanointempestivo,revoltadopelas
diferençasreligiosasepeladedicaçãoextremadadaesposamatriarcapelospobresnativos.
Como se vê, as diferentes narrativas que compõem o Relato de um certo Oriente
abrigamperspectivasltiplassobreamatérianarrada.Cadanarradorcontaahistóriaaseu
modo, porém não há uma marca estilística que os individualize caracterizando-os
lingüisticamente,justamentepelaacomodaçãodasvozesrealizadapelanarradora.
100
A narrativa é engendrada pelos vários falares e os personagens conservam uma
autonomiaemrelaçãoaosseuspontosdevistasobreaquiloquenarram.Paraconheceroseu
passado,anarradoratevequeouvirorelatodopassadodeEmiliepelabocadeHakim,de
DorneredeHindiéConceição.Naverdade,ograndeepisódiodavidadessamulheréavida
damatriarcaqueaadotou.Nabuscapelaidentidadepessoal,anarradoraesbarranadeoutros
personagens,indicandoqueaconstruçãoidentitáriasefazpeloolhardooutro,pordiferentes
perspectivas. Nesse sentido, a identidade buscada resulta fragmentada, escapando a uma
esquematizaçãoobjetiva.
Comojáassinalado,importamaisaoRelatoaquiloquesecontaenãopropriamente
como cada narrativa apresenta-se formalmente, ou estilisticamente. Esse procedimento
discursivo liga-se à narrativa característica da literatura árabe, como assevera Marleine
Toledo:
Aliteraturaárabe,oudeinspiraçãoárabe,conheceumtipoespecialdepolifonianarrativa,em
que o narrador de uma história, ao terminá-la, ou ao encaminhá-la para o clímax, passa a
palavraaumdeseus personagens,quesetransformaemnarradordoepisódioseguinte– e
assimsucessivamente.Éocaso,porexemplo,dasMilHistóriassemFim,deMalbaTahan,
entreoutrasmuitascoletâneas.Poroutrolado,àmesmaliteraturaárabepertencemasfamosas
MileumaNoites,mil e umahistórias diferentesnarradasporumaúnicanarradora,quede
certaformaasnivela.ORelatomesclaessasduasespéciesdenarrativasplurais,porque,sehá
passagem de um narrador para outro, não há, porém, diferença de estilos. Na realidade, a
narradora é uma só e reconta as narrativas ou depoimentos das demais personagens,
nivelando-ospornãoconseguirorganizá-losnemreproduzi-loscomtotalfidelidade,conforme
confessanasúltimaslinhasdoromance.(TOLEDO,2006,p.43)
Essaconfissãodanarradorasemnome,nofinaldanarrativa,coadunacomaprópria
perspectiva de Hatoum de não estabelecer de forma cabal, na escritura, a identidade da
narradoraquenivelaosrelatos,apresentandoumacomposiçãodosmuitosfalaresememórias.
Confessoqueastentativasforaminúmerasetodasexaustivas,masaofinaldecadapassagem,
decadadepoimento,tudoseembaralhavaemdesconexasconstelaçõesdeepisódios,rumores
de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. (...) Quantas vezes
recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendiao esbarrar nomesmo
início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas
numeradasdeformacaótica.(Relato,p.165)
Assim,aincômodatarefadedarformaànarrativademonstraaimpossibilidadededar
feiçãoconcretaedefinitivaaumamatériatãomovediçacomoadamemória.Anoçãodessa
101
impossibilidade é nítida para anarradora, que declara nas páginas finais da narrativa: “Eu
mesma procurei um tema que norteasse a narrativa, mas cada frase evocava um assunto
diferente, uma imagem distinta da anterior, e numa única página tudo se mesclava (...).”
(Relato,p.163).DeacordocomGermanaH.P.deSousa,
Trata-seobviamentedelidarcomamemória.Matériainforme,amemóriaésimultâneaenão
sucessiva.Suareconstruçãoimplicamontagem.Aformanarrativa,demodogeral,tentadar
umaformaàmemória,fazê-latranscorrercomoumrio–sucessiva,portanto,cronológica.É
preciso,pois,atentarparaoaspectodafabricaçãodotexto,daarquiteturadaslembranças,pois
seháconstruçãodoedifíciodamemória,háinevitavelmenteumpreenchimentodelacunas,
umavezquenavidahálembranças,mastambémesquecimento.(SOUSA,2001,p.25)
3.4Relatodeambigüidades,umobservadordeDoisirmãos
Como já assinalado acima, os narradores das histórias de Hatoum lidam com as
ambigüidades, com os deslocamentos e, principalmente, contam com a multiplicidade de
perspectivassobreosacontecimentosqueosenvolvem.Háumduploposicionamentoexigido
pelapróprianaturezadanarrativa,quedeslizasobreofiomovediçodamemória,desemanter
umcertodistanciamentodoobjetoobservado,mas,aomesmotempo,preservandoacondição
desujeitoincluídonosacontecimentosqueobservaeanalisa.
Hatoum menciona este posicionamento distanciado ao dizer que “quando estamos
muitopertodoquequeremosver,perdemosanoçãodoconjunto:oolhocoladoaoobjetonão
vênada,oupoucovê.Adistânciaexcitaamemóriaenospermiteexperimentarsensações,
tecerreflexõessobreummundosupostamentedecifrado.”(HATOUM,1993,p.168).
Esse distanciamento necessário é adotadopelo narrador de Dois irmãos que decide
narrarsuahistóriaapóstrintaanos.Todososenvolvidosdiretamentenorelatojámorreram,
ou enlouqueceram ou simplesmente desapareceram sem deixarem vestígios. Esses seres
existemaindanasuamemóriacomotraçosdeumpassadoqueprocuraexplorarparaentender
suaorigem.Háumjogoqueseestabeleceentreaquiloquevivenciou,presencioueouviueo
102
tempo que o separa dos fatos. Seu posicionamento como observador o colocava,
relativamente,doladodeforadaquelemundo;naspalavrasdeNael,“(...)muitacoisadoque
aconteceueumesmovi,porqueenxergueideforaaquelepequenomundo.Sim,deforaeàs
vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance
final.”(Doisirmãos,p.29).
Emboraonarradorconserve-sedistanciado,nãodeixadesertambémumapeçadesse
jogodramático.EmumaocasiãoemqueNaeleOmaradoeceram,ogarotoagregadorecebera
maisatençãoecuidadosqueoprópriofilhodeHalim
Passeialgunsdiasdeitado,emealegrousaberqueHalimderamaisatençãoaonetobastardo
queaofilholegítimo.ElesequerpisounasoleiradaportadoCaçula.Nomeuquartoentrou
várias vezes, e numa delas me deu uma caneta-tinteiro, toda prateada, presente dos meus
dezoitoanos.(...)Foiumaniversárioinesquecível,comminhamãe,HalimeYaqubaoladoda
minhacama,todosfalandodemim,da minhafebreedomeufuturo. Lá emcima,ooutro
enfermo,enciumado,quisroubaracomemoraçãodaminhamaioridade.(Doisirmãos,p.200,
201)
Para a construção do projeto discursivo, Nael conta com a pródiga memória que
recupera,pormeiodaescrita,asnarrativasdeHalim,oavôpaterno,imigrantelibanês,ede
Domingas, que engravidou de um dos gêmeos. Nas palavras de Hatoum, esses dois pólos
narrativosligam-semaisintimamenteaNael,poissabemmaisdele,doseupassado.
Talvezparaumficcionistaamemóriasejasinônimodeimaginação.[Há]jogosdotempocom
asvozesdopassado,asmuitasversões...DomingaseHalimsãoosquecontamashistórias,
sãoasvozesquecontammaiscoisas,semrevelaremtudo.Osdoisestãomuitomaispróximos
donarrador,Domingaséamãedele,eamãesempresabemaissobreofilho...(SCRAMIN,
2000,p.6)
Naelrefere-seàmãechamando-asempredeDomingas;rarassãoasvezesemquese
dirigeaelachamando-ademãe.Issotambémmarca,decertaforma,umdistanciamentoem
relação àquela de quem depende para a sua história. Nas palavras do narrador, ela “vivia
atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade de todos.
Domingastinhaessaliberdade,porqueasrefeiçõesdafamíliaeobrilhodacasadependiam
dela.Aminha históriatambémdependedela,Domingas.”(Doisirmãos, p.25).Quantoao
avô,tambémserefereaelepelonome:“Eutinhacomeçadoareunir,pelaprimeiravez,os
103
escritosdeAntenorLaval,eaanotarminhasconversascomHalim.Passeipartedatardecom
as palavras do poeta inédito e a voz do amante de Zana. Ia de um para o outro, e essa
alternância–ojogodelembrançaseesquecimentos–medavaprazer.”(Doisirmãos,p.265).
Esse jogo prazeroso move a narrativa que oscila entre o lembrar e o esquecer,
mantendo o suspense em relação à origem do narrador, e entre o segredo e o anúncio
(pontuadoporPellegriniemcapítuloanterior).
Aoprimeirocontatocomaobra,tem-seumavoznarrativaemterceirapessoa,quese
mantém distanciado como observador, e supostamente conhecedor, daquilo que passa a
narrar. Porém essa posição é trocada pela sua inclusão como personagem da história,
colocandoporterraaonisciênciaesboçadadoiníciodanarrativa.Issoseconfirmajánacena
que abre o romance, em um capítulo inicial que não recebe numeração, mas que contém
elementoselucidativosdanarrativaqueaseguirvaisedesenrolar.Assimseiniciaoromance:
Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por
mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase o vital quanto a Biblos de sua
infância:apequenacidadenoLíbanoqueelarecordavaemvozalta,vagandopelosaposentos
empoeirados até se perder no quintal, onde a copa da velha seringueira sombreava as
palmeiraseopomarcultivadospormaisdemeioséculo.(Doisirmãos,p.11)
Odramaapontadonasprimeiraspáginaséodamatriarcaqueexperimentaaangústia
dadistânciadosfilhos,gêmeosantípodas,cujareconciliaçãosonhadapelamãe,nahorada
morte, permanececomo uma linha fantasmática ao longo da narrativa. A história dos dois
irmãos,adúvidaquepermeiasuasrelaçõescomospais,vaiganhandoespessuranahistória
sobaqualseinscreve,comoemtextorasurado,ahistóriadonarrador.
ApartirdomomentoemqueafaladeZanadirige-seaonarrador,esteéincluídocomo
personagemdahistóriaquenarra,quebrandodecertaformaodistanciamento,oscilandoentre
asposiçõesdepersonagemedetestemunha.
“Seiqueumdiaelevaivoltar”,Zanamediziasemolharparamim,talvezsemsentiraminha
presença (...). A mesma frase eu ouvi, como uma oração murmurada, no dia em que ela
desapareceu na casa deserta. Eu a procurei por todos os cantos e só fui encontrá-la no
anoitecer,deitadasobrefolhasepalmassecas(...).(Doisirmãos,p.12)
104
Osrelatoscolhidospelonarradordesteromancediferememestiloemrelaçãoàqueles
comosquaislidaanarradoradoRelatodeumcertoOriente,pelomenosnoquetangeao
conteúdo das narrativas. Os narradores do Relato refletem em suasvozes, cada quala seu
modo, perspectivas sobre a vida da família colocando no centro de atenção a matriarca
Emilie, que é para a narradora a maior guardiã da memória de seu passado. No segundo
romance,háaperspectivadeumsónarrador,quefazemergirecolocaemdestaqueasvozes
de dois personagens, o avô e a mãe, que guardam os mistérios sobre sua gênese, sobre a
verdadeemtornodesuapaternidade.Emrelaçãoaelesonarradornutreumaforteligação
afetiva,mas,procuramanter,aomesmotempo,umdistanciamentoracionalapontodepoder
oferecerumretratomaisacabadodeambos.Contudo,esseretratoconstrói-seaospedaços,à
maneiradovaivémdamemória,quenãoobedeceaumcritériocronológico.ParaHalim,Nael
eraoouvinteprivilegiadodesuashistórias,dasexperiênciasdevidaquenuncarevelariaaos
própriosfilhos:
Eunãocompreendiaosversosquandoelefalavaemárabe,masaindaassimmeemocionava:
ossonseramforteseaspalavrasvibravamcomaentonaçãodavoz.Eugostavadeouviras
histórias.Hoje,avozmechegaaosouvidoscomosonsdamemóriaardente.(...)Aintimidade
comosfilhos,issoHalimnuncateve.Umapartedesuahistória,avalentiadeumavida,nada
dissoelecontouaosgêmeos.Elemefaziarevelaçõesemdiasesparsos,aospedaços,“como
retalhos de um tecido”. Ouvi esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e forte, foi se
desfibrandoatéesgarçar.(...)Assimviveu,assimoencontreitantasvezes,pitandoobicodo
narguilé, pronto para revelar passagens de sua vida que nunca contaria aos filhos. (Dois
irmãos,p.51,52)
ParaconquistaroamordeZana,abelaadolescentefilhadeGalib,donodorestaurante
Biblos,HalimaprendedecoralgunsversosdeumpoetaimigrantevindodoAcre,oAbbas.É
uma das passagens mais tocantes do romance em que o narrador expõe um pouco da
personalidade passional do avô que chegara de uma terra distante para conquistar, como
muitosimigrantes,umlugarnaAmazônia.VieradoLíbanoaosdozeanosjuntocomumtio
4
,
quedesapareceudeixando-osozinhoemumquartodepensão.Supõe-sequeaconquistade

4
“Umpai...eununcasoubeoquesignifica...nãoconhecinempainemmãe...VimparaoBrasilcomumtio,o
Fadel. Eu tinha uns doze anos... Ele foi embora, desapareceu, me deixou sozinho num quarto da Pensão do
Oriente...”.(Doisirmãos,p.180).EssetioFadelapareceemRelatodeumcertoOrientecomopaideEmilie.(cf.
Relato,p.33)
105
um espaço para fazer a vida passa necessariamente pela formação de uma família. Essa
família,adeHalimeZana,teveseuinícioenvoltoempaixãoepoesia.
QuemindicouorestauranteaojovemHalimfoiumamigoquesediziapoeta,umcertoAbbas,
quetinhamoradonoAcreeagoravivia navegando no Amazonas.(...) Abbasescreveuem
árabeumgazal
5
comquinzedísticos,queelemesmotraduziuparaoportuguês.Halimleue
releuosversosrimados:luacomnua,amêndoacomtenda,amadacomalmofada.(...)Enfim,
Halim decidiu agir, cheio da coragem exacerbada pelo vinho. Ele se exaltava quando, nas
nossasconversas,mecontavaosdetalhesdaconquistaamorosa.“Ah...aânsiaeotranseque
tomaramcontademimnaquelamanhã”,disse-me.(...)OsgazaisdeAbbasnabocadoHalim!
Pareciaumsufiemêxtasequandomerecitavacadaparde versosrimados.Contemplavaa
folhagemverdeeumedecida,efalavacomforça,avozvindodedentro,pronunciandocada
sílabadaquelapoesia,celebrandouminstantedopassado.(Doisirmãos,p.48-51)
Interessa aqui destacar o lugar discursivo desses personagens-narradores. Halimé o
maridorevoltadocomorumotomadopelasrelaçõescomaesposaeosfilhos,principalmente
pelapreferência doentia de Zanapelo gêmeo Omar. Enfurecia-sepela rebeldia feroz desse
filho e vivia inconformado com as perdas ao longo da vida, mas dominava a linguagem
amorosadecorandováriosgazaisparaconquistaraesposa.Dessesnarradores,Haliméomais
pródigo,poisproduzrelatosemabundância,expressandosentimentos,remexendoobaúde
memórias. Em uma das conversas com Nael, o avô desabafa expondo as passagens que
sintetizam a história da sua vida. Essa rememoração dramática ocupa quase duas páginas
entrefrasesentrecortadasporreticências,sinalizandoomovimentosinuosodamemóriado
velhoHalim.Transcrevoalgumaspassagenspontuais:
“Nemnessegalinheiro
6
meufilhoquisestudar”,Halimsequeixou.“Umfraco...deixouminha
mulhersugartodaaforçadele,afibra...acoragem...(...)Eunãoqueriafilhos,éverdade...
masoYaqubeaRânia,bemoumal,medeixaramviver...Quismandar os gêmeos para o
Líbano,elesiamconheceroutropaís,falaroutralíngua...Eraoqueeumaisqueria...Faleiisso
paraaZana,elaficoudoente,medissequeoOmarisseperderlongedela.Nãodeucerto...
nemparaoquefoinemparaooutroqueficouaqui.(...)Oqueeufizparaconquistaressa

5
Gazal–napoesiaárabe,hátrêsgênerospoéticosprincipais:ogazel(ghazal),geralmenteumpoemadeamor,
quetemdecincoadozeversosmonorrimos;oqasida,umpoemadelouvaçãocomvinteamaisdecemversos
monorrimos; e oqita, umaformaliterária empregada para lidar comaspectos da vida cotidiana. Na tradição
persa,oghazaléumgêneroespecíficodepoesia-lírica-quesecaracterizaporumacombinaçãopoucocomum
entreumaespiritualidadeextáticaeosdesejosterrenos,oamordivinoeoamorerótico.Oghazalespalhou-se
por toda a Arábia, Pérsia e Turquia, sobretudo nos séculos XIII e XIV e deriva de uma palavra árabe para
designaroamor,tantoacançãocomoopoema.
(Disponívelem:http://attambur.com/Noticias/20021t/musica_e_danca_do_tajiquistao_no_ccb.htm#TOP)
6
Aodizergalinheiro,Halimrefere-seaoLiceuRuiBarbosa,escoladebaixareputaçãoondeestudavamaqueles
quenãoconseguiam vagaoueramexpulsosdocolégiodospadres.AescolaeraapelidadadeGalinheiro dos
Vândalos,porserfreqüentada“pelaescóriadeManaus”,segundoonarrador.(cf.Doisirmãos,p.35)
106
mulher!Mesesemeses...osgazais,ovinhoparavenceratimidez...(...)ninguémacreditava
queummascateiropudesseatrairafilhado Galib.(...)Sópensavanela,sóqueriaela...(...)
DepoisdamortedoGalib,oOmarfoicrescendonavidadela...(...)Ficoulouca,feztudopor
ele,écapazdemorrercomele...Longedofilho,eraaminhamulher,amulherqueeuqueria.
Sentiaocheirodela,melembravadasnossasnoitesmaisassanhadas,nós doisrolandopor
cimadessespanosvelhos.(...)Setivesseforça,darianeleoutrosafanão,teriadadounscem
quandoelequebrouoespelhoqueaZanaadorava...Milbofetadas,mil...”.(Doisirmãos,p.
180,181–passim)
OlugardiscursivoocupadoporDomingaséodaserviçal,dequemexperimentoua
violênciadasdiferençasdeclasseedeetnia;aquefoivioladaemsuadignidade;aquerecebe
ajudaeéexplorada,quasenamesmaproporção;aqueserecolheuemummutismoderevolta,
mas conseguia expressar sua sensibilidade como ninguém na casa, esculpindo bichinhos
amazônicosempedaçosdemadeira.
Esse perfil da mãe é desenhado pelo narrador ao relatar o cotidiano de trabalhode
Domingas.Eleprópriofaziapartedessarotinadeserviçosintermináveis,conhecendodeperto
opesodotrabalhobraçalaqueerasubmetidaaempregada.OretratodeDomingasentrelaça-
seaoseunoquedizrespeitoaolugarocupadonafamília,àmargemeparaservir.
Domingastinhaessaliberdade,porqueasrefeiçõesdafamíliaeobrilhodacasadependiam
dela.(p.25);Navelhicequepoderiatersidomenosmelancólica,ela[Zana]repetiuissovárias
vezesaDomingas,suaescravafiel(...).(p.35);Umavez,nanoitedeumsábado,enervada,
enfadadapelarotina,elaquissairdecasa,dacidade.PediuaZanaparapassarodomingofora.
A patroa estranhou, mas consentiu, desde que Domingas não voltasse tarde. (p. 73,74);
Quando não estava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o quintal,
ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. Saía a qualquer hora para fazer
compras,tentavapouparminhamãe,quetambémnãoparavaumminuto.Eraumcorre-corre
semfim.Zanainventavamiltarefaspordia,nãopodiaverumcisco,uminsetonasparedes,
no assoalho, nos móveis. (p.82); Ela aproveitava a ausência de Halim e inventava tarefas
pesadas,mefaziatrabalharemdobro,eumaltinhatempodeficarcomminhamãe.Quantas
vezes pensei em fugir! (p.89); Zana esqueceu a Domingas rebelde e evocou a outra, a
empregadaecozinheirademuitosanos,acúmplicenomomentodasorações,amulherminha
mãe.(p.251)
Domingasalternaseumutismo,maispresente,comfrasesinacabadasecomolhares,
masprincipalmentecomsuaentregasubservienteaotrabalho.
Domingas disfarçava quando eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida, talvez
pensando que um dia eu pudesse descobrir a verdade. Eu sofria com o silêncio dela; nos
nossospasseios,quandomeacompanhavaatéoaviáriodaMatrizouabeiradorio,começava
umafrasemaslogointerrompiaemeolhava,aflita,vencida por umafraquezaquecoíbea
sinceridade.Muitasvezeselaensaiou,mastitubeava,hesitavaeacabavanãodizendo.Quando
eufaziaapergunta,seuolharlogomesilenciava,eeramolhostristes.(Doisirmãos,p.73)
107
ConhecemosHalimmaisporsuasfalas,nosdiálogosexpressospelonarrador,pelas
suasexpressõescomunicativasverbalizadas,expostasnotexto,etambém,pelassuasações
comentadasotempotodoporNael.Domingaséconhecidapelassuasaçõesepelosdiálogos,
emborapoucos,dosquaisonarradorsevaleparaexporsuaperspectivasobreosfatosquea
mãevairevelando.Essasrevelações,muitasvezes,atravessadaspormeiaspalavras,deixam
no ar o clima enigmático que permeia toda a obra, o suspense que alterna a revelação da
lembrança e a obscuridade do esquecimento. Assim, o narrador expõe dúvida ao escrever
sobreopassado,tateandoaspistasquevairecuperandodamemória.Emumaconversacom
Zana,certavez,depoisdamortedomarido,soubedesuacondiçãodesupostomembroda
família,dopontodevistadelaedeHalim:
Comoatuamãedeutrabalhonoorfanato!Erarebelde,queriavoltarparaaquelaaldeia,norio
dela... Ia crescer sozinha, lá no fim do mundo? Então a irmã Damasceno me ofereceu a
pequena,euaceitei.CoitadodoHalim!Nãoquerianinguémaqui,nemsombrasnacasa.Vivia
dizendo:“Deveserpenosocriarofilhodosoutros,umfilhodeninguém”.Quandotunasceste,
euperguntei:Eagora,nósvamosaturarmaisumfilhodeninguém?Halimseaborreceu,disse
quetuerasalguém,filhodacasa...(Doisirmãos,p.250)
As impressões captadas pelo narrador a partir dos relatos desses dois personagens
provocamumadensamentodarevoltadojovem“filhodaempregada”quenãoseconforma
comacondiçãodeagregado,de“filhodeninguém”,naspalavrasdeZana.Noentanto,énas
palavrasdoavôqueonarradorapóia-separafirmarseulugarnafamília.Dosmembrosda
famíliaimigrante,apenasHalimoaceitacomofilhodacasa,confirmandoqueapaternidade
deNaelestá entre os gêmeos; nãose revela, noentanto, de quemele é filho,mantendo o
enigmaindecifradoatéofinal.UmdiálogoentreNaeleamãeéopontocrucialdoromance
em que se esboça, para ele, uma aproximação da verdade tão perseguida sobre sua
paternidade:
Vialojafechadaeaponteiodepósito,ondeHalim,encostadoàjanelinha,contaratrechosde
suavida.Minhamãequissentarnamureta quedáparaorioescuro.Ficoucaladaporuns
minutos,atéaclaridadesumirdevez.“Quandotunasceste”,eladisse,“seuHalimmeajudou,
nãoquismetirardacasa...Meprometeuqueiasestudar.Tuerasnetodele,nãoiatedeixarna
rua.Elefoiaoteubatismo,sóelemeacompanhou.Eaindamepediuparaescolherteunome.
Nael,elemedisse,onomedopaidele.Euachavaumnomeestranho,maselequeriamuito,eu
108
deixei...SeuHalim.Parecequeavidaseentortoutambémparaele...Eusentiaqueovelho
gostavamuitodeti.Achoque gostavaatédosfilhos.MasreclamavadoOmar,diziaqueo
filhotinhasufocadoaZana.”Sentisuasmãosnomeubraço;estavamsuadas,frias.Elame
enlaçou,beijoumeurostoeabaixouacabeça.MurmurouquegostavatantodeYaqub...Desde
otempoemquebrincavam,passeavam.Omarficavaenciumadoquandoviaosdoisjuntos,no
quarto, logo que o irmãovoltou do Líbano. “Com o Omar eu não queria... Uma noite ele
entrounomeuquarto,fazendoaquelaalgazarra,bêbado,abrutalhado...Elemeagarroucom
força de homem.Nunca mepediu perdão.” Ela soluçava, não podia falar maisnada. (Dois
irmãos,p.241)
Essapaternidadetãoperseguidacomorevelaçãocabaldesuaorigem,oquedariafimà
suaangustiadabusca,nãoseconfirma,nofimdascontas,deixandoomistérioemsuspenso,
marcando a obra com o drama do sujeito impossibilitado de dar feição à sua própria
identidade.
Abuscaidentitária,tãopresentenosromanceshatounianos,émarcadapelaarquitetura
deestratégiasdiscursivasorquestradaspelosnarradoresquefazemconfluirnotextoasvárias
vozesdopassado,derelatosqueentramemtensãonodiscursonotrabalhotextualdeHatoum.
SegundoMariadaLuzP.deCristo,
Trata-sedoromancecontemporâneocomoformaparanarrarumahistóriacompersonagensde
identidadesfragmentárias,históriasoriundasdeviolentasrupturas,narradoresmarginais,no
limite entre oralidade e escrita, narradores que lutam para serem sujeitos de sua própria
história. As histórias se assemelham nos dois romances: famílias libanesas com agregados
habitando em Manaus, dramas familiares em uma cidade que atua e se mostra de formas
diferentes.Noentanto,osnarradores,ambosagregados,narramdeformasdistintas.(CRISTO,
2005,p.15)
Sãonarradoresque,noconflitocomsuascondiçõesmarginais,tentamenquadrar-seno
territóriodaslembrançasquesãotraçadas,reunidaseregistradas,formandoumasuperfície
discursivaondeprocuramoreflexodesuasprópriasfeições.Sãosujeitosàderiva,remando
emáguassemnenhumremanso.
Há um texto dessas vidas fraturadas que se esconde sob a rasura das histórias que
dominamasduasnarrativas.Ahistóriadanarradorasemnomeinscreve-sesobotextodas
históriasdevidaedasrelaçõesdosnarradoresporelarequisitadoscomocentrodafamília,a
matriarcaEmilie.ParaNael,ahistóriabrotadoembateentreosgêmeosirreconciliáveis,do
109
inconformismodeHalim,apaixonadoepreteridoporZanaedodramadamãeviolentadapela
subserviênciaimposta.
Delineia-se, nesse sentido, um quadro de exílio experimentado intimamente pelos
narradores e personagens implicados nos afluentes que correm para o rio desses dramas
familiares.Éoqueprocuroexpornocapítuloaseguir.
CAPÍTULOIV
111
ENTREMEMÓRIASEEXÍLIOS:IDENTIDADESFLUTUANTES
Constatamos, por meio das análises desenvolvidas até aqui, que a memória é
constituída de elementos ligados à lembrança e ao esquecimento, que juntamente com a
imaginação,desempenhampapelimportanteparaareconstituiçãodopassadodosnarradores
nabusca identitária empreendida.Ficou demonstrado queo esquecimento éa forçamotriz
que impele os narradores a requisitarem outros relatos na confecção da narrativa de suas
origens e que a morte da memória pode ser evitada, ou pelo menos adiada, por meio da
materializaçãododiscursonaescritadessesrelatosqueseentrelaçam.Oespaçodainfância
dessesnarradoresnas casas dosimigranteslibaneses, onde foram criados comoagregados,
determinaolugardeondeasdiversasvozesenunciamseusrelatos.
Opercursotraçadopelosnarradoresentreamemóriaeashistóriasreveladorasdesuas
origens, faz com que o quadro de suas identidades se construa a partir da alienação
experimentadapelacondiçãoambíguadeestaremaomesmotempodentroeforadafamília.
Diante do esfacelamento das relações familiares, do desmoronamento de certezas
frenteàefemeridadedavida,osnarradoreseosprincipaispersonagensimplicadosnastramas
dosromanceshatounianosemestudosãoconduzidosaumacondiçãodeexíliosubjetivoque
se traduz por um constante sentimento de alienação, formando, simbolicamente, um
112
arquipélagohumano,ondecadaqualbuscaseuprópriolugarnomundo,comopequenasilhas
separadas,poréminterligadaspelasexperiênciaseembatesvivenciados.
A respeito desse exílio, a questão mais interior do sujeito que a experimenta faz
transbordarumaexpressãoquepoderáserapenasesboçadapormeiododiscursodanarrativa.
Essa condição é estudada (porque vivida) por Edward Said, que assevera: “O exílio nos
compeleestranhamenteapensarsobreele,maséterríveldeexperienciar.Eleéumafratura
incurávelentreumserhumanoeumlugarnatal,entreoeueseuverdadeirolar:suatristeza
essencialjamaispodesersuperada.”(SAID,2003,p.46–grifosmeus)
Pormeiodaleituraeanálisedeambososromancesépossíveldelinearumapoéticada
identidade que perpassa essas narrativas no espaço plural e mesclado em que vivem os
imigranteseosnativosaculturados–agregadosouempregados–,temarecorrentenaobrade
Hatoum e ricamente explorado na literatura brasileira, por diversas perspectivas e com
diferentespropósitos.
Tendoemmenteessasambivalências,procurodestacarnestecapítuloalgunspontos
em relevo que emergem dos romances, voltando o olhar para a referida “fratura incurável
entreumserhumanoeolugarnatal”,referidoporSaid.
Deumlado,háopontodevistadosnarradorescomoagregadosdasfamíliaslibanesas
que, ao compartilharem experiências de busca identitária, revelam condições de sujeitos
descentrados,vivendocomoseresdescontínuos,emerrância,imersoseminquietaçõessobrea
origem paterna. Por outro lado, esboça-se a busca identitária dos próprios imigrantes
libaneses, experimentando desajustes na terra estrangeira, o que imprime nas narrativas o
sentimento de ruptura e de vivência entre portos moventes, com sua cultura oriental e as
negociaçõescomaterramanauara.
113
As lembranças dos narradores e dos personagens, que narram histórias dentro de
outrashistórias,dainfânciaedaherançaancestral,engendramumtextosobrasura,raspado
pelotempo,quesedeixatraduziraolongodanarrativa.
Há,portanto, outronível detradução queatravessa tambémasnarrativas,diante da
porosidade das fronteiras culturais assistida nessas histórias; porosidade esta determinada
pelas imagens do imigrante e do nativo construídas em processo de reconfiguração dos
espaçosedememórias.ConformepontuaMariaZildaFerreiraCury,
Tentarapreenderoqueénativoeoqueéimigrante,parausardamesmaimagem,éretomar,
emespiral,asmemóriasdesiedooutroqueseprojetameseconstroemnomomentoemque
corremcomofiosretorcidos,comolinhasmusicaisquenãosãoauto-suficientes.Identidades
em fuga, constituição sempre cambiante na história, que se faz pulsar, contrapontística e
sucessivamente,reproduzindoseusingulardesenhomelódico.(CURY,2000,p.166–grifos
meus)
Nessamesmadireção,osobstáculosencontradosnaconvivência“semprecambiante”
devaloreseculturasdísparestêmnalínguaumpontodedemarcaçãodeespaçodediferenças
quesesupõem intransponíveis.Anoçãode traduçãoesboça-secomo umapossibilidadede
unificação, de compartilhamento de saberes em contraponto. No entanto, o ato tradutório
revelamuitomaisatensãoentreaquiloquealínguarepresentacomomarcadistintivadeum
povo, de sua origem, e o campo de representações universais de intenção globalizadora,
instalandonessapretensaunificaçãoaestranhezaeainadequação.Assim,nacompreensãode
LuisAlbertoBrandãoSantos,
(...)mesmoquandoaslínguasdesejamseirmanareconvergirparaumcentrotranscendentedo
sentido,suaestranheza,comoumresíduoquenãopodeserremovido,manifesta-seirredutível.
Ruídosindeléveisperturbamasintoniadasvozes.(...)Sesepensaquehá,entreaslínguas,
diferenças intransponíveis, pode-se pensar, também, que a concepção de tradução deve
renunciar à idéia de ponte,de unificação, e substituí-lapela de abismo, impossibilidade de
intercâmbio.(SANTOS,2000,p.51)
4.1Estrangeiridadecambiante
114
O que perpassa os romances de Hatoum é um aglomerado de personagens
estrangeiros,representantesdasdiferençasedasmisturasquedesembocamemManaus,ponto
de convergência e de trânsito, mas que também metaforiza o que se vive na
contemporaneidade: a dissolução, ou reformulação da noção de fronteira, pela irrefreável
mundializaçãodetodososníveisderelaçõesnassociedades.DeacordocomHomiBhabha,
Nossaexistênciahojeémarcadaporumatenebrosasensaçãodesobrevivência,devivernas
fronteiras do “presente”, para as quais não parece haver nome próprio além do atual e
controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-
feminismo...(...)encontramo-nosnomomentodetrânsitoemqueespaçoetemposecruzam
para produzir figuras complexas de diferenças e identidade, passado e presente, interior e
exterior,inclusãoeexclusão.(BHABHA,2005,p.19–grifosdoautor)
Essa concepção globalizante de nação em trânsito coloca em cena a imagem das
identidades móveis de migrantes, expatriados ou refugiados, em constante embate entre a
negociação com a cultura da nação que os acolhe e a preservação de traços de suas
identidades.Oindivíduoqueviveosdeslocamentos,decorrentesdadiásporaoupelainvestida
emoutrase“novas”perspectivasdetrabalhoeascensãoeconômica,experimentaoinexorável
descentramentodeantigasconvicçõesemtornodastradiçõesdaterraedoscostumes,oque
levaaumanovaconcepçãode“estrangeiro”,reformulandoinclusiveoconceitodealteridade.
Aorefletirsobreessasquestões,JuliaKristevaobserva:
Hojecoloca-senovamenteaquestão,aindaetalvezsempreutópica,diantedeumaintegração
econômicaepolíticanaescaladoplaneta:podemosviverintimamente,subjetivamente,com
osoutros,viverosoutros,semostracismo,mastambémsemnivelamento?Amodificaçãoda
condiçãodosestrangeiros,queatualmenteseimpõe,levaarefletirsobrenossacapacidadede
aceitarnovasformasdealteridade.(KRISTEVA,1994,p.9–grifodaautora)
Nasnarrativashatounianas,osnarradoressãoosagregadosquequeremresolversuas
inquietaçõesidentitárias.Osimigranteslibaneses,comoseusavósadotivosoucomopatrões,
também são indivíduos deslocados em face da origem estrangeira. Imigrante ou nativo, a
questão que se coloca é quem de fato seria o estrangeiro? Quem vivencia a condição de
“expatriadoemsuaprópriaterra”(naspalavrasdeHatoum)?Aimagemdesseemaranhadode
115
contradiçõesedediferençasépontuadaporMariadaLuzP.Cristosituandoaquestãodos
narradoreshatounianos:
OsromancesdeHatoumcontemplamumarededecontradições,diferençasemisturasemque
estão mergulhados seus personagens. Libaneses, franceses, portugueses, alemães, índios e
caboclos, todos vivendo seus exílios, seja de que tipo for, lidando com suas diferenças e
dificuldades. Os narradores não falam do centro, são periféricos e dependem do outro, de
ouvirdooutro,parajuntocomsuaslembranças,teceremsuashistóriaseumlugardeonde
possamfalar.(CRISTO,2005,p.119)
Assim, as múltiplas vozes que representam esses valores constroem a narrativa
expondo asdiferençasapartir doponto de observaçãodos narradoresqueplanam sobreo
processodonarraremambososromances.
A casa da família imigrante, como vimos nos capítulos anteriores, é um ponto em
comum entre os dois romances, como lugar de embates identitários e discursivos e de
vivência das experiências desses narradores e, ao mesmo tempo, ponto de observação
privilegiadonopercursodamemóriaemdireçãoàinfância.
Essa casa é,ao mesmo tempo, abrigo earena, aconchego e palco de desavenças, é
propriedade particular e domínio alheio. É também campo de confluência das diferenças
étnicas e culturais, de um ocidente convivendo com um “certo” oriente, na figura dos
manauaras e dos imigrantes. E é nos recônditos da casa, metáfora da memória, que se
encontram, para os narradores, os traços das vivências significativas que marcaram
inexoravelmentesuasvidas.DeacordocomCury,
A casa tem significação especial a definir inclusive o próprio relato: a impossibilidade de
recuperar a moradia da infância – excessiva, rebuscada, pesada nas suas tradições –
metonimicamente diz da impossibilidade de reconstrução do eu narrador na escritura de
memórias,sendo,paradoxalmente,omotorprincipaldanarrativa.(CURY,2000,p.174)
Anoçãodeterritório,tãoprezadaporHatoum,comojápontueianteriormente,norteia
a exploração do espaço como lugar onde se estabelecem relações e que dão contorno à
reflexão sobrea identidade. Os sujeitos díspares de quetrato, agregados e imigrantes, que
dividem o mesmo espaço familiar, compartilham também as dualidades do “desejo de
identificação” traçado pela imagem do outro e de si mesmo em constante embate e como
116
pontoproblemático deconvergêncianarcísica, referidopor Bhabha.Ainda nestesentido,o
crítico indiano considera algumas questões a respeito da “emergência do sujeito humano
comosocialepsiquicamentelegitimado”.Sobesseprisma,
Essasidentidadesbinárias,bipartidas,funcionamemumaespéciedereflexonarcísicodoUm
noOutro,confrontadosnalinguagemdodesejopeloprocessopsicanalíticodeidentificação.
Paraaidentificação,aidentidadenuncaéumapriori,nemumprodutoacabado;elaéapenase
sempre o processo problemático de acesso a uma imagem da totalidade. As condições
discursivas dessa imagem psíquica da identificação serão esclarecidas se pensarmos na
arriscada perspectiva do próprio conceito da imagem, pois a imagem – como ponto de
identificação–marcaolugardeumaambivalência.(BHABHA,2005,p.85)
Essa imagem psíquica a que se refere o autor diz respeito à figura do “duplo”,
exploradaporFreudemseuensaio“Oestranho”(DasUnheimliche),em quedemonstraas
forças pulsionais de repulsa e desejo ligadas a recalques vividos na infância e que são
reavivadosnajuventudeporocasiãodeumasituaçãoamorosa.
Freud lança mão do conto “O homem daareia”, de E. T. A. Hoffmann, para fazer
sobressair,aoefeito sobrenaturalcausadopeloestranhamentodiantedafigura paternaede
seussubstitutos,umanoçãoaindamaisuniversalsobreaangústiaemgeralesobreadinâmica
doinconsciente(Cf.KRISTEVA,1994,p.191-192).
Dessemodo,osentimentoligadoàsconcepçõesdeMesmoedoOutrosemescla,ou
confunde-se,re-posicionandoasorientaçõesidentitáriasno âmbitodas relaçõesemergentes
dasreferidas“identidadesbinárias,bipartidas”,nodizerdeBhabha.Emoutraspalavras,
Freudassociaasuperaçãocomasrepressõesdeuminconsciente‘cultural’,umestadoliminar,
incerto, de crençacultural,emque o arcaico emergeem meio às margens da modernidade
comoresultadodealgumaambivalênciapsíquicaouincertezaintelectual.O‘duplo’éafigura
maisfreqüentementeassociadaaesseprocessoestranhoda‘duplicação’,divisãoeintercâmbio
doeu.(BHABHA,2005,p.204–grifosdoautor)
4.2Territóriosplurais
NosromancesdeHatoumháumaexploraçãorecorrentedosespaçoscontrastantesque
marcamosdualismosexistentes,desdeomaisamploambientecomoéoamazônico,emquea
117
cidade e a floresta formam um par de elementos antagônicos que se interpenetram, até os
traçosmaisprofundamentedessemelhantesentreossujeitosqueconvivemnacasafamiliar.
Nessesentido,pode-sefalaremdissoluçãodefronteiras,poisasdiferençasexistentes
mesclam-seformandoumacomposiçãohíbrida,tantoentreacidadeeaflorestaquantoentre
imigranteenativo,patrãoeempregado,filhoeagregado,casaequintal,quartoecortiço.Nas
palavras de Bhabha, o estranhamento vivido pelo indivíduo que se desloca de seu lugar
original,passapelanoçãodecasa,queseexpandeparaumanoçãodemundo:
(...) [vive-se um] “estranhamento” inerente àquele rito de iniciação extraterritorial e
intercultural. Os recessos do espaço doméstico tornam-se os lugares das invasões mais
intrincadasdahistória.Nessedeslocamento,asfronteirasentrecasaemundoseconfundeme,
estranhamente,oprivadoeopúblicotornam-separteumdooutro,forçandosobrenósuma
visãoqueétãodivididaquantodesnorteadora.(BHABHA,2005,p.30)
Refletindo ainda sobre a questão do deslocamento, sobre a situação de
desterritorializaçãoexperimentadanacontemporaneidadepelomigrante,StuartHallobserva
que,dealgumaforma,ohomemmodernocarregaemsiamarcadounheimlicheit,ouseja,a
sensação de não “estar em casa”. Em suas palavras, “esta é a sensação familiar e
profundamentemodernadedes-locamento,aqual–parececadavezmais–nãoprecisamos
viajarmuitolongeparaexperimentar.Talveztodosnóssejamos,nostemposmodernos(...)
unheimlicheit–literalmente,‘nãoestamosemcasa’.”(HALL,2003,p.27–grifosdoautor).
A citação que Hall coloca em seguida reflete bem a perspectiva do estudo dos romances
hatounianos,aquidelineado:
Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de
nossos começos e “autenticidade”, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos
retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o
inconscienteatravésdeseusefeitos,istoé,quandoesteétraduzidoparadentrodalinguageme
deláembarcamosnuma(interminável)viagem.(CHAMBERS,1990,apudHALL,2003,p.
27–grifosdoautor)
A viagem de volta ao lugar da infância, empreendida pela narradora inominada do
Relato, apresenta o contexto circundante ao dessas casas familiares que é capturado como
imagemplásticaqueficaestampadaemsuamemória.Avisãoaéreaquetemanarradoraao
118
chegaraManauséadanoitepontuadapelasluzes“deumaconstelaçãoterrestreeaquática”,
queconfundemosespaçosdorio,daselvaedacidade.
Tusobrevoasaselvaescuradurantehoras,enenhumciscoluminosodespontaquandooolhar
procura lá embaixo um sinal de vida. Nada anuncia o fim da longa travessia aérea:
bruscamente,comoasluzesdeumgigantescotransatlânticoaflutuarnumoceanoquesepara
dois continentes,umaconstelaçãoterrestreeaquáticateadvertequeaflorestaali mudade
nome, que o rio antes invisível agora torna-se um caminho iluminado (...). Essa claridade
disseminadaportodapartetefazpensarqueacidade,orioeaselvaseacendemaomesmo
tempoesãoinseparáveis.(Relato,p.164)
Nointeriordaterramanauara,aCidadeFlutuanteéumbairrodepalafitasqueaparece
nos doisromances comoum lugar ondese refugiamos personagens,como um desvio dos
embates vividos na casa da cidade esquecidos na mesa de um bar ou em conversas com
amigos do interior. Lugar que, como anuncia o próprio nome, não se fixa em solo firme,
assimcomoasvidasquelábuscamalento.
Para Halim, era o lugar favorito para deixar passar as horas e esquecer as
preocupaçõesdecasa:“(...)nãofossemosatritosentreosgêmeoseociúmeloucoqueZana
sentiadoCaçula,elenãoteriacomquesepreocupar.Podiapassarorestodotempo,osdias
ou anos do desfecho, entre as tabernas do porto, o labirinto da Cidade Flutuante e o leito
conjugal.” (Dois irmãos, p. 163). Em uma de suas idas a Manaus, Yaqub experimenta a
emoçãodoreencontrocomasimagensdainfânciaaonavegarpelorioecontornaraCidade
Flutuante: “A dor dele parecia mais forte que a emoção do reencontro com o mundo da
infância.ElemolhouorostocomaáguadorioepediuqueocanoeirocontornasseaCidade
Flutuante,ondejápiscavamchamasdevelasedecandeeiros.”(Doisirmãos,p.116).
Era nesse bairro que se refugiava, também, o marido de Emilie, inominado na
narrativa;lá,encontrava-secomosamigosquandoqueriaseisolardotumultodacasa.Esse
imigrante muçulmano procura afastar-se das festividades cristãs promovidas pela esposa,
cristãmaronita.
Assim,dentrodeumacasadeimigranteshátambémumacisão,irreparável,marcada
pela diferença religiosa. Isto é claramente pontuado pelo filho mais velho, Hakim, ao
119
recordar-sedeumdosepisódiosdedesavençaentreospaisporocasiãodoNatal,jádescrito
emcapítuloanterior.AquelemomentodefúriachamouaatençãodojovemHakimparauma
discórdianãopercebida.
Até então, a religião não causara graves desavenças entre meus pais. Ele encarava com
naturalidade e compreensão o fervor religioso de Emilie. Tolerava as festascristãs,masse
alheava com um desdém perfeito das preces elaboradas por Emilie, fazia vista grossa às
imagenseestátuasdesantos.(...)HindiénuncasoubequeAnastáciaservirademediadorana
desavençaentremeuspais,ouqueEmilieaincumbiradeencontraratodocustoomaridoe
trazê-lodevoltaantesdojantar.(...)SoubedepoisqueAnastáciapassaraodiaembuscado
meupai,atéencontrá-lonaCidadeFlutuante,conversandocomamigosdointerior.(Relato,p.
45,46)
Essa Cidade Flutuante pode ser lida como metáfora da Manaus imaginária nesses
romances,cujasfamíliasemseusconflitoscomasdiferençasirreconciliáveisflutuamsobreas
águascaudalosasdaspaixõesedasdessemelhançasentreseuspares,pois
Assimcomoa vegetação equatorial, na qualasplantas estão permanentementemorrendoe
florescendo, numa mistura de podridão e verdor, a cidade de Milton Hatoum é uma ruína
pululantedevitalidade.Ocheirodaflorestaalisemisturacomocheirodolodo.ACidade
Flutuante,bairrodepalafitas(...),poderiaserumametáforadessacidadesuspensanamemória
doromancista,cidadecujasmisériaseledesejariaesquecer,edecujosencantoselesemantém
vivo.(PERRONE-MOISÉS,2000,p.1)
A pluralidade cultural, com suas peculiaridades, aponta para a convivência, nem
semprepacífica,entreposicionamentospolítico-ideológicos,moraisereligiosos.Essestraços
díspares que caracterizam as diferentes culturas estão em constante tensão dentro de um
mesmo território, o que é profundamente explorado pelo autor dando espessura aos seus
personagensemarcandocomvigorodramadosnarradoresnacondiçãode,aomesmotempo,
pertenceremenãopertenceremàssuasfamílias.
Osnúcleosfamiliaressãomuitocarosaoautor,eashistóriasdefamíliasdeimigrantes
libanesesremeteminclusiveàsuasprópriasraízes,àsuaascendênciaoriental,eàconvivência
desdeainfância comalínguaárabe. Sabe-seque emfamíliasimigrantes ouemgruposde
refugiados,hásempreumapreocupaçãodepreservaraculturadeorigem,mantendoalguns
costumesgastronômicosealínguamaterna,comoformademanutençãodamemóriadopaís
natal.
120
Ao mesmo tempo, os estrangeiros necessitam também assimilar os costumes e
aprender a língua do país que os acolhe, onde vivem, moram, estudam, trabalham e
contribuem para o desenvolvimento econômico. Marli Fantini observa essa questão sob a
óticadeStuartHall,examinando-adopontodevistadasdualidadesexistentesnoâmbitodas
relaçõesdosexilados,imigranteserefugiados.Emrelaçãoaessespovosqueforamdispersos,
ou dos que se exilaram em busca de outras condições de vida no estrangeiro, a autora
consideraque,
Ainda que possam manter fortes vínculos com seus lugares de origeme suas tradições, as
pessoasqueseexilaramperderam,segundoHall,ailusãodeumretornoaopassado,vendo-se
assim,obrigadasanegociarsimbolicamentecomasnovasculturasaqueseagregaram.Ao
preservaralgunstraçosfundamentaisdesuasidentidades,comoastradições,aslinguagens,as
histórias particulares pelas quais foram marcadas, elas buscam proteger-se da assimilação
unificadoraehomogeneizantedesuanova“casa”.(FANTINI,2004,p.174,175)
Segundo Stuart Hall há um processo de re-configuração da própria noção de
identificação, acentuado pelas migrações massivas assistidas nas últimas décadas. Nesse
processo, assiste-se a uma nova forma de ver os conceitos de sujeito e de pátria. Sob seu
olhar,
(...)asidentidadesquecompunhamaspaisagenssociais“láfora”equeasseguravamnossa
conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em
colapso, como resultado de mudanças estruturais institucionais. O próprio processo de
identificação,atravésdoqualnosprojetamosemnossasidentidadesculturais,tornou-semais
provisório,variáveleproblemático.(HALL,1999,p.120)
Essanoçãodeinstabilidade,dedistanciamento,deisolamentocausadapordesajustes
nasrelaçõesepelaprópriacondiçãodedesenraizamentoqueseproliferanostemposatuais,
demonstra a condição do homem contemporâneo que experimenta verdadeiro exílio
existencial,dedesterritorialização.Essesembatessãovividospelosnarradoresepersonagens
dos romanceshatounianos, na medida emque procuram umasintonia entre suasorigens e
suascondições.
121
4.3Territóriosdevivências:encontroseerrância
OqueperpassaabuscaidentitáriadosnarradoresdashistóriasdeHatoum,comouma
correntezadeinquietações,éaconfluênciadasvozesrequisitadasparaotraçado,aindaque
em esboço, dos respectivos perfis identitários dos narradores centrais dos romances, que
carregamemsuasmemóriasumfeixedemuitas(eoutras!)histórias.“Outras”históriasque
povoamoimagináriodeNaeledanarradorainominada,tantoquedeslizamtambémsobrea
superfíciedostextosqueproduzem,àmaneiraderiosafluentes,comooNegroeoSolimões
quedeságuamnogranderioAmazonas.
Os portos de passagem, comopontos de comunhão entreas águas estrangeiras,por
ondeandaramigualmenteosimigrantesdeDoisirmãoseosdeRelatodeumcertoOriente
sãolugarespor ondetransitaramtambéma esperança e amelancolia.Esperança,dianteda
novidadedevidanaterraestrangeira;melancolia,pelopesodaausênciadaterranataledos
entes queridos, objetos do desejo de retorno. Desejo que para muitos fica confinado ao
imaginário,nosdesvãosdamemória.
Hatoum considera importante a noção de território como lugar de confluência de
elementos spares.Segundo ele,mais importanteque aidéia denação,como aconcebida
pelas revoluções modernas, é a noção de território de vivências que fica impregnada na
concepçãoestéticacomoumaformadeproblematizarasrelaçõesdeidentidade:
Aidéiadenaçãoedefederaçãoseajusta,desdeoadventodasnaçõesmodernas,muitomaisà
política. No entanto, quando Mário de Andrade pesquisou aspectos da nacionalidade
brasileira,eleressaltoueaprofundouoestudodapluralidadesocial(...).Eàsvezes,mesmo
quandoopaísnãoématériadoenredo,ounãoétratadoexplicitamente,temalgumacoisada
vida do escritor que é latente. (...) Umterritório, mínimo que seja, pode ser um mundo de
muitasculturas,éumlugarquetemumahistória,comsuasrelaçõesdeidentidade.Umacasa
numbairrodeManaus,asminhasviagensaorioNegro,aoAmazonas,sãoessesosterritórios
ondevivemmeuspersonagens,imigrantesenativos,algunsemtrânsito...(SCRAMIN,2000,
p.7)
122
Em outro momento, Milton fala da própria condição amazonense, como natural e
habitante de uma terra sem fronteiras, onde se mesclam línguas e culturas, saberes e
concepçõesdemundovariados.
Abrasilidadeestápresentenalíngua,masnãoseiatéquepontoestápresentenumapaisagem
brasileira:porquenãoseisesepodedefinirexatamente“paisagembrasileira”paraqueméda
Amazônia.AAmazônianãotemfronteiras;simháumadelimitaçãode“fronteiras”,maspara
nósnãopassamdefronteirasimaginárias.(...)Eparanós,nascidosnaAmazônia,anoçãode
terrasemfronteirasestámuitopresente...(HANANIA,1993,p.1)
Em ambas as obras hatounianas, além dos espaços domésticos, nos sobrados que
abrigam os recônditos das famílias, as fronteiras imaginárias dessa Amazônia são
representadaspelosrestauranteseportos,mercadosepraçascomopontosdeencontroentre
estes mundos dessemelhantes e ao mesmo tempo tão mesclados, marcando um lugar de
confluênciaentreimigrantesdediferentesnacionalidades.
Segundo Bhabha, ao relatar sobre sua experiência de migração, o momento da
dispersãotransforma-seemummomentodereuniãodepovosdediferentesprocedênciasna
terradooutro,
(...)reunindo-seàsmargensdeculturas‘estrangeiras’,reunindo-senasfronteiras;reuniõesnos
guetosoucafésdecentrosdecidade;reuniãonameia-vida,meia-luzdelínguasestrangeiras,
ou na estranha influência da língua do outro (...) reunindo o passado num ritual de
revivescência;reunindoopresente.(BHABHA,2005,p.198)
AnarradoradoRelatoobservaestaaproximaçãoentreaterradeixadapeloimigrantee
aterraestrangeiraadotadaparaumanovavida:
Se algo havia de análogo entre Manaus e Trípoli, não era exatamente a vida portuária, a
profusãodefeirasemercados,ogritodosmascatesepeixeiros,ouatezmorenadaspessoas;
na verdade, as diferenças, mais que as semelhanças, saltavam aos olhos dos que aqui
desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase sempre pressupõe uma mudança na
vida(...).(Relato,p.28)
OalemãoDorner,fotógrafoepesquisadordafloraamazonense,eratambémlembrado
pelanarradoracomoalguémquedecidiraviveremumaterraestrangeira:
PenseitambémemDorner,essemorador-ascetadeumacidadeilhada,obstinadoempassar
todaumavidaaproferirliçõesdefilosofiaparaumpúblicofantasma,obcecadopeloaroma
dasorquídeas,daservascomfolhascarnosasedasfloresandróginas.Eleconviviahámuito
tempoentreoslivroseummundovegetal,eeracapazdenomeardecortrêsmilplantas.Não
possosaberseasolidãoodilacerava,sealgumamorbidezhavianadecisãodefixar-seaqui,
123
escutando a sua própria voz, dialogando com o Outro que é ele mesmo: cumplicidade
especular,perversaefrágil.(Relato,p.134,135)
Elaprópriaviveaexperiênciadesentir-seestrangeiraemsuaterranatal,aopassear
pelas ruas e bairros afastados da cidade. Sente-se estranha (unheimlich) sob o olhar de
estranhezadeoutrosnativos:
Haviamomentos,noentanto,emquemeolhavamcominsistência:sentiaumpoucodetemor
e estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua,
assimcomoaameaçae omedo.Eeunãoqueriaserumaestranha,tendonascidoevivido
aqui.(Relato,p.123)
Aochegaràterraamazônica,opatriarcainominadodoRelatocompreendeu,“como
passardotempo,queavisãodeumapaisagemsingularpodealterarodestinodeumhomeme
torná-lomenosestranhoàterraemqueelepisapelaprimeiravez.”(Relato,p.73).
EmDoisirmãos,orestauranteBibloséolugardeencontrodeestrangeiros,ondeas
diferenteshistóriasememóriasdaterranatalsecruzam.Esterestauranterepresenta,assim,o
lugarde“reuniãodepovosdediferentesprocedências”:
Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e
judeusmarroquinosquemoravamnapraça Nossa Senhora dosRemédiosenosquarteirões
que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa
algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que
contavamumpoucodetudo:umnaufrágio,afebrenegranumpovoadodorioPurus,uma
trapaça,umincesto,lembrançasremotaseomaisrecente:umadoraindaviva,umapaixão
aindaacesa,aperdacobertadeluto,aesperançadequeoscaloteirossaldassemasdívidas.
Comiam,bebiam,fumavam,easvozesprolongavamoritual,adiandoasesta.(Doisirmãos,p.
47,48)
Essaexperiênciadefixaçãonaterraestrangeiraeasmisturasexóticasresultantes,bem
comoamiscelâneagastronômica,quemarcaoencontroentreasculturas,ficamexpressasem
Galib,paideZana,odonodorestaurante.Nesseespaçobabélicoporexcelência,perpassaa
consciênciadoimigrante,desuaerrância,quesabequeestáemoutrolugar,emumespaço
movediço onde se cruzamesperança e angústia, osentimento de estare de não pertencer.
Assim,nasreflexõesdeBrandãoSantos,
A voz do imigrante está sempre entre outras vozes. Uma margem que está entre outras
margens,queéaramificaçãodaprópriamargem.Atravessiadalínguadoimigrantesedáno
interior de uma outra língua. A fronteira da nação do imigrante está dentro de uma outra
fronteira de nação: é a cisão da própria fronteira. O imigrante é aquele que traz à tona a
124
intensidadedacertezadequeestaraquiéestaremoutrolugar,ouainda,queestarésempre
umamediaçãoentredoisespaços,átimoqueseparaeuneoestáticoeodinâmico.(SANTOS,
2000,p.53–grifosdoautor)
A porosidade existente entre as fronteiras culturais nos espaços de reunião de
imigrantes e destes com os nativos, imprime a formação de uma “nova” identidade, de
natureza brida, revelando que os costumes são intercambiáveis fazendo surgir um novo
conceitodesujeitonacional.Aquelequesedeslocoudesuaterraacalentaumdesejoíntimo
de retorno à casa, à terra de origem. Porém, osujeito que vive ouviveu a experiência da
diáspora,oumesmodoauto-exílio,nãoseencontranemcomoomesmo,nemcomoooutro.
Deve,portanto,investiremuma“negaçãonecessáriadeumaidentidade”,deacordocomas
observaçõesdeBhabha:
OOutrodeveservistocomoanegaçãonecessáriadeumaidentidadeprimordial–culturale
psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado
comorealidadelingüística,simbólica,histórica.Se,comosugeri,osujeitododesejonuncaé
simplesmenteumEuMesmo,entãooOutronuncaésimplesmenteumAquiloMesmo,uma
frentedeidentidade,verdadeouequívoco.(BHABHA,2005,p.86–grifosdoautor)
Essegolpedramáticoencaminhaaumsentimentodealienaçãoconstantequetalvez
nuncapossasersuperado.Essesentimentopodeserexemplificadoporumapassagemrelatada
porEdwardSaidnaqualdescreveummomentosingularemqueumamigopoeta,recitando
algunsversos,pareceterseesquecido”dosentimentoalienantemarcadopeloexíliopolítico
emquevivia:
Verumpoetanoexílio–aocontráriodelerapoesiadoexílio–éverasantinomiasdoexílio
encarnadasesuportadascomumaintensidadesempar.Háváriosanos,passeialgumtempo
com Faiz Ahamad Faiz, o maior dos poetas urdus contemporâneos. Ele foi exilado de seu
PaquistãonativopeloregimemilitardeZia(...).Somenteumavez,quandoEqbalAhmad,um
amigopaquistanês e colega de exílio, foi a Beirute[onde havia sidoacolhido], Faiz deu a
impressãodesuperarseusentimentodealienaçãoconstante.Certofimdenoite,nóstrêsnos
instalamosnumrestauranteencardidoeFaizrecitoupoemas.Depoisdealgumtempo,elee
Eqbalpararamdetraduzirosversosparamim,mascomoavançardanoite,issodeixoudeter
importância. Não era preciso tradução para o que eu observava: era uma representação da
volta para casa expressa por meio de desafioe perda, comose quisessem dizer: “Zia, aqui
estamos”.Evidentemente,Ziaeraquemestava,defato,emcasaenãoescutariasuasvozes
exultantes.(SAID,2003,p.47,48)
Essa poesia arraigada nopoeta parece atestaro sentimentodo exilado dedesejo de
retornar à casa. Neste episódio pode-se divisar um curioso posicionamento, referido por
125
Bhabha,dosujeitoqueencena“naescritadospoemas”umjogometonímicoquestionandoa
própriaidentidade.Assim, “articula-senaquelasinstâncias interativas,quesimultaneamente
marcamapossibilidadeeaimpossibilidadedaidentidade,apresençapormeiodaausência.”
(BHABHA,2005,p.87)
Para Galib, a expectativa pela viagem ao Líbano ensejou a despedida de Manaus,
comemoradacomsuaarteculinária:
Elepreparoueserviuoúltimoalmoço:afestadeumhomemqueregressaàpátria.Jásonhava
comoMediterrâneo,comopaísdomaredasmontanhas.SonhavacomosCedros,seulugar.
Paralávoltou,reencontroupartesdispersasdoclã,osquepermaneceram,osquerenunciaram
aaventurar-seembuscadeumoutrolar.(Doisirmãos,p.55)
Devoltaàterranatal,Galibcelebraosentimentodejúbilopeloregressoàcidadeque
deranomeaoestabelecimentoemManaus,àBiblosnoLíbano,ondereencontraraparentese
“festejava a volta cozinhando acepipes amazônicos: o pirarucu seco com farofa, tortas de
castanha,coisas quelevara doAmazonas.” (Dois irmãos,p. 56).A arte culináriadeGalib
parecetrazerparasiumpoucodacasabrasileiraquesemisturavaaolarlibanês.
OsentimentodejúbiloexperimentadoporGalibéexperiênciacompartilhadaporele
por meio de cartas à filha. Para Galib, o ansiado regresso ao lar tornou-se, para Zana, a
experiência marcante de perda do pai, à distância, ferida pela impossibilidade do ritual de
sepultamento,obrigadaaenterrá-lonojazigodoesquecimento.Dramaexpressonaspalavras
deHalim:
“Voltar para a terra natal e morrer”, suspirou Halim. “Melhor permanecer, ficar quieto no
canto onde escolhemos viver.” (...) “O oceano, a travessia... Como tudo era tão distante!”,
lamentouHalim.“Quandoalguémmorrianooutroladodomundo,eracomosedesaparecesse
numa guerra, num naufrágio. Nossos olhos o contemplavam o morto, não havianenhum
ritual.Nada.Sóumtelegrama,umacarta... A minha maior falha foi ter mandadooYaqub
sozinhoparaaaldeiadosmeusparentes”, dissecomuma vozsussurrante. “MasZanaquis
assim...eladecidiu.”(Doisirmãos,p.56,57)
Halim suspira, lamenta, sussurra e expressa ao narrador os sentimentos que são
reavivados ao recordar o sofrimento da esposa pela perda do pai. Suas reflexões sobre a
condiçãoestrangeiraolevamaconstatarqueépreferível“olugarondeescolhemosviver”a
126
morrernaterranatalparaaqualsonhararetornar.Háumoceanoqueseparaasduasterras.A
distância entre os territórios impõe sobre esses sujeitos uma verdade inamovível, mais da
ordempsíquicaquedatopográfica:sairdecasa,paranuncamaisvoltar.
Nasconversas entreo narrador eo avô,a seringueira, árvorenatural da Amazônia,
fixa-se como um elemento imponente marcando a ambigüidade do lugar de onde brota a
narrativa.Halimédeorigemlibanesa,suaterranatalencontra-sedooutroladodooceano,
onde nascem os cedros resistentes às intempéries do clima do oriente. Halim é árvore
enxertadaemsoloestrangeiro,emManaus,ondeescolheuviver.Aseringueiramarca,para
essevelho,apassagemdotempo:do“leitodefolhas”dajuventudecomZanaeseusarroubos
de paixão e prazer incontidos, ao silêncio da “árvore velha, meio morta”, entregue às
lembrançasdosanosdaconquistaamorosa:
“Alimesmo,debaixodaseringueira”,apontoucomoindicadordamãoenrugadamasfirme.
“Eranossoleitodefolhas.Davaumacoceiradanada,porqueaquelecantodomatoeracheio
de urtigas. Foi assim até o nascimento dos gêmeos.” (...) Certa vez tentei fisgar-lhe uma
lembrança:nãorecitavaosversosdoAbbasantesdenamorar?Elemeolhou,bemdentrodos
olhos,eacabeçasevoltouparaoquintal,oolharnaseringueira,aárvorevelha,meiomorta.E
sósilêncio.Perdidonopassado,suamemóriarondavaatardedistanteemqueovirecitaros
gazaisdeAbbas.(Doisirmãos,p.69,90)
4.4Liçõesdoexílio
Essa impossibilidade do retorno está mais ligada à impossibilidade de o sujeito
recuperaruma supostainteireza: nãose émais omesmo. Coloca-seaqui, novamente,uma
dualidadenecessáriaparaapreservaçãodamemória(individualoudanaçãodeorigem):o
embateentrea lembrança eo esquecimento. Bhabhapontua esteaspecto dizendo que“ser
obrigadoaesquecersetornaabasepararecordaranação,povoando-adenovo,imaginandoa
possibilidade de outras formas contendentes e liberadoras de identificação cultural.”
(BHABHA,2005,p.226,227)
127
Noâmbitodessasrupturas,marcadaspelare-significaçãodessasnoçõesdesujeitoede
lar,opersonagemYaqub,umdosgêmeosdeDoisirmãosmanifestaasmarcasdessafratura
experimentadapelosujeitoemerrância,deslocadoemsuaprópriaterraeestranhoàspróprias
raízes.
Noromance,oqueganharelevonodesenrolar dos fatos éoembatequeseenraíza
entre os gêmeos. A tensão existente entre os irmãos encaminha desdobramentos de ordem
psíquicaesocial.Psíquica,porqueligadaadesejosreprimidosnatenraidade;social,porque
envolve tensões que extrapolam o núcleo familiar. É possível que a grande disputa
desencadeada entre os gêmeos esteja relacionada a um desejo de posse, uma pulsão que
canalizaasenergiasemproldaconquistadoobjetodesejado.Asatitudesintempestivase,por
vezes, animalescas de Omar marcam um contraponto com o comportamento austero e
racionalmenteesquadrinhadodeYaqub.
Acenadabrigaentreosirmãos,aostrezeanosdeidade,abreagrandefissuraondese
inscreveamarcadadessemelhançaentreosgêmeos.Aaparentehomogeneidadetraçadapelo
aspectofísico,poissãogêmeosidênticos,éfragmentadapelasdiferençastemperamentaisque
resguardamaindividualidadedecadaum.
Umobjetodedesejoconstituídopelafigurafemininachamaaodueloosirmãosque,
nadisputapelaposse,colocam-seemconfrontoviolento,resultandonoexíliodeambos,na
separação diante da impossibilidade de conciliação. A disputa pela atenção de uma garota
deflagra a cena em que se inscreve a marca da assimetria entre os irmãos, o rastro da
dessemelhançaentreeles,acicatriz.
Ameninonaloiraapreciavaumseloraro,eseusbraçosroçavamos dosgêmeos.Alisavao
selocomoindicador(...)Líviasorriaparaum,depoisparaooutro,edessavezfoioCaçula
quem ficou enciumado (...) tirou a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e arregaçou as
mangasdacamisa.Bufou,seesforçouparaserdócil.Balbuciou:“Vamosdarumavoltano
quintal?”,eela,olhandooselo:“Masvaichover,Omar.Escutasóastrovoadas”.Entãoela
tirouumselodoálbumeofereceu-oaYaqub.OCaçuladetestouisso(...)olhavadengosapara
osdois;àsvezes,quandosedistraía,olhavaparaYaqubcomosevissenelealgumacoisaque
ooutronãotinha.(...)Umapanenogeradorapagouasimagens,alguémabriuumajanelaea
platéia viu os lábios de Lívia grudados no rosto de Yaqub. Depois, o barulho de cadeiras
128
atiradasnochãoeoestourodeumagarrafaestilhaçada,eaestocadacerteira,rápidaefuriosa
doCaçula.Osilênciodurouunssegundos.EentãoogritodepânicodeLíviaaoolharorosto
rasgadodeYaqub.(...)OCaçula,apoiadonaparedebranca,ofegava,ocacodevidroescuro
namãodireita,oolharacesonorostoensangüentadodoirmão.(...)Acicatrizjácomeçavaa
crescernocorpodeYaqub.Acicatriz,adorealgumsentimentoqueelenãorevelavaetalvez
desconhecesse.(Doisirmãos,p.26-28)
Apósesseepisódiocresceagranderivalidadeentreosirmãosquetravamumduelo
para toda a vida. Os pais temiam a reação de Yaqub, que ele se tornasse violento, então
decidempelaseparaçãodosdois.Omarpermanecenacasadafamília,emManaus,noâmbito
limiar entre a cidade da orgia e a mata amazônica, exótica e erótica. O primogênito é
forçosamente arrancado do seio familiar, exilado pelos pais. Vive um ostracismo que o
conduzaum“desenraizamento”emrelaçãoàssuasorigens.Omar,porsuavez,éempurrado
aumavidadesregrada,orgíaca,lançando-seaumaquedavertiginosa.
“Caradelacrau”,diziam-lhe na escola. “Bochechadefoice.”Osapelidos,muitos,todasas
manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais tiveram de conviver com um filho
silencioso. Temiam a reação de Yaqub, temiam o pior: a violência dentro de casa. Então
Halimdecidiu:aviagem,aseparação.Adistânciaqueprometeapagaroódio,ociúmeeoato
queosengendrou.YaqubpartiuparaoLíbanocomosamigosdopaieregressouaManaus
cincoanosdepois.Sozinho.(Doisirmãos,p.28,29)
Temposdepois,jádevoltaaManaus,ofilhoexiladoéreconhecidopeloseusilêncio–
empartepelapoucapráticadalínguamaternaduranteoperíododeausência,poroutrolado
peloressentimentocontidoeporsuatendênciaacircunspecção.
Ali,trancadonoquarto,elevaravanoitesestudandoagramáticaportuguesa;repetiamilvezes
aspalavrasmalpronunciadas:atonito,emvezdeatônito.Aacentuaçãotônica...umdramae
tantoparaYaqub.Maselefoiaprendendo,soletrando,cantandoaspalavras,atéqueossons
dosnossospeixes,plantasefrutas,todoessetupiesquecidonãoembolavamaisnasuaboca.
Mesmoassim,nuncafoitagarela.Eraomaissilenciosodacasaedarua,reticenteeextremo.
Nessegêmeolacônico,carentedeprosa,cresciaummatemático.Oquelhefaltavanomanejo
doidiomasobrava-lhenopoderdeabstrair,calcular,operarcomnúmeros.eparaisso”,dizia
opai,orgulhoso,“nãoéprecisolíngua,sócabeça.Yaqubtemdesobraoquefaltanooutro.”
(Doisirmãos,p.31)
A ascensão do matemático leva-o a buscar voluntariamente seu deslocamento para
outracidade,São Paulo,tornando-se“um outroYaqub,usandoa máscarado quehaviade
mais moderno no outro lado do Brasil.” (Dois irmãos, p. 61). Em contraposição, o irmão
mantém-se em seu ambiente, no Norte, na região manauara, ele “era presentedemais: seu
129
corpoestavaali, dormindono alpendre. O corpoparticipavadeum jogoentreainérciada
ressacaeaeuforiadafarranoturna.”(Doisirmãos,p.61).Yaqubconquistasuaautonomiae
passaaconstruirsuaidentidadesobreosfragmentosdeexperiênciasvividasnaadolescência.
EsseYaqub,queembranqueciafeitoosgaemparedeúmida,compensavaaausênciadosgozos
dosoledocorpoaguçandoacapacidadedeequacionar.(...)Ooutro,oCaçula,exageravaas
audáciasjuvenis:gazeavaliçõesdelatim,subornavaporteirossisudosdocolégiodospadrese
saíaparaanoite,fardado,transgressordospésaogogó,rondandoossalõesdaMalocados
Bares,doAcapulco,doCheikClub,doShangri-Lá.(...)Halimpreparavaumareação,uma
puniçãoexemplar,masaaudáciadoCaçulacresciadiantedopai.Nãosevexava,pareciaum
filhosemculpa,livredacruz.Masodaespada.(...)Opaiorepreendia,davaoexemplodo
outro filho, e Omar, mesmocalado, parecia dizer:Dane-se!Danem-setodos, vivoa minha
vidacomoquero.(Doisirmãos,p.32,33)
Demarcados algunstraços dadessemelhança inscrita entreos gêmeos, desenha-se a
impossibilidadedeconciliaçãoentreambos,tendoemvistaseremestranhosentresi,tamanha
aincompatibilidadeexistencial.
Nestesentido,osirmãosdescobrem-seoponentes,contrários,estranhamenteinimigos.
Rivalidadequedeveriapermaneceroculta,masveioàluz;oestranho,oqueédomésticoé,ao
mesmotempo,forasteiro(unheimlich).
AcicatriznorostodeYaqubsintetizaotraçodeestranhamentoemrelaçãoaoseupar
consangüíneo;marcaemformademeia-lua,estampadeumaestrangeiridadedefinidaporum
dueloimplacável.Duplosque,emconfronto,nãosubsistemnomesmoespaço.
Osdoisseolharam.Yaqubtomouainiciativa:levantou,sorriusemvontadeenafaceesquerda
a cicatriz alterou-lhe a expressão. Não se abraçaram. Do cabelo cacheado de Yaqub
despontava uma pequena mecha cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os
distinguiaeraacicatrizpálidaeemmeia-luanafaceesquerdadeYaqub.Osdoisirmãosde
encararam.Yaqubavançouumpasso,Halimdisfarçou,faloudocansaçodaviagem,dosanos
deseparação,masdeagoraemdianteavidaiamelhorar.Tudomelhoradepoisdeumaguerra.
(...)Poucofalaram,eissoeratantomaisestranhoporque,juntos,pareciamamesmapessoa.
(Doisirmãos,p.24,25)
Demarcada está a heterogeneidade entre os irmãos, o que encaminha ao inexorável
apagamentodeumdeles.Paraonarrador,apresençaindolentedeOmar,otomdesuavoz
semprepresentepareciaquererapagaraexistênciadeYaqub.OCaçulacaçoavadascartase
dasfotografiasqueoirmãoenviavaàfamílianolongoperíodoqueviveuemSãoPaulo.
130
Nãoparticipavadaleituradas cartas,ignoravaooficialdareservae futuropolitécnico.No
entanto,mangavadasfotografiasexpostasnasala.“Umlesãocompintadeimportante”,ele
dizia,ecomumavoztãoparecidacomadoirmãoqueDomingas,assustada,procuravanasala
umYaqubdecarneeosso.Amesmavoz,amesmainflexão.Naminhamente,aimagemde
Yaqub era desenhadapelo corpo epela vozde Omar.Nestehabitavamos gêmeos, porque
Omar sempre esteve por ali, expandindo sua presença na casa para apagar a existência de
Yaqub.(Doisirmãos,p.62)
Asemelhançafísicanãosedá,paraosirmãos,comorecursodeautoconhecimentoe
deaproximaçãodooutro;é,pelocontrário,pretextoparaodistanciamentoirremediávelepara
os danos irreparáveis que daí decorrem. Neste sentido, Yaqub e Omar não se vêm um no
outro; cada qual se posiciona em relação especular, como traço da rivalidade, do ódio, da
diferença.Naspalavras deNael, “oduelo entre osgêmeos erauma centelha queprometia
explodir.” (Dois irmãos, p. 62). Para Kristeva, o estrangeiro, o estranho, habita em nós
mesmos,aindaquesimbolizeoódioeaopacidadedooutro:
(...)traçoopaco,insondável.Símbolodoódioedooutro.(...)Estranhamente,oestrangeiro
habitaemnós:eleéafaceocultadanossaidentidade,oespaçoquearruínaanossamorada,o
tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. (...)o estrangeirocomeça quando
surgeaconsciênciademinhadiferençaeterminaquandonosreconhecemostodosestrangeiros
(...)Masainsistênciadeumrevestimento–bomoumau,agradáveloumortífero–perturbaa
imagem jamais uniforme de sua face elheimprimea marca ambígua de umacicatriz (...).
(KRISTEVA,1994,p.9-12)
Aconstataçãodessaestranhaduplicidadeentreosgêmeos,gravadanorostoemforma
decicatriz,encaminhaaconsiderartalmarcacomoorastroquepresentifica,ouquesintetiza,
a condiçãodesses indivíduos, cuja impossibilidade de convívio levaà separação, ao exílio
irremediável,aindaqueesteapresente-senaformadesilêncio.Oressentimentoeavingança,
porpartedeYaqub,sãooquedemaisforteedecisivorepresentamparataldistanciamento.
Seu ressentimento expressa-se em palavras ásperas ou em frases reticentes, que deixam
suspensos os dramas interiores que poderiam talvez revelar outras facetas do passado do
narrador. O esquecimento traça aqui uma fronteira intransponível, pois o que se cala na
memóriadeYaqubsobresuaexperiênciapassaapertencersomenteaele.
“NãomoreinoLíbano,seuTalib.”Avozcomeçoumansaemonótona,masprometiasubirde
tom.Esubiutantoqueaspalavrasseguintesassustaram:“Memandaramparaumaaldeiano
sul, e o tempo que passei lá, esqueci. É isso mesmo, já esqueci quase tudo: a aldeia, as
pessoas,onomedaaldeiaeonomedosparentes.Sónãoesquecialíngua...”.
131
“Talib,nãovamosfalar...”.
“Nãopudeesqueceroutracoisa”,Yaqubinterrompeuopai,exaltado.“Nãopudeesquecer...”,
elerepetiu,reticente,esecalou.(Doisirmãos,p.1118,119)
Sem se dar conta, o estrangeiro, o outro, habita estranhamente dentro de si;
considerandoaspalavrasdeRâniasobreasordidezdoirmão,onarradordizqueairmãdos
gêmeos
Foicorajosa:nareclusãoquelheeravital,nasolidãodesolteironaparasempre,escreveua
Yaqub o que ninguémousara dizer. Lembrou-lheque a vingança é maispatéticado que o
perdão.Jánãosevingaraaosoterrarosonhodamãe?Nãoaviumorrer,nãosabia,nunca
saberia. Zana havia morrido com o sonho dela soterrado, com o pesadelo de uma culpa.
Escreveuqueele,Yaqub,oressentido,orejeitado,eratambémomaisbruto,omaisviolento,
eporissopodiaserjulgado.(Doisirmãos,p.261)
Assim,apercepçãodograndeabismoexistenteentreosirmãostrazàtonaarevelação
darecusadooutro,dodiferente,doestranhoqueconduzaumaidentificaçãodaquiloqueum
éemrelaçãoaooutro:extensãoenegação,simultaneamente.Ou,naspalavrasdeKristeva,“a
faceocultadaidentidade”(1994,p.9),avisãoincômodadaausênciadeumahomogeneidade.
4.5Alinguagemdoexílio
Esse sentimento de estranhamento em relação à própria terra é experimentado por
Hakim, o filho mais chegado de Emilie em Relato de um certo Oriente. Hakim, filho de
imigrantes,nascidoemManaus,forainiciadonalínguaárabepelaprópriamãe,aprendendo
semnenhummétodoalínguaeaculturadeseusancestrais.
AsprimeirasliçõesforampasseiosparadesvendarosrecantosdesabitadosdaParisiense,os
quartos e cubículos iluminados parcialmente por clarabóias: o corpo morto da arquitetura.
Sentia medo de entrar naqueles lugares, e não entendia porque o contato inicial com um
idiomainaugurava-secomavisitaaespaçosrecônditos.Depoisdeabrirasportaseacendera
luzdecadaquarto,elaapontavaparaumobjetoesoletravaumapalavraquepareciaestalarno
fundodesuagarganta;assílabas,deinícioembaralhadas,logoeramlapidadasparaqueeuas
repetisse várias vezes. Nenhum objeto escapava dessa perquirição nominativa que incluía
mercadoriaseobjetospessoais(...).elaensinavasemqualquermétodo,ordemouseqüência.
Aolongodessaaprendizagemabalroadaeuiavislumbrando,talvezintuitivamente,ohalodo
“alifebata”,atédesvendaraespinhadorsaldonovoidioma(...).(Relato,p.51)
132
A aprendizagemda línguaárabe inscreveem Hakimuma memórialigadaà família
imigrante,atradiçãodeumaculturaquenãoconheceemsuaraiz,mascomolegadofamiliare
forma de resistência a uma homogeneização do estrangeiro na terra do outro. Com isso,
Hakimencontra-secindido,diantedeumadualidadeidentitáriaqueoafastadaterraancestral
e,aomesmotempo,lheimpõetemordiantedaprópriaterraamazônica.
EssesentimentodeexílioencontradoemHakiméexpressoemumapassagememque
revela sua relutância em avançar para além dos limites da cidade evitando aventurar-se a
conhecerafloresta,queoamedrontava.
Para mim, que nasci e cresci aqui, a natureza sempre foi impenetrável e hostil. Tentava
compensar essa impotência diante dela contemplando-a horas a fio, esperando que o olhar
decifrasseenigmas,ouque,semtransporamuralhaverde,elasemostrassemaisindulgente,
como uma miragem perpétua e inalcançável. Mais do que o rio, uma impossibilidade que
vinhadenãoseiondedetinha-meaopensarnatravessia,naoutramargem.(Relato,p.82)
Há,portanto,nessefilhodeimigrantesumahesitaçãocriadapelaconvivênciadiária,
naescolaenasruas,comalínguamaterna(quecuriosamente,aqui,nãoéalínguadamãe)e,
dentrode casa, coma língua dafamília libanesa, dandoa ele a “impressão deviver vidas
distintas.”(Relato,p.52).Poroutrolado,essecompartilhamentodavaaEmilieacomodidade
de sentir-se em sua própria terra, chegando a entregar-se às lembranças do Líbano
descrevendo-o,semsedarconta,emárabeàempregadaAnastácia:
Impassível,comoolharvidradonorostodeEmilie,Anastáciaaproveitavaumapausanavoz
dapatroa,empinavaocorpoeindagava:comoéomar?oqueéumaruína?ondeficaBalbek?
ÀsvezesEmiliefranziaatestaemecutucava,querendoqueeuelucidassecertasdúvidas.É
curioso,poissemsedarconta,tuaavódeixavaescaparfrasesinteirasemárabe,eéprovável
que nesses momentos ela estivesse muito longe de mim, de Anastácia, do sobrado e de
Manaus.(Relato,p.90)
A aprendizagem da língua árabe pelo filho manauara, como eleito para guardar a
memória da tradição da família, colocavaHakim em posiçãoprivilegiada para Emilie. Ele
percebeuque amãeensinou somenteaele, excluindoosdois irmãosinominados e airmã
Samara Délia, para que pudesse com ele compartilhar todos os momentos de sua vida,
133
inclusiveos dedespedida.Eracomose a vidadamãeo contaminasse eimpusessea elea
responsabilidadedecontinuaratradiçãodafamílialibanesanaquelaterraestrangeira.
Essa contaminação de angústias, a minha idolatria por Emilie, a sua intromissão na minha
vida,tudoseacentuavapelofatodeeucompreenderquandoelafalavanasualíngua.Porque,
ao conversar comigo, minha mãe não traduzia, não tateava as palavras, não demorava na
escolhadeumverbo, nãoresvalavanasintaxe.Eeu sentiaisso:cheiadeprazer, soberana,
desprendidadetudo,elapodiaelegeroscaminhosporondepassaoafeto:oolhar,ogestoea
fala.Quandolhecomuniqueidiantedosoutrosirmãosaminhadecisãodeiremboradaqui,ela
expressousuasurpresacomumatorrenteverbalquesónósdoisentendemos.(Relato,p.102,
103)
Contudo,ummotivobastanteincisivofazcomqueHakimdiga:“Naverdade,fuieu
quemeexileiparasempre”(Relato,p.81).Essafraseéexplicadaporeleaomencionarsua
indignação diante do tratamento de dominação sutil exercido sobre os nativos manauaras
pelosimigrantes,inclusiveemsuaprópriacasa.
Eu presenciava tudo calado,moídode dor na consciência, ao perceber que osfâmulos não
comiamamesmacomidadafamília,eescondiam-senasedículasaoladodogalinheiro,nas
horasdarefeição.Ahumilhaçãoostranstornavaatéquandolevavamacolherdelatãoàboca.
Além disso, meus irmãos abusavam como podiamdas empregadas, queàs vezes entravam
numdiaesaíamnooutro,marcadaspelaviolênciafísicaemoral.(...)Vozesríspidas,injúrias
e bofetadas tambémparticipavam desteteatrocruelno interior do sobrado.[Tudoisso] me
deixouconstrangidoeapressouaminhadecisãodepartir,eassimvenerarEmiliedelonge.
(Relato,p.86)
No sobradoda família deHakim não era diferente otratamento hostilparacom os
nativos,porém nãodapartedo maridodeEmilie,quese enfureciaao saberdasinvestidas
abusivas às empregadas. Certa ocasião, o pai irrompeu na casa com um cinturão na mão,
enraivecidoaosaberqueumadasdomésticashaviaengravidadodeumdosirmãosdeHakim.
Estavalendonoquartoquandoescuteiumalvoroçonaescada:gritos,choro,convulsões.Corri
paraveroqueacontecia,eviumdosmeusirmãosarrastandoumadasnossasex-empregadas
comumbebêentreosbraços.(...)AmulherlevouacriançaàParisienseecontoucoisasameu
pai.Foiumadaspoucasvezesqueovicegodeódio,osolhosincendiadosdefúria.(...)fiquei
estatelado ao divisar seu corpo alto e um pouco curvado surgir no vão da porta; levava
enroscadonopunhoocinturão,talumaserpentenegraedelgada;(...)eescuteitambém,pela
primeira vez nos seus acessos de fúria, uma frase em português; gritou entre pontapés e
murrosnaporta,queumfilhoseunãopodeescarrarcomoumanimaldentrodocorpodeuma
mulher.(Relato,p.86,87)
EmboraEmilie,muitasvezes,sereferisseàs“caboclas”como“umassirigaitas,umas
espevitadasqueseesfregamnomatocomqualquerumecorremaquiparamendigarleitee
134
unstrocados”(Relato,p.87),amatriarca,emrelaçãoaAnastáciaSocorro,nutriarespeitoe
reconhecimento. Segundo Hakim, Anastácia escapara dos assédios dos irmãos porque
suportavatudoepornãoteratrativosfísicos.
Em relação aos serviçais, embora o fato de a patroa dar comida e presentes aos
empregadoseaosfilhospudesseindicarumgestodegenerosidade,naspalavrasdonarrador
Hakim, “as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar,
procedimentocorriqueiroaquinonorte.Masagenerosidaderevela-seouseescondenotrato
comoOutro,naaceitaçãoourecusadooutro.”(Relato,p.85).
Há,porém,porpartedamatriarca,umarelaçãoderespeitoeconsideraçãopelariqueza
manauarana figura de algunsnativos, como aempregada Anastácia.Embora, às vezes, se
queixe de que ela aproveitava-se de sua generosidade para comer bem e que “abusava da
paciênciadelanosfinsdesemanaemquealavadeirachegavaacompanhadaporumséquito
deafilhadosesobrinhos.”(Relato,p.85),haviaumarelaçãopautadanocompartilhamentode
saberes no espaço da casa, construído pelo intercâmbio entre culturas e tradições
contrastantes.
Há,destemodo,outroníveldeambivalêncianasrelaçõesentreEmilieeaempregada
marcadopelocontrasteentreossaberesdatradiçãoárabedeumaparteedaindígenadeoutra.
Apatroaprocurademarcaroterritóriopelapreservaçãodalínguaedealgunscostumesda
terra natal; a nativa, a seu modo, faz o mesmo, porém seu espaço de intervenção e de
influência mostra-se de forma restrita ao seu papel dentro da casa, estabelecendo um jogo
entre a linguagem do corpo e do silêncio, que misteriosamente encantava e intrigava a
matriarcalibanesaeofilhoHakim,quetudoobservava,registrandonamemóriaessesdois
mundosdíspareseatraentes.LuisA.BrandãoSantosanalisouestainteressanterelaçãoentre
EmilieeAnastácia:
Nocaráterremotodaslembranças,nadistânciaradicaldasreferências,nairredutíveldiferença
deuniversos,opontodecontato.Noatodenarrar,aservidãosetransmutaemcomunhão,a
135
autoridade em compartilhamento. No jogo das vozes, a relação de poder/impotência se
matizando para além das fronteiras nítidas dos papéis sociais. Mútua rasura de fronteiras:
Emilie, imigrante, instala sua casa, sua propriedade, no espaço de Anastácia. Anastácia,
serviçal,trazparadentrodacasadeEmilieasreferênciasdeseuespaço.Naçõesdentrode
nações. nguas dentro delínguas. Silêncios dentro de silêncios. (SANTOS, 2000,p. 54–
grifodoautor)
Mais uma vez, a casa assume o caráter metonímico do território plural na Manaus
imagináriadoautor,construídonasnarrativashatounianas,queseaproxima,constata-se,do
panoramaassistidoemoutroslugaresdomundo.
Nesse espaço de convivência que abriga valores conflitantes e diferenças, cujos
marcosnãosãoremovidosporinteiro,hámomentosemqueosilêncioentreessesdoispólos
impõe-se como poder de resistência ou como chave de mistérios impenetráveis. Um
incômodo, mas fascinante vazio de palavras, rico em significados. Quando Emilie não
consegueexpressar emportuguês osdetalhes deseu mundo, recorre à traduçãode Hakim;
Anastácia,deoutraforma,lança-seàmímicaeàimitaçãoonomatopaicanatentativadese
fazerentender.Osilêncioseinterpõenosrecessosdepalavras,frasesinteiras,quenaverdade
eramintraduzíveis,masrevelavam,subrepticiamente,umdiscursodelibertação.
Anastáciafalavahorasafio,sempregesticulando,tentandoimitarcomosdedos,comasmãos,
comocorpo,omovimentodeumanimal,obotedeumfelino,aformadeumpeixenoarà
procura dealimentos, o vôo melindroso de uma ave. Hoje, ao pensar naquele turbilhão de
palavrasquepovoavamtardesinteiras,constatoqueAnastácia,atravésdavozqueevocava
vivência e imaginação, procurava um repouso, uma trégua ao árduo trabalho a que se
dedicava.Aocontarhistórias,suavidaparavapararespirar;eaquelavoztraziaparadentrodo
sobrado,paradentrodemimedeEmilie,visõesdeummundomisterioso:oexatamenteo
dafloresta,masodoimagináriodeumamulherquefalavaparasepoupar,queinventavapara
tentar escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do
martírio. (...) [Nos] momentos de dúvida ou incompreensão, de nada adiantava o olhar
perplexodeEmilievoltadoparamim;permanecíamos,ostrês,calados,resignadosasuportar
o peso do silêncio, atribuído aos “truques da língua brasileira”, como proferia minha mãe.
Aquelesilêncioinsinuavatanta coisa,enosincomodavatanto...Comosepararevelaralgo
fossenecessáriosilenciar.(Relato,p.91,92)
EmDoisirmãos,onarradorNaeloptapordebruçar-sesobreopassado,produzindo
uma escrita reveladora de um mundo mesclado, rico em diferenças étnicas, religiosas,
culturais, sociais; um território tão próprio do espaço amazônico retratado, quanto
representativodesuanaturezahíbrida.Qualquerterritório,pormenorqueseja,podeabarcar
136
toda uma diversidade, conter um pouco do mundo como um microcosmo com história e
identidade. Os recessos silenciosos neste segundo romance revelam-se pela posição
subservientedeDomingas,índiaaculturadaparaservirnacasadeestrangeiros.Foralevada
paraacasadeZanaeHalimalfabetizadaeprontaparaoserviçodoméstico:
UmdiaairmãDamascenoordenou:quetomasseumbanhodeverdade,lavasseacabeçacom
sabãodecoco,cortasseasunhasdospésedasmãos.Tinhaqueficarlimpaecheirosa!(...)A
irmãpôsumatoucanacabeçadelaeasduassaíramdoorfanato(...).Pararamdiantedeum
sobradoantigo,pintadodeverde-escuro.(...)Umamulherjovemebonita,decabelocacheado,
veio recebê-las. “Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã. “Sabe fazer tudo, lê e
escrevedireitinho,masseeladertrabalho,voltaparaointernatoenuncamaissaidelá.”(...)
NacasadeZanaotrabalhoeraparecido,mastinhamaisliberdade...Rezavaquandoqueria,
podiafalar,discordar,etinhaocantodela.(Doisirmãos,p.76,77)
Domingas acostumara-se aos hábitos dos patrões, que desde os primeiros anos do
casamento não se importavam com a presença (praticamente imperceptível!) da pequena
índia,mesmoquandodominadospelosarroubosapaixonados.
Ela se assustava com o estardalhaço que os patrões faziam na hora do amor, e se
impressionavacomoZana,tãodevota,seentregavacomtantafúriaaHalim.“Parecequetoda
ataradocorpodelesaparecenessahora”,disse-meDomingas,numatardeemqueenxaguava
no tanque os lençóis dos patrões.Como tempo, ela acabou por se acostumar com os dois
corpos acasalados, escandalosos, que não tinham hora nem lugar para o encontro. (Dois
irmãos,p.65)
A vida subserviente de Domingas também esvai-se pela correnteza do tempo. Sua
dignidadeforadevassada,foraumpontodeexclamaçãodentrodaquelacasaondeconviviam
paixõestãodíspares.Aíndiaserviraàfamíliaimigrantecomoempregada,comoconfidente,
como ama. Mas foi dela que saiu mais um mestiço, clivagem do estranho dentro do seio
familiar.Umafendahumanadeondebrotaaperquiriçãodadúvidanaformadeumnarrador.
O narrador, filho, testemunha a passagem da mãe pela vida e tenta captar dela a
energia para dar continuidade à lida diária, para prosseguir vivendo. Um dos afazeres de
Domingas que marcou a infância do garoto Nael foi a habilidade artística em esculpir em
madeira pequenas miniaturas de bichos da selva amazônica, representações simbólicas e
materiais damemória do lugar deorigem. O legado deDomingas ao filho, ou oque dela
137
restou, repercute a imagem dos fragmentos de lembranças de um passado de liberdade na
aldeia,juntoànaturezaeaosseuscostumes.
Trouxeraparapertodemimobestiárioesculpidoporminhamãe.Eratudooquerestaradela,
do trabalho que lhe dava prazer: os únicos gestos que lhe devolviam durante a noite a
dignidadequeelaperdiaduranteodia.Assimpensavaaoobservaremanusearessesbichinhos
de pau-rainha, que antes me pareciam apenas miniaturas imitadas da natureza. Agora meu
olharosvêcomoseresestranhos.(Doisirmãos,p.264,265)
Domingasprojeta-seno trabalhoartísticocomo formaderecuperaçãoda dignidade.
Esculpindo seus bichinhos, ela registra um outro tipo de memória, que se “escreve”
simbolicamentenarepresentaçãomaterialdospedaçosdemadeiraamazônica,matéria-prima
daarte.
Raros são os momentos em que esses nativos das histórias de Hatoum conseguem
retornar à terra de origem, para rever e “tocar” suas lembranças. Um desses momentos é
rememoradoporNael,oqueparaelerepresentouumaaproximaçãodeumdosladosdesua
ancestralidade. O passeio com a mãe ao longo do rio Negro, que descrevi em capítulo
anterior, revelou o contraste entre os mundos da floresta e da cidade, do passado e do
presente,marcandoasdiferentesfacesdesuaidentidade.
OsilênciodeDomingasedeAnastáciaSocorro,poderepresentar,paracadauma,o
pesodacondiçãosubalternalegadopelopapelquedesempenhamnascasasdosimigrantes.A
línguaquesecalarecobraexpressãonogestodocorpo,namímica,naimitaçãosonora,na
escultura.Gestosdeartequetranspõemoslimitesdaimposiçãosocial.SegundoKristeva,o
estrangeiroviveoembatecomalínguaquandoéobrigadoa“esquecer”alínguamaternapara
podersobrevivernaterraestrangeira.Deformaanáloga,essesnativos,comoqueestrangeiros
emsuaprópriaterra,recorremaoutroscódigosparacomunicarsuapresença.
Assim, entre duas línguas, o seu elemento é o silêncio. De tanto falarmos de diversas
maneiras,igualmentebanais,igualmente aproximativas, nãofalamosmais.(...)Encurralado
nessemutismopoliforme,oestrangeirotalveztente,emvezdedizer,fazer(...)Porqueentão
cortarafontematernadaspalavras?Oquevocêimaginavadessesnovosinterlocutoresaos
quaisvocêsedirigecomumalínguaartificial,umaprótese?(...)Osilêncionãolheésomente
imposto,eleestáemvocê:recusadedizer,sonopresoaumaangústiaquequerpermanecer
138
muda, propriedade privada de sua discrição orgulhosa e mortificada – luz cortante, esse
silêncio.(KRISTEVA,1994,p.23,24)
4.6Identidadesflutuantes
Nas passagens tateantes entre as diferentes línguas e culturas, esses imigrantes e
nativosdescobrem-seestrangeirosnoespaçoenotempo;aspaisagensdaterraedopassado
mesclam-se e movem-se em intercâmbios regidos pela dominação e pela negociação de
valores.Segundo BrandãoSantos, “naimpossibilidadede imaginar asua nação,o exílioé
irreversível.”(SANTOS,2000,p.57–grifodoautor).
Impossibilidadequeredundaemumexíliodenaturezaexistencial,subjetivo,emque
asamarraseosentravesparaaliberdadesãocapitaneadospelaestrangeiridade,sejanaterra
alheiasejanaprópriapátria.Kristevaaindaobservaessesentimentodeexíliomedidopelas
trocasdeposiçãoquemuitasvezesocorrementre“senhores”e“escravos”,aodizerque
Todo nativo sente-se mais ou menos “estrangeiro” em seu “próprio” lugar e esse valor
metafóricodotermo“estrangeiro”primeiramenteconduzocidadãoaumembaraçoreferenteà
sua identidade sexual, nacional, política, profissional. Em seguida, empurra-o para uma
identificação, certamente casual, mas não menos intensa – com o outro. (...) Assim,
estabelece-seentreosnovossenhores”eosnovos“escravos”umacumplicidadesecreta,que
nãotem,necessariamente,conseqüênciaspráticasnapolíticaounajurisprudência(...),mas
cavaumasuspeita,sobretudononativo:seráqueestourealmenteemcasa?Seráquesoueuo
serãoelessenhoresdo“futuro”?(KRISTEVA,1994,p.27)
EmuminteressanteensaiodeMiltonHatoumsobreavisãodaterraoriginal,noolhar
deEuclidesdaCunhavoltadoparaahistóriasocialdaAmazônia,oautorexploraotrabalho
artístico do homemda terracomo formadeexpressãode sua ânsiapor liberdade.Hatoum
observaque“aartedoseringueiro(...)espelha(...)adoreodesesperodequemoesculpiu.”
Comentandosobreosbonecosconfeccionadosparaasfestividadeslocais,dizque
Aqui, ofazer artístico, o trabalho essencialmente humano, é uma espécie deparênteses no
sofrimento de uma vida inteira. Ao trabalho árduo, brutalizado e alienado, contrapõe-se o
trabalhocriativodopintoreescultorqueconstróiaospoucossuaarte,“expressãoconcretade
umarealidadedolorosa.”(...)OsexpatriadosemsuaprópriapátriasãoinúmerosnoBrasile
nomundotodo...Aimagemdamultidãodefantasmasvagabundospenetrandoemrecintosde
139
águas mortas dá a dimensão trágica dessesprotagonistas de uma vidaerradia.(HATOUM,
2002,p.331,335)
Interessante, ainda, notar que os mundos spares representados por Hatoum são
metáforas da confluência deculturas e de saberestrazidos pelas tradições de cada um dos
imigrantes e nativos que povoam essa Manaus imaginária e rememorada em ambos os
romances.Asinquietaçõesqueessesindivíduostrazemconsigosãoasdoexiladoqueviveo
constantedeslocamentointimamentemarcadopelosentimentodenãoterraiz,deestarforade
lugar.Essepanoramaassemelha-seadiversashistóriasvividasporváriosexilados,migrantes
erefugiadospordiversosmotivoseemdiferenteslugaresdoplaneta.Nosdoisromances,esse
encontroésimbolizadopelaconfluênciadaságuasmediterrâneascomasamazônicas.Sobre
issoMarliFantiniobserva:
Tãoverossímilnaficçãoquantonarealidadeimaginadadosimigrantes,oentrecruzamentodas
águasdoMediterrâneocomaságuasdoAmazonasdesemboca,comoorioprofundoqueo
exilado traz dentro de si, na ponte que reúne enquanto é atravessada por inumeráveis
diferenças.TaisimagensemHatoumassinalamofenômenodasmúltiplassuperposiçõesde
culturas e evocam as bandeiras móveis e intercambiáveis (...). A partir do fenômeno de
crescentesmigrações,vão-sematizandoatéseborraremosmarcosreferenciaisentreáguas,
línguasefronteiras(...).(FANTINI,2004,p.178)
DiantedasobservaçõesdeHatoumeconstatando,emoutrosensaístas,essasmesmas
concepçõessobrefronteirascomoelementosconstitutivosdaliteratura,épossívelenquadrá-lo
dentrodeumcenárioestéticoehistórico,deautoresqueseaproximamdasquestõesdoexílio
natentativadecompreendê-loetambémdedar-lhesumespaçodeexpressão.
Edward Said em suas “Reflexões sobre o exílio” tece observações contundentes
sublinhandoqueotemadoexílio,adespeitodohorroredaviolênciaqueverdadeiramente
representam para a humanidade, pois “é produzido por seres humanos para outros seres
humanos”,temservidodemoteparaaproliferaçãodegrandepartedaproduçãoliteráriado
séculoXX.Noentanto,nasuacompreensão,osartifíciosestéticosnãosãosuficientemente
eficazesparatransmitirasmutilaçõesvividaspelosexilados.Assim,
NaescaladoséculoXX,oexílionãoécompreensívelnemdopontodevistaestético,nemdo
ponto de vista humanista:namelhor das hipóteses, a literatura sobre oexílioobjetivauma
140
angústiaeumacondiçãoqueamaioriadaspessoasraramenteexperimentaemprimeiramão;
maspensarqueoexílioébenéficoparaessaliteraturaébanalizarsuasmutilações,asperdas
queinfligeaosqueassofrem,amudezcomquerespondeaqualquertentativadecompreendê-
lo como “bom para nós”.Nãoéverdadeque as visões do exílio na literaturae na religião
obscurecemo que é realmente horrível? Que o exílioé irremediavelmente histórico,que é
produzidoporsereshumanosparaoutrossereshumanoseque,talcomoamorte,massemsua
última misericórdia, arrancou milhões de pessoas do sustento da tradição, da família e da
geografia?(SAID,2003,p.47)
AsvisõeseossentimentosdeexílioqueexalamdasnarrativasdeHatoumpodemser
entendidoscomo asinquietações semprepresentesno indivíduoque sedeslocadaterra de
origem,comoosimigranteslibaneses(etambémdeoutrasnacionalidades),equeseinstalam
emManausnaesperançadeumanovavida.Talsentimentodeestranhamento,deexpatriação,
nãodeixadeestarpresentetambémnosnativos,menospelofatodeteremsaídodointeriorou
de aldeias indígenas, do que por experimentarem a exploração servil por parte dos
“verdadeiros”estrangeiros.
Nestesentido,segundovimos,onativoeoimigranteperdemreferênciasidentitárias:
são,eaomesmotempo,nãosãoestrangeiros.Asensaçãodenãopertenceràprópriaterra,sob
oolhardeestranhamentodosconterrâneosencaminhaaosentimentoambíguodequeoqueé
familiarconvivecomoqueéestranho(unhemlich).
A noção de território como algo caro ao autor sintetiza na casa dos imigrantes
libaneses o cenário das desavenças, das paixões, das concórdias e discórdias entre seus
membros.Étambémnacasaque,metonimicamente,entrecruzam-seosolharesdasdiferenças
culturais,quesignificapontodepartidaedechegadadosnarradoresdeambososromances
nabuscapelasexplicaçõessobreorigens,inquietaçõesidentitárias.
Assim,abuscadesiésempreumpercurso,nuncaumachegadadefinitiva.
CONSIDERAÇÕESFINAIS
142
DEMEMÓRIASEEXÍLIOS,ALGUMASCONSIDERAÇÕES
Amemóriatempapelfundamentalparaaformaçãodoindivíduo.Sendoelanossa
face mais subjetiva de conhecimento do mundo, propicia nossa identificação como
indivíduos e como membros de uma coletividade. Sua constituição está vazada pelas
lembrançasepeloesquecimento,imprescindívelaoequilíbriodoserhumano.
A recorrente busca pela origem, por parte dos narradores, reflete-se como
problematizaçãoemtornodaidentidadecomoelementocrucialnaconstruçãodanarrativa
deMiltonHatoum,umavezqueaincógnitaemrelaçãoàssuaspaternidadesperduraao
longo dos romances. Ambos os narradores fincam estaca no presente, dando partida ao
discurso das reminiscências, depois de anos de ausência da terra e da casa da infância.
Esses narradores, filhos agregados de imigrantes, buscam no passado, a partir de um
presentere-significado,explicaçõesquepossamamenizarasinquietaçõesquecarregama
respeitodesuasidentidades.
O tecido de memórias de que são feitos os textos de Hatoum é urdido pelo
entrecruzamento daquilo que se lembra das experiências vividas pelos narradores
entrelaçado aos relatos retrospectivos que recolhem e reavivam no discurso que
engendram. O material rememorado, por não se mostrar cronologicamente ordenado,
apresenta sempre lacunas que são preenchidas pela imaginação, por isso a memória
143
“inventa” passagens supostamente vividas ou palavras que poderiam ser pronunciadas,
procurandodarumaformamaiscoerenteàquiloqueétrazido(etraduzido)damemóriaao
discurso.
Há,portanto,umafortevinculaçãoentreoqueélembradoeoqueéesquecido,pois
semoesquecimentonãosuportaríamosacargainformacionaleemocionalenvolvidasno
relembrar. Daí o discurso literário lidar com a imaginação, escape para o peso das
lembranças, recurso empregado frente à impossibilidade de dar forma a matéria tão
disformeedesordenadacomoéadamemória.
A consciência do tempo irrecuperável, que impetra sobre o sujeito uma força
inquietante e motivadora do conhecimento de si mesmo, une-se à suposição de que as
lembrançasrefazem-sesoboinfluxodosvaloresdopresenteeprestam-seaodelineamento
desse indivíduo, como ser representado (re-apresentado!) como um outro, um “novo”
sujeito,relidonaslembrançasrevisorasdasexperiênciasvividas.
Dopontodevistanarrativo,odiscursodosnarradorespartedeumpresenteprenhe
deinquietações e de questõesnão resolvidas sobrea própria condição identitária. Esses
narradores,emambososromances,buscamnopassadorespostasparaasmaisprofundas
inquietações relativas ao seu lugar como sujeito no mundo. Empreendem, portanto, um
deslocamentopormeiodamemóriaemdireçãoàgênese.
Deste modo, a memória não é só lembrar, é também esquecer. No jogo entre a
lembrançaeaimaginação,oesquecimentodesempenhapapelimportanteparaamotivação
dos relatos e impulsiona os narradores à busca identitária que perpassa suas histórias.
Esqueceréprecisocomoformaderesistência,paraquesepreservemostraçosidentitários.
DeacordocomBorgesnopoematranscritonaepígrafe,oesquecimentopodeefetuaruma
aproximaçãodaquiloqueseéverdadeiramente,poistendoexperimentado“tantascoisas”,
oeulíricoafirma:“agorapossoesquecê-las(...)chegoaomeucentro,(...)aomeuespelho.
144
Logosabereiquemsou.”(BORGES,s.d.apudWEINRICH,2001,p.289).Retomandoo
queasseveraolingüistaalemão,modernamentepode-se“atribuirtambémaoesquecimento
umacertaverdade.”(WEINRICH,2001,p.21).
Na construção das narrativas hatounianas estabelece-se um jogo entre o que é
lembrado,o queé esquecidoe oque épreenchido pelaimaginação, implicando emum
desacordo entre o presente e o que se revela do passado. Deste modo, a lembrança, a
imaginação e o esquecimento são os pontos cruciais a nortear a busca identitária da
narradora sem nome de Relato de um certo Oriente e de Nael de Dois irmãos. O que
comanda essa busca de explicações sobre suas origens não é um mero desejo de
conhecimentodainfância,masaforçaqueosimpulsionanascedosentimentodeperdae
dedesenraizamento,oquelevaessesnarradoresaoretrospectodesuasvidas,motivados
peloesquecimento,nointuitodeconhecimentodesuagênese.
Há, também, um trabalho metalingüístico de narrar a construção da própria
narrativa,à medidaque osnarradoresdesenrolamo novelodesuashistórias nacasada
infância. Aoceder avoz aoutros personagens, imigrantes estrangeiros, constrói-seuma
malha discursiva sustentada pelo processo dialógico em que uma cadeia de citações
delineiaoencadeamento de históriasencaixadas. Assim,o jogodiscursivoé perpassado
porum“coraldevozesdispersas”comorecursodeinscrição,derepresentaçãoedetensão
quanto à construção dos narradores e dos personagens. A diversidade de vozes, à qual
recorremosnarradores para a árduatarefade“revisitação”dopassado,torna-seaudível
pormeiodeumatentativadeordenaçãodessemultivocalismo,poisalembrançaprocura
daraoconteúdodamemóriaumaordemmentalmentemaiscoesacomopresente.
Destemodo,asmúltiplasvozesqueconfluemnaescritadasmemóriasauxiliamna
construção do mosaico identitário dos narradores – manauaras e filhos agregados das
145
famíliaslibanesas–,poisessabuscasedáaoesbarrarsemprecomoOutro,oestranho,o
desenraizamentoeaestrangeiridade.
Nestesentido,oquevemàtonanosrelatossão,também,osretrospectosdevida
dos outros personagens, apontando caminhos para uma perspectiva particularizada em
relação ao passado. Diante da impossibilidade de transcrição da fala “engrolada” dos
imigrantesqueconviveram coma narradorainominada e daqueles queviveram na casa
familiar de Nael, esses depoentes não poderão ser reconhecidos por marcas lingüísticas
peculiares, pois o padrão formal adotado na escritura das memórias, em termos de
discurso,tendeahomogeneizarosfalares,dandoaconhecerapenasoconteúdodosrelatos.
Os fragmentos colhidos, dessas vidas que transitaram na infância dos narradores, não
poderiam formar um todo uno, inteiriço. Deste modo, a identidade desses indivíduos é
construída pelo olhar do Outro e pela visão que têm de si mesmos, o que leva
inevitavelmenteaumestranhosentimentodenão-pertença,deestaràderivaemumexílio
interior.Dasindagaçõesdamemóriadiantedoesquecimentoaoexíliosubjetivo,emqueo
indivíduoexperimentaumafraturaincurável”noseuíntimo,aidentidadeflutuaentreas
memóriasemcontraponto,questionandoacondiçãodeserounãoestrangeironaprópria
terra.
A busca de si mesmo continua em aberto para os narradores, indicando e
confirmandoqueaidentidadeéalgoporescrever,poisoqueficadaleituradasobrasé
sempreumahistóriaemsuspensão,algoporsefinalizar,umabuscaquenãoencontraseu
objetodedesejo,umquestionamentoquerondaseusnarradoresbuscandoasimesmos,nos
meandrosdamemória.
Naconfluência paraotextode diferentes relatosque circundamos narradores, a
mortedepessoaspróximas,consideradascomoverdadeirosrelicáriosdamemória,levamà
valorizaçãodaslembranças. Alembrançaligada aalguémmorto desencadeiasucessivas
146
históriasquesebanhamtambémnolagodoesquecimento.AmortedamatriarcaEmilie
desencadeia sucessivas histórias que confluem na memória da narradora inominada,
somadas aos relatos que recolhe. A morte iminente de Zana enseja para o narrador a
abertura do relato de experiências vividas no passado. Uma forma de resistir ao
apagamento dessas histórias de vida é a materialização, por meio da escrita, dessas
experiências,nãosócomoformadetransmissãosocializada,mastambémcomoformade
construçãodeummemorialdaslembranças.Benjaminobservaque
Onde há experiência, no sentido próprio do termo, determinados conteúdos do passado
individualentramemconjunção,namemória,comosdopassadocoletivo.Oscultos,com
osseuscerimoniais,comassuasfestas(...),realizavamcontinuamenteafusãoentreesses
dois materiais da memória. Provocavam a lembrança de épocas determinadas e
continuavam como ocasião e pretexto dessas lembranças durante a vida. (BENJAMIN,
1975,p.38)
Como modo de lidar com tamanha amplitude das fraturas interiores do sujeito
diante da morte e daseparação dos entes queridos, que reverberam nas relações como
outro, oindivíduo buscaseu lugar no mundo, pelo autoconhecimento, demarcandouma
subjetividade que nãose restringe ao indivíduo, mas se expande aouniversal. Assim, a
crisedoindivíduoreflete o caráterdisfóricoeangustiantedamodernidade,sob umtom
melancólicodeperdairreparável.
Milton Hatoumescreve com apena damemória, seu discurso éperpassadopela
imaginaçãocriadora quebebe tantonas fontes deMnemosine quantonolago Lete.Sua
históriaatravessaadospersonagens,semgravarnelestraçosreconhecíveisdesuaprópria
feição,desuabiografia.Porisso,avidaquepulsanaspáginasdeseusromancesextrapola
aqualquerresgatedahistóriaparticulardoautor.NaspalavrasdeHatoum:
Àsvezesovínculocomasociedadeousuahistóriaésutil,esóserevelacomoumasombra
ou um traço fino na espessura do texto que o olhar perscrutador do leitor acaba por
descobrir.Masochãocomumdoescritorésuarelaçãocomamemória.Saberreformularo
passadoajudaapensareaimaginaropresente.(HATOUM,2006b,p.26,27)
147
AManausimagináriadeHatoumreúnemundosdísparesdecertocantodoBrasil
onde índios manauaras tornam-se empregados a serviço de libaneses e estrangeiros
tornam-sepatrões.Unseoutrossãoindivíduosembuscadeterritórios,ondesenegociam
valorese tradições que teimamem permanecer inscritos nopalimpsesto da memória. A
condiçãodeexíliodosnarradoresepersonagensenvolvidosnessesrelatosdecorretantodo
deslocamentoespacialcomodotemporal;essedeslocamentoocorre,respectivamente,em
vista do desenraizamento da terra natal e das experiências retomadas do manancial da
memória.
Desse modo, as dessemelhanças destacam-se entre os fragmentos resultantes de
conflitosexistenciaisdoindivíduo embuscadesuaidentidade.Buscaquesedá emum
tempo regido prioritariamente pelo individualismo. Neste sentido, essa “odisséia”
particularalcançaproporçõesinusitadas,jáqueopontodechegada–acompreensãodoser
eestarnomundo–pareceafastar-seacadapassodadoemsuadireção.
Diante do projeto inacabado da busca identitária a que se lançam os narradores
hatounianos, esses sujeitos instalam-se sobre uma “cidade flutuante”, como o homem
contemporâneo que vive, na verdade, sobre um terreno movediço, flutuando sobre as
palafitas rodeadas pelas incertezas impostas pela dissolução de parâmetros, antes
(supunha-se) tão sólidos. Essa noção de instabilidade, de distanciamento, de isolamento
causadopordesajustesnasrelações,assistidosemambososromances,leva-meapontuar
essatãointensabuscadaidentidadecomoabuscadeum“eloperdido”,viabilizadopelo
retornoaoespaçodainfânciaeàsexperiênciasdeausênciasedeperdas.Verdadeiroexílio
emqueseinstalaosujeito,figuradeumailhaflutuanteemáguassemremanso.
A busca identitária tão repassada nesses meandros, nos recônditos do texto,
continuaaprocessaroutrasmemóriasemuitashistórias.Aescritadessesrelatoséapenas
amostrademomentospinçadosnograndeecaudalosoriodavida.
148
Essas histórias continuam, em tantas edições quantas forem localizadas no
imagináriodepoetas,contistas,personagens...narradores...Talvezestessejamremadores
dentro da canoa onde se tem a impressão de que “remar era um gesto inútil: era
permanecerindefinidamentenomeiodorio.”(Relato,p.124).
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