Assim como Durkheim (1973), Mauss postula a autonomia da sociologia como
ciência. No entanto, verificamos na obra de Mauss duas características que o
diferenciam: em primeiro lugar, a defesa da autonomia da disciplina é acompanhada de
uma defesa da necessidade de integração com disciplinas vizinhas, numa admissão das
limitações de cada uma delas para a compreensão da realidade humana. Em segundo
lugar, as representações coletivas estão assentadas e são inseparáveis, como vimos, do
“substrato material e concreto”, ou seja, “por trás do espírito, há o grupo”. Mauss
defende, desta forma, a inseparabilidade entre “fatos psíquicos” e “fatos materiais da
sociedade”.
O cerne do argumento do ensaio está na defesa de que a compreensão de
determinados fenômenos humanos escapa à jurisdição única de disciplinas isoladas:
Essa questão da independência relativa entre fatos de diversas ordens biológicas e
psicológicas e fatos sociais ainda não foi submetida à medida e a relação entre fatos
psíquicos e fatos materiais na sociedade permanece por descobrir. Assim, embora
digamos que essa parte essencial da sociologia que é a psicologia coletiva é uma parte
essencial, nós negamos que ela possa ser separada das outras, e não diremos que ela é
apenas psicologia. Pois essa psicologia coletiva ou “sociologia psicológica” é mais do
que isso (2003b: 322-323).
Ao proceder ao “estudo total, da consciência em bloco e em suas relações com o
corpo” (ibid: 326), estudo este dirigido “a uma espécie de biologia mental, uma espécie
de verdadeira psicofisiologia” e à “mentalidade do indivíduo como um todo”, a
psicologia teria chamado a atenção da sociologia, por meio de idéias como as de “vigor
mental”, “psicose”, “símbolo” e “instinto”, para os aspectos totais dos fenômenos. Já a
sociologia ao estudar fatos extraídos tanto da vida religiosa quanto da moral
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neles
encontra “como o social, o psicológico e o fisiológico se misturam”. Isto porque
na nossa ciência, em sociologia, nunca ou quase nunca encontramos, exceto em matéria
de literatura ou de ciência puras, o homem dividido em faculdades. Lidamos sempre
com seu corpo, com sua mentalidade por inteiro, dados de maneira simultânea e
imediata. No fundo, tudo aqui se mistura, corpo, alma, sociedade. Não são especiais
dessa ou daquela parte da mentalidade, são fatos de uma ordem muito complexa, a mais
complexa imaginável, que nos interessam. É o que chamo de fenômenos de totalidade,
dos quais participam não apenas o grupo, mas também, por ele, todas as
personalidades, todos os indivíduos em sua integridade moral, social, mental e,
sobretudo, corporal e material (ibid: 336; ênfases minhas).
Assim, as contribuições mútuas entre sociologia, psicologia e biologia são
fundamentais para a compreensão dos “fenômenos da totalidade”, que mobilizam o
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Como em fatos encontrados entre nativos da Polinésia e da Austrália, em que “os indivíduos que se
crêem em estado de pecado ou de enfeitiçamento deixam-se morrer e de fato morrem, sem lesão aparente;
às vezes em hora marcada e geralmente muito depressa” (ibid: 326). Conformam o objeto central de outro
artigo de Mauss, Idéia de morte, que analisaremos logo adiante.