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JOSÉ CARLOS AISSA
ANALOGIAS E CONTRASTES NA POESIA
DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS E DE EDGAR ALLAN POE
Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas da Universidade Estadual Paulista, Câmpus de São José
do Rio Preto, para obtenção do título de Doutor em Letras rea
de Concentração: Teoria da Literatura)
Orientador: Prof. Dr. Carlos Daghlian
São José do Rio Preto
-
SP
2006
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2
Aissa, José Carlos.
Analogias e contrastes na poesia de Alphonsus de Guimaraens e de
Edgar Allan Poe / José Carlos Aissa.
-
São José do Rio Preto : [s.n], 2006
140
f. ; 30 cm.
Orientador: Carlos Daghlian
Tese (doutorado)
-
Universidade Estadual Paulista,
Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas
1. Literatura comparada
-
Brasileira e americana. 2.
Literatura comparada -
Americana e brasileira. 3.
Guimaraens, Alphonsus de, 1870-
1921. 4. Poe, Edgar
Allan, 1809
-
1849. I. Daghlian, Ca
rlos. II. Universidade
Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas. III. Título.
CDU
82.091
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3
COMISSÃO JULGADORA
Titulares
_________________________________________________
Prof.
Dr. Carlos Daghlian
-
Orientador
_________________________________________________
Profª. Drª. Giséle Manganelli Fernandes
_________________________________________________
Profª
. Drª. Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto
_________________________________________________
Profª. Drª. Maria Clara Bonetti Paro
_________________________________________________
Prof. Dr.
Rogério
Elpídio
Chociay
4
À Maria de Lourdes, minha mãe
uma grande
parceira.
5
A
GRADECIMENTOS
Um
profundo sentimento de gratidão:
por todos os professores que tive até agora, que me ajudaram a perceber que é o uso do meu
cérebro, e não o dos meus olhos, que determina como eu enxergo o mundo;
por todos os amigos, independentemente de rótulos de relacionamentos sociais, que me
incentivaram com seu carinho e
amor em momentos de cans
aço e esmorecimento;
pela Professora Giséle Manganelli Fernandes, que me apresentou ao Professor Carlos
Daghlian;
pelos professores e funcionários do Programa de Pós
-
Graduação da UNESP
-
SJRP; estes, por
seu eficiente e sempre cordial auxílio nos trâmites administrativos; aqueles, em especial o
Professor Rogério Chociay, por sua disp
osição em ajudar
e pelas sugestivas conversas
;
pelo Professor Carlos Daghlian, gratidão eterna; ele, que, com sua orientação firme, mas
incondicionalmente amiga, e suas indicações precisas, acreditou na possibilidade de eu dar
mais este importante passo.
6
Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu!
Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és t
u também. Onde nada está tu
habitas e onde tudo está
-
(o teu templo)
-
eis o teu corpo.
-
me alma para te servir e alma para te amar. Dá
-
me vista para te ver sempre no céu e na
terra, ouvidos para te ouvir no vento e
no mar, e mãos para trabalhar em te
u nome.
Torna
-
me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus
pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar
os outros como irmãos e servir
-
te como a um pai.
[...]
Minha vida seja
digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma
possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna
-
me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna
-
me puro como a
lua, para que eu te possa rezar e
m mim; e torna
-
me claro como o dia para que eu te possa ver
sempre em mim e rezar
-
te e adorar
-
te.
Senhor, protege
-
me e ampara
-
me. Dá
-
me que eu me sinta teu. Senhor, livra
-
me de mim.
Fernando Pessoa
7
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................................
8
ABSTRACT...............................................................................................................................9
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................
10
CAPÍTULO I
-
A MELANCOLIA COMO I
NGREDIEN
TE ESTÉTICO.......................
16
CAPÍTULO II
-
ASPECTOS GÓTICOS DA
POESIA MELANCÓLICA.......................21
CAPÍTULO III
-
DO ESTRANHO E DO SUB
LIME.........................................................
36
CAPÍTULO IV
-
ASPECTOS MELANCÓLIC
OS D
O SUBLIME GÓTICO.................
47
CAPÍTULO V -
ASPECTOS GÓTICO
-
MELANCÓLICOS NA POES
IA
DE
EDGAR ALLAN POE...........................................................................................
.................60
CAPÍTULO
VI
-
ASPECTOS GÓTICO
-
MELANCÓLICOS NA POES
IA DE
ALPHONSUS DE GUIMARA
ENS.....................................................................................
. 85
CAPÍTULO
VII
-
ALGUNS ASPECTOS D
A RELAÇÃO EROS/TÂNATOS EM
POEMAS DE EDGAR ALLAN POE E DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS............98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
.
..............................................................................................11
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGR
ÁFICAS................................................................................
120
APÊNDICE............................................................................................................................
133
8
RESUMO
O propósito desta tese é o de estabelecer analogias e
contrastes
entre Edgar Allan Poe
e Alphonsus de Guimara
en
s em relação aos preceitos estéticos
que
decidi
ram
imprimir a sua
produção poética, mormente quanto aos temas de amor (Eros) e morte (Tânatos). Procuramos
demonstrar que esses matizes temáticos são trabalhados sob a angulação do gótico-
melancólico a fim de se atingir o sublime. Nos
quatro
primeiros capítulos, teorizamos sobre
como o gótico, a melancolia e o sublime podem ser alinhavados poeticamente. No quinto e
sexto
capítulos, discutimos os
mod
i operandi
que
Poe e de Alphonsus empregam
ness
a
triangulação
entre
traços góticos, melancolia e o sublime. No último capítulo, valemo-nos em
grande parte das teorias freudianas para demonstrar qual o resultado do jogo gótico-
melan
c
ólico entre Eros e
Tânatos na poesia
romântico
-
simbolista
d
esses artistas
.
Palavras
-
chave:
poesia gótica; melancolia; estranho; sublime; Edgar Allan Poe; Alphonsus
de Guimaraens.
9
ABSTRACT
The intent of this study is to
draw
analogies and
co
ntrast
s between Edgar Allan Poe
and Alphonsus de Guimaraens
vis
-à-
vis
the aesthetic principles they decided to impress upon
their poetic work, chiefly as far as the themes of love (Eros) and death (Thanatos) are
concerned. We have
endeavored
to de
scribe
that these poetic
over
tones are addressed from a
gothic
-melancholic angle in order to reach the sublime. In the first four chapters, we
theorize
on how the gothic, melancholy and the sublime can be intertwined poetically. In the fifth and
sixth chapters, we discuss the modi operandi that Poe and Alphonsus employ in this tripartite
relationship of gothic motifs,
melancholy
and the
sublime.
In the last chapter, we make use of
Freudian theories to a
large
extent so as to demonstrate the outcome of this gothic-
me
lancholic interplay between Eros and Thanatos in the romantic-symbolist poetry of the
se
artists
.
Keywords:
gothic poetry
; melanc
h
ol
y
;
uncanny
; sublime; Edgar Allan Poe; Alphonsus
de Guimaraens.
10
INTRODUÇÃO
A Natureza é uma Casa As
sombrada
mas a Arte
uma Casa que procura ser assombrada.
1
O escopo deste estudo é o de investigar a presença de traços góticos na poesia de
Alphonsus de Guimaraens (1870-
1921)
e de Edgar Allan Poe (1809-
1849)
a fim de verificar
como
o manejo artístic
o desses elementos corrobora
com o tom melancólico característico em
ambos os poetas.
Ademais,
objetivamos
mostrar a trajetória de transformação d
essa
melancolia
em diferentes momentos de sua respectiva produção literária, seja por
simples
decisão estética, declarada ou não, seja pela alteração da visão de mundo de cada um deles,
mas que os fez
chega
r
a posicionamento semelhante quanto ao amor, à vida e à morte.
A fase
de
problematização levou em conta os
abundantes
comentários em textos
críticos que
liga
m um autor ao outro, quer por meio de leitura direta de textos de Poe
por
Alphonsus, quer
via
triangulação
com
Charles Baudelaire e outros simbolistas franceses
,
principalmente
com
Paul Verlaine, na opinião de muitos.
Falamos de leitura direta,
pois
não dúvida de que Alphonsus
2
conhecia
a
obra de
Poe,
mesmo
que
não
fosse
integralmente.
Em
Correspondência de Alphonsus de Guimaraens
,
volume organizado por Alexei Bueno, encontra-
se
carta, datada de 15 de julho de 1919,
remetida
a João Alphonsus,
filho
mais velho, em que o poeta mineiro comenta a visita de
Mário de Andrade, descrito como um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em inglês, todo o
Corvo
de Poe. (
BUENO,
2002, p. 26). Em outra, com a data de 5 de agosto de 1919,
também endereçada a João Alphonsus, lemos: A tua tradução ou, antes, paráfrase, da poesia
de Poe, está belíssima (
BUENO,
2002, p. 27). Além disso, sabemos que o comentado poema
A Cabeça de Corvo , parte de
Kiriale
, publicado pela primeira vez no jornal Gazeta de
1
Nature is a Haunted House
but Art a House
that tries to be Haunted.
Frase de Emily Dickinson em uma
de suas cartas a Thomas Wentworth Higginson.
(
Apud
WARDROP, 1996, p. 1)
2
Embora saibamos qu
e em textos críticos é de praxe se usar o sobrenome em referência aos autores, no caso de
Alphonsus de Guimaraens parece
-
nos que o costume fixou o primeiro nome. Assim o trataremos neste trabalho.
11
Notícias
do Rio de janeiro em 16 de setembro de 1893 (
GUIMARAENS,
2001, p. 551)
3
,
apresenta fortíssima intertextualidade com The Raven (1845) do poeta estadunidense.
Quanto à triangulação Poe /
Baudelaire
et alii / Alphonsus, temos bastante tempo
referências
nesse sen
tido
desde Andrade Muricy com seu Panorama do Movimento
Simbolis
ta
Brasileiro, cuja primeira edição é de 1962, com no mínimo vinte menções
à
influência
de Poe, perpassando por outros livros importantes como A Estética Simbolista
(1985),
O Simbolismo (1994) e A Santidade do Alquimista
Ensaios sobre Poe e Baudelaire
(1997),
todos
de Álvaro Cardoso Gomes, com reflexos em artigos, dissertações e
teses
.
C
remos
necessário
destacar: a) de Francine Fernandes Weiss Ricieri, A Imagem poética em
Alphonsus de Guimara
ens
:
espelhamentos e tensões, de 2001, tese apresentada à
Universidade Estadual de Campinas, certamente fruto de sua pesquisa de mestrado intitulada
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921): Bibliografia Comentada, apresentada à Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP-Assis, em 1996
;
b) a dissertação de Ângela Maria Salgueiro
Marques,
O Sublime na Poesia de Alphonsus de Guimaraens: Presença da Morte
(1998),
Univer
sidade Federal de Minas Gerais. Embora nenhuma das duas pesquisadoras apresente
um cotejo amplo entre as produções poéticas de Poe e de Alphonsus, mencionam
apenas
alguns
pontos em comum.
Em língua inglesa, nosso levantamento bibliográfico
vasculhou
artigos e livros citados
na
American Literary Scholarship de 1963 a 2003, bem como
bancos
vir
tuais
de
dis
sertações
e
teses na Inglaterra e nos Estados Unidos disponibilizados na Internet. Não pudemos
encontrar nada q
ue relacionasse os dois poetas
sob o ângulo que
esta pesquisa
propõe
.
Em francês, sabemos existir o trabalho Les influences françaises sur Alphonsus de
Guimaraens
(1970), de Aline Anglade-Aurand, ao qual não tivemos acesso; contudo, os
3
Para os textos relativos a Alphonsus
de Guimaraens, utili
zaremos:
Guimaraens, Alphonsus.
Poesia Completa
.
Org. Alphonsus de Guimaraens Filho.
Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2001
.
12
textos que o citam não revelam nenhum aspecto que nossas outras leituras e reflexões não
tenham abordado suficientemente.
A partir desse ponto, ficou patente que na
da precisaria ser feito
no intuito
de relacionar
Poe e Alphonsus em termos de influência direta ou indireta, até porque que se levar em
consideração
que o
Zeitgeist
pode tê-
los
munido de percepções artísticas semelhantes. Assim,
decidimos nos centrar no que seria
mais
incomum
e original: explorar como teriam sido
trabalhados os motivos góticos para criar um tipo de poesia marcada pelo fantástico
,
justamente porque o
fantástico
pareceria ter sido reservado para a prosa, pelo menos no
ente
ndimento de
teóri
cos
de renome, como Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura
Fantástica
(1973)
:
Se, lendo um texto, recusamos qualquer representação e consideramos cada frase como pura
combinação semântica, o fantástico não poderá aparecer; este exige, recordamos, uma
reação
aos acontecimentos tais quais se reproduzem no mundo evocado. Por essa razão, o fantástico
não pode subsistir a o ser na ficção; a poesia não pode ser fantástica (ainda que haja
antologias de poesia fantástica ...). Resumindo, o fantástico implic
a ficção. (1975, p. 68)
Entretanto, é bastante reconhecido o fato de que os poetas ingleses da
Graveyard
School
do século XVIII, teriam colaborado em muito para o gótico e o fantástico com seus
poemas sobre as vicissitudes da vida e da frágil condição da mortalidade,
sobre
a solidão da
morte e do túmulo e
sobre
a angústia proveniente da perda do ser amado. Robert Blair com
The Grave
(1743), Edward Young com seus nove volumes de The Complaint, or Night
Thoughts on Life, Death, and Immortality (1742-
45),
and Thomas Gray com "Elegy Written
in a Country Churchyard" (1751), para mencionar apenas alguns dos principais,
contribuíram
para o desenvolvimento do que se denominaria de romance gótico. Sandra Guardini
Vasconcelos, em
Dez Lições
s
obre o Romance Ing
lês
do
Século XVIII
(2002), salienta que
[...]
como uma corrente subterrânea, no decênio de 1740 os graveyard poets contestavam o
racionalismo e o equilíbrio preconizado pelo Iluminismo, produzindo uma poesia de desafio e
inspiração divina que, além de advogar o sentimento e a paixão, colocava em cena temas e
cenários que se tornariam caros ao romance gótico: a morte, o medo, a noite, gemidos,
sepulturas.
(2002, p. 121)
13
Nesse tipo poemático, não se trabalhou apenas um vocabulário específico para o
universo
imagético do sombrio, do macabro e do fantástico, mas também
gerou
-
se
um gosto
por esse universo, que abandonava o racionalismo e buscava o psicológico e a introspecção
melancólica
, o que prefigurou a tendência romântica de abordar a beleza
em
sentimentos
negativos
,
como
se identifica
em
Dejection: an Ode
(1802) de Samuel Taylor Coleridge
e
Ode to Melancholy (1819
) de John Keats
.
A propósito dessa união nascida
entre
a sublime beleza melancólica
,
o estranho
e
o
gótico, Umberto Eco, em
A História da
Beleza
(2004), mostra que
A partir da segunda metade do século XVIII, afirma-se efetivamente o gosto pelas arquiteturas
góticas que, em relação às medidas neoclássicas, não podem deixar de parecer
desproporcionais e irregulares, e esse gosto pelo irregular e o informe leva, justamente, a uma
nova apreciação das ruínas. [...] O gosto pelo gótico e pelas ruínas não caracteriza apenas o
universo
do visivo, mas também a literatura [...] Paralelamente, florescem a poesia cemiterial, a
elegia fúnebre, uma espécie de erotismo mortuário que irá se prolongar e chegar ao ápice da
morbidez com o Decadentismo do século XIX (mas que já fizera sua aparição na poesia
seiscentista [...] Assim, enquanto alguns representam paisagens ou situações aterrorizantes,
outros inte
rrogam
-se sobre o porquê do horror suscitar deleite, dado que até então a idéia de
deleite e prazer fora associada, ao contrário, à experiência do Belo. (2004, pp. 285 e 288).
Nesse momento de nossa pesquisa, entendemos que o gótico e a melancolia, e os
subprodutos dessa relação, constituíam-se na matéria-
prima
poética para Poe e Alphonsus.
Ademais, percebemos serem esses dois poetas vozes herdeiras e ecoantes, cada um a seu
modo, da beleza bizarra, mas sublime. R
atifica
essa idéia Octavio Paz, no capítulo Analogia
e Ironia de
Os Filhos do Barro
do Romantismo à Vanguarda
(1974):
Na realidade, os verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas
posteriores aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas. [...] A poesia francesa
da
metade do século passado [...] é inseparável do romantismo alemão e inglês: é sua
prolongação, mas também sua metáfora. É uma tradução, na qual o romantismo volta-se sobre
si mesmo, contempla-se e se transpassa, se interroga e se transcende. É o
outro
r
omantismo
europeu. (19
84, p.
92
)
Convictos da conexão entre melancolia e gótico, decidimos explorar como
eles
se
entrelaça
r
am nas
produção literária
de Poe e de Alphonsus
. O
ponto de fusão é
,
em essência
,
é
a consciência da finitude, isto é, a morte, que
, num primeiro momento, deixa sua marca na dor
da morte do outro, daí a melancolia realçada por imagens góticas e, mais tarde corveja
a
Indesejada das gentes
, no dizer de Manuel Bandeira, sobre a existência do próprio poeta.
14
Octavio Paz, no mesmo capí
tulo citado acima, propõe uma explicação que se aplica ao
procedimento
estético
adotado por Alphonsus e Poe:
O grotesco, o estranho, o bizarro, o original, o singular, o único, todos estes nomes da estética
romântica e simbolista não são mais que distintas
maneiras de se dizer a mesma palavra: morte.
Em um mundo no qual desapareceu a identidade
ou seja, a eternidade cristã , a morte se
transforma
na grande exceção que absorve todas as outras e anula as regras e leis. O recurso
contra a exceção universal é duplo: a ironia
a estética do grotesco, o bizarro, o único
e a
analogia, a est
ética das correspondências. (198
4, p. 100)
Esse desaparecimento da identidade citado no primeiro fragmento de Octavio Paz
chamou nossa atenção. Como teriam Poe e Alphonsus exercitado seus talentos poéticos nesse
macrocontexto de perda identitária? A que postura esse incômodo existencial os teria
impelido? Nicole Berry, em
O Sentimento de Identidade
(
1987)
, explica que
O mal estar em nossa sociedade está em ser uma sociedade de massa , escreve J. B. Pontalis.
O perigo de se encontrar afogado na massa desperta provavelmente a necessidade de se
sobressair, de afirmar sua identidade, de descobrir o valor da própria vida. A necessidade de
afirmar uma identidade individual aumenta à proporção que o fato de pertencer a um grupo, a
uma família, a uma etnia, a uma religião mobiliza menos
as paixões e os ideais.
[...] E podemos
buscar em nossas origens os fundamentos de nossa identidade, origem de território, de língua,
de cultura ou de nome, ou, ao contrário, querer forjar em nós uma identidade pessoal [...] Cada
um de nós se encontra diante de tal escolha
se é que ela existe
entre a fidelidade e a ruptura.
(1991, pp. 14
-
15
)
Essa ponderação de Berry nos conduziu à noção de que Poe e Alphonsus teriam feito
escolhas estilísticas para forjar sua identidade artística. O que nos quisemos sondar, então, foi
modus operandi desses poetas, que burilaram versos com instrumentos estéticos muito
semelhantes
em
nações
e culturas
diferentes,
cada um compondo obras
ímpares
.
Com tudo isso em mente, iniciamos no Capítulo I uma explicação de por que a
melancolia pode ser um ingrediente estético valioso, em especial na estética de Edgar Allan
Poe e Alphonsus de Guimaraens, sem nos prendermos a detalhes biográficos, ainda que as
mortes de mulheres importantes para eles tenham ocorrido e o luto possa tê-
los
levado à
melancolia. Interessou-
nos
como transmutaram esse luto da perda do ser amado; quisemos
entender como lidaram artisticamente com essa tristeza que acabaria por desaguar em
melancolia,
isto é, um luto prolongado que remeteria
à
perda de si mesmo, à desesperança.
Contudo, essa postura melancólica os singularizaria, dando
-
lhes identidade de novo
.
15
No Capítulo II,
conceituamos
o termo
gótico
numa breve retrospectiva
,
desde
aquela
que
tenha sido sua primeira inserção em arte até chegar a seu uso em literatura. Essa
delimitação conceitual é necessária
para
se poder discutir quais seriam as imagens góticas
empregadas na consecução de um tom melancólico no discurso poético. A discussão é feita
num viés comparativo entre a visão
gótico
-
melancólica de Poe e a de Alphonsus.
O
estranho
e o
sublime
são o alvo de discussão do Capítulo III. Já que a beleza gótica
tem essas duas faces, buscamos as teorizações de Sigmund Freud sobre o estranho (
das
Unheimlich
e) e de seu possível elo com o sublime tal como explanado por Vitor Hugo no
Prefácio de
Cromwell
, em que disserta sobre o grotesco e o sublime. Vemos nessa ligação
os fundamentos para compreender como os traços góticos na poesia podem corrobor
ar
no
surgimento do sublime, o que será a base da investigação do quarto capítulo, isto é,
procuramos explicitar o alinhavo entre aspectos góticos e melancólicos como
ferramenta
poética
de Poe de Alphonsus no atin
gimento da sublimidade.
Os capítulos V e VI ocupam-
se
especificamente de identificar e analisar os aspectos
góticos e melancólicos em alguns poemas centrais da obra de Alphonsus e de Poe, ressaltando
a técnica aplicada e
seu
posicionamento estético.
No s
étimo
e último capítulo, concentramo-nos naquilo que talvez seja a força-
motriz
de toda a manifestação gótica e melancólica na obra de
sses
nossos dois poetas: o conflito
Eros
/ Tânatos. Analisamos o papel de cada
força
sob a luz da teoria freudiana e empenh
amo
-
nos em trazer à tona o resultado poético desse aparente embate
a sublimação metafísica por
meio da transcendência tanto do amor erótico quanto da
morte.
16
CAPÍTULO I
A
MELANC
OLIA COMO INGREDIENTE ESTÉTICO
Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta soli
dão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!
Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada
Deixai
-
os, que é tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de m
eu
Onde for que a alma emprego
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
4
Soren
Kierkegaard
(1813-
1855)
indaga: O que é um poeta? Um homem infeliz que
oculta
profunda angústia em seu coração, mas cujos lábios são de tal forma moldados que
quando suspiros ou gemidos passam por eles soam como linda música.
5
Com
isso
em mente,
procuraremos de forma breve demonstrar a relevância da melancolia como recurso estético
,
visto que esse desespero de alma parece encontrar refúgio na permanente busca de
sentido por
meio da criação artística, como discute Aristóteles em O Homem de Gênio e a Melancolia
:
Por que todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do
Estado, à poesia ou às artes
são
manifestadamente melancólicos
[...]
? (
1998,
p. 81).
Muito se
tem escrito sobre melancolia, que também já recebeu
divers
os nomes: trevas,
sombras sem fim, sol negro, bílis negra, nevoeiro, tempestade em céu sereno, certeza infel
iz,
ac
édia, tédio, neurose narcísica,
etc.
Para rem
emo
rar apenas algumas obras significativas
sobre o assunto, temos o clássico de Robert Burton, The Anatomy of Melancholy (1621),
que
proporciona uma visão mais clínica sobre essa emoção. Dignos de nota também são: Luto e
4
Pessoa, Fernando.
Obra Poética
. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p.504.
5
What is a poet? An unhappy man who conceals profound anguish in his heart, but whose lips are so fashioned
that when sighs and groans pass over them they sound like beautiful music. Diapsalmata, in
Either/Or
,
Penguin, 1992, p. 44.
17
Melancolia
(1917) de Sigmund Freud e O Sol Negro
Depressão e Melancolia (1987), de
Julia Kristeva. Num âmbito mais brasileiro, o Retrato do Brasil
Ensaio sobre a Tristeza
Brasileira
, de Paulo Prado (1928) e o recente Saturno nos Trópicos
A Melancolia Européia
Chega ao Brasil (2003) de Moacyr Scliar. Ressalvemos não
ser
pretensão deste
estudo
explorar todas as possibilidades de explicações sociológicas, antropológicas ou psicanalíticas
que circundam esse t
ópico
, apesar de aqui e acolá valermo-
nos
de apreciações e comentários
de alguns d
esses
trabalhos citados. Ater-
nos
-
emos
, com efeito, à percepção da melancolia em
seu uso literário mais imediato, mormente no que possa aclarar
nosso
percurso nas discussões
sobre a poesia de Alphonsus de Guimaraens e de Edgar Allan Poe.
A melancolia, como é usada por Alphonsus e Poe, tem natureza dual, ou seja, existe a
face positiva e a negativa desse sentimento. Embora haja a sensação de perd
er
algo que
lhe
s
é
caro, impossível de se reaver, ela envolve o prazer da reflexão e contemplação sobre esse
objeto de desejo e
sobre
a própria existência humana. Assim, em literatura, ao menos, não
vemos uma sobreposição entre depressão e melancolia, que a primeira, em geral, debilita,
desmotiva, imobiliza; é um estado que só contém dor. Na melancolia, a dor é um trampolim
para o prazer da
auto
-reflexão, que pode ser
sublime.
A melancolia pode ser causada por inúmeros fatores externos. No entanto, a solidão,
mais que isso, a consciência da solidão, é causa e conseqüência da melancolia, pois
melancólico se fica por causa da solidão, isto é, do isolamento daquilo que se ama/deseja, e,
quando
se está melancólico, busca-
se
a solidão. É o que reafirma Pessoa nos dois primei
ros
versos epigráficos deste capítulo: Ah quanta melancolia! Quanta, quanta, solidão! .
No entanto, não podemos nos esquecer de que na melancolia um componente de
autocompaixão ou automisericórdia convertido em um prazer narcisístico, que se alimenta de
si mesmo e potencializa o sentimento de melancolia.
18
No caso de Poe e Alphonsus, e provavelmente de outros, a melancolia poética não é
fruto de uma doença que atormenta o poeta, mas um elevadíssimo nível de consciência, ainda
que doloroso, sobre o eterno conflito entre os desejos humanos e a natural e inevitável
frustração de não os ver realizados. A doença é a própria existência e a melancolia é apenas
um sintoma; ela produz lucidez, uma vez que a felicidade deste mundo cria um
amortecimento espiritua
l ilusório porque é fugaz. A melancolia é o prazer que
nos recorda
d
e
tudo que nos é dileto, mas também nos conscientiza da impermanência de tudo. Esse estado
de consciência é sublime, pois retira o ser humano da condição de mero animal no universo e
lhe
dá a esperança de que
tenha direito a
um estado vital superior.
Martin Heidegger nos oferece a seguinte observação:
Os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o
pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge
como um relâmpago, mas permanece impensada. Ela pode, contudo, dar-nos um indício
relativo ao modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta
forma junto de si, no caso de a morte pertencer originariamente àquilo que nos reivindica.
(
Apud
AGAMBEN, 2006, p. 9)
O homem é mortal e falante ao mesmo tempo, o que o diferencia de qualquer outro
animal
ele tem a faculdade para pensar e falar sobre sua finitude. Ponderemos um pouco
mais: se
herdamos
uma separação edênica por causa de uma falha adâmica, que nos tornou
conscientes da
morte ainda enquanto esta
mos
vivos,
porquanto
somos finitos, é natural que
se
nos assome o pensamento: a vida não tem sentido! E se é pela palavra que nos vem o se
ntido,
não deve causar admiração que a incessante busca de significado
advenha,
com grande
incidência,
por meio d
esse elo significante
a
criação literária
.
Ainda quanto a essa perda primeira, não olvidemos o fato de que tanto a sociedade
protestante de Poe quanto a católica de Alphonsus
mantiveram
, em seus primórdios, um culto
à melancolia, no sentido de que o homem precisaria conviver com a dor emocional da perda
do Paraíso para encorajá-lo a encontrar um caminho que o reconduziria a Deus. O Barroco,
por
exemplo, aflorou em meio a esse estado de alma melancólico;
transmitiu
-o aos
19
românticos, que fizeram
d
o S
imbolismo seu herdeiro legítimo, redundando na estética do mal
-
do-século,
que
, para Vitor Manuel de Aguiar e Silva,
foi
caracterizado pelo pessimismo, pela
melancolia, pelo desespero, pela volúpia do sofrimento e pela busca da solidão,
exprim
indo
o
cansaço e a frustração resultantes da impossibilidade de realizar o absoluto
aspirado pelo
homem romântico (
1979, p.
481).
Mas a melancolia tem ultrapassado barreiras na periodização literária, o que só
reforça
o posicionamento que ora apresentamos: o estado de espírito melancólico tem raízes muito
profundas na psique humana e sofre fluxos e refluxos de diversas intensidades conforme a
época. Tomemos como exemplo d
essa atemporalidade estética da melancolia um
outro poema
de Fernando Pessoa
em
Poesias
Coligidas/
Inéditas
, data
da
de 11
-12-
1933
:
Tenho
esperança ? Não tenho.
Tenho vontade de a ter?
Não sei. Ignoro a que venho,
Quero dormir e esquecer.
Se houvesse um bálsamo da alma,
Que a fizesse sossegar,
Cair numa qualquer calma
Em que, sem sequer pensar,
Pudesse ser toda a vida,
Pensar todo o pensa
mento
-
Então [...]
6
A primeira estrofe inaugura o tom melancólico, de desencantamento com uma vida
sem sentido ( Ignoro a que venho ). Na verdade, a segunda estrofe nega a primeira, pois
esperança
a de que exista um bálsamo da alma, que se assemelh
a à morte física, que tem seu
prenúncio no último verso da primeira estrofe ( Quero dormir e esquecer ), em que a
metáfora do sono/
morte
entra em cena. Nesse estado, a dor da existência cessa.
Nesse
instante, ultima-se o preparativo para a diluição do ser individual no todo universal (
Pudesse
ser toda a vida,
/
Pensar todo o pensamento ). Completou-se o trajeto da angústia rumo ao
sublime! Porém, mesmo assim, as reticências finais, que deixam o raciocínio inconcluso,
6
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do
(acesso em 15/09/2006)
20
demonstram a ignorância humana, e por isso insegurança humana quanto ao destino final. É a
mesma incerteza hamletiana:
Morrer... dormi; nada mais! E com o sono, dizem, terminamos o pesar do coração e os mil
naturais conflitos que constituem a herança da carne! Que fim poderia ser mais devota
mente
desejado? Morrer ... dormir! Dormir... Talvez sonhar! Sim, eis aí a dificuldade! Porque é
forçoso que nos detenhamos a considerar que sonhos possam sobrevir, durante o sono da
morte, quando nos tenhamos libertado do torvelinho da vida. [...] Quem gostaria de suportar
tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de
alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou,
confundindo nossa vontade e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, ao
invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos? (
SHAKESPEARE, 1978, pp. 252
-
253)
É nesse limbo de incerteza que a melancolia viceja
em
Poe e
em
Alphonsus.
Passemos para os aspectos góticos dessa poesia
, então
.
21
CAPÍTULO
I
I
ASPECTOS
GÓTICOS
DA POESIA MELANCÓLIC
A
Oh! Ela mora com a Beleza, com a Beleza que perecerá:
com a Alegria de mão erguida aos lábios,
para dizer Adeus; e junto da Volúpia dolorosa
que se faz veneno enquanto a boca suga, pura ab
elha;
sim no próprio templo do Prazer
é que a Melancolia te
m
, vela
da
, o seu altar supremo;
embora só a veja aquele cuja língua intrépida
rompa os racimos da Alegr
ia
contra o céu da boca;
sim, a alma deste provará a tristeza que é o seu poder,
e em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.
7
Para se tratar dos traços
góticos
que subjazem a melancolia de poemas como os de
Edgar Allan Poe e de Alphonsus de Guimaraens, cumpre tentar definir o que é esse estilo
gótico em literatura, bem como sua origem, que o termo gótico
um vórt
ice
semântico, no
que se refere às diferentes manifestações artísticas em que o inserimos
tem se prestado a
diversos empregos e
interpretações, mesmo no âmbito literário.
Comecemos por situar essa nova estética em meados do século XII na
França
medieval
como
um estilo
tanto
artístico
em geral (
em
painéis, pinturas, esculturas e
iluminuras de manuscritos)
quanto
arquitetônico
que
floresceu
por cerca de 300 anos. Será na
Itália do século XVI, fascinada pela glória da
antigüidade clássica
, que o fundador da
história
da arte, Giorgio Vasari, mencionaria o termo
gótico
pela primeira vez. Para esse autor e
seus coetâneos, a arte da Idade Média, em particular na arquitetura, constituía
-
se no oposto da
perfeição, tendo a ver com o obscuro e o negativo, relacionando-a neste aspecto com os
7
O texto em epígrafe é
t
erceira estrofe de Ode on Melancho
ly de John Keats,
traduzida por
P
éricles Eugênio da
Silva Ramos (1970, p.189)
She dwells with Beauty
--
Beauty that must die;
And Joy, whose hand is ever at his lips
Bidding adieu; and aching Pleasure nigh,
Turning to poison while the bee
-
mouth sips:
Ay, in the very temple of Delight
Veil'd Melancholy has her sovran shrine,
Though seen of none save him whose
strenuous tongue
Can burst Joy's grape against his palate fine;
His soul shall taste the sadness of her might,
And be among her cloudy trophies hung.
22
Godos
(os Getas anglo-saxões), povo que instrumentalizou o desmantelamento do Império
Romano no século IV. Vasari teria criado dessa forma o termo
gótico
com fortes tons
pejorativos,
descrevendo
um estilo digno
a
penas
de
vândalos
e
bárbaros
.
Assim, até o século XVII aproximadamente, g
ótico
designava
, em termos de arte em
geral, qualquer artefato grosseiro e rústico.
Contudo,
Fred Botting, em
seu
Gothic
explica que
houve uma mudança a partir do século XVIII:
Manifestações do
passado Gótico
edifícios, ruínas, canções e romances
eram tratados como
produtos de mentes incultas,
quando
não infantis. Mas características como extravagância,
super
stição, fantasia, e imensidão que eram inicialmente consideradas em termos negativos
tornaram
-se associadas, durante o século XVIII, com um potencial mais aberto e imaginativo
quanto à produção estética.
8
(1996, p. 22)
Botting (1996, p.23) ainda argumenta que as produções góticas continuaram a abrigar
uma ambivalência positiv
o-
negativa perturbadora, a qual revelava a instabilidade que a Era da
Razão havia despertado. Isso porque junto com o Iluminismo vieram significativas mudanças
sociais, econômicas, po
líticas e culturais que ajudaram a desestrutura
r um mundo
que antes se
encontrava ordenado, ao menos no que concerne ao Ocidente. Processos de industrialização,
urbanização e racionalismo destronaram a religião como a autoridade para se explicar o
univers
o, o que passou a alterar o modo como o indivíduo se relacionaria com o mundo
social, natural e sobrenatural. Assim, a produção artística denominada gótica se prestaria a
manifestar os temores, ansiedades e incertezas de que tal plétora de mudanças causou. Além
disso, poderia servir de instrumento para se tentar explicar o que não era foco do Iluminismo.
Nesse viés é que, l
iterariamente,
credita
-
se
, em primeira instância, a utilização do
termo ora focalizado a Horace Walpole e a seu romance The Castle of O
tranto
:
A Gothic
Story,
publicado
em 1764 sob o pseudônimo de Onuphrio Muralto, vindo a se tornar
quase
um
arqu
étipo textual do gênero. Porém, será apenas a partir da segunda edição desse romance
que Walpole acrescentará o subtítulo A Gothic Story , pois na primeira edição lemos apenas
8
Manifestations of the Gothic past
buildings, ruins, songs and romances
were treated as products o
f
uncultivated if not childish minds. But characteristics like extravagance, superstition, fancy and wildness which
were initially considered in negative terms became associated, in the course of the 18
th
century, with a more
expansive and imaginative pote
ntial for aesthetic production
23
The Castle of Otranto: A Story. Referia-
se
Walpole
, contudo, conforme nos mostra no
enredo de sua história, à epoca medieval e não à pré-
normanda.
Por isso, ao menos no âmbito
literário, é que se diz que
a
prosa ficcional (e o mesmo se pode aplicar à poesia) gótica nada
tem de gótico no sentido histórico e literal desse vocábulo.
Mas qual poderia ser a relação entre o conceito inicial, aplicado à arquitetura, e ess
e
gênero (ou subgênero, como querem alguns teóricos) li
terário?
A resposta reside na ênfase
dada à emoção.
A arquitetura, os painéis, as pinturas e esculturas góticas pretendiam gerar um
efeito mágico ou incomum no observador, provocando um sentimento de espanto, terror, de
se estar à mercê de uma força superior, sentindo-se, portanto, insignificante e vulnerável.
Na
literatura, c
onsiderou
-se a típica ambientação medieval, isto é, o misterioso castelo decadente
e ameaçador um local perfeito para tramas que se propusessem a aterrorizar o leitor. Também
cumpriram
a mesma função os ambientes naturais cheios de perigos escondidos e amplas
áreas montanhosas. Fundamentalmente, buscava-se retirar o leitor do mundo cotidiano
comum.
No capítulo intitulado Introduction: the Gothic in western culture , da obra
The
Cambrid
ge Companion to Gothic Fiction
(2002)
,
explica Jerr
old Hogle
:
...a primeira obra publicada a se denominar Uma História Gótica foi um simulacro de uma
narrativa medieval publicada bem depois das Idade Média [...]
A moda que Walpole iniciou foi
imitada ape
nas
esporadicamente nas décadas seguintes, tanto em prosa quanto em drama.
Porém,
explodiu
na década de 1790 (a década em que Walpole faleceu) em todas as Ilha
s
Britânicas, no continente europeu, e
brevemente
nos
recém
-
formados
Estados Unidos,
particularmente para um público leitor feminino, tanto que permaneceu um gênero literário
popular, mesmo se controverso, durante o que ainda denominamos de período Romântico na
literatura européia (de 1790 até o início da década de 1830, agora especialmente
conhecida
como
a era do
Frankenstein
de Mary Shelley (1818)
.
(2002, p. 1)
9
Quiçá, seja aqui o momento de começar a ajustar conceitualmente o termo gótico
para o propósito do presente trabalho. Na prosa de ficção, o estilo gótico é marcado pelos
9
... the first published work to call itself A Gothic Story was a counterfeit medieval tale published long after
the Middle Ages [ ] The vogue that Walpole began was imitated only sporadically over the next few decades,
both in prose and in theatrical drama. But it exploded in the 1790s (the decade Walpole died) throughout the
British Isles, on the continent of Europe, and briefly in the new United States, particularly for a female
readership, so much so that it remained a
popular, if controversial, literary mode throughout what we still call the
Romantic period in European Literature (the 1790s through the early 1830s), now especially well known as the
era of Mary Shelley s Frankenstein (1818).
24
castelos ou conventos em estado de
ruína
, assombrados ou não, com criptas ou torres, em que
se encerram segredos, por vezes relacionados a maldições familiares, constituindo-se em
ambientes nos quais personagens (geralmente, heroínas dóceis e frágeis) são perseguidas
psicológica e fisicamente por malévolos tiranos endoidecidos, monstros ou espectros, em
tramas que oscilam entre as leis naturais da realidade conhecida e circunstâncias do
sobrenatural ignoto. Ora, esses parecem ter sido os ingredientes da diegese rotulada de
gótica , cuja manifestação se faz sentir no
Schauer
-
roman
, no
roman noir
e n
o
gothic novel
.
Para a poesia, entretanto, objeto deste estudo comparativo entre Edgar Allan Poe e
Alphonsus de Guimaraens, necessitam
os de um detalhamento mais claro de traços, até mesmo
motivos, que fundamentam o poema gótico. É bem provável que o grupo de poetas da
Graveyard School na Inglaterra do século XVIII tenha adaptado, cultivado e encubado
especificamente para a poesia algumas características que hoje a crítica identifica como
góticas
, das quais outros autores em décadas seguintes com
o n
a
Gothic Revival
,
viriam a ter
como modelos. David Punter deixa claro em sua obra The Literature of Terror: the Gothic
Tradition
que
[
...
] a maioria dos escritores mais importantes do período de 1770 a 1820
o que significa
dizer que a maioria dos
poetas
mais importantes desse período
foi fortemente afetada pelo
Gótico de uma forma ou outra. E essa não foi meramente uma recepção de influência passiva:
Blake, Coleridge, Shelley, Byron e Keats, todos tiveram um papel em moldar o Gótico, em
articular um conjunto de imagens de terror que exerceriam uma potente influência sobre a
história literária subseqüente (1996, p.87).
10
Assim, essa poesia da primeira metade do século XVIII, bem como a prosa do mesmo
período, buscaria elementos temáticos na morte, noite, ruínas, em fantasmas, ou seja, em tudo
o que pudesse ser considerado irracional, numa tentativa de se posicionar contra a cultura
raciona
l do Iluminismo.
10
[
...
] most of the major writers of the period of 1770 to 1820
which is to say that most of the major
poets
of
that period
were strongly affected by Gothic in one form or another. And this was not merely a passive
reception influence: Blake, Coleridge, Shelley, Byron
and
Keats all played a part in shaping the Gothic, in
articulating a set of images of terror which were to exercise a potent influence over later literary history.
25
E
sse fato reforça a idéia de que esses escritores românticos, com a exceção de William
Wordsworth, que preferiu com freqüência a luz às trevas, foram os agentes intelectuais a
consolidar
a vitalidade desse estilo a ponto de ele alcançar nossos dias. Diferentes tonalidades
de terror e melancolia, conforme cada poeta, estão presentes em poemas como The Book of
Urizen
(Blake),
Endymion
(Keats), The Rime of the Ancient Mariner (Coleridge), The
Revolt of Islam
(Shelley), e em
Childe Harold s P
ilgrimage
(Byron).
Nesses
poemas de cada um dos cinco autores mencionados, bem como em outros
textos
deles
,
encontra
-se a tendência ao uso de uma linguagem mórbida, à apresentação de
eus
-poemáticos reprimidos e tristes, à tentativa de exploração do inconsciente humano, ao
exagero como meio de retratar o horror da vida cotidiana, à focalização do fracasso da auto-
realização do ser humano em uma sociedade repressora e injusta, à discussão sobre a
aterrorizante transitoriedade da beleza e do prazer
,
em conjun
to com a busca do sublime
um
momento extático que visaria a compensar essa sensação consciente de vulnerabilidade e
insignificância.
Obviamente,
essas
características
foram
capturadas
e incorporadas pelos poetas de
fin
de siècle, pois o Simbolismo
viria
a ser um desenvolvimento natural do recôndito mais
gótico
e sombrio do Romantismo.
Álvaro Cardoso Gomes, em seu texto
Simbolismo
, alerta-nos para esse desdobramento
de ideais estéticos e filosóficos:
De fato, a estética simbolista tem íntima relação com a romântica, ou ainda, a estética
simbolista tem raízes dentro do movimento romântico, a começar que aquele movimento
recupera o idealismo e o espiritualismo deste. [...] Esse idealismo romântico, por sua vez,
apoiava
-se nos princípios esotéricos de Emmanuel Swedenborg. Esse escritor sueco, que viveu
durante o século XVIII (1688-1772), escreveu um livro que acabaria por se tornar a Bíblia
tanto dos românticos quanto dos simbolistas. De coelo et de inferno (Sobre o céu e o inferno)
(1758) é uma obra de caráter místico que tenta explicar as complexas relações entre o mundo
celeste
e o
s
terreno
s.
(1994, pp. 13
-
15)
Isso
se junta
ria
ao pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-
1860)
, cuja perspectiva
filosófica explicita que quanto mais conhecemos e aumentamos nossa consciência, mai
s
cresce o sofrimento em nós, e, especialmente no ser humano, atinge um grau supremo; por
26
isso, afirma que o homem de genialidade é o que sofre mais intensamente. Aliás, nessa
mesma direção, bem mais adiante, Erich Fromm (1900-
1980)
viria a
reforçar
em The Art of
Loving
(1956)
que
, devido ao alto nível de consciência de si mesmo, o homem passa a se
sentir separado de tudo e de todos, pois sabe que se constitui em entidade isolada
um
indivíduo.
Nas palavras de Fromm:
O homem é dotado de razão; é a vida consciente de si mesma; tem consciência de si, de seus
semelhantes, de seu passado e das possibilidades de seu futuro. Essa consciência de si mesmo
como entidade separada, a consciência de seu próprio e curto período de vida, do fato de haver
nascido sem ser por vontade própria e de ter de morrer contra sua vontade, de ter de morrer
antes daqueles que ama, ou estes antes dele, a consciência de sua solidão e separação, de sua
impotência ante as forças da natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência apartada e
desunida uma prisão insuportável. [...] A experiência da separação desperta a ansiedade; é, de
fato, a fonte de toda ansiedade.
(1961
, p.
21
)
A referida
conjunção
filosófica
Swedenborg
/
Schopenhauer
, aliada à decepção das
pessoas devido ao repetido fracasso das promessas políticas, tecnológicas, científicas e
religiosas
de
se
gerar bem-estar e harmonia, poderia resultar num
Zeitgeist
sombrio que
pairaria sobre os artistas e intelectuais do final do século XVIII
invadind
o o século XIX até
a
transição para o XX. Aí reside a motivação intrínse
ca
para se criar poesia que revele a
angústia aninhada em nosso inconsciente, oriunda da percepção de que somos todos partes de
um todo muito maior cada vez menos compreensível, por isso aterrorizante, já que nos
afastamos irremediavelmente das naturezas externa e interna e ficamos à mercê de poderes
que escapam a nossa possibilidade de controle.
O medo da morte (Tânatos) e o desejo de sobrevivência (Eros) crescem no homem
desse período, que é personificado como o melancólico peregrino buscador de um
conhecimento proibido, que se sente só para enfrentar o trauma do autoconhecimento,
que
é o
próprio obstáculo para a auto-realização. Também se sente só em sua fuga da realidade
presente rumo a uma realidade pretérita, em que pode haver respostas para suas indagações;
essas respostas poderiam ajudá
-
lo a fazer frente ao lancinante
e obsedante
conflito interno
que
se cristaliza como sua paranóia existencial.
27
A propósito dessa missão de peregrino buscador, dirá Arthur Rimbaud em sua Lettre
du Voyant :
Eu digo que é preciso ser
vidente
, fazer
-
se
vidente
. O
p
oeta se faz
vidente
através de um longo,
imenso e racional
desregramento
de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de
sofrimento, de loucura; ele procura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos pa
ra
guardar apenas as quintessências. Inefável tortura, contra a qual necessita toda a fé, de toda a
força sobre-humana, através da qual se torna, dentre todos, o grande enfermo, o grande
criminoso, o grande maldito
e o supremo Sábio!
Pois atinge o
desconhecido
!
11
Poe, em seu poema , alude a essa mesma sina solitária de um visionário entre
outras pessoas que não o compreendem, pois sua essência anímica é diferente:
Não
fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim
, na m
inha infância, na alb
a
da tormentosa vida, ergueu
-
se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear
-
me, o meu mistério.
Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos ver
melhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.(1999, p. 72)
12
A fonte das paixões desse eu-
lírico
característico de Poe tem origem di
versa
daquela que os seres
comuns, não visionários,
que na linguagem schopenhauri
ana são
os que
11
Je dis qu'il faut être
voyant
, se faire
voyant
. Le poète se fait
voyant
par un long, immense et rais
onné
dérèglement de tous les sens
.
Toutes les formes d'amour, de souffrance, de folie ; il cherche lui-même, il épuise
en lui tous les poisons, pour n'en garder que les quintessences. Ineffable torture il a besoin de toute la foi, de
toute la force surhumaine, il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, - et le
suprême Savant !
-
Car il arrive à l
'inconnu
!
(
http://poetes.com/rimbaud/voyant.htm
em 22/3/2006)
12
Para os textos de Edgar Allan Poe, usaremos as traduções de Poemas e Ensaios (1999, Ed. Globo) ou
Ficção
Completa, Poesia & Ensaios
(2001, Ed. Nova Aguilar)
, ambos organizados por Oscar Mendes e Milton Amado.
Entretanto, em alguns casos, cremos ser necessário apresentar o original devido a determinadas referências em
relação a itens lexicais ou sintáticos específicos da língua inglesa, que desejamos comentar. Também
incluiremos o texto em inglês se não fizer parte dessas duas obras mencionadas.
28
ainda não atingiram o conhecimento do desconhecido; a voz desses versos vive a incrível e
paradoxal relação d
as
correspondências de Swedenborg: na terra,
ela
, a voz poemática,
presa
a todos os
sofrimentos
materiais e
psíquico
-emocionais, e no céu uma nuvem livre
os dois
elementos tão únicos quanto sós.
Segundo
o princípio
swedenborguiano
das
correspondências
, se a nuvem é como um demônio, o eu do poema também o é, ou seja, traz
para si simultaneamente os papéis do grande maldito e do supremo Sábio, já que, desde a
aurora de uma vida cheia de tormentos, ele tem consciência da natureza mista de seu mistério
vital.
Poe, inclusive, na resenha para
um
livro de
poemas
chamado
Orion
: an Epic Poem in
Three Books, de R. H. Horne, publicada na Graham s Magazine (1844), concorda com a
afirmação de que o poeta é um vidente ou visionário em comparação com os outros homens,
incumbido de uma missão especial: Eu sou um Vidente. Minha IDÉIA
a idéia para que eu
fui escolhido pela Providência para desenvolver
é tão vasta
tão nova
que palavras
comuns, em concatenações comuns, serão insuficientes para seu bom desenvolvimento.
13
Assim, começamos a vislumbrar traços mela
ncólicos em versos com traços góticos, no
sentido que a crítica
utiliza, em que
O Poeta deve ter dentro da alma estelada
Uma deusa que o embale e acarinhe e adormeça
:
É a ilusão que lhe vem aureolar a cabeça
,
Suavizando
-
lhe a dor com os seus dedos de fada
.
Quer surja a aurora, quer por entre sombras desça
A noite, haja o clamor da vida, ou a paz sagrada
Da morte,
--
ela que é a fonte, o bem, a bem
-
amada,
Dá que a palma estival do sonho resplandeça.
E o mundo, que é o sinistro ergástulo de treva,
Transforma
-
se na irial mansão donde se eleva
A prece que há de um dia aos pés de Deus chegar...
E aos astros de tal modo o Poeta ascende em calma,
Que o céu fica menor do que o azul da sua alma,
E nem cabe no céu a luz do seu olhar...(GUIMARAENS,
2
001, p. 400)
13
I am a Se
er.
My Idea
the idea which by Providence I am especially commissioned to evolve
is one so
vast
so novel
that ordinary words, in ordinary collocations, will be insufficient for its comfortable
evolution.
(
http://www.eapoe.org/works/criticsm/gm44hr01.htm
, acesso em
22
/3/2006)
29
O poema de Alphonsus também focaliza pólos correspondentes aparentemente
antitéticos, mas presentes na vida do Poeta, como o mundo, que é o sinistro ergástulo de
treva que se transforma na irial mansão , bem como a aurora e a noite , ou ainda o
clamor da vida e a paz sagrada da morte . O poeta vive entre esses estados dicotômicos
complementares, o que lhe causa a dor constante, pois ele é hiperconsciente da realidade
humana
em que se insere. Essa
melancolia
existencial, filha de uma
Weltschmerz
(dor do
mundo),
a qual um ser mais consciente do que a média dos seres humanos pode
experenciar lucidamente. Talvez, por isso, mantenha-se a idéia, vinda da Antigüidade, de
Aristóteles na verdade, sobre relação entre melancolia e genialidade.
Aliás,
as seguintes
estrofes do poema Monólogo de uma Sombra de Augusto dos Anjos sintetizam o encontro
entre melancolia e arte:
Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
A
ssim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de urna esfera opaca.
Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estét
ica
Consiste essencialmente na alegria.
Continua o martírio das criaturas:
O homicídio nas vielas mais escuras,
O ferido que a hostil gleba atra escarva,
O último solilóquio dos suicidas
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anôni
ma de larva!"
(1982, p. 17)
30
Ora, essa convivência da mais alta expressão da dor estética consistir
essencialmente na alegria reforça as idéias de Swedenborg e a própria noção de Poe quanto
à natureza poética
, como lemos em A Filosofia da Composição
(1999, p. 105):
Encarando, então, Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao
tom
de
sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da
tristeza
. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo invariavelmente
invoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons
poéticos.
[...] De todos os temas mais melancólicos, qual, segundo a compreensão universal da
humanidade, é o mais melancólico? A M
orte
foi a resposta evidente. E quando , insisti,
esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético? Pelo que explanei, um tanto
prolongadamente, a resposta também era evidente: Quando ele se alia, mais de perto, à
Beleza
; a morte, pois de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do
mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver esse tal tema é a de um amante
despojado de seu amor.
Nessa teorização de Poe, quer falsa quer verdadeira em suas intenções quanto à
exp
licação racional do processo de criação poética de O Corvo , percebe-se claramente um
diálogo com a voz dos versos de Augusto dos Anjos acima, quando diz que eu sinto a dor de
todas essas vidas / Em minha vida anônima de larva , pois Poe também busca identificar a
dor, o martírio das criaturas , segundo a compreensão universal da humanidade , o que se
torna a matéria
-
prima do fazer poético
melancólico eivado de aspectos góticos
.
É aqui que a idéia freudiana da identificação da melancolia com a perda do ser amado
se instala como temática nos cenários góticos dos poemas de Poe e de Alphonsus, pois essa
ambientação é perfeita para angústia, terror, culpa, amargura, nostalgia, tristeza, desolação,
prostração,
sofrimento, erotismo não-realizado e não-
realizá
vel
, tudo isso matizado pelo
escuro e pelo sombrio gélidos, mas também pelo sublime, que exploraremos mais adiante.
Cremos, então, que esse estilo
melancólico
de Poe e de Alphonsus nos poemas pode
ser o resultado de um clima de opinião dominante em um grupo, época ou lugar; em
particular, nesta focalização que fazemos, isso se deve à conjuntura de um período histórico
compreendendo, como mencionamos, do final do século XVIII até o início do século XX.
Obviamente,
o
predomínio do
sombrio tanto em ambiênc
ia quanto em tom emocional é opção
dos poetas ora em análise, embora possa haver algo relacionado com suas biografias (e há, ao
31
se levar em conta as perdas de figuras femininas significativas na vida de cada um deles).
Porém, deixaremos essa ótica de fora. Interessa-
nos
sobremaneira
nesta pesquisa o
macrocontexto que os conduziu a essa estética.
É bem
possível que tal tendência estética
tenha
se constituído na própria natureza de
Poe e de Alphonsus, seu ethos , por assim dizer, por motivos culturais e religiosos. Aliás, a
manifestação desse ethos do romântico norte-americano e do simbolista brasileiro resume-
se
no que
Max
Weber denominou
desencantamento do mundo (
die Entzauberung der
Welt
).
Antônio Flávio Pierucci
, em seu artigo
Secularização em Max
Weber
, explica:
Mas é o novo termo
desencantamento
o predileto de Weber, a ponto de se tornar uma das
marcas registradas de sua escritura e de sua teoria. Com ele Weber descobriu ser possível
designar com propriedade o longuíssimo período de
racional
ização religiosa por que passou a
religiosidade ocidental em virtude da hegemonia cultural alcançada por essa forma
eticizada
de religião desencantadora deste mundo : o judeo-cristianismo. [...] Para Weber, o
desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é
um
processo essencialmente religioso, porquanto são as religiões éticas que operam a eliminação
da magia como meio de salvação, conforme fica explicitado nesta outra passagem de A ética
,
na qual Weber estabelece estilisticamente, com o uso dos dois pontos, a seguinte equação:
o
desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação
.
(1997, p.5)
Portanto, caso Weber esteja correto, o encantamento do mundo poderá ter sido
eliminado, pelo menos em parte para Poe
e
para Alphonsus,
respectivamente,
como um
subproduto de um puritanismo fanático dos peregrinos na América do Norte e
de
um
catolicismo não menos radical que os portugueses transplantaram para o Brasil. Ambas
atitudes religiosas tiveram seus momentos de extremismo, e foi somente com radicalismo
férreo e ígneo, quer no caso da caça às bruxas quer na atuação da Santa Inquisição, que
lograram manter os fiéis sob seu jugo, não tão suave quanto o do mestre Jesus que citavam
como modelo.
Por outro lado, Moacyr Scliar, em seu recente estudo sobre a melancolia, Saturno nos
Trópicos
, menciona o intrigante comentário de Leslie Stephen: Nós não somos melancólicos
porque acreditamos no Inferno, mas acreditamos no Inferno porque somos
melancólicos. (2003,
p. 92)
32
Seja a explicação qual for, o óbvio parece ser que, para intelectuais de
diferentes
lugares
e época
s,
a fé e a moralidade não neutralizam o absurdo da existência, na qual a morte
preenche as mentes mais lúcidas de profundo terror
, em um luto dolen
te
e pensativo.
De um outro ângulo, havia tanto no Catolicismo da Idade Média e no P
rotestantismo
da Reforma um certo culto à melancolia. No Catolicismo medieval, surge o conceito de
acedia ou acédia, que, em um primeiro momento, teria a ver com um estado de êxtase de
transe religioso. Só posteriormente, entretanto, ganhou conotação de preguiça e indolência.
para o Protestantismo, que prega
va
a fé como única via de salvação, a melancolia, que viria a
se tornar a culpa do pecador,
seria
um instrumento de
conversão.
Ao fim e ao cabo, entretanto, o excesso de promessas de
bem
-
estar
que a religião e a
ciência fizeram desde o Renascimento trouxe efetivamente um mal-estar, em que,
entre
diversos fatores desagregantes, est
ariam
a miséria crescente das metrópoles inchadas de
pessoas
em padrões de vida subumanos, as permanentes crises econômicas, as guerras e
revoluções, as alterações no âmbito do trabalho
versus
capital, as bruscas mudanças nos
valores norteadores da convivência social, a falsa moralidade, a pseudoliberdade do cidadão,
que, em vez de artífice do próprio destino, v
iu
-se cada vez mais isolado e solitário. Os
sentimentos de perda e culpa, por sua vez, enraíza
ra
m-
se
na psique desse homem moderno,
acompanhado da tristeza de ser incapaz de se sentir amado e de amar, mas com uma grande
ânsia de prover e receber amor
eis o terreno fértil para a melancolia, a bílis negra, o
spleen
do Romantismo
, a angústia do Decadentismo.
Ora, o ambiente sombrio, lúgubre, até mesmo tenebroso, do gótico da prosa ficc
ional
também é propício para a desventura emocional do melancólico, que terá no macabro, no
misterioso, no tétrico, quiçá no mórbido, o instrumental
simbólico
para fazer a ponte entre
diversas camadas de sua vida psíquica desconsolada e o grau mais puro de beleza po
ética
atingível.
33
Por conseguinte, não é nada surpreendente que os românticos tenham emprestado aos
simbolistas o arcabouço teórico fundamental para a consecução dos ideais
proposto
s pelos
escritores
franceses
malditos
das últimas décadas do século XIX, os quais acabariam por
passar esse bastão estético aos decadentistas brasileiros.
Em vários de seus escritos, que sabidamente, por meio de Charles Baudelaire,
influenciaram sobremaneira os simbolistas franceses, Poe
teoriza que
[ ] a origem da Poe
sia
está
numa sede de Beleza mais espantosa
do
que a Terra é capaz de
oferecer
aquela Poesia que em si mesma é o imperfeito esforço de saciar essa sede imortal
por meio de novas combinações de belas formas (
concatenações
de formas) físicas ou
espirituais
, e essa sede
mesmo
quando parcialmente aplacada
esse sentimento mesmo quando
encontrando
débil resposta
produz emoção em relação à qual todas as outras emoções
humanas são
r
ápidas e insignificantes.
14
E quanto a essa sede de beleza, esse instinto quase incontrolável (talvez para Poe,
incontrolável) que o ser humano tem dentro de si, o mestre de Baudelaire nos ensina em O
Princípio Poético aquilo que os simbolistas viriam a conceber como sinestesia, uma
outra
ferramenta da linguagem poética, capaz de suscitar em nossa mente senão a Beleza integral,
ao menos laivos dela, pelo esquema das correspondências:
Um instinto imortal bem profundo no espírito do homem é dessa forma, plenamente, um senso
do belo. É ele que dirige, para deleite seu, as múltiplas f
orma
s, sons, odores e sentimentos,
entre os quais vive. [...] Mas esta simples repetição não é poesia. Quem cantar simplesmente,
embora com inflamado entusiasmo, ou embora com vívida veracidade de descrição, as
paisagens, os sons, cores, odores e os sentimentos que opõe em comum com toda a
humanidade
esse alguém, digo eu, ainda não conseguiu provar seu divino título. ainda
algo na distância que
ele
não foi capaz de atingir. Temos ainda uma sede insaciável para
aplacar, a qual não nos mostrou ele as fontes cristalinas. Esta sede pertence à imortalidade do
Homem.
[...]
É o anseio da mariposa pela estrela. Não é uma mera apreciação da Beleza, que
está diante de nós, mas um violento esforço, para ultrapassar a Beleza. Inspirados por uma
extasiante paciência das glórias de além-túmulo, lutamos, por meio de multiformes
combinações, entre as coisas e pensamentos do Tempo, para atingir uma porção daquela
Beleza, cujos verdadeiros elementos à eternidade pertencem. E assim quando pela Poesia,
ou pela Música, o
mais arrebatador dos meios poéticos, nos achamos a chorar, choramos então,
não como supõe o padre Gravina, por excesso de prazer, mas por certo impaciente e acre pesar,
diante de nossa incapacidade de apreender agora, inteiramente, aqui na terra, imediatamente e
para sempre, aquelas divinas e arrebatadoras alegrias, das quais, por meio do poema, ou por
meio da música, percebemos apenas breves e indeterminados vislumbres. (POE, 1999, pp. 80-
81)
14
[ ]the origin of Poetry lies in a thirst for a wilder Beauty than Earth supplies
that Poetry itself is the
imperfect effort to quench this immortal thirst by novel combinations of beautiful forms (collocations of forms)
physical or spiritual, and that this thirst when even partially allayed
this sentiment when even feebly meeting
response
produces emotion to which all other human emotions are vapid and insi
gnificant.
(
http://www.eapoe.org/works/criticsm/gm44hr01.htm
, acesso em 22/3/2006)
34
Reforça Poe a concepção de que o homem não aceita sua finitude terrena, sua prisão
construída com as duríssimas e intransponíveis
muralhas
de tempo e espaço; incomoda o fato
de que a prometida glória trazida pela morte libertadora apenas lhe gera uma inquietude
melancólica, um impaciente e acre pesar .
Contudo, e
xal
ta a importância da criação artística
,
bem como a íntima relação entre poesia e música, como bálsamo que alivia, porque arrebata,
ou seja, porque o lança para fora de si (
ékstasis
do grego
),
porque, ainda que momentânea e
parcialmente, leva
-
o e enleva
-o
. O
ra, o ser que é c
ônscio de sua finitude e de sua incapacidade
para viver o prazer supremo só pode ser sombrio e melancólico.
Des
tarte, o poeta melan
cólico
, assim como o
décadent
, torna-se um caçador de
emoções raras, num tipo de solidão intelectual unida a um misticismo torturador, o que nos
faz lembrar um pouco do poeta barroco, pois, guardadas as devidas proporções, viveram tanto
o poeta romântico quanto o simbolista a pressão deformadora da morsa social de uma
burguesia fútil e de uma progressiva indust
rialização estupidamente feroz.
Entre os vários cenários em que florescem essas emoções raras, est
ão
o da morte e
o
do estranho (Das Unheimliche de Freud, de que falaremos adiante), até mesmo o do bizarro
,
como principais, já que é do terreno desconhecido, exótico, portanto, do inconsciente humano
nascerão flores do mal (e cumpre ressaltar que em francês, numa alusão a Les Fleurs du
Mal , mal não significa somente mal, mas também, dor, angústia).
É
da angústia
melancólica
, por vezes mórbida do poeta vidente que surgem flores estranhas, de encantos
esquisitos,
mas que paradoxalmente são
símbolos de beleza
transcendental.
Entretanto, é importante salientar que Poe não advoga eliminar a Verdade como um
dos ingredientes do poema. Em seus artigos críticos, enfatiza a relevância da Beleza sobre
qualquer outro aspecto e recomenda um distanciamento do didatismo. Isso fica claro neste
trecho de A Filosofia da Composição :
De modo algum, se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a
verdade não possam ser introduzidas, proveitosamente até, num poema, porque elas
podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em
35
música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçará, em primeiro
lugar, para harmonizá-
las,
na submissão conveniente ao alvo predominante, e, em
segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a
a
tmosfera e a essência do poema.
(
POE,
1999, p. 105)
Focalizamos esse ponto porque cremos ser essa
experiência
inefável (
aq
uelas divinas
e arrebatadoras alegrias ) de que fala Poe,
um
estado de êxtase de profunda percepção
transcendente, isto é, um resplandecer da sublime Beleza que faz surgir a suprema Verdade
,
ainda que em apenas breves e indeterminados vislumbres ,
pois,
como diz Emily Dickinson
em seu poema I died for Beauty , Beleza e Verdade são irmãs. E será, justamente, essa
questão do Sublime o tópico de discussão do
s
próximo
s
dois
capítulo
s.
36
CAPÍTULO II
I
DO
ESTRANHO
E DO SUBLIME
Acho inútil e fastidioso represe
ntar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A
natureza
é feia, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta.
15
Charles
Baudelaire
Em 1919,
Sigmund
Freud publica
Das
Un
hei
m
lich
e, uma resposta direta a Ernst
Jentsch,
psicanalista,
estudioso da literatura médico-psicológica, que
descreve
em seu "Über
die Psychologie des Unheimlichen"
a
sensação de
incerteza provocada no leitor diante de um
fato, característica do sentimento de estranheza. Constata, entretanto, que a incerteza por si só
não poderia justificar o sentimento de estranheza suscitado no leitor. Após uma análise
pormenorizada de alguns textos literários, conclui que dois fatores seriam os responsáveis
pelo
sentimento d
o U
nheimlich
e
(estranho)
, dos quais trata
remos mais adiante.
Nos anos seguintes à sua publicação, pouca importância se deu a esse ensaio
de Freud
.
Entretanto,
entre o final da década de 60 e início da de 70, talvez no que possamos descrever
como a transição entre estruturalismo e pós-
estruturalis
mo,
a idéia do estranho volta a receber
atenção
, mormente em círculos de teoria/crítica literária, filosofia e estudos culturais. Tz
ve
tan
Todorov
(1939-)
focalizou
esse tópico em seus estudos estruturais sobre o fantástico,
mantendo
assim vívido o interesse no conceito do estranho em diferentes
estilos
, incluindo-
se
aí o gótico
.
Embora tenha existido muita crítica negativa ao texto de Freud, pois tem-se a
impressão de que ele não chegou a definir de modo preciso o que é o U
nheimlich
e. Porém,
assim como o
sublime, o adjetivo substantivado
o estranho
está mais próximo da idéia de
uma qualidade do que de uma entidade concreta e, por isso mesmo,
preste
-
se
como conceito
15
Je trouve inutile et fastidieux de représenter ce qui est, parce que rien de ce qui est ne me satisfait. La nature
est laide, et je préfère les monstres de ma fantaisie à la trivialité positive. (
http://poetes.com/baud/BCrit1.htm
,
acesso em 25/4/2006)
37
estético: expressa algo subjetivo e mais difícil de se racionalizar num processo
meta
lingüístico, sendo mais bem apreendido por exemplificação
.
Por esse viés, tanto para Freud quanto para Jentsch, o sentimento de estranheza é uma
forma específica
, mas
suave
,
de ansiedade, relacionada a certos fenômenos da vida cotidiana e
a certas circunstâncias presentes na arte, especialmente na literatura fantástica
(termo que
Freud utiliza). Exemplos de tais fenômenos ou de motivos literários são o duplo
(
Doppelgänger
), estranhas repetições, a onipotência do pensamento (a idéia de que nossos
desejos
ou pensamentos podem se tornar realidade), a confusão entre o animado e o
inanimado, experiências relacionadas à loucura, à superstição ou à morte.
Freud
, desde o início, considera o estranho como uma experiência estética, adjetivo
que no texto em foco se aplica em sentido amplo ao estudo das qualidades de nossos
sentimentos em oposição ao sentido mais estrito do
estudo do belo, que, de acordo com Freud,
limita o significado a sentimentos positivos apenas. Também insiste que nem todos somos
igualmente suscetíveis a esse sentimento de estranheza e que a lista de fenômenos não é
conclusiva nem aceita como regra geral. Especialmente, no caso da literatura, tudo dependerá
do tratamento
dado ao texto para que um determinado motivo cause estranhamento ou não.
É interessante que o pai da psicanálise nos apresenta o termo, não como o substantivo
formado por derivação sufixal
das Unheimlichkeit , isto é, estranheza, mas por derivação
imprópria, ou seja
,
pela substantivação do adjetivo:
das Unheimlich
e
, o estranho.
Do ponto de
vista gramatical, é o mesmo que acontece com o grotesco e o sublime. Parece criar assim
uma mistura entre o caráter determinado do substantivo, por um lado, e o aspecto mais vago
ou indeterminado que o adjetivo pode sugerir.
Apesar de essa escolha lexical deixar o conceito científico mais vulnerável quanto à
certeza de sentido, Freud esclarece que na vida real encontramos um referente claro, que pode
ser descrito e definido. A fim de se determinar a essência do estranho, ele investiga o termo
38
unheimlich
semântica e etimologicamente em vários idiomas, apresentando uma série de tons
que somados conduzem à idéia do gótico melancólico que me
ncionamos no
segundo
capítulo.
Ensina Freud que o termo
equivalente de
un
heimlich
em latim na referência a u
m local
seria
locus suspectus; em inglês, os matizes de tenebroso, sombrio, lúgubre, grotesco; em
francês e em espanhol, sinistro, inquietante; em hebraico e em árabe, demoníaco e ameaçador.
Embora esse exercício lingüístico proposto conduza mais a uma
investigação
cíclica
, pois
cada nova interpretação precisa de outra interpretação, ficando Freud prisioneiro do próprio
círculo hermenêutico que criou, p
arece
-nos uma boa amostra de significados que remetem a
uma descrição bastante próxima do que se aprese
nta como características do gótico
poético.
De qualquer forma, Freud constata que, o oposto de
unheimlich
, isto é
heimlich
, que
deriva de
Heim
(casa, lar) tem dois sentidos possíveis, a saber: o primeiro, mais literal (e
positivo)
doméstico, íntimo,
fami
liar; o segundo, mais metafórico (e negativo)
escondido,
clandestino, secreto, furtivo. O sentido positivo mostra a perspectiva interna da intimidade do
lar, enquanto que o sentido negativo revela que as paredes da casa escondem do observador
externo o i
nterior da casa, o que conota reclusão e isolamento.
Logo,
unheimlich
, como estranho, sinistro, misterioso, não familiar, difere do primeiro
sentido, mas se aproxima bastante do segundo.
Freud conclui, citando Schelling, que, apesar das divergências
pesqu
isadas, uma
verdade se definia claramente: o misterioso/
o
estranho
(uncanny/unheimlich)
[...]indubitavelmente pertence a tudo aquilo que
é terrível
a tudo aquilo que
estimula o
medo e o horror
16
(os destaques são meus).
Portanto
, o sentimento de estranheza seria
produzido no momento em que algo familiar, conhecido pelo indivíduo, torna-se diferente,
adquirindo facetas de desconhecido.
16
undoubtedly belongs to all that is terrible
to all t
hat arouses dread and horror
.
(
FREUD, 1949,
p.368)
39
Na literatura, explica Freud que o primeiro fator para o U
nheimlich
e está associado à
ansiedade gerada por um impulso emocional reprimido. O elemento reprimido retornaria
provocando a estranheza. O segundo fator seria decorrência direta do primeiro, ou seja, o
elemento
reprimido era familiar, tornou-se alienado através de sua negação e surge
inesperadamente perante o indivíduo. Freud reforça esse conceito ao afirmar a diferença entre
um medo de algo estranho, não familiar, do estranhamento propriamente dito. Cita as
coincidências do desejo e realização, as repetições de experiências similares em datas ou
lugares, as visões ilusórias, os ruídos suspeitos e mesmo o duplo como fatores familiares,
conhecidos, mas que suscitariam o
sentimento de estranheza.
No entanto, reconhece a particularidade estética da estranheza ao confrontar a teoria
psicanalítica dos complexos infantis reprimidos e reavivados com a
realização
literária.
Segundo ele, o autor [...]consegue guiar a corrente das nossas emoções, represá-la numa
direção e fazê-
la
fluir em outra, e obtém, com freqüência uma grande variedade de efeitos
diante do mesmo
materia
l.
17
A idéia de tudo aquilo que
da citação da página anterior
nos lev
a a crer que podemos
sentir
uma estranheza tanto diante de fenômenos sobrenaturais externos (descrição mais
próxima da teoria proposta por Edmund Burke em 1757 em A Philosophical Enquiry into the
Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautifu
l)
bem como diante de fenômenos internos,
isto é, a percepção do inconsciente como parte do nosso Eu, pois tais fenômenos nos
confrontam com algo desconfortável, sinistro e desconhecido ou não fami
liar,
unheimlich
no
termo freudiano.
Assim
, amiúde nos poemas que focalizaremos, o eu-poemático se mostra
assombrado por algo que não consegue definir, devido ao fato de ser esse algo imensamente
maior do que nosso lado racional possa equacionar. Tal sensação de incerteza evocará um
17
[ ]
is able to guide the current of our emotions, to dam it up in one direction and make it flow in another, and
he often obtains a great variety of effects from the same material.
(
FREUD, 1949,
p.
372
)
40
grau de ansiedade que progressivamente se desenvolverá em terror, o qual, no caso literário,
com a utilização de recursos artísticos
poderá
se transmutar em sublime.
É importante salientar que a sensação de ansiedade implica a
impossibilidade
de identificar claramente a fonte do terror, quer ela se origine
como
resposta a um perigo
físico em potencial quer como resposta a um perigo psicológico.
Logo
, será uma ameaça, um
temor, uma angústia que levará, no caso dos poemas de Poe e de Alphonsus, à sensação do
misterioso e do sublime.
Um
outro aspecto importante desse texto freudiano é a
oposição
que surge
en
tre
estranho e amedrontador. Assim, o estranho não produziria o pânico ou o medo, mas um
sentimento ímpar de difícil definição.
Primeiramente, Freud diferencia os "contos de fada", em que o mundo da realidade é
deixado de lado desde o princípio, de narrativas clássicas como o
Inferno
de Dante",
Hamlet,
Macbeth
e
Júlio
César, narrativas essas em que o "mundo real" admite "seres es
pirituais
superiores", diferindo-as ainda das narrativas nas quais o "
[...]
escritor pretenda mover-se no
mundo da realidade comum."
18
O sentimento de estranheza nesse último caso é realizado
"
[...]
fazendo emergir eventos
que nunca, ou muito raramente, acont
ecem de fato
."
19
Ainda
, segundo Freud, o autor nos ilude ao prometer a realidade, mas nos engana no
momento em que essa mesma realidade é excedida. Nesse caso, conservamos um "sentimento
de insatisfação, uma espécie de rancor contra o engodo assim obtido"
20
. Soma-se a esse fato a
característica do retorno a algo já
conhecido, do
déjà
-
vu ou do
déjà
-
vécu.
Voltando
-se mais uma vez para a literatura, Freud enumera outras características da
estranheza. Para ele, o autor poderia manter o leitor às escuras, por muito tempo, quanto à
18
[ ]
the writer pretends to move in the world of common reality
.
(
FREUD, 1949,
p.
374
)
19
[ ]
by bringing about events which never or very rarely happen in fact.
(
FREUD, 1949,
p.
374
)
20
[ ]
a feeling of dissatisfaction, a kind of grudge against the attempte
d deceit.
(
FREUD, 1949,
p.
376
)
41
natureza exata das pressuposições em que se baseia o mundo sobre o qual escreve; ou pode
evitar, astuta e engenhosamente,
qualquer informação definida sobre o problema, até o fim.
21
Assim, Freud coloca em jogo a dúvida suscitada no leitor em relação à veracidade ou
não de um fato narrado. Esse posicionamento ambíguo entre o mundo real e o mundo
maravilhoso é o mesmo adotado por Todorov na defi
nição do fantástico tradicional
.
Finalmente, Freud explicita mais um elemento do estranhamento u
tilizado na
literatura
analisada: a sensação de estranheza pode ser vivida por um personagem, mas somente é
passada ao leitor quando nos colocamos no lugar desse mesmo personagem, ou seja,
possivelmente quando o personagem é o narrador. Esse dado
de
imedia
to nos remete à
necessida
de desejada, mas
prescindível
, da identificação entre o narrador e o leitor para que o
sentimento de
estranheza, ou fantástico,
seja
determinado.
Entretanto, Freud separa o sentimento de estranheza psicanalítico do estético ao
afir
mar que:
É evidente, portanto, que devemos estar preparados para admitir existirem outros elementos,
além daqueles que estabelecemos até aqui, que determinam a criação de sensações estranhas.
Poderíamos dizer que esses resultados preliminares satisfazem o interesse psicanalítico pelo
problema do estranho, e que aquilo que resta pede provavelmente uma investigação estética.
Isto, porém, seria abrir a porta a dúvidas acerca de qual seja exatamente o valor da nossa
argumentação geral, de que o estranho provém
de algo familiar que foi reprimido.
22
Dessa forma, Freud, ao mesmo tempo, havia elaborado uma definição valiosa do
sentimento de estranheza e deixara o caminho aberto para um estudo literário do estranho que
re
percuti
ria
nos trabalhos de Todorov.
Do que
foi exposto até o presente momento, a definição de Freud para o
sentimento de
estranheza compreenderia os seguintes aspectos principais: seria decorrência de algo familiar
21
in the dark for a long time about the precise nature of the presuppositions on which the world he writes
about is based, or he can cunningly and ingeniously avoid any definite information on the point to the last.
(
FREUD
, 1949, p.
390
)
22
It is evident therefore, that we must be prepared to admit that there are other elements besides those which we
have so far laid down as determining the production of uncanny feelings. We might say that these preliminary
results have sati
sfied
psycho
-
analytic
interest in the problem of the uncanny, and that what remains probably
calls for an
aesthetic
enquiry. But that would be to open the door to doubts about what exactly is the value of our
general contention that the uncanny proceeds from something familiar which has been repressed. (
FREUD,
1949,
p.
392
)
42
que se torna desconhecido, reprimido, gerando angústia no indivíduo; surgiria
inespe
radamente causando espanto e estranhamento; no caso literário, o mundo do
estranhamento seria aquele em que fatos raros ocorreriam e haveria um sentimento de ilusão
por parte do leitor gerado pela promessa do autor em integralizar uma realidade, mas acabar
por excedê
-
la; o retorno a algo já
conhecido poderia ser constante; o narrador geraria a dúvida
sobre o leitor a respeito da identificação do fato narrado e, finalmente, somente com a
identificação do leitor com o narrador esse sentimento de dúvida e estranheza poderia ser
concretizado.
Sabemos que não é o fato de reprimirmos instintos, desejos e paixões que os impedirá
de existirem em nosso inconsciente e de se organizarem para uma conseqüente manifestação,
em primeira instância,
em algo que
se constit
ui no misterioso de que fala Freud.
O texto de Freud reforça a idéia de algo ser
unheimlich
(não familiar, desconhecido,
por isso assustador) estar relacionado com o fato de esse mesmo algo ser
heimlich
(familiar,
conhecido) em nosso inconsciente, já que na verdade é apenas um dado que há tempo está em
nossa mente,
todavia
de forma reprimida, alienado pelo processo de repressão; é algo que
deveria ter se mantido esquecido, secreto, porém logrou manifestar-se em nossa consciência.
É o resultado
dessa
perturbação psicológica não resolvida que conduz ao sublime, a
experiência de beleza e arrebatamento, mesmo em meio ao grotescamente estranho.
Por mais paradoxal que pareça, Victor Hugo também tratará desse assunto em La
Préface de Cromwell (1827), descrevendo o grotesco como característica contrária e
complementar ao sublime. Afirma que é da fecunda união do tipo grotesco ao tipo sublime
que
nasce o nio moderno
23
. O grotesco fascinará porque tem um poder indefinível e
incontrolável pela razão. Certamente, nossos instintos, impulsos e compulsões reprimidos se
enquadram na categoria do grotesco psicológico que nos amedronta e nos fascina
23
C
est de la féconde union du type grotesque au type sublime que naît le génie moderne. (
HUGO, 1968,
p.70)
43
simultaneamente, o que tenderá a ocorrer repetidamente no esforço de nosso inconsciente se
fazer notar. Ora,
quando
algo re
primido ressurge
,
tra
z
como subproduto o temor ou terror com
a desconfortável sensação de estarmos diante do não familiar, do desconhecido.
Desse ponto de vista, torna-se mais fácil entender a coexistência no ser humano dos
dois instintos básicos apontados por Freud: o da vida e o da morte. Essencialmente, o instinto
de morte é um desejo reprimido de se voltar ao estado de paz e tranqüilidade inicial, em que
o ser humano se sentia protegido e desconhecia os conflitos da vida externa ao
útero; assim, o
im
pulso ou desejo de auto-anulação do ego, tema recorrente nos poemas que analisaremos,
pode ser compreendido como uma tarefa desenvolvida visando ao atingimento
do
mesmo
estado de sublimidade original.
Assim, paralelamente se posicionam repulsão e atração, isto é, o instinto de
preservação da vida recusa a auto-aniquilação, enquanto que o desejo de reviver uma
condição em que
não
haja os sofrimentos humanos atrai sobremaneira.
Tomemos como breve exemplo dessa familiaridade misteriosa estas estrofes dos
so
neto
s XXX e XI do livro Pulvis e o do soneto XX ( Súplica ) do livro Escada de Jacó
de
Alphonsus de Guimaraens:
XXX.
Sempre vivi com a morte dentro da alma,
Sempre tacteei nas trevas de um jazigo.
A sombra que envolve é eterna e calma,
E sigo sem saber
quem vai comigo.
(
2001,
p. 431)
XI
Sinto passos de uma sublime dama,
Escuto em treva uma voz materna.
O céu de estrelas de oiro se recama...
É a morte que me oscula, ungida e terna.
(
2001,
p. 422)
XX. Súplica
Não pedirei, Senhor, que sejas compassivo
Ao meu longo infortúnio, à minha atroz miséria.
Vivo, e quero morrer: sou como um redivivo
Que vivesse outra vez uma vida funérea
(
2001,
p. 399)
Fica bastante
evidente
nesses versos esse desejo insólito, un
heimlic
h, ( Sempre vivi
com a morte dentro da
alma
)
de auto
-
aniquilação
( Vivo: e quero morrer )
para um retorno à
44
condição filial, em que a morte é comparada à voz maternal de uma sublime dama (
Sinto
passos de uma sublime dama,/Escuto em treva uma voz materna ).
Consideremos também essa
am
bival
ên
cia vida/morte de repulsa e atração em algumas
estrofes de
Para Annie de Edgar Allan Poe:
G
raças a Deus! A crise,
o
perigo passou!
O mal languidescente
a
final se acabou.
E essa febre chamada
v
ida
se conquistou!
Tristemente me sinto
das
for
ças despojado
e
músculo algum posso
m
over assim deitado
.
Mas que importa? Prefiro
f
icar assim deitado.
[...]
O mal
-
estar, a náusea,
a
impiedosa
agonia,
tudo se foi, com a febre
que a mente enlouquecia
febre chamada
vida
,
que em meu cére
bro ainda ardia
.
De todos os tormentos,
o que mais amargura
c
essou: o ardor terrível
d
a sede que tortura,
s
ede do rio naftálico
d
a Paixão vil e impura.
Oh! Eu bebi de uma água
q
ue toda sede cura!
(
1999, pp. 68
-
69)
É
digno de nota o quinto verso da segunda estrofe ( Mas que importa? / Prefiro ficar
assim deitado. ), que serve de ressalva para o lamento inicial, marcado pelo advérbio de se
estar
tristemente despojado das forças vitais; contudo, essa circunstância é ainda desejada
quando
se leva em conta o tormento febril que a vida plena de Paixão vil e impura traz
consigo.
Para este nosso estudo, aqui está o que Vitor Hugo, no prefácio anteriormente citado,
enfatizaria como o fato de no universo nem tudo ser humanamente belo; convive o feio (o
estranho, o não familiar) com o belo, o disforme com o gracioso, o grotesco com o sublime, a
sombra com a luz, o mal com o bem. Hugo declara que
[...]
com o C
ri
stianismo e por ele se
45
introduziu
no espírito dos povos um sentimento novo, desconhecido dos antigos e
singularmente desenvolvido entre os modernos, um sentimento que é mais que a gravidade e
menos que a tristeza: a melancolia.
24
Dessa forma, Victor Hugo explica que
[
...
]
sob a influência desse espírito de melancolia cristã e de crítica f
ilosófica que notávamos há
pouco, a poesia dará um grande passo, um passo decisivo, um passo que, semelhante ao abalo
de um terremoto, que mudará toda a face do mundo intelectual. Ela se porá a fazer como a
natureza
, a misturar nas suas criações, sem entre
tanto confundi
-
las, a sombra e a luz, o grotesco
e o sublime, entre outros termos, o corpo com a alma, o animal com o espírito, pois o ponto de
partida da religião é sempre o ponto de partida da poesia.
25
Um
outro grande poeta simbolista
brasileiro
resum
iu
em versos simples
esse
sensação
do insólito que faz grudar suas garras envenenadas de melancolia na alma humana; Cruz e
Souza, com seu poema Tristeza do Infinito , reitera em arte o que Freud procurava explicar
pela razão: o ser humano traz dentro de si sentimentos repetidamente reprimidos, que o
assombram com um peso de aparente ausência de significado por causa de seu caráter de
origem indefinível; no entanto, não nada de insignificante, pois eles podem levar a um
desejo de transcender essa condição de estranheza ou estranhamento quer pela auto-
anulação
(alienação) quer pela religião
/religação
(sublimação).
Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vague
ia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.
24
[ ]avec le Christianisme et par lui, s'introduisait dans l'esprit des peuples un sentiment nouveau, inconnu des
anciens et singulièrement développé chez les modernes, un sentiment qui est plus que la gravité et moins que la
tristesse, la mélancolie
.
(
HUGO, 1968,
p.
75
)
25
[.
..]
sous l'influence de cet esprit de mélancolie chrétienne et de critique philosophique que nous observions
tout à l'heure, la poésie fera un grand pas, un pas décisif, un pas qui, pareil à la secousse d'un tremblement de
terre, changera toute la face du monde intellectuel. Elle se mettra à faire comme la nature, à mêler dans ses
créations, sans pourtant les confondre, l'ombre à la lumière, le grotesque au sublime, en d'autres termes, le corps
à l'âme, la bête à l'esprit ; car le point de départ de la religion est toujours le point de départ de la poésie.
(
HUGO,
1968,
p.
77
)
46
Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...
Trist
eza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fund
o,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma d
o Sensível
magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!
(
1997,
pp. 150
-
152)
Passaremos a seguir a discutir a questão
, mais especificamente, do sublime e
da
melancol
ia
na sua relação com o
gótico
.
47
CAPÍTULO I
V
ASPECTOS MELANCÓLICOS DO SUBLIME GÓTICO
A idéia do sublime é um dos conceitos
-
chave na estética do final do século XVIII bem
como nas propostas do Romantismo europeu. O termo é atribuído ao tratado Sobre o Sublime
(Peri Hypsous), escrito pelo suposto filósofo grego Longino do século I d.C., publicado pela
primeira vez em 1554 pelo
c
rítico italiano Francesco Robortelli. Pseudo Longino
descreve
em
detalhe
s os efeitos retóricos do sublime, trazendo a mensagem central de que o sublime é a
ressonância da nobreza da alma, mas também do domínio de técnicas retóricas. Neste tratado
incompleto, por engano atribuído a Cássio Longino, afirma-
se
que cinco fontes para o
sublime: duas são dons
pensamentos elevados e sentimentos nobres; as três outras são
produtos artísticos
tropos , estilo e arranjo magnânimos. A importância desse texto reside
no fato de ter sido
o ponto de inspiração para posteriores reflexões de
filósofos e teóricos.
É muito provável que o
vocábulo tenha entrado para o francês e para o inglês por meio
das teorias da retórica, objetivando-se diferenciar o stilus sublimus do stilus humilis.
Mais
tarde, no século XVII, segundo a lexicografia, a palavra deve ter se sedimentado com as
traduções
do texto de Lon
gino
em francês no texto de
Nicolas
Boileau (1674) e em inglês na
interpretação de
John Hall (1652). Sabe
-
se que o termo começou a ser utilizado nos relatos de
viajantes
em locais bravios, mais tarde em cartas pessoais, e, por fim, em textos de teoria ou
crítica literária assinados por
John Dennis,
Joseph Addison,
Horace Walpole,
Anthony Ashley
Cooper, Mark Akenside, John Baillie, Edward Young, Robert Lowth, Hugh Blair and Henry
Home
, para mencionar apenas alguns.
Samuel Johnson, em seu Di
ctionary
de 1755,
registra
sublime
como galicismo e
ainda traz o significado já mencionado da retórica com a idéia de sublimidade como
heroísmo, magnitude e elevação, altivez de sentimento.
48
Entretanto, para a relevância deste nosso estudo será Edmund Burke que
redefinir
á
sublim
idade.
Em
A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and
Beautiful
(1757)
, Burke início a uma tendência conceitual
muito
forte.
Essa
reconceitualização do sublime foi aproveitada pelos românticos, uma ve
z que as definições de
Dennis e de Addison, anteriores à de Burke, carregavam o sentido de uma mistura entre
elevação e espanto. O sublime, assim, estava intimamente ligado à experiência de Deus na
natureza (portanto, direta ou indiretamente refletido no panteísmo de William Wordsworth),
e
o efeito dessa vivência como sendo uma elevação da alma em conjunto com um sentimento de
ficar estupefato diante da magnificência da divindade natural. Porém, Burke adiciona os
fator
es
de imensidão, obscuridade, magnificência, e, em especial, temor ou terror, como
elementos constitutivos do sublime
:
O que quer que de alguma forma venha a excitar as idéias de dor, e perigo, isto é, aquilo que
seja de alguma maneira terrível, ou tenha a ver com coisas terríveis, ou funcione de modo
análogo ao terror, é fonte do
sublime
; isto é, produz a mais forte emoção que a mente é capaz
de sentir. Digo a mais forte emoção porque estou convencido de que as idéias de dor são muito
mais poderosas do que as que se originam pelo prazer.
(
Apud
ADAMS,
1971, p. 310
)
26
Essa insistência de Burke na tecla do terror consolidou sua grande contribuição para o
as idéias dos poetas da Graveyard School e para o estilo dos romanc
istas
góticos dos séculos
XVIII e XIX. Burke acreditava que uma idéia aterrorizante ou dolorosa criaria uma sublime
paixão, fazendo a mente se concentrar somente nesse aspecto, produzindo uma suspensão
momentânea de toda atividade racional
. Isso
soa como
o alicerce
da declaração de Poe quando
teoriza que a morte de uma linda mulher é o mais poético e melancólico dos temas.
Acrescentou
Burke
também a distinção entre o belo, que se prende à delic
adeza
,
proporcional
idade
, harmonia e prazer, em contraposição ao sublime, que tem a ver, como
dissemos,
com a vastidão, a obscuridade, a irregularidade e a capacidade de suscitar
26
W
hatever
is fitted in any sort to excite the ideas of pain and danger, that is to say, whatever is in any sort
terrible, or is conversant about terrible objects, or operates in a manner analogous to terror, is a source of the
sublime;
that
is, it is productive of the strongest emotion which the mind is capable of feeling. I say the strongest
emotion, because I am satisfied the ideas of pain are much more powerful than those which enter on the part of
pleasure.
49
terror
/dor.
É o que deve ter tentado pôr em prática Lord Byron neste trecho de
Childe
Harold s Pilgrimage, Apóstrofo ao Oceano , na tradução de Péricles Eugênio da Silva
Ramos
(1970)
:
Tu, espelho glorioso, o
nde no temporal
reflete sua imagem Deus onipotente;
calmo ou convulso, quando há bris
a ou vendaval,
quer a gelar o pó
lo, quer em c
l
ima ardente
a ondear sombrio,
tu és
sublime
e sem final,
cópia da eternidade, trono do Invisível;
os monstros dos abismos
nascem do teu lodo;
insondável, sozinho avanças, és
terrível
. (
Apud
RAMOS
,
1989, p.
167
)
27
(Os
destaques
são
meus.)
Na visão romântica e, neste recorte, gótica de Byron,
sublime
e
terrível
se prestam
a um perfeito casamento emocional, em que o terrível (o temporal, a convulsão, o vendaval, o
sombrio, os monstros, o abismo, o lodo, o insondável) se entrelaça de modo
paradoxal
, mas
harm
ônico
, com o sublime (espelho glorioso, Deus onipotente, calma, brisa, o trono do
Invisível)
, buscando levar
-
nos a um
vel de arrebatamento estético
-
emocional,
em que diante
da grandeza da força do oceano não nos importa sermos subjugados, dissipados como gotas
individuais, pois tornamo-nos um com a fonte, ao mesmo tempo avassaladora e
profundamente segura.
Em última análise, Burke parece res
gatar
a visão aristotélica de tragédia, na qual
se
deve provocar piedade e terror por meio da imitação. Aliás, David Hume, até mesmo antes de
Burke, em seus Ensaios Morais e Políticos (1741), teria observado que: Parece inexplicável
o prazer que o espectador de uma tragédia bem escrita aufere da dor, do terror, da angústia e
27
Thou glorious mirror, where t
he Almighty's form
Glasses itself in tempest; in all time,
Calm or convulsed
in breeze, or gale, or storm,
Icing the pole, or in the torrid clime
Dark
-
heaving
boundless, endless, and sublime;
The image of eternity, the throne
Of t
he Invisible; even from out of thy slime
The monsters of the deep are made; each zone
Obeys thee: thou goest forth, dread, fathomless, alone.
(
http://www.geocities.com/Athens/Delphi
/7086/chp4.htm
, acesso em 4/4/2006)
50
de outras paixões que, em si mesmas são desagradáveis e penosas (
Apud
ABBAGNANO,
2000,
p
.923).
Outros filósofos e literatos, tais como Immanuel Kant,
que comparo
u a beleza ao finito
e o sublime ao infinito, Friedrich Schiller, Georg Friedrich Hegel, Arthur Schopenhauer,
tratar
iam
desse mesmo conceito agregando matizes variados, mas tomaram por base os
escri
tos de predecessores.
Dessa maneira
, o termo ganhou
tamanh
a
popularidade
a ponto de se
cunharem
subconceitos (por vezes, mais complicando do que aclarando): o sublime kantiano,
o sublime gótico, o sublime sobrenatural, o sublime religioso, o sublime feminino, o sublime
erótico, o sublime pós
-
moderno, etc.
Todavi
a,
vale a pena salientar que George Santayana em The Sense of Beauty
(1896)
possibilita
, senão uma releitura, ao menos uma explicação mais ampla do conceito do
sublime
, a qual pode auxiliar sobremaneira para
se
entender o caráter gótico e melancólico
impre
sso nessa questão da sublimidade poética de Poe e de Alphonsus.
Santayana
, na mesma
linha de pensamento de Burke, ensina-
nos que
, quando o terror figurativizado em arte é um
terror subjugado,
traz
-
no
s,
por isso mesmo, a sensação de sublimidade. Por outro
lado
,
adverte para o fato de que não se deve confundir a causa do sublime com a sensação do
sublime, ou seja, as figuras utilizadas para sugerir o terror não são em si a emoção de
arrebatamento e liberação que se obtém.
Em outras pa
lavras, Santayana demons
tra que
O gozo glorioso de se impor diante de um mundo incontrolável é na verdade
tão
profundo e completo, que fornece exatamente aquele elemento transcendente de valor
que estávamos buscando quando tentamos compreender como a expressão da dor
poderia por vezes deleitar. Ela pode criar deleite, não por si mesma, mas porque é
equilibrada e anulada por prazeres positivos, especialmente por este tipo
definitivo
e
vitorioso do desprendimento
.
(1896, p. 147)
28
Relembra
-nos também esse poeta e professor de Harvard que, por estarmos enredados
no
aspecto
extrínse
co
dos objetos, pouquíssimo nos centramos em nós mesmos; contudo, a
28
The glorious joy of self-assertion is indeed so deep and entire, that it furnishes just that transcendent element
of worth for which we were looking when we tried to understand how the expression of pain could sometim
es
please. I can please, not in itself, but because it is balanced and annulled by positive pleasures, especially by this
final and victorious one of detachment.
51
realização de nossa felicidade residiria na compreensão e fruição da natureza intrínseca desse
universo ao nosso redor, o que acaba se tornando tarefa para a arte e para o amor, pois eles
nos levam a um estado de unidade com a vida.
Assim
, com Santayana
,
temos de
admitir que a
sensação
resultante do sublime, é essencialmente mística, universal, isto é, a unidade na
diversidade, a diversidade na unidade. Entretanto, é uma experiência mística cruel, pois é a
própria fascinação em relação a forças cósmicas que nos subjugam e consomem, mas que nos
induzem a sentir um prazer gótico feroz, mesmo que isso implique pensarmos em nossa
própria aniqu
ilação com
o
indivíduos.
Não é nem um pouco surpreendente, portanto, que Poe e Alphonsus, em seus
respectivos estados de hiperconsciência, de si mesmos e do mundo a sua volta, tenham optado
pela arte como instrumento agregador de uma sociedade
disforicame
nte
multifragmentada
,
como resultado de diversos determinantes do
próprio
processo de colonização e das
transformações socioeconômicas, políticas e científicas alucinadamente aceleradas do século
XIX. Nada mais conveniente que aliar o tema do amor à atividade artística na função de
ingredientes redentores das mazelas existenciais de norte-americanos e de brasileiros.
Portanto
, pretendemos sustentar que, se a identidade nacional, pelos motivos mencionados,
era incerta, ao menos, buscar-
se
-ia a identidade anímica do ser humano, qualquer que fosse a
geografia
. Essa identidade anímica teria,
no mínimo
, o relevante papel de fornecer uma
r
aison
d être
à existência
dos poetas
em questão.
A percepção da beleza
túrbida
, a
elevada
nostalgia
hipotímica,
a
apaixoante
dor
da
tristeza
, o fastio telúrico-
esplênico
, em resumo, o sentimento melancólico vital seria para
esses dois poetas o fio condutor aterrorizante, o degrau (
sub
-
limen
, etimologicamente, a
parte abaixo da verga superior de uma porta ou janela
)
do qual
tom
ariam impulso para se
lançar
à sublimação e
, por conseguinte,
à
sublimidade
.
52
Tome
mos alguns exemplos em versificação melancólica de Poe e de Alphonsus, a fim
de poder visualizar melhor o que cada um dentro de
seus
ideais estéticos desejava atingir.
Voltem
o-
nos
primeiro
para
o soneto Náufrago de Alphonsus de Guimaraens:
E temo, e temo tudo, e nem sei o que temo.
Perde
-
se o meu olhar pelas trevas sem fim.
Medonha é a escuridão do céu, de extremo a extremo...
De que noite sem luar, mísero e triste, vim
?
Amedronta
-
me a terra, e se a contemplo, tremo.
Que mistério fatal corveja sobre mim?
E ao sentir
-
me no horror do caos, como um blasfemo,
Não sei por que padeço, e choro, e anseio assim.
A saudade tirita aos meus pés: vai deixando
Atrás de si a má
goa e o sonho...E eu, miserando,
Caminho par
a
a morte alucinado e só.
O naufrágio, meu Deus! Sou um navio sem mastros.
Como custa a minha alma a transformar
-
se em astros,
Como este corpo custa a desfazer
-
se em pó! (2001, p.137)
As
figuras de
treva
s sem fim , escuridão do céu de extremo a extremo , noite sem
luar ,
mistério fatal
(personificado em um corvo agourento),
choro ,
caminhar para a
morte ,
o naufrágio , o náufrago , navio sem mastros ,
corpo
e
somam-
se
nestes
versos alexandrinos clássicos para fixar uma situação de desalento em relação à situação
presente do eu-poemático. Esse desconforto existencial agudo tem suas raízes numa
percepç
ão aterrorizante de isolamento, separação de um porto seguro de que o náufrago se
desprendeu
, porém ao qual espera retornar
numa auto
-
aniquilação ditosa, que retira a alma das
trevas
infinitas e a projeta ao luminoso espaço estelar. E é essa esperança o elo entre o terror
do presente e a sublimidade do futuro. É, em última instância, o estendido período de tédio
telúrico que realça, valoriza o
sublime
momento
de ascensão, elevação, ainda que (e, talvez,
especialmente porque) a desintegração da individualidade seja necessária. Isso se estabelece
como a nostalgia do Paraíso perdido que se torna suportável uma vez que as figuras
frias
do presente de decepções sedimentam a certeza da recompensa do acalentado e acalentante
resgate
futuro. Pode-se interpretar que este soneto remete ao próprio
miserere
do viajor
solitário que almeja o oásis
verdejante
para alívio de cansaço e sofrimentos.
53
É interessante notar o aspecto dialógico que essa abordagem tem com um poema de
Cecília Meireles, que também utiliza a figura da embarcação como metáfora para o corpo, que
encontrará refúgio no momento do resgate após o naufrágio. À guisa de contraste
intertextual apenas e como lembrança de que a força da temática melancólica chega com
vigor ao Modernismo
, vejamos
a Canção dos três barcos (
Apud
MAIA,
1983, p.202)
:
Meu avô me deu três barcos:
um de rosas e crav
os,
um de céus estrelados,
um de náufragos, náufragos...
ai, de náufragos!
Embarcara no primeiro,
dera em altos rochedos,
dera em mares de gelo,
e
p
artira
-
se ao meio...
ai, no meio!
No segundo me embarcara,
e nem sombra de praia,
e nem corpo e nem al
ma,
e nem vida e nem nada...
ai, nem nada!
Embarcara no terceiro,
e que vela e que remo!
e que estre
la e que vento!
e que porto sereno!
ai, sereno!
Meu avô me deu três barcos:
um de sonhos quebrados,
um de sonhos amargos,
e o de náufragos, náufragos!
ai, de náufragos!
Tal diálogo in
tertextual realmente
vem ao encontro do que comenta Harold Bloom em
seu clássico texto,
A Angústia da Influ
ência: Uma Teoria da Poesia
, ao tratar da apropriação
poética:
Shelley especulava que os poetas de todas as eras contribuíam para o Grande Poema em
perpétuo andamento. Borges observa que os poetas criam seus precursores. Se os poetas
mortos, como insistia Eliot, constituíam o avanço em conhecimento de seus antecessores, esse
conhecimento ainda é criação de seus sucessores, feita pelos vivos para as necessidades dos
vivos.
(1973, p. 69)
54
Um comentário de precaução, porém: embora tenhamos apresentado o poema de
Cecília Meireles, até mesmo com o intuito de enfatizar a crença de que a melancolia tem
mantido fôlego forte, em diferentes ritmos respiratórios em
diversos
momentos literários.
Como não estamos trabalhando com teorias de influência ou recepção neste estudo, não
tencionamos tentar provar uma possível (ou provável) contaminação de Poe em Alphonsus.
Focalizemos
a
gora o poema O Lago de Edgar Allan Poe.
No verdor de meus anos, meu destino foi só
habitar, de todo o vasto mundo,
uma região que amei mais do que todas,
tanto encantava a solidão de um lago
selvagem, que cercavam negras rochas
e altos pinheiros, domi
nando tudo.
Mas quando a Noite, em treva, amortalhava
esse recanto e o mundo, e o vento místico
chegava, murmurando melopéias,
então, ah! sempre em mim se despertava
o terror desse lago solitário.
Não era, esse, um terror, porém, de espanto,
mas um delic
ioso calafrio,
sentimento que as jóias mais preciosas
não inspiram, nem fazem definir;
nem mesmo o amor, nem mesmo o teu amor.
Reinava a Morte na água envenenada
e seu abismo era um sepulcro digno
de quem pudesse ali achar consolo
para seus pensamentos ta
citurnos,
de quem a alma pudesse, desolada,
no torvo lago ter um Paraíso. (2001, pp. 932-
933)
29
Datado de 1827, esse poema revela
que o jovem Edgar Poe, aos 19 anos de idade, já se
preocupava em demonstrar em seus versos que terror nada teria a ver com
co
isas medonhas
29
In spring of youth it was my lot
Yet that terror was not
fright
,
To haunt of the wi
de world a spot
But a tremulous delight
The
which I could not love the less
A feeling not the jewelled mine
So lovely was the loneliness
Could
teach or bribe me to
define
Of a w
ild lake, with black rock bound
,
Nor Love
although the Love were thine.
And the tall pines that towered around.
But when the Night had thrown her p
all
Death was in that poisonous wave
,
Upon that spot, as upon all
,
And in its gulf a fitting grave
And the mystic wind went by
For him who thence could sol
ace bring
M
urmuring in melody
To his lone imagining
Then
ah then I would awake
Whose solitary soul could make
To the terror of the lone lake.
An Eden of that dim lake.
55
(
fright
/espanto).
F
iguras
, normalmente disfóricas, tais como o lago selvagem e solitário
,
negras rochas , a Noite em treva , o murmúrio do vento místico , a Morte na água
envenenada ,
o abismo sepulcral , pensamentos taciturnos , o lago torvo , não produzem
medo ou espanto, mas terror, o que,
muitíssimo ao contrário,
é
a con
dição em conjunto com a
solidão de alma, para se atingir o sublime ( tremulous delight /calafrio delicioso), ao qual
nem à imensa riqueza material (
jewelled
mine /jóias mais preciosas)
30
nem o Amor (ainda
que da pessoa de quem se deseje o amor) se comparam em termos de arrebatamento excelso
( Eden /
Paraíso
).
D
estarte,
nítido é o poder de religação com a fonte edênica que o sublime exerce. De
novo ecoando as afirmações de Erich Fromm e de Arthur Schopenhauer, mencionadas
anteriormente,
o grau de autoconsciência do ser humano é diretamente proporcional: a) ao
grau de angústia e ansiedade sobre as incertezas que se manifestam como conseqüência do
existir humano; b) à intensidade do desejo e à necessidade de se recuperar o (suposto ou
sonhado) estado paradisíaco de certezas e de tranqüilidade psíquica.
Interessante também é constatar que Poe menciona no primeiro verso no verdor dos
meus anos/in spring of youth . Isso nos faz pensar que suas reflexões estéticas sobre o
sublime são bastante precoces, pois 1827 é o ano em que publica
Tamerlane and Other Poems
em Boston, historiograficamente sua primeira obra. Não é muito diferente o caso de
Alphonsus de Guimaraens, que teria entre 21 e 25 anos quando compôs Náufrago , que
integra
Kiriale
, escrito entre 1891-1895, mas publicado somente em 1902. Aliás, também
são
dign
as
de menção a
s
ep
ígrafes inicia
i
s de
Kiriale
:
Misesere mei, Domine, quoniam infirmus sum; sana
me, Domine, quoniam, conturbata sunt
ossa mea.
DAVI,S.VI,
-
penitencial
31
30
Milton Amado preferiu traduzir jewelled mine por as jóias mais preciosas . Vemos, contudo que o sentido
literal
mina crivada de pedras preciosas corrobora mais para a idéia hiperbólica que se estabelece em termos
comparativos com o poder sublime que a voz poemática diz se instaurar em sua alma solitária (que o tradutor
decidiu caracterizar por desolada ).
31
Tem misericórdia de mim, Senhor, porque estou enfermo; cura
-
me, Senhor, porque meus ossos perturbados.
56
Place à l âme, Seigneur, marchant dans votre voie
Et ne tendan
t qu au c
iel
, seul espoir et seul lieu. P. VERLAINE (2001, p. 124)
32
Pode-se interpretar que essas marcas intertextuais revelam e reiteram anelo de
reconexão
espiritual, num esforço de superar a dor existencial da individualidade. O mesmo
recurso intertextual epigráfico se vê em Shadows
A Parable , um poema em prosa de Poe,
com um recorte do versículo 4 do Salmo 23: Ainda que eu caminhe pelo vale da Sombra .
No entanto,
embora
a seqüê
ncia
não temerei mal algum, pois Tu estás comigo
tenha
sid
o omitida, ela é mais reveladora, pois outra vez
a
idéia
da segurança que se pode sentir
por se estar
com
a fonte criadora. Esse espírito de isolamento e alienação parece ter sua
origem no final da Idade Média, por variados motivos, mas com grande relevância para a
avassaladora ação da ciência sobre as fragilizadas crenças religiosas, que antes colocavam
ordem na mente do homem medieval. Porém, como explica Arnold Hauser em
Maneirismo
,
Quando a ordem social feudal e as doutrinas da Igreja perderam sua autoridade inconteste, o
concêntrico padrão medieval do universo foi mantido pelo sistema de Ptolomeu, e quando este
ruiu pôs abaixo todo o edifício que parecia dar à humanidade confiança e segurança no mundo.
Quando Copérnico passou a terra do centro para uma posição periférica no universo, privou os
homens da sensação de que ocupavam uma posição central no mundo da criação; o senhor da
criação foi relegado à condição de infeliz penetra num mero planeta. (1993, p.44)
Luís Vaz de Camões, em Ao desconcerto do mundo , cristaliza em versos essa
repetida
perda do Éden
que o Renascimento trouxe com todos os seus avanços de
conhecimento. Saliente-se que não é apenas o conflito entre religião e ciência que faz o
homem sofrer; é essencialmente a perda da noção de ordem cósmica norteadora na vida
humana,
ou seja, a ciência desmascara dogmas religiosos manipulativos e autoritários, porém
não reconstrói um sistema confiável que apresente o mundo como um local seguramente
lógico em suas relações de causa-efeito, evidenciando a desproporção entre o merecimento
humano e o destino:
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
32
Coloca a alma, Senhor, em marcha no teu caminho / E com destino apenas ao cé
u, a única esperança, o único
lugar.
57
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentament
os.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
Anda o Mundo concertado.
(
Apud
OLIVEIRA, 1999, p.83)
Assim, o esforço renascentista pelo saber, em seu ápice, logrou ao longo do tempo
gerar a intranqüilidade do espírito, com um quê melancólico e sombrio do
Entzauberung
der Welt
,
uma vez que retirou o homem do centro do universo e o deslocou para a periferia da
Criação
. No âmbito da arte, a beleza clássica seria percebida como vazia, pois não revela a
inquietude interior do artista, portanto esse tipo de beleza seria desprovida de alma. Essa é a
tensão do Barroco/Maneirismo que desaguaria ainda mais forte no Romantismo e no
Simbolismo, que essa beleza clássica aprisiona e o sublim
e melancólico
liberta, porque
revela a laceração do espírito que anseia por sua recomposição, porque implica, então,
movimento e não a estaticidade da Beleza perfeita clássica ou neoclássica.
Por isso, poderíamos nos referir ao sublime como um salto estético estupefaciente; em
outras palavras, é a elevação do espírito por meio de figuras que excedem a compreensão da
mente,
imobilizam
-na, lançando a consciência a um estado de inefável assombro ou estupor
(talvez o rapture em inglês). Pode-se dizer que no sublime literário temos a verticalidade e a
excitante irregularidade da arquitetura gótica, enquanto que na beleza clássica
se
percebe a
horizontalidade e a monótona proporcionalidade das ciências matematizantes do
Renascimento.
Entretanto, o sublime tem o poder de organizar os conflitos na mente racional,
pois, ainda que misteriosamente, ele revela, ilumina, encanta e deleita. Intuímos, mais que
compreendemos, a orgânica relação entre parte e todo, todo e parte.
Friedrich Schiller, em seu
ensaio
Sobre o Sublime e Immanuel Kant, em
Observations
on the Feeling of the Beautiful and Sublime , resumem bem o sublime que
entendemos
como instrumental estético em Edgar Allan Poe e
em
Alphonsus de Guimaraens.
Schiller defende que
58
O sentimento do Sublime é um sentimento misto. É
um
a combinação de tristeza profunda, que
em seu grau mais alto se expressa como um tremor, e
de
uma sensação de júbilo, que pode
alcançar o nível de êxtase, e, embora o seja propriamente prazer, é ainda preferível por parte
de almas refinadas a prazeres de qualquer tipo. A união de dois sentimentos contraditórios em
um único comprova nossa independência moral de modo irrefutável. Pois, uma vez que é
absolutamente impossível que o mesmo objeto estabeleça conosco relações opostas, conclui-s
e
daí sermos nós mesmos que estabelecemos duas relações diversas com objeto, de modo que
duas naturezas opostas, interessadas na concepção da mesma coisa de maneiras completamente
opostas, devem ser unidas em nós.
33
Kant, por sua vez, assevera:
Não se denomina um homem melancólico porque, retirando-se as alegrias da vida, consuma-
se
em uma sombria tristeza, mas sim porque seus sentimentos, intensificados além de c
erto ponto,
ou dirigidos, devido a determinadas causas, a uma direção errada, acabariam em certa tristeza
mais facilmente que os de outros. Esse temperamento tem, principalmente, sensibilidade para o
sublime. Até mesmo a beleza, à qual ele é igualmente sensível, não o encanta apenas, mas
inspirando
-lhe assombro, comove-o. O prazer das diversões é nele mais sério; mas, por isso
mesmo, não é menor. Todas as comoções do sublime têm algo mais fascinante em si que o
intranqüilo encanto do belo.
34
Assim, nos próximos dois capítulos, nosso foco será a aplicação do sublime com tons
gótico
-
melancólicos
na
p
rodução
artís
tica de Edgar Allan Poe e de Alphonsus de Guimaraens,
respectivamente.
Cremos
ser
essa a fonte estético-filosófica desses dois poetas, a qual se
constata na temática e, obviamente, no léxico característico de seus poemas.
Tal
posicionamento
está enraizado no Romantismo, que captou tendências anteriores, moldou-
as
e consolidou-as para o Simbolismo. Arnold Hauser, em outra obra, História Social da Arte e
da Literatura
, assegura que
Na verdade, não existe produto da arte moderna, nenhum impulso emocional, nenhuma
impressão ou estado de espírito do homem moderno, que não deva sua sutileza e variedade à
sensibilidade que se desenvolveu no romantismo. [...] Todo o século XIX dependeu
artisticamente do romantismo, mas este era ainda um produto do século XVIII e nunca deixou
33
The feeling of the sublime is a mixed feeling. It is a combination of
woefulness,
which expresses itself in its
highest degree as a shudder, and of
joyfulness,
which can rise up to enrapture, and, although it is not
properly
pleasure, is yet widely preferred to every pleasure by fine souls. This union of two contradictory sentiments in a
single feeling proves our moral independence in an irrefutable manner. For as it is absolutely impossible that the
same object stand in two opposite relations to us, so does it follow therefrom, that we ourselves stand in two
different relations to the object, so that consequently two opposite natures must be united in us, which are
interested in the conception of the same in completel
y opposite ways.
(
http://www.schillerinstitute.org/transl/trans_on_sublime.html
, acesso em 9/4/2006)
34
No se llama melancólico a un hombre porque, substrayéndose a los goces de la vida, se consuma en una
sombría tristeza, sino porque sus sentimientos, intensificados más allá de cierto punto o dirigidos, merced a
determinadas causas, en una falsa dirección, acabarían en esta tristeza más fácilmente que los de otros. Este
tempera
mento tiene, principalmente, sensibilidad para lo sublime. Aun la belleza, a la cual es igualmente
sensible, no le encanta tan sólo, sino que, llenándole de asombro, le conmueve. El placer de las diversiones es en
él más serio; pero, por lo mismo, no menor. Todas las conmociones de la sublime tienen algo más fascinador en
sí que el inquieto encanto de lo bello.
(
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/S
irveObras/80248352278681151532279/p0000002.htm#3
, acesso em
9/4/2006)
59
de ter consciência de seu caráter de transição e historicamente problemático. A Europa
Ocidental tinha passado por muitas outras crises
semelhantes e mais sérias , mas nunca
conhecera um sentimento tão agudo de ter atingido um ponto de mutação em seu
desenvolvimento. (
2003, pp. 664
-
665)
Por isso, afirmamos anteriormente que essa postura se constitui em fonte filosófica
também, porque como argumenta Hauser:
Desde o gótico, o desenvolvimento da sensibilidade não recebera um impulso tão forte, e o
direito do artista de obedecer ao chamado de seus sentimentos e disposição pessoal
provavelmente jamais fora enfatizado de maneira mais absoluta. O racionalismo, que acusava
um avanço constante desde a Renascença e que o Iluminismo colocara numa posição de
importância em todo o mundo civilizado, sofreu o mais doloroso revés de sua história. Nunca,
desde a dissolução do supernaturalismo e do tradicionalismo da Idade Média, se falara com
tanto desdém da razão [...] a visão de mundo do Ocidente tinha sido essencialmente estática,
parmenidiana
e a-histórica, até o advento do romantismo. Os fatores importantes na cultura
humana
os princípios da ordem natural e sobrenatural do mundo, as leis de moralidade e
lógica, os ideais de verdade e justiç
a, o destino do homem e a finalidade das instituições sociais
tinham sido considerados fundamentalmente inequívocos e imutáveis em sua significação,
enteléquias sempiternas ou idéias natas. [...] A idéia de que nós e nossa cultura estamos
envolvidos em u
m eterno fluxo e uma luta interminável,
a noção de que nossa vida intelectual é
um processo de caráter meramente transitório, é uma descoberta do romantismo e representa
sua
mais importante contribuição para a filosofia
de todos os tempos. (2003, p.664, 666-
667)
(Os destaque
s
são meus)
60
CAPÍTULO
V
ASPECTOS
GÓTICOS E MELANCÓLICOS
NA POESIA DE EDGAR ALLAN POE
A Morte e a Beleza são coisas profundas
que contém tanto azul e tanto negro,
que parecem irmãs terríveis e fecundas
com o mesmo enigma e igual misté
rio.
35
Victor Hugo
Nascido em Boston em 19 de janeiro de 1809, e falecido em 7 de outubro de 1849,
Ed
gar Allan Poe, nestes 157 anos após sua morte, foi alvo de uma pletora de opiniões
controversas, seja por parte de biógrafos seja por críticos e até mesmo outros escrito
r
es
,
norte
-
americanos ou não. Suas teorias e obra já se prestaram a inúmeras interpretações e tentativas
de explicações embasadas em diferentes linhas de investigação: freudiana, junguiana,
simbolistas, estruturalistas, fenomenológicas
,
entre outras.
Portanto
, parece que suas
narrativas, ensaios críticos e os aproximadamente 50 poemas têm proporcionado suficiente
corpus
de pesquisa
para
uma
quase infindável
discussão literária.
Poe r
ecebeu
comentários desabonadores de figuras
impor
tantes, tais como Ralph
Waldo Emerson, Henry James, Aldous Huxley e T.S. Eliot. Especificamente, Eliot, em seu
prefácio à obra de Joseph Chiari (1970),
Symbolisme
from Poe to Mallarmé (com um
subtítulo
The growth of a myth), afirma: Suspeitamos, na verdade, de que, se os poetas
franceses
tivessem sabido
melhor a língua inglesa, eles não
teriam
avaliado Poe
tão
bem
como
escritor
; se tivessem tido melhor conhecimento da literatura inglesa poderiam ter baseado sua
estética não na de Poe
,
mas na de Coleridge.
36
Paralelamente
a
esse tipo de comentário,
Poe
35
Primeira estrofe do poema Ave Dea, Moriturus Te Salutat (1888)
La mort et la beauté sont deux choses profondes
Qui contiennent tant d'ombre et d'azur qu'on dirait
Deux s
urs également terribles et fécondes
Ayant la même énigme et le même secret
.
(
http://www.chronologievictor
-
hugo.com/pages/corp1872(3,1).htm
, acesso em 15/4/2006)
36
We suspect, indeed, that if the French poets had known the English language better they could not have rated
Poe so high as a stylist; and if they had known English literature better they might have based their aesthetics not
on Poe but on that of Coleridge.
61
consegui
u também ter elogios de grandes escritores como Jorge Luís Borges, de Julio
Cortá
zar ou de W. B. Yeats.
É truísmo
falar que
a
influência de E. A. Poe
,
pelo menos no
O
cidente
,
foi
ampla
,
quer
direta quer indiretamente. De forma declarada, sabemos de Charles Baudelaire, Paul Valéry,
Stéphane Malarmé, Marcel Proust, Arthur Rimbaud, Algernon Swinburne, Oscar Wilde,
George Bernard Shaw, W. H. Auden, Robert Louis Stevenson, Vladimir Nabokov, Fyodor
Dostoevsky,
Ambrose Beirce, H. P. Lovecraft, William Faulkner, William Carlos Williams
,
Thomas Mann,
Friedrich Nietzsche
, Franz Kafka e Machado de Assis.
Em nosso trabalho de revisão bibliográfica, especificamente sobre
a
poesia do século
XIX, ao analisarmos as edições de
American
Literary Scholarship de 1963 a 2003, pudemos
encontrar em cada ano mais de uma referência a trabalhos sobre Poe, seus poemas e suas
discussões estéticas.
Levantamentos
sobre a recepção das idéias e das obras de Poe surgem
em várias línguas amiúde. Somente a título de exemplificação: em 1999, Lois Davis Vines
organizou
o livro
Poe Abroad: Influence, Reputation, Affinities
; e, nesse mesmo ano,
a r
evista
Fragmentos
da Universidade Federal de Santa Catarina, com um número dedicado
exclusivamente a Poe, traz o artigo de Carlos Daghlian, A recepção de Poe na literatura
brasileira , bem como bibliografia e selected bibliography
abrangentes
, que demonstram
como os escritos de Poe ainda permanecem vigorosos, repercutindo e despertando interesse.
Porém
, sabemos que sua carreira literária não gozou do mesmo sucesso hodierno.
No
ano de 1827, ele logrou publicar 50 exemplares de Tamerlane and Other Poems, o qual foi
basicamente ignorado. Em dezembro de 1829, publica em Baltimore, Al Aaraaf, Tamerlane
and Minor Poems, de 71 páginas, que tem basicamente o mesmo destino da primeira
compilaç
ão de versos, apesar de muitos críticos o considerarem como sua primeira grande
contribuição poética.
Outro
livro
de poemas,
Poems by Edgar A. Poe
, aparece em 1831;
neste
volume de 124 páginas, com uma tiragem de 500 volumes, está o poema To Helen ( A
62
Helena
)
, inspirado
em Jane Stanard,
m
ãe de Rob Stanard, colega de escola
em Richmond
um
pouco mais velho;
sabe
-se dos biógrafos que a bela e elegante senhora Stanard pode ter
despertado
o primeiro amor verdadeiro do jovem Edgar Poe de 14 ou 15 anos, bem como a
nostalgia da ternura do colo materno que
ele
perdera ainda muito jovem.
A partir de 1831, começa a ser notado como escritor e em 1832 publica cinco contos
no P
hiladelp
hia
Saturday
Courier. Em julho do ano seguinte, o jornal Saturday Visiter
promove um concurso literário e Poe ganha o segundo prêmio na categoria de poesia com o
Coliseum e o primeiro em ficção com Ms Found in a Bottle . Decide entrar para o
jornalismo como uma opção de sobrevivência financeira e, em março de 1835, publica
Berenice
no Southern Literary Messenger, que inaugura nesse periódico uma seqüência de
contos,
resenhas de livros e ensaios críticos. Em alguns meses, devido a suas resenhas que
exibiam princípios estéticos coerentes entremeados de padrões críticos exigentes, a circulação
do periódico aumenta, o que tornaria Poe o principal crítico e assistente editorial; até o final
do mesmo ano, torna-se editor-chefe. Entretanto, em janeiro de 1837, por causa de sua
insatisfação com o salário e com as limitações editoriais que lhe eram impostas, pede
demissão. Começa uma carreira de
freelancer
e, mesmo com muita dificuldade, consegue
nos anos seguintes
publicar
proficuamente. Em 1838, Nova York conhece The Narrative of
Arthur Gordon Pym. Os próximos anos vêem a publicação de vários contos que se tornariam
clássicos na totalidade da obra de Poe, como The Tell-Tale Heart e The Gold-Bug ,
inclusive os Contos do Grotesco e do Arabesco.
Sobremaneira
significativo será 1845, pois
The Raven sai no
Evening Mirror
de Nova York
e um ano depois surge The Philosophy of
Composition .
Eureka
, seu poema em prosa , um ensaio místico-científico, sai em junho de
1848, quase um ano antes de sua morte em 7 de outubro de 1849
.
Ao longo dessas décadas de produção artística e crítica, Poe parecia estar envolto num
véu de alheamento em relação ao que se passava na sociedade norte-americana, ao menos em
63
termos de acontecimentos mundanos. Dedicou-
se
de corpo e alma ao que Charles
Baudelaire,
como seu primeiro tradutor, aproveitaria como os fundamentos do Movimento Simbolista
francês
o ideário estético
de Edgar Allan Poe
.
Em
julho de 1836, Poe escreve A Letter to B para o Southern Literary Messenger,
texto que se tornaria sua primeira declaração de relevância sobre suas idéias poéticas. Quase
no final, há um trecho em que ele explicita a diferença entre o discurso poético e o discurso de
outros tipos de textos:
Um poema,
na
minha opinião,
opõe
-se ao trabalho da ci
ência,
por
ter
como
sua finalidade
,
prazer, o verdade; ao romance,
por
ter como sua finalidade um prazer indefinido ao invés de
definido, existindo o poema apenas com a condição de que essa finalidade seja atingida; o
romance, apresentando imagens perceptíveis com sensações definidas, e a poesia com
sensações indefinidas, fim para o qual a música é essencial, uma vez que a compreensão do
doce som é nossa mais indefinida concepção. A música, quando combinada com uma id
éia
prazerosa, é poesia; a música, sem a idéia é sim
plesmente música; a idéia sem a música é prosa
com base na sua própria
natureza definida.
37
Conforme
já mencionamos, embora algumas opiniões críticas r
otul
em a produção
poética
de Poe
como
trivial, banal até, com esquemas de versificação
e de temática
d
emasiado
previsíveis,
é
inegável
fato
de
que
poemas como Annabel Lee,
Para Helena
,
Hino
,
Os
Sinos
, O Verme Vencedor , e O Corvo continuam a chamar atenção, talvez justamente
pelos mesmos motivos transformados em argumentos usados para colocá-
lo
numa posição
marginal na história literária norte
-
americana e de um possível cânone ocidental.
Assim como fez em sua prosa ficcional, Poe se valeu em seus poemas no mais das
vezes de temas góticos e melancólicos: a morte da amada e a conseqüente relação
necrofílica
(quer psíquica quer física), ambientações bizarras,
sufocante
s e angustiadoras, animais e
objetos de aspecto sinistro numa nefasta função simbólica de prenúncio de um destino
fatídico. Os poemas são
amiúde
narrativos, repletos de conjuntos descritivos, semelhantes a
37
A
poem
, in my opinion,
is opposed to a work of science by having for its immediate object, pleasure, not truth;
to romance by having, for its object an indefinite instead of a definite pleasure, being a poem only so far as this
object is attained; romance presenting perceptible images with definite, poetry with indefinite sensations, to
which end music is essential, since the comprehension of sweet sound is our most indefinite conception. Music,
when combined with a pleasurable idea, is poetry; music without the idea is simply music; the idea without the
music is prose from its very definitiveness. (
http://www.eapoe.org/WORKS/essays/bletterb.htm
, acesso em
29/4/2006)
64
diapositivos de emoções poeticamente congeladas, que, entremeados
com
toques de
musicalidade,
tende
m
a
cria
r
marca indelével em nossa memória.
Consideremos
Annabel Lee ,
publicado
mais ou menos um mês após o falecimento
do poeta
em
novembro de 1849, pelo qual até mesmo Fernando Pessoa demonstrou interesse
,
oferecendo
-
nos
uma tradução. Poema de amor, mas que, como os outros de mesma temática,
retrata
amor e mulher inatingíveis, eivado de profunda melancolia e dor.
Composto
em inglês
de seis estrofes ligeiramente heterométricas, das quais três são sextetos, uma é um hepteto e
duas
são oitavas.
Apesar de algumas alterações em relação ao texto de Poe,
usaremos
a versão
de
Milton Amado, que foi capaz de manter, entre outros traços formais,
a
mesma
rima
central
do esquema sonoro do original em inglês, salientando o som vocálico / i / do sobrenome da
amada qu
e sugere
a
aflição
da voz poemática
.
Há muitos, muitos anos, existia
num reino à beira
-
mar, em que vivi,
uma donzela, de alta fi
dalguia,
chamada ANNABEL LEE.
Amava
-
me, e o seu sonho consistia
em ter
-
me sempre para si.
Eu era criança, ela era uma criança
no reino à beira
-
mar, em que vivi.
Mas tanto o nosso amor ultrapassava
o próprio amor, que até senti
os
serafins celestes invejarem
a mim e a ANNABEL LEE.
Por isso mesmo, há muitos, muitos anos,
no reino à beira
-
mar, em que vivi,
gélido, de uma nuvem, veio um vento
matar ANNABEL LEE.
E seus nobres parentes se apressaram
em tirá
-
la de
mim: encerrarem
-
na vi
num sepulcro bem junto ao mar, que chora
eternamente ali.
Foi inveja dos anjos: mais felizes
éramos nós aqui.
Sim, foi por isso (como todos sabem
no reino à beira
-
mar, em que a perdi)
que veio um vento, à noite, de
uma nuvem
matar ANNABEL LEE.
Mas nosso amor, imenso, era mais forte
do que o tempo e que a morte,
do que a própria esperança em que o envolvi.
E nem anjos celestes nas alturas,
65
nem demônios dos mares abissais
jamais minha alma afas
tarão, jamais,
da bela ANNABEL LEE.
Pois, quando surge a lua, em meus sonhos flutua,
no luar, ANNABEL LEE.
E, quando se ergue a estrela, o seu fulgor revela
o olhar de ANNABEL LEE.
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira,
junto à
quela que adoro, a esposa, a companheira,
na tumba, à b
eira
-
mar, no reino em que vivi,
junto ao mar que por ti
soluça eternamente, ANNABEL LEE.
38
(2001, pp. 950
-
951)
38
It was many and many a year
ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of ANNABEL LEE;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.
She was a child and I was a child,
In this kingd
om by the sea,
But we loved with a love that was more than love
I and my Annabel Lee
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.
And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of
a cloud by night
Chilling my Annabel Lee;
So that her high
-
born kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.
The angels, not half so happy in Heaven,
Went envying her and me:
Yes!
that was the reason (as all men know,
In this kingdom by the sea)
That the wind came out of a cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.
But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we
Of many
far wiser than we
And neither the angels in Heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee:
For the moon never beams without bringing me dreams
Of the beautiful Annabe
l Lee;
And the stars never rise but I see the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so, all the night
-
tide, I lie down by the side
Of my darling, my darling, my life and my bride,
In her sepulchre there by the sea
In her tomb by the side of the sea.
66
O poema narra em primeira pessoa uma história de amor impossível entre o eu-
p
oemátic
o e a linda Annabel Lee, o que pelo menos em termos de substrato temático faz
ressoar as muitas tramas do tipo de Romeu e Julieta: dois amantes que, apesar da oposição
familiar ( seus nobres parentes se apressaram a tirá-la de mim ) ou até da conspiração de
hostes angélicas invejosas ( foi a inveja dos anjos ), mantêm seu elo amoroso (espiritual e
fisicamente, mesmo que implique uma relação necrofílica) após a morte da donzela. Nem
uma espécie de emparedamento (sepulcro) nem o resfriamento (
vento
lido
) esfriaram um
amor
inocente
que era mais que amor ( amor que ultrapassava o próprio amor ), pois, ainda
que
, num teimoso ato de
morbidez,
porém como um imperioso reflexo de ligação anímica de
eixos bipolares ( can ever dissever my soul from the soul of the beautiful Annabel Lee
/
jamais minha alma afastarão, jamais da bela ANNABEL LEE
),
o eu-lírico pref
ira
passar
melan
colicamente
todas as noites ao lado de sua amada: ess
e
amor
mais que amor
talvez
dure
porque é infinito e eterno, na concepção ou anseio da voz masculina, assim como sua
dor.
O esquema das rimas na versão original (ababcb / dbebfb / abgbib / f
bab
gb / e
bb
ebjb /
kblbmmbb)
em
versos
de métrica
variável,
ficando
entre
o pé anapéstico e o i
âmbico,
que,
mesmo dentro de uma
certa liber
dade formal,
tenta
produz
ir
um ritmo ciclicamente hipnótico,
conotando a
contínua
desolação
do eu
-
poemático, isto é,
-
se enredado em circunstância sem
solução.
No padrão das correspondências swedenborguianas, temos: a pureza de um amor
terreno
em contraste com a insidiosa impureza da inveja celestial; os anjos do céu e os
demônios do mar; o brilho dos olhos da amada e os raios do luar e das estrelas, que no caso
do poema não se apresentam, num ato de solidariedade da natureza em relação ao eu-
lírico
(ao
menos em sua percepção). Aliás, à guisa de reforçar a atemporalidade do espectro
temático de Poe, esse desejo de que tudo se solidarize com nossa dor,
vociferando
impotência
e indignação por ocasião da morte do ser amado, ecoa
em
poemas
para trás ou para frente na
67
história literária, como vemos em Oh! na Flor da Beleza Arrebatada
de Lord Byron
e
em
Funeral Blues
de Wystan Hugh Auden,
todavia
neste sem a mesma morbidez e sem o
compromisso romântico da eternalização do amor, provavelmente por causa de ser o
modernista um
intelectual
mais esvaziado de esperanças, mais consciente da fragmentação da
existência, menos crente em uma possível religação, qualquer que seja. T
emos
o poema de
Byron traduzido por José Lino Grünewald
e o segundo, por
José Paulo Pae
s:
Oh! na flor da beleza arrebatada,
Não há de te oprimir tumba pesada;
Em tua relva as rosas criarão
Pétalas, as primeiras que virão,
E oscilará o cipreste em branda escuridão.
E junto da água a fluir azul da fonte
Inclinará a Tristeza a langue fronte
E a
s cismas nutrirá de sonho ardente;
Pausará lenta, e andará suavemente,
Como se com seus passos, pobre ente!
Os mortos perturbasse, mesmo levemente!
Basta! sabemos nós que o pranto é vão,
Que a morte, à nossa dor, não dá atenção.
Isso fará esquecer
-
nos de p
rantear?
Ou que choremos menos fará então?
E tu, que dizes para eu me olvidar,
Teu rosto acha
-
se pálido, úmido esse olhar.
(1988, p. 43)
Agora Auden:
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue
-
se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o pian
o e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto
um laço no pescoço
e os guardas usem finas luvas cor
-
de
-
breu.
Era meu
norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim
-
de
-
semana,
meu meio
-
dia, meia
-
noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz se engana.
É hora de apagar estrelas
são molestas
guardar a lua, desmontar o sol brilhant
e,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.
39
39
(
http://forum.valinor.com.br/archive/index.php/t
-
2231.html
, acesso em 12/4/2006)
68
No poema de Byron, tenta-se enxergar a natureza, representada pelas rosas, o cipreste
e a água,
como
uma energia solidária e
protetora
; a dor não cessa, mesmo com a consciência
de que a morte ignora nosso tormento ( ...sabemos nós que o pranto é vão, / Que a morte, à
nossa dor, não atenção. / Isso fará esquecer-nos de prantear? ).
em
Auden, o jogo de
eixos
bipolares (norte/sul, leste/oeste, dias úteis/fim-
de
-
se
mana, meio-
dia/meia
-noite) apenas
reitera a importância do ser amado e o fato de que sua ausência desnorteia, esvazia a vida de
seu significado. No caso de Annabel Lee ,
também
um
a tensão
entre
as bipolaridades
que
, aliada à ambientação macabra, gera parte do clima de melancolia sombria car
acterístico
de Poe. Aliás, no esforço de
firmar
esse tom triste, Poe lança mão de aspectos fônicos como a
aliteração do / h / no verso 21 em inglês ( not half so happy in heaven), conotando o som
lúgubre do vento gélido que mataria Annabel Lee; registre-se que o tradutor
percebe
esse
efeito
aliterativo
e o mantém
com o fonema / v /
em veio um vento à noite, de uma nuvem .
Vinculado à ânsia da sublime religação que abordamos no capítulo anterior, este texto
poético di
aloga
, conforme apontam os críticos, com os versículos 38 e 39 do capítulo 8 da
Carta do apóstolo Paulo aos romanos,
reafirmando
, por conseguinte, a esperança de um
grande amor, maior que qualquer amor, poder nos dar
sustentação
para suportar todos os tipo
s
de forças
desalentadoras
: a morte, anjos ( principados ou potestades ), o porvir, a altura ou
profundidade
(
Céu
ou Inferno, talvez nobres ou plebeus ) ou qualquer criatura desses
círculos de poder, todos contemplados no poema, de uma forma ou outra:
Est
ou convencido de que nem a
morte
nem a vida, nem os
anjos
nem os
principados
,
nem as
potestades
,
nem as coisas do presente nem do
porvir
, nem as forças das
altura
s
,
ou das
profundidade
s, nem qualquer outra criatura, nada poderá
separar
-nos do amor
de Deus
,
manifestado
em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Bíblia Sagrada, Edição pastoral, 1990, p. 1834)
(Os destaques são meus)
Passaremos agora a outro poema
Para Helena
( For Helen ), de 1848, que não é o
mesmo que A Helena
( To Helen ) de 1831, tanto que Milton Amado preferiu usar
preposições diferentes para distingui-los entre si. O segundo é fruto de um intelecto jovem,
fascinado com a beleza da mãe de um colega de escola, conforme dissemos no início deste
69
capítulo. O primeiro é mais longo e focaliza
algo
maior
que um encanto ou atração juvenil por
uma mulher; seus versos de um imenso poder de sedução feminino capaz de trazer uma
redenção até mesmo espiritual, ou seja, uma mistura intrigante de sensualidade e santidade.
Vejamos:
Vi-
te uma vez, só uma, há v
ários anos,
já não sei dizer
quantos
, mas
não muitos
.
Era em junho; passava a meia
-
noite
e a lua, em ascensão, como tua alma,
nos céus abria um rápido caminho.
O luar caía, um véu de seda e prata,
calma, tépida, embaladoramente,
Em cheio, sobre as faces de
mil rosas,
que floresciam num jardim de fadas,
onde até o vento andava de mansinho.
Caía o luar nas faces dessas rosas,
que morriam, sorrindo, no jardim
pela tua presença enfeitiçado.
Toda de branco, vi
-
te reclinada
sobre violetas; e o luar caía
sobre a
face das rosas, sobre a tua,
voltada para os céus, ai! de tristeza!
Não foi o Destino, nessa meia
-
noite,
não foi o Destino (que é também Tristeza)
que me levou a esse jardim, detendo
-
me
com o incenso das rosas que dormiam?
nenhum rumor. O mundo silenciara
.
Só tu e eu (meu Deus! como palpita
o coração, juntando estas palavras!)...
Só tu e eu... Parei... Olhei...
E logo todas as coisas se desvaneceram.
(Lembra
-
te: era um jardim enfeitiçado.)
Fugiu a luz de pérola da lua.
Os canteiros, os meandros sinuosos,
f
lores felizes, árvores aflitas,
tudo se foi; o próprio odor das rosas
morreu nos braços do ar que as adorava.
Tudo expirara... Tu ficaste... Menos
que tu: a luz divina nos teus olhos,
a alma
n
os olhos para os céus voltados.
Só isso eu vi durante horas int
eiras,
até que a lua fosse declinando.
Ah! que histórias de amor se não gravavam
nas celestes esferas cristalinas!
que mágoas! que sublimes esperanças!
que mar de orgulho, calmo e silencioso!
e que insondável aptidão de amar!
Mas, afinal, Diana se sepulta
num túmulo de nuvens tormentosas.
tu, como um elfo, entre árvores funéreas,
deslizas.
teus olhos permanecem
.
70
Não quiseram
fugir e não fugiram.
Iluminando a estrada solitária
de meu regresso, não me abandonaram
como o fizeram minhas esperanças.
E ainda
hoje me seguem, dia a dia.
São meus servos
-
mas eu sou seu escravo.
Seu dever é luzir em meu caminho;
meu dever é
salvar
-
me
p
or
seu brilho,
purificar-
me em sua flama elétrica,
santificar
-
me no seu fogo elísio.
Dão
-
me à alma Beleza (que é Esperança).
Astr
os do céu, ante eles me prosterno
Nas noites de vigília silenciosa;
e ainda os fito em
pleno meio
-
dia,
duas Estrelas
-d
Alva, cintilantes,
que sol algum jamais extinguirá.
40
(2001, pp. 942
-
943)
40
I saw thee o
nce once only
years ago:
I must not say
how
many
but
not
many.
It was a July midnight; and from out
A full
-
orbed moon, that, lik
e thine own soul, soaring,
Sought a precipitate pathway up through heaven,
There fell a silvery
-
silken veil of light,
With quietude, and sultriness, and slumber,
Upon the upturned faces of a thousand
Roses that grew in an enchanted garden,
Where no w
ind dared to stir, unless on tiptoe
Fell on the upturn'd faces of these roses
That gave out, in return for the love
-
light,
Their odorous souls in an ecstatic death
Fell on the upturn'd faces of these roses
That smiled and died in this parterre,
enchanted
By thee, and by the poetry of thy presence.
Clad all in white, upon a violet bank
I saw thee half reclining; while the moon
Fell on the upturn'd faces of the roses,
And on thine own, upturn'd
alas, in sorrow!
Was it not Fate, that, on th
is July midnight
Was it not Fate, (whose name is also Sorrow,)
That bade me pause before that garden
-
gate,
To breathe the incense of those
slumbering roses?
No footstep stirred: the hated
world all slept,
Save only thee and me. (Oh, Heaven!
oh,
God!
How my heart beats in coupling
those two words!)
Save only thee and me. I paused
I looked
And in an instant all things disappeared.
(Ah, bear in mind this garden was enchanted!)
The pearly lustre of the moon went out:
The mossy banks and the meandering paths,
The happy flowers and the repining trees,
Were seen no more: the very roses' odors
Died in the arms of the adoring airs.
All
all expired save thee
save less than thou:
Save only the divine light in thine eyes
71
Para Helena , então, é um poema com três estrofes bastante het
erom
étricas,
construídas com versos
sem
um padrão de rimas ou de ritmo definidos (na maior parte do
tempo, o é iâmbico, mas com variações). O aspecto sonoro é explorado com repetições,
aliterações e assonâncias esparsas no texto, que procuram reter a atenção com uma
musicalidade menos eficiente que aquela de Annabel Lee . Apenas a título de curiosidade, é
válido mencionar que não está claro por que o tradutor teria trocado o mês de julho do
original para junho; também não se pode entender o motivo de s
e omitirem os dois versos que
negritamos no texto original em rodapé.
O tom geral do poema é goticamente melancólico em várias passagens: ao se unir
morte com êxtase ( ecstatic death ); ao se estar num jardim encantado com árvores
funéreas (no original, entombing trees , isto é, árvores que sepultam); por afirmar o eu-
Save but th
e soul in thine uplifted eyes.
I saw but them
they were the world to me!
I saw but them
saw only them for hours,
Saw only them until the moon went down.
What wild heart
-
histories seemed to lie enwritten
Upon those crystalline, celestial spheres!
How dark a woe, yet how sublime a hope!
How silently serene a sea of pride!
How daring an ambition; yet how deep
How fathomless a capacity for love!
But now, at length, dear Dian sank from sight,
Into a western couch of thunder
-
cloud;
And thou, a
ghost, amid the entombing trees
Didst glide away. Only thine eyes remained
;
They
would not
go
they never yet have gone;
Lighting my lonely pathway home that night,
They
have not left me (as my hopes have) since;
They follow me
they lead me thro
ugh the years.
They are my
ministers
yet I their slave.
Their office is to illumine and enkindle
My duty,
to be saved
by their bright light,
And purified in their electric fire,
And sanctified in their elysian fire.
They fill my soul with Beaut
y (which is Hope),
And are far up in Heaven
the stars I kneel to
In the sad, silent watches of my night;
While even in the meridian glare of day
I see them still
two sweetly scintillant
Venuses, unextinguished by the sun!
(2003, pp.87
-
89)
72
poético que está num caminho solitário ( my solitary pathway ); e que tem tristes vigílias
silenciosas à noite ( sad, silent watches of my night ).
A temática gira novamente em torno de um encantamento amoroso superior, cuja
fonte está em uma figura feminina ideal e perfeita. Esse amor também não se concretiza no
plano físico para poder se atualizar no plano transcendental, tornando-se o próprio
instrumento de elevação do eu-poemático que afirma ter de ser salvo pela luz dos olhos
dessa mulher
elfo (em inglês, ghost , numa referência específica à
morte da amada).
Porém, embora não haja a consumação do amor físico, menções a uma vigorosa
força sensual e sensorial: o odor inebriante das rosas, o clima tórrido (
sultriness
, que em
inglês conota sensualidade), a posição meio inclinada da amada, a junção de tu e eu
( coupling those two words
thee and me), histórias de amor (que, de fato, em inglês, é
wild heart-histories , ou sejam, histórias do coração fogosas/selvagens, o fogo elétrico e
elísio (que tem a ver com local de prazer) dos olhos da mulher e, a própria comparação dos
olhos de Helena com Vênus, o planeta do amor. Entretanto, se o Destino é sinônimo de
Tristeza, outra vez o estranho, e
bem
por
isso sublime,
a
Beleza feminina será a base da
Esperança de reunião/religação.
Em essência,
é
o que Poe declara resumidamente no primeiro parágrafo do conto
Berenice :
A desgraça é variada. O infortúnio na terra é multiforme.
Arq
ueando
-
se sobre o vasto horizonte
como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas, e, contudo, intimamente
misturadas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris! Como de um exemplo de
beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da aliança da paz, uma semelhança de tristeza?
É que, assim como na ética o mal é a conseqüência do bem, da mesma forma, na realidade, da
alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as
amarguras que
existem
agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido. (2001,
p.191)
A tônica dessa declaração permeia toda a
melancolia
estética que propõe o mestre do
conto de terror: nunca se alcança a
completa
beatitude, mas ela se faz presente na alma
humana
em
vislumbres e relances embaçados de algo perdido, não realizado. Essa repentina,
mas extasiante, percepção do Sublime eterno resulta de uma atitude de devoção religiosa,
73
ascética
que, pressupondo a auto-renúncia, o abandono por sublimação das paixões human
as,
relaciona
-
se
com as palavras paradoxais de Cristo, em João, capítulo 12, versículo 24
:
Se o
grão de trigo caindo na terra não morrer, fica ele só; mas se morrer, muito fruto (Bíblia
Sagrada
, 1990, p. 1310). Cumpre salientar que Poe em O Princípio Poético , publicad
o
postumamente em 1850, revelou essa preocupação de ser o poeta um agente anunciador
desses lampejos do Sublime e para tanto deve entrar num estado de atração e repulsão,
de
interesse e terror.
Torna
-
se
imprescindível reforçar que neste
caso a conjunção tem de ser e
e não ou , pois não se trata de uma postura maniqueísta, mas de um
consciente
esforço
integrativo
entre espírito e matéria, entre céu e inferno, entre vida e morte. Vejamos:
Assim, embora de maneira bem superficial e imperfeita, tentei transmitir-vos minha concepção
do Princípio Poético. Tem sido meu propósito sugerir que, enquanto este próprio Princípio é
estrita e simplesmente a Aspiração Humana pela Beleza Suprema, a manifestação do Princípio
é sempre encontrada em uma exaltante emoção de alma, completamente independente daquela
paixão que é a embriaguez do Coração, ou daquela verdade que é a satisfação da Razão.
Porque a respeito da paixão, ai!, sua tendência é antes para degradar que para elevar a Alma. O
Amor, pelo con
trário
o Amor, o verdadeiro, o divino Eros, o Uraniano tão distinto da Vênus
Dioneana
, é, inquestionavelmente, o mais puro e o mais verdadeiro de todos os temas
poéticos. (1999, p. 97)
Poe condensou todo o poema nesse trecho de discussão estética e filosófica. Ao
oferecer sua concepção de poesia, deixa implícitas suas idéias sobre o processo de criação
artística e o papel do poeta na sociedade: deve este depurar as paixões, embora as sinta como
qualquer outro indivíduo. O eu-lírico em Para Helena reduz, sublima o encanto que seu
coração teve com a amada apenas ao brilho do olhar dela ( Tu ficaste...Menos / que tu: a luz
divina nos teus olhos ),
depurando
-o a ponto de se tornar algo de sublime proteção maternal
( Seu dever é luzir em meu caminho; / meu dever é salvar-
me
por seu brilho, /
purificar
-
me
em sua flama elétrica,
/
santificar
-
me no seu fogo elísio
).
É essa proteção maternal que nos traz a o poema intitulado Hino , que, dentre
todos, o que nos surpreende pelas referências católicas, consi
derando
-se que Poe nascera em
um estado de formação religiosa com raízes eminentemente puritanas. O poema em foco é o
seguinte:
74
Santa Maria! Volve o teu olhar tão belo,
de lá dos altos céus, do teu trono sagrado,
para a prece fervente e para o amor singelo
que te oferta, da terra, o filho do pecado.
Se é manhã, meio
-
dia, ou sombrio poente,
meu hino em teu louvor tens ouvido, Maria!
Sê, pois, comigo, ó Mãe de Deus, eternamente,
quer no bem ou no mal, na dor ou na alegria!
No tempo que passou veloz, brilhan
te, quando
nunca nuvem qualquer meu céu escureceu,
temeste que me fosse a inconstância empolgando
e guiaste minha alma a ti, para o que é teu.
Hoje, que o temporal do Destino ao Passado
e sobre o meu Presente espessas sombras lança,
fulgure ao menos meu F
uturo, iluminado
por ti, pelo que é teu, na mais doce esperança.
41
Este poema faz parte do manuscrito do conto Morella datado de 1835, em que a
personagem homônima o recita como uma canção; em edições posteriores, o poema foi
retirado do texto em prosa. Os quatro
quartetos
em inglês, em sua maioria isométricos, com a
predominância
de tetrâmetros iâmbicos, exibem estrofes dirrímicas com segmentos
emparelhados (aabb / ccdd / eeff / gghh),
ecoando diversos
tipos d
e
preces religiosas
, senão
de
modo
integral,
ao menos trazendo à memória a melodia litúrgica.
Mais uma vez, é o olhar da figura feminina que protege e salva aquele que se prostra
ante seu poder redentor. No mesmo ensaio citado, O Princípio Poético ,
Poe
também
41
San
cta Maria! turn thine eyes
Upon the sinner's sacrifice
Of fervent prayer and humble love,
From thy holy throne above.
At morn
at noon
at twilight dim
Maria! thou hast heard my hymn.
In joy and wo
in good and ill
Moth
er of God! be with us still.
When my hours flew gently by,
And no storms were in the sky,
My soul, lest it should truant be
Thy love did guide to thine and thee.
Now, when clouds of Fate o'ercast
All my Present, and my Past,
Let my
Future radiant shine
With sweet hopes of thee and thine.
(
http://www.eapoe.org/works/poems/hymna.htm
,
acesso em 13/4/2006)
75
comenta que o poeta sente a verdadeira Poesia
[...]
, profundamente, na beleza da mulher, na
ternura cativante da mulher, no seu ardente entusiasmo, na sua caridade gentil, na sua
paciência mansa e piedosa, mas acima de tudo, ah!, bem acima de tudo, ele se ajoelha diante
dela, ele a cultua na fé, na pureza, na força, na majestade, totalmente divina, do amor
feminino. (1999, p. 98)
Essa mulher é claramente objeto de desejo do poeta, mas um desejo transmutado,
sublimado, pois ela é a completa idealização do Amor: o amor uraniano, citado antes, pois
Vênus nos ensina o amor físico, o flerte e casamento carnal, sendo o amor da matéria para a
matéria. O amor uraniano se contrapõe ao venusiano, demonstrado por meio do altruísmo.
Esse amor está acima
da
razão, sem restrição de forma, cor, instintos, etc; resume-se em um
amor impessoal, um amor a toda humanidade. O amor de Urano inicia-se onde termina o
amor de Vênus.
Cada vez fica mais claro que esse tipo de amor necessita da separação física (por isso,
a morte, mesmo que depois haja um reencontro sobrenatural, fantástico), que é um dos
pólos no padrão das correspondências swedenborguianas, ou seja, amor hominal (venusiano
,
portanto telúrico) e amor divino (uraniano, portanto celestial).
Psiquicamente,
essa
sublimação rumo ao sublime é uma tarefa de proporções colossais. Mesmo assim, Poe, artista
do século XIX (e bem como outros desde então) decide ir até as últimas conseqüências desse
processo de alquimia amorosa
, pois, no contexto de uma sociedade mercantilmente alienante,
alicerçada pela superficialidade dos relacionamentos, por conseguinte, da perda do encanto e
da identidade, que estes nascem da essência e não da aparência, que outras opções lhe
re
stariam? Segundo Löwy & Sayre (1995), os românticos (e por que não os simbolistas?)
buscar
am resgatar o reencantamento do mundo principalmente por estas vias: a senda
religiosa, a exaltação da noite e a recriação do mito. Esses três caminhos convergem para
76
uma temática do etéreo do sublime, do misterioso etéreo, de uma idealidade, que pudesse
recobrar, reencontrar encantamento e aplacar sua sede identitária.
É dessa decisão de seguir por um contrafluxo social, em termos comportamentais e
filosóficos, que surgem os aspectos góticos da melancolia aos quais nos referimos desde o
segundo
capítulo, pois o sombrio, o lúgubre e o mórbido são os contrapontos metafóricos dos
estados emocionais de uma alma conscientemente melancólica. Sobre isso, ensina Octavio
Paz em
Os filhos do
barro: do romantismo à vanguarda
:
A poesia moderna [...] é a beleza bizarra: única, singular, irregular, nova. Não é a regularidade
clássica, porém a originalidade romântica [...] Seu outro nome é desgraça, consciência de
finitude. O grotesco, o estranho, o bizarro, o original, o singular, o único, todos estes nomes, da
estétic
a romântica e simbolista não são mais que distintas maneiras de se dizer a mesma
palavra: morte. Em um mundo no qual desapareceu a identidade
ou seja, a eternidade cristã
, a morte se transforma na grande exceção que absorve todas as outras e anula as regras e as
leis. O recurso contra a exceção universal é duplo: a ironia
a estética do grotesco, o bizarro, o
único
e a analogia, a estética das correspondências.
(19
7
4, p.
100
)
Essa
consciência de finitude, em suas
diferentes
fases vitais e em seu r
esultado
irônico,
pode ser exemplificada com
dois
poema
s de Poe
Os Sinos
42
e O Verme
Vencedor . Vejamos este
primeiro:
Vede! é noite de gala, hoje, nestes
anos últimos e desolados!
Turbas de anjos alados, em vestes
de gaze, olhos em pranto banhados,
vêm sentar
-
se no teatro, onde há um drama
singular, de esperança e agonia;
e, ritmada, uma orquestra derrama
das esferas a doce harmonia.
Bem à imagem do Altíssimo feitos,
os atores, em voz baixa e amena,
murmurando, esvoaçam na cena,
são de títe
res, só, seus trejeitos,
sob o império de seres informes,
dos quais cada um a cena retraça
a seu gosto, com as asas enormes
esparzindo invisível Desgraça!
Certo, o drama confuso já não
poderá ser um dia olvidado,
com o espectro a fugir, sempre em
vão
pela turba furiosa acossado,
numa ronda sem fim, que regressa,
42
Embora seja importante acompanhar os comentários que fazemos com o texto em inglês, por causa de
aspectos estruturais específicos, devido à extensão de Os Sinos , optamos por colocá-
lo em apêndice.
77
incessante, ao lugar de partida;
e há Loucura, e há Pecado, e é tecida
de Terror toda a intriga da peça!
Mas, olhai! No tropel dos atores
uma forma se arrasta e insinua!
Vem, sangr
enta, a enroscar
-
se, da nua
e erma cena, junto aos bastidores,
a enroscar
-
se! Um a um, cai, exangue,
cada ator, que esse monstro devora.
E soluçam os anjos
que é sangue,
Sangue humano, o que as fauces lhe cora.
E se apagam as luzes! Violenta,
a c
ortina, funérea mortalha,
sobre os trêmulos corpos se espalha,
ao cair, com um rugir de tormenta.
Mas os anjos, que espantos consomem,
já sem véus, a chorar, vêm depor
que esse drama, tão tétrico, é O Homem
e que o herói da tragédia de horror
é o
Verme Vencedor.
43
(
2001, pp. 954
-
955)
Em
O Verme Vencedor
(1843
) t
emos,
como nos outros poemas, versos
dispostos em
cinco oitavas, tendendo a uma
consistência
, com mais pés mbicos que de outro tipo; as
43
Lo ! 't is a gala night
But see, amid the mimic rout,
Within the lonesome latter years
A crawling shape intr
ude !
A mystic throng, bewinged, bedight
A blood
-
red thing that writhes from out
In veils and drowned in tears,
The scenic solitude !
Sit in a theatre to see
It writhes !
it writhes !
with mortal pangs
A play of hopes and fears,
Th
e mimes become its food,
While the orchestra breathes fitfully
And the angels sob at vermin fangs
The music of the spheres.
In human gore imbued !
Mimes, in the form of God on high,
Out
out are the lights
out all !
Mutter and mumble low,
And, over each dying form,
And hither and thither fly
The curtain, a funeral pall,
Mere puppets they, who come and go
Comes down with the rush of a storm,
At bidding of vast shadowy things
And the seraphs, all haggard and wan,
That sh
ift the scenery to and fro,
Uprising, unveiling, affirm
Flapping from out their Condor wings
That the play is the tragedy "Man,"
Invisible Wo !
Its hero the Conqueror Worm. (2003, pp. 65
-
66)
That motley drama
oh, be sure
It
shall
not be
forgot !
With its Phantom chased forevermore,
By a crowd that seize it not,
Through a circle that ever returneth in
To the self
-
same spot,
And much of Madness and more of Sin,
And Horror the soul of the plot.
78
oitavas apresentam padrão de rimas quase impec
áve
l;
porém, as irregularidades não parecem
afetar a musicalidade pretendida
nos
vários poemas narrativos de Poe.
A estrutura narrativa nos faz lembrar
Hamlet
: uma peça teatral dentro de outra, quiçá
também
numa tentativa de melhor compreender a realidade. A voz poemática nos mostra a
vida humana como uma representação, em que os atores (que em inglês são
muito
inferiorizados em sua caracterização: resumem-se a meros fantoches ou marionetes) são
alegoricamente a própria humanidade ( O Homem ) que, ao cair o p
ano
do espetáculo
existencial, acaba por ser devorada pelo verme vencedor da Morte, o herói da tragédia
humana . Contra esse mo
ns
tro, nem os anjos podem lutar, por mais que se apiedem e se
comovam com o insidioso drama funéreo. A humanidade, mesmo
criada
à imagem e
semelhança de Deus, está à mercê dessa força inexorável, que é
a
visão de mundo
também
de
Brás Cubas, cuja
trama
se alinhava com a pena da galhofa e a tinta da melancolia , com
dedicatória ao poderoso verme: ao vencedor, a carne humana! está, a presença do irônico,
já destacado por Octavio Paz,
a qual
se complementa
com a analogia das correspondências no
poema Os Sinos :
I
Escuta: nos t
renós tilintam sinos
argentinos
Ah! que de mundo de alegria o som cantante prenuncia!
Como tine
m, lindo, lindo,
no ar da noite fria e bela!
Vão tinindo e o céu inteiro se constela,
florescente, refulgindo
com deleites cristalinos!
Dão ao Tempo uma cadência tão constante
como um rúnico descante,
com os tintinabulares, pequeninos son
s, bem finos,
que nascendo vão dos sinos,
sim, dos sinos, sim, dos sinos,
saltitantes, bimbalhantes, dentre os sinos.
II
Escuta: em núpcias vão cantando os sinos,
áureos sinos!
Quantos mundos de ventura seu tanger nos prefigura!
No ar da noite, embalsamad
o,
como entoam seu enlevo abençoado!
Tons dourados, lentas notas
concordantes...
79
E tão límpido poema aí flutua
para as rolas que o escutam, divagantes,
vendo a lua!
Volumoso, vem das celas retumbantes
todo um jorro de eufonia
que se amplia,
"O futuro é bel
o e bom!"
clama o som,
que arrebata, com em êxtases divinos,
no balanço repicante que lá soa,
que tão bem, tão bem ecoa
na vibrante voz dos sinos, sinos, sinos,
carrilhões e sinos, sinos,
no rimado, consonante som dos sinos.
III
Escuta: em longo alarm
a bradam sinos,
brônzeos sinos!
Ah! que história de agonia, turbulenta, se anuncia!
Treme a noite, com pavor,
quando os ouve em seu bramido assustador.
Tanto é o medo que, incapazes de falar,
se limitam a gritar,
em tons frouxos, desiguais,
clamorosos, ape
lando por clemência ao surdo fogo,
contendendo loucamente com o frenesi do fogo,
que se lança bem mais alto,
que em desejo audaz estua
de, no empenho resoluto de algum salto
(sim! agora ou nunca mais!),
alcançar a fronte pálida da lua!
Oh! os sinos, sinos,
sinos!
De que lenda pavorosa, de alarmar,
falam tanto?
Clangorantes, ululantes, graves, finos,
quanto espanto vertem, quanto,
no fremente seio do ar!
E por eles bem a gente sabe
ouvindo
seu tinido,
seu bramido
se o perigo é vindo ou findo.
Bem disti
ntamente o ouvido reconhece
pela luta,
na disputa,
se o perigo morre ou cresce,
pela ampliante ou decrescente voz colérica dos sinos,
badalante voz dos sinos,
sim, dos sinos, sim, dos sinos,
do clamor e do clangor que vêm dos sinos!
IV
Escuta: dobram, le
ntamente, os sinos,
férreos sinos!
Ah! que mundo pensares tão solenes põem nos ares!
Na silente noite fria,
quando a alma se arrepia
à ameaça desse canto melancólico de espanto!
Pois em cada som saído
da garganta enferrujada
há um gemido!
E os sineiros (ah
! essa gente
80
que, habitando o camapanário
solitário,
vai dobrando, badalando a redobrada
voz monótona e envolvente...),
quão ufanos ficam eles, quando vão
tombar pedras sobre o humano coração!
Nem mulher nem homem são,
nem são feras: nada mais
do que seres
fantasmais.
E é seu Rei quem assim tange,
é quem tange, e dobra, e tange.
E reboa
triunfal, do sino, a loa!
E seu peito de ventura se intumesce
com os hinos funerários lá dos sinos;
dança, ulula, e bem parece
ter o Tempo num compasso tão constante
qual de
rúnico descante,
pelos hinos lá dos sinos!
Ah! dos sinos!
Leva o Tempo num compasso tão constante
como em rúnico descante,
pela pulsação dos sinos,
a plangente voz dos sinos,
pelo soluçar dos sinos!
Leva o Tempo num compasso tão constante,
que a dobrar se
sente, ovante,
bem feliz com esse rúnico descante,
com o reboar que vem dos sinos,
a gemente voz dos sinos,
o clamor que sai dos sinos,
a alucinação dos sinos,
o angustioso,
lamentoso, lutoso som dos sinos!
(2001, pp. 947
-
950)
Em Os Sinos , Poe cria c
amadas
de sentido, partido de descrições simples, que se
acumulam num contínuo de aglutinação de aspectos lexicais e fônicos até se chegar ao efeito
pretendido
, isto é, impactar o leitor sobre a implacabilidade da morte, simbolizada pelos sinos
de ferro
ai
nda que dela não nos apercebamos em determinados momentos. Nestes versos
heterom
étricos, dispostos em quatro grupos a-
estróficos
cada um seqüencialmente mais longo
que o outro, terão preponderância formal os recursos sonoros da aliteração, assonância e de
rimas internas e finais, ainda que não em padrão matemático, na intenção onomatopaica de
fazer soar cada tipo de sino em nossos ouvidos.
Com o mesmo raciocínio cumulativo do verso Se é manhã, meio-dia, ou sombrio
poente
em
Hino , identificando as fases da vida humana, ou seja, nascimento, juventude e
morte, Poe usa os sinos como indicativos da consciência sobre a precariedade da vida, que se
81
inicia com a alegria do Natal ( a world of merriment ), passa para o fugaz gozo da ingênua
juventude ( O futuro é belo e bom , talvez mais ainda, porque em inglês referência a
rapture , ou seja, arrebatamento) com a união matrimonial (em inglês, wedding bells ),
sendo seguida da ominosa velhice, prenúncio da iniludível Indesejada das gentes , cantada
em Consoada de Manuel Bandeira. Cada um dos sinos, feitos de materiais diferentes (prata,
ouro, bronze e ferro), por isso com valores diferentes para o homem, mas também com
musicalidade diversa, que Poe
se
e
nvidou
para
produzir poeticamente.
Com rimas finais
aa
abcbb
c
dda
aaa na primeira parte do poema em inglês, Poe parte
(note
-se a preposição from ) a cristalina alegria dos sinos natalinos reforçando o som
vocálico
vogal
/ i /
( From jingling and the tinkling of the bells ) numa transição progressiva
de sons rumo ao (note-se a preposição to ) último verso ( To the moaning and the groaning
of the bells ) com ditongos internos /ow/ (moaning / groaning) com o som vocálico fechado
/ ô /, que a tradução expressa tão bem tanto semântica quanto fonicamente nas pa
lavras
angustioso , lamentoso , lutuoso , levando-
nos
afinal
ao efeito
melancólico
-gótico do
poema, ou seja, em inglês the melancholy meaning of the tone (o sentido melancólico do
som) que sai da garganta enferrujada de seres fantasmais .
C
omo o e
pítome de seres fantasmais, temos a ave agourenta de O Corvo , poema que
escolhemos para fechar esta circunvolução explicativa das bases temáticas e estéticas de Poe.
Devido
à extensão dessa clássica narrativa em versos, preferimos colocá-la, bem como a
tradução de Milton Amado, em apêndice, caso se sinta a necessidade de verificar aspectos de
nossa
análise e reflexão sobre a natureza gótico-
melancólic
a da poesia do poeta norte-
americano.
Comecemos, pois, com a forma deste poema clássico no cânone ocidental, por mais
que se possa duvidar de uma versão definitiva dessa lista. Publicado pela primeira vez no
Evening Mirror de Nova York em janeiro de 1845. O Corvo , como
o
próprio autor explica
82
no seu roteiro metapoemático, A Filosofia da Composição , ao qual já nos referimos,
compõe
-se de 18 sextetos estruturados em trocaico em octâmetros acataléticos,
alternando-
se com um heptâmetro
catalético, repetido no refrão do quinto verso e termina
ndo
com um tetâmetro catalético (1999, p. 109), tudo realçado po
r muitos elementos assonantes e
aliterativos, espalhados no interior e no final dos versos.
A rima final /ór/ no segundo, quarto, quinto e sexto versos de cada estrofe, remetendo
sempre
à amada Lenore, formam a batida hipnótica, conotando o transe
melancólico
em que
se encontra preso o eu-
poético
tanto emocional quanto externamente, fato que se estabele
ce
desde o primeiro verso nas figuras que compõem a ambientação ( exausto, quase
adormecido / à meia-noite erma e sombria ).
Contudo,
a
intercalação de outros sons nas
rimas finais evita a monotonia na progressão do texto poético.
C
aracteriza
-se tembém por ser, essencialmente, um monólogo dramático, que o
corvo emite o mesmo som, ao menos, na interpretação do eu-
lírico
que ouvia
sempre
a
fatídic
a sucessão de nunca mais ( nevermore ) como resposta. Nesse monólogo, verificam-
se vários detalhes que corroboram as idéias de desencantamento com o mundo e de depressão
emocional
, uma vez que
nem
o conhecimento científico acumulado ( curious volume of
forgotte
n lore , ou seja as doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais ) nem a
religi
ão ( bálsamo em Galaad / a balm inGilead ), numa conexão intertextual bíblica com o
capítulo 8, versículo 22 de
Jeremias
Será que não existe bálsamo em Galaad? (Bíblia
Sagrada
, 1990. p. 970)
trazem alívio para a angústia em relação à morte da linda Lenora.
Até
certo ponto, esse desapontamento vem marcado por ironia, pois: a) o corvo, símbolo da
plano fantasmal, permanece sentado
sobre
o busto de Minerva, o símbolo da sabedoria, na
mitologia ocidental; b) nem o Deus que adoram todos os mortais esclarece as dúvidas do
seu adorador a respeito do Éden distante , em que esperançosamente se poderia rever a
amada.
Assim, de fato a
melancólica
alma do eu-
poem
ático, prisioneira de sua própria
83
indignação, de certa forma uma tendência à autotortura, não de erguer-se, ai! nunca
mais! , isto
é
,
não mais encontrará o sublime arrebatamento
. Essa tortura
t
em a ver com
o uso
da razão para entender ou lutar contra o Verme Vencedor , anunciam
com
férreos sinos o
fim comum a todos. Implícita está a crítica romântica à ciência, que fica evidente no poema
Soneto
À Ciência :
Ciência! Do velho Tempo és filha predileta!
Tudo alteras, com o olhar que tudo inquire e invade!
Porque rasg
as assim o coração do poeta,
abutre, que asas tens de triste Realidade?
Poderia ele amar
-
te, achar sabedoria
em ti, se ousas cortar seu vôo errante e ao léu
quando tenta extrair os tesouros do céu,
mesmo que a asa se eleve indômita e bravia?
Não furtaste
a Diana o carro? E não forçaste
a Hamadríade do bosque a procurar, fugindo,
estrela mais feliz, que para sempre a esconda?
Não arrancaste à Ninfa as carícias da onda,
e ao Elfo a verde relva? E a mim, não me roubaste
o sonho de verão ao pé do tamarindo?
44
(2001, p.925)
A revolta dirigida à ciência é pungente no soneto; ela
destruiu
com seus avanços
(seriam avanços na visão dos românticos e simbolistas?)
o sublime estado de harmonia natural
e sublime estado onírico da juventude. Interessante salientar que a ciência é chamada de
abutre que rasga o coração do poeta, ave negra como o corvo, ao qual o eu-
lírico
suplica,
semelhantemente,
que retire o bico
de seu c
oração
.
44
SCIENCE ! true daughter
of Old Time thou art!
Who alterest all things with thy peering eyes.
Why preyest thou thus upon the poet's heart,
Vulture, whose wings are dull realities?
How should he love thee? or how deem thee wise,
Who wouldst not leave him in his wa
ndering
To seek for treasure in the jewelled skies
Albeit he soared with an undaunted wing?
Hast thou not dragged Diana from her car?
And driven the Hamadryad from the wood
To seek a shelter in some happier star?
Hast thou not torn the Na
iad from her flood,
The Elfin from the green grass, and from me
The summer dream beneath the tamarind tree?
(Este soneto tem várias versões; ficamos com o texto republicado em 1845, no qual se baseia a tradução
encontrada nas obras organizadas por Os
car Mendes e Milton Amado.)
84
Retomando O Corvo , b
asicamente,
até
a décima sétima estrofe
remonta
-se o
passado com a perda da amada e enfatiza-se, por meio das contínuas e inúteis indagações ao
corvo, o estado de tristeza e desespero da voz central do poema. Na décima oitava estrofe,
quase num momento de epifania, porém, não a epifania libertadora, consoladora, talvez a
angustiante compreensão da pequenez humana,
pois
instaura
-
se
um estado de prostração, de
inação.
Embora não queiramos tratar estão questão literária pelo viés psicanalítico, é, no
mínimo esclarecedor que
em
Melancolia e Luto, de 1917,
Freud
descreva o mel
ancólico
deprimido
dessa maneira
:
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a
cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e
qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar
expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante
de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com
uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da auto-
estima
está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas. (FREUD, 1974, p.
276)
Assim, procuramos discutir neste capítulo o tipo de raciocínio melancólico-gótico que
serve de coluna de sustentação para matriz temática de Poe. Enfocamos o modo como a
decepção com o mundo (ou com a sociedade norte-americana) do século XIX pôde levá-lo a
ver a arte como a solução para reconquistar o ideal perdido, como um processo de
conscientização
sobre a tristeza poderia aumentar a percepção e fruição da Beleza Sublime, a
qual serviria ao mesmo tempo de refrigério para a escaldante dor de existir. Torna-se com
essa postura intelectual um companheiro das declarações de Percy B. Shelley sobre poesia,
em
seu
ensaio Defesa da Poesia : A poesia imortaliza tudo o que de mais belo no
mundo. [...] A poesia redime da corrupção as visitações da divindade no homem. [ ]
transforma tudo em encanto; exalta a beleza do que é belo e acrescenta beleza ao que ho
uver
de mais deformado; combina júbilo e terror, t
ri
steza e prazer, eternidade e mudança (Apud
LOBO,
1987, p.241). Desenvolveremos plano de discussão semelhante para Alphonsus de
Guimaraens no próximo capítulo.
85
CAPÍTULO
VI
ASPECTOS GÓTICOS E MELANCÓLICOS
NA POESIA DE
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que
só quer não tê
-
lo!
Pobre espera
nça a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê
-
lo!
Sossega, coração, contudo
! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
45
Afonso Henriques da Costa
Guimarães nas
ceu em 24 de julho de 1870 e
faleceu
em 15
de julho de 1921, em Mariana-
MG.
Reconhecidamente, um dos principais representantes do
movimento simbolista no Brasil,
cuja
obra tem um conteúdo lírico centrado nos temas da
morte, do amor e da religiosidade, uma
vez que, como
aprendemos de sua biografia,
em 1887
,
apaixonou
-se por sua prima Constança da Silva Guimarães, a terceira filha de Bernardo
Guimarães, a qual faleceu aos 17 anos, vítima de tuberculose
em
1888. Apesar de o namoro
ter durado oficialmente
menos
de um ano
,
de ter se casado
logo depois
e formado uma família
ampla com 14 filhos, a vivência da morte daquele amor juvenil seguida de repentina perda
teria deixado marcas profundas na sua poesia.
Foi
a São Paulo para cursar Direito. Na capital paulista, começou a escrever parte de
sua obra após conhecer os ideais simbolistas. Algum tempo depois, viajou pelo Rio de
Janeiro, e teve contato com
João da Cruz e Souza, com quem viria a dividir o título de mestres
45
Poema de Fernando Pessoa em
Obra Poética
, 1997, pp. 695
-
696.
86
do Simbolismo brasileiro. De volta a Minas Gerais, levou uma vida pacata com sua esposa,
Zenaide de Oliveira
,
e filhos até o seu falecimento.
Afonso Henriques, que desde 1894 latinizara seu nome e sobrenome para
Alphonsus
de Guimaraens, como sinal da estética Simbolista e, na prática, para diferenciar os dois
ramos da família Guimarães, imortalizou-se como
Alphonsus
com obras poéticas como
Setenário das Dores de Nossa Senhora,
Kiriale
, Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte
,
Escada de Jacó,
Pulvis,
e
Pauvre Lyre
.
Estilisticamente,
foi capaz de desenvolver uma obra com traços artísticos próprios
devido a um magistral domínio da musicalidade da língua portuguesa, até porque, com sua
formação superior em Direito, o português fazia parte das suas atividades cotidianas quer
como colaborador de jornais (Diário Mercantil, Comércio de São Paulo, Correio Paulistano,
O Estado de S. Paulo, A Gazeta), quer como magistrado em várias cidades de Minas em
diversos momentos de sua carreira. Não há dúvida, entretanto, de que tenha sido influenciado
pelas idéias literárias de simbolistas franceses como Paul Verlaine, c
uja
máxima
De la
musique avant toute chose , o primeiro verso do poema "Art Poétique" (1874) ,
Alphonsus
teria seguid
o
à risca
, impregnando sua poesia de musicalidade.
É óbvio, então, que o sentimento de luto presente na vida do poeta solitário de
Mariana aliado aos preceitos simbolistas para a consecução de uma arte musical poderiam
aproximar Alphonsus d
o norte
-americano Edgar Allan Poe,
fazendo
emergir
os tons e sons de
versos
melancólicos
desde seus primeiros escritos agrupados em Ki
riale
(1891-1895), que,
ressalte
-
se
, é publicado em 1902, após Setenário Das Dores de Nossa Senhora, Câmara
Ardente
e Dona Mística em 1899. Aliás, digno de nota é o fato de que
es
s
as
foram as únicas
publicações de compilações de
poemas feitas até o falecimento do poeta em 1921.
87
Afrânio Coutinho, no quarto volume de A Literatura Brasileira, citando Max-
Pol
Fouchet (1913-1980), comenta sobre o sublime, o gótico e a melancolia na obra de
Alphonsus:
A poesia, a música têm por missão conduzir-nos ao sublime, à água das fontes frias, ao brilho
límpido do sílex e da estrela.
Sublime é a palavra justa. [...] É aquela pureza que está nas
próprias fundações da poesia de Alphonsus, como água clara de fontes montanhescas. No seu
caso, entanto, ela escorre e murmura sob uma perene garoa de cinzas, cinza de melancolia.[...]
A balada gótica
não a formal, dos parnasianos
proporcionava-lhe os quadros, que embebia
de música decadente, e ornava daqueles crepes, sombras funerárias de ciprestes, véus de
confessandas, luares de desamparo, altares quaresmais enfeitados de roxo, enumerados, a
respeito do próprio Alphonsus, por outro poeta de Minas, Emílio Moura. (2002, pp. 431
-
432 ep
p. 440)
Quanto ao fato biográfico da perda de um (ou do) grande amor na vida de Alphonsus,
não queremos nem de longe insinuar que o poeta mineiro teria resvalado num
confessionalismo
pueril
e repetitivo. Aliás, é isso que parece brotar de comentários críticos
espalhados aqui e acolá na historiografia da literatura brasileira quando descrevem sua obra
como monocórdica. Ora, versar sobre um número diminuto de pólos temáticos não pode ser o
critério para se analisar o valor de um esforço poético. Poe, em seu cronotopo, também foi
alvo desse raciocínio. O que importa examinar, do ponto de vista artístico, é o tratamento
estético que este ou aquele tema recebeu.
Com efeito, Carlos Drummond de Andrade em Procura de Poesia não nos uma
regra para a criação de poemas, nem desabona o argumento de que é preciso haver temas;
todavia, enfatiza que deve haver uma perfeita conexão entre o poeta e sua mensagem:
Convive com teus poemas, antes de escre-
los.
/
Tem paciência se obscuros.
/
Calma, se te
provocam.
/ Espera que cada um se realize e consume / com seu poder de palavra / e seu
poder de silêncio.
46
É o equilíbrio sutil entre o plano do conteúdo e o plano da forma, da
expressão. Logo, a história pessoal torna-se ingrediente apenas e não determinante da
grandeza ou da pequenez literária; a diferença valorativa estará no(s) detalhe(s) do talento do
46
(http://www.memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema025.htm, acesso em 15/4/2006)
88
poeta. Assim resume Drummond, no mesmo texto citado, a atenção que a forma exige do
poeta
:
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pel
a resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
47
Essa chave no caso de Alphonsus (e de Poe)
estava
na atenta seleção
de
vocabulário e
utilização de recursos fônicos para criar arranjos rítmicos melodiosamente sinuosos e repletos
de encadeamentos produtores de imagens gótico-
melancólic
as
para poder
enfocar
a morte, o
amor e o desejo de sublime religação numa busca identitária de final de século XIX.
É
provável que o
utros
tenham lidado com as mesmas tensões de forma diversa, ou, nas palav
ras
do próprio Alphonsus em seu soneto XLI,
em
Pulvis
, publicado somente em 1938, na
coletânea
Poesia
s, dirigida e revista por Manuel Bandeira, com dados biográficos e notas a
cargo de João Alphonsus
:
Cantem outros a clara cor
virente
Do bosque em flor e
a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera
:
eu canto o inverno
.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar
-
lhe os cantos...
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros
a vida:
eu canto a morte
...
(2001, p
.437) (
O
s
destaques
são meus)
Alphonsus
, nestes decassílabos, nos propicia um
recorte
de sua cosmovisão
schopenhauri
anamente realista-pessimista, pois declara o desencanto com o mundo (
die
Entzauberung der Welt) em tom enfático e irônico: o presente ( esta mansão ) nos traz
sofrimentos ( prantos ) e não nada a fazer senão aguardar a invencível inimiga da vida
47
(
http://w
ww.memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema025.htm,
acesso em 15/4/2006)
89
humana.
Nosso momento presente será sempre pior que o momento passado porque cada
instante atualizado nos aproxima mais do fim existencial, tr
ansformando
-nos em seres que
rumam para lugar algum ( bússolas sem norte ).
Dissemos que o poeta é irônico uma vez que
os porta-vozes de um mundo róseo não vêem que a primavera e a vida são a ante-sala do
inverno e da morte.
Logo,
cantar
o inverno e a morte revela sua cosmovisão hiperconsciente,
o que não deixa de causar desassossego e melancolia.
Acerca disso,
Massaud Moisés
, em
História da Literatura Brasileira (vol.2),
reforça:
O decadentismo de Alphonsus de Guimaraens, em que foi um dos mais acabados
exemplares
entre nós, torna-se assim patente: ao caos do mundo, porque tudo degenera e morre, opõe o
culto dos paraísos artificiais, mas não ao modo baudelairiano. Em vez do álcool e do haxixe,
entretém quimeras com a morte e com o amor, uma e outro vivenciados no reencontro, ainda
que no plano da fantas
ia, com a amada... (2001, p.289
)
A
reiteração
dessa cosmovisão é a tônica de muitos de seus poemas, mas, como
observa Alfredo Bosi, não devemos cair na tentação de chamá-lo poeta monótono, a não ser
que se à monotonia o valor positivo que ela assume em poetas maiores como um Petrarca
ou um Leopardi, que souberam aprofundar até às raízes o seu motivo inspirador,
permanecendo
-lhe sempre fiéis (1994, p. 278). Embora a maioria dos críticos salientem a
perda de Constança para Alphonsus como fonte
para
esses seus
Leimotiven
de amor e morte,
não podemos
, numa postura ingênua,
aceitar que num indivíduo com sua formação intelectual
e cultural, tudo em termos de teoria estética criadora de uma obra significati
vamente ampla se
resum
a a uma
simplista
relação de causa e efeito biográfica. Talvez um dos empecilhos para
constatarmos isso seja a ausência de ensaios de discussão estética como A Filosofia da
Composição ou O Princípio Poético de Edgar Poe.
Portanto,
o melhor para compreender a uniformidade estética em Alphonsus é
pers
eg
uir
essa
reiteração
em outros poemas, tal como
em
A E I O U , que, conforme as
notas
na
edição de Poesia Completa de 2001 da Nova Aguilar, fora publicado em 1902, na
revista
Horus d
e Belo Horizonte,
e dedicado À Memória de Arthur Rimbaud :
90
Manhã de primavera.
Quem não pensa
E
m doce amor
,
e quem não amará ?
Começa a vida.
A luz do céu é imensa...
A adolescência é toda sonhos. A.
O luar erra nas almas.
Continua
O
mesmo sonho de oi
ro, a mesma fé.
Olhos que vemos sob a luz da lua...
A mocidade é toda lírios. E.
Descamba o sol nas púrpuras do caso.
As rosas morrem.
Como é triste aqui!
O fado incerto, os vendavais do ocaso...
Marulha o pranto pelas faces. I.
A noite tomba. O outono
chega
.
As flores
P
enderam murchas.
Tudo, tudo é pó.
Não mais beijos de amor, não mais amores...
Ó sons de sinos a finados! O.
Abre
-
se a cova.
Lutulenta e lenta,
A
morte vem.
Consoladora és tu!
Sudários rotos na mansão poeirenta...
Crânios e tíbias de de
funto. U. (2001, p.
492)
Da mesma maneira que Poe trabalhou figurativamente os diversos tipos de sinos e
seus respectivos sons para suscitar no leitor imagens de uma cronologia alegórica da vida
humana,
neste poema
Alphonsus
adiciona uma certa dose de experimentação formal,
considerando
-se os efeitos resultantes do jogo sonoro com vogais isoladas no final de quarto
verso de cada estrofe, e explora a analogia do grau de abertura e sucessiva oclusão vocálica.
Associa esse processo visual e musical a acontecimentos vitais que maquinalmente destinam
o ser humano à oclusão final: a cova.
A
estruturação simétrica
impecá
vel
das cinco estrofes
de
decassílabos,
fazendo a décima sílaba tônica ser o som vocálico imagético da oclusão para
onde caminha a vida,
demonst
ra o rico
zelo
formal do pobre Alphonsus .
Essa conscientização do fim consolador ( A morte vem. Consoladora és tu! ) , ao fim
e ao cabo, tem um papel de agente solucionador do drama humano: o que não tem solução,
solucionado está , repete a sabedoria popular. Posta dessa maneira simplificada, talvez não se
possa visualizar uma ossatura vertebral, para permanecer num campo lexical
correspondente
ao dos crânios e tíbias , ou seja, um sustentáculo filosófico dessa postura psíquica. De certa
fo
rma, Henriqueta Lisboa, em seu livro Alphonsus de Guimaraens, da coleção Nossos
91
Grandes Mortos (uma simpática homenagem para o alquimista da morte ) expõe em outras
palavras que dessa perspectiva
Resolveu
-se o problema interior pela certeza de que não haveria solução possível. Conflito
exterminado pelas próprias causas. Paradoxo supremo, o da vida de Alphonsus, tão
harmoniosamente vivida, sob todos os aspectos, no pacto fundido entre o homem e o artista!
[...] A poesia, como a filosofia, é perene
. (1945, p. 56)
É
isso
que se
ratifica
em versos como Ai! mísero de ti que em outra face / Vês a
causa do teu pesar enfermo / Quando é de ti que toda a mágoa nasce (
GUIMARAENS, 2001,
p.421). Note-se que não se trata de comiseração, mas de autoconhecimento e, por
consegu
inte, compreensão do próprio sofrimento. Com essa evolução mística não parece ter
proposto Alphonsus um ascetismo paralisante no que tange aos afetos. Em A Escada de Jacó,
uma segunda série de sonetos em versos dodecaslabos,
intrigantemente
denominada
Caminho do Céu (27/12/1900), em que lemos o soneto IV. Ressalta-se o fato de nas notas
João Alphonsus explicar que a seleção de alexandrinos não é um critério simplesmente
formal, uma vez que a escolha do dodecassílabo decorre, em seus versos, da força peculiar e
da grandeza dos temas dos poemas
(2001, p.590).
Vamos a ele:
É
necessário amar... Quem não ama na vida?
Amar o sol e a lua errante! amar estrelas,
Ou amar alguém que possa em sua alma contê
-
las,
Cintilantes de luz, numa seara florida!
Amar
os astros ou na terra as flores... Vê
-
las
Desabrochando numa ilusão renascida...
Como um branco jardim, dar
-
lhes na alma guarida,
E todo, todo o nosso amor para aquecê
-
las...
Ou amar os poentes de ouro, ou o luar que morre breve,
Ou tudo quanto é so
m, ou tudo quanto é aroma...
As mortalhas do céu, os sudários de neve!
Amar a aurora, amar os flóreos rosicleres,
E tudo quanto é belo e o sentido nos doma!
Mas, antes disso, amar as crianças e as mulheres...
(2001, p.
390
)
Mais uma vez, um soneto num ritmo de fluidez e elegância. Como se vê, é inegável a
progressão da cosmovisão inicial, ao nível de refinamento imaginativo e artístico. Alphonsus,
bem ao modo swedenborguiano (os astros do céu e as flores da terra), reconhece a
92
necessidade de viver e amar a ambivalência da vida e faz transparecer a sublime harmonia
paradoxal dos opostos, conseqüência de uma expansão de latitude anímica ( amar estrelas /
Ou amar alguém que possa em sua alma contê-las ); essa alma expandida verá o belo, que
nos doma o sentido na aurora ou nos poentes de ouro no brilho do sol ou na opacidade
da lua, em última instância, na vida ou na morte. Ora, seria incompreensível atingir tal estado
oceânico de amor e se furtar a amar as crianças e as mulheres , símbolos primeiros de
energia vital, mesmo que isso implique a dor da perda.
Esse processo de sublimação religiosa ou mística pode ser constatado quando se
coteja
o
poema
acima com
versos
como os do terceiro soneto de Salmos da Noite (Versos da
Mocidade),
coletânea de poemas oriundos de recortes de jornal, da seção Parnaso de
O
Estado de São Paulo daquela época, colados em um caderno guardado por D. Maria
Guimarães Alvim, tia materna da Alphonsus. Segundo nota, vêem-se as assinaturas Affonso
Guimarães e Alphonso Guy, que precederam o pseudônimo latinizado definitivo, o que
justificaria o subtítulo explicativo de
Versos da Mocidade
. Vejamos:
Ó
minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios
se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.
O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.
Ao teu olhar,
oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...
Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!
(2001, p.
528
-529)
Nestes alexandrinos, é indiscutível que o peso denotativo e conotativo do léxico
( volúpia , braços febris , alma perdidamente louca , furna escura , lábio que morde ,
oceano em fúria , ganido de cadela espúria , salmo de t
édio/
dor hausteante , verme da
luxúria ,
céu do meu inferno ) não tem nada a ver com a suavidade do soneto anterior. Um
93
tom suave não pode surgir de uma alma
barrocamente
atormentada, pois aqui as forças
opostas estão em pólos antagônicos, e não complementares. Não é possível à mocidade
fugir
da volúpia vampiresca das paixões furiosas, que suga (por isso hausteante )
a alma até
ela se
tornar um ressequido cadáver ( Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha /
E morre ), pois faz irromper das profundezas sombrias do coração humano ( O peito, que a
uma furna escura se assemelha
)
imperiosa luxúria.
É i
nteressante
notar: o quarto verso da segunda estrofe ( Dei toda a vida... e eterna ela
seria pouca
)
se repete no último verso do soneto II ( Vida que eterna ainda seria pouca
,
p.217)
da Primeira Dor , no livro Setenário das Dores de Nossa-
Senhora
(1899);
isso
poderia ser interpretado como prenúncio da sublimação mística que viria a se operar no
melancólico
jovem Alphonsus. O contexto do verso mencionado tem a ver com o sofrer
transcendental
de Maria por Jesus Cristo; esse sofrimento é visto como venturoso e afirma-
se
que Ventura semelhante, / Só a um peito como o seu de estrelas cheio , p.216). Esse coração
cheio de estrelas deve ter sido o desiderato místico de Alphonsus, pois relaciona-se com a
ampla latitude de alma focalizada nos versos analisados anteriormente. Aliás, também é
significativa a epígrafe em latim retirada do Evangelho segundo São Lucas, 2:35: Et tuam
ipsius animam pertransibit gladius , ou seja, também uma espada traspassará a tua própria
alma
, como sinal de uma confirmação implícita da necessidade do sofrimento místico.
O poeta de Conceição do Serro e de Mariana tornou-se consciente de que o reencontro
dos opostos tem de ser divino e não telúrico. A teimosia humana para uma integração dos
opostos é uma atitude ismaliana , de desvario humano de união entre a lua do céu e a lua do
mar. Consideremos Ismália , que integra as Canções do livro Pastoral aos Crentes do
Amor e da Morte
(título que parece demonstrar o imperativo de se considerar os dois aspectos
da vida humana como um só, que ressoa à epígrafe de Caput I/ Pulvis de
Kiriale
: C est la
Mort qui console, hélas! Et qui fait vivre. C. Baudelaire . Essa coletânea teve sua primeira
94
edição em 1923 por Monteiro Lobato & Cia. Especificamente o poema em foco teria sido
publicado
, com algumas variações, em 1910, em diversos jornais com o nome de Ofélia ,
que, segundo João Alphonsus, foi transformado depois em Ismália diante talvez da
possibilidade de ser a canção tomada como referente à Ofélia shakesperiana. (2001, p. 575):
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs
-
se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou
-
se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs
-
se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas
que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar... (2001, p. 313)
Ismália é a
pura
representação
da mariposa em busca da luz, isto é da luz do céu ou da
luz refletida na água; é o ser humano dilacerado entre os desejos telúricos e os celestes
( Queria a lua do céu, /Queria a lua do mar... ); sente-se aprisionado nessa loucura
(Quando
Ismália enlouqueceu, / Pôs-se na torre a sonhar... ); fica isolado de tudo e principalmente de
de si mesmo devido a seu estado de desvario ( No sonho em que se perdeu ). O fato é que
assim ficamos eqüidistantes de uma satisfação plena ( Estava perto do céu,
/
Estava longe do
mar... ), nunca completos, pois,
ao
ob
te
rmos uma coisa, sentimos a insatisfação de não ter
uma outra. É o que nos mostra Fernando Pessoa no poema Ao volante do Chevrolet pela
estrada de Sintra , assinado por seu heterônimo Álvaro de Campos, do qual transcrevemos
apenas alguns versos para exemplificar essa dor da insatisfação do espírito:
95
Ao volante do Chevro
let pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
[...]
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá
-
la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
[...]
O automóvel, que parecia há pouco dar
-
me l
iberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só
porque não é a minha.
[...]
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia
-
noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que
cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim... (
1997, pp. 371
-
373
)
está, nas palavras de outro poeta em língua portuguesa, portanto, a mesma
inquietação atroz no coração insatisfeito, cada vez mais distante de si na
frenética
ilusão de
controle
do destino.
Alphonsus de Guimaraens atingirá a sublimação máxima na fé do reencontro, na
religação do amor eterno das almas que superaram as ilusões terrenas, do sent
imento
metafísico e translúcido redentor de um amor universal, tal qual o amor dos santos. Isso se
percebe em sonetos como de número XIX, cujo primeiro verso é Hão de chorar por ela os
cinamomos
de
Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte.
Este
soneto havia sido
publicado em 1906 em O Germinal de Mariana-MG, e vale relatar que durante um bom
tempo a página
na Internet
da Academia Brasileira de Letras
registrou os adjetivos
fulgente
e
fria
e não
silente
e fria
no segundo verso da segunda estrofe. Mero acaso talvez, mas,
como Alphonsus nunca recebeu a merecida atenção
,
apesar de seu incontestável talento,
surge
a dúvida de
mais um
descaso
em relação ao poeta mineiro
. Aqui est
á o soneto:
96
SONETO XIX
Hão de chorar por ela os c
inamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando
-
se daquela que os
colhia.
As estrelas dirão
Ai! nada somos,
Pois e
la se morreu silente e fria...
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã
que lhes sorria.
A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê
-
la
Entre lírios e pétalas de rosa.
Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul
ao vê
-
la,
Pensando em mim:
Por que não vieram juntos?
(2001, p.
342
)
É na pergunta dos anjos ("Por que não vieram juntos?" ) que o momento de redenção
parece ter sido alcançado, pois esses anjos, diferentemente dos anjos invejosos em Annabel
Lee
de Edgar Allan Poe, preocupam-se com a continuidade do amor entre o
eu
-lírico e sua
amada. Além disso, percebemos a integração da própria natureza solidária à saudade com a
partida da amada persona poética ( Hão de chorar por ela os cinamomos / Murchando as
flores ao tombar do dia. / Dos laranjais hão de cair
os pomos, / Lembrando
-
se daquela que os
colhia ).
Para um poeta, portanto, que afirmou
Sempre vivi com a morte dentro da alma
(2001, p.431), Alphonsus não abafou ou camuflou a dor de ser humano, mas logrou
transubstanciá
-la em arte porque, como disse
Pois sei que o amor é eterno como a morte
(2001,
p. 364) e que
Ninguém anda com Deus mais do que eu ando (2001,
p. 435)
. Cumpriu
assim o seu papel de poeta e de anjo, já que Quando se fina um poeta, ou morre um anjo, que
anjo são afinal ambos os do
is! (
2001,
p. 446).
Evidentemente, tal sublimação não ocorre sem a outra morte, logo sem outra dor: o
ego
precisa perecer. No entanto, ser
ão
dor e morte de
outro tipo. Esse exercício metafísico
vai
ao encontro da nota explicativa de Edgar Allan Poe no final do poema em prosa
Eureka
97
(1848)
, sua análise filosófico-
científico
-
poética
do universo, dedicado a Alexander v
on
Humboldt:
A dor da consideração de que perderemos nossa identidade individual cessa imediatamente
quando
ponderamos mais profundamente que o processo, como descrito acima, não é, nem
mais nem menos do que aquele da absorção por parte de cada inteligência individual, de todas
as outras inteligências (isto é, do Universo) na sua própria. Para que Deus possa estar em tudo
e todos, cada um deve se
tornar Deus.
48
No próximo
capítulo
, passaremos a examinar
a
interdependência de Eros e Tânatos na
obra poética de Poe e de
Alphonsus
e
os vários níveis e
implicaçõ
es dessa relação com os
traços
gótico
-
melancólicos aí
presentes.
48
The pain of the consideration that we shall lose our individual identity ceases at once when we further reflect
that the process, as above described, is neither more or less than the
absorption by each individual intelligence of
all other intelligences (that is, of the Universe) into its own. That God may be all in all, each must become God.
(
Apud
Wibur, 2003, p.159)
98
CAPÍTULO V
II
ALGUNS A
SPE
CTOS
DA RELAÇÃO EROS/T
ÂNATOS EM POEMAS
DE EDGAR ALLAN POE E DE ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz
Ter por
vida a sepultura.
49
O fato de desejo e morte coexistirem nos poemas de Poe e de Alphonsus intensamente
leva
-
nos a passar pela teoria freudiana de Eros (instinto de vida)/Tânatos (instinto de morte
), o
que certamente vai ao encontro das idéias anteriormente discutidas: o gótico, a melancolia, o
estranho,
e
o sublime. Cremos estar aí um dos ingredientes psicológicos primordiais nos
textos poéticos dos autores que ora temos como foco de análise. Iniciemos uma breve
teorização de viés freudiano, portanto.
Durante o verão de 1929, Sigmund Freud trabalhou em um texto que se tornaria um
clássico
em sua linha psicanalítica e teria influência em diversas áreas de conhecimento.
Esse
livro faz parte de uma
vertente
que marca uma nova fase no seu pensamento, na qual ele se
distanciou
de sua fase
puramente
clínic
a
, centrad
a
no i
ndivíduo
,
para pensar questões relativas
à humanidade, à
conexão
indivíduo/
sociedade.
Esse novo ciclo
te
ve
início com a publicação
de
Além do Princípio de Prazer (Jenseits des Lust
Prinzips
), em 1920, em que reitera a noção
sobre Eros, mas apresenta uma menção mais acentuada do conceito do instinto de m
orte
(Tânatos
). Sua análise reforça que a libido de nossos instintos sexuais coincidiria com o Eros
dos poetas e filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas (
2003,
p.65); todavia,
a
ponta
-
nos que o
objetivo da vida
[...] deve ser um estado de coisas
antigo
, um estado inicial de que a entidade viva se afastou e
ao qual se esforça para retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu
desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo
o que vive morrer por razões
internas
, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então
49
Estrofe da
Terceira Parte
de
Mensagem
.
(PESSOA
, 1997, p. 84)
99
comp
elidos a dizer que o objetivo de toda vida é a morte , e, voltando o olhar para trás, que,
as coisas inanimadas existiram antes das vivas.
(
FREUD, 2003,
p.49)
Em 1929, surgirá então Das Unbehagen in der Kultur (
título
que foi traduzido de
várias
formas em diferentes idiom
as
Civilization and its Discontents, Malaise dans la
Civilisation
,
El
Malestar en la Cultura, e, em portugu
ês,
O Mal-Estar na Civilização, por
exemplo), em que Freud discute, entre outros assuntos, a questão de como e onde o homem
se encaixa no mundo
local de permanente conflito para o ser humano em sua busca por
liberdade em meio às exigências de adequação
aos regulamentos, leis, costumes e tradições. A
tese básica de Freud é a de que o homem, egoísta e agressivo por natureza, busca auto-
satisfação; porém as amarras culturais inibem seus impulsos instintivos, gerando sentimentos
de culpa e ansiedade. Ele defende a tese de que a vida social pressupõe repressão. O
desenvolvimento do indivíduo
bem como
o da civilização só são possíveis através do controle
das pulsões humanas, pois estas são incompatíveis com a vida em coletividade.
Assim
, para
Freud o ser humano está condenado à infelicidade na civilização, que, por felicidade, ele
entende a livre fruição
das energias instintivas.
Procederemos, a seguir, a um breve resumo das id
éias
fulcrais de
alguns
capítulos de
O Mal-Estar na Civilização a fim de, mais adiante, podermos focalizar melhor como essa
teorização Eros/Tânatos pode ser aplicada no estudo comparativo dos poemas de Alphonsus e
de Poe.
Nos parágrafos introdutórios, Freud
contra
-argumenta observações que um amigo seu,
o crítico e escritor francês, Romain Rolland, teria feito sobre O Futuro de Uma Ilusão (
Die
Zukunft einer Illusion), de 1927, em que Freud, revelando seu lado ateu, investigou a orig
em
psicológica das idéias religiosas e afirmou que a religião seria a neurose obsessiva universal
da humanidade. Rolland concorda com o ponto sobre a natureza ilusória da religião, porém
mantém que todos os seres humanos partilham um sentimento inato de religiosidade, o qual
denominaria
de oceânico , por meio do qual o ser humano tem a sensação de que está
100
conectado a todo o mundo e à humanidade inteira. Freud, por outro lado, reconhece que
um sentimento oceânico de unidade e identificação entre os s
eres humanos, que, no entanto,
não indica uma religiosidade inata. Embora diga não ter experimentado tal fenômeno, procura
entendê
-lo cientificamente, visto que, se não sinais fisiológicos externos de sua existência,
deve haver uma explicação psicanalítica, portanto. Esclarece que o ego se percebe mantendo
linhas de demarcação bem claras com o mundo externo. Somente quanto se atinge o amor
máximo é que o ego conscientemente permite
essas fronteiras se tornarem mais fluidas sem se
sentir ameaçado. Em geral, a tendência do ego é a de se separar da dor e do desconforto
associados ao mundo externo. A distinção entre esses dois mundos é crucial para o
desenvolvimento psicológico, fazendo o ego reconhecer uma realidade distinta dele mesmo.
Num primeiro momento evolutivo, o ego se mistura com uma ampla, quase infinita,
percepção do mundo a sua volta; com a maturidade surge uma sensação diminuída de
realidade, pois o ego se delimitou como algo à parte do mundo externo. Nas palavras de
Freud:
Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das
sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos
estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de excitação, que
post
eriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos corporais, poderem provê
-
la de
sensações a qualquer momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem
entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe , reaparecendo como
resultado de seus gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um
objeto , sob a forma de algo que existe exteriormente e que é forçado a surgir através de
uma ação especial. Um outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa
geral de sensações
isto é, para o reconhecimento de um exterior , de um mundo externo
é
proporcionado pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer,
cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu
irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar
-
se fonte de
tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o
confronto de u
m exterior estranho e ameaçador.
(
1978,
pp.133
-
134)
Adiante, Freud demonstra que a mente é algo excepcional no que tange à possibilidade
de coexistirem sentimentos infantis e maduros durante a vida de qualquer um de nós, ou seja,
depois que um fato é registrado em nossa memória, nunca mais é esquecido, bastando que
ocorram as circunstâncias apropriadas para que a lembrança seja trazida à consciência vigil.
101
Faz
-se uma comparação com escavações arqueológicas, pois o passado coexiste, ainda que
escondido,
no
presente. Numa analogia com Roma
,
Freud diz:
Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas de
restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição. Também faz-
se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga estão mesclados com a
confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu muito nos últimos séculos, a partir da
Renascença [...]
Permitam
-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Roma não é uma
habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e
abundante
isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as
fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (
1978,
p. 136
)
Em seguida, o texto retoma seu objetivo principal
o de explicar a fonte dessa suposta
sensação oceânica de unidade. Parece
ser
, conclui-
se,
um
vestígio do narcisismo infantil dos
primeiros anos de vida quando o ego se integra por completo ao mundo, n
ão
discernindo o
mundo subjetivo do objetivo. Soma-se a essa lembrança narcísica ini
cial,
após consciência de
o mundo externo poder ser fonte de desprazer e de forças não controláveis, a conclusão de
que a necessidade por parte da criança de buscar (ou de se retomar) amparo e proteção.
Assim, Freud conjectura
:
...
estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento oceânico existe em muitas
pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento do
ego. [...] A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio
pelo pai que aquela necessidade desperta, parece
-
me incontrovertível, desde que, em particular,
o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas
permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo pensar em
nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai. Dessa maneira, o
papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração do
narcisismo ilimitado, é deslocado de um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa
pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode
haver algo mais por trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade. [...]
Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião posteriormente. A
unidade com o universo , que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira
tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo
que o ego reconhece a ameaçá
-
lo a partir do mundo externo.
(
1978,
pp.137
-
138)
O segundo capítulo passará a focalizar três mecanismos com os quais o ser humano
pode tentar superar as vicissitudes e dores vitais. A concepção de tais estratégias é oriunda do
próprio princípio do prazer, como um contraponto seu. Ora, se o princípio do prazer
estabelece que somos impulsionados sempre no afã de satisfazermos nossas necessidades ou
compulsões, ao compreendermos haver no mundo externo o princípio da realidade , que
102
interfere e impede a satisfação de nossos desejos, será útil estruturar modos de evitar o
desprazer tanto quanto possível. O texto explica que
A vida, tal como a encontramos, é árdua demais pa
ra nós; proporciona
-
nos muitos sofrimentos,
decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas
paliativas. Não podemos passar sem construções auxiliares , diz-nos Theodor Fontane.
Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de
nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos
tornam insensíveis a ela.
(
1978,
p.144) (
Os destaques são
meu
s)
Essas três estratégias têm o intuito de minimizar a impossibilidade terrena n
a
consecução do propósito
vital
, que para Freud se resume em obter felicidade: os seres
humanos querem ser felizes e assim permanecer (1978,
p.141).
Nos derivativos encaixam-
se as atividades científica, profissional ou ocupacional. no grupo das satisfações
substitutivas, teremos formas de compensação como o fervor religioso, a fantasia e a fuga
pelo prazer
estético
-
artístico
. Nesse segundo mecanismo, discute-se breve e
inconclusivamente sobre o papel da Beleza como instrumento de alívio para as dores
humanas, emprestando-se muitas das idéias de Emmanuel Kant. De qualquer forma, é
importante mencionar a Beleza como elemento substitutivo compensatório de satisfação, pois
ela estará ligada a Eros, uma vez que o belo é sempre um atributo do objeto sexual desejado.
Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é
predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos
sentidos e a nosso julgamento
a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos
naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em
relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento,
embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de
sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco
existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode
dispensá
-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são
sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e
da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado
sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também
pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do
sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em
sua finalidade. Beleza e atração
são, originalmente, atributos do objeto sexual. (
1978,
p.
146)
P
or fim, esca
paremos do sofrimento pelo uso de drogas químicas, que também tratarão
em si dos sintomas de nosso desprazer existencia
l e não de suas causas.
103
As causas desse desconforto vital doloroso estão no corpo humano, no mundo externo
e das relações sociais.
Como esclarece o pai da ps
i
canálise,
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de
destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros
homens
. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que
qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele
não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.
(
1978,
p.141)
(
Os destaques são meus
)
Isso nos leva ao fato de que, apesar do suposto propósito principal de nos proteger, a
civilização é em grande parte responsável pela nossa infelicidade. Ora, ela exige que o
individual seja s
acri
ficado em nome do coletivo,
diminuindo
, por conseguinte, a liberdade de
cada pessoa; exige, assim, que
se
renuncie
à realização de instintos básicos, que,
segundo
Freud poderão vir a nos assombrar eventualmente, pois a tendência do que é reprimido é
retorn
ar de alguma forma patológica. Certamente, não ficam de fora as limitações que se
impõem sobre a sexualidade, visto que a sociedade dita quais
manifestações
são permissíveis,
e até mesmo as suas formas de expressão. Freud
sustenta
que
o homem civilizado t
rocou
uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (1978, p.
170); logo,
mantermos nossos laços sociais ou satisfazermos nossos instintos é uma decisão
meramente econômica na medida em que negociamos nossa gratificação imediata por uma
estabilidade e segurança a longo prazo, o que, conforme ele assevera, conduzirá ao que
denomina frustração cultural .
Esse escambo provém de Eros e
Ananke
, isto é, amor e necessidade, que se tornaram
os pais da civilização (1978, p. 159), malgrado aspecto
civilizatório
repressor.
Comenta
Freud que
Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua
sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem
trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um
companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época ainda anterior, em sua pré-
história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e provavelmente os membros
de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se supor que a formação de famílias
deveu
-se ao fato de ter ocorrido um momento em que a necessidade de satisfação genital não
104
apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais
se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino
permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea
junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea,
não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a
permanecer com o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma característica
essencial da civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em Totem e
Tabu
[1912-13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a da
vida comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos descobriram que
uma combinação pode ser mais forte do
que um indivíduo isolado. A cultura totêmica baseia
-
se
nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim de conservar esse novo
estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro direito ou lei . A vida
comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento duplo: a compulsão para o
trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que fez o homem relutar em
privar
-
se de seu objeto sexual
a mulher
e a mulher, em privar-
se daquela parte de si própria
que
dela fora separada
seu filho. Eros e
Ananke
[Amor e Necessidade] se tornaram os pais
também da civilização humana. O primeiro resultado da civilização foi que mesmo um número
bastante grande de pessoas podia agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois
grandes poderes cooperaram para isso, poder-
se
-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da
civilização progredisse sem percalços no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo
externo e no de uma ampliação do número de pessoas incluídas na comunidade. É difícil
compreender como essa civilização pôde agir sobre os seus participantes de outro modo senão
o de torná
-
los felizes.
(
1978,
p. 158)
Entretanto,
a fim de se manter esse estado de coisas sobrevirão regras
comportamentais restritivas que deixarão aflorar o lado agressivo natural a todo ser humano.
Num primeiro momento, de novo em nome da estabilidade e segurança que a civilização pode
nos dar, aceitamos tais imposições quase que masoquisticamente, pois nos infligimos
desprazer ao nos adequarmos às coarctações sociais. Por outro lado, quando temos a
oportunidade, passamos de masoquistas a sádicos
e daí
homo homini lupus
, já que
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a
repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo,
podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos
deve
-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu
próxi
mo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também
alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de
suas posses, humilhá
-
lo, causar
-
lhe sofrimento, torturá
-
lo e matá
-
lo.
(
1978,
p. 167)
Independentemente de qualquer exagero
quiçá
contido no excerto acima, interessa-
nos
acentuar que Freud demonstra
estarem
essas duas forças conflitantes
Eros e
Tânatos
na
civilizaç
ão muito antes do século XX. Especificamente na poesia, a idéia de morbidez
amorosa, em que Eros e Tânatos se entrelaçam na paradoxal
união
do desejo e de sua
interdição no mínimo desde o Barroco, ainda que com tons e cores diferentes dos trabalhado
s
105
pelos românticos e simbolistas. Não é objetivo deste estudo realizar uma progreso teórica
sobre esse tema, passando pelos diferentes períodos literários desde o Barroco. Porém, cremos
que existe tal progressão e que será o Romantismo (em que Poe se insere, ainda que não em
todas as características dessa estética em seu país) o movimento catalisador e revelador da
beleza instrínsica da união Eros/Tânatos, que será
explorada
por simbolistas como Alphonsus
de Guimaraens.
Mario Praz, em
A
Carne, a Morte e o Diabo
,
afirma que desejo, luto, melancolia,
beleza e horror estavam nos versos de autores seiscentistas: Podia-se extrair portanto
beleza e poesia de matéria geralmente considerada ignóbil e repugnante; e isso sabiam
Shakespeare
e outros elisabetanos, apesar de não teorizarem sobre isso. (
1996,
p.45)
Vale
lembrar, portanto: especificamente, no caso da figura da amada, ou da figura feminina
desejada,
ela
tem
-
nos
sido oferecida em versos eivados de uma volúpia do sofrimento que
co
nduz ao macabro, ao terrível, ao estranho (
Unheimlich
e
).
Essa visão, todavia, é veiculada pela voz masculina. Com freqüência, a percepção do
feminino tem oscilado entre o sagrado (deusa, criança, anjo, mãe) e o profano (ninfa,
prostituta, bruxa, femme fa
tale
).
Em ambos os pólos, o masculino sofre a interdição de seu
desejo, porque em ambos os casos impera o conceito de pecado cristão e, conseqüentemente,
culpa, mesmo que ocorra apenas o desejo sexual sem o ato em si. É neste ponto que a
civilização transforma nossa psique num mecanismo masoquista. A solução para essa
interdição será a transgressão para um mundo (o da arte) onde a mulher não é sagrada nem
profana
ela é morta, cuja beleza o homem pode ter como objeto de desejo sem culpa. De
certo modo, ess
a transgressão se encaixa na segunda categoria de estratégias citadas por Freud
a fim de suportarmos o sofrimento da existência, ou seja, é uma satisfação substitutiva, uma
sublimação, que, invariavelmente, é acompanha
da
de luto e melancolia, condição para a
continuidade do desejo e do subseqüente prazer gótico
-
melancólico.
106
Aqui talvez caiba a analogia de que Georges Bataille se serve, em O Erotismo, ao
comparar a morte como expediente tanto para o místico quanto para o zang
ão:
[..] a interdição da sexualidade, à qual o religioso confere livremente a conseqüência extrema
,
cria, no caso particular da tentação, um estado de coisas certamente anormal, mas no qual o
sentido do erotismo é menos alterado do que manifesto. Se é paradoxal comparar a tentação do
re
ligioso com o vôo nupcial
e deletério
do zangão, a morte não deixa de ser o termo de uma
e de outra, e posso dizer que um religioso tentado é um zangão lúcido, que sabe que a morte
daria continuidade à satisfação de seu desejo. Ordinariamente, negligen
ciamos essa semelhança
pela razão que, na espécie humana, o ato sexual, em princípio, nunca acarreta a morte
verdadeira e que os religiosos, quase que apenas eles, vêem nele a promessa da morte moral.
Contudo, o erotismo só tem plenitude, só esgota a possibilidade nele aberta com a condição de
acarretar alguma
decadência
, cujo horror evoca a morte simplesmente carnal. (
2004,
pp. 369-
370)
(
o
destaque é meu)
Os poetas deste estudo empenharam-
se
na
fusão do religioso e do zangão lúcido:
sentem o poder d
e Eros, mas o experimentam
, sublimando
-o,
em Tânatos. Assim,
a morte é o
meio de sublimação pelo qual
vivenciam
a
morosa delectatio, ou seja, o prazer
obtido,
segundo Santo Tomás Aquino, com pensamentos ou imaginação
pecaminoso
s mesmo
sem
o
desejar.
No
trecho de Bataille, encontramos a palavra
decadência
. V
oltemo
s nosso olhar,
então,
para Alphonsus, r
eiterando
, com as palavras de Sérgio Alves Peixoto em A
Consciência
Criadora na Poesia Brasileira
do Barroco ao Simbolismo, o que já expusemos
nos capítu
los iniciais
:
A grande farsa da felicidade material que o mundo moderno trouxera ao homem com a
descoberta de um mundo prático e exato, passa a ser vista agora, como uma mentira meio
tragicômica, porque grotesca, e a uma humanidade
saudável
, exata e confiante, vemos
sobrepor
-se, pouco a pouco, um certo desconforto, uma progressiva e inelutável deterioração
de tudo. O mundo, esse grande organismo, estava sofrendo de um mal incipiente, mas
devastador.
Perguntem
-nos, pois sobre o espírito do tempo, nos últimos anos do século XIX e
nos primeiros do XX, e diremos que ele estava, sem dúvida, bastante doente do espírito. Sofria
de um mal próprio de tudo que se pretende como apogeu e perfeição, isto é, trazia em si mesmo
a sua própria decadência. [...] Aceita-se um destino envolto em dúvidas, marcado pelo
pessimismo e, passivamente, busca-se, entre outros refúgios, a embriagadora melodia
envolvente, a sonora languidez que afaguem deliciosamente uma alma essencialmente
intoxicada de fatalismo. [...] Eis, em literatura, o que se convencionou chamar de
primeiro
momento do Simbolismo, essa nova visão poética do mundo e da arte em que o eu retoma seu
lugar. Sem saber muito bem a que se apegar, desnorteado pela redescoberta de si mesmo em
meio a valores gastos e grandiosas mentiras, esse eu incertezas e desilusões. Vive a
decadência e dela se alimenta. (
1999,
pp. 191
-
193)
Em Alphonsus singularmente, notamos esse temperamento decadentista,
essa busca de
fusão dos contrários, quer por razões de opção estético-
ideológi
ca
, quer pela tríade de
107
influências apontadas por Henriqueta Lisboa (1945, p.36) em
seu
opúsculo
Alphonsus de
Guimaraens
da coleção Nossos Grandes Mortos da Editora Agir
a sugestão do ambiente,
a morte da noiva Constança e leituras místicas
percebe-s
e
em
Salmos da Noite, que traz
versos
coligidos
dos escritos na mocidade do poeta, o tom do conflito Eros/Tânatos,
conforme comentamos no Capítulo VI, em que a voz masculina do poema se rende ao à
força de Eros, confessando: Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha / Nos teus
braços febris receber sobre a boca; [...] / E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria, / E no
entanto eu t
e adoro, ó céu do meu inferno.
Entretanto, consideremos o seguinte poema de Dona Mística, de 1899, que assinala
s
inais da presença da morte a serviço da sublimação
:
IV
-
OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO
Simbolicamente vestida de roxo
(Eram flores roxas num vestido preto)
Tão tentadora estava que um diabo coxo
Fez rugir a carne no meu esqueleto.
Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
Os seus olhos intercederam por ela...
Mais uma vez eu vi que não me achava só.
Simbolicamente vestida de roxo
(Talvez saudade de vida mais calma)
Tão macerada estava que a asa de um
mocho
Adejou agoureira pela minha Alma.
Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar
-
me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela...
Para divinizá
-
la era bastante eu só.
(p.184)
-se que a amada morta é tão necrofilicamente alucinante que o eu-poemático se
agita sexualmente ( Tão tentadora estava que um diabo coxo / Fez rugir a carne no meu
esqueleto
), ainda que os sentimentos de luto e conseqüente melancolia permeiem a cena
( Todos os sonhos do meu amor por ela / Vieram atormentar-me sem ). Em seguida, no
108
último verso ocorre a sublimação do desvario erótico inicial
, isto é, a santificação do objeto de
desejo (
Para divinizá
-
la era bastante eu só
).
Constata
-se a coexistência de duas compulsões com seus respectivos instrumentos
de
concretização: uma que aprisiona a voz poemática masculina ao gozo telúrico, por meio do
corpo provocante da amada
(Eros)
e outra que liberta, que, ao divinizar a amada, ela se
torna inatingível, por meio da aceitação do cadáver dessexualizado da amada (Tânatos), o que
arrebata
o eu
-
lírico ao sublime.
Comparável é o tratamento que confere Edgar Allan Poe a Annabel Lee no poema
homônimo, discutido no C
apítulo
V
.
A amada, mesmo morta, é atraente a tal ponto (Eros)
que não poder na terra ou nos
céu
s capaz de separar o eu-poemático de sua noiva; além
diss
o, preferirá ele, também necrofí
lica
e melancolicamente, dormir ao lado dela todas as
noites
, numa expressão de seu eterno luto, mas também como uma forma sublimada de
consumação amorosa
:
E nem anjos celestes nas alturas, / nem demônios dos mares abissais
/
jamais minha alma afastarão, jamais, / da bela ANNABEL LEE
[...] / E junto a ela eu passo,
assim, a noite inteira, / junto àquela que adoro, a esposa, a companheira, / na tumba, à beira-
mar, no reino em que vivi, / junto ao mar que por ti / soluça eternamente, ANNABEL LEE
(
os destaques são meus
).
É interessante notar que, tanto em Alphonsus quanto em Poe, o estado no qual o eu-
poemá
tico crê
estar
sua companheira reflete uma mescla dos gêmeos mitológicos Tânatos e
Hipnos, ou seja, morte e sono, pois o eu enlutado e melancólico acredita existir a
possibilidade de seu amor (Eros), ainda que sublimado, resistir e sobreviver. Esse é o
desiderato da voz masculina de O Corvo , que questiona a ave agourenta sobre al
guma
possibilidade
de reencontrar Lenora:
Profeta
!
brado.
Ó ser do mal! Profeta sempre,
ave infernal! / Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais, / fala se esta alma
sob o guante atroz da dor, no Éden distante, /
ver
á a deusa fulgurante a quem nos céus
109
chamam Lenora,
/
essa, mais bela do que a aurora,
a quem nos céus chamam Lenora! (o
s
destaques
são meus)
.
Poe ainda faz ressoar essa parceria entre morte e sono eterno, que inclui a todos os
seres humanos, numa ambientação gótica e melancólica em A Cidade no Mar .
Consideremos a primeira estrofe:
Olhai! a Morte edificou seu trono
numa estranha cidade solitária
por entre as sombras do longínquo oeste.
Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores,
foram todos buscar
repouso eterno
.
Seus monumentos, catedrais e torres
(
torres que o tempo rói
e não vacilam!)
em nada se parecem com os humanos.
E em volta, pelos ventos olvidadas,
olhando o firmamento, silenciosas
e calmas,
dormem águas melancólicas
.
(
1999,
p. 45) (Os gri
fos são meus.)
Igualmente, Alphonsus entoa a vontade de dormir esse sono fúnebre ao lado do
cadáver da amada em versos de
Do
na
Mística, como: Jesus, eu sei que ela morreu. Viceja /
Cheia das rosas pálidas do outono, / A sua cova ao de alguma Igreja
:
Quero dormir o
mesmo eterno sono (
2001,
p. 170). Aliás, essa apologia do sono/morte como veículo de
transição para um estado mais elevado, mais sublime, portanto, é reiterada em rios pontos
de sua obra, ora como (única) opção para o reencontro com a amada, como vimos acima, ora
como
(única)
solução para as agruras da vida, como se verifica em versos tais quais os de
Pulvis
: Ai dos que vivem se não fora o sono! / [...] Mas ai / Da primavera, se não fosse o
outono, / [...] Tudo vem, tudo vai, do mundo
é a sorte... /
Só a vida, que se esvai, não mais nos
vem. / Mas ai da vida, se não fora a morte! (
GUIMARAENS, 2001,
p. 420).
Já, em The Sleeper , para o qual não encontramos tradução em português,
Poe
potencializa ainda mais o valor da morte/sono como m
eio de reencontro amoroso,
realçando
a
importância da destruição do corpo físico em cores góticas intensas. Vejamos alguns versos
que traduzimos
e como
nos auxiliam a
demonstrar
esse traço:
[...]
A
dama dorme! Ah, que seu sono,
Que é eterno, seja também
profundo!
Que o Céu a mantenha sob sua santa proteção!
110
Que se troque esta câmara por uma mais sagrada,
E este leito por um mais melancólico,
Rogo a Deus que ela repouse
Para sempre com olhos cerrados
Enquanto fantasmas amortalhados desfilam a seu lado!
Meu amor, ela dorme! Ah, que seu sono,
Que é permanente, seja também profundo!
Que vermes ao seu redor se arrastem suavemente!
[
...
]
50
Quanto a esse ângulo mórbido dos vermes em relação à decomposição da amada,
críticos que enxergam aí uma metáfora do desejo carnal para o qual não se deu vazão. É o
que defende Affonso Romano de Sant Anna, em O Canibalismo Amoroso
O Desejo e a
Interdição em nossa Cultura através da Poesia (
1984),
livro em que traça uma panorâmica
da estética e dos costumes de
diferent
es
época
s,
ensinando que
as mulheres podem ser amadas
distantes,
como
anjos de corpos imaculados ou mulatas
sensuais
, saboreadas como mulheres-
fruto ou mulheres-
caça.
Começa com os
poetas
românticos brasileiros, passando pelos
parnasianos,
simbolistas
, alcançando modernistas como Manuel Bandeira. Embora nossa
pesquisa não tenha o alvo de averiguar a focalização do corpo feminino em diferentes tempos
literários
, reputamos significativo entreter brevemente a teoria exposta n
essa
obra devido à
marca gótica em
que
o desejo pela amada (Eros) e sua morte (Tânatos)
pode
m
ter.
Sant Anna propõe que o canibalismo está tão entranhado, mas ao mesmo tempo
dissimulado, em muitas práticas ocidentais que chegou a gerar movimentos vanguardistas na
Europa e em nosso país n
as primeiras décadas do século XX. Cita, por exemplo, que
A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa vítima
sacrificial ) são uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens, homens
comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores. O canibalismo
50
The lady sleeps! Oh, may her sleep,
Which is enduring, so be deep!
Heaven have her in its sacred keep!
This chamber changed for one more holy,
This bed for one more melancholy,
I pray to God that she may lie
For ever with unopened eye,
While the pale she
eted ghosts go by!
My love, she sleeps! Oh, may her sleep
As it is lasting, so be deep!
Soft may the worms about her creep! (Apud
WILBUR, 2003, p.49)
111
como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em Roma, bebiam o
sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII recomendou-lhe o sangue
de
três crianças de
dez
anos. Da mitologia grega aos mitos indígenas brasileiros, abundam a
omofagia e a antropogagia. (
1984, pp. 17
-
18)
Parece que fazemos um retorno a Freud no sentido de que as pulsões básicas de Eros e
Tânatos podem implicar
a
simultane
idade de prazer e crueldade
, como se evidencia em versos
de
Sarças de Fogo de Olavo Bilac, com que Sant Anna exemplifica um canibalismo
amoroso
mais ardente, nos quais o poeta escutaria a voz do seu objeto de desejo lhe dizer:
Diz tua boca: Vem!
Inda mais! , diz a minha, a soluçar... Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
Morde também!
Ai! morde! que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! Morde mais! Que eu morra de ventura,
Morto por teu amor!
51
Especificamente quanto a Alphonsus, os comentários de Sant Anna
confirm
am nossas
observações
anteriores a respeito da sublimação do desejo interdito. O poeta enlutado e
melancólico com a perda da amada, assim como em The Sleeper
acima,
transfere para o
verme a sua sanha erótica , fazendo dele um alter ego canibal melancólico ao devorar a
carne de sua bela adormecida
em uma eroticidade subterrânea na qual se maravilha no
mórbido espetáculo de anatomia da morta
(
SANT ANNA,
1984, p. 123)
.
Devaneio psicanalítico ou não, o que Sant Anna nos proporciona no mínimo é uma
ponderação a respeito de como se afiguram duas direções poemáticas no tratamento de Eros e
Tânatos, que é ora descensional (fixação no plano físico), ora ascenci
onal
(fixação no plano
espiritual)
, no que tange à espiritualização da amada e do eu-l
írico
e, por conseguinte, ao
mecanismo de sublimação do erotismo.
A descensão acontece quando Eros tenta se impor e é necessário que Tânatos se
apresente, valorizando-
se
muito mais o cadáver da amada do que sua alma; ocorre êxtase
nesse processo de interdição do desejo, mas de natureza mais grotesca, talvez até mesmo
51
www.dominiopublico.gov.br
/download/texto/bv000287.pdf
(acesso em 12/09/2006)
112
impura
, com a decomposição do corpo da amada. Já, no caso de
ascensão,
a posse erótica
converte
-se em união de almas, muito mais pelo poder de Hipnos do que de Tânatos; o
momento extático aqui tem a marca do enlevo e elevação espiritual. Nos dois casos, a
horizontalidade do desejo humano é transmutada na verticalidade do desejo espiritual, porém
com intensidade
sublimatória diversa.
Todo esse mecanismo de sublimação nos provoca a trazer à baila o desdo
bramento
jung
u
iano
dos quatro estágios por que passa
a anima
masculina, analogamente a
Eros
. O
primeiro
, denominado Eva, tem características puramente biológicas; o segundo, Helena, em
referência à Helena de Tróia ou até mesmo em relação à de Fausto, tem a ver com o
envolvimento romântico-erótico; o terceiro, Maria, por analogia à Virgem Maria, é a subida
para o degrau da devoção religiosa; o quarto e último tem Sofia, refletindo o aspecto da
sabedoria
ou sapiência que transcende até mesmo a pureza e a santidade,
criando
-
se
a perfeita
harmonia entre o consciente e o inconsciente, quando se procura o sentido da existência
e
que
serve de
inspiração
para os poetas.
Cre
mos que tanto Poe quanto Alphonsus deixam rastros dessa evolução de Eros, cada
um, a seu modo, alcançando o derradeiro nível de harmonia em sua trajetória poética
ascensional.
Alphonsus de Guimaraens insiste amiúde em figuras ascensionais como a escada, a o
caminho celestial, a subida, as asas angelicais, que em muitos versos resultam na paz
do
grande e esperado retorno da alma, e não do reencontro com a amada, pois como lemos em
Escada de Jacó: Afundam-se na terra as imagens lascivas / Não mais a comunhão dos beijos
e salivas... / Amamo-nos em vida: o fez-nos irmãos (2001, p.
381).
Aliás, esse re
gresso
místico
poderia ser concretizado à la Ismália, ou seja, com a separação de corpo e alma;
entretanto sem desvario nenhum agora, porque o poeta já teria atingido a sabedoria redentora:
113
Memento homo,
quia
pulvis es, et in pulverem reverteris. Aqui estão alguns exemplos de
diferentes poemas
:
SONETO DE UMA SANTA (parte IV)
[...] Pude ver
-
te, Senhor
destes meus versos,
Dominador dos áureos
universos,
Iluminar o celestial caminho...
Fez
-
se ao redor de mim silente calma.
Para o teu seio voou toda a minha Alma,
Como um pássaro em busca de seu ninho. (
2001,
p. 449)
SONETO XXXVII (duas últimas estrofes)
[...] E vão
-
se as horas em completa c
alma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo o que sofro e que sofri se acalma.
Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far
-
se
-á luz dentro de mim, pois minh alma
Será trigo de Deus no céu aberto... (
2001,
p. 435)
SONETO XXI (da parte Caminho do Cé
u)
[...] Suba o Poeta escolhido a ebúrnea e diante
Dele
os anjos iriais hão de cair de rastros!
E entre alas virginais de angélicas e rosas
Cego pelo fulgor da mansão do Noivado,
Feche contrito o Poeta as pálpebras chorosas.
E pensará: Para onde o camin
ho que trilho?
E o Pôr-do-
sol largando o seu manto sagrado
Há de envolvê
-
lo assim como se fora um filho. (
2001,
p. 399)
Semelhantemente, Poe defende que a ascensão da alma traz mais júbilo do que a
consumação do amor terreno, pois, conforme diz em Israfael , [...] esta Terra é um mundo de
doçuras e de dores / nossas flores nada mais são que flores. (
2001,
p. 51). Proclama e
m
Marginalia
, que é uma coletânea de observações anotadas à margem nas páginas dos livros
que costumava ler: Não é ilógico supor que, numa existência futura, possamos considerar
esta vida terrestre como um sonho (2001, p. 173). E em
Eureka,
cujo
subtítulo
é
Um Poema
em Prosa, por meio de raciocínio cosmogônico de equivalências entre céu e terra
,
relembrando Swedenborg, Poe assegura e
nfaticamente
que cada personalidade se fundirá no
coração divino, numa das etapas do grande plano cósmico, que vai desde o florescer
114
embrionário de uma semente, uma criança, um planeta, uma galáxia ou um universo até a sua
eventual reunião com a força cria
dora de tudo isso:
Todas essas criaturas,
todas
, a que chamas animadas, como aquelas a que negas a vida, sem
razão melhor do que a de não as veres em ação, todas essas criaturas têm, em grau maior ou
menor, capacidade para o prazer e a dor: mas a soma geral de suas sensações é, precisamente,
aquele total de Felicidade que pertence de direito ao Ser Divino quando concentrado em Si
Mesmo
. Todas essas criaturas, também, são inteligências mais ou menos conscientes; em
primeiro lugar, conscientes de uma identidade própria; em segundo lugar, e a relances
indeterminados e débeis, conscientes de uma identidade com Deus. Imagina que, dessas duas
espécies de consciência, a primeira enfraquecerá e a segunda se fortalecerá, durante a longa
sucessão de séculos, que devem defluir, até que essas miríades de Inteligências individuais se
venham a fundir
quando se fundirem as brilhantes estrelas
em Uma Só. (
2001,
p.293)
Ademais, testemunhamos atitude de desprendimento para com a amada comparável à
que
vimos em Alphonsus.
Consideremos
Lenora ; que, curiosamente, traz no título o nome
da amada perdida em O Corvo , cujo sujeito poemático não consegue se desapegar nem da
noiva morta nem da dor resultante. Atentemos para os versos finais de Lenora , que não
ascende,
m
as vive o beatífico reencontro:
Ide! Meu coração não pesa! Sem canto funeral,
Quero seguir o anjo em seu vôo com um velho hino triunfal.
Não dobre mais o sino! Que a alma em seu prazer sagrado
Não o ouça, triste, ao ir deixando o mundo amaldiçoado
.
Ela se arranca aos vis demônios da terra e sobe aos céus.
Do inferno, à altura se conduz e lá, na luz dos céus,
Livre do mal, da dor, se assenta num trono, aos pés de Deus! (
POE, 2001,
p. 941)
Assim,
com base em proposições freudianas,
procuramos
contemplar o panorama em
que Eros e Tânatos, os instintos de vida e de morte, respectivamente, encaixam-se na
concepção
estética de Alphonsus e de Poe. Parece-nos bastante aceitável afirmar que para
ambos
os
poetas Tânatos
foi
uma válvula de escape artística em sociedades
extremamente
marcadas pela interdição moral e religiosa em relação ao corpo feminino. Ao menos em uma
fase de suas obras, o cadáver da amada se torna cada vez mais atraente à medida que sua pele
empalidece e as maçãs do rosto e os lábios se ruborizam, e paradoxalmente encarna uma
mulher virginal idealizada. Porém, a mulher tem de morrer objetivando propósitos
androcêntricos maiores
:
acentuar angústia e a melancolia da voz poemática masculina e
115
servir de inspiração estética, na qual reside uma força oculta
a sublime beleza
que triunfa
sobre a morte.
Por fim, em um momento de sublimação mais amplo, quando os poetas dão a
impressão de estarem
mais
preocupados com sua própria morte, seguindo os degraus
evolutivos de Eros propostos por
Jun
g, o amor entre o eu-lírico e a mulher é de natureza
muito mais fraternal, reflexo d
e um almejado
retorno às condições primevas da Criação.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] a poesia é a
outra voz. Sua voz é outra porque é a voz de paixões e de visões; é de outr
o
mundo e é deste mundo, é antiga e é de hoje mesmo,
uma
antigüidade sem datas. Poesia
inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea e subterrânea, poesia de capela e do bar da
esquina, poesia ao alcance da mão e sempre de um mais além que está aqui mesmo. Todos os
poetas
,
nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou isolados, em que são realmente poetas,
ouvem a voz outra [.
..
] Nada distingue o poeta dos outros homens e mulheres, salvo esses
momentos
raros embora freqüentes
e
m que, sendo ele mesmo, é
outro.
52
Nas páginas que antecedem estas considerações, esforçamo-nos para apresentar os
métodos usados por Edgar Allan Poe e Alphonsus de Guimaraens, cada um a seu modo, no
trabalho artístico de transfigurar os sentimentos relativos ao amor e à morte. D
izemos
transfigurar porque cremos que nesse processo estes dois poetas almejaram deixar o finito
particular de sua existência para alcançar o infinito abrangente, no intui
to
de imprimir ao
poema uma diferença qualitativa: o sublime.
Tal processo criativo tangencia o paradoxo, pois retira a matéria-prima poética das
circunstâncias comuns para levar tais temas à esfera do filosófico, do divino, do supra-
hominal, mantendo, ao mesmo tempo, uma estreita ligação com a sensibilidade dos
indivíduos
em geral
.
Ness
e sentido, é que a poesia se constitui na outra voz , pois esses artífices do verso
se despersonalizaram, livrando-se de um tom meramente confessional, por meio do alinhavo
consciente entre postura estética e refinamento da linguagem verbal, no qual se incluem a
exploração da
métrica e da musicalidade.
Poder
-
se
-ia afirmar, como muitos o fizeram, que tanto Poe quanto Alphonsus são
monocórdicos e discorrem poeticamente apenas sobre suas perdas na vida. Porém, é na
escolha de ingredientes como o gótico, o estranho, o melancólico que eles se destacam numa
52
[...] poetry is the
other
voice. Its voice is other because it is the voice of passions and of visions. It is
otherworldly and this-worldly, of days long gone and of this very day, an antiquity without dates. Heretical and
devout, innocent and perverted, limpid and murky, aerial and subterranean, of the hermitage and of the corner
bar, within hand s reach and always beyond. All poets in the moments, long or short, of poetry, if they are reaaly
poets, hear the
other
voice. It is their own, someone else s, no one s, and everyone s. Nothing distinguishes a
poet from other men and women but those moments
rare yet frequent
in which, being themselves, they are
other.
PAZ, Octavio
The Other Voice.
New Yor
k : Harcourt Brace Jovanovich, 1990, p. 151.
117
temática que tem sido alvo de outros autores também séculos. Logo, não nada de
monocórdico, já que o importante não são os temas, mas o procedimento estético empregado.
A opção pelo terror, pela
an
gústia claustrofóbica
, pelo estranho, pelo mórbido desvia a
mente da sua alienação rotineira e a coloca no reino do metafísico, onde vislumbres
revelatórios surgem dos e nos poemas. Por vislumbres revelatórios não se pretende insinuar
que estariam s
oluci
onadas as
sufocantes
limitações vitais ou sociais. Todavia, tornamo-
nos
profundamente cônscios do que acontece conosco, pensamos e falamos sobre amor e morte,
sobre nossas pulsões e sobre nossas incert
ezas
fato que nos retira da simples condição de
an
im
ais irracionais. Os poemas , no dizer de WIMSATT e BROOKS, tornaram-
se
pequenos mundos misteriosos, cujo significado tem de ser lido somente com um pouco menos
de dificuldade que o significado do grande mundo, do qual os poemas são a cópia, num
sent
ido analógico.
(1970, p.704)
Assim, os poetas Edgar Allan Poe e Alphonsus de Guimaraens, na p
re
ferência por um
estilo que focalizou
bastante
o gótico e o estranho na melancolia da perda, escreveram sobre
uma intensa solidão aliada a uma forma
incomum
de
misticismo,
que traz uma mescla
oscilatória
de sagrado (alma) e de profano (corpo). Nenhum dos dois oferece segurança ou
liberdade: o corpo escraviza com seus impulsos biológicos e sobre a alma se sabe muito
pouco em vida
. Emily Dickinson externa semelhan
de dilema em versos como:
Tenho medo de possuir um Corpo
T
en
ho medo de possuir uma Alma
Profunda
precária Propriedade
Posse, não opcional
53
É o dilema de Ismália; é a dor dos eus-líricos em Annabel Lee e em O Corvo :
corpo e alma não se harmonizam juntos. No entanto, na poesia é possível colocá-los lado a
lado, como sugere Octavio Paz no trecho em epígrafe: é a voz das paixões e das visões; é de
53
I am afraid to own a Body
I am afraid to own a Soul
Profound
precarious Porperty
Possession, not optional
(1090)
(
Apud
WARDROP, 1996, p. 72)
118
outro mundo e é deste mundo [...] Poesia inocente e perversa, límpida e viscosa, aérea e
subterrâ
nea, poesia de capela e do bar da esquina
.
Compreenderam Poe e Alphonsus as correspondências swedenborguianas como
instrumento de suas composições miméticas da realidade cotidiana. Essa compreensão trouxe
ao nível individual de percepção o medo, isto é, o medo de nós mesmos, pois somos esses
seres angustiados com corpo e alma. Somos Sísifos, talvez dissessem Poe e Alphonsus, pois
empurramos nossa pedra existencial para
, ao fim e ao cabo,
não
permanecer
na existência tal
como ela se nos apresenta. Albert
Camus (1913
-
1960)
lembra bem que
Se esse mito é trágico é porque o herói é consciente. O operário de hoje trabalha todos os dias
da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros
momentos em que ele se torna consciente. sifo, roletário dos deuses, impotente e revoltado,
conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida.
A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória.
54
Parece ser isso que Poe e Alphonsus deixam transparecer em alguns dos eus-
poemáticos: ultraconsciência e a resultante desolação dessa mesma clarividência. Não existe
bálsamo para aliviar a dor da consciência, que se torna tanto mais lancinante quanto mais se
sabe
dela. A sublimação poderá vir, contudo, pelas satisfações substitutivas , como a arte,
co
nforme
aponta
Sigmund Freud
em
nossa teorização
no capítulo anterior.
Incial
mente, f
oi o que intentaram Edgar Poe e Alphonsus de Guimaraens com esse seu
estilo melangótico . Não fugiram nem do corpo (Eros) nem da alma, atingível por meio da
morte
(
Tânatos
), ao tematizá-los em seus poemas. Essa tematização não poderia ser feita
com tons de alegria e gozo, pois essas são duas forças do cabo
-
de
-
guerra
vital
que dilac
eram o
homem.
Mais que isso, por volta do final de suas vidas, os poetas
esmeraram
-se em propor um
retorno ao universal como sublimação última e permanente, isto é, não a morte como
passagem para um estado desconhecido, mas para uma condição de total diluição no todo
cósmico.
54
http://filosofocamus.sites.uol.com.br/txtmitosisifo.htm
, acesso em 17/10/2006
119
Não ocorrerá, portanto, um suicídio físico, mas uma eutanásia metafísica. Abandonar-
se
a máscara separatista do velho ego pessoal e todas as suas trivialidades rasteiras, que
impedem de realizar a fusão que Poe propõe em
Eureka
, no intuito de se rumar
conscientemente para o total esvaziamento da personalidade humana e a plena e inefável
(re)
integração.
Fim sublime para o sentimento melangótico de ser humano.
120
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133
APÊNDICE
The Bells
I.
HEAR the sledges with the bells
Silver bells !
What a world of merriment their melody foretells !
How they tinkle, ti
nkle, tinkle,
In the icy air of night !
While the stars that oversprinkle
All the heavens, seem to twinkle
With a crystalline delight ;
Keeping time, time, time,
In a
sort of Runic rhyme,
To the tintinabulation [
sic
] that so musically wells
From the bells, bells, bells, bells,
Bells, bells, bells
From the jingling and the tinkling of the bells.
II.
Hear the mellow wedding bells
Golden bells!
What a world of happiness their harmony foretells !
Through the balmy air of night
How they ring out their delight !
From the molten
-
golden notes,
And all in tune,
What a liquid ditty floats
To the turtle
-
dove that listens, while she gloats
On the moon !
Oh, from out the sounding cells,
What a gush of euphony voluminously wells !
How it swells !
How it dwells
On the Future ! how it tells
Of the rapture that impels
To the swinging and the ringing
Of the bells, bells, bells,
Of the bells, bells, bells, bells,
Bells, bells, bells
To the rhyming and the chiming of the bells !
III.
Hear the loud alarum bells
Brazen bells !
What tale of terror, now, their turbulency tells !
In the startled ear of night
How they scream out their affright !
Too much horrified to speak,
They can only shri
ek, shriek,
Out of tune,
In a clamorous appealing to the mercy of the fire,
In a mad expostulation with the deaf and frantic fire,
Leaping higher, higher, higher,
With a desperate desire,
134
And a resolute endeavor
Now
now to sit or never,
By the side of the pale
-
faced moon.
Oh, the bells, bells, bells !
What a tale their terror tells
O
f Despair !
How they clang, and clash, and roar !
What a horror they outpour
On the bosom of the palpitating air !
Yet the ear, it fully knows,
By the twanging,
And the clanging,
How the danger ebbs and flows ;
Yet, the ear distinctly tells,
In the jangling,
And the wrangling,
How the danger sinks and swells,
By the sinking or the swelling in the anger of the bells
Of the bells
Of the bells, bells, bells, bells,
Bells, bells, bells
In the clamour and the clangour of the bells !
IV.
Hear the tolling of the bells
Iron bells !
What a world of solemn thought their monody compels !
In the silence of the night,
How we shiver with affright
At the melancholy meaning of their tone !
For every sound that floats
From the rus
t within their throats
Is a groan.
And the people ah, the people
They that dwell up in the steeple,
All alone,
And who, tolling, tolling, tolling,
In that
muffled monotone,
Feel a glory in so rolling
On the human heart a stone
They are neither man nor woman
They are neither brute nor human
They are Ghouls:
And their ki
ng it is who tolls ;
And he rolls, rolls, rolls, rolls,
Rolls
A pæan from the bells !
And his merry bosom swells
With the pæan of the bells !
And he dances, and
he yells ;
Keeping time, time, time,
In a sort of Runic rhyme,
To the pæan of the bells
Of the bells :
Keeping time, time, time,
In a sort of Runic rhyme,
To the
throbbing of the bells
Of the bells, bells, bells
To the sobbing of the bells ;
135
Keeping time, time, time,
As he knells, knells, knells,
In a happy Runic rhyme,
To the rolling
of the bells
Of the bells, bells, bells
To the tolling of the bells,
Of the bells, bells, bells, bells
Bells, bells, bells
To the moaning and the groaning of the bells.
[The indentation of lines in this poem is highly idiosyncratic. It is clearly a carefully considered pattern, but for
reasons that are uncertain. As a handwritten document, the spacing in the manuscript is difficult to judge, and
since Poe himself died without being ab
le to confirm any typeset version, we will probably never know precisely
what he intended. As much as possible the scheme has been set here to match that in The Works of the Late
Edgar Allan Poe. What Poe gives as "tintinabulation" should be "tintinnabulation." The spelling error was
corrected in the
Sartain's
printing, showing that Griswold's typesetters may have worked directly from the
manuscript.]
(
http://www.eapoe.org/WORKS/poems/bellsj.htm
,
acesso em 22/10/2006)
136
The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore
--
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, ra
pping at my ch
amber door
--
"'Tis some visito
r," I muttered, "tapping at my chamber door
--
Only this and nothing more."
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December;
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow;
--
vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow
--
sorrow for the lost Lenore
--
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore
--
Nameless
here
for evermore.
And the silken, sad
, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me
--
filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I sto
od repeating,
"'Tis some visito
r entreating entrance at my c
hamber door
--
Some late visi
to
r entreating entrance at my chamber door;
--
This it is and nothing more."
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
"Sir," said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gentl
y you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you "
-- here I opened wide the door; ----
Darkness there and nothing more.
Deep into that darkness peering, long I stood there
wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?"
This I whispered, and an echo murmured b
ack the word, "Lenore!"
--
Merely this and nothing more.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
"Surely," said I, "surely that is something at my window lattic
e;
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore
--
Let my heart be still a moment and this mystery explore;
--
'Tis the wind and nothing more!"
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there step
ped a stately Raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door --
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door
--
Perched, and sat, and nothing more.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly grim and ancie
nt Raven wandering from the Nightly shore
--
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!"
Quoth the Raven "Nevermore."
137
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning
--
little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door --
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as "Nevermore."
Bu
t the Raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered
--
not a feather then he fluttered
--
Till I scarcely more than muttered "Other friends have flown
before
--
On the morrow
he
will leave me, as my hopes have flown before."
Then the bird said "Nevermore."
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
"Doubtless," said I, "what it utters is its only stock and store
Caught fr
om some unhappy master whom unmerciful Disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore
--
Till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of 'Never --
nevermore'."
But the Raven still beguiling my sad fancy
into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore
--
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt and
ominous bird of yore
Meant in croaking "Nevermore."
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On th
e cushion's velvet lining that the lamp
-
light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp
-
light gloating o'er,
She
shall press, ah, nevermore!
Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Sera
phim whose foot
-
falls tinkled on the tufted floor.
"Wretch," I cried, "thy God hath lent thee
--
by these angels he hath sent thee
Respite
--
respite and nepenthe, from thy memories of Lenore;
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Leno
re!"
Quoth the Raven "Nevermore."
"Prophet!" said I, "thing of evil!
--
prophet still, if bird or devil!
--
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted --
On t
his home by Horror haunted
--
tell me truly, I implore
--
Is there
--
is there balm in Gilead?
--
tell me
--
tell me, I implore!"
Quoth the Raven "Nevermore."
"Prophet!" said I, "thing of evil
--
prophet still, if bird or devil!
By that Hea
ven that bends above us --
by that God we both adore
--
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore
--
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore."
Quoth the Raven "Nevermore."
"Be that word our sign in parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting
--
"Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
138
Leave my l
oneliness unbroken!
--
quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!"
Quoth the Raven "Nevermore."
And the Raven, never flitting, still is sitting,
still
is sitting
On the pallid bust of P
allas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp
-
light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall
be lifted
--
nevermore!
(
http://www.eapoe.org/WORKS/poems/ravenw.htm
, acesso em 22/10/2006)
O Corvo
F
oi uma vez: eu refletia, à meia
-
noite erma e sombria,
a ler doutrinas de outro tempo em cur
iosíssimos manuais,
e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
"É alguém
-
fiquei a murmurar
-
que bate à porta, devagar;
sim, é só isso e nada mais."
Ah! claramente eu o relembro! Era
no gélido dezembro
e o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
-
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
e n
ome aqui já não tem mais.
A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
arrepiando
-
me e evocando ignotos medos sepulcrais.
De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia
e a sossegá
-
lo eu repetia: "É um visitante e pede abrigo.
Chegando tarde, al
gum amigo está a bater e pede abrigo.
É apenas isso e nada mais."
Ergui
-
me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
"Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
que eu mal po
dia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
assim de leve, em hora morta." Escancarei então a porta:
-
escuridão e nada mais.
Sondei a noite erma e tranqüila, olhei
-
a fundo, a perquiri
-
la
sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecid
o de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: "Lenora!"
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: "Lenora!"
Depois, silêncio e nada mais.
Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de rep
ente,
mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
"É na janela"
-
penso então.
-
"Por que agitar
-
me de aflição?
Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
É o vento só e nad
a mais."
139
Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
-
é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,
adeja e pousa sobre o busto
-
uma escultura de Minerva,
bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
empoleirado e nada mais.
Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair
-
me de meus ais.
"Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular"
-
então lhe dig
o
-
"não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."
Maravilhou
-
me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir
-
me em t
ermos tais;
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
e que se chame Nunca mais.
Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
Murmuro, então, vendo
-
a serena e sem mover uma só pena,
enquanto a mágoa me envenena: "Amigos... sempre vão
-
se embora.
Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir
-
se embor
a."
E disse o Corvo: "Nunca mais."
Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
julgo: "É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
Soube
-
as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
e a quem, repleto de amargura, apenas
resta um ritornelo
de seu cantar; do morto anelo, um epitáfio:
-
o ritornelo
de Nunca, nunca, nunca mais."
Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais
e, mergulhado no coxim,
pus
-
me a inquirir (pois, para mim,
visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
grasnava sempre: "Nunca mais."
Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar
-
me fixamente,
eu me
abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
já não repousa, ah! nunca mais
...
O ar pareceu
-
me então mais denso e perfumado, qual se incenso
ali descessem a esparzir turibulários celestiais.
"Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te tá, mandando os anjos seus,
esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
Sorve o nepentes. Sorve
-
o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."
"Profeta! brado.
-
Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
de algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta
precita
140
mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize
-
mo, em verdade:
EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize
-
mo, em verdade!"
E o Corvo disse: "Nunca mais."
"Profeta! exclamo. Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse
Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"
"Seja is
so a nossa despedida!
-
ergo
-
me e grito, alma incendida.
-
Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
Deixa
-
me só neste ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
Retira a garra que me cor
ta o peito e vai
-
te dessa porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
e a l
uz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,
não há de erguer
-
se, ai! nunca mais!
141
Autorizo a reprodução deste trabalho.
São José do Rio Preto,
15
de
dezembro
de 2006
JOSÉ CARLOS AISSA
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