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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO
PROGRAMA DE MESTRADO
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR
AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
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Florianópolis, SC
2007
PEDRO DE MENEZES NIEBUHR
AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
BRASILEIRA
Dissertação submetida à Universidade Federal
de Santa Catarina para a obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Sérgio
Cademartori.
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Florianópolis, SC
2007
RESUMO
A presente dissertação trata das parcerias público-privadas dentro da perspectiva
constitucional brasileira. Neste estudo busca-se examinar a adequação dos dispositivos
inovadores da Lei de Parcerias Público-Privadas ao contexto constitucional brasileiro. Para
tanto, investiga-se o panorama histórico do desenvolvimento das parcerias público-privadas, o
sistema normativo na qual elas são concebidas, assim como se destacam peculiaridades e
aspectos controvertidos desta nova disciplina jurídica para delegação de atividades
relacionadas à satisfação de interesses públicos. Através da aplicação do método dedutivo,
conclui-se pela refutação do discurso oficial para seu advento, elegendo a eficiência como a
justificativa que melhor se coaduna à Constituição da República. Confirma-se, ainda, a
existência de disposições controversas na Lei de Parcerias Público-Privadas, tais quais as
espécies de atividades que se pretendem delegadas por este sistema, os fundos garantidores,
algumas particularidades referentes à escolha dos contratados, o tratamento ambiental e a
possibilidade de utilização de arbitragem; disposições que, entretanto, analisadas e
interpretadas sob o prisma constitucional, podem adequar-se ao ordenamento jurídico vigente.
Palavras chave: Parcerias Público-Privadas. Delegação. Concessão. Serviços Públicos.
Administração Pública. Constituição.
ABSTRACT
The present thesis deals with the public-private partnerships within the Brazilian constitutional
perspective. This study seeks to examine the adequacy of the Public-Private Partnership Act
and its dynamics within the Brazilian constitutional context. To achieve this objective, it
investigates the historical conjuncture of public-private partnerships development and the
normative system in which they are conceived, as well as emphasis on the peculiarities and
controversial aspects of this new delegation system for public-interest related activities.
Through the application of the deductive method, the conclusion is the denial of the official
discourse for its creation, and the election of the efficiency as the justification that is the most
consistent with the Constitution of the Republic. This study also confirms the existence of
controversial provisions within the Public-Private Partnerships Act, such as the types of
activities planned to be delegated by this system, the guarantee funds, some particularities
related to the selection of the private partners, the treatment of the environment and the
possible use of arbitration; such rules, however, when analyzed and interpreted by the
constitutional perspective, might adjust themselves to the present juridical order.
Key-words: Public-Private Partnerships. Delegation. Concession. Public Services. Public
Administration. Constitution.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................
11
1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAL,
SOCIAL E NEOLIBERAL DE ESTADO ....................................................
16
1.1 Apresentação ..........................................................................................
16
1.2 A Administração na perspectiva liberal de Estado .............................
18
1.2.1 Locke, o direito da propriedade e as revoluções liberais ................
19
1.2.2 O Estado liberal ...............................................................................
22
1.3 A Administração dentro da perspectiva do Estado social ..................
26
1.3.1 Atividade interventiva na ordem econômica e social .....................
31
1.3.2 Exploração direta da atividade econômica ......................................
33
1.3.3 Serviços públicos ............................................................................
34
1.4 A Administração dentro da perspectiva neoliberal ............................
37
1.4.1 Friedrich Hayek e Estado mínimo ..................................................
37
1.4.2 Gestão da crise, ineficiência administrativa e pressão do mercado: a
solução desestatizante ..........................................................................
40
1.4.3 O modelo regulatório .....................................................................
46
2 ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E A ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA .....................................................................
49
2.1 Apresentação ..........................................................................................
49
2.2 Estado de Força e Estado de Polícia .....................................................
50
2.3 Estado de Direito ....................................................................................
51
2.3.1 Crise do Estado Legislativo de Direito ...........................................
54
2.4 Estado Constitucional de Direito ..........................................................
56
2.5 A Administração Pública no contexto constitucional brasileiro ........
61
2.5.1 Garantias relativas aos direitos dos administrados .........................
62
2.5.2 Competências administrativas .........................................................
63
2.5.3 Intervenção na ordem econômica e serviços públicos ....................
64
2.5.4 Garantia de direitos sociais .............................................................
65
2.5.5 Modo de execução das atividades de satisfação de interesses
públicos ....................................................................................................
66
2.5.6 Preceitos constitucionais administrativos .......................................
68
3 AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS .................................................
71
3.1 Apresentação ..........................................................................................
71
3.2 Notas introdutórias acerca das parcerias público-privadas ..............
72
3.2.1 Das concessões comuns às parcerias público-privadas....................
74
3.3 Aspectos destacados da Lei de Parcerias Público-Privadas ..............
78
3.3.1 Conceito operacional de parceria público-privada ..........................
78
3.3.2 A Repartição de Riscos ...................................................................
82
3.3.2.1 Espécies de riscos ...............................................................
83
3.3.2.2 Risco econômico .................................................................
85
3.3.2.3 Repartição objetiva de riscos ..............................................
88
3.3.3 Contraprestação pública ..................................................................
92
3.3.3.1 Prazo de duração do contrato ............................................
93
3.3.3.2 Remuneração ......................................................................
96
3.3.3.2.1 Vinculação ao desempenho ..................................
100
3.3.3.2.2 Compartilhamento de ganhos econômicos ..........
103
3.3.3.2.3 Limites à contraprestação pública ........................
105
3.3.3.3 Sistema de garantias ...........................................................
109
3.3.3.3.1 Os fundos garantidores ........................................
110
3.3.3.3.2 Contragarantia ......................................................
113
3.3.4 Sociedade de propósito específico .............................................
114
3.3.5 Licitação ..........................................................................................
115
3.3.5.1 Etapa preparatória .............................................................
116
3.3.5.2 Etapa externa ......................................................................
120
3.3.6 Arbitragem ......................................................................................
121
4. AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO CONTEXTO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO: ASPECTOS CONTROVERTIDOS
E A D E Q U A Ç Ã O A O S P R E S S U P O S T O S
CONSTITUCIONAIS ....................................................................................
124
4.1 Apresentação ..........................................................................................
124
4.2 Mapeamento dos discursos justificativos das parcerias e crítica ......
125
4.2.1 A justificativa embasada na incapacidade financeira ......................
126
4.2.2 A justificativa embasada no modelo regulatório .............................
132
4.2.2.1 Etapas regulatórias e regulação desordenada....................
134
4.3 Aspectos controvertidos e adequação da parceria público-privada aos
pressupostos constitucionais ................................................................
141
4.3.1 Espécies de atividades que admitem parcerias público-privadas ....
142
4.3.1.1 Objetos de contratos de acordo com as espécies de
parcerias público-privadas .............................................................
149
4.3.1.1.1 Espécies de atividades das concessões
patrocinadas ........................................................................
150
4.3.1.1.2 Espécies de atividades das concessões
administrativas ....................................................................
154
4.3.1.1.2.1 Concessão administrativa para atividades de
saneamento ambiental .........................................................
157
4.3.1.1.2.2 Concessão administrativa para atividades de
apoio ao poder de autoridade do Estado .............................
161
4.3.1.1.2.2 Concessão administrativa para serviços sociais
167
4.3.2 Fundos Garantidores .......................................................................
171
4.3.2.1 Descabimento de licitação para transferência dos bens
dominicais aos fundos garantidores ...............................................
176
4.3.2.2 Demais fontes de receita para integralização dos fundos...
178
4.3.3 Escolha isonômica dos contratados .................................................
180
4.3.3.1 Projeto Básico .....................................................................
181
4.3.3.2 Transferência do controle da sociedade à entidade
financiadora ....................................................................................
188
4.3.4 O tratamento ambiental ...................................................................
191
4.3.5 Solução de litígios ...........................................................................
196
4.3.5.1 Disponibilidade de direitos patrimoniais e indisponibilidade
do interesse público ...........................................
197
4.3.5.2 A solução consensual: pela boa-fé e economicidade ........
199
CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................
204
REFERÊNCIAS ..............................................................................................
209
INTRODUÇÃO
O Estado assegura a satisfação das necessidades dos homens em um dado momento histórico
através, em grande medida, do desenvolvimento e aperfeiçoamento de instituições jurídicas
concebidas para tal fim.
Entretanto, a concepção ou adoção de instrumentos jurídicos orientados para a satisfação de
interesses públicos não garante, por si só, êxito na solução integral das questões que se propõe
resolver. De fato, influem sobre as instituições jurídicas toda uma sorte de interesses e
variantes suficientes para obstar o alcance dos efeitos pretendidos.
Sob esse contexto, da necessidade do aprimoramento de institutos para a satisfação de
interesses públicos ao lado do reconhecimento de que sua mera concepção não é suficiente
para a solução das dificuldades e desafios postos, emana a importância que adquire o debate
acerca dos nascentes instrumentos jurídicos incorporados ao nosso sistema legal.
A discussão acerca dos propósitos de determinada disciplina e a confrontação de seus
eventuais aspectos controvertidos tem o objetivo de, mormente quando a investigação se
relaciona à tríade Estado-mercado-cidadão, evitar o tratamento promíscuo e irresponsável do
bem público.
Sob essa perspectiva, de fomento ao debate acerca dos novos regimes jurídicos incidentes
sobre a relação da esfera pública com a esfera privada é que se funda o presente estudo, cujo
objeto é, como o próprio título sugere, a parceria público-privada. Em especial, visa-se
examinar as implicações que seu advento importa às esferas envolvidas, e, especialmente,
analisar seu sentido e teor à luz da Constituição da República.
A preocupação acerca da investigação das parcerias público-privadas faz-se pertinente uma
vez terem sido apontadas, por seus defensores, como a principal ferramenta capaz de orientar
o Estado brasileiro à retomada do crescimento econômico e social. Entretanto, uma análise
detida, tal qual a que se pretende realizada nesta pesquisa, pode vir a revelar que por trás do
nobre discurso, está-se a aceitar, muitas vezes de modo acrítico, uma nova disciplina
contratual que envolve, diretamente, a satisfação de interesses públicos primários. Por gravitar
em torno de questão de tamanha importância, relacionada à consecução dos objetivos da
República, há, evidentemente, que se suscitar o debate acerca do conteúdo dessa nova
modalidade contratual, com vistas primordialmente a preservar-lhe o propósito que lhe é
peculiar.
A vigência e validez no ordenamento brasileiro desta nova espécie de contratação
administrativa que se dar em consonância aos pressupostos constitucionais prevalentes. Isto
porque o Estado Constitucional de Direito, re-inaugurado pela Constituição da República de
1988, por força de importantes disposições garantidoras de direitos fundamentais aos
integrantes da sociedade, atribui à Administração Pública papel de especial relevância na
proteção e promoção dos ditos direitos.
Resta saber, nesse contexto, e este é um dos objetivos da presente pesquisa, se as
soluções neoliberais para a diminuição do tamanho do Estado, em especial as que aperfeiçoam
as formas de delegação dos serviços e obras públicas tal qual a parceria público-privada,
harmonizam-se com o papel que a Constituição da República outorga à Administração Pública
nacional. E, diante dessa perspectiva, quais os pressupostos a serem atendidos pelas parcerias
público-privadas para que elas se conformem ao Estado Constitucional de Direito.
Não se trata, pois, de simplesmente criticar a disciplina da parceria público-privada por
ter sido concebida dentro de determinado modelo gerencial. Trata-se de admitir, assim como
qualquer outro instrumento jurídico, que a parceria público-privada de se coadunar com a
ordem jurídica posta, e, especialmente, dever obediência ao estatuto maior, à Constituição da
República.
O problema posto, então, reside em identificar se existem aspectos controvertidos na
Lei de Parcerias Público-Privadas, ou, em outros termos, se existem dispositivos
aparentemente incongruentes à ordem constitucional dentro desta Lei. Na constatação de sua
existência, cumpre então interpretá-los de forma a coaduná-los à Constituição da República,
aproveitando-os para servirem aos verdadeiros propósitos do Estado brasileiro.
Para alcançar os objetivos postos, a presente investigação fará uso do método dedutivo, por
meio da qual parte-se de uma premissa ampla, de que sobre toda ordem jurídica pairam
valores constitucionais, capazes de aferir a validade material de atos legislativos e executivos;
e de uma premissa menor, de que algumas particularidades e dispositivos da Lei de Parceria
Público-Privada possam ser interpretados em desconformidade à Constituição da República. A
partir dessas constatações, e após o exame e a elucidação de eventuais disposições
conflitantes, o estudo alcançará suas conclusões, seja pela antijuridicidade de determinadas
proposições ou por sua adequação através da observância concomitante de pressupostos
constitucionais. Para tanto, far-se-á uso, especialmente, de material bibliográfico.
Esta análise sistematiza-se, assim, em quatro capítulos, a saber: 1) a Administração Pública
nas perspectivas liberal, social e neoliberal de Estado; 2) Estado constitucional de Direito e a
Administração Pública; 3) as parcerias público-privadas; e 4) as parcerias público-privadas no
contexto constitucional brasileiro: aspectos controvertidos e adequação aos pressupostos
constitucionais.
A primeira etapa se presta a empreender um exame histórico, em que se busca contextualizar
o atual modelo gerencial de Estado e suas implicações. Partir-se-á, assim, da identificação das
atribuições da Administração Pública dentro da perspectiva liberal de Estado, amparando-se,
especialmente, nas lições de John Locke - no que toca ao primado da propriedade - e Adam
Smith de quem se extrai elementos caracterizadores da atividade estatal mínima.
A seguir, analisar-se-ão, de modo sintético, os fatores que conduziram à ruptura com o modelo
anterior, para efeito de se compreender em quais circunstâncias consagrou-se o ideário de
ampla intervenção estatal nas ordens econômica e social. Com amparo em John Maynard
Keynes, evidenciar-se-ão elementos importantes acerca da atividade interventiva do Estado e
os encargos assumidos por sua instância executiva, a Administração Pública.
Ao final da primeira etapa, pretende-se investigar a dimensão atribuída à Administração
Pública a partir do final do século XX, em que passou a ganhar prestígio as propostas de
retorno ao Estado mínimo, preconizadas algum tempo antes por Frederich Hayek. Neste
estágio, serão apresentados alguns desdobramentos contemporâneos desta nova realidade,
especialmente para efeito de demonstrar o contexto no qual as parcerias público-privadas
foram concebidas.
No segundo capítulo, em que se abordará o Estado constitucional de Direito e a
Administração Pública, estudar-se-ão os postulados nos quais se assentam o modelo normativo
ao qual grande maioria dos Estados nacionais se reportam: o Estado constitucional de Direito.
Para tanto, parte-se da identificação das características básicas dos predecessores deste modelo
para se desenhar a conjuntura de seu advento, hipótese em que se verificará a necessidade e a
importância que adquire a interpretação de dispositivos legais e medidas executivas à luz de
preceitos constitucionais.
Ao final da segunda etapa, identificar-se-á o tratamento constitucional atribuído à
Administração Pública nacional, arrolando as principais disposições que versam ou geram
efeitos sobre a matéria. A partir da compreensão dos termos em que a Constituição da
República se reporta à atividade administrativa estatal, o estudioso terá importante subsídio a
fim de aferir a conformidade das parcerias público-privadas à perspectiva constitucional
brasileira.
Entretanto, antes de investigar a constitucionalidade das disposições da Lei de Parceria
Público-Privada, far-se-á necessário um exame mais retido da nova legislação em virtude das
inovações contempladas frente ao sistema de concessões comuns. E este é o núcleo do terceiro
capítulo. Apontar-se-ão, de modo descritivo, as alterações desta nova disciplina contratual,
através, num primeiro momento, de notas introdutórias acerca das parcerias público-privadas.
Serão colacionadas, neste diapasão, informações referentes ao caminho transcorrido desde as
concessões comuns até a concepção das parcerias público-privadas, ressaltando, de modo
genérico, as questões que se pretendem contempladas por este novo instrumento.
A seguir, ainda no terceiro capítulo, serão suscitados aspectos destacados da Lei de Parcerias
Público-Privadas que as diferenciam, de modo substancial, do sistema de concessão comum
ou tradicional. Nesta oportunidade buscar-se-á compreender seu efetivo conceito jurídico, as
noções de repartição de riscos entre os parceiros e de contraprestação pública, as inovações
referentes às sociedades de propósito específico, à disciplina de licitação e à arbitragem.
Ter-se-á disponibilizado, até aí, o contexto na qual é concebida a parceria público-privada,
além de assinalado a necessidade de observância dos preceitos constitucionais proeminentes,
mormente a opção gerencial vigente em dado momento. Ditas constatações são capazes de
subsidiar um exame escorreito acerca do instituto da parceria público-privada, a ser
empreendido com vistas a seus aspectos destacados, na forma da pretendida no terceiro
capítulo.
Assim sendo, chegar-se-á ao quarto e último capítulo desta pesquisa, em que se almeja
confrontar as disposições controversas da Lei de Parcerias Público-Privadas ao panorama
constitucional brasileiro. De plano, nesta etapa examinar-se-ão em minúcias os discursos
justificativos para o advento das parcerias, de modo a desconstruí-los e, eventualmente, refutá-
los, tudo com o fim de possibilitar a utilização legítima e coerente deste instrumento
contratual.
A seguir, enfrentar-se-ão os aspectos controvertidos propriamente ditos, adequando-os da
melhor maneira, na medida do possível, aos pressupostos constitucionais. O primeiro ponto
merecedor de destaque, dentro da sistematização eleita pela pesquisa, são as espécies de
atividades que admitem parcerias público-privadas, inclusive, de acordo com suas
modalidades.
O quarto capítulo abrigará, ainda, anotações acerca dos fundos garantidores, partindo de sua
crítica operada por parte da doutrina. Admitindo-se sua importância dentro do sistema
concebido pela Lei de Parcerias Público-Privadas, propor-se-á a interpretação que melhor se
harmoniza à Constituição da República.
Ademais, a etapa final versará acerca de importantes disposições, como a disciplina referente
à escolha isonômica dos contratados, ao tratamento ambiental dos projetos de parcerias e a
questões referentes à possibilidade do emprego de modos consensuais para a solução de
litígios.
1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS PERSPECTIVAS LIBERAL, SOCIAL E
NEOLIBERAL DE ESTADO
1.1 Apresentação
A execução de atividades destinadas à satisfação de interesses públicos (como, por
exemplo, de manutenção da ordem interna, segurança externa, oferecimento de infra-estrutura
e comodidades, e administração do patrimônio público, dentre outras)
1
pressupõe a existência
de uma estrutura dotada de mínima coordenação e de prerrogativas para sua gestão. Com o
advento da modernidade, dita estrutura torna-se especializada, ganha sistematização e
racionalidade para a consecução das tarefas de execução das diretrizes governativas e gestão
do espaço público, adquirindo a feição do que hoje se entende como Administração Pública
2
.
O Estado, a partir de sua concepção moderna, consubstanciado na estrutura
governativa fruto das revoluções liberais-burguesas do fim do século XVIII, absorveu, ao
longo do processo histórico, orientações de matrizes sócio-econômicas que repercutiram, e
ainda o fazem, significativamente na tarefa gerencial. Seu papel no tocante à função executiva,
1
Ditas tarefas são observáveis pelo menos desde a Antiguidade: “The historical base of public administration
probably rests on the administration that was practiced on a large scale in ancient Egypt as early as 1300 B.C. It
was necessary then, as now, to arrange and plan programs, to procure materials and personnel, to supervise and
coordinate decentralized programs, and to carry out the policies that had been decided by those in authoritative
governing positions.” (BUECHNER; KOPROWSKI, 1976, p. 2).
“No que concerne aos processos administrativos do governo, a sistematização da teoria e da prática não é um
desenvolvimento recente, como supõem alguns. Desde priscas eras da história da humanidade, reconheceu-se a
importância de ordenar racionalmente as atividades governamentais desse tipo.” (AMATO, 1971, p. 47).
2
“O movimento teve como fundo histórico o apogeu da administração pública na Prússia, no século XVIII. e
então, em um regime de militarismo e centralização, floresceu também a eficiência administrativa,
caracterizando-se pelo melhoramento considerável da capacidade e honestidade dos funcionários públicos; a
sistematização das funções e as demais condições de trabalho; a regulamentação dos métodos para selecionar os
funcionários, incluindo requisitos de educação especializada e exames; e a profissionalização do serviço público,
que se manifestou por meio do estabelecimento de cursos universitários sobre cameralismo, é dizer administração
e economia com base na educação geral.” (AMATO, 1971. p. 49).
entendida como competências, deveres e prerrogativas de atuação da máquina administrativa
3
,
no desenrolar das décadas, sob o aspecto da incorporação de postulados econômicos e de
natureza social, oscilou para, num primeiro momento, deslocar-se da ingerência mínima na
sociedade, marcado por um caráter de atuação flagrantemente negativo, para a assunção de
deveres sociais substanciais, o que passou a exigir atuação positiva. Num segundo momento, a
atuação administrativa foi encarada como excedente, razão pela qual ganharam espaço, em
praticamente todo o mundo, as alternativas que pregam o retorno a um Estado mínimo.
Para uma análise escorreita dos modelos socioeconômicos que acabaram por orientar a
atividade administrativa da contemporaneidade, por mais sintética que se pretenda, convém
contextualizar a origem do que se concebe por aparelho estatal moderno, e apontar traços da
Administração desta época. Após, investigar-se-á a função assumida pelo Estado em cada
etapa mencionada, para efeito de desenhar o contexto no qual as parcerias público-privadas
são concebidas.
Por culpa, em grande parte, da insuficiência do modelo feudal para a regulação das
nascentes operações comerciais, industriais e de circulação de riquezas, além da
insustentabilidade política das pequenas unidades autônomas na manutenção da ordem interna
e externa, a partir do fim da Idade Média observa-se a formação dos grandes Estados
nacionais, comumente sob o regime de governo monárquico-absolutista (CAMPOS, 1998, p.
109).
O complexo processo que culminou com esse novo modelo de organização política,
concentrador de poder, teve como traço marcante a atuação de duas forças preponderantes: de
um lado a burguesia, buscando superar as dificuldades que o fracionamento feudal e a religião
impunham ao desenvolvimento das atividades comerciais e financeiras e, de outro lado, os
monarcas, que, absorvendo os poderes locais, fortaleciam-se politicamente para não mais se
3
“Do ponto de vista da atividade, portanto, a noção de Administração Pública corresponde a uma gama bastante
ampla de ações que se reportam à coletividade estatal, compreendendo, de um lado, as atividades de Governo,
relacionadas com os poderes de decisão e de comando, e as de auxílio imediato ao exercício do Governo mesmo
e, de outra parte, os empreendimentos voltados para a consecução dos objetivos públicos, definidos por leis e por
atos de Governo, seja através de normas jurídicas precisas, concernentes às atividades econômicas e sociais; seja
por intermédio da intervenção no mundo real (trabalhos, serviços, etc.) ou de procedimentos técnico-materiais;
ou, finalmente, por meio do controle da realização de tais finalidades (com exceção dos controles de caráter
político e jurisdicional).” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000. p. 10).
submeterem às determinações da Igreja (CORVISIER, 1995, p. 95). Nesse contexto, burguesia
e reis aliaram-se para a formação das monarquias nacionais.
Ainda que, para efeito da análise da Administração Pública moderna, pouca atenção se
preste à atividade administrativa dessa época, historiadores apontam como traço comum às
prerrogativas do soberano, via de regra concentrador das tarefas executivas, legislativas e
jurisdicionais, a freqüente regulação da vida cotidiana dos súditos
4
, a organização da defesa, a
manutenção do aparato carcerário e judicial (conf. MOUSNIER, 1995, p. 186), a regulação de
atividades econômicas (CORVISIER, 1995. p. 117)
5
, da qual emergem como
significativamente importantes a navegação, a gerência do espaço público e o oferecimento de
comodidades e utilidades à população em abstrato - tais quais a manutenção das vias públicas
e saneamento, dentre outras - além do suprimento de eventuais carências imediatas, todas
medidas necessárias para conservar a estabilidade interna indispensável à manutenção do
poder.
.2 A Administração na perspectiva liberal de Estado
A concentração do poder nas mãos do soberano, ainda que tenha logrado êxito ao
impulsionar o desenvolvimento comercial e diminuir a influência da religião na vontade
executiva estatal, e também, de modo oblíquo, enfraquecer o controle que a ideologia cristã
4
Paulo Miceli lembra que na Inglaterra, por volta do séc. XVI, velhos e incapazes para o trabalho deveriam
solicitar licença até para poder mendigar (1994, p. 26).
5
“Era admitida a intervenção do soberano na vida econômica quando se tratava de lutar contra as privações, de
arbitrar os conflitos entre súditos e de fazer reinar os princípios cristãos”. (CORVISIER, 1995. p. 117).
“O rei procura dirigir toda a vida econômica e praticar uma política de nacionalismo econômico, chamada
mercantilista, realizando a autarcia econômica, aumentando a quantidade de metais preciosos, ‘nervo e força da
coisa pública’ (Chanceler Duprat, 1517), mediante leis suntuárias, para impedir as compras no estrangeiro, e leis
contra a saída de espécies monetárias, em lugar de direitos alfandegários, a incidir sobre os produtos importados,
que o rei não está preparado para receber.” (MOUSNIER, 1995, p. 188).
acabava impondo ao corpo social, revelou-se, tal qual lembra Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, contrária aos interesses da classe burguesa emergente (2005, p. 371). O poder
concentrado e ilimitado do soberano lhe conferia prerrogativas para rotineiramente atentar, de
modo arbitrário, contra a individualidade, dignidade e vida íntima dos súditos, chegando, por
vezes, inclusive, a comprometer-lhe a sobrevivência.
No âmbito econômico, como aponta Odete Medauar, o Estado:
[...] editava regras reguladoras de preços e padrões de mercadorias,
disciplinava o treinamento de aprendizes e controlava as inovações e a
concorrência, tudo com o objetivo de assegurar balança comercial positiva,
reforçar reservas de ouro do país e gerar riquezas “taxáveis”. (2003, p. 81).
A tributação, aliás, ganha especial relevância na atividade administrativa do período
absolutista. A taxação do comércio, da produção, da propriedade e da renda dos indivíduos,
dado o caráter patrimonialista deste modelo de Estado, guardava cunho arbitrário e, não raro,
feição confiscatória (CORVISIER, 1995, p. 96), sendo que a contrapartida em atividades de
atendimento de interesse público restava ao alvitre do governante. Medauar, com amparo em
Adolfo Merkl, resgata que “ao súdito, sem nenhuma intervenção de sua vontade, se lhe
impunha seu próprio bem, isto é, o que à autoridade parecesse como tal” (2003, p. 20).
Parte expressiva da oprimida massa popular, que ansiava pela liberdade
6
, aliou-se à
classe burguesa, cujos interesses foram sendo desagradados em razão desta ingerência
arbitrária na atividade privada do indivíduo.
1.2.1 Locke, o direito da propriedade e as revoluções liberais
6
Jean Delumeau aponta como fatores determinantes para as revoluções o temor de morrer de fome e o medo do
fisco (DELEMEAU, 1989, p. 170).
Paulo Miceli, a seu turno, destaca como determinantes para o descontentamento da massa popular a fome, os
surtos de doenças, o problema habitacional, dentre outros (MICELI, 1994, p. 6-10).
A proposta liberal de Estado, cujas raízes remontam às revoluções coloniais
americanas, culminando com a vitória burguesa na Revolução Francesa, parte, antes de mais
nada, de premissa diametralmente oposta à concentração de poder, típica do sistema
governativo encontrada nas monarquias absolutistas. O que se pretendia do Estado em sua
faceta liberal era desenhar uma estrutura de poder garantidora dos direitos de liberdade,
igualdade e propriedade dos indivíduos. Como destaca Medauar, o objetivo era que os
indivíduos, de meros súditos, passassem a ser considerados cidadãos (2003, p.80).
A liberdade se revelaria indispensável à livre circulação de riquezas, uma vez que o
postulado possibilitaria ao indivíduo fazer o que lhe conviesse para a consecução do fim que
julgasse importante, desde que não juridicamente defeso. Diferentemente do poder absoluto do
monarca, de cujo consentimento o indivíduo era dependente para muitos atos da vida
cotidiana, o poder central que executava leis agora advindas do próprio corpo social garantiria
liberdade ao sujeito para a exploração das atividades que julgasse convenientes, livrando-o,
sobretudo, da tributação de cunho confiscatório típica da atividade monárquico-absolutista.
A nova governança deveria, da mesma forma, erigir-se sob os pressupostos de
igualdade formal dos indivíduos. Se, no regime anterior, a origem do indivíduo servia como
justificativa para a adoção de atos discriminatórios, abusivos e injustos, agora, dentro do pacto
social constitutivo da sociedade, a igualdade era reconhecida como status natural dos
cidadãos, pelo menos no que concerne ao tratamento destes perante a lei. Não havendo
impedimentos apriorísticos, qualquer sujeito, em tese, e, de acordo com seu próprio esforço,
poderia acumular riqueza suficiente para alçar às camadas sociais antes restritas e fazer parte
do círculo de consumidores das utilidades postas à disposição no mercado
7
.
Conquanto se admita que a liberdade e a igualdade formem vigas mestras do
liberalismo, é imperioso sublinhar a importância que a garantia da propriedade privada
7
Para John Maynard Keynes: “É verdade que a maior parte da população trabalhava muito e vivia num baixo
nível de conforto, embora tivesse toda a aparência de estar razoavelmente feliz com a sua sorte. Contudo, todo
homem de capacidade ou caráter tinha possibilidade de ascender às classes médias ou superiores, para as quais a
vida oferecia, a baixo custo e com pouca perturbação, oportunidades, conforto e amenidades, fora das
possibilidades dos monarcas mais ricos e mais poderosos de outras épocas.” (SZMRECSÁNYI (org.), 1983, p.
44).
importaria ao alcance da independência individual. Nas reivindicações de limitação ao poder
do monarca para instituição de impostos, foram sendo sedimentadas as principais vitórias
burguesas que culminariam com a supremacia da lei sobre o monarca, a partir do que se
solidificariam valores que fundamentariam o sistema de governo representativo, da vontade
das maiorias.
A burguesia inglesa do séc. XVII e XVIII, após batalha histórica travada contra a
realeza, decretou limites aos abusos e às arbitrariedades do poder absoluto do rei, acabando
por submetê-lo à vontade pretensamente popular expressa pelas leis promulgadas pelo
Parlamento. Repartiram-se as funções que antes se encontravam concentradas na mão do
monarca, sobretudo a elaboração e a execução das leis.
John Locke
8
, em teoria exposta em seu Tratado Sobre Governo Civil, obra que
chancelou as conquistas da Revolução Gloriosa de um ano antes, em 1689, concebe o
fundamento do contrato social no direito de propriedade; categoria que seria o ponto de partida
da ideologia liberal que, aproximadamente um século mais tarde, permearia as revoluções
coloniais norte-americanas e a Revolução Francesa.
Na interpretação de Locke, que acabou por triunfar, todos seriam igualmente
soberanos; os homens, visando superar os inconvenientes do estado de natureza, formam uma
organização social e se submetem a um sistema de governo para a preservação de direitos
herdados no estado de natureza, em especial, o direito à propriedade. É a partir do direito
natural à propriedade que Locke faz sua contribuição ao Estado liberal, calcado na ingerência
mínima do poder executivo sobre o patrimônio do particular
9
.
O núcleo do pensamento lockeano de visão liberal consiste na apropriação e
transformação pelo homem, através do emprego de seu trabalho sobre o que a natureza lhe
ofereceu, daquilo que era comum a todos em objeto de sua propriedade. O contrato social a
8
Locke, criado em uma família da pequena burguesia inglesa, era filho de oficial das forças parlamentares que
derrotaram Carlos I na guerra civil, em 1649. Após o exílio na Holanda, por força de sua ligação ao Lord Cooper,
voltaria a Inglaterra com a ascensão de Guilherme de Orange ao trono inglês.
9
Vale lembrar que a categoria propriedade não se limita ao patrimônio material do indivíduo.
que os indivíduos aderem, justamente por pretender resguardar o direito natural da
propriedade, não confere ao governante direito patrimonial sobre os bens dos particulares
10
.
Ao contrário, atos unilaterais, abusivos e autoritários por parte daquele sobre o patrimônio
particular é ofensivo ao pacto, razão pela qual esse tipo de intervenção não encontra
respaldo
11
.
A teoria de Locke, como dito, alicerçaria os anseios libertários que as colônias norte-
americanas nutriam frente à coroa inglesa, potencializados especialmente pela excessiva carga
tributária devida pelos colonos à Inglaterra. Os americanos não se sentiam representados no
Parlamento inglês, razão pela qual, mesmo na condição de cidadãos ingleses, achavam-se
incapazes de fazer valer a prerrogativa de consentirem à fixação dos tributos (CROTHERS,
1964, p. 21-24). O ideal revolucionário estribava-se no entendimento de que o fruto do
trabalho do colono pertencia a si e não à distante coroa, o que era razão suficiente para afastar
sua pretensão de perceber tributos daqueles. As revoluções coloniais americanas seriam as
primeiras a marcharem em direção ao Estado liberal, calcado no individualismo, na ingerência
mínima do órgão administrativo sobre o patrimônio dos particulares e no livre mercado.
1.2.2 O Estado liberal
10
“Embora a terra e todos os seus frutos sejam propriedade comum a todos os homens, cada homem tem uma
propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho
de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire da
natureza no estado em que lho forneceu e no qual o deixou, mistura-se e superpõe-se ao próprio trabalho,
acrescentando-lhe algo que pertence ao homem e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do
estado comum em que a natureza o colocou, agregou-lhe com seu trabalho um valor que o exclui do direito
comum de outros homens. Uma vez que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro
homem tem direito ao que foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e também de boa qualidade em
comum para os demais.” (LOCKE, 2004, p. 38, grifo acrescido).
11
“O poder absoluto arbitrário ou o governo sem leis fixas estabelecidas não se harmonizam com os fins da
sociedade e do governo, por cujas vantagens os homens abandonam a liberdade do estado de natureza, se não
fosse para preservar-lhes a vida, a liberdade e a propriedade, e para garantir-lhes, com suas normas estabelecidas
de direito e de propriedade, a paz e a tranqüilidade.” (LOCKE, 2004. p. 101).
Neste novo modelo de Estado, tem-se uma efetiva vitória do indivíduo frente aos
interesses do monarca absoluto. Construiu-se toda uma ideologia, nesse sentido, para dar
suporte ao nascente modelo, cujos postulados guardavam cunho eminentemente individualista:
o sujeito, ao perseguir seus próprios interesses e não os de um governante absoluto, estaria, de
modo oblíquo, perseguindo os interesses da própria coletividade; o bem almejado pelo
indivíduo, consistente no aumento de seu padrão de vida, não era diferente do desejado pela
sociedade em conjunto. E era através da circulação de riqueza e não sua concentração nas
reservas do Estado ou do governante, diziam os liberais e defensores do livre mercado, que se
aumentaria o padrão de vida da coletividade.
Dito Estado liberal de cunho individualista nasceria calcado sob a proteção do
patrimônio individual - necessidade primordial do livre mercado - uma vez que, como
apontado, a política opressiva e tributária do modelo absolutista havia se revestido nos maiores
entraves à circulação de riqueza. A circulação de bens, assim como a livre oferta e a demanda
de produtos e serviços, deveria, pelo menos no território de determinado Estado-nação, sofrer
a menor restrição possível, ou restrição alguma, de quem quer que estivesse no comando
executivo, fosse o monarca, o parlamento ou o representante eleito.
O controle, o consentimento para exploração de atividade econômica, a insegurança
jurídica, a tributação excessiva, entre outras medidas absolutistas típicas, não se
harmonizavam com a necessidade do mercado em expansão. Como salientado, a burguesia
queria explorar cada vez mais, para produzir e vender em níveis cada vez mais elevados,
gerando aumento e circulação de riqueza. Qualquer espécie de regulação extravagante, no
sentido de ser superior à necessária para o mantimento da lógica de mercado, era dispensável e
abominável.
Consagrou-se, assim, a absolutização do princípio da livre iniciativa, consistente na
liberdade individual de empreender e na abstenção dos Poderes Públicos, no tocante a
intervenções limitativas (MEDAUAR, 2003, p. 81).
Sob esses pressupostos é que Adam Smith
12
, em Riqueza das Nações, ganha respaldo
ao defender a lógica liberal para a manutenção e o desenvolvimento da ordem comercial,
industrial e financeira, sedimentando seu raciocínio no embate à tributação excessiva e no
repúdio ao custeio das extravagâncias dos governantes, que pouco produziam, mas muito
apropriavam. Ainda que o referido autor tenha ganhado notoriedade defendendo o mercado
como organismo auto-regulável, foi quando passou a dissertar acerca da Renda do Soberano
ou da Comunidade que trouxe importantes elementos caracterizadores da atividade
administrativa dentro do raciocínio liberal, mesmo que sua análise buscasse investigar o
aspecto econômico do fenômeno administrativo, apontando a origem da despesa da atividade e
seu correspondente custeio.
Smith reconhecia que, na sociedade de seu tempo, a primeira tarefa do soberano
deveria consistir na defesa da sociedade da violência e da invasão de outras sociedades
independentes (2001. p. 359), atividade que, dada a complexidade da época e o material bélico
posto à disposição da força militar, requereria a alocação de recursos cada vez mais vultosos
(2001. p. 372).
Para a repressão das condutas indesejadas, deveria o Estado, na sua função
governativa, contar, ainda, com um eficiente mecanismo de proteção, para qualquer membro
da sociedade, de injustiças ou opressão. Daí emana o segundo dever do soberano, que é
estabelecer uma exata administração da justiça (SMITH, 2001. p. 373), tarefa em que se insere
a manutenção da ordem interna através da atividade de polícia e repressão de condutas
criminosas.
Paradoxalmente, conquanto Smith reconheça a administração da justiça como dever do
soberano, ele assinala não parecer necessário que representantes do Poder Executivo fossem
encarregados de gerir o financiamento dele, uma vez que a separação das funções executivas e
judiciais visava o afastamento de qualquer espécie de dependência do judiciário em relação ao
executivo, que, na sociedade moderna, passou a figurar como parte das demandas.
12
Adam Smith nascido em 1723, na Escócia, era filho de fiscal de alfândega e de herdeira de grande propriedade
de terras. Graduou-se pela Universidade de Glasgow, e tornou-se pesquisador em Oxford. Foi conferencista
público e professor. Morreu em 1790.
A verdade é que, não obstante as funções fossem separadas e relativamente
independentes, o Estado, sim, detinha o monopólio da jurisdição e, independentemente da
gratuidade ou onerosidade da provocação do serviço judiciário, o gerenciamento financeiro da
Justiça era atividade estranha à prestação da tutela jurisdicional propriamente dita, razão pela
qual, dentro do modelo liberal, podia-se vislumbrar conveniente que a Administração fosse
incumbida do gerenciamento financeiro da Justiça pagamento de salário de juízes,
promotores, auxiliares etc.
O modelo liberal teorizado por Smith pressupunha ainda que a governança erigisse e
sustentasse instituições e obras públicas que, dada sua relevância, não poderiam ser custeadas
por um indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos (2001, p. 383) As instituições e as obras a
que se refere Smith não são tão-somente as indispensáveis à defesa da sociedade e as
indispensáveis à administração da Justiça, mas as necessárias à facilitação do comércio da
sociedade e as necessárias para promover a educação do povo. Para facilitação do comércio
em geral, a Administração deveria empreender um complexo de infra-estrutura mantendo
estradas, pontes, canais navegáveis e portos. No tocante à facilitação de ramos específicos do
comércio, e nesse ponto o autor faz remissão especialmente às atividades exercidas em nações
estrangeiras, as instituições e obras diziam respeito à implementação e manutenção de
estrutura para o desenvolvimento e a proteção do comércio no território alienígena, com
manutenção de corpo diplomático inclusive em países onde os propósitos políticos, à primeira
vista, não o requeressem. O governo haveria, por fim, de promover a instrução da sociedade,
administrando instituições para educação e instrução religiosa (2001. p. 383)
Mais que nas três esferas apontadas por Smith, a dizer, manutenção da segurança externa, da
justiça, e de instituições e obras públicas, a atividade administrativa dentro do modelo liberal
demandava, ainda, um complexo de atividades, tais quais a manutenção de serviço postal,
fiscal, de administração da moeda, dentre outras. Enfim, tratava-se de searas que necessitavam
de um certo grau de coordenação e sistematicidade, incompatíveis, pelo menos em parte, com
a lógica empresarial individualista.
Observa-se que dentro do modelo liberal, ainda que se admitisse a conveniência de
delegar ao corpo estatal a administração e manutenção de determinados serviços e obras, dada
a relevância da atividade ou sua incompatibilidade à lógica lucrativa, havia a constante
tendência de se desvincular a Administração do custeio das despesas oriundas dessa atividade
através de uma fonte geral de receitas, dado o propósito de ingerência mínima sobre o
patrimônio particular. Assim, se o serviço ou a obra pudessem ser singularmente usufruídos
por um particular ou grupo deles, sempre junto a estes é que se deveria buscar seu custeio. Em
tese e por raciocínio lógico, o indivíduo financeiramente incapaz de usufruir da utilidade,
comodidade ou do serviço, dele não participava ou fazia uso.
Enfim, Leonardo Valles Bento lembra que não se exigia da Administração a execução de
políticas econômicas ou sociais no sentido de assegurar resultados de eficiência ou de justiça
material, por se acreditar que isso representaria a utilização de um meio artificial para obter
resultados inscritos na ordem natural da vida econômica, portanto inócuo e, por vezes,
nocivo (2003, p 3).
1.3 A Administração dentro da perspectiva do Estado social
Do mesmo modo que o modelo liberal foi concebido dentro de um contexto histórico de
opressão e arbitrariedade do monarca-soberano para com o súdito, o modelo social de Estado
emerge em momento histórico permeado por peculiaridades protagonizadas por reivindicações
da massa trabalhadora e pelo livre-mercado.
A proeminência do mercado, que pressupunha livre concorrência, apropriação privada dos
meios de produção e exploração do trabalho assalariado, mostrou-se instrumento insuficiente
ao propósito de reafirmar a liberdade e a igualdade dos indivíduos. Verificou-se que a
asseguração formal da igualdade dos indivíduos não era bastante para imputar-lhes status
igualitário: mesmo atribuindo ao sujeito a faculdade de empregar sua força laborativa na
atividade que bem pretendesse, garantindo-lhe remuneração previamente estipulada e proteção
ao patrimônio construído, a sociedade viu-se imersa em ciclo contínuo de desigualdade, no
qual as diferenças tendiam mais a agravar-se que a desaparecer. Explica-se: a partir do
momento em que a esfera privada passou a ter amplo acesso aos meios de produção, a idéia de
auto-regulação do mercado mostrou-se ineficaz, na medida que este tendia à formação de
monopólios e à acumulação de riqueza pelos detentores do capital produtivo. Como a
participação na riqueza estava adstrita aos detentores dos meios de produção, parcela
majoritária da sociedade era excluída dos benefícios, das utilidades e dos serviços trazidos e
propiciados pelo modelo capitalista de exploração.
A mudança no paradigma da concepção de Estado - de seu papel - e no modo pelo qual se
passou a orientar a máquina administrativa, deu-se em razão especialmente do reconhecimento
da legitimidade das reivindicações oriundas de dois fatores históricos: da classe trabalhista no
fim do séc. XIX
13
, e da crise advinda com a recessão econômica da crise de 1929.
Em termos simplórios, o aumento da produção industrial foi acompanhado de situação de
grande exploração da classe trabalhadora. Como não existia satisfatória legislação trabalhista
ou fiscalização estatal, fábricas abrigavam grande contingente de pessoas (inclusive idosos e
crianças), impondo-lhes pesadas jornadas de trabalho, em locais insalubres e com freqüentes
acidentes de trabalho. O descontentamento da classe operária geraria sua organização em
sindicatos e a posterior eclosão de movimentos de reação e desenvolvimento de teorias
socialistas, que evidenciavam os aspectos negativos da ideologia liberal e a incapacidade desse
modelo, apoiado numa estrutura administrativa que assegurava tão-somente os interesses da
classe dominante, buscar qualquer ideal de justiça
14
. A Administração, encarregada sobretudo
da asseguração formal da igualdade dos indivíduos, não intervinha para alterar a realidade
13
De acordo com Bobbio, a questão social surgiria com a Revolução Industrial. Antes de 1900, a Inglaterra,
Alemanha, Dinamarca, Bélgica e Suíça desenvolviam mecanismos de intervenção na ordem social, trabalhista
e econômica (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000, p. 403).
14
Como assinala Sandro Subtil Silva “Por volta de meados do século XVIII, a economia conhecia um novo e
fascinante meio de produção de bens e riquezas e o mundo assistiu ao surgimento da classe operária, mão-de-obra
geralmente mal paga e quase sempre explorada, com intermináveis jornadas de trabalho e um mínimo de
proteção à saúde e à segurança, o que atingia sobretudo mulheres e crianças. Não foi necessário muito tempo para
que a massa de trabalhadores se organizasse em sindicatos e associações de classe, encontrando eco em seus
anseios reais na doutrina marxista sobre a exploração do homem pelo homem, fruto direto da propriedade privada
e da exploração gerada pelo capitalismo.” (2004, p. 118).
fática, de completa submissão. Por tal motivo, a atividade administrativa foi denunciada como
cúmplice de um modelo político que impedia que o indivíduo comum participasse dos
benefícios trazidos pelo livre mercado ou até mesmo provesse sua subsistência de modo digno.
Era a tese defendida por Karl Marx e Friederich Engels, para quem “um governo moderno é
tão-somente um comitê que administra os negócios comuns de toda a classe
burguesa” (ENGELS; MARX, 2001, p. 27).
De tudo se extrai que, num primeiro momento, aquele modelo governativo,
sedimentado sobre o modo de livre exploração econômica, haveria de fazer concessões à
massa trabalhadora, em especial no tocante a uma mais justa distribuição de riqueza, caso
pretendesse manter o sistema capitalista de exploração e produção sustentado pelo Estado.
As pretensões oriundas dessa espécie de demanda social acabaram sendo reconhecidas como
direitos devidos, em sentido oposto às liberdades as quais o Estado haveria de assegurar
através de comportamentos omissivos
15
. Agora, dada a natureza dos direitos em questão, uma
postura negativa, por parte do poder central, em nada contribuiria para a consecução dos fins
almejados com seu reconhecimento a natureza da lógica de mercado militava, na verdade,
em direção oposta à concessão de benefícios e garantias aos trabalhadores. Por não bastar que
a ordem jurídica apenas os reconhecessem, ao Estado caberia sua promoção concreta, através
de medidas positivas
16
. Assim sendo, inaugurou-se o que se passou a chamar de Estado social
por intermédio do reconhecimento e da incorporação de reivindicações da classe trabalhadora
na forma de direitos e garantias às ordens constitucionais do México e da República de
Weimar, em 1917 e 1919, respectivamente (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 43). Através
de uma gama de enunciados programáticos, ditas Constituições impuseram à governança
diretrizes de ordem social destinadas à proteção da classe trabalhadora e o desenvolvimento de
15
“Os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades burguesas: liberdade pessoal, política
e econômica. Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário, os direitos sociais representam
direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social.” (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2000, p. 401).
16
Medauar chama de direitos-exigência (2003, p. 87).
políticas distributivas, ainda que desprovidas da efetividade necessária à implementação e ao
controle das políticas e programas. A perspectiva mudaria, contudo, após a crise de 1929.
Após a primeira grande guerra mundial, ao lado da devastação das nações onde efetivamente
se travaram os combates bélicos, as economias financiadoras do conflito experimentaram o
que se chamou de insuficiência crônica de demanda. Apesar de nessas nações haver capital
acumulado para produção, não havia o correspondente mercado consumidor para o seu
escoamento, o que gerou dispensa de mão-de-obra, desemprego maciço e mais subconsumo.
A partir da quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, que inauguraria a Grande Depressão e o
desemprego sem precedentes vividos nos anos subseqüentes
17
, seriam finalmente colocadas
em prática soluções intervencionistas concretas, teoria cujo principal expoente era o
economista John Maynard Keynes
18
; medidas postas à prova através da política do New Deal,
implementada por Franklin Roosevelt nos Estados Unidos da América (DILLARD, 1993, p.
116)
19
.
Keynes apoiou sua obra no estudo das determinantes do emprego, concluindo que cumpria ao
Estado, diante da dita insuficiência crônica de demanda, desempenhar papel de estimulador do
investimento, diretamente ou através da política fiscal e de crédito. Através de uma ampla e
contundente intervenção estatal na sociedade, principalmente na economia, garantiria-se renda
17
“Para aqueles que, por definição, não tinham controle ou acesso aos meios de produção (a menos que pudessem
voltar para uma família camponesa no interior), ou seja, os homens e mulheres contratados por salários, a
conseqüência básica da Depressão foi o desemprego em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo
do que qualquer um experimentara. No pior período da Depressão (1932-3), 22% a 23% da força de trabalho
britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa
e nada menos que 44% da alemã não tinha emprego.” (HOBSBAWM, 1995, p. 97).
18
John Maynard Keynes nasceu em 1883 na Inglaterra, filho de economista conceituado. Iniciou a carreira como
funcionário público, para mais tarde tornar-se professor da Universidade de Cambridge e editor do Economic
Journal. No período de guerra, foi encarregado de acompanhar a situação monetária dos EUA. Participou da
condução da economia britânica após a Segunda Guerra. Morreu em 1946. Confira-se SZMRECSÁNYI (org.),
1983.
19
“O melhor campo de provas para a tese de Keynes é a experiência dos Estados Unidos entre 1933 e 1945.
Durante a depressão do decênio de 1930, o Governo conservador da Grã-Bretanha de Keynes rechaçou a filosofia
do gasto, ao passo que o New Deal nos Estados Unidos adotava a filosofia geral de Keynes.” (DILLARD, 1993,
p. 116).
mínima e, por efeito reflexo, diminuiriam-se as desigualdades e as injustiças sociais
evidenciadas.
Como o representante de toda a nação, um governo nacional tem o dever de
proceder de maneira a aumentar a renda nacional. O indivíduo, como
representante de seus próprios interesses, é de se esperar que proceda de
maneira a aumentar sua renda individual. Como os custos e as rendas
individuais e sociais nem sempre se correspondem, o Governo pode
empreender ações que beneficiem ao conjunto da economia quando nenhum
indivíduo está em condições de o fazer. (DILLARD, 1993, p. 96).
Ainda que pudesse não ser a efetiva vontade da construção da teoria keynesiana, o amplo
investimento estatal defendido haveria de vir acompanhado de uma política de distribuição de
riquezas mais justa, a fim de assegurar mínimo poder de compra aos indivíduos para a
retomada do crescimento econômico. De nada adiantaria o empreendimento de grandes obras
públicas e a retomada da produção, se a população permanecesse impossibilitada de participar
do mercado consumidor. Nesta senda, e apoiado sobre as consagradas vitórias trabalhistas
no campo normativo, disseminou-se o entendimento de que não apenas como empresário, o
Estado, de mero garantidor da autonomia e da liberdade individuais, haveria de transformar-se
em ator central, responsável por implementar políticas públicas capazes de promover o
desenvolvimento social mais justo, ou perseguir ideais de justiça material, indo além da
garantia da igualdade meramente formal.
No Estado do Bem-Estar Social
20
, uma vez designado à Administração Pública o papel de
protagonista principal no estímulo e aquecimento da economia (através de investimentos
estatais maciços, do fomento à iniciativa privada, além do empreendimento direto de grandes
obras públicas), a consecução de seus novos deveres, de garantias sociais, far-se-ia por
intermédio da prestação de relevantes serviços e da execução de políticas de seguridade social.
E as novas funções assumidas pelo Estado alterariam, da mesma forma, a atividade
administrativa. Como leciona Medauar:
[entre a década de 30 e a década de 90] ampliaram-se também as atividades,
em virtude das mudanças havidas no modo de atuar do Estado; as inúmeras
20
“O Estado do bem-estar (Welfare state), ou Estado assistencial, pode ser definido, à primeira análise, como
Estado que garante ‘tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo
cidadão, não como caridade mas como direito político’ (H. L. Wilensky, 1975).” (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2000, p. 416)
funções assumidas pelo Estado da segunda metade do século XX realizam-
se principalmente pelos órgãos e entidades da Administração. À burocracia
guardiã segue-se a burocracia prestacional. As atividades tornam-se muito
variadas. Ocorre, assim, um enriquecimento das funções e crescente
tecnização das atividades, com exigência de recrutamento de pessoas
dotadas de conhecimentos especializados (2003, p. 128)
21
.
As tarefas e funções assumidas pela Administração que demandaram o recrutamento de
um corpo de funcionários especializados, assim como a disponibilização de estrutura material
adequada, são sintetizadas por Marcos Augusto Perez como:
(1) manutenção da segurança interna e externa, através de um contigente
profissional armado; (2) guarda e operação dos bens públicos; (3) execução
direta ou indireta dos serviços públicos, legal ou constitucionalmente
definidos, tais como saúde, educação, correios, telecomunicações, estradas
de ferro, portos, geração de energia elétrica, previdência social, entre outros;
(4) fomento ao desenvolvimento de atividades econômicas pela iniciativa
privada; (5) intervenção direta no domínio econômico através da atuação
como empresário; (6) controle da emissão de circulação de moeda, da
atividade financeira e fiscalização das bolsas de valores; (7) fiscalização da
produção e comercialização de bens que possam afetar a saúde pública e o
meio ambiente; (8) fiscalização do comércio externo; (9) intervenção na
propriedade privada para salvaguardar sua função social; (10) fiscalização
da competição industrial e comercial para evitar a formação de monopólios,
trustes e cartéis; (11) tributação. (PEREZ, 2004, p. 43).
Destacando-se as atividades desempenhadas pela Administração no Estado liberal,
correspondentes às atividades referentes aos itens (1), (2), (6) e (11), as demais tarefas e
funções assumidas, que visavam à superação da crise econômica e a propiciar aos indivíduos
padrões mínimos para fazerem valer os direitos individuais, se enquadram numa das seguintes:
1) intervenção positiva na economia e na esfera social, no sentido de regular, fomentar e
fiscalizar a atividade comercial, industrial, financeira; 2) exploração direta de uma série de
atividades econômicas consideradas estratégicas para o desenvolvimento da nação; além de, 3)
oferecimento de uma gama de serviços, comodidades e utilidades aos indivíduos, a fim de
garantir-lhes ganho em qualidade de vida.
De acordo com Marçal Justen Filho:
Ao longo do século XX, a ideologia do Estado de Bem-Estar significou a
assunção pelo Estado de funções de modelação da vida social. O Estado
21
Neste sentido acompanha Fritz Morstein Marx, para quem “a característica mais peculiar ao Estado assistencial
é a preeminência da administração pública. Ao passar de um papel relativamente passivo a outro crescentemente
ativo, o governo multiplica inevitavelmente seu dispositivo de ação.” (MARX, F. M., 1968. p. 123).
transformou-se em prestador de serviços e empresário. Invadiu searas antes
reputadas próprias da iniciativa privada, desbravou novos setores comerciais
e industriais, remodelou o mercado e comandou a renovação das estruturas
sociais e econômicas. (2002, p. 17).
Enfim, consagrar-se-ia a intervenção estatal na ordem econômica e social, a
exploração econômica direta e o desenvolvimento e prestação dos chamados serviços
públicos.
1.3.1 Atividade interventiva na ordem econômica e social
Keynes, em 1926, decretava o fim do laissez-faire. Ele advertia que, filósofos e
economistas liberais costumavam vender a idéia de que a empresa privada sem entraves
promoveria o maior bem para a sociedade toda, desconsiderando importantes aspectos e
implicações do livre mercado:
A beleza e a simplicidade dessa teoria são tão grandes que é fácil esquecer
que ela decorre não de fatos reais mas de uma hipótese incompleta
formulada para fins de simplificação. Além de outras objeções a serem
mencionadas mais adiante, a conclusão de que os indivíduos que agem de
maneira independente para seu próprio bem produzem maior volume de
riqueza, depende de uma série de pressupostos irreais, com relação à
inorganicidade dos processos de produção e consumo, à existência de
conhecimento prévio suficiente das suas condições e requisitos, cuja
existência de oportunidades adequadas para obter esse conhecimento prévio.
Isto se porque os economistas geralmente reservam para uma fase
posterior de sua discussão as complicações que surgem: 1) quando as
unidades de produção eficientes são grandes em relação às unidades de
consumo; 2) quando ocorrem custos indiretos e conjuntos; 3) quando as
economias internas tendem a concentração da produção; 4) quando o tempo
necessário para os ajustamentos é longo; 5) quando a ignorância supera o
conhecimento; 6) quando os monopólios e os cartéis interferem no equilíbrio
dos negócios. Em outras palavras, eles guardam para um estágio superior a
sua análise dos fatos reais. Além disso, muitos dos que reconhecem que as
hipóteses simplificadas não correspondem precisamente aos fatos concluem,
apesar disso, que elas representam o que é "natural" e, portanto, ideal: Eles
consideram saudáveis as hipóteses simplificadas, e doentias as demais
complicações. (SZMRECSÁNYI (org.), 1983, p. 117).
Diagnosticados os problemas, a solução encontrada para fazer frente às complicações
intrínsecas do livre mercado, em especial para atenuar efeitos nocivos da concentração da
produção e da formação de monopólios, entre outros, consistia na outorga de poderes ao
Estado, não através de sua função legislativa, mas primordialmente a sua instância
executiva para corrigir eventuais distorções através da execução de uma política regulatória
adequada, e da fiscalização da atividade privada, adequando-a ao interesse coletivo.
Para além de regular e fiscalizar a atividade privada, coadunando a atividade privada
ao interesse da coletividade, a partir de Keynes entende-se necessária, com vistas a eliminar as
mazelas da esfera econômica advindas da existência de risco, incerteza e ignorância, a criação
de instituição central encarregada do controle da moeda e do crédito, poupança e investimento
(SZMRECSÁNYI (org.), 1983, p. 117).
Insere-se na função de intervenção estatal na ordem econômica e social, o fomento, por
parte do poder público, de atividades econômicas no sentido de propiciar o surgimento de
novos agentes ou o aumento de sua capacidade produtiva, além de resguardar a manutenção
dessas atividades em tempos de crise. Em muitos casos, o beneficio social advindo da
possibilidade de aporte de capital para a expansão de condições materiais de produção, ou
manutenção da continuidade de determinadas atividades econômicas, equivaleria à
manutenção do caráter competitivo das empresas e a conseqüente conservação de postos de
trabalho, o que poderia, a princípio, compensar a alocação de recursos públicos.
No campo social, por sua vez, atribuiu-se ao Estado a tarefa de manutenção de
programas para socorro aos trabalhadores nos casos em que sua capacidade laborativa lhes
impedisse a participação no mercado de trabalho. Destacam-se a manutenção dos programas
de previdência social, para assegurar renda ao trabalhador na velhice ou invalidez; os
programas de auxílio desemprego, que destinavam recursos aos desempregados até que
fossem novamente incorporados ao mercado, dentre outros.
1.3.2 Exploração direta da atividade econômica
Mesmo antes dos conflitos bélicos do século XX, não era incomum a busca, por parte
da população, junto à Administração local, regional ou nacional, da complementação de
eventuais carências, por parte do mercado, no oferecimento de determinados serviços. Para dar
cabo a essas novas incumbências, freqüentemente, os governos lançavam mão da criação de
estruturas ou corporações estatais incumbidas da gestão dessas atividades, de modo a
preencher a lacuna deixada pela iniciativa privada
22
.
A tendência estatizante ganharia especial relevância a partir da devastação identificada
no período pós-guerra, especialmente na Europa, onde se disseminou a conveniência de os
governos assumirem para si a exploração direta de determinadas atividades econômicas de
especial relevância para o crescimento da economia nacional. Nesse contexto, a França, por
exemplo, “nacionalizou segmentos importantes de sua economia: carvão, gás, eletricidade,
bancos e seguros, navegação marítima e transporte aéreo, e as fábricas de automóveis
Renault” (DIAMANT, 1967, p. 205).
Se, de um lado, a exploração desta espécie de atividade era conveniente para o
alicerçamento das demais atividades econômicas e para a retomada de índices de crescimento,
de outro, o Estado agora dispunha de fonte de receita de que não dispunha no modelo liberal -
que conhecia a receita originária decorrente da exploração do próprio espaço público e a
derivada do poder tributário. A atividade empresarial assumida pelo Estado, em que pese a
existência do risco típico das relações empresariais privadas, revestia-se muitas vezes de
importante fonte de recursos, necessária, inclusive, para fomentar as políticas distributivas
consolidadas na forma de direitos sociais a serem afirmativamente garantidos pelo Estado.
22
“Muitas comunidades urbanas, através do país, estabeleceram suas próprias emprêsas (sic) corporativas no
campo dos serviços municipais. Quando os residentes de uma comunidade local verificaram sua incapacidade
para obter satisfatórios serviços de água, eletricidade, gás ou de trânsito, a preços razoáveis, através de firmas
particulares, tomam freqüentemente o que lhes parece ser o segundo caminho lógico: usam seu govêrno (sic)
local para estabelecer e operar os serviços de que necessitam.” (MARX, F.M., 1968, p. 42).
1.3.3 Serviços públicos
Dentro da ótica da visão econômica liberal, que, como dito, influiu decisivamente na
atividade administrativa, a existência de desigualdades entre os indivíduos era tão natural a
ponto de, tanto no plano normativo quanto na fático, haver preocupação em garantir tão-
somente o necessário à subsistência dos trabalhadores - por subsistência, entenda-se o mínimo
necessário para o indivíduo continuar produzindo. Como visto, com a mudança da perspectiva
liberal para a social, reconhece-se o dever de garantia de um padrão de vida digno à
população, atribuindo-se ao Estado a titularidade da consecução dos serviços reputados
relevantes pelas diferentes ordens jurídicas para a consecução dos fins de interesse público,
uma vez reconhecido que, na atividade econômica privada, o comprometimento dos recursos
para essas finalidades era estranha à lógica de lucratividade. As atividades a que a lei atribuía
o status de serviço público não poderiam mais restar simplesmente relegadas à conveniência
da exploração privada. A Administração Pública não deveria somente fiscalizá-las, mas
assumir a prestação direta como pertinente às suas incumbências, pondo-as sob uma disciplina
peculiar, específica.
Keynes, por exemplo, sustentava que o Estado haveria de formular uma agenda no
sentido de delimitar seu campo de atuação, separar o tecnicamente social, e assumi-lo para si,
do tecnicamente individual. Em outras palavras, ao Estado cumpria não fazer aquilo que se
faz, mas prestar o serviço inexistente (SZMRECSÁNYI (org.), 1983, p. 117).
A consolidação da noção de serviços públicos remonta à França de 1927, com a
chamada Escola do Serviço Público, que tinha como um de seus expoentes Léon Duguit. Na
perspectiva de Duguit, os serviços públicos seriam atividades asseguradas, disciplinadas e
controladas pelos governantes para realizar a solidariedade social, que sem o emprego da
coerção estatal não seriam realizadas. O serviço público seria concebido, portanto, como o
limite e a razão de ser do poder governamental (MOREIRA NETO in WAGNER JÚNIOR
(org.), 2004, p. 212).
Os diferentes ordenamentos jurídicos passaram, de acordo com perspectivas fundadas
em tradições, culturas e costumes distintos, a consagrar, nos textos constitucionais ou
ordinários, as atribuições de seus governos no tocante aos serviços que o próprio corpo social,
através de seus representantes, entendia como devidos à coletividade. Nesta senda, passou-se a
conceber como serviço público, de modo geral, os relativos ao transporte, saúde, saneamento,
abastecimento de água, distribuição de energia elétrica, postal, educação, entre outros.
Além do ponto de vista socioeconômico, que havia legitimado a tendência estatizante da
primeira metade do século XX, outro importante aspecto influiria decisivamente no sucesso do
modelo intervencionista, desta vez de cunho geopolítico. Conseqüência da insegurança do
pós-guerra, a necessidade de afirmação política das nações umas sobre as outras acabou por
desenvolver, primeiramente na Inglaterra e na União Soviética, toda uma ideologia do poder
em que o respeito dos Estados e a impulsão de sentimentos nacionalistas indispensáveis para
sustentar a política pós-conflitos eram medidos e fomentados por meio do poderio bélico da
nação e da força econômica representada pela magnitude das empresas estatais
correspondentes, que davam suporte à indústria militar (MOREIRA NETO in WAGNER
JÚNIOR (org.), 2004, p. 213). A política intervencionista e estatizante dos Estados, por um
lado e por outro, ganhava tanto respaldo teórico, pela retomada dos índices de crescimento
econômico alcançados, como respaldo ideológico, incutindo dentro da esfera individual dos
sujeitos sentimentos de segurança e satisfação.
O Estado havia se tornado empresário e prestador de serviços, e à Administração cabia, por
conseqüência lógica, o gerenciamento de toda esta nova atividade. Para exercer o poder
regulamentar e fiscalizatório, explorar atividades econômicas relevantes e prestar serviços
essenciais e importantes de modo satisfatório, o governo haveria de dispor de uma vasta
estrutura física, além de quadro funcional especializado dotado de racionalidade própria,
estruturado sob um regime hierárquico para o cumprimento das diretrizes políticas
centralizadas, provenientes dos chefes do órgão executivo. Desenhava-se o agigantamento das
estruturas estatais.
Certo é que, como bem aponta Justen Filho, o indivíduo nunca viveu tão bem quanto no
advento e consolidação do Estado social. O padrão de vida da população em geral nunca
atingiu níveis tão altos, verificáveis através do aumento progressivo da expectativa de vida da
população (2002, p. 18). Garantiu-se acesso a tratamentos de saúde, programas de renda
mínima, auxílios em desemprego, políticas habitacionais, escolaridade de parcela significativa
da população, informação, enfim, necessidades e comodidades impensáveis à ampla maioria
quando da prevalência do Estado liberal e da Administração Pública mínima. Tal qual assinala
Hobsbawm:
Durante os anos 50, sobretudo nos países “desenvolvidos” cada vez mais
prósperos, muita gente sabia que os tempos tinham de fato melhorado,
especialmente se suas lembranças alcançavam os anos anteriores à Segunda
Guerra Mundial. Um primeiro-ministro conservador britânico disputou e
venceu uma eleição geral em 1959 com o slogan “Você nunca esteve tão
bem”, uma afirmação sem dúvida correta. Contudo, depois que passou o
grande boom, nos perturbados anos 70, à espera dos traumáticos 80, os
observadores sobretudo, para início de conversa, os economistas
começaram a perceber que o mundo, em particular o mundo do capitalismo
desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez uma
fase única. Buscaram nomes para descrevê-la: “os trinta anos gloriosos” dos
franceses (les trente glorieuses), a Era de Ouro de um quarto de século dos
anglo-americanos (Marglin & Schor, 1990) [...] (1995, p. 253).
No íntimo da população, a prosperidade deste período estava bastante vinculada à atividade
estatal, à política do pleno emprego, de proteção dos mercados internos, enfim, medidas
formuladas e direcionadas de dentro da estrutura governativa intervencionista. Mudar-se-ia a
perspectiva clássica de ingerência da economia sobre a política executiva, para a consecução
da satisfação coletiva através do planejamento econômico estatal. O deficit fiscal, a
ineficiência administrativa e a pressão do mercado por abertura em escala global abalariam as
estruturas do Estado do Bem-Estar, o que levaria a se remodelar o liberalismo clássico e
construir um novo modelo para a Administração.
1.4 A Administração dentro da perspectiva neoliberal
Não são poucos os fatores apontados por análises sociais, econômicas e políticas, que teriam
conduzido à crise do Estado do Bem-Estar social. Conquanto se admita que esta crise seja
fruto de uma conjuntura bastante complexa, destacam-se alguns aspectos que, de modo
decisivo, influíram na remodelação do papel do Estado e da atividade administrativa. Destarte,
cumpre assinalar que, se de um plano a atividade estatal revestida na política assistencialista
havia logrado êxito junto à classe média, o mesmo não se pode dizer em relação à população
pobre dos países em desenvolvimento, uma vez constatada sua exclusão dos benefícios
trazidos pela prestação dos serviços públicos, ou melhor, pela inexistência de políticas
verdadeiramente universais de habitação, saneamento, transporte, iluminação, saúde, dentre
outras. Verdade é que, ainda que tenha representado significativo avanço no que concerne a
maior valorização do trabalhador enquanto sujeito detentor de direitos, o Estado do Bem-Estar
social também se viu incapaz de pôr fim às desigualdades sociais do modo que inicialmente
propunha.
1.4.1 Friedrich Hayek e o Estado mínimo
Muito antes da referida crise de legitimação do Estado do Bem-Estar social ser
evidenciada, Friedrich August von Hayek
23
, em o Caminho da servidão, ainda em 1944,
tecia importantes críticas aos modelos coletivistas de Estado (socialismo, fascismo e nazismo)
23
Friedrich August von Hayek nasceu na Áustria, em 1889. Foi vencedor do Prêmio Nobel de Economia em
1974, pela sua defesa aos valores econômicos liberais, em um tempo em que a teoria keynesiana ainda era
detentora de grande prestígio. Sua teoria serviu de base para o desenvolvimento das perspectivas neoliberais para
a gestão das crises econômicas estatais do fim do século XX. Morreu em 1992.
24
, que, em contraposição à lógica liberal de sociedade, pretendiam, através primordialmente
do planejamento econômico, orientar a produção e o consumo. Hayek buscou advertir, em sua
obra, que mecanismos de planejamento central da economia e de intervenção estatal
conduziam à opressão e à ditadura, razão pela qual propugnava o abandono de técnicas
intervencionistas e o retorno a um Estado mínimo. Suas idéias acabaram se transformando em
elementos fundantes de um liberalismo econômico reformado, tendo como pressuposto a
liberdade em sentido amplo, direito cuja garantia deveria ser encarada como a própria razão de
ser do Estado.
O Caminho da Servidão foi concebido durante período peculiar, em que ganhavam
prestígio políticas intervencionistas de cunho econômico e social como soluções para a
superação do modelo liberal que, dada a escassa regulação, justamente por se propor
ingerência mínima do órgão estatal sobre o patrimônio e a liberdade dos indivíduos, teria
acabado por sustentar situação de verdadeira miséria, de exploração abusiva do trabalho,
inclusive infantil e feminino, inexistência de direitos trabalhistas, previdenciários e de
políticas assistenciais como um todo.
A primeira constatação que orienta a teoria de Hayek reside no fato de que o
liberalismo fortemente atacado pelos intervencionistas teria sido, contraditoriamente, o
responsável pelo progresso e pelas conquistas que, durante todo o século XIX, beneficiaram a
população de um modo geral. A ciência, por exemplo, livre das amarras do regime anterior,
teria viabilizado descobertas e inventos responsáveis pelo aumento no padrão de vida de todos
(HAYEK, 1977, p.16). E é claro que todo este desenvolvimento externaria mazelas no seio da
sociedade que antes eram ocultas, ainda que elas não fossem produtos próprios do liberalismo.
De acordo com Hayek, intelectuais coletivistas, pregando ruptura com o modelo liberal,
24
Hayek chama de coletivistas os “métodos que podem ser usados por uma grande variedade de fins”, dentre os
quais destacam-se a abolição da iniciativa privada e da propriedade dos meios de produção, criação de economia
planificada, e a substituição do empresário que visa lucro por órgão central de planejamento (1977, p. 32-33).
A divergência, destaca Hayek, de socialistas e coletivistas em sentido estrito, residiria então nos métodos
encontrados para a consecução dos mesmos fins. O que os planejadores exigem é um controle centralizado de
toda a atividade econômica de acordo com um plano único, que estabeleça a maneira pela qual os recursos sejam
dirigidos a determinadas finalidades (1977, p. 34).
descartavam as principais heranças daquele modelo (em especial a liberdade) em prol da
planificação econômica. Os olhos do povo, diz o autor, fixaram-se em novas reivindicações,
cuja rápida satisfação parecia obstada pelo apego aos velhos princípios. Não se tratou de
ampliar ou melhorar o mecanismo existente, mas de substituí-lo por outro (1977, p. 20).
Quando se trata, especificamente, da atividade estatal, Hayek esclarece que o
liberalismo não é contrário ao emprego de meios para coordenar os esforços humanos. Apenas
propugna que o meio mais eficaz para fazê-lo é através da livre concorrência, justamente por
oferecer aos indivíduos a oportunidade de decidir se as perspectivas de determinada atividade
são suficientes para compensar as desvantagens e riscos que a acompanham (1977, p. 35).
Afirma mais, e nisto se distancia da doutrina clássica, que a proibição de substâncias
tóxicas, a exigência de precauções especiais para sua utilização, a limitação de horas de
trabalho ou o requerimento de certas disposições sanitárias são medidas perfeitamente
compatíveis com a manutenção da concorrência. O que se deve é ater para o fato de que se as
vantagens, no caso concreto, são maiores do que os custos sociais das mesmas medidas.
Ademais, a conservação da concorrência também não seria inconciliável com um amplo
sistema de serviços sociais, bastando que essas atividades não tornassem ineficiente a
concorrência em vastos setores da economia (HAYEK, 1977, p.36).
Nesse diapasão, a atividade estatal poderia ser desenvolvida, por exemplo, para
propiciar as condições em que a concorrência ganhasse eficiência, complementando-lhe a ação
quando ela não pudesse atuar, e prestando os serviços que, embora oferecessem maiores
vantagens para a sociedade, são de tal natureza que o lucro jamais compensaria os gastos de
qualquer indivíduo (HAYEK, 1977 p.37).
Enfim, através de contra-argumentos à planificação, o que Hayek constata é que a
criação de uma estrutura adequada ao funcionamento benéfico da concorrência estava longe de
ser completada quando os Estados começaram a substituí-la. Tratou-se, como dito, de
suplantá-la inteiramente, e não lhe complementar a ação (1977, p.38). Aí reside a essência da
retomada do liberalismo, desta vez de cunho “reformado” pelas particularidades a que se fez
alusão: a retomada do livre mercado, complementando-lhe as faltas e omissões em atividades
ou serviços estranhos à lógica lucrativa, mercadológica.
Na mesma medida em que as previsões de Hayek acerca do cerceamento da liberdade
dos indivíduos dentro das sociedades coletivistas iam, de certo modo, confirmando-se, seu
modelo de atividade estatal, calcado no retorno a uma perspectiva de atuação mínima, lograva
êxito na substituição da abordagem intervencionista quando esta apresentava sinais de
esgotamento.
A teoria de Hayek seria tomada como fundamento do retorno ao liberalismo, por
ganhar respaldo justamente junto aos grandes agentes econômicos, interessados na pouca
intervenção estatal, desregulação, e remessa das atividades exploradas pelo Estado ao setor
privado. Por efeito contínuo, países de capitalismo avançado e organismos internacionais,
defensores do livre mercado, passaram a subscrever, apoiar e a sistematizar uma série de
medidas para efeito de diminuir o tamanho do Estado, orientações praticamente unânimes
quando o mundo se deparou com a crise financeira generalizada do final do século XX. O
retorno ao Estado mínimo ganharia prestígio, desta feita, como medida necessária para o
equilíbrio financeiro dos Estados, além de garantir ganho de eficiência na prestação das
atividades de satisfação de interesses públicos e de viabilizar investimentos externos nas
economias nacionais, nos termos analisados a seguir.
1.4.2 Gestão da crise, ineficiência administrativa e pressão do mercado: a solução
desestatizante
Como enunciado, alguns fatores reforçaram a proposta de diminuição do tamanho do Estado
anunciada por Hayek, em especial, num primeiro momento, a constatação de que a certa altura
os Estados encontraram-se endividados
25
, num atoleiro financeiro representado por um deficit
crônico de contas
26
.
Fato comum tanto às potências quanto aos países periféricos, é que a manutenção de
toda máquina administrativa concebida e criada para a gestão das atividades inerentes ao
Estado social (exploração direta de atividades econômicas, materialização dos mecanismos de
intervenção na ordem econômica e social, e prestação dos serviços públicos, além das
atividades admitidas no Estado liberal, consistentes nas atividades de polícia, de Justiça e de
manutenção e empreendimento de obras públicas), demandava a disposição de vultosa receita.
Em especial, pesou muito às contas públicas o financiamento, por parte dos Estados, das
políticas de assistência social e de previdência.
Para cobrir os gastos necessários para a manutenção de toda esta atividade, a
Administração tinha como principal fonte de receita os tributos cobrados dos setores
produtivos e da própria população, direta ou indiretamente. Ocorre que, apesar de estar
exercendo seus poderes fiscais no limite do tolerável
27
, ainda assim as despesas superavam
constantemente as receitas, realidade observada em praticamente todo o mundo. Os Estados se
encontraram engessados, incapazes de, pelo menos financeiramente, executar de modo
satisfatório as atividades a que originalmente se propunham. Como lembra Justen Filho:
A crise fiscal significou não apenas a suspensão de novos e ambiciosos
projetos relacionados ao bem comum como também a limitações muito mais
imediatas. Não mais existiam recursos para manter as conquistas anteriores,
os serviços consolidados, as indústrias vitoriosas. Instaurou-se situação de
deterioração dos serviços e estruturas sociais. (2002, p. 19).
25
“Só uma generalização era bastante segura: desde 1970, quase todos os países dessa região haviam mergulhado
profundamente em dívida. Em 1990, iam dos três gigantes da dívida internacional (60 bilhões a 110 bilhões de
dólares) Brasil, México e Argentina -, passando pelos outros 28 que deviam mais de 10 bilhões cada, até as
arraias-muídas que deviam 1 ou 2 bilhões.” (HOBSBAWM, 1995, p. 411).
26
“As despesas públicas não conseguem prover, devido à diferença crescente entre as saídas necessárias e as
entradas insuficientes, à distribuição de recursos que satisfaçam as aspirações de uma área cada vez mais vasta de
indivíduos, cuja reprodução social pode ser esperada da expansão das despesas sociais por parte do
Estado.” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000, p. 405).
27
O aumento da carga tributária é encarado pelos neoliberais como medida nociva, por diminuir a capacidade de
poupança do setor privado e, conseqüentemente, a disponibilidade de recursos para investimento.
Tratou-se, então, de sistematizar um conjunto de medidas e mecanismos para efeito de
formular uma agenda desestatizadora
28
, modelo que pudesse ser aplicado tanto a países
capitalistas desenvolvidos como aos em desenvolvimento. Os países desenvolvidos lançaram
mão da desestatização, especialmente, pela desnecessidade da manutenção de um Estado
hipertrofiado, uma vez se ter conseguido assegurar um padrão de vida digno a seus
cidadãos. As nações em desenvolvimento, por sua vez, aderiram à agenda desestatizadora para
se coadunarem às exigências de entidades financeiras internacionais e mostrarem-se
economicamente viáveis ao investimento externo, já que ainda haviam de equilibrar suas
contas e abater as dívidas contraídas no período do Bem-Estar.
Bento lembra que a solução apontada pelo Consenso de Washington, que culpara o
intervencionismo estatal pela crise econômica do final de século, consistia na redução do
Estado ao mínimo estritamente necessário à manutenção da ordem e da segurança públicas; à
garantia da propriedade e dos contratos; à manutenção da concorrência; e a investimentos
básicos em infra-estrutura. O neoliberalismo pautava-se por um discurso de reforma do
aparelho estatal, que consistia, basicamente, em:
1) disciplina fiscal; 2) priorização de gasto público em áreas de alto retorno
econômico; 3) reforma tributária; 4) altas taxas de juros fixadas pelo
mercado; 5) liberação do câmbio; 6) abertura ao capital internacional; 7)
políticas comerciais liberais (não protecionistas); 8) privatização das
empresas estatais; 9) desregulação da economia, em especial das relações
trabalhistas; 10) proteção à propriedade privada (VILAS apud BENTO,
2003, p. 73).
A proposta neoliberal ganhou notoriedade não em função da aduzida incapacidade
financeira do Estado. O dogma da racionalidade burocrática pôr-se-ia em xeque. Nos serviços
postos à disposição pelo mercado de maneira alternativa ao prestado pelo Estado, ou nas
atividades exploradas em ambas esferas, observava-se a proeminência da esfera privada em
termos de eficiência. Esta, via de regra, revelava-se mais apta que a esfera estatal a incorporar
28
“A desestatização significa a existência de maior autonomia para a sociedade decidir seu próprio destino, com
menos presença do Estado. Com esse sentido, abrangeria a desregulamentação e a privatização. A
desregulamentação consiste na eliminação total ou parcial de normas incidentes sobre o mercado e as atividades
econômicas, levando à simplificação e desburocratização. Por sua vez, a privatização aparece num sentido mais
amplo para expressar o controle e participação mais efetivos da sociedade no processo produtivo, e em sentido
restrito, como transferência do poder acionário de empresas estatais no setor privado”. (MEDAUAR, 1999, p.
103).
as constantes inovações tecnológicas a seus métodos de gestão, o que revertia quase que
automaticamente em ganho de satisfação junto ao tomador do serviço. Toma-se como exemplo
a saúde. Enquanto que o serviço prestado pelo Estado contava, geralmente, com instalações
precárias, equipamento obsoleto e defasado, no serviço prestado pela iniciativa privada, o
usuário fazia uso de instalações novas e equipamentos de última geração. Ademais, no serviço
oferecido pelo Estado, até pelo caráter de gratuidade e modicidade que revestia sua
contraprestação, a demanda era usualmente maior que a do sistema privado, o que importava
em correspondente aumento na morosidade do atendimento, razão pela qual se alimentava o
sentimento de ineficiência da atuação estatal.
A idéia de diminuição da máquina estatal ou remessa à iniciativa privada de atividades que
pudessem ser orientadas pela lógica do lucro, desde que compatível com o atendimento ao
interesse público, ganhou forte impulso. Os procedimentos administrativos tradicionais,
calcados sob pressupostos de centralização, hierarquia e legalidade, dificultavam o emprego
de novas tecnologias no oferecimento de atividades para a satisfação de interesses públicos. As
transformações que o desenvolvimento tecnológico e industrial e a revolução da informação
trouxeram à sociedade contemporânea acabavam não sendo, como acontecia na esfera privada,
incorporadas pelas velhas estruturas administrativas, resistentes a mudanças ou simplesmente
impossibilitadas procedimentalmente de fazê-las.
O mercado, juntamente com a ineficiência estatal, contribuiu para essa nova concepção de
Administração Pública
29
. A economia mundial transporia, no fim do século XX, barreiras de
comunicação e transporte, globalizando-se. Grandes corporações passaram a produzir em
países periféricos, em troca de vantagens tributárias e ambientais. A logística e os baixos
custos possibilitaram que produtos fossem produzidos a milhares de quilômetros de distância
de sua comercialização. A dinâmica das relações comerciais multiplicou-se a ponto de, a partir
de um botão, transferirem-se somas equivalentes à riqueza do produto interno bruto de um
país em desenvolvimento para o outro lado do mundo. Toda a complexidade da relação
29
“Quando a economia transnacional estabeleceu seu domínio sobre o mundo, solapou uma grande instituição,
até 1945 praticamente universal: o Estado-nação territorial, pois um Estado assim não poderia controlar mais
que uma parte cada vez menor de seus assuntos”. (HOBSBAWM, 1995, p. 413).
econômica contemporânea passou a exigir a desregulamentação da economia no sentido de se
flexibilizarem exigências antes tidas como protecionistas, medidas que agora afugentariam
capital.
O desenvolvimento de um Estado não estava mais condicionado à atuação concreta das
empresas estatais na economia propriamente dita, mas, sim, na capacidade das nações de
atraírem para si investimentos das grandes corporações, e, com esta medida, assegurarem, por
via do mercado, emprego, salário e receita de tributos. Por pressão externa, ainda, muitos
Estados desfizeram-se de suas empresas estatais, na busca, pretensamente, além de cortar
gastos com a manutenção da estrutura e do corpo burocrático, de obter receita com sua venda
e com a arrecadação dos tributos. Alia-se a tudo o fato de o próprio modelo de resistência ao
capitalismo, o socialismo, ter sucumbido ao desmonte estatal, servindo como exemplo a
governos menos influentes ou maduros, quanto ao caminho a não se seguir
30
.
Enfim, para efeito de contornar a crise financeira, oferecer satisfatoriamente os
serviços públicos e criar condições favoráveis ao investimento de grandes corporações
externas, ganhou corpo a idéia de desestatização de parte substancial do aparato estatal,
calcada sob o princípio da subsidiariedade. De acordo com dito princípio, haveria de ser
remetida à iniciativa privada toda a atividade que pudesse ser desenvolvida segundo critérios
de racionalidade econômica privada, por meio, especialmente, da delegação de serviço e obras
públicas e da privatização. Ao Estado caberia continuar explorando as atividades que
exprimissem valores essenciais não apropriáveis por propósitos individualistas capazes de
comprometer seus núcleos essenciais, relativas à educação e seguridade social (JUSTEN
FILHO, 2002. p. 24), por exemplo, ou as que a lógica de exploração por lucro não tivesse
30
“O outro instrumento de ação internacional era igualmente, senão mais, protegido contra Estados-nações e
democracias. A autoridade dos organismos internacionais estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial,
sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial [...] Apoiados pela oligarquia dos grandes países
capitalistas, que, sob o vago rótulo de ‘Grupo dos Sete’, se tornaram cada vez mais institucionalizados a partir da
década de 1970, eles adquiriram crescente autoridade durante as Décadas de Crise, à medida que as
incontroláveis incertezas das trocas globais, a crise da dívida do Terceiro Mundo e, após 1989, o colapso das
economias do bloco soviético tornaram um número cada vez maior de países dependentes da disposição dos
países ricos em conceder-lhes empréstimos. Esses empréstimos eram cada vez mais condicionados à busca local
de políticas agradáveis às autoridades bancárias globais. O triunfo da ideologia neoliberal da década de 1980 na
verdade traduziu-se em políticas de privatização sistemática e capitalismo de livre mercado impostas a governos
demasiado falidos para resistir-lhes, fossem elas imediatamente relevantes para seus problemas econômicos ou
não (como na Rússia pós-soviética).” (HOBSBAWM, 1995, p. 420).
como atraentes, mas que, dado seu relevante interesse público, seria conveniente que
continuassem sendo prestadas pelo poder central
31
.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, uma das tendências apontadas em decorrência da
aplicação do princípio da subsidiariedade, consistente na idéia de reduzir o tamanho do
Estado, é a materialização de mecanismos de privatização, seja pela venda de ações de
empresas estatais ao setor privado, ou pelas várias formas de parcerias com a iniciativa
privada, em especial a concessão de serviço público, para, especialmente, as atividades em que
a rigidez do regime público torne-se desnecessária (como os serviços sociais, comerciais e
industriais do Estado) (1999, p. 27).
Por força do princípio da subsidiariedade, aponta Di Pietro, devem restar a cargo do
Estado as atividades que lhe são próprias ou indelegáveis ao particular como, por exemplo,
segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação, polícia - enquanto que devem ser
remetidas à iniciativa privada algumas atividades sociaiseducação, saúde, pesquisa, cultura,
assistência -, e as econômicas (industriais, comerciais, financeiras), sendo que nestas o Estados
age quando a atuação privada for deficiente, e auxiliando-a pela atividade de fomento (2005,
p. 35-38).
É neste contexto, de diminuição do aparato estatal e remessa à iniciativa privada de atividades
capazes de serem, pretensamente, prestadas de forma mais eficientemente pelos agentes de
mercado, que se desenvolve a parceira público-privada, tal qual se observará no terceiro
capítulo do presente estudo. Apenas para efeito introdutório, toma-se, ainda, a lição de Di
Pietro:
A parceria serve ao objetivo de diminuição do tamanho do aparelhamento
do Estado, na medida em que delega ao setor privado algumas atividades
que hoje são desempenhadas pela Administração, com a conseqüente
extinção ou diminuição dos órgãos públicos e entidades da administração
indireta, e diminuição do quadro de servidores; serve também ao objetivo de
fomento à iniciativa privada, quando seja deficiente, de modo a ajudá-la no
31
No entendimento de Jesús González Pérez, o príncipio da subsidiariedade quer dizer:
“a) La abstención de toda intervención de los entes públicos allí donde el libre juego de la iniciativa privada es
más que suficiente para satisfacer las necessidades públicas.
b) Que quando el libre juergo de la iniciativa no baste, se utilice aquella forma de intervención que, siendo
suficiente para realizar el fin perseguido, resulte menos gravosa para la libertad individual. En una palavra,
proporcionalidad entre medios y fines.” (GONZÁLEZ PÉREZ, 1971, p. 32).
desempenho de atividades de interesse público; e serve ao objetivo de
eficiência, porque introduz, ao lado da forma tradicional de atuação da
Administração Pública burocrática, outros procedimentos que, pelo menos
teoricamente (segundo os idealizadores da Reforma), seriam mais adequados
a esse fim de eficiência. (2005, p. 41, grifo no original).
De fato, o desenvolvimento e aperfeiçoamento de técnicas de remessa à iniciativa privada de
atividades antes consideradas intrínsecas à atividade estatal não esvaziaram por completo os
poderes do Estado, como poderiam pretender os neoliberais. Ao Estado coube uma nova
dimensão de atuação, pautada pela regulação da atividade privada para adequá-la à
consecução dos interesses públicos pretendidos.
1.4.3 O modelo regulatório
O Estado muda a perspectiva de fim, para ser concebido como meio, instrumento para o
atendimento de interesses públicos. Nesse sentido, para a série de serviços públicos e
intervenções na ordem econômica e social que ainda haveriam de ser empreendidas pelo
governo, diretamente ou através das figuras que lhe fizessem as vezes, a atividade
administrativa antes centralizada e hierárquica, agora delega autoridade aos administradores
públicos transformados em gerentes mais autônomos, organizando-se em poucos níveis
hierárquicos.
em relação às atividades passíveis de delegação à esfera privada, a desestatização não
poderia vir desacompanhada de instrumentos que possibilitassem um amplo controle da
sociedade sobre a atividade desenvolvida. Explica-se: não é porque determinado agente
privado passa a ser prestador de serviço público, que a atividade em si perde a natureza de
serviço público, ou escapa ao regime público. Com o fim de regular toda a atividade pública
agora delegada, o Estado muda da feição prestadora para a reguladora, concentrando-se na
tarefa de regular, fiscalizar e sancionar, sem praticar a gestão propriamente dita.
Como assinala Justen Filho, o objetivo da regulação é conjugar as vantagens
econômicas provenientes da capacidade empresarial privada com a realização de fins de
interesse público. Especialmente quando a atividade apresentar relevância coletiva, o Estado
determinará os fins a atingir, mesmo quando seja resguardada a autonomia privada no tocante
à seleção dos meios:
No modelo desenvolvido ao longo dos últimos trinta anos, a atuação e a
intervenção estatal diretas foram reduzidas sensivelmente. A contrapartida
da redução da intervenção estatal consiste no predomínio de funções
regulatórias. Postula-se que o Estado deveria não mais atuar como agente
econômico, mas sim como árbitro das atividades privadas. Não significa
negar a responsabilidade estatal pela promoção do bem-estar, mas alterar os
instrumentos para realização dessas tarefas. (2002, p. 21).
O modelo regulatório tem seu ápice com a criação e desenvolvimento das agências
reguladoras independentes. No caso brasileiro, as agências reguladoras são entidades da
Administração Pública indireta, com autonomia gerencial, funcional e financeira, dotadas de
capacidade técnica para efeito de regulamentar a atividade privada em atividades delegadas,
fixar metas, objetivos, intermediar conflitos, assim como exercer a fiscalização do
cumprimento da regulamentação, impondo as sanções cabíveis à conduta irregular. Para
Marcos Juruena Villela Souto:
São, pois, entidades que integram a Administração Pública indireta, criadas
por lei para o exercício da autoridade inerente à função de intervir na
liberdade privada por meio de ponderação entre interesses em tensão, tendo,
assim, personalidade de direito público, caracterizando-se como autarquia,
por exigir autonomia em relação ao poder central, da espécie de autarquia
especial, por ser dotada de independência, que se manifesta, principalmente,
pela atribuição de mandatos fixos a uma direção colegiada (2005b, p. 246).
Na percepção de Justen Filho, o advento das agências reguladoras independentes se
estriba na tentativa de superar o rompimento da linha lógica na produção normativa, causada
pela temporariedade dos mandatos dos representantes políticos (2002, p. 359). Com as
agências busca-se: a) a dinamização da produção normativa, tornando, em primeiro lugar,
célere o processo decisório pela redução do interregno necessário ao debate e à edição de
normas legislativas, assim como conferindo à decisão comprometimento com critérios
técnicos, por congregar, em seu corpo, pessoal especializado nos conhecimentos relacionados
aos temas de sua competência; b) a concentração de competências regulatórias, uma vez as
agências estruturarem-se em órgãos permanentes e estáveis, o que significa uma linha de
continuidade na produção regulatória; c) a ampliação do controle social sobre a atividade
regulatória do Estado, através de imposição de deveres de transparência e publicidade de suas
iniciativas, antes ofuscadas quando empreendidas pelo Legislativo e Executivo em face da
vasta quantidade de providências tomadas por aquelas esferas; d) a possibilidade de controle
jurisdicional sobre o mérito da decisão regulatória, que, antes restrita ao controle de
constitucionalidade do ato legislativo, passa a incidir sobre a congruência de fundamentos
tecnológicos ou científicos à decisão propriamente dita; e) a produção de credibilidade
política, consubstanciada na expectativa positiva sobre a sociedade decorrentes do
desempenho satisfatório, equilibrado, imparcial e eficiente de determinada agência; f)
produção de cooperação entre o Estado e a comunidade, fomentada pela continuidade de
políticas e pela previsibilidade da forma de atuação do Estado, o que induz à adoção de
condutas equivalentes pelos particulares; g) o fracionamento de poder e ampliação de
controles, já que são as agências núcleos de poder, reduzindo o poder centralizado e ampliando
instrumentos de acompanhamento e fiscalização de atividades estatais, através, inclusive, da
participação e do acesso dos interessados no processo decisório (JUSTEN FILHO, 2002, p.
360-369).
De qualquer forma, cumpre salientar que toda a contextualização empreendida nesta
etapa do presente estudo deve, entretanto, considerar que programas políticos podem, dado o
jogo democrático, orientar a tarefa administrativa a um gerenciamento de fundo ora neoliberal,
de diminuição da máquina administrativa, ou a orientações efetivamente intervencionistas,
optando-se, quiçá, pela prestação direta de variadas atividades. Todavia, com o advento do
Estado Constitucional de Direito, qualquer que seja a perspectiva governamental adotada
de pressupor, sob o plano normativo, o atendimento e observância de uma gama de valores,
princípios e diretrizes inafastáveis, que orientam toda a atividade administrativa. Daí a razão
de se analisar o papel atribuído à Administração Pública brasileira dentro do modelo
normativo constitucional, tarefa que se realizará na próxima etapa desta investigação.
2 ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
BRASILEIRA
2.1 Apresentação
A análise da constitucionalidade das parcerias público-privadas no caso brasileiro não
depende tão-somente da contextualização em que se enquadra o desenvolvimento deste novo
instrumento administrativo, como uma disciplina aperfeiçoada dentro da perspectiva de
diminuição do tamanho da estrutura estatal, preconizada pela proposta neoliberal.
Faz-se necessário reconhecer, entretanto, que qualquer modelo gerencial que venha a
orientar a tarefa administrativa deve, no plano normativo, obediência ao ordenamento jurídico
posto, razão pela qual urge verificar não só a fotografia atual de nosso modelo normativo, mas,
em especial, analisar o papel que é atribuído à Administração Pública em nosso sistema
constitucional contemporâneo. Ou seja, a percepção histórica ou mesmo filosófica do Estado e
da atividade administrativa dele deve harmonizar-se ao arcabouço constitucional vigente.
Admitir a preponderância da Constituição sobre práticas legislativas e executivas,
assim como conhecer o alcance e o sentido das disposições constitucionais referentes à
atividade executiva, é pressuposto necessário para, mais que revelar eventuais (in)
conformidades formais, investigar essencialmente a adequação do conteúdo material de atos
legislativos e normativos .
Isso posto, é objetivo do presente capítulo analisar o que efetivamente se concebe por
Estado Constitucional de Direito, tarefa que parte do reconhecimento da relevância da
evolução dos modelos jurídico-normativos observados desde a formação dos Estados
modernos até o momento presente. Após seguir pelas principais características e pressupostos
básicos do Estado Constitucional de Direito, tornar-se-á viável apontar o papel da instância
executiva do Estado - da Administração Pública - dentro desta complexidade. Ao final desta
etapa pretende-se, após uma sucinta análise dos deveres e das prerrogativas conferidas à
Administração Pública nacional pela Constituição da República Federativa do Brasil, verificar
sua situação dentro do contexto constitucional nacional, oportunidade em que o quadro para o
advento das parcerias público-privadas deverá ser delineado.
2.2 Estado de Força e Estado de Polícia
A partir da concepção do Estado como agrupamento ou estrutura encarregada do atendimento
de interesses públicos, é conveniente admitir-se que, historicamente, sempre tenha havido a
preocupação do cidadão comum de defender-se da atuação estatal manejada por poderes
abusivos ou desvirtuados. Tal qual leciona Sérgio Cademartori, amparado em Norberto
Bobbio, essa realidade tornou-se bastante evidente a partir do século XIX, conjuntura no qual
foram concebidos, instituídos e aperfeiçoados mecanismos para salvaguardar os interesses da
classe economicamente emergente frente às investidas dos governantes (2006, p. 3). Vale
lembrar que antes do desenvolvimento do modelo de Estado em que se institucionalizaram
mecanismos eficientes de controle de poder, que se convencionou chamar de Estado de
Direito, modelos normativos não menos importantes guardavam relações particularmente
interessantes à função executiva estatal.
Gustavo Zagrebelsky se encarrega de identificar como predecessores do Estado de Direito o
Estado de força e o Estado de polícia (1995, p. 21). Ditas formas de Estado, apesar de
distintas, tinham como características comuns o fato de ambas se desenvolverem num
momento histórico em que predominava o regime de governo monárquico-absolutista
32
. Neste
inexistiam, frente ao monarca, mecanismos institucionalizados e capazes de materializar um
real controle sobre o exercício do poder, justamente por, via de regra, concentrarem-se no
governante as três funções estatais tradicionais: a legislativa, a executiva e a judiciária.
Em que pese a equivalência do regime de governo, para Zagrebelsky o Estado de força se
refere ao Estado absoluto característico do século XVII, enquanto que o Estado de polícia
equivaleria ao regime do Despotismo Ilustrado, orientado para a felicidade dos súditos,
característico do século XVIII. Ainda que conceitualmente seja possível distinguir os referidos
modelos, Zagrebelsky adverte que, na realidade os mesmos admitem aproximação (1995, p.
21).
Salvo exceções pontuais, dada a equivalência dos regimes de governo, tanto no Estado de
força quanto no de polícia identificavam-se a desvinculação do soberano a mecanismos
institucionalizados de controle de seus atos, o que não raramente conduzia a intervenções
arbitrárias e abusivas do monarca sobre o patrimônio e a liberdade dos súditos. E é nesse
contexto que passou a se descontentar parte expressiva da população.
32
“De um ponto de vista descritivo, podemos partir da definição de Absolutismo como aquela forma de Governo
em que o detentor do poder exerce este último sem dependência ou controle dos outros poderes, superiores ou
inferiores” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2000, p.2).
Na medida em que os cidadãos passaram a se organizar e exigir o consentimento de
seus representantes para a elaboração das normas que orientariam a atividade administrativa,
em especial a tributária e a penal, é que o respeito à ordem jurídica positiva, à lei, passa a se
consolidar. Como aduzido no item 1.2.1, após batalha histórica travada contra a realeza para
decretar limites aos abusos e às arbitrariedades do poder absoluto do rei, a burguesia inglesa
dos séculos XVII e XVIII submeteu este aos ditames da lei. Dividiram-se, como dito naquela
oportunidade, funções que antes se encontravam concentradas na mão do monarca, sobretudo
a elaboração e a execução das leis.
2.3 Estado de Direito
Os poderes do Estado, que antes se achavam concentrados nas mãos do governante, após a
vitoriosa campanha burguesa foram repartidos de modo a submeter a ação de comando e
gerência do aparato estatal à vontade do povo, por intermédio de leis previamente concebidas.
Neste contexto, de subsunção da atividade administrativa ao ordenamento jurídico positivo, é
que, na esteira de Zagrebelsky, inaugura-se o Estado de Direito, indicador da eliminação da
arbitrariedade no âmbito da atividade estatal que afeta os cidadãos (1995, p. 21). Por
considerá-la a mais perfeita forma de expressão da vontade geral, a lei emerge como principal
ferramenta disposta pelo corpo social para pôr freios à ingerência do poder executivo. A lei,
expressão da racionalidade e concebida de acordo com pressupostos formais pré-
estabelecidos, que por si lhe conferiam validade, é dotada de generalidade e abstração
33
,
que prestigia o status igualitário e libertário pretendido.
33
Generalidade apresenta a norma conectada a todos os sujeitos do ordenamento; reduz o risco de expressão
injusta ou desenfreada do poder; Abstração supõe que a norma deva se referir a situações nas quais qualquer
pessoa possa se encontrar (CADEMARTORI, 2006, p. 11).
Zagrebelsky, referindo-se ao Estado liberal de direito, pondera
34
:
[...] Nesta nova forma de Estado característica do séc. XIX, o que se
destacava em primeiro plano era “a proteção e promoção do
desenvolvimento de todas as forças naturais da população, como objetivo da
vida dos indivíduos e da sociedade”. A sociedade, com suas próprias
exigências, e não a autoridade do Estado, começava a ser o ponto central
para a compreensão do Estado de Direito. E a lei, de ser expressão da
vontade do Estado capaz de impor-se incondicionalmente em nome de
interesses transcendentes próprios, começou a conceber-se como
instrumento de garantia dos direitos. (1995, p. 23, tradução livre).
Luigi Ferrajoli chama de Estado de Direito em sentido fraco, ou paleopositivismo, este
Estado legislativo de Direito, que em contraposição à pluralidade de fontes de Direito
observada na época pré-moderna
35
, pressupõe o monopólio da produção de regras por parte do
Estado. Desta forma, o Estado de Direito moderno nasce com a forma de Estado legislativo de
Direito na medida em que esta instituição alcança realização histórica com afirmação do
direito válido e existente, e independência de sua valoração como justo. Diz Ferrajoli que,
graças a este princípio e às codificações, que são sua atuação, uma norma é válida não porque
é justa, mas porque foi posta por autoridade dotada de competência para tanto (CARBONELL
(org.), 2003, p. 13-16).
No Estado legislativo de Direito, a atuação do Estado capaz de gerar reflexos sobre os
indivíduos havia de se coadunar, como dito, à lei posta pelos representantes eleitos. O
mecanismo ideal apto a orientar, condicionar e reprimir condutas desloca-se do comando
arbitrário do governante para a lei em si, que exprime não o fim a ser atingido, mas
também, e especialmente, o limite dos meios pelas quais as ações estatais haveriam de se
materializar. Passa a ser válida, portanto, a atividade administrativa empreendida em estrita
34
“En esta nueva forma de Estado característica del siglo XIX lo que destacaba en primer plano era ‘la protección
y promoción del desarrollo de todas las fuerzas naturales de la población, como objetivo de la vida de los
indivíduos y de la sociedad’. La sociedad, con sus propias exigencias, y no la autoridad del Estado, comenzaba a
ser el punto central para la comprensión del Estado de derecho. Y la ley, de ser expresión de la voluntad del
Estado capaz de imponerse incondicionalmente en nombre de intereses trascendentes propios, empezaba a
concebirse como instrumento de garantia de los derechos.”
35
Ferrajoli arrola como exemplo da pluralidade de fontes e ordenamentos, os procedentes de instituições
diferentes e concorrentes como o império, a Igreja, os príncipes, os municípios e as corporações. Nenhuma das
fontes detinha o monopólio da produção jurídica (CARBONELL (org.), 2003, p. 15).
consonância formal à lei positiva, esta discutida e elaborada com a chancela dos representantes
dos destinatários finais da ação estatal, o povo.
Ferrajoli entende, ainda, que, com o advento do Estado legislativo de Direito, alterou-se a
postura da ciência jurídica e da jurisdição. A ciência jurídica, com a afirmação do princípio da
legalidade como norma de reconhecimento do direito existente, ganha caráter cognoscitivo,
explica o direito positivo, ao passo que a jurisdição deixa de ser a produção jurisprudencial do
Direito, já que se submete ao princípio da legalidade como única fonte de legitimação. Atribui-
se, assim, outras características do Estado de Direito típicas do positivismo, como certeza ao
Direito, igualdade perante à lei, liberdade contra à arbitrariedade, e independência do juiz,
dentre outros aspectos relevantes (CARBONELL (org.), 2003, p. 16).
Zagrebelsky, trazendo a lume os ensinamentos de Otto Mayer, lembra que o Estado de
Direito, no sentido conforme ao liberal, caracterizava-se pela supremacia da lei sobre a
Administração; a subordinação à lei, à lei, dos direitos dos cidadãos (a Administração, sob
essa perspectiva, não goza de poderes autônomos que incidam sobre eles); a presença de juízes
independentes com competência exclusiva para aplicar a lei, e só a lei, às controvérsias
surgidas entre os cidadãos e entre eles e a Administração. O Estado de Direito, leciona
Zagrebelsky, assumia um significado particularmente orientado à proteção dos cidadãos
frente à arbitrariedade da Administração (1995, p. 23).
O princípio da legalidade adquire relevância nas funções estatais, em especial, dentro da
relação entre a Administração Pública e os cidadãos. Zagrebelsky assevera que, por força do
princípio da legalidade, a lei é admitida como ato normativo supremo e irresistível ao qual não
se pode opor nenhum outro direito pretensamente mais forte, seja o poder de exceção do rei, a
inaplicação dos juízes ou a resistência dos particulares (1995, p. 24).
O deslocamento da relação Administração/administrado da vontade do governante à
inafastável obediência à lei revela outro traço característico do Estado de Direito. Trata-se da
aplicação do princípio da legalidade a situações diametralmente opostas: legalidade para a
Administração e para os cidadãos. Por força deste princípio, e num contexto de contenção do
abuso do poder constituído, a lei estabelecia não o que a Administração não podia fazer, mas o
que ela podia. Os poderes da Administração, no Estado de Direito, não passavam da execução
de autoridades legislativas; a lei subordinava a função administrativa. Doutro lado, com
relação aos particulares, a lei não era admitida como uma norma que deveria ser executada,
mas, simplesmente, respeitada como limite externo da autonomia contratual ou, como também
se dizia, da senhoria da vontade individual (ZAGREBELSKY, 1995, p. 28).
Os princípios da liberdade dos cidadãos, na ausência de leis, como regra, e da autoridade do
Estado, na presença de leis, como exceção, invertem, na ótica de Zagrebelsky, os princípios de
Estado de polícia, fundado não na liberdade, mas também no paternalismo do Estado, em
que, em geral, a ação dos particulares se admitia mediante autorização da administração e
da prévia valoração de sua adequação ao interesse público (1995, p. 29).
Em síntese: enquanto que nos Estados de força e de polícia a atividade dos governantes não
encontrava mecanismos institucionalizados de controle suficientes para impor limites quanto a
seus meios e propósitos, no Estado de Direito, a obediência à lei e ao princípio da legalidade
altera a perspectiva para autorizar a atuação estatal somente nos exatos termos pré-
estabelecidos pelo ordenamento positivo. Em contraposição, ao passo que nos primeiros
modelos a atividade individual haveria de ser autorizada pelo governante, no Estado de
Direito é facultado ao indivíduo fazer tudo o que não é defeso em lei.
2.3.1 Crise do Estado Legislativo de Direito
São diversos os pontos de vista explicativos da crise do Estado legislativo de Direito.
Zagrebelsky, por exemplo, assinala que a carência de um conteúdo substantivo ao Estado de
Direito desde o ponto de vista político-constitucional, isto é, a estrita observância aos
procedimentos formais como pressuposto de validade das normas, ou a redução do conceito de
justiça ao de validade (norma justa é a norma válida pelo simples fato de terem sido
observados pressupostos formais em sua elaboração), fazia com que mesmo regimes
totalitários, uma vez respondendo em última análise à determinada ordem jurídica positiva,
pudessem ser chamarem de Estados de Direito, não obstante tolherem ou atentarem contra
direitos fundamentais dos cidadãos. Em suma, não importava o que era regulado, mas como o
era. Com isso, o Estado de Direito, dado que carente de conteúdo, poderia ser aplicado a
qualquer situação que excluísse a arbitrariedade pública e privada, desde que garantisse o
respeito à lei, qualquer que ela fosse. Havendo uma ordem jurídica, chamar-se-ia o Estado de
“de Direito” (1995, p. 23).
Ferrajoli, por seu turno, ao analisar a crise deste primeiro modelo de Estado de Direito, ou do
Estado legislativo de Direito, diz que ela incide, primordialmente, sobre o comentado
princípio da legalidade, na medida em que se observa inflação legislativa e a disfunção da
linguagem legal (CARBONELL (org.), 2003, p. 21).
A partir do momento em que novas forças ou agentes sociais passam a externar
reivindicações antes ignoradas pelos estatutos burgueses, urge a necessidade de novos
diplomas legais para o atendimento de ditas pretensões. Alia-se a isso o papel da
Administração Pública, que, a partir do reconhecimento explícito pelas ordens constitucionais
de uma série de direitos fundamentais sociais, emerge como protagonista central, responsável
pela regulação, promoção e oferecimento de uma gama de atividades e serviços, que, da
mesma forma, precisavam ser positivadas. Ademais, a complexidade do mundo pós-guerra e o
estrondoso desenvolvimento tecnológico e industrial passou a dissociar cada vez mais o
cotidiano da tarefa legislativa tradicional.
Já, por disfunção da linguagem geral, referida por Ferrajoli, entende-se o
desordenamento produzido pela edição contínua de normas, o que conduzia à
discricionariedade dos juízes na eleição da lei aplicável ao caso concreto e à formação
jurisprudencial, administrativa ou privada do Direito, com a conseqüente perda da certeza e de
garantias outrora anunciadas pelo Estado de Direito (CARBONELL (org.), 2003, p. 21).
Luis Prieto Sanchís, ao analisar o conteúdo da crise da lei, enumera, como alguns de
seus fenômenos o desenvolvimento das autonomias territoriais, a revitalização das fontes
sociais do direito, e a deterioração das próprias condições de racionalidade legislativa, como a
generalidade e a abstração. Verdade é que, de acordo com o supracitado autor, a lei deixou de
ser a única, suprema e racional fonte do direito que pretendeu ser em outra época, o que
abalou os dogmas positivistas da estatalidade e da legalidade do direito (CARBONELL (org.),
2003, p. 131).
A lei, assim como os demais atos de poder, haveria necessariamente de conectar-se a
outra norma superior para fim de lhe conferir adequação substancial no tocante aos fins
almejados; a Constituição é essa norma, cuja função é conformar o significado material das
leis, inaugurando o que se convencionou chamar de Estado Constitucional de Direito.
2.4 Estado Constitucional de Direito
Para Susanna Pozzolo, enquanto que o Estado de Direito se caracterizava pela redução de
todas as fontes jurídicas à lei, representando a expressão da vontade do legislador e o princípio
da legalidade, com o advento das cartas constitucionais, a lei se pôs numa posição de
subordinação, introduzindo-se critérios de validade material capazes de condicionar a
atividade legislativa inclusive por seu conteúdo, não em suas formas. No Estado
Constitucional de Direito, a norma hierarquicamente mais elevada, formal e substancialmente,
é a Constituição, por impor não respeito lógico-formal ao legislador, mas a aplicação e o
desenvolvimento das normas constitucionais (CARBONELL (org.), 2003, p. 189).
Se, para Ferrajoli, a mudança de paradigma do Direito para o Estado legislativo se deu com o
nascimento do Estado Moderno e com a afirmação do princípio da legalidade como norma de
reconhecimento do Direito positivo e existente, a ascensão do Estado Constitucional de
Direito é produzida pela subordinação da legalidade às constituições rígidas, hierarquicamente
supraordenadas às leis como normas de reconhecimento de sua validade. As condições de
validade das leis dependem agora não da forma de sua produção, mas da coerência de seus
conteúdos com os princípios constitucionais (CARBONELL (org.), 2003, p. 18).
Da mesma forma que ocorrera no Estado legislativo de Direito, o advento do Estado
Constitucional de Direito, para Ferrajoli, traz, ainda, conseqüências quanto ao papel da ciência
jurídica e da jurisdição. No tocante à ciência jurídica, deve ela se preocupar, agora, em
eliminar prováveis antinomias oriundas dos conflitos existentes entre direitos de liberdade e
direitos sociais, uma vez que a Constituição disciplina não formas de produção legislativa,
mas impõe, também, a esta proibições e obrigações de conteúdo referentes aos supracitados
direitos. Em respeito à jurisdição, passa a se aplicar a lei se for constitucionalmente válida
(CARBONELL (org.), 2003, p. 18).
Em sentido bastante sintético, o poder dos governantes, que, em momento pretérito, para se
qualificar como legítimo haveria de, exclusivamente, reportar-se a uma lei, qualquer que fosse
seu conteúdo, agora que, assim como a própria lei, reportar-se à Constituição, estatuto
maior de todo ordenamento, documento do qual se irradiam valores e princípios sobre toda a
ordem jurídica; valores e princípios que tanto o operador do direito, quanto o cidadão comum
e o administrador público não podem se furtar de observar, respeitar e aplicar.
Para Cademartori:
[...] a passagem do Estado legislativo ao constitucional pressupõe o caráter
normativo das Constituições, as quais passam a integrar um plano de
juridicidade superior, vinculante e indisponível, em linha de princípio, para
todos os poderes do Estado. As normas constitucionais são vinculantes de
tal modo que resta assim superada definitivamente a imagem fraca da
juridicidade constitucional característica do período liberal e estarão
situadas acima dos poderes do Estado e fora do campo de ação e conflito
político. Desta forma, os poderes do Estado não podem dispor do sentido e
conteúdo das normas constitucionais pelo menos em condições de
normalidade e, precisamente por isso, do próprio Direito enquanto
realidade constituída (2006, p. 18).
Entendida a essência da supremacia da Constituição sobre a lei, a tarefa que se coloca
reside em identificar os traços particulares do Estado Constitucional de Direito. Para Ricardo
Guastini podem ser verificados sete pressupostos que corporificam o processo pelo qual o
ordenamento analisado resulta totalmente impregnado por normas constitucionais, o que ele
chama de condições de constitucionalização. Elas, as condições de constitucionalização,
funcionam como verdadeiras características básicas para que se possa conceber um
determinado sistema normativo como uma espécie de Estado Constitucional de Direito. Para o
autor, as condições são as seguintes:
a) Presença de uma Constituição rígida: é necessariamente escrita, protegida contra a
legislação ordinária (não podendo por ela ser modificada e ab-rogada senão por um processo
especial de revisão constitucional). Ainda, a constitucionalização é mais acentuada naqueles
ordenamentos nos quais existem princípios constitucionais que não podem ser modificados de
modo algum, nem por revisão constitucional (CARBONELL (org.), 2003, p. 50);
b) Garantia jurisdicional da Constituição: admitindo-se, para tanto, qualquer dos três
modelos fundamentais de sistema de controle, quais sejam, o concreto a posteriori, exercido
por cada juiz no âmbito de sua própria competência jurisdicional, cuja decisão não produz
efeitos gerais, mas só no âmbito da controvérsia; o abstrato a priori, exercido por um tribunal
constitucional para teoricamente impedir que uma lei inconstitucional entre em vigor no
ordenamento; e o concreto a posteriori, exercido por um tribunal constitucional, cuja decisão
está provida de efeitos gerais erga omnes, em que a lei inconstitucional é anulada e não pode
ser aplicada por juiz algum (CARBONELL (org.), 2003, p. 51);
c) Força vinculante da Constituição: reconhece-se que as Constituições
contemporâneas devem, além de dispor sobre normas de organização, incluir em seus textos
declaração de direitos que regulam as relações entre Estados e cidadãos. Assim, é mais
constitucionalizado o ordenamento que concebe toda norma constitucional como norma
jurídica genuína, vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos, no lugar de considerá-
las meros princípios gerais ou disposições programáticas sem aplicação imediata
(CARBONELL (org.), 2003, p. 52);
d) Sobre-interpretação da Constituição: frente à realidade de que toda Constituição
fatalmente contém lacunas, na medida em que jamais se poderá regular a vida social e política
na totalidade, interpretando-se extensivamente os dispositivos constitucionais aos casos não
previstos, a Constituição é sobre-interpretada de maneira tal que se extraiam inúmeras normas
implícitas, não expressas, idôneas para regular qualquer aspecto da vida social e política, não
havendo qualquer lei que possa escapar do controle de legitimidade constitucional
(CARBONELL (org.), 2003, p. 53);
e) Aplicação direta das normas constitucionais: no constitucionalismo dos dias atuais,
assevera Guastini, tem-se que a função da Constituição, para além de regular a organização do
Estado e as relações entre Estado e cidadãos, realidade típica da concepção liberal, abraça
também a regulação das relações sociais. Por esta razão, até normas programáticas e princípios
podem produzir efeitos e serem aplicados (CARBONELL (org.), 2003, p. 55);
f) Interpretação conforme das leis: é a espécie de interpretação que torna adequada,
harmoniza a lei com a Constituição, elegendo o significativo que evite toda contradição entre a
lei e a Constituição (CARBONELL (org.), 2003, p. 56);
g) Influência da Constituição sobre as relações jurídicas: Guastini assevera que este último
postulado depende de diversos elementos, como, por exemplo, da postura dos juízes, da
possibilidade conferida pela própria Constituição de se fazer uso, por parte do órgão
jurisdicional, de normas constitucionais para resolução de conflitos de competência entre os
órgãos, e da postura dos próprios órgãos constitucionais e dos atores políticos quando da
utilização das normas constitucionais na argumentação política para justificar ações e decisões
(CARBONELL (org.), 2003, p. 58).
Uma constatação singela revela que grande parte dos Estados ocidentais contemporâneos
atendem, de menor ou maior maneira, aos postulados elencados por Guastini para que lhes
possam ser atribuídos o status de Estados Constitucionais de Direito.
Nesse passo, evidencia-se, como aponta Prieto Sanchís, características comuns derivadas
justamente da pluralidade de atores e fatores que permeiam as Constituições contemporâneas,
que, inclusive, orientam uma reformada teoria do Direito: a) a preponderância de princípios
sobre as regras; b) a existência de mais ponderação que subsunção; c) a onipresença da
Constituição em todas as áreas jurídicas e em todos os conflitos minimamente relevantes; d) a
onipotência judicial no lugar de autonomia do legislador ordinário; e) e, em especial, a
coexistência de uma constelação plural de valores no lugar de homogeneidade ideológica
(CARBONELL (org.), 2003, p. 131).
Leitura interessante diz respeito ao deslocamento da posição dos particulares e da
Administração frente à lei, operada pelo princípio da legalidade. De acordo com Zagrebelsky,
a crise da vinculação da Administração à lei deriva da superação, por parte do Estado, da
função prevalentemente garantidora (garantia concreta das regras jurídicas gerais e abstratas
mediante atos individuais e concretos proibições, autorizações, habilitações e decisões) e da
assunção de tarefas de gestão direta de grandes interesses públicos. A gestão direta de
atividades socialmente relevantes, por requerer a existência de grandes aparatos organizativos
que atuam, não raro, segundo a racionalidade privada de eficiência e controle, afasta cada vez
mais a Administração Pública do modelo tradicional, vinculado ao princípio da legalidade
(1995, p. 34).
Afirma-se, desse modo, o princípio da autonomia funcional da Administração que, no
âmbito das leis, atribui prerrogativas necessárias para a realização dos fins por ela
perseguidos. A lei se limita, então, a identificar a autoridade pública e a faculdade para atuação
em prol de um fim de interesse público, reconhecendo-se uma quantidade e variedade de
valorações operativas que não podem ser previstas. É, desta forma, próprio da Administração
estabelecer a linha de separação entre sua autoridade e a liberdade dos sujeitos, por
intermédio, especialmente, de sua função de planejamento (ZAGREBELSKY, 1995, p. 35).
A mesma realidade é observada por Prieto Sanchís, quando admite que a gestão dos
grandes serviços públicos ou a satisfação de direitos sociais não são tarefas do Estado
legislativo simplesmente executadas pela Administração, mas tarefas que supõem uma ampla
discricionariedade, revelando que o princípio da legalidade, ou a predeterminação legislativa
de atuação administrativa, está, fatalmente, destinada a retroceder (1998, p. 27).
Zagrebelsky vai além, anunciando reflexos inclusive na posição dos particulares frente
à lei, na autonomia da vontade como regra, e no limite legislativo como exceção. Em
determinados setores particularmente relevantes pela conotação social do Estado
contemporâneo, nega-se o princípio da liberdade geral salvo disposição legal contrária, para se
estabelecerem proibições gerais como pressupostos de normas ou medidas particulares, como,
por exemplo, atividades relacionadas com a utilização de bens escassos de interesse coletivo,
como os bens ambientais em geral. Existe a tendência de as considerar proibidas em geral,
salvo se autorizadas quando compatíveis ao interesse público, situação analisada caso a caso
pela Administração (1995, p. 36).
Em suma, o Estado Constitucional de Direito altera o panorama tradicional, não
pressupondo adequação de atos normativos e executivos à Constituição, como, inclusive
flexibilizando, de certa forma, o princípio da legalidade nas relações entre Administração e
particulares. Sem ofensa a outros princípios incidentes sobre o caso concreto, tal qual a
manutenção do tratamento isonômico, é conferido à Administração espaço maior de
discricionariedade para efeito de possibilitar que ela cumpra, satisfatoriamente, com seus
deveres constitucionalmente consagrados. Atribui-se à Administração margem relativamente
maior de liberdade para que sejam eleitos os meios adequados à satisfação dos interesses
públicos definidos por lei. Esses são os efeitos essenciais do Estado Constitucional de Direito
sobre a Administração Pública, e que devem permanecer entendidos quando analisado seu
papel para a satisfação de interesses públicos.
2.5 A Administração Pública no contexto constitucional brasileiro
A análise empreendida até aqui revela que dada a crise do Estado legislativo de Direito, que
contava com a submissão do poder à lei, ou melhor, a qualquer lei - sem um necessário
referencial que lhe conferisse validade material - proporcionou o acúmulo de diplomas legais
por vezes incoerentes e desordenados entre si, esvaziando alguns dos princípios basilares do
aludido modelo, tais quais a generalidade e abstração da norma.
O período entre guerras, a seu turno, demandou a concepção de um novo modelo, em que se
outorgava à Constituição o papel de norma de reconhecimento de validade não só da produção
legislativa, mas também da atividade executiva. Agora, no plano maior, situa-se a
Constituição, estatuto máximo que orienta todas as funções do Estado, e a qual qualquer um
de seus poderes deve respeito.
No que concerne ao presente estudo, cumpre fazer alusão ao tratamento constitucional
dispensado, num primeiro momento, à relação Estado/cidadão, identificando, inclusive,
instrumentos garantidores de direitos do indivíduo frente ao poder central, para, em seguida,
investigar-se o verdadeiro papel do Estado, sua atividade direta e indireta na economia e na
esfera social. Revelados os sentidos da atividade administrativa, os fins que se propõe
atingidos, terá o estudioso importante subsídio para se aferir, ao fim, a compatibilidade da
inovação contratual chamada parceria público-privada aos pressupostos constitucionais
brasileiros.
2.5.1 Garantias relativas aos direitos dos administrados
Orientado por predicativos humanitários, democráticos e republicanos, tal qual se depreende
da leitura do Título I Dos Princípios Fundamentais
36
- da Constituição da República
Federativa do Brasil, dentro do Título II - dos Direitos e Garantias Fundamentais - são
assegurados importantes mecanismos e institutos que regulam as relações entre o cidadão e a
Administração. Dentro dos direitos individuais e coletivos constitucionalmente consagrados
pelo Capítulo I, que exigem do Estado atuação negativa, ou, em outras palavras, que
prescrevem a impossibilidade do Estado de sobre eles praticar atos de ingerência ou restrição,
restam disciplinadas garantias ao exercício daqueles direitos, como o inciso XXXIII do art. 5º,
que reconhece o direito de todos os cidadãos de receber dos órgãos públicos, informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral. Na mesma esteira, é reconhecido,
por força do inciso XXXIV do mesmo artigo, o direito de petição aos poderes públicos, e a
36
Dentre aqueles, convém destacar os objetivos da República, elencados em seu art. 3º, de construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da
marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos, sem distinção de
quaisquer espécie.
obtenção de certidões em repartições públicas. Ademais, assegura-se aos litigantes em
processo administrativo, o devido processo legal, o que importa reconhecimento da ampla
defesa, contraditório, motivação, direito à provocação de instância superior, dentre outros.
Prevê-se, ainda, dentre os direitos e garantias individuais, o instituto do mandado de segurança
para a proteção de direito líquido e certo quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de
poder for autoridade pública, ou quem lhe faça as vezes (art. 5º, LXIX), e o habeas data para
assegurar conhecimento de informações administrativas (art. 5º, LXXII).
A Constituição se preocupou, agindo dessa maneira, em assegurar um leque mínimo de
garantias ou meios de controle para os cidadãos frente a eventuais abusos cometidos pelo
agente público administrativo, com o fim de preservar instrumentos incapazes de serem
suprimidos por parte de consensos parlamentares casuísticos, que por força de eventual
orientação política, pode pretender tolher liberdades, direitos e garantias.
A Constituição da República, entretanto, não se limita a assegurar mecanismos de controle
frente a atos emanados do Poder Executivo, especialmente, da Administração Pública. A carta
magna atribui ao Estado a tarefa de implantação, gerência, coordenação, execução e garantia
de uma vasta gama de atividades destinadas tanto à satisfação de necessidades individuais e
coletivas, como de regulação, inclusive da própria atividade econômica e ordem social. Em
que pese não restar especificado, em grande parte dos casos, a quais poderes cabe atuação
específica, a correta exegese, entretanto, reconhece que a execução e materialização de parcela
majoritária das atividades constitucionalmente previstas dependem, incontestavelmente, da
atuação positiva da Administração Pública nacional, enquanto estrutura especializada para o
exercício de funções executivas, de materialização de comandos legais e execução de políticas
públicas.
2.5.2 Competências administrativas
Não é pretensão do presente estudo arrolar em minúcias as disposições constitucionais
que versam acerca da atividade administrativa. Entretanto, alguns enunciados refletem idéias
nucleares ou conduzem a uma maior clareza do real papel da Administração Pública dentro da
ordem constitucional. Inicia-se, assim, ventilando as competências administrativas dos entes
federados, estampadas nos arts. 21, 22, 25, 30 e 32 da Constituição da República. Por força da
repartição de competências administrativas, a Constituição da República diz que compete à
União, por exemplo, assegurar a defesa nacional; elaborar e executar planos de ordenação do
território e de desenvolvimento econômico e social; manter o serviço postal; explorar serviços
de telecomunicações, radiofusão, energia elétrica, navegação aérea, transporte, dentre outros.
Cabe aos Estados, também por vontade constitucional, atuação administrativa nas áreas que
não forem expressamente de competência da União (enunciadas no art. 21), dos municípios
(art. 30) e as comuns. Para completar o quadro, aos municípios resta designada a instituição e
arrecadação de tributos de sua competência; a organização de seu território; a condução da
política urbana; e a exploração de serviços públicos de interesse local, dentre outros. A todos
os entes, de modo comum, cabem, destacadamente, a proteção de bens de valor artístico e
cultural; a proteção do meio ambiente; a promoção de programas habitacionais e de
saneamento básico, entre outros.
2.5.3 Intervenção na ordem econômica e serviços públicos
O art. 174 da Constituição da República, por sua vez, concebe o Estado como agente
normativo e regulador da atividade econômica, outorgando-lhe, para tanto, funções de
fiscalização, incentivo e planejamento. Tal qual adverte Bandeira de Mello (2005, p. 728-729),
ao contrário de entregar ao mercado a organização da vida econômica e social, a Constituição,
embora assegure a liberdade de iniciativa privada, declara que cumpre ao Estado assegurar que
a ordem econômica respeite os compromissos e valores estampados nos objetivos e
fundamentos da República (arts. e da CRFB), além de princípios encontrados em outros
dispositivos.
Das funções de fiscalização, incentivo e planejamento entabuladas pelo art. 174 da
Constituição da República depreende-se que a Administração Pública deve exercer atividades
de fomento, polícia administrativa e intervenção, por exemplo. Na esteira de Di Pietro,
enquanto o fomento equivale ao incentivo à iniciativa privada de utilidade pública (através de
subvenções, financiamento, favores fiscais, desapropriações), a polícia administrativa executa
restrições impostas por lei ao exercício de direitos individuais em benefício da coletividade. A
intervenção, a seu turno, “compreende a regulamentação e fiscalização da atividade
econômica de natureza privada, bem como a atuação direta do Estado no domínio econômico,
o que se normalmente por meio das empresas estatais” (2000, p. 59-60).
A Constituição prevê ainda, em seu art. 175, a existência dos chamados serviços
públicos, cuja prestação autoriza que se de modo direto, pelo Poder Público, ou indireto,
pelo particular sob delegação. Em que pese o texto constitucional arrolar, de modo disperso,
um número variado de atividades em que se reconhece a qualidade de serviço público, não
conceitua o instituto, tarefa patrocinada pela doutrina e jurisprudência.
Assim, apenas a título introdutório, que a questão de ser enfrentada de modo mais
detalhado nos capítulos seguintes, compreende-se por serviço público:
[...] toda atividade que a Administração Pública executa, direta ou
indiretamente, para satisfazer à necessidade coletiva [...] Abrange atividades
que, por sua essencialidade ou relevância para a coletividade, foram
assumidas pelo Estado, com ou sem exclusividade (DI PIETRO, 2000, p.
60).
Em outros termos, o Poder Público deve, por força constitucional e através da estrutura da
Administração Pública, prestar diretamente certas atividades de relevante interesse coletivo,
ou, quando a natureza da atividade assim permitir, delegá-las para que particulares as prestem,
sob o regime específico.
2.5.4 Garantia de direitos sociais
A Constituição da República em seu Título II - dos Direitos e Garantias Fundamentais
resguarda ainda uma série de direitos sociais, entendidos como os referentes à educação, à
saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à
maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, dentre outros. Esta espécie, que se
convencionou chamar de geração de direitos fundamentais, exige, ao contrário dos direitos
e liberdades individuais, uma ação positiva dos poderes estatais, realidade adaptada ao
reconhecimento que o escopo do Estado, qual seja, da promoção do bem-estar coletivo, não
poderia ser alcançado se garantidas, exclusivamente, as liberdades individuais. Situações de
miséria, fome, exploração abusiva do trabalho, concentração desequilibrada de riqueza, dentre
outras, passam a exigir do Estado, em todas suas esferas de atuação e não diferentemente na
executiva, ações concretas no sentido de fomento e proteção do trabalho, asseguração de
condições mínimas de subsistência, oferecimento de utilidades e comodidades a custo zero ou
módicos, enfim, atividades estranhas à lógica do mercado de lucro.
Constitucionalizaram-se, dessa feita, normas de proteção do trabalho, incumbida ao Estado a
fiscalização de sua observância. Ainda, a Constituição da República Federativa do Brasil
dedicou todo Título VIII à ordem social, referindo-se, ao longo de mais de trinta artigos,
acerca da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), educação, cultura e
desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente, família, criança,
adolescente e idoso, e dos índios. Atribuiu-se ao Estado, de modo geral para cada esfera de
atuação, o dever de organização, de oferecimento e gestão da atividade, de garantia à sua
prestação, garantia a seu acesso, fomento, incentivo e proteção, dentre outros, em dicção a ser
empreendida em conjunto com os artigos que tratam da repartição de competências
administrativas.
Em síntese: encarregou-se a Constituição de dispor exaustivamente acerca dos deveres do
Poder Público no tocante às atividades de intervenção na ordem econômica e social,
exploração direta de atividades econômicas relevantes e a prestação de serviços públicos.
Extrai-se, isto posto, que lei infra-inconstitucional ou ato executivo não pode se opor ao
substrato material de questões constitucionalmente consagradas, o que leva a admitir como
infração à ordem constitucional, por exemplo, qualquer espécie de embaraço ou omissão da
esfera governamental executiva à proteção ambiental, fiscalização de condições de trabalho,
prestação dos serviços públicos, amparo a crianças, adolescentes e idosos, dentre outras.
2.5.5 Modo de execução das atividades de satisfação de interesses públicos
A questão de plano a ser enfrentada pela presente investigação reside em verificar o modo de
execução da administração de ditos interesses públicos. Uma análise atenta dos dispositivos
supramencionados revela que a Constituição da República, de modo geral, não prescreve ou
requer a obrigatoriedade da execução direta pelo Estado das atividades para satisfação de
interesses públicos. Salvo exceções, em que, a todas as luzes, obsta-se a execução de
atividades por particulares, tal qual a atos decorrentes do poder de império e os serviços que a
própria Constituição torna indelegáveis, vale lembrar que a Constituição da República exige
do Estado brasileiro a promoção da dignidade da pessoa humana, a garantia do
desenvolvimento, a promoção do bem de todos, a erradicação da pobreza e redução das
desigualdades; em outras palavras, exige, exclusivamente, o atendimento de determinado
interesse público, não importando a figura de quem venha a satisfazê-lo - o Estado
diretamente, ou o particular sob delegação.
Essa concepção, de que o interesse público deva ser atendido independentemente da figura do
prestador da atividade, reflete, tal qual lembra Marçal Justen Filho, a superação de um
entendimento ultrapassado, de que serviços seriam bem prestados simplesmente porque era
exercitado pelo Estado. De acordo com o autor, a experiência restou por comprovar que “a
qualidade do sujeito prestador não é garantia de bom ou mau desempenho” (2002, p. 41).
Tal qual asseverado em linhas anteriores, a vontade constitucional é de que o Estado assegure
ao cidadão, indistintivamente, padrões mínimos de qualidade de vida, propiciando, em última
análise, o bem comum. Através de medidas tipicamente administrativas, enquanto gestor da
coisa pública e promotor da dignidade humana, o Estado fiscaliza e condiciona a atividade
privada, coadunando-a ao interesse coletivo; garante o oferecimento de comodidades e
utilidades à população; além de zelar por direitos coletivos e transindividuais. Como assinala
Souto, em países como o Brasil, a responsabilidade pela existência de atividade de
atendimento de um interesse geral é do Estado (2005b, p. 36). Ser responsável pela existência
da atividade não pressupõe ser seu executor direto. Aliás, quando a Administração presta por si
própria atividade estranha as suas habilidades e competências, dada eventual complexidade do
serviço, pode-se, inclusive, comprometer a eficiência de sua prestação, atentando, sim,
contra a vontade constitucional. A Constituição também é desrespeitada quando a
Administração, no oferecimento de atividade de satisfação de interesse público, não se ampara
na iniciativa privada para fazer uso das avançadas técnicas e metodologias por esta
disponibilizadas
37
.
Bandeira de Mello enfrenta a questão da execução com elevada clareza. O autor assinala que
titularidade do serviço não se confunde com a titularidade de sua prestação. O fato de o
Estado ser titular de serviços públicos, de sobre eles deter senhoria, não significa que deva
prestá-los obrigatoriamente por si ou por entidade sua: “na esmagadora maioria dos casos
estará apenas obrigado a discipliná-los e a promover-lhes a prestação” (2005, p. 638, grifo
acrescido).
O texto constitucional enuncia, neste diapasão, mecanismos de delegação da prestação de
atividades de atendimento de interesses públicos para entidades não-estatais. Apenas a título
ilustrativo, tem-se o já mencionado art. 175 da Constituição da República, que prevê os
institutos da concessão, permissão e autorização, e o §8° do art. 37, que prevê os contratos de
gestão. Outrossim, cumpre ressaltar que o rol elencado pela Constituição não é exaustivo, na
medida em que não há impedimento expresso para o desenvolvimento de novas figuras
jurídicas, cuja disciplina pode perfeitamente adequar-se aos pressupostos constitucionais. O
37
Trata-se da noção de serviço adequado, entabulada pelo inciso VI do parágrafo único do art. 175 da CRFB.
mero silêncio na previsão de que a prestação de determinada atividade possa se dar por
delegação não impede, frise-se, que assim se faça, mormente quando o atendimento do
interesse público possa se dar de modo mais eficiente quando prestado por particulares.
2.5.6 Preceitos constitucionais administrativos
O núcleo do tratamento constitucional dispensado à Administração Pública não se
esgota, entretanto, com a previsão de garantia de uma série de atividades de atendimento de
interesses públicos, tais quais as descritas nas linhas precedentes. A Constituição da República
presta atenção exclusiva à Administração Pública em seu capítulo VII do Título III - da
Organização do Estado. De acordo com a terminologia utilizada por Alexandre de Moraes, a
Constituição da República trata de disciplinar
[...] preceitos básicos da Administração Pública, regentes da atuação
administrativa do Poder Público da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, com a finalidade de garantir maior eficiência, probidade e
transparência na gerência da res publica (2005, p. 142).
Grande parte da seção atribui ao vínculo de trabalho do cidadão com a Administração
Pública um regime jurídico diferenciado da contratação privada, em que se prevê a
obrigatoriedade do concurso público, sistema remuneratório, vedação de cumulação
remunerada de cargos públicos, direitos sociais do servidor público, estabilidade de servidores,
dentre outras disposições (MORAES, 2005, p. 142-239).
O art. 37 da Constituição da República, ao qual se faz alusão, estabelece requisitos para
a criação de entidades paraestatais, componentes da estrutura da Administração indireta. Por
força do inciso XIX do dispositivo, somente por lei específica se pode criar autarquia e
autorizar a instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e fundação. Não
obstante, o dispositivo em comento prescreveu, ainda, a previsão constitucional de
obrigatoriedade da licitação pública para efeito de se assegurar igualdade de condições a todos
os concorrentes que desejem vender produtos ou serviços à Administração, assim como
adquirir patrimônio estatal (MORAES, 2005, p. 162, 164).
Por fim, merece destaque, dada sua relevância, o caput do art. 37 da Constituição da
República. Como pondera Moraes, a “Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de
outubro de 1998, inovou em matéria de Administração Pública, consagrando os princípios e
preceitos básicos referentes à gestão da coisa pública” (2005, p. 19).
Foram positivados, desse modo, princípios basilares da atividade administrativa que
orientam toda a Administração e os administrados em qualquer grau ou nível: da legalidade
(que, como visto, sofre mutação para comportar maior espaço de discricionariedade dada a
amplitude da atividade estatal contemporânea), da impessoalidade, da moralidade, publicidade
e eficiência.
Bandeira de Mello, assim como outros autores nacionais
38
, extrai do próprio texto
constitucional princípios administrativos que ali se encontram implicitamente consagrados.
São eles: da supremacia do interesse público sobre o interesse privado; da finalidade, da
razoabilidade, da motivação, da publicidade, do devido processo legal e da ampla defesa, do
controle judicial dos atos administrativos, da responsabilidade do Estado por atos
administrativos e da segurança jurídica (2005, p. 114).
Sem adentrar no mérito do conteúdo jurídico de cada um dos princípios arrolados pela
doutrina, o importante é esclarecer que, por força do modelo normativo do Estado
Constitucional de Direito, tantos os explícitos quanto os implícitos prevalecem sobre as leis e
atos administrativos em situação de conflito, uma vez tratar-se de normas hierarquicamente
superiores às últimas. Resgatando a lição de Paulo Bonavides:
[...] Daqui se caminha para o passo final da incursão teórica: a
demonstração do reconhecimento da superioridade e hegemonia dos
princípios na pirâmide normativa; supremacia que não é unicamente formal,
mas sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios
são compreendidos e equiparados até mesmo confundidos com os valores,
sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão
38
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, 2000, p. 66-85; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, 2005, p. 81-87; Hely Lopes
Meirelles, 2003, p. 85-99, dentre outros.
mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder. (1999,
p. 260).
E, reconhecendo-se que a Constituição outorgou à Administração Pública nacional o
papel de protagonista no processo de promoção do bem-estar social e de oferecimento de
padrões mínimos de qualidade de vida à pessoa humana, além da gestão da coisa pública, urge
interpretar o exercício do poder executivo de forma coerente aos objetivos e fundamentos da
República, sempre em conjunta observância aos princípios específicos da atividade
administrativa.
Como bem aponta Moraes, a Constituição da República, ao arrolar princípios
específicos à atividade administrativa, consagra uma verdadeira teoria geral do Direito
Constitucional Administrativo, que visa garantir a honestidade na gerência da res publica e
possibilitar a responsabilização dos agentes públicos que se afastarem daquelas diretrizes
obrigatórias (2005, p. 27, 99). Esvaziam-se, desta forma, disposições legislativas ordinárias e
atos executivos que possam enfraquecer o papel do Estado na consecução das tarefas
constitucionalmente designadas, ou que, de qualquer forma, atentem contra princípios
constitucionais prevalentes.
3 AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
3.1 Apresentação
No primeiro capítulo do presente estudo investigou-se a função assumida pela Administração
Pública ao longo do desenvolvimento histórico, desde a formação do Estado moderno até a
contemporaneidade. Evidenciou-se que, quando impregnada por orientações socioeconômicas
de ordem liberal, a Administração detinha poucas prerrogativas e deveres, em que aflorava,
primordialmente, a função de polícia da atividade estatal, de defesa interna e externa do
Estado e manutenção da Justiça, além da viabilização de infra-estrutura mínima para o
desenvolvimento do mercado (vide item 1.2).
A partir do início do século XX, e neste momento fortemente seduzida por reivindicações
sociais, na medida em que uma série de deveres eram imputados ao Estado, uma vasta gama
de atividades passou a ser assumida pela Administração Pública com o intuito de assegurar ao
indivíduo, isoladamente considerado, e à coletividade, padrões mínimos de qualidade e
dignidade de vida, através, primordialmente, da intervenção na ordem social e econômica, do
oferecimento de serviços públicos e da exploração direta de atividades empresariais
estratégicas (vide item 1.3).
Ao fim do século XX, para efeito de sanear o desequilíbrio fiscal em que os Estados se
encontraram, além de buscar o aumento de coeficientes de eficiência na prestação das
atividades estatais, propagaram-se pelo mundo as soluções neoliberais para a gestão da crise.
Preconizou-se a atuação subsidiária do Estado no sentido de determinar a remessa à iniciativa
privada, de ativos empresariais e a prestação de serviços que pudessem ser geridos pela
iniciativa privada sem prejuízo do interesse público. E é exatamente no contexto de
transferência de funções administrativas do Estado a agentes privados que é concebido o
instituto da parceria público-privada (DI PIETRO, 2005, p. 41, 85, 159).
É dentro desse contexto que no segundo capítulo reconheceu-se que a atividade
administrativa e legislativa havia de se coadunar, qualquer que fosse a orientação política
vigente, aos pressupostos constitucionais, inclusive quanto aos valores consagrados pela
Constituição.
Isso entendido, buscar-se-á, no desenvolvimento deste capítulo, elucidar o conceito, a
natureza jurídica do instituto e analisar o surgimento e a trajetória que culminou com a
positivação, no direito pátrio, das parcerias público-privadas. Acima de tudo, apontar-se-ão os
traços fundamentais do instituto das parcerias para subsidiar sua análise frente ao contexto
constitucional brasileiro.
3.2 Notas introdutórias acerca das parcerias público-privadas
Tal qual asseverado, assiste-se recentemente à consagração, no ordenamento jurídico
brasileiro, de nova espécie de delegação de obras e serviços públicos em sentido amplo, em
adição às hipóteses contempladas pela Lei de Concessões Lei 8.987, de 13 de fevereiro de
1995 - e legislação correlata
39
. Trata-se da legislação e regulamentação da parceria público-
privada (PPP), instrumento que, em sua roupagem atual, remonta ao Reino Unido, no início da
década de 90.
De acordo com o relatório sobre parcerias público-privadas do International Financial
Services, de Londres:
O conceito de PPP, criado no Reino Unido em 1992, traz a abolição em 1989 das
regras que anteriormente haviam restringido fortemente o uso do capital privado
para o financiamento de ativos públicos. A idéia era refinanciar PPP em setores
como saúde e governo local.
40
(INTERNATIONAL FINANCIAL SERVICES,
2002, p. 7.Tradução livre, grifo acrescido).
Na esteira do exemplo inglês, diversos países europeus e os Estados Unidos, entre cerca de
sessenta Estados nacionais, incorporaram ou estão introduzindo em seus ordenamentos as
parcerias público-privadas, com finalidade, especialmente, a viabilizar o investimento privado
39
Foi promulgada a Lei 11.079, em 30 de dezembro de 2004, que instituiu normas gerais para licitação e
contratação de parceria público-privada no âmbito da Administração Pública, aplicável à União, Estados,
Municípios e Distrito Federal. Antes disso, alguns entes da federação haviam editado seus regulamentos próprios,
com, por exemplo, o Estado de Minas Gerais, pela Lei 14.868, de 16 de dezembro de 2003; Estado de Santa
Catarina, nos termos da Lei 12.930, de 4 de fevereiro de 2004; Estado de São Paulo através da Lei 11.688,
de 19 de maio de 2004; Estado de Goiás, por intermédio da Lei n° 14.910, de 11 de agosto de 2004.
40
“El concepto PPP se creó en el Reino Unido en 1992, tras la abolición en 1989 de las reglas que anteriormente
habían restringido fuertemente el uso del capital privado para la financiación de activos públicos. La idea era
refinanciar PPP en sectores como sanidad y gobierno local”.
em atividades e áreas não contempladas satisfatoriamente por investimentos estatais,
imprimindo maior eficiência na prestação de serviço e/ou possibilitando o emprego de
tecnologias avançadas em determinadas atividades
41
.
A correta compreensão do instituto da parceria público-privada remete, de início, à análise
gramatical da expressão. Toma-se o significado de parceria entre um ente público e um agente
privado como o instrumento pela qual a Administração Pública, em qualquer de suas esferas,
une-se a determinada entidade privada para, mediante a repartição de tarefas e encargos
previamente estabelecidos, buscarem a consecução de objetivos que atendam a um ou mais
fins de interesses comuns. Em outras palavras, é o instrumento pelo qual Estado e iniciativa
privada repartem os ônus e os proveitos de determinada atividade.
Di Pietro ensina que, em sentido amplo, avenças sobre a forma de parceria entre o Poder
Público e a esfera privada servem a variados objetivos, formalizando-se por diferentes
roupagens jurídicas. Podem ser, neste diapasão, utilizadas como forma de delegação da
execução de serviços a particulares (por instrumentos de concessão e permissão); como meio
de fomento à iniciativa privada (por meio de convênios); como forma de cooperação do
particular na execução de atividades estatais (pela terceirização); e como instrumentos de
desburocratização (através dos contratos de gestão) (2005, p. 41).
Em sentido estrito, todavia, trata-se a parceria público-privada de disciplina jurídica
desenvolvida para efeito de regulamentar nova espécie de delegação de obras e atividades
destinadas à satisfação de interesses públicos, cujas diferenças substanciais em relação às
concessões comuns, disciplinadas pela Lei n° 8.987/95, residem nas atividades objeto de
contrato, no valor econômico dos projetos que se pretendem viabilizados, na duração do
ajuste, no tratamento dispensado à remuneração do parceiro privado, e em inovações
referentes ao procedimento licitatório e à solução de litígios, entre outros.
De acordo com a mensagem que acompanhou o Projeto de Lei encaminhado ao Congresso
Nacional, no caso brasileiro, a justificativa do desenvolvimento da parceria público-privada
repousa no argumento da insuficiência financeira do Estado brasileiro para a alocação de
41
“Em alguns casos, como na Holanda e Hong Kong, a motivação principal foi aumentar a eficiência e eficácia
na provisão dos serviços públicos”. (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, p. 6).
verbas vultosas em áreas estratégicas ao desenvolvimento econômico e social (DI PIETRO,
2005, p. 158). A parceria público-privada pretende ser instrumento moderno e eficiente para a
captação de investimentos em realização de obras de grande vulto e prestação de serviços que
demandam cifras elásticas.
3.2.1 Das concessões comuns às parcerias público-privadas
Tal qual abordado no primeiro capítulo, a hipertrofia estatal e o estrondoso aparato
burocrático necessário para seu funcionamento foram e permanecem sendo alvos de duras
críticas por parte da teoria neoliberal, que costumam por ela ser apontados como as causas
de grande parte da crise financeira que assola o mundo contemporâneo. E é neste sentido, sob
o pretexto primordial do saneamento do deficit econômico, que ganhou aceitação, em grande
número de governos, a proposta de redução do tamanho do Estado com vistas à concentração
de esforços nas áreas em que sua presença se revelasse indiscutivelmente imprescindível.
Nas palavras de Arnoldo Wald, Alexandre Wald e Luiza Rangel de Moraes:
[...] o intervencionismo excessivo e injustificado, além de ferir a diretriz
constitucional da livre iniciativa, norteadora da ordem econômica e financeira,
acaba por acarretar a insuficiência de atuação do Estado em áreas essenciais, como a
saúde, a educação e a segurança pública, em que sua presença eficiente se faz
imperiosa, o que vem a ocasionar graves prejuízos para toda a sociedade.
Não dúvidas que a crise financeira e a falta de recursos do Estado impediram a
realização de investimentos necessários para a manutenção e o aprimoramento da
qualidade de vida da nossa população. (MORAES; WALD; WALD, 2004, p. 92).
De acordo com este entendimento, justificou-se a incapacidade do Estado de cumprir
eficientemente com suas obrigações na equivocada aplicação de recursos públicos, realidade
decorrente de políticas intervencionistas excessivas. Por via de conseqüência, e orientando-se
sob a perspectiva de saneamento financeiro, havia de ser aprimorado e difundido um sistema
eficiente de descentralização e delegação de atividades tradicionalmente estatais à iniciativa
privada, para desonerar o Estado e possibilitar sua atuação eficiente nas tarefas indispensáveis.
Neste contexto, ganhou respaldo o sistema de concessão de serviços e de obras públicas.
Ainda de acordo com os mencionados autores:
É insofismável que, hoje, a Administração deve descentralizar e delegar as
atividades que possam ser executadas por particulares, passando, em todos os
países, o sistema de prestação de serviços públicos, por meio de concessões a
empresas privadas, a ter uma importância crescente, que exige um posicionamento
construtivo e sistemático do legislador, tanto no plano federal quanto estadual e
municipal. (MORAES; WALD; WALD; 2004, p. 94).
A concessão comum, de acordo com a lição de Bandeira de Mello, é o:
[...] instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a
alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições
fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual
de um equilíbrio econômico financeiro, remunerando-se pela própria exploração do
serviço, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários
do serviço. (2005, p. 658).
A leitura do conceito oferecido revela que, nesta espécie de delegação, a condição que
norteia a prestação de serviços ou exploração de obra pelo agente particular reside justamente
na aceitação de o mesmo prestá-lo ou explorá-lo por sua conta e risco. Isso quer dizer que, na
concessão comum, é necessário que o concessionário busque sua remuneração, para a
amortização do capital investido, custeio da operação e lucro empresarial, na própria
exploração do serviço público ou obra, através, básica e primordialmente, da cobrança direta
de tarifas do usuário (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 659).
Abre-se um parênteses para lembrar que, tal qual aponta Di Pietro, não são todos os
serviços públicos que podem ser objeto de concessão, justamente por não haver em
determinadas espécies de atividades o fundamento que autoriza a cobrança direta de tarifas
dos usuários. Somente são passíveis de concessão, na ótica da autora, os serviços
correspondentes a atividades materiais prestadas pelo Estado, ou quem lhe faça as vezes, para
oferecimento de utilidades ou comodidades fruíveis singular e diretamente pelos usuários, os
chamados serviços públicos uti singuli (2005, p. 57). Os serviços específicos e divisíveis,
fruíveis singular e diretamente pelos administrados uti singuli quando dotados de natureza
comercial ou industrial, são capazes de estabelecer uma relação contratual ordinária, para
efeito da qual se torna viável serem prestados mediante a remuneração proveniente do
tomador do serviço.
Em sentido antagônico, existe uma gama de atividades entendidas como serviços públicos em
sentido amplo
42
que são destinados à coletividade como um todo, ou são apenas tomados
indiretamente pelos cidadãos, de que são beneficiários, como é o caso da limpeza pública.
Ditas atividades - serviços uti universi -, mesmo quando dotadas de natureza comercial ou
industrial, não ensejam relação contratual direta com seus usuários, o que inviabiliza a
remuneração do prestador da atividade pelo tomador do serviço (DI PIETRO, 2005, p. 57). Ou
seja, o concessionário não consegue ser remunerado, especialmente, por tarifas cobradas
diretamente dos usuários, por efeito do que falta a esta categoria de atividades a possibilidade
de serem delegadas por concessão comum.
Feita a ressalva, reconhece-se a possibilidade de concessão e permissão de serviços públicos
àqueles de natureza comercial ou industrial
43
, que admitem a cobrança direta de pecúnia do
usuário. Transfere-se, deste modo, a execução da atividade destinada à satisfação de interesse
público a agentes privados para que estes, empregando novas tecnologias e métodos de gestão
intrínsecos à capacidade empresarial privada, explorem-na, remunerando-se diretamente do
usuário do serviço.
De tudo é conveniente frisar que a lógica que norteia a delegação por concessão comum
reside justamente na rentabilidade e sustentabilidade econômica da exploração do serviço.
Ditas atividades, por guardarem natureza comercial ou industrial, podem ser economicamente
exploradas pela lógica mercadológica comum.
Dizer que são atividades economicamente rentáveis sob a ótica mercadológica significa
admitir que, sobre o preço do serviço oferecido ou do uso da obra posta à disposição do
usuário pelo agente privado, incide o lucro, escopo final da atividade empresarial privada. E a
admissão da existência de lucro operada pela garantia do equilíbrio econômico financeiro do
42
Chama-se serviços públicos em sentido amplo as atividades de satisfação de interesse público, não apenas as
usufruíveis singularmente pelos administrados, mas destinadas à coletividade em geral. O tema merecerá especial
destaque no último capítulo da presente investigação, quando se estudar o objeto das parcerias público-privadas.
43
Excluem-se da possibilidade de delegação por concessão comum, os serviços próprios e exclusivos do Estado,
que não podem ser delegados por fazerem referência a atividades que devem, necessariamente, ser prestadas pelo
Estado, e os serviços de natureza predominantemente social, em que, embora se pudesse identificar o tomador do
serviço, dado seu caráter de generalidade e gratuidade não comportam exploração econômica.
contrato, e, portanto, protegida, inclusive, pela própria disciplina legal da concessão, presume
planejamento por parte do interessado, em especial, no tocante ao sucesso econômico da
empreitada.
A previsão de incidência de lucro guarda especial relevância, uma vez que, sendo
admitida, prevista e protegida neste tipo de relação, os riscos em relação à operação, por se
tratar de atividade comercial ou industrial economicamente auto-sustentável, ficam
necessariamente a cargo do concessionário, tal qual ocorre na exploração de qualquer outra
atividade comercial ou industrial pela esfera privada.
Não passa despercebida por Justen Filho dita relação, entre a tarifa cobrada do usuário,
rentabilidade do negócio e o risco da atividade:
Ou seja, incumbe ao concessionário a prestação do serviço público, por conta e risco
próprios. Cabe-lhe o poder (dever) de organizar os fatores da produção, arcando
com as conseqüências de suas escolhas e com os efeitos de suas condutas ao longo
do tempo. O concessionário tem o dever de prestar serviços adequados, com
liberdade relativa de escolhas. A contrapartida do risco empresarial assumido
consiste no lucro (2005b, p. 364, grifo acrescido).
Conquanto a delegação de serviços e obras públicas por concessão e permissão a particulares
tenha de fato alcançado atividades que se pretendiam, como, por exemplo, em setores de
energia elétrica, telecomunicações, transporte rodoviário, ferroviário e aéreo, dentre outros,
uma série de atividades e áreas permaneceram incapazes de atrair a exploração da iniciativa
privada, por conta e risco próprios. Em ditas atividades, e mesmo aplicando-se as mais
modernas soluções tecnológicas de gestão, o retorno econômico, advindo da exploração da
obra ou do serviço, seria incapaz de superar os investimentos necessários. Ou, conquanto
plausível a rentabilidade, ocorrem riscos substanciais que acabam por desencorajar o
investimento privado.
Enfim: a perspectiva de lucro de determinadas atividades, por vezes, não é suficiente para
compensar os elevados gastos de sua implantação e/ou operação, ou os riscos a que se expõe o
empreendedor privado. Ademais, outra série de atividade são incapazes de serem custeadas
por seus usuários ou beneficiários, ainda que pudessem ser prestadas mais eficientemente pela
iniciativa privada.
Como dito, é conveniente, recomendado e, quiçá, necessário que o Estado se valha de
agentes do mercado para o oferecimento de determinadas atividades de satisfação de interesse
público. No entanto, um grande número dessas atividades não são, a priori, atrativas aos
agentes privados
44
ou são incapazes de serem custeadas diretamente por seus usuários ou
beneficiários. Daí vem a lume a parceria público-privada cujo teor reflete o desenvolvimento
de nova disciplina contratual para a delegação de serviços e obras públicas em que o Poder
Público assegura ao parceiro privado remuneração mínima, vinculada ou não ao seu
desempenho, ou, ainda, remunera-lhe integralmente pela prestação de atividade incapaz de ser
custeada diretamente por seus usuários ou beneficiários.
3.3 Aspectos destacados da Lei de Parcerias Público-Privadas
3.3.1 Conceito operacional de parceria público-privada
Da análise empreendida no item 3.2, quando se tratou das notas introdutórias sobre parcerias
público-privadas, se extraem elementos que apontam o caminho para o desenho de seu
conceito jurídico. Naquela oportunidade, a parceria público-privada foi reconhecida como
nova espécie de delegação de atividades de satisfação de interesse público, cujas diferenças
principais, em relação às concessões comuns, residiriam no valor econômico dos projetos que
44
“Basta citar, para justificar a PPP na Europa, com base nos estudos de PAUL LIGNIÈRES, que a esmagadora
maioria das linhas de TGV (trens de grande velocidade) não seria explorada por não assegurar a mesma
remuneração de outros negócios. Ora, é inegável o caráter fundamental dos transportes como elemento
viabilizador da integração européia, sem falar que a redução dos custos com transportes aumenta o volume de
negócios, aquecendo a economia como um todo. Tal externalidade positiva, por si só, explica o regime de PPP”.
(SOUTO, 2005a, p. 27).
se pretendiam viabilizados, na duração do ajuste e na disciplina jurídica da remuneração ao
particular (dada a presença de contraprestação pública), dentre outras inovações pontuais.
De fato, a identificação do conceito jurídico de parceria público-privada deve ser operada,
preferencialmente, levando-se em consideração o texto da própria Lei 11.079, de 30 de
dezembro de 2004, que fornece ao intérprete importantes subsídios.
A Lei de Parcerias Público-Privada oferece um conceito para o instituto consignando, no
caput de seu artigo 2º, que se trata de contrato administrativo de concessão, em duas
modalidades: patrocinada ou administrativa.
Destarte, aceitar a parceria público-privada como nova espécie do ato administrativo de
concessão traz relevantes desdobramentos, tanto sob a ótica pública quanto à privada. Como a
concessão é o ato administrativo formal e solene pelo qual o poder concedente outorga ao
particular o direito de explorar determinada atividade econômica, ou de executar um serviço
público (MORAES; WALD; WALD, 2004, p. 100-108), urge reconhecer que se aplica à
disciplina contratual o regime jurídico que lhe é inerente: de direito público.
A modalidade patrocinada corresponde, de acordo com o art. 2º, §1º da Lei 11.079/04, à
outorga à iniciativa privada da exploração de serviço ou obra pública, em que, ao lado das
tarifas cobradas diretamente do usuário, a contraprestação pecuniária do parceiro público
compõe a remuneração do parceiro privado.
a modalidade de concessão administrativa de parceria público-privada, nos termos do art.
2º, §2º da Lei 11.079/04, consiste “no contrato de prestação de serviços de que a
Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva a execução de obra
ou o fornecimento e instalação de bens”. Nesta espécie de concessão não se fala em serviço
público em sentido estrito, nos termos contemplados pela modalidade patrocinada, justamente
por se pretender delegados serviços públicos em sentido amplo, em que a Administração faz o
papel de usuário para efeito de custeio integral da atividade.
Na medida em que nesta etapa do presente estudo se objetiva a elucidação do conceito
jurídico da parceria público-privada, cumpre, neste momento, sublinhar tão-somente a
diferença básica das modalidades de parceria público-privadas contempladas pela Lei. Assim,
enquanto que na modalidade patrocinada a remuneração do parceiro privado é composta,
simultaneamente, de tarifas pagas diretamente pelos usuários e de contraprestação pecuniária
do parceiro público, na modalidade administrativa quem remunera integralmente o parceiro
privado é o parceiro público.
Ao lado da diferença quanto às fontes de remuneração observadas em suas espécies
sucintamente identificadas nas modalidades patrocinadas e administrativas, e do
reconhecimento do regime jurídico aplicável, outro importante subsídio para a composição do
conceito jurídico da parceria público-privada está no tratamento dado ao risco. De fato, o
tratamento do risco nas parcerias público-privadas pode ser apontado como um de seus traços
mais relevantes, que, efetivamente, a diferencia das demais espécies de contratação e de
concessão tradicionais.
Na esteira do aludido no subitem 3.2.1, quando se dissertou acerca do caminho transcorrido
desde as concessões e permissões tradicionais até o advento da parceria público-privada, não
é difícil observar a semelhança entre os contratos de concessão comuns e os da parceria
público-privada, porquanto, em ambos, o Estado delega a terceiro a prestação de serviço
público.
Acontece que, como analisado, nas concessões comuns o concessionário presta o
serviço por sua conta e risco enquanto que, nas concessões por parceria público-privada, o
parceiro privado mesmo assumindo a execução de determinadas atividades e a exploração de
obras públicas, fá-lo repartindo os riscos da empreitada com o parceiro público, como se
entende através da leitura do inciso VI, do art. 4
o
, e do inciso III, do art. 5
o
, todos da Lei
11.079/04
45
.
Por fim, e ainda com amparo no próprio texto da Lei 11.079/04, acaba revelando-se de
extrema utilidade a apreensão do art. 2
o
, § 4
o
, do mesmo diploma normativo, que prescreve
45
Art. 4
o
Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: [...]
VI – repartição objetiva de riscos entre as partes.
Art. 5
o
As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever: [...]
III a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e
álea econômica extraordinária.
limitações à aplicação do contrato de parceria público-privada. De acordo com o dispositivo
em comento, veda-se a utilização da parceria público-privada para projetos cujo: a) valor seja
inferior a vinte milhões de reais; b) período de prestação do serviço seja inferior a cinco anos;
c) objeto único seja o fornecimento de mão-de-obra, instalação de equipamentos ou a simples
execução de obra pública.
Os supracitados requisitos, prescritos no art. 2
o
, § 4
o
, da Lei n° 11.079/04, conferem, de
certo modo, coerência ao discurso que fundamenta a adoção da parceria público-privada
46
, na
medida em que condicionam a contratação por parceria a projetos de vultoso valor econômico,
para empreendimentos cuja Administração não disponha, em tese, de capital suficiente para
investimento.
Atribui-se, por via de conseqüência, ao parceiro privado, ao lado da necessidade de um
aporte considerável de recursos, um razoável lapso contratual capaz de possibilitar a
amortização do capital investido a médio e longo prazo. E, por fim, impede o uso de parcerias
público-privadas aos casos de simples fornecimento de mão-de-obra, instalação de
equipamentos ou execução de obra, situações já consagradas pela Lei n° 8.666/93.
Em apertada síntese:
a) as modalidades de parceria público-privada são admitidas por Lei como espécies de
concessão, em que, diferentemente das concessões comuns ou tradicionais, o parceiro privado
obtém do parceiro público contraprestação que lhe remunera integralmente ou em adição às
tarifas cobradas do usuário;
b) nesta forma de delegação de serviços ou obras públicas, e de outras atividades
destinadas à satisfação de interesses públicos, sublinha-se o compartilhamento de parte dos
riscos entre os parceiros, operado através da repartição objetiva dos riscos entre as partes;
46
Refere-se à insuficiência financeira do Estado para alocação de vultuosos recursos em áreas determinantes para
o desenvolvimento econômico e social do país (DI PIETRO, 2005, p. 158).
c) as parcerias são aplicáveis a projetos de vultoso valor econômico (de, no mínimo,
vinte milhões de reais), com estendido prazo de duração (de cinco a trinta e cinco anos)
47
, para
situações que não configurem simples fornecimento de mão-de-obra, instalação de
equipamentos ou execução de obra, já abrangidas pela disciplina da terceirização.
Ante todo o exposto, conclui-se que parceria público-privada é espécie de contrato
administrativo de delegação de atividades destinadas à satisfação de interesses públicos ou
exploração de obra pública, com, pelo menos, a repartição - entre os parceiros - dos riscos
inerentes à atividade, de prazo de duração prolongado e de vultoso valor econômico, em que
se sublinha a existência de contraprestação pública ao parceiro privado para a remuneração
da atividade, de modo integral quando, para efeito de seu custeio, o tomador da atividade for
o parceiro público, ou em adição à tarifa, quando o serviço ou obra pública comportar
cobrança direta dos usuários.
Dispondo de um conceito formulado, cumpre partir para a análise dos traços
fundamentais da Lei de Parcerias Público-Privadas para efeito de delinear seu real contorno
jurídico, apontando os desdobramentos das principais inovações frente às consagradas
disposições das concessões comuns.
3.3.2 A repartição de riscos
A Lei 11.079/04 consagra em diversas oportunidades explícita e implicitamente - a
repartição de riscos entre os parceiros, alçando-a inclusive ao status de diretriz a ser observada
dentro do procedimento e durante a execução da parceria.
47
Art. As cláusulas dos contratos de parceira público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever:
I – o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não inferior a 5
(cinco) anos, nem superior a 35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação.
Assim sendo, o inciso VI do art. da Lei 11.079/04 contemplou a repartição objetiva dos
riscos entre as partes como um dos valores a serem observados e perseguidos no curso da
implantação e execução de uma parceria, ao lado das seguintes diretrizes: 1) a eficiência do
Estado no cumprimento de suas funções e no emprego dos recursos públicos; 2) o respeito aos
interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos parceiros privados incumbidos de sua
execução; 3) a indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder
de polícia, e de outras atividades exclusivas do Estado; 4) a responsabilidade fiscal na
celebração e execução das parcerias; 5) a transparência dos procedimentos e das decisões; 6) a
sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.
O dispositivo em comento, da repartição dos riscos entre as partes, é de vital importância na
compreensão e fiel aplicação da parceria público-privada. O fato de a Lei de Parcerias
Público-Privadas não detalhar quais os riscos que hão de ser repartidos, e a qual parceiro eles
caberão, atribui à técnica interpretativa papel de extrema relevância, uma vez que
interpretações equivocadas do dispositivo sob análise poderiam, em tese, conduzir a uma
ampliação nociva da margem de discricionariedade do agente público, o que pode
comprometer, inclusive, a satisfação de interesses públicos.
É tarefa do operador, nesse contexto, buscar elucidar o verdadeiro sentido da repartição dos
riscos entre as partes para efeito de coaduná-lo ao ordenamento jurídico pátrio. E dita tarefa
não logra êxito se não for perfeitamente compreendido o exato significado e a extensão do
risco, pelo menos no que competirá ao parceiro público.
Conquanto a parceria público-privada tenha como escopo mediato tanto, por parte da
Administração, a satisfação de um interesse público, quanto, por parte do parceiro privado, a
percepção de vantagem econômica sobre a forma de lucro, existem variantes dentro da
execução de um projeto demandantes de cifras elásticas capazes de influir sobremaneira nos
fins perseguidos pelos parceiros. De fato, a parceria público-privada funda-se na lógica de que
nenhum dos parceiros têm disposição ou meios materiais para, singularmente, expor-se ao
insucesso, de não ver seu escopo alcançado, ou pelo menos, vê-lo embaraçado. E é que
entra a consideração do risco.
Enfim: dada a amplitude das searas que determinado projeto de parceria público-privada pode
alcançar, justamente por se pretender materializar, pela iniciativa privada, atividades não
atrativas ao mercado ou incapazes de serem prestadas pela lógica mercadológica, é prudente
reconhecer a possibilidade de ocorrência de eventos indesejados, imprevistos ou prejudiciais
que podem, porventura, influir no desempenho da parceria.
3.3.2.1 Espécies de riscos
A primeira questão a se suscitar diz respeito a de quais riscos a Lei de Parceria Público-
Privada trata, ou ainda, quais ela pretende ver repartidos. Vanice Lírio do Valle entende que os
próprios incisos do art. da Lei 11.079/04 revelam os riscos que, a priori, refere-se o
texto: riscos econômicos, quando se alude à sustentabilidade financeira, e o respeito aos
interesses e direitos do parceiro privado; riscos sociais, quando é eleita como diretriz a
consideração das vantagens socioeconômicas dos projetos de parcerias, e o respeito aos
interesses e direitos dos destinatários do serviço; e riscos políticos, na medida em que se exige
transparência dos projetos e das decisões (2005, p. 58).
A autora, enquadrando os riscos nas categorias expostas, enuncia uma gama deles que devem,
necessariamente, ser considerados para efeito de serem compartilhados entre os parceiros, de
acordo com a capacidade e competência de cada um para suportá-los. Assim, dentro de uma
contratação por parceria público-privada, podem ser identificados “riscos de construção, riscos
financeiros, riscos de performance, riscos de demanda e riscos quanto ao valor residual dos
ativos”. Ainda na percepção de Valle, considerando ditas variantes à luz do caso concreto,
poder-se-á identificar quais riscos que envolvem determinado projeto, e quais devem ser
suportados por qual parceiro (2005, p. 66).
Cliff Hardcastle e Kate Boothroyd fornecem classificação distinta dos riscos, sintetizados por
Alexandre Wagner Nester da seguinte forma: 1) Risco sistemático, ou de mercado, decorrente
das mudanças gerais das condições de um determinado sistema econômico. Tem como
exemplo as mudanças no nível de produção industrial, a alteração do preço de determinados
insumos (como energia elétrica), ou mudanças derivadas de impactos ambientais; 2) Risco
não-sistemático, ou específico, associado a determinado bem, empresa ou segmento do
mercado. Dá-se, a título ilustrativo, pela introdução de novo produto, mudanças de
gerenciamento, esgotamento de recursos naturais (jazidas), entre outros; 3) Risco de crédito
decorrente da possibilidade de inadimplemento de dívidas assumidas; 4) Risco da “parte
contrária”, inerente a qualquer processo de negociação, em que se admite a possibilidade de
inadimplência de um dos contratantes, em decorrência de fatores diversos; 5) Riscos
operacionais, decorrentes de toda sorte de fatores, tais quais erro humano, controle
inadequado, falhas de sistema; 6) Risco legal, derivado de alterações legislativas ou
regulamentares capazes de modificar a ordem jurídica, gerando conseqüências adversas aos
empreendimentos em curso; 7) Risco político, de que decisões de cunho político empreendidas
pela Administração Pública possam afetar o destino do empreendimento. (JUSTEN;
TALAMINI (org.), 2005, p. 179-181).
Ainda, a título de exemplo, toma-se o estudo publicado pelo Departamento de Finanças da
Província da Nova Scotia, no Canadá, em que se conclui que qualquer das modalidades
variáveis e específicas de riscos inerentes aos projetos de parceria público-privada tendem a se
ajustarem dentro de uma das seguintes categorias: risco de propriedade, risco operacional,
risco financeiro ou econômico, e risco associado aos atos da natureza (NOVA SCOTIA
DEPARTMENT OF FINANCE, 1997, p. 10).
Ante os exemplos aventados é possível observar que a classificação das espécies de
riscos variam de acordo com os referenciais tomados para análise. Reconhecendo-se que,
sobre as parcerias em abstrato, incide uma ampla e variada gama de riscos, resta apontar quais
efetivamente são determinantes à disciplina jurídica das parcerias público-privadas, ou, em
outros termos, quais hão de ser objetivamente repartidos.
A elucidação de dita colocação se desnuda diante da análise da disciplina legal da
delegação de serviços e obras públicas em geral, em especial, frente à operada distinção
entre a concessão comum e a parceria público-privada. Trata-se, especialmente, da repartição
do risco econômico imediato, ou dos resultados do desempenho econômico da atividade.
3.3.2.2 Risco econômico
O tratamento dado à assunção dos riscos pelo concessionário que ocorre nas
concessões comuns não prevalece nas concessões por parceria público-privada, uma vez que
em suas modalidades, o parceiro privado conta com contraprestação pública integral ou
adicional às tarifas cobradas, por parte do parceiro público.
Nas concessões comuns, cabe ao concessionário a busca pela rentabilidade econômica
da atividade diretamente, através dos próprios mecanismos de mercado, ou, em outras
palavras, por preços pagos diretamente pelos usuários pelo uso do serviço ou da obra. Por não
haver remuneração direta garantida pelo Poder Público, o concessionário assume, nas
concessões comuns, o risco econômico do negócio,
[...] isto é, o risco de que as tarifas a serem cobradas durante a execução do contrato
serão suficientes para cobrir o investimento realizado [...] Assim, ao menos em
princípio, se o resultado da atividade for favorável, o concessionário (que se
responsabilizou pelos encargos do empreendimento) embolsa os lucros, se não, arca
com o prejuízo (NESTER in JUSTEN;TALAMINI, 2005, p. 183).
Já, nas concessões por parcerias público-privadas:
[...] o risco normal do empreendimento deixa de ser transferido para o
concessionário, passando a ser arcado pelo Poder Público. Quando menos, passa a
ser compartilhado entre os parceiros público e privado, mas com uma participação
relevante do Estado nessa divisão (NESTER in JUSTEN;TALAMINI, 2005, p.
186).
É inegável a distinção: nas concessões comuns, o risco - ou a plausibilidade de
desempenho econômico insatisfatório da atividade - ficava integralmente ao encargo do
concessionário. Na medida em que é assegurada a contraprestação pública, parte ou totalidade
do risco econômico - de perda monetária relativa ao desempenho econômico da atividade - é
retirada do parceiro privado, sendo assumida por aquele que está oferecendo a
contraprestação; no caso, o parceiro público.
Entretanto, cabe esclarecer quem passa a assumir riscos de quem. Em outros termos, é
o parceiro privado que assume riscos relevantes, antes do Estado, ou é o Estado que assume
riscos econômicos que antes estavam a cargo do explorador da atividade?
Dita colocação assume relevância prática na medida em que a opção pela primeira
orientação poderia pôr o parceiro público em vantagem desproporcional frente ao parceiro
privado, atribuindo a este apenas riscos de repercussão aparentemente irrelevantes à esfera
pública, como os referentes aos de desvalorização de ativos. Desvirtuar-se-ia o fim perseguido
pela parceria, uma vez que, apesar de pretensamente repartirem-se os riscos, o parceiro
público, no fundo, funcionaria como mero garantidor do sucesso econômico da empreitada do
parceiro privado, o que não é, a todas as luzes, a vontade constitucional estampada no art.
da CRFB.
É corriqueiro, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional considerar a repartição
de riscos como a transferência de parte deles pelos governos à iniciativa privada
48
. Nesta
esteira, como lembra Valle, segue o tratamento dispensado pela União Européia, para quem
cabe ao setor privado a transferência de riscos que habitualmente eram suportados pelo setor
público (2005, p. 59).
Entretanto, a consideração de uma sutil particularidade desfaz a aparente confusão conceitual:
o risco é intrínseco à própria atividade que se pretende explorar. Em outras palavras, o risco
econômico é do próprio serviço, obra pública ou atividade delegada, e não da qualidade do
sujeito. Por isso, não que se falar em transferência de riscos da esfera pública para a
privada.
48
“Risk transfer from the government to the private sector has a significant influence on whether a PPP is a more
efficient and cost-effective alternative to public investment and government provision of services”.
(INTERNATIONAL MONETARY FUND, 2004, p. 18).
Neste sentido: “An important issue in PPP arrangements is the sharing of risk between the public and the private
sector, or, more concretely, the transfer of risk from the public to the private sector”. (GERRARD, 2001, p. 11).
A afirmação de que o risco econômico remete à atividade e não ao sujeito explorador se
reporta à sustentabilidade econômica da atividade. Determinada atividade é ou não auto-
sustentável do ponto de vista mercadológico. Por esta razão, é impróprio falar em riscos
econômicos do Estado sendo transferidos para o parceiro privado. A atividade é que, sob o
ponto de vista econômico, é arriscada, passível de desempenho negativo.
Assim sendo, na hipótese de o parceiro privado concretizar o interesse de explorar a atividade
passível de concessão, está assumindo, em tese, o risco econômico: se a atividade pode ser
explorada segundo as regras de mercado, e assim pretende o concessionário, é a própria lógica
do mercado que o expõe à incerteza de sucesso.
Na medida em que se busca, junto ao parceiro público, garantia de ordem financeira para
compor sua remuneração, de modo a não tornar a atividade deficitária, está-se repartindo,
também junto ao parceiro público, o risco da inviabilidade econômica do projeto, ou o risco de
prejuízo financeiro por parte do parceiro privado.
É que não se pode negar que a asseguração ao parceiro privado de contraprestação pública
para compor-lhe sua remuneração equivale à diminuição do risco de inviabilidade financeira
do projeto a que este estava submetido.
De todo o exposto, entende-se que, ainda que incidam sobre os projetos de parceria público-
privada riscos de operação, de performance, ambientais, políticos, judiciais, de tecnologia, de
demanda, de crédito, entre outros, como novidade introduzida pela Lei de Parcerias Público-
Privadas a ser destacada tem-se a assunção, por parte da Administração, de parte do risco
econômico imediato da atividade delegada.
Vale ressaltar que se equiparam ao risco econômico da atividade, para efeito de
repartição com o parceiro público, os demais riscos aos quais a postura do parceiro privado
não tenha dado causa, mas capazes de influir imediatamente sobre o desempenho econômico
da parceria, como de performance, demanda e até mesmo crédito, entre outros. que é
propósito da parceria público-privada viabilizar investimentos em atividades não auto-
sustentáveis economicamente, todas as nuances que repercutem de modo imediato na
necessidade da existência de contraprestação pública, deixam de ser suportadas,
exclusivamente, pelo parceiro privado, passando a ser repartidas com o parceiro público.
Os riscos, mesmo capazes de influir imediatamente sobre o desempenho econômico da
parceria, mas atrelados, sobretudo, às opções de gestão e operação do parceiro privado, como
operação, tecnologia, desvalorização de ativos e riscos ambientais, não devem, noutro vértice,
ser repartidos com o parceiro público
49
. As escolhas metodológicas, empresariais e
tecnológicas do parceiro privado constituem o núcleo de competências que a atividade
empresarial privada encontra-se, em tese, melhor capacitada para desempenhar. Este
representa um dos escopos da parceria público-privada: se o Estado tivesse a expertise da
empresa privada nestes setores, exploraria a atividade diretamente. Partindo-se do pressuposto
de que o parceiro privado o faz em melhores condições, os riscos decorrentes de sua escolha
gerencial devem por ele ser suportados.
Outrossim, pretender que o parceiro público assuma outra gama de riscos como o risco
regulatório, legal ou político, não altera, como se pretende, a possibilidade de insucesso.
Qualquer espécie de risco que faça alusão ao poder normativo do Estado é sempre existente
numa sociedade democrática. E, quando alterações políticas supervenientes gerarem reflexos
sobre determinado contrato, prejuízos atinentes ao insucesso decorrente dessas posturas
deverão ser levados à esfera própria, para efeito de serem conhecidos e eventualmente
reparados.
3.3.2.3 Repartição objetiva de riscos
Identificada a existência de uma variada gama de riscos admitidos pela Lei, assim
como reconhecido que se pretende repartidos com o parceiro público, especialmente, o risco
49
Na disciplina tradicional de concessão, por exemplo, ditos riscos enquadram-se no conceito de álea ordinária da
atividade, a ser suportada exclusivamente pelo concessionário.
econômico, resta elucidar o alcance da diretriz que prescreve a repartição objetiva de riscos
entre as partes.
Como se compreende pela leitura das linhas precedentes, o risco da atividade em seu
viés econômico pode se traduzir na probabilidade plausível de desempenho econômico
insatisfatório da atividade. Trata-se do reconhecimento de que a atividade, objeto da parceria,
pode, mesmo explorada dentro da lógica mercadológica, não propiciar retorno suficiente
àquele que fez o aporte de recursos necessários a sua exploração, para efeito de cobrir os
custos de instalação/operação, ou remunerar-lhe adequadamente pela atividade desenvolvida.
Por essa razão, e esse é um dos núcleos centrais da parceria público-privada, deve-se,
de alguma forma, mitigar ou compensar eventual deficit observado na equação investimento/
retorno financeiro da atividade para efeito de viabilizar o interesse privado em projetos de
vultuoso valor econômico.
Assim sendo, a repartição objetiva de riscos como diretriz básica da parceria público-
privada significa que cumpre ao parceiro público oferecer, dentro das formas previstas em
contrato, na lei e em estrita obediência ao princípio da supremacia do interesse público,
retorno monetário suficiente e adequado ao parceiro privado para viabilizar o investimento e a
execução da atividade.
Todavia, mais que imputar ao parceiro público obrigação de contraprestação ao
parceiro privado, pela repartição objetiva de riscos deve-se entender a efetiva adequação do
investimento realizado pelo parceiro privado, considerando-se o retorno financeiro da
atividade, à contraprestação que cabe ao Estado. Deve haver equilíbrio, através da
demonstração objetiva de números, entre o montante investido e a projeção da receita com a
contraprestação que o parceiro público destinará ao projeto ao longo dos anos. Caracterizada
eventual desproporcionalidade, identificada, por exemplo, em concessão patrocinada com
contraprestação pública excedente, desnecessária à manutenção econômica da atividade, o
reduzido risco econômico do parceiro privado importará em desvantagem excessiva ao
interesse público.
No exemplo hipotético mencionado, não obstante a tarifa cobrada diretamente do
usuário fosse suficiente para a manutenção econômica da atividade, a coletividade ainda
destinaria parte de recursos para o parceiro privado. Este, ainda que percebesse renda direta
suficiente dos usuários, receberia renda complementar desnecessária do Estado, o que atenta,
em tese, contra o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
A repartição objetiva de riscos entre os parceiros, vale lembrar, adquire status de
postulado, cujos efeitos extrapolam a literalidade da diretriz estampada no inciso VI do art.
da Lei 11.079/04. O tratamento dado aos riscos pela Lei, em especial à repartição deles,
alcança outras diretrizes, como, por exemplo, a que exige responsabilidade fiscal na
celebração e execução das parcerias, e a que prescreve a consideração da sustentabilidade
financeira e das vantagens socioeconômicas dos projetos.
O enunciado que prevê a responsabilidade fiscal na celebração e execução das
parcerias
50
pressupõe, como condição indispensável a essas espécies de concessão, um
minucioso planejamento financeiro, transparência e controle. Recomenda o emprego dos
recursos públicos com austeridade, de maneira cuidadosa, cautelosa, em adequação, no que for
possível, aos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal
51
.
Para Valle, a responsabilidade fiscal de que trata o art. 1º, §1º da Lei Complementar
101/00, quando aplicada às parcerias público-privadas pressupõe “ação planejada e
50
Art. 4º, IV da Lei n° 11.079/04
51
Diz-se no que for possível não no sentido de atribuir ao administrador ampla discricionariedade, mas, sim, pela
incompatibilidade relativa entre os institutos. A problemática da adequação da Lei de Parceria Público-Privada à
Lei de Responsabilidade Fiscal reside justamente no lapso contratual de exploração da obra ou prestação do
serviço. Acontece que o prazo da parceria nunca pode ser inferior a cinco anos, ao passo que a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (norma ao qual a Lei de Responsabilidade Fiscal atribui adequação dos projetos comprometidores
de despesas) alcança somente o exercício fiscal subseqüente.
Ainda assim, a Lei de Diretrizes Orçamentárias deve, por sua vez, adequação às metas do Plano Plurianual, que
tem vigência de quatro anos. Como se vê, grande parte dos mecanismos legais de controle orçamentário tem
vigência inferior ao prazo mínimo contratual da parceria, o que nos leva a admitir que o planejamento de
determinada gestão pode comprometer receita e estabelecer metas para as gestões futuras, podendo haver, nos
anos que se passam, descompasso entre esse comprometimento de receita pública e o interesse público, pelo
interesse ou necessidade da atividade (NIEBUHR, 2007, p.322-324).
transparente, finalisticamente orientada à prevenção de riscos e correção de desvios
capazes de afetar o equilíbrio de contas públicas” (2005, p. 40, grifo no original).
O vínculo entre repartição de riscos e responsabilidade fiscal na celebração e execução
das parcerias se dá, no caso, pela simples constatação de que é através de recursos públicos
que se remunerará, total ou parcialmente, o parceiro particular; através de recursos públicos se
mitigará o risco econômico assumido pelo parceiro privado. Deve, desta feita, a destinação de
verba pública que atenderá à obrigação patrimonial e, conseqüentemente, à repartição de
riscos, dar-se de forma transparente, planejada e calculada.
Assim, em atenção ao raciocínio empreendido, faz-se imperativo o uso de ciências
econômicas, de contabilidade, sociológicas, dentre outras, para o mapeamento de todas as
variantes que possam, de alguma forma, influir sobre o equilíbrio econômico-financeiro da
parceria, de modo que reste perfeitamente acessível ao conhecimento do administrador
responsável o volume de receita que o parceiro público deve destinar durante a vigência da
avença e sua proporção dentro das projeções de receitas futuras.
Também em relação às diretrizes a serem observadas pelas parcerias público-privadas,
que se salientar a relação entre a repartição de riscos e a sustentabilidade financeira e
vantagens socioeconômicas dos projetos.
Destarte, duas realidades distintas devem ser diferenciadas: a sustentabilidade
econômica da atividade em abstrato e a sustentabilidade financeira específica do projeto de
parceria.
A sustentabilidade econômica da atividade em abstrato deve necessariamente ser
levada em conta para efeito de consideração da parceria público-privada como instrumento
ideal para delegação de serviço ou de obra pública. Em estando presente a sustentabilidade da
atividade, deve-se optar, em atenção ao princípio da economicidade, pela via menos onerosa
aos cofres públicos, que não comportem, a princípio, contraprestação pública alguma.
Reconhecendo-se auto-sustentável a atividade, deve-se optar por outro instrumento de
delegação que não a parceria. Como adverte Jorge Jacoby Ulisses Fernandes:
[...] verifica-se que existindo outros possíveis institutos que evitem a relação
promíscua entre recursos públicos e privados ou sejam suficientemente
atraentes para que a iniciativa privada assuma o risco, a PPP deve ser evitada
(2005, p. 5).
Coisa distinta é a sustentabilidade financeira de projeto específico. Essa diz respeito à
possibilidade da avença em concreto se manter tal qual acordada, obrigando a prestação do
serviço ou exploração da obra nas condições previstas no firmamento da parceria. Determina-
se que as condições da parceria hão de se manter nos termos pactuados, independente de
aportes financeiros ou repactuações imprevistas pelo menos na contraprestação pública.
Inexistindo meios de tanto o parceiro privado quanto o público destinarem recursos, ou
comprometerem receita para a execução e manutenção da atividade, a parceria não deve
prosperar, por ofensa à diretriz de sustentabilidade financeira do projeto. Neste caso, a
insustentabilidade financeira da parceria atingiria tanto o parceiro público, incapaz de adimplir
com suas obrigações, quanto o privado, carente de receita suficiente para remunerar-lhe
adequadamente.
Por fim, é conveniente a análise da diretriz que preconiza as vantagens
socioeconômicas do projeto à luz da repartição objetiva de riscos.
Um dos propósitos mencionados da parceria público-privada é justamente viabilizar
o investimento privado em atividades de rentabilidade econômica duvidosa, baixa ou ainda
inexistente, quando custeada diretamente por seus usuários. Dado o interesse público que
determinado projeto pode vir a atender, estimula-se o investimento privado, participando o
ente estatal com a contraprestação pública correspondente.
A posição a priori desfavorável da Administração na empreitada, consubstanciada pela
assunção de parcela significativa da remuneração do parceiro privado, e, por via de
conseqüência, de desequilíbrio no tocante aos riscos econômicos da atividade, pode ser
admitida útil e, por vezes, necessária, quando identificadas vantagens socioeconômicas
relevantes decorrentes da satisfação de interesses públicos primários, fundamentais.
3.3.3 Contraprestação pública
O tema da contraprestação pública verificada nas parcerias está intimamente ligado ao
tratado no item anterior, em que se analisaram aspectos referentes à repartição de riscos entre
os parceiros. A contraprestação, por derivar de receita ou patrimônio público, requer dos
agentes envolvidos tratamento cauteloso.
Integram a disciplina da contraprestação pública aspectos referentes: a) à duração da
avença razão pela qual é pertinente o estudo do fundamento do estendido lapso temporal na
amortização do investimento e as implicações decorrentes desta realidade; b) às formas de
remuneração em especial no tocante à correta compreensão das modalidades admitidas pela
Lei 11.079/04; c) à vinculação ao desempenho hipótese em que devem ser observadas
peculiaridades não contempladas expressamente pela legislação; d) ao compartilhamento de
ganhos econômicos – decorrentes, inclusive, da própria natureza de conjunção de esforços dos
parceiros, de repartição de ônus e bônus, em detrimento da noção de interesses contratuais
antagônicos; e) aos limites à contraprestação pública matéria acertadamente regulada pela
legislação, ainda que aplicável, em parte dos casos, à Administração Pública federal; e f) ao
sistemas de garantias e ao fundo garantidor.
3.3.3.1 Prazo de duração do contrato
Tal qual asseverado na oportunidade em que se discorreu acerca do conceito jurídico
das parcerias público-privadas, o art. 2º, §4º da Lei 11.079/04 proíbe a celebração de
parceria público-privada em contratos com período de prestação de serviços inferior a cinco
anos. Nesta esteira, no Capítulo II da Lei 11.079/04, em que se abordam disposições
relativas aos contratos de parceria público-privada propriamente ditos, o inciso I do art.
requer, no instrumento contratual, a previsão do “prazo de vigência do contrato, compatível
com a amortização dos investimentos realizados não inferior a 5 (cinco) anos, nem superior a
35 (trinta e cinco) anos, incluindo eventual prorrogação”.
A verba pública comprometida, dado o lapso temporal mínimo da parceria permitida
por Lei, guarda natureza de despesa de caráter continuado, que excede, necessariamente,
dois exercícios. Ademais, conforme lembra Souto, por se estar buscando junto ao particular a
prestação de um serviço à Administração, e por este serviço se remunerar o parceiro privado,
trata-se de despesa típica de custeio (2005a, p. 43).
A extensão temporal do contrato de parceria atrela-se, da mesma forma que a
repartição de riscos o faz, à própria natureza do instituto. A parceria público-privada envolve
elevados valores. Nos termos do §4º do art. 2º, é aplicável somente a contratos acima de vinte
milhões de reais.
Seria inócuo, portanto, o instrumento normativo que atribuísse à parceria prazo
contratual reduzido, justamente por inviabilizar o interesse da iniciativa privada na
empreitada. Para atrair o investimento de recursos privados a ponto de possibilitar a prestação
de um serviço ou a execução de uma obra desta natureza, a parceria tem que ser
economicamente vantajosa para seu explorador. E um dos vetores que conduz à viabilidade
econômica de determinado investimento reside, justamente, no prazo de amortização do
capital alocado. De acordo com Souto:
[...] Afinal, o que se busca na PPP são investimentos de grande porte, que não
podem se submeter a curtos períodos de retorno, sob pena de colocarem em risco a
modicidade das tarifas (nas concessões patrocinadas) ou a capacidade de pagamento
da Administração (nas concessões administrativas) (2005a, p. 36).
É oportuno suscitar que do estendido prazo contratual podem emanar efeitos capazes
de afetar o equilíbrio de contas públicas, não previstos pela Lei n° 11.079/04. Acontece que, se
de um lado, o prazo contratual das parcerias estimula e atrai o investimento privado, de outro,
atrela a Administração Pública a uma despesa de caráter continuado, vinculada ao objeto da
parceria.
A questão que se coloca diz respeito ao meio utilizado para a satisfação de determinado
interesse público, em havendo variantes não-consideradas à época do firmamento da parceria.
Em termos práticos: pode, em tese, ao longo dos anos, verificar-se um aumento extraordinário
na demanda por um serviço ou uma obra, suficientes para tornar a atividade auto-sustentável.
Subsistiria, assim, o interesse público que legitima a participação do parceiro público na
composição da remuneração do parceiro privado?
Ainda em termos hipotéticos, poderia ser prevista determinada demanda por serviço ou
obra ao longo dos anos, que fundamentaria o interesse público de forma a garantir
contraprestação pública ao parceiro privado. Contudo, os anos acabam por revelar que a
demanda havia sido superestimada, permanecendo a destinação de receita pública vinculada a
um serviço ou obra pouco utilizados.
Em ambos os casos, a estimativa de demanda elaborada à época do firmamento pode
fazer referência a uma realidade, uma situação, não verificável no futuro. No exemplo de
demanda superior, o parceiro público compromete receita desnecessariamente, uma vez ter o
projeto se revelado auto-suficiente; no caso de demanda inferior à estimada, o parceiro público
compromete verba pública em atividade que não atinge os fins que se pretendiam.
No entendimento de Valle, ditas situações, que acabaram desconsideradas pela
legislação, são, em tese, capazes de ensejar o desfazimento da parceria por vias distintas. Nos
projetos auto-sustentáveis, a solução seria avaliar se a manutenção do contrato não estaria
contrariando a subsidiariedade estampada no art. 173 da Constituição da República Federativa
do Brasil
52
. Explica-se: cessado o interesse público que justificava a manutenção do Estado na
parceria ou a destinação de verba pública ao projeto, por imperativo constitucional, haveria de
se remeter à iniciativa privada a titularidade da prestação do serviço, nos moldes admitidos em
lei (VALLE, 2005, p. 72-73).
na hipótese de desempenho insuficiente do projeto por estimativa de demanda não
alcançada, quando levada a cabo de modo não culposo, Valle admite como solução a
52
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei.
possibilidade da assunção, pelo Poder Público, da exploração direta do serviço ou da obra
(2005, p. 72). Entretanto, que se considerar a real vantagem da retomada da atividade para
sua prestação direta pelo Estado. Havendo destinação de contraprestação pública
desproporcional, em projeto com demanda efetiva muito inferior à estimada, a melhor
alternativa para preservar a continuidade da prestação eficiente de dada atividade, prestigiando
o escopo da parceria público-privada para se continuar a fazer uso da capacidade empresarial
privada em atividades não auto-sustentáveis, seria a repactuação dos termos contratuais, de
forma a garantir, proporcionalmente, expectativa de remuneração do parceiro-privado frente
ao investimento realizado, em consideração à verba pública destinada ao projeto.
3.3.3.2 Remuneração
A contraprestação pública que integra a remuneração do parceiro privado, forma, a todas as
vistas, outro aspecto do núcleo fundante da parceria público-privada. Enquanto que nos
demais contratos administrativos de prestação de serviço e fornecimento de bens regidos pela
Lei 8.666/93, exige-se a disponibilidade imediata de recursos para o desembolso no
momento da assinatura do contrato ou na entrega da obra, na parceira público-privada a
remuneração do parceiro privado dar-se-á periódica e continuamente, enquanto o serviço
tornar-se e mantiver-se disponível.
De fato, a contraprestação pública busca, pelo menos em parte, remunerar o parceiro privado,
tal qual a tarifa do usuário da atividade o faz nas concessões comuns. Na modalidade
patrocinada de parceria público privada, o parceiro público faz às vezes de usuário, oferecendo
ao parceiro privado receita que lhe complementa remuneração, periodicamente, para manter
viável a prestação da atividade. Na modalidade administrativa, a própria Administração é
considerada a usuária para efeito de custeio da atividade, e, na qualidade de tomadora do
serviço, remunera integralmente o prestador, no caso, o parceiro privado.
Dito isso e partindo para a análise das espécies de remuneração, constata-se, destarte,
que o legislador contemplou duas formas de contraprestação, as provenientes de fontes
pecuniárias e não-pecuniárias. É isto que se compreende pela leitura do art. da Lei
11.079/04, que enuncia o seguinte:
Art. 6º. A contraprestação da Administração Pública nos contratos de
parceria público-privada poderá ser feita por:
I – ordem bancária;
II cessão de créditos não tributários;
III – outorga de direitos em face da Administração Pública;
IV outorga de direitos sobre bens públicos dominicais;
V – outros meios admitidos em lei.
Enquanto que a ordem bancária e a cessão de créditos não tributários são modalidades de
contraprestação pecuniária, a outorga de direitos em face da Administração Pública e sobre
bens públicos dominicais são, na esteira do entendimento de Sundfeld, espécies de
contraprestação não-pecuniária. A grande importância da diferenciação é que, por força do §1°
do art. da Lei 11.079/04, existe concessão patrocinada quando a obrigação pública
envolvida tiver a natureza de contraprestação pecuniária. Desta feita, para efeito de se
configurar determinada contratação administrativa como concessão patrocinada, atendidos os
demais requisitos legais, que estar presente contraprestação pública de caráter pecuniário
em adição às tarifas cobradas diretamente dos usuários. Não resta defeso, nesta modalidade de
parceria, a composição adicional da contraprestação por formas não-pecuniárias. Acontece que
inexiste, aos olhos da legislação, concessão patrocinada sem contraprestação pecuniária
(SUNDFELD (org.), 2005, p. 29)
53
.
Convém salientar que a obrigatoriedade de a contraprestação guardar natureza pecuniária é
aplicada somente às concessões patrocinadas. Na modalidade administrativa, em que o
parceiro público custeia integralmente o parceiro privado, a contraprestação pública pode ser
composta, exclusivamente, de formas não-pecuniárias.
53
Sundfeld esclarece o sentido da norma. “A Lei das PPPs foi editada para tratar dos contratos de concessão em
que existam desafios especiais de ordem financeira: organizar a assunção de compromissos de longo prazo pelo
Poder Público e garantir seu efetivo pagamento ao particular. Para as concessões sem tais compromissos a Lei das
PPPs nada teria a dizer” (2005, p. 29). Em tais casos, não havendo obrigação patrimonial do Estado, estar-se-ia
diante de contratação por concessão comum.
De qualquer maneira, como inovações até então não contempladas pelas legislações
correlatas, dentro das espécies de contraprestação pecuniária urge a possibilidade da cessão
de créditos não-tributários, enquanto que, como contraprestação não-pecuniária, é arrolada a
possibilidade de outorga de direitos em face da Administração ou sobre bens públicos
dominicais.
Cabe investigar, então, no que consiste cada uma das citadas espécies de contraprestação
contempladas pela Lei 11.079/04. Neste diapasão, a compreensão da contraprestação
através de cessão de créditos não-tributários se pela decomposição do vocábulo. Por
cessão, admite-se a transferência do direito a outrem, enquanto que, por crédito tributário
entende-se o direito subjetivo que o sujeito ativo da obrigação tributária (Estado) tem de exigir
a prestação, de ver cumprida a obrigação por parte do sujeito passivo
54
.
Para se alcançar o conceito de crédito não-tributário, é necessária, ainda, a análise do
conceito de tributo, que forma o núcleo central da obrigação tributária. Assim, toma-se o
conceito oferecido pelo art. do Código Tributário Nacional Lei 5.172/66:
Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo
valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada.
Por ilação lógica, foge à natureza de fonte de receita tributária aquilo que não atender
a quaisquer dos requisitos para a configuração do tributo. Por isso é que, de maneira isolada ou
cumulada, não tem natureza tributária o crédito que: a) não advir de prestação pecuniária
compulsória; b) tiver como origem a prática de ato ilícito, b) não decorrer necessariamente de
lei; d) não tenha sido cobrado segundo procedimento fiscal apropriado, previsto em lei.
Nos termos postos, a título ilustrativo, afirma-se tratar como crédito de natureza não-
tributária o direito subjetivo da Administração à percepção de valores decorrentes de contratos
administrativos ordinários, como o direito de recebimento de receita proveniente da atuação
estatal enquanto agente empresarial, de somas referentes ao direito de propriedade, royalties,
54
Adotou-se, para os fins do presente estudo, o conceito de crédito tributário oferecido por Paulo de Barros
Carvalho (2004, p. 364).
direitos autorais, de franquia, além da perspectiva de recebimento de valores decorrentes da
aplicação de penalidades por práticas ilícitas, dentre outros.
A intenção da Lei de Parcerias Público-Privadas, portanto, é que, ao lado do pagamento
em espécie por ordem bancária, possa o parceiro privado dar-se como remunerado através da
assunção de créditos ordinários de titularidade da Administração Pública.
A segunda novidade como modo de contraprestação pública é a possibilidade de
remuneração através da outorga de direitos em face da Administração Pública, que se
relaciona em parte, ao conceito de receitas alternativas empregado nas concessões comuns.
Como exemplo da outorga, pela Administração, de direitos contra ela própria, Sundfeld
assinala o direito de uso alternativo de imóveis ou de construir acima do coeficiente de
aproveitamento de determinada localidade (2005, p. 28).
No mesmo contexto, a Lei 11.079/04 admite, ainda, a outorga de direitos sobre bens
públicos dominicais. Os bens públicos dominicais, de acordo com a classificação operada pelo
art. 99 do Código Civil, são aqueles não aplicados nem ao uso especial nem ao uso comum,
isto é, não são destinados a um serviço ou estabelecimento público, nem são aqueles abertos à
livre utilização de todos, como as ruas e praças. De acordo com Bandeira de Mello, são as
terras ou terrenos sobre os quais o Estado tem a senhoria, como qualquer outro proprietário
(2004, p. 838).
A outorga de direitos sobre bens públicos dominicais autoriza a exploração, por parte
do parceiro privado, de área de propriedade da Administração sem destinação específica. A
situação poderia abraçar, por exemplo, a exploração de área contígua de desapropriação para a
construção de estradas. Como lembra Wald, a exploração dessas áreas pode viabilizar o
estabelecimento de comércio, realização de loteamento imobiliário, ou, ainda, a exploração de
redes de fibra ótica ao longo das estradas (MORAES; WALD; WALD, 2004, p. 343).
Vale lembrar que as duas últimas hipóteses de contraprestação analisadas, de outorga
de direitos em face da Administração e a outorga de direitos sobre bens públicos dominicais
diferenciam-se, em sua essência, das receitas alternativas de que trata o art. 11 da Lei
8.987/95. Nestas, ditas fontes de receitas são, como descrito, complementares ou acessórias,
com vistas a favorecer a modicidade das tarifas. O Poder Público abre mão de direitos e
permite a exploração de bens dominicais, visando à diminuição dos encargos cobrados dos
usuários.
Nas parcerias público-privadas aquelas fontes de receitas podem compor a
remuneração do parceiro público, em sua totalidade nas concessões administrativas, ou, de
modo parcial, nas duas modalidades. Perdem o caráter exclusivamente acessório e
complementar para serem capazes de compor, de modo principal, as vias para o cumprimento
das obrigações assumidas pelos parceiros públicos.
Ademais, urge ressaltar que, estando presente a possibilidade de se preservar recursos
públicos na contraprestação assumida pelo parceiro-público, por apego aos princípios da
eficiência e da moralidade, o administrador que justificar a recusa pela via menos onerosa
ao contribuinte, portanto, das formas não-pecuniárias.
De qualquer forma, vislumbra-se que as novidades inseridas, no tocante às formas pelas quais
o parceiro público pode efetivar sua contraprestação, visam desvincular o Poder Público das
disponibilidades do Erário (SOUTO, 2005a, p. 45). Em casos específicos, a escolha de
modalidades de contraprestação por fontes diferente dos recursos orçamentários, pode
traduzir-se em resultados positivos, quando capazes de diminuir a carga tributária sobre o
cidadão-usuário, além de gerar receita pela percepção de novos tributos (pagos pelo agente
econômico pela exploração de atividades correlatas).
3.3.3.2.1 Vinculação ao desempenho
Outra importante inovação introduzida pela Lei 11.079/04 reside na possibilidade de
vinculação da remuneração do parceiro privado ao seu desempenho. Nos termos do parágrafo
único de seu art. 6º, fica autorizado “o pagamento ao parceiro privado de remuneração
variável vinculada ao seu desempenho, conforme metas e padrões de qualidade e
disponibilidade definidos no contrato”.
Como destaca Souto, embora a remuneração variável em função do desempenho fosse
a idéia original das parcerias, uma vez não ser seu escopo garantir renda mínima ao parceiro
privado, a Lei nº 11.079/04 optou por transformá-la em faculdade (2005a, p. 31).
Certo é que o dispositivo em análise não especifica em quais termos deva se vincular a
remuneração do parceiro privado. Cabe, assim, a analise genérica da vinculação por
desempenho para efeito de esclarecer a disciplina jurídica que autoriza sua utilização e os
requisitos necessários à sua previsão em instrumento contratual.
Avaliações administrativas orientadas por metas de desempenho não são novidades no
ordenamento jurídico pátrio
55
. O art. 37, §8º da Constituição da República admite a
possibilidade de ampliação, por contrato, da autonomia gerencial, orçamentária e financeira
dos órgãos e entidades da administração direta e indireta, mediante a fixação de metas de
desempenho para o órgão ou a entidade. Trata-se da figura do contrato de gestão
(GASPARINI, 2004, p. 640), que empresta à disciplina de parcerias público-privadas o
fundamento para o repasse de receita vinculado ao desempenho do parceiro.
Pelo contrato de gestão, também denominado acordo-programa, a Administração
Pública firma parcerias com entidades da própria Administração direta ou indireta, ou, ainda,
com organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público,
comprometendo-se a repassar regularmente recursos em contrapartida do cumprimento, pelas
últimas, de determinado programa de atuação, com metas definidas e critérios precisos de
avaliação (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 212-223).
Salta aos olhos a importância que adquirem as questões referentes aos indicadores e à
avaliação do desempenho empreendidas nos contratos de gestão, similar, em muito, às que se
pretendem realizadas nas parcerias público-privadas. É que, tal qual assinalado, de acordo com
55
Como salienta Bandeira de Mello, ao passo que o primeiro ato normativo a mencionar contratos de gestão
remonta à 1991, através do Decreto 137/91, a primeira Lei foi a 8.246/91, em que se instituía o “Serviço
Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais.” (2005, p. 211).
o parágrafo único do art. da Lei 11.079/04, o desempenho do parceiro privado será
aferido pela avaliação das metas e padrões de qualidade e disponibilidade definidos no
contrato.
Enquanto as metas podem ser definidas como os objetivos, patamares a serem
atingidos por determinada atividade, os padrões de qualidade remetem à esfera subjetiva, a
uma escala de valores que permite avaliar a satisfação daquele serviço. A seu turno, padrões de
disponibilidade dizem respeito àquilo que está disponível, pronto para ser usado. Confira-se o
esboço de Bento referente ao conteúdo sobre o qual as metas de desempenho e os indicadores
de qualidade são usualmente avaliados nos contratos de gestão:
Entre as metas de desempenho merecem menção: (1) eficiência de gestão;
(2) resultado econômico financeiro; (3) abrangência de atuação; (4)
qualidade e satisfação do usuário [...]
Os indicadores de eficiência incidem sobre a relação entre os recursos
utilizados e os resultados obtidos. A melhoria na gestão pode ser medida
comparativamente com outras organizações congêneres ou com a própria
organização em exercícios anteriores [...]
As metas de abrangência de atuação são estabelecidas em função do
crescimento da organização, sua ampliação para outras áreas de atividade ou
novos espaços que não eram cobertos pelo serviço [...]
Os indicadores de qualidade, por sua vez, dizem respeito à relação entre os
resultados efetivamente alcançados e as metas propostas. Pode ser
mensurado com base em critérios técnicos ou com base em pesquisa de
opinião pública sobre a satisfação do usuário. (2003, p. 135).
Como visto, a avaliação de metas e padrões de qualidade possibilita que, na medida em
que o parceiro privado alcance coeficientes referentes à eficiência da gestão, à qualidade e
disponibilidade da atividade, sejam-lhe repassados, de modo proporcional, valores
previamente pactuados.
Através da vinculação ao desempenho, da forma tal qual desenhada, o parceiro público
busca a prestação ou execução de serviço ou obra de modo exemplar. Enquanto isso, o
parceiro privado receberá montantes de acordo com o alcance de determinadas metas ou
padrões pré-estabelecidos. Remunerando o parceiro privado por seu desempenho, o parceiro
público tem disponibilizado importante instrumento de controle quanto à satisfação do
interesse público, premiando ou não o parceiro privado por sua disposição em atender os fins
públicos perseguidos.
Verifica-se, de antemão, que a vinculação da remuneração ao desempenho do parceiro
privado deve dar-se em consideração a critérios a que efetivamente se reporte a iniciativa, sob
pena de punir ou premiar desempenho decorrente de atos ou fatos a que o parceiro privado não
tenha concorrido para sua consecução.
No entendimento de Bento:
Com efeito, a eficácia na prestação de um serviço é um conceito qualitativo,
que não pode ser facilmente mensurado, ainda que se entenda que a
qualidade resulta do cruzamento de vários critérios quantitativos
escalonados segundo um juízo de valor. Vários indicadores podem se alterar
segundo circunstâncias e variáveis exógenas à organização, não previstas
pelo acordo e não captadas pelos sistemas de avaliação. De resto, a noção de
causalidade é tão precária objetivamente que nunca se pode afirmar com
absoluta segurança quais resultados se devem à atuação da organização e
não a outros fatores, ou se a melhoria na gestão se deve à celebração do
acordo, à flexibilização dos procedimentos ou a outras contingências (2003,
p. 137).
A todas as luzes, o objetivo do parágrafo único do art. da Lei 11.079/04 é de
considerar o esforço e os atributos pessoais do parceiro privado para efeito de recompensar a
utilização de novas tecnologias, investimento constante em equipamentos, enfim, na utilização
de técnicas que melhor atendam ao interesse público. Em sentido oposto, se mal atendido o
interesse almejado pela parceria, sub-aproveitada a atividade em razão da utilização de
equipamentos obsoletos e tecnologias ultrapassadas, dentre outros fatores, menor deve, por via
lógica, ser a contraprestação pública.
a necessidade, entretanto, de sempre se buscar estabelecer limites à verba destinada
à remuneração variável do parceiro privado, sob pena de, no futuro, o parceiro público arcar
com elevado ônus financeiro, decorrente da estimativa equivocada de demanda do serviço, por
exemplo.
Do exposto, emana mais uma vez a importância que adquire o planejamento, a
consideração de variantes e de fatores externos capazes de influir sobre determinado projeto,
assim como o gerenciamento de riscos. Nem o parceiro privado pretenderá se submeter à
remuneração incerta, nem deve o parceiro público assumir tal compromisso, sob pena de
infração ao princípio da moralidade.
3.3.3.2.2 Compartilhamento de ganhos econômicos
O compartilhamento de ganhos econômicos entre os parceiros decorre, a primeira
vista, da idéia motriz do instituto da parceria, entendida como espécie de conjunção,
colaboração, cooperação de esforços para a realização de fins comuns, no caso, o oferecimento
de determinado serviço ou obra.
O comprometimento de ambos parceiros em função da distribuição de encargos de
acordo com a melhor capacidade de cada um para suportá-los, reflete, por via de
conseqüência, na proporcional distribuição dos bônus referentes aos resultados em razão do
gerenciamento daqueles encargos. Desta sorte, se o parceiro público concorreu para a redução
dos gastos com financiamento, deve-lhe ser repartido o ganho econômico advindo dessa
redução. Esse é o sentido do inciso IX do art. 5º da Lei nº 11.079/04:
Art.As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao
disposto no art. 23 da Lei 8.987, de 12 de fevereiro de 1995, no que
couber, devendo também prever:
IX - o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos
econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de
crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado;
Acontece que, na medida em que se admite que o parceiro privado busque a captação
de recursos para o investimento por intermédio de financiamento junto a entidades financeiras,
reconhece-se intrínseca à capacidade de pagamento do financiamento, caracteres pertinentes
ao desempenho do parceiro público - que, como salientado, remunerará, total ou
parcialmente, o parceiro privado - e às garantias prestadas para o cumprimento das obrigações
assumidas pelo parceiro público.
Em outras palavras, influi sobre a expectativa de sucesso do parceiro privado, em parte,
a postura do parceiro público relativa ao cumprimento de seus compromissos e às garantias
postas à disposição do parceiro privado, o que reflete, por via direta, na aferição do risco de
inadimplência do financiamento da operação, que compõe, inegavelmente, o custo do crédito.
O que se reconhece é que a conduta do parceiro público na celebração e na execução
de determinada parceria pode influir, decisivamente, sobre os encargos praticados no
financiamento do investimento. Daí é que, em sendo positiva a postura do parceiro público, no
sentido de buscar a diminuição do risco de inadimplência, torna-se necessária prever a
repartição de ganhos econômicos advindos da diminuição dos encargos praticados pela
instituição financiadora.
É o que assevera Di Pietro:
A regra se justifica porque, para as parcerias público-privadas, ao contrário
do que ocorre na concessão de serviços públicos, o poder público poderá
oferecer garantias ao financiador do projeto (art. 5º, §2º), reduzindo, dessa
forma, os riscos do empreendimento e possibilitando maiores ganhos
econômicos pelo parceiro privado, aos quais deverão ser compartilhados
com o poder público. Por exemplo, se o financiador impõe encargos
financeiros menores para outorga do financiamento, o parceiro privado será
beneficiado e deverá repartir esse benefício com o parceiro público,
reduzindo proporcionalmente o valor de sua proposta. (2005, p. 172).
A dificuldade reside, ao que parece, na aferição de eventual ganho do parceiro privado
no tocante à diminuição de encargos de financiamento, decorrente da participação pública em
sua remuneração, e nas garantias prestadas para o cumprimento daquelas obrigações. De
qualquer maneira, eventual diferença pode ser computada pela comparação dos custos daquele
financiamento nos termos da parceria, frente a uma hipotética captação de recursos ordinária,
caso o projeto fosse executado, por exemplo, por concessão comum.
O interessante é que, advindo ganho econômico efetivo, decorrente de atos e/ou da
qualidade do parceiro público, é imperativo que o parceiro privado o reparta, por força da
literalidade do caput do art. da Lei 11.079/04. Ademais, admitindo-se que a redução do
risco de inadimplência possa se dar durante a execução da parceria, pode a repartição revestir
a forma de ingresso aos cofres públicos, abatimento na contraprestação pública, ou, ainda,
decréscimo das tarifas cobradas diretamente dos usuários, na hipótese que melhor atender ao
interesse público.
3.3.3.2.3 Limites à contraprestação pública
Outra questão de especial relevância diz respeito à imposição de limites ao comprometimento
de receita pública com parcerias. De fato, da necessária entrega da obra ou disponibilidade do
serviço para o recebimento de contraprestação pública
56
, assim como do próprio caráter
contínuo e periódico da contraprestação, constata-se a natureza incerta e futura do impacto da
despesa pública assumida aos orçamentos vindouros.
E é da incerteza quanto ao impacto da despesa pública assumida que gravita o núcleo da
limitação à contraprestação pública. Amparado em exemplos como o verificado em Portugal,
constatou-se em certos casos a impossibilidade de pagamento da prestação devida pelo Estado
(SOUTO, 2005a, p. 40).
Portugal desenvolveu, com destaque, parcerias nos setores de rodovias e de saúde, sendo que,
no primeiro, implantou um modelo de concessão de rodovias em que o parceiro público
remunerava o parceiro privado em razão do tráfego verificado, sem a necessidade de cobrança
de pedágio dos usuários. Ocorre que, devido a erros de projeto e de execução, dentre os quais
se destaca a malfadada falta de controle sobre o valor total contratado, à época dos estudos
projetou-se que em 2007, caso permanecesse inexistindo cobrança de pedágio dos usuários, o
valor a ser pago pelo Poder Público corresponderia ao dobro do valor do orçamento do órgão
estatal encarregado de todo o setor viário (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 276, 277).
Prevendo que o endividamento por parcerias pudesse se tornar realidade no contexto político
brasileiro, em que medidas imediatistas são rotineiramente tomadas, sem a necessária
avaliação do impacto financeiro sobre gestões vindouras, e amparada na proteção
constitucional do patrimônio público, desenhada pelo regime jurídico próprio da
Administração Pública, a Lei de Parcerias Público-Privadas estabelece pelo menos três
espécies de limites à contratação por parcerias: a) em relação à proporção da contraprestação
pública sobre a remuneração total do parceiro privado, nas concessões patrocinadas; b) em
56
Art. 7º A contraprestação da Administração Pública será obrigatoriamente precedida da disponibilização do
serviço objeto do contrato de parceria público-privada.
relação ao impacto das obrigações assumidas pelo parceiro público sobre o orçamento; c) em
relação à participação da Administração indireta federal e entidades fechadas de previdência
nas operações de crédito da sociedade de propósito específico.
No tocante às concessões patrocinadas, de acordo com o § do art. 10 da Lei 11.079/04:
As concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento) da
remuneração do parceiro privado for paga pela Administração Pública
dependerão de autorização legislativa específica.
Parcerias dessa espécie, com contraprestação pública que compõe 70% da remuneração do
parceiro privado, fazem referência a atividades de rentabilidade econômica baixa, mas com
expectativa de, pelo menos, razoável retorno social. Desta forma, a Lei estabelece limites ao
administrador público, exigindo que, para dar seguimento à contratação, o Legislativo, órgão
encarregado da aprovação do orçamento, reconheça e chancele a capacidade de pagamento do
Poder Público, autorizando a parceria.
Em referência ao impacto da despesa com parcerias sobre o orçamento propriamente dito, de
acordo com o art. 22 da Lei 11.079/04, a União somente pode contratar por parceria
público-privada quando: a) as somas das despesas de caráter continuado, derivadas de todas as
parcerias contratadas, não tiverem excedido, no ano anterior, a 1% da receita líquida do
exercício; e b) cumulativamente, as despesas anuais dos contratos vigentes, nos 10 anos
subseqüentes, não excedam a 1% da receita corrente líquida, projetada para os respectivos
exercícios.
Por versar sobre normas gerais e em respeito à autonomia gerencial dos entes administrativos,
o art. 22 da Lei 11.079/04 aplica-se, como dito, tão-somente à Administração Pública
federal. Ocorre que a limitação de destinação de receita às parcerias é, a todas as luzes,
instrumento de grande valia, na medida em que minimiza a possibilidade de endividamento
irresponsável do ente federado, razão pela qual merece, o dispositivo, tratamento similar
devidamente proporcional pelos demais entes da Federação.
Repita-se, deste modo, que, na esfera federal, é expressamente proibida a celebração de nova
parceria se extrapolados os limites orçamentários destinados a essa espécie de contratação. Os
limites para gastos com parceria, como dito, são, cumulativamente, de 1% (um por cento) da
receita líquida do exercício e no período de 10 anos (SOUTO, 2005a, p. 39).
A Lei nº 11.079/04 presta atenção às despesas com parcerias assumidas por empresas
públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União, assim como as assumidas
por entidades fechadas de previdência complementar
57
. De acordo com o art. 27 da citada Lei,
a participação de entidades da Administração indireta federal (empresas públicas e sociedades
de economia mista) não pode exceder 70% do total das fontes de recursos das sociedades de
propósito específico, incumbidas da gerência das parcerias, ou 80% nas áreas em que o Índice
de Desenvolvimento Humano for inferior à média nacional.
Da mesma forma, quando as operações de crédito forem realizadas cumulativamente por
entidades fechadas de previdência complementar, além de empresas públicas e sociedades de
economia mista controladas pela União, o total dessas fontes de recursos públicos para
sociedade de propósito específico não pode exceder a 80% e 90%, respectivamente.
Vale frisar a pertinência da preocupação da Lei de Parcerias Público-Privadas em limitar a
participação da Administração indireta federal como fonte de recursos das sociedades de
propósito específico. A negativa de limitação da participação pública no capital da sociedade
poderia, em hipótese, equivaler à entrega à iniciativa privada do lucro advindo da exploração
de serviço ou obra sem que o parceiro privado assumisse risco substancial na empreitada.
Atende-se, com essa exigência, a diretriz expressa no inciso VI do art. 4
o
da Lei 11.079/04,
que prescreve atenção à repartição objetiva dos riscos entre as partes.
57
Art. 27. As operações de crédito efetuadas por empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas
pela União não poderão exceder a 70% (setenta por cento) do total das fontes de recursos financeiros da
sociedade de propósito específico, sendo que, para as áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde o
Índice de Desenvolvimento Humano – IDH seja inferior à média nacional, essa participação não poderá exceder a
80% (oitenta por cento).
§ 1
o
Não poderão exceder a 80% (oitenta por cento) do total das fontes de recursos financeiros da sociedade de
propósito específico ou 90% (noventa por cento) nas áreas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde o
Índice de Desenvolvimento Humano IDH seja inferior à média nacional, as operações de crédito ou
contribuições de capital realizadas cumulativamente por:
I – entidades fechadas de previdência complementar;
II – empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União.
§ 2
o
Para fins do disposto neste artigo, entende-se por fonte de recursos financeiros as operações de crédito e
contribuições de capital à sociedade de propósito específico.
Como o escopo da parceria público-privada é, justamente, viabilizar o emprego de vultosas
quantias provenientes da esfera privada a serviços ou obras públicas, desvirtuar-se-ia o
instituto, caso fosse viável sua execução quase que inteiramente com recursos públicos, ou
mediante as operações de crédito tomadas em nome do parceiro público.
Entende-se, desta forma, que a participação do parceiro privado em menos de 10% do capital
da sociedade é presunção de que a Administração Pública poderia, por si só, prestar o serviço
ou realizar a obra, sem que fosse necessário entregar a um agente privado eventual receita
oriunda da tarifa cobrada dos usuários. Em casos como esse, se a busca é pelo emprego de
novas tecnologias ou melhora na eficiência da prestação do serviço ou exploração da obra, a
Administração poderia simplesmente outorgar à capacidade empresarial privada a gestão do
serviço, remunerando-lhe, para tanto, através dos meios consagrados no ordenamento
nacional, como a terceirização.
Não se trata, cabe ressaltar, de óbice à participação pública nesses patamares. Os limites a que
se faz alusão se prestam, sim, a condicionar a participação pública nesses projetos a um maior
debate e controle, a fim de evitar comprometimento abusivo e irresponsável do patrimônio
público.
3.3.3.3 Sistema de garantias
O sistema de garantias regulado pela Lei n° 11.079/04 contempla previsões não aventadas nas
concessões comuns, justificadas na inexistência, até então, de contraprestação pública, já que a
atividade era explorada por conta e risco próprios do concessionário.
O aprimoramento de novos instrumentos destinados a prever a colaboração pública na
prestação de atividades concedidas, acabariam perdendo eficácia caso não fossem, da mesma
forma, aperfeiçoados mecanismos capazes de garantirem a adimplência daquela obrigação.
Isto porque a realidade demonstra que o Estado é um mau pagador. Nas palavras de
Adilson de Abreu Dallari:
Como é público e notório, o Poder Público é um devedor permanentemente
inadimplente. Os credores do Poder Público comem o pão que o diabo
amassou, pois a única forma de compeli-lo a pagar coercitivamente suas
dívidas é por meio da expedição dos precatórios judiciais, previstos no art.
100 da Constituição Federal. Mas, também como é sabido, em todos os
níveis de governo avolumam-se os precatórios que não são pagos, como
conseqüência perversa e atual de muitos anos de irresponsabilidade fiscal
(BRANCO; DALLARI, 2006, p. 131)
Imbuído do espírito de combate ao calote estatal, e com vistas a imprimir segurança às
relações contratuais, é que foi concebido o sistema de garantias da Lei nº 11.079/04.
De acordo com Di Pietro, três espécies de garantias, em sentido amplo, são previstas na Lei
de Parcerias Público-Privadas, a saber: a garantia de execução do contrato, prestada pelo
parceiro privado ao público; a garantia de cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas
pelo parceiro público perante o privado; e a contragarantia, prestada pelo parceiro público à
entidade financiadora do projeto (2005, p. 172).
A garantia de execução do contrato, por parte do parceiro privado, não se difere das
existentes nas várias modalidades de contratos administrativos (DI PIETRO, 2005, p. 172),
enquanto que os dois demais tipos de garantias são peculiaridades exclusivas das parcerias
público privadas.
A garantia de cumprimento das obrigações pecuniárias assumidas pelo parceiro
público perante o parceiro privado tem como escopo, como salientado, fornecer meios reais
para salvaguardar a este que seu esforço não será frustrado; a expectativa de recebimento da
contraprestação acordada será, ao final, honrada (SOUTO, 2005a, p. 47).
Assim, nos termos do art. da Lei 11.079/04, pode a garantia prestada pelo parceiro
público assumir as seguintes formas:
I vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da
Constituição Federal;
II instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei;
III – contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não
sejam controladas pelo Poder Público;
IV garantia prestada por organismos internacionais ou instituições
financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público;
V garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para
essa finalidade;
VI – outros mecanismos admitidos em lei;
Destacam-se do artigo, dessa forma, os fundos especiais ou o fundo garantidor (incisos II e
V), além do seguro garantia e da garantia prestada por organismos internacionais ou
instituições financeiras controladas pela iniciativa privada.
Na percepção de Souto, o melhor formato de garantia para o mercado seria o seguro-garantia
previsto no inciso III do artigo da Lei 11.079/04, que, contudo, apresenta custo elevado e
exige o desembolso de valores, por parte do parceiro público, no momento da contratação
(2005a, p. 47).
Ademais, ainda com amparo ao raciocínio de Souto, organismos internacionais de fomento,
como o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento BIRD, fornecem
garantias e até financiam recursos para a criação de unidades de parcerias público-privadas,
para sustentar fundos ou projetos específicos (2005a, p. 48), em hipótese admitida pelo inciso
IV do artigo 8º da Lei 11.079/04.
Interessante, entretanto, é o estudo de uma das mais importantes inovações na matéria, a
garantia prestada pelos fundos.
3.3.3.3.1 Os fundos garantidores
A leitura dos incisos II e V, ambos do art. da Lei 11.079/04, revelam estar-se diante de
duas espécies de fundos: os especiais, previstos pelo inciso II, e o fundo garantidor geral, do
inciso V. No primeiro caso, garante-se a contraprestação específica de determinado contrato de
parceria através da instituição e utilização de fundo especialmente concebido para projeto(s)
específico(s), ao passo que na segunda hipótese a garantia é prestada por fundo criado para
parcerias público-privadas em geral, a exemplo do que ocorre com o Fundo Garantidor de
Parcerias Público-Privadas (FGP), instituído pela União, no art. 16 da mesma Lei (DI
PIETRO, 2005, p. 174).
O conceito jurídico de fundo especial vem estampado na Lei 4.320, de 17 de março de
1964, que institui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos
orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Por
força de seu art. 71, “constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se
vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas
peculiares de aplicação”.
Do enunciado extrai-se a falta de personalidade jurídica dos fundos
58
, uma vez tratar-se de
montante, ou soma de recursos, que, por força de lei, vinculam-se a determinado fim,
observado o art. 167, IV da Constituição da República Federativa do Brasil
59
. No caso em tela,
patrimônio e renda de entidades da Administração direta ou indireta, desde que não defeso em
lei, são destinados para a garantia do pagamento de prestações pecuniárias nas parcerias
público-privadas (DI PIETRO, 2005, p. 173).
A falta de personalidade jurídica aos fundos não significa que estes não possam
adquirir direitos e contrair obrigações, como ocorre com os condomínios e a massa falida, que
também não possuem personalidade jurídica (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 263). De
qualquer forma, a lei criadora dos fundos especiais deve determinar a quem cabe sua
administração, gerenciamento, representação, assim como indicar a origem de seu patrimônio
e receita, dentre outros aspectos, tal qual ocorre com o Fundo Garantidor de Parcerias.
58
A falta de personalidade dos fundos é contestada por Sundfeld, para quem o FGP é uma nova pessoa jurídica
federal, enquadrada no gênero empresa pública, pois seu capital é inteiramente público (SUNDFELD (org.),
2005, p. 43).
59
Art. 167 – São vedados: [...]
IV a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da
arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços
públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado, respectivamente, pelos
arts. 198, §2º, e 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no
art. 165, §8º, bem como no disposto no §4º, deste artigo.
Em síntese: os fundos garantidores são o produto de receitas especificadas, sem
personalidade jurídica, vinculados à garantia do pagamento de obrigações contratuais
patrimoniais nas parcerias público-privada, criados e disciplinados por lei
O Fundo Garantidor de Parcerias, regulado pelos arts. 16 a 21 da Lei 11.079/04, foi
disciplinado com vistas a garantir as obrigações pecuniárias dos parceiros públicos federais.
Dos dispositivos enunciados, destacam-se: a) o limite global de recursos do Fundo, de 6
bilhões de reais (art. 16, caput); b) a natureza privada e autonomia patrimonial do Fundo (art.
16, §1º); c) o controle gerencial, administrativo e a representação judicial e extrajudicial do
Fundo pela União (art. 17); d) as modalidades de garantia a serem prestadas (art. 18, §1º),
dentre outros.
Das disposições sublinhadas, conclui-se que o Fundo Garantidor de Parcerias não é um ente
da Administração Pública federal, não tem estrutura ou forma societária. Seu patrimônio deve
ser constituído por bens e direitos transferidos pelos participantes, por meio de integralização
de cotas e rendimentos decorrentes da aplicação de seus recursos. A instituição financeira que
cuidará da administração e representação do Fundo delibera sobre a gestão e alienação dos
bens e direitos do Fundo, visando a manutenção de sua rentabilidade e liquidez (ALMEIDA;
ZYMLER, 2005, p. 264).
Outra importante característica, enunciada pela Lei 11.079/04, reside na possibilidade de
os bens e direitos do fundo serem objeto de constrição judicial e alienação para satisfazer as
obrigações garantidas, salvo quanto ao patrimônio afetado, que não se comunica com o
restante do patrimônio do Fundo Garantidor de Parcerias, ficando vinculado exclusivamente à
garantia em virtude da qual foi constituído (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 265).
Realidade diversa é a garantia prestada por empresas estatais criadas para esta finalidade, na
hipótese estampada no inciso V do art. da Lei 11.079/04. Neste caso, quem responde pela
garantia prestada é o patrimônio da própria pessoa jurídica criada para tanto. Por serem
submetidas ao regime de direito privado, tal qual ocorre com as empresas públicas, as
sociedades de economia mista e as empresas sob controle acionário do Estado, enquanto afetas
ao interesse público de garantia às obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos,
a idéia é que façam valer o caráter dominical de seu patrimônio para não se sujeitarem à regra
do sistema de precatório, constante no art. 100 da Constituição da República.
3.3.3.3.2 Contragarantia
A última modalidade de garantia anunciada é a contragarantia, em que se garante não o
parceiro privado, mas a entidade financiadora do projeto. Pode revestir as diferentes
modalidades previstas no art. 5º, § da Lei 11.079/04
60
.
Autoriza-se, desta forma, a transferência, para os financiadores, da sociedade de
propósito específico constituída pelo parceiro privado, sem a demonstração de capacidade
técnica, idoneidade financeira, regularidade jurídica e fiscal, até então necessária às
transferências nas concessões comuns. Ainda, para garantir o financiador, o contrato pode
prever que o empenho seja emitido em seu nome e não do parceiro privado; em caso de
rescisão unilateral do contrato pelo parceiro público, pode o financiador receber o pagamento
de indenizações no lugar do parceiro privado; e, por fim, pode também o financiador receber
diretamente, no lugar do parceiro privado, os pagamentos efetuados pelos fundos ou empresas
estatais garantidoras de parcerias (DI PIETRO, 2005, p. 175).
60
[...] §2º Os contratos poderão prever adicionalmente:
I os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle da sociedade de
propósito específico para os seus financiadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e
assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do
parágrafo único do art. 27 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995;
IIa possibilidade de emissão de empenho em nome dos financiadores do projeto em relação às obrigações
pecuniárias da Administração Pública;
III a legitimidade dos financiadores do projeto para receber indenizações por extinção antecipada do contrato,
bem como pagamentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de parcerias público-privadas.
3.3.4 Sociedade de propósito específico
Outra inovação trazida pela Lei 11.079/04 reside na obrigatoriedade da constituição
de sociedade de propósito específico para a implantação e gerência da sociedade, nos
seguintes termos: “Art. 9º. Antes da celebração do contrato, deverá ser constituída sociedade
de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o projeto de parceria”.
A constituição de sociedade de propósito específico para esse fim vinha prevista na
Lei 8.987/95 para as concessões comuns. Naquelas hipóteses, em razão da natureza,
complexidade e/ou valor do contrato, faculta-se ao Poder Público exigir a transformação do
consórcio vencedor da licitação, em sociedade empresarial, antes da celebração do contrato.
A diferença básica, então, entre a constituição de sociedade específica na Lei de
Parcerias Público-Privadas em relação à Lei nº 8.987/95, que disciplina as concessões comuns,
reside na obrigatoriedade da constituição, mesmo tratando-se o vencedor do certame de
consórcio ou não (DI PIETRO, 2005, 179).
O mesmo fundamento que autorizava a faculdade nas concessões comuns, aplica-se à
parceria público-privada, conquanto, repita-se, tenha se transformado em imposição na Lei
11.079/04. Assim, Wald aponta, como fulcro da constituição da sociedade de propósito
específico a maior estabilidade entre os parceiros envolvidos; a desnecessidade de previsão de
solidariedade para a responsabilização civil por faltas cometidas na prestação do serviço; e a
consolidação de direitos, interesses e obrigações entre os parceiros envolvidos, dentre outros
(MORAES; WALD; WALD, 2004, p. 368).
Os §§ a do art. da Lei 11.079/04 indicam que: 1) a transferência do controle
societário é condicionada à autorização expressa da Administração, nos termos do edital; 2) a
sociedade pode assumir a forma de companhia aberta, vedada à Administração ser titular da
maioria do capital volante - isto em qualquer forma empresarial que ela assumir; 3) deverá,
ainda, obedecer a padrões de governança corporativa e adotar contabilidade e demonstrações
financeiras padronizadas, conforme regulamento específico.
De tudo, sublinha-se que, a transferência do controle societário para outra empresa ou
consórcio privado, ao contrário do que ocorre com a transferência do controle da sociedade
para a entidade financiadora, somente pode ser autorizada mediante a certificação de que o
pretendente atenda às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade
jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço, e de que o mesmo se compromete a
cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor. Ademais, veda-se a titularidade da maior
parte do capital da sociedade pela Administração, para que a sociedade não passe a integrar a
Administração Pública indireta (DI PIETRO, 2005, p. 180).
3.3.5 Licitação
Em sua própria ementa, a Lei 11.079/04 propõe-se a versar acerca de normas gerais para a
licitação de parceria público-privada. Decorrente disto, em seus arts. 10 a 13 são introduzidas
novas exigências no procedimento licitatório, tanto em sua etapa interna quanto externa.
Vale lembrar, a título introdutório, algumas das características estampadas pela Lei
8.666/93 Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Referido diploma versa, dentre
outros pontos, acerca do rito procedimental standard para o certame que visa à eleição da
proposta mais vantajosa ao Poder Público. Este procedimento padrão, em que todas as fases da
licitação se encontram presentes, definidas, e com prazos processuais estendidos, é o rito
comum à modalidade licitatória de concorrência, aplicável, de modo geral, de acordo com o
art. 23, inciso I, alínea “c”, a contratos de obras e serviços de engenharia superiores a um
milhão e quinhentos mil reais, e, na esteira do art. 23, inciso II, alínea “c”, a compras e outros
serviços acima de seiscentos e cinqüenta mil reais.
O procedimento da concorrência comum contemplada pela Lei 8.666/93, por sua vez, é
composto pelas etapas preparatória, ou etapa interna, e a externa, que se divide em cinco
fases, a saber, o ato convocatório, a habilitação, a classificação das propostas, a homologação
e a adjudicação (NIEBUHR, 2004, p. 15-24).
Todavia, para atender às demandas administrativas cotidianas, ou menos complexas,
que não exigem a cautela por vezes morosa que o procedimento da concorrência imputa às
compras governamentais, esse complexo e dilatado rito foi simplificado em razão da
diminuição do valor dos contratos, de modo a se disciplinarem procedimentos e prazos
reduzidos a outras duas modalidades, a tomada de preços e o convite.
Urge apontar, com essas informações em mente, que a nova disciplina licitatória contemplada
pela Lei 11.079/04, incide sobre o procedimento típico da modalidade concorrência, nos
termos do caput do art. 10 desta Lei. Cabe investigar, desse modo, sobre quais aspectos
incorrem as alterações quando a contratação almejada é por parceria público-privada.
3.3.5.1 Etapa preparatória
Nos termos dos arts. 38 e seguintes da Lei 8.666/93, a fase preparatória da licitação é o
momento oportuno para, dentre outras providências, fixar o objeto do contrato, elaborar o
edital, estimar as despesas e verificar a disponibilidade de recursos orçamentários, autorizar a
licitação e designar os agentes públicos encarregados de seu processamento (DALLARI, 1997,
p. 85).
Para a licitação em parcerias público-privadas, o art. 10 da Lei 11.079/04 aprofunda ainda
mais as exigências relativas à etapa preparatória, para efeito especialmente de, antes mesmo
do lançamento do edital para a convocação dos interessados, restar demonstrada a viabilidade
técnica, ambiental e econômico-orçamentária do projeto.
É que, de acordo com o entendimento de Benjamin Zymler e Guilherme Henrique de La
Rocque Almeida, a mencionada experiência das parcerias público-privadas das auto-
estradas portuguesas apontaram para a ocorrência de falhas substanciais nos projetos de
parcerias. Por esta razão:
Ficou patente a importância de que os estudos prévios à celebração das PPP
levem em consideração aspectos técnicos (como o número efetivo de
usuários do serviço avençado), econômicos (como a taxa de retorno
esperada, a contrapartida necessária para obter essa taxa e a divisão dos
riscos dos empreendimentos), ambientais (como a necessidade de serem
obtidas licenças ambientais prévias ao lançamento das licitações) e jurídicos
(como a possibilidade de serem fixadas alíquotas de tributos diferenciadas
no âmbito das concessões). (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 278).
Assim sendo, e tomando a experiência portuguesa como exemplo a não se seguir, a Lei de
Parcerias Público-Privadas demanda a demonstração da viabilidade técnica do projeto, a se
dar, basicamente, através de autorização da autoridade competente acompanhada por estudo
técnico que demonstre: a conveniência e a oportunidade da contratação, identificadas as razões
que conduziram à adoção da parceria público-privada; a não afetação das metas previstas no
Anexo referido no §1º do art. da Lei de Responsabilidade Fiscal, por força das despesas
criadas com o advento das parcerias; e que ditas despesas serão compensadas por aumento de
receita ou redução de outras despesas.
Em âmbito federal, de acordo com o art. 14, §3° da Lei de Parcerias Público-Privadas, o
estudo técnico que conclui pela conveniência e oportunidade da contratação, e que atesta o
cumprimento de disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, deve ser precedida de
manifestação do:
[...] Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, quanto ao mérito do
projeto, e do Ministério da Fazenda, quanto à viabilidade da concessão de
garantia e à sua forma, relativamente aos riscos para o Tesouro Nacional e
ao cumprimento do limite de que trata o artigo 22 (DI PIETRO, 2005, p.
185).
A viabilidade ambiental, por sua vez, consubstancia-se na exigência de licença ambiental
prévia ou expedição das diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento (inciso
VII do art. 10 da Lei 11.079/04). Do enunciado, extrai-se que o próprio parceiro público
deva promover o licenciamento ambiental prévio
61
, ou, pelo menos, quando não tiver
disponível seu projeto pormenorizado, estabelecer requisitos e condicionantes para o
licenciamento ambiental do empreendimento a ser promovido pelo parceiro privado.
Na primeira hipótese, o parceiro público submete à análise do órgão de proteção
ambiental o projeto básico e de execução do empreendimento, assim como instrui o pedido
preliminar com as autorizações e os documentos que se fizerem necessários, tal qual ocorre
num processo de licenciamento ordinário.
Na segunda hipótese, por sua vez, depreende-se da redação do dispositivo legal que o
parceiro público colaciona, ao procedimento licitatório, elenco de diretrizes e requisitos para o
licenciamento ambiental do empreendimento, a serem observados pelos parceiros vencedores
do certame, no curso da execução do projeto.
De qualquer forma, a preocupação com a temática ambiental na fase preliminar do projeto
é medida louvável e de grande valia. Não eleva a proteção prévia do meio ambiente a
requisito da parceria, como também tende a obstar licenciamentos apreciados e aprovados às
pressas. Desencoraja o adiamento da análise de questões relevantes referentes aos impactos
ambientais do empreendimento, evitando posteriores questionamentos administrativos e
judiciais, embargos
62
, dentre outros.
A legislação nacional parece ter prestado atenção aos equívocos de algumas experiências
internacionais para efeito de incluir a avaliação preliminar de impactos ambientais como
requisito prévio à licitação. Na ilustração noticiada por Almeida e Zymler, “no caso de
Portugal, as questões ambientais impossibilitaram o acesso a programas de financiamento
61
De acordo com o inciso I do art. da Resolução 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente -
CONAMA, a Licença Ambiental Prévia é aquela concedida na fase preliminar do planejamento do
empreendimento ou da atividade, em que se aprova sua localização e concepção, além de se atestar a viabilidade
ambiental e estabelecer os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas fases subseqüentes do
empreendimento.
62
Almeida e Zymler lembram que no modelo anterior de concessão, a obtenção da licença ambiental a cargo do
licitante vencedor gerava atrasos e paralisações freqüentes nas obras, havendo casos em que elas nem mesmo
chegaram a ser iniciadas (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 280).
mantidos pela Comunidade Européia, o que agravou ainda mais a carência de
recursos” (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 277).
Também compõe a etapa preparatória da licitação, a análise da viabilidade econômico-
orçamentária da contratação. A legislação pretende adequar formalmente a parceria público-
privada às disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal. A exigência de estimativa do
impacto orçamentário-financeiro do contrato; a declaração do ordenador da despesa de que
estas são compatíveis com a Lei de Diretrizes Orçamentárias e que estão previstas na Lei
Orçamentária Anual; a estimativa do fluxo de recursos públicos durante a vigência do contrato
e a previsão no Plano Plurianual em vigor são exigências básicas, elementares, para a
contratação que envolve participação da Administração com desprendimento de recursos
públicos de modo continuado. Mesmo que as exigências nem precisassem restar consignadas
na Lei de Parceria Público-Privada, por serem, justamente, diretrizes de ordem pública da Lei
de Responsabilidade Fiscal, a inobservância de qualquer tópico enseja a nulidade do
procedimento licitatório.
Ainda em referência à etapa preparatória, o inciso VI do art. 10 da Lei n° 11.079/04
estabelece, como requisito ao lançamento do instrumento convocatório, a submissão do edital
e da minuta do contrato à consulta pública, fixando-se prazo mínimo de 30 dias para
recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á, pelo menos, sete dias antes da data prevista
para a publicação do edital.
A novidade estampada no inciso VI do art. 10 não deve passar despercebida. É que a Lei faz
referência ao mecanismo de participação popular consulta pública, que se difere
substancialmente da audiência pública. Esta, de acordo com Marcos Augusto Perez, é o
instituto de participação popular na Administração Pública, de caráter não vinculante,
consultivo ou meramente opinativo, consistente na realização de sessão pública, aberta aos
interessados e voltada, essencialmente, ao esclarecimento e a discussão oral de aspectos
envolvidos em determinada decisão (PEREZ, 2004, 168).
a consulta pública consiste na divulgação prévia de minutas de atos normativos, para que,
em dado prazo, possam os interessados oferecer críticas, sugestões ou pedir informações e
esclarecer dúvidas, tendo a Administração o dever, e esta é a principal diferença em relação às
audiências públicas, de documentar as consultas e respondê-las publicamente. Na consulta
pública, maior possibilidade de interferência dos interessados na decisão final, além de se
possibilitar o aprofundamento real do debate em torno da decisão, tanto do ponto de vista
político quanto técnico. A Administração tem a obrigação de motivar a decisão que refutou as
sugestões apresentadas (PEREZ, 2004, p. 107).
3.5.2 Etapa externa
A Lei de Parcerias Público-Privadas prevê a faculdade de, no instrumento convocatório, fazer-
se uso, na concorrência, de procedimentos típicos da modalidade pregão.
O pregão, introduzido pela Lei 10.520, de 17 de julho de 2002, não é utilizado em
razão do valor do contrato como as demais modalidades, mas, sim, em virtude da natureza do
objeto a ser contratado. Como assevera Joel de Menezes Niebuhr, adquire-se por pregão, nos
temos da Lei 10.520/02, bens e serviços considerados comuns, ou, em outras palavras,
objetos simples, que não demandam especificações técnicas complexas para serem definidos
(NIEBUHR, 2005, p. 20). Nessa modalidade, opera-se a inversão das fases típicas das
modalidades contempladas na Lei 8.666/93, de habilitação e julgamento, cabendo, ainda,
oportunidade para os licitantes reduzirem seus preços na própria sessão pública.
É em especial na faculdade de inversão das fases de habilitação e julgamento das
propostas, e à possibilidade de lances orais das últimas
63
, que a licitação de parceria público-
privada lança mão de atributos característicos da modalidade pregão (SOUTO, 2005a, p. 50).
Justamente por fazer uso de procedimentos típicos dessa modalidade que se aplicam às
parcerias público-privadas, dada a generalidade das disposições na Lei de Parcerias Público-
Privadas que tratam da inversão das fases de habilitação e julgamento, assim como a
possibilidade de lances orais, a construção doutrinária e jurisprudencial em torno do pregão. O
raciocínio desenvolvido conduz, aliás, a destacar a aplicação subsidiária da Lei 10.520/02
em relação a desdobramentos processuais aos quais a Lei 11.079/04 foi silente.
Desse modo, a título ilustrativo, a disciplina do credenciamento, assim como o
desenvolvimento dos lances orais, critérios de aceitabilidade das propostas, cabimento de
recurso administrativo, dentre outros, merecem, em tudo e por tudo, tratamento igual ao
dispensado para o pregão pela Lei 10.520/02.
Outra peculiaridade da licitação para parcerias público-privadas reside nos critérios de
julgamento previstos no inciso II do art. 12 da Lei 11.079/04. Além dos critérios definidos
nos incisos I e V do art. 15 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995
64
, abre-se a
possibilidade do julgamento e da classificação das propostas em razão do menor valor da
contraprestação a ser paga pela Administração Pública, ou, ainda, em razão da combinação
deste critério com a melhor técnica, nos termos e pesos a serem definidos pelo edital.
63
Art. 12. O certame para a contratação de parcerias público-privadas obedecerá ao procedimento previsto na
legislação vigente sobre licitações e contratos administrativos, e também ao seguinte: [...]
III – o edital definirá a forma de apresentação das propostas econômicas, admitindo-se: [...]
b) propostas escritas, seguidas de lances em viva voz.
Art. 13. O edital poderá prever a inversão da ordem das fases de habilitação e julgamento, hipótese em que:
I encerrada a fase de classificação das propostas ou o oferecimento de lances, será aberto o invólucro com os
documentos de habilitação do licitante mais bem classificado, para verificação do atendimento das condições
fixadas no edital;
II – verificado o atendimento das exigências do edital, o licitante será declarado vencedor;
III inabilitado o licitante melhor classificado, serão analisados os documentos habilitatórios do licitante com a
proposta classificada em (segundo) lugar, e assim, sucessivamente, até que um licitante classificado atenda às
condições fixadas no edital;
64
Menor tarifa do serviço público a ser prestado; melhor proposta em razão da combinação dos critérios de
menor tarifa com o de melhor técnica.
Por fim, o art. 11, II da Lei 11.079/04 admite a possibilidade da adoção de
mecanismos privados de resolução de eventuais disputas decorrentes da execução do contrato
de parceria, nos termos a serem abordados no próximo tópico.
3.3.6 Arbitragem
Na contratação administrativa tradicional, a tutela jurisdicional deve ser provocada para a
solução de eventual litígio, envolvendo desde a interpretação de cláusulas contratuais até a
execução propriamente dita do contrato, por força da inexistência de autorização legal na Lei
de Licitações e Contratos Administrativos para a solução por outros meios.
Em que pese, no caso concreto, algumas decisões e dispositivos legais excepcionais
permitirem a adoção de mecanismos privados de solução de disputas
65
, com o advento da Lei
8.987/95, que disciplina as concessões comuns, a possibilidade de se recusar a jurisdição
estatal foi institucionalizada. É que de acordo com o art. 23, inciso XV da Lei 8.987/95, o
contrato de concessão deve, necessariamente, prever a indicação do foro e a adoção de modo
amigável de solução das divergências contratuais.
Na medida em que a Lei 8.987/95 não especificou quais modos amigáveis de solução de
divergências contratuais haveriam de ser previstos no contrato de concessão, a doutrina se
encarregou de fazê-lo. No entendimento de Cláudio Vianna de Lima, os modos a que se refere
a Lei 8.987/95 são a mediação, a conciliação e a arbitragem. Na mediação, esclarece o
autor, os mediadores, pessoas estranhas ao conflito, apenas aproximam as partes para que estas
se entendam diretamente. Na conciliação, por sua vez, o conciliador não só aproxima as partes
65
Na seara jurisprudencial, o Caso Lage é tido como o primeiro reconhecimento do cabimento de arbitragem em
avenças administrativas. Antes disso, o Estado poderia se submeter à arbitragem em casos internacionais, em
que o Estado era representado enquanto nação (Agravo de instrumento nº 52.181-GB, Rel. Min. Bilac Pinto. RTJ
68/382).
para que estas resolvam a divergência, como se esforça, negocia, propõe solução para o
acordo, sem que haja, entretanto, uma obrigação de resultado, mas apenas de esforço. Na
arbitragem, a pacificação ou a solução do conflito de interesses é entregue, por livre consenso
das partes, a um ou mais árbitros de sua escolha e confiança, como alternativa imediata a
solução das avenças prestada pela tutela jurisdicional (1997, p. 91, 101).
Evidentemente que a escolha de qualquer dos dois primeiros mecanismos, ora arrolados, em
pouco contribuiria para a efetiva solução do litígio, uma vez que, tal qual asseverado, a
obrigação dos terceiros é de esforço, não de resultado. Por essa razão, reconheceu-se a
importância que a arbitragem, como meio privado de solução de conflitos em alternativa à
tutela jurisdicional pública, passou a guardar sobre os contratos administrativos de concessão.
Acompanhando a inovação da Lei 8.987/95, a Lei de Parcerias Público-Privadas
contemplou a possibilidade de previsão da adoção de mecanismos privados de solução de
disputas, não a tornando, entretanto, cláusula obrigatória aos contratos de parceria público-
privada. Nos termos do art. 11, III da Lei n° 11.079/04:
Art. 11. O instrumento convocatório conterá a minuta do contrato, indicará
expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no
que couber, os §§ e do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei 8.987, de
13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever: [...]
III o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas,
inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos
termos da Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos
decorrentes e relacionados ao contrato.
Sem sacrificar a generalidade e abstração do dispositivo, uma vez que a evolução da ordem
jurídica pode vir a desenvolver novas formas, ao lado das atualmente conhecidas, para a
solução de controvérsias, o próprio texto legal consagra, expressamente, a arbitragem como
um dos meios pelos quais poder-se-á solucionar um litígio de ordem contratual nas parcerias
público-privadas. E aceitando que se faça, remete-a, contudo, aos termos da Lei 9.307/96, a
Lei de Arbitragem.
A possibilidade da adoção de abritragem nos contratos de concessão é aplaudida por parcela
relevante dos administrativistas. Apenas para efeito de ilustração, leiam-se algumas das
vantagens arroladas por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, compelida das lições de Cláudio
Vianna de Lima:
1. possibilita a intervenção de especialistas na matéria em litígio;
2. desafoga o judiciário, resguardando-o para atuar nos litígios que lhe são
próprios;
3. tende ao ideal da pronta justiça do caso; e
4. promove uma justiça coexistencial, pois leva à obtenção de um consenso,
antes do que uma condenação (1997, p. 83).
Neste sentido, no entendimento de Eduardo Talamini a arbitragem guarda especial relevância
ao contrato administrativo de parceria, justamente por atender ao pressuposto de
consensualidade, de cooperação, do caráter associativo do contrato entre as partes. Os
parceiros, consensualmente, podem escolher árbitros profissionais com conhecimento técnico
específico na matéria em litígio. Afora isso, respeitadas as garantias fundamentais do processo,
o procedimento pode ser muito mais dinâmico e eficiente que o judicial, apto a produzir uma
solução mais rápida e adequada (JUSTEN; TALAMINI, 2005, p. 335).
4 AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO: ASPECTOS CONTROVERTIDOS E ADEQUAÇÃO AOS
PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS
4.1 Apresentação
No terceiro capítulo do presente estudo anotaram-se as principais características da parceria
público-privada tal qual está positivada em nosso ordenamento. Para tanto, fez-se uso de
aspectos destacados da Lei de Parcerias Público-Privadas capazes de sublinhar as diferenças
principais desta nova modalidade de concessão de obras e serviços públicos frente às
concessões comuns ou tradicionais.
Foram apontadas, descritivamente, diferenças substanciais deste novo modelo de delegação,
em especial no tocante à disciplina da duração do contrato de parceria e seus possíveis
desdobramentos, ao valor dos projetos que se pretendiam delegados, assim como aos aspectos
relativos à remuneração do parceiro privado através de contraprestação pública, bem como ao
novo tratamento dado ao risco e às particularidades referentes ao procedimento licitatório,
entre outros.
As informações trazidas no capítulo precedente são indispensáveis à análise de aspectos
controvertidos da parceria público-privada à luz do contexto constitucional brasileiro, uma vez
que, tal qual observado no segundo capítulo do presente estudo, a tarefa administrativa deve
atenção e observância a pressupostos, valores, diretrizes e princípios constitucionais,
consagrados implícita e explicitamente na Constituição da República Federativa do Brasil.
Desta forma, reconhecendo-se a vigência e a validez em nosso ordenamento da disciplina
legal para contratações por parceria público privada, busca-se enfrentar questões nucleares
acerca da (in)compatibilidade do instituto frente ao nosso arcabouço constitucional, para efeito
de coaduná-lo à ordem jurídica pátria.
Neste contexto, é pretensão do presente capítulo, de início, apontar e criticar, dentro do
discurso oficial sobre as parcerias, os fundamentos basilares que as conceberam. Num segundo
momento, buscar-se-á a adequação de aspectos controvertidos da parceria público-privada aos
pressupostos constitucionais brasileiros, dentre os quais urge destacar as espécies de contratos
que admitem parceria, aspectos da eleição do parceiro, do fundo garantidor, da questão
ambiental e da solução de litígios decorrentes do contrato de parcerias.
4.2 Mapeamento dos discursos justificativos das parcerias e crítica
A atividade interpretativa do operador do direito, mais que se circunscrever à literalidade dos
textos para a compreensão do conteúdo dos diplomas normativos, estriba-se em grande
medida na busca pelo efetivo significado dos comandos legais, sob a ótica do contexto
histórico, na própria vontade do legislador no momento da concepção de determinado
comando jurídico. Assim também se dá com as parcerias público-privadas.
O mapeamento e o estudo dos discursos justificativos das parcerias público-privadas,
amparados nos debates legislativos das comissões parlamentares, nos pronunciamentos de
autoridades, além dos estudos e relatórios que lhe serviram como fundamento, pode, na esteira
do ensinamento de Luís Roberto Barroso, não revelar as intenções do legislador no
momento de edição da norma, como também apontar qual seria sua intenção se ele estivesse
ciente dos fatos e idéias contemporâneas. Trata-se do substrato teórico do método de
interpretação histórica (1996, p. 124).
Mais que buscar a eventual intenção do legislador ao conceber determinado diploma e qual
esta seria no momento contemporâneo à composição de litígios, o desnudamento das
justificativas legítimas para a adoção das parcerias público-privadas no contexto jurídico
brasileiro pode se prestar, ainda, a elucidar a real razão de existência, dentro do ordenamento,
da norma jurídica. O debate se presta, pois, a aferir a legitimidade do instituto e apreender o
seu exato sentido, mesmo que seja para desconstruir o sentido pretendido pelo legislador.
Demais disso, a investigação das justificativas lançadas para o advento dessa nova disciplina
jurídica é importante para identificar sua relação ao papel histórico do Estado brasileiro e a
concepção constitucional da Administração Pública.
A tomada das justificativas oficiais para o advento das parcerias público-privadas traz
consigo desdobramentos de elevada importância, mormente no tocante à análise conceitual do
instituto, sua interpretação e adequação à perspectiva constitucional posta. O presente estudo
cuida, então, de mapear e, eventualmente, refutar algumas das justificativas lançadas para a
edição da Lei 11.079/04, possibilitando que a aplicação das parcerias se em estrita
conformidade com os objetivos da atividade administrativa, de, por exemplo, garantia do
desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza, redução de desigualdades e promoção do
bem estar e da dignidade humana, como prescreve o art. da CRFB.
4.2.1 A justificativa embasada na incapacidade financeira
Diferentemente do que se observa em grande parte dos países que também
desenvolveram esta nova disciplina jurídica, a concepção das parcerias público-privadas
reporta-se, no caso brasileiro, especialmente, a critérios financeiros. Tal qual asseverado, a
título de contextualização, no item 3.2, a parceria público-privada encontraria fundamento na
insuficiência de recursos públicos para alocação em investimentos de grande porte, em
especial os relativos às obras de infra-estrutura.
Conforme dito no item 3.2, parte das experiências estrangeiras com parcerias público-
privadas amparam-se na busca por aumento nos coeficientes de eficiência da prestação de
certas atividades. É que, para uma variada gama de atividades de satisfação de interesse
público, o Estado passou a prestá-las de modo insatisfatório, com aparato técnico e pessoal
incapacitado para a gestão de interesses complexos. Este diagnóstico levou alguns países a
buscarem, através das parcerias público-privadas, socorro junto a entidades privadas para a
execução de ditas atividades, possibilitando-se, não o investimento privado em serviços e
obras públicas, mas, também, uma pretensa melhoria no oferecimento da atividade, capaz de
conduzir, em última análise, à conseqüente redução de encargos para o cidadão-usuário.
Passou-se a delegar a prestação de atividades de satisfação de interesse público, antes a cargo
do Estado, a parceiros privados, oferecendo-lhes contraprestação pública variável conforme
seu desempenho, sua performance, àqueles serviços que não poderiam ser custeados
exclusivamente por seus usuários.
No caso brasileiro, todavia, o discurso oficial afasta as parcerias público-privadas das
justificativas de ineficiência estatal no oferecimento de atividades de satisfação de interesses
públicos, buscando enquadrá-la como a melhor alternativa para a viabilização de
investimentos em áreas cujas demandas não são suficientemente atendidas por recursos
públicos.
Toma-se, como exemplo, trecho da mensagem do Projeto de Lei encaminhado pelos Ministros
da Fazenda e do Planejamento, Antônio Pallocci e Guido Mantega, respectivamente, ao
Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, justificando a necessidade da aprovação do
estatuto das parcerias:
As Parcerias Público-Privadas permitem um amplo leque de investimentos,
suprindo demandas desde as áreas de segurança pública, habitação,
saneamento básico até as de infra-estrutura viária ou elétrica. Veja-se que o
Projeto de Plano Plurianual do Governo, encaminhado para vigorar no
período de 2004 a 2007, estima a necessidade de investimentos na ordem de
21,7% (vinte e um vírgula sete por cento) do Produto Interno Bruto - PIB até
2007, como condição à retomada e sustentação do crescimento econômico
do país, o que torna indispensável a existência de instrumentos de parcerias
que possibilitem a sua concretização (BRASIL, PL 2546/2003).
Tal qual se depreende da própria análise da mensagem que acompanhou seu Projeto de Lei,
tangencia o núcleo fundante das parcerias público-privadas, em nosso contexto, a busca
imediata por maior eficiência na prestação do serviço. Deduz-se, aliás, que é a pretensão
principal de seus idealizadores desonerar diretamente o Estado, buscando junto à iniciativa
privada capital necessário para que se início a determinado pacote de obras, de cujos
valores o erário não disporia.
Perfila-se, ao entendimento exposto, a opinião, por exemplo, do economista Antônio Delfin
Netto, para quem até que seja executado um rigoroso corte de gastos de custeio e uma reforma
tributária inteligente, investimentos significativos do governo em infra-estrutura inexistirão,
cabendo tão-somente ao Estado apoiar-se nas parcerias público-privadas para atrair
investimento estrangeiro (2004, p. 2).
A justificativa de insuficiência de recursos foi recepcionada, ainda, por parte da doutrina
administrativista. Almeida e Zymler, por exemplo, reconhecem a parceria público-privada
como meio pelo qual o Poder Executivo pretende viabilizar investimento em infra-estrutura
sem utilizar recursos fiscais, praticamente indisponíveis na realidade atual (2005, p. 228).
Egon Bockmann Moreira, a seu turno, prega que a parceria público-privada seria a mais nova
proposta de solução para problemas de desenvolvimento econômico, propiciando investimento
de alta monta em infra-estrutura e em demais atividades (SUNDFELD (org.), 2005, p. 120).
O que, entretanto, passa despercebido nos debates é o fato de que a concepção de nova
disciplina contratual, cujo requisito é a disponibilidade de altas cifras, não é garantia, por si só,
da elevação de índice de desenvolvimento. Aliás, é perigoso que reformas legislativas e
executivas sejam orientadas pelo discurso da carência de recursos, quando se sabe que as
entidades administrativas nacionais são, via de regra, mal geridas.
Para ilustrar o raciocínio desenvolvido, tomam-se os dados disponibilizados pelo
próprio governo federal, que acabam desmentindo o argumento da insuficiência financeira de
recursos que pretensamente justifica a concepção, o desenvolvimento e a adoção das parcerias
público-privadas. De acordo com a Subsecretaria de Comunicação Institucional da Secretaria
Geral da Presidência da República, o governo federal gastou com publicidade propaganda
em televisão, rádio, jornal, outdoors e internet -, entre 1998 e 2005 aproximadamente 6,542
bilhões de reais (SECOM/SG – PR, 2006).
Em contrapartida, dos quatro projetos que se pretendem viabilizados por parcerias
público-privadas nos próximos anos, três deles - o Anel Ferroviário de São Paulo, a Variante
Ferroviária de Guarapuava-Ipiranga/PR, e a adequação e duplicação das BR 116 (Bahia/
Minas) - têm custo estimado, ao longo dos anos, de aproximadamente 1,7 bilhões de reais
(MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO, 2006). Em outras
palavras: o valor gasto com publicidade oficial nos últimos sete anos foi quase quatro vezes o
custo estimado para a execução de obras que o próprio governo entende como prioritárias à
retomada do crescimento econômico e social.
Nesta esteira, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes admite que as parcerias público-privadas
caberiam, por força de sua justificativa ora em análise, a projetos necessários e indispensáveis
para os quais o erário não disporia, a princípio, de recursos financeiros suficientes. Assim,
toma-se o pacote de projetos prioritários que se pretendem viabilizados pelo poder executivo
federal, que englobaria rodovias, ferrovias e portos. De acordo com o levantamento suscitado
por Fernandes, trata-se de um total de investimentos de cerca de dez bilhões de reais.
Traduzindo: o governo federal não disporia de dez bilhões de reais para investimentos em
obras de infra-estrutura consideradas indispensáveis ao crescimento econômico nacional,
razão pela qual aqueles projetos haveriam de ser direcionados, por parcerias público-privadas,
à iniciativa privada.
Em que pese a aparente verossimilhança do discurso, cumpre considerar, noutro vértice, a
política econômica nacional referente ao cumprimento das metas de superavit primário
público
66
. Em que pese ter sido acordado, junto ao Fundo Monetário Internacional para o ano
de 2004, a meta de 4,25% do Produto Interno Bruto, equivalentes a 71,5 bilhões de reais,
Fernandes constata que o superavit efetivamente alcançado foi de 4,61% do Produto Interno
Bruto, ou seja, 81,11 bilhões de reais. O Brasil economizou, desta forma, um excedente de
superavit em torno de 9,6 bilhões de reais, valor muito próximo aos cerca de dez bilhões de
reais dos quais o governo pretensamente não dispunha para investimento público direto, nas
obras tidas, no momento daquela análise, como prioritárias ao desenvolvimento econômico e
social (2006, p. 5).
Dos dados colacionados conclui-se pela refutação do discurso oficial de insuficiência de
recursos públicos para investimentos em infra-estrutura, para efeito de legitimar a adoção das
parcerias público-privadas. Das breves constatações expostas, depreende-se que são as
prioridades assumidas pelos governos que conduzem a um status de maior ou menor
capacidade de investimento. As opções eleitas para despesas pela Administração Pública
Federal é que têm diminuído, sistematicamente, a capacidade de investimento em obras de
infra-estrutura.
Fosse o investimento estatal em obras de infra-estrutura prioridade de fato, haveria, ao que
tudo indica, receita pública suficiente para os projetos pretendidos
67
. Mas a análise dos
números revelam que as prioridades eleitas sucessivamente pelos governos, para a alocação de
66
O superavit é genericamente entendido como saldo positivo entre receitas e despesas, ou a economia feita pelo
governo para o pagamento da dívida pública, definido pelas políticas públicas nacionais e ajustadas com o Fundo
Monetário Internacional.
67
Neste sentido, ver Parceria público-privada: novos postulados para a Administração Pública brasileira, de
Fernão Justen de Oliveira (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 66).
verbas públicas, parecem não traduzir a determinação governamental de empreender esforço
concreto para a retomada do crescimento econômico e social.
Ao lado de todas as considerações aventadas, da alocação de recursos públicos em setores
contraproducentes e da potencial existência de recursos para os projetos prioritários que se
pretendem viabilizados por parcerias, o discurso oficial de escassez de verba pública para a
melhoria de serviços e investimentos há que ser refutado com vistas à própria segurança
jurídica.
Tal qual asseverado nas linhas anteriores, reformas legislativas e jurídicas orientadas
pela insuficiência de recursos são expedientes perigosos, que devem ser tomados após
esgotadas todas as alternativas possíveis para a solução dos problemas postos. Caso contrário,
hipoteticamente, por conta da falta de recursos poder-se-iam tolher direitos fundamentais
devidos pelo Estado, tal qual ser declarada a impossibilidade de o Estado financiar a atividade
de polícia, negar auxílio ao desamparado, negar acesso gratuito à justiça, não reconhecer
direitos dos servidores públicos, deixar de financiar a educação pública, dentre outras
barbáries. O fato de o Estado estar diante de uma crise financeira, orientada em grande parte,
diga-se de passagem, pela incapacidade gerencial dos governantes, não o exime de cumprir
com suas obrigações constitucionais.
Em que pese tais considerações, o ordenamento jurídico sempre pode ser aprimorado.
E sob esta perspectiva, de aprimoramento de instituições tradicionais, é que deve ser encarada
a parceria público-privada. Antes de aceitá-la como panacéia dos problemas financeiros
enfrentados pela Administração Pública, é juridicamente coerente admiti-la como disciplina
aperfeiçoada do sistema tradicional de concessão, necessária para viabilizar a busca por
investimento privado em áreas até então não atrativas ao mercado.
Sundfeld, por exemplo, diz que a Lei de Parcerias Público-Privadas veio, justamente, a
instituir regras faltantes à contratação por concessão comum, disciplinando: a) o oferecimento
pelo parceiro público de garantia de pagamento de adicional de tarifa; e b) a assunção, pelos
particulares, dos encargos de investir e implantar infra-estrutura estatal e depois mantê-la,
sendo remunerados em longo prazo (2005, p. 21, 22).
A refutação do discurso oficial de escassez de recursos públicos traz pelo menos, duas
implicações relevantes. Em primeiro lugar: reafirma a capacidade crítica do corpo social,
que, através do desnudamento dos verdadeiros motivos que levam ao desenvolvimento de
novos instrumentos jurídicos, expõe-se e abre-se ao debate pontos controversos, passíveis de
impugnação inclusive na esfera judicial. Isso sem falar da tarefa interpretativa, que pode vir a
se apoiar justamente na justificativa dos diplomas legislativos para a solução de controvérsias.
Outra conseqüência que decorre da refutação da justificativa de insuficiência financeira
para investimentos é o reconhecimento de que o valor econômico do projeto de parceria
público-privada não deveria, a priori, orientar a disciplina dessas modalidades de concessão.
Como dito anteriormente, as parcerias público-privadas, em um variado número de
países estrangeiros, são lançadas para, ao mesmo tempo, viabilizar o investimento privado em
setores e atividades não auto-sustentáveis, fomentar a modernização do oferecimento de
serviços e exploração de obras públicas e diminuir o custo final ao cidadão-usuário, valendo-
se da capacidade empresarial privada para a gestão de atividades de satisfação de interesses
públicos mediante a repartição de encargos entre os parceiros.
O que se quer dizer é que as parcerias público-privadas podem ser lançadas para atividades
em que, mesmo o Estado dispondo de recursos para sua exploração, busca-se junto à iniciativa
privada a conjunção de esforços para o alcance de melhores coeficientes de eficiência.
Atraem-se parceiros privados impossibilitados de atuarem nesta espécie de empreitada,
blindando os contratos administrativos contra o malfadado calote estatal, pela previsão de
instrumentos diferenciados de garantia, de solução de litígios, entre outros.
Nas palavras de Adilson de Abreu Dallari:
As parcerias público-privadas servem, exatamente, para conferir viabilidade
econômica a serviços públicos essenciais mas de baixa rentabilidade
econômica, ou seja, em situações nas quais, sabidamente, não existe
possibilidade de assegurar a sustentabilidade do serviço exclusivamente pelo
pagamento de tarifas por parte de seus usuários. Não se trata de,
incidentalmente ou eventualmente, pagar um subsídio para compensar
diferenças eventuais ou episódicas. Trata-se, sim, de se estabelecer no
próprio momento de celebração do contrato entre o particular e o Poder
Público, que este vai, necessariamente, efetuar pagamentos ao particular
executante, seja para completar o volume de recursos demandados pelo
empreendimento, seja para remunerar, em todo ou em parte, os serviços
prestados (BRANCO; DALLARI, 2006, p. 129).
Esse é o fundamento que autoriza e deve justificar a aplicação de parcerias público privadas a
atividades passíveis de serem carreadas pelo Poder Público, sob o ponto de vista financeiro,
mas que, por razões de eficiência, são executadas e geridas pela iniciativa privada, como, por
exemplo, as referentes, no caso brasileiro, às concessões administrativas para serviços de
limpeza urbana, administração de presídios, entre outras.
Dessa sorte, se a justificativa para a parceria público-privada fosse estritamente financeira,
eventual abonança econômica conduziria a perda de legitimidade do instituto. Ou seja, se
algum dia sobrar recursos, dever-se-ia deixar de utilizar as parcerias público-privadas. Por isto,
a verdadeira justificativa para as parcerias público-privadas deve repousar na eficiência
administrativa, na busca junto ao parceiro privado de técnicas e métodos de gestão que melhor
satisfaçam o interesse público, o que deve ser apurado caso a caso
68
.
4.2.2 A justificativa embasada no modelo regulatório
Intimamente ligada ao discurso da incapacidade financeira do Estado de diretamente
prestar atividades de satisfação de interesse público está a consagração, segundo os teóricos da
parceria público-privada, do papel instrumental do Estado na condução de políticas públicas.
De acordo com a concepção do modelo regulatório, o Estado, antes de um fim em si mesmo,
passa a ser considerado um importante instrumento para a promoção da dignidade humana. Se
o Estado é incapaz de sozinho garantir as atividades necessárias à satisfação dos interesses
públicos, ele deve buscar vias alternativas, dentre as quais se insere a outorga da prestação de
atividades administrativas aos agentes privados.
68
Não se deve perder de vista, ainda, a satisfação de outros preceitos constitucionais decorrentes da adoção de
parcerias público-privadas, como incentivo à concorrência e ao desenvolvimento econômico.
O traço fundamental que marca o Estado Regulador, no entendimento de Justen Filho,
reside na elevação da intervenção estatal indireta à categoria de instrumento primordial de
realização dos fins de interesse público, no âmbito das atividades econômicas (2002, p. 24).
Ocorre que no modelo anterior preconizava-se a atuação direta do Estado em atividades
econômicas como forma ideal para a consecução de interesses públicos. Agora, no modelo
regulatório o Estado admite sua inferior capacidade gerencial frente à iniciativa privada e os
benefícios no oferecimento de determinados serviços pelo mercado, razão pela qual passa a
reservar para si a tarefa de disciplinar o oferecimento da atividade, preservando valores por
vezes estranhos à lógica mercadológica ordinária.
O Estado Regulador concentra-se, pois, na tarefa de normatizar, disciplinar, fiscalizar e
sancionar atividades que satisfaçam fins de interesse público, sem praticar os atos de gestão
propriamente ditos, cada vez mais dinâmicos no mundo de rápidas transformações comerciais,
industriais e tecnológicas, por vezes estranhas às técnicas governativas tradicionais.
Nas palavras de Justen Filho, o escopo do Estado Regulador pode ser genericamente
sintetizado da seguinte forma:
O objetivo da regulação é conjugar as vantagens provenientes da capacidade
empresarial privada com a realização de fins de interesse público.
Especialmente quando a atividade apresentar relevância coletiva, o Estado
determinará os fins a atingir, mesmo quando seja resguardada a autonomia
privada no tocante à seleção de meios (2002, p. 30).
A execução direta pelo Estado de atividades relacionadas à satisfação de interesses
públicos perde espaço para a função reguladora e fiscalizatória, o que em sede de parceria
público-privada passa a ganhar prestígio. Na parceria público-privada, ao invés de investir
diretamente, contratar, capacitar pessoal, investir em maquinário, equipamento, desenvolver
tecnologia, a função do parceiro público concentra-se na avaliação do desempenho do parceiro
privado no que concerne à satisfação do interesse público, em consonância aos termos
contratuais. Por esta razão, por se afastar da gestão direta propriamente dita para concentrar-se
na fiscalização dos termos contratuais e desempenho do parceiro privado, a parceria público-
privada se orientaria e adequaria ao pressuposto regulatório, razão pela qual encontraria
assentamento constitucional no arts. 173 e 174 da CRFB
69
.
Todavia, a cultura histórica brasileira acaba revelando uma tradição juspolítica avessa ao
modelo regulatório, seja pela inexistência de marcos regulatórios efetivos, pela produção
desordenada de normatização ou, recentemente, pelo descrédito em relação às entidades
reguladoras independentes, nos termos a serem observados a seguir.
4.2.2.1 Etapas regulatórias e regulação desordenada
A regulação das atividades particulares é realidade bastante tempo presente na
atividade estatal, desde pelo menos a superação do modelo liberal pelo intervencionista.
Dentro deste longo interregno, a regulação assumiu as mais diversas feições, atingindo fins
igualmente variados.
De acordo com Justen Filho, a primeira onda regulatória empreendida pelo Estado teve
caráter exclusivamente econômico, travada para efeito de interferir sobre o funcionamento do
69
Art. 173 Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei.
[...]
Art. 174 Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado.
Sobre o panorama do advento das parcerias público-privadas sobre o pressuposto regulatório, confira-se Almeida
e Zymler. Ao empreender uma análise da conjuntura histórica de implantação das parcerias público-privadas no
Brasil, os autores remetem-na ao contexto da ampla reforma do aparelho estatal, iniciada no começo da década de
1990. A partir do questionamento dos objetivos, estrutura e da razão de ser do Estado, ter-se-ia alcançado um
novo modelo, sucessor do Estado intervencionista e provedor, e aperfeiçoado em relação ao Estado mínimo,
garantidor da ordem, do cumprimento dos contratos e do direito de propriedade. Com o Programa Nacional de
Desestatização da Lei 8.031/90, dava-se início ao afastamento gradual do Estado da prestação direta de
serviços públicos, reservando ao Poder Público as atividades de regulação e fiscalização, que passaram a ser
exercidas por agências criadas para tais fins. Desenvolveu-se, a partir de então, um novo modelo estatal, que se
convencionou chamar de regulatório, conjuntura que, como dito, privilegia a política desestatizante, e em que se
insere a concepção e implantação das parcerias público-privadas (ALMEIDA; ZYMLER; 2005, 225-228).
mercado. Estribava-se na crença de que certas imperfeições no sistema de livre concorrência
lhe impediam de alcançar os resultados positivos prometidos, atribuindo-se ao Estado o dever
de sua correção. A disciplina regulatória, então, buscando eliminar deficiências e
insuficiências de aspectos pontuais no sistema de mercado, incidiu, em um primeiro momento,
para atenuar a deficiência na concorrência, impedir a apropriação privada de bens coletivos,
reduzir os efeitos das externalidades negativas, de assimetrias de informação, o desemprego, e
a inflação (2002, p. 32).
A segunda onda regulatória atingiu, a seu turno, a regulação social. Em dado momento
observou-se que a atuação do Estado na regulação não poderia se restringir a aspectos
econômicos, uma vez constatado que o mercado, ainda que em perfeito funcionamento,
poderia conduzir a não realização de variados fins de interesse comum. O Estado passou a
intervir, desta feita, para a proteção do meio ambiente, de direitos de minorias, dentre outros
(JUSTEN FILHO, 2002, p. 32-38).
Na medida em que incide sobre os setores econômico e social, a função regulatória cobre,
basicamente, toda esfera de atuação privada, por meio da qual passa a se tornar dificultoso
vislumbrar o campo de atuação da atividade particular não atingida por regulação direta ou
que não sofra os efeitos da atividade reguladora estatal. Seja para suprir as deficiências do
mercado ou para orientar a atuação de agentes privados de modo a assegurar a satisfação de
interesses públicos individuais e coletivos, o Estado utiliza, usualmente, procedimentos
normativos clássicos. Edita-se uma norma cujo descumprimento importa na incidência de
determinada sanção ao particular, com efeito de repreensão da conduta e desestímulo à adoção
de posturas similares em situações análogas.
reside uma das grandes questões da disciplina regulatória na conjuntura brasileira,
consistente na normatização estatal desordenada seqüencialmente promovida por diferentes
governos e legislaturas.
Ao exercer a atividade regulatória, passaram-se a editar regras continuamente, sem, contudo,
coordená-las no tocante a seu conteúdo e finalidade. Nas palavras de Justen Filho, “muitas
vezes, essa disciplina resultava de comoções políticas momentâneas ou retratava concepções
técnicas que logo se tornavam obsoletas” (2002, p. 42). As causas da normatização
desordenada são encontradas tanto na produção dos comandos gerais e abstratos, quanto na
execução da lei.
Em relação à atividade legislativa, Justen Filho assinala duas realidades distintas como
determinantes para a desordem da disciplina regulatória. Em primeiro plano encontra-se a
pluralidade de interesses antagônicos ou discrepantes, inerentes ao jogo político. O debate que
culmina com a edição de determinado diploma normativo é permeado por interesses
divergentes, de grupos de pressão distintos que se fazem ouvir no parlamento. É por isso que,
muitas vezes, determinado regramento que a priori haveria de ser preponderantemente
técnico, acaba sofrendo intervenções ideológicas inconvenientes à tarefa regulatória do Estado
(2002, p. 42).
Em outro plano, Justen Filho destaca o risco político da adoção de medidas impopulares. A
matéria regulada, por remeter essencialmente a aspectos eminentemente técnicos de decisões,
corre o risco de não guardar aceitação popular. Em sentido oposto, como as decisões políticas
nem sempre são norteadas pela realização do bem comum, mas também pela intenção de
perpetuação no poder, soluções de cunho regulatório menos adequadas correm o risco de
serem tomadas por pretenderem muitas vezes captar a simpatia do eleitor (2002, p. 42).
A desconexão regulatória provém, do mesmo modo, da esfera executiva. Neste aspecto,
sublinha-se o problema da composição e do preenchimento dos cargos de órgãos, de onde
emanam decisões administrativas de cunho regulatório. Para atender a pressupostos de
governabilidade, costuram-se, rotineiramente, arranjos políticos em cuja contrapartida ao
apoio ao interesse do governo está a ocupação de postos estratégicos de órgãos
governamentais. Conseqüentemente, o preenchimento de cargos a partir de critérios variáveis
e o despreparo técnico dos agentes responsáveis pela regulação reflete nas decisões de
natureza regulatória, haja vista que a composição dos postos de comando torna-se resultado de
processo de barganha política, adequado, muitas vezes a interesses privados e não da
coletividade (JUSTEN FILHO, 2002, p. 42).
Toda esta sorte de fatores, de expansão da seara regulatória estatal e da edição de normas
orientada segundo critérios estranhos ao verdadeiro interesse público, acabou por conduzir a
uma situação de normatização excessiva, desconexa, que impede a obtenção de melhores
resultados
70
. Ademais, a multiplicação de agências e comissões tornou a disciplina
contraditória, a ponto de existirem centenas de posturas acerca de cada atividade cogitada,
muitas inúteis e outras incompatíveis entre si (JUSTEN FILHO, 2002, p. 43).
Na esfera contratual, a experiência brasileira nas concessões de rodovias é um flagrante
exemplo da postura regulatória a que se faz alusão. Como noticia Letícia Queiroz de Andrade,
contratos de concessões de rodovias celebrados nos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do
Sul, Rio de Janeiro e Paraná enfrentaram problemas com relação ao reajuste das tarifas de
pedágio, acordadas contratualmente e que deveriam ser homologadas pelos poderes
concedentes.
Relata a autora que, em Santa Catarina, após realizados os investimentos por parte do
concessionário e antes mesmo do início da exploração da rodovia SC-401, os moradores da
área beneficiada pela rodovia, correspondente a 50% dos usuários, foram isentos, por força de
lei, do pagamento de pedágio, o que não inviabilizou economicamente a avença, como
fundamentou o pleito e a condenação do Estado no pagamento de indenização por perdas e
danos e lucros cessantes. O governo do Rio Grande do Sul, por sua vez, na gestão que
implementou o Programa Estadual de Concessão de Rodovias, descumpriu os termos
contratuais, não concedendo o reajuste das tarifas de pedágio no final de 1998. O governo
subseqüente, eleito com base na promessa de pôr fim ou reduzir o pedágio, em 1999, reduziu
unilateralmente o valor das tarifas em 20% a 28%, decisão que foi suspensa judicialmente. No
município do Rio de Janeiro, noticia a autora, as tarifas cobradas pela única concessionária
municipal brasileira também foram unilateralmente reduzidas no primeiro dia do mandato da
chapa vitoriosa nas eleições municipais, com decisão da mesma forma judicialmente
70
Justen Filho ilustra a crítica à intervenção estatal excessiva, no caso do regramento do uso comercial do
asbesto, componente químico utilizado para isolamento e proteção contra incêndios na construção civil, mas
causador de efeitos cancerígenos. De início, vedou-se sua utilização em novas construções, assim como se
determinou sua substituição nas existentes. Ocorre que o manuseio do produto em decorrência de sua substituição
nas construções existentes, aumentou o contato de trabalhadores com o elemento, elevando significativamente os
casos de câncer a ponto de se constatar que a determinação de sua substituição materializou muito mais danos
que a omissão estatal pura e simples (2002, p. 43).
impugnada e suspensa, em situação por tudo análoga à ocorrida naquele Estado. Por fim,
observaram-se os mesmo problemas no Paraná, referentes à iniciativa dos governos
subseqüentes de alterar, de modo unilateral, os reajustes de tarifas previstos em contrato
(SUNDFELD (org.), 2005, p. 261-264).
Em larga medida, a experiência de concessão de rodovias no Brasil revela o descompromisso
com marcos regulatórios efetivos na atividade administrativa e desrespeito aos termos
contratuais acordados em gestões pretéritas. Em flagrante ofensa à segurança jurídica, na
busca por respaldo e aprovação popular imediata e invocando prerrogativas inerentes ao
regime contratual público, promovem-se alterações bruscas de normatização governativas.
Busca-se a toda hora esquivar-se do cumprimento de contratos legitimamente firmados em
detrimento da manutenção eficiente da atividade concedida, respeito à boa-fé, à lealdade, à
moralidade administrativa e à criação de um ambiente atrativo ao investimento privado.
Todo o panorama exposto nas linhas anteriores culminou, tal qual apontado no item 1.4.3,
com a importação e adaptação, no ordenamento jurídico brasileiro, das agências reguladoras
independentes, propostas a solucionar o problema da regulação desconexa, desordenada,
contraditória e por vezes anti-jurídica empreendida pelo Poder Público na seara legislativa e
executiva, em sede, no que interessa a presente investigação, de desestatização de atividades
orientadas para a satisfação de interesses públicos.
Sem embargo, a par da aparente maturidade teórica da proposta de regulação independente, a
análise crítica da realidade política brasileira revela uma dificuldade de rompimento com o
modelo de governança tradicional, de decisões centralizadas, descontínuas e desconexas,
muitas vezes clientelistas, casuísticas e imediatistas, todas características que atentam contra o
núcleo da concepção regulatória.
No caso brasileiro, falta ao modelo proposto uma cultura regulatória independente que
se observa nos países onde logrou expressivo êxito. Apenas a título ilustrativo, cumpre
asseverar que ao longo de praticamente toda a história dos Estados Unidos da América,
imperou a consciência de que utilidades e comodidades a serem postas à disposição da
coletividade - serviços públicos - haveriam de ser disponibilizados não pelo Estado, mas sim
pelo capital privado e organizações sem fins lucrativos
71
, cabendo a regulação, desde cedo, a
figuras independentes que atuavam como árbitros dos interesses particulares, da coletividade e
do Poder Público
72
.
Noutro lado, em países como o Brasil, por longo tempo o Estado prestou ditos serviços
diretamente, não se verificando a tradição da execução daquele tipo de atividade por entidades
não estatais. A inexistência, na cultura político-administrativa brasileira, de órgãos
independentes, encarregados de regular a atividade privada no âmbito dos serviços públicos,
deriva, pois, da própria atuação discreta da empresa privada neste setor. Não existia, em outras
palavras, necessidade da atividade privada ser regulada por entidades independentes.
Soma-se, à falta de tradição regulatória, a questão da independência das agências ao
poder central. No contexto brasileiro, e em virtude de nossas características administrativas e
econômicas, resta claro que o poder decisório, que nas agências se pretende imparcial e
independente, pode vir a sofrer interferências tanto do Poder Público, quanto dos interesses
privados regulados. Isso porque, de um lado, o financiamento de atividades das agências é
proveniente de rubrica orçamentária, passível de sofrer restrições de caráter político capazes
de esvaziar ou até inviabilizar seus poderes e prerrogativas, especialmente se sua atuação se
mostrar desfavorável ao governo. De outro lado, como apropriadamente adverte Justen Filho,
existe sempre a possibilidade de captura da agência por interesses regulados, decorrente de
diversos fatores tais quais: a superior organização dos controlados em detrimento dos
interesses difusos e dispersos da comunidade; dependência da agência de informações
disponibilizadas pelos controlados; identidade de experiências entre profissionais de áreas
técnico-científicas determinadas, integrantes de agências e setor privado; procedência
usualmente privada dos dirigentes de agências, dentre outros (2002, p. 369).
71
A prestação de vasta parte dos serviços sociais para a satisfação de necessidades públicas nos Estados Unidos
da América, de acordo com informação trazida por Diogo Rosenthal Coutinho, provém da atuação de
organizações não lucrativas, que respondem por metade dos hospitais, escolas e universidades do país, e por cerca
de 60% das agências de serviços sociais. Parte dos recursos vêm de doações feitas por entidades privadas,
fomentadas por políticas fiscais e subsídios favoráveis a doadores (SUNDFELD (org.), 2005, p. 59).
72
Justen Filho remete a 1860 a primeira experiência consolidada de regulação por meio de agências nos Estados
Unidos da América, referente ao transporte ferroviário (2002, p. 73)
À guisa de conclusão, uma vez não ser objeto do presente estudo a investigação do
modelo regulatório de agências independentes, urge destacar que se repetem nesta
complexidade os problemas identificados quando o Estado opera diretamente a
normatização, regulação e fiscalização da atividade privada. As potenciais dificuldades
apontadas, de inexistência de autonomia financeira efetiva das agências, assim como, de
acordo com Justen Filho, da possível inocorrência de imparcialidade técnica das decisões, da
ausência de coordenação entre as diversas agências, da exacerbação da especialização, da
perda de controle, e da sua utilização como instrumento de diluição de responsabilidade
política (2002, p. 369-374), são nuances que importam em considerar o Estado Regulador
como um modelo longe de produzir os efeitos a que se pretende.
O paradoxo consiste, pois, em vislumbrar a racionalidade de uma nova disciplina
contratual que se estriba numa concepção de Estado incapaz de produzir os efeitos a que se
propõe. Todo o exposto até aqui serve para suscitar que a mudança para uma perspectiva
positiva não passa, necessariamente, por aceitar o argumento da falência financeira do Estado
e de modelos regulatórios estrangeiros, muitas vezes convenientes a interesses puramente
privados, para o desenvolvimento de novas disciplinas contratuais de forma acrítica.
Como dito, a justificativa para o instituto das parcerias público-privada não deve
concentrar-se em suposta insuficiência de recursos financeiros. A única justificativa plausível
remete ao princípio da eficiência, na medida em que as parcerias público-privada devem ser
a solução mais adequada para a prestação de certas atividades ou para a execução de
determinadas obras de infra-estrutura.
No entanto, a eficiência somente pode ser mensurada caso a caso. Não se pode afirmar
que a parceria público-privada é a melhor solução para todas as situações e para todos os
projetos. Ora, por vezes, a execução direta do serviço por parte do Poder Público é a melhor
opção. Noutras situações, a concessão comum é mais vantajosa. A parceria público-privada
somente encontra justificativa nas situações em que for demonstrado que ela é o melhor meio
para a satisfação concreta dos interesses públicos; que as outras opções que dispõem o Poder
Público, como a execução direta ou a delegação por concessão comum, não propiciam
resultados tão favoráveis quanto à parceria público-privada.
Quer dizer que a parceria público-privada pode ser a melhor solução para dada situação e não
ser para outra. Tudo dependerá das especificidades de cada projeto e das demandas pertinentes
ao interesse público. Por isto, a opção pela parceria público-privada deve ser sempre motivada,
caso a caso, diante de suas peculiaridades.
Frise-se que com o afastamento dos argumentos lançados para seu advento, não se trata
de refutar, aprioristicamente, o instituto da parceria público-privada. Passa a se reconhecer sua
relevância como importante inovação frente à tradicional disciplina de concessão, tendo como
objetivo viabilizar e atrair investimento e a capacidade empresarial privada para o
oferecimento de atividades de satisfação de interesse público não auto-sustentáveis
economicamente, ou incapazes de serem custeadas por seus usuários ou beneficiários finais.
A disciplina jurídica que norteia o contrato de parceria público-privada, postas estas
considerações iniciais, deve atenção aos verdadeiros interesses que se pretendem perseguidos
pelo instrumento. Dentre eles, destaca-se, especialmente, a busca pelo ganho de eficiência na
prestação de atividades quando executadas pela iniciativa privada.
Repousando no argumento da busca pelo aumento em eficiência, a adoção da parceria
público-privada encontra fundamento, diretamente, na Constituição da República. É que por
força do caput do art. 37 da CRFB, a Administração Pública de qualquer dos poderes de
qualquer ente federativo obedecerá, além dos princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade e publicidade, ao princípio da eficiência.
O princípio da eficiência ganha, de Moreira Neto, o seguinte sentido:
Entendida, assim, a eficiência administrativa, como a melhor realização
possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena satisfação
dos administrados com os menores custos para a sociedade, ela se
apresenta, simultaneamente, como um atributo técnico da administração,
como uma exigência ética a ser atendida, no sentido weberiano de
resultados, e como uma característica jurídica exigível, de boa
administração dos interesses públicos (2005, p. 107, grifo no original).
Enfim, a adoção da parceria público-privada quando orientada pelo princípio da
eficiência, visa a busca pela melhor prestação possível de determinada atividade. Reconhece
que, dentro da complexidade tecnológica atual, a capacidade empresarial privada pode ter
melhores condições para a prestação de atividades destinadas à satisfação de interesses
públicos, e, diante dessa realidade, busca superar as dificuldades impostas à atuação privada
em determinados segmentos para viabilizar a melhor realização possível do interesse público
em questão.
4.3 Aspectos controvertidos e adequação da parceria público-privada aos pressupostos
constitucionais
Tal qual exposto no segundo capítulo, tanto a Administração Pública quanto o Poder
Legislativo devem, na execução das políticas públicas e na formatação da disciplina jurídica
que as norteiam, atenção às disposições e aos princípios estampados na Constituição da
República Federativa do Brasil. Disso decorre que não pode o agente público ou o particular
furtarem-se de aplicar e respeitar dispositivos constitucionais sobre a pretensa invocação de
dispositivos infra-constitucionais - leis ou atos normativos.
Neste diapasão, chega o presente estudo em sua etapa final, em que se pretende
analisar as inovações incorporadas pela Lei de Parcerias Público-Privadas, interpretando-as e
adequando as disposições controversas à luz da Constituição, conforme o caso.
Ante a investigação operada no terceiro capítulo, em que foram analisados as aspectos
pontuais da parceria público-privada, verifica-se que as alterações no regime de contratação
administrativa comum incidentes sobre a disciplina constitucional gravitam em torno,
especialmente, do objeto do contrato de parcerias, do fundo garantidor, da escolha isonômica
do contratado, da disciplina ambiental, assim como da solução de litígios dos contratos de
parcerias.
4.3.1 Espécies de atividades que admitem parcerias público-privadas
À Administração Pública nacional cabe garantir a execução e o oferecimento de uma variada
gama de atividades, necessárias, principalmente, à promoção da dignidade humana, ao bem
comum, ao desenvolvimento e ao funcionamento orgânico da sociedade, à gerência do
patrimônio público e ao cumprimento dos estatutos legais concebidos pelos representantes
legislativos. Na esteira dos ensinamentos de Bandeira de Mello, as atividades administrativas
podem ser agrupadas de acordo com suas afinidades jurídicas, dividindo-se em: a) os serviços
públicos (em sentido estrito), assim como o provimento de obras públicas; b) a intervenção do
Estado no domínio econômico e social; c) as limitações administrativas à liberdade e à
propriedade – poder de polícia -; d) a imposição de sanções previstas para as infrações
administrativas; e) os sacrifícios de direito tal qual a desapropriação -; f) e a gestão dos bens
públicos (2005, p. 623-625).
Questão relevante para a análise da juridicidade das parcerias público-privadas nos casos
concretos reside, num primeiro momento, em identificar quais atividades de titularidade do
Estado admitem a delegação de sua prestação a particulares, análise que deve ser feita a partir
da Constituição da República Federativa do Brasil.
De plano, cumpre ressaltar que a delegação de serviços públicos (entenda-se atividades
administrativas em sentido amplo), tal qual aponta Justen Filho, abrange todas as diversas
figuras por meio das quais a transferência pelo Estado para um terceiro do exercício da
função estatal atinente à prestação do serviço (2005a, p. 500).
Assim, a investigação acerca das atividades passíveis de delegação remete-nos a uma
análise mais apurada da constatação realizada no item 3.2.1, em que se tratou das notas
introdutórias às parcerias público-privadas. Naquela oportunidade, asseverou-se que nem
todos os serviços públicos eram passíveis de delegação. Dita afirmação faz jus a um maior
aprofundamento
73
.
73
Esclareça-se, destarte, que no contexto de desestatização, que pretende permear a abordagem do presente
estudo, interessa a delegação de atividades estatais a sujeitos privados, excluindo-se, portanto, a delegação a
outras figuras estatais, mesmo de natureza privada, incumbidas da prestação de atividades administrativas.
Das classificações sobre o serviço público comumente empreendidas pelos
doutrinadores, três delas oferecem importantes subsídios na pretensão de delimitar quais
atividades administrativas de satisfação de interesse público podem vir a ser delegadas: a)
serviços próprios ou impróprios; b) serviços sociais, comerciais ou industriais, e culturais, e; c)
serviços públicos uti singuli e uti universi.
A primeira distinção mencionada faz referência tanto à natureza do serviço ou da
atividade a ser prestada, como à figura do prestador. Assim, de acordo com a lição de Hely
Lopes Meirelles, admite-se a existência de atividades a serem diretamente prestadas pelo
próprio Poder Público, em quaisquer circustâncias, que aludem a serviços relacionados
intimamente às atribuições do próprio Estado. Desse modo, serviços próprios do Estado são as
atividades em que, para sua execução, a Administração usa da sua supremacia sobre os
administrados, razão pela qual não cabe ser prestada por meio de delegação a particulares.
Afora isto, não se submetem à lógica econômica, motivo que as fazem ser prestadas
gratuitamente ou com baixa remuneração. Tem como exemplos clássicos, dentre outros, a
segurança e a polícia (2003, p. 321).
Em contraposição, serviços impróprios do Estado fazem menção às atividades que,
apesar de satisfazerem interesses comuns dos membros da comunidade, a Administração os
presta remuneradamente, por seus órgãos ou entidades descentralizadas, ou delega sua
prestação a particulares (MEIRELLES, 2003, p. 321). O exercício desta espécie de atividade
não se relaciona ao fim imediato do Estado, razão pela qual sua prestação pode se dar por
figura diversa do ente estatal.
Em outros termos, por força de dita construção, cogita-se a existência de atividades estatais
indelegáveis, ou os serviços públicos próprios (a serem prestados pelo Estados), inerentes ao
poder de império do Estado, ou destinados à satisfação de necessidades públicas coletivas,
indispensáveis à própria razão de ser do Estado, de promoção do bem estar coletivo e da
dignidade humana. Para esta categoria de atividades, não caberia, a princípio, a remessa de sua
prestação à iniciativa privada. Assim, dentro de quaisquer classificação subjacente, excluem-se
da possibilidade de delegação as atividades ou serviços próprios do Estado.
Quanto à natureza da necessidade a ser satisfeita, de acordo com o ensinamento de
Justen Filho, os serviços públicos podem ser sociais, comerciais e industriais e culturais. Os
sociais satisfazem necessidades de cunho social ou assistencial, tal como a educação, a
assistência e a seguridade. Os comerciais e industriais envolvem o oferecimento de utilidades
relacionadas ao padrão de vida dos indivíduos, como água tratada, energia elétrica e
telecomunicações. Os culturais, por sua vez, envolvem o desenvolvimento da capacidade
artística e o próprio lazer, como museu, cinema e teatro (2005a, p. 499).
Em termos constitucionais, desde que as atividades abraçadas pela mencionada
classificação não se relacionarem às atividades próprias exclusivas do Estado, elas admitem
sua exploração pela iniciativa privada, ainda que em alguns casos ela se de modo
complementar, fazendo-se necessária sua prestação de modo direto pelo Estado, tal qual
acontece com os serviços sociais. Os serviços sociais exprimem necessidades relativas a
valores fundamentais da sociedade, razão pela qual não é de bom alvitre que sua prestação
reste relegada ao interesse da iniciativa privada de empreendê-la. Por isso, ainda que não
sejam atrativos à lógica mercadológica, de rentabilidade econômica, devem ser postos à
disposição dos indivíduos pelo próprio Poder Público.
Questão diversa diz respeito aos serviços comerciais e industriais, assim como os
culturais. Ditas atividades podem, tradicionalmente, ser avaliadas ou expressas por valores
econômicos, sem o comprometimento de sua fruição. Aliás, dada sua natureza intimamente
relacionada à capacidade empresarial privada, é preferível que sejam prestados por entidades
privadas, sob a guarida e fiscalização do Poder Público.
Por fim, quanto à maneira como concorrem para satisfazer o interesse geral, os
serviços podem ser classificados em uti singuli e uti universi.
Serviços públicos uti singuli são aqueles que têm por finalidade a satisfação individual e
direta das necessidades dos cidadãos. Comportam determinados serviços comerciais e
industriais (energia elétrica, gás, transportes) e sociais (ensino, saúde, assistência social) (DI
PIETRO, 2000, p. 105).
os serviços uti universi são prestados à coletividade, mas usufruídos indiretamente pelos
administrados (DI PIETRO, 2000, p. 105). Seriam serviços não específicos nem divisíveis,
destinados à coletividade em geral, como, por exemplo, serviço de defesa do país contra
inimigos externos, serviços administrativos (que atendem às necessidades internas da
Administração), de iluminação pública, saneamento, dentre outros.
A distinção entre serviços uti singuli e uti universi guarda relevância ao tratamento
dispensado aos serviços públicos e às atividades de satisfação de interesse público como um
todo, e, em especial, à disciplina delegatória.
A Constituição brasileira contemplou esta distinção, por força, em especial, da previsão
estampada em seu art. 145, II
74
. Por intermédio do aludido dispositivo, vislumbrou-se a
existência de serviços específicos e divisíveis, que, quando prestados pelo Estado, haveriam de
ser custeados por taxas cobradas diretamente dos usuários, e de outros serviços não específicos
e não divisíveis, a serem custeados por outra forma que não a instituição de taxas.
Ao lado da aludida diferenciação empreendida pela Constituição para fins tributários,
na maior parte dos casos em que a Carta Magna se refere expressamente a serviços públicos,
menciona atividades de oferecimento de comodidades e utilidades, dirigidas a usuários
determináveis, ou seja, serviços específicos e divisíveis. Coincidentemente, são justamente os
serviços uti singuli, tais como o serviço postal e de correio aéreo, de telecomunicação, energia
elétrica, navegação aérea e estrutura aeroportuária, serviço de transporte ferroviário,
aquaviário e rodoviário, portos, gás canalizado (art. 21), saúde (art. 196), previdência (art.
201), assistência social (art. 203), educação (art. 205).
Amparada na interpretação constitucional mencionada, de que serviços públicos seriam
atividades específicas e divisíveis, a doutrina passou a excluir da noção de serviço público as
atividades prestadas com caráter de generalidade, tal qual se depreende da concepção
oferecida por Bandeira de Mello. De acordo com o autor, serviço público é:
74
Art. 145 – A União, os Estados o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos
específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.
[...] toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material
destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente
pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e
presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de
Direito Público portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de
restrições especiais -, instituído em favor dos interesses definidos como
públicos no sistema normativo (2005, p. 628, grifo acrescido).
Neste sentido, Moreira Neto entende serviço público como “atividade administrativa,
assegurada ou assumida pelo Estado, que se dirige à satisfação de interesses coletivos
secundários, de fruição individual, e considerados, por lei, como de interesse público (2005,
p. 425, grifo acrescido).
O ponto comum dos conceitos oferecidos residem em seu caráter restritivo. O que identifica
os serviços públicos para essa corrente é o propósito de poderem ser usufruídos singularmente
pelos administrados.
Certo é que atividades referentes ao oferecimento de utilidades ou comodidades
materiais usufruíveis individualmente que visam, por exemplo, ao aumento da qualidade de
vida e níveis de conforto dos sujeitos, por exemplo, são capazes de estabelecer, via de regra,
uma relação jurídica específica entre o usuário ou o beneficiário e o prestador de serviço, o
que as remete, usualmente, às atividades de natureza comercial e industrial, ou às atividades
sociais dotadas de razoável rentabilidade econômica.
Daí é que se conclui que ditas atividades fazem parte de terreno propício à atuação da
iniciativa privada em sua exploração. Trata-se, como dito, de atividades de natureza industrial
ou comercial, capazes de estabelecer relações diretas entre o prestador do serviço e usuários
determinados, passíveis de serem custeadas diretamente pelos últimos, por intermédio de
tarifas.
Por esta razão, por serem dotados de capacidade econômica e não se relacionarem a
atividades próprias e exclusivas do Estado - inerente a seu poder de império, por exemplo -,
supracitados serviços, uti singuli, são, muitas vezes por força literal da Constituição,
autorizados a terem sua exploração delegada a particulares. Toma-se como exemplo os
serviços enunciados no art. 21, XII da Constituição da República.
Mormente a falta de previsão expressa na Constituição de um mecanismo para o
custeio de serviços uti universi, que não comportem a exploração nos moldes mercadológicos,
nem da previsão textual de sua delegação, a transferência de sua execução à esfera privada não
resta, contudo, obstada.
Em suma, atividades não exclusivas do Estado, destinadas à satisfação de interesse
público coletivo, à coletividade como um todo (não dirigidas ao indivíduo especificadamente
considerado), mas incapazes de configurar uma relação contratual entre prestador de serviço e
usuário para efeito de seu custeio, podem, assim como os serviços públicos uti singuli, ser
passíveis de delegação, conquanto não o possa por concessão comum, tal qual se verá adiante.
De fato, a Constituição, em diversas passagens, admite a delegação por concessão
comum de serviços uti singuli e silencia quanto aos serviços uti universi. Entretanto, o silêncio
constitucional não se presta a impossibilitar a delegação desta última espécie de atividade.
A distinção operada pela Constituição, em seu art. 145, II, reconhece, apenas, a
existência de serviços específicos e divisíveis de outros não-divisíveis. O núcleo da distinção
reside no tratamento tributário da receita quando a atividade é prestada diretamente pelo
Estado, de maneira pela qual se entende que serviços específicos não-divisíveis hão de serem
custeados, quando prestados diretamente pelo Estado, por tributos não vinculados.
É que a previsão textual da Constituição sobre a possibilidade de delegação dos
serviços uti universi não é requisito indispensável para se admitir sua outorga à iniciativa
privada. A partir da admissão dos serviços uti universi como serviços públicos em sentido
amplo, ou atividades orientadas para a satisfação de interesses públicos, vinculadas a direitos
fundamentais e organizadas sobre o regime público, reconhece-se que sua qualificação como
tal pode não partir da Constituição da República, mas de lei específica, a quem cumpre definir
os modos de prestação da atividade. Em suma, a lei, e não somente a Constituição, pode
qualificar determinada atividade como de interesse público, definir sua titularidade, o regime
jurídico aplicável, e a possibilidade de sua execução se dar por delegação. Por tal motivo se
cogita não caber à Constituição da República a tarefa de qualificar, de modo exaustivo, as
atividades de satisfação de interesse público e seu modo de execução.
O raciocínio até aqui desenvolvido leva a concluir que basta que a Constituição não
proíba que determinada atividade seja delegada para se admitir seu caráter não exclusivo e
próprio do Estado. Isto acontece com grande parte dos serviços uti universi, por não haver,
frisa-se, comando constitucional que impossibilite sua delegação. Aliás, na medida que,
mediante delegação de certas atividades, melhor se atenda o interesse público, garantindo a
continuidade do serviço público, modicidade de tarifas, eficiência administrativa, que se
reconhecer o assentamento constitucional da delegação.
Em síntese:
a) atividades próprias e exclusivas do Estado, que o Poder Público pode oferecer,
referentes aos atos de império, assim como as atividades constitucional ou
infraconstitucionalmente definidas como exclusivas do Estado, sejam uti singuli ou uti
universi, são indelegáveis. Exemplo de atividades que podem ser prestadas pelo próprio
Estado, por força constitucional, são os de serviço postal e correio aéreo nacional, de acordo
com o art. 21, X da CRFB;
b) podem ser delegados por concessão comum os serviços públicos uti singuli e obras
públicas, destinadas à satisfação de necessidades individualizáveis e capazes de estabelecerem
uma relação direta entre o prestador do serviço ou explorador de obra e seu tomador ou
beneficiário, para efeito de custeio da operação, que, lembre-se, de se orientar pela lógica
mercadológica comum. São exemplos da previsão constitucional expressa de delegação por
concessão comum os serviços e atividades enunciadas no art. 21, XII da Constituição da
República;
c) não existe proibição constitucional para a delegação a particulares dos mesmos
serviços públicos em sentido estrito - assim como obras públicas que prestados e
empreendidos em circunstâncias cuja demanda seria insuficiente para a exploração autônoma
da atividade; em outros termos, de atividades não auto-sustentáveis. Ainda que não tenham sua
delegação autorizada por concessão comum - que prevê custeio, principalmente, por tarifas
cobradas de seus usuários - a natureza dessas atividades admite sua outorga à iniciativa
privada. Aliás, trata-se dos mesmos serviços autorizados no item anterior, que em
circunstâncias peculiares;
d) serviços uti universi e serviços de natureza social admitem sua prestação pela
iniciativa privada, apesar de também não poderem por concessão comum em razão de ser
incapazes de estabelecer uma relação direta entre o prestador do serviço ou explorador da obra
e seus usuários e beneficiários, seja pela impossibilidade de se individualizar os destinatários
ou beneficiários, ou pela natureza predominantemente social da atividade. A título de exemplo,
a permissão constitucional de delegação de serviços relacionados à saúde e à educação,
assenta-se nos arts. 197 e 205 da Constituição da República, que atribui a necessidade de
serem empreendidos em conjunto com a esfera privada.
Os termos nos quais devem ser delegadas as atividades incapazes de serem objeto de
concessão comum, ou as atividades impossibilitadas de serem custeadas principalmente por
tarifas cobradas de seus usuários ou beneficiários, é o que se pretende abordar a seguir.
4.3.1.1 Objetos de contratos de acordo com as espécies de parcerias público-privadas
Até o advento da Lei 11.079/04, a concessão comum era a forma corrente por intermédio
da qual a Administração Pública delegava a particulares a exploração de serviços e obras
públicas que pudessem ser usufruídas singularmente pelos administrados, desde que dotadas
de natureza comercial ou industrial.
Explica-se: a concessão de serviço público, de acordo com Bandeira de Mello, é o
instituto pela qual o Estado atribui a alguém o exercício de um serviço ou obra, remunerando-
se pela própria exploração do mesmo, em geral e basicamente mediante tarifas cobradas
diretamente dos usuários de serviços (2005, p. 658).
Do conceito oferecido, extrai-se que, para efeito de caracterizar a concessão comum,
como asseverado no item 3.1.2, é indispensável que o particular, concessionário, busque sua
remuneração pela exploração do serviço concedido, através, basicamente, de tarifas cobradas
de seus usuários (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 659).
A conseqüência lógica de se admitir a manutenção de determinada atividade por
intermédio de tarifas cobradas diretamente do usuário da atividade descansa na possibilidade
de sua fruição singular pelos administrados, que pagam individualmente determinado valor
pelo uso efetivo do serviço ou da obra posta a sua disposição. Revela a capacidade econômica
da atividade, de sustentabilidade, o que remete a concessão comum às atividades de natureza
comercial ou industrial, capazes de se organizarem sobre a lógica empresarial, ajustáveis à
equação oferta/demanda.
Frise-se: ditas atividades adequam-se ao padrão capitalista de exploração.
Comportando a incidência de lucro sobre a operação, viabiliza-se a remuneração do prestador
do serviço ou obra mediante, basicamente, de preços pagos por seus usuários ou beneficiários.
Isso autoriza a remessa de sua execução à iniciativa privada, para que esta a ofereça dentro dos
padrões empresariais privados, eximindo as estruturas públicas do encargo financeiro e técnico
que essas atividades importam. Com o socorro à prestação privada, busca-se ganho de
eficiência e desoneração estatal, mediante a economia de recursos públicos.
Isso tudo, como dito, até o advento da Lei n° 11.079/04.
4.3.1.1.1 Espécies de atividades das concessões patrocinadas
Na esteira do apontado no capítulo anterior, a Lei de Parcerias Público-Privadas introduziu,
entretanto, duas novas espécies de concessão, a patrocinada e a administrativa. Por força do
art. 2º, §1º, da Lei 11.079/04, concessão patrocinada é a concessão de serviços ou de obras
públicas de que trata a Lei n° 8.987/95.
São, portanto, como reza o próprio texto da Lei 11.079/04, objeto de concessão
patrocinada os serviços e obras públicas de mesma natureza dos passíveis de concessão
comum: serviços uti singuli - ou atividades econômicas divisíveis - além de obras públicas,
postas à disposição de toda a coletividade mas usufruídas singularmente pelos administrados,
capazes de serem, total ou parcialmente, custeadas por sua fruição individual, por intermédio
de tarifas. Este é o entendimento de Di Pietro:
Para o serviço público de natureza comercial ou industrial, que admita
cobrança de tarifa do usuário, o instituto adequado é a concessão ou
permissão de serviço público, em sua forma tradicional, regida pela Lei
8.987/95 e legislação esparsa (de telecomunicações, energia elétrica etc.), ou
a concessão patrocinada instituída pela Lei 11.079/2004 (2005, p 58,
grifo no original).
Na verdade, a concessão patrocinada se presta às atividades - serviços e obras públicas
referidas na Lei 8.987/95 - cuja exploração econômica, por parte do concessionário, não
seja suficiente para garantir-lhe retorno financeiro, não sejam aptas a manter a atividade
autonomamente. Dada a dificuldade de manutenção de atividades em condições cuja demanda
seria insuficiente para a prestação por conta e risco do concessionário como ocorre nas
concessões comuns -, a parceria público-privada propicia, por intermédio de contraprestação
pública adicional às tarifas cobradas dos usuários, viabilidade econômica à atividade,
garantindo o interesse do parceiro privado em executá-la.
A constatação aparentemente simples é provida de importantes desdobramentos. O
mais importante deles é a impossibilidade, a luz da conjuntura constitucional brasileira, da
adoção de parceria público-privada na modalidade concessão patrocinada a atividades auto-
sustentáveis economicamente. Restando presente a sustentabilidade econômica da atividade,
que, necessariamente, optar-se pela via menos onerosa aos cofres públicos.
É que sob o prisma constitucional, a atividade administrativa se orienta, dentre outros
preceitos, pelo princípio da economicidade, expressamente consignado no art. 70, decorrente
do princípio da eficiência, este estampado no caput do art. 37, ambos da Constituição da
República.
Como leciona Moreira Neto, o princípio da economicidade, embora relacionado no
texto constitucional ao propósito da execução de fiscalização contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial da União, deve ser recebido como um princípio geral
do Direito Administrativo (2005, p. 107). Por força do princípio da economicidade busca-se,
como o próprio vocábulo sugere, o dever de zelo do patrimônio e dos recursos públicos na
execução de atividades orientadas à satisfação de interesse público.
Tal qual pondera o autor, a economicidade se relaciona ao princípio da eficiência, que
prescreve “a melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena
satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade(MOREIRA NETO,
2005, p. 107, grifo no original).
O sentido que se sugere para os princípios da economicidade e eficiência são subscritos
por Justen Filho, para quem o dever de otimização dos recursos públicos é entendido como
faceta, desdobramento do princípio da eficiência administrativa:
Um dos aspectos essenciais do direito administrativo reside na vedação ao
desperdício ou utilização dos recursos destinados à satisfação de
necessidades coletivas. É necessário obter o máximo de resultados com a
menor quantidade possível de desembolsos. (JUSTEN FILHO, 2005a, p.
84).
Aplicando-se os preceitos em comento à disciplina das concessões, resta evidente que,
estando presente a sustentabilidade da atividade, a contratação que se materializar pela via
menos onerosa aos cofres públicos, que não demandem, a princípio, contraprestação pública
alguma.
Como adverte Fernandes, verifica-se que existindo outros possíveis institutos que
evitem a relação promíscua entre recursos públicos e privados ou sejam suficientemente
atraentes para que a iniciativa privada assuma o risco, a PPP deve ser evitada(2005, p. 5,
grifo acrescido).
Neste sentido, César A. Guimarães Pereira adverte que a regularidade da contratação
por parceria público-privada depende, sobretudo, da demonstração da imprescindibilidade da
parceria em cotejo com as demais formas de contratação disponíveis para a Administração. De
acordo com o autor, “no que se refere especificamente às concessões, caber-lhes-á [ao estudo
técnico e à autoridade competente] indicar as razões pelas quais não se pode outorgar, em um
certo caso concreto, uma concessão comum” (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 219)
75
.
Do raciocínio desenvolvido decorre que é defeso, à luz do sistema jurídico nacional, a adoção
de parceria público-privada na modalidade concessão patrocinada em atividades auto-
sustentáveis economicamente.
Cumpre destacar a relação entre a sustentabilidade da atividade e adequação do serviço. Tal
qual prescrito no inciso IV do parágrafo único do art. 175 da CRFB, incumbe a lei específica
dispor sobre a obrigação de manter o serviço adequado, quando este for objeto de concessão
ou permissão. A seu turno, o §1º do art. da Lei 8.987/95, estabelece que “serviço
adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança,
atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade de tarifas” (grifo acrescido).
A questão que se coloca, então, versa sobre a possibilidade de, a priori, determinada atividade
ser economicamente viável - ser explorada nos moldes mercadológicos -, mas que em atenção
ao princípio da modicidade de tarifas, sem a intervenção de recursos públicos ou subvenções a
receita proveniente das tarifas não se faz suficiente para o custeio do serviço.
Em outras palavras: ao assegurar o direito dos usuários do pagamento de tarifas módicas,
modestas, a atividade pode vir a se tornar, por si só, deficitária. De fato, a preservação da
modicidade de tarifas é bastante para conduzir a atividade a um status de inviabilidade
econômica. E justamente para efeito de coadunar a participação da iniciativa privada a
atividades em que se assegure a modicidade de tarifas, é que pode se lançar mão das parcerias
por concessão patrocinada (PEREIRA in JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 220).
Isto posto, aplicam-se à concessão patrocinada os contratos cujo objeto versem sobre
serviços públicos ou obras públicas de que trata a Lei 8.987/95, e legislação correlata, ou
75
Para o autor, a preservação da modicidade de tarifas pode ser um dos motivos determinantes para a adoção de
parcerias público-privadas, mas ainda assim deve-se justificar a escolha do patamar de modicidade adotado,
frente a outros modos de realização dos valores constitucionais.
seja, serviços públicos uti singuli, assim como obras públicas
76
, desde que seja inviável à
iniciativa privada explorá-la sem o aporte de recursos públicos. Trata-se de contratos propícios
para objetos que envolvam serviços e obras rodoviárias, ferroviárias, de portos, de
fornecimento de luz elétrica, gás e água, em condições cuja demanda não seria suficiente à
manutenção autônoma do serviço, com custeio exclusivo pelos usuários, por exemplo.
4.3.1.1.2 Espécies de atividades das concessões administrativas
Se de um lado, a concessão patrocinada refere-se, expressamente, a atividades ou serviços uti
singuli, assim como obras passíveis de serem usufruídas singularmente pelos administrados,
noutro vértice a concessão administrativa, nos termos do próprio §2º do art. da Lei
11.079/04, é “o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a
usuária direta ou indireta, ainda que envolva a execução de obra ou o fornecimento ou
instalação de bens”. Não se refere, pois, a serviços públicos ou obras públicas em sentido
estrito - como as objeto de concessão comum -, mas sim a atividades administrativas em
sentido amplo, prestadas para a Administração Pública mas cujos beneficiários são os
administrados em geral.
Parte da doutrina, da qual se destaca Bandeira de Mello, sustenta que conceber a
Administração Pública como usuária, pelo menos indireta, dos serviços prestados na
concessão administrativa - para efeito de pagamento de contraprestação ao concessionário -
equivale a desenvolver um subterfúgio legal para afastar o agente privado de uma
remuneração contratual como qualquer outra. A concessão administrativa não seria uma
76
Obras públicas remetem à “construção, reparação, edificação ou ampliação de um bem imóvel pertencente ou
incorporado ao domínio público” (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 652).
Não são serviços públicos propriamente ditos, ou utilidades e comodidades destinadas ao uso singular dos
administrados, definidas por lei como tanto, mas comportam, da mesma forma, sua exploração econômica pela
iniciativa privada (BLANCHET, 1999, p. 24).
concessão propriamente dita, mas, sim, um simples contrato de prestação de serviços com um
regime diferenciado e muito mais vantajoso para o contratado que o regime geral dos contratos
(2005, p. 721).
A crítica de Bandeira de Mello ampara-se, a todas as luzes, num dado elemento atinente à
disciplina de concessão. Para o autor, e isso a presente investigação teve a oportunidade de
constatar, o elemento caracterizador da concessão em sentido amplo refere-se ao fato de que a
prestação dá-se por conta e risco do concessionário. Na medida em que na concessão
administrativa o parceiro público remunera integralmente o parceiro privado, não haveria que
se falar em conta e risco próprios do concessionário: seria uma mera prestação de serviços
ordinária, tal qual a Administração rotineiramente faz uso.
Não obstante, nas próprias concessões comuns existem circunstâncias em que a
Administração Pública intervém, como na esteira do exemplo aludido no item anterior, com
subvenções para a manutenção da modicidade de tarifas. Nesta hipótese, no que tange ao
concessionário, estaria o Poder Público de alguma forma garantindo a viabilidade econômica
da atividade, e portanto, reduzindo os riscos de demanda insuficiente do serviço ou obra.
O que se busca dizer é que a noção de concessão em sentido amplo não deve gravitar,
exclusivamente, em torno da assunção integral dos riscos do negócio. É certo que, nas
concessões comuns o risco deve ser assumido integralmente pelo concessionário, até mesmo
em razão da natureza das atividades que se pretendem delegadas. É que é mais valioso
considerar como elemento caracterizador da disciplina de concessão, a própria noção de
delegação de atividades relacionadas a direitos fundamentais, orientadas à satisfação de
necessidades públicas e coletivas, a serem prestadas sob um regime jurídico específico.
Assim, entendendo que o marco efetivo que caracteriza a concessão é o regime jurídico da
prestação das atividades que se pretendem delegadas, importa reconhecer que, quando
prestadas por particulares, estando submetidas aos princípios inerentes à atividade como a
continuidade, atualidade, generalidade, cortesia, dentre outros, está-se, efetivamente, tratando
de concessão.
Poderá o leitor perguntar qual, em termos práticos, seria a diferença entre um contrato
ordinário de prestação de serviços e o contrato que importa em delegação de serviço por
concessão administrativa?
As diferenças fazem referência aos requisitos das contratações que acabam alterando seus
regimes jurídicos. A contratação por parceria público-privada pressupõe o dispêndio de
elevada soma de recursos, na ordem de pelo menos vinte milhões de reais. Aliado a isso,
requer-se do parceiro privado a continuidade da prestação de determinada atividade, por prazo
estendido, de até trinta e cinco anos. Afora tudo, sublinha-se a existência de contraprestação
pública continuada ao parceiro privado. Todas essas características, em conjunto, diferenciam,
pois, a parceria público-privada das contratações comuns rotineiramente firmadas pela
Administração.
Enquanto na contratação de serviços ordinária, ou terceirização, a Administração
contrata simplesmente atividades de apoio à atividade administrativa principal, na delegação
por concessão administrativa a prestação de atividade em que a Administração é usuária direta
do serviço, deve vir acompanhada, necessariamente, da realização de investimento privado
para criar, ampliar ou recuperar infra-estrutura pública (SUNDFELD, 2005, p. 31). Ademais,
na hipótese em que a Administração é usuária indireta da atividade, está-se contratando a
prestação da própria atividade destinada à satisfação do interesse público primário. Em
qualquer caso, vale lembrar, os beneficiários finais da atividade são os administrados em geral,
a coletividade, o que configura a execução de um serviço público em sentido amplo.
Em termos teóricos, e este é o verdadeiro sentido da concessão administrativa, trata-se de
delegar sob o regime de concessão serviços uti universi, a serem disponibilizados à
coletividade em geral, ou, ainda, serviços de natureza social, também prestados à coletividade,
mas no caso, usufruídos singularmente.
Parte-se da tentativa de superar as dificuldades impostas pela disciplina de concessão comum
que prevê o custeio da atividade, basicamente, por tarifas cobradas de seus usuários. Para
tanto, considera-se a Administração usuária, pelo menos indireta, para efeito de viabilizar a
remuneração do parceiro privado em atividades que não se possa individualizar o tomador do
serviço ou o beneficiário, ou que, podendo ser individualizados, valores de ordem social
imputem o dever de serem prestados de modo gratuito.
Nas palavras de Jacintho Arruda Câmara:
Esta espécie pode ser adotada, por exemplo, quando houver dificuldade para
estabelecer uma relação individualizada com os destinatários finais dos
serviços, o que inviabilizaria sua cobrança por meio de tarifa. Seria o caso
dos serviços de iluminação pública ou de limpeza urbana. Em tais serviços a
dificuldade para caracterizar a singular fruição do serviço pelos usuários
finais, na prática, acabou se tornando uma barreira à outorga dos serviços
mediante concessão. (SUNDFELD (org.), 2005, p. 180).
A pretensão da parceria público-privada em viabilizar a concessão desta espécie de
atividades, amparando-se no primado da eficiência, visa prestigiar a promoção do bem-estar
coletivo. Superando as dificuldades enfrentadas pela concessão comum para a delegação de
atividades incapazes de serem custeadas diretamente por seus usuários ou beneficiários, busca
se assegurar a adequada e moderna prestação de determinado serviço, atendendo à exigência
do art. 175, parágrafo único, IV da CRFB.
Almejando a prestação ideal de determinada atividade, está-se, ademais, a atender de
modo mais efetivo, producente, os fundamentos do Estado brasileiro elencados no art. da
CRFB.
Entretanto, de toda a série de atividades freqüentemente arroladas que se pretendem
contempladas pelas parcerias público-privadas através de concessões administrativas, algumas
suscitam controvérsias, dentre as quais se destaca o saneamento ambiental, atividades de apoio
ao poder de autoridade do Estado, e serviços sociais de educação e saúde.
4.3.1.1.2.1 Concessão administrativa para atividades de saneamento ambiental
O saneamento ambiental, tal qual destaca Floriano de Azevedo Marques Neto, consistente no
gênero de serviços que abarca o saneamento básico (água e esgotamento sanitário), limpeza
urbana e manejo de águas pluviais em áreas urbanas, é o conjunto de atividades
administrativas consideradas serviços públicos em sentido amplo
77
que, dadas as
externalidades
78
negativas, tornam dificultoso seu tratamento como atividade meramente
econômica, da mesma forma que, por envolver atividades indivisíveis, tem a delegação de sua
prestação dificultada por concessão comum (SUNDFELD (org.), 2005, p. 311).
Em outras palavras: os riscos de inviabilidade econômica produzidos pelas externalidades
negativas da atividade, aliados à impossibilidade de singularmente se fruir do serviço,
características típicas dos serviços uti universi, afastam-na da possibilidade de serem custeadas
diretamente pelos usuários, e, conseqüentemente, de serem delegadas à iniciativa privada por
concessão comum.
Em que pese por longo tempo ditas variantes terem obstado a delegação de atividades de
saneamento, a possibilidade, agora, de remuneração do parceiro privado integralmente pelo
parceiro público através de contraprestação contínua, recomenda a transferência de sua
execução nos moldes de parceria público-privada por concessão administrativa.
Trata-se, no bem da verdade, de uma re-alocação de despesas: antes, a atividade era
obrigatoriamente prestada pelo Poder Público por não haver forma alternativa de remuneração
do particular, caso fosse delegada; e, na qualidade de prestação direta, era financiada com
recursos do caixa geral do Estado. Agora, os mesmos recursos, antes necessários ao custeio da
prestação direta da atividade pelo Estado, são re-alocados para remunerar o parceiro privado,
que, além de oferecê-lo segundo a capacidade empresarial privada, deve investir maciçamente
em infra-estrutura, equipamento e tecnologia, na ordem de, pelo menos, vinte milhões de reais.
77
A qualificação de ditas atividades como serviço público é operada, inclusive, pelos arts. e da Lei
11.445/07, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, nos seguintes termos:
“Art. 2
o
Os serviços públicos de saneamento básico serão prestados com base nos seguintes princípios
fundamentais:
[...]
Art. 8
o
Os titulares dos serviços públicos de saneamento básico poderão delegar a organização, a regulação, a
fiscalização e a prestação desses serviços, nos termos do art. 241 da Constituição Federal e da Lei n
o
11.107, de 6
de abril de 2005.” (grifo acrescido).
78
Para efeito de ilustrar o conceito de externalidades, leia-se a observação de Souto: [...] as externalidades
decorrem da diferença entre o custo privado de produção e os benefícios propiciados pelo produto e os custos e
benefícios absorvidos pela sociedade [...]” (2005b, p. 39).
No caso concreto, trata-se de eliminar a deficiência do Estado na prestação desta
espécie de serviços, assim como, simultaneamente, fazer uso da alta capacidade tecnológica
privada. Toma-se, a título de exemplo, as atividades de tratamento de água e esgoto e a coleta
de resíduos sólidos. No primeiro caso, na esteira dos dados trazidos por Luiz Henrique
Werneck de Oliveira, o sistema de saneamento público beira ao colapso, com 45 milhões de
pessoas sem acesso à água potável, e 83 milhões de pessoas sem coleta de esgoto, o que
equivale a uma coleta de apenas dez por cento do esgoto produzido. Ainda, um vasto número
de estações de tratamento de água no país foram implementadas mais de trinta anos, com
tecnologia defasada para potabilizar água bruta contaminada por poluentes. Os custos para o
tratamento de água aumentaram mais de cinco vezes, entre 1985 e 1993 (JUSTEN;
TALAMINI (org.), 2005, p. 47)
79
.
Na contramão do colapso público, a renovação tecnológica viabilizada pela participação
privada no oferecimento do serviço de tratamento de água tende a permitir o investimento em
melhorias qualitativas, com o emprego de tecnologias coerentes, propícias para lidar com os
problemas do saneamento no século XXI (OLIVEIRA in JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005,
p. 47).
Da mesma forma, a hipótese de limpeza urbana, no entendimento de César A. Guimarães
Pereira, está inserida “no campo próprio para o desenvolvimento das parcerias público-
privadas” (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 142). Existe, lembra o autor, a necessidade
de universalização urgente, dificuldade técnica e jurídica na cobrança de tarifas, e
freqüentemente, inviabilidade econômica (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p.210), o que
revela seara em tudo e por tudo adequada para delegação por concessão administrativa.
É certo que o saneamento ambiental é, via de regra, atividade incapaz de ser singularmente
tomada pelo usuário, de acordo com sua conveniência. Para a proteção do meio ambiente, a
79
Em complemento ao panorama de ineficiência da atuação pública, leiam-se os números divulgados pelo
Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. De
acordo com os indicadores, de 1990 a 2004 o Brasil teve um crescimento de apenas 4% no índice da população
com acesso sustentável à saneamento melhorado, que passou a atingir 75% da população. Trata-se de taxa de
crescimento muito abaixo de vizinhos como Equador, Paraguai e Peru. Em termos relativos, o percentual da
população com acesso à saneamento melhorado fica atrás de Argentina, Chile e Uruguai, cujas benfeitorias em
saneamento alcançam a pelo menos 91% da população (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O
DESENVOLVIMENTO, 2006, p. 305-306).
promoção da dignidade humana e a manutenção de níveis adequados de qualidade de vida e
saúde, o saneamento ambiental deve alcançar a todos os indivíduos, indistintamente. Todos
devem ter seus resíduos líquidos e sólidos devidamente recolhidos e tratados, da mesma forma
que os logradouros públicos devem ser limpos independentemente da capacidade econômica
de seus moradores ou da quantidade de lixo e esgoto produzida. Na medida em que, por
concessão administrativa, a Administração se torna responsável pela remuneração do
particular, assegura-se ao beneficiário direto da atividade a prestação eficiente de serviços de
saneamento, dissociados da eventual impossibilidade econômica dos indivíduos de baixa
renda de custearem o serviço privado.
Mais que isso, através da concessão administrativa de atividades de saneamento ambiental é
possível apartar o interesse do parceiro privado do aumento na quantidade de serviços
prestados, para aferição de maior lucro. De acordo com Floriano de Azevedo Marques Neto,
enquanto na concessão tradicional existe o interesse do particular em angariar o maior número
de usuários consumidores de seus serviços, como, por exemplo, na telefonia, gás canalizado e
energia, no saneamento ambiental o modelo de concessão administrativa permite o inverso, ou
a dissociação entre remuneração e demanda, por exemplo, através da estruturação de tarifas
flat por margem de geração de resíduos, de modo que o ganho do particular aumente com a
redução de consumo (SUNDFELD (org.), 2005, p. 321).
Com a remuneração por desempenho, o parceiro privado, encarregado do tratamento do
resíduo sólido após sua coleta, pode perceber maior remuneração pela menor quantidade do
produto final tratado. Ou ainda, a remuneração do parceiro privado pode dar-se em razão do
maior aproveitamento de água após o tratamento do esgoto coletado. Enfim, não se
viabiliza a atividade empresarial privada em matéria de saneamento ambiental, como pode se
verificar ganhos no atendimento de interesses públicos correlatos, realidade dificultada pelo
sistema de concessão comum.
A Lei n° 11.079/04 inova, portanto, a ordem jurídica, possibilitando a delegação de atividades
uti universi tais quais as relativas ao saneamento ambiental, iluminação pública, entre outras,
na medida em que supera a limitação jurídica imposta pela concessão comum, que tornava
indispensável o custeio da atividade direta dos usuários por meio de tarifas. O Poder Público
simplesmente re-aloca a despesa para a remuneração da atividade privada, que,
preferencialmente, quando variável segundo o desempenho do parceiro privado, garante o
oferecimento de serviços de modo mais eficiente e atendendo a pressupostos de
universalidade, este decorrente, inclusive, do caput do art. 225 da CRFB
80
.
4.3.1.1.2.2 Concessão administrativa para atividades de apoio ao poder de autoridade do
Estado
Atividades relacionadas ao exercício do poder de polícia perfazem uma seara bastante
polêmica. Se em um momento pretérito o poder de polícia era tomado como o exercício uno e
imediato do poder de império do Estado, decorrente do monopólio da violência por parte do
Estado, com o avanço tecnológico passou a ser fragmentado, abrindo espaço para o debate
acerca da possibilidade da delegação de algumas atividades a ele atinentes.
Carlos Ari Sundfeld, alerta para a imprecisão da expressão “exercício do poder de
polícia”, em referência às atividades proibidas de serem atribuídas ao parceiro privado, por
força da literalidade do art. 4º, III, da Lei de Parcerias Público-Privadas. É que uma análise
retida aponta para a possibilidade da delegação de atividades de apoio ao exercício do poder
de polícia por concessão administrativa.
A elucidação da questão parte do conceito de poder de polícia e dos termos em que ele se
exprime. O verbete polícia recebeu de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino o seguinte significado:
Uma função do Estado que se concretiza numa instituição de administração
positiva e visa a pôr em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos
indivíduos e dos grupos para salvaguarda e manutenção da ordem pública,
80
Art. 225 Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações (grifo acrescido).
em suas várias manifestações: da segurança das pessoas à segurança da
propriedade, da tranqüilidade dos agregados humanos à proteção de
qualquer outro bem tutelado com disposições penais. (BOBBIO,
MATTEUCCI; PASQUINO 2000, p. 944).
O estudo das hipóteses de cabimento da delegação de atos de apoio ao poder de autoridade do
Estado, pressupõe reconhecer, então, a atuação inadequada e insatisfatória do Poder Público, e
a potencial melhoria da atividade se amparada por serviços prestados por particulares. Sob este
aspecto, considerando que tanto a polícia administrativa quanto a judiciária estão
materialmente atreladas às disponibilidades financeiras e técnicas do poder executivo, da
Administração Pública, que se averiguar a possibilidade de tanto uma quanto outra
delegarem à iniciativa privada determinadas atividades relacionadas ao poder de autoridade
em sentido amplo.
De acordo com Justen Filho, a regra de vedação de delegação do poder de polícia a
particulares estriba-se no fato de o Estado Democrático de Direito ser o detentor da força; ou o
Estado Democrático de Direito importar no monopólio estatal da violência. Assim “não se
admite que o Estado transfira, ainda que temporariamente, o poder de coerção jurídica ou
física para a iniciativa privada” (2005a, p. 392).
De acordo com Fernando Vernalha Guimarães:
Como a violência é monopólio do Estado, a hipótese de coação por
particulares (salvo as específicas exceções legais) traduz-se, em princípio, na
quebra de um equilíbrio imanente da relação entre os privados, propiciando
o exercício de supremacia (traduzido na imposição de restrições e
condicionamentos de liberdade e de propriedade) de uns perante outros
(SUNDFELD (org.), 2005, p. 390).
A impossibilidade de transferência do poder de coerção jurídica ou física para a
iniciativa privada, decorre, tal qual aponta José Roberto Pimenta Oliveira, da própria ordem
constitucional, em especial dos princípios republicano, da isonomia, da legalidade e da
moralidade consagrados na carta maior. Por força do princípio republicano decorrente do
caput do art. da CRFB
81
- impõe-se não o reconhecimento da existência de interesses
públicos (e sua superioridade em face de interesses particulares), assim como o atrelamento da
81
Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: [...]
atividade estatal ao princípio da impessoalidade. Decorrência desses pressupostos é que, numa
ordem republicana, as restrições de direitos individuais são tarefas inafastáveis daquele que
exercita a função estatal, a autoridade pública (SUNDFELD (org.), 2005, p. 415).
O princípio da isonomia decorrente sobretudo do caput do art.da CRFB
82
- veda,
em seu turno, a atribuição de parcela do poder de autoridade de manifestação da violência
estatal - a determinado sujeito privado, não componente da organização administrativa, para
efeito de se obstar que um indivíduo possa ser transformado em mero objeto de coerção
ilegítima por outro indivíduo, sem lastro normativo. Ainda, o princípio da legalidade art. 37,
caput, da CRFB
83
- impõe a existência de embasamento legal para o exercício de qualquer
atividade administrativa, eliminando qualquer vestígio de autonomia da vontade na condução
dessa atividade. E, por fim, o dever de lealdade administrativa condena o trespasse a entes
privados de atividade estatal condicionadora de direitos, ante justificativas como ineficiência
estatal ou insuficiência de recursos, sob pena de infração ao princípio da moralidade
(OLIVEIRA in SUNDFELD (org.), 2005, p. 416).
A todas evidências, os argumentos lançados são, entretanto, referentes à exteriorização do ato
de autoridade, ou à manifestação da decisão referente ao poder coercitivo da autoridade
pública. Por esse motivo, como salienta Justen Filho, a impossibilidade de delegação do poder
de autoridade para a iniciativa privada (ou o poder/dever de estabelecer as condições para o
exercício da atividade privada, assim como aplicar a sanção prevista na ordem jurídica) não
corresponde à vedação de transferência de atividades materiais acessórias ou conexas ao
exercício do poder de polícia ao exercício de particulares (2005, p. 392).
O supracitado entendimento é avalizado por Bandeira de Mello, que, em sua ótica, da mesma
forma, admite a possibilidade de certos atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia
serem praticados por particulares mediante delegação propriamente dita, o que se sucede
82
Art. - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]
83
Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: [...]
sem prejuízo ao interesse público, por exemplo, na fiscalização do cumprimento de normas de
trânsito por equipamentos de fotossensores (2005, p. 768).
Como leciona o mesmo autor, não havendo atribuição de poder ao particular que possa
ofender o equilíbrio entre os cidadãos ou, em outros termos, a isonomia entre os
administrados - para efeito de obstar que uns exerçam supremacia sobre os outros, a restrição à
atribuição de atos acessórios ao poder de polícia a particulares não encontra vedação legal
(BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 768 - 769).
Assim é que se propõe a delegação aos particulares, por concessão administrativa, de
determinado conjunto de atividades referentes aos serviços penitenciários, por exemplo. Lê-se
e ouve-se, a todo momento, a respeito da insuficiência e da ineficácia da atuação estatal na
guarida e recuperação da população carcerária
84
. Apenas a título ilustrativo, toma-se a
superlotação dos presídios: de acordo com dados oficiais disponibilizados pelo Departamento
Penitenciário Nacional, vinculado ao Ministério da Justiça, para o total populacional no
sistema penitenciário e nas polícias de 361.402 presos, são disponíveis cerca de 215.910
vagas, perfazendo um déficit de aproximadamente 150.000 vagas (DEPARTAMENTO
PENITENCIÁRIO NACIONAL, 2006).
Noutro lado, a experiência estrangeira na gestão privada de penitenciárias acabou não por
superar a visão de um pesado ônus aos cofres públicos, para ganhar, inclusive, contornos de
atividade econômica altamente lucrativa, com empresas como as americanas Wackenhut
Corrections Corporation (WCC) e a Corrections Corporations of America (CCA) faturando
juntas quase 1 bilhão de dólares por ano (CASTRO, 2006).
Dentro deste complexo quadro de ineficiência estatal, a par de uma eficiente capacidade
privada ociosa, urge a possibilidade de, mediante a contratação por parceria público-privada
84
A organização Human Rights Watch estima que a população carcerária brasileira gravite em torno de
aproximadamente 170.000 detentos, agrupados em cerca de 512 prisões. De acordo com o levantamento
realizado, são necessárias cerca de 50.000 novas vagas para cobrir o déficit de 2,3 presos para cada vaga
disponível na atualidade (O BRASIL ATRÁS DAS GRADES, 2006).
De acordo com notícia veiculada pelo Senador Rodolpho Tourinho, o Ministério da Justiça estima um custo de R
$ 800,00 mensais para o Estado, por preso, dentro de uma população carcerária sempre crescente, na ordem de
9,4 mil novos detentos mensais, para 5,9 mil liberados (TOURINHO, 2005).
a informação trazida pelo Instituto de Políticas Públicas de Segurança noticia um custo médio mensal de R$
1.500,00 por preso, equivalente ao preço médio de aluguel de um flat de luxo na Avenida Paulista, em São Paulo
(CUSTO MENSAL ..., 2005).
na modalidade concessão administrativa, a Administração viabilizar a construção, reforma ou
ampliação da arquitetura e infra-estrutura penitenciária, assim como a gestão dos serviços de
hotelaria prisional e monitoramento de presos, junto a parceiros privados, remunerando-os
mensalmente dentro de parâmetros delineados por força contratual.
Do ponto de vista jurídico, como oportunamente destaca Fernando Vernalha Guimarães, trata-
se de reconhecer a atividade da execução da pena como o desempenho de funções complexas,
distinguindo a função jurisdicional, da função administrativo-jurisdicional e da função
administrativa (não-jurisdicional). A atividade jurisdicional, de aplicação da pena pelo juiz,
ao lado da atividade administrativo-jurisdicional, desempenhada pelo servidor competente
(com caráter disciplinar), são, a todas as luzes, decorrência direta do poder coercitivo do
Estado, função exclusiva do Estado que importa no manejo de autoridade pública. Não
admitem delegação ao particular pelos motivos expostos nas linhas anteriores (SUNDFELD
(org.), 2005, p. 395).
Noutro vértice, atividades administrativas não-jurisdicionais, como o provimento de
estrutura material adequada (alimentação, vestuário e instalações) assim como a promoção
assistencial à saúde, jurídica, religiosa, ao trabalho, educação, podem admitir sua transferência
aos privados (GUIMARÃES in SUNDFELD (org.), 2005, p. 396).
Guimarães prossegue distinguindo, dentro das atividades passíveis de gestão privada,
os serviços acessórios ou mediatamente relacionados à manipulação de competências estatais
típicas, e os serviços instrumentais imediatamente comprometidos com esta. Os primeiros,
como dito, são acessórios, não se prestam a instrumentar funções típicas do Estado. Não
remetem à manifestação de competências administrativas coativas, nem jurisdicionais. Têm
como exemplos a gerência de lavanderia, restaurante de presídios, entre outras. São,
inequivocadamente, transferíveis (SUNDFELD, (org.), 2005, p. 397).
os serviços imediatamente instrumentais à manifestação de competências
relacionadas à coação estatal, como suporte à segurança, vigilância interna, monitoramento
eletrônico de pontos vulneráveis, fazem referência à disciplina interna dos presídios, e sua
separação das atividades indelegáveis ou exclusivas do Estado se torna mais dificultosa
(GUIMARÃES in SUNDFELD (org.), 2005, p. 397).
Entretanto, a par de se reconhecer, segundo o autor, a potencial invasão da gestão
privada nas áreas comprometidas com o exercício imediato da coerção, por colaborarem
diretamente com a manutenção da disciplina no estabelecimento, em atenção ao interesse
público não se pode olvidar a contribuição que a evolução tecnológica imprime às atividades
relacionadas com segurança e vigilância, a ponto de reconhecer seu domínio pela iniciativa
privada
85
. Assim:
[...] no domínio de atividades de apoio tecnológico ao controle da vigilância
e segurança em estabelecimentos penitenciários (desde que provida sua
regulamentação) parece possível socorrer-se da iniciativa privada para o
provimento de serviços desta natureza (GUIMARÃES in SUNDFELD
(org.), 2005, p. 398).
É verdade que, na complexidade das relações sociais e frente ao atual estágio da
técnica, o interesse público de guarida eficiente e digna de presos pode melhor ser atendido se
amparado em serviços prestados pela iniciativa privada. O gerenciamento dessas atividades,
além do ganho de eficiência, pode revestir-se em economia aos cofres públicos. Assim,
arquitetura prisional, hospedaria, mecanismos de ressocialização e de preparação ao trabalho,
assim como sua própria exploração voluntária para fins comerciais ou industriais, ao lado de
determinadas atividades de auxílio no monitoramento de presos, são campos propícios para a
atuação por parceria público-privada.
A adoção da parceria se torna ainda mais conveniente quando considerados os requisitos para
a adoção do instrumento, consubstanciados em vultuosos investimentos para efeito de
melhoria, adaptação e construção de estabelecimentos prisionais, assim como a formatação de
todo o esquema empresarial e a exploração voluntária do trabalho dos presos que pode,
potencialmente, seguir a atividade carcerária.
Ademais, em termos gerais, aplica-se o raciocínio desenvolvido para a delegação de
atividades de apoio ao poder de autoridade a outros serviços imediatamente instrumentais à
85
A iniciativa privada, de acordo com o autor, tem resultados positivos no que tange ao monitoramento eletrônico
de presos por meio de braceletes e pulseiras eletrônicas, e câmeras com captação sonora (GUIMARÃES in
SUNDFELD (org.), 2005, p. 398).
manifestação de competências relacionadas à coação
86
, como, por exemplo, serviços de apoio
tecnológico à própria atividade de apuração de infrações penais, em especial, no tocante aos
serviços de inteligência, que demandam o emprego de computadores de última geração,
utilização de satélites, aparelhos sofisticados de escuta telefônica, de perícia forense, entre
outros.
Das situações hipotéticas até aqui suscitadas, fez-se alusão, basicamente, à atividade
penintenciária, decorrente do exercício da polícia judiciária. Vale lembrar que o mesmo
raciocínio se estende, por via de conseqüência, à concessão administrativa para atividades
relacionadas aos atos decorrentes do poder de polícia administrativa, consubstanciados na
emissão de licenças, atos, autorizações e regulamentos que condicionam ou limitam o
exercício da liberdade e propriedade dos indivíduos.
Enfim, atividades estranhas aos moldes tradicionais, obstaculizadas pela falta de investimento
público, deterioração, quiçá sucateamento e despreparo técnico, latentes tanto na polícia
administrativa quanto na judiciária, formam o tipo de contrato de prestação de serviços em que
a Administração Pública figura como potencial usuária direta. Viabiliza-se à coletividade a
prestação de serviços públicos em sentido amplo, de polícia, indivisíveis por natureza mas
usufruíveis indiretamente pelos administrados, exatamente nos termos propostos pela
concessão administrativa.
4.3.1.1.2.2 Concessão administrativa para serviços sociais
Os serviços de natureza social diferem-se dos serviços públicos de natureza industrial ou
comercial, conforme asseverado, por haverem de ser postos à disposição de todos os cidadãos,
86
Classificação de Fernando Vernalha Guimarães.
em caráter de universalidade, para efeito de atender a necessidades de cunho social ou
assistencial, como a saúde, a educação, a assistência e a seguridade.
A interpretação que culmina com a possibilidade de delegação de ditos serviços, passa,
obrigatoriamente, pela análise, ainda que breve, de alguns dos dispositivos constitucionais
relacionados à matéria. De plano, o art. 194 da Constituição da República reconhece,
textualmente, a seguridade social como o conjunto de ações integradas dos Poderes Públicos e
da sociedade, destinadas a assegurar direitos relativos à saúde, previdência e à assistência
social, o que evidencia, a todas as luzes, a necessidade constitucionalmente fundamentada de
cooperação entre as esferas públicas e privadas.
Neste diapasão, o art. 197 da Constituição da República, enquanto prescreve as ações de
saúde como dever do Estado, expressamente reconhece a possibilidade de sua execução se dar
diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Assim, o art. 199 da Constituição da República assevera ser livre à iniciativa privada a
assistência à saúde, possibilitando a participação desta de forma complementar no Sistema
Único de Saúde.
Dos dispositivos em comento resta clara a legalidade da atuação de entidades privadas no
oferecimento de serviços de saúde, admitindo-se a possibilidade de ditas atividades serem
exploradas economicamente, e, portanto, reconhecendo, em parte dos casos, sua rentabilidade
econômica. Diz-se parte dos casos, uma vez sua natureza social - dirigida especialmente à
promoção da dignidade humana - preponderar sobre a econômica, tornando impróprio que
espécie de serviço seja, apenas, oferecida pela lógica mercadológica, custeada diretamente por
seus usuários.
Dado seu caráter de universalidade e generalidade, deve ser acessível a todos os
cidadãos indistintivamente, razão pela qual tradicionalmente se exigiu do Estado sua prestação
direta, de modo a garantir que todos, em qualquer lugar, possa fazer uso de serviços adequados
de saúde.
Repita-se que ao mesmo tempo em que a Constituição exige a prestação dos serviços sociais
sob o regime de direito público, admite-a, complementarmente, sob o regime privado. Mas as
concessões administrativas não se prestam à prestação de serviços de saúde sob o regime de
direito privado.
A aduzida exigência de que o Estado prestasse diretamente os serviços de saúde, residia na
impossibilidade de sua delegação a agentes privados por concessão comum, já que os serviços
não guardavam natureza eminentemente econômica. Em outros termos: a disciplina
delegatória de serviços públicos, até o advento da Lei 11.079/04, contemplava
exclusivamente a outorga à iniciativa privada de serviços que pudessem, basicamente, serem
custeados por tarifas cobradas diretamente dos usuários. O que ocorre nos serviços públicos de
natureza social é diametralmente oposto: em razão de seu caráter de universalidade e
generalidade, não podem, em todos os casos, serem custeados através de tarifas pagas pelos
seus usuários.
A questão torna-se ainda mais evidente nas atividades de ensino, em que, a par de poderem
ser exploradas sob o regime privado tal qual ocorre com os serviços de saúde (art. 209,
CRFB), hão - além de serem oferecidas sob o regime público de ser garantidos de modo
gratuito nos estabelecimentos oficiais (art. 206, IV, CRFB). A gratuidade revela, como dito, a
impossibilidade de delegação por concessão comum, por todos os fundamentos já expostos.
A perspectiva muda, entretanto, com o advento da concessão administrativa. Agora, a forma
de remuneração da atividade ganha novos contornos, de maneira que torna possível o
particular gerir determinada atividade pública, no caso, os serviços públicos de natureza
social, e não ser remunerado diretamente pelos seus usuários finais, mas, sim, pelo parceiro
público. O parceiro privado faz as vezes de Poder Público, investindo, desempenhando e
gerindo a atividade no lugar do parceiro público, sob o regime específico, isto é, em atenção
aos mesmos pressupostos de generalidade e universalidade preconizados pela Constituição da
República.
Desta forma, na medida em que o Poder Público contrata por parceria a gestão privada de um
estabelecimento educacional público, está buscando, na verdade, a disponibilização de
estrutura adequada, de pessoal qualificado para o funcionamento eficiente da unidade (além de
professores, técnicos em informática, bibliotecários etc.), reservando para si a elaboração do
projeto pedagógico, de supervisão educacional e a disciplina do corpo docente e discente,
entre outros. Tudo em consideração ao atendimento de melhoria na relação custo/benefício em
comparação à prestação direta da atividade pelo Estado
87
.
Resultados positivos relacionados à gestão privada podem ser sentidos na redução de custos
dos estabelecimentos de ensino, que possibilitam a ampliação de acervos bibliográficos, a
qualificação dos profissionais envolvidos, a disponibilidade de equipamentos de informática
destinados à inclusão digital, o aumento de coeficientes de produção científica e a capacitação
profissional dos estudantes (especialmente no caso de escolas técnicas), dentre outros.
O mesmo raciocínio deve ser estendido aos serviços de saúde, para, por exemplo, a concepção
e gestão de unidades hospitalares especializadas, em que se viabilizam os investimentos
necessários em tecnologia e aparatos para diagnóstico, tratamento e intervenções. Existe a
possibilidade de o parceiro privado se encarregar, ainda, da capacitação dos profissionais em
saúde, sendo remunerado pelo parceiro público tanto pela disposição quanto pela operação e
funcionamento do serviço, que, enquanto prestado diretamente pelo Estado, era, via de regra,
deficitário
88
.
Ademais, a remuneração do parceiro privado, quando vinculada ao seu desempenho, propicia
a busca pelo oferecimento de um serviço público ótimo, interessante, ao mesmo tempo, ao
parceiro privado, que aferirá maior renda, quanto ao parceiro público, que custeará um
87
O baixo investimento público em educação é realidade no país. No biênio 2002-2004, 10,9% da despesa
pública total do Brasil foi destinada à educação, um dos piores patamares dentro dos países de índice de
desenvolvimento humano médio. Países como Guiana, El Salvador, Arzebaijão, Peru, Colômbia e Tailândia
comprometeram mais receita pública com educação que o Brasil, em termos relativos (PROGRAMA DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006, p. 319, 320).
Fábio Oliveira Inácio, amparado em levantamentos oficiais, da UNESCO e do Banco Mundial, aponta conclusões
preocupantes no ensino, como seu baixo índice de abrangência (como apenas um, entre três jovens de 14 a 18
anos matriculados no ensino médio), investimentos insuficientes em educação (com o Brasil superando apenas
Indonésia e Peru), baixa remuneração de professores; variantes que contribuem para a perpetuação da crise no
ensino, identificável, por exemplo, nas falhas no desenvolvimento de competências básicas de leitura (INÁCIO,
2003).
Enfim, o Estado gasta mal com educação, não alcançando o objetivo, de educar. Com a gestão privada busca-se,
além de eliminar as perdas na destinação do dinheiro público, um gasto racional, para que os fins sejam
efetivamente atingidos.
88
Mesmo com 75% da população brasileira dependente do Sistema Único de Saúde, apenas 38% da rede
brasileira de hospitais é pública, sendo que 62% é privada (BORGES, 2003).
serviço mais eficiente, em atendimento ao verdadeiro interesse público. O parceiro público
deixa de se encarregar de sua prestação direta, passando a cuidar da execução satisfatória da
atividade nos termos contratuais. Ademais, os benefícios se estendem aos usuários, que farão
uso de melhores serviços, utilizadores de metodologias e tecnologias não defasadas nem
obsoletas, além de instalações adequadas.
Enfim, não existe óbice jurídico para a adoção de concessões administrativas para os serviços
de natureza preponderantemente social, como sugerem, por exemplo, os próprios arts. 194,
197, 199, 205 e 209, todos da CRFB
89
. O que inexistia era uma disciplina jurídica que
possibilitasse sua delegação a agentes privados sob o regime público, que garantisse
pressupostos de generalidade, universalidade e gratuidade
90
, inerentes à própria natureza dos
serviços, problemática superada pela concessão administrativa.
4.3.2 Fundos garantidores
89
Art. 194 – A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos
e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social [...]
Art. 197 São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos
da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através
de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado [...]
Art. 199 A assistência a saúde é livre à iniciativa privada [...]
Art. 205 A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho [...]
Art. 209 – O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições [...]
90
CRFB, Art. 194 [...] Parágrafo único Compete ao poder público, nos termos da lei, organizar a seguridade
social, com base nos seguintes objetivos:
I – universalidade da cobertura e do atendimento; [...]
Art. 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação [...]
Art. 206 – O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
IV gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais; [...]
Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele
não tiveram acesso na idade própria;
II – progressiva universalização do ensino médio gratuito [...]
A inovação da Lei de Parcerias Público-Privadas na previsão e criação de fundos especiais
garantidores de parcerias é outro aspecto polêmico, cujo debate é merecedor de destaque nesta
pesquisa, em que se pretende investigar a constitucionalidade de aspectos destacados do novo
instituto.
Nos termos do raciocínio desenvolvido no item 3.3.3, em que se discorreu acerca do sistema
de garantias da Lei 11.079/04, os fundos garantidores são o produto de receitas
especificadas, sem personalidade jurídica, vinculados à garantia do pagamento de obrigações
patrimoniais assumidas pelos parceiros públicos nas parcerias público-privada, criados e
disciplinados por lei.
O principal ponto que atrai crítica aos fundos garantidores diz respeito à natureza dos bens ou
receitas destinadas à composição do fundo, em pretensa incompatibilidade à natureza privada
dos últimos. Toma-se, como paradigma, o entendimento exposto por Di Pietro. Para a autora, o
fundo é, de fato, uma soma de receitas específicas, afastadas por lei do caixa único e
vinculadas a um fim determinado (2005, p. 177). Ainda, para efeito de contextualização, por
se pretender que sejam garantidas obrigações pecuniárias assumidas por determinado ente
federativo, a Lei de Parcerias Público-Privadas autoriza suas entidades de direito público
autarquias e fundações públicas - a participarem do Fundo Garantidor de Parcerias Público-
Privadas – FGP
91
.
Entretanto, assevera Di Pietro, a sistemática de garantia dos fundos, assim como a
destinação de parte da receita e do patrimônio das autarquias e fundações públicas à sua
composição, é disciplina problemática por duas razões: em primeiro lugar, as referidas
entidades estão submetidas ao princípio da especialidade, que significa a vinculação aos fins
para os quais foram instituídas. Sem autorização legislativa específica, não se poderia destinar
91
Art. 16. Ficam a União, suas autarquias e fundações públicas autorizadas a participar, no limite global de R$
6.000.000.000,00 (seis bilhões de reais), em Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas FGP, que terá por
finalidade prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais
em virtude das parcerias de que trata esta Lei (grifo acrescido).
parcela de receita ou patrimônio à finalidade diversa daquela que instituiu a entidade. Em
segundo lugar, os bens da Administração direta e indireta são públicos, o que esvazia a
pretensão de imputar aos fundos garantidores natureza privada, tal qual pretende o art. 16, §1º,
da Lei 11.079/04. Referidos bens seriam impenhoráveis por força do art. 100 da
Constituição da República, e não perderiam essa natureza pelo fato de estarem vinculados a
um fundo (DI PIETRO, 2005, 177-179).
Em síntese: a prestação de garantia pelos fundos garantidores, das obrigações patrimoniais
assumidas pelos parceiros públicos, seriam antijurídicas, que aqueles, por serem compostos
por renda e patrimônios públicos, não poderiam, em tese, serem dispostos como se fossem
patrimônio particular.
A primeira vista, a crítica da autora parece encontrar amparo em um raciocínio jurídico
verossímil. De fato, o patrimônio público se submete a regime diverso do patrimônio
particular, em especial no tocante à forma de alienação ou transferência.
Tal qual arrazoa Antônio Flávio de Oliveira, o regime de precatório, estampado no art.
100 da Constituição da República, é o mecanismo pela qual se aproxima, de um lado, a
obrigação do Estado de reparar eventuais danos imputados aos particulares, a, noutro plano,
garantia de incolumidade característica dos bens públicos, inalienáveis e impenhoráveis por
natureza. Assim, a satisfação de débitos públicos se através de comando jurisdicional
próprio, em que se determina o pagamento do débito ao credor, sem que se faça necessária a
penhora e a alienação de bens, tal qual ocorre nas relações privadas (2005, p. 34).
A impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens públicos são, como se observa, os
sustentáculos do regime do precatório. A vinculação dos bens públicos ao interesse público
outorgam-lhe natureza de indisponibilidade
92
e supremacia, razão pela qual se socorre ao
mecanismo de precatórios para o pagamento de eventuais débitos do Estado, sem o
comprometimento daqueles bens. Evita-se a disposição, desta forma, do próprio interesse da
coletividade. Na esteira de Oliveira, justifica-se o precatório como:
92
“A indisponibilidade fundamental dos bens públicos se afirma, ainda, em seus importantes corolários: a
inalienabilidade, a imprescritibilidade, e a impenhorabilidade, que impedem que eles sejam vendidos, doados,
usucapidos, ou sirvam de garantia de pagamento de dívida.” (MOREIRA NETO, 2005, p. 343, grifo no original).
[...] forma moralizadora do pagamento de débitos judiciais do Poder
Público, sem que haja preferência ou privilégios de cunho subjetivo e,
principalmente, sem a disposição, para o mister, de bens que integrem o
patrimônio público, além de permitir, em razão dos procedimentos
orçamentários-financeiros envolvidos na sua concretização, o ordenamento
dos gastos públicos (2005, p. 34).
Da confrontação do mecanismo de pagamento de obrigações pelo regime de precatórios com
o do regime dos fundos especiais, decorre o reconhecimento do advento de um regime
diferenciado, que afasta as obrigações assumidas pelo parceiro público do moroso rito
procedimental usualmente atribuído ao regime de precatórios. Entretanto, a “fuga” do regime
de precatórios não se em detrimento do princípio da igualdade ou à margem da ordem
jurídica. A consideração de determinados pressupostos coadunam os fundos garantidores de
parcerias ao ordenamento pátrio.
Destarte, que se investigar o fundamento do mecanismo de precatório, consubstanciado na
impenhorabilidade e inalienabilidade de bens públicos. É certo que o desenvolvimento de um
mecanismo impessoal e isonômico, que contempla credores pela natureza de seus créditos e
pela ordem cronológica de sua apresentação, funda-se no reconhecimento da supremacia do
interesse público sobre o privado, ou na necessidade de se conciliar o cumprimento de
obrigações públicas ao interesse público de manutenção sustentável do patrimônio.
Por tal motivo, afasta-se o bem público do regime geral de garantia, de modo que, ao mesmo
tempo em que se preserva o patrimônio que é de todos, insere-se a dívida reconhecida num
mecanismo de planejamento, indispensável ao manejo de despesas públicas – o orçamento.
Sem embargo, a inalienabilidade que fundamenta o regime de precatórios não alcança a todos
os bens públicos. Como é sabido, estes se distinguem quanto ao seu modo de utilização, em
classificação respaldada, inclusive, pelo Código Civil (arts. 98 a 103), de acordo com o qual os
mesmos podem ser de uso comum do povo, de uso especial e dominicais.
Os bens públicos dominicais são aqueles que ainda não receberam uma destinação, comum
nem especial, podendo vir a ser utilizados para qualquer fim (MOREIRA NETO, 2005, p.
345). Consideram-se dominicais, ainda de acordo com o inciso III e o parágrafo único, ambos
do art. 99 do Código Civil, os pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, inclusive
àquelas a que se tenha dado estrutura de direito privado.
Muito embora o Código Civil, referendado pela doutrina, reconheça a natureza inalienável
dos bens de uso comum do povo e bens de uso especial enquanto afetados a um interesse
público, admite a alienabilidade dos bens públicos dominicais
93
. É o que ensina Moreira
Neto, para quem os bens públicos dominicais, não se encontrando afetados à satisfação de
nenhum interesse público caracterizado e atual, estão aptos a receber, por parte do Estado,
destinação que atenda a interesse público genérico, desde que autorizados por lei para tanto
(2005, p. 345).
O que se busca dizer é que os bens públicos dominicais, admitindo-se sua
alienabilidade, uma vez transferidos à esfera privada, perdem o caráter de bens públicos que
guardavam quando integrantes do patrimônio estatal. Por esta razão, deixam de concorrer com
os bens públicos a que o sistema de precatório faz alusão.
A perda do caráter público dos bens destinados aos fundos garantidores é a constatação
necessária para se entender sua constitucionalidade. A partir do momento em que o patrimônio
passa ser privado, não mais que se falar no regime público precedente. O raciocínio se
estende, inclusive, à destinação de verbas orçamentárias aos fundos garantidores.
Ao lado de todos os argumentos lançados - de que a verba dos fundos não concorre com a
verba pública do sistema de precatórios - a juridicidade dos fundos garantidores se assenta,
sob o prisma constitucional, no princípio da moralidade, peculiar à atividade administrativa
por força do caput do art. 37 da Constituição da República
94
.
O princípio da moralidade, de acordo com o ensinamento de Bandeira de Mello,
prescreve o dever da Administração e seus agentes atuarem na conformidade de princípios
éticos. Compreende os princípios da lealdade e da boa-fé, que imputam à Administração o
dever de sinceridade e lisura, impedindo a produção de comportamento malicioso, astucioso,
tomado a cabo de modo a embaraçar o exercício de direitos por parte dos Administrados
(2005, p. 109).
93
Art. 101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
94
Art. 37 A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também ao seguinte: [...]
A Constituição veda, neste diapasão, o ato administrativo que, embora em pretensa
consonância a lei, ofenda a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, ou a
idéia comum de honestidade (DI PIETRO, 2000, p. 79).
Isso quer dizer que, por força do princípio constitucional da moralidade, e em especial
da boa-fé, a Administração, na contratação pública que envolva dispêndio continuado de
recursos - como a verificada nas parcerias público-privadas - não pode se escusar de cumprir
ou adimplir com as obrigações patrimoniais assumidas, mormente frente ao desempenho não
irregular do parceiro privado.
Na prática, entretanto, isso não se observa. Como aponta Sérgio Ferraz, “o Estado tem
sido mal (sic) pagador. Não tem sido cumpridor da sua palavra. Tem sempre procurado, depois
de se comprometer, escusar-se aos compromissos que assume” (JUSTEN; TALAMINI (org.),
2005, p. 395).
Em aplauso ao princípio da moralidade e da boa-fé, e com vistas a reverter os efeitos
da prática rotineira do calote estatal, cria-se um mecanismo diferenciado de prestação de
garantia. Não obstante interesses públicos secundários possam buscar esquivar o cumprimento
de obrigações assumidas por parte da Administração, por intermédio dos fundos garantidores
especiais a Lei de Parceria Público-Privada força o respeito ao princípio da moralidade, na
medida em que materializa meios para que o particular não seja prejudicado, preterido,
enquanto credor da contraprestação pública.
Frise-se que a moralidade e a boa-fé reforçam o dever do Poder Público de cumprir
com suas obrigações e respeitar direitos alheios independentemente de intervenção
jurisdicional (TALAMINI in JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 343). Na medida em que a
questão tratar da simples cobrança de obrigação patrimonial, os fundos garantidores de
parcerias atendem aos pressupostos de cooperação, boa-fé, moralidade e continuidade na
prestação da atividade.
Evidente que os fundos garantidores especiais prestigiam uma situação diferenciada,
que é a contraprestação pública continuada da Administração por estendido lapso temporal.
Isso afasta, inclusive, a alegação de quebra na isonomia entre os parceiros privados nas
parcerias e os simples fornecedores de obras e serviços, ou concessionários comuns.
Como ensina Joel de Menezes Niebuhr, é inerente ao princípio da isonomia o
estabelecimento de discriminações, de tratamento desigual em situações desiguais. Para o
autor “as leis nada mais fazem do que discriminar situações em detrimento de outras. Para
regrar a Sociedade, algumas condutas e alguns grupos inexoravelmente serão
diferenciados” (2000, p. 54).
É necessário, deste modo, reconhecer que a complexidade e a continuidade estendida
da avença põem esta espécie de credores, efetivamente, em posição distinta, razão pela qual
mecanismos avançados e concretos de garantia hão, necessariamente, de serem-lhes postos à
disposição.
4.3.2.1 Descabimento de licitação para transferência dos bens dominicais aos fundos
garantidores
A alienação ordinária de patrimônio público à esfera privada de ser realizada por
intermédio de procedimento licitatório, a teor do preceituado na parte inicial do inciso XXI do
art. 37 da CRFB
95
. Todavia, o referido dispositivo prevê exceções à obrigatoriedade de
licitação pública, o que vem a ocorrer exatamente no caso vertente, de transferência do bem
dominical aos fundos especiais garantidores de parcerias público-privadas.
Sucede que, por intermédio da operação de transferência, o ente administrativo
vinculado ao parceiro público da parceria, ou ele próprio, abre mão de direitos sobre os bens
95
CRFB, Art. 37, XXI ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e
alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure a igualdade de condições a
todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas
da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (grifo acrescido).
dominicais a que se alude, tornando-se cotista do fundo. A transferência resta inafastavelmente
vinculada à realização de um interesse público específico, que é a garantia do cumprimento de
obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos em parcerias público-privadas.
Não se fala em competição ou licitação pública para a transferência de bens dominicais
aos fundos garantidores na medida em que não se está diante de hipótese de competição entre
entidades privadas e sim da realização de um interesse público específico capaz de se
materializar tão-somente com a transferência do bem dominical ao patrimônio do fundo
garantidor determinado.
Está-se, assim, diante de uma alocação de patrimônio efetuada por determinado ente estatal,
para um fundo criado por lei, vinculado a dito ente, que lhe presta relevante função pública de
assumir e garantir obrigações pecuniárias. O bem dominical, antes ocioso às pessoas jurídicas
de direito público vinculadas a determinada entidade estatal direta, presta-se agora a garantir
obrigações do parceiro público, obrigações que, diga-se de passagem, hão de ser devidamente
cumpridas, sob pressupostos de moralidade e impessoalidade.
Em síntese: a atribuição, por lei, de natureza privada aos fundos, não lhes equipara aos
agentes privados em geral para efeito de viabilizar competição pela destinação final do
patrimônio dominical. A transferência deste patrimônio está vinculada à prestação de garantia
para as parcerias público-privadas, que só se pode concretizar por intermédio da integralização
de fundos especiais garantidores de parcerias
96
.
Entretanto, uma vez transferido aos fundos garantidores de parcerias, o bem perde a natureza
de bem público dominical, passando a submeter-se ao regime privado. Pode, portanto, vir a
sofrer alienação convencional, desde que o proveito financeiro advindo da operação reverta
para o próprio fundo, vedando-se, desta forma, que a transferência do bem dominical ao fundo
oculte uma alienação pura e simples, realizada à margem do procedimento licitatório.
96
Acertadamente, no que tange à esfera federal, a integralização dos bens do FGP por bens móveis ou imóveis
dominicais independe de licitação, conforme dicção do §6° do art. 16 da Lei n° 11.079/04.
4.3.2.2 Demais fontes de receita para integralização dos fundos
O raciocínio até aqui desenvolvido contemplou, especialmente, a transferência de bens
dominicais, isto é, aqueles que não têm destinação pública específica - que a Administração
detém a senhoria ociosa tal qual ocorre na esfera privada - e os provenientes do patrimônio de
pessoas jurídicas de direito público, desde que não vinculados à satisfação imediata de um
interesse público.
Neste sentido, entendendo como alienáveis e, portanto, transferíveis aos fundos os bens não
vinculados à satisfação de um interesse público específico, as ações de sociedades de
economia mista excedentes ao necessário para a manutenção de seu controle pela União
equiparam-se aos bens dominicais, em hipótese aventada pelo §4º do art. 16 da Lei n°
11.079/04.
De fato, a fundamentação que conclui pela constitucionalidade dos fundos garantidores de
parcerias, consubstanciada em especial na alienabilidade de bens dominicais, na natureza
privada de seu patrimônio e na legalidade da transferência de bens públicos a fundos para a
satisfação de interesse público específico, qual seja, a garantia de obrigações pecuniárias
assumidas pelos parceiros públicos, aplica-se ao patrimônio das figuras componentes da
Administração indireta, em especial, às ações excedentes à manutenção do controle da
Administração direta em sociedades de economia mista. Neste sentido, qualquer outro
patrimônio que revista valor pecuniário sobrejacente ou o eventual saldo positivo da atividade
estatal indireta é fonte potencial de recursos para os fundos.
Vale apontar, na esteira do entendimento de Almeida e Zymler, que as ações
negociadas na bolsa de valores oferecem inclusive vantagens, pois possuem valor de mercado
significativo, elevada liquidez e desnecessidade de procedimentos complexos de avaliação dos
ativos (ALMEIDA; ZYMLER, 2005, p. 305).
Enfim, é conveniente a integralização dos fundos garantidores de parceria por bens públicos
sem destinação pública específica, ao qual se equipara o patrimônio de entidades da
Administração indireta que seja excedente para a realização das finalidades a que ditos entes
se destinam.
Cabe aventar, por fim, a possibilidade das leis orçamentárias destinarem recursos aos fundos
ou às empresas estatais criadas para prestar garantias às parcerias público-privadas, raciocínio
que se equipara à autorização de vinculação de receita diretamente à garantia art. 8°, I, Lei n
° 11.079/04
97
.
A destinação ou a vinculação de receitas constantes nos orçamentos aos fundos garantidores,
empresas estatais ou à garantia direta não encontra vedação constitucional, razão pela qual
cumpre recepcioná-las como uma opção para a destinação de recursos públicos orçamentários,
a ser devidamente analisada e aprovada pelo Poder Legislativo.
Em síntese, a argumentação até aqui empreendida conduz a uma conclusão de elevada
significância: não assiste razão ao argumento de subterfúgio ao sistema constitucional de
precatórios, uma vez reconhecido que os bens públicos destinados aos fundos garantidores
perdem a precedente natureza pública que guardavam. Estando sujeitos ao regime privado,
decorrente inclusive da própria natureza privada dos fundos, tal qual acontece com o Fundo
Garantidor de Parcerias criado pela Lei 11.0079/04, que se reconhecer que a garantia
prestada pelos fundos garantidores especiais não concorre com a verba pública destinada ao
sistema de precatórios. Trata-se de soma de recursos, ou de patrimônio a que se atribui valor
monetário, agora pertencentes à esfera privada, mas que se prestam à satisfação de um fim de
interesse público, de conferir lisura e boa-fé à obrigação pecuniária assumida pelo parceiro
público.
4.3.3 Escolha isonômica dos contratados
97
Art. 8°. As obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-
privada poderão ser garantidas mediante:
I – vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal; [...]
A Constituição da República determina, por força de seu art. 37, XXI, que a contratação de
obras, serviços, compras e alienações se dê mediante a realização de licitação pública, em que
se assegure a igualdade de condições a todos os concorrentes. O princípio da isonomia, por
força do dispositivo em comento, da mesma forma que se reveste numa condição à escolha
dos contratados com a Administração, consubstancia-se na própria finalidade do procedimento
licitatório; em outros termos, a isonomia é tanto o meio quanto o fim da licitação.
Como pondera Joel de Menezes Niebuhr:
[...] se não fosse para garantir o princípio da isonomia, seria desnecessária e
descabida a exigência de licitação pública [...]
Se não houver a possibilidade de que todos os interessados participem do
certame, e de que suas propostas sejam consideradas igualitariamente, por
mais zeloso e probo que seja o agente público, não haveria a menor
possibilidade de se abraçar todos os possíveis e eventuais contratantes.
Garantindo-se a isonomia, assegura-se a competitividade e, queira-se ou não,
o oferecimento de propostas variadas e em maior número, que, aumentando
o universo de escolha da Administração Pública, dá azo ao acolhimento
daquela que realmente seja a melhor, em outros termos, a mais eficiente.
(2000, p. 73-74).
O que se está a vedar, assegurando-se o tratamento isonômico dos interessados, é a realização
de atos ou medidas capazes de, sob alguma forma, privilegiar uns em detrimento de outros;
tanto circunscrever a competição a determinado grupo, quanto dirigir o objeto do contrato a
um sujeito específico.
Acontece que a Lei de Parcerias Público-Privadas, ao dispor sobre o projeto básico das
parcerias e a transferência do controle societário das sociedades de propósito específico, acaba
promovendo alteração na disciplina de contratação ordinária, razão pela qual urge interpretá-la
de modo que não possibilite o direcionamento de contratos e o privilégio entre os
concorrentes.
4.3.3.1 Projeto Básico
A parceria público-privada, tal qual enunciado no decorrer da presente investigação, alterou
substancialmente o regime jurídico até então vigente, e, essencialmente, a própria relação
entre a Administração e o particular. Invoca-se o próprio significado do vocábulo para
assinalar a conjunção de esforços em um sentido comum, para a realização de fins comuns.
Substitui-se, desta forma, interesses antagônicos pela noção de cooperação, solidariedade,
soma de habilidades, de conhecimentos.
Nesse contexto é que se insere o tratamento dispensado ao projeto básico, integrante da noção
de escolha isonômica do contratado. No conjunto de definições oferecidas pela Lei
8.666/93, o inciso IX do art. assinala o seguinte:
IX Projeto Básico conjunto de elementos necessários e suficientes, com
nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo
de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações
dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o
adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que
possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo
de execução, devendo conter os seguintes elementos:
a) desenvolvimento da solução escolhida de forma a fornecer visão global da
obra e identificar todos os seus elementos constitutivos com clareza;
b) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de
forma a minimizar a necessidade de reformulação ou de variantes durante as
fases de elaboração do projeto executivo e de realização das obras e
montagem;
c) identificação dos tipos de serviços a executar e de materiais e
equipamentos a incorporar à obra, bem como suas especificações que
assegurem os melhores resultados para o empreendimento, sem frustrar o
caráter competitivo para a sua execução;
d) informações que possibilitem o estudo e a dedução de métodos
construtivos, instalações provisórias e condições organizacionais para a
obra, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
e) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra,
compreendendo a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas
de fiscalização e outros dados necessários em cada caso;
f) orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em
quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados; [...]
O projeto básico, nos termos do §2° do mesmo art. da Lei 8.666/93, deve,
necessariamente, ser aprovado pela autoridade competente e posto à disposição para exame
dos interessados em participar do processo licitatório.
Por intermédio dos dispositivos colacionados, é possível vislumbrar que o projeto básico
reveste-se em relevante instrumento de planejamento, a ser disponibilizado pela
Administração aos particulares interessados, para que estes elaborem suas propostas nos
exatos termos pretendidos pela Administração, evitando-se, desta forma, alterações no curso
da execução do contrato que venham a desfigurar o objeto pretendido pelo contratante.
A Administração, ao dispor de um projeto básico devidamente aprovado, sinaliza à
coletividade e ao leque de interessados o que exatamente pretende contratar, possibilitando
que estes últimos elaborem suas propostas de maneira objetiva e racional, considerando
variantes, metodologias, materiais, dimensões, enfim, todos os aspectos capazes de influir
sobre a composição dos custos finais de um contrato. A Administração dispõe de relevante
instrumento para aferir o resultado do objeto contratado, e sua conformidade com as condições
previstas no edital. Trata de instrumento fundamental para o sucesso do procedimento, com a
contratação da proposta efetivamente mais vantajosa, uma vez que evita a contratação de
particular, que, na execução, forneça um objeto de qualidade insatisfatória, que não atenda ao
interesse público.
O art. da Lei 8.666/93, por sua vez, prescreve a proibição de participação, direta ou
indireta, na licitação ou na execução do contrato, do autor ou da empresa responsável pela
elaboração do projeto básico. O escopo da proibição, tal qual apregoa Justen Filho, reside na
salvaguarda à isonomia:
[...] considera-se um risco a existência de relações pessoais entre os sujeitos
que definem o destino da licitação e o particular que licitará [...] O
impedimento consiste no afastamento preventivo daquele que, por vínculos
pessoais com a situação concreta, poderia obter benefício especial e
incompatível com o princípio da isonomia (2004, p. 124).
No entendimento do supracitado mestre, o autor do projeto, por prescrever e delinear
os contornos do objeto a ser licitado, tem condições de vislumbrar os concorrentes capacitados
a satisfazer aquele contrato. As especificações dos projetos, poderiam, em tese, tanto excluir
ou dificultar o livre acesso de interessados, impondo características ao projeto executáveis por
pessoa específica, quanto estabelecer condições que beneficiassem seu autor, mesmo que não
excluíssem diretamente os terceiros (JUSTEN FILHO, 2004, p. 124).
Sob a aduzida ótica, o autor do projeto básico, especialmente, tende a inserir
metodologias e especificações que lhe são mais afeitas, que lhe parecem mais adequadas para
o caso concreto. Admitindo-se que o próprio responsável pela elaboração do projeto básico,
quando atuante no mercado, faça uso das metodologias, materiais e equipamentos que lhe
pareçam mais adequados, a tendência natural é que o projeto básico contemple justamente o
seu ponto de vista, a sua percepção sobre ditas especificações, o que tende, a todas as vistas, a
favorecê-lo.
Eduardo Capobianco vê, a título ilustrativo, duas situações capazes de atentarem contra
a isonomia e competitividade do certame: 1) o autor do projeto dificilmente aplicará nele
trabalho e recursos se tal projeto não puder ser executado por ele mesmo, situação propícia
para possibilitar conluios; 2) pode-se vislumbrar situação em que o autor do projeto insira nele
previsões que servirão somente para afastar eventuais interessados, como, por exemplo, de
demanda superior à realmente necessária. O autor do projeto, sabendo da previsão equivocada,
apresenta proposta em razão de um volume menor do que o previsto, ofertando, em
conseqüência, preço inferior ao de seus concorrentes (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p.
292).
Em síntese: o autor de projeto básico, se potencial participante da licitação, está apto a,
até mesmo desprovido de má-fé, estabelecer especificações e condições que ele mesmo é
capaz de atender em melhores condições ou de ser beneficiado de alguma forma, em
detrimento do princípio constitucional da isonomia – arts. 5º e 37, XXI, CRFB.
Tal qual asseverado, o princípio da isonomia é o fundamento nas contratações públicas.
A atuação conforme o pressuposto de igualdade assegura a competitividade na apresentação
das propostas à Administração, e, por conseqüência, aumenta a possibilidade de o Poder
Público optar, de fato, pela proposta mais vantajosa. Nas palavras de Joel de Menezes
Niebuhr, o licitante privilegiado, em regra, frente a condições igualitárias de competição, não é
o melhor. É pela garantia da isonomia que a Administração tem, efetivamente, condição de
identificar a proposta mais eficiente, que melhor atende ao interesse público (2000, p. 74).
Desta forma é que, evitando que determinado licitante possa beneficiar-se pela
elaboração de projeto básico que lhe favoreça, a Administração Pública age em salvaguarda ao
princípio da isonomia. Este é o fundamento da proibição de participação em licitação do
responsável pela elaboração de seu projeto básico.
A perspectiva passou a mudar, entretanto, com a edição da Lei 9.074, de 13 de
fevereiro de 1995, cujo art. 31 aplica-se, adicionalmente, à parceria público-privada, por força
do art. da Lei 11.079/04. Pela redação daquele dispositivo, os autores ou responsáveis
economicamente pelos projetos básico ou executivo ficam autorizados a participarem, direta
ou indiretamente, da licitação ou da execução de obras ou serviços.
A rigor, o art. 31 da Lei n° 9.074/04 se harmoniza com o inciso XV do art. 18 da Lei de
Concessões Lei 8.987/95 -, que, ao arrolar o conteúdo essencial dos editais de concessão,
não estabelece a necessidade do edital vir acompanhado do projeto básico, mas, sim, trazer
dados relativos à obra e elementos do projeto básico que permitam sua plena caracterização
98
.
Pelo permissivo legal conclui-se que o edital não precisa conter o projeto básico em seus
pormenores, possibilitando que o mesmo: a) venha a ser disponibilizado posteriormente pela
Administração ou; b) cada licitante adapte os elementos básicos a seu próprio talante, sempre
de modo a atender à expectativa da Administração.
Na esteira do asseverado, o art. da Lei de Parcerias Público-Privadas abre justamente
a possibilidade não de o autor do projeto básico participar da licitação, mas também dele
ser apresentado por cada interessado, uma vez que é desnecessária sua disponibilização pelo
Poder Público junto com o ato convocatório.
Tal qual professa Floriano de Azevedo Marques, na parceria público-privada, cumpre
ao Poder Público definir o que quer, cabendo ao particular propor como conseguir. À
Administração não cabe mais a responsabilidade de definir, detalhadamente e em minúcias, o
que quer e como quer ver implementado. Ao contrário, busca-se atribuir ao particular margem
98
Art. 18. O edital de licitação será elaborado pelo poder concedente, observados, no que couber, os critérios e as
normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos e conterá, especialmente: [...]
XV nos casos de concessão de serviços públicos precedidas da execução de obra pública, os dados relativos à
obra, dentre os quais os elementos do projeto básico que permeiam sua plena caracterização, bem assim as
garantias exigidas para essa parte específica do contrato, adequadas a cada caso e limitadas ao valor da obra; [...]
de liberdade para que este conceba a solução que se apresenta mais adequada para o resultado
definido pela Administração (SUNDFELD (org.), 2005, p. 287).
A própria Presidência da República, nos motivos do veto ao inciso II do art. 11 da Lei n
° 11.079/04, cujo texto original admitia a possibilidade de o edital prever “a responsabilidade
do contratado pela elaboração dos projetos executivos das obras”, entendendo que o
dispositivo, ao permitir apenas a delegação do projeto executivo ao parceiro privado, não
contemplaria a possibilidade de elaboração do projeto básico do objeto do contrato pelos
parceiros privados, remetia a responsabilidade de sua disponibilização à Administração
Pública tal qual ocorria no art. da Lei n° 8.666/93. De acordo com as razões do veto:
As parcerias público-privadas se justificam se o parceiro privado puder
prestar os serviços contratados de forma mais eficiente que a administração
pública. Este ganho de eficiência pode advir de diversas fontes, uma das
quais vem merecendo especial destaque na experiência internacional: a
elaboração dos projetos básico e executivo da obra pelo parceiro privado.
Contratos de parcerias público-privadas realizados em diversos países
comprovaram que o custo dos serviços contratados diminui sensivelmente se
o próprio prestador do serviço ficar responsável pela elaboração dos
projetos. Isso porque o parceiro privado, na maioria dos casos, dispõe da
técnica necessária e da capacidade de inovar na definição de soluções
eficientes em relação ao custo do investimento, sem perda de qualidade,
refletindo no menor custo do serviço a ser remunerado pela Administração
ou pelo usuário (BRASIL, Mensagem 1006/04).
Observa-se que a Presidência invocou a supracitada mudança de paradigma trazida pelas
parcerias público-privadas, em que se substitui o modelo de interesses antagônicos e opostos
pelo primado da conjunção de esforços e competências. E, neste sentido, parte da doutrina
passou a apontar pela desnecessidade de elaboração do projeto básico pela Administração, e a
possibilidade de ser apresentado pelo parceiro privado
99
.
Como visto, a intenção é que a Administração deixe de fornecer o projeto básico e o projeto
executivo, para que estes fiquem a cargo dos próprios interessados, que formulam suas
propostas técnicas de acordo com suas habilidades e conhecimentos. A derrubada da proibição
de participação na licitação do autor do projeto básico presta-se, evidentemente, a permitir que
cada competidor elabore seus próprios estudos, com base nos elementos disponibilizados pela
99
Neste sentido, Sundfeld: “nos contratos de PPP os projetos tanto básico como executivo - podem ficar a
cargo do concessionário” (SUNDFELD, 2005, p. 40).
Administração, para que esta, à frente, analise a vantajosidade de cada proposta e opte pela
que melhor atenda ao interesse público.
De fato, pelo ponto de vista ora exposto, não existiria, a priori, o atentado à isonomia em
sentido amplo quando o autor do projeto individualmente considerado é autorizado a participar
do certame. Isto porque, nas parcerias público-privadas cada licitante elabora um projeto
básico, integrante de sua proposta, a qual uma vez submetida à análise da Administração,
conduziria à escolha da alternativa mais vantajosa ao interesse público.
Sem embargo, em que pese o reconhecimento de que os interessados possam ter
melhor aptidão técnica para o desenvolvimento de soluções mais adequadas às necessidades
da Administração, a possibilidade de os interessados formularem seus próprios projetos
básicos e executivos esbarra no julgamento objetivo e isonômico das propostas. Na medida em
que o preço final da proposta se reporta à obra ou metodologia da atividade, a cotação do
preço do licitante sobre seu próprio projeto pode não ser a mais vantajosa, uma vez que os
outros não tiveram a possibilidade de cotá-los sobre aqueles parâmetros. A situação agrava-se
nas situações em que o critério de julgamento envolver a técnica: sobre que parâmetros seriam
atribuídos melhores valores a determinado projeto e proposta, em detrimento dos demais?
Certo é que se não for oportunizada a todos os licitantes a prerrogativa de cotarem seus preços
sobre os projetos básicos declarados mais convenientes, ou melhores pontuados, mesmo que
dos adversários, a Administração age em descompasso a princípios basilares da licitação
pública e do Direito Administrativo, como, por exemplo, a competitividade, a isonomia e a
supremacia do interesse público.
Visto desta forma, ventila-se a possibilidade de o projeto básico ser fornecido pelos
participantes em harmonia à ordem jurídica, desde que atendidos certos pressupostos. O
primeiro, apontado por Capobianco, seria a oitiva dos interessados e potenciais concorrentes
no empreendimento antes da abertura do certame, tomando a Administração sugestões e
possíveis inovações, introduzindo-as no projeto se aceitas e orçadas por todos os concorrentes,
em igualdade de condições (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 292).
Outro pressuposto, a fim de se privilegiar o escopo pretendido pelo veto presidencial,
de se fazer uso da aptidão técnica privada para a elaboração do melhor projeto básico, assim
como, considerando a própria intenção do legislador, de cooperação entre esfera pública e
privada, consiste no recebimento pela Administração, antes de aberto o certame, dos projetos
básicos apresentados pelos particulares, e em sua avaliação objetiva para eleição daquele que
melhor atende ao interesse público, o que deve ser realizado por meio de licitação pública
processada através da modalidade concurso. A possibilidade de submeterem seus projetos à
avaliação da Administração atende aos pressupostos de competitividade e isonomia.
Sem embargo, a fim de eliminar eventuais vícios capazes de beneficiar o autor do
projeto, a todos os interessados deve caber a prerrogativa de impugná-los e debatê-los,
fazendo uso, inclusive, das informações e estimativas disponibilizadas pela Administração que
orientou a elaboração do projeto vencedor (art. 18, XV, da Lei 8.987/05), além dos dados
utilizados pelo autor do projeto. Fulmina-se, desta forma, com o risco de composição de
preços com base em informações unilaterais prestadas pelo autor do projeto, afastando o risco
de direcionamento.
Egon Bockmann Moreira advoga justamente o entendimento exposto. Confira-se:
A apresentação desse ensaio de projeto básico deve, desde o primeiro
momento, ser gritantemente exposta ao público (a Lei 11.079/2004 prevê a
consulta pública somente para o edital e o contrato art. 10, VI). O eventual
futuro parceiro privado deve estar ciente disso, submetendo também sua
proposta de projeto básico de PPPs à concorrência e ao controle (público e
privado). A única vantagem que pode advir para aquele que elabora a
proposta do projeto básico é a respectiva competência técnico-administrativa
(eventualmente conjugada com critérios geográficos ou interesses regionais
etc.). Desde o momento em que são apresentados à Administração, todos os
dados do projeto devem ser submetidos ao público e à concorrência. Depois
de levado ao conhecimento e debate públicos, o projeto básico (e o
executivo, se for o caso) deverá integrar o edital de licitação e ser
novamente submetido a consulta pública, esclarecimentos, impugnações etc.
(SUNDFELD (org.), 2005, p. 133).
Repita-se que a realização de licitação na modalidade concurso para a eleição do
projeto básico mais vantajoso à Administração, sem o impedimento da participação do autor
do projeto na posterior licitação para sua execução, é a alternativa que melhor se coaduna aos
pressupostos de isonomia e competitividade. Abre-se a oportunidade a todos os interessados
de submeterem seus projetos à Administração, que escolhe aquele que melhor convém ao
interesse público. Em ato contínuo, faculta-se novamente a todos os interessados a
possibilidade de formularem suas propostas em face do melhor projeto, sem privilégios ou
diferenciações injustificadas.
Agindo desta maneira, o parceiro público adota uma conduta impessoal, ampla
publicidade ao contrato pretendido, fomenta o debate acerca das possibilidades técnicas de
determinado projeto, busca o atendimento ao verdadeiro interesse público de eleição da
proposta mais vantajosa, além de tratar todos os interessados de modo isonômico, em atenção
suficiente ao elenco de princípios arrolados no caput e no inciso XXI do art. 37 da CRFB.
4.3.3.2 Transferência do controle da sociedade à entidade financiadora
O exame dos atributos dos licitantes integra o conceito da escolha isonômica do contratado.
Antes de adjudicado um objeto a determinado licitante, a Administração verifica sua
idoneidade, atesta que o mesmo tem capacidade para contratar com o Poder Público. No
entendimento de Sundfeld, dita apuração faz-se necessária a partir do pressuposto de que a
futura contratação não pode ser feita com qualquer sujeito, mas apenas com o qualificado,
técnica e economicamente capaz de cumprir as obrigações avençadas (1995, p. 109).
Neste diapasão, as exigências de habilitação, referentes especialmente à habilitação jurídica,
qualificação técnica, qualificação econômico financeira, e regularidade fiscal, fazem-se
pertinentes uma vez que, tal qual ensina Justen Filho, o direito de contratar com a
Administração não é absoluto. O particular, antes de ter o direito de ser contratado pela
Administração, deve exercer o direito de licitar, de formular perante a Administração uma
proposta de contratação. E nem mesmo o direito de licitar é absoluto, que se trata de um
direito condicionado, subordinado ao preenchimento de certas exigências previamente
conhecidas. Apenas é titular do direito de licitar e, portanto, figurar na condição de contratado
com a Administração Pública, aquele que evidenciar condições de satisfazer as necessidades
públicas e preencher os requisitos previstos na lei e no ato convocatório (JUSTEN FILHO,
2004, p.294).
Orientado pelo princípio da isonomia, o certame que adjudica determinado contrato a
um dos licitantes exige de todos os demais concorrentes as mesmas condições e requisitos para
admissibilidade da futura contratação. Seja pelo procedimento ordinário da Lei 8.666/93,
ou pelo procedimento previsto na modalidade pregão, disciplinada pela Lei 10.520/02, em
que a análise dos documentos de habilitação dá-se em momento posterior às propostas, a
necessidade de todos potenciais contratados serem submetidos à verificação das mesmas
exigências, à aferição dos mesmos atributos, sob pena de favorecimento ou privilégio.
O §1º do art. da Lei 11.079/04, acertadamente, condiciona a transferência do
controle da sociedade à autorização expressa da Administração Pública, e ao cumprimento do
parágrafo único do art. 27 da Lei 8.987/95, que prevê, especialmente, o atendimento
daqueles requisitos, os mesmos de habilitação que atestaram a idoneidade e capacidade do
concessionário vencedor do certame. A intenção é obstar que no curso da execução do objeto
do contrato, o concessionário transfira a outrem o controle da sociedade empresarial
incumbida da gestão da parceria, sem a necessária comprovação de que o pretendente
demonstre atendimento às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira, e
regularidade jurídica e fiscal.
Comentando o dispositivo na Lei de Concessões, Arnoldo Wald, Alexandre de M. Wald
e Luiza Rangel de Moraes assinalam o seguinte:
Na espécie, muito embora não se cuide, propriamente, de prevenir fraudes, o
novo titular do controle societário da concessionária ou da nova candidata a
ocupar o lugar da concessionária deve ser objeto de análise pelo Poder
Público, para que se verifique se estão atendidas as exigências de
capacitação técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal,
necessárias à assunção do serviço. Além disso, em alguns casos, deve ser
constatado o cumprimento da exigência constitucional referente à estrutura,
composição acionária e nacionalidade da empresa, para outorga da
concessão, de modo específico, a brasileiros ou a empresa constituída no
Brasil e que tenha a sua sede e administração no país, na forma do art. 176,
§1º, da Constituição Federal.” (2004, p. 390).
Todavia, não obstante a Lei 11.079/04, em seu art. 9°, § 1°, assegurar a necessidade de
comprovação, pelo pretendente da transferência, de capacidade técnica, idoneidade financeira
e regularidade jurídica e fiscal, o mesmo diploma normativo no inciso I do § de seu art. 5º,
autoriza a transferência do controle da sociedade de propósito específico para seus
financiadores, sem a aplicação das referidas exigências
100
, entabuladas no inciso I, do
parágrafo único do art. 27 da Lei 8.987/95.
Evidentemente que o inciso I do § do art. da Lei 11.079/04 é de manifesta
antijuridicidade. Além de ser contrário a todo o raciocínio que permitia a transferência
mediante a observância das condições de habilitação, a possibilidade de transferência do
controle da sociedade incumbida de gerência da parceria sem o respeito àquelas condições
atenta contra o primado da escolha isonômica do contratado, contra o princípio da finalidade
do processo administrativo de licitação e da supremacia do interesse público sobre o privado.
O princípio da finalidade, como aponta Bandeira de Mello, corresponde à aplicação da lei na
conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada (2005, p. 97).
se teve a oportunidade de assinalar que a licitação é o procedimento específico pela
qual a Administração Pública elege a proposta mais vantajosa, dentro do universo de
proponentes qualificados para figurarem na posição de contratante frente ao Estado. A
admissão de que, após estabelecido o vínculo contratual com o licitante declarado vencedor,
outrem não detentor, especialmente, de qualificação técnica e econômico-financeira possa
assumir aquele vínculo equivale a burla ao procedimento licitatório. A licitação pública, que se
preocupa e se propõe a selecionar proponentes qualificados e propostas vantajosas à
Administração, tem seu objetivo esvaziado na medida em que é facultada a possibilidade de,
no curso da execução do contrato, pessoa diferente daquela apta a contratar ou a executar o
objeto contratado, venha a assumir a avença.
100
Art. Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: [...]
§ 2º Os contratos poderão prever adicionalmente:
I os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle da sociedade de
propósito específico para os seus financiadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e
assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do
parágrafo único do art. 27 da Lei 8.897, de 13 de fevereiro de 1995.
O desvio de finalidade operado na hipótese do contrato ser assumido por aquele que não
detém a capacidade técnica para fazê-lo está intimamente ligado, como se aludiu, à ameaça ao
atendimento do interesse público. Em que pese o texto do dispositivo sugerir que a assunção
do controle da sociedade de propósito específico pelo financiador deve dar-se com o objetivo
de assegurar a continuidade da prestação dos serviços, resta evidente que seu verdadeiro
propósito consiste em reforçar a garantia do financiador em caso de inadimplemento dos
parceiros público e/ou privado. No entendimento de Di Pietro, o dispositivo consubstancia,
inclusive, um tipo singular de garantia, a contragarantia prestada ao financiador (2005, p.
175).
Entretanto, o verdadeiro interesse público é posto em risco na situação em que empresa não
suficientemente habilitada e capacitada pretende assumir a prestação de um serviço ou
atividade complexa, como as objeto de parcerias público-privadas. O interesse privado do
cumprimento de obrigações contratuais perante terceiros é, a todas as luzes, subordinado e
hierarquicamente inferior ao interesse público da manutenção satisfatória do oferecimento do
serviço, justamente por força do postulado da supremacia do interesse público sobre o privado.
A inadimplência de uma relação contratual privada não pode ser oposta à Administração
Pública, tal qual a que daria razão à assunção do controle da sociedade de propósito específico
pelo financiador. O inadimplemento do parceiro privado perante seu financiador deve ser
resolvido sem atentado ao interesse público, sem ameaça à prestação de um serviço público
adequado, realizado por pessoa inidônea e tecnicamente capacitada, e, em especial, sem
afronta à natureza intuito personae do contrato administrativo.
Enfim, o financiador não ganha da Constituição da República privilégio algum frente
aos demais agentes do mercado. Isso se denota pela percepção do próprio caput de seu art. 37,
que consagra o princípio da impessoalidade como um dos vetores da atividade administrativa.
Por força da impessoalidade a que a Administração se encontra subordinada, todos os
administrados devem ser tratados sem discriminações, benéficas ou prejudiciais; não se tolera
favoritismo ou privilégio (BANDEIRA DE MELLO, 2005, p. 104).
Por esta razão, não se pode conceber em legislação infra-constitucional tamanha
diferenciação, que cria privilégio injustificado entre os iguais. Se o financiador pretende
receber o controle da sociedade de propósito específico, deve, como os demais agentes
privados que agem na mesma condição, satisfazer os mesmos requisitos exigidos de todos os
demais interessados, capazes de garantir à Administração a execução excelente de um contrato
administrativo.
4.3.4 O tratamento ambiental
Nas concessões comuns regidas pela Lei 8.987/95, por força de seu art. 18, o edital de
licitação deve observar as normas gerais da legislação própria sobre licitações e contratos. Por
seu turno, a Lei 8.666/93, em seu art. 6º, IX, prescreve que os projetos básicos das
licitações de considerar o adequado tratamento do impacto ambiental dos
empreendimentos.
A Lei de Parcerias Público-Privadas avança na questão ambiental em relação à pouca
efetividade do tratamento dos impactos ambientais dos empreendimentos levados à cabo nas
concessões comuns, dada, especialmente, à dificuldade e aos embaraços dos projetos por força
de problemas com procedimentos de licenciamento ambiental.
Por intermédio do inciso VII do art. 10 da Lei de Parcerias Público-Privadas, torna-se
condicionante para a abertura do procedimento licitatório, isto é, para a própria convocação
dos interessados, a “licença ambiental prévia ou expedição das diretrizes para o licenciamento
ambiental do empreendimento, na forma do regulamento, sempre que o objeto do contrato
exigir”
101
.
101
Vide item 3.5.1.
A previsão é, de alguma forma, coerente. A intenção, a todas as luzes, é de que o
procedimento licitatório se inicie com a licença ambiental prévia, que atesta a viabilidade
ambiental do procedimento, estabelece quais os estudos se fazem pertinentes para a análise
dos impactos ambientais, propõe condicionantes ao projeto inicial para efeito de adequá-lo às
exigências legais e à situação sócio-ambiental concreta, dentre outras características. Tanto
contempla uma análise prévia mais detalhada do empreendimento, quanto evita pendências
administrativas e judiciais na execução do objeto do contrato.
Ocorre que, tal qual está concebida a Lei de Parcerias Público-Privadas, nem sempre o
parceiro público tem condições de, antes de escolhido o parceiro-privado, promover o
licenciamento do empreendimento ou da atividade. É que, a rigor literal, a Lei 11.079/04
prevê a possibilidade do instrumento convocatório da parceria não vir acompanhado de seu
projeto básico, facultando sua apresentação pelo próprio parceiro privado. Como o parceiro
público não dispõe, em tese, de elementos pormenorizados do empreendimento e da atividade,
que seriam disponibilizados pelo próprio parceiro privado, não haveria projeto a ser
previamente licenciado. E, como, nestes casos, cabe ao parceiro público discriminar os
elementos caracterizadores do objeto que pretende contratar, este estabeleceria diretrizes para
o licenciamento a posteriori - a cargo do vencedor do certame - no lugar de ele próprio
promover o licenciamento prévio.
Em que pese se buscar, pretensamente, um maior comprometimento com o meio ambiente,
exigindo desde o ponto de partida do projeto da parceria o licenciamento ambiental prévio do
empreendimento ou atividade, a questão aparentemente singela incide sobre matéria
constitucional e, por tal motivo, merece reflexão mais apurada.
A disciplina da fixação de competência para fins de processamento do licenciamento
ambiental e análise dos impactos ambientais de atividades ou empreendimentos
potencialmente degradantes, ou utilizadores de recursos naturais, encontra fundamento no
princípio básico da repartição de competências contemplado pela Constituição da República.
Decorre do princípio federativo, consagrado pelos arts. e da Constituição da
República
102
, o princípio da predominância do interesse em matéria de distribuição de
competências. Por força do princípio da predominância do interesse, tal qual leciona Moraes,
à União cabe atuação em matérias e questões de predominante interesse geral, ao passo que
aos Estados restam as matérias de predominante interesse regional, e aos municípios, os
assuntos de interesse predominantemente locais (2001, p. 276).
A admissão do licenciamento ambiental como exteriorização do poder de polícia
administrativa importa enquadrá-lo como manifestação do dever de proteção do meio
ambiente, em hipótese prevista como competência comum da União, Estados, Distrito Federal
e Municípios de acordo com a dicção do art. 23 da CRFB
103
. Ao seu passo, a aceitação do
licenciamento como ato decorrente de manifestação da competência comum dos entes
federados equivale ao reconhecimento da inexistência de hierarquia, preferência ou
exclusividade da atuação de um ente em relação aos demais.
Isto posto, quando o raio de influência ou os impactos diretos de determinado
empreendimento atingir interesses predominantemente nacionais, isto é, quando interesses
nacionais se sobreporem aos interesses regionais ou locais, a competência para o
processamento do licenciamento ambiental é do órgão ambiental federal
104
. Na mesma
medida, quando o interesse regional, verificado quando, por exemplo, os impactos diretos de
uma atividade extrapolam os limites de um ou mais municípios, for predominante sobre o
102
Art. - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: [...]
Art. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos temos desta Constituição.
103
Art. 23 É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
III proteger os documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII – preservar as florestas, a fauna e a flora;
IX promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento
básico (grifo acrescido).
104
Sobre o raio de influência direta, ou impactos diretos dos empreendimentos para efeito de fixação de
competência, confira-se Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental, de Daniel Roberto Fink, Hamilton
Alonso Jr. e Marcelo Dawalibi (ALONSO JR.; DAWALIBI; FINK, 2000, p. 18; 40)
interesse das comunidades locais e superior aos interesses de toda a nação, a competência é do
órgão ambiental estadual. Por fim, seguindo o mesmo raciocínio, quando os impactos diretos
do empreendimento não extrapolam os limites de um município, o órgão ambiental municipal
é competente para promover seu licenciamento.
reside a inconstitucionalidade da parte do inciso VII do art. 10 da Lei 11.079/04, que
outorga ao ente público promotor da parceria público-privada a competência para expedir
diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento.
Entende-se o licenciamento ambiental como o complexo procedimento administrativo
pela qual o órgão ambiental competente analisa os aspectos ambientais do empreendimento
utilizador de recursos naturais ou potencialmente degradante, as devidas adequações e
condicionantes para o funcionamento regular da atividade, e emite as pertinentes licenças
ambientais, para fim de atestar a instalação, operação e funcionamento do empreendimento, de
acordo com os parâmetros definidos.
Isto posto, pela redação do inciso VII do art. 10 da Lei 11.079/04, que se admitir
a possibilidade de o estabelecimento de condições para o licenciamento ambiental por
determinado ente federativo invadir a competência originária de outro ente federativo. Por
exemplo, numa obra em construção em área do Estado, que visa atender interesses
econômicos e patrimoniais regionais, o interesse ambiental capaz de fixar competência para
processamento do licenciamento, ou o impacto ambiental direto pode ser predominantemente
local, o que remeteria a análise do procedimento ao órgão ambiental municipal.
Todavia, ainda em referência à situação hipotética aventada, uma vez expedidas as
diretrizes para o licenciamento ambiental do empreendimento pelo ente promotor da parceria,
ligado ao Estado, o mesmo estaria estabelecendo obrigações e condicionantes próprias da
atividade de licenciamento, que, por força constitucional, deveria originariamente serem
estabelecidas pelo órgão ambiental municipal.
Ademais, corre-se o risco de a entidade promotora da parceria, encarregada de elaborar
o instrumento convocatório, não ser dotada de pessoal técnico especializado em matéria
ambiental, como poderia ocorrer, por exemplo, com parte das entidades direta ou
indiretamente controladas pelos entes federados descritas no parágrafo único do art. da Lei
11.079/04. Neste caso, as diretrizes para o licenciamento que deveriam vincular tanto o
órgão ambiental licenciador quanto o parceiro-privado empreendedor, caso a intenção fosse
efetivamente promover a proteção ambiental
105
, emanariam de entidade desprovida de
conhecimento, habilidades, multidisciplinaridade e especialidade necessárias à efetiva
proteção prévia do meio ambiente.
Entretanto, a expedição de diretrizes para o licenciamento pode se dar, em alguns casos, em
conformidade com o ordenamento constitucional. São as hipóteses em que o ente promotor da
parceria seria, também, o constitucionalmente competente para processar o licenciamento
ambiental. Ainda assim, as diretrizes para o licenciamento haveriam de advir, exclusivamente,
do órgão dotado de capacidade técnica para tanto, integrante do Sistema Nacional do Meio
Ambiente SISNAMA. Não encontra respaldo, tal qual asseverado, a expedição de diretrizes
por órgão não detentor de capacidade e conhecimento técnico ambiental
106
.
Enfim: é desprovida de efeitos jurídicos, por ofensa ao princípio constitucional da
predominância do interesse para repartição de competências, a parte do inciso VII do art. 10
da Lei 11.079/04, que outorga à entidade pública, promotora da parceria público-privada,
poderes para estabelecer diretrizes para o licenciamento ambiental dos empreendimentos
objeto das parcerias, quando o ente originalmente competente para apreciação do
licenciamento não for o parceiro público promotor da parceria.
Por ilação lógica, a fim de preservar a vontade do legislador, e em coerência à
interpretação operada nesta pesquisa, caso o projeto básico advenha de um dos licitantes
105
De fato, o que se busca com a expedição de diretrizes para o licenciamento ambiental é condicionar tanto o
Poder Público, para efeito de que, por exemplo, não sejam flexibilizadas exigências e dispensados estudos
ambientais, quanto o parceiro-empreendedor, que não poderá se furtar de atender às diretrizes estabelecidas.
Entendimento contrário, da não vinculação das diretrizes expedidas, esvazia a intenção do dispositivo, de efetiva
análise ambiental preliminar do projeto como condição para seu prosseguimento.
106
A questão pode se agravar quando se admite a possibilidade de influência e pressão, do chefe do executivo,
principal interessado na viabilidade da parceria que pretende promover, no trabalho dos técnicos encarregados de
elaborar as diretrizes, assim como processar o licenciamento propriamente dito. Na hipótese, o autolicenciamento
atentaria, no entendimento de Hamilton Alonso Jr., à necessária neutralidade do licenciador e à moralidade
administrativa (ALONSO JR.; DAWALIBI; FINK, 2000, p. 51-57).
concorrentes, há, necessariamente, que se proceder ao licenciamento ambiental prévio do
projeto básico eleito pela Administração como o que melhor atende ao interesse público, como
condição para a abertura do procedimento licitatório
107
.
4.3.5 Solução de litígios
Dentro do objetivo da presente investigação, cumpre, pois, analisar o último dos aspectos
manifestamente controvertidos do diploma normativo que concebe em nosso ordenamento as
parcerias público-privadas: trata-se da faculdade dos contratos de parcerias preverem cláusulas
que remetam a solução de litígios a mecanismos privados de solução de disputas, em especial
a arbitragem.
Tal qual asseverado no item 3.6 do presente estudo, o inciso III do art. 11 da Lei n° 11.079/04,
permite a possibilidade do instrumento convocatório de parceria público-privada prever “o
emprego de mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser
realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei 9.307, de 23 de setembro de
1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato”.
A adoção de mecanismos privados de resolução de disputas, quando relacionada aos contratos
administrativos, suscita amplo debate tanto no plano teórico quanto prático. Em que pese a
controvérsia se sustentar sobre as mais diversas perspectivas e fundamentos jurídicos, sua
constitucionalidade que ser ventilada, essencialmente, em virtude do primado da
indisponibilidade do interesse público e da moralidade administrativa.
107
Vale lembrar que sem o licenciamento ambiental os interessados não têm, em tese, elementos suficientes para
formularem suas propostas de modo adequado, uma vez que o licenciamento não raro introduz exigências que
encarecem o objeto do contrato.
4.3.5.1 Disponibilidade de direitos patrimoniais e indisponibilidade do interesse público
Tendo em vista as considerações empreendidas no item 3.6, que, em breves linhas, distinguiu
as espécies de mecanismos privados de resolução de disputas, vale lembrar, com amparo à
referência textual do inciso III do art. 11 da Lei n° 11.079/04, que a aplicação da arbitragem no
âmbito dos contratos de parceria público-privada deve se dar em conformidade, no que
couber
108
, com as prescrições da Lei 9.307/96 a Lei de Arbitragem. Admitindo-se que o
próprio art. da Lei de Arbitragem estabelece seu cabimento somente em relação a direitos
patrimoniais disponíveis, a primeira questão a se ater diz respeito ao aparente conflito entre a
necessária disponibilidade dos direitos cuja controvérsia se pretende resolvida pela arbitragem
e o princípio da indisponibilidade do interesse público, que orienta o regime público e a
contratação administrativa.
Para José Afonso da Silva, o princípio republicano estampado no art. da Constituição da
República, no qual se assenta a forma de governo do Estado brasileiro, designa uma
coletividade política com característica de coisa pública. Por sua vez, a coisa pública é aquilo
que é de todos, a que todos têm igual direito (1999, p. 106). Ao aceitar, neste modelo
organizacional, que a coletividade política se orienta pelo primado da coisa pública,
reconhece-se que os órgãos, as entidades e as pessoas jurídicas públicas designadas e
financiadas pelo corpo social para a gerência e o desenvolvimento das atividades que visam o
bem-estar de todos pertencem à coletividade e servem aos interesses do próprio povo.
Perfilando-se ao aludido entendimento, Bandeira de Mello ensina que o órgão
administrativo apenas representa o interesse público. O interesse público, reconhece o autor, é
108
Diz-se, no que couber, ante a série de postulados que o contrato administrativo requer observância, não
contemplados pela Lei de Arbitragem, tal qual a garantia de publicidade, a inafastabilidade do regime público do
contrato em detrimento da eqüidade, entre outros.
próprio da coletividade. Por esta razão é que bens e direitos referentes à atividade
administrativa que visam a satisfação de interesses públicos são inapropriáveis, não se
encontram à livre disposição de quem quer que seja (2005, p. 65). Este é o fundamento do
princípio da indisponibilidade do interesse público: “se os bens públicos pertencem a todos e
a cada um dos cidadãos, a nenhum agente público é dado desfazer-se deles a seu bel prazer,
como se estivesse dispondo de um bem particular” (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p.
338).
Como dito, a questão, a princípio contraditória, diz respeito ao cabimento de
arbitragem, que, no direito positivo brasileiro, é permitida apenas em relação a direitos
patrimoniais disponíveis, frente ao princípio da indisponibilidade do interesse público, que
orienta toda a disciplina da atividade administrativa.
Eros Roberto Grau enfrenta o tema com elevada lucidez. Para o autor, indisponibilidade do
interesse público e disponibilidade de direitos patrimoniais versam sobre diferentes enfoques,
e, portanto, não são excludentes uma das outras. Amparado na lição de Bandeira de Mello,
para quem os interesses públicos podem ser distinguidos em primários (interesses da
coletividade como um todo) e secundários (que o Estado, como sujeito de direito, pode ter
como qualquer outra pessoa), Grau afirma que a Administração, para a realização do interesse
público, rotineiramente dispõe de direitos patrimoniais sem, entretanto, dispor do interesse
público primário. Ao bem da verdade, o autor lembra que em inúmeras vezes a realização do
interesse público é alcançada com a disposição de direitos patrimoniais (2000, p. 19-20).
Direitos patrimoniais disponíveis são os direitos relativos a bens que podem ser apreciados
economicamente, quantificados em moeda, que se referem a bens apropriáveis, alienáveis,
encontrados no comércio jurídico (LIMA, 1997, p. 91). Uma análise singela revela que, de
fato, a Administração, ao celebrar um contrato administrativo, dispõe de interesses
patrimoniais na medida em que destina recursos financeiros para o adimplemento das
obrigações contratuais assumidas. Em virtude do exposto, a solução amigável para a solução
de litígios de ordem financeira, por exemplo, do cumprimento da obrigação pecuniária
assumida pelo parceiro público, não atenta contra a indisponibilidade do interesse público.
Insista-se: prevendo a possibilidade da adoção do procedimento arbitral, a Administração não
dispõe do interesse público primário. Apenas abdica do direito de obter do Judiciário a solução
para a questão, em situações que sua intervenção não se faz indispensável (JUSTEN;
TALAMINI (org.), 2005, p.344), buscando a justiça pelo entendimento, pela via consensual,
mais célere e amparada em julgadores especializados.
Superando a visão isolada, fragmentada, e o dogma de alguns postulados
administrativos tradicionais, ver-se-á que a possibilidade de adoção da arbitragem em
contratos de parceria atende à boa-fé na contratação pública, tal qual se demonstrará a seguir.
4.3.5.2 A solução consensual: pela boa-fé e economicidade
As parcerias público-privadas consubstanciam uma espécie de contratação
administrativa orientada, diretamente, à satisfação imediata de um interesse público. Tal qual
assentado, e perfilando-se ao entendimento de Gustavo Henrique Justino de Oliveira, optando
pela parceria com a iniciativa privada para a satisfação de atividades dirigidas ao
desenvolvimento nacional, automaticamente se põe o parceiro privado em posição distinta das
situações ocupadas pelo particular enquanto mero fornecedor de bens e serviços, ou simples
delegatários de serviços públicos (SUNDFELD (org.), 2005. p. 585).
Nos termos investigados, a parceria público-privada altera a relação jurídica
tradicional, de superioridade hierárquica da Administração e adesão do particular aos termos
por ela postos, para a noção de cooperação, conjunção de esforços e aptidões. O elenco de
inovações até aqui arrolados, como, por exemplo, a possibilidade de desenvolvimento do
projeto básico pelo interessado, e as garantias da contraprestação pública, corroboram essa
realidade.
Entretanto, e também na esteira aduzida é, infelizmente, comum à cultura política
tradicional, o trato irresponsável dos recursos públicos assim como o descumprimento de
avenças administrativas que importem em desembolso de valores pecuniários. Na medida do
asseverado ao item 4.3.2, o Estado é, via de regra, um mau pagador, não cumpridor das
obrigações assumidas perante particulares, obrigando que credores façam valer seus direitos
perante o Judiciário. Os agentes públicos, resistindo ao adimplemento de suas obrigações,
lançam mão da morosidade judiciária como artifício para o aumento das disponibilidades
imediatas de recursos.
Em outros termos: em que pese a parceria público-privada importar na remodelação do
conceito de contratualidade, para migrar da imposição à cooperação entre os parceiros, é ainda
intrínseca à realidade administrativa nacional a prática do descumprimento de obrigações
contratuais assumidas.
Acontece, todavia, que a Constituição da República, em seu art. 37, caput, eleva de
modo expresso, textual, a moralidade pública à categoria de principio vetor da Administração
Pública nacional, ao lado da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. foi
inclusive objeto de comentário na presente investigação, o alcance e sentido do princípio da
moralidade nos contratos administrativos
109
.
Na medida em que o Estado faz a opção pela solução privada de controvérsias no lugar
da intervenção jurisdicional, cumprindo deveres e respeitando direitos, atende ao verdadeiro
interesse público. Conforme enuncia Talamini, nas relações da Fazenda Pública, a ação
judicial e a intervenção jurisdicional, em princípio, não são necessárias para o cumprimento de
deveres como é, por exemplo, na persecução penal. Se o conflito entre o particular é
patrimonial, se lhe pode ser atribuído um valor econômico, e a matéria pode ser solucionada
diretamente entre as partes, é cabível e recomendada a arbitragem. Isto porque, tal qual
anteriormente consignado, por força do princípio da moralidade e da boa-fé, o Estado tem o
dever de cumprir as obrigações assumidas e respeitar direitos alheios independentemente de
intervenção jurisdicional (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 341-343).
109
Vide item 4.3.2
O interesse público não reside na postergação ou no retardo no adimplemento das obrigações
contraídas pelo Poder Público. Em sentido oposto, o interesse público repousa em ver o
Estado, enquanto entidade dotada de capacidade jurídica, respeitar as avenças firmadas, os
direitos legitimamente adquiridos. Não obstante, que o faça de modo instantâneo, ou de modo
mais célere possível, claro que sempre em atenção aos princípios basilares do regime público,
inafastáveis em sede de arbitragem.
Afora isso, a adoção da arbitragem pode imputar vantagens às parcerias público-privadas.
Sem contar com a celeridade no oferecimento de uma solução imparcial, vislumbra-se a
conveniência que a especialidade dos árbitros guardam frente ao conhecimento jurídico
estanque do juiz tradicional. Toma-se como exemplo hipotético, eventual problema relativo ao
desempenho do parceiro privado, para efeito de aferição da remuneração a ele vinculada. A
possível obscuridade nas metas de desempenho contidas no dispositivo contratual podem
receber tratamento mais adequado de expert no assunto, que tenha lidado ou estudado a
fundo o objeto da parceria em outras oportunidades.
Ademais, a possibilidade da adoção da arbitragem para a composição de litígios se
coaduna ao postulado de redução de risco da atividade, em especial, o risco judicial da
delegação de atividade administrativa. Como arrazoa Talamini, “a perspectiva de que
eventuais litígios serão solucionados de modo mais célere e por julgadores especializados na
matéria pode significar uma diminuição de riscos” (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p.
351).
Para atividades complexas tais quais as que pretendem ser objeto de parcerias, que
ser considerada a plausibilidade de qualquer aspecto da execução da atividade vir a sofrer
impugnação judicial com intuito de se tornar dificultosa ou embaraçada a atividade privada,
após terem sido realizados os investimentos necessários à sua prestação. Admitindo-se a
adoção de arbitragem, em que pese não se eliminar a eventual existência de litígios, o risco da
demora da prestação jurisdicional passa a diminuir ou inexistir, de modo a privilegiar o
interesse público de continuidade do oferecimento eficiente da atividade.
Da diminuição dos riscos pode decorrer, ainda, a possibilidade de ampliação do caráter
competitivo do certame. É o que também profecia Talamini, para quem “a predefinição da via
arbitral pode servir para incentivar mais e melhores propostas no processo
licitatório” (JUSTEN; TALAMINI (org.), 2005, p. 350). Ao que tudo indica, a eleição do
procedimento arbitral para a solução de litígios de ordem financeira nas parcerias público-
privadas privilegia a consecução do verdadeiro interesse público na realização de certames;
acenando para uma solução célere e especializada de eventuais litígios, não potencialmente
se atrai um número maior de licitantes, como se viabiliza o oferecimento de propostas menos
onerosas, em perfeito alinhamento ao escopo do procedimento licitatório, de eleição da
proposta mais vantajosa.
Em resumo, a possibilidade de utilização da arbitragem se alinha à vontade constitucional, em
primeiro plano, pela atenção ao mencionado princípio da moralidade, estampado no caput do
art. 37 da CRFB. Da mesma forma, privilegia-se o princípio da economicidade, decorrente do
art. 70 da CRFB (vide item 4.3.1.1.1), porquanto na medida em que possibilita a diminuição
do risco judicial na parceria, acaba aumentando o universo de interessados no certame na
mesma medida em que aumenta a possibilidade de propostas mais vantajosas. Por esse
motivo, inclusive, passa-se a conferir maior respeito ao princípio da eficiência caput do art.
37 da CRFB que, por sua vez, prescreve o dever de obtenção de melhores resultados com a
menor quantidade possível de desembolsos.
________________
Nessa tarefa teórica, em que se parte da concepção jurídica da parceria público-privada à
identificação de seus aspectos controvertidos, torna-se dificultoso, evidentemente, prescrever
em exatidão quais serão os impasses jurídicos que nortearão a disciplina. Todavia, é
interpretando as disposições controversas à luz dos dispositivos constitucionais que o operador
do direito encontrará o verdadeiro sentido perseguido pela ordem jurídica.
A Constituição da República eleva o bem comum - a satisfação de interesses públicos -
ao objetivo e fundamento do Estado brasileiro. E nessa condição, de ferramenta para a
promoção de uma nação justa, respeitadora de direitos fundamentais, é que devem ser
interpretadas as inovações contempladas pela Lei de Parcerias Público-Privadas.
Esvaziam-se, dessa feita, discursos casuísticos, oportunistas, orientados a buscar,
exclusivamente, um aumento nas possibilidades financeiras imediatas dos governantes.
Encara-se, sob o prisma constitucional, a parceria público-privada como ferramenta orientada
à satisfação efetiva do interesse público, da prestação de atividades adequadas, eficientes.
Da mesma forma, a análise constitucional acaba obstando que as parcerias público-
privadas sejam lançadas ao bel prazer do agente público, às atividades que lhe são
convenientes. Passa a se admitir as parcerias a atividades específicas, a objetos inviabilizados
por outras roupagens jurídicas.
Nesse sentido, coaduna-se os fundos garantidores ao contexto jurídico nacional, assim
como se refutam interpretações capazes de atentarem contra o postulado da escolha isonômica
dos contratados. Por fim, postula-se a atenção a princípios constitucionais em matéria de
repartição de competência ambiental e aventa-se a possibilidade da adoção de mecanismos
privados para a solução de litígios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa erigiu-se com o intuito de fomentar o debate acerca das parcerias público-
privadas - enquanto recente inovação importada ao nosso ordenamento - carente, até então, de
um abrangente exame que lhe investigasse seus discursos justificativos, aspectos destacados e
pontos controvertidos.
A preocupação, como asseverado ao início do estudo, dava-se em virtude da constatação da
necessidade das disciplinas jurídicas concebidas num dado momento histórico de se
adequarem, materialmente, ao espírito constitucional. E, neste panorama, o presente exame
alcançou seus propósitos iniciais, confrontando dispositivos polêmicos às prescrições da
Constituição da República Federativa no Brasil.
Ao longo da sistematização designada pela presente pesquisa, urge destacar as seguintes
considerações:
1. A Administração Pública, entendida como a estrutura dotada de racionalidade e
especialidade necessária à execução de comandos legislativos, à materialização da garantia de
direitos fundamentais e à gerência do patrimônio público, dentre outras atividades, ganhou, a
partir do advento do Estado moderno, destaque e proeminência.
A tarefa administrativa oscilou, num primeiro momento de análise, de uma conduta opressora
e patrimonialista típica nas monarquias absolutas, para uma perspectiva de intervenção
mínima, viabilizada pela ascensão dos ideários liberais. Numa segunda etapa histórica,
entendeu-se que caberia ao Estado orientar aspectos da ordem econômica e social, razão pela
qual se atribuiu à Administração Pública a titularidade de uma variada gama de atividades. O
Estado, para conduzir a economia a níveis de crescimento e garantir à população padrões
mínimos de qualidade de vida passou a atuar como empresário, explorando atividades
econômicas e prestando serviços públicos.
A certa altura reconheceu-se que a baixa capacidade de investimento decorrente da crise
econômica que os Estados se encontravam ao final do século XX advinha, especialmente, do
desequilíbrio de contas causado pela assunção daquelas atividades típicas do modelo do bem-
estar social. Propagou-se, por este modo, as propostas neoliberais para a solução da crise,
dentre as quais se destacam as medidas de desestatização.
Orientados pelo princípio da subsidiariedade, grande parte dos Estados contemporâneos
optaram pela remessa à iniciativa privada de parcela significativa das atividades antes ao seu
encargo, com vistas, sobretudo, a desonerar os cofres públicos. E, neste contexto de
desenvolvimento e aprimoramento de ferramentas de delegação de atividades relacionadas à
satisfação de interesses públicos é que são concebidas as parcerias público-privadas.
2. Reconheceu-se, noutro vértice, que a identificação de dado momento histórico em que é
concebida determinada disciplina jurídica, ou do modelo gerencial lhe dá suporte, não é
suficiente para aferir sua legitimidade. Todo programa de governo, de índole mais ou menos
intervencionista, que se conformar formal e materialmente à Constituição, razão pela qual
emergiu a importância de se investigar os termos e pressupostos da ascensão normativa das
Constituições e suas implicações, especialmente no tocante à tarefa administrativa.
Em virtude disso, foram analisados os modelos normativos predecessores do Estado de
Direito - o Estado de força e o Estado de polícia - bem como os fatores de sua derrocada, do
qual se destaca a proeminência do princípio da legalidade.
O Estado, dessa maneira, que se organizasse pelo menos formalmente aos ditames da lei,
passaria a se denominar Estado de Direito. Alterar-se-ia substancialmente o núcleo da relação
administrador/administrado para efeito de imputar à Administração o dever de fazer,
exclusivamente, o que a Lei permitisse; enquanto que ao cidadão caberia fazer o que a lei não
proibisse.
Todavia, a subsunção dos governos aos ditames da lei não asseguravam, por si só, respeito aos
direitos fundamentais e a valores como justiça e liberdade. Muitos Estados, até mesmo os
totalitários, tolhedores de direitos fundamentais, denominavam-se, a certo momento, como
Estado de Direito por organizarem-se em conformidade a uma ordem jurídica posta. Isso se
deu em razão de que faltava às leis um referencial material capaz de lhe conferirem validade
quanto a seu mérito, papel que foi assumido pelas Constituições.
O Estado Constitucional de Direito assenta-se, fundamentalmente, na proeminência das
Constituições, diplomas normativos postos no mais alto grau de uma ordem jurídica, do qual
se irradiam valores e princípios sobre toda a ordem jurídica.
O Estado Constitucional de Direito passa a ser identificado, então, naquelas sociedades
em que se verifica a existência de uma Constituição rígida; em que se garante
jurisdicionalmente a aplicação da Constituição; em que ela possui força vinculante e dela se
possam extrair normas implícitas diante de lacunas; em que se aplica diretamente suas normas;
em que a tarefa interpretativa harmoniza a lei com a Constituição. Por fim, àquelas sociedades
que admitem a influência da Constituição sobre as relações jurídicas como um todo.
Reconhecendo o Estado brasileiro como um Estado Constitucional de Direito, partiu-se
para a identificação do tratamento constitucional que recebe a Administração Pública nacional.
A Constituição da República contempla, em diversas oportunidades, normas relativas à tarefa
administrativa nacional, da qual tornou-se possível extrair seus elementos caracterizadores.
Das garantias relativas aos direitos dos Administrados, passando pelas competências
administrativas, dispositivos referentes à intervenção na ordem econômica e serviços públicos,
pela garantia de direitos sociais, pelo modo de execução das atividades de satisfação de
interesses públicos, aos preceitos constitucionais administrativos, pôde-se observar a
relevância do papel que cumpre à Administração em nosso ordenamento, em especial, na
consecução dos objetivos do Estado brasileiro.
3. Visto desta forma, para se adentrar no mérito da investigação da conformidade das
parcerias público-privadas ao panorama constitucional nacional, emanou a importância de
esclarecer o que, efetivamente, tratam-se as parcerias público-privadas.
O terceiro capítulo deste estudo apontou a origem da parceria público-privada como
instrumento aperfeiçoado na década de 90 na Inglaterra, com fórmula exportada para um vasto
número de países. No caso brasileiro, salientou-se sua natureza, de nova disciplina jurídica
desenvolvida para efeito de regulamentar duas novas espécies de delegação de serviços, obras
e outras atividades destinadas à satisfação de interesses públicos.
Apontou-se que as parcerias público-privadas se destinam, no caso brasileiro, a
contemplar uma série de atividades que antes viam-se incapazes de serem prestadas pela
iniciativa privada, por meio das concessões comuns. Dada a impossibilidade de custeio da
atividade diretamente de seus usuários diretos ou beneficiários, ou a existência de relevantes
riscos que inviabilizam o interesse privado na empreitada, a Administração passa a repartir os
riscos da operação, em especial o econômico, oferecendo contraprestação pública de modo a
remunerar o particular parcial ou integralmente.
Identificou-se, nesse diapasão, o conceito jurídico da parceria público-privada como
espécie de contrato administrativo de delegação de serviços públicos, obras públicas e outras
atividades de satisfação de interesses públicos, com repartição, entre os parceiros, dos riscos
da atividade, de prazo de duração prolongado e vultoso valor econômico, em que se sublinha a
existência de contraprestação pública ao parceiro privado para a remuneração da atividade, de
modo integral ou adicional às tarifas cobradas dos usuários.
Dentre os aspectos destacados que mereceram destaque nesta pesquisa, tratou-se: a) da
repartição de riscos – abrangendo suas espécies e, especialmente, o tratamento do risco
econômico -; b) da contraprestação pública em que se destacou o prazo de duração do
contrato, aspectos referentes à remuneração do parceiro privado, à vinculação ao desempenho,
ao compartilhamento de ganhos econômicos, aos limites da contraprestação pública, ao
sistema de garantias (fundo garantidores e contragarantias) –; c) das sociedades de propósito
específico; d) da licitação e; e) da possibilidade do uso da arbitragem.
4. Dispondo de todas essas informações e elementos, concluiu-se efetivamente que a
parceria público-privada se erigiu sobre um discurso equivocado, incoerente ao verdadeiro
propósito do instituto. É que o argumento de insuficiência financeira, ainda que legítimo, não
deve ser o fundamental para justificar o desenvolvimento de novas disciplinas jurídicas para a
contratação estatal. As parcerias público-privadas devem se propor, exclusivamente, a
viabilizar a participação privada em áreas não atrativas ao mercado, razão pela qual a
legislação teve de se ater a disciplinar a contraprestação pública e um eficiente sistema de
garantias para o adimplemento das obrigações assumidas.
As parcerias público-privadas não servem para todo e qualquer tipo de atividades. A
modalidade patrocinada, por exemplo, deve contemplar serviços e obras públicas que trata a
Lei de Concessões, desde que não sejam auto-sustentáveis. a parceria público-privada na
modalidade administrativa busca viabilizar a delegação de atividades destinadas à satisfação
de interesses públicos incapazes de serem custeadas diretamente por seus usuários ou
beneficiários. Visam, por exemplo, atividades de saneamento ambiental, de apoio ao poder de
autoridade do Estado e serviços sociais, dentre outros.
É mais que justificável, é necessário para o êxito das parcerias, o desenvolvimento de
mecanismos eficientes de garantia, como os fundos garantidores. Estes, restou claro, não
representam desvio de finalidade do mecanismo de precatórios na medida em que sua verba
não concorre com a verba pública daquele regime. Uma vez transferido ao fundo, o patrimônio
público perde a natureza de bem público, passando a se reger pela lógica privada. Não se fala,
pois, em inconstitucionalidade da garantia prestada pelos fundos ou empresas estatais criadas
para tais fins.
As parcerias, apesar de se assentarem nos pressupostos de colaboração - de conjunção
de competências -, no momento da escolha dos parceiros e classificação das propostas não
podem se afastar do princípio da isonomia, que rege a matéria. Por esta razão, a todos os
concorrentes deve ser aberta a possibilidade de formularem suas propostas em referência ao
projeto básico e/ou executivo que melhor atende ao interesse público. Da mesma forma, ainda
em atenção ao princípio da isonomia, deve-se admitir como anti-jurídica a possibilidade das
entidades financiadoras das parcerias público-privadas de assumirem o controle das
sociedades de propósito específico incumbidas da gerência da atividade, quando não atendidas
pela entidade pretendente as exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira,
regularidade jurídica e fiscal.
Ademais, é imperativo que os atos referentes ao licenciamento ambiental da atividade,
o que abraça inclusive a elaboração e expedição de diretrizes gerais para o licenciamento
prévio da atividade, provenha do órgão constitucionalmente competente para tal tarefa, sob
pena de se invadir a esfera de competência de determinado ente federativo.
Por fim, coube aventar a constitucionalidade da eleição de mecanismos privados para a
solução de disputas nas parcerias público-privadas, em especial a arbitragem, na medida em
que não há, como visto, choque entre o requisito da arbitragem disponibilidade de direitos
patrimoniais – e o princípio da indisponibilidade do interesse público. Na verdade, a adoção da
arbitragem privilegia inclusive outros princípios constitucionais relevantes, como por
exemplo, a moralidade, a economicidade e a eficiência.
Reafirmou-se, desse modo, o propósito inicial deste trabalho, de se investigar a
constitucionalidade de aspectos controvertidos do instituto. Mais que isso, a análise de ditos
aspectos à luz da Constituição da República acabou por conformá-los aos verdadeiros
objetivos perseguidos pelo Estado brasileiro, de construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, de garantia do desenvolvimento nacional, da redução das desigualdades sociais e
regionais, da erradicação da pobreza, e, especialmente, da promoção do bem-estar coletivo.
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